434
1 TAMBORES DE OUTONO DIANA GABALDON Titulo original: Druns of Autumn

TAMBORES DE OUTONO DIANA GABALDON...DIANA GABALDON Titulo original: Druns of Autumn 2 Prólogo Nunca tive medo aos fantasmas. depois de tudo, vivo com eles cada dia. Quando me Miro

  • Upload
    others

  • View
    8

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

1

TAMBORES DE OUTONO

DIANA GABALDON

Titulo original: Druns of Autumn

2

Prólogo

Nunca tive medo aos fantasmas. depois de tudo, vivo com eles cada

dia. Quando me Miro em um espelho, os olhos de minha mãe me

devolvem o olhar e minha boca se curva com o sorriso que seduziu a meu bisavô para que eu tivesse meu destino.

Como vou temer o roce dessas mãos que se desvanecem, que se detêm sobre mim com um amor desconhecido?. Como vou ter medo daqueles que moldaram minha carne, deixando seu rastro para viver

muito além da morte?. Menos ainda poderia temer a esses fantasmas que roçam meus

pensamentos ao passar. Todas as bibliotecas estão cheias deles. Posso

agarrar um livro das prateleiras poeirentas e me apanharão os pensamentos de alguém morto faz tempo, mas ainda vivo em sua

mortalha de palavras. É obvio, não são os ordinários e acostumados fantasmas que

turvam o sonho e aterram ao insone. Olhe para trás e acenda uma

lanterna para iluminar os rincões apartados na escuridão. Escute as pisadas que ressonam detrás quando caminha sozinho.

Continuamente, os fantasmas revoam e passar através de nós, ocultando-se no futuro. Olhamos no espelho e vemos as sombras de outros rostos olhando através dos anos; vemos a silhueta da memória,

erguida com firmeza na soleira vazia da porta. Por sangue e por eleição, criamos nossos fantasmas, perseguimos a nós mesmos.

Cada fantasma sai espontaneamente dos terrenos confusos do

sonho e o silêncio. Nossa mente racional diz: “Não, não é assim”.

Mas outra parte, uma parte mais antiga, sempre repete brandamente na escuridão: “Sim, mas poderia ser”.

Vamos e vamos pelo mistério, tratando de esquecer. Mas quando

uma rajada de ar passa por uma habitação e agita meu cabelo, acredito que é minha mãe.

PRIMEIRA PARTE

MARAVILHOSO NOVO MUNDO

1 Um enforcado em Éden

3

Charleston, junho de 1.767 Escutei os tambores muito antes de poder vê-los. Os golpes ressonavam na

boca de meu estômago como se eu também estivesse oca. As cabeças se voltavam e a gente ficava em silêncio olhando a rua East Bay, que se estendia da estrutura em construção da nova alfândega até os jardins do White Point.

O dia era caloroso inclusive para o Charleston no mês de junho. Os melhores sites estavam no dique, onde o ar circulava, mas aqui embaixo era

como cozer-se vivo. Naquele momento, era morbosamente consciente dos pescoços. Coloquei

uma mão no meu e o percorri com os dedos. O pulso de minhas artérias carótidas

pulsava ao mesmo ritmo que os tambores e, ao respirar, o ar úmido e quente obstruía minha garganta, me afogando. Baixei a mão e respirei profundamente. Foi um engano. O homem que tinha em frente não se banhou em meses. Também

havia vários meninos, estirando-se boquiabertos para olhar para a rua enquanto seus pais, ansiosos, chamavam-nos. A menina mais próxima a mim tinha o

pescoço como a parte branca de um caule de erva, elástico e suculento. produziu-se um estremecimento entre a multidão quando a procissão da

forca apareceu ao final da rua. Os tambores soaram mais forte.

-Onde está? -murmurou Fergus, estirando o pescoço para poder ver-. Sabia que teria que ter ido com ele!

-Tem que estar aqui. Quis me pôr nas pontas dos pés, mas não me pareceu digno para o

momento. Segui procurando ao redor. Sempre podia localizar ao Jamie entre a

multidão; sua cabeça e ombros se sobressaíam por cima da maioria dos homens e seu cabelo refletia a luz como um brilho de ouro avermelhado. Entretanto, não havia rastro dele.

Primeiro apareceram as bandeiras, ondulando sobre as cabeças da agitada multidão, com as insígnias de Grã-Bretanha, da Real Colônia da Carolina do Sul

e o escudo da família do lorde governador da colônia. Logo chegaram os tambores, partindo de dois em dois e alternando um golpe forte com outro mais amortecido. Era uma marcha lenta, sombria e inexorável. Uma marcha fúnebre,

assim chamavam a aquela cadência em particular, muito adequada para as circunstâncias. O resto dos ruídos ficavam apagados pelo som dos tambores. A

seguir partia o pelotão de casacas vermelhas, em meio dos quais se encontravam os prisioneiros. Eram três, com as mãos atadas por diante e unidos por uma cadeia que os uncía os pescoços com argolas de ferro.

-Esse é Gavin Hayes? Parece doente —murmurei ao Fergus. -Está bêbado. A voz suave vinha de minhas costas; dava-me a volta rapidamente e

descobri ao Jamie com os olhos cravados na deprimente procissão. A falta de equilíbrio do homenzinho entorpecia o progresso da marcha; seus

tropeções obrigavam aos outros dois homens encadeados com ele a ziguezaguear para não cair. A impressão que davam era de três bêbados voltando para casa do botequim.

-Foi você? -perguntei em voz baixa para não chamar a atenção, embora poderia ter gritado e agitado os braços pois ninguém tinha olhos mais que para a cena que se desenvolvia ante nós.

-Pediu-me isso -respondeu-. E foi o melhor que pude fazer por ele. -Brandy ou uísque? -perguntou Fergus.

-O homem é escocês, pequeno Fergus.

4

A voz do Jamie era tão tranqüila como a expressão de seu rosto, mas notei

a tensão que ocultava. -Uma eleição muito sábia. Com sorte, nem sequer se dará conta quando o

enforcarem -murmurou Fergus. O capitão do guarda tinha o rosto avermelhado pelo sol e a fúria; brilhava

entre o branco de sua peruca e o metal de sua garganta. Gritou uma ordem

enquanto os tambores continuavam seu sombrio rufo, e um soldado se apressou a desencadear aos prisioneiros. Hayes foi levantado sem cerimônia alguma por

duas soldados e a procissão continuou mais ordenada. Quando chegaram à forca, um carro com uma mula baixo os ramos de um

grande carvalho, ninguém ria.

-Não precisa olhar -sussurrou Jamie—. Retorna ao carro. Seu olhar estava cravado no Hayes, que se retorcia sujeito pelos soldados

enquanto olhava confundido.

Quão último desejava era olhar. Mas tampouco ia deixar que Jamie passasse sozinho por tudo aquilo. Estava ali por causa do Gavin Hayes e eu

estava por ele. Toquei-lhe a mão. -Me vou ficar. Jamie se ergueu, endireitando os ombros. Deu um passo adiante para ser

visível em meio da gente. Se Hayes ainda estava sóbrio para ver algo, quão último veria neste mundo seria o rosto de um amigo.

Podia ver, pois enquanto o subiam ao carro torcia o pescoço com desespero. -Gabhainn! A charaid! -gritou de repente Jamie. Os olhos do Hayes o encontraram e deixou de lutar. Então os tambores

começaram outra vez, com rufos parecidos. O verdugo passou o laço pela cabeça calva e ajustou o nó, colocando-o

debaixo da orelha. O capitão do guarda permaneceu erguido, com o sabre levantado.

de repente, o homem condenado se endireitou. Fixou os olhos no Jamie e

abriu a boca como se fora a falar. A espada brilhou com o sol da manhã e os tambores se detiveram com um

rufo final.

Olhei ao Jamie; tinha o rosto pálido e os olhos muito abertos. De reojo pude ver o balanço da soga e o espasmo de um montão de roupa. Um forte aroma de

urina e excrementos alagou o ar pesado. A um lado, Fergus observava impávido. -Suponho que, depois de tudo, deu-se conta —murmurou com pena. O corpo pendurava oscilando ligeiramente como um prumo.

Não tinha conhecido ao Gavin Hayes e não sentia dor pessoal por sua morte, mas me alegrava que tivesse sido rápida.

Olhei de esguelha, com a estranha sensação de ser uma intrusa. O capitão do guarda, satisfeito ao comprovar que Hayes tinha morrido, fez

um gesto com a espada para que subissem ao seguinte. Vi seu olhar percorrendo

a fila e como se transformava em uma expressão ultrajada no mesmo momento em que se ouvia um grito entre a multidão e uma corrente de excitação se estendia com rapidez. As cabeças se voltavam e todos tratavam de ver.

—escapa! -por ali!

—Detenham-no! Era o terceiro prisioneiro, um homem jovem e alto, que aproveitou o

momento da morte do Gavin para escapar. Os guardas que o vigiavam não

tinham podido resistir à fascinação do linchamento.

5

O capitão do guarda gritava com o rosto congestionado; sua voz era apenas

audível no meio do escândalo. O prisioneiro que ficava, muito assombrado, foi levado a quartel; depois os soldados começaram a organizar-se baixo as ordens

do capitão. Jamie me passou um braço pela cintura e me arrastou fora da maré

humana.

—Será melhor procurar o Ian -disse Jamie. Lançou um olhar ao Fergus e torceu a cabeça para o patíbulo e seu triste carrega. -Reclama o corpo, quer?

Encontraremo-nos mais tarde no botequim do Salgueiro. -Crie que o apanharão? -perguntei enquanto nos abríamos passo entre a

gente.

-Isso espero. Onde poderia ir? -Hayes tinha família? -perguntei. Jamie negou com a cabeça.

—O perguntei quando lhe levei o uísque. Disse-me que podia ser que um irmão seu ainda vivesse, mas não tinha idéia de onde estava. Foi deportado a

Virginia, conforme acreditava Gavin, mas nunca soube nada. -Duncan! -gritou Jamie; um homem alto e magro se voltou e levantou uma

mão.

-MAC Duhh -disse, inclinando a cabeça para saudar o Jamie-. Senhora Claire.

Seu rosto alargado estava cheio de tristeza. O também tinha estado prisioneiro no Ardsmuir, com o Hayes e Jamie. Perdida-a de um braço por uma infecção evitou que o deportassem com os outros. Como não podiam vendê-lo

para trabalhar, foi perdoado e posto em liberdade para que morrera de fome, mas Jamie o encontrou antes de que isto ocorresse.

-Deus acolha em seu seio ao pobre Gavin -disse Duncan, sacudindo a cabeça com pena.

Jamie murmurou uma resposta em gaélico.

-Assim seja. Bem, tenho que ir ao mole para arrumar o da passagem do Ian e logo pensaremos no enterro do Gavin. Primeiro tenho que encontrar ao moço.

Encaminhamo-nos para o mole. Uma coluna de casacas vermelhas partia

rapidamente pela outra ponta, abrindo-se passo entre a multidão. -Cuida seu moedeiro, Sassenach -murmurou Jamie em meu ouvido, me

empurrando entre um escravo com turbante e um pregador guia de ruas subido a uma caixa.

Falava sobre o pecado e o arrependimento, mas o ruído lhe superava.

-Tenho-o costurado. -Tranqüilizei-lhe enquanto tocava a bolsita que pendurava em minha coxa—, E o teu?

Sorriu zombador e se jogou o chapéu fazia diante. -Está onde deveria estar meu embornal. Enquanto não me encontre com

uma prostituta de dedos rápidos, estará a salvo.

Olhei o ligeiro vulto da parte dianteira de seus calções e logo o observei. Alto, de costas largas, com facções bem definidas e o porte orgulhoso dos montanheses; atraía os olhares de todas as mulheres que passavam, até com seu

brilhante cabelo coberto pelo discreto tricornio azul. Os calções, emprestados, eram muito ajustados e não faziam mais que melhorar seu aspecto geral, efeito

que aumentava pelo fato de que Jamie não se dava conta. -É uma tentação andante para as prostitutas -pinjente-. Fique perto, eu te

protegerei.

6

Riu e me agarrou do braço enquanto nos detínhamos em um pequeno

espaço livre. -Ian! -gritou ao divisar a seu sobrinho entre a multidão.

Ao momento, um moço alto e fraco, com ar distraído, saiu de entre a gente, apartando uma mecha de cabelo castanho que lhe tampava os olhos e sonriendo alegremente.

-Tio Jaime, acreditei que nunca te encontraria! -exclamou-. Diabos, há muita mais gente aqui que no mercado do Edimburgo.

-Ian, sua alegria é indecente depois de ver enforcar a um homem. -Ah, não, tio Jamie -disse-. Não vi como o penduravam. -Duncan levantou uma sobrancelha e o moço se ruborizou-. Não é que

tivesse medo, mas... queria fazer outra coisa. Jamie sorriu e aplaudiu as costas do Ian. -Não se preocupe, Ian; eu também tivesse desejado não vê-lo, mas Gavin

era um amigo. -Sei, tio. Lamento-o. -Uma faísca de compreensão iluminou os grandes

olhos marrons do jovem, o único realmente bonito de sua cara. voltou-se para mim-. Foi muito horrível, tia?

-Sim -respondi-, mas já terminou.

-Vamos -interveio Jamie-. O navio deve estar ao final do mole. Ian se encolheu de ombros, olhou-me e me ofereceu o braço.

Seguimos ao Jamie entre os depósitos, esquivando marinheiros, escravos, estivadores, passageiros, compradores e toda classe de vendedores. Charleston era um porto importante e os negócios deviam prosperar, a julgar pela

quantidade de navios que foram e voltavam para a Europa durante a temporada. O Bonnie Mary pertencia a um amigo do sobressaio do Jamie, Jared Fraser,

quem se tinha instalado na França para fazer fortuna com o comércio do vinho e tinha tido muito êxito.

Se tínhamos sorte, o capitão permitiria que Ian viajasse até o Edimburgo

pagando sua passagem trabalhando de grumete. Ian não estava entusiasmado com a perspectiva, mas Jaime tinha decidido

embarcar a seu sobrinho para Escócia à primeira oportunidade. Procurar um

navio no Charleston foi, entre outras preocupações, a causa de que deixássemos Georgia, onde tínhamos chegado dois meses antes por acidente.

-Ainda estão a salvo as jóias da família?-murmurei. -Incômodas, mas seguras -assegurou-me com uma careta-. Acredito que

tivesse sido melhor que as escondesse em meu traseiro.

As jóias da família eram exatamente isso. Um furacão nos tinha miserável até a costa da Georgia e o único que ficava era um punhado de pedras preciosas

de grande tamanho e valor. Confiava em que o capitão do Bonnie Mary apreciasse o suficiente ao Jared Fraser para aceitar ao Ian como grumete porque, de não ser assim, teria dificuldades com a passagem. Em teoria, o embornal do Jamie e meu

bolsita continham uma fortuna considerável. Mas na prática, as pedras preciosas poderiam ser calhaus. Era uma forma fácil de transportar uma fortuna, mas o

problema era as trocar por dinheiro. Charleston era a primeira cidade com suficiente quantidade de

comerciantes e banqueiros para poder trocar parte de nossa congelada fortuna.

Embora era difícil que algo permanecesse congelado durante muito tempo no Charleston e no verão, refleti.

As gotas de suor corriam por meu pescoço e molhavam minha regata.

7

Apesar de suas negativas, Jamie tinha insistido em entregar uma de nossas

pedras ao senhor e a senhora Olivier, a bondosa gente que nos tinha agasalhado em sua casa, em sinal de agradecimento. Tinham-nos proporcionado o carro, dois

cavalos, roupa limpa para a viagem, comida e um pouco de dinheiro. Na bolsa já só ficavam seis xelins e três peniques, todo nosso dinheiro

disponível.

-por aqui, tio Jamie -disse Ian-. Tenho algo que te ensinar. -Do que se trata? -perguntou Jamie, esquivando a um grupo de suarentos

escravos-. E como o conseguiste, seja o que seja, se não ter dinheiro? -Não, não tenho dinheiro; foi com os jogo de dados. -Jogo de dados! Ian, pelo amor de Deus, não pode jogar quando não tem

nem um penique. -Você o faz sempre, tio Jamie -assinalou o moço, detendo-se para nos

esperar-. Tem-no feito em tudo os botequins e estalagens onde paramos.

-Mas eram cartas, Ian, não jogo de dados! E eu sei o que faço! -Eu também -respondeu com ar presumido-. Ganhei, não?

-Pelo amor de Deus, Ian, me alegro de que não lhe tenham quebrado a cabeça até agora. me prometa que não jogará com os marinheiros. Em um navio não teria escapatória.

Mas Ian não lhe emprestava atenção; tinha chegado até um vulto escuro pacote com uma corda.

-É um cão —disse com orgulho. -Ian —disse—, não é um cão. É um lobo. É um lobo muito grande, e

acredito que deveria te liberar dele antes de que te remoa o traseiro.

O lobo dobrou uma orelha em minha direção com ar indiferente e a deixou cair. Seguiu ofegando pelo calor, com os grandes olhos de cor amarela fixas no Ian com uma intensidade que poderia tomar por devoção alguém que não se

encontrou antes com um lobo. Eu o tinha feito. Sem preocupar-se, Jamie inspecionou ao animal.

-Não é exatamente um lobo, verdade? -Muito interessado, estendeu a mão para o suposto cão para que farejasse seus nódulos-. É um animal muito bonito, Ian —afirmou, arranhando aquela costure com familiaridade debaixo do focinho.

Os olhos amarelos se entrecerraron, possivelmente pelo prazer da carícia ou, segundo meu ponto de vista, antecipando uma dentada no nariz do Jamie-.

Embora seja maior que um lobo: tem as patas mais largas e a cabeça e o peito mais largos.

-Sua mãe era um galgo irlandês. -Ian estava agachado ao lado do Jamie,

explicando laborioso, enquanto lhe acariciava o enorme lombo de cor castanha com tons cinzentos-. escapou ao bosque estando em zelo e quando retornou para parir...

-OH, sim, já vejo. Jamie cantarolava em gaélico, levantava uma das patas do monstro e

examinava seus pezuñas peludas. As unhas eram curvas e mediam mais de cinco centímetros.

Olhei de esguelha ao Duncan, quem levantou as sobrancelhas, encolheu-se

de ombros e suspirou. Ao Duncan não interessavam os cães. -Jamie -pinjente. -Balach Boidheach -disse Jamie ao lobo-. É um formoso animal.

-O que comerá? -perguntei, em voz mais alta do que tivesse querido. Jamie deixou de acariciar ao animal.

-Temo-me que sua tia tem razão, Ian. Como o vamos alimentar?

8

-Isso não é problema, tio Jamie -assegurou Ian-. Caça para comer.

-Aqui? -Joguei um olhar aos depósitos-. Que caça? Meninos? -É obvio que não, tia -respondeu ofendido-. Peixes.

Ao ver três rostos que o observavam com cepticismo, Ian abriu o focinho do animal com as duas mãos.

-Juro que é assim, tio Jamie! Pode cheirar seu fôlego.

-Mm... vou aceitar sua palavra, Ian. Mas de todos os modos, tome cuidado com seus dedos, moço!

Ian tinha solto o focinho do cão e das fauces lhe caía um jorro de saliva. -Estou bem, tio -disse alegremente Ian, secando-as mãos nos calções—.

Estou seguro de que não me vai morder. Seu nome é Cilindro. -Bom, não importa como se chame, nem o que vírgula; não acredito que o

capitão aceite o ter entre sua tripulação.

Ian não respondeu, mas a expressão de alegria de seu rosto não trocou. Em realidade, aumentou. Jamie lhe olhou, notou seu regozijo e ficou petrificado.

-Não -disse, horrorizado-, OH, não!

-Sim -respondeu Ian. Um amplo sorriso de satisfação se estendeu por seu rosto ossudo-. Partiu faz três dias, tio. chegamos muito tarde.

Jamie disse algo em gaélico que não entendi, mas que escandalizou ao

Duncan. -Sinto muito, tio. Tentarei não causar problemas, de verdade; posso

trabalhar e ganhar o necessário para pagar minha comida. O rosto do Jamie se adoçou ao olhar a seu sobrinho. Suspirou

profundamente e lhe aplaudiu as costas.

-Não é que eu não queira, Ian. Sabe que nada eu gostaria mais que te ter comigo. Mas que diabos dirá sua mãe?

O brilho retornou ao rosto do moço. -Não sei, tio —respondeu—, mas o dirá em Escócia e nós estamos aqui. agachou-se para abraçar a Cilindro. O lobo pareceu surpreso pelo gesto

mas em seguida tirou sua larga língua rosada e lambeu a orelha do Ian. Provando seu sabor, pensei com cinismo.

-Além disso -acrescentou o moço-, ela sabe que estou bem; você lhe escreveu desde a Georgia para lhe avisar de que estava contigo.

Jamie se permitiu um sorriso zombador.

-Não acredito que isso a reconforte. Conhece-me faz muito, sabe? Suspirou, colocou-se o chapéu e se voltou para mim. -Necessito um gole, Sassenach. vamos procurar esse botequim.

O botequim do Salgueiro era escura e com menos gente poderia ter sido fresca. Cilindro demonstrou imediatamente sua utilidade, abrindo-se passo entre

a multidão com um leve grunhido. Era evidente que conhecia os botequins pois, depois de nos conseguir uma mesa em um rincão, pôs-se a dormir.

Longe do calor do sol e com uma grande jarra de cerveja negra, Jamie

recuperou rapidamente seu aprumo. -Temos duas possibilidades -disse, tornando-se para trás o cabelo suado-.

Podemos ficar no Charleston o tempo suficiente para tratar de encontrar comprador para uma das pedras e talvez uma passagem para o Ian em outro navio. Ou podemos seguir pelo norte, para Cape Fear, e procurar um navio no

Wilmington ou New Bern. -Eu digo que vamos ao norte -disse Duncan sem vacilar-. Tem parentes em

Cape Fear, não? Eu não gosto da idéia de ficar muito tempo entre desconhecidos.

9

-Vamos ao norte, tio! -interveio Ian antes de que Jaime pudesse responder-.

A viagem pode ser perigoso e necessitará um homem mais como amparo, não é certo?

Jamie ocultou sua expressão com a jarra, mas eu vi que se estremecia. Realmente queria muito a seu sobrinho. O que acontecia era que Ian era o tipo de pessoa a que sempre lhe acontecia algo.

Um ano antes tinha sido seqüestrado por uns piratas e a necessidade de nos resgatá-lo tinha feito empreender a viagem até a América. Não lhe tinha

acontecido nada ultimamente, mas sabia que Jamie estava ansioso por mandar a seu sobrinho, de quinze anos, a Escócia com sua mãe antes de que ocorresse qualquer outra coisa.

-Ah... seguro, Ian -disse Jamie, evitando me olhar embora pude detectar um sorriso-. Será de grande ajuda, estou seguro, mas...

-Ao melhor encontramos com os corte vermelhas! - exclamou Ian com os

olhos dilatados-. Ou com animais selvagens, como ursos ou pumas, ou isso que os índios chamam mofetas.

Engasguei-me com a cerveja. -Está bem, tia? Ian se inclinou ansioso por me ajudar.

-Muito bem. -Então captei uma expressão de preocupação no rosto do Jamie-. As mofetas não são perigosas-murmuré, apoiando uma mão sobre seu

joelho. Embora era um caçador valente e habilidoso em suas montanhas nativas,

ao Jamie preocupava a fauna desconhecida do Novo Mundo.

-Mmm. -A preocupação quase se apagou de seu rosto-. Pode ser. Mas e os outros animais? Não acredito que eu gostasse de me enfrentar a um urso ou a um grupo de selvagens só com isto -disse tocando o comprido faca que

pendurava de seu cinturão. A falta de armas tinha preocupado ao Jamie durante nossa viagem desde a

Georgia e agora Ian havia tornado a lhe recordar o tema. Além disso da faca do Jamie, Fergus tinha uma pequena navalha que servia para cortar cordas. A viagem ao norte se fazia imprescindível, já que não tínhamos dinheiro. Cape Fear

era o assentamento escocês maior das colônias, com muitos povos formados por imigrantes dos últimos vinte anos. E entre eles estavam os parentes do Jamie,

que nos ofereceriam refúgio: um teto, uma cama e tempo para nos estabelecer neste novo lugar.

Jamie bebeu outro gole e fez um gesto ao Duncan.

-Devo dizer que estou de acordo contigo, Duncan. –tornou-se para trás apoiando-se contra a parede e Lançou um olhar indiferente pelo lugar-. Não sente uns olhos em suas costas?

-Os olhos de quem? -perguntei com um olhar nervoso. -De qualquer, Sassenach -respondeu Jamie. Me olhou de esguelha e sorriu-

. Não ponha cara de medo. Não estamos em perigo. Aqui não. -Ainda não -disse Innes, servindo-se outra jarra de cerveja-. MAC Dubh

chamou o Gavin quando o foram pendurar. Alguns têm que havê-lo notado, não é

tão pequeno -acrescentou. -E os granjeiros que vieram conosco desde a Georgia já teriam vendido sua

mercadoria e devem estar em alguma botequim. Todos são homens honrados, mas falarão, Sassenach. É uma boa história, não? Os que apareceram com o furacão. E quantas são as possibilidades de que, ao menos um, pergunte-se o

que trazíamos?

10

-Já vejo —murmurei.

Tínhamos atraído a atenção pública por nossa relação com um criminoso e já não podíamos passar por viajantes comuns.

Jamie levantou sua jarra e bebeu um bom gole, logo a deixou com um suspiro.

-Não, não seria inteligente ficar na cidade. vamos ocupar nos de enterrar

decentemente ao Gavin e logo procuraremos um lugar seguro no bosque para dormir. Amanhã decidiremos se vamos ou ficamos.

A porta do botequim se abriu de repente e quatro casacas vermelhas se abriram passo entre a gente. Levavam o uniforme completo e o fuzil com a baioneta imersão fazia evidente que não estavam ali para tomar uma cerveja ou

jogar aos jogo de dados. Jamie parecia tranqüilo bebendo sua cerveja, mas a mão apoiada em

minha coxa se esticou. Duncan, com mais dificuldade para dissimular seus

sentimentos, inclinou a cabeça para ocultar sua expressão. Nenhum homem se sentia cômodo ante a presença dos casacas vermelhas, por muitas e boas razões.

Quando os soldados se dirigiam para a saída, a magra figura do Fergus se apertou contra a porta para evitar que o empurrassem.

Um dos soldados observou com interesse o brilho do gancho de ferro que

Fergus usava para substituir sua mão esquerda. O olhou de esguelha e seguiu a seus companheiros.

Fergus caminhou entre a gente e se deixou cair no banco, ao lado do Ian. Estava irritado e acalorado.

-Asqueroso salaud—disse sem preâmbulos.

Jamie arqueou as sobrancelhas. -O clérigo -explicou Fergus agarrando a jarra que Ian empurrava em sua

direção para, ato seguido, esvaziá-la-. Quer dez xelins por enterrá-lo no cemitério. É uma igreja anglicana, é obvio, aqui não há Iglesias católicas.Imundo agiota! Sabe que não temos opção. O corpo agüentará até pôr-do-sol.

Fez gestos para atrair a atenção da mulher que servia. -Disse a esse gordo seboso que você decidiria se pagaríamos ou não. depois

de tudo, poderíamos enterrá-lo no bosque. Embora teríamos que conseguir uma

pá –acrescentou com o rosto carrancudo-. Todos esses camponeses sabem que somos estrangeiros e tratarão de nos tirar até a última moeda.

A última moeda, um pouco perigosamente próximo à verdade. Tinha dinheiro suficiente para pagar uma comida decente e mantimentos para a viagem, talvez até para pagar um par de noites em uma estalagem. Isso era tudo.

Vi o olhar do Jamie percorrendo o lugar, calculando as possibilidades de ganhar um pouco de dinheiro no jogo.

-O que tem feito com o Gavin? -perguntou Jamie. Fergus moveu um ombro. -Está no carro. Troquei as roupas que levava por um sudário e a trapera

aceitou lavar o corpo como parte do trato. -Sorriu fracamente-. Não se preocupe, senhor, está bem. por agora —

acrescentou, levando a jarra a sua boca.

-Pobre Gavin. Duncan Innes levantou sua jarra como uma saudação a seu camarada

morto. -Slainte -respondeu Jamie e levantou sua jarra. -Não gostaria que o enterrassem no bosque.

11

-por que? -perguntei intrigada-. Acreditava que lhe daria o mesmo uma

coisa que outra. -OH, não, não podemos fazer isso, senhora Claire.

Duncan sacudia a cabeça com ênfase. -Tinha-lhe medo à escuridão -explicou brandamente Jamie. Voltei-me para olhá-lo e me sorriu-. Vivi com o Gavin Hayes quase tanto

tempo como contigo, Sassenach, e em lugares com muito menos espaço. -Tinha medo de estar sozinho na escuridão –interveio Duncan-. Tinha um

medo mortal aos tannagach, os espíritos. Seu comprido rosto sombrio mostrava uma expressão reflexiva e soube que

estava rememorando a cela que tinha compartilhado com o Gavin e outros

quarenta homens durante três largos anos. -Recorda, MAC Dubh, o que nos contou uma noite sobre seu encontro com

o tannasq?. -É claro que sim, Duncan, e desejaria não fazê-lo. -Jamie se estremeceu

pese ao calor-. Fiquei acordado parte da noite, depois de que terminasse sua história.

-E como foi, tio?

Ian o observava com os olhos muito abertos. -Ah, bom, era a finais de um frio outono, nas montanhas, justo quando

troca a estação e o ar anuncia que gelará ao amanhecer. Não como aqui. Bom, o

filho do Gavin encerrou as vacas aquela noite, mas faltava uma; o moço a buscou pelas colinas e ladeiras, mas não pôde encontrá-la. Então Gavin o enviou a

ordenhar às outras e saiu a procurá-la. »Andou certa distância e a cabana, que estava a suas costas, desapareceu; não podia ver a luz da janela e o único som era o do vento. meteu-se em um bosquecillo que viu através da névoa pensando

que a vaca podia haver-se refugiado ali. Mas em realidade, era um círculo de árvores, com um montículo de pedras no centro.

Embora no botequim fazia calor, senti como me gelava as costas. Tinha visto aqueles antigos montículos nas montanhas de Escócia e eram fantasmales até em pleno dia.

-Gavin disse que se sentiu muito estranho. Conhecia o lugar; todos o conheciam e se mantinham afastados dali. Era um lugar estranho e parecia mais lúgubre pela escuridão e o frio. Estava feito com placas de rochas rodeadas de

pedras que lhe deixavam ver a abertura negra da tumba. »Sabia que era um lugar onde os homens não deviam ir. Não tinha nenhum amuleto, unicamente uma

cruz de madeira pendurando do pescoço; fez o sinal da cruz se com ela e se voltou para ir-se.

Jamie fez uma pausa para beber.

-Mas quando Gavin se afastava do montículo, ouviu passos a suas costas. Ian tragou com dificuldade. -Não se deu a volta para olhar -continuou Jamie-, mas sim seguiu

caminhando enquanto os passos ressonavam detrás dele. Caminhou e caminhou através da noite escura e fria, procurando a luz da janela onde sua esposa

sempre deixava uma vela acesa. Mas não aparecia e começou a temer que se perdeu. Os passos seguiam ressonando, até que finalmente não pôde suportá-lo mais e, sujeitando o crucifixo, deu-se a volta com um grito, disposto a enfrentar-

se com o que fora. -O que é o que viu?

Ian tinha as pupilas dilatadas, obscurecidas pelo álcool e o assombro. Jamie fez um gesto ao Duncan para que continuasse o relato.

12

-Disse que era a silhueta de um homem, mas sem corpo -explicou Duncan-

. Tudo branco, como feito com névoa e com grandes buracos no lugar dos olhos, por onde lhe arrancariam a alma do corpo.

-Levantou a cruz ante sua cara e rezou em voz alta à a Santa Virgem -disse Jamie retomando a história-. E aquele ser não se aproximou mais, mas sim ficou ali, observando-o. Então começou a caminhar para trás, sem dá-la volta. Não

sabia quanto caminhou, mas lhe tremiam as pernas pela fadiga quando finalmente divisou uma luz entre a bruma; ali estava sua cabana, com a vela na

janela. Gritou de alegria e se dirigiu à porta, mas aquilo era mais rápido e lhe adiantou. Sua esposa o tinha estado esperando e quando lhe ouviu gritar, foi até a porta. Gavin, a gritos, disse-lhe que não saísse, que pelo amor de Deus

procurasse um talismã para afastar o tannasq. Rápida como o vento, tirou a panela que estava debaixo da cama e um ramo de mirto pacote com uma cinta

negra e vermelha, que tinha preparado para benzer as vacas. Arrojou a água contra a porta e aquilo retrocedeu. Gavin correu e, ao entrar, trancou a porta e permaneceu abraçado a sua esposa até o amanhecer. Deixaram que a vela

ardesse toda a noite e Gavin não voltou a sair de sua casa depois da queda do sol; até que partiu para lutar pelo príncipe Tearlach. Agora, Gavin se foi à

escuridão -concluiu Jamie-. Mas não o deixaremos fora do cemitério. -Encontraram a vaca? -perguntou Fergus, com seu praticamente. Jamie levantou uma sobrancelha para que Duncan respondesse.

-Ah, sim, fizeram-no! À manhã seguinte encontraram ao pobre animal talher de barro e pedras, com o olhar enlouquecido e os lombos machucados. -Nos olhou de esguelha antes de continuar-. Gavin dizia que parecia como se

houvesse tornado do inferno. -O que aconteceu com eles? -Ian deixou sua jarra sobre a mesa-. À esposa e

ao filho do Gavin? Os olhos do Jamie se encontraram com minha e sua mão me tocou a coxa.

Sabia, sem que ninguém me houvesse isso dito, acontecido-o com a família do

Hayes. Sem o valor e a determinação do Jamie, o mesmo me tivesse ocorrido e a nossa filha Brianna.

-Gavin não soube -disse Jamie com calma-. Nunca soube nada de sua esposa; deveu morrer de fome ou de frio. Seu filho desapareceu no Culloden. Sempre perguntava a todos pelo Archie Hayes, mas nunca obteve resposta sobre

seu destino. Jamie bebeu um gole de cerveja com os olhos fixos em um par de oficiais

britânicos que estavam em um rincão.

-Às vezes confiava em que o moço tivesse sido capturado e deportado. Como seu irmão.

-Não havia nada nas listas? Eles tinham listas, não? -É claro que sim -respondeu Jamie sem deixar de olhar aos soldados. Um

pequeno sorriso de amargura apareceu em seu rosto-. Uma dessas listas me

salvou, depois do Culloden, quando me perguntaram meu nome antes de me fuzilar. Mas um homem como Gavin não tinha possibilidades de ver as listas de

mortos dos ingleses. E acredito que de ter podido, não o tivesse feito. Preferiria inteirar-se, se fosse seu filho?

Neguei com a cabeça e sorriu enquanto oprimia minha mão. depois de

tudo, nossa filha estava a salvo. Fez um gesto a jovem garçonete, quem nos trouxe a comida evitando tropeçar com Cilindro. Ao notá-lo, Jamie Lançou um

olhar dúbio ao animal que chamavam cão. -Terá fome? Tenho que pedir pescado para ele?

13

-Ah, não, tio -assegurou Ian-. Cilindro procura seus próprios peixes.

Jamie arqueou as sobrancelhas e com um olhar a Cilindro, serve-se um prato de ostras cozidas.

-Que lástima que um homem como Gavin terminasse assim -lamentou-se Duncan, já quase bêbado-. Sem família que o chore, em uma terra selvagem,

pendurado como um criminoso e a ponto de ser enterrado em qualquer site. Nem sequer terá uma oração fúnebre... Bom, terá um caithris por que não? -disse, olhando desafiante a seus companheiros.

Jamie não estava bêbado, mas tampouco totalmente sóbrio. Sorriu ao Duncan e levantou sua jarra.

-por que não? Mas terá que cantar você, Duncan. O resto não conhecia o Gavin e eu canto muito mal.

Duncan assentiu com autoridade e, sem prévio aviso, jogou a cabeça para

trás e emitiu um horrível uivo. Saltei de meu assento, me atirando cerveja sobre a saia. Os paroquianos moveram seus bancos, ficaram em pé e tiraram as armas.

Cilindro despertou com um ruidoso grunhido e olhou com olhos ferozes e ensinando os dentes.

Duncan cantou com sua ensurdecedora voz de barítono; o pouco que sabia

de gaélico me permitiu traduzir: «Reunimo-nos para gemer e chorar aos céus a perda de nosso amigo, Gavin Hayes».

O coro repetia: «Escutem!». Ao Jamie, uniram-se Ian e Fergus. Cilindro parecia indiferente aos cantos e ficou com as orelhas papa

enquanto seu amo lhe acariciava a cabeça lhe acalmando.

A gente, ao ver que não havia nenhuma ameaça de violência, decidiu desfrutar de do espetáculo e acompanhar o coro.

Duncan, cada vez mais bêbado, Lançou um olhar maligno para os soldados da mesa próxima e começou a cantar insultos em gaélico contra os ingleses: «Malditos cães estrangeiros, comilões de carne morta que riem e regozijam pela

morte de um homem bom. Que o mesmo diabo lhes busque na hora da morte para lhes levar direitos ao inferno».

Ian ficou pálido e Jamie Lançou um olhar ao Duncan, mas seguiram

cantando o estribilho com o resto dos paroquianos. Fergus, com uma súbita inspiração, levantou-se e passou o chapéu entre

os clientes, quem, alegres pela cerveja, atiravam-lhe moedas, pagando pelo privilégio de que os condenassem ao inferno.

Eu tenho tão boa cabeça para a bebida como a maioria dos homens, mas

uma bexiga mais pequena. Com a cabeça cheia de fumaça e ruído, tanto como de álcool, levantei-me para sair ao ar fresco do entardecer.

Dentro, o canto do Duncan tinha terminado. Uma voz de tenor, doce mas turvada pelo álcool, cantava uma melodia familiar que se ouvia por cima das conversações.

Uma vez que esvaziei minha taça, fiquei imóvel, esperando a que saíssem os homens.

2 Quando nos encontramos

um fantasma

-Dez, onze, doze... e dois, e seis... uma libra, oito xelins, seis peniques e

dois quartos de penique. -Fergus deixou cair, ceremoniosamente, a última moeda

14

na bolsa, ajustou os cordões e a entregou ao Jaime-. E três botões –acrescentou-,

mas me fico. -Já arrumaste com o patrão o de nossa comida? -perguntou Jamie,

sopesando a bolsita. -Sim –disse-. Ficam quatro xelins e seis peniques, além do que juntou

Fergus.

Este sorria com modéstia. -Então temos o dinheiro necessário para o enterro –disse-. Levamos agora

ao Monsieur Hayes ao clérigo, ou esperamos até manhã? Jamie olhou o carro com o cenho franzido. -Não acredito que esteja acordado a esta hora -comentou, olhando a lua-.

Entretanto... -Não quero ser grosseira -pinjente, com uma desculpa dirigida ao carro-.

Mas se formos dormir no bosque, o aroma...

-A tia Claire tem razão -opinou Ian, esfregando-a nariz-. E se o deixamos na porta da estalagem, envolto no sudário?

A boca do Jamie se curvou em uma careta de diversão. -Não -respondeu-. Não o vamos deixar aqui. Balançou a bolsita e a guardou em seu casaco com gesto decidido.

-Enterraremo-lo nós mesmos -afirmou-. Fergus, pode ir ver se conseguir uma pá troca?

A curta viagem para a igreja, através das tranqüilas ruas do Charleston, foi menos solene que os habituais cortejos fúnebres, apesar da insistente repetição do Duncan das partes mais interessantes de seu canto fúnebre.

A igreja estava situada em uma rua tranqüila, a certa distância da casa mais próxima. Isso estava bem para evitar que nos vissem, mas também significava que o cemitério careceria de luz.

Grandes magnólias se sobressaíam por cima da entrada. Caminhar por ali era como passar entre cortinas de veludo negro, perfumadas pelo aroma dos

pinheiros reaquecidos pelo sol. Nada mais afastado do ar puro das montanhas de Escócia. Alguns farrapos de névoa tampavam as escuras paredes de tijolo e desejei não recordar tão vividamente a história do Jamie sobre o fantasma.

-vamos procurar um lugar adequado. Fique e te ocupe dos cavalos, Duncan.

Jamie se baixou do carro e me agarrou do braço. -Podemos encontrar um bom site ao lado do muro -disse, me guiando para

a entrada-. Ian e eu cavaremos, você sustentará a luz e Fergus fará guarda.

-E Duncan? -perguntei, olhando para trás. -Será o diretor dos solenes cantos fúnebres -respondeu Jamie com um

toque de humor-. Cuidado com sua cabeça, Sassenach.

Automaticamente baixei a cabeça ante um ramo de magnolio; não sabia se Jamie podia ver realmente na escuridão ou se o fazia por instinto, mas nunca o vi

tropeçar, por escuro que estivesse. -Não crie que alguém suspeitará ao ver uma tumba recém cavada? -Pode ser. Mas se o clérigo queria dinheiro para enterrar ao Gavin, não

acredito que se incomode em desenterrá-lo grátis, não crie? O jovem Ian apareceu de repente a meu lado, me sobressaltando. -Há um espaço aberto ao lado da parede norte, tio Jaime -disse, falando em

voz baixa-. Está muito escuro aqui, não? A voz do moço soava insegura.

15

-Assim é, mas tenho um cabo de vela que me levei do botequim; espera um

pouco. ouviu-se o ruído do pederneira e o yesquero.

-É como a vigília de Páscoa -disse Jamie-. Uma vez assisti ao serviço, no Notre me Dê de Paris. Cuidado, Ian, há uma pedra! A igreja estava escura -continuou Jamie-, e quando já acreditava que não ia suportar o silêncio e a

quantidade de gente o sacerdote começou a cantar Lumen Christi da porta, e os coroinhas, depois de acender o grande círio, foram acendendo suas velas. -Já

podia ver suas mãos pelos brilhos do pederneira-. Então a igreja reviveu pelos milhares de velas acesas, mas foi o círio o que quebrou a escuridão.

Levantou a vela acesa, iluminando as tumbas.

-Lumen Christi -disse brandamente, inclinando a cabeça para uma coluna de granito com uma cruz- et requiescat in pasta, amice.

Sua voz já não tinha tom de brincadeira, falava com total seriedade e me senti extrañamente reconfortada. Sorriu-me e me entregou a vela.

-Busca um pau para fazer uma tocha, Sassenach -disse-. Ian e eu cavaremos por turnos.

Não estava nervosa, mas seguia me sentindo como uma profanadora de

tumbas, sustentando a tocha baixo um pinheiro enquanto Ian e Jamie cavavam com as costas nuas brilhando pelo suor.

-Os estudantes de medicina estavam acostumada pagar para que lhes

roubassem cadáveres recentes dos cemitérios -comentei, alcançando meu lenço ao Jamie enquanto se endireitava ofegando pelo esforço-. Era a única forma de

poder fazer disecciones. -Faziam-no ou o fazem? Jamie me dirigiu um rápido olhar zombador. Por sorte, estava muito escuro

para que o jovem Ian notasse meu intenso rubor. Não era a primeira vez que me equivocava, nem seria a última.

-Imagino que ainda o fazem -admiti. -Também usam aos pobres e aos criminosos das prisões -interveio o jovem

Ian, aproveitando para tomar uma pausa-. Papai me contou que uma vez o

prenderam, levaram-no ao Edimburgo e o tiveram no Tolbooth. Estava na cela com outros três e alguém se estava morrendo de inanição. Deixou de tossir e pensaram que tinha morrido. Papai estava tão cansado, que rezou uma oração

por sua alma e ficou dormido. O moço fez uma pausa e se esfregou o nariz.

-despertou quando alguém lhe atirava das pernas e outro o levantava pelos braços. liberou-se, descobrindo a um médico e a dois homens que o tinham levado a hospital, à sala de disección. Papai dizia que não sabia quem estava

mais horrorizado, se ele ou os que o tinham levado. Mas que o médico estava aborrecido porque lhe interessava seu corpo, com sua perna atalho.

Jamie riu, estirando os braços para descansar suas costas.

-Sim, conhecia essa história. depois disso, Ian dizia que todos os médicos eram uns ladrões de cadáveres e que não queria saber nada deles.

Sorriu-me; em meu tempo, eu era médica cirurgiã, mas aqui não era mais que uma curandeira com habilidade para usar ervas.

-Por sorte, não lhe tenho medo aos curandeiros -disse, inclinando-se para

me beijar. Logo se endireitou e se deu a volta com um sorriso envergonhado. Não o esperava mas, é obvio, reconheci-o. Era comum um súbito ataque de

luxúria como resposta à presença da morte. Jamie me tocou nas costas e me sobressaltei, agitando a tocha.

16

-Sente-se, Sassenach -disse, assinalando uma lápide-. Não deve

permanecer tanto tempo em pé. Tinha-me fraturado a morna durante o naufrágio e embora se curou

rapidamente, a perna ainda me doía. -Estou bem -pinjente, mas me dirigi para a lápide, roçando-o ao passar. Embora irradiava calor e podia cheirar seu suor quando se evaporava, suas

costas nua estava fria ao tato Sua mão ficou em meu cotovelo ao me ajudar a me sentar sobre a pedra.

Cilindro estava jogado; ao ofegar deixava cair gotas de saliva que brilhavam à luz da tocha. Os olhos amarelos me observavam com atenção.

-Nem te ocorra pensá-lo -disse-lhe, lhe devolvendo o olhar-. Se me remoer,

colocarei-te o sapato na garganta até te afogar. Respondeu-me com um grunhido surdo e seguiu atento a qualquer ruído.

Ian cravava a pá na terra e se secava o suor da cara. Deixou escapar um profundo suspiro e olhou ao Jamie com expressão de esgotamento.

-Está bem, espero que seja bastante profunda –respondeu Jamie ante o

gesto do moço-. vou trazer para o Gavin. O rosto do Fergus se crispou com um gesto de preocupação. -Não te faz falta ajuda para trazer o corpo?

Seu desgosto era evidente. Jamie lhe sorriu com ironia. -Arrumarei-me isso -disse-. Gavin era um homem pequeno. Mas pode

trazer a tocha para nos iluminar. -Eu também vou, tio! -Ian saiu do fosso com prontidão; suas costas ossuda

brilhava pelo suor-. Se por acaso necessita ajuda -acrescentou ofegante.

-Tem medo da escuridão? -perguntou Fergus com sarcasmo. -Pois fui-dijo simplesmente Ian-. Você não?

Fergus abriu a boca, com as sobrancelhas levantadas; logo se deu a volta e partiu sem responder.

-Não te parece que este lugar é terrível, tia? –murmurou Ian aproximando-

se de mim enquanto seguíamos o resplendor da tocha do Fergus-. Não posso deixar de pensar na história que contou tio Jamie. Penso que agora que Gavin está morto, talvez a coisa geada..., quero dizer... Crie que poderia... vir a buscá-

lo? -Não -disse em um tom mais forte do normal. Aferrei a seu braço, nem

tanto para me sustentar para lhe dar confiança-. Seguro que não. Chegamos com bastante alivio ao círculo de luz que formava a tocha. Fazia

calor, mas o ar era mais puro e se respirava melhor.

Para minha surpresa, Duncan seguia acordado. Reprimi um bocejo. Desejava terminar com aquela triste tarefa e ir dormir, embora fora sobre um

montão de folhas. Meu coração deu um salto. Todos gritaram ao mesmo tempo e os cavalos se

moveram, sacudindo o carro. Cilindro lançou um grunhido, Ian uma exclamação

de espanto e, quando olhei para onde assinalava, gritei. Uma pálida figura apareceu do carro, balançando-se.

Não pude ver mais, porque os acontecimentos se precipitaram. Cilindro se

lançou a perseguir a figura, animado pelos gritos do Ian e Jaime. Logo se ouviu o grito do fantasma. A minhas costas, Fergus amaldiçoava em francês enquanto

corria a procurar sua navalha. Jamie tinha deixado cair a tocha, que parecia a ponto de apagar-se. Caí de joelhos, em um intento desesperado por conservar a luz.

17

Fergus surgiu da escuridão com a navalha na mão e golpeou ao intruso na

cabeça. Logo se voltou para o Ian e Cilindro. -Você também, quieto! -ameaçou Fergus ao cão-. Quieto ou te rompo a

cabeça! Cilindro soprou, mostrando os dentes com um gesto que eu interpretei

como «Você e quantos mais?», mas foi detido pelo Ian, quem o agarrou por cangote.

-De onde saiu? -perguntou Ian surpreso, tratando de olhar ao cansado sem

soltar a Cilindro. -Do inferno -afirmou Fergus-. E ali o convido a que volte.

-Do inferno, não, da forca. Não sabe quem é? Jamie ficou em pé lentamente, limpando o pó dos calções. Respirava com

dificuldade, mas não estava ferido. Olhou ao redor e perguntou:

-Onde está Duncan? -Aqui, MAC Duhh -disse uma voz rouca na parte dianteira do carro-. Os

cavalos não estavam muito contentes com a presença do Gavin e se incomodaram muito com a perspectiva da ressurreição. Eu também me surpreendi um pouco –acrescentou com sinceridade. Olhou a figura atirada no chão e aplaudiu a um

dos cavalos-. Ah, não é mais que um patife! Tinha-lhe entregue a tocha ao Ian e me ajoelhei para inspecionar as feridas

de nosso visitante. Jamie tinha razão era o homem que se escapou para que não o enforcassem. Tinha uns trinta anos e um corpo forte e musculoso. Cheirava a prisão e a medo prolongado. O qual não tinha nada de estranho.

Agarrei-o de um braço e lhe ajudei a sentar-se. Gemeu e se levou uma mão à cabeça, entreabrindo os olhos ante a luz.

-Está bem? -perguntei.

-É você muito amável, senhora, mas poderia estar melhor. Tinha um ligeiro acento irlandês em sua voz suave e profunda.

-Quanto faz que está no carro? -quis saber Duncan. -Desde esta tarde. -O homem ficou de joelhos, enjoado pelos efeitos do

golpe. voltou-se a tocar a cabeça e gemeu-. Subi-me pouco depois de que o

gabacho colocasse ao pobre Gavin. -E onde esteve antes? -perguntou Ian.

-Escondido debaixo da carreta da forca. Foi o único lugar onde pensei que não me buscariam. -ficou em pé com dificuldade e olhou ao Jamie-. Stephen Bonnet. Para lhe servir, senhor.

Não fez ameaça de estender a mão e Jamie tampouco. -Senhor Bonnet... Jamie lhe devolveu a inclinação de cabeça com rosto inexpressivo.

Bonnet tinha o que a gente chama «boa planta»: alto, só uns centímetros mais baixo que Jamie, fornido, com facções angulosas e arrumado. Estava

tranqüilo, mas com os punhos semicerrados em gesto de alerta. -por que crime lhe tinham condenado, senhor Bonnet? -perguntou Jamie. Também parecia tranqüilo, embora tinha uma expressão de alerta muito

semelhante a do Bonnet. Eram como dois cães que se observassem com as orelhas papa antes de decidir-se a brigar.

-Contrabando -respondeu Bonnet.

Jamie não respondeu e inclinou ligeiramente a cabeça. Arqueou uma sobrancelha a modo de pergunta.

-E pirataria.

18

Um músculo de sua boca se crispou em um intento de sorriso ou um

involuntário rictus de medo. -E matou alguma vez ao cometer seus delitos, senhor Bonnet?

O rosto do Jamie era inexpressivo, salvo por seus olhos atentos. Parece-me que duas vezes, dizia simplesmente seu olhar. Talvez três.

-A ninguém que não tratasse de me matar a mim primeiro -respondeu

Bonnet. Jamie contemplou ao Bonnet durante um momento, até que assentiu e deu

um passo atrás. -Então pode ir-se -disse com calma-. Nós não vamos impedir o. Bonnet respirou aliviado e pude ver como se relaxava.

-Muito obrigado -disse. passou-se uma mão pela cara e voltou a respirar profundamente. Seus olhos verdes se moveram com rapidez, me percorrendo a mim, ao Fergus e ao Duncan-. Talvez queiram me ajudar.

Duncan, tranqüilizado pelas palavras do Jamie, lançou um grunhido de surpresa.

-lhe ajudar? A um ladrão? -me ajudar -repetiu Bonnet-. Esta noite os soldados me vão procurar pelos

caminhos. -Fez um gesto para o carro-. Vocês podem me esconder, se quiserem. -

voltou-se para olhar ao Jamie e endireitou os ombros-. Estou-lhes pedindo ajuda, senhor, em nome do Gavin Hayes, que foi meu amigo, como o de vocês, e um

ladrão, como eu. Os homens lhe contemplaram em silêncio, assimilando a informação.

Fergus olhou interrogativamente ao Jamie. A decisão era dela.

Jamie, depois de contemplar ao Bonnet, voltou-se para o Duncan. -O que te parece, Duncan? -Pela memória do Gavin -respondeu e se dirigiu para a entrada.

-Muito bem -disse Jamie. Suspirou e se apartou o cabelo da cara.

-nos ajude a enterrar ao Gavin -disse a nossa novo hóspede- e logo iremos. Uma hora mais tarde, a tumba do Gavin era um retângulo de terra recém

removida.

-Tem que figurar seu nome -disse Jamie. Com a ponta de sua faca, marcou cuidadosamente as letras do nome do

Gavin e as datas em uma pedra branda. Depois a esfreguei com fuligem da tocha e Ian a colocou entre uns calhaus.

Jamie pôs em cima o cabo de vela que tinha pego do botequim.

Estávamos incômodos, sem saber como nos despedir, até que Jamie fez um gesto ao Fergus, quem acendeu uma ramita de pinheiro com minha tocha e prendeu a vela.

-Réquiem aeternam doa ei, et lux perpétua luceat ei... -disse Jamie com voz pausada.

O jovem Ian repetiu o mesmo em inglês e logo, sem uma palavra mais, saímos do cemitério.

A lua estava alta no céu quando chegamos ao posto de controle militar, fora das muralhas da cidade. Já tínhamos encontrado vários postos similares no caminho, entre o Savannah e Charleston, a maioria compostos por soldados

aborrecidos que nos saudavam sem incomodar-se em controlar os passes que trazíamos da Georgia. Embora estávamos sujos e esfarrapados passávamos

inadvertidos, já que muito poucos viajantes tinham melhor aspecto.

19

Entretanto, aquela noite era diferente. Havia oito soldados no posto de

vigilância, não dois como era habitual, e todos estavam armados e alerta. As baionetas brilharam à luz da lua ao grito de «Alto! Nome e destino!». Um farol

iluminou minha cara, me cegando por um momento. -James Fraser, rumo ao Wilmington, com minha família e servidores. A voz do Jamie era tranqüila e suas mãos sustentavam as rédeas com

firmeza quando me entregou isso para procurar os passes em seu casaco. Mantive a cabeça baixa, tratando de parecer cansada e indiferente.

-Viram a alguém pelo caminho, senhor? O «senhor» foi dito a contra gosto, pois nossa roupa gasta destacava à luz

do farol.

-Uma carruagem que se cruzou conosco. Vinha do povo e suponho que o terão visto -respondeu Jamie.

O sargento grunhiu e revisou com cuidado os documentos.

-O que é o que levam? Devolveu-nos os passes e fez um gesto a um de seus subordinados para

que revisasse o carro. -Costure para a casa -respondeu Jamie, sempre com calma-. Meio veado e

uma bolsa de sal. E um cadáver.

O soldado que tinha começado a revisar o carro se deteve de repente. O sargento levantou a cabeça bruscamente.

-Um quê? -O corpo do homem que penduraram esta tarde. Conhecia-o e pedi

permissão ao coronel Franklin para levar-lhe a seus parentes, no norte. Por isso

viajamos de noite -acrescentou sutilmente. -Já vejo. -O sargento aproximou o farol e olhou pensativo ao Jamie. Logo

assentiu-. Já recordo. Você lhe chamou no último momento. Um amigo, então?

-Conheci-o faz tempo. Faz alguns anos. O sargento assentiu sem deixar de olhar ao Jamie e fez um gesto a seu

subordinado. -Joga uma olhada, Griswold. Griswold, de uns quatorze anos, demonstrou uma notável falta de

entusiasmo ante a ordem, mas apartou a lona e levantou o farol para olhar no interior do carro. Tive que fazer um esforço para não me dar a volta e olhar.

-Sim, senhor, é um corpo -informou Griswold-. Com uma mortalha. Deixou cair a lona com alívio e respirou profundamente. -Baía a baioneta e crava-o -ordenou o sargento sem tirar os olhos do Jamie.

Devi me mover, porque o sargento me olhou de esguelha. -vão sujar meu carro -queixou-se Jamie-. O homem estará bastante

chateado depois de um dia ao sol, não crie?

O sargento soprou com impaciência. -Então crava-o na perna. Vamos, Griswold!

Com um marcado ar de desgosto, Griswold preparou sua baioneta e ficou nas pontas dos pés para cumprir sua tarefa.

-Senhor, está bem morto -informou com alivio Griswold-. cravei com força a

baioneta e não se moveu. -Muito bem. -Despediu-se do jovem soldado com um gesto e se dirigiu ao

Jamie-. Siga adiante, senhor Fraser. Mas, no futuro escolha seus amigos com

mais cuidado. Os nódulos do Jamie ficaram brancos pela tensão.

Cobrimos uma distância bastante larga antes de que alguém falasse.

20

-Está ferido, senhor Bonnet? -sussurrou Ian.

-Sim, esse maldito cachorrinho me cravou na coxa. –A voz do Bonnet era baixa mas tranqüila-. Graças a Deus, afastou-se antes de ver o sangue. Os

mortos não sangram. -Está ferido gravemente? Quer que vá examinar lhe? -Não, muito obrigado, senhora. Enfaixei-me com o meia três-quartos e

espero que seja suficiente. -Acredita que poderá caminhar?

Jamie reduziu a marcha dos cavalos e se deu a volta para olhar a nossa hóspede.

-Com facilidade, não. Sinto muito, senhor.

Bonnet se dava conta do desejo do Jamie de livrar-se dele. Com alguma dificuldade, endireitou-se no carro, levantando o joelho da perna sã. Na escuridão quase não podia vê-lo, mas podia cheirar o sangue, mais forte que o aroma que

despedia a mortalha do Gavin. -Uma sugestão, senhor Fraser. Em três milhas chegaremos ao caminho do

embarcadero. Mais à frente do caminho transversal há outro que leva a costa. Este nos levará até o bordo de um riacho com saída para mar. meus sócios ancorarão ali esta semana. Se me derem algumas provisões poderei esperá-los

com razoável segurança. -Sócios? Quer dizer piratas?

O tom do Ian tinha algo de chateio. depois de que os piratas o seqüestrassem em Escócia não os considerava nada românticos, como tivesse sido normal aos quinze anos.

-Isso depende de como o olhe, moço –respondeu Bonnet com humor-. Os governadores da Carolina seguro que nos consideram assim; os comerciantes do Wilmington e Charleston talvez nos olhem de outra forma.

Jamie soprou com desprezo. -Contrabandistas, né? E com o que comercializam seus sócios?

-Com algo que tenha um preço que faça que valha a pena o risco. -O tom do Bonnet continuava sendo divertido mas agora estava tingido de cinismo-. Deseja algum premio por sua ajuda? Isso pode arrumar-se.

-Não o busco -respondeu Jamie com frieza-. Ajudei-lhe pela memória do Gavin e porque quis. Não vou procurar uma recompensa por esse serviço.

-Não quis lhe ofender, senhor. -Não o fez -respondeu Jamie, cortante. depois deste intercâmbio, a conversação terminou, embora Bonnet seguiu

ajoelhado na parte de atrás, olhando por cima de meu ombro para o caminho escuro.

Jamie agarrou as rédeas com sua mão esquerda e me passou o outro braço

para que descansasse sobre seu ombro. como sempre, sentia-me segura quando o tocava. Imediatamente me amodorré, conseqüência da combinação de profundo

esgotamento e a impossibilidade de estar deitada. Abri os olhos em uma ocasião e vi o Duncan Innes caminhando ao lado do

carro, com a cabeça inclinada, sumido em profundos pensamentos. Logo os

fechei novamente, mesclando os sucessos do dia com fragmentos de sonhos dispersos.

Despertei quando Jamie me sacudiu brandamente.

-Será melhor que vá atrás e te deite, Sassenach-disse-. Move-te muito e temo que termine dormindo no caminho.

21

Aceitei dormitada e me coloquei atrás, trocando o site ao Bonnet para me

pôr perto do jovem Ian. Cheirava a umidade e a coisas piores. Ian tinha a cabeça apoiada em uma parte de veado, envolto com sua pele. Cilindro estava melhor,

descansando sua cabeça sobre o estômago do Ian. Eu escolhi a bolsa de couro com sal. O couro me raspava a bochecha mas ao menos não cheirava mau.

Não posso dizer quanto tempo dormi, com um sonho profundo, esgotada pelo calor e todos os esforços do dia. Despertei quando trocou o ritmo do carro.

Bonnet e Jamie conversavam sobre voz baixa, com mais afabilidade,

passada a primeira desconfiança. -Você disse que me tinha salvado pela memória do Gavin e porque tinha

querido -dizia Bonnet com voz suave mas audível por cima do ruído das rodas-.

Se me perdoar a pergunta, o que quis dizer com isso, senhor? Jamie não respondeu em seguida; quase voltei a dormir antes de que

falasse. -Ontem à noite não deveu dormir muito, não? Sabendo o que lhe esperava

durante o dia...

Bonnet riu pelo baixo, sem muitas vontades. -Certo -disse-, duvido que o esqueça. -Eu tampouco. -Jamie disse algo em gaélico aos cavalos e diminuíram a

marcha-. Em uma ocasião passei uma noite assim, sabendo que me foram pendurar pela manhã. E entretanto vivi, graças a alguém que correu um grande

risco para me salvar. -Já vejo -murmurou Bonnet-. Então você é um asgina ageli. -Sim? Gesso o que é?

-É um término que usam os índios, os cherokee das montanhas. Aprendi-o de um que me servia de guia. Quer dizer «meio fantasma», alguém que devia

morrer mas segue na terra: uma mulher que sobrevive a uma enfermidade mortal, um homem que escapa das mãos de seus inimigos. Dizem que tem um pé na terra e o outro no mundo dos espíritos. Pode falar com eles e ver os nunnahee, a Gente Pequena.

-Gente Pequena? Como os duendes?

Jamie parecia surpreso. -Algo pelo estilo. Os indígenas dizem que os nunnahee vivem dentro das

rochas, nas montanhas, e saem para ajudar a sua gente em tempo de guerra ou outras desgraças.

-Parecem os contos das montanhas de Escócia, o antigo folclore.

-Em efeito -respondeu divertido Bonnet-. Bom, por isso ouvi sobre os montanheses de Escócia, não há muita diferença entre sua conduta Bárbara e a dos corte vermelhas.

-Tolices -disse Jamie, sem indício de ofensa-. Os selvagens se comem o coração de seus inimigos, conforme ouvi. Eu prefiro um bom prato de aveia

cozida. -Você é das montanhas de Escócia? Bom, devo dizer que, para ser um

bárbaro, encontro-o muito civilizado -assegurou Bonnet com voz risonha.

-Sinto-me extremamente agradecido por sua opinião, senhor -respondeu Jamie com a mesma amabilidade.

Quando nos detivemos, a lua estava por debaixo das árvores.

-Busca um lugar para dormir, Sassenach -disse Jamie, me ajudando a baixar do carro-. vou ocupar me das provisões de nossa hóspede para que fique

em caminho, e de que os animais possam pastar.

22

-Não poderei dormir até que me banhe -pinjente, tocando minha roupa suja

e suada-. Sinto-me horrível. Meu cabelo estava pego pelo suor e me picava todo o corpo pela sujeira. A

água, embora escura, parecia fria e tentadora. Jamie olhou o rio. -Não posso dizer que te culpe. Mas vê com cuidado; Bonnet diz que o canal

é muito profundo e a corrente muito forte.

-Ficarei perto da borda. -Assinalei uma curva do rio-. Vê esse lugar? Aí deve haver um remanso.

-Está bem. Vê com cuidado -disse outra vez e me apertou o braço a modo de despedida.

Quando ia partir me, uma figura apareceu ante mim; era nossa hóspede,

com uma das pernas das calças manchada de sangre seca. -Para servi-la, senhora -disse, fazendo uma incrível reverencia em que pese

a sua perna ferida-. Posso lhe dizer agora adeus?

Estava mais perto de mim do que tivesse querido e tive que reprimir minha necessidade de dar um passo atrás.

-Sim, claro -pinjente-. Boa sorte, senhor Bonnet. -Agradeço-lhe seus bons desejos -respondeu brandamente-. Mas tenho

descoberto que, freqüentemente, é o homem o que se busca sua boa sorte. boa

noite, senhora. inclinou-se uma vez mais e partiu.

Jamie grunhiu para si. -Bom, reconheço que tive minhas dúvidas com esse homem -disse como se

respondesse uma pergunta que eu não lhe tinha feito-. Espero ter sido bando de

coração e não falto de julgamento, por lhe ajudar. -depois de tudo, não podia deixar que lhe pendurassem -pinjente. -OH, sim. Podia -disse, me surpreendendo-. A Coroa não sempre se

equivoca, Sassenach. A maioria das vezes, o homem que termina pendurado da corda é porque o merec. E eu não gostaria de pensar que ajudei a que um

malfeitor ficasse em liberdade. -encolheu-se de ombros, apartando o cabelo da cara-. Bom, já parece. vá banhar te, Sassenach. Irei contigo logo que possa.

Pu-me nas pontas dos pés para beijá-lo e senti seu sorriso.

-Poderá esperar desperta, Sassenach? -Todo o tempo que seja necessário -assegurei-. Mas date pressa, quer?

Baixo os salgueiros havia uma pequena esplanada coberta de erva. Tirei-me

a roupa com lentidão, desfrutando da brisa, até que fiquei nua em meio da noite.

Entrei na água com cuidado. Estava surpreendentemente fria, geada em contraste com o ar caloroso da noite. O fundo baixo meus pés era de barro, mas

se transformava em areia fina. A água era fresca e doce. Bebi e me molhei a cara, limpando o pó de minha garganta e meu nariz.

Podia sentir o suave movimento da corrente golpeando minhas pantorrilhas

e me empurrando para a borda. Mas ainda não estava lista para sair. Não tinha sabão; pu-me de joelhos, enxagüei-me o cabelo várias vezes e me esfreguei o corpo com areia até que minha pele ficou resplandecente.

Finalmente subi a uma plataforma rochosa e fiquei recostada, como uma sereia à luz da lua. O ar quente e as pedras reaquecidas pelo sol eram um

delicioso alívio para meu corpo gelado. Sentia-me muito cansada e, ao mesmo tempo, muito viva, em um estado de semiconsciencia onde o pensamento diminui e as pequenas sensações físicas se magnificam.

23

O lugar parecia mágico. Um suave chapinho me fez olhar para a água.

Nada se movia na superfície salvo os débeis resplendores das estrelas, como vaga-lumes apanhadas no tecido de uma aranha.

Enquanto observava, uma grande cabeça surgiu da água. Havia um peixe nas fauces de Cilindro, agitando-se até que o cão sacudiu a cabeça e o partiu. O

enorme cão nadou lentamente até a borda, sacudiu sua pelagem e se afastou com o jantar pendurando da boca. deteve-se um momento, me olhando.

Como uma pintura primitiva, pensei; um pouco do Rousseau, com o

contraste de sua profunda selvageria e uma imobilidade total. O cão desapareceu e na borda não ficaram mais que as árvores,

escondendo o que estivesse oculto atrás deles. E o que podia ser?, perguntei-me.

Mais árvores, respondeu a parte lógica de minha mente. E muitas coisas mais. depois de tudo, era um mundo novo, livre de temores e cheio de alegria

agora que Jaime e eu estávamos juntos, com toda nossa vida por diante. Separação e dor ficavam atrás. Nem sequer pensar na Brianna me causava pesadumbre.

Sentia saudades muitíssimo e pensava nela continuamente, mas sabia que se encontrava a salvo em seu próprio tempo e isso convertia sua ausência em algo fácil de suportar.

Os insetos eram uma praga constante. Inspecionava a pele do Jaime cada manhã, tirava-lhe carrapatos vorazes e pulgas e lubrificava generosamente aos

homens com suco de poleo e folhas de tabaco amassadas. Isso impedia que fossem devorados vivos pelas nuvens de mosquitos e zancudos, mas não repelia as hordas de insetos que os enlouqueciam metendo-se em orelhas, olhos, narizes

e bocas. Por estranho que pareça, a maioria dos insetos me deixavam tranqüila. Ian

brincava, dizendo que o forte aroma das ervas que levava pendurando devia rechaçá-los. Mas eu pensava que era por outra coisa; mesmo que estava recém banhada, os insetos não mostravam interesse por mim.

Mas bem acreditava que era devido a uma particular manifestação da evolução que, supunha, protegia-me de resfriados e outras doenças menores.

-Ou possivelmente Ian tenha razão -disse em voz alta- e simplesmente

tenho um aroma horrível. Desejava que Jamie chegasse logo. Aqueles dias de viagem em carro,

sentada a seu lado, observando as mudanças de seu corpo enquanto conduzia, os ângulos de seu rosto enquanto falava e sorria, eram suficientes para fazer que as mãos me ardessem pelo desejo de tocá-lo. Fazia vários dias que não fazíamos o

amor. Fechei os olhos, me acariciando com suavidade, desfrutando da sensação

de crescente desejo. -Onde diabos está, Jamie Fraser? -murmurei. -Aqui -chegou a resposta de sua voz rouca.

Sobressaltei-me e abri os olhos de par em par. Estava parado em meio da corrente, a uns dois metros, com as coxas na água e os genitálias rígidos, escuros em contraste com o pálido brilho de seu corpo. Tinha o cabelo solto sobre os

ombros, emoldurando um rosto pálido como o osso, com o olhar tão fixo e intenso como a do cão lobo. Uma profunda selvageria e uma imobilidade total.

Então se moveu para aproximar-se. Suas coxas estavam frios como a água quando me tocou, mas em poucos segundos se esquentou e aumentou seu ardor. Quando suas mãos tocaram minha pele, a cálida umidade molhou meus seios,

que se incharam ao sentir a dureza de seu peito.

24

-Sua boca é úmida e escorregadia como seu sexo -murmurou e moveu a

língua para lamber as gotitas de minha cara. Notava a dureza da rocha que tinha debaixo.

-Não posso esperar -ofegou. -Não o faça -respondi, rodeando sua cintura com minhas pernas-. Tinha

ouvido falar de derreter-se de paixão -pinjente ofegando-, mas isto é ridículo.

Levantou a cabeça de meus peitos, fazendo um débil som ao apartar sua bochecha molhada. Riu e se voltou de lado.

-A puta, que calor faz! Passou-me os braços ao redor e girou com a graça pesada de um tronco;

rodamos pelo bordo da plataforma até cair à água.

Atiramo-nos sobre a rocha, frescos e úmidos, quase sem nos tocar,

enquanto as últimas gotas de água se evaporavam de nossa pele. Ao outro lado

do riacho, os salgueiros arrastavam suas folhas pela água, como ondulantes coroa negras contra o ocaso da lua.

Jamie viu que olhava o bosque e adivinhou meus pensamentos. -Suponho que já não é como a última vez que esteve aqui. -Bom, sim, um pouco. -Enlacei nossas mãos e acariciei seus ossudos

nódulos com o polegar-. Os caminhos estavam asfaltados, não empedrados, talheres de uma matéria Lisa e dura, inventada por um escocês chamado

MacAdam. Grunhiu e me olhou com expressão zombadora. -Então, haverá escoceses na América? Fabuloso.

Passei por cima seu comentário e continuei. -Haverá muita classe de gente. Tudo estará ocupado, daqui até um lugar

chamado Califórnia, na costa Oeste.

Mas por agora -estremeci-me, pese ao ar quente- são quarenta e oito mil quilômetros de terra virgem.

-Bom, nada, salvo milhares de selvagens sedentos de sangue -disse com praticamente-. E sem esquecer aos estranhos animais selvagens.

-Bom, sim, suponho que também -aceitei.

Era uma idéia inquietante. É obvio que sabia, de forma vaga e acadêmica, que os bosques estavam povoados por índios, ursos e outros habitantes do lugar;

mas essa noção geral se via repentinamente substituída pela particular sensação de que podíamos, fácil e inesperadamente, nos encontrar cara a cara com algum daqueles residentes.

-O que aconteceu com eles? Com os índios selvagens? -perguntou Jamie com curiosidade enquanto, como eu, tratava de adivinhar o futuro entre as sombras-. Derrotaram-nos e os jogaram, não?

Senti outro calafrio e meus pés se crisparam. -Sim, assim foi -respondi-. Mataram a muitíssimos e outros foram

encarcerados. -Bom, isso está bem. -Suponho que depende do ponto de vista -disse com tom cortante-. Não

acredito que os índios pensassem o mesmo. -Não o duvido -respondeu-. Mas quando um maldito louco tenta me

arrancar o couro cabeludo, não me preocupa muito seu ponto de vista,

Sassenach. -Bom, mas realmente não pode lhes culpar -protestei.

25

-Claro que posso -assegurou-me-. Se um desses brutos te arrancasse o

couro cabeludo, é obvio que o culparia. -Ah... mmm -esclareci-me garganta-. Bom, e se um grupo de desconhecidos

aparece, trata de te matar e de te tirar a terra onde viveste sempre? -Fizeram-no -afirmou com dureza—. Se não o tivessem feito, ainda estaria

em Escócia, não é assim?

-Bom... -disse com certa insegurança-. Mas o que quero dizer é que, nessas circunstâncias, você também lutaria. Ou não?

Aspirou profundamente e soltou o ar pelo nariz. -Se um inglês vier a minha casa e começa a me perseguir -disse

cuidadosamente-, claro que brigarei contra ele. E não vacilarei em matá-lo. Mas

não lhe arrancaria o cabelo, nem tampouco comeria suas partes íntimas. Não sou um selvagem, Sassenach.

-Eu não disse que fosse -protestei-. Tudo o que pinjente foi...

-Por outra parte -acrescentou com uma lógica inexorável-, não tenho intenções de matar a nenhum índio. Se não se meterem comigo, eu tampouco

lhes incomodarei. -Estou segura de que se sentirão aliviados quando o souberem -murmurei. -Crie que te cansará de mim quando nos instalarmos? -murmurou.

-Estava-me perguntando o mesmo, sobre ti. -Não. -E pude sentir o sorriso em sua voz-. Isso não passará, Sassenach.

-Como sabe? -perguntei. -Não sabia -fez notar-. Mas estivemos casados três anos, e te desejei tanto o

último dia como o primeiro. Talvez mais -disse brandamente, pensando, como eu,

na última vez que tínhamos feito o amor, antes de cair à água. Inclinei-me para beijá-lo. Tinha um gosto limpo e fresco, com um leve

aroma a sexo.

-Eu também. -Então, não se preocupe por isso, Sassenach; eu tampouco o farei. -

Acariciou-me o cabelo, apartando os cachos molhados de minha frente-. Embora te conhecesse de toda a vida acredito que sempre te amaria. E apesar de todas as vezes que temos feito o amor, ainda me surpreende, como esta noite.

-Ah, sim? Mas o que é o que tenho feito? -contemplei-lhe, surpreendida. -Ah... bom. Quero dizer... é que...

De repente, parecia tímido. -Mmm? Beijei a ponta de sua orelha.

-Né... quando cheguei a seu lado... o que estava fazendo... quero dizer... Estava fazendo o que penso?

Sorri na escuridão.

-Suponho que isso depende do que pense, não? -Você sabe bem o que penso, Sassenach.

-Sei. E você sabe perfeitamente o que estava fazendo. Assim para que perguntas?

-Bom, é que... não acreditava que as mulheres fizessem essas coisas.

-Bom, os homens o fazem -assinalei-. Ou, ao menos, você o fazia. Contou-me que quando estava na prisão, você...

-Isso é diferente! depois de tudo, não podia fazer outra coisa.

-Não o tem feito em outras ocasiões? -Sim, bom -murmurou, ruborizando-se-. Suponho que sim.

26

-Um súbito pensamento fez que seus olhos se dilatassem ao me olhar-.

Tem-no feito... muitas vezes? -Suponho que depende do que queira dizer com «muitas» -respondi com um

toque de aspereza-. Sabe que fui viúva durante dois anos. esfregou-se a boca com os nódulos, me examinando com interesse. -Assim é isso. É só que, bem, não tinha pensado que as mulheres fizessem

essas coisas. -A fascinação ultrapassava sua surpresa-. Pode terminar? Quero dizer, sem um homem?

Lancei uma gargalhada cujos ecos ressonaram entre as árvores. -Sim, mas é muito mais bonito com um homem -assegurei. Estirei-me para lhe tocar o peito e beijá-lo-. Muito mais –acrescentei com

suavidade. -Ah! -disse com alegria-. Isso está bem, verdade? -Sinto-me como Eva -murmurei, observando a lua sobre a escuridão do

bosque-. No Jardim do Éden. Sua risada zombadora soou perto de meu umbigo.

-Então, suponho que eu sou Adão -disse Jamie- nas portas do Paraíso. -Voltou a cabeça para olhar com saudade para o desconhecido e logo apoiou a bochecha sobre meu ventre-. Mas desejaria saber se estou entrando ou saindo.

Ri-me, surpreendendo-o. Então, agarrei-lhe das orelhas lhe obrigando a cobrir meu corpo.

-Entrando -pinjente-. E depois de tudo, não vejo um anjo com sua espada levantada.

deixou-se cair sobre meu corpo, com sua pele calenturienta, e me

estremeci. -Não? –murmurou-. Suponho que não olhaste bem. Então a espada entrou em meu corpo e me alagou com seu fogo. Os dois

formamos uma fogueira, tão brilhante como as estrelas em uma noite do verão.

SEGUNDA PARTE PRETERITO IMPERFEITO

3 O gato do clérigo

Boston, Massachusetts, junho de 1969

-Brianna? -Né? —incorporou-se, com o coração palpitante e o som de seu nome

ressonando no ouvido-. Quem... o que?

-Estava dormida. Maldição, sabia que tinha mal a hora. Sinto muito. Chamo-te depois?

-Roger! -A descarga de adrenalina produzida pelo súbito despertar diminuiu, mas seu coração ainda pulsava apressado-. Não, não pendure! Já estou acordada.

esfregou-se a cara, tratando de endireitar o cordão do telefone e arrumar os lençóis.

-Está segura? Que hora é aí?

-Não sei, está muito escuro para ver o relógio -disse, ainda dormitada. Chegou-lhe uma risada entrecortada como resposta.

27

-Sinto-o muito; tratei de calcular a diferença horaria, mas me saiu mau.

Não queria despertar. -Está bem, de todos os modos tinha que despertar para atender o telefone -

assegurou e pôs-se a rir. -De acordo. Bem... -pôde sentir o sorriso em sua voz. -Me alegro de ouvir sua voz, Roger -disse com suavidade.

Estava surpreendida de descobrir quanto gostava. -A tua também eu gosto. -Parecia um pouco tímido-, Olhe, tenho a

oportunidade de ir a uma conferência o mês próximo a Boston. Pensei em ir, se... maldição, não encontro a forma de lhe dizer isso Você gostaria de lombriga?

A moça apertou com força o telefone enquanto seu coração dava um salto.

-Sinto muito -disse imediatamente Roger antes de que respondesse-. Estou-te pondo em um compromisso, não? Olhe, me diga diretamente se não ter vontades.

-É obvio que quero verte. -Ah. Então, não te incomoda? É que não respondeu minha carta. Acreditei

que talvez havia dito algo... -Não, não o fez. Lamento-o. É que justo... -Está bem, não queria...

Suas frases se interromperam e ambos esperaram, com súbito acanhamento.

-Não queria te pressionar... -Não queria ser... Aconteceu de novo e, esta vez, Roger riu.

-Está tudo bem, então -disse Roger com firmeza-. De acordo? A jovem não respondeu, fechando os olhos com uma indefinível sensação

de alívio. Roger Wakefield era, provavelmente, a única pessoa no mundo que

podia entendê-la; pelo que não se deu conta antes, era de quão importante era que lhe compreendessem.

-Estava sonhando quando soou o telefone. -Sim? -Com meu pai. -Lhe fez um nó na garganta, como cada vez que

pronunciava essa palavra. O mesmo lhe ocorria com «mãe»-. Não podia ver sua cara. Caminhava com ele por um bosque, em algum lugar. Eu lhe seguia e ele me

falava, mas tampouco podia ouvir o que me estava dizendo; apressava-me, tratando de lhe alcançar para poder ouvir, mas não o conseguia.

-Mas sabia que era seu pai?

-Sim, ou talvez acreditei, porque subia pelas montanhas. Estava acostumado a fazer isso com papai.

-Fazia-o? Eu também estava acostumado a fazê-lo com meu pai. Se alguma

vez voltar para Escócia, levarei-te a um munro. -Levará-me onde?

Roger riu e de repente começou a recordar, tornando-se para trás o cabelo negro, que não se cortava muito freqüentemente, com os olhos verde musgo entrecerrados. deu-se conta de que se esfregava o lábio com o polegar e se

conteve. Tinha-a beijado ao despedir-se. -Um munro é qualquer cúpula em Escócia, sempre que tiver mais de

novecentos metros. Há tantas, que se trata de ver quantas pode subir. Os moços

as colecionam, como figuritas ou caixas de fósforos.

28

-Onde está agora, em Escócia ou na Inglaterra? -perguntou interrompendo

antes de que pudesse lhe responder-. Não, me deixe ver se posso adivinhar. Está em... Escócia. Está no Inverness.

-Certo. -A surpresa era evidente em sua voz-. Como sabe? -Pronuncia mais os res quando fala com escoceses -disse-. Não o faz

quando fala com ingleses. Dava-me conta disso quando fomos a Londres.

-E eu que tinha acreditado que tinha poderes psíquicos –disse rendo. -Desejaria que estivesse aqui, agora -disse, impulsiva.

-Sério? -Pareceu surpreso e com um súbito acanhamento-. Ah, bom... Isso está bem, verdade?

-Roger, a causa pela que não te respondi...

-Não tem que preocupar-se por isso -disse rapidamente-. Estarei aí dentro de um mês e então poderemos falar. Bri, eu...

-Sim?

-Me alegro de que haja dito que sim.

depois de cortar a comunicação não pôde voltar a dormir; inquieta, baixou da cama e se dirigiu à cozinha do pequeno apartamento para procurar um copo de leite. Só depois de vários minutos de olhar ausente, frente à geladeira aberta,

deu-se conta de que não estava vendo uma fila de potes de molho de tomate e latas semivacías. O que via eram pedras negras no pálido céu do amanhecer.

endireitou-se com uma pequena exclamação de impaciência e fechou a porta de repente. Teria que lhe haver escrito. De fato, tinha escrito, tinha-o feito várias vezes, intentos inconclusos que terminaram no cesto de papéis.

Sabia a causa, ou acreditava que sabia. Explicar-lhe com coerência ao Roger era outra coisa.

Estava o simples instinto do animal ferido; o impulso de correr e esconder-

se para não ser machucado. Acontecido-o no ano anterior não era absolutamente culpa do Roger, mas estava intrinsecamente ligado a tudo.

Tinha sido muito tenro e bom depois, tratando-a como se estivesse de luto, que era como se sentia. Mas que estranho luto! Sua mãe se foi para sempre, embora (era sua esperança) não tinha morrido. E entretanto, em alguns

momentos, era como quando morreu seu pai; acreditar em uma vida ditosa depois da morte, confiando, de todo coração, em que o ser amado estivesse

seguro e contente, mas sem deixar de sofrer os torturas da perda e a solidão. Rezava por eles todos os dias, por sua mãe e seu pai, seus pais. Essa era a outra parte. Seu tio Joe sabia a verdade sobre seu pai, mas só Roger podia entender

verdadeiramente o acontecido; só Roger tinha ouvido as pedras. Ninguém podia passar por uma experiência assim sem ficar marcado. Nem

ele, nem ela. depois de que Claire se fora, Roger queria que ela ficasse, mas não

pôde. Tinha-lhe explicado que tinha coisas que fazer na América, ocupar-se de alguns assuntos, terminar seus estudos... Era verdade, mas o mais importante

era que tinha que afastar-se; apartar-se de Escócia e do círculo de pedras, retornar a um lugar onde pudesse curar-se e começar a reconstruir sua vida. Se ficava com o Roger, não poderia esquecer o acontecido, nem sequer por um

momento. E essa era a última razão, a peça final de seus quebra-cabeças. Roger a tinha protegido e dado carinho. Sua mãe a deixou a seu cuidado e

Roger tinha completo com esse dever. Mas o tinha feito para cumprir com sua

promessa ao Claire, ou porque de verdade lhe importava? -te afaste, assim poderá retornar e fazer as coisas bem -murmurou, fazendo

uma careta ante essas palavras.

29

Desejava deixar atrás os sucessos do mês de novembro. Quando passasse o

tempo suficiente, talvez eles poderiam voltar a encontrar-se. Não como atores secundários no drama da vida de seus pais, mas sim como protagonistas da obra

que eles mesmos escolhessem. Assim, se algo tinha que acontecer ela e Roger Wakefield, decididamente

seria por sua própria eleição. Agora que parecia que ia ter a possibilidade de

escolher, a perspectiva lhe produzia uma sensação de excitação na boca do estômago. passou-se a mão pela cara; já que não podia dormir, ficaria a

trabalhar. Acendeu o abajur do escritório e abriu os livros de cálculo. Uma pequena e

inesperada gratificação por sua mudança de carreira foi o descobrimento dos

efeitos calmantes das matemática. Quando retornou a Boston, só na universidade, a engenharia lhe pareceu

uma eleição muito mais segura que a história. Era algo sólido, imutável,

tranqüilizador e ligado aos fatos da realidade. E, acima de tudo, controlável. Lentamente, a lógica inexorável dos números foi construindo uma telaraña

dentro de sua cabeça, apanhando todos os pensamentos fortuitos e envolvendo as emoções turbadoras como se fossem moscas. Só um pequeno pensamento tinha ficado livre, batendo as asas em sua mente como uma brilhante e diminuta

mariposa: «Me alegro de que haja dito que sim». Ela também se alegrava.

Julho de 1969 -Fala como os Beatles? Ai, morro se fala como John Lennon! Já sabe como

é. me volta louca! -Não tem nada que ver com o John Lennon! –exclamou Brianna.

Esquadrinhou o lugar, mas a porta de chegadas internacionais ainda estava

vazia-. Não conhece a diferença entre alguém do Liverpool e um escocês? -Não -disse despreocupadamente seu amiga Gayie enquanto agitava seu

cabelo loiro-. Para mim, todos os ingleses falam igual. Poderia-os escutar toda a vida!

-Não é inglês! Já te disse que é escocês!

Gayie lançou um olhar ao Claire que dava a entender que, evidentemente, seu amiga estava louca.

-Escócia é parte da Inglaterra, busquei-o no mapa. -Escócia é parte de Grã-Bretanha, não da Inglaterra. -Qual é a diferença? por que o esperamos aqui? Nunca nos verá.

Brianna se alisou o cabelo. Estavam detrás de uma coluna porque não estava segura de se desejava que ele as visse.

Deixou que Gayie a levasse até a zona principal de recepção, enquanto

seguia falando sem tom nem som. A língua de seu amiga tinha uma dobro vida; em classe, Gayie era capaz de elaborar um discurso frio e lógico, mas em sua vida

social tagarelava sem cessar. Essa era a causa pela que Brianna tinha pedido ao Gayie que a acompanhasse ao aeroporto a procurar o Roger; evitaria silêncios incômodos na conversação.

-Já o tem feito com ele? Olhou ao Gayie, sobressaltada. -Se já tiver feito o que?

Gayie fechou os olhos. -Jogar a colocar a pelotita no fossa. Francamente, Bri!

-Não. É obvio que não -disse, ruborizando-se.

30

-Bom, e o vais fazer?

-Gayie! -Bom, tem seu próprio apartamento e ninguém vai A...

Naquele incômodo momento apareceu Roger Wakefield, vestindo uma camisa branca e alguém nos cubra gastos. Brianna ficou tão rígida ao lhe ver que Gayie voltou a cabeça para descobrir o motivo.

-Aaah -disse, encantada-. É ele? Parece um pirata! Assim era; a Brianna tremeram os joelhos. Roger era o que sua mãe

chamava um celta negro, com a pele cor oliva claro, o cabelo negro, pestanas negras entupidas e os olhos, que um esperava de cor azul, de um surpreendente verde profundo. Com o cabelo bastante largo, despenteado e barbudo, não só

parecia um libertino, mas também também um ser perigoso. Então Roger a viu e seu rosto se iluminou. A seu pesar, Brianna sentiu que

sua cara se enchia com um grande sorriso. Esquecendo suas dúvidas, correu

esquivando meninos e carros com bagagens. encontraram-se a metade do caminho e quase a levantou do chão ao

abraçá-la com tanta força para lhe romper as costelas. Beijou-a, deteve-se, beijou-a outra vez raspando-a com a barba. Cheirava a sabão e a suor e tinha sabor de uísque escocês. Brianna não queria que se detivera.

Soltou-a quando os dois ficaram sem fôlego. -Ejem -disse uma voz perto da Brianna.

separou-se do Roger e descobriu ao Gayie sonriendo angelicalmente. -Hoo-laa -disse-. Você deve ser Roger, porque se não fora assim, Roger

sofreria uma comoção ao verte, não?

Olhou-o de cima abaixo, com evidente aprovação. -E além disso toca o violão? Brianna não tinha reparado no estojo que havia no chão. Roger o levantou,

pendurando-lhe do ombro. -Bom, estes são os feijões de minha viagem -disse dirigindo um sorriso ao

Gayie, quem se levou uma mão ao coração em um simulado gesto de êxtase. -Repete isso! -disse Gayie. -Que repita o que? -Roger parecia intrigado.

-Feijões -interveio Brianna, pendurando do ombro uma das bolsas-. Quer ouvir seu acento. Gayie tem paixão pelo acento britânico. Ela é Gayie.

Assinalou a seu amiga com gesto de resignação. -Ah, já me dou conta. -Roger se esclareceu garganta e olhando fixamente ao

Gayie, disse uma frase com tudo os res, em seu acento escocês-, Está bem

assim? -Querem terminar com isso? -Brianna olhou zangada a seu amiga, que se

tinha desabado teatralmente em uma das cadeiras de plástico-. Não faça conta -

advertiu ao Roger, dirigindo-se para a porta-. O que quiseste dizer com o dos feijões? -perguntou, tratando de retomar uma conversação mais normal.

Roger riu, um pouco presunçoso. -Bom, a conferência sobre história me paga a viagem, mas não se fazem cargo

dos gastos. Assim que me arrumei isso para conseguir um trabalho com o que me

costear isso -Tocando o violão? -Durante o dia, o respeitável historiador Roger Wakefield é um inofensivo

acadêmico de Oxford. Mas, de noite, tira seu tartán e se converte no animado Roger MacKenzie!

-Quem?

31

Sorriu ante sua surpresa.

-Bom, interpreto canções folclóricas escocesas em festivais e recitais. vou cantar em um festival celta, nas montanhas, este fim de semana. Isso é tudo.

-Canções escocesas? Usa kilt quando canta? -Gayie ia ao outro lado do Roger.

-claro que sim. Como saberiam então que sou escocês se não o usasse? -eu adoro os joelhos peludos -disse Gayie, sonhando-. Agora, me diga, é

verdade isso que dizem de que os escoceses...

-vá procurar o carro -ordenou Brianna, entregando com brutalidade as chaves a seu amiga.

Gayie apoiou o queixo no guichê do carro, observando ao Roger, que entrava no hotel.

-Caramba, espero que não se barbeie antes de comer. eu adoro o aspecto dos homens quando estão um tempo sem barbear-se. O que será essa caixa tão grande?

-É seu bodhran -respondeu Brianna. -Seu o que?

-É um tambor de guerra celta. Toca-o com alguma de suas canções. Gayie juntou os lábios com gesto dúbio. -Não quererá que eu lhe leve a esse festival, não? Quero dizer, você tem

muitas coisas que fazer Y... -Ja, ja. Crie que te vou deixar estar perto dele quando ficar seu kilt?. Gayie suspirou e colocou a cabeça dentro do carro enquanto Brianna

arrancava. -Bom, talvez haja outros homens com kilt. -É muito possível. Gayie se apoiou no respaldo e olhou de esguelha a seu amiga.

-Então o vais fazer? -Como vou ou seja o?. Mas o sangue bulia baixo sua pele e a roupa lhe incomodava

-Bom, se não o fizer -disse Gayie, convencida-, é que está louca.

-O gato do clérigo é um... gato andrógino. -O gato do clérigo é um... gato andarilho. Brianna o olhou com uma sobrancelha levantada.

-É um jogo escocês -explicou Roger-, agora é seu turno com a letra «b». -Está bem. O gato do clérigo é... -Espera -interrompeu Roger, assinalando-. É por ali.

Com lentidão, Brianna saiu da estreita estrada para introduzir-se em um caminho mais estreito, com uma flecha em vermelho e branco que indicava

«Festival Celta». -É um encanto por me haver trazido até aqui acima -disse Roger-. Não

sabia que estava tão longe, do contrário não lhe teria pedido isso.

A jovem lhe lançou um olhar divertido. -Não está tão longe. -São uns trezentos quilômetros!

Brianna sorriu com um toque zombador. -Meu pai dizia que a diferença entre um norte-americano e um inglês é que

um inglês acredita que cem quilômetros é um comprido caminho e um norte-americano acredita que cem anos é muito tempo.

32

Roger riu, surpreso.

-Vale, está bem. Então você é a norte-americana, suponho. -Suponho -mas seu sorriso se desvaneceu.

O mesmo aconteceu com a conversação. Continuaram em silencio durante uns minutos, sem outro ruído que o do motor e o vento. Era um formoso dia de um caloroso verão.

-O gato do clérigo é um gato distante -disse finalmente Roger, com voz suave-. Hei dito algo mau?

Dirigiu-lhe um rápido olhar triste e um leve sorriso. -O gato do clérigo é um gato fantasioso. Não, não é você. -Apertou os lábios e diminuiu a marcha detrás de outro carro; logo se

relaxou-. Não, perdão, é você, mas não é tua culpa. Roger ficou rígido e se voltou para olhá-la. -O gato do clérigo é um gato enigmático.

-O gato do clérigo é um gato molesto; não devi dizer nada, sinto muito. Roger era o bastante prudente para não pressioná-la. longe disso, procurou

debaixo do assento e tirou o recipiente térmico com chá quente e limão. Brianna não tinha aspecto de inglesa, apesar de sua origem. Não podia

dizer se a diferença era algo mais que a forma de vestir, mas o pensava. Os norte-

americanos pareciam muito mais... o que? Vibrantes? Intensos? Só mais. Brianna Randall era decididamente mais.

-Olhe -disse bruscamente Brianna. Não se voltou para olhá-lo, antes bem cravou a vista na matrícula de Nova Pulôver do carro de diante-. Tenho que lhe

explicar isso

-Não a mim. Arqueou as sobrancelhas com irritação. -Já quem, então? -Apertou os lábios e suspirou-. Sim, claro, de acordo, a

mim também. Mas devo fazê-lo. Roger sentia um gosto amargo no fundo da garganta. Seria agora quando

lhe diria que era um engano que ele estivesse ali? Tinha-o pensado durante a viagem, enquanto cruzava o Atlântico, tratando de acomodar-se no pequeno assento do avião. Logo, quando a viu no vestíbulo do aeroporto, todas suas

dúvidas se desvaneceram de repente. Durante aquela semana a tinha visto um momento todos os dias; inclusive

foram a um partido de beisebol no parque Fenway na quinta-feira pela tarde. O jogo lhe resultou desconcertante, mas adorou o entusiasmo da jovem. encontrou-se contando as horas que faltavam para sua marcha e, entretanto, esperando

este dia, o único que passariam juntos. Isso não significava que ela sentisse o mesmo.

-Em Escócia -começou a lhe dizer Brianna-, quando tudo... aquilo

aconteceu com minha mãe... esteve grandioso, Roger, realmente maravilhoso. Não o olhava, mas Roger podia ver que lhe umedeciam os olhos debaixo das

espessas pestanas avermelhadas. -Não foi grande coisa -respondeu. Fechou as mãos para evitar tocá-la-.

Estava interessado.

Brianna riu. -Sim, arrumado a que sim. -Diminuiu a marcha e se voltou olhando o de

frente. Embora estivessem bem abertos, seus olhos tinham um pouco parecido

aos dos gatos-. tornaste a ir ao círculo de pedras? Ao Craigh na Dun? -Não -disse cortante. Logo tossiu, e acrescentou como de passada. -Não vou

muito freqüentemente ao Inverness; estamos a final de curso.

33

-Não será que o gato do clérigo é um gato nervoso? -perguntou, embora

sonriendo brandamente. -O gato do clérigo tem um medo terrível a esse lugar -disse com franqueza-.

Não poria um pé ali, embora estivesse cheio de sardinhas. Brianna começou a rir e a tensão entre eles se relaxou notavelmente. -Eu tampouco -disse, respirando profundamente-. Mas lembrança. Todo o

trabalho que tomou e logo, quando... quando ela... quando mamãe passou através...

mordeu-se o lábio e freou com brutalidade. -Dá-te conta? -disse em voz baixa-. Estou contigo durante meia hora e tudo

volta a começar. Faz seis meses que não falo de meus pais; começamos a jogar e

em menos de um minuto nomeio aos dois. Isto aconteceu durante toda esta semana.

-Quando não respondeu minha carta, pensei que seria por algo assim.

-Não foi só por isso. mordeu-se para não falar, mas já o havia dito e se ruborizou.

Roger se aproximou e, com gesto tenro, levantou a mecha que lhe cobria a cara.

-Estava terrivelmente apaixonada por ti -estalou, olhando para diante-. Mas

não sabia se te comportava assim comigo porque mamãe lhe tinha pedido isso, ou se era...

-Ou era... -interrompeu, sonriendo ante o tímido olhar da jovem-. Definitivamente sim.

-Ah! -relaxou-se um pouco-. Bom. Bem.

Roger desejava agarrar sua mão, mas não queria ser o culpado de um acidente, assim que lhe aconteceu o braço por detrás e lhe roçou o ombro.

-De todos os modos, não me parecia bem; ou me jogava em seus braços ou

ia. É o que fiz, mas não sabia como lhe explicar isso sem parecer uma idiota. E logo, quando me escreveu, foi pior. Estava como tola!

Roger se desabotoou o cinto de segurança. -Se te beijar, chocará-te com o carro de diante? -Não.

-Bem. aproximou-se e, lhe agarrando o queixo com uma mão, beijou-a.

O carro estralou pelo caminho enlameado até o estacionamento. Brianna respirava com lentidão e seu rubor tinha diminuído um pouco.

Estacionou no lugar indicado, apagou o motor e permaneceu olhando à frente;

tirou-se o cinto de segurança e se voltou para o Roger. Vários minutos mais tarde, quando baixaram do carro, ao Roger lhe

ocorreu pensar que Brianna tinha mencionado mais de uma vez a seus pais. Mas

o problema real estava no pai, que cuidadosamente não tinha mencionado. «Grandioso -pensou, admirando distraídamente o corpo da jovem enquanto se

agachava para abrir o capô-. Ela está tentando não pensar no Jaime Fraser. E onde diabos a traz?» Olhou de esguelha para a entrada, onde se agitavam a bandeira nacional a insígnia escocesa. Da ladeira da montanha chegava o som

das gaitas de fole. 4

Uma rajada do passado

34

Acostumado como estava a trocar-se na parte de atrás de algum carro ou

no privada de um botequim, o cuartito traseiro do cenário supunha para o Roger um luxo notável. «Isto é a América do Norte», pensou. tirou-se os nos cubra e os

deixou cair ao chão. tirou-se a camisa pela cabeça, perguntando-se qual seria o nível de comodidades às que estava acostumada Brianna. Não sabia apreciar a roupa das mulheres (quanto podiam valer um par de calças?), mas sabia um

pouco sobre carros. o da Brianna era um flamejante Mustang azul que, ao vê-lo, fez-lhe desejar conduzi-lo.

Era evidente que seus pais lhe tinham deixado médios para viver; confiava em que Claire Randall se ocupou disso. Mas esperava que não tanto como para que pudesse pensar que estava interessado em seu dinheiro. Ao recordar a seus

pais, olhou o sobre de papel marrom. Devia entregar-lhe a Brianna? O jogo do gato assustado quase resultou verdade, porque Brianna ficou

pálida ao encontrar-se com a banda de gaiteiros dos highlanders, composta pelos

Fraser oriundos do Canadá, que estavam ensaiando a todo pulmão detrás dos vestuários. Quando apresentou ao Bill Livingstone, um velho amigo, não foi o

aspecto do gaiteiro maior o que a intimidou, a não ser a insígnia do clã dos Fraser que levava no peito. «Je suis prest», dizia. «Estou preparado.» «Ainda não está o

suficientemente preparada», pensava Roger reprimindo as vontades de golpear-se por havê-la levado ali. Entretanto, a jovem lhe tinha assegurado que estaria bem e que daria uma volta pelo lugar enquanto ele se trocava e preparava para o

espetáculo. Seria melhor que se concentrasse, pensou, grampeando as fivelas de seu

kilt na cintura e o quadril e estirando as médias de lã. Tinha que atuar ao começo

da tarde durante quarenta e cinco minutos e logo, de noite, interpretaria um breve só durante o ceilidh. Tinha uma quantidade importante de canções em sua

cabeça, mas sempre terei que ter em conta ao público. Com muitas mulheres, balida-las funcionavam bem; com maioria de homens, era melhor a música

militar. As canções obscenas eram bem acolhidas uma vez o público tinha entrado em calor, sobre tudo depois de umas quantas cervejas.

Queria encontrar-se de novo com a Brianna, ter tempo para conversar um

momento, lhe conseguir algo de comer e controlar que tivesse um bom site para ver o espetáculo. pendurou-se a capa de um ombro, ajustou-se o broche e se

colocou a adaga e o embornal; já estava preparado. deteve-se um momento e saiu em busca da Brianna.

-Ooh! -exclamou dando voltas a seu redor, rendo-. Roger, está magnífico! -Sorriu com picardia-. Minha mãe sempre dizia que os homens com saia escocesa estavam irresistíveis e vejo que tinha razão.

deu-se conta de que tragava com dificuldade e teve vontades de abraçá-la, mas Brianna já se dirigiu para a zona onde serviam comida.

-Tem fome? estive olhando enquanto te trocava. Podemos escolher entre polvos, tacos, salsichas...

Agarrou-a do braço, atraindo-a para si para lhe ver a cara.

-Né! —disse com suavidade-, lamento-o. Se tivesse pensado que isto te ia impressionar tanto, não houvesse te trazido.

-Não passa nada. -Sorriu com mais ganha-. É... me alegro de ter vindo.

-De verdade? -Estraga. Realmente. É... -Fez um gesto necessitado para o torvelinho de

cor e ruídos que os rodeava-. É tão... escocês.

35

Roger teve vontades de rir; nada podia ser menos escocês que aquela

montagem para turistas, com objetos e tradições semifalsificadas. Ao mesmo tempo, Brianna tinha razão: era singularmente escocês. Um exemplo do talento

escocês para sobreviver e de sua habilidade para adaptar-se a algo. Abraçou-a. Seu cabelo cheirava a limpo, como a erva fresca. -Você também é escocesa, sabe -disse-lhe ao ouvido e a soltou.

Brilhavam-lhe os olhos, embora agora por uma emoção diferente. -Suponho que tem razão -disse com um amplo sorriso-. Isso não significa

que tenha que comer esse guisado de carneiro, não? Vi-o e acredito que prefiro provar o polvo.

Acreditou que brincava, mas não era assim. Um dos vendedores lhes

explicou que parte do negócio era respeitar os costumes. -Cada duas semanas, troca tudo. Nunca nos aborrecemos. Mas temos que

trocar de comida se queremos vender, não importa a classe que seja. -O vendedor

inspecionou a roupa do Roger com interesse-. Você é escocês ou só gosta de ficar saias?

Como já tinha ouvido muitas vezes brincadeiras semelhantes, Roger lhe dirigiu um olhar imperturbável.

-Bom, como estava acostumado a dizer meu avô -respondeu, marcando seu

acento-, «quando puser seu kilt, moço, deve entender que é um homem!». O homem fez um gesto de reconhecimento e Brianna abriu os olhos.

-Brincadeiras sobre kilts -murmurou-. Mierda, se começar a fazer essas brincadeiras, juro-te que vou e te deixo sozinho.

Roger sorriu zombador.

-Não me faria isso, né, menina? Ir e deixar a um homem, só porque há dito o que tem debaixo do kilt?.

Os olhos da Brianna se entrecerraron até ficar como dois triângulos azuis. -Arrumado a que não leva nada debaixo -disse Brianna assinalando o

embornal-. E suponho que tudo está em perfeitas condições -disse, exagerando o acento escocês.

Roger se ruborizo.

-supõe-se que tem que responder: «me dê a mão e te farei uma demonstração prática» -interveio o vendedor de comida-. Moço, ouvi-o cem vezes esta semana.

-Se ele o disser -respondeu Brianna com tom sombrio- irei e o deixarei abandonado nesta montanha. Pode ficar comendo polvo, não me importa.

Roger bebeu um gole da Coca-cola e, com grande sabedoria, permaneceu em silêncio.

Tiveram tempo de dar uma volta entre os postos dos vendedores. Roger não provocava mais que alguma ligeiro olhar de curiosidade; embora sua roupa era de melhor qualidade que a da maioria, não era estranha naquele lugar.

-por que MacKenzie? -perguntou Brianna-. Wakefield não soa bastante escocês? Ou crie que às pessoas de Oxford não gostaria... isto?

E com um gesto assinalou o que os rodeava. Roger se encolheu de ombros. -Em parte, sim. Mas também é meu sobrenome. Meus pais morreram

durante a guerra, meu tio avô me adotou e me deu seu sobrenome. Mas me batizaram Roger Jeremiah MacKenzie.

-Jeremiah? -Não lançou uma gargalhada, mas se ruborizou pelo esforço-. Como o profeta do Antigo Testamento?

36

-Não te ria. -E a agarrou do braço-. Puseram-me isso por meu pai; o

chamavam Jerry. Quando era pequeno mamãe me chamava Jemmy. Um antigo nome de família. Mas depois de tudo, podia ter sido pior. Poderiam me haver

batizado Ambrose ou Conan. Brianna estalou em uma gargalhada. -Conan?

-Um nome celta perfeitamente respeitável, antes de que o usassem em tudo esses filmes. De todos os modos, Jeremiah parece ter sido eleito por bons

motivos. -E como é isso? -É uma das histórias que papai (sempre chamei papai ao reverendo) estava

acostumado a me contar percorrendo minha árvore genealógica e assinalando a meus parentes. Falava-me de minha bisavó Mary Oliohant, que viveu até os noventa e sete anos e se casou seis vezes. Todos seus maridos morreram por

causas naturais, mas único que teve filhos foi com o Jeremiah MacKenzie por isso figurava na árvore genealógica. Parece ser que Jeremiah era o único que a

levava a cama todas as noites. -Pergunto-me que aconteceria os outros maridos –comento Brianna. -Bom, ela não disse que não se deitasse com eles -disse Roger-. Mas não

todas as noites. -Com uma vez é suficiente para ficar embaraçada-dijo Brianna-. Ou ao

menos, isso era o que minha mãe assegurava. Em minha classe de saúde, na secundária, desenhavam espermatozóides na piçarra correndo para um imenso ovo com caras maliciosas.

ruborizou-se de novo, mas era evidente que essas lembranças a divertiam. -Deixando a um lado a questão de que os espermatozóides tivessem cara, o

que tem que ver esse tema com a saúde?

-É um eufemismo norte-americano para algo que tenha que ver com o sexo –explicou-. Dão classes separadas. Para as garotas: «Os mistérios da vida» e «Dez

formas de dizer não a um moço». -E as classes dos meninos? -Bom, não estou muito segura, porque não tinha irmãos que me contassem

isso. Embora algumas de meus amigas sim tinham e um deles nos contou que aprendiam dezoito sinônimos diferentes de ereção.

-Um pouco muito útil -disse Roger, perguntando-se para que queriam tantos nomes. Por sorte, o embornal cobria uma multidão de pecados.

-Suponho que servirá para manter uma conversação... em certas

circunstâncias. A jovem tinha as bochechas ruborizadas. Roger podia sentir aquele calor

em sua própria garganta e se imaginou que a gente começava a olhar os de reojo.

Desde que tinha dezessete anos nenhuma garota o tinha posto em uma situação tão embaraçosa em público. Mas era muito agradável e, já que tinha começado,

deixaria-a terminar. -Mmm. Parece que não se fala muito, em certas circunstâncias. -Imagino que saberá.

Não era uma pergunta. Então se deu conta do que ela queria saber. Aproximou-a mais.

-Se me está perguntando se a tive, a resposta é sim. Se te referir à

atualidade, não. -Se teve o que? -Tremiam-lhe os lábios, reprimindo a risada.

-Estava-me perguntando se tinha uma noiva na Inglaterra, não é verdade?

37

-Ah, sim?

-Não a tenho. Bom, quase a tive, mas nada sério. -Estavam na porta dos vestuários. Ia sendo hora de que fora a procurar seus instrumentos. deteve-se e a

olhou-. E você? Tem algum? Era o bastante alta para olhá-lo aos olhos e estavam tão perto que seus

seios lhe roçaram o braço quando se voltou para olhá-lo cara a cara.

-Bom, sua bisavó se casou muitas vezes antes de ficar sozinha, não? -Acariciou-lhe o broche do ombro-. A verdade é que saio com alguns meninos. Mas

nenhum é especialmente importante... ainda. Agarrou-lhe os dedos e os levou aos lábios. -lhe dê tempo ao tempo, menina -disse.

O público estava surpreendentemente tranqüilo, ao contrário que em um

festival de rock. «É obvio -pensou a jovem-, não têm por que ser ruidosos já que

não há violões elétricos nem amplificadores, só um pequeno microfone.» Mas seu coração pulsava com força sem necessidade de amplificadores.

-Toma -disse Roger, saindo bruscamente do vestuário com seu violão e seu tambor. Entregou-lhe um pequeno sobre de papel marrom-. Encontrei-o revisando papéis velhos de papai, no Inverness. Pensei que talvez as quereria ter.

Sabia que eram fotos, mas não as quis olhar em seguida. sentou-se a escutar ao Roger com o sobre lhe queimando os dedos.

Era bom; embora estava distraída podia dar-se conta que tinha talento. Sua voz de barítono era rica e profunda e sabia modulá-la. além das inflexões e a melodia, tinha a habilidade de relacionar-se com o público, olhar às pessoas aos

olhos e comunicar-se através de suas canções. Ao cantar a última nota, olhou-a diretamente aos olhos e lhe sorriu.

-E esta fala sobre a famosa batalha do Prestonpans, quando o exército das

terras altas de Escócia, com o Carlos Estuardo, derrotou às forças inglesas, muito mais numerosas, baixo o mando do general Jonathan Monopolize.

Houve um murmúrio de apreciação; era evidente que a canção era uma das mais populares.

Brianna sentiu que lhe arrepiava o pêlo, não pelo cantor, mas sim pela letra

da canção. -Não -sussurrou, apertando o sobre com dedos frios.

«Venham comigo, meus alegres homens.» Tinham estado ali; seus pais tinham estado ali. Seu pai foi o que atacou em Emprestem. As vozes se uniram formando um coro. Brianna teve um momento de pânico, que passou deixando-a

comovida tanto pela emoção como pela música. Algumas pessoas tratam de preservar o passado; outras escapam. E esse

era o maior abismo entre ela e Roger. por que não o tinha visto antes?

Não sabia se Roger tinha detectado sua confusão, mas abandonou o perigoso território dos jacobitas para cantar «O lamento do MacPherson», com

apenas uns acordes do violão como acompanhamento. Agarrou o sobre, sopesando-o. Talvez deveria esperar a voltar para casa.

Mas a curiosidade lutava contra sua resistência.

Roger não estava convencido de se devia lhe entregar aquelas fotos, tinha-o visto em seu olhar. Enquanto finalizava a canção, colocou os dedos no sobre e tirou várias fotos. Velhas fotos instantâneas em branco e negro, algo amareladas.

Seus pais Frank e Claire Randall, absurdamente jovens e contentes.

38

Estavam em um jardim, com cadeiras e uma mesa com bebidas. Os rostos

se viam com claridade, sorridentes e olhando-se aos olhos. Na última foto estavam a ponto de cortar o bolo de bodas.

-E por último, uma antiga canção que todos conhecem. diz-se que a escreveu um prisioneiro jacobita, caminho de Londres para que o pendurassem, e que a enviou a sua esposa nas montanhas de Escócia...

Cobriu as fotos com as mãos para evitar que alguém as visse. estremeceu-se. Fotos de umas bodas. Do dia das bodas.

É obvio, casaram-se em Escócia. O reverendo Wakefield não pôde celebrá-la porque não era católico, mas era um dos melhores amigos de seu pai; a recepção deveu realizar-se na reitoria. Sim. Espiando através de seus dedos, pôde

descobrir partes conhecidas da antiga casa. Logo, a contra gosto, retirou a mão e olhou outra vez o jovem rosto de sua mãe. Dezoito. Claire se tinha casado com o Frank Randall aos dezoito anos. Talvez isso o explicasse. Como se pode saber, tão

jovem, o que alguém quer? Mas Claire estava segura, ou acreditava está-lo. A frente ampla e a boca delicada não admitiam dúvidas; os grandes olhos

luminosos estavam cravados em seu marido sem dúvidas nem temores. E entretanto...

Sem fixar-se onde pisava, Brianna saiu da fila e escapou antes de que

pudessem ver suas lágrimas.

-Posso ficar contigo enquanto chamam os clãs –disse Roger-. Mas ao final tenho que participar. Estará bem?

-Sim, é obvio -respondeu com segurança-. Estou bem. Não se preocupe.

Olhou-a com ansiedade, mas não insistiu. Nenhum dos dois tinha mencionado sua precipitada saída. Quando terminou de saudar os que o felicitavam e pôde ir procurá-la, Brianna já tinha tido tempo de lavá-la cara no

quarto de banho. Tinha escurecido e a gente se dirigia aos postos de fora, ao pé da

montanha. -O que é a chamada dos clãs? -perguntou uma mulher a seu companheiro. O homem se encolheu de ombros e Brianna olhou ao Roger para que o

explicasse. -Já o verá -disse sonriendo.

Tinha anoitecido e a lua ainda não saía. A montanha era uma massa escura no céu estrelado. Uma exclamação surgiu da multidão e, então, as notas de uma gaita de fole atravessaram o ar, silenciando todo o resto.

Um ponto de luz apareceu perto do topo da montanha. Enquanto olhavam, moveu-se para baixo e apareceu outro brilho. A música se fez mais forte e apareceu outra luz. Durante quase dez minutos a espera aumentava, a música se

ia fazendo mais forte e as luzes se converteram em uma cadeia luminosa que baixava pela montanha.

Ao fundo da ladeira havia um atalho que descendia das árvores do topo. Brianna já o tinha visto antes. Naquele momento apareceu um homem entre as árvores, agitando uma tocha por cima da cabeça. Detrás ia o gaiteiro; o som da

gaita de fole era tão forte que apagava as exclamações da multidão. Enquanto baixavam pelo atalho para o claro, frente aos degraus, Brianna

pôde ver uma larga fileira de homens, cada um levando uma tocha e vestidos com

a roupa de chefes dos clãs. Eram bárbaros e esplêndidos, com a prata das espadas e adagas brilhando com brilhos avermelhados à luz das tochas.

39

As gaitas de fole calaram bruscamente e o primeiro dos homens se deteve

ante os degraus. Levantou a tocha por cima da cabeça e gritou: -Os Cameron estão aqui!

Exclamações de entusiasmo percorreram as tribunas; o homem arrojou a tocha no tonel cheio de querosene e o fogo se elevou com um rugido.

Outra vez se repetiu a cena.

-Os MacDonald estão aqui! Gritos e aclamações de outros membros do clã.

-Os MacLachlan estão aqui! -Os MacGillivray estão aqui! Estava tão interessada no espetáculo que quase não emprestava atenção ao

Roger. Então se adiantou outro homem. -Os MacKenzie estão aqui! -Tulach Ardi -uivou Roger, sobressaltando a Brianna.

-O que é isso? -Isso -respondeu sonriendo- é o grito de guerra do clã dos MacKenzie.

-Sonha muito guerreiro. -Os Campbell estão aqui! -Devia haver muitos Campbell, porque a resposta

sacudiu os degraus. Como se essa fora o sinal que esperava, Roger ficou em pé e

se colocou a capa. -Encontramo-nos nos vestuários?.

Brianna assentiu e Roger se inclinou súbitamente e a beijou. -Se por acaso tem dúvidas –disse-. O grito dos Fraser é Caisteal Dhuni. Observou-o enquanto se afastava baixando pelos degraus como uma cabra

Montes. Sentia o peito oprimido pela fumaça e a emoção. Tinham morrido os clãs no

Culloden? Sim, assim era; isto não eram mais que lembranças; estavam chamando fantasmas; os que estavam ali gritando com entusiasmo não eram parentes nem tinham terras nem casas, mas...

-Os Fraser estão aqui! O pânico se apoderou dela e se aferrou a sua bolsa. «Não -pensou-. Ah, não.

Eu não.» Passado o momento, recuperou a respiração, mas a adrenalina ainda corria

por suas veias.

Os Lindsay, os Gordon... até que, finalmente, os ecos do último grito cessaram. Brianna sujeitava sua bolsa como se temesse que fora a escapar. «Como pôde fazê-lo ela?», pensou; e logo, ao ver o Roger com o tambor na mão e a

cabeça iluminada pelo fogo, pensou outra coisa: «Como impedi-lo?»

5 Duzentos anos depois

-Não leva posta a saia escocesa! A boca do Gayie se curvou em um gesto de decepção.

-Século equivocado -respondeu Roger, sonriendo-. Muito exposto às correntes de ar para um passeio pela Lua.

-Tem que me ensinar a fazer isso -disse, inclinando-se para ele.

-A fazer o que? -Fazer soar os res assim. Juntou as sobrancelhas e tentou imitá-lo, produzindo um ruído parecido ao

motor de uma lancha.

40

-Perr-fecto -disse, tratando de não rir-. Segue assim.

-Bom, ao menos haverá trazido o violão. -Nas pontas dos pés tratou de olhar por cima de seu ombro-. Ou esse fantástico tambor.

-Está no carro -interveio Brianna, aproximando-se do Roger-. Vamos ao aeroporto daqui.

-Ah, o que machuca, pensei que poderíamos dar uma volta e organizar uma

festa com música, para celebrá-lo. Conhece «Esta terra é sua terra», Roger? Ou você gosta mais das canções protesto? Mas suponho que não, como é inglês,

quero dizer, escocês. Vós não têm nada do que protestar, não? Brianna dirigiu um olhar de exasperação a seu amiga. -Onde está o tio Joe?

-No salão, esmurrando o televisor -disse Gayie-. Quer que entretenha ao Roger enquanto você o busca?

-Temos aqui na metade da Faculdade de Engenharia e não há ninguém que

possa arrumar um maldito televisor? O doutor Joseph Abernathy lançou um olhar acusador ao grupo de jovens

que havia no salão. -Isso é engenharia elétrica, papai -disse seu filho com orgulho-. Nós somos

engenheiros mecânicos. lhe pedir a um engenheiro mecânico que arrume seu

televisor em cor é como lhe pedir a um ginecologista que olhe... ai! -Sinto muito -disse seu pai, olhando por cima de seus óculos de arreios de

ouro-. Era seu pé, Lenny? Lenny saltou pela habitação, agarrando-se um de seus grandes pés

embainhado na sapatilha, com exagerados gestos de agonia enquanto todos riam.

-Bri, querida! O médico descobriu a jovem e abandonou o televisor com o rosto radiante.

Abraçou-a com entusiasmo sem ter em conta o fato de que ela era como dez

centímetros mais alta. Soltou-a e olhou ao Roger, mostrando uma cautelosa cordialidade.

-Este é o apaixonado? -Este é Roger Wakefield -disse Brianna, entrecerrando os olhos-. Roger, Joe

Abernathy.

-Doutor Abernathy. -me chame Joe.

estreitaram-se as mãos, avaliando-se mutuamente. -Bri, querida, quer te ocupar desse traste e ver se consegue ressuscitá-lo? Brianna olhou com incerteza o grande aparelho e rebuscou no bolso de

seus nos cubra, de onde tirou uma navalha a Suíça. -Bom, suponho que posso revisar as conexões. -Abriu a folha do chave de fenda-. Quanto tempo temos?

-Meia hora, talvez -gritou um estudante da porta da cozinha. Lançou um olhar ao grupo reunido junto ao pequeno aparelho da mesa-. Ainda estamos com

a missão de controle em Houston; hora prevista, trinta e quatro minutos. Os comentários do repórter da televisão se intercalavam com as

exclamações dos estudantes.

-Bem, bem -disse o doutor Abernathy, apoiando uma mão no ombro do Roger-. Temos tempo de sobra para um gole. Você bebe escocês, senhor Wakefield?

-me chame Roger. Abernathy serve uma quantidade generosa do néctar cor âmbar e o

alcançou.

41

-Imagino que não quererá água, Roger.

-Não. Era da marca Lagavulin, algo assombroso em Boston.

-Me deu de presente isso Claire. A mãe do Bri. Era uma mulher com bom paladar para o uísque.

Moveu a cabeça com uma expressão de nostalgia.

-Slainte -disse Roger com calma e levantou sua taça antes de beber. Abernathy fechou os olhos em silenciosa aprovação; se era pela mulher ou

pelo uísque, Roger não podia dizê-lo. -Água de vida, né? Acredito que isto pode levantar um morto. Colocou a garrafa com respeito novamente na vitrine.

Quanto tinha contado Claire ao Abernathy? Bastante, supunha Roger. -Já que o pai do Bri morreu, suponho que tenho que fazer as honras.

Temos tempo para um interrogatório de terceiro grau antes de que alunissem, ou o fazemos mais breve?

-Roger levantou uma sobrancelha.

-Suas intenções -explicou o médico. -OH. Estritamente honoráveis. -Sim? Chamei ontem à noite ao Bri para saber se vinha hoje. Não

respondeu ninguém. -Fomos a um festival de música celta, nas montanhas.

-Estraga. Chamei de novo às onze da noite. E a meia-noite. Sem resposta. Bri está sozinha e é adorável. Não queria ver como alguém se aproveita disso, senhor Wakefield.

-Tampouco eu... doutor Abernathy. -Roger esvaziou sua taça e a deixou com um golpe. O calor fervia em suas bochechas e não era devido ao Lagavulin-.

Se acreditar que eu... -AQUI Houston -trovejou a televisão- CALMA NA BASE. VAMOS

ALUNISSAR EM VINTE MINUTOS.

Os ocupantes da cozinha apareceram, brindando com seus refrescos. Brianna, ruborizada, ria sem fazer caso das felicitações enquanto guardava sua navalha. Abernathy pôs uma mão no braço do Roger para retê-lo.

-Falo a sério, senhor Wakefield -disse Abernathy em voz baixa para que não lhe ouvissem outros-. Não quero me inteirar de que tem feito infeliz a esta moça.

Nunca. Com cuidado, Roger conseguiu liberar seu braço. -Acredita que não é feliz? -perguntou o mais educadamente possível.

-Não-oo -respondeu Abernathy, olhando-o de soslaio-. Justamente o contrário. É a forma em que a vejo esta noite o que me faz pensar que deveria lhe

romper o nariz, em nome de seu pai. Roger não pôde evitar olhá-la; era verdade. Como se tivesse um radar,

Brianna voltou a cabeça para olhá-lo. Enquanto falava com o Gayie, seus olhos

seguiam fixos nos do Roger. O médico se esclareceu garganta de forma audível e Roger apartou a vista

da Brianna para enfrentar-se com a expressão pensativa do Abernathy.

-OH -disse, em tom diferente-. Assim é isso. Roger tinha o pescoço da camisa desabotoado, mas sentia como se levasse

uma gravata ajustada. Olhou ao médico diretamente aos olhos. -Fui-dijo-. Isso. O doutor Abernathy procurou a garrafa do Lagavulin e encheu as duas

taças.

42

-Claire disse que você gostava -disse resignado. Levantou sua taça-. Está

bem. Slainte. -Gira para o outro lado, Walter Cronkite está de cor alaranjada! Lenny Abernathy se inclinou para mover o botão e a tela se voltou

esverdeada. -«Em dois minutos aproximadamente, o comandante Neil Armstrong e a

tripulação do Apolo farão história; será a primeira vez que o homem chegue à

Lua...» O salão estava escuro e cheio de gente.

-Estou impressionado -murmurou Roger ao ouvido da Brianna-. Como o conseguiste?

Estava detrás dela, apoiado em uma prateleira da biblioteca e a sujeitava

pelos quadris enquanto apoiava o queixo no ombro da jovem. -Alguém tinha pisado na tomada -respondeu-. Simplesmente o voltei a

conectar.

Roger riu e a beijou no pescoço. -Tem o traseiro mais arrebitado do mundo -sussurrou.

A jovem não respondeu, mas deliberadamente apertou seu traseiro contra ele.

Na tela da televisão se viam fotos da bandeira que os astronautas foram

colocar na Lua. Olhou de esguelha pela habitação, mas Joe Abernathy estava tão

hipnotizado como o resto.

Em duas horas tinha que ir-se; não tinham tempo para intimidades. A noite anterior, sabendo que jogavam com dinamite, tinham sido mais prudentes.

perguntou-se se Abernathy lhe teria golpeado se tivesse admitido que Brianna tinha passado a noite com ele.

Tinha conduzido na viagem de volta das montanhas, lutando por manter-se

no lado direito da estrada e nervoso por ter a Brianna tão perto. detiveram-se para tomar café, conversaram até passada a meia-noite, tocando-se

constantemente, mãos, coxas, cabeças juntas. Quando chegaram a Boston, a cabeça da Brianna descansava pesadamente sobre seu ombro.

Incapaz de seguir conduzindo por ruas desconhecidas até o apartamento da

Brianna, foi diretamente até seu hotel, subiu-a às escondidas, e a deitou em sua cama, onde ficou dormida ao momento.

Passou o resto da noite deitado, castamente, no chão, abafado com o

casaco de lã da jovem. Ao amanhecer, levantou-se e se sentou em uma cadeira, alagado por seu aroma, observando-a silenciosamente enquanto a luz lhe

mostrava seu rosto dormido. Sim, foi assim. Na televisão anunciavam a chegada da nave. O silêncio da habitação se

quebrou por um suspiro coletivo. Roger sentiu que lhe arrepiava o cabelo da nuca.

-«Um... pequeno... passo para o homem» -dizia a voz-, «um salto gigante... para a humanidade».

Até a Brianna tinha esquecido todo o resto, inclinada para diante,

apanhada no momento. Era um bom dia para ser norte-americano. Roger teve um instante de incerteza ao vê-los todos tão orgulhosos, com

tanto ardor, e a Brianna tão integrada no assunto. Era um século diferente,

43

duzentos anos desde ontem. Haveria um terreno comum para eles, um

historiador e uma engenheira? Ele, olhando para trás, aos mistérios do passado; ela, para o futuro e seu brilho embriagador?

Então a habitação se encheu de exclamações de entusiasmo e Brianna se deu a volta para beijá-lo e abraçá-lo.

Roger pensou que talvez não importasse que suas direções fossem opostas,

sempre que se encontrassem o um ao outro.

TERCEIRA PARTE PIRATAS

6 Tropeço com uma hérnia

Junho de 1767 -Detesto os navios -disse Jamie com os dentes apertados-. Ódio os navios.

Sinto pelos navios o mais profundo desprezo.

O tio do Jamie, Héctor Cameron, vivia em uma plantação chamada River Run, que ficava além do Cross Creek, que a sua vez estava rio acima, a certa distância do Wilmington; a uns trezentos quilômetros dali. Nessa época do ano a

viagem em navio duraria entre quatro dias e uma semana, dependendo do vento. Se escolhíamos viajar por terra, a travessia duraria como mínimo duas semanas.

-Os rios não têm ondas -disse ao Jamie-. Além disso, se te enjoar, ainda

tenho minhas agulhas. Apalpei o bolso onde levava a caixa de marfim com as agulhas de ouro para

praticar a acupuntura. Jamie soprou com força, mas não disse nada mais. Não fomos ricos, mas

tínhamos um pouco de dinheiro, resultado de um golpe de sorte durante o

caminho. Viajando como ciganos por volta do norte do Charleston e acampando durante a noite, longe do caminho, tínhamos descoberto uma residência

abandonada no bosque, quase oculta pela vegetação. Entre as novelo ficavam os restos de um horta de melocotoneros, com as frutas amadurecidas cheias de abelhas. Comemos tudo o que pudemos, dormimos ao socaire das ruínas e nos

levantamos antes do amanhecer para encher o carro com a fruta dourada e suculenta, que fomos vendendo pelo caminho. Como conseqüência, chegamos ao Wilmington com as mãos pegajosas, uma bolsa de moedas (a maioria peniques) e

um penetrante aroma de fermentação que nos alagava o cabelo, a pele e a roupa como se nos tivéssemos banhado em licor de pêssego.

-Toma isto -disse Jamie, me alcançando a pequena bolsa de couro com nossa fortuna-. Compra as provisões que possa... mas nada de pêssegos, né? E algumas costure para nos arrumar e não parecer uns mendigos quando nos

apresentarmos ante meus parentes. Duncan e eu vamos tratar de vender o carro e os cavalos e procurar um navio. E se aqui há alguém parecido a um ourives, verei o que me oferece por uma das pedras.

-Tome cuidado, tio -interveio Ian, franzindo o cenho ante a quantidade e variedade de gente que perambulava pelo porto-. Leva a Cilindro para que te

proteja.

44

-Ah, bom -Jamie lançou um olhar ao cão, que observava vigilante-. Vêem

comigo, então, perrito. -Me olhou de esguelha antes de ir-se-. Talvez seria melhor que comprasse um pouco de pescado seco.

Wilmington era uma cidade pequena que, por causa de sua afortunada

situação como porto marítimo na desembocadura de um rio navegável, gabava-se

de ter não só um mercado de produtos agrícolas, com todo o necessário para a vida cotidiana e um embarcadero, mas também várias lojas que armazenavam

artigos de luxo importados da Europa. -Favas, muito bem -disse Fergus-. Eu gosto das favas. E pão, farinha, sal e

manteiga de porco. Carne salgada, cerejas secas, maçãs frescas, todo isso está

bem. Pescado, para mais segurança. Acredito que será necessário que consigamos agulhas e fio. Também uma escova -acrescentou, olhando meu cabelo que, por causa da umidade, fazia esforços para escapar de meu chapéu de

asa larga-. E os remédios do farmacêutico, naturalmente. Mas encaixe? -Encaixe -respondi com firmeza. Coloquei um pacote com três metros de

encaixe de Bruxelas no canasto que levava Fergus-. E também um metro de cinta de seda de cada cor -expliquei à acalorada jovem que nos atendia-. A vermelha é para ti, Fergus, assim não te queixe; verde para o Ian; amarela para o Duncan e a

azul escuro para o Jamie. E não, não é um gasto extravagante. Jamie não quer que pareçamos uns vagabundo ante seus tios.

-E o que passa contigo, tia? -perguntou Ian, sonriendo zombador-. Não pensará que os homens pareçam uns petimetres e você vá como um pobre pardal?

Fergus soprou, entre exasperado e divertido. -Esta -disse, assinalando um cilindro de cinta cor rosa escuro. -Essa cor é para uma menina -protestei.

-As mulheres nunca são muito majores para usar o rosa -respondeu com firmeza Fergus.

-Está bem, também a rosa. Saímos à rua, carregados com canastos e bolsas de provisões. Olhei para o

porto e vi a alta figura do Jamie, com Cilindro caminhando a seu lado.

Ian saudou, pegou um grito e Cilindro lhe aproximou veloz, agitando a cauda ao ver seu dono.

-meu deus -disse arrastando as palavras uma voz que vinha do alto-. É o cão maior que vi em minha vida.

-Dava-me a volta e vi um cavalheiro que se separava da porta do botequim

e levantava o chapéu para me saudar-. Para servi-la, senhora. Espero, sinceramente, que não lhe interesse a carne humana.

Meu interlocutor era um dos homens mais altos que tinha visto em minha vida; media um cotovelo mais que Jamie.

-Não, alimenta-se de pescado -assegurei.

Ao ver que tinha que estirar o pescoço para lhe falar, agachou-se amavelmente. Então observei que tinha a barba negra e um nariz

incongruentemente chata, acompanhada por uns olhos grandes e amáveis de cor avelã.

-Bom, isso me alegra. John Quincy Myers, para lhe servir, senhora -disse,

com uma inclinação. -Claire Fraser -respondi, lhe oferecendo a mão de uma vez que o olhava

fascinada.

45

Agarrou meus dedos e os levou ao nariz, cheirou-os e me dedicou um

amplo sorriso, encantadora, em que pese a que lhe faltava a metade dos dentes. -É você uma mulher que, talvez, saiba de ervas?

-Mas como?. -Uma senhora com habilidade para a jardinagem se ocupa de suas rosas;

mas uma dama cujas mãos cheiram como resultado de sasafrás e a casquinha,

tem que saber algo mais que fazer florescer seu novelo. Não está de acordo? -perguntou, com um olhar amistoso ao Ian, quem seguia a conversação com

indubitável interesse. -OH, sim -assegurou o moço-. A tia Claire é uma famosa curadora. Uma

curandeira -disse, me olhando orgulhoso.

-De maneira que é assim, moço? Bem, então... -Os olhos do senhor Myers me enfocaram com interesse-. Que me matem se isto não é ter sorte! E eu que acreditava que ia ter que esperar até chegar às montanhas para procurar um

chamán que me atendesse. -Está doente, senhor Myers? -perguntei.

-Eu não diria doente -replicou. ergueu-se e começou a afrouxá-la camisa de pele de ante-. Não é gonorréia, nem pústulas francesas, porque já as vi. -Enquanto falava, lutava para afrouxá-los calções-. Mas essa maldita coisa que de

repente aparece justo detrás de meu Pelotas... é muito incômodo, como se imaginará, embora só me dói quando monto a cavalo. Importaria-lhe jogar uma

olhada e me dizer o que é o que posso fazer? -Ah... -pinjente, com um olhar se desesperada para o Fergus. -Posso ter o prazer de conhecer senhor John Myers? -perguntou uma

educada voz com acento escocês. O senhor Myers deixou de lutar com sua roupa e olhou de forma

inquisitiva.

-Não posso dizer se for um prazer para você, senhor -respondeu com amabilidade-. Mas se busca ao Myers, já o encontrou.

Jamie se deteve junto a mim. Colocando-se estrategicamente entre os dois, fez uma inclinação formal, com o chapéu baixo o braço.

-James Fraser, para lhe servir, senhor. Disseram-me que lhe mencionasse

o nome do Héctor Cameron como apresentação. O senhor Myers observou a cabeça ruiva do Jamie com grande interesse.

-Escocês, verdade? Das montanhas? -Sou escocês, sim, das terras altas. -É parente do velho Héctor Cameron?

-É meu tio, por casamento, senhor, embora não tenho o gosto de conhecê-lo. Disseram-me que você o conhecia e que aceitaria nos guiar até sua plantação.

Os dois homens se examinavam de pés a cabeça, considerando o porte, a

roupa e as armas. -Seu tio, né? E sabe ele que você vai para ali?

Jamie sacudiu a cabeça. -Não sei. Enviei-lhe uma carta desde a Georgia faz um mês, mas não há

forma de saber se a recebeu.

-Não acredito -disse Myers, pensativo-. Já conheci a sua esposa. É seu filho?

Fez um gesto para o Ian.

-Meu sobrinho, Ian. Meu filho adotivo, Fergus. -Jamie fez as apresentações com um gesto da mão-. E um amigo, Duncan Innes, que logo estará conosco.

Myers assentiu com um grunhido e se decidiu.

46

-Bem, posso lhes conduzir até a plantação do Cameron sem problemas.

Mas queria estar seguro de que era da família, embora, como o moço, tem um forte parecido com a viúva Cameron.

Jamie ergueu a cabeça súbitamente. -A viúva Cameron? -O velho Héctor teve uma enfermidade na garganta e morreu o inverno

passado. Não acredito que receba correspondência onde quer que esteja agora. E deixando o tema dos Cameron por assuntos de maior interesse pessoal,

Myers voltou a ocupar-se de seus calções. -Uma grande coisa púrpura -explicou-me-. Quase tão grande como uma de

meu Pelotas. Não acreditará que, de repente, cresceu-me outra, não?

-Bom, não -pinjente, me mordendo o lábio-. Realmente o duvido. Já quase tinha desatado o cordão e a gente se detinha para nos olhar. -Por favor, não se incomode -pinjente-. Acredito que sei o que tem, é uma

hérnia inguinal. -É isso?

Pareceu impressionado e nada aborrecido com a notícia. -Tenho que vê-lo para estar segura, mas não aqui -acrescentei,

apressadamente-, embora acredite que é isso. É fácil de solucionar com uma

operação, mas... -Vacilei, contemplando ao colosso- Realmente não poderia... quero dizer, você tem que estar dormido. Inconsciente. Tenho que cortar e lhe

costurar de novo. Talvez, seria melhor se usasse um braguero. Myers se arranhou o queixo, pensativo. -Não, isso não me soa bem. Cortar... vocês ficarão aqui descansando antes

de empreender viagem para a plantação do Cameron? -Não muito -interveio Jamie com firmeza-. Queríamos ir rio acima, para a

propriedade de minha tia, assim que consigamos um navio.

-Aaah! -O gigante o pensou um momento e logo assentiu com o rosto radiante-. Conheço o homem adequado para você, senhor. Neste momento vou

procurar o Josh Freeman, no Sailor's Rest. O sol ainda está alto, assim não estará tão bêbado como para não poder tratar de negócios.

-Fez-me uma reverência-. E então, talvez sua esposa terá a bondade de me

buscar naquele botequim e jogar um olhar a esta... esta moléstia. Jamie observou ao gigante que se afastava pela rua.

-O que passa contigo, Sassenach? -O que é o que passa comigo? -O que é o que faz que, cada homem que conhece, queira tirá-los calções

aos cinco minutos? Fergus riu pelo baixo enquanto Ian se ruborizava. -Bom, se você não souber, querido -respondi-, ninguém saberá. Mas parece

que consegui um navio. E você, o que tem feito esta manhã?

Hábil como sempre, Jamie tinha encontrado um possível comprador para as pedras. E não só isso, mas também também um convite para jantar com o governador.

-O governador Tryon está no povo -explicou-. Em casa de um tal senhor Lillington. Esta manhã falei com um comerciante chamado MacEachern, quem apresentou a um homem chamado MacLeod, quem...

-Quem apresentou ao MacNeil, quem te levou a beber com o MacGregor, quem te falou sobre seu sobrinho Bethune...

47

Jamie riu com ironia por minha brincadeira ante as relações e parentescos

dos escoceses. -Era o secretário da esposa do governador -corrigiu-me- e se chama

Murray. É o filho maior do Maggie, a prima de seu pai, Ian. Seu pai emigrou do Loch Linnhe depois da insurreição.

Edwin Murray, o secretário da esposa do governador, tinha recebido ao

Jamie como a um parente (embora fora político) e com toda cordialidade lhe tinha conseguido um convite para aquela noite. Em realidade, nós queríamos conhecer

barão Penzier, um nobre alemão de boa posição que também assistiria a aquele jantar. O barão era um homem de fortuna e bom gosto, com fama de colecionador.

-Bom, parece uma boa idéia -pinjente, não muito segura-. Mas acredito que deveria ir sozinho. Não posso ir a um jantar a casa do governador vestida assim.

-Mas eu te quero ali, Sassenach; pode ser que necessite uma distração.

-Falando de distração, quantas cervejas tomou para agradecer o convite? -Seis, mas ele pagou a metade. Vamos, Sassenach; o jantar é às sete e

temos que encontrar algo decente que nos pôr. -Mas não podemos gastar... -É um investimento -afirmou Jamie-. E além disso, o primo Edwin me

adiantou um pouco a conta da venda da pedra.

O vestido fazia dois anos que tinha passado de moda para o critério cosmopolita da Jamaica, mas estava limpo, que era o principal.

Todos os quartos de convidados da casa do senhor Lillington estavam

ocupados devido à festa; enviaram a um pequeno desvão que ficava em cima das quadras e que utilizava o primo Edwin. Mas não me queixei, porque as quadras estavam muito mais limpa que a estalagem onde tínhamos deixado a nossos

companheiros. A senhora Lillington, amavelmente, ocupou-se de que me dessem uma tina com água quente e sabão perfumado. Um pouco mais importante que o

mesmo vestido. Esperava não ter que voltar a ver nunca mais um pêssego. Enquanto me arrumavam o vestido, tratei de aparecer pela janela para ver

se Jamie aparecia. Mas os protestos da costureira me fizeram desistir.

O vestido não estava mau; era de seda cor nata, muito singelo e com aplicações nos quadris e a cintura. Com o encaixe de Bruxelas colocado nas

mangas, poderia resultar adequado. -Senhora, necessitará algo para que não fique nu o pescoço. Se não ter

peruca nem touca, não poderia ficar uma cinta no cabelo?

-Uma cinta! -exclamei, recordando-. Sim, é uma boa idéia. Procura nessa cesta e encontrará uma que pode servir.

Entre as duas, engenhamo-nos isso para levantar meu cabelo e sujeitá-lo

com a cinta rosada, deixando uns cachos de cabelo sobre minhas orelhas e minha frente.

-Não fica bem, verdade? -perguntei com preocupação. -claro que sim, senhora! -assegurou a costureira-. Muito apropriado -disse,

me olhando com rosto carrancudo-, embora deveria ficar algo para tampar a

nudez do peito. Não tem nenhuma jóia que ficar? -É esse o problema? Voltamo-nos surpreendidas para ouvir a voz do Jamie, que aparecia a

cabeça pela porta. Nenhuma das duas lhe tínhamos ouvido chegar. banhou-se e levava uma camisa limpa e uma gravata; e alguém lhe tinha penteado uma

48

trança e a tinha sujeito com a cinta azul de seda. Seu casaco estava escovado e

lhe tinham costurado botões dourados com uma pequena flor no centro. -Muito bonitos -pinjente, tocando um.

-Os aluguei ao ourives -disse-. Mas servem. Quão mesmo isto, espero. Tirou um lenço sujo de seu bolso, que continha uma magra cadeia de ouro. -Não tinha tempo para outra coisa -disse muito concentrado na cadeia ao

redor de meu pescoço-. Mas isto está bem, não te parece? . O rubi pendurava justo no oco de meus seios, dando um tom rosado a

minha pele branca. -Me alegro de que tenha eleito esta -pinjente, acariciando a pedra.

.

Jamie observou o resto de meu vestido. -Parece um bonito joalheiro, Sassenach. Uma boa distração, não?. deu-se a volta, fez uma reverência e me ofereceu o braço.

-Terei o prazer de sua companhia durante o jantar, senhora?

7 Grandes perspectivas carregadas de perigo

Embora estava familiarizada com a boa vontade da gente do século XVIII na

hora de comer algo que pudessem vencer fisicamente e arrastar até a mesa, não estava de acordo com a mania de apresentar pratos selvagens como se não tivessem passado pelos processos da caça e a cozinha, antes de servi-los no

jantar. Por isso contemplava aquele grande esturjão e seus grandes olhos com uma

notável falta de apetite. Bebi outro sorvo de vinho e me voltei para meu

companheiro de mesa, tratando de apartar a vista daqueles olhos saltados. -!Que tipo mais impertinente! -estava dizendo o senhor Stanhope-. Em meio

de nosso refrigério começou a falar de seus hemorroides e dos torturas que lhe causava o movimento da carruagem. E para que ninguém duvidasse, como prova, tirou um lenço manchado de sangue. Asseguro-lhe, senhora, que acabou com

meu apetite. Ao outro lado da mesa, Phillip Wylie fez uma careta de diversão.

-Cuide sua conversação, Stanhope, não seja que provoque um efeito similar. -E assinalou meu prato intacto-. Devo admitir que a vulgaridade de certos companheiros é um dos perigos dos transporte público.

Stanhope soprou, limpando-as miolos de sua gravata. -É que agora não todos podem manter um chofer, em especial com os novos

impostos. -Agitou, indignado, seu garfo-. Ao tabaco, ao vinho, ao brandy, muito

bem. Mas aos periódicos! ouviram algo semelhante? -Mas agora... -disse com paciência o primo Edwin- com a derrogação da lei

das apólices... Stanhope agarrou um dos pequenos caranguejos da bandeja e o agitou

acusadoramente para o Edwin.

-Libera-te de um imposto e aparece outro para ocupar seu lugar. -Você chegou recentemente das Antilhas, senhora Fraser? -O barão Penzier,

do outro lado, aproveitou a oportunidade para intervir-. Duvido que esteja

familiarizada com estes assuntos provincianos, ou que lhe interessem –acrescentou com um gesto de benevolência.

49

-Todo mundo está interessado pelos impostos -pinjente, me voltando

ligeiramente para obter um melhor efeito com meu decote-. Ou não acredita que os impostos são o pagamento por uma sociedade civilizada? Embora depois de ter

ouvido o senhor Stanhope... -fiz um gesto para o outro lado- talvez ele opine que o nível de civilização não está à altura da quantidade de impostos.

-Ja, ja! -Stanhope se afogou de risada-. Muito bom! Não está à altura de...

ja, ja, não, certamente que não! Phillip Wylie me dirigiu um olhar de reconhecimento.

-Procure não ser tão graciosa, senhora Fraser -disse-. Poderia causar a morte do pobre Stanhope.

-Ah, e qual é a percentagem atual de impostos? -perguntei para desviar a

atenção do Stanhope. -Tendo em conta os indiretos, diria que pode chegar a dois por cento das

rendas totais, se se incluírem os impostos dos escravos. Some impostos sobre a

terra e a colheita e possivelmente um pouco mais. -Dois por cento! -Stanhope se engasgou; golpeando o peito exclamou-:

Injusto! Simplesmente perverso! Com vividas lembranças dos últimos formulários de Fazenda que tinha

assinado, estive de acordo em que dois por cento constituía um verdadeiro

ultraje; perguntava-me que se feito do ardente espírito dos contribuintes norte-americanos durante aquele intermédio de duzentos anos.

-Mas talvez deveríamos trocar de tema -disse ao ver que as cabeças começavam a voltar-se em nossa direção da outra ponta da mesa-. depois de tudo, falar de impostos em casa do governador é como mencionar a corda em

casa do enforcado, não é assim? Naquele momento, Stanhope voltou a engasgar-se com um caranguejo, mas

por sorte não necessitou de minha assistência.

-Alguém mencionou os periódicos -comentei, uma vez que Stanhope se recuperou-. Faz tão pouco tempo que chegamos, que não vi nenhum. imprime-se

algum periódico regular no Wilmington? além de dar tempo ao Stanhope para que se repusera, tinha outros motivos

para fazer a pergunta. Entre as poucas posses que Jamie tinha, figurava uma

imprensa, em depósito no Edimburgo. Resultou que no Wilmington havia duas imprensas, mas só uma delas, a

cargo de um tal senhor Jonathan Gillette, editava regularmente um periódico. -E muito em breve pode que deixe de ser regular –interveio com tom

sombrio Stanhope-. Ouvi dizer que o senhor Gillette recebeu um aviso do Comitê

de Segurança que... -Tem um interesse especial, senhora Fraser? —interrogou cortesmente

Wylie, lançando um rápido olhar a seu amigo-. ouvi que seu marido tem alguma

conexão no Edimburgo com o negócio da imprensa. -Bom, sim -pinjente, surpreendida de que soubesse tanto sobre nós-. Jamie

era dono de uma imprensa, mas não se dedicava aos periódicos; imprimia livros, folhetos e coisas pelo estilo.

-Então, seu marido não tinha tendências políticas? Muito freqüentemente,

os impressores descobrem que suas ferramentas terminam subordinadas a aqueles que querem expressar suas paixões no papel. Embora não necessariamente essas paixões sejam compartilhadas pelo impressor.

Soaram numerosos sinos de alarme. Wylie sabia, em realidade, algo sobre as conexões políticas do Jamie no Edimburgo (a maioria das quais tinham sido

totalmente sediciosas), ou era só uma inocente conversação de sobremesa?

50

Jamie, na outra ponta da mesa, tinha ouvido seu nome e me sorriu antes

de continuar sua conversação com o governador, já que o tinham sentado a sua direita. Não sabia se situação se devia ao senhor Lillington, quem estava à

esquerda do governador e seguia a conversação com a inteligente expressão de um cão, ou à primo Edwin, sentado entre o Phillip Wylie e Judith, a irmã do Wylie, justo frente a mim.

-Ah um comerciante -comento Judith com tom significativo-. Sorriu-me, cuidando de não expor seus dentes, bastante deteriorados-. Mas como? -Fez um

gesto, comparando a cinta de meu cabelo com sua elaborada peruca-. É a moda do Edimburgo, senhora Fraser? O que... original.

Seu irmão a olhou com desgosto.

-Tenho entendido que o senhor Fraser é o sobrinho da senhora Cameron, do River Run -disse afablemente-. Estou bem informado, senhora Fraser?

O barão, tão aborrecido com o tema dos periódicos como com o dos

impostos, animou-se para ouvir o sobrenome Cameron. -Do River Run? -perguntou-. Tem parentesco com a senhora Yocasta

Cameron? -É tia de meu marido —respondi—. A conhece? -Em efeito! Uma mulher encantadora! -Um amplo sorriso levantou as

bochechas pendentes do barão-. Faz muitos anos que sou um apreciado amigo da senhora Cameron e de seu marido, desgraçadamente falecido.

O barão se lançou a uma entusiasta descrição das maravilhas do River Run e eu aproveitei para aceitar um bolo de pescado com ostras e lagosta, em um molho cremoso. O senhor Lillington não tinha regulado esforços para

impressionar ao governador. Enquanto me jogava para trás para permitir que me servissem mais molho,

adverti o olhar do Judith Wylie, quem não ocultava seu desgosto para mim. Sorri-

lhe afablemente, mostrando todos meus dentes, em excelente estado, e me voltei para o barão com renovada confiança.

-Que pedra mais formosa, senhora Fraser! Permite-me que a veja de perto? O barão se inclinou para mim, pondo seus dedos gordinhos entre meus

seios.

-Claro -disse com presteza e desabotoei a cadeia, deixando cair o rubi em sua palma úmida.

O barão pareceu um pouco frustrado ao não poder examinar a pedra in situ, mas levantou a mão e entortou os olhos com a atitude de um perito, o qual era certo, já que tirou de seu bolso uma lupa de joalheiro e umas lentes de

aumento. -Verdadeiramente precioso -murmurou, movendo a pedra em sua mão. Para muitas coisas não confiava no Geillis Duncan, mas estava segura de

seu bom gosto pelas jóias. «Tem que ser uma pedra de primeira classe -havia-me dito para me explicar sua teoria da viagem através do tempo via pedras preciosas-

. Grande e totalmente perfeita.» O rubi era grande, é certo. E, quanto a sua perfeição, não tinha dúvidas. Se

Geilie tinha crédulo naquela pedra para viajar até o futuro, era muito provável

que pudesse nos levar até o Cross Creek. Fechei a porta da habitação do primo Edwin e me apoiei nela, deixando que

minha mandíbula se relaxasse, sem ter que sorrir. Agora podia me tirar o vestido e me liberar do espartilho e os sapatos.

51

Paz, solidão, nudez e silêncio. Não necessitava nada mais para fazer que

minha felicidade fora completa, salvo um pouco de ar fresco. Assim abri a janela. Fora, os hóspedes começavam a retirar-se; uma fila de carruagens os

aguardavam no caminho de entrada. Chegavam-me fragmentos de despedidas, conversações e risadas.

-... muito inteligente, parece-me -chegou a voz educada do Wylie.

-Claro que é inteligente! Os tons agudos de sua irmã demonstravam o valor que lhe dava à

inteligência como atributo social. -Bom, a inteligência em uma mulher pode tolerar-se, querida, sempre que

também seja agradável à vista. Pela mesma razão, a uma mulher bela lhe pode

perdoar a falta de inteligência sempre que tiver bastante sentido comum para fechar a boca e ocultá-lo.

Embora a senhorita Wylie não poderia ser acusada de inteligente, possuía a

suficiente sensibilidade para dar-se conta da ironia. Soltou um bufido muito pouco adequado para uma dama.

-Tem mil anos -respondeu-. Muito agradável para contemplá-la. Embora deva dizer que a bagatela que levava no pescoço era realmente bonita.

-Seguro -interveio uma voz profunda que reconheci como pertencente ao

Stanhope-. Embora em minha opinião, o que chamava a atenção era o engaste, mais que a jóia.

-Engaste? -A senhorita Wylie parecia desconcertada-. Não tinha nenhum engaste; a jóia pendurava em seu peito e já está.

-Seriamente? -disse imperturbável Stanhope-. Não me tinha dado conta.

Wylie soltou uma gargalhada que cortou bruscamente ante a aparição de outros convidados.

-Bom, se você não o fez, houve outros que sim o fizeram.

Vamos, ali está a carruagem. Toquei outra vez o rubi, observando a marcha dos cavalos. Sim, outros o

tinham notado; ainda sentia os olhos do barão em meu peito e pensei que seus interesses foram além das pedras preciosas.

Ficava uma só carruagem, com o condutor esperando ao lado dos cavalos.

Uns vinte minutos mais tarde seu ocupante, o barão, saiu dando as boa noite. Acreditei que Jamie subiria em seguida, mas os minutos passavam sem

que ouvisse seus passos pela escada. Olhei a cama, mas não tinha vontades de me deitar. Finalmente, voltei a me pôr o vestido, sem me incomodar pelas meias e os sapatos.

Saí da habitação, baixei silenciosamente e atravessei a galeria coberta. Podia ouvir o murmúrio de vozes masculinas enquanto passava nas pontas

dos pés; a profunda voz do Jamie, com seu acento escocês, alternava com o tom

inglês do governador, com a íntima cadência de uma conversação privada. Detive-me perto da porta. De ali podia ver o governador de costas a mim, acendendo um

charuto. Se Jamie me tinha visto, não o demonstrou. Seu rosto tinha sua habitual

expressão de tranqüilidade e bom humor; por sua postura me dava conta de que

estava depravado e em paz. Senti-me bem ao ver que tinha obtido o que queria. -Um lugar chamado River Run -estava-lhe dizendo ao governador-. Acima

nas colinas, passado Cross Creek.

-Conheço o lugar -observou o governador Tryon, um pouco surpreso-. Minha esposa e eu passamos vários dias no Cross Creek o ano passado. Fizemos

52

uma viagem pela colônia quando me fiz cargo de seu governo. River Run não está

no povo, acredito que mas bem está a metade do caminho das montanhas. Jamie sorriu e apurou seu brandy.

-Sim, claro, é que minha família é das montanhas de Escócia, por isso nelas nos sentimos como em nosso lar.

-Já que estamos sozinhos, senhor Fraser, há algo que queria lhe propor.

um pouco mais? Sem esperar resposta, serve mais brandy.

-Muito obrigado, senhor. -O jovem Edwin me disse que acaba de chegar às colônias. Está

familiarizado com as condições da zona?

Jamie se encolheu de ombros. -tratei que me inteirar de tudo o que pude, senhor -respondeu-. A que

condições se refere?

-Carolina do Norte é uma terra de considerável riqueza -respondeu o governador- e, entretanto, não alcançou o mesmo nível de prosperidade que

nossos vizinhos. Isto se deve, principalmente, à falta de trabalhadores que aproveitem estas oportunidades.

Como verá, não temos um grande porto, assim que os escravos devem

trazer-se por terra a um elevado preço, desde a Carolina do Sul ou Virginia, e não podemos sonhar em competir com Boston ou Filadelfía em questão de contratos

de trabalho. É política da Coroa e também minha, senhor Fraser, respirar os assentamentos em terras da Carolina do Norte por boas famílias, trabalhadoras e inteligentes, para fomentar a prosperidade e segurança de todos. Esta política foi

benta com o êxito; durante os últimos trinta anos uma grande quantidade de montanheses de Escócia, com suas famílias, foram induzidos a afincarse aqui. Quando cheguei, assombrei-me ao encontrar os bancos de Cape Fear River cheios

do MacNeill, Buchanan, Graham e Campbell. O governador deu outra chupada a seu puro.

-Entretanto, ainda fica uma considerável quantidade de terra muito boa perto da montanha. Está um pouco afastada, mas como você dizia, para homens acostumados às montanhas de Escócia...

-Tinha ouvido algo sobre essas doações de terras, senhor -interrompeu Jamie- Mas não é obrigatório que os solicitantes sejam homens brancos,

protestantes e de uns trinta anos de idade? -Esses são os términos oficiais da Ata, sim. O senhor Tryon se voltou e vi sua expressão; era a de um pescador quando

nota que morderam a isca de peixe. -A oferta é muito interessante -respondeu formalmente Jamie-. Entretanto,

devo assinalar que não sou protestante, nem tampouco meus parentes.

O governador fez um gesto de desculpa e arqueou uma sobrancelha. -Tampouco é negro nem judeu. vou falar lhe de cavalheiro a cavalheiro,

pode ser? Com toda sinceridade, senhor Fraser, por um lado está a lei e por outro a armadilha. -Levantou sua taça com um amplo sorriso-. Estou convencido de que o compreende tão bem como eu.

-Possivelmente melhor -murmurou Jamie com um sorriso educado. -Os dois nos compreendemos, senhor Fraser -disse com satisfação. Jamie inclinou ligeiramente a cabeça.

-Então, não surgirão dificuldades com as qualificações daqueles que queiram aceitar sua oferta?

53

-Absolutamente -respondeu o governador deixando a taça com força-. O

único necessário é que sejam homens sãs e capazes de trabalhar a terra, não peço nada mais. E o que não se pergunta não precisa dizer-se, não?

-Não todos os que aconteceram a insurreição tiveram minha sorte, Excelência -disse-. Meu filho adotivo sofreu a perda de uma mão e outro de meus homens perdeu um braço. Mas são homens de bom caráter e muito

trabalhadores. Eu não poderia aceitar uma proposta que lhes deixasse fora. O governador fez um gesto tirando importância ao assunto.

-Sempre que puderem ganhar o pão e não sejam uma carga para a comunidade, serão bem-vindos. Ah, e já que mencionou aos jacobitas, esses homens deverão jurar um voto de lealdade à Coroa, se é que não o têm feito já.

Não quero lhe recordar acontecidas indignidades, nem ofender sua honra. Mas compreenderá que tenho o dever de perguntar-lhe Jamie sorriu, embora sem alegria.

-E suponho que o meu é lhe responder. Sim, sou um jacobita perdoado. E sim, fiz o juramento, como outros, que pagaram esse aprecio por suas vidas.

Bruscamente deixou sua taça quase enche, ficou em pé e saudou com uma inclinação.

-Já é muito tarde, Excelência. Devo lhe rogar que me perdoe.

-boa noite, senhor Fraser. Considerará minha oferta? Não quis esperar a resposta, não precisava fazê-lo. Jaime ia considerar a

oferta do governador. E que oferta! Recuperar o perdido em Escócia e mais ainda. Jamie não tinha nascido latifundiário, mas a morte de seu irmão maior o fez herdeiro do Lallybroch aos oito anos e o tinham educado para que fora

responsável pela propriedade, para ocupar-se da terra e do bem-estar de seus habitantes. Logo apareceu Carlos Estuardo e sua louca marcha triunfal, uma cruzada que levou a seus seguidores à morte e à destruição.

E agora... recuperar tudo. Novas terras para o cultivo e a caça, e um grupo de famílias baixo seu amparo.

Não era a excitação o que fazia que minhas mãos suassem e meu coração pulsasse tão depressa; era o medo. Porque para conseguir homens, Jamie teria que retornar a Escócia. E em minha mente estava a imagem da lápide naquele

cemitério escocês. James Alexander Malcolm MACKENZIE FRASER, dizia e debaixo, meu nome: «Amado marido do Claire».

Tinha sido enterrado em Escócia. Mas quando a vi, duzentos anos depois, não havia data na pedra.

-Ainda não -sussurrei, apertando os punhos-. Tive-o muito pouco tempo.

Por favor, ainda não! A modo de resposta, a porta se abriu e James Alexander Malcom MacKenzie

Fraser entrou levando uma vela.

-É muito rápida descalça, Sassenach -disse, sonriendo-. Algum dia te ensinarei a caçar; seguro que o fará muito bem.

Não me desculpei por espiar, antes bem me apressei a lhe ajudar a tirá-la roupa.

-Melhor apaga a vela -indiquei-. Ou os mosquitos lhe comerão.

Cheirava a brandy e a tabaco, misturado com perfume de flores. Tinha estado caminhando pelo jardim. O fazia quando estava nervoso ou deprimido e agora não parecia deprimido.

Suspirou e se relaxou quando lhe tirei a casaca. -Não sei como podem vestir-se assim, com este calor. Os selvagens parecem

mais sensatos, vendo a pouca roupa que usam.

54

-E além disso é muito mais barato, embora menos estético. Imagina ao

barão Penzier com um tanga. -Jamie riu, enquanto se tirava a camisa-. Você, em troca... -Sentei-me no bordo da janela, admirando a paisagem enquanto se tirava

os calções-. E falando do barão... -Trezentas libras esterlinas -respondeu, com soma satisfação. inclinou-se

para me beijar-. Em grande parte, é devido a ti, Sassenach.

-Por meu valor como um atrativo adorno? -perguntei com secura. -Não -respondeu com rapidez-. Por manter ocupados durante o jantar ao

Wylie e seus amigos enquanto eu falava com o governador. E quanto ao de adorno... Stanhope quase deixa seus olhos pegos a seu decote, o muito asqueroso; ia dizer lhe...

-A discrição é a melhor parte do valor -pinjente, me pondo em pé para beijá-lo-. Embora não é algo que os escoceses tenham em muita consideração.

-Ah, bom, meu avô, o velho Simón, suponho que se poderia dizer que foi

discreto ao final. Não falava dos jacobitas, nem da insurreição, mas a conversação com o

governador havia lhe trazida lembranças. Seu rosto estava em calma, mas seu olhar parecia perdida em outro tempo. No passado?, perguntei-me. Ou no futuro?

8 Homem de fortuna

-Detesto os navios! Com essa sincera despedida ressonando em meus ouvidos, afastamo-nos

pelas águas do porto do Wilmington.

Depois de dois dias de compras e preparativos, tínhamo-nos posto em caminho para o Cross Creek. Com o dinheiro obtido pela venda do rubi, não

houve necessidade de vender os cavalos; Duncan viajava no carro com as coisas mais pesadas e com o Myers de companheiro para guiá-lo, e o resto fomos passageiros do capitão Freeman a bordo do Sally Ann, em uma viagem mais

rápida e confortável. Apesar de estar um pouco apertados, sentia-me contente. Eu gostava de

estar na água, longe do canto de sereia do governador, embora fora por pouco tempo.

Jamie não estava contente.

-Está muito tranqüilo -comentei-. Talvez não te enjoe. Observou a água cor chocolate com ar receoso e fechou os olhos quando

outro navio levantou uma onda que se chocou contra nosso flanco. -Talvez não —disse com um tom que indicava que era uma possibilidade

remota.

-Quer as agulhas? É melhor que lhe ponha isso antes de que vomite. estremeceu-se e abriu os olhos. -Não -respondeu-. Me fale, Sassenach, afasta minha mente de meu

estômago, quer? -Está bem -disse com atitude serviçal-. Como é sua tia Yocasta?

-Não a vejo desde que tinha dois anos, assim que minhas lembranças não são muito confiáveis -respondeu distraído-. Crie que esse negro será capaz de pilotar o navio? Talvez deva ir ajudar o.

55

-Talvez não -pinjente, observando a balsa que se aproximava, aumentando

a preocupação do Jamie-. Parece conhecer seu trabalho. Deixa-o tranqüilo. Então, não sabe muito sobre sua tia?

-Não- casou-se com um Cameron do Erracht e deixou Leoch um ano antes de que meus pais se casassem.

Não me olhava, seguia vigiando a balsa.

-E alguma vez foi visita o Lallybroch? -Bom, John Cameron morreu de gripe e ela se casou com sua primo, Hugh

Cameron do Aberfeldy, e então... Fechou os olhos enquanto passava a balsa e nos saudavam gritos. Cilindro,

com as patas dianteiras sobre o teto da cabine, ladrou até que Ian lhe deu uma

palmada e lhe ordenou que calasse. Jamie abriu um olho e ao ver que o perigo tinha passado abriu o outro e se

relaxou. -Sim, bom, Hugh morreu em uma caçada e então ela se casou com o Héctor

Mor Cameron, do Loch Eilean.

-Parece ter um gosto especial pelos Cameron -pinjente fascinada-. Têm algo especial, além de ser propensos aos acidentes?

-Suponho que têm facilidade de palavra -respondeu com uma súbita careta

zombadora-. Os Cameron são poetas e brincalhões. Algumas vezes, as duas coisas.

-Héctor Cameron era um poeta ou um palhaço? -Agora nenhuma das duas coisas. Está morto, recorda? Enquanto falava, acariciava-me a nuca.

-É maravilhoso -disse com um suspiro de satisfação-. O que me está fazendo, não que seu tio tenha morrido. Não te detenha. Como chegou a Carolina

do Norte? -É uma mulher muito escandalosa, Sassenach -disse, sussurrando a meu

ouvido-. Sussurras igual quando te esfrego a nuca que quando... -Empurrou sua

pélvis contra mim, em um gesto que não necessitava explicação- Mmm? -Mmmm -respondi, lhe dando uma discreta patada no tornozelo-. Bem, se

alguém escutar detrás da porta, suporá que me está esfregando a nuca, que é

quão único fará até que saiamos daqui. Agora, me fale de seu defunto tio. Seus dedos seguiam esfregando minhas costas enquanto recordava outra

parte da história de sua família. Ao menos, sua mente estava longe de seu estômago.

Felizmente, e também por ser mais perspicaz ou mais cínico que seu

famoso parente, Héctor Mor Cameron se preparou para a possibilidade do desastre dos Estuardo. Escapou ileso do Culloden e retornou a casa, onde

rapidamente carregou a sua esposa, serventes e demais pertences em uma carruagem e partiram para o Edimburgo. Ali se embarcaram para a Carolina do Norte, escapando por muito pouco da perseguição da Coroa.

Uma vez no Novo Mundo, Héctor comprou uma grande quantidade de terra, despovoou o bosque, construiu uma casa e uma serraria, comprou escravos para que trabalhassem, fez plantar tabaco e (sem dúvida por causa de tanta indústria)

sucumbiu a uma enfermidade da garganta, aos setenta e três anos. Era evidente que Yocasta MacKenzie Cameron Cameron Cameron,

conforme havia dito Myers, declinou voltar a casar-se e permanecia solteira como a senhora do River Run.

-Crie que o mensageiro com sua carta chegará antes que nós?

56

-Chegará antes que nós embora vá de joelhos –disse Ian, aparecendo

súbitamente-. Demoraremos semanas se seguirmos assim. Disse-te que era melhor ir por terra, tio Jamie.

-Não se preocupe, Ian -acalmou-lhe Jamie, deixando meu pescoço por um momento-. Já terá tempo para ajudar. Espero que antes da noite possamos estar no Cross Creek.

Ian lhe dirigiu um olhar rancoroso e foi se incomodar ao capitão com perguntas sobre peles vermelhas e animais selvagens.

-Obrigado pela massagem -pinjente, olhando ao Jamie. -Deixarei-te que me devolva o favor, Sassenach, quando anochezca. -É claro que sim. -Agitei minhas pestanas com paquera-. E o que tenho que

massagear quando anochezca? -Quando anochezca? -perguntou Ian antes de que seu tio pudesse

responder-. O que acontecerá então?

-Que te usarei como isca para os peixes -disse seu tio-. Pelo amor de Deus, não pode te estar aquieto, Ian? vá dormir ao sol, como esse animal; é um cão

sensato. -Dormir? -Ian olhou assombrado a seu tio-, Dormir? -É o que faz a gente normal quando está cansada –pinjente com um bocejo.

-Mas não estou cansado, tia! -exclamou. Jamie observou a seu sobrinho.

-Já veremos o que diz depois de um turno com a vara. Enquanto isso, talvez encontre algo para ocupar sua mente. Espera um pouco... -disse desaparecendo na cabine.

-Joder, que calor faz! -exclamou Ian, abanicándose-. O que faz tio Jamie? -Só Deus sabe -respondi. Jamie tinha subido a bordo uma grande cesta, mas não havia dito a

ninguém o que continha. A noite anterior, enquanto eu dormia, tinha estado jogando às cartas. Supunha que tinha ganho alguns objetos que não quereria

mostrar, para evitar as brincadeiras do Ian. Ian tinha razão, fazia calor. Dirigi-me para a proa, onde Fergus estava com

os braços cruzados. Parecia um magnífico mascarón.

-Ah, minha senhora! -Recebeu-me com um amplo sorriso-. Não é este um país esplêndido? Milord me disse que qualquer homem pode reclamar cinqüenta

acres, sempre que construir uma casa e prometa trabalhar a terra durante dez anos. Imagine, cinqüenta acres.

-Bom, sim -pinjente, um pouco insegura-. Mas acredito que deverá escolher

sua terra com cuidado. Algumas zonas não são muito boas para o cultivo. Fergus não via as dificuldades. Seus olhos brilhavam, sonhadores. -Talvez possa construir uma pequena casa -murmurou para si-. Assim

enviaria a procurar o Marsali e a criatura na primavera. reuniu-se conosco na Georgia, deixando a seu jovem algema grávida na

Jamaica, aos cuidados de uns amigos. -Está seguro de que não quer retornar a Jamaica para estar com o Marsali,

Fergus?

Negou com a cabeça com determinação. -Milord poderia me necessitar -explicou-. E serei mais útil aqui. Os

meninos são assunto de mulheres. Além disso, quem sabe que perigos nos

esperam neste lugar desconhecido? Como resposta a sua retórica pergunta, as gaivotas surgiram como uma

nuvem, voando sobre o rio e revelando o objeto de seu apetite.

57

por cima do fluxo lamacento flutuava a figura de um homem, sujeito a um

poste por uma cadeia que lhe rodeava o peito, ou o que tinha sido seu peito. junto a mim, Fergus murmurou em francês um pouco muito obsceno.

-Um pirata -comentou lacónicamente o capitão Freeman e lançou ao rio um escupitajo de tabaco-. Quando não os levam ao Charleston para pendurá-los, atam-nos a uma estaca com a maré baixa e deixam que o rio os leve.

-Há... há muitos? Ian também o tinha visto e, embora já era grande para agarrar-se de minha

mão, aproximou-se com seu rosto torrado repentinamente pálido. -Já não há muitos. A Marinha tem feito um bom trabalho com eles. -Olhe!

Ian, esquecendo sua dignidade, pendurou-se de meu braço. Havia movimento perto da borda e vimos o que tinha espantado aos pássaros.

Uma forma escamosa, de uns dois metros de comprimento, deslizava-se

sobre a água, abrindo um sulco no barro. -É um crocodilo -disse Fergus e, com desgosto, fez o gesto dos chifres.

-Não, não acredito -comentou Jamie a minhas costas. Voltei-me; estava sobre o teto da cabine com um livro aberto na mão. -Parece-me que é um jacaré. Aqui diz que comem carniça, não carne fresca.

Quando apanham um homem ou uma ovelha, colocam a vítima na água até afogá-la, logo a arrastam até sua toca e a deixam até que se apodrece; lhes gosta

assim. Como é lógico -acrescentou com um olhar sombrio à borda-, alguns têm a sorte de encontrar a comida preparada.

-Onde conseguiu esse livro? -perguntei sem apartar a vista da estaca.

-Jamie me alcançou isso. -Deu-me isso o governador. Disse que podia resultar interessante para

nossa viagem.

Olhei o título do livro: História natural da Carolina do Norte. -Ah é o mais asqueroso que vi em minha vida! -exclamou Ian, observando

horrorizado a cena da borda. -Interessante -repeti, com os olhos muito fixos no livro-. Sim, espero que o

seja.

Fergus, impermeável a qualquer classe de remilgos, observava os avanços do réptil com interesse.

-Um jacaré? Mas é igual a um crocodilo, não? -Fui-dije com um calafrio, pese ao calor. Dava-lhe as costas à costa. Já tinha visto de perto a um crocodilo nas

Antilhas e não estava interessada em conhecer seus parentes. Olhei de esguelha ao Jamie, mas já não estava interessado nem no jacaré

nem no livro. Seus olhos olhavam rio acima com intensidade. Ao menos, tinha esquecido o enjôo.

O fluxo da maré nos alcançou uns dois quilômetros mais acima do Wilmington, acalmando os temores do Ian sobre nossa velocidade. O Cape Fear era um rio com marés e sua corrente diária levava dois terços de seu caudal

quase até o Cross Creek. Não íamos necessitar a vara até que cessasse a corrente, cinco ou seis

horas mais tarde. Então poderíamos ancorar, passar a noite e esperar a seguinte enjoa; ou usar a vela se o vento era propício. A vara, tinham-me explicado, era necessária só em caso de que nos encontrássemos com bancos de areia ou em

dias sem vento.

58

Uma sensação de pacífica sonolência se apoderou da embarcação. Ian e

Fergus dormiam na proa enquanto Cilindro vigiava do teto. O capitão e seu ajudante tinham desaparecido na pequena cabine, onde ouvia o musical som do

líquido que se serviam para beber. Jamie também estava em sua cabine procurando algo em sua misteriosa

cesta. Voltou com uma grande caixa de madeira nos braços. -O que é isso? -perguntei, acariciando a caixa. -Só um pequeno presente. -Não me olhava, mas tinha as orelhas tintas-.

Abre-a, quer? Era uma caixa pesada, larga e profunda, de madeira escura, com marcas

que denotavam seu prolongado uso, o que não a fazia menos bela. Não tinha

chave e a tampa se abriu com facilidade, deixando escapar uma rajada de aroma de cânfora.

Os instrumentos brilhavam baixo o sol, sujeitos sobre o veludo verde. Uma pequena serra, tesouras, três escalpelos: um com a folha redonda, outro reta e o terceiro com forma de colher; uma espátula chapeada; um tenáculo...

-Jamie! -Encantada, levantei uma varinha de ébano com uma bola envolta em veludo roído. Já tinha visto um antes, no Versalles, a versão do século XVIII de um martelo para reflexos-. Jamie! Que maravilha!

-Você gosta? —meneou-se, encantado. -eu adoro! Olhe, há mais na tampa, debaixo desta lapela... -contemplei

durante um momento os tubos, parafusos e espelhos soltos, até que minha mente juntou as peças-. Um microscópio! -Toquei-o com reverencia—. minha Mãe. Um microscópio.

-Há mais -assinalou-. A parte dianteira se abre e há umas pequenas gavetas.

Ali estavam, contendo entre outras coisas uma balança em miniatura com pesos de bronze, um morteiro e umas quantas botellitas de pedra e de vidro com plugue de cortiça.

-São uma preciosidade! —pinjente, agarrando o pequeno escalpelo. A madeira lustrosa da manga se ajustava a minha mão como se a tivessem esculpido a medida-. Jamie, muito obrigado!

-Então, você gosta? -Suas orelhas estavam vermelhas de prazer-. Pensei que você gostaria.

-Pergunto a quem terá pertencido isto. -A mulher que me vendeu isso me disse que o dono também tinha deixado

seu caderno; agarrei-o. Talvez esteja seu nome.

Tirou um caderno quadrado e largo, forrado em couro negro. -Como na França tinha um, pensei que poderia querê-lo -explicou-.

Naquele fazia desenhos e tomava notas do que via no hospital. Tem páginas escritas, mas há muitas em branco.

Abri-o; na primeira página estava escrito o nome: «Doutor Daniel Rawlings».

-O que lhe terá acontecido ao doutor Rawlings? Disse-te algo a mulher da caixa?

Jamie assentiu.

-O médico ficou em sua casa uma só noite. Disse que era da Virginia e que estava procurando um homem, que ela acredita que se chamava Garver. Aquela

noite, o médico saiu depois de jantar e já não retornou. Olhei-lhe assombrada. -Não retornou? E ela não soube o que lhe tinha acontecido?

Jamie sacudiu a cabeça, afastando uma nuvem de mosquitos.

59

-Não. foi ver o delegado e ao juiz; o oficial o esteve procurando, mas não

encontrou nem rastro dele. Buscaram-no durante uma semana e logo abandonaram a busca. Como não sabiam de que povo da Virginia era, tampouco

puderam procurar mais à frente. -Que coisa mais estranha. E quando desapareceu? -Faz um ano. -Olhou-me, um pouco ansioso-, Importa-te? Refiro-me a

utilizar suas coisas. -Claro que não. Se fosse eu, quereria que as usasse outra pessoa. -Agarrei

sua mão e a apertei sonriendo-. É um presente maravilhoso. Onde o encontrou? Então, devolveu-me o sorriso. -Vi a caixa quando fui visitar ourives. Tinha-a a esposa de este. Quando

retornei para comprar alguma jóia, a mulher começou a me ensinar objetos, conversamos e me falou do médico Y...

encolheu-se de ombros.

-por que queria comprar uma jóia? -olhei-lhe intrigada-. Ah. Foi haverenviado todo esse dinheiro ao Laoghaire? Não me importou, já lhe disse

isso. Desde bastante má vontade, tinha enviado uma parte importante do

dinheiro da venda da pedra a Escócia. Era em pagamento da promessa feita ao

Laoghaire MacKenzie (malditos sejam seus olhos) Fraser, com quem Jamie se casou pressionado por sua irmã acreditando que, embora eu não estava morta,

não ia retornar nunca. Minha ressurreição tinha causado toda classe de complicações e Laoghaire era uma das principais. .

-Sim, é o que disse -respondeu com cinismo.

-Bom, quis dizer mais ou menos. -E ri-. Não podia deixar que essa horrível mulher morrera de fome, por mais tentadora que seja essa possibilidade.

-Não, não quereria o ter sobre minha consciência. Mas esse não era o

motivo de que queria comprar um presente. -Qual era, então?

A caixa era um peso agradável sobre meus joelhos e tocar sua madeira um prazer. Jamie olhou aos olhos; seu cabelo parecia soltar chamas pelo reflexo dos raios do sol.

-Hoje faz vinte e quatro anos que me casei contigo, Sassenach -disse brandamente-. Espero que não tenha motivo para lamentá-lo.

A borda do rio estava bordeada por plantações desde o Wilmington até o

Cross Creek. Também havia terrenos boscosos e, cada pouco, pequenos

embarcaderos de madeira médio escondidos pela vegetação. Despertei pouco antes do amanhecer. Jamie, ao me mover, estirou-se

médio dormido e me aproximou de seu corpo.

-Detenha -pinjente apartando suas mãos-. Recorda onde estamos! Podia ouvir os gritos e latidos do Ian e Cilindro indo e vindo, assim como os

ruídos procedentes da cabine anunciando a iminente aparição do capitão Freeman.

-Ah -disse Jamie, saindo do sonho-. Ah, sim. É uma lástima.

incorporou-se, agarrou meus seios entre suas mãos e se estirou voluptuosamente para mim, me dando uma detalhada idéia do que me estava

perdendo.

60

Enquanto desfrutava de do sol da tarde folheando o caderno do doutor

Rawlings, repleto de notas divertidas, instrutivas surpreendentes, ouvia a voz do Jamie lendo em grego a seu sobrinho.

Ao aceitar a presença do Ian, Jamie se tinha feito cargo de sua educação. Enquanto viajávamos, procurava os momentos de descanso para lhe ensinar os conhecimentos básicos da gramática grega e latina e melhorar seus

conhecimentos de matemática e francesa. Ian tinha a mesma facilidade que seu tio para as matemática mas no

referente a idiomas não era o mesmo. Jamie tinha uma capacidade natural para aprender idiomas e dialetos.

Além disso, tinha aprendido os clássicos na Universidade de Paris e, embora não

sempre estava de acordo com alguns dos filósofos clássicos, considerava o Homero e ao Virgilio como seus amigos pessoais.

Ian falava gaélico e inglês desde menino e uma espécie de patois francês

aprendido do Fergus, pensando que isso era mais que suficiente para suas necessidades. Realmente seu repertório de palavras malsoantes em seis ou sete

idiomas era impressionante. Jamie terminou de ler a passagem em grego e, com um suspiro claramente

audível, indicou ao Ian que agarrasse o livro de latim que lhe tinha emprestado o

governador Tryon. Como não recitavam, pude me concentrar nos apontamentos do caderno e me zangar, não pela primeira vez, ante um mal diagnóstico de uma

enfermidade hepática. Absorta na leitura, ia ouvindo de tanto em tanto os intentos do Ian, as

correções do Jamie e sua crescente impaciência.

A fascinante descrição da amputação da mão de um homem ferido por um disparo de pistola foi interrompida bruscamente pelo Jamie, que devia ter

chegado ao limite de sua paciência. -Ian, seu latim envergonharia a um cão! Quanto ao grego, seria incapaz de

diferenciar a água do vinho!

-Se eles o beberem, não é água -murmurou Ian com ar de rebeldia. Fechei o caderno e me apressei a me levantar. Era provável que

necessitassem meus serviços como juiz.

-Se, bom, mas não me importa muito... -Isso, não te importa! Essa é a verdadeira lástima, nem sequer tem a

gentileza de te envergonhar de sua ignorância! Apareci a cabeça e vi o Jamie ardendo de indignação e ao Ian com ar

confundido. À lombriga, o jovem tossiu e se esclareceu garganta.

-Bom, tio Jamie, se tivesse sabido que a vergonha ajudava, me teria esforçado por me ruborizar.

Tinha tal cara de arrependimento que não pude evitar rir. Jamie se voltou e à lombriga se acalmou um pouco.

-Assim não ajuda, Sassenach. Você estudou latim, não? Talvez deveria lhe

ensinar. Neguei com a cabeça. -Tudo o que lembrança é Arma virumque grisalho. -Olhei de esguelha ao Ian

e, sonriendo, fiz a tradução-: Com a arma deixei rígido ao cão. Ian estalou em gargalhadas e Jamie me olhou com profunda desilusão.

Logo sorriu com ironia e olhou ao Ian meneando a cabeça. -Sinto te haver gritado, Ian. Mas tem boa cabeça e eu não gostaria que a

desperdiçasse. meu filho, a sua idade eu estava em Paris estudando!

Ian olhou a água.

61

-Sim -respondeu-. E a minha idade, meu pai estava na França combatendo.

Surpreendeu-me um pouco, porque sabia que o pai do Ian tinha sido soldado na França, mas não que o tivesse sido desde tão jovem e tanto tempo. O

jovem Ian tinha só quinze anos. Jamie observou a seu sobrinho com o rosto algo carrancudo. Logo se

aproximou do jovem.

-Isso já sabia -disse Jamie com calma-. Porque o segui, quatro anos mais tarde, quando me declararam fora da lei.

Ian levantou a vista, surpreso. -Estiveram juntos na França? -No FIandes. Durante mais de um ano, até que o feriram e o mandaram a

casa. Brigamos no regimento de mercenários escoceses, baixo as ordens do Fergus MAC Leodhas.

Os olhos do Ian se aumentaram pelo interesse.

-Por isso Fergus tem esse nome? Seu tio sorriu.

-Sim, o pus em lembrança do MAC Leodhas, um bom homem e um grande soldado. Seu pai não te falou dele?

-Nunca me disse nenhuma palavra. Soube que perdeu a perna lutando na

França porque mamãe me contou isso quando o perguntei. Mas ele não me disse nada.

-Sim bom -disse Jamie, encolhendo-se de ombros- Suponho que uma vez que se instalou no Lallybroch, quis deixar atrás o passado. E além disso..

Vacilou, mas Ian insistiu.

-E além o que, tio Jamie? Jamie olhou de esguelha a seu sobrinho. -Bom, acredito que não queria lhes entusiasmar com histórias de batalhas

e soldados para que não pensassem em seguir seu caminho. Seu pai e sua mãe queriam algo melhor para tí.

-Essa é uma idéia de mamãe -comentou com ar de desgosto-. Se fosse por ela, teria-me envolto em lãs e maço ao cordão de seu avental.

-É assim, não? E crie que se fosse agora a casa, envolveria-te em lãs e te

cobriria de beijos? Ian abandonou seu gesto de desdém.

-Bom, não -aceitou-. Acredito que me esfolaria. -Vai conhecendo as mulheres, Ian -disse Jamie, rendo-. Embora não tanto

como crie.

Ian nos olhou com cepticismo. -E você, suponho que sabe tudo, não, tio Jamie? Arqueei uma sobrancelha, convidando a que lhe respondesse, mas Jamie se

limitou a rir. -Um homem sábio é o que conhece os limites de seu conhecimento. Embora

espere que seus limites cheguem um pouco mais longe -disse, me beijando na frente úmida.

Ian se encolheu de ombros com ar aborrecido.

-Eu não quero chegar a ser um cavalheiro. depois de tudo, o jovem Jamie e Michael não sabem ler em grego e vai muito bem.

Jamie se esfregou o nariz, olhando a seu sobrinho com ar pensativo.

-O jovem Jamie tem Lallybroch. E o pequeno esta Michael trabalhando com o Jared em Paris. Já estão colocados. Fizemos tudo o que pudemos por ambos,

mas temamos muito pouco dinheiro para que viajassem ou estudassem quando

62

tinham idade para isso. Não havia muito para escolher, não? Mas seus pais não

queriam isso para ti se podiam te dar algo melhor. Queriam que chegasse a ser um homem com conhecimentos e influências, talvez um duine nasal.

Era uma expressão em gaélico que significava «homem de fortuna». Era o que tinha sido Jamie antes da insurreição. Mas não agora.

-Mmm. E fez o que seus pais queriam, tio Jamie? Ian observava a seu tio, porque se dava conta de que estava em terreno perigoso. Jamie tinha sido o dono do Lallybroch por direito próprio. Em um intento de salvar a propriedade de mãos

da Coroa, tinha-a entregue legalmente a seu sobrinho Jamie. -Disse-te que tinha inteligência, não? -respondeu com secura-, Mas já que

perguntas... educaram-me para duas coisas, Ian. Para me ocupar de minha terra

e de minha gente. E para cuidar de minha família. Fiz essas coisas o melhor que pude e o seguirei fazendo o melhor que possa.

Ian teve o bom gosto de mostrar-se envergonhado ante isso. -Sim, claro, eu não quis... -murmurou, agachando a cabeça. -Não te zangue, moço -interrompeu Jamie, lhe aplaudindo as costas e

sonriendo burlonamente-. Pelo bem de sua mãe, chegará a ser alguém embora ambos morramos no intento. E agora acredito que é meu turno com a vara.

Olhou para onde o marinheiro negro movia a vara. E logo outra vez a seu

sobrinho. -Pensa nisso, moço. Filho menor ou não, não deve desperdiçar sua vida.

Então me sorriu com uma luminosidade que me chegou ao coração. Agarrou-me da mão e com a outra no coração, recitou:

Amo, amas, amar a uma moça, alta e magra como uma tocha,

sua graça e atrativo estão em genital e vocativo.

OH, que bela meu puella, declinarei-a a toda ela, e em um rincão rinconórum

beijarei-a in sécula seculorum.

Tibi dabo casamento, doce ninfa de meu pensamento, e com um pouco de sorte,

não te liberará de mim nem na morte.

Fez uma reverência ante mim, piscou solenemente para me piscar os olhos um olho e se afastou a pernadas.

9 Dois terços de um fantasma

A superfície do rio brilhava como o azeite pois a água estava tranqüila e sem fluxo. Estava sentada em um banco da coberta dianteira, observando a luz

do único farol que, mais que refletir-se na água, parecia apanhada abaixo, movendo-se com o navio.

63

Na escuridão, algo rangeu a minhas costas e levantei a mão sem me dar a

volta para olhar. A grande emano do Jamie se fechou sobre a minha, oprimiu-me isso e a soltou. O leve contato deixou meus dedos úmidos pelo suor.

deixou-se cair a meu lado suspirando, e se abriu o pescoço da camisa. -Acredito que não pude respirar desde que saímos da Georgia -disse-. Cada

vez que aspiro, parece que vou afogar me.

Ri-me; sentia as gotas de suor escorregando por meus seios. -Dizem que no Cross Creek o ar é mais fresco. –Respirei profundamente

para lhe demonstrar que podia fazê-lo-. Notas esse aroma maravilhoso no ar? -Seria um bom cão, Sassenach. -apoiou-se na parede da cabine com um

suspiro-. Não é estranho que Cilindro te admire.

O ruído das pezuñas sobre a coberta anunciou a chegada do cão, quem avançava com cuidado. tornou-se com um profundo suspiro. Cilindro sentia o

mesmo desgosto pelos navios que Jamie. -Olá, vêem -pinjente e estendi uma mão para que a farejasse e me

permitisse lhe arranhar as orelhas-. Onde está seu dono, né?

-Na cabine, aprendendo novas formas de fazer armadilhas com as cartas -disse Jamie com ironia-. Só Deus sabe o que será desse moço. Se não lhe

dispararem um tiro ou lhe golpeiam a cabeça em alguma botequim, voltará para casa com uma avestruz que tenha ganho nas cartas.

-É um bom menino -disse para lhe acalmar.

-É um homem -corrigiu-me. -Mas sempre te escuta -protestei. -Mmm. Espera a que ouça algo que não queira ouvir.

Jogou a cabeça para trás e fechou os olhos. -Faz dois meses que lhe diz que tem que voltar para Escócia, e não acredito

que goste de ouvir isso. Jamie abriu um olho e me observou cinicamente. -Está Ian em Escócia?

-Bom... -Mmm -respondeu, fechando outra vez os olhos.

Cilindro levantou a cabeça com um grunhido e estirou as orelhas. Jamie abriu os olhos, olhou à borda e se incorporou bruscamente.

-Joder! É o rato maior que vi em minha vida!

-Não é um rato -pinjente rendo-. É uma doninha. Vê a cria sobre seu lombo?

Jamie e Cilindro observaram à doninha com idêntica expressão, calculando seu peso e velocidade. Era evidente que a doninha não considerava o navio como algo perigoso. Terminou de sacudir a água e se afastou entre os matagais com a

ponta de sua cauda rosada iluminada por nossa luz. Os dois caçadores deixaram escapar um suspiro e se relaxaram outra vez.

-Myers diz que são boas para comer -comentou Jaime com gesto pensativo. Com um suspiro, procurei em meu bolso e lhe entreguei uma bolsa. -O que é isto?

Inspecionou com interesse e colocou na palma de sua mão uns pequenos objetos cor castanha.

-Amendoins torrados -expliquei-. Crescem nestas terras. Encontrei um

granjeiro que os vendia como comida para os porcos e a mulher da estalagem os torrou. lhes tire a casca antes de lhe comer isso

-Sou um ignorante, Sassenach, não um parvo. Provou desconfiado e logo mastigou com prazer e me sorriu.

64

-Você gosta? Uma vez que nos instalemos farei manteiga de amendoim para

lubrificar no pão. -estive pensando, Sassenach -disse, comendo-se outro amendoim-. O que

te pareceria se ficássemos por aqui? Pergunta-a não era totalmente inesperada. Não podíamos retornar a

Escócia no momento. O jovem Ian, sim, mas não Jamie, devido a certas

complicações, uma das quais se chamava Laoghaire MacKenzie. -Não sei -respondi com lentidão-. Deixando a um lado aos índios e aos

animais selvagens... -Ah, bom -interrompeu, algo incômodo-. Myers me disse que não há

problemas com eles.

-Sim, está bem. Mas recorda o que te contei, não? Sobre a Revolução. Estamos em 1767 e você ouviu a conversação no jantar do governador. dentro de nove anos, Jamie, tudo estalará.

Os dois tínhamos passado uma guerra e nenhum tomávamos a questão à ligeira. Apoiei minha mão em seu braço, lhe obrigando a me olhar.

-Eu tive razão... antes. Você sabe. Como sabia o que ia acontecer no Culloden, havia-lhe dito o destino que

esperava ao Carlos Estuardo e a sua gente.

E o que os dois soubéssemos não serve para nos salvar de vinte dolorosos anos de separação e o fantasma de uma filha a que nunca veria.

-Sim, é certo -disse, brandamente-. Mas então acreditávamos que podíamos trocar as coisas. Ou tentá-lo, ao menos. Mas aqui... -Fez um gesto, assinalando a terra que nos rodeava-. Posso pensar que não é meu assunto -disse

simplesmente-. Nem para impedi-lo, nem para ajudar. -Mas se vivermos aqui, será nosso assunto. esfregou-se o lábio com gesto pensativo.

-Este é um lugar muito grande, Sassenach. Com o que temos viajado desde a Georgia, tivéssemos percorrido toda Escócia e Inglaterra juntas.

-Isso é certo -admiti. Em Escócia não havia forma de escapar aos estragos da guerra. Aqui

poderíamos encontrar um lugar que nos permitisse viver à margem.

Jamie me sorriu com a cabeça inclinada. -Posso verte como a senhora de uma plantação, Sassenach. Se o

governador me encontrar um comprador para as outras pedras acredito que teremos suficiente para enviar ao Laoghaire todo o dinheiro que lhe prometi e ainda ficará para comprar um bom site, a gente onde possamos ter êxito.

Agarrou minha mão direita entre as suas e esfregou minha aliança de casamento.

-Talvez algum dia possa te cobrir de sedas e jóias –disse com suavidade-.

Não te pude dar muito, salvo um pequeno anel de prata e as pérolas de minha mãe.

-Deste-me muito mais que isso -pinjente, acariciando seu polegar-. Brianna, por exemplo.

Sorriu fracamente, olhando a coberta.

-Sim, isso é certo. Talvez ela seja a verdadeira razão para ficar. Este é seu site, não? -Levantou a mão, assinalando o rio, as árvores e o céu-. Ela nascerá aqui, viverá aqui...

-É certo -respondi. Acariciei-lhe o cabelo, tão parecido ao da Brianna-. Este será seu país.

65

Dele, de um modo que nunca o seria do Jamie ou meu por muito tempo

que ficássemos aqui. Permanecemos um momento em silêncio, muito juntos.

-Deixei-lhe as pérolas -pinjente por último-. Pareceu-me o correto. depois de tudo, é sua herança. O anel é tudo o que necessito.

-Dá meu hasia mille -sussurrou sonriendo.

me dê mil beijos. Era a inscrição do anel, uma entrevista de uma canção de amor de Procure-o. Inclinei-me para lhe beijar.

-Dein mille altera -pinjente. Logo mil mais.

Perto da meia-noite, ancoramos para descansar. O tempo tinha trocado;

ainda caloroso e úmido, o ar ameaçava tormenta. Segundo os cálculos do capitão

Freeman, chegaríamos ao Cross Creek o dia seguinte de noite ou, como muito tarde, ao outro. Surpreendia-me descobrir que estava ansiosa por chegar; dois meses de viver pelos caminhos me tinham criado a necessidade de encontrar

refúgio, embora fora temporário. Jamie suspirou e se estremeceu em sonhos. Podia dormir bem em qualquer

site, pois estava acostumado a fazê-lo em lugares tão díspares como cavernas úmidas ou as pedras frite da prisão. A coberta de madeira do navio, em comparação, devia ser bastante confortável.

Eu não era tão elástica nem estava tão endurecida, mas o cansaço se apoderou de mim e nem sequer meus pensamentos sobre o futuro puderam manter desperta.

Despertei confundida. Ainda estava escuro e se ouviam ruídos, gritos e latidos; a coberta tremia pela vibração de uns passos. Endireitei-me de um salto

pensando que sonhava que nos tinham abordado os piratas. Então minha mente se esclareceu e uma visão imprecisa me fez ver que

realmente nos tinham abordado os piratas. Vozes desconhecidas gritavam ordens

e se ouviam as fortes pisadas das botas. Jamie não estava. Arrastei-me, sem me ocupar da roupa, e quase me choquei com um grupo

de gente. ouviram-se gritos, um disparo e um golpe terrível. Ian estava atirado na coberta, sobre o corpo de Cilindro.

Um homem desconhecido, sem chapéu e despenteado, ficou em pé.

-Maldição! Quase me agarra! Apontou ao cão com uma careta horrível no rosto.

Um homem alto apareceu de um nada e, com um gesto, baixou-lhe a arma antes de que disparasse.

-Não esbanje um disparo, estúpido. -Fez um gesto para o marinheiro negro

e o capitão Freeman, este último visivelmente enfurecido-. Como vais lutar com uma arma descarregada?

Cilindro fazia um ruído estranho, um grunhido misturado com gemidos de

dor, e pude ver uma mancha escura baixo seu corpo. Ian estava inclinado sobre o cão e lhe acariciava a cabeça. Levantou a vista com os olhos cheios de lágrimas.

-me ajude, tia! -pediu-. Por favor, me ajude! . Movi-me impulsivamente. Então o homem alto deu um passo e levantou

um braço para me deter.

-vou ajudar ao cão –disse. -O que? -disse com tom ofendido o assaltante mais baixo.

O homem alto estava mascarado, todos o estavam. Percebi-o quando meus olhos se acostumaram à pouca luz. Quantos eram? Era impossível dizê-lo. Tive a

66

sensação de que o homem alto sorria. Não respondeu, mas com um movimento

de sua pistola, deixou-me fazer. -Olá, moço -pinjente, me ajoelhando perto do cão-. Não remoa, é um bom

perrito. Onde está ferido, Ian, sabe? Ian negou com a cabeça, secando-as lágrimas. -Por aqui embaixo, não posso lhe dar a volta.

Eu tampouco ia tentar fazê-lo. Procurei o pulso no pescoço, mas meus dedos se afundavam entre a pele. Em um arranque de inspiração, agarrei-lhe

uma das patas dianteiras e a percorri com os dedos até o oco próximo às costelas. E o encontrei; um pulso firme se detectava baixo meus dedos. Era um bom

sinal. Outra era que Cilindro não tinha perdido o sentido e a pata estava em

tensão e não frouxa como quando a ferida é grave. -Não acredito que esteja muito mal, Ian -pinjente, aliviada-. Olhe, está-se

movendo. Cilindro se incorporou, sacudindo a cabeça com violência e deixando um

reguero de sangue em coberta. Os grandes olhos amarelos se cravaram no

homem de menor estatura; sua intenção era evidente. -Cuidado! Ou o detém ou te juro que o Mato!

Ian, tirando-se rapidamente a camisa, envolveu a cabeça de Cilindro para lhe cegar e lhe forçar a ficar quieto.

-Quantos há a bordo?

O homem alto dirigiu o olhar para o capitão Freeman, que tinha a boca fechada. Apertando os dentes voltou a cabeça em minha direção.

Conhecia-a, conhecia aquela voz. Isto deveu refletir-se em minha cara, porque um momento depois se tirou a máscara.

-Quantos? -perguntou novamente Stephen Bonnet.

-Seis -pinjente. Não havia razão para não responder. Podia ver o Fergus na borda, com as mãos levantadas, enquanto um terceiro pirata o obrigava a voltar

para navio a ponta de pistola. Jamie se tinha materializado na escuridão e estava a meu lado, com gesto turvo.

-Senhor Fraser -disse amavelmente Bonnet-. Que prazer voltar a vê-lo! Mas

não tinha outro companheiro, senhor? O cavalheiro com um só braço? -Não está aqui -foi a resposta cortante do Jamie. -Jogarei uma olhada -disse o mais baixo, mas Bonnet lhe deteve com um

gesto. -vais duvidar da palavra de um cavalheiro como o senhor Fraser? Não,

ficará vigiando a esta gente, Roberts. Eu vou fazer uma inspeção. E, com um gesto para seu companheiro, desapareceu. O me ocupar de Cilindro me tinha distraído momentaneamente. Uns ruídos

que provinham da cabine me recordaram minha caixa de instrumentos médicos e me pus em pé.

-Espere! Onde vai? Detenha-se! vou disparar! A voz do assaltante tinha uma nota perigosa, mas também de insegurança.

Não me detive, mas sim me lancei para a cabine, chocando-se contra um quarto

ladrão que estava revisando minha caixa. -Não se atreva a tocá-la! -pinjente e, desentupindo um frasco, arrojei-lhe o

conteúdo ao rosto.

Como quase todos os preparados do Rawlings, continha uma grande proporção de álcool. O homem ofegou e retrocedeu com os olhos irritados.

Aproveitei a vantagem para agarrar uma garrafa de pedra e lhe golpear na

67

cabeça. Levantei o braço para lhe dar outro golpe, mas uma mão firme sujeitou

minha boneca. -vou pedir lhe que me perdoe, querida senhora Fraser -disse uma voz

conhecida, com acento irlandês-. Mas não posso deixar que lhe rompa a cabeça. Necessita-a para ficar o chapéu.

-Essa maldita cadela me golpeou!

O homem se agarrava a cabeça com gesto de dor. Bonnet me empurrou para a coberta, me dobrando um braço detrás das costas. Já quase tinha

amanhecido e o rio brilhava como a prata. Desgraçadamente, a luz permitia que os assaltantes nos vissem melhor. O homem ao que tinha golpeado agarrou minha mão e atirou de meu anel.

-vou levar me isto! Retirei a mão e quis lhe golpear, mas Bonnet me deteve com uma

significativa tosse. Tinha a pistola colocada sobre a orelha esquerda do Ian.

-Melhor que o dê, senhora Fraser -indicou amavelmente-. Temo-me que o senhor Roberts merece uma pequena compensação pelo dano que você lhe

causou. Atirei do anel de ouro com as mãos tremendo pela fúria e o medo. o de

prata me custou mais trabalho; parecia não querer separar-se de meu dedo. Os

dois anéis estavam úmidos pelo suor e o metal parecia quente ante a frieza de meus dedos.

-dê-me isso O homem me empurrou com rudeza e estendeu uma mão imunda.

Dispunha-me a entregar-lhe a contra gosto quando uma repentina inspiração fez

que me levasse a mão à boca. Um golpe fez que minha cabeça me chocasse contra a parede da cabine. Os

dedos calosos daquele homem procuraram em minha boca para me tirar os anéis.

Traguei com força, com saliva e também com sangue. Mordi-lhe e deu um grito. Um dos anéis saiu de minha boca e ouvi o ruído metálico que fez ao cair.

Em minha garganta sentia o outro. -Cadela! vou cortar te o pescoço! Irá ao inferno sem os anéis, puta

trapaceira!

Vi o rosto do homem deformado pela fúria e o súbito brilho da folha de uma faca. Então algo me golpeou e caí ao chão, esmagada pelo corpo do Jamie. Estava

muito aturdida para me mover, embora tampouco tivesse podido fazê-lo pois o peito do Jamie apertava minha cabeça. Em meio dos gritos e a confusão, Jamie recebeu um golpe e gemeu. Outro golpe e outro gemido.

-Deixa-o, Roberts! Hei dito que o deixe! A voz do Bonnet ressonava com autoridade. -Mas ela... -começou a dizer Roberts, mas se viu interrompido por um golpe

seco. -Levante se, senhor Fraser. Sua esposa está a salvo e não porque o mereça.

A voz do Bonnet tinha uma mescla de brincadeira e irritação. Bonnet observou ao Jamie, quem se tinha posto em pé.

-Está louca -disse Bonnet, desapasionadamente-, mas suponho que a você

não importa. -Fez um gesto e sorriu-. Estou obrigado a aproveitar a oportunidade de pagar minha dívida, senhor. Uma vida por uma vida, como diz o Santo Livro.

-nos pagar? -disse zangado Ian-. depois do que fizemos por você, rouba-nos

e nos ataca, ferem minha tia e a meu cão e tem o valor de falar de pagamento? Os olhos verde pálido do Bonnet se cravaram no Ian.

68

-Não conhece a Bíblia, moço? -Bonnet sacudiu a cabeça-. Uma mulher

virtuosa vale mais que os rubis, seu valor é maior que o das pérolas. Abriu a mão, ainda sonriendo, e à luz brilharam três gemas: uma

esmeralda, uma safira e o fogo escuro do diamante. -Estou seguro de que o senhor Fraser estará de acordo. voltou-se para seus camaradas.

-Já temos o que devemos buscar -disse bruscamente-. Vamos. Os quatro homens desapareceram entre os arbustos e ouvimos o relinchar

de um cavalo. A bordo, tudo ficou em silêncio. -Bastardos -o capitão Freeman cuspiu seu insulto e se voltou para o

marinheiro-. Busca as varas.

Outros, lentamente, recuperaram-se. Fergus olhava de esguelha ao Jamie enquanto acendia o farol para desaparecer na cabine, onde ouvi que começava a ordenar as coisas. Ian permanecia sentado na coberta, ocupando-se de Cilindro.

Não queria olhar ao Jamie, assim que me ajoelhei junto ao Ian. Cilindro me observou, mas não se opôs a minha presença.

-Como vai? -perguntei com voz rouca. Podia sentir o anel em minha garganta; incomodava-me e traguei várias

vezes. O jovem Ian levantou a vista. Tinha o rosto pálido, mas seus olhos estavam

atentos.

-Acredito que está bem -disse brandamente-. Tia... está bem? ..Não está ferida?

-Não -pinjente e tratei de sorrir para lhe tranqüilizar-. Estou bem.

Não olhei ao Jamie, mas podia sentir sua presença, ameaçadora como uma tormenta. Ian podia lhe ver por cima de meu ombro.

-Não te incomode, tia -disse Ian, tentando me consolar-. Tio Jamie não é dos que golpeiam.

Não estava tão segura, pelas vibrações que provinham do Jamie, mas

esperava que Ian tivesse razão. -Está muito zangado, não crie? -perguntei em voz baixa. Ian se encolheu de

ombros. -Bom, a última vez que me olhou dessa maneira, levou-me a parte de atrás

da casa e me deu uma surra. Mas estou seguro de que não fará o mesmo contigo

-apressou-se a dizer. -Imagino que não -disse com tom sombrio. -Tampouco são agradáveis as broncas do tio Jamie –disse Ian, sacudindo a

cabeça com simpatia-. Eu prefiro que me dê uma surra. Inclinei-me para o cão.

-Já tivemos bastante por hoje. deixou que sangrar? Por debaixo do cabelo ensangüentado, a ferida aparecia

surpreendentemente pequena: um talho na pele e no músculo perto do lombo.

Cilindro agachou as orelhas e me ensinou os dentes enquanto o examinava, mas não protestou.

-Bom cão -murmurei-. Terá que lhe pôr um pouco de ungüento para manter afastadas às moscas.

-Vou buscá-lo, tia, sei onde está sua caixa. -Ian levantou o focinho de

Cilindro apoiado em seu joelho e ficou em pé-, É esse verde que pôs ao Fergus no dedo do pé?

Assenti e o moço desapareceu na cabine, me deixando a sós com o estômago revolto, a garganta congestionada e dor de cabeça.

69

Jamie apareceu de entre as sombras. Pu-me rígida e Cilindro moveu as

orelhas em posição de alerta, mas Jamie não manifestou intenções de me jogar pela amurada. Pelo contrário, inclinou-se para me inspecionar com rosto

carrancudo. -Como se sente, Sassenach? Não sei se estiver verde ou se for a luz.

-Estou bem. um pouco tremente, possivelmente. Mais que um pouco. Minhas mãos não podiam estar quietas e sabia que

meus joelhos não me sustentariam se tentava me pôr em pé. Traguei com força,

tossi e me dava uns golpes no peito. -É provável que seja minha imaginação, mas sinto como se tivesse o anel

na garganta.

Olhou-me pensativo e logo se voltou para o Fergus, que acabava de sair da cabine e dava voltas por ali.

-lhe pergunte ao capitão se me emprestar sua pipa um momento, Fergus. -deu-se a volta e se afastou, retornando com uma jarra cheia de água.

Quis agarrá-la, agradecida, mas a apartou.

-Ainda não, Sassenach -disse-. Conseguiu-a? Sim, obrigado, Fergus. Busca um balde vazio, quer?

Agarrou a pipa de mãos do intrigado Fergus e esvaziou seu conteúdo na

jarra de água. Ao terminar com essa tarefa, olhou-me de forma maligna. -Não -pinjente-. OH, não!

-OH, sim -respondeu-. Vamos, Sassenach, isto terminará com suas moléstias.

-Eu... esperarei -expliquei. Cruzei-me de braços-. Obrigado de todos os

modos. Fergus havia tornado com o balde e nos olhava com as sobrancelhas

arqueadas. Jamie colocou o balde a meu lado. Não se incomodou em tratar de me convencer. Apertou-me o nariz e quando abri a boca para respirar, derrubou-me o conteúdo da jarra.

-Traga -ordenou, tampando minha boca e desoyendo meus protestos. Era muito mais forte que eu e não pensava me deixar. Tinha que tragar ou

me afogar.

Traguei.

-ficou como novo. Jamie terminou de lustrar o anel de prata com sua camisa e o levantou,

admirando-o à luz do farol.

-Isso é mais do que se pode dizer de mim -respondi com maldade. Estava recostada na coberta e, embora a corrente era aprazível, ainda me sentia enjoada-

. É um maldito e sádico torturador, Jamie Fraser! inclinou-se me apartando as mechas de cabelo que me tampavam a cara. -Isso espero. Já tem força para me insultar, Sassenach, isso quer dizer que

está melhor. Descansa um pouco, quer? Beijou-me na frente e se sentou. Uma vez passada a excitação e depois de ordená-lo tudo, os homens

tinham ido à cabine para recuperar-se com a ajuda de uma garrafa de aguardente de maçã que o capitão Freeman tinha salvado dos piratas

escondendo-a no barril de água. Uma pequena jarra com essa bebida esperava perto de minha cabeça. Ainda não me sentia com forças para tragar nada, mas o aroma de fruta era reconfortante.

70

Navegávamos impulsionados pelo vento, ansiosos por nos afastar, como se

o perigo ainda rondasse por aquele lugar. Na cabine ressonavam algumas risadas e Cilindro respondia com um grunhido, da coberta; tudo estava voltando para a

normalidade. Uma suave brisa acariciou meu rosto, me secando o suor e agitando os

cabelos do Jamie. As linhas de sua frente e o gesto de suas sobrancelhas me indicava que estava sumido em profundos pensamentos.

Não era muito difícil saber no que estava pensando. De repente, tínhamos

passado de ricos (ou potencialmente ricos, ao menos) a pobres. Nossa bem equipada expedição se via reduzida a um saco de feijões e uma caixa com instrumental médico. em que pese a nosso desejo de não chegar como mendigos

à porta da Yocasta Cameron, tínhamo-nos convertido em pouco mais que isso. Nunca me tinha considerado uma pessoa que valorasse muito o dinheiro,

mas esta forma violenta de nos arrancar a segurança me produzia uma sensação de vertigem, como se sofresse uma inevitável queda a um poço. Como afetaria ao Jamie, que não só sentia seu perigo e o meu, mas sim além disso a

responsabilidade de muitas outras vistas? Ian, Fergus, Marsali, Duncan, os habitantes do Lallybroch, inclusive aquela

maldita Laoghaire. Não sabia se rir ou chorar ao pensar no dinheiro que Jamie

lhe tinha enviado; aquela criatura vingativa estava agora muito melhor que nós. Ao pensar na vingança, senti outra pontada que apagou todos meus outros

temores. Jamie não era vingativo para ser escocês, mas nenhum highlander suportaria semelhante perda com silenciosa resignação; não só a perda da fortuna, mas também também da honra. O que se sentiria impulsionado a fazer

agora? Jamie contemplava fixamente a água escura. Via, talvez, a tumba onde

influenciado pelo sentimentalismo alcoólico do Duncan, tinha aceito ajudar ao Bonnet a escapar?

-Não deve te culpar -pinjente, tocando seu joelho.

-E a quem culpo, se não? -disse tranqüilamente, sem me olhar-. Conheci homem pelo que era. Pude deixar que tivesse o destino que merecia, mas não o

fiz. Fui um parvo. -É bom. Que não é o mesmo. -É parecido.

Bebeu da jarra com um profundo suspiro. Logo me ofereceu isso e aceitei. -Melhor? Assenti. Agarrou minha mão e me deslizou o anel em um dedo, com o metal

ainda quente pelo contato de sua mão. -Terão-nos seguido desde o Charleston? -perguntei em voz alta.

Jamie negou com a cabeça. Seu cabelo, ainda solto, caía em mechas tampando parte de sua cara.

-Não acredito. Se tivesse sabido que tínhamos jóias, nos teria detido no

caminho, antes de chegar ao Wilmington. Não, suponho que se inteirou por algum dos serventes do Lilhngton. Acreditei que estávamos a salvo ao nos afastar

para o Cross Creek antes de que ninguém ouvisse falar das pedras preciosas. Mas alguém deveu falar: um criado, a costureira que te arrumou o vestido...

Seu rosto estava tranqüilo, mas sempre era assim quando ocultava uma

forte emoção. -Sinto-o por seu outro anel -disse. -OH, não...

71

ia dizer «não importa», mas as palavras se detiveram em minha garganta

ante a tira de consciência da perda. Usava aquele anel de ouro desde fazia trinta anos; era o símbolo dos votos

ditos, esquecidos, renovados e finalmente eximidos. Um símbolo do matrimônio, da família; de uma grande parte de minha vida. E a última lembrança do Frank, a quem, em que pese a tudo, eu tinha amado.

Jamie não disse nada. Agarrou minha mão e me esfregou os nódulos com o polegar. Eu tampouco falei. Suspirei profundamente e voltei meu rosto para popa;

as árvores da borda se estremeciam com o vento. Uma gota me caiu na bochecha, mas não me movi. Minha mão parecia branca na do Jamie, com um aspecto desacostumbradamente frágil; era impressionante vê-la assim.

Oprimiu-me a outra mão, apertando o anel de prata em minha carne para me recordar o que significava.

Agarrei sua mão e a apertei contra meu coração. A chuva começou a cair

com grandes gotas, mas nenhum dos dois nos movemos. Sentia-me terrivelmente vulnerável e, de uma vez, totalmente segura. Mas

sempre me acontecia o mesmo com o Jamie Fraser...

QUARTA PARTE RIVER RUN

10 Yocasta

Cross Creek, Carolina do Norte, junho de 1767 River Run estava na borda de Cape Fear, por cima da confluência que dava

seu nome ao Cross Creek. O lugar ocupava uma superfície considerável e tinha

um porto cheio de gente e grandes alpendres alinhados ao bordo da água. Enquanto o Sally Ann avançava lentamente, invadiu-nos um forte aroma de resina procedente do povo e do rio, envolto em uma massa de ar quente e úmido.

-meu deus, é como respirar terebintina -queixou-se Ian, ofegando. -É que é o que está respirando, homem -disse o negro com um sorriso.

-Assim é -disse o capitão Freeman-. Nesta época do ano vêm os vendedores do interior com alcatrão e terebintina; trazem-no em embarcações desde o Wilmington e o enviam ao sul, aos estaleiros do Charleston.

-Não acredito que tudo seja terebintina -disse Jamie. Não o cheira, Sassenach?

Aspirei com cautela. Havia algo mais no ar, um aroma quente e familiar. -Rum? -perguntei. -E conhaque. E também um pouco de oporto.

O largo nariz do Jamie se franziu. Olhei-o divertida. -Não perdeste seu olfato de provador, verdade? Vinte anos antes, tinha dirigido um negócio de vinhos em Paris,

propriedade de sua primo Jared, e tanto seu nariz como seu paladar tinham sido o assombro das adegas parisienses.

Sorriu-me zombador. -Espero poder distinguir um Mosela da urina de cavalo se o puser debaixo

de meu nariz. Mas distinguir entre rum e terebintina não é nenhuma tolice, não?

Ian aspirou profundamente e deixou sair o ar em forma de tosse.

72

-Para mim têm o mesmo aroma -disse, sacudindo a cabeça.

-Bem, a próxima vez que queira um gole, darei-te terebintina -disse Jamie-. Resultará muito mais barato. E isso é tudo o que posso pagar agora -acrescentou,

entre risadas. endireitou-se, arrumando-a camisa e a casaca-. Pareço um mendigo, Sassenach?

Era consciente de que a idéia de aparecer ante sua tia como um mendigo

feria grandemente seu orgulho e o fato de que as circunstâncias lhe tivessem forçado a adotar esse papel, não o fazia mais suportável.

Examinei-o com cuidado. Pu-me nas pontas dos pés, endireitei-lhe o pescoço de encaixe e lhe tirei um penugem das costas.

-Está muito bem -sussurrei, sonriéndole-. Está muito bonito.

Contemplou-me surpreso e sua expressão de zombadora indiferença se converteu em um sorriso.

-É formosa, Sassenach. -inclinou-se e me beijou na frente-. Está tinta como

uma maçã, muito bonita. endireitou-se, olhou de esguelha ao Ian e suspirou.

Ian era do tipo de pessoas que conseguia que suas roupas, sem importar a qualidade original nem o tempo que tivessem, parecessem tiradas de um cubo de lixo.

-O capitão Freeman diz que chegaremos em qualquer momento! -exclamou Ian, com olhos brilhantes de excitação-. O que criem que nos darão de comer?

Jamie olhou a seu sobrinho com desgosto. -Espero que lhe dêem as sobras, como aos cães. Não tem casaca, Ian? Nem

pente?

-Sim -respondeu Ian, olhando ao redor como se esperasse que os objetos se materializassem frente a ele-. Tinha uma casaca. Deve estar por aqui.

A casaca estava debaixo de um banco e a agarrou, não sem certa

dificuldade, já que Cilindro se deu procuração dela para dormir mais cômodo. -Contará-lhe à tia avó Yocasta o dos piratas? -perguntou.

Jamie olhou as costas do capitão Freeman. Era ingênuo pensar que não contaria a história em tudo os botequins do Cross Creek logo que se livrasse de nós. E em questão de dias, ou talvez de horas, a notícia chegaria à plantação do

River Run. -Sim o contarei -respondeu Jamie-. Mas não imediatamente Ian.

Esperaremos que se acostume a nós. O embarcadero do River Run se encontrava a certa distância do Cross

Creek, separado do ruído e do ar fétido da cidade por várias milhas de rio e bosque.

depois de me ocupar de que Jamie, Ian e Fergus ficassem o melhor possível, com a ajuda de água, penteie e cintas, retirei-me à cabine, tirei-me a roupa imunda, lavei-me apressadamente e me pus o vestido de seda que tinha

levado no jantar do governador. Não podia fazer grande coisa com meu cabelo, assim que me sujeitei isso

na parte de atrás, deixando que as pontas se enrolassem. Não precisava me

preocupar com as jóias, pensei com tristeza esfregando o anel de prata para que brilhasse.

Quando saí da cabine, o embarcadero estava à vista. A diferença de outros moles que tínhamos passado, o do River Run era de madeira, sólido. Um moço negro estava sentado, agitando com aborrecimento suas pernas nuas.

73

Quando viu aproximar-se da Sally Ann, ficou em pé de um salto e saiu

correndo, possivelmente para anunciar nossa chegada. A embarcação se deteve no mole. junto à linha de árvores que bordeaba o

rio se estendia um atalho de tijolo que subia através de um conjunto de jardins e prados, dividindo-se para rodear um par de estátuas de mármore com maciços de flores. Logo se voltava a unir até chegar a uma grande praça, frente a uma

imponente casa de dois novelo com colunas e chaminés. A um lado dos maciços de flores havia um edifício em miniatura de mármore branco; pensei que podia

tratar-se de alguma classe de mausoléu. Toquei-me o cabelo e reconsiderei minha opinião sobre o vestido que levava.

Descobri-a imediatamente entre a gente que saía da casa e baixava

correndo pelo atalho. Até sem saber quem era, me teria dado conta de que estava ante uma MacKenzie. Tinha as bochechas ossudas, o ar vigoroso e a frente alta de seus irmãos Colum e Dougal. Como seu sobrinho e sua sobrinha neta, tinha a

extraordinária estatura que os marcava a todos como descendentes do mesmo sangue. Era alta, ágil e andava com uma segurança que não encaixava com o

branco de seus cabelos. Devia ter sido tão ruiva como Jamie, porque ainda ficavam restos daquele tintura avermelhado especial.

Não sabia o que Jamie pensava fazer ou dizer no primeiro encontro.

Chegado o momento, deu um passo para a Yocasta MacKenzie e a abraçou, dizendo:

-Tia..., sou Jamie. Quando a soltou e deu um passo atrás vi que seu rosto tinha uma

expressão que nunca tinha visto antes: uma mescla de ansiedade, alegria e

temor. Então pensei, com certa comoção, que Yocasta MacKenzie devia ser muito parecida com sua irmã maior, a mãe do Jamie.

Imaginei que tinha seus mesmos olhos cor azul profunda, embora não

podia assegurá-lo porque estavam empanados pelas lágrimas e fechados pela risada. Tinha ao Jamie sujeito pela manga e lhe tocava a bochecha.

-!Jamie! -dizia uma e outra vez-. Jamie, pequeno Jamie! Estou muito contente de que tenha vindo, moço! –Tocou-lhe o cabelo com uma expressão de surpresa—. Deus bendito, mas se for um gigante! Deve ser tão alto como meu

irmão Dougal! A expressão de alegria do rosto do Jamie se atenuou um pouco, mas

manteve seu sorriso quando se voltou para me apresentar. -Tia, posso te apresentar a minha esposa? Ela é Claire. Radiante, estendeu a mão imediatamente; agarrei-a reconhecendo aqueles

dedos largos e fortes; seus nódulos estavam um pouco deformados pela idade, mas sua pele era suave e ao tato era surpreendentemente parecida com a da Brianna.

-Estou muito contente de te conhecer, querida —disse, me aproximando para me beijar na bochecha-. É muito formosa! –disse com admiração, enquanto

seus largos dedos agarravam a manga de meu vestido. -Muito obrigado -pinjente, mas já era o turno de apresentar ao Ian e

Fergus.

Recebeu aos dois com carinhosos abraços e não quando Fergus lhe beijou a mão fazendo ornamento de sua melhor educação francesa.

-Venham -disse finalmente, secando-as bochechas úmidas com o dorso da

mão-. Devei tomem uma taça de chá e a comer algo. Devem estar famintos depois da viagem. Ulises!

voltou-se, enquanto seu mordomo se adiantava e fazia uma reverência.

74

me chamou «lady», e ao Jaime «sir».

-Tudo está preparado, senhorita Eu -disse brandamente a sua patrã e lhe ofereceu o braço.

Começaram a subir pelo atalho e lhes seguimos para as portas do River Run, totalmente aberto para nos receber.

A casa era enorme e ventilada, com altos tetos e portas vidraças largas em todas as habitações da planta baixa. Captei brilhos de prata e cristal enquanto

passávamos por um comilão grande e convencional, que fazia evidente que Héctor Cameron tinha tido muito êxito como dono da plantação.

Yocasta nos conduziu até sua sala privada, uma habitação mais pequena e

íntima, bem mobiliada, mas com detalhes caseiros. O mordomo nos escoltou até a sala, instalou a sua senhora e se voltou para

um aparador, onde tinha uma coleção de jarras e garrafas.

-Tomaremos um gole para celebrar sua chegada, Jamie. -Yocasta agitou uma mão larga e magra em direção ao aparador-. Seguro que não provaste um

uísque decente desde que saíste que Escócia. Jamie riu, sentando-se frente a ela. -Realmente, não, tia. Como o conseguiste?

Yocasta se encolheu de ombros e riu com alegria. -Seu tio teve a sorte de conseguir uma boa quantidade faz uns anos.

Comprou a metade da carga de vinho e uísque de um navio para vendê-lo, mas naquele momento o Parlamento ditou um decreto pelo qual se proibia vender bebidas mais fortes que a cerveja, reservando-se este direito a Coroa. Assim foi

como terminamos com duzentas garrafas na adega! Sem incomodar-se em olhar, estirou a mão e recebeu o copo do mordomo. -Por ti, sobrinho, e por sua querida esposa, que encontrem um lar nesta

casa. Slainte! -Slainte mhar! -respondeu Jamie, e todos bebemos.

Era um bom uísque, suave como a seda e reconfortante como o brilho do sol.

-vou fazer que Ulises escreva esta noite avisando a sua irmã de sua chegada -disse Yocasta-. Deve estar muito preocupada com seu filho, pensando em todas as desgraças que lhe podiam ter acontecido durante a viagem.

Jamie deixou seu copo e se esclareceu garganta, preparando-se para a tarefa da confissão.

-Quanto a desgraças, tia, temo-me que devo te dizer...

Olhei para outro lado, para não aumentar seu desconforto enquanto explicava a perda de nossa fortuna. Yocasta escutava com atenção, deixando

escapar sons de desconsolo quando lhe contava o encontro com os piratas. -O que ser mais perverso! –exclamou-. Te pagar o favor dessa forma! Esse

homem deveria ser enforcado!

-Bom, isso só é minha culpa, tia -respondeu Jamie com pesar-. Se não tivesse sido por mim, o teriam pendurado.

-Seja como for, sobrinho. Mas quero que considere River Run como seu lar; digo-o a sério. Você e os teus são bem-vindos aqui. E estou segura de que encontraremos a maneira de reparar essas perdas.

-Agradeço-lhe isso, tia -murmurou Jamie. A conversação, felizmente, centrou-se no Jenny e na família do Lallybroch e

o desconforto do Jamie foi atenuando-se pouco a pouco.

75

Fergus ficou em pé e, com diplomacia, desculpou-se enquanto Ian dava

voltas pela habitação, agarrando objetos e voltando-os para deixar. Cilindro, aborrecido, farejava o lugar, observado com profundo desgosto pelo afetado

mordomo. A casa estava decorada com gosto e algo mais que simplicidade. Enquanto

apreciava a graça e a elegância do ambiente, Ian se deteve bruscamente ante um quadro de grande tamanho.

-Tia Yocasta! -exclamou, voltando-se ansioso para ela-. Pintaste-o você?

Está assinado com seu nome. Seu rosto pareceu escurecer-se antes de voltar a sorrir. -Uma paisagem montanhosa? Sim, é algo que sempre amei. Estava

acostumado a ir com o Héctor, quando viajava para comercializar com couros. Acampávamos nas montanhas e acendíamos uma grande fogueira que os

serventes mantinham noite e dia, como um sinal. Aos poucos dias, os selvagens corte vermelhas saíam do bosque e se sentavam ao redor da fogueira para falar, beber uísque e comercializar conosco. Eu me sentava com o caderno e o lápis-

carvão e desenhava tudo o que via. Fez um gesto para a outra ponta da sala. -Olhe o que está na esquina. Trata de descobrir ao índio que pintei

escondido entre as árvores. Yocasta terminou seu uísque e deixou o copo, rechaçando o oferecimento

do mordomo sem olhar. -Sim, amava a paisagem dessas montanhas. Não são tão escuras e áridas

como as de Escócia, mas o sol nas rochas e a névoa entre as árvores me

recordam Leoch. Sacudiu a cabeça e sorriu ao Jamie, possivelmente forçando-se a isso.

-Mas este foi meu lar durante muito tempo, sobrinho, e espero que você também o queira considerar assim.

Não tínhamos muitas opções; Jamie inclinou a cabeça e murmurou algo

como resposta. Mas Cilindro o interrompeu com um grunhido. -O que acontece, cão? -perguntou Ian, aproximando-se do cão lobo-. Está

cheirando algo? Yocasta voltou a cabeça para a porta aberta. -É uma mofeta -disse.

-Uma mofeta! -Ian a contemplou assombrado-, Aproximam-se tanto à casa? Jamie se levantou e saiu a olhar. -Tem armas na casa, tia?

-Sim -respondeu, boquiaberta-. Muitíssimas. Mas... -Jamie -intervim-. As mofetas não são...

antes de que pudéssemos terminar as frases, Cilindro começou a grunhir a um maciço de flores.

-Cilindro! Ian procurou alguma arma e agarrou o atiçador da chaminé. -Espera, Ian -disse Jamie, lhe sujeitando do braço-. Olhe.

Com um grande sorriso, assinalou para o trabalhador de pedreira. -Isso é uma mofeta? —perguntou Ian, incrédulo-. Mas se for muito

pequena! -enrugou o nariz, com uma expressão entre divertida e decepcionada-.

Puf E eu que acreditava que era um animal perigoso! -Ian -pinjente, me refugiando detrás do Jamie-. Chama . As mofetas são

perigosas. -São-o?

76

Jamie me olhou intrigado.

-Ian, não! Deixa-o e vêem aqui! Ian, curioso, tinha saído e cravava a mofeta com o atiçador. O animal,

ofendido, levantou a cauda. Ouvi o rangido de uma cadeira, voltei-me e vi que Yocasta se pôs em pé e

olhava alarmada.

-O que acontece? O que estão fazendo? Movia a cabeça de um lado a outro, como tratando de localizar algo na

escuridão. de repente, descobri a verdade: sua mão no braço do mordomo, sua forma

de tocar o rosto do Jamie ao recebê-lo e a sombra que cobriu seu rosto quando

Ian falou de suas pinturas. Yocasta Cameron era cega. Um grito me fez voltar a me ocupar do que acontecia fora. Um aroma ácido

invadiu a habitação e envolveu a todos.

Entre os grunhidos e gemidos soou a campainha da Yocasta. -Ulises? -perguntou, com resignação-. Avisa na cozinha que jantaremos

mais tarde. -Felizmente estamos no verão -disse Yocasta, enquanto tomávamos o café

da manhã ao dia seguinte-. Imaginam no inverno, com todas as portas fechadas? Sorriu ensinando uns dentes em surpreendente bom estado para sua

idade. -Sim -murmurou Ian-. Por favor, posso comer mas torradas?. Tanto ele como Cilindro tinham sido banhados no rio e esfregados com

tomates, pois estes tinham uma substância que atenuava o mau aroma, embora não conseguiram neutralizá-lo por completo.

Talvez inspirada pela proximidade do Ian e o desejo de ar fresco, Yocasta sugeriu que podíamos ir ver os trabalhos que se realizavam no bosque.

-É um dia de viagem, ida e volta, mas acredito que o tempo seguirá sendo

bom. Ouvem as abelhas? Elas nos dizem que o tempo será bom e caloroso. -Tem você muito bom ouvido, senhora Cameron -disse cortesmente Fergus-

. Mas se me permite agarrar um cavalo da quadra, preferiria ir até o povo.

Sabia que desejava enviar uma carta ao Marsali, já que a noite anterior lhe tinha ajudado a escrevê-la.

-É obvio que sim, Fergus -respondeu com um amável sorriso-.Como já vos pinjente, quero que considerem River Run como sua casa.

Yocasta pensava nos acompanhar no passeio. Uma criada chamada Fedra

lhe pôs um tecido branco sobre os olhos, antes de lhe impregnar o chapéu. -Não posso ver mais que um resplendor -explicou-nos-, Mas a luz do sol me

faz mal, por isso me protejo os olhos para sair ao exterior. Estão preparados, queridos?

Para minha surpresa, um cavalo selado esperava a Yocasta e não uma

carruagem, como eu supunha. O dom de comunicar-se com os cavalos era uma qualidade dos MacKenzie; a égua levantou a cabeça ao reconhecer a sua ama. Yocasta acariciou ao animal e lhe ofereceu uma maçã verde que aceitou com

prazer. -É meu doce Corinna -explicou-. Como está sua pata?-Com dedos peritos,

tocou a pata até a altura do joelho, examinando uma cicatriz-, O que te parece, sobrinho? Está sã? Agüentará um dia de marcha?

Jamie estalou a língua e Corinna deu um passo para ele, reconhecendo a

alguém que falava sua linguagem. Examinou-a e a fez caminhar.

77

-Estraga -disse-. Está bem. Como se feriu? .

-Parece ser que foi uma serpente, senhor -disse a moço, um jovem negro que observava ao Jamie com interesse.

-Mas é uma mordida de serpente? -pinjente, surpreendida-. Parece um rasgão, como se a pata tivesse ficado apanhada.

Olhou-me com as sobrancelhas arqueadas e assentiu com respeito.

-Sim, senhora, foi assim. Faz um mês ouvi uns ruídos no estábulo, como se se estivesse derrubando. Entrei e encontrei o cadáver de uma grande serpente

venenosa esmagada baixo o pesebre. Corinna tinha a pata ensangüentada pelas lascas do mesmo. É uma égua muito valente! -disse com orgulho.

-A «grande serpente venenosa» acredito que media trinta centímetros -

comentou-me Yocasta-. Ou talvez era só uma lombriga, mas a Corinna produzem terror as serpentes. Com apenas as ver enlouquece. -Fez um gesto para a moço

de quadra e sorriu-. O pequeno Josh tampouco as tem em muita estima, não? -Não, senhora. Tampouco eu gosto. Ian não pôde conter sua curiosidade.

-De onde vem? -perguntou, observando ao jovem negro com fascinação. -Que de onde venho? Não venho, ah, já entendo. Nasci rio acima, no imóvel

do senhor George Burnett. A senhorita Eu me comprou faz dois anos, pela

Páscoa. River Run ocupava um extenso território, formado não só pela parte

situada frente ao rio, mas também também por um grande bosque de pinheiros. Além disso, Héctor Cameron tinha adquirido, astutamente, umas terras atravessadas por um largo arroio, um de quão muitos desembocam no Cape Fear.

Assim estava provido, não só dos valiosos produtos da madeira, breu e terebintina, mas também dos meios adequados para transportá-los até o

mercado. Não era estranho que River Run prosperasse. Yocasta nos disse que produziam pequenas quantidades de anil e tabaco, embora os fragrantes tabacales pelos que passávamos me pareceram algo mais que modestos.

-Há uma pequena serraria no rio -explicava Yocasta-, justo em cima da desembocadura do arroio. Ali serram e dão forma às pranchas, constróem tonéis e os enviam rio abaixo em barcaças, até o Wilmington. Pelo rio, a distância entre

a casa e a serraria não é muita, mas preferi lhes ensinar algo mais do River Run. -Aspirou com prazer o aroma dos pinheiros-. Fazia tempo que não saía.

Parecia que River Run tinha muitos negócios com a Marinha a julgar pela conversação da Yocasta sobre mastros, varas, vigas, fitas de seda, breu e terebintina. Jamie cavalgava perto de sua tia, escutando suas detalhadas

explicações, nos deixando ao Ian e a mim que lhes seguíssemos. Era evidente que tinha trabalhado, junto com seu marido, na construção do River Run.

Perguntava-me como o faria, agora que estava sozinha. -Olhe! -assinalou Ian-. O que é isso? Obriguei a meu cavalo a lhe seguir até a árvore que assinalava. Tinham-lhe

tirado uma grosa lâmina da casca. -Estamos perto —disse Yocasta-. Essa árvore que estão vendo deve ser um

terebinto, posso cheirar a terebintina. Yocasta aproximou da Corinna à árvore.

-Olhem -disse, tocando o fundo do corte, onde havia um oco-. Chamamo-lo a caixa; aqui se juntam a terebintina e a seiva. Está quase enche, assim muito

em breve virá um escravo para tirá-la. Enquanto falava, um homem apareceu entre as árvores, era um escravo vestido com um tanga e conduzia uma mula branca com uma correia larga no lombo da que penduravam dois tonéis, um a

cada lado. A mula se deteve e zurrou.

78

-Essa tem que ser Clarence -disse Yocasta em voz alta para fazer-se ouvir

por cima do ruído-. Gosta de ver gente. Quem está com a mula? É você, Pompey? -Estraga, senhora, sou.

afastou-se, dizendo algo que supus era um insulto à mula. Então vi que falava com dificuldade porque lhe faltava a metade da mandíbula.

Yocasta deveu notar minha impressão, ou simplesmente a esperava, porque se voltou para mim.

-Foi uma explosão de breu; por sorte não morreu. Vamos, estamos perto da

serraria. O contraste entre a atividade desdobrada para extrair a terebintina com a

quietude do bosque era surpreendente. Havia um enorme claro cheio de gente, a

maioria escravos semidesnudos, trabalhando ativamente. -Há alguém nos barracos?

Yocasta voltou sua cabeça para mim. Elevei-me nos estribos para olhar; perto de uma fila de barracos ruinosos

destacava uma nota de cor: três homens com o uniforme da Marinha britânica e

outro com uma casaca cor verde garrafa. -Esse deve ser meu bom amigo Farquard Campbell –disse Yocasta, sonriendo satisfeita atrás de minha descrição-. Vêem, sobrinho, lhe eu gostaria de

apresentar isso Desde perto, Campbell resultou ser um homem de uns sessenta anos, de

altura medeia, mas com a particular marca de dureza correosa que alguns escoceses mostram a essa idade. Campbell recebeu a Yocasta com prazer, inclinou-se cortesmente ante mim, saudou o Ian com um movimento de

sobrancelhas e dirigiu toda a energia de seus ardilosos olhos cinzas ao Jamie. -Estou muito contente de que esteja aqui, senhor Fraser -disse, estendendo

a mão-. Realmente contente. ouvi falar muito de você desde que sua tia se inteirou de suas intenções de visitar River Run.

Sua alegria parecia tão sincera que sentiu saudades. Se Jaime notou algo

estranho o ocultou depois de uma aparência cortês. -Sinto-me adulado de que tenha gasto um momento de seu tempo para

pensar em mim, senhor Campbell. -Jamie sorriu com simpatia e se inclinou ante

os oficiais da Marinha-. Cavalheiros, também estou encantado de conhecê-los. Aproveitando a ocasião, um deles, um tenente rechoncho e de rosto

carrancudo chamado Wolff, fez as apresentações de seus dois subtenientes e depois das inclinações de cabeça voltaram para sua conversação, derrubando a atenção em uma discussão sobre medidas de tablones e galões.

Entretanto, Yocasta não mostrou a mais mínima intenção de ficar à margem.

-Vê com o Josh, querida –me disse. Ele lhe ensinará isso tudo. vou ficar me à sombra enquanto estes cavalheiros se ocupam de seus negócios. Temo-me que este calor é muito para mim.

além dos barracos, para o centro do claro, havia duas ou três grandes fogueiras e sobre elas, suspensas por uns trípodes, umas enormes panelas que fumegavam ao sol.

-Fervem a terebintina para obter breu -explicou Josh, me levando até uma das panelas-. Uma parte se aplica aos tonéis nesse estado -fez um gesto para os

barracos, onde havia um carrinho de mão cheio de tonéis-, mas o resto se converte em breu. Os cavalheiros da Marinha nos fazem os pedidos do que vão necessitar.

79

Enquanto observava, um escravo saiu do bosque atirando de uma mula e

se dirigiu para as panelas. Outro homem se aproximou de ajudar e juntos baixaram os tonéis e os esvaziaram, de um em um, na panela.

-Com exceção de se um pouco, senhora -disse Josh, me atirando do braço-. Salpica e poderia queimar-se.

depois de ter visto o homem do bosque, a bom seguro que não queria que

me queimassem. Afastei-me olhando os barracos. Em pé, junto a uma parede, fora da vista dos homens, estava Yocasta Cameron. Tinha abandonado sua

atitude de premeditado cansaço e era evidente que estava escutando tudo o que lhe interessava.

Josh viu a expressão de surpresa em meu rosto.

-A senhorita Eu detesta não poder encarregar-se das coisas -murmurou com pesar-. Eu nunca a vi, mas a jovem Fedra me contou o que ocorre quando o ama não pode dirigir algo: renega como um carreteiro e golpeia e chuta o que lhe

põe por diante. -Deve ser um espetáculo impressionante -murmurei-. Mas o que é o que

não pode controlar? -Dava a impressão de que, cega ou não, Yocasta Cameron dirigia sua gente, sua casa e seus campos, sem nenhum problema.

-É a maldita Marinha. Não lhes contou por que veio hoje aqui?

antes de que pudesse entrar na fascinante questão de por que Yocasta Cameron queria dirigir à Marinha britânica, interrompeu-nos um grito de alarme

da outra ponta do claro. Voltei-me para olhar e quase me choquei com um grupo de homens meio nus, que corriam aterrados para os barracos.

Se não era uma explosão, parecia-o; choviam partes de madeira queimada

em meio de uma tremenda gritaria. Jamie e seus companheiros apareceram rapidamente.

-Está bem, Sassenach?

Agarrou-me do braço, me observando com ansiedade. -Sim, estou bem -respondi confundida-. O que aconteceu?

-Não sei -respondeu e seguiu olhando ao redor-. Onde está Ian? -Não sei. Não pensará que teve algo que ver com isto, verdade? Limpei-me as partículas de carvão que adornavam meu vestido e segui ao

Jaime até o grupo de escravos. Falavam uma mescla de gaélico, inglês e vários dialetos africanos.

Encontramos ao Ian com um dos jovens subtenientes. -Tenho entendido que isto acontece freqüentemente -dizia o subteniente-.

Embora eu não o tinha visto antes. Que surpreendente explosão, verdade?

-O que é o que acontece freqüentemente? -perguntei. -A explosão do breu -explicou o jovem, dirigindo-se a mim. Era baixo, de

bochechas rosadas e da idade do Ian-. Fazem fogo com carvão de lenha debaixo

de uma grande panela de breu e o cobrem com terra e turfa para manter o calor, mas deixando acontecer o ar por umas gretas para que o fogo não se apague. O

breu se reduz ao ferver e corre através de um tronco oco até o tonel. Vê? -A dificuldade está em regular a corrente de ar –continuou o pequeno

subteniente-. Se o ar for escasso, o fogo se apaga; se for excessivo, arde com tal

energia que não se pode controlar e faz que estalem os vapores. Onde estará o escravo que devia ocupar do fogo? Espero que o pobre não esteja morto.

Não tinha feridos. Eu tinha controlado aos que nos rodeavam e tinham

saído ilesos, ao menos por esta vez. -Tia! -exclamou Jamie, recordando de repente a Yocasta.

80

voltou-se apressadamente para os barracos, mas se deteve aliviado. Estava

ali, rígida e em pé, visível por seu vestido verde. Quando nos aproximamos, descobri que estava furiosa. Durante a

explosão, todos a tinham esquecido; incapaz de mover-se teve que esperar, indefesa, sem poder fazer nada.

Recordei o que me tinha contado Josh sobre o caráter da Yocasta mas era

toda uma senhora e não ia fazer uma cena em público, por mais indignada que estivesse.

Josh se desculpou por não ter estado com ela, mas Yocasta lhe tirou importância, com brutalidade e impaciência.

-Farquard, onde está?

O senhor Campbell se aproximou e pôs a mão da Yocasta em seu braço. -Não houve danos, querida -tranqüilizou-a-. Não feriu, só um tonel de breu

destruído.

-Bem -respondeu, relaxando-se um pouco-. Onde está Byrnes? -perguntou-. Não ouvi sua voz.

-O contramestre? -perguntou o tenente Wolff, secando o suor do rosto-. Estava-me perguntando o mesmo.

-Espero que esteja no moinho -respondeu Campbell-. Um escravo me disse

que tinham problemas com a folha principal da serra. Sem dúvida se está ocupando disso.

-Acredito que há uma cesta com o almoço -interveio Jamie-. Talvez sirva para que o tenente se refresque um pouco enquanto eu me ocupo disto.

Era a sugestão adequada para acalmar a Yocasta e o tenente Wolff se

sentiu contente ante a possibilidade de almoçar. -De acordo, sobrinho. -endireitou-se e com ar autoritário fez um gesto em

direção à voz do Wolff-. Tenente, seria tão amável de me acompanhar?

Durante o almoço me inteirei de que as visitas do tenente eram periódicas,

já que estavam redigindo um contrato para a compra e entrega de provisões navais. A tarefa do Wolf consistia em assinar e controlar este tipo de acordos com os donos das plantações, desde o Cross Creek até a fronteira da Virginia. O

tenente Wolff decidia a plantação mais adequada. -Se em algo devo reconhecer a excelência escocesa -proclamava com

pomposidade detrás tomar um bom gole de seu terceiro copo de uísque- é na produção de bebida.

Wolff fez um infrutífero intento de reprimir um arroto e se voltou para mim,

convencido de seus encantos. -Em muitos outros aspectos -continuou em tom confidencial- são lentos e

teimosos, um par de rasgos que os faz inadequados para...

Naquele momento, o mais jovem dos subtenientes, vermelho de vergonha, derrubou uma fonte com maçãs, o que serve para que seu chefe não terminasse a

frase, embora desgraçadamente, não para que deixasse de falar. -Parece-me que você, em que pese a suas alianças, não é escocesa, não,

senhora? Sua voz é mais melodiosa, sem rastro desse acento bárbaro.

-Ah..., obrigado -murmurei, me perguntando que ardil da incompetência administrativa tinha enviado à tenente a ocupar-se dos negócios da Marinha no vale do rio Cape Fear, possivelmente o lugar do Novo Mundo onde havia mais

escoceses das montanhas. Começava a entender o que tinha querido dizer Josh com isso da maldita

Marinha.

81

A conversação continuou sem maiores incidentes, obrigado a que os dois

subtenientes vigiavam a bebedeira de seu chefe. Tinham que ocupar-se de que chegasse são e salvo ao Cross Creek. Não sente saudades que necessitasse dois

ajudantes. -O senhor Fraser parece havê-lo solucionado tudo -murmurou o major dos

ajudantes-. Não lhe parece, senhor?

-O que? Ah, sim, sem dúvida. Wolff tinha perdido interesse por tudo o que não fora uísque. Era certo,

Jamie, com a ajuda do Ian, tinha posta ordem no claro e organizado aos homens. Invejava-o; era preferível estar trabalhando que almoçar com o tenente Wolff.

-Sim, tem-no feito muito bem.

Os olhos ardilosos do Campbell percorreram o lugar e logo voltaram para a mesa. Observou ao Wolff e apertou a mão da Yocasta. Sem voltar a cabeça se dirigiu ao Josh, que aguardava em um rincão.

-Ponha essa garrafa na alforja do tenente, moço -disse, dirigindo um encantador sorriso ao Wolff-. Não quero que se desperdice.

O Senhor Campbell se esclareceu garganta. -Já que tem que ir-se logo, senhor, talvez poderíamos nos ocupar agora de

seus requerimentos. Wolff pareceu um pouco surpreso para ouvir que devia

partir, mas seus ajudantes começaram a preparar papéis e alforjas. Wolff olhou com rosto carrancudo o papel que lhe punham diante.

-Aqui, senhor -murmuro o ajudante major. O tenente apurou sua taça e sorriu vagamente com o olhar perdido. O mais

jovem dos ajudantes fechou os olhos com resignação.

-Bom, e por que não? -disse o tenente com temeridade e molhou a pluma para assinar.

-Não deseja te lavar e te trocar de roupa, sobrinho? –Yocasta franziu delicadamente o nariz-. Empresta a breu e carvão de lenha.

-Minha higiene pode esperar -respondeu- Primeiro, desejaria conhecer o significado desta pequena comédia. -Cravou os olhos no senhor Campbell-. Trouxeram-me para o bosque com o pretexto de cheirar a terebintina e antes de

que me desse conta de onde estava, encontro-me sentado com a Marinha britânica, opinando sobre assuntos que não conheço enquanto me chutam por

debaixo da mesa como se fora um macaco amestrado. Yocasta sorriu e Campbell deixou escapar um suspiro. -Aceite minhas desculpas, senhor Fraser, por isso parece um monstruoso

engano para sua boa vontade. Ante sua chegada tão repentina não tivemos tempo de falar. Estive no Averasboro até ontem de noite; quando me avisaram de sua chegada já era muito tarde para cavalgar até aqui e lhe pôr à corrente das

circunstâncias. -Bom, como parece que agora temos um pouco de tempo, convido-lhe a que

o faça -disse Jamie. -por que não nos sentamos primeiro, sobrinho? -indicou Yocasta-. Levará-

nos um pouco de tempo explicá-lo tudo e hoje foi um dia exaustivo.

Jamie respirou profundamente e pareceu algo mais tranqüilo. -Quando queira, senhor Campbell. -É um negócio com a Marinha -começou Campbell.

-É um negócio com o tenente Wolff, quererá dizer -corrigiu Yocasta, soprando com indignação.

82

-Para nosso objetivo é o mesmo. Eu, sabe bem –disse Campbell em tom

cortante. -A maior parte dos ganhos do River Run provêm, tal como há dito Yocasta,

da venda da madeira e a terebintina e o melhor cliente é a Marinha britânica. Mas a Marinha já não é o que era -explicou Campbell, sacudindo a cabeça com pesadumbre-. Durante a guerra contra os franceses, qualquer homem que tivesse

uma serraria era rica. Mas nos últimos dez anos se manteve a paz e não se constrói um navio novo há cinco anos.

Suspirou ante as desagradáveis conseqüências econômicas que a paz tinha tido para eles.

Embora a Marinha seguia necessitando breu, terebintina e mastros, agora

podia escolher a quem o comprava. Os contratos com a Marinha se renovavam trimestralmente e deviam ser

controlados e aprovados por um oficial, neste caso Wolff. O oficial não era fácil de

tratar e Héctor Cameron se encarregou dele, até sua morte. -Héctor bebia com ele -explicou Yocasta com brutalidade-. E quando partia,

colocava-lhe uma garrafa nas alforjas. Desgraçadamente a morte do Héctor influiu nos negócios. depois da morte do Cameron, o tenente Wolff foi apresentar lhe suas condolências à viúva. E ao dia seguinte retornou com uma proposta de

matrimônio. -Não era eu o que lhe interessava -disse Yocasta-. Era minha terra.

Jamie decidiu, com inteligência, não fazer comentários, mas observou a sua tia com renovado interesse. Cega ou não, era uma mulher surpreendente. além da beleza do corpo, emanava uma sensual vitalidade que causava efeitos visíveis

no Campbell. -Suponho que isso explica a conduta ofensiva do tenente durante o almoço

-intervim-. Não há fúria como a da mulher despeitada, mas a dos homens não é

muito distinta. Yocasta voltou a cabeça, surpreendida (acredito que tinha esquecido que eu

estava ali), mas Farquard Campbell riu. -Tem razão, senhora Fraser -assegurou, com olhos faiscantes-. Os homens

são muito frágeis quando jogam com nossos sentimentos.

Yocasta lançou um bufo muito pouco feminino. -!Sentimentos! Esse homem não tem sentimentos mais que para o conteúdo

de uma garrafa. Jamie observava ao Campbell com maior interesse. -Já que falamos de sentimentos, tia -disse-, posso perguntar pelos

interesses de seu amigo? Campbell lhe devolveu o olhar. -Tenho uma esposa em casa, senhor -disse com secura- e oito filhos; o

major talvez seja maior que você. Conheci o Héctor Cameron faz mais de trinta anos e farei tudo o que possa por sua esposa, pela amizade que unia a ele e a que

une a ela. -Farquard foi uma grande ajuda para mim, Jamie -disse com um toque de

recriminação-. Não tivesse podido sair adiante sem sua ajuda depois da morte do

pobre Héctor. -Claro -disse Jamie, com um toque de cepticismo-. E estou seguro de que

devo estar tão agradecido como o está minha tia. Mas sigo me perguntando qual é

minha parte neste assunto.

83

Campbell tossiu discretamente e continuou com sua história. Yocasta se

tinha afastado do Wolff, fingindo um desmaio, e não saiu de seu dormitório até que o tenente partiu ao Wilmington.

-Aquela vez, Byrnes preparou os contratos e bem que os complicou -assinalou Yocasta. .

-Ah, Byrnes, o capataz invisível. E onde estava esta manhã?

Um sorriso zombador apareceu no rosto do Campbell. -Temo-me que o senhor Byrnes, embora habitualmente é um capataz

competente, compartilha a mesma debilidade que o tenente Wolff. Mandei-o a procurar o serraria, mas o escravo retornou para me dizer que estava bêbado e não o podiam despertar.

Yocasta soprou de novo e Campbell a olhou afetuosamente antes de voltar-se para o Jamie.

-Sua tia só necessita que Ulises a ajude com os documentos para ser capaz

de levar seus próprios assuntos. Entretanto, como terá observado, há problemas físicos que são importantes.

-Isso foi o que me assinalou o tenente Wolff -disse Yocasta, fazendo uma careta ante a lembrança-. Que não podia pensar em me ocupar de minha propriedade sendo só uma mulher e além cega. Não podia depender do Byrnes se

não era capaz de ir ao bosque para controlar o que o homem fazia ou deixava de fazer.

-O qual é bastante certo -interveio Campbell com pesadumbre-, Entre nós há um provérbio: «A felicidade é ter um filho o bastante major para responsabilizar-se das coisas». Quando se trata de dinheiro ou escravos, não pode

confiar em ninguém que não seja de seu sangue. -E aí é onde aparece Jamie -pinjente-. Tenho razão? -Fiz que Farquard informasse ao Wolff de que meu sobrinho tinha chegado

para ocupar-se do River Run. Isso faria que obrasse com cautela –explicou-. Não se atreveria a me pressionar com um parente em casa, me protegendo.

-Já vejo. -Até a seu pesar, Jamie começava a divertir-se-. Então o tenente pensará que seus intentos de instalar-se aqui se irão ao traste com minha chegada. Não é estranho que lhe tenha cansado tão mal. Por isso disse acreditei

que se estava colocando com os escoceses em geral. -Imagino que agora será assim -disse Campbell.

Yocasta estirou a mão procurando a do Jamie instintivamente. -Perdoa-me, sobrinho? -disse-. antes de que chegasse não conhecia seu

caráter. Não podia me arriscar a que te negasse se lhe dizia isso antes. me diga

que não me guarda rancor, Jamie, embora seja pela memória da doce Ellen. Jamie oprimiu sua mão com carinho, assegurando que não lhe guardava

nenhum rancor. De fato, alegrava-se de poder ajudá-la e sua tia podia contar com

ele para o que fizesse falta. O senhor Campbell resplandecia de alegria e tocou a campainha para que

Ulises trouxesse o uísque especial. Ao olhar aquele rosto, belo e cheio de expressividade apesar da cegueira,

recordei o que uma vez Jamie me havia dito sobre as características de sua

família. -Os Fraser são teimosos como rochas e os MacKenzie encantados como as

cotovias do campo, mas também ardilosos como as raposas.

84

-Onde estiveste? -perguntou Jamie, olhando ao Fergus de cima abaixo com

severidade-. Não acredito que tenha tido o dinheiro suficiente para fazer o que parece que esteve fazendo.

-Encontrei-me com um par de franceses no povo, comerciantes de peles. Falavam muito pouco inglês, assim que lhes ajudei em seus negócios. Logo quiseram me convidar a compartilhar uma comida em sua estalagem... -Fez um

gesto para lhe tirar importância e procurou uma carta que guardava em sua camisa-. Chegou ao Cross Creek para ti -disse, entregando-lhe ao Jamie.

O rosto do Jamie se iluminou ao vê-la e a abriu com certa ansiedade. Havia três cartas: em uma reconheci a letra de sua irmã; as outras dois pertenciam a outra pessoa.

-vou começar com o Ian -disse, agarrando a segunda carta com uma careta irônica-. Não estou seguro de querer ler o que me escreve Jenny sem um copo de uísque na mão.

Pu-me em pé e me coloquei detrás de sua cadeira para olhar por cima do ombro. A letra do Ian Murray era clara e grande, fácil de ler até a certa distância.

Querido irmão: Aqui estamos todos bem e damos graças a Deus pelas notícias de sua

chegada às colônias. Envio esta carta em nome da Yocasta Cameron, esperando que estejam em sua companhia.

Jenny te pede que saúdes afetuosamente à tia. Terá-te dado conta de que já recuperaste o afeto de minha esposa, pois deixou que fazer referências à castração, o qual deve ser um grande alívio para ti.

Arrumamo-nos isso para alimentar a todos, embora a cevada sofreu muito pelo granizo e dois meninos morreram na aldeia por causa da disenteria.

Uma nota alegre: notícias do Michael de Paris, os negócios prosperam e

pensa casar-se logo. E também o nascimento de meu último neto, Anthony Brian Montgomery Lyie. Seu pai, Paúl, é soldado e está na França. Maggie e o menino

estão conosco. Veio a nos visitar Simón, lorde Lovat, junto com seus companheiros. Outra

vez está recrutando soldados para o regimento que comanda. Simón nos contou

histórias sobre a reputação que adquiriram nas colônias por sua valentia na luta contra os índios e os malvados franceses, embora duvide muito da verdade de

tudo o que diz. Jamie riu zombador e deu a volta à folha. A carta continuava no mesmo

tom, com notícias da família, toda classe de informações sobre a granja e assuntos da comarca. A emigração, escrevia Ian, tornou-se uma epidemia.

A segunda carta também estava escrita pelo Ian, mas punha «Pessoal»

debaixo do selo azul. -E isto o que será? -murmurou Jamie, rompendo o selo.

A carta começava sem introdução. Agora, irmão, um assunto que me preocupa. Escrevo-te por separado para

que possa compartilhar com o Ian a carta larga sem lhe ensinar esta. Em sua última carta, falava de mandar ao Ian em um navio desde o

Charleston. Se isso já aconteceu, é obvio que o receberemos com alegria.

Entretanto, se não fora assim, nosso desejo é que permaneça contigo, se não ser uma moléstia para ti e para o Claire.

85

-Molesto para mim -murmurou Jamie e contemplou ao Ian pela janela,

jogando e derrubando-se pela erva junto a Cilindro e dois jovens escravos. Murmurou e seguiu lendo.

mencionei ao Simón Fraser e a causa de sua presença aqui. Não lhe resulta

difícil recrutar jovens que aceitem os xelins do Rei. O que outra possibilidade há aqui para eles? Pobreza e necessidade, sem esperança de melhorar. Para que vão se ficar aqui onde não têm nada para herdar e lhes proíbem o uso da roupa

escocesa ou o direito a ter armas? por que não foram aproveitar a oportunidade de receber uma espada para lutar?

Jamie levantou a vista e me olhou com uma sobrancelha arqueada. -Alguma vez teria pensado que Ian podia ser tão poético, verdade?.

O jovem Jamie e Michael estão bem, ao menos a nenhum dos duas os

prova a vida de soldado. Mas Ian é diferente; já conhece moço e seu espírito de

aventura, tão similar ao teu. Aqui não há trabalho para ele. E o que faria em um mundo que lhe oferece a possibilidade de escolher entre ser mendigo ou soldado?

Por isso, preferimos que fique contigo, se você o aceitar. No Novo Mundo

terá mais oportunidades e, embora não fora assim, ao menos sua mãe se evitará a dor de ver partir para seu filho com o regimento.

Não posso pedir melhor tutor ou exemplo para ele que você mesmo. Sei que te estou pedindo um grande favor. Entretanto, espero que a situação também seja benéfica para tí, à parte, é obvio do «grande prazer» de gozar da companhia

do Ian.

-Não é só um poeta, também é um humorista -fez notar Jamie. Espero, irmão, que meus pensamentos lhe resultem claros, embora tema te

ofender ao pedir este favor. O que me preocupa é que, pese ao afeto que nos une, vi em seus olhos a

mesma frieza de aço que têm os olhos do Simón. E isso tem feito que muitas

vezes temesse por sua alma. Não falei com o Jenny disso, mas ela também o viu. É uma mulher e, além

disso, conhece-te melhor que eu. Acredito que essa foi a causa de que pusesse no caminho ao Laoghaire. Não acreditei que saísse mau, mas (havia uma larga tachadura). Tem sorte de ter ao Claire. Falei-te que o Simón; seu único laço com

a humanidade, agora, é ocupar-se de seus homens. Esse homem tem fogo em seu interior, mas não tem coração. Espero que nunca tenha que dizer isso de ti ou do

jovem Ian. Deus benza a todos. Escreve logo que possa. Desejamos ter notícias tuas e das exóticas regiões que agora habita.

Seu carinhoso irmão, Ian Murrai

Com cuidado, Jamie dobrou a carta e a guardou no bolso. -Mmm -foi seu comentário.

11 A lei do derramamento de sangue

86

Julho de 1767 Pouco a pouco, fui acostumando ao ritmo de vida do River Run. A presença

dos escravos me turvava, mas era muito pouco o que podia fazer a respeito, salvo utilizar o menos possível seus serviços, me ocupando de minhas coisas.

No River Run se gabavam de ter um pequeno lugar onde se secavam as

ervas e guardavam os remédios. A Yocasta adorou que eu queria utilizá-lo. Ela não tinha talento para os remédios, explicou com um encolhimento de ombros, e

os escravos tampouco. -Há uma mulher nova, que pode ter alguma habilidade nesse tema –disse-.

Não é uma pulseira da casa; veio diretamente da África faz um par de meses e

não tem maneiras, nem sabe falar. Tinha pensado em ensiná-la, mas já que está você aqui...

Enquanto passava parte do dia conversando com a Yocasta e tentando

aprender dela a arte de fiar lã, Jamie estava com o Ulises que, além de ser os olhos da Yocasta e o mordomo da casa, levava as contas da plantação da morte

do Héctor Cameron. -Fez muito bom trabalho -disse-me Jamie em privado-. Se fosse um homem

branco minha tia não teria tido problemas em que fora ele quem se encarregasse

de seus assuntos. Mas sendo assim... -encolheu-se de ombros. -Mas sendo assim, é uma sorte para ela que você esteja aqui -pinjente.

-É o menos que posso fazer -respondeu com os olhos cravados nas botas que lustrava. Seus lábios se endureceram por um momento-. Por outra parte, tampouco tenho nada mais que fazer, verdade?

-Um jantar -declarou Yocasta, poucos dias depois-. Tenho que dar uma

festa para lhes apresentar às pessoas do condado.

-Não faz falta, tia -disse brandamente Jamie, levantando a vista de seu livro-. Acredito que já conheci a maioria a semana passada na compra de

madeiros. Ou ao menos à parte masculina -acrescentou com um sorriso. -Não me importaria conhecer alguém mais -admiti-. Não é que não tenha

muitas ocupações aqui -assegurei a Yocasta-, mas...

-Mas não das que lhe interessam -respondeu com um sorriso que suavizou o comentário-. Acredito que você não gosta de muito o trabalho com as agulhas.

-Claro que gosta das agulhas -assinalou Jamie, fechando seu livro e sonriéndome-. Mas ao Claire gosta mais costurar feridas. Suponho que esteve inquieta estes dias porque só teve uma cabeça golpeada e um caso de

hemorroides. -Ja, ja -pinjente, embora em realidade tinha razão-. Espero que Marsali

esteja bem -disse para trocar de tema.

Fergus, convencido ao fim de que Jamie não o necessitaria por um tempo, foi-se rio abaixo, para o Wilmington, onde embarcaria rumo à Jamaica. Se tudo

saía bem, retornaria na primavera com o Marsali e a criatura. -Eu também -respondeu Jamie-. Disse ao Fergus... Yocasta voltou a cabeça para a porta.

-O que acontece, Ulises? Absorta na conversação, não tinha notado os passos no corredor. De novo,

assombrou-me a acuidade do ouvido da Yocasta.

-O senhor Farquard Campbell -disse com calma o mordomo. A familiaridade do Campbell com a casa ficou demonstrada, pensei, porque

não esperou a que Ulises lhe convidasse a entrar.

87

-Eu, senhora Fraser -disse com uma leve inclinação para nos saudar-. Para

lhe servir, senhor-disse dirigindo-se ao Jamie. -O que acontece, Farquard? ocorreu algo?

Yocasta se inclinou com o rosto cheio de ansiedade..respondeu bruscamente-. Um acidente na serraria. vim a lhe pedir à senhora Fraser...

-Sim é obvio. Deixe que procure minha caixa. Ulises, pode fazer que alguém

me traga um cavalo? Pu-me em pé com rapidez, mas Campbell me deteve com um gesto.

-Não é necessário que venha, senhora Fraser. Se seu marido pode trazer algumas de seus remédios, acredito que...

-Claro que vou -afirmei.

-!Não! -exclamou bruscamente e todos o olhamos. Seus olhos procuraram os do Jamie e fez uma careta-. Não é assunto para senhoras. Mas agradeceria muito sua companhia, senhor Fraser.

Yocasta se tinha posto em pé antes de que eu pudesse protestar, aferrando-se ao braço do Campbell.

-O que passou? -perguntou-. É um de meus negros? Byrnes fez algo? Campbell olhou de esguelha ao Ulises e logo a Yocasta. Como se tivesse

recebido uma ordem, o criado abandonou a habitação.

-É um assunto de derramamento de sangue. Eu -disse com calma-. Não sei de quem, nem como aconteceu, nem sequer a seriedade da ferida. O moço do

MacNeill veio a me buscar. Quanto ao outro... -encolheu-se de ombros, vacilando-. É a lei.

-E você é o juiz! -estalou-. Pelo amor de Deus, não pode fazer nada?

-Não! -disse com brutalidade e logo, com mais amabilidade, repetiu-: Não. -Agarrou-lhe a mão e a sustentou com força-. Sabe que não posso. Se pudesse...

-Se pudesse, não o faria -disse com amargura. Liberou sua mão e deu um

passo atrás com os punhos crispados-. Vê, então. Chamaram-lhe para que seja o juiz; vê e lhes dê o julgamento que querem.

Girou sobre seus talões e abandonou a habitação agitando sua saia com fúria.

foi seguir a mas o deteve o ruído de uma portada. Deixou escapar um

suspiro e se voltou para o Jamie. -Vacilei antes de lhe pedir este favor, senhor Fraser, já que nos conhecemos

pouco. Mas lhe agradeceria que me acompanhasse. Já que a senhora Cameron não poderá estar presente, você poderia representá-la neste assunto...

-Mas qual é o assunto, senhor Campbell? –interrompeu Jamie.

-É a lei desta colônia. Se um negro atacar a uma pessoa branca e a faz sangrar, deve morrer por seu delito. -Fez uma pausa a contra gosto-. Felizmente, estas circunstâncias são pouco habituais. Mas quando ocorrem... -deteve-se com

os lábios rígidos-. Devo ir. Quer vir, senhor Fraser? -Irei -respondeu bruscamente.

Foi até o aparador e abriu a gaveta onde estavam guardadas as pistolas de duelo do defunto Héctor Cameron.

-Há algum perigo? -perguntei ao Campbell.

-Não posso dizer-lhe senhora Fraser -disse Campbell, encolhendo-se de ombros-. Donaid MacNeill só me disse que houve uma briga na serraria e que era um assunto relacionado com a lei de derramamento de sangue. Pediu-me que

fora em seguida para julgar e presenciar a execução e foi se procurar aos outros proprietários antes de que pudesse lhe tirar mais informação.

88

-Execução? Quer dizer que têm a intenção de executar a um homem sem

saber o que fez? -Eu sei o que fez, senhora Fraser! -Campbell levantou a mandíbula,

tragando com dificuldade em um esforço por controlar-se-. Peço-lhe perdão, senhora. Sei que você é nova aqui e encontrará nossos métodos duros, e inclusive desumanos, mas...

-Claro que os encontro desumanos! Que classe de lei é a que condena a um homem...?

-Um escravo. -Um homem! Condená-lo sem um julgamento, sem uma investigação. Que

classe de lei é essa?

-Uma má lei, senhora! -respondeu furioso-. Mas é a que há e eu sou o encarregado de que se cumpra. Senhor Fraser, está preparado?

-Sim, estou-o. -Jamie terminou de guardar as pistolas e as munições nos

bolsos de seu casaco e se endireitou-, Sassenach, vou Y... -!Jamie por favor! Não vá, não pode formar parte disto!

-Calma -apertou-me a mão-. Já sou parte disto. É a propriedade de minha tia e seus homens estão envoltos. O senhor Campbell tem razão, sou seu parente. É meu dever ir, ao menos para ver o que acontece. Estar ali...

Vacilou, como se fora a dizer algo mais, mas me oprimiu a mão e a soltou. -Então, vou contigo -pinjente com tranqüilidade.

-Esperava que o fizesse, Sassenach. vá procurar sua caixa, quer? vou ocupar me dos cavalos.

Encontramo-nos com o Andrew MacNeill no caminho. Estava com seu cavalo à sombra de um castanho.

-Não o disse Campbell? -perguntou, olhando com desgosto ao Jamie-. Isto

não é um assunto para mulheres, senhor Fraser. -Vocês o chamam assunto de derramamento de sangue, não? -perguntou

Jamie-. Minha esposa é ban-lighiche, viu a guerra e coisas piores. Se desejarem que eu vá, ela virá comigo.

MacNeill apertou os lábios, mas não discutiu mais.

-MacNeill, por favor, nos informe deste desgraçado assunto. -Campbell adiantou seu cavalo ficando entre o Jamie e MacNeill-. O senhor Fraser acaba de

chegar, como já sabe, e seu moço só me disse que era um assunto de derramamento de sangue. Não conheço mais detalhes.

Contou-nos a história enquanto cavalgávamos: Byrnes, o capataz da

serraria, tinha tido uma briga com um de quão escravos trabalhavam com a terebintina. Este último, armado com o comprido faca que utilizava em sua

tarefa, tinha tentado resolver o assunto cortando a cabeça do Byrnes, mas solo conseguiu lhe cortar uma orelha.

-Foi como se descascasse um pinheiro -disse MacNeill com certa

complacência-. Cortou-lhe a orelha e parte da cara. O certo é que não piorou muito a bolsa de pus que tem por cara.

Era evidente que Byrnes não estava muito bem visto pelos donos das

plantações locais. O capataz tinha pedido ajuda lançando alaridos. Entre dois clientes e vários

escravos tinham podido submeter ao atacante. Uma vez estancada a ferida e o escravo encerrado em uma cabana, o jovem MacNeill (que tinha ido procurar uma serra e se encontrou, inesperadamente, no meio do drama) foi enviado

imediatamente a dar a notícia nas plantações vizinhas.

89

-Você não deve saber -explicou Campbell, dirigindo-se ao Jaime- que

quando executam a um escravo, avisa-se às plantações vizinhas para que todos os escravos atiram à execução. É uma boa maneira de impedir futuras desgraças.

-Já entendo -disse amavelmente Jamie-. Acredito que essa era a teoria da Coroa quando executou a meu avô no Tower Hill, depois da insurreição. E sem dúvida é muito efetivo, pois todos meus parentes se comportam bem após.

MacNeill captou a mensagem e sua nuca avermelhou até parecer o cangote de um peru. Campbell lançou uma risada curta e seca antes de dá-la volta.

-Que escravo foi? -O jovem Donaid não o disse. Mas deve saber tão bem como eu que tem que

ter sido esse patife do Rufus.

Campbell agachou a cabeça ao inteirar-se. -Yocasta o sentirá muito quando se inteirar -murmurou. -A culpa é dela -disse MacNeill, espantando brutalmente um tábano que se

posou sobre sua bota-, Byrnes não é capaz de ocupar-se nem dos porcos e muito menos de dirigir negros. Hei-lhes isso dito muitas vezes.

-Sim, mas Héctor o contratou -protestou Campbell-. E ela não podia lhe jogar. O que ia fazer, dirigir ela sozinha o lugar?

-Há poucas coisas piores que uma mulher teimosa –disse MacNeill, um

pouco mais alto do necessário-. Não podem culpar a ninguém, salvo a si mesmos, se ocorrer algo.

-Mas -intervim, elevando a voz para me fazer ouvir por cima do ruído dos cavalos-, se lhes ocorrer algo por causa de algum homem, a satisfação de lhe culpar a ele é a compensação adequada?

Jamie soprou divertido; Campbell lançou uma risada entrecortada e golpeou ao MacNeill nas costelas com o punho do látego.

-O que diz a isso, Andrew! -disse.

MacNeill não respondeu, mas seu pescoço ficou ainda mais vermelho. Continuamos em silêncio.

«Uma má lei», tinha-a chamado Campbell, mas apesar de todo a lei. Entretanto minhas mãos tremiam e suavam, não por pensar na atrocidade judicial, mas sim por me perguntar o que faria Jamie.

Não podia ler nada em seu rosto. Cavalgava depravado, com a mão esquerda nas rédeas e a direita sobre a coxa, perto do vulto da arma que

guardava baixo seu casaco. Nem sequer estava segura de que me consolasse que me tivesse permitido

lhe acompanhar. Podia significar que não esperava ter que cometer nenhuma

ação violenta. Então permitiria que seguissem adiante com a execução? Era evidente que, tanto Campbell como MacNeill, consideravam que isto era

problema do Jamie. Mas e ele? Considerava-o assim? Jamie não era um

montanhês fechado, disse-me, era um homem culto, bem educado, que tinha viajado e sabia muito bem o que eu pensava sobre aquele assunto. Entretanto,

tinha a terrível sensação de que minha opinião ia contar muito pouco no que fora que pensava fazer.

O chapéu do Jamie se enganchou em um ramo e saiu voando. Pude ver seu

rosto antes de que o resgatasse para cobrir-se outra vez. Estava tenso e a ansiedade lhe marcava as linhas da cara. Pensei que tampouco ele sabia o que ia fazer; isso foi o que mais me assustou. Então chegamos ao bosque de pinheiros e

foi como inundar-se nas profundidades de um mar verde e tranqüilo.

90

Enquanto me perguntava o que teriam feito com a orelha do Byrnes,

surpreendeu-me um zumbido que não era devido às cigarras. Campbell, que ia à cabeça, deteve-se de repente a escutar e o resto o imitamos.

Eram vozes que chegavam de longe, muitíssimas vozes formando um zumbido profundo e enfurecido, como um enxame de abelhas.

Galopamos pela última ladeira para chegar até o claro da serraria. Estava

cheio de gente: escravos, empregados, mulheres e meninos, formando redemoinhos-se entre as madeiras.

Então perdi a consciência da multidão e toda minha atenção se dirigiu para um lado da serraria, onde tinham instalado uma espécie de grua com polias, com um enorme gancho curvado para levantar os troncos.

O corpo de um homem negro estava empalado no gancho agitando-se como um verme. Havia um atoleiro na plataforma e seu aroma, doce e quente, estendia-se pelo ar.

Fiquei petrificada, incapaz de me mover. Havia outros homens na plataforma próxima, entre eles um pequeno, com a cabeça grotescamente

enfaixada e manchas de sangue em um lado, rodeado por brancos e mulatos armados com paus e mosquetes que ameaçavam à multidão.

Não era porque desejassem aproximar-se, a não ser justamente o contrário;

parecia haver uma urgência geral para afastar-se dali. As expressões dos rostos foram do medo ao desespero, passando pela ira..., ou era satisfação?

Farquard Campbell se aproximou da plataforma, seguido pelo MacNeill, agitando as mãos e gritando algo que não entendia aos homens armados com paus. Jamie chegou até a plataforma e subiu atrás deles, ajudando ao MacNeill.

Campbell se situou frente a Byrnes. -... uma brutalidade inqualificável! -gritava. Suas palavras chegavam entrecortadas, mas vi como assinalava

enfaticamente o gancho. O escravo tinha deixado de debater-se e pendurava inerte.

Observei ao Jamie que, depois de avaliar os fatos, tirou as duas pistolas, comprovou que estivessem carregadas, deu um passo para diante e apoiou uma na cabeça enfaixada do Byrnes. O capataz ficou rígido.

-Baixa-o -ordenou Jamie ao valentão mais próximo, em voz o bastante forte para fazer-se ouvir por cima do tumulto-. Se não o fizer, voarei o que fica da cara

de seu amigo. E logo... Levantou a segunda pistola e apontou ao peito do homem. O homem se moveu a contra gosto, com os olhos cravados na pistola.

Agarrou a alavanca que controlava o mecanismo e o fez funcionar. O gancho descendeu lentamente e, quando o corpo chegou ao chão, ouviu-se um suspiro coletivo entre a gente.

Estava vivo e seu peito se movia com curtos ofegos. O gancho tinha atravessado o estômago, passando através da parte baixa da caixa torácica e

saindo pela parte traseira, a

Par, dos rins. Sua pele tinha adquirido um aterrador azul cinzento e os lábios uma cor argilosa.

-Shh -pinjente brandamente. Seus olhos, com as pupilas dilatadas, delatavam uma profunda

incompreensão.

Não havia sangre em sua boca, o que indicava que os pulmões não tinham sido danificados. A respiração era ofegante mas rítmica, o diafragma também

91

estava intacto. Minhas mãos o percorreram com suavidade enquanto minha

mente tratava de avaliar os danos. detrás de mim se desatou uma discussão; uma pequena parte de meu

cérebro registrou que os companheiros do Byrnes, capatazes de duas plantações vizinhas, censuravam vigorosamente ao Campbell.

-... uma flagrante violação da lei! Terão que dar conta disto ante a Corte,

cavalheiros, podem estar seguros de que será assim! -Qual é o problema? -perguntou uma voz grave e mal-humorada-. Há

derramamento de sangue... e mutilação! Byrnes tem seus direitos! -Não para tomar esta decisão -interveio MacNeill-. Canalhas, isso é o que

são, não são melhores que...

-Necessita algo, Sassenach? Não o tinha ouvido chegar. -Não sei-pinjente.

Ouvia as discussões, mas a única realidade estava baixo minhas mãos. Um pensamento nublou minha mente; não era seguro que pudesse manter ao homem

com vida; em meio de meus pensamentos apareceu tudo o que podia sair mau: uma hemorragia ao tirar o gancho era o mais imediato. Hemorragias internas, intestino perfurado, peritonitis e várias possibilidades mais.

-Ilegalidade! -dizia Campbell; sua voz aumentava de tom com a discussão-. Não se pode tolerar, não importa qual seja a provocação. Podem estar seguros de

que todos vocês terão que prestar contas sobre isto! Ninguém emprestava atenção ao verdadeiro objeto da discussão. Só tinham

acontecido uns segundos e tinha poucos mais para atuar. Coloquei uma mão

sobre o braço do Jaime apartando sua atenção do debate. -Se consigo lhe salvar, deixarão que viva? -perguntei em um sussurro. Seu olhar percorreu aos homens que tinha a minhas costas, calculando as

possibilidades. -Não -disse, brandamente.

-me dê a terceira garrafa da esquerda -pinjente, assinalando minha caixa. Tinha duas garrafas de álcool puro e outra de brandy. Derrubei uma boa

dose de raiz em pó no brandy e o agitei. Logo me arraste até a cabeça do homem e

apertei a garrafa contra seus lábios. Embora seus olhos estavam frágeis, tratei de me olhar neles para que me

visse. Para que?, perguntava-me enquanto o chamava por seu nome. Não podia lhe perguntar se esse era seu desejo, pois já tinha decidido por ele. Uma vez tomada a decisão já não podia pedir aprovação ou perdão.

Tragou. Uma vez. Dois. Os músculos que rodeavam sua boca se estremeceram e gotas de licor se deslizaram por sua pele. Outro gole e seu pescoço se relaxou, deixando cair pesadamente sua cabeça sobre meu braço.

Permaneci sentada, com os olhos fechados, sustentando sua cabeça e tomando o pulso por debaixo da orelha. acelerava-se, acalmava-se e voltava a

acelerar-se. A descrição do livro de texto apareceu em minha mente. Intumescimento. Formigamento. Uma sensação na pele, como se fora picada como insetos. Náuseas, dor epigástrica. Respiração dificultosa, pele fria e úmida,

palidez. Pulso débil e irregular, embora a mente permanece lúcida. Tentei não ouvir, não sentir nada salvo o batimento do coração baixo meus

dedos. Tratei com todas minhas forças de sossegar as vozes e os murmúrios, o

calor, o pó e o aroma do sangue; quis esquecer onde estava e o que fazia. «Embora a mente permanece lúcida.» «Maldita seja -pensei—. É certo.»

92

12

A volta do John Quincy Myers

Yocasta profundamente afetada pelos acontecimentos da serraria, tinha declarado que, apesar de tudo, tinha a intenção de seguir adiante com a festa que tinha planejado.

-Fará-nos esquecer tanta tristeza -disse com firmeza-. Mandarei que Fedra te faça um vestido novo. É muito boa costureira.

Pensei que necessitaria algo mais que um vestido novo e um jantar para distrair minha mente, mas calei ao ver o olhar de aviso do Jamie.

Dada a falta de tempo e de tecido adequado, Yocasta decidiu que me

arrumassem um de seus vestidos. -Como fica, Fedra? -Yocasta me olhou com o rosto carrancudo, como se

pudesse recuperar a vista por pura vontade-. Resultará?

-Está muito bem -respondeu a faxineira-. Ela é mais baixa que você, senhorita Eu, e tem algo menos de cintura. Mas seu busto é maior -acrescentou

em tom mais baixo, sonriéndome. -Sim, isso já sei -disse asperamente Yocasta, que tinha ouvido o

comentário-. Curta o sutiã, podemos aumentá-lo com encaixe de Valência sobre

seda verde. Agarra um pedaço dessa velha bata de meu marido; é da cor adequada.

-Tem uma memória notável das cores -pinjente, surpreendida. -Lembrança muita bem esse vestido -respondeu, tocando brandamente a

manga-. De que cor é seu cabelo, querida? Não lhe tinha perguntado isso.

Imagino que deve ser loiro ou um pouco parecido, mas em realidade não sei. Por favor, não me diga que tem o cabelo moreno e a pele cítrica.

Sorriu, mas sua brincadeira soou como uma ordem.

-É castanho -pinjente, um pouco coibida, me tocando o cabelo-. Embora com mechas mais claras.

Franziu o sobrecenho, como se considerasse se podia ser aceitável ou não. voltou-se para a faxineira procurando ajuda.

-Está muito bem, senhorita Eu -disse Fedra, assentindo-. Muito bem. Tem

a pele branca, branca como o leite, e o verde brilhante lhe favorece. -Mmm. Mas as anáguas são de cor marfim. Não parecerá muito branca?

Eu não gostava que falassem como se eu fora um adorno defeituoso, mas me traguei as objeções.

-Não, senhora –disse-. Tem os maçãs do rosto altos e os olhos castanhos,

mas não cria que são da cor do barro. Recorda esse livro que tem, com fotos de animais estranhos?

-Se te referir ao Relatório de uma exploração às Índias Ocidentais -disse

Yocasta-, sim, recordo-o. Ulises me leu isso o mês passado. Quer dizer que a senhora Fraser recorda a uma das ilustrações? -riu divertida.

-Mmm. -Fedra não tinha afastado os olhos de mim-. Parece-se com o grande gato -disse me olhando fixamente-. Ao tigre que olhava entre a maleza.

Por um instante, o rosto da Yocasta demonstrou surpresa.

-Vá -disse renda-se. Mas não voltou a me tocar.

Fiquei no vestíbulo arrumando o adorno de seda verde que havia sobre meu

peito. A reputação da Fedra como costureira ficou demonstrada; o vestido ficava

93

como uma luva e as franjas de cetim cor esmeralda brilhavam sobre as mais

pálidas de cor marfim. Ulises baixava pela escada com seu librea impecável. Movi-me e voltou a

cabeça observando o movimento de minhas saias. Seus olhos se dilataram com uma expressão de admiração sincera. Baixei a vista e sorri. Então lhe ouvi ofegar. Levantei a cabeça e descobri que seus olhos seguiam muito abertos e

demonstravam medo. Sua mão se aferrava com tanta força aos passamanes que seus nódulos brilhavam.

-me perdoe, senhora -disse com voz sufocada, e passo rapidamente a meu lado com a cabeça baixa.

-Que diabos...? -disse em voz alta.

Então recordei o lugar e o tempo em que estávamos. depois de tanto tempo só em uma casa com uma senhora cega e sem amo, tornou-se descuidado. Tinha esquecido seu amparo básico e fundamental, o único amparo que tinha um

escravo: um rosto inexpressivo que não manifestasse nunca seus pensamentos. Não era estranho que se assustou ao dar-se conta de como me tinha

cuidadoso. O mordomo tinha medo, embora comigo estava seguro pois me comportaria como se nada tivesse ocorrido e as coisas seguiriam como sempre. O som de uns passos na galeria interrompeu meus pensamentos.

Olhei para cima e fiquei boquiaberta. Um highlander luzindo tudo seus ornamentos é algo impressionante, não

importa a idade ou a aparência. Mas um montanhês alto, arrumado e na plenitude da vida, curta a respiração.

Não usava a saia escocesa da época do Culloden, mas seu corpo não tinha

esquecido como levá-la. -OH! -exclamei.

Por um momento o vi como a manhã em que nos casamos. A cor do tartán era quase o mesmo, quadros negros sobre um fundo vermelho e sujeito a suas costas com um broche de prata. A camisa era mais elegante, quão mesmo a

casaca e a adaga com incrustações de ouro no punho que levava na cintura. Duine nasal era o que parecia, um homem de fortuna.

-Para servi-la, senhora -disse. E descendeu o último lance da escada com um sorriso radiante. -Estas estupendo -disse com um nó na garganta.

-Não está mau -aceitou sem falsa modéstia. -É do Héctor Cameron? Senti-me ridiculamente tímida ao tocar o punho da faca.

-Agora é meu. Deu-me isso Ulises com os melhores desejos de minha tia. Captei algo estranho no tom de sua voz. Pese ao óbvio agradar de voltar-se

para vestir assim, algo lhe turvava. Toquei-lhe a mão. -O que anda mau? -Eu não diria que nada vá mau. É só que...

interrompeu-se ante o som de uns passos na escada e me apartou para deixar passar a uma pulseira com um montão de roupa branca.

-Podemos falar aqui -murmurou-. Sassenach, poderia me fazer um favor durante o jantar? Se te fizer um sinal -e se atirou do lóbulo da orelha- poderá lhes distrair? Não importa o que faça, tomba o vinho, crava a seu companheiro de

mesa com o garfo... Fez-me uma careta zombadora e isso me tranqüilizou. O que lhe

preocupava não era uma questão de vida ou morte.

-Posso fazê-lo -assegurei-lhe-. Mas o que...

94

abriu-se uma porta na galeria e a voz da Yocasta dando as últimas

indicações a Fedra chegou até nós. Para ouvi-la, Jamie me beijou e se afastou rapidamente.

-É você, querida Claire? Yocasta se deteve no último degrau, com a cabeça volta para mim. -Assim é -respondi e lhe toquei o braço para que soubesse onde estava.

-Notei o aroma de cânfora do vestido -disse em resposta a minha pergunta não formulada enquanto me agarrava do cotovelo-. Pareceu-me escutar a voz do

Jamie. Está por aqui? -Não -respondi com convicção-. Acredito que foi a receber aos convidados. -Ah! -Sua mão apertou meu braço e suspirou com uma mescla de

satisfação e impaciência-. Não sou das que se lamentam ante o irreparável, mas juro que daria um de meus olhos se conseguisse ver com o outro ao Jamie com o tartán.

Sacudiu a cabeça e os diamantes de suas orelhas refletiram a luz. Levava um vestido de seda azul escuro que contrastava com seu brilhante cabelo branco.

-Ah, bem! Onde está Ulises? -Aqui, senhora. Tinha aparecido tão rápido que não lhe ouvi chegar.

-Vamos, pois -disse agarrando-se de seu braço. Arrumei-me o cabelo e me preparei para conhecer os convidados da

Yocasta. Tinha a sensação de que me apresentariam em uma bandeja de prata, com uma maçã na boca.

A lista de convidados podia ler-se como o Quem é quem de Cape Fear River, se é que existia aquele livro. Campbell, Maxwell, Buchanan, MacNeill,

MacEachern... sobrenomes das montanhas, sobrenomes das ilhas. MacNeill de Barra Meadows, MacLeod do Islay... muitos dos sobrenomes dos donos de plantações tinham o sabor de seus orígenes, quão mesmo seu acento. O gaélico

ressonava nos altos tetos. Eram muito poucos quão convidados não eram escoceses: um qualquer,

corpulento e sorridente, com o pitoresco nome do Hermon Husband; um

cavalheiro alto e enxuto chamado Hunter e, para minha surpresa, Phillip Wylie, imaculadamente vestido, com peruca e empoeirado.

-Assim voltamos a nos encontrar, senhora Fraser –fez notar, retendo minha mão muito mais tempo do socialmente correto-, Confesso que estou encantado de voltar a vê-la!

-O que está fazendo aqui? -perguntei, quase com grosseria. Sorriu com descaramento.

-Trouxe-me meu anfitrião, o nobre e poderoso senhor MacNeill de Barra Meadows, a quem acabo de comprar um excelente par de tordos. Permite-me lhe dizer, senhora, o bem que lhe sinta a cor verde?

-Suponho que não poderia evitá-lo. -Isso, por não falar do efeito das luzes em sua pele. «Seu pescoço é uma

torre de marfim» -citou, tocando a palma de minha mão com seu polegar de forma

insinuante. -Seu nariz é como a torre do Líbano, que olhe para Damasco -respondi,

com um olhar significativo para seu nariz aristocráticamente pronunciada. Lançou uma gargalhada, mas não partiu. -Quantos anos tem? -perguntei, lhe olhando com seriedade

E tratando de que me soltasse a mão.

95

-Vinte e cinco, senhora -respondeu, surpreso-. Estou indecentemente

ojeroso? -Não, só desejava estar segura de que ia dizer lhe a verdade ao lhe informar

de que tenho idade para ser sua mãe. A notícia não pareceu lhe turvar no mais mínimo. Em troca, levantou

minha mão até seus lábios e a oprimiu com ardor.

-Estou encantado -ofegou-. Posso chamá-la mama?. Ulises estava detrás da Yocasta, a poucos passos dali. Liberei minha mão

da do Wylie e dava um golpe no ombro ao mordomo. -Ulises -pinjente-, seria tão amável de te assegurar de que o senhor Wylie

se sente perto de mim no jantar?

-claro que sim, senhora, ocuparei-me disso -assegurou. O senhor Wylie fez uma extravagante reverencia para demonstrar sua

gratidão. Fiz-lhe um gesto com a mão, pensando em como ia desfrutar quando chegasse o momento de lhe cravar o garfo.

Não sei se foi sorte ou fruto de um plano, mas me encontrei sentada entre o senhor Wylie e o qualquer senhor Husband e frente ao senhor Hunter, que tampouco falava gaélico. Formávamos uma pequena ilha de ingleses em meio de

muito turbulentos escoceses. Jamie apareceu no último momento e se sentou na cabeceira, com a

Yocasta a sua direita. Uma vez mais, voltei a me perguntar o que estava ocorrendo. Mantive o olhar fixo nele e um garfo preparado para a ação, mas chegamos ao terceiro prato sem que ocorresse nada.

-Você perguntava pelos reguladores, senhora Fraser? -Husband fez um gesto com a cabeça-. Devo lhe recomendar que pergunte ao senhor Hunter, pois

os reguladores desfrutam dos benefícios de sua direção. O senhor Hunter inclinou a cabeça ante o completo. -Não somos mais que um grupo -disse com modéstia, deixando sua taça de

vinho-. Em realidade, deveria me negar a qualquer título. Mas tenho a sorte de ter minha propriedade situada no lugar idôneo para reunimos.

-ouvimos que os reguladores são só uma chusma turbulenta -disse Wylie-.

Sem lei e inclinados à violência contra os legalmente autorizados deputados da Coroa.

-Realmente não é assim -assinalou o senhor Husband, ainda com mansidão. Surpreendeu-me ouvir que aceitasse sua relação com os reguladores; talvez o movimento não era tão violento e anárquico como dizia Wylie-. Nós só

procuramos justiça e isso não é algo que possa conseguir-se com a violência; porque onde aparece a violência, com toda segurança a justiça escapa.

-A justiça aparentemente se escapou! Ou essa é a impressão que me deu o juiz Dodgson quando falei com ele a semana passada. Ou é que se equivocou, senhor, ao identificar aos rufiões que invadiram seu escritório, lhe golpeando e

lhe arrastando até a rua? Wylie sorriu graciosamente ao Hunter. -O juiz Dodgson -disse com claridade Hunter- é um agiota, um ladrão, uma

desgraça para a lei Y... Fazia um momento que ouvia ruídos fora, mas pensei que era alguma

discussão na cozinha, separada da casa principal. Mas agora os ruídos eram mais claros e uma voz familiar me distraiu das

denúncias do senhor Hunter.

-Duncan!

96

Incorporei-me para me levantar e as cabeças dos que me rodeavam se

voltaram. As conversações se apagaram e todos emprestaram atenção ao que

acontecia. Vi que Jamie jogava sua cadeira para trás, mas antes de que pudesse levantar-se, alguém apareceu na porta.

Era o gigantesco John Quincy Myers. Ocupava toda a soleira da dobro

porta aberta e se inclinava baixo o marco, observando a reunião com os olhos injetados em sangue.

À lombriga fez uma careta de temeroso agradecimento. -Está você aqui -disse com profunda satisfação-. Ela disse que devia estar

bêbado antes de que me cortasse. Assim já estou bêbado.

Fez uma pausa balançando-se perigosamente enquanto levantava a garrafa. Deu um passo e se desabou. Duncan apareceu na porta e olhou a figura prostrada no chão; logo com ar de desculpa se dirigiu ao Jaime.

-Tentei lhe deter, MAC Dubh. Levantei-me de meu assento e cheguei até o homem ao mesmo tempo que

Jamie. Seguia-nos uma onda de curiosos convidados. Jamie me observou com as sobrancelhas arqueadas.

-Bom, disse que devia estar inconsciente -observou. inclinou-se sobre o

gigante e lhe abriu um olho-. Acredito que ele já fez sua parte. -O álcool não é um bom anestésico -pinjente, sacudindo a cabeça-. É um

veneno. Deprime o sistema nervoso central e acrescenta ao perigo da operação a intoxicação alcoólica, o que pode lhe causar a morte.

-Não seria uma grande perda -disse alguém, mas lhe fizeram calar.

-Que lástima esbanjar tanto brandy -disse Wylie e todos riram-. ouvimos falar de sua habilidade, senhora Fraser. Agora tem a oportunidade de demonstrá-

lo ante testemunhas! Fez um gesto para os convidados. -Deixe de chatear! -pinjente zangada.

-Aí, aí! -exclamou alguém, sem ocultar sua admiração. Wylie piscou, surpreso, e ampliou o sorriso. -Seus desejos são ordens para mim, senhora -murmurou, retirando-se.

Incorporei-me curvada pelas dúvidas. Podia funcionar. Tecnicamente, era uma operação singela e não demoraria mais que uns poucos minutos se não

apareciam complicações. Observei o rosto do Jamie para procurar conselho. Estava ali, detrás de mim, e viu a pergunta em meus olhos. Bom, que demônios, ele queria uma distração.

-Melhor que o faça, Sassenach. -Jamie olhou o corpo prostrado-. Talvez não volte a ter o valor ou o dinheiro para embebedar-se desse modo outra vez.

A cabeça da Yocasta apareceu sobre as costas do MacNeill. -Levem a salão -disse rapidamente. Já tinha tomado a decisão por mim.

Não havia tempo para me trocar de roupa, assim que me deram um avental de açougueiro, feito de couro, para cobrir meu vestido e Fedra me levantou as mangas para me deixar os braços nus.

Para que tivesse mais luz trouxeram candelabros e velas. O salão se encheu de um aroma de cera que não conseguia ocultar a fragrância do mesmo Myers.

Sem vacilar, agarrei o garrafão do aparador e orvalhei de brandy seu entrepierna, coberta por um escuro pêlo encaracolado.

-Oué maneira mais cara de matar piolhos -disse alguém ao observar o

êxodo de pequenas formas com vida que caíam arrastadas pelo líquido.

97

-Ah mas morrerão contentes -disse uma voz, que reconheci como a do Ian-

Trouxe-te a caixa, tia. Abriu-a e a pôs a meu lado.

Tirei minha valiosa garrafa azul de álcool destilado e o escalpelo de folha reta. Sustentei a folha sobre um recipiente e lhe joguei álcool enquanto examinava a concorrência procurando ajudantes. Não ia ter problemas para

encontrar voluntários. Todos tinham esquecido o jantar e faziam comentários. Da cozinha chamaram dois corpulentos condutores de carruagens para

sustentar as pernas do paciente. Andrew MacNeill e Farquard Campbell se ofereceram para sustentar os braços e o jovem Ian se colocou a um lado sustentando uma palmatória para ter luz suficiente. Jamie ocupou sua posição,

como chefe anestesista, ao lado da cabeça do paciente com um copo cheio de uísque.

Controlei que tudo estivesse ali e que as agulhas para suturar estivessem

preparadas, respirei profundamente e fiz um gesto a minha tropa. -vamos começar.

Passei a folha pela chama da vela, como última esterilização, e fiz um corte. Nem muito profundo nem muito comprido, o suficiente para abrir a pele e deixar à vista o brilhante intestino.

Aumentei a incisão, lavei meus dedos no recipiente e os coloquei no corte, empurrando para cima. Myers se moveu com uma súbita convulsão e quase me

fez cair. -está despertando! -gritei ao Jamie-. Lhe dê mais, rápido!-Todas minhas

dúvidas sobre o uso do álcool como anestésico estavam pressentem, mas era

tarde para trocar de idéia. Mantive meus dedos na incisão. Havia mais sangue da que tivesse

desejado, assim limpei a zona com um trapo molhado em brandy. Sim, podia ver

o bordo do músculo e uma fina capa de graxa amarela baixo a pele, separando o das fibras de cor vermelha escura.

O tempo se deteve. Embora era totalmente consciente de cada movimento, cada respiração, o atirar e empurrar da agulha enquanto apertava o anel inguinal, minhas mãos não me pertenciam. Minha voz era alta e clara ao dar

ordens, que eram obedecidas imediatamente. Desde algum lugar de meu cérebro um pequeno observador controlava os progressos da operação. Até que tudo

esteve preparado e o tempo começou a correr outra vez. Dava um passo atrás, cortando o laço que me unia ao paciente e me senti enjoada, com uma sensação de solidão.

-Feito -pinjente e o murmúrio se converteu em aplausos. Tinha a sensação de estar intoxicada, me teria embebedado por osmose,

graças ao contato com o Myers? Dava-me a volta com uma extravagante

reverencia para os convidados. Uma hora mais tarde me tinha embebedado por méritos próprios, vítima de

uma dúzia de brinde em minha honra. Engenhei-me isso para escapar um momento com a desculpa de examinar ao paciente e subi ao quarto de convidados. Detive-me na galeria e me apoiei no corrimão para me tranqüilizar.

Se Jamie tinha querido uma distração, pensei um pouco atordoada, não podia ter pedido nada melhor. O que fora que tinha que acontecer, tinha acontecido. Mas o que era?

Myers estava profundamente dormido e a pulseira Betty moveu a cabeça, sonriendo.

98

-Está bem, senhora Claire –sussurrou-. Não despertariam nem com um

revólver. -Como vai? -disse uma voz.

De ter estado menos bêbada me teria sobressaltado. Mas em meu estado me limitei a me dar a volta... e descobri ao Jamie.

-Está bem -respondi-. Não poderia lhe matar nem com um canhão. É como

você. -Joguei-me em seus braços e ocultei meu rosto em sua camisa-. Indestrutível.

Beijou-me na cabeça e me recolheu os cachos de cabelo que se despentearam durante a operação.

-Fez-o muito bem, Sassenach -sussurrou-. Muito bem feito, preciosa.

moveu-se brandamente, pressionando sua coxa contra ele. -Necessita um pouco de ar, Sassenach..., e temos que falar. Pode lhe deixar

um momento?

Joguei um olhar à cama e a seu dormido ocupante. -Sim. Se Betty acessar a ficar com ele para nos assegurar de que não

vomita e se afoga. Olhei à pulseira que, acostumada às ordens e surpreendida por minha

forma de pedir-lhe aceitou com gosto.

-me espere no jardim e procura não cair pelas escadas e te romper o pescoço, quer?

Agarrou-me o queixo e me beijou, rápida e profundamente, o que me fez sentir ao mesmo tempo mais sóbria e mais enjoada.

13 Um exame de consciência

Algo escuro caiu com um suave ruído no atalho. Detive-me bruscamente e me aferrei ao braço do Jamie.

-Uma rã -disse imperturbável-. Não as ouve cantar? «Cantar» não era a palavra que eu escolheria para o coro que coaxava no

canavial próximo ao rio. Estirou o pé e roçou a escura figura escondida.

-Brequequex, cro-ac, cro-ac, -recitou-. Brequequex, cro-ac! A rã saltou, desaparecendo entre as novelo.

-Sempre soube que tinha um dom para os idiomas -pinjente divertida-. Embora não sabia que também falava a linguagem das rãs.

-Bom, não o falo muito bem -disse com modéstia-. Mas tenho um bom

acento. Ri, mas o instante de bom humor passou e seguimos caminhando juntos,

embora com as mentes separadas por milhares de quilômetros.

Teria que ter estado esgotada, mas a adrenalina seguia correndo por minhas veias. Havia um banco baixo as árvores próximas ao mole, entre as

sombras, e Jamie me conduziu até ele. sentou-se no banco de mármore com um profundo suspiro que me recordou que não era quão única tinha passado uma velada cheia de acontecimentos.

-Estamos sozinhos e ninguém nos observa –pinjente-. Quer me dizer que diabos passa?

-OH, sim! -endireitou-se-. Lhe devi dizer isso antes, mas não esperava que

ela fizesse isso. -Procurou minha mão na escuridão-. Não é nada mau, como já te disse. Mas quando Ulises foi levar me a roupa, o broche e a adaga, disse-me que

99

Yocasta faria um anúncio durante o jantar; diria a todos que me ia declarar

herdeiro de... tudo isto. Seu isto abrangeu a casa, os terrenos e todo o resto. Pude ver tudo

desenvolvendo-se como, sem dúvida, Yocasta havia imaginando: Jamie sentado à cabeceira com o tartán, a adaga e o broche do Héctor Cameron (o broche com o juramento do clã dos Cameron: «Unir!») rodeado pelos velhos colegas e camaradas

do Héctor, desejosos de que o jovem parente de seu amigo ocupasse seu lugar. Se deixava que fizesse aquele anúncio, os leais escoceses, bem lubrificados

pelo bom uísque do defunto, aclamariam-no como o senhor do River Run. Era um minucioso plano uso MacKenzie, pensei: audaz, teatral e sem ter em conta os desejos das pessoas implicadas.

-E se o tivesse feito -disse Jamie, fazendo-se eco de meus pensamentos com misteriosa exatidão-, haveria-me flanco muito declinar tal honra.

-Sim, muito.

ficou em pé repentinamente, muito inquieto para ficar sentado. -por que lhe contou isso Ulises? -perguntei.

-pergunte-lhe isso a ti mesma, Sassenach -respondeu-. Quem é o amo agora no River Run?

-Ah? -pinjente e logo-: Ah!

-Sim, em efeito! -disse com secura-. Minha tia está cega, mas quem se ocupa das contas e de governar a casa? Ela pode decidir o que terá que fazer...

mas quem diz quando terá que as fazer? Quem está sempre a seu lado para lhe dizer o que acontece, a quem deve escutar e em que opiniões deve confiar?

-Dou-me conta -pinjente pensativa-, Não pensará que está falseando as

contas ou algo assim? Esperava que não fora assim, pois eu gostava de muito o mordomo da

Yocasta.

Jamie negou com a cabeça. -revisei as contas e tudo está em ordem; em realidade, tudo está muito

bem. Estou seguro de que é um homem honrado e um servente leal, mas não seria humano se aceitasse com alegria que o substitua um estranho. -Soltou um bufido-. Minha tia pode estar cega, mas seu homem negro vê com toda claridade.

Não disse uma palavra para me acautelar nem para me persuadir de algo, só me disse o que minha tia ia fazer e logo me deixou decidir .

-Crie que ele sabia que não foi A...? Detive-me, porque não estava segura do que ele desejava. Não respondeu. Um frio sorvete me fez estremecer e me agarrei de seu

braço enquanto caminhávamos. Pensei na tentação e no verme que jaz escondido baixo uma pele brilhante. A tentação não era só para ele, mas também para mim. Para ele a possibilidade de ser o que era por natureza, o que o destino lhe tinha

negado. Tinha nascido e se criou para isso: a administração de uma grande propriedade, o cuidado da gente e de um lugar respeitável entre homens de valor,

seus pares. E o mais importante: a restauração do clã e a família. «Já formo parte disto», havia dito.

Mas já tinha sido um latifundiário. Tinha-me falado pouco de seu passo

pela prisão, mas algo ressonava em minha memória. Dos homens que compartilhavam seu confinamento, havia-me dito: «Eles eram meus. E o os ter é o que me mantinha com vida». E recordei o que Ian havia dito do Simón Fraser: «O

cuidado de seus homens é agora seu único laço com a humanidade». Sim, Jamie necessitava a seus homens. Homens para dirigir, para cuidar,

para defender-se e lutar com eles. Mas não para ser seu dono.

100

De acordo, River Run era o jardim das delícias... mas eu tinha chamado

amigo a um homem negro e tinha deixado a minha filha a seu cuidado. Ao pensar no Joe Abernathy e na Brianna, deu-me a estranha sensação de

que existiam em dois lugares de uma vez. Podia ver seus rostos em minha mente e ouvir suas vozes em meu interior. E entretanto, a realidade era o homem que estava a meu lado, com a cabeça inclinada e sumido em seus pensamentos. Essa

era minha tentação: Jamie. O e não as camas brandas e as luxuosas habitações, os vestidos de seda ou a posição social. Era Jamie.

Se não aceitava a proposição da Yocasta, deveria fazer alguma outra coisa. E «alguma outra coisa» podia ser a perigosa tentação de o William Tryon. Desde seu ponto de vista, era melhor que a generosa oferta da Yocasta; o que fizesse

seria totalmente dele, a herança que queria deixar a Brianna. Se vivia para realizá-lo.

Eu seguia vivendo em dois planos diferentes. No primeiro ouvia o sussurro

de seu kilt, sentia a cálida umidade de seu corpo, cheirava o aroma a almíscar que me fazia desejar despi-lo, apertar meu peito ao dele, atirá-lo entre as novelo e

me pôr em cima. Mas no outro plano, o da memória, cheirava os discos e o vento do mar e

acariciava, não um homem vivo e quente, a não ser uma tumba com seu nome.

Não falei. Nenhum o fez. Tínhamos dado uma volta completa e estávamos na borda do rio. Ali havia

um pequeno bote com remos para um pescador solitário ou para dar um passeio. -Quer que demos uma volta? -Sim, por que não?

Pensei que devia ter o mesmo desejo que eu; afastar-se da Yocasta, pôr certa distância para pensar com claridade e sem perigo de interrupções.

antes de que pudesse baixar ao bote se voltou para mim, atraiu-me e me beijou brandamente; logo me abraçou com força, apoiando seu queixo em minha cabeça.

-Não sei o que fazer -disse em resposta a minhas perguntas não pronunciadas.

Subiu ao bote e me ofereceu a mão.

Permaneceu em silêncio enquanto avançávamos pelo rio.

-Não vais dizer nada? -perguntou bruscamente. -Não sou eu a que tem que escolher -respondi, sentindo que me oprimia o

peito.

-Não? -Ela é sua tia. É sua vida. A eleição é tua.

-E você será uma espectadora? -grunhiu mais que falou enquanto remava rio acima-. Ou não é sua vida? Ou, depois de tudo, não pensa seguir comigo?

-O que quer dizer seguindo contigo?

Endireitei-me, surpreendida. -Talvez seja muito para ti. Tinha a cabeça inclinada e não podia ver seu rosto.

-Se referir ao que aconteceu na serraria... -Não, isso não. -Dirigiu-me um falso sorriso-. Mortes e desastres não se

preocupam tanto, Sassenach. Mas as coisas pequenas, dia detrás dia... Vejo-te te jogar para trás quando a criada negra te penteia ou quando o moço se leva seus sapatos para limpá-los, e vejo sua atitude escravos que trabalham no campo. Isso

se preocupa, não?

101

-Sim... não posso ser proprietária de escravos. Já te disse...

-Sim, fez-o. -Deixou os remos e me olhou-. E se escolho fazer isto, Sassenach, seria capaz de ficar sem fazer nada? Porque nada se pode fazer até

que minha tia mora. E talvez então tampouco. -O que quer dizer? -Ela não liberará a seus escravos, por que ia fazer o? E eu não poderei fazê-

lo enquanto ela viva. -Mas uma vez que herde o lugar...

de repente o entendi. Poderia viver, dia detrás dia, mês detrás mês, ano detrás ano tendo escravos? Já não poderia pretender me refugiar na idéia de que era só uma convidada, alguém de fora.

Mordi-me os lábios para não gritar minha negativa. -E até então -seguiu-, sabe que um proprietário de escravos não pode

liberá-los sem permissão da Assembléia?

-Como? por que não? -Os donos das plantações têm medo a uma insurreição armada dos negros

–disse-. Culparia-os? -acrescentou com ironia-. Os escravos não podem levar armas, só facas para trabalhar, e está a lei do derramamento de sangue para acautelar seu uso. -Sacudiu a cabeça-. Não, quão último permitiria a Assembléia

é um grupo de negros livres soltos pela região. Se um homem quer liberar um escravo e lhe dão a permissão, o escravo livre deverá abandonar a colônia. Do

contrário, podem capturá-lo e escravizá-lo outra vez. -Estiveste-o pensando -pinjente lentamente. -Você não?

Não respondi. Não, não tinha pensado nessa perspectiva. Não o tinha feito conscientemente porque não desejava me enfrentar a tal eleição.

-Suponho que seria uma grande oportunidade -disse com uma voz que

soava forçada em meus ouvidos-. Estaria a cargo de tudo... -Minha tia não é tola -interrompeu com voz cortante-. Nomeará-me seu

herdeiro mas não ocuparei seu lugar. Utilizará-me para fazer as coisas que ela não pode, mas não seria mais que sua garra de gato. É certo que me pedirá minha opinião e escutará meus conselhos, mas não se fará nada que ela não

queira. Sacudiu a cabeça.

-Seu marido está morto. Quisesse-o muito ou pouco agora é a proprietária e não tem que dar contas a ninguém. Desfruta de muito do poder para desprezá-lo.

Suas asseverações sobre o caráter da Yocasta eram totalmente corretas. Aí

estava a chave de seu plano. Necessitava um homem, mas era evidente que não queria um marido, alguém que lhe usurpasse o poder e lhe desse ordens.

Não, Jamie era a eleição perfeita: um homem forte, competente, capaz de

conseguir o respeito de seus pares e a obediência de seus subordinados. Um homem digno de confiança para levar as terras e mandar aos homens. Além

disso, era um homem ligado a ela pelo sangue mas sem poder e com a obrigação de cumprir suas ordens.

Sentia um nó na garganta enquanto lutava por falar. Não podia aceitar

aquilo, mas tampouco podia aceitar a alternativa que ficava e impulsioná-lo a rechaçar a oferta da Yocasta sabendo que isso o enviaria a Escócia, a uma morte desconhecida.

-Não te posso dizer o que tem que fazer -pinjente. A noite estava silenciosa.

102

-Seu rosto é meu coração, Sassenach -disse me acariciando o queixo-, e

seu amor é minha alma. Mas tem razão, não pode ser minha consciência. em que pese a tudo, senti que se aliviava seu espírito, como se me tivesse

liberado de um peso indefinido.. -Me alegro -disse impulsivamente-, seria uma terrível carrega. -Ah, sim? -Contemplou-me um pouco sobressaltado-, Crie que sou um

malvado? -É o melhor homem que conheci em minha vida -pinjente-. Só queria

dizer... que é um grande esforço tratar de viver por duas pessoas, tratar de fazer que aceitem suas idéias do que é correto... como faz com os meninos.

-Realmente crie que sou um bom homem? -perguntou finalmente.

Havia uma nota em sua voz que não pude decifrar. -Sim -respondi sem vacilar. E acrescentei brincando-: Você não? Respondeu depois de uma larga pausa.

-Não, não acredito. Olhei-o boquiaberta.

-Sou um homem violento e sei bem. -Estendeu suas mãos grandes e fortes-. E você sabe ou o deveria saber.

-Nunca tem feito nada se não lhe obrigaram!

-Não? -Não acredito -pinjente, mas uma nuvem de dúvidas escureceu minhas

palavras. -Poria-me à mesma altura que a um homem como Stephen Bonnet? Ele

diria que atuou por necessidade.

-Se crie que tem algo em comum com o Stephen Bonnet está totalmente equivocado -disse com firmeza.

encolheu-se de ombros com impaciência e se moveu inquieto.

-Não há muita diferença entre o Bonnet e eu, salvo que eu tenho um sentido da honra que lhe falta. O que outra coisa me separa de me converter em

um ladrão? -quis saber-. Tenho mais de quarenta e cinco anos! Um homem deve assentar-se a essa idade, não? Deve ter uma casa, terra para alimentar-se e um pouco de dinheiro que guardar para a velhice.

Respirou profundamente. -E eu não tenho nem casa nem terra nem dinheiro. Nem sequer uma vaca,

uma ovelha, um porco ou uma cabra! Não tenho nem um recipiente para urinar!. Deu um golpe com o punho fechado. -Nem sequer sou dono da roupa que uso!

Houve um comprido silencio, interrompido pelo débil canto dos grilos. -Tem-me -disse em voz baixa. Não parecia muito.

Sua garganta deixou escapar um ruído que poderia ser uma risada ou um soluço.

-Sim te tenho -disse com voz tremente-. E isso é um inferno, não é certo? -É-o? Estendeu a mão em um gesto de impaciência.

-Se se tratasse só de mim, que importância teria? Mas não só sou eu -disse com irritação-. Está você, estão Ian e Duncan, Fergus e Marsali... Que Deus me ajude, se até tenho que me ocupar do Laoghaire!

-Não o faça. -Não o entende? -perguntou quase com desespero-. Poria o mundo a seus

pés, Claire, e não tenho nada para te dar!

103

Jamie pensava sinceramente que isso era importante. Observei-o

procurando as palavras adequadas e finalmente agarrei uma de suas mãos grandes e calosas, ajoelhei a seu lado e apoiei a cabeça sobre seu peito. Não me

saíam as palavras mas tinha tomado uma decisão. -Onde vá, irei; onde viva, viverei; seu povo será meu povo e seu Deus meu

Deus. Quando morrer, eu morrerei e ali serei enterrada. Em uma colina de

Escócia ou nos bosques do sul. Fará o que tenha que fazer e eu estarei aí.

Pensava que retornaríamos ao River Run, mas era evidente que aquela expedição era algo mais que um descanso. Continuamos rio acima. Jamie remava com força contra a corrente.

A sós com meus pensamentos podia escutar sua respiração e me perguntar o que faria. Se elegia ficar... bom, não seria tão difícil como ele pensava. Não ia subestimar a Yocasta Cameron, mas tampouco ao Jamie Fraser. Tanto Colum

como Dougal MacKenzie trataram de lhe dobrar e não o conseguiram. Dava-me conta de onde nos dirigíamos quando Jaime girou com um remo e

cruzamos a corrente para a boca de um largo arroio. Nunca tinha chegado até ali pelo rio, mas Yocasta havia dito que não estava longe.

Não devia me surpreender. Se pensava enfrentar-se com seus demônios,

estávamos no lugar mais apropriado. -Os lugares muito concorridos durante o dia, sempre parecem fantasmales

durante a noite -pinjente, em um esforço por romper o silêncio da serraria. -Sim? -Jamie parecia abstraído-. Este tampouco eu gosto muito durante o

dia.

Estremeci-me ante a lembrança. -A mim tampouco. Só quis dizer... -Byrnes morreu -disse sem me olhar.

-O capataz? Como? -pinjente, mais sacudida pela brutalidade que pela revelação-, Quando?

-Esta tarde. O mais jovem dos Campbell trouxe a notícia pouco antes da queda do sol.

-Como? -voltei a perguntar.

-Tétanos. Uma forma muito feia de morrer. Nisso tinha razão. Nunca tinha visto morrer a ninguém de tétanos, mas

conhecia bem os sintomas. Os espasmos aumentavam de intensidade e só cessavam no momento da morte.

-Tampouco é uma morte rápida -comentei. A suspeita se apoderou de mim-

. Morrer de tétanos leva vários dias. -Ao Byrnes levou cinco dias. Já não havia rastro de humor em sua voz.

-foste ver lhe -disse com um toque de irritação-. Viu-o! E não me disse isso? Haviam-me dito que Byrnes estava recuperando-se em um lugar «seguro»

até que passassem os distúrbios. -O que tivesse podido fazer? Pensei que me havia dito que o tétanos era

algo que nem sequer em sua época se podia curar -disse sem me olhar.

-Não -pinjente-. Não, não lhe tivesse podido salvar. Mas poderia ter facilitado as coisas.

-Tivesse podido -disse tranqüilamente.

-E você não me deixou... Detive-me recordando suas ausências durante a semana e suas respostas

com evasivas.

104

tsío, não permiti que Campbell te mandasse a procurar -disse-. É a lei,

Sassenach, e está a justiça. Conheço bem a diferença. -Também existe a misericórdia.

Se alguém me tivesse perguntado, haveria dito que Jaime Fraser era um homem compassivo. Tinha-o sido. Mas os anos passados tinham sido duros e a compaixão é uma emoção que se gasta com facilidade em segundo que

circunstâncias. -Benditos sejam os misericordiosos -disse- porque eles encontrarão

misericórdia. Byrnes não o era e não a encontrou. E quanto a mim, uma vez que Deus deu sua opinião sobre o homem, não me parece correto interferir.

-Crie que Deus lhe provocou o tétanos?

-Não me ocorre outro ser com capacidade para isso. Por outra parte, no que outro lugar procuraria justiça?

Não obtive resposta.

-me deveu dizer isso Embora acreditasse que não podia ajudar, não era teu assunto decidir...

-Não queria que fosse. Havia uma nota de dureza em sua voz. -Já sei que não! Mas não importa que você cria que Byrnes merecia sofrer

O... -Não me importava se Byrnes morria bem ou mau, mas não sou um

monstro de crueldade! Não te afastei para lhe fazer sofrer, a não ser para te proteger.

Aliviou-me ouvi-lo mas minha fúria aumentou.

-Não era teu assunto decidi-lo. Se eu não for sua consciência, tampouco você deve ser a minha!

de repente me sujeitou uma boneca.

-Corresponde-me cuidar de ti! Tratei de me soltar mas me sujeitou com força.

-Não sou uma menina que necessite amparo, nem tampouco uma idiota. Se havia alguma razão para que não fora, diga-me isso e te escutarei. Mas não pode decidir por mim. Isso não o suporto e você sabe!

-Não quero te dizer onde pode ir. -Decidiu onde não podia ir e isso é o mesmo.

Agarrou-me dos braços e com sua força me fez sentir a fragilidade de meus ossos. «Sou um homem violento.»

Tinha-me sacudido antes um par de vezes e não me tinha gostado. Para lhe

acautelar, em caso de que pensasse fazer o mesmo, coloquei um pé entre suas pernas e me preparei para levantar o joelho e golpear no lugar mais efetivo.

-Estava equivocado -disse.

Nervosa ante aquela atitude violenta tinha começado a levantar o pé quando ouvi o que dizia. antes de que pudesse me deter apertou as coxas

sujeitando-o. -Pinjente que estava equivocado, Sassenach -repetiu com um toque de

impaciência na voz.

Senti vergonha e tratei de mover meu joelho, mas Jamie não separou as pernas.

-Não estará pensando em te liberar de mim? -perguntei com amabilidade.

-Não. vais escutar me agora? -Suponho que sim -pinjente, com o mesmo tom cortês-. Acredito que não

posso fazer outra coisa.

105

Estava o bastante perto para ver como sua boca se crispava, logo afrouxou

a pressão de suas coxas. -Esta é uma briga muito tola e você sabe tão bem como eu.

-Não, não sei. -Não estava tão furiosa mas não ia deixar que lhe tirasse importância-. Talvez não seja importante para ti, mas o é para mim. Não é uma tolice e você sabe, do contrário não teria admitido que estava equivocado.

Esta vez a crispação de sua boca foi mais pronunciada. Respirou profundamente e soltou meus ombros deixando cair as mãos.

-Bem. Devi te dizer o do Byrnes, admito-o. Mas se o tivesse feito, teria ido ver lhe embora te houvesse dito que era tétanos e sei que o era porque o vi antes. Embora não pudesse fazer nada, teria ido igualmente, verdade?

-Sim. Embora... sim, tivesse ido. De fato, tampouco teria podido fazer nada pelo Byrnes. -Teria que ter ido -pinjente mais amavelmente-. Sou médica. Não te dá

conta? -É obvio que me dou conta -disse com aspereza-. Crie que não te conheço,

Sassenach? E sem esperar uma resposta continuou. -falou-se sobre o que aconteceu na serraria. Com o homem moribundo

como estava ninguém disse diretamente que você o tinha matado a propósito,

embora esteja seguro de que o pensaram. Não que o tinha matado, mas talvez que lhe deixou morrer para lhe salvar da forca.

Contemplei-me as mãos quase tão pálidas como o cetim de meu vestido. -E você, perguntou-lhe isso? Olhou-me um pouco surpreso.

-Fez o que acreditava que era o melhor. -Deixou a um lado o assunto da morte do homem para insistir no ponto que lhe interessava-. Mas não era prudente que estivesse presente em duas mortes, não sei se te dá conta.

Dava-me conta e não pela primeira vez era consciente das sutis jogue a rede das que Jamie formava parte de uma forma em que eu nunca poderia.

Aquele lugar era tão estranho para ele como para mim e, entretanto, Jamie não só sabia o que a gente dizia, pois qualquer podia inteirar-se no botequim ou o mercado, mas também o que pensavam. E o mais irritante era que sabia o que eu

estava pensando. -Assim já sabe -disse me olhando-. Sabia que Byrnes ia morrer e que você

não podia fazer nada por ele. Entretanto, se te tivesse informado teria querido ir ver lhe. E atrás de sua morte talvez a gente não tivesse comentado nada sobre que dois homens tinham morrido em seus braços, mas...

-Mas o tivessem pensado -terminei por ele. -A gente se fixa em ti, Sassenach. Mordi-me o lábio. Para bem ou para mau, faziam-no e isso tinha estado

perto de acabar comigo mais de uma vez. agarrou-se a um ramo para manter o equilíbrio e saltou sobre a erva.

-Disse-lhe à senhora Byrnes que lhe levaria as coisas de seu marido –disse-. Se não querer não é necessário que venha.

Agora sabia o que estava fazendo. Desejava vê-lo tudo antes de decidir-se;

vê-lo tudo sabendo que podia ser dele. depois de tudo, pensei com amargura, o Diabo tinha insistido em acostumar-lhe tudo ao Jesus. Tinha-o levado até o topo do Templo para que visse todas as cidades do mundo. A única dificuldade era que

se Jamie decidia arrojar-se não haveria uma legião de anjos para impedir que se estrelasse contra uma laje de granito em Escócia. Só estaria eu.

-Espera -pinjente saltando do bote-. Eu também vou.

106

A madeira ainda estava amontoada, ninguém havia meio doido nada da última vez que estive ali. Não podia ver o terreno baixo meus pés e Jamie me

agarrava do braço para evitar que tropeçasse. Ele nunca tropeçava, claro. Possivelmente o ter vivido toda sua vida com a escuridão depois do pôr-do-sol lhe tinha dado uma espécie de radar. Como se fora um morcego.

Havia uma fogueira entre os barracos dos escravos. Era muito tarde e a maioria deviam estar dormindo. Nas Antilhas teria havido som de tambores e

lamentações pelo companheiro morto. Ali o silêncio era absoluto. -Têm medo -disse Jamie. -Não sente saudades. Eu também.

-E eu -murmurou-, mas não aos fantasmas. Agarrou meu braço e empurrou uma pequena porta antes de que pudesse

lhe perguntar a que tinha medo ele. O silêncio do interior tinha consistência. Ao

princípio, pensei que era como a misteriosa quietude das mariposas mortas, mas logo me dava conta da diferença. Era um silêncio vivo e o que fora que vivia nele

não jazia imóvel. Pensei que cheirava a sangue e que esse aroma fazia espesso o ar.

Então respirei profundamente e com um frio horror percorrendo minhas

costas pude cheirar o sangue, sangre fresca. Aferrei-me do braço do Jamie. Ele também o tinha cheirado e seus

músculos se esticaram baixo minha mão. Sem uma palavra se liberou dela e desapareceu.

Por um momento acreditei que se desvaneceu e senti pânico. Agitei as mãos

no vazio e então me dava conta de que se tampou a cabeça com a capa ocultando assim a palidez de sua cara e o branco da camisa. Ouvi suas pegadas rápidas e fiquei sozinha.

Um gemido rasgou o ar e quase me parti o lábio ao me morder isso Onde estava Jamie? Desejava chamá-lo mas não me atrevia. Forcei os olhos para tratar

de ver e me dava conta de que com meu vestido pálido era visível para qualquer que estivesse ali.

Outra vez chegou o gemido e me sobressaltei. Suavam-me as mãos. «Não

pode ser», disse-me furiosa. Estava paralisada pelo terror e demorei uns instantes em me dar conta do que ouvia. O gemido provinha de algum lugar detrás de mim.

-Jamie! -gritei-. Onde está? -Aqui, Sassenach. -A voz do Jamie me chegou tranqüila, com certa

urgência-. Vêem.

Mas Não era ele quem gemia. Aliviada, posto que os gemidos não eram do

Jamie, lancei-me para a escuridão sem me importar de quem eram. Choquei-me

com uma parede de madeira e procurei até encontrar uma porta aberta. Jamie tinha entrado no barraco do capataz.

Entrei e senti a mudança imediatamente. O ar era mais pesado e quente que na serraria. O estou acostumado a era de madeira e o aroma de sangue mais intenso.

-Onde está? -chamei de novo em voz baixa. -Aqui, ao lado da cama. Vêem me ajudar, é uma moça. Estava em um pequeno dormitório sem janelas. Jamie se tinha ajoelhado

ao lado de uma cama estreita em que havia um corpo. Ao tocar soube que era uma mulher e que se estava sangrando. Procurei o pulso na garganta e não o

107

encontrei. Seu único signo de vida era um leve movimento do peito baixo minha

mão. -Está bem -ouvi-me dizer, sem indício de pânico na voz, embora tinha razões

para senti-lo-. Estamos aqui, não está sozinha. O que te passou? me pode dizer isso

-Né...

Foi um suspiro seguido de um ofego. -Quem te tem feito isto? -A voz do Jamie era baixa mas cheia de urgência-.

Me diga, quem? -Né... -Tudo está bem, não está sozinha. Jamie, lhe agarre a mão.

O desespero se apoderou de mim ao me dar conta do que acontecia. -Já a tenho. Não se preocupe. Tudo irá bem. -Né...

Não podia ajudá-la. Pus a mão entre suas coxas e notei que estava empapada e o sangue continuava saindo.

-Eu... morro... -Acredito que lhe mataram, moça -disse-lhe Jamie muito brandamente-.

Não nos vais dizer quem foi?

Sua respiração se fez mais forte. -Sar... gento. Diga... a ele...

Respirava entrecortadamente e o sangue seguia gotejando. -Farei-o -disse Jamie. Sua voz era um sussurro na escuridão-. Prometo que

o farei.

Já não havia sons. Não podia ver o Jamie, mas notei que se inclinava. -Deus te perdoe -sussurrou-. Descansa em paz.

Pude ouvir o zumbido ao entrar no barraco do capataz à manhã seguinte. Eram só duas habitações. A nossa direita estava o quarto maior, que tinha sido

utilizado pelo Byrnes para viver e cozinhar, e à esquerda se encontrava o pequeno dormitório de que tinham saído os gemidos.

Jamie respirou profundamente, tampou-se a cara com a capa e empurrou a

porta. O que vimos parecia uma colcha de cor azul metalizada com salpicaduras

verdes. Quando Jamie deu um passo, as moscas se elevaram zumbindo e abandonaram seu alimento. Dava um grito de asco e agitei as mãos para as espantar. Farquard Campbell lançou um bufido de desgosto, baixou a cabeça e

me empurrou para poder entrar. A pequena habitação carecia de janelas e a luz entrava somente pelas

gretas das pranchas. A atmosfera era úmida e calorosa, como em um estufa

tropical, e pesada pelo doce aroma de podre da morte. Não tinha sido uma moça alta, seu corpo estava abafado pela manta com

que a cobrimos a noite anterior. Sua cabeça parecia grande em comparação com seu corpo encolhido. Jaime espantou várias moscas e lhe tirou a manta manchada de sangue. Logo que tinha visto seu rosto a noite anterior. Era

impossível determinar sua idade, salvo que não era velha, nem tampouco se era atrativa, embora para um homem deveu resultá-lo.

Os homens murmuravam entre eles inclinados sobre o cadáver. O senhor

Campbell se voltou para mim com rosto preocupado. -Está razoavelmente segura, senhora Fraser, da causa da morte?

-Sim -pinjente-. Baixei-lhe a saia mas deixei o resto como estava.

108

Tinha-a deixado onde a encontramos. Entre suas pernas havia uma

brocheta de cozinha de mais de trinta centímetros de larga, coberta de sangue seca.

-Não... encontrei feridas no corpo -pinjente o mais delicadamente possível. -Sim, já vejo. -O rosto do Campbell se relaxou um pouco-. Ah, bom, ao

menos não é um caso de assassinato deliberado.

Abri a boca para responder, mas Jamie me acautelou com o olhar. Sem dar-se conta, Campbell continuou falando.

-A questão é se esta pobre mulher o fez ela sozinha ou a ajudou outra pessoa. Você o que pensa, senhora Fraser?

Jamie me olhou com os olhos entrecerrados. O aviso era desnecessário pois

já o tínhamos discutido a noite anterior e tirado nossas próprias conclusões. Também tínhamos decidido não as compartilhar com as forças da lei e a ordem do Cross Creek.

-Estou segura de que o fez ela -disse com firmeza-. Leva pouco tempo morrer sangrada desta maneira e, como Jamie lhe disse, ainda estava viva

quando a encontramos. Estávamos conversando fora quando ouvimos os gemidos. Ninguém tivesse podido sair sem que o víssemos.

O certo era que uma pessoa podia haver-se escondido facilmente na outra

habitação e sair enquanto estávamos ocupados em atender à mulher. Se essa possibilidade não lhe ocorria ao senhor Campbell, não via razão para que eu lhe

abrisse os olhos. Jamie tinha adotado uma expressão o bastante séria para enfrentar-se ao

Campbell, que sacudia a cabeça aflito.

-Ah, desafortunada moça! Mas suponho que devemos nos sentir aliviados já que ninguém compartilhou seu pecado.

-E o que passa com o pai do menino que ela quis tirar-se? -perguntei em

tom azedo. -Mmm... -disse surpreso Campbell e tossiu-. Como não sabemos se estava

casada... -Então, não conhecem esta mulher? -interveio Jamie antes de que eu

pudesse fazer mais comentários imprudentes.

Campbell sacudiu a cabeça. -Não era faxineira do senhor Buchanan nem dos MacNeill, disso estou

seguro. Nem do juiz Alderdyce. Essas são as plantações mais próximas de onde pôde vir. Embora não entendo por que veio até este lugar para cometer este ato desesperado...

Ao Jamie e a mim também nos tinha ocorrido pensá-lo. Para evitar que Campbell desse outro passo nessa linha de investigação, Jamie interveio outra vez.

-Ela falou muito pouco mas mencionou a um «sargento». «lhe Diga ao sargento», foram suas palavras. Talvez você tenha idéia do que quis dizer.

-Acredito que há um sargento do exército a cargo do guarda do depósito real. Sim, seguro. Ah! Sem dúvida a mulher estava relacionada de alguma forma com esse estabelecimento militar. Essa é uma explicação. Entretanto, ainda me

pergunto por que ela... -Senhor Campbell, me perdoe, mas me temo que me estou enjoando -

interrompi, apoiando uma mão em seu braço.

-Poderia acompanhar a minha esposa fora? -perguntou Jamie. Fez um gesto para a cama e a sua patética carga-. Eu me ocuparei da pobre moça.

109

-Rogo-lhe que não se preocupe, senhor Fraser –protestou Campbell,

preparado para me acompanhar—. Meu servente pode ocupar do corpo. -É a serraria de minha tia e portanto é meu problema -disse amavelmente

mas com firmeza. Devo me ocupar eu. Fedra esperava ao lado do carro.

-Disse-lhe que este lugar era mau -disse com ar de maliciosa satisfação-. Está branca como um lençol, senhora.

Alcançou-me o recipiente de vinho com especiarias franzindo o nariz. -Tem pior aroma que ontem à noite e a vê mau. -deu-se a volta para

observar ao Campbell, que falava com seu servente-. Encontrei a que a ajudou -

disse Fedra em voz baixa. -Está segura? Não teve muito tempo. Tomei um gole de vinho e Fedra assentiu.

-Não necessitei muito tempo. Caminhando entre as casas vi uma porta aberta e coisas atiradas, como se alguém tivesse saído correndo. Perguntei quem

vivia ali e me disseram que Poliyanne, mas que não sabiam onde se partiu. Ontem à noite estava ali durante o jantar e após ninguém a viu. -Seus olhos, cheios de perguntas, encontraram-se com meus-, Agora sabe o que terá que

fazer? Uma maldita pergunta para a que não tinha resposta.

-Todos os escravos devem saber que partiu. Quanto tempo passará antes de que outros saibam? Quem se ocupa dessas coisas, agora que Byrnes morreu?

Fedra se encolheu de ombros.

-Qualquer que pergunte o descobrirá. Mas o que tem que ocupar-se... -Fez um ligeiro gesto para o Jamie-. Suponho que é ele.

«Já sou parte disto.» Sabia inclusive antes do jantar interrompido. Sem nenhum anúncio formal, sem nenhum convite ou aceitação de seu papel, Jamie

ocupava o lugar. O servente do Campbell foi ajudar com o cadáver; Jamie se apoiou em um

joelho e deixou o corpo no chão.

-Pode trazer as coisas do carro? -disse a Fedra. Sem uma palavra, Fedra foi procurar as coisas que eu tinha reunido: uma

manta, um balde, trapos limpos e um frasco com ervas. Eu fui reunir me com o Jamie.

-Tinha razão -disse-lhe em voz baixa-. A mulher que lhe ajudou se chamava

Poliyanne e escapou durante a noite. Fez uma careta esfregando-as mãos enquanto olhava por cima de seu

ombro. Campbell observava o corpo com gesto de desgosto.

-te ocupe da moça, quer, Sassenach? Com decisão foi em busca do Campbell.

Não tinha sentido conservar sua roupa, assim que a cortei para tirar-lhe

Nua parecia ter uns vinte anos; estava mal alimentada, lhe marcavam as costelas

e os braços e as pernas eram muito magros. em que pese a tudo, era surpreendentemente pesada e o rigor mortis dificultava seu manejo. Fedra e eu

suávamos abundantemente antes de terminar a tarefa. O trabalho evitava toda conversação e me deixava em paz com meus

pensamentos, que não eram particularmente tranqüilizadores. Uma mulher que

queria «desprender-se de uma criatura», como havia dito Jamie, se o ia fazer

110

sozinha, faria-o em sua própria habitação e em sua própria cama. A única razão

para que uma desconhecida chegasse até este remoto lugar, era encontrar-se com a pessoa que a ajudaria, uma pessoa que não podia ir onde ela vivia. Tínhamos

que procurar uma pulseira nos barracos da serraria, alguma com reputação de parteira que as mulheres se recomendassem entre elas.

Estremeci-me pese ao calor. aplicaria-se a lei de derramamento de sangue

neste caso? Era possível. Maldita mulher, pensei, mostrando irritação para tampar uma piedade inútil. Já não podia fazer nada por ela, salvo tratar de

maquiar o desastre que tinha deixado e, talvez, tratar de salvar à outra atriz do drama: a desafortunada mulher que tinha cometido, sem querer, um assassinato tratando de ajudar e que agora podia pagar o engano com sua própria vida.

Jamie tinha pego a jarra de vinho e a intercambiava com o Campbell; os dois falavam acaloradamente e de tanto em tanto faziam gestos para a serraria ou para o rio e o povo.

O senhor Campbell ia partir quando me viu. Dirigiu-me uma saudação e eu lhe respondi com uma reverência e, aliviada, vi como se afastava.

Fedra também se deteve e observava a carruagem. Logo me olhou. -Será melhor que o senhor Jamie encontre a essa Poliyanne antes da queda

do sol. Há animais selvagens no pinar e o senhor Ulises diz que essa mulher valia

duzentas libras quando a senhorita Yocasta a comprou. Não conhece os bosques. Poliyanne veio diretamente da África faz menos de um ano.

Fedra me tinha ajudado a descobrir ao Poliyanne, não porque confiasse em mim ou gostasse, mas sim porque eu era a esposa do amo. Devíamos encontrar ao Poliyanne e escondê-la. E Jamie, pensava ela, é obvio que o faria; era de sua

propriedade ou da da Yocasta, o que ante os olhos da Fedra significava o mesmo. Não havia nenhum sacerdote perto, assim que a enterrariam sem

cerimônias. Para que necessitava dos ritos? Os funerais eram para consolo dos

parentes e não parecia haver ninguém que a chorasse, pensei, porque de ter tido família, marido ou um amante, agora não estaria morta.

Jamie se tinha aproximado de nós. Sem uma palavra, levantou o corpo da moça morta e o colocou no carro. Não falou até que eu sentei a seu lado. Agitou as rédeas e estalou a língua.

-Vamos e procuremos o sargento -disse.

Tínhamos umas coisas das que nos ocupar antes. Retornamos ao River Run para deixar a Fedra e Jamie desapareceu para procurar o Duncan e trocar-se de roupa, enquanto eu ia controlar a meu paciente e a informar a Yocasta dos

acontecimentos da manhã. Não devi me preocupar: Farquard Campbell estava sentado bebendo chá

com a Yocasta e John Myers; este, envolto em uma capa dos Cameron, estava

atirado em uma poltrona de veludo comendo pãozinhos. A julgar pela desacostumada limpeza de suas pernas nuas, alguém se tinha aproveitado de seu

temporário inconsciência para lhe dar um banho. -Querida. -Yocasta voltou a cabeça para ouvir meus passos e sorriu,

embora vi umas linhas de preocupação entre suas sobrancelhas-, Sente-se,

criatura, e come algo; não descansaste em toda a noite e acredito que aconteceste uma manhã horrível.

Em outro momento me teria resultado divertido ou insultante que me

chamassem «criatura», mas naquelas circunstâncias era extrañamente reconfortante. Deixei-me cair, agradecida, em uma poltrona e deixei que Ulises

111

me servisse uma taça de chá, me perguntando o que lhe teria contado Farquard a

Yocasta e que mais saberia. Tinha a sensação de que poderia dormir uma semana inteira. Mas não

havia descanso para nós. Jamie apareceu barbeado, penteado e com casaca e camisa limpa. Saudou o Campbell sem surpresa, pois deveu ter ouvido sua voz do corredor.

-Tia -disse beijando a bochecha da Yocasta, logo sorriu ao Myers-. Como vai tudo?

-Perfeito -assegurou Myers-. Embora acredite que deverei esperar um dia ou dois antes de voltar a montar a cavalo.

-Acredito -afirmou Jamie. Logo se voltou para a Yocasta-. Viu ao Duncan

esta manhã, tia? -Sim. Foi com o Ian a fazer um recado para mim. -Sorriu e agarrou ao

Jamie da boneca-. É um homem encantador o senhor Innes, além de sagaz e

ardiloso. Uma grande ajuda e um verdadeiro prazer falar com ele. Não o crie assim, sobrinho?.

Jamie a olhou com curiosidade e logo se fixou no Campbell, que evitou seu olhar.

-Pois sim -respondeu Jamie com secura-. Duncan é um homem muito

capaz. E o jovem Ian se foi com ele? -Sim, para fazer-se carrego de uns fardos -respondeu plácidamente

Yocasta-. Necessita ao Duncan agora? -Não -disse Jamie, olhando-a com calma-. Pode esperar. -Bem -respondeu a tia-. Tomará o café da manhã então? Farquard, quer

outro pãozinho? -Ah, não, tenho coisas que fazer no povo; o melhor será que vá. -Campbell

deixou sua taça, ficou em pé e nos saudou a Yocasta e a mim com uma

inclinação-. Para as servir, senhoras. Senhor Fraser -acrescentou, arqueando a sobrancelha, e seguiu ao Ulises.

Jamie se sentou e agarrou uma torrada. -Tia, encarregou ao Duncan ir em busca da pulseira? -Assim é. -Voltou o rosto carrancudo com sua cega expressão-. Não te

importa, verdade, Jamie? Já sei que Duncan é um de seus homens mas me pareceu um assunto urgente e não estava segura de quando foste retornar.

-O que te há dito Campbell? Sabia o que estava pensando Jamie; o rígido e reto juiz do distrito não

moveria um dedo para evitar um linchamento nem conspiraria para proteger a

uma pulseira acusada de praticar abortos. -Conheço o Farquard Campbell há vinte anos. Ouço melhor o que não diz

que o que diz.

Myers tinha seguido a conversação com interesse. -Não posso dizer que meus ouvidos sejam tão finos -fez notar

apaciblemente-. Tudo o que ouvi foi que uma pobre mulher se matou na serraria por causa de um acidente por tratar de livrar-se de sua carga. Também disse que não a conhecia.

Sorriu-me docemente. -Disso deduzo que a moça era uma desconhecida -observou Yocasta-.

Farquard conhece toda a gente do povo e do rio tão bem como eu conheço minha

própria gente. Não era a filha nem a faxineira de ninguém. Deixou a taça e se apoiou na cadeira com um suspiro.

-Tudo vai sair bem -disse-. Come, que deve estar morto de fome.

112

Jamie a contemplava com a torrada na mão. Deixou-a no prato sem prová-

la. -Não posso dizer que tenha muito apetite, tia. As garotas mortas me afetam

ao estômago. levantou-se e ficou a casaca. -Talvez não seja a filha nem a faxineira de ninguém, mas está tiragem no

pátio coberta pelas moscas. Devo averiguar seu nome antes de enterrá-la. Bebi o resto de meu chá.

-Sinto muito -desculpei-me-. Acredito que eu tampouco tenho fome. Yocasta não se moveu nem trocou de expressão.

Era perto do meio-dia quando chegamos ao depósito da Coroa, ao final da rua Há.

-O que guardam aí? -perguntei ao Jamie, olhando com curiosidade a sólida

edificação. Jamie se encolheu de ombros enquanto se espantava as moscas que

proliferavam com o calor. -Tudo o que a Coroa considera valioso. Peles do interior, abastecimentos

navais, breu e terebintina. Mas o posto de guarda é a causa do licor que têm

armazenado. -diria-se que agora não têm muito -pinjente, assinalando ao único guarda.

-Claro, os embarques de licor chegam desde o Wilmington uma vez ao mês. Campbell me disse que escolhem um dia diferente cada mês para evitar os roubos —disse com ar preocupado.

-Pensa que Campbell não acreditou que foi ela quem o fez? Sem querer olhei para a parte traseira do carro. Jamie lançou um bufido

zombador.

-É obvio que não, Sassenach, esse homem não é tolo, mas é um bom amigo de minha tia e não causará problemas se não ter necessidade. Confiemos em que

a mulher não tenha a ninguém próximo que queira armar escândalo. -Mostra-te muito insensível. Acreditei que pensava de forma diferente.

Embora provavelmente tenha razão: se tivesse tido a alguém, agora não estaria

morta. Notou a amargura em minha voz e me olhou.

-Não quis ser tão duro, Sassenach —disse amavelmente-. Mas a pobre moça está morta. Quão único posso fazer é me ocupar de que seja enterrada decentemente. É da outra da que devo me ocupar, não te parece?

-Sei. É que... suponho que me sinto, de algum modo, responsável por ela. -Eu também -respondeu-. Não tema, Sassenach, faremos o correto. Atou os cavalos debaixo de um castanho e baixou do carro me oferecendo a

mão. Indicaram-nos que o sargento estava almoçando no botequim de em frente.

Vi-o assim que entramos, sentado ante uma mesa perto da janela, com a camisa desabotoada e ar depravado ante uma jarra de cerveja e os restos de um bolo. Jamie me seguia e sua sombra tampou momentaneamente a luz da porta. O

sargento levantou a vista naquele momento e empalideceu pela impressão. -Sargento Murchison -disse Jamie com um gesto de amável surpresa, como

se saudasse um conhecido-. Não acreditei que voltaria a vê-lo outra vez, ao

menos neste mundo. A expressão do sargento indicava que o sentimento era mútuo.

-Você! -exclamou.

113

Jamie se tirou o chapéu e inclinou a cabeça com cortesia.

-Para lhe servir, senhor. Murchison se ia recuperando da impressão e em sua cara apareceu um ar

depreciativo. -Fraser. Perdão, agora é senhor Fraser, não? -Assim é -respondeu Jamie com voz neutra, pese ao tom insultante do

sargento, que começou a grampeá-la camisa sem deixar de olhar ao Jamie. -Tinha ouvido que um homem chamado Fraser tinha vindo a pegar-se como

uma sanguessuga à senhora Cameron do River Run -disse com um gesto desagradável nos lábios-. Esse deve ser você, não?

Os olhos do Jamie pareciam de gelo azul, embora seus lábios mostravam

um agradável sorriso. -A senhora Cameron é meu parente e estou aqui em seu nome. -Seu parente. Bom, é fácil de dizer, não? A senhora está mais cega que um

morcego, ou isso dizem. Não tem marido nem filhos. É uma boa presa para qualquer estelionatário que se faça passar por alguém da família. -O sargento

baixou a cabeça e me observou sonriendo, uma vez mais dono de si mesmo-. Ela deve ser seu amante, não é assim?

Era uma maldade gratuita, um tiro ao azar, o homem quase não me tinha

cuidadoso. -É minha esposa, a senhora Fraser.

Pude ver como os dois dedos rígidos da mão direita do Jamie se agarravam às abas da casaca como único sinal de suas emoções. Inclinou a cabeça e arqueou as sobrancelhas, observando ao sargento com desapaixonado interesse.

-E qual dos dois é você, senhor? Peço-lhe perdão por minha má memória, mas lhe confesso que não o distingo de seu irmão.

O sargento se crispou como se lhe tivessem disparado.

-Maldito seja! -exclamou, engasgando-se com as palavras. Naquele momento pareceu dar-se conta de que todos nos observavam com

interesse. Com um olhar furioso agarrou o chapéu e se dirigiu para a porta, me empurrando ao passar e me fazendo cambalear.

Jamie me sujeitou de um braço e lhe seguiu. Fui atrás dele a tempo de ver

como chamava o sargento. -Murchison! Tenho que falar com você!

O soldado girou sobre seus talões. -Falar, né? E o que tem que me dizer, senhor Fraser? -Falar de sua capacidade profissional, sargento –respondeu Jamie com

frieza. Fez um gesto para o carro-. Trouxemo-lhe um cadáver. Por um segundo, o rosto do sargento permaneceu inexpressivo, logo olhou o

carro cheio de moscas.

-Vá. -Era um profissional. Embora a hostilidade não tinha diminuído, empalideceu e relaxou seus punhos crispados-, Um cadáver? De quem?

-Não tenho nem idéia, senhor. Tinha a esperança de que você nos dissesse isso. Quer olhar?

Fez um gesto para o carro e depois de um momento de vacilação se dirigiu

para ele. O sargento não ocultou seus sentimentos. Talvez em sua profissão não era

necessário. A impressão se via em seu rosto e Jamie pôde vê-lo tão bem como eu.

-Então, conhecia-a? -Eu... ela... é... Sim, conhecia-a.

114

Fechou a boca, como se temesse falar mais da conta. uns quantos homens

nos tinham seguido do botequim, logo todos saberiam o ocorrido na serraria. -O que lhe passou? -perguntou o sargento, olhando outra vez a cara da

morta. Também ele apresentava uma palidez mortal. -Então, conhecia-a? -perguntou de novo Jamie.

-Ela é... ela era... uma lavadeira. Lissa... Lissa Garver era seu nome. -O sargento falava mecanicamente, incapaz de apartar a vista do carro-. O que lhe

passou? -Tinha família no povo? Um marido, talvez? -Esse não é problema dele, não? -disse, olhando fixamente ao Jaime-. Me

diga o que lhe aconteceu. Jamie o olhou sem pestañar. -Quis desprender-se da criatura e lhe saiu mal –disse tranqüilamente-. Se

tinha marido terá que dizer-lhe se não tinha família me ocuparei de que seja enterrada decentemente.

-Tinha a alguém -disse cortante Murchison-. Não precisa ocupar-se você. -esfregou-se a cara com violência, querendo afastar todo sentimento-. Vá a meu escritório, terá que fazer uma declaração.

O escritório estava vazio. Sem dúvida o empregado tinha ido procurar seu

almoço. Sentei-me a esperar enquanto Jamie se passeava com impaciência. -Maldita, maldita sorte -resmungou para si-. Tinha que ser Murchison. -Conhece-lhe bem, não?

Olhou-me com uma careta de ironia. -Bastante bem. Estava na guarnição da prisão do Ardsmuir. -Já vejo. -Não podia existir afeto entre eles-. O que crie que faz aqui?

-Por isso sei, veio com os prisioneiros quando os trouxeram para vendê-los. Imagino que a Coroa não acreditou necessário levá-lo de novo a Inglaterra, pois

aqui faziam falta soldados. Deveu ocorrer durante a guerra com a França. -E o que disse sobre seu irmão? Deixou escapar uma risada sem nenhum humor.

-Eram gêmeos. Chamavam-nos pequeno Billy e pequeno Bobby. Idênticos e não só no físico.

Fez uma pausa ordenando suas lembranças. -Talvez conheça essa classe de homens que podem ser decentes quando

estão sozinhos, mas que quando os juntas com outros como eles se voltam lobos.

-É um pouco cruel com os lobos -disse sonriendo-. Pensa em Cilindro. Mas sei o que quer dizer.

-Uns que quando estão juntos se convertem em animais. Em todos os exércitos há homens assim, porque é assim como funcionam os exércitos. Os homens fazem coisas terríveis quando estão em grupo, coisas que não sonhariam

quando estão sozinhos. -E os Murchison alguma vez estavam sozinhos? -perguntei com calma. Fez um gesto de assentimento.

-Estavam sempre juntos. Se a gente tinha escrúpulos por algo, o outro não. E quando havia problemas, não se sabia a quem culpar.

Enquanto falava se passeava inquieto. -Eu... os prisioneiros, podíamos nos queixar de maus entendimentos, mas

os oficiais não podiam castigar aos duas por culpa de um e ninguém sabia qual

era o que lhe tinha golpeado nas costelas ou lhe tinha feito outras coisas piores.

115

-Estão os dois aqui? -perguntei.

-Não -disse bruscamente-. Este é Billy. O pequeno Bobby morreu no Ardsmuir.

-Por sua reação suponho que não foi por causas naturais, não é certo? -perguntei.

-Não. -Suspirou e se encolheu de ombros-. Levavam-nos todas as manhãs à

pedreira e retornávamos ao anoitecer. Em cada carro foram dois ou três guardas. Um dia, o pequeno Bobby Murchison era o encarregado. Saiu conosco pela

manhã mas não retornou de noite. -Olhou de novo pela janela-. Havia um poço muito profundo no fundo da pedreira.

Seu tom indiferente era tão aterrador como o conteúdo da história. Senti

um calafrio pese ao calor. -Você...? -comecei, mas me colocou um dedo sobre os lábios e olhou para a

porta.

Um momento depois, ouvi os passos que Jamie já tinha detectado. Era o sargento, não seu empregado. Lançou um olhar ao escritório vazio e procurou

uma folha de papel e um tinteiro. -Escriba -ordenou-. Onde a encontrou e o que aconteceu. Assine-o e ponha

a data.

Jamie o contemplou com os olhos entrecerrados, mas não fez nenhum movimento para agarrar a pluma. Era canhoto, mas lhe tinham forçado a

escrever com a direita, logo teve o problema nos dedos. Para ele, escrever era uma tarefa lenta e dificultosa e não ia humilhar se ante o sargento.

-Escriba -voltou a ordenar.

Os olhos do Jamie se esgotaram mais ainda se couber. antes de que pudesse responder me levantei e agarrei a pluma de mãos do sargento.

-Eu estive ali, me deixe fazê-lo .

A mão do Jamie se fechou sobre a minha antes de que pudesse molhar a pluma no tinteiro.

-Seu empregado poderá lombriga mais tarde, em casa de minha tia -disse ao Murchison-. Vêem comigo, Claire.

Sem esperar resposta do sargento, agarrou-me do cotovelo e me levantou.

Estávamos fora antes de que soubesse o que tinha acontecido. O carro seguia baixo a árvore, mas já estava vazio.

-Está a salvo de momento, MAC Dubh, mas que diabos vamos fazer com

ela?

Duncan se arranhou a barba. Ian e ele tinham acontecido três dias no bosque até que encontraram à pulseira Poliyanne.

-Não é fácil fazer que se mova -explicou Ian enquanto cortava um pedaço de presunto para dar-lhe a Cilindro-, A pobre mulher quase morre de medo quando Cilindro a farejou; demoramos muitíssimo em conseguir que se levantasse.

Tampouco pudemos subi-la ao cavalo. Tive que sustentá-la para que não caísse. -Temos que afastá-la de algum modo -disse Yocasta com ar pensativo-.

Ontem Murchison esteve incomodando de novo na serraria. Farquard Campbell me mandou dizer que tinha estado dizendo que tinha sido um assassinato e que ia pedir homens para procurar à pulseira que o tinha feito.

-Pôde fazê-lo ela? -Ian olhou ao Jamie e a mim-. Quero dizer por acidente. -Há três possibilidades: acidente, assassinato ou suicídio -pinjente-. Mas

há formas muito mais fáceis para suicidarse, pode me acreditar. E não existe motivo para o assassinato, que nós saibamos.

116

-Seja o que seja -interveio Jamie-, se Murchison apanhar à pulseira a fará

pendurar ou açoitar até que mora e para isso necessita um julgamento. Já arrumei com nosso amigo Myers a forma de tirá-la do distrito.

-Arrumou o que com o Myers? -perguntou Yocasta com tom agudo. Jamie terminou de lubrificar manteiga em uma torrada e a entregou ao

Duncan antes de responder.

-Nós levaremos a mulher até as montanhas-dijo-. Myers diz que os índios a acolherão. Conhece um bom lugar para ela, onde estará a salvo do pequeno Billy

Murchison. -Nós? -perguntei amavelmente-. Quais são «nós»? Sorriu-me com ironia.

-Myers e eu, Sassenach. Preciso conhecer essa zona antes de que chegue o inverno e esta é uma boa oportunidade.

Myers é o melhor guia que posso encontrar.

-Levará-me contigo, verdade, tio? -Ian o olhou com ansiedade-, Necessitará ajuda com essa mulher, me acredite... parece um tonel.

Jamie sorriu a seu sobrinho. -Sim, Ian. Suponho que poderemos levar outro homem. -Ejem -disse com expressão maligna.

-Embora seja para que vigie a sua tia, Ian -continuou Jaime me devolvendo o olhar-. Sairemos em três dias, Sassenach..., se Myers pode montar para então.

Três dias não era muito tempo mas com a ajuda do Myers e Fedra meus

preparativos se completaram sem problemas. Levava uma pequena caixa com

remédios e instrumentos e as alforjas estavam cheias de mantimentos, mantas e utensílios de cozinha. O único assunto pendente era o da indumentária. Tinha cruzado as pontas de uma larga bandagem de seda por meu peito, as atando com

um nó entre meus seios, e observava o resultado ante o espelho. -O que é exatamente o que está fazendo, Sassenach? O que é isso, em

nome de Deus? Jamie, com os braços cruzados, estava apoiado na porta me observando

com as sobrancelhas arqueadas.

-Estou-me fazendo um sutiã -disse com dignidade-. Não tenho a intenção de cavalgar pelas montanhas levando um vestido e tampouco quero ir com os

peitos pendurando. É muito incômodo. -Suponho-o. -Entrou na habitação e deu uma volta a meu redor mantendo

certa distância e observando minhas pernas-. O que é isso?

-Você gosta? Pus as mãos em meus quadris para me ajustar as calças de couro. O

material o tinha conseguido de um dos amigos do Myers no Cross Creek, e Fedra

os tinha feito para mim rendo histéricamente enquanto os costurava. -Não -disse bruscamente-. Não vai com... com...

Fez um gesto sem poder dizer a palavra. -Calças -terminei-. É obvio que posso, sempre usava calças em Boston. São

muito práticos.

-Usava-os pela rua? -disse com incredulidade-. Onde a gente podia verte? -O fazia -disse com aborrecimento-. Como a maioria das mulheres. por que

não?

-por que não? -perguntou escandalizado-. Posso ver a forma de suas nádegas, maldita seja, e a fenda que há entre elas!

117

-Eu posso ver as tuas também -assinalei-. Vi seu traseiro com calças todos

os dias, durante meses, mas ao vê-lo só de vez em quando avancei indecentemente sobre sua pessoa.

Sua boca se crispou sem saber se rir ou não. Aproveitando sua indecisão, aproximei-me e lhe sujeitei a cintura.

-Em realidade, é sua saia a que me faz desejar te atirar ao chão e te violar -

disse-lhe-. Mas não lhe sintam mal as calças. Então riu, inclinou-se e me beijou.

-tira-lhe isso disse, detendo-se para respirar. -Mas... -tira-lhe isso repetiu com firmeza. Deu um passo atrás-. Lhe pode pôr isso

depois, Sassenach, mas se terá que violar a alguém, sou eu o que deve fazê-lo, não te parece?

QUINTA PARTE

Campos DE MORANGOS PARA SEMPRE

14 Fugir da fúria que vem

Agosto de 7767 Tinham escondido à mulher em um barraco da parte mais afastada dos

campos de tabaco do Farquard Campbell. Era pouco provável que alguém o notasse, salvo os escravos do Campbell que sabiam, mas tomamos cuidado em

chegar depois do pôr-do-sol. A mulher se deslizou fora da cabana como um fantasma, encapuzada e

envolta como se fora um pacote de contrabando, que é o que era em realidade.

Levantou as pernas e tratou de subir ao cavalo. Era evidente que não tinha montado em sua vida. Myers tentou lhe dar as rédeas, mas ela não fez conta. Só

juntava as mãos e gemia, aterrorizada. Os homens se estavam pondo nervosos e olhavam a todas partes,

esperando ver aparecer de um momento a outro ao sargento Murchison.

-Que monte comigo -sugeri-. Possivelmente assim se sinta mais segura. Entre todos a desmontaram com certa dificuldade e a instalaram na garupa

de meu cavalo. Cheirava a folhas frescas de tabaco, a narcóticos e a selva. agarrou-se de minha cintura como se lutasse por sua vida. Dava-lhe uma palmada nas mãos mas não se moveu nem deixou escapar nenhum som.

Não era estranho que estivesse aterrorizada, pensei, fazendo avançar a meu cavalo para seguir ao Myers. Era possível que não soubesse nada sobre o escândalo que Murchison tinha desatado no distrito, mas devia ter bastante claro

o que lhe aconteceria se a apanhavam; com segurança tinha estado na serraria duas semanas antes.

Como alternativa a uma morte segura era preferível escapar e cair em braços dos corte vermelhas, mas não o tinha muito claro a julgar por seus estremecimentos. A mulher tiritava embora não fazia frio.

Quase me afoga ao me apertar quando Cilindro apareceu entre os arbustos como um demônio do bosque. Passou trotando a poucos centímetros de

distância. A mulher ofegou e notei seu cálida respiração em meu pescoço. Toquei-lhe as mãos e lhe falei mas não me respondeu. Duncan havia dito que tinha

118

nascido na África e falava muito pouco inglês, mas seguro que entenderia

algumas palavras. -Tudo sairá bem -pinjente-. Não tenha medo.

Ocupada com o cavalo e a passageira não tinha visto o Jamie, que apareceu de repente tão silencioso como Cilindro.

-Está bem, Sassenach? -perguntou brandamente, colocando uma mão sobre minha coxa.

-Acredito que sim -respondi. Fiz um gesto para as mãos que se aferravam a

minha cintura-. Se não morrer afogada. Jamie olhou e sorriu. -Bom, ao menos não há perigo de que caia.

-Eu gostaria de poder lhe dizer algo, pobrecita. Está tão assustada... Crie que sabe onde a levamos?

-Não sei. -Não conhece algum dialeto para lhe falar? -perguntei-. Claro que, se não a

trouxeram das Antilhas, é possível que não o conheça.

Observou a minha passageira considerando a situação. -Ah -disse-. Bem, há uma coisa que todos conhecem, venham de onde

venham. -inclinou-se e oprimiu o pé da mulher-. Liberdade -disse e fez uma

pausa-. Saorsa. Sabe o que te digo? A mulher não afrouxou a pressão, mas sua respiração se converteu em um

suspiro e me pareceu que assentia com a cabeça. Os cavalos foram em fila, com o Myers à cabeça. O estreito atalho não era

nem sequer um caminho para carros, mas ao menos nos permitia passar entre as árvores. Duvidava que o sargento Murchison, cego pela sede de vingança,

seguisse-nos tão longe, se é que nos perseguia, mas a sensação de fuga era muito forte para passá-la por alto. Todos compartilhávamos, sem nomeá-la, a penetrante sensação de urgência e sem discuti-lo estávamos de acordo em

cavalgar o máximo possível. Minha companheira tinha perdido o medo ou simplesmente estava muito

cansada para preocupar-se. depois de nos deter meia-noite para nos refrescar, permitiu que Ian e Myers a colocassem sobre o cavalo sem protestar. E embora não afrouxou a pressão sobre minha cintura, pareceu dormitar com a frente

apoiada em minhas costas. Detivemo-nos o amanhecer, desensillamos os cavalos, os maneamos e os

deixamos comer em um prado. Acomodei-me junto ao Jamie sobre a erva e fiquei

dormida. Dormimos pesadamente enquanto durou o calor do dia e despertamos perto

da queda do sol, sedentos e talheres de carrapatos. Estava profundamente agradecida porque os carrapatos compartilhavam com os mosquitos seu desgosto por meu sangue; mas tinha aprendido em nossa viagem ao norte a examinar ao

Jamie e aos outros cada vez que dormíamos, já que sempre despertavam com intrusos.

-Puaj! -disse ao examinar um espécime do tamanho de uma uva e particularmente suculento que aninhava no pêlo do braço do Jamie-. Maldição, dá-me medo atirar desta, parece que vá arrebentar.

Jamie se encolheu de ombros enquanto se explorava o couro cabeludo. -Deixa-a; enquanto te ocupa do resto talvez caia sozinha. Myers e Ian pareciam arrumar-se as bem ajudando o um ao outro.

119

-Aqui há uma pequena -disse Jamie e me ensinou uma que tinha debaixo

da orelha. Estava tratando de tirar-lhe quando notei uma presença perto de meu

cotovelo. Quando acampamos estava muito cansada para me ocupar de nossa

fugitiva e tinha suposto que não se afastaria.

Mas tinha ido até um arroio próximo e retornava com um balde de água. Deixou-o no chão, bebeu um gole e a cuspiu no braço do Jamie. Logo tirou o

parasita com dedos ágeis, deixou-o cair na palma de sua mão, jogou-o com desprezo e se voltou para mim com ar de satisfação.

A imagem que tinha dela era uma bola torcida pela roupa. Mas agora me

parecia uma das imagens da fertilidade que tinha visto nas Antilhas. Estendeu a mão e me ensinou uns pequenos objetos.

-Paw-paw -disse com uma voz tão profunda que Myers a contemplou

assombrado. Ela sorriu com acanhamento e disse algo que não entendi, embora soube

que era gaélico. -Diz que não deve tragar as sementes porque são venenosas -traduziu

Jamie.

-Sim -assentiu Poliyanne-. Vêem-eno. enxaguou-se outra vez a boca. Logo mastigou outras duas sementes e se

dirigiu para o Myers. Uma vez que comemos e estivemos preparados para partir, Poliyanne

aceitou nervosa que a montassem em seu próprio cavalo. Seguia mostrando-se

tímida com os homens, mas logo recuperou a confiança para me falar em uma mescla de gaélico, inglês e seu próprio idioma. Livre, ao menos de momento, do

terror e sentindo-se bastante segura em nossa companhia emergiu sua personalidade efervescente e conversou enquanto cavalgávamos cotovelo com cotovelo, rendo de vez em quando e sem preocupar-se de se a entendia.

Só em uma ocasião se mostrou deprimida: quando passamos por um grande claro, onde a erva crescia em uma estranha forma ondulada, como se debaixo houvesse uma enorme serpente. Poliyanne permaneceu em silencio ao

ver o lugar atirou das rédeas e deteve o cavalo. Aproximei-me para ajudá-la. -Droch aite -murmurou, olhando de esguelha. Um mau lugar-. Djudju. Franziu o sobrecenho e fez um gesto com a mão, algo contra o diabo,

pensei. -É um cemitério? —perguntei ao Myers, quem se tinha aproximado para ver

o motivo de nossa parada. -Eu não diria um cemitério -respondeu empurrando para trás seu chapéu-.

Foi uma aldeia tuscarora, acredito. Ali -assinalou- estavam as casas. -O que aconteceu? Ian e Jamie também se detiveram para observar o lugar.

Myers, pensativo, arranhou-se a barba. -Não sei com segurança. Pôde ser uma enfermidade que terminasse com

todos eles. Embora o mais provável é que a causa do desaparecimento tenha sido uma guerra. Não é um site no que eu gostaria de ficar muito tempo.

Era evidente que Poliyanne pensava o mesmo.

Ao anoitecer, já tínhamos deixado atrás os pinheiros e os carvalhos das colinas. As árvores começaram a trocar e também o ar e o aroma eram diferentes. O aroma pesado da resina dos pinheiros deu passo a outros mais leves e

120

variados. As folhas das árvores se mesclavam com os arbustos e as flores

cresciam entre as gretas das rochas. Ainda havia muita umidade, mas o ambiente não era tão caloroso.

À posta do sol do sexto dia já estávamos nas montanhas e o ar se enchia com o som da água que corria. Os arroios se entrecruzavam pelos vales escorrendo-se sobre as rochas, arrastando o musgo com o que formavam um

delicado bordo verde. Quando dobramos pela ladeira de uma colina me detive surpreendida, de uma montanha distante, uma cascata saltava no ar caindo a

um lugar desconhecido. -Está olhando isso, não? -perguntou Ian, boquiaberto pelo assombro. -É preciosa -aceitou Myers com a satisfação de um proprietário-. Não é a

catarata maior que vi mas é impressionante. Ian voltou a cabeça com os olhos bem abertos. -Há-as maiores?

Myers riu com a risada ligeira dos montanheses. -Moço, ainda não viu nada.

Acampamos para passar a noite em um terreno baixo, perto de um riacho com a corrente suficiente para que houvesse trutas. Jamie e Ian se lançaram para ele com entusiasmo, incomodando aos peixes com varinhas de salgueiro.

Esperava que tivessem sorte, pois nossas provisões frescas eram escassas. Sua natural vitalidade estava um pouco apagada. Imaginei que suas

preocupações se deviam, ao menos em parte, a que era a última noite que passaríamos juntos. Tínhamos chegado ao limite das terras do Rei; ao dia seguinte Myers partiria para o norte para levá-la até a terra dos índios, onde veria

a vida que lhe esperava. O que pensaria? Tinha sobrevivido à viagem da África e à escravidão;

imaginava que nada do que lhe esperava poderia ser pior.

Cilindro apareceu ante a luz do fogo sacudindo a água em todas direções. Dava-me conta de que se uniu à pesca.

-Vete, cão horrível -pinjente. É obvio não me fez caso e se aproximou para me farejar grosseiramente,

assegurando-se de que eu era quem acreditava, logo se voltou para dar o mesmo

tratamento ao Poliyanne. Sem trocar de expressão, a mulher lhe cuspiu em um olho.

Cilindro retrocedeu e sacudiu a cabeça olhando-a surpreso. Poliyanne me olhou e sorriu zombadora mostrando seus dentes brancos. Ri e decidi que não devia me preocupar. Alguém capaz de cuspir em um olho a um lobo poderia

enfrentar-se aos índios, à vida selvagem e a algo.

-Nunca tinha visto tal quantidade de peixes -repetia Jamie por décima vez com cara de entusiasmo-. Saltavam pela água. Verdade, Ian?

Ian assentiu com o mesmo entusiasmo.

-Meu pai daria a perna por ver isto -disse-. Saltavam ao anzol, tia, de verdade!

-Os índios normalmente não se incomodam em usar fio e anzol -indicou Myers-. Fazem armadilhas para lhes deter e os pescam com um pau afiado.

Isso foi suficiente para o Ian. Qualquer menção sobre os índios provocava

uma série de perguntas ansiosas. Uma vez que terminou de averiguar tudo sobre seus métodos de pesca, insistiu sobre a aldeia abandonada que tínhamos visto durante a viagem.

121

-Você disse que podia ter sido por causa da guerra –disse enquanto tirava

os espinhos de uma parte de pescado quente e o dava a Cilindro, que o tragou sem esperar a que se esfriasse-. Foi na guerra com os franceses? Não sabia que

tinham chegado tão ao sul. -Não. -Myers negou com a cabeça-. Eu me referia à guerra da Tuscarora,

como a chamávamos os brancos. Explicou-nos que a guerra tinha consistido em um curto mas brutal

conflito, ocorrido uns quarenta anos antes a causa do ataque contra uns colonos.

O então governador da colônia enviou tropas como represália contra as aldeias tuscarora e o resultado foi que os colonos, muito melhor armados, devastaram a nação tuscarora.

-Agora só ficam sete aldeias e só na maior a população alcança os cem habitantes. -Fez um gesto de tristeza e nos explicou que não se extinguiram

porque os mohawk os tinham adotado formalmente e agora formavam parte da poderosa liga iroquesa.

-por que os adotaram os mohawk? -perguntou Jamie-. Se forem tão ferozes

como dizem não acredito que precisassem aliados. -São ferozes, mas também são mortais. Os índios som homens

sanguinários e também homens de honra -disse-, há grande quantidade de coisas

pelas que matariam, algumas razoáveis e outras nem tanto. Matam por vingança e a única forma de deter a vingança de um mohawk é acabar com ele. Inclusive

então, seu irmão, seu filho ou seu sobrinho lhe perseguirão. passou-se a língua pelos lábios saboreando o uísque. -Algumas vezes, os índios não matam por razões que nós consideramos

importantes, especialmente quando há licor por meio. -Parecem escoceses -murmurei ao Jamie, quem me devolveu um olhar

cheia de frieza. Myers levantou a garrafa de uísque e a fez girar entre suas mãos. -Em ocasiões qualquer pode tomar um gole de mais e converter-se no pior

dos homens, mas com os índios o primeiro gole já é suficiente. ouvi relatos de matanças por causa de homens enlouquecidos pela bebida.-Sacudiu a cabeça-. Dessa maneira, algumas tribos são virtualmente aniquiladas. Então adotam a

outros para substituir aos que mataram ou morreram vítima de enfermidades. Outras vezes agarram prisioneiros, mas terminam por integrá-los em suas

famílias e tratando-os como a iguais. É o que farão com ela -disse assinalando ao Poliyanne, que estava sentada ao lado do fogo sem emprestar atenção a seu bate-papo.

-Você fala mohawk, senhor Myers? -perguntou Ian. -um pouco. —Myers se encolheu de ombros com modéstia-, Qualquer

comerciante aprende umas poucas palavras aqui e lá. -E ao Poliyanne pensa levá-la com os tuscarora? -perguntou Jamie

enquanto cortava uma torta de milho.

-Estraga. São quatro ou cinco dias a cavalo -explicou Myers. voltou-se para mim e me sorriu para me dar confiança-. Ocuparei-me de deixá-la no lugar adequado, senhora Claire. não se preocupe com ela.

-Pergunto-me o que pensarão os índios quando a virem -disse Ian, olhando de esguelha à mulher-. Terão visto antes a uma mulher negra?

Myers riu ante a pergunta. -Moço, há muitos tuscarora que não viram antes a uma pessoa branca.

Poliyanne não causará mais impressão da que poderia causar sua tia e acredito

que a encontrarão muito agraciada, porque gostam das mulheres gordinhas.

122

Era evidente que Myers compartilhava essa admiração, pois seus olhos a

observavam com uma inocente luxúria. Ela também se deu conta e se produziu uma mudança extraordinária. Quase sem mover-se, centrou toda sua atenção no

Myers, que tragava saliva ruidosamente. Apartei a vista da cena e descobri que Jamie também olhava, entre

preocupado e risonho. Dava-lhe uma cotovelada e o olhei com uma expressão que

indicava: «Deve fazer algo!». Então Jamie se esclareceu garganta, inclinou-se para diante e sacudiu o

braço do Myers para tirar o de seu transe. -Eu não gostaria de pensar que vão ter uma conduta imprópria com esta

mulher -disse amavelmente, mas sublinhando a palavra «imprópria»-. Você

garantirá sua segurança, verdade, senhor Myers ? Myers sacudiu a cabeça sem compreender até que se deu conta do que lhe

estava dizendo Jamie.

-Não! Quer dizer, sim. Os mohawk e os tuscarora deixam que suas mulheres escolham com quem deitar-se, inclusive com quem casar-se. Não existe

a violação entre eles. Não, senhor, ninguém a tratará de forma imprópria, posso prometê-lo.

-Alegra-me ouvir isso.

Jamie me dirigiu um olhar que dizia: «Espero que esteja satisfeita». Lhe sorri com modéstia.

-Tio, o senhor Myers teve a amabilidade de me convidar a que vá com ele e a senhora Polly à aldeia a Índia. Assim me assegurarei de que a tratem bem.

-Você... -começou Jamie e se deteve.

Olhou-o de tal forma que podia ler seus pensamentos. Ian não tinha pedida permissão para ir; tinha anunciado diretamente que ia. Se Jamie o proibia teria que ser por um motivo de peso; se lhe dizia que era muito perigoso, significaria

admitir que mandava à pulseira para o perigo e que não confiava no Myers e suas relações com os índios locais. Jamie estava apanhado; Ian tinha sabido fazê-lo

muito bem. Respirou ruidosamente e Ian sorriu. Olhei ao outro lado do fogo. Poliyanne seguia ali, com os olhos cravados no

Myers. Com um sorriso de convite, subiu lentamente uma mão até um de seus grandes seios com ar ausente.

Myers a contemplava enjoado, como um cervo assanhado pelo caçador. Eu teria obrado de forma diferente?, pensei mais tarde, escutando os

discretos ruídos que provinham das mantas do Myers. Se soubesse que minha

vida dependia de um homem, não faria algo para me assegurar seu amparo frente a um perigo desconhecido?

Jamie me abraçou e voltou a ficar dormido. Possivelmente não havia grande

diferencia. Era meu futuro mais seguro que o seu? Acaso minha vida não dependia de um homem ligado a mim, ao menos em parte, pelo desejo de meu

corpo? Não, não era o mesmo, havia diferenças. Por mais desconhecido que fora

meu futuro, os laços entre o Jamie e eu eram muito mais profundos que os da

carne. Havia outra grande diferencia: eu tinha eleito estar ali.

15 Nobres selvagens

123

Separamo-nos pela manhã. Jamie e Myers acordaram como nos

reencontrar ao cabo de dez dias. Ao observar a assombrosa imensidão daqueles bosques e montanhas não pude imaginar como alguém podia encontrar um lugar

determinado; só podia confiar no sentido de orientação do Jamie. foram-se para o norte e nós para o sudoeste, seguindo o curso do arroio

junto ao que tínhamos acampado.

Ao princípio todo parecia muito tranqüilo e extrañamente solitário. Mas em pouco tempo me acostumei à solidão e comecei a me relaxar e a me interessar

pelo que nos rodeava. depois de tudo, este poderia ser nosso lar. -Sabe que não tinha visto uma vaga-lume até que fui viver a Boston? -

pinjente, entusiasmada ao as ver brilhando como esmeraldas na erva-. Não há vaga-lumes em Escócia, verdade?

Jamie fez um gesto negativo, e se reclinou perezosamente sobre a erva, com

um braço dobrado baixo a cabeça. -Bonitas e pequenas -observou e suspirou de felicidade-. Este é meu

momento favorito do dia. Quando vivia na cova, depois do Culloden, saía perto do anoitecer e me sentava em uma pedra a esperar que obscurecesse.

Tinha os olhos entrecerrados, observando as vaga-lumes.

-É só um momento, mas se sente como se fora a durar sempre. Estranho, não? -disse pensativo-. Quase pode ver a luz que se vai e entretanto não há um

momento em que possa olhar e dizer: Agora! Já é de noite! Fez um gesto para o claro que se abria entre as árvores. -Lembra-te do pai Anselmo da abadia? -Levantei a vista e vi que a cor das

folhas dos carvalhos se ia convertendo em um suave prateado-. Dizia que sempre há um momento do dia em que o tempo parece deter-se, mas que é diferente para cada pessoa. Ele pensava que podia ser a hora em que alguém tinha nascido.

Voltei a cabeça. -Sabe quando nasceu? -perguntei-. Refiro-me à hora do dia.

Sorriu e se deu a volta para me olhar à cara. -Sim, sei. Talvez tenha razão, porque nasci na hora do jantar, justo no

crepúsculo de primeiro de maio. A que hora nasceu você, Sassenach?

-Não sei -respondi, sentindo a dor por minha família perdida-. Não estava em meu certidão de nascimento, e se o tio Lamb sabia, não me disse isso. Mas sei

quando nasceu Brianna -acrescentei com alegria-. Nasceu às três e três minutos da madrugada. Havia um grande relógio na parede da sala de partos e me fixei.

face à pouca luz pude ver sua cara de surpresa.

-Estava acordada? Acreditei que me havia dito que às mulheres as drogam para que não sintam a dor.

-Quase sempre, mas eu não quis que me dessem nada.

-por que? -quis saber, incrédulo-. Nunca vi a uma mulher dar a luz, mas as ouvi em mais de uma ocasião. E maldita seja se entender por que alguém em seu

são julgamento quer acontecer por isso. -Bom... -Fiz uma pausa porque não desejava me pôr melodramática. Mas

era a verdade-. Acreditava que ia morrer e não queria que ocorresse enquanto

dormia. Não se impressionou. Arqueou uma sobrancelha e soprou divertido. -Você tivesse querido?

arranhou-se o nariz ainda divertido. -Bom, quando me foram pendurar estive perto da morte e eu não gostei da

espera. E quase me matam um par de vezes na batalha, mas então não me

124

preocupava muito a forma de morrer, estava muito ocupado. E finalmente quase

morro pelas feridas e a febre; então o desejava. Mas se me dão a escolher acredito que não me importaria morrer enquanto durmo. -Beijou-me brandamente-. Se for

possível na cama, a seu lado e a uma idade muito avançada. Tocou-me os lábios com sua língua e logo ficou em pé limpando-as folhas

secas dos calções.

-vamos preparar a fogueira agora que ainda há luz para acender o pederneira. Quer trazer o pescado?

Coloquei o pescado molhado sobre a erva e me sentei sobre meus talões observando ao Jamie.

-Como crie que será? -perguntei de repente-. Morrer, refiro-me. «O homem é

como a erva que se murcha e é jogada no fogo, é como as faíscas que voam para cima...» -citei com suavidade-. Crie que haverá algo depois?

-Não sei —disse finalmente-. Por um lado está o que diz a Igreja, mas... -

Seus olhos seguiam fixos nas vaga-lumes-. Não, não posso dizê-lo, mas poderia estar bem.

Apertou sua bochecha contra minha cabeça e logo se levantou. Eu também acreditava que poderia estar bem. Não sabíamos o que havia

depois da vida, mas podia ser algo cheio de paz...

Jamie roçou meu ombro com sua mão e sorri sem abrir os olhos. -Ai! -murmurou Jamie-. Cortei-me, sou um torpe.

Abri os olhos. Estava a um metro e meio de distância com a cabeça inclinada chupando o polegar que se cortou. Me pôs a carne de galinha.

-Jamie-disse.

Minha voz soou estranha inclusive a meus ouvidos. -Sim? -Há...? -Traguei saliva e o pêlo dos braços me arrepio-. Jamie, há alguém...

algo... detrás de mim? Seus olhos se fixaram nas sombras e se abriram surpreendidos. Não queria

olhar por cima de meu ombro e me esmaguei contra o chão em um gesto que me salvou a vida.

Algo me golpeou nas costas e pisou em minha cabeça. Um grande urso

negro se cambaleava pelo claro e suas patas pulverizavam os pequenos ramos da fogueira.

Médio cegada consegui ver o Jamie baixo o urso, que o cucaba o cangote com uma pata. Jamie tinha a cabeça baixo as fauces e tentava freneticamente apoiar um pé no chão. tirou-se as botas e as meias quando acampam e deixei

escapar um gemido quando vi que um dos pés descalços pisava nos restos do fogo, levantando as brasas.

O urso arremetia tratando de livrar do peso que lhe pendurava do pescoço.

Pareceu perder o equilíbrio e caiu pesadamente. Ouvi uma exclamação que não provinha do urso enquanto procurava enlouquecida algo que pudesse utilizar

como arma. O urso ficou em pé agitando-se com violência e vi o rosto do Jamie deformado pelo esforço.

-Corre! -gritou.

O urso caiu outra vez sobre ele e desapareceu baixo cento e cinqüenta quilogramas de cabelo e músculos.

Com vagas lembranças do Mowgli e a Flor Vermelha, procurei no chão sem

encontrar mais que ramitas inofensivas; então minha mão se deteve sobre algo frio e viscoso: o pescado abandonado a um lado.

-Ao diabo com Flor Vermelha -murmurei.

125

Agarrei uma das trutas pela cauda, corri e golpeei ao urso no focinho com

todas minhas forças; este fechou a boca surpreso, torceu a cabeça e se lançou sobre mim a uma velocidade que não tinha acreditado possível. Retrocedi e tentei

dar um último e valente golpe com o pescado antes de que o urso carregasse contra mim, com o peso morto do Jamie ainda pendurando de seu cangote.

Foi como ficar apanhada em um moinho de carne, naquele momento só

sentia alguns golpes no corpo e a sensação de que me afogava uma enorme manta peluda. Logo se separou, me deixando atirada de costas, impregnada de

aroma de urina de urso e piscando baixo o luzeiro da tarde que brilhava serenamente sobre minha cabeça.

Estava escuro, mas havia suficiente luz no firmamento para ver o que

acontecia. O urso tinha cansado outra vez, mas em lugar de levantar-se rodava o lombo tratando de sujeitar-se com as patas. Ouvi um grunhido que não era do urso e me chegou o aroma do sangue.

-Jamie! -chiei. Não recebi resposta. A massa que se contorsionaba continuava rodando

para as árvores. Lentamente, respirando de forma entrecortada e entre grunhidos, Jamie saiu engatinhando para o claro. Sem me preocupar com os golpes recebidos corri para ele e caí de joelhos.

-Jamie! Está bem? -Não -disse desabando-se em terra entre suaves ofegos.

-Cheira a matadouro -pinjente, enquanto lhe buscava o pulso no pescoço. Estava acelerado mas era forte. Uma onda de alívio me alagou-. O sangue é tua ou do urso?

-Se fosse minha, Sassenach, já estaria morto -disse, abrindo os olhos-. Embora se não o estou, não é graças a ti. -apoiou-se como pôde sobre suas mãos e joelhos, com um grunhido-. por que me golpeou com a truta enquanto lutava

por minha vida? -te esteja aquieto, caramba! -Não podia estar muito mal ferido se tratava de

mover-se. Apalpei-lhe o torso-, Costelas rotas? -perguntei. -Não. Mas se me faz cócegas, Sassenach, não me vai gostar -disse

ofegando-. Estou bem, Sassenach -disse enquanto rechaçava meus intentos para

lhe ajudar a sentar-se-. vá ver os cavalos, devem estar inquietos. À lombriga relincharam encantados, em que pese a meu aroma de urina de

urso. Das sombras chegavam uns gemidos quase humanos que me arrepiavam o pêlo da nuca. Quando terminei de acalmar aos cavalos, os gemidos já tinham cessado. Levei-os a claro do bosque, onde Jamie tinha aceso de novo o fogo.

-De verdade não está mal ferido? -perguntei, ainda preocupada. Dirigiu-me um sorriso torcido. -Golpeou-me nas costas mas não acredito que seja muito grave. Quer olhá-

lo? -endireitou-se, estremecendo-se pela dor. Pergunto-me por que o terá feito -disse, movendo a cabeça para o cadáver do urso-. Myers disse que os ursos

negros não atacam se não serem provocados. -Talvez alguém o fez -sugeri-. E logo teve o bom sentido de escapar. Despi suas costas e deixei escapar um assobio ante as marcas produzidas

pelas garras do urso. -Tão mal está? Jamie tratou de ver-se-a, mas se deteve com um grunhido de dor.

-Não, mas está muito suja, terei que te lavar. –Coloquei uma panela com água no fogo, pensando o que outra coisa podia usar-. vou procurar uma planta

126

de sagitária. Acredito que encontrarei alguma no arroio. -Alcancei-lhe a garrafa

de cerveja e agarrei sua faca-. Estará bem? Estava muito pálido e ainda tremia.

-Sim. Não se preocupe, Sassenach, a idéia de morrer dormindo em minha cama me parece mais doce agora que faz uma hora.

A lua se elevava brilhando sobre as árvores, o que me permitiu encontrar o

lugar sem problemas. Meti-me na água geada para arrancar a planta, lavei-me a cara e retornei para o fogo me sentindo algo melhor.

Podia ver o Jamie sentado muito erguido, em uma postura que devia resultar dolorosa para suas feridas. Detive-me de repente, para ouvir sua voz.

-Claire? -Não voltou a cabeça; sua voz era tranqüila e não esperou minha

resposta para continuar falando-. Te aproxime, Sassenach, coloca a faca em minha mão esquerda e fica aquieta.

Com o coração acelerado, dava os três passos que me permitiam ver por

cima do Jamie. Ao outro lado do claro, dentro do rádio de luz do fogo, três índios bem armados permaneciam imóveis. Era evidente que o urso tinha sido

provocado. Os índios nos contemplavam com o mesmo interesse que nós a eles. Eram

três, um maior e dois mais jovens, de uns vinte anos. «Um pai com seus filhos», pensei, pelo parecido que havia entre eles.

Observei suas armas com dissimulação. O major levava um antigo fuzil francês, daqueles que funcionavam com pederneira. Parecia que lhe exploraria na cara se disparava, mas confiei em que não o faria.

Um dos jovens levava um arco com flechas e os três tinham tochas de guerra de aspecto sinistro e largas facas no cinturão. Em comparação, o do Jamie parecia de brinquedo.

Certamente Jamie chegou à mesma conclusão que eu, porque se inclinou para diante e deixou a faca no chão, a seus pés. Logo estendeu as mãos vazias e

se encolheu de ombros. Os índios -lançaram umas risitas nervosas. O ruído era tão inofensivo que

sorri a modo de resposta, em que pese a que meu estômago seguia encolhido

pelos nervos. Quando vi que os ombros do Jamie se relaxavam me senti mais segura.

-Bonsoir, messieurs -disse-. Parlez-vous francais?

Os índios riram outra vez, olhando-se entre eles com acanhamento. O major avançou um passo e inclinou a cabeça.

-Não... francs —disse. -Inglês? -perguntei esperançada. Olhou-me interessado mas negou com a cabeça. Disse algo ininteligível a

um dos jovens, que lhe respondeu no mesmo idioma. Logo se dirigiu ao Jamie e lhe perguntou algo arqueando as sobrancelhas.

Jamie sacudiu a cabeça sem entender, então um dos jovens assinalou a camisa manchada de sangre com gesto de interrogação.

-Sim, está ali -disse Jamie, assinalando o urso.

Sem mais pergunta desapareceram na escuridão, de onde nos chegaram suas exclamações de excitação.

-Não passa nada, Sassenach. Não nos farão mal, são caçadores. -Fechou os

olhos e vi como o suor lhe cobria o rosto-. É uma sorte porque acredito que vou deprimir me.

127

-Nem o pense. Não te atreva a te deprimir e me deixar reveste com eles! -Fiz

que baixasse a cabeça e respirasse profundamente-. Agora te endireite, que já voltam.

Retornaram arrastando o cadáver do urso. Jamie se secou o suor com um lenço. Seguia tremendo apesar da calidez da noite.

O índio major se aproximou de nós e assinalou primeira a faca do Jamie e

logo o urso morto. Jamie assentiu com modéstia. O índio inclinou a cabeça e estendeu as mãos em um gesto de respeito.

Chamou um dos jovens, o qual se aproximou tirando uma bolsita de seu cinturão enquanto me apartava sem cerimônias e abria a camisa do Jamie para ver suas feridas. Derrubou a bolsa na palma de sua mão; caiu um pó grumoso sobre o que

cuspiu copiosamente e aplicou a mescla nas feridas. 16

A primeira lei da termodinâmica

Despertei bruscamente depois de amanhecer, com picores na cabeça. Sem abrir os olhos investiguei com a mão. O movimento assustou a uma gralha que tinha estado me arrancando alguns cabelos. Arranhei-me e não pude evitar um

sorriso recordando as vezes que me haviam dito que, quando me levantava, minha cabeça parecia um ninho de pássaros.

Os índios tinham desaparecido e com eles a cabeça do urso. Meu pente estava na bolsita de pele de ante onde tinha meus objetos

pessoais e algumas remédios de primeira necessidade. Sentei-me com cuidado

para não despertar ao Jamie. Estava deitado sobre suas costas, com as mãos cruzadas, tão pacífico como

a efígie de um sarcófago. A oportunidade de ver dormir não era muito freqüente.

Dormia como um gato, preparado para saltar ante qualquer ameaça. Habitualmente se levantava o amanhecer, enquanto eu ainda flutuava em

sonhos. Por uma vez não tinha pressa. Não tinha que alimentar um menino, nem

vestir e mandar à escola a uma criatura, nem me esperavam no trabalho

pacientes ou informe que escrever. Meus cabelos roçavam minhas costas nua com um agradável comichão.

Sonriendo me dava conta de que não o tinha imaginado. Estava segura de não me haver tirado a roupa ao me deitar. Levantei a manta e vi marcas de sangue seca em minhas coxas e no ventre. Sentia umidade entre as pernas. Passei-me um

dedo e encontrei algo leitoso, com um aroma que não era o meu. Isso foi suficiente para recordar o que acreditava que tinha sido um sonho. Um enorme urso sobre meu corpo, o terror, a imobilidade e as suaves carícias, muito

estranhas para ser as de um animal. E logo, em um momento de consciência, uma pele nua tocando a minha até chegar ao clímax, para finalmente me deslizar

para o mundo dos sonhos com um suave ronco escocês em meus ouvidos. -É normal que ainda durma -disse com tom acusador. Não abriu os olhos, mas um suave e lento sorriso cruzou sua cara como

resposta. Os índios tinham deixado uma parte da carne do urso envolta em sua pele

oleosa e pendurada dos ramos de uma árvore para que não perigasse ante as mofetas e os mapaches. Depois do café da manhã e de um apressado banho no

arroio, Jamie estudou o rumo a seguir.

128

-Iremos para ali -disse, assinalando um distante pico azulado-. Vê como se

marca um desfiladeiro? Ao outro lado está a terra dos índios; a nova linha do Tratado segue essa cordilheira.

-Realmente alguém fez um reconhecimento do terreno? Escrutinei com incredulidade as montanhas que se elevavam ante nós dos

vales. Entre a névoa da manhã surgiam como uma série interminável de

miragens, com cores que foram do negro esverdeado ao azul e ao púrpura, os picos mais longínquos pareciam agulhas negras atravessando um céu de cristal.

-Sim. -Fez voltar-se para seu cavalo para que o sol lhe desse nas costas-. Têm que havê-lo feito para poder dizer com segurança qual é a terra que pode utilizar-se. Informei-me dos limites antes de que saíssemos do Wilmington e

Myers me disse o mesmo: «O território que se situa a este lado da crista mais alta». Também o perguntei aos moços que jantaram conosco ontem à noite, só para estar seguro de que eles também sabiam. -Sorriu-me-. Lista, Sassenach?

-Mais que nunca -assegurei-lhe. Tinha lavado sua camisa ou o que ficava dela no arroio e agora se secava

baixo sua cadeira de montar. Ia semidesnudo, com as calças de couro e a capa atada à cintura, as largas cicatrizes deixadas pelo urso não estavam inflamadas e, pela forma em que se movia, ferida-las não deviam lhe doer.

Seu ânimo melhorava mais e mais enquanto nos afastávamos da planície. Não podia deixar de compartilhar sua alegria, mas ao mesmo tempo sentia um

terror crescente pelo que aquilo podia significar. No meio da amanhã chegamos às ladeiras. Estavam tão mastreadas que

não se podia avançar. Para cima se via uma rocha quase vertical e ante ela um

labirinto de ramos salpicados com cores douradas, verdes e castanhos. Atamos os cavalos perto de um arroio com a borda coberta de erva e seguimos a pé para diante e para cima, entrando naquele maldito bosque primitivo.

Alcançamos o topo de uma colina e encontramos outro ante nós e outro mais à frente. Não sabia o que estávamos procurando.

Seguimos pelo caminho, até encontrá-lo bloqueado por um bosquecillo de louros silvestres que, a certa distância, parecia um claro brilhante entre as coníferas escuras, mas de perto resultou possuir de uma maleza impenetrável.

Retrocedemos e baixamos. Baixo a sombra das árvores corria ar fresco e suspirei aliviada. Jamie me ouviu e se voltou sonriendo enquanto sujeitava um

ramo para me deixar passar. O terreno estava talher de uma grosa capa de folhas e os espaços entre as árvores tinham um ar fantástico, como se o passar entre os troncos enormes pudesse nos transportar, de repente, a outra dimensão da

realidade. O cabelo do Jamie brilhava com os ocasionais raios de sol, como uma tocha

que me iluminava para seguir através das sombras do bosque.

Subimos por um saliente de granito coberto de musgo e líquenes, seguimos o curso de um arroio que baixava, apartando as ervas altas que se enredavam em

nossas pernas e esquivando os ramos de louros silvestres e de rododendros. A nosso passo surgiam maravilhas: pequenas orquídeas e cogumelos

brilhantes, vermelhos e negros, entre os troncos cansados.

As libélulas revoavam sobre a água como jóias que se desvaneciam na névoa.

Senti-me enjoada pela abundância e cativada pela beleza. O rosto do Jamie

tinha a expressão de um homem que sabe que está sonhando e não deseja despertar. Paradoxalmente, enquanto melhor me sentia, também me sentia pior;

129

contente e assustada. Este era o site do Jamie e seguro que ele o sentia tão bem

como eu. Pela tarde nos detivemos cedo para descansar e beber de um pequeno

arroio que atravessava um claro do bosque. A terra baixo os arces estava coberta por uma grosa capa de folhas cor verde escura, entre as que divisei um súbito brilho vermelho.

-Morangos selvagens! -exclamei encantada. Eram pequenas e de cor vermelha escura. Para as pautas da horticultura

moderna resultavam muito azedas, quase amargas; mas depois da carne fria de urso e as duras tortas de milho resultavam deliciosas; uma fresca explosão de sabor em minha boca, e doces espetadas em minha língua.

Jamie apoiou as costas em um sicómoro e fechou os olhos ante o resplendor do sol da tarde. O pequeno claro retinha a luz como uma taça, limpa e tranqüila.

-O que te parece este lugar, Sassenach? -perguntou. -Acredito que é muito belo. Não te parece?

Assentiu olhando entre as árvores. -Estive pensando -disse Jamie, um pouco incômodo-. Há um arroio aqui no

bosque. Essa pradaria daí abaixo... -Assinalou a cortina de alisos que protegiam

a crista da verde ladeira-. Ao princípio serviria para uns poucos animais, logo a terra próxima ao rio poderia ser preparada para o cultivo. A elevação do terreno é

adequada para uma boa drenagem. E ali... Apanhado por suas visões ficou em pé assinalando algo. Olhei com

cuidado; para mim, o lugar se diferenciava muito pouco de outros pelos que

tínhamos passado nos últimos dias. Mas para o Jamie, com seus olhos de granjeiro, as casas, os currais e os campos semeados surgiam como os duendes dos cogumelos à sombra das árvores.

-Está pensando em que poderíamos nos estabelecer aqui? Aceitar a oferta do governador?

Olhou-me, detendo bruscamente suas especulações. -Poderíamos -respondeu-. Sim... interrompeu-se e me olhou de soslaio. Estava vermelho, mas naquele

momento não tivesse podido dizer se era pelo sol ou o rubor do acanhamento. -Crie nos signos, Sassenach?

-Que classe de signos? -perguntei com cautela. Como resposta se inclinou, recolheu uma planta e a depositou em minha

mão: as folhas eram verdes como pequenos leques, a flor branca com o caule

magro e havia um morango a ponto de maturar. -Estes. São os nossos, vê-o? -Nossos?

-Quero dizer dos Fraser -explicou-. Os morangos sempre foram o emblema do clã. É o que significa o nome desde que Monsieur Fréseliére chegou da França

com o rei Guillermo e recebeu, por seu trabalho, as terras nas montanhas de Escócia.

-Então, fostes guerreiros desde o começo?

-E também granjeiros. A dúvida de seus olhos se transformou em sorriso. Não disse o que estava pensando, mas lhe conhecia o suficiente para saber

a idéia que cruzava sua mente. Já não havia clã Fraser, a não ser fragmentos disseminados, aqueles que tinham sobrevivido escapando. Os clãs tinham sido

130

esmagados no Culloden e seus chefes sacrificados na batalha ou justiçados

posteriormente. Sorri-lhe lutando contra meu crescente desalento.

-Fréseliére, né? Senhor Strawberry? Cultivou-as ou somente gostava de comer-lhe

-Pelo um, pelo outro ou por ambas as coisas -respondeu com secura-. Ou

talvez porque era ruivo. Ri e ficou em cuclillas junto a mim.

-É uma planta extraordinária -disse, tocando o broto sobre minha mão aberta-. Flores, frutos e folhas, tudo junto ao mesmo tempo. As flores brancas são pela honra, a fruta vermelha pelo valor e as folhas verdes pela fidelidade.

Olhei-o com um nó na garganta. -O fruto tem a forma de um coração -disse brandamente e me beijou. Uma lágrima começou a rodar por minha bochecha. Jamie a secou,

levantou-se, tirou-se a roupa e me sorriu, totalmente nu. -Não há ninguém aqui –disse-. Ninguém salvo nós.

Poderia lhe haver dito que isso não era uma razão, mas sabia o que queria me dizer.

-No passado, os homens o faziam para fertilizar os campos -disse, me

dando a mão para que me levantasse. -Não vejo semeados.

E não estava segura de desejar que os houvesse alguma vez. De todos os modos, tirei-me a roupa enquanto Jamie me olhava com gosto. -Bom, não há dúvida de que primeiro deverei cortar umas poucas árvores.

Mas isso pode esperar, não? Fizemos uma cama com a capa e o manto e nos deitamos nus entre as

ervas amarelas e o aroma dos morangos silvestres.

-E o que seria do Éden sem a serpente? -murmurei. Seus olhos eram uns triângulos azuis, tão próximos que podia ver o negro

de suas pupilas. -Quereria comer comigo, mo chridhef O fruto da árvore do Bem e do Mal? Tirei a língua e passei a ponta por seus lábios. estremeceu-se entre meus

braços. -Je suis prest, Monsieur Fréseliére -pinjente.

Inclinou a cabeça e sua boca se apoderou de um de meus mamilos, como se fora um dos morangos.

-Madame Fréseliére -sussurrou-. Je suis a votre service. E então compartilhamos a fruta e as flores e as folhas verdes o cobriram

tudo.

Permanecemos adormecidos até que as primeiras sombras tocaram nossos

pés. Jamie se incorporou devagar e me tampou com a capa acreditando que

estava dormida. Dava-me a volta e o vi pouca distância dali, no limite do bosque, olhando o

terreno em declive que ia para o rio Sua única vestimenta era a capa sujeita à cintura. Com o cabelo solto sobre

os ombros luzia como o selvagem highlander que era. O que tinha pensado que

era uma armadilha para sua família e seu clã, era sua força. E o que tinha pensado que era minha força, minha solidão e minha falta de laços, era minha

debilidade.

131

Havia resolvido não dizer nada, viver o momento e aceitar o que viesse. Mas

o momento era este e não podia aceitá-lo. Vi que baixava a cabeça com determinação ao mesmo tempo que vi seu nome gravado na fria lápide. O terror e

o desespero se apoderaram de mim. Como se tivesse ouvido o eco de meu pensamento, voltou a cabeça para

mim. O que fora que viu em meu rosto lhe fez aproximar-se apressadamente.

-O que acontece, Sassenach? Não tinha sentido mentir, não quando podia lombriga.

-Tenho medo -estalei. Olhou para detectar o perigo enquanto sua mão procurava a faca, mas lhe

sujeitei o braço.

-Não é isso, Jamie. me abrace, por favor. -Tudo está bem, a nighean donn -murmurou-. Estou aqui. O que é o que te

assusta? -Você -pinjente e me apertei com mais força. Seu coração ressonava baixo

meu ouvido, forte e constante-. Dá-me medo pensar em ti, aqui, em nós vivendo...

-Medo? -perguntou-. Do que, Sassenach? -Seus braços me sustentaram com força-. Disse-te quando nos casamos que sempre te cuidaria. Dava-te três coisas aquele dia -disse brandamente, apertando minha cabeça contra seu

ombro-. Meu nome, minha família e o amparo de meu corpo. Terá essas três coisas sempre, Sassenach, enquanto os duas estejamos com vida. Não importa

onde. Não deixarei que passe fome nem fria, nem deixarei que nada te faça mal, nunca.

-Não tenho medo de nada disso -pinjente bruscamente-. Tenho medo de

que morra; não poderei suportá-lo, Jamie. Não poderei! tornou-se para trás surpreso e me olhou à cara.

-Bom, farei o que possa, Sassenach -disse-, mas já sabe que não tudo depende de mim nesse assunto.

Seu rosto estava sério, mas um lado de sua boca se curvava sem poder

reprimi-lo. -Não te ria! -pinjente furiosa-. Não te atreva a rir ! -Não, não o faço -assegurou-me, tratando de ficar sério.

-Está-o fazendo! Golpeie-lhe no peito. Então começou a rir e eu segui lhe dando golpes com

os punhos fechados. -Sassenach, viu-me perto da morte uma dúzia de vezes e não te moveu um

cabelo. por que está assim agora, quando nem sequer estou doente?

-Alguma vez me moveu um cabelo? -Observei-lhe com surpresa e fúria-. Acreditava que não me importava?

-Ah, bom, é obvio que sei que te importava. Mas nunca o pensei dessa maneira, admito-o.

-É obvio que não! E se o tivesse feito não teria havido diferença. É um...

um... escocês! Era a pior coisa que podia pensar em lhe dizer. E me apartei furiosa. Mas, desgraçadamente, cravei-me algo no pé descalço e quase me caio ao

tratar de me tirar o espinho. Uma mão forte me sujeitou o cotovelo. Com toda dignidade comecei a me vestir enquanto Jamie me observava com

os braços cruzados, sem fazer comentários. -Quando Deus expulsou ao Adão do Paraíso, ao menos Eva se foi com ele -

pinjente, falando comigo mesma.

132

-Estraga, isso é certo -disse depois de uma pausa cautelosa-, Né, não terá

comido alguma das novelo que recolheu esta manhã, não? Suponho que não -acrescentou ao ver minha expressão-. Só me perguntava isso. Myers disse que

algumas provocam pesadelos terríveis. -Não tenho pesadelos -disse com mais firmeza da necessária. Tinha-as, embora as novelo alucinógenas não tinham nada que ver.

Jamie suspirou. -Quer me dizer do que está falando, Sassenach, ou prefere me fazer sofrer

um pouco? -Estou falando de ti -pinjente. -por que?

-Porque é um maldito highlander com todas essas idéias sobre a honra, o valor e a fidelidade; sei que não pode evitá-lo e eu tampouco quero que o faça. Só

que, maldição, isso te vai levar a Escócia, onde morrerá e não poderei fazer nada para evitá-lo.

-Escócia? -perguntou, como se houvesse dito uma loucura.

-Escócia! Onde está sua maldita tumba! -Ah! -disse-. Já vejo. Crie que se for a Escócia, morrerei, já que ali está

minha tumba. É isso?

Assenti, muito turvada para falar. -Mmm. E por que pensa que vou a Escócia?

-E de onde diabos vais tirar colonos para estas terras? É obvio que irá a Escócia! Olhou-me. Esta vez o zangado era ele.

-Como pensa que poderia fazê-lo, Sassenach? Pude fazê-lo quando tinha as

pedras preciosas. Mas agora? Talvez tenha dez libras a meu nome e som emprestadas. Irei voando como um pássaro? Trarei às pessoas caminhando sobre

a água? -Já pensará em algo -pinjente me sentindo uma desgraçada-. Sempre o faz. -Não me tinha dado conta de que pensava que eu era Deus Todo-poderoso,

Sassenach. -Não, homem. Moisés, em todo caso. Jamie, com as mãos nas costas, começou a passear.

-Não posso fazê-lo sozinho -disse com calma-. Nisso tem razão. Mas não acredito que tenha que ir a Escócia para procurar colonos.

-E a que outro lugar? -Meus homens... os homens que estiveram comigo no Ardsmuir. Estão

todos aqui.

-Mas não tem nem idéia de onde -protestei-. E além disso, trouxeram-nos faz anos! Já devem estar situados. Não vão deixar o tudo para vir ao fim do

mundo contigo! Sorriu-me com ironia. -Você o fez, Sassenach.

Respirei profundamente. O peso do temor que tinha ocupado meu coração durante aquelas semanas tinha desaparecido.

-Pensarei em algo -disse, sonriendo ao ver as dúvidas e incertezas em meu

rosto-. Sempre o faço, não? Deixei escapar um comprido suspiro.

-Faz-o. Está seguro? Sua tia Yocasta... -Não -respondeu-. Nunca. Vacilei, me sentindo culpado.

-Não o fará... não é por mim? É pelo que disse sobre os escravos?

133

-Eu vivi como escravo, Claire -disse com a cabeça encurvada-. E não

poderia viver sabendo que há um homem na terra que sente para mim o que eu senti para meus donos.

-Não vais deixar me? –perguntei-. Não vais morrer? Sacudiu a cabeça e me oprimiu a mão. -Você é meu valor, assim como eu sou sua consciência -sussurrou-. Você é

meu coração e eu sua compaixão. Solos não somos nada. Não sabe, Sassenach? -Sei -disse com voz tremente-. Por isso tenho tanto medo. Não quero voltar

a ser meia pessoa, não poderia suportá-lo. Agarrou-me entre seus braços e pude sentir como subia e baixava seu peito

ao respirar.

-Mas não te dá conta de que a noção da morte entre nós é muito pouca coisa, Claire? -sussurrou.

Minhas mãos se fecharam contra seu peito. Não, não pensava que fora

pouca coisa. -Todo o tempo, quando me deixou depois do Culloden, estive morto, não é

assim? -Acreditei que estava morto. Por isso... Suspirei profundamente e Jamie assentiu.

-dentro de duzentos anos seguro que estarei morto, Sassenach -disse sonriendo-. Por causa dos índios, os animais selvagens, uma praga, a corda da

forca ou só pela bênção de uma idade avançada, mas estarei morto. -Sim. -E enquanto você estava ali, em seu próprio tempo... eu estava morto, não?

Assenti sem palavras. Inclusive agora posso olhar para trás e ver o abismo de desespero no que aquela partida me sumiu e de que saí subindo penosamente centímetro a centímetro.

-«O homem é como a erva do campo -citou, esfregando minhas mãos-. Hoje floresce; amanhã se seca e se atira ao forno.» Levantou o penacho verde e o levou

aos lábios, para logo passá-lo por minha boca. -Estava morto, Sassenach, e entretanto todo esse tempo te amei. Fechei os olhos sentindo a leve coceira da erva em meus lábios.

-Eu também te amava -sussurrei-. Sempre o fiz. -Enquanto meu corpo e o teu vivam, seremos uma só carne -sussurrou.

Seus dedos me tocaram o cabelo, o queixo, o pescoço e os peitos; respirei seu fôlego e o senti em minhas mãos.

-E quando meu corpo pereça, minha alma ainda será tua, Claire. Juro por

minha esperança de ganhar o céu que não serei separado de ti. Nada se perde, Sassenach; só se transforma.

-Isso é a primeira lei da termodinâmica -pinjente me secando o nariz.

-Não -respondeu-. Isso é fé.

SEXTA PARTE Je t´aime

17 Em casa para as festas

Inverness, Escócia, 23 de dezembro de 1969

134

Controlou o horário de trens por décima vez e continuou dando voltas pelo

vestíbulo da reitoria, muito inquieto para sentar-se. Ainda devia esperar uma hora.

A habitação estava semidesmantelada, montões de caixas de cartão por toda parte, sem nenhuma ordem. Tinha prometido deixar o lugar vazio para Ano Novo, salvo as coisas que Fiona queria ficar.

Desejava que a senhora Graham e o reverendo tivessem conhecido a Brianna, quão mesmo a jovem a eles. Sorriu ante a mesa da cozinha, recordando

uma conversação em sua adolescência com as duas pessoas maiores quando ele, presa de um louco desejo não correspondido pela filha do dono do estanque, tinha-lhes perguntado como se sabia se a gente estava realmente apaixonado.

-Se tiver que te perguntar se está apaixonado, moço, então não o está -assegurou-lhe a senhora Graham-. E mantén suas garras longe da pequena Mavis ou seu pai te matará.

-Quando está apaixonado, Roger, sabe sem que lhe digam isso -atravessou o reverendo, colocando um dedo na massa da torta e retrocedendo, zombador,

quando a senhora Graham lhe ameaçou com a colher. Tinham razão. Sabia desde que conheceu a Brianna Randall. O que não

sabia com segurança era se Brianna sentia o mesmo.

Não podia esperar mais. tocou-se o bolso para verificar que tinha as chaves, baixou as escadas e saiu a enfrentar-se com a chuva de inverno, que tinha

começado justo depois do café da manhã. Diziam que uma ducha fria era o melhor remédio. Mas com o Mavis não tinha funcionado.

24 de dezembro de 1969

-O bolo de ameixas está no forno quente e o molho na panela. -Fiona lhe deu as instruções, colocando-se seu chapéu de lã de cor vermelha. Fiona era baixa e a seu lado parecia uma anã de jardim-. Não suba muito o fogo. Aqui estão

as instruções para amanhã... -Não se preocupe, Fiona -tranqüilizou-a-. Não vamos queimar a casa. Nem

tampouco morreremos de fome.

Arqueou as sobrancelhas vacilando ante a porta. Seu noivo a esperava fora, sentado no carro com o motor em marcha, impaciente.

-Ah, bom. Está seguro de que não querem vir conosco? À mãe do Ernie não lhe importará. Estou segura de que não lhe parecerá bem que fiquem sozinhos em Natal...

-Não se preocupe, Fiona -disse empurrando-a para a porta-. E passa umas boas festas com o Ernie.

O som da buzina a fez olhar ao carro com indignação. -Bom, já vou, vale? voltou-se para o Roger e com um sorriso radiante jogou os braços ao

pescoço e nas pontas dos pés lhe beijou nos lábios. Deu um passo atrás e lhe piscou os olhos um olho. -Isso ensinará ao Ernie -sussurrou-. Felizes Páscoas, Rog! -disse em voz

alta e se foi rebolando até o carro. Roger permaneceu no alpendre agitando a mão. abriu-se a porta e Brianna

tirou a cabeça. -O que está fazendo fora sem casaco? Está gelando!

135

Vacilou com a tentação de contar-lhe depois de tudo, era evidente que a

relação da Fiona e Ernie ia vento em popa. Mas era véspera de Natal, recordou-se a si mesmo.

Pese ao céu escuro e a temperatura baixa, sentia calor. Sorriu-lhe. -Estava me despedindo da Fiona -disse-. vamos ver se podemos preparar o

almoço sem queimar a cozinha?

Prepararam uns sanduíches sem nenhum problema e retornaram ao estudo depois do almoço. A habitação já estava quase vazia, só ficavam umas

poucas prateleiras com livros para embalar. O grande escritório do reverendo tinha sido esvaziado e levado a garagem,

as prateleiras também estavam virtualmente vazias e o painel de cortiça da

parede livre de papéis, só tinha ficado um. Tinha-o deixado para o final. -O que acontece esses? -Brianna assinalou um montão de livros que havia

sobre a mesa-. Estão assinados mas não dedicados. Tem a série que dedicou a

seu pai. Também quer estes? São primeiras edições. Roger colheu com delicadeza um dos livros. Era a obra do Frank Randall;

livros tão elegantemente escritos como apresentados. -Deve guardá-los você, não te parece? -disse. Sem esperar resposta colocou

um em uma caixa-. depois de tudo, é a obra de seu pai.

-Já os tenho –protestou-. Toneladas. Caixas e caixas. -Mas suponho que não estarão assinados.

-Bom, não. —Agarrou outro e o abriu-. Está seguro de que não os quer, Roger?

-Claro -respondeu sonriendo-. Não se preocupe, não me faltam livros.

Brianna lançou uma gargalhada e guardou os livros na caixa. Logo continuou com sua tarefa de limpá-los antes de embalá-los. -Não vais sentir saudades este lugar? -perguntou. apartou-se uma mecha

de cabelo dos olhos e assinalou a enorme habitação-, Cresceu aqui, não? -Sim e sim -respondeu, colocando outra caixa sobre o montão que foram

enviar à biblioteca da universidade-. Mas não tenho eleição. -Suponho que não pode viver aqui -aceitou com pena-. Como está em

Oxford a maioria do tempo... mas era necessário vendê-la?

-Não posso vendê-la. Esta casa não é minha. -O que quer dizer com que não é tua?

-O que pinjente -respondeu-. Não é minha. A casa e o terreno pertencem à igreja; papai viveu aqui perto de cinqüenta anos, mas não era o dono. Pertence à administração da paróquia. O novo ministro não a quer. Tem dinheiro e uma

esposa a que gosta das casas modernas, assim que a puseram em venda. Fiona e seu Ernie a vão comprar, que o céu lhes ajude.

-Para eles dois sozinhos?

-É troca e têm uma boa razão -acrescentou com ironia-. Ela quer ter muitos meninos e aqui há lugar para um exército, lhe posso assegurar isso As bodas

será em fevereiro, por isso devo terminar a mudança já, para dar tempo aos pintores e aos da limpeza. Embora seja uma vergonha que te faça trabalhar durante as festas. Talvez poderíamos ir ao Fort William na segunda-feira.

Brianna agarrou outro livro mas não o colocou na caixa. -Não me parece justo, embora me alegro de que fique Fiona. Roger se encolheu de ombros.

-Não pensava me instalar no Inverness, nem era a casa de meus antepassados e tampouco podia cobrar entrada e fazer visitas guiadas pelo lugar.

Brianna sorriu e seguiu classificando livros.

136

-O reverendo tinha quase tantos livros como meus pais -disse-. Entre os

livros de medicina de mamãe e os de história de papai, poderia-se abastecer uma biblioteca. É provável que me leve seis meses, quando voltar a CA.... quando

retornar. –mordeu-se o lábio-. Disse a da imobiliária que podia pôr a casa em venda para o verão.

-Isso é o que te incomodava? -disse lentamente, observando seu rosto-.

Estava pensando em te separar da casa onde cresceu, deixar seu lar para sempre?

-Se você pode fazê-lo, suponho que eu também poderei. Por outra parte -continuou com tom de resolução-, não é tão terrível. Mamãe se ocupou de quase tudo, encontrou um inquilino e deixou a casa alugada por um ano, assim me

deixava tempo para decidir com calma o que faria sem me preocupar com ter a casa vazia. Mas é uma tolice que me fique, é muito grande para viver eu sozinha.

-Poderia te casar -deixou escapar sem pensá-lo.

-Suponho que poderia -respondeu e o olhou de esguelha, com uma espécie de sorriso-. Algum dia. Mas e se meu marido não quer viver em Boston?

de repente lhe ocorreu que a preocupação da Brianna pela perda da casa paroquial podia ser porque ela se viu vivendo ali.

-Quer ter filhos? -perguntou bruscamente.

Olhou-lhe surpreendida e logo riu. -Os filhos únicos em geral querem ter famílias numerosas, não?

-Não lhe saberia dizer isso Mas sei que eu sim quero. aproximou-se entre as caixas e a beijou. -Eu também. Será melhor que terminemos de limpar isto.

-O que? -Demorou para compreender o sentido de suas palavras-. Bom, sim. Claro, suponho que sim.

Inclinou a cabeça e a voltou a beijar, esta vez lentamente.

Tinha-lhe passado um braço pela cintura e com a outra mão lhe acariciava o pescoço e o sedoso cabelo. Enquanto a beijava, desejava apoiá-la sobre o tapete

Y... Um breve golpe lhe fez levantar a cabeça. -Quem é? -exclamou Brianna, com uma mão apoiada no peito.

Uma parede do estudo era um imenso ventanal, já que o reverendo tinha sido pintor e necessitava abundante luz, uma cara quadrada com bigode se

esmagava contra um dos vidros, olhando com grande interesse. -Esse -disse Roger entre dentes- é o carteiro, MacBeth. Que diabos está

fazendo aqui esse velho descarado?

Como se tivesse ouvido sua pergunta, o senhor MacBeth deu um passo atrás, tirou uma carta de sua bolsa e a agitou com jovialidade ante eles.

-Uma carta -disse olhando a Brianna.

-por que não a deixou na rolha? -quis saber Roger-. Traga-a aqui. O senhor MacBeth entregou a carta com aspecto de dignidade ofendida

enquanto tentava ver a Brianna depois das costas do Roger. -Poderia ser importante, não? Dos Estados Unidos. E é para a senhorita,

não para ti, moço.

-Muito obrigado -disse Brianna sonriendo, ainda ruborizada. Agarrou a carta e a olhou sem abri-la. -De visita, não? -perguntou com entusiasmo-. Os dois sozinhos aqui, não?

Olhou a Brianna de cima abaixo com franco interesse. -Não -disse Brianna, com expressão séria. Dobrou a carta e a guardou no

bolso dos nos cubra-. Tio Angus está conosco, dormindo acima.

137

Roger se mordeu o lábio para não rir. Tio Angus era um brinquedo de pano

roído que Brianna tinha encontrado e colocado no quarto de hóspedes, junto a sua boina escocesa.

O carteiro arqueou as sobrancelhas. -Ah, já vejo. Também é norte-americano, seu tio Angus? -Não, é do Aberdeen.

O senhor MacBeth estava encantado. -Tem uma parte escocesa na família. Bom, devi imaginá-lo ao ver seu

cabelo. É você uma garota muito bonita. -Sim, bom. -Roger se esclareceu garganta-. Não queremos lhe distrair de

seu trabalho, senhor MacBeth.

-Não há problema. -Que tenha um bom dia, senhor MacBeth -disse Roger com certa ênfase. -Você também, senhor Wakefield.

-vais ler a carta? Brianna se ruborizou ao agarrá-la.

-Não é importante. Lerei-a logo. Roger arqueou uma sobrancelha. Brianna se encolheu de ombros e abriu o

sobre, tirando uma folha de papel.

-Disse-lhe isso, não era nada importante. Lê-a você mesmo. «Não!», exclamou Brianna para si. Não era muito, uma informação da

biblioteca de sua universidade para lhe dizer que o que ela tinha pedido não podia obtê-lo por esse meio, mas que podia procurar na coleção privada dos Estuardo, no anexo real da Universidade do Edimburgo.

-Deveu me dizer o que procurava -disse com calma-. Podia te haver ajudado.

encolheu-se de ombros levemente.

-Sei como fazer uma investigação histórica. Estava acostumado a ajudar a minha p... -interrompeu-se, mordendo o lábio.

-Sim, já vejo -disse e a agarrou do braço para levá-la à cozinha-. vou preparar o chá.

-Eu não gosto do chá -protestou.

-Necessita uma taça de chá -disse Roger com firmeza. Colocou as taças, os pratos e uma garrafa de uísque.

-E tampouco eu gosto do uísque -disse Brianna. -Sim eu gosto do uísque -disse-. Mas detesto beber sozinho. Fará-me

companhia?

Sorriu-lhe, desejando que ela também o fizesse. Finalmente o fez. sentou-se frente a ela e encheu sua taça até a metade. -Ah. Glen Morangie. Seguro que não quer me acompanhar? Um chorrito em

seu chá? Negou com a cabeça; quando a água começou a ferver se levantou e

preparou o chá. Roger se aproximou e lhe aconteceu os braços pela cintura. -Não é algo para te envergonhar -disse brandamente-. Tem direito ou seja o

tudo. Ao fim e ao cabo, Jamie Fraser era seu pai.

-Mas não o é... não realmente. Eu tive um pai. Frank Randall, ele era meu pai e eu lhe quero, queria-lhe. Não me parece correto procurar a outro, como se ele não fora suficiente, como...

-Não tem nada que ver com o Frank Randall nem com o que sinta por ele; era seu pai e nada poderá trocar isso. Mas é natural sentir curiosidade, querer

saber.

138

-Alguma vez você quis saber?

agarrou-se a sua mão. Roger respirou profundamente procurando consolo no uísque.

-Sim, sim, fiz-o. E acredito que você também o necessita. vamos sentar nos e te contarei.

Sabia o que se sentia ao ter perdido um pai, um pai desconhecido.

-Inventava histórias e por isso me brigavam no colégio. Mas precisava fazer que fora real. Dá-te conta? Por sorte, papai, o reverendo, entendeu o problema.

Começou a me contar coisas sobre meu pai. Jerry MacKenzie foi um herói, de acordo, e lhe mataram. Mas o que o fazia real para mim eram as coisas simples, o que fazia de menino. Isso fez que sentisse saudades mais que nunca, porque

então soube um pouco do que tinha perdido; mas tinha que saber. -Algumas pessoas dizem que não pode sentir saudades o que nunca teve e

que por isso é melhor não saber nada -disse Brianna.

-Algumas pessoas são tolas. Ou covardes. -E sua mãe?

-Tenho algumas lembranças dela, tinha cinco anos quando morreu. Guardo algumas caixas na garagem com suas coisas, suas cartas. É como dizia papai: "Todos necessitamos uma historia». A minha está ali e sei que se a preciso posso

encontrá-la. Contemplou-a durante um momento.

-A estranhas muito? -disse-. Ao Claire. -Eu... eu tenho medo de saber. Não é só ele, é ela também. Quero dizer,

conheço a história do Jamie Fraser, pois ela me falava muito dele. Muito mais do

que encontraria em arquivos históricos -acrescentou com um débil sorriso-. Mas mamãe... ao princípio tratei de pensar que se foi, como se fora uma viagem. Quando não pude fazê-lo mais, tratei de acreditar que estava morta. -Roger lhe

alcançou um guardanapo para que se soasse o nariz-. Mas não é assim. Esse é o problema! A sinto falta de constantemente e sei que não a verei nunca mais, mas

nem sequer está morta!. Como posso chorá-la como morta, quando acredito e espero que seja feliz onde eu a obriguei a ir?

Apurou o conteúdo de sua taça e tossiu.

-Por isso quero saber, entende-o? Quero encontrá-la, encontrá-los aos dois. Saber se ela estiver bem. Mas também penso que talvez, não queira saber. Porque

e se descobrir que não está bem? E se descobrir algo horrível? E se ela estiver morta ou ele...?, bom isso não importaria canto, porque de todos os modos agora já está morto... Mas tenho que saber, sei que tenho que fazê-lo!

Deixou sua taça para que lhe servisse uísque e não esperou a que lhe acrescentasse chá. Bebeu um comprido trago.

-Assim estive procurando. Quando vi os livros de papai e sua assinatura,

então todo me pareceu mau- Crie que estou equivocada? -Não, mulher -disse carinhosamente-. Não está mau. Tem razão, deve

saber. Ajudará-te. -ficou em pé e a levantou para abraçá-la-. Mas agora acredito que deveria descansar um momento.

Ajudou-a a subir as escadas e quando chegaram acima, Brianna se soltou e

correu ao quarto de banho. -Que desperdício do Glen Morangie. Se o tivesse sabido, tivesse-te dado um

mais barato.

Brianna se derrubou na cama e permitiu que lhe tirasse os sapatos. ficou de lado, com o tio Angus nos braços.

-Disse-te que eu não gostava do chá -murmurou e ficou dormida.

139

Roger trabalhou um par de horas, guardando livros e fechando caixas. Logo se ocupou dos restos do chá, lavando e secando as taças; restos do velho Jogo de

porcelana, com árvores e pagodes em branco e azul. Fiona teria tudo novo. Em um impulso, agarrou as duas taças que tinham usado, envolveu-as e

as levou a estudo para as guardar com suas coisas.

sentiu-se bastante tolo e, ao mesmo tempo, muito melhor. Olhou a seu redor; o estudo estava vazio, salvo pela folha de papel cravada na parede de

cortiça. «Assim que fica sem sua casa?" Bom, tinha deixado sua casa fazia tempo, não?.

Mas lhe chateava. Muito mais do que tinha demonstrado a Brianna. Por

isso tinha demorado canto em terminar de limpar a reitoria, tinha que reconhecê-lo. Com uma sensação de cerimônia lúgubre, arrancou a folha amarelada da parede de cortiça. Era sua árvore de família, uma carta genealógica feita pela mão

do reverendo. Gerações do MacKenzie. O reverendo conhecia poucas histórias individuais;

a maioria da gente da lista só eram nomes. E a mais importante da lista, nem sequer isso, a mulher cujos olhos verdes Roger via cada manhã no espelho não estava em nenhuma parte daquela lista, por boas razões.

Os dedos do Roger se detiveram perto da parte superior da árvore. Ali estava ele, o suplantado: William Buccieigh MacKenzie. Tinham-no entregue a

uns pais adotivos. Tinha sido o fruto ilegítimo, durante a guerra, do caudilho do clã Mackenzie e de uma bruxa condenada à fogueira. Dougal MacKenzie e a bruxa Geillis Duncan. Não era uma bruxa, é obvio, mas era tanto ou mais

perigosa. Ele tinha seus olhos, ou ao menos isso dizia Claire. Teria herdado algo mais dela? A aterradora capacidade de viajar através das pedras passaria através de gerações de respeitáveis boiadeiros e marinheiros?

Bom, podia ajudar a Brianna em sua busca. E quanto a ele... Roger colocou a folha em uma pasta e a guardou em uma caixa. Fechou a

tampa de cartão e fez uma X com papel colado sobre a lapela. -Isso é tudo -disse em voz alta, e saiu da habitação vazia.

deteve-se no alto da escada, surpreso. Brianna se tinha banhado e agora estava no corredor, só com uma toalha.

Embora tinha visto mais dela no verão, com suas calças curtas e camisetas, a fragilidade do que a cobria excitava ao Roger. O saber que podia despi-la com um simples gesto e que estavam os dois sós na casa...

Deu um passo para ela e se deteve. Lhe tinha ouvido, mas passou um momento antes de que se voltasse. Não disse nada. limitou-se a olhá-lo, entreabrindo os olhos escuros. Levantou a cabeça enquanto Roger se aproximava

e, com um gesto, tirou-se a toalha da cabeça. Seus cabelos brilhavam como serpentes de bronze. Não era a beleza de uma

Gorgona, mas sim de um espírito das águas, que trocava sua forma de cavalo com crinas de serpentes pela de uma mulher mágica.

-Ninfa -sussurrou na ruborizada bochecha-. Parece que tivesse saído das

montanhas de Escócia. Brianna lhe aconteceu os braços pelo pescoço, soltando a toalha, que ficou

sujeita entre seus corpos.

Tinha as costas nua. Roger desejava cobri-la do frio, despir-se e lhe dar seu calor, ali mesmo, naquele ventoso corredor.

-Vapor -sussurrou-. Emana vapor.

140

A boca da Brianna se curvou em um sorriso.

-Você também, Roger, e isso que não te banhaste. Sua mão fria estava no pescoço do Roger. Abriu a boca para dizer algo

mais, mas a beijou, sentindo um calor úmido através de sua camisa. Roger baixou a mão, apertando a curva de seu traseiro. Brianna se

sobressaltou, perdeu o equilíbrio e os dois caíram, torpemente, em um esforço

por manter-se em pé. Os joelhos do Roger golpearam o chão e arrastou a Brianna com ele. A

jovem caiu rendo. ia agarrar sua toalha, mas a abandonou, enquanto Roger voltava a beijá-la.

Acariciou-lhe um seio com uma mão enquanto baixava a outra, mas a

deteve com um esforço. De que cor seria seu pêlo? Castanho avermelhado, como imaginava? Ou cobre e bronze como seu cabelo?

-Por favor -sussurrou a jovem-. Por favor, quero que siga.

-Não -disse Roger com voz rouca-. Não, não aqui. Não desta maneira. Brianna se incorporou e se cobriu com a toalha. Roger lhe acariciou os

lábios. -Tem que ser melhor -sussurrou-. Quero fazê-lo melhor... a primeira vez. Então, o aroma de sopa queimada subiu pela escada e os dois se

sobressaltaram. -Algo se queima! -disse Brianna e quis baixar, com a toalha de novo em seu

lugar. Mas a deteve. Estava geada. -Eu o farei —disse—. vá vestir te. Jogou-lhe um rápido olhar e desapareceu.

Abaixo, Roger lutava com a sopa derramada enquanto se repreendia a si

mesmo. O que tinha pensado fazer? lhe arrancar a toalha e atirá-la ao chão;

diabos, ela devia pensar que era um violador! O calor que sentia no peito não era devido à vergonha ou ao calor da

cozinha. Era o calor da pele da Brianna, que ainda sentia. «Quero que siga», havia-lhe dito e o dizia a sério.

Desejava-a. Queria tudo dela, não só a cama, não só seu corpo. Queria

tudo, para sempre. de repente, a frase bíblica «uma só carne", parecia-lhe algo imediato e muito real. Atirou os restos da sopa na pia. Não importa, comeriam no

bar. Seria melhor sair de casa e afastar-se da tentação. Um jantar, uma conversação informal e talvez uma caminhada pela borda

do rio. Brianna queria ir aos serviços de Véspera de natal. depois disso...

depois disso, o pediria, de maneira formal. E ela o aceitaria, sabia que diria que sim. E então...

Bom, então poderiam retornar a casa, um lugar escuro e privado onde um

amor novo apareceria no mundo. Roger apagou a luz e saiu da cozinha. detrás dele, esquecida, chama-a do

gás ardia azul e amarela na escuridão, firme e constante como os fogos do amor.

18 Luxúria imprópria

141

O reverendo Wakefield tinha sido um homem bondoso e ecumênico,

tolerante com todas as opiniões religiosas e desejoso de abrigar doutrinas que sua congregação poderia encontrar ultrajantes ou diretamente blasfemas.

Entretanto, toda uma vida exposto à rigidez do presbiterianismo escocês e seus permanentes receios para todo o «apostólico romano», tinham deixado no Roger certa insegurança na hora de entrar em uma igreja católica, como se

temesse que lhe atacassem pelas costas os padres estrangeiros para batizá-lo pela força.

Mas nada disso ocorreu enquanto seguia a Brianna ao interior da pequena igreja de pedra. Ao entrar, Brianna tirou da bolsa um pequeno véu negro de encaixe e o pôs na cabeça.

-Que é isso? -perguntou. -Não sei como o chamam –respondeu-. usa-se na igreja se não levar chapéu

ou véu. Em realidade, já não existe a obrigação de levá-lo, mas cresci com este

costume. As mulheres não podiam entrar em uma igreja católica com a cabeça descoberta, já sabe.

-Não, não sabia -disse Roger, crescentemente interessado-, por que não? -São Pablo, provavelmente, acreditava que as mulheres deviam cobrir o

cabelo, para não ser objeto de luxúria imprópria. Um velho louco -acrescentou-.

Mamãe sempre dizia que lhe tinha ojeriza às mulheres. Pensava que eram perigosas -disse com sorriso zombador.

-São-o. Impulsivamente, inclinou-se e a beijou, sem fazer caso dos olhares da gente

próxima.

Ela o olhou surpreendida, mas logo lhe devolveu o beijo, suave e rapidamente, Roger sentiu um murmúrio de censura, mas não lhe emprestou atenção.

-Na igreja e em Véspera de natal! -disse alguém com voz rouca. -Bom, Annie, não é exatamente a igreja, é só a entrada.

-E ele é o filho do ministro! Brianna se fez a um lado e lhe olhou, com a boca tremendo de risada. Roger lhe devolveu o sorriso e tocou seu rosto radiante. Levava o colar de

sua avó e sua pele refletia o brilho das pérolas. -Senhor Wakefield, é você?

voltou-se e se encontrou com dois pares de olhos inquisitivos. Duas anciãs, de baixa estatura, agarradas do braço.

-Senhora McMurdo, senhora lhes Haja! Felizes Páscoas! -saudou sonriendo.

Conhecia-as de toda a vida. -Então, vai a Roma, senhor Wakefield? –perguntou Chrissie McMurdo,

enquanto seu amiga ria.

-Ainda não -respondeu Roger, ainda sonriendo-. Estou acompanhando a uma amiga. Conhecem a senhorita Randall?

As duas anciãs a olharam com franco curiosidade. Para ambas, sua presença ali era uma declaração de suas intenções tão

clara como se o tivesse publicado no periódico. Que lástima que Brianna não se

desse conta. Ou se dava conta? A jovem o olhou de esguelha, com um sorriso especial, e lhe apertou o braço.

-É um prazer te conhecer, querida -disse a senhora McMurdo com a cabeça

estirada para olhá-la-Que moça mais bonita e alta! -Olhou ao Roger com picardia-. Que sorte ter encontrado um moço para fazer casal, não?

142

O sino começou a soar e Roger agarrou a Brianna do braço. Frente a eles,

Jessie Hayes se deu a volta para lhes dirigir um sorriso. Brianna molhou tosse dedos na pilha de pedra e se fez o sinal da cruz.

Roger encontrou que o gesto lhe era súbita e extrañamente familiar. ficaram junto a uma família, enquanto alguém tocava no pequeno órgão.

Logo a música se deteve e todos ficaram em pé enquanto a procissão entrava pelo

corredor central. Roger sentiu um ligeiro rechaço ante a mescla de ostentação e cânticos em

latim. Entretanto, ao começar a missa, as coisas lhe pareceram mais normais; leituras da Bíblia e o acostumado sermão, agradavelmente aborrecido.

Para quando a congregação ficou em pé de novo, Roger tinha perdido toda

sensação de estranheza. Observou a Brianna quando ia comungar e se deu conta de que tinha começado a rezar. Mas não era o ignóbil “me deixe possui-la". Era mais humilde, e esperava que aceitável, «me deixe merecê-la, me deixe amá-la

como corresponde, me deixe cuidá-la». Fez um gesto para o altar e se esclareceu garganta como se o tivessem

surpreso em uma conversação privada. Brianna retornou com 1os olhos muito abertos e um sorriso sonhador.

ajoelhou-se e ele a imitou.

As vozes do coro lhe fizeram voltar para a realidade. Viu o sacerdote retirar-se com suas coroinhas, em meio de nuvens de incenso.

Brianna cantarolava enquanto foram caminho do rio. -Apagou o gás, não?

-Sim -assegurou Roger-. Não se preocupe. Entre a cozinha e o aquecedor, que a reitoria não se incendiou até agora é uma prova do amparo divino.

Brianna riu.

Caminharam do braço junto ao rio Ness. Roger se sentia curiosamente vulnerável, como se tivesse perdido o calor e a segurança que tinha na igreja. Só

nervos, pensou, e apertou o braço da Brianna com mais firmeza. Era o momento. -Brianna. Girou-a para tê-la frente a frente. Seu cabelo se agitou, brilhando baixo as

luzes da rua. -Desejo-te, Brianna -disse brandamente-. Amo-te. Quer te casar comigo?

Não respondeu, mas seu rosto trocou como a água quando lhe arroja uma pedra.

-Não queria que te dissesse isso. -Sentia que respirava gelo e se cravava em

seu coração e seus pulmões-. Não queria ouvir isso,não? Sacudiu a cabeça, sem dizer nada. -Ah, bom. -Com um esforço, soltou-lhe a mão-. Está bem -disse, surpreso

pela tranqüilidade de sua voz-. Não tem que preocupar-se. ia seguir caminhando quando Brianna lhe deteve, lhe sujeitando do braço.

-Roger. Teve que fazer um grande esforço para olhá-la; não queria consolo, nem

desejava ouvir a oferta de «ser amigos». Mas se voltou e Brianna se apertou contra

ele, agarrou-lhe a cabeça e lhe beijou com desespero. Roger a agarrou das mãos e a apartou. -A que está jogando?

A fúria era melhor que a sensação de vazio. -Não estou jogando! Disse que me desejava. –Tragou ar-. Eu também te

desejo. Não sabe? Não lhe hei isso dito esta tarde?

143

-Acreditei que assim era. -Olhou-a fixamente-. Que diabos quer dizer?

-Quero dizer que... que quero me deitar contigo -estalou. -Mas não quer te casar comigo?

Negou com o rosto, branco como um lençol. -Então não te casará comigo, mas quer joder comigo? Como pode dizer algo

assim?

-Não use essa linguagem comigo! -Linguagem? Você pode sugeri-lo, mas eu não posso pronunciar a palavra?

Nunca me ofenderam tanto, nunca! Brianna tremia e as mechas do cabelo lhe caíam pela cara. -Não queria te insultar. Eu acreditei que desejava, que...

Agarrou-a dos braços e a atraiu para ele. -Se tudo o que quisesse fora me deitar contigo, o teria feito uma dúzia de

vezes o verão passado!

-Isso é o que você te crie! soltou-se um braço e lhe deu uma bofetada, lhe agarrando por surpresa.

Roger lhe sujeitou a mão e a beijou, com um beijo muito mais largo e intenso que antes.

-Isso é o que acredito -disse, soltando-a para respirar. secou-se a boca e

deu um passo atrás, tremendo. Havia sangre em sua mão, tinha-lhe mordido e não havia sentido nada-. Mas não o fiz -disse, respirando com mais calma-. Isso

não era o que queria e não é o que quero agora. -limpou-se o sangue da mão com a camisa-. Mas se não te importo o suficiente para te casar comigo, então tampouco me importa o suficiente para te colocar em minha cama!

-Claro que me importa! -Já o vejo. -Importa-me muito para me casar contigo, maldição!

-Que você o que? -Porque quando me casar contigo, quando me casar com qualquer, tem que

durar. Ouve-me? Se fizer um juramento assim, manterei-o, não importa quanto me custe!

As lágrimas rodavam por suas bochechas. Roger tirou um lenço do bolso e

o deu. -te soe o nariz, te limpe a cara e logo me diz de que diabos está falando.

Fez o que lhe dizia. -Seu acento escocês aparece quando te zanga -disse com um tímido intento

de sorriso, enquanto lhe devolvia o lenço.

-Não sente saudades -disse com exasperação-. Agora, me diga o que quer dizer e faz-o com claridade, antes de que me faça falar em gaélico.

-Sabe falar gaélico?

Brianna ia recuperando-se. -Sei, e se não querer aprender uma boa quantidade de expressões

grosseiras... fala. Como pode me fazer semelhante oferta uma boa garota católica recém saída de missa? Acreditei que foi virgem.

-Sou-o! E isso o que tem que ver?

antes de que pudesse responder a semelhante atrocidade, a jovem seguiu adiante.

-Não me disse que não tinha estado com garotas? Eu sei que esteve!

-Sim, estive! Não queria me casar com elas e elas não queriam casar-se comigo. Não as amava, elas não me amavam. É a ti a quem amo, maldição!

apoiou-se no farol da rua, com as mãos nas costas, e olhou aos olhos.

144

-Acredito que eu também te amo.

-Ah. Mmm. E me diga, qual é o verbo principal, «acreditar» ou «amar»? relaxou-se um pouco e tragou saliva.

-Ambos. Levantou uma mão antes de que Roger começasse a falar. -Amo-te..., acredito. Mas... mas não posso deixar de pensar no que

aconteceu a minha mãe. Não quero que me aconteça o mesmo. -Sua mãe? -O simples assombro deu passo a uma sensação de ofensa-. O

que? Está pensando no maldito Jaime Fraser? Parece-te que não vais estar satisfeita com um aborrecido historiador... que vais necessitar uma grande paixão, como ela teve por ele e crie que talvez eu não lhe possa dar isso

-Não! Não estou pensando no Jamie Fraser!Estou pensando em meu pai! Lhe queria quando se casou com ele.,, vi-o nas fotos que me deu. Ela disse na pobreza e na riqueza, na saúde e na enfermidade e o dizia a sério. E logo... logo

conheceu o Jamie Fraser e já não o pensou mais. ficou em silêncio, procurando as palavras.

-Não a culpo, de verdade que não, não depois de havê-lo sabido. Não podia evitá-lo. Quando falava dele, dava-me conta de como o amava. Mas não te dá conta, Roger? Ela também amava a meu pai, mas algo aconteceu. Não o esperava

e não foi por sua culpa, mas fez que faltasse a sua palavra. Não quero fazer isso, por nenhuma causa.

secou-se o nariz com a mão e Roger lhe devolveu o lenço em silêncio. secou-se as lágrimas e lhe olhou.

-Passará mais de um ano antes de que possamos estar juntos. Você não

pode deixar Oxford; eu não posso deixar Boston até que obtenha meu título. Desejava lhe dizer que ia renunciar ou que ela podia deixar seus estudos,

mas não disse nada. Brianna tinha razão.

-E o que, se agora disser sim, e logo acontece algo? Se conhecer outra pessoa ou você conhece outra? -As lágrimas voltaram a correr por suas

bochechas-.Não vou arriscar me a te machucar. Não o farei. -Mas me ama agora? -Acariciou-lhe a bochecha-. Bri, ama-me? Deu um passo atrás e, sem falar, tirou-se o casaco.

-Que estas diabos fazendo? O assombro se somava a uma série de emoções, enquanto os pálidos dedos

da jovem lhe baixavam muito devagar o fechamento da jaqueta. O súbito frio desapareceu ante o calor do corpo da jovem que se apertava

contra o seu.

Brianna não disse nada e ele tampouco. Podia sentir o corpo da jovem e uma corrente de desejo que o estremecia, como uma corrente elétrica.

O ruído de uns saltos altos ressonou no pavimento e uma rouquidão soou,

tão forte que poderia ter despertado a um morto. Roger apertou mais a Brianna e não se moveu. Em resposta, a jovem o

abraçou com mais força e aproximou sua boca. As duas anciãs amigas passaram de comprimento, comentando o bonito

que era ser jovens e estar apaixonados.

-Esperarei -disse Roger e a soltou. Agarrou-lhe as mãos e a olhou aos olhos, agora suaves e claros-. Mas me escute. Terei-te toda ou não te terei.

«me deixe amá-la como é devido», disse em uma silenciosa oração. Não o

havia dito muitas vezes a senhora Graham? “Tome cuidado com o que pede, moço, porque pode consegui-lo."

Pô-lhe a mão no peito.

145

-Não é só seu corpo o que quero, embora Deus sabe como o desejo. Mas

quero te ter como minha esposa... ou não te terei. É sua eleição. -Entendo -sussurrou.

O vento do rio era frio. Fechou-lhe o casaco e ao fazê-lo, sua mão roçou seu próprio bolso e tocou um pacote. Tinha pensado dar-lhe durante o jantar.

-Toma -disse, entregando-lhe Feliz Natal. Comprei-o no verão -disse

enquanto ela tratava de abrir o pacote-. Agora parece que tivesse adivinhado o futuro, não?

Tirou um bracelete de prata com umas palavras gravadas. Roger a colocou e Brianna lhe deu a volta, para ler a inscrição.

Je t'amie— um peu... beaucoup... passionnément., ps du tout. Eu te amo... um pouco... muito- apaixonadamente... para nada.

Roger fez girar o bracelete, completando o círculo. -Je t'aime-disse.

-Moi aussi -disse Brianna docemente, olhando-o-, Joyeux Noel SÉTIMA PARTE Na montanha

19

Benzer o lar Setembro de 1767

Dormir baixo a lua e as estrelas nos braços de seu amante nu é o mais

romântico que há. Dormir baixo um tosco teto, espremida entre um enorme marido molhado e um sobrinho igualmente grande e molhado, escutando a chuva que penetra entre os ramos e tratando de rechaçar as rabugices de um imenso

cão, também molhado, era algo totalmente distinto. Pu-me de joelhos e tratei de sair sem despertar a ninguém. Jamie grunhiu

entre sonhos. Ian e Cilindro seguiam juntos, formando um barulho de cabelos e roupa.

Fora fazia frio e e! ar era tão afresco que quase me fez tossir. Descalça e

com os pés gelados, baixei com cuidado para o arroio com uma panela baixo o braço. Ainda não tinha amanhecido e o bosque estava talher pela névoa e a luz

azul cinzenta do crepúsculo, a misteriosa media luz que aparece nos dois extremos do dia, quando as pequenas criaturas saem a alimentar-se.

Jamie tinha razão ao sugerir que ficássemos na montanha em lugar de

retornar ao Cross Creek. Era o começo do mês de setembro; segundo os cálculos do Myers íamos ter dois meses de bom tempo (relativamente bom, corrigi, olhando as nuvens) antes de que o frio nos obrigasse a construir um refúgio.

Teríamos tempo suficiente para construir uma pequena cabana, caçar e nos preparar para passar o inverno.

-vamos ter que trabalhar duro -havia dito Jamie-. Será perigoso se a neve chegar antes de tempo ou se não posso caçar o suficiente. Não ficaremos se disser que não, Sassenach. Tem medo?

Medo era uma forma suave de dizê-lo, pois só de pensá-lo meu estômago se retorcia. Quando aceitei que nos instalássemos na colina, pensava que

retornaríamos ao Cross Creek para passar o inverno e retornaríamos à montanha na primavera, com provisões e colonos para limpar o terreno e construir casas.

146

Em lugar disso, estávamos completamente sós e a vários dias de viagem do

assentamento de europeus mais próximo. Solos durante todo o inverno. Pela primeira vez recordei River Run com certa nostalgia: a água quente, as camas

abrigadas, a comida abundante, a ordem, a limpeza,- e a segurança. Conhecia o motivo pelo qual Jamie não desejava retornar. Viver da

generosidade da Yocasta durante vários meses lhe ataria muito mais e seria mais

difícil rechaçar sua oferta. Sabia melhor que eu que Yocasta Cameron era uma MacKenzie. Tinha

conhecido bastante a seus irmãos, Dougal e Colum, para ser muito cauteloso ante semelhante legado; os MacKenzie do Leoch não abandonam facilmente seus propósitos e não vacilam em conspirar para conseguir seus fins. Uma aranha

cega podia tecer suas redes com mais segurança, dependendo exclusivamente de seu sentido do tato.

-Não é só pelo que há no River Run pelo que não quer retornar, verdade? -

tinha-lhe perguntado. -É tão evidente? -Bastante. Então me diga -insisti-, por que ficamos?

-Como posso te explicar o que significa a necessidade de espaço? A necessidade de sentir a neve e o ar das montanhas ao respirar, como quando Deus soprou sobre o Adão? De subir sentindo as rochas em minhas mãos e

vendo os líquenes agüentando o vento e o sol? Para viver como um homem tenho que ter uma montanha -disse com simplicidade-. Confia em mim, Sassenach?

-Com minha vida -foi minha resposta. -E com seu coração?. -Sempre -sussurrei e, fechando os olhos, beijei-o.

Tudo ficou arrumado. Myers retornaria imediatamente ao Cross Creek e

daria as instruções do Jamie ao Duncan, informaria a Yocasta de nosso bem-

estar e procuraria comprar tudo o que pudesse com o resto de nosso dinheiro. Se tinha tempo, antes da primeira nevada retornaria com provisões do contrário o

faria na primavera, tão ficaria conosco já que sua ajuda seria necessária na construção da cabana e para caçar.

O arroio tinha aumentado seu caudal por causa das chuvas e seria uns

trinta centímetros mais alto que no dia anterior. Ajoelhei-me, sentindo um rangido em minhas costas. Dormir sobre a terra

aumentava a rigidez habitual das manhãs. Lavei-me a cara com abundante água fria e bebi um gole. Quando ao pouco me lleve a cabeça vi dois cervos bebendo ao outro lado, um pouco mais acima de onde eu estava. Permaneci imóvel para não

lhes assustar, embora não demonstraram alarme por minha presença. De repente, desapareceram. Não tinha visto como se davam a volta e

punham-se a correr. em que pese a sua beleza etérea estava segura de não havê-

los imaginado, pois ficavam os rastros escuros no barro da borda. Mas já se foram.

Não vi nem ouvi nada, mas senti como me arrepiava o cabelo. Fique paralisada, meus olhos era quão único movia. Onde estava, o que

acontecia?

O sol tinha saído, o verde das taças das árvores era apreciável e as rochas começavam a brilhar. Mas os pássaros estavam silenciosos e nada se movia salvo a água.

Estava a menos de dois metros de mim, apenas visível detrás de um arbusto. O som de seus lengüetazos ao beber água se perdia entre o ruído da

corrente. Naquele momento levanto a larga cabeça e torceu uma orelha em

147

direção a mim em que pese a que não tinha feito ruído. Poderia ouvir minha

respiração? Não era um medo consciente, a não ser puro instinto e um total assombro o

que me tinha imobilizado ante a beleza do puma e sua proximidade. Ao me partir deixou com o sistema nervoso destroçado e tremendo; demorei vários minutos em poder me levantar. As mãos me tremiam tanto que, antes de poder enchê-la,

derrubei a panela três vezes. Havia-me dito que confiasse nele. O fazia? Sim, confiava e tinha muita sorte

de poder fazê-lo, mas esperava que a próxima vez estivesse a meu lado. Por esta vez estava viva.

Quando abri os olhos, os pássaros cantavam de novo. Subi pelo atalho em

direção ao claro, resistindo o impulso de voltar a vista atrás. Jamie e Ian tinham destruído vários pinheiros altos e esbeltos no dia

anterior, tinham-nos talhado em partes de três metros e médio e feito rodar costa abaixo. Agora estavam empilhados ao bordo de um pequeno claro, brilhando pela

umidade. Quando retornei com a panela cheia de água, Jamie esmagava a erva

molhada, enquanto media com uma corda. Ian tinha preparado o fogo sobre uma

grande pedra plaina; tinha adquirido do Jamie o costume de guardar um punhado de lenha seca no embornal, junto à pederneira e o elo.

-Faremos um pequeno abrigo -estava dizendo Jamie, com ar concentrado-. Construiremo-lo primeiro para poder dormir ali se volta a chover; mas é necessário que o façamos tão seguro como a cabana. Isso nos proporcionará um

pouco de prática, em, Ian? -Para que é... além da prática? -perguntei. Levantou a vista e me sorriu.

-bom dia, Sassenach. dormiste bem? -É obvio que não -pinjente-, Para que é o abrigo?

-Carne -respondeu-. Cavaremos um fosso pouco profundo e o encheremos de brasas para defumar tudo o que possamos conservar- Também faremos uma grade para utilizar o de secador; Ian viu como o faziam os índios para preparar o

que eles chamam charque. Devemos ter um lugar seguro para que os animais não nos roubem a comida.

Parecia uma boa idéia, tendo em conta a classe de animais que pululavam pelo lugar. Minhas únicas dúvidas se centravam no processo de defumado. Tinha-o visto fazer em Escócia e sabia que a carne defumada necessita bastante

atenção. Não me resultou difícil adivinhar quem seria a encarregada dessa tarefa. -De acordo -disse sem entusiasmo.

Jamie captou meu tom e me sorriu zombador. -Este é o primeiro abrigo, Sassenach. O segundo será teu.

-Meu? Animei-me um pouco. -Para suas ervas e novelo. Ocupam espaço, se mal não recordar. -Assinalou

para o outro extremo do claro com o brilho da mania construtora em seus olhos- E Justo ali estará a cabana onde viveremos durante o inverno.

Para minha surpresa, acabaram as paredes do abrigo ao final do segundo

dia v o cobriram grosseiramente com ramos, até que pudessem fazê-lo com telhas de madeira. As paredes estavam feitas com troncos magros, entre os que ficavam

frestas e fendas. Entretanto, era o bastante grande como para que dormíssemos

148

confortavelmente os três e Cilindro. Em um extremo havia um fossa rodeado de

pedras onde se podia acender uma fogueira que fazia o lugar mais agradável. Tinham tirado a quantidade suficiente de ramos do teto para deixar um oco para

a fumaça. Por este oco podia ver o luzeiro da tarde quando me acurrucaba sobre o Jamie e lhe escutava criticar sua destreza no trabalho.

-Olhe isso -disse mal-humorado, levantando o queixo para o rincão mais afastado-. Esse tronco está torcido, terei que endireitar toda a linha.

-Não acredito que importe aos cervos mortos -murmurei-. Vamos, me deixe

ver essa mão. Suas mãos sempre tinham tido calos, mas podia sentir novas rugosidades ocasionadas por cortes e raspaduras. Tinha tantas lascas cravadas, que sua Palmas cravavam ao as tocar.

-Parece um puercoespín –disse-. Vêem, te aproxime do fogo, assim poderei ver bem para lhe tirar isso

Passou por cima do Ian, que dormia com a cabeça apoiada-y construíste este em dois dias, com uma tocha e uma faca. Não há um só prego! por que esperava que parecesse o palácio do Buckingham?

-Não cheguei a ver o palácio do Buckingham -disse mansamente-. Mas aceito o que me diz, Sassenach.

-Bem -pinjente e segui examinando sua palma para lhe tirar mais espinhos.

-Suponho que, ao menos, não se derrubará -disse depois de uma larga pausa.

Ficamos em silêncio, ouvindo o suave crepitar do fogo. Uma vez que terminei com sua mão esquerda, ocupei-me da direita.

-A casa estará sobre a colina -disse súbitamente-. Onde crescem os

morangos silvestres. -Sim? -murmurei-. Refere-te à cabana? Acreditei que ia estar ao lado do

claro. -Não, não a cabana. Uma bonita casa -explicou brandamente-. Com escada

e janelas com cristais.

-Isso será magnífico. Guardei a pinça na caixa. -Com tetos altos e portas o bastante altas para que possa entrar sem me

golpear a cabeça. -Isso será maravilhoso -pinjente, recostando meu corpo sobre o seu.

ao longe, um lobo uivou e Cilindro levantou a cabeça, escutou e deixou escapar um suspiro.

-Com um quarto para mim e um estudo com prateleiras para os livros, para

ti. -Mmm. -Naquele momento, tinha um só livro que utilizávamos como guia:

História natural da Carolina do Norte, publicado em 1733-. E uma cama -pinjente-. Poderá fazer uma cama, verdade?

-Tão boa como qualquer do palácio do Buckingham.

Myers, bendito seja seu coração bondoso e sua natureza leal, retornou

aquele mesmo mês trazendo consigo três mulas carregadas com ferramentas, pequenos móveis, produtos necessários como sal e também ao Duncan Innes.

-Aqui?

Innes olhou com interesse para a pequena casa que tinha começado a tomar forma sobre a colina coberta dê morangos. Já tínhamos dois abrigos e um

curral onde guardar os cavalos e outros animais.

149

Nesse momento, nosso gado consistia em um pequeno porco branco, que

Jamie tinha obtido de um assentamento de moravos, a umas trinta milhas dali, trocando-o por uma bolsa de batata-doces doces que eu tinha recolhido e

vassouras de ramitas de salgueiro feitas por mim. Como era muito pequeno para o curral, tinha vivido conosco no abrigo, onde rapidamente se feito amigo de Cilindro. Eu não estava tão afeiçoada com o animal.

-Sim. É uma terra boa, com muita água. Há arroios no bosque e o riacho o cruza de um extremo ao Outro.

Duncan tinha sido pescador, não granjeiro, mas assentiu com os olhos fixos na paisagem que Jamie enchia de futuras casas.

-Medi-o com passos -dizia Jamie-, embora devamos medir o de forma

adequada logo que se possa. Mas tenho a descrição em minha cabeça. Por acaso trouxestes papel e tinta?

-Sim, e também outras coisas mais -disse Duncan. Sua cara larga e melancólica se iluminou com um sorriso-. A senhorita Eu me deu um colchão de plumas, pensou que não lhes viria mau.

-Um colchão de plumas? Que maravilha! Imediatamente rechacei todo pensamento pouco generoso que tivesse tido

para a Yocasta Cameron. Jamie fazia uma excelente cama, com madeira de

carvalho e o somier trancado engenhosamente com cordas, mas não tínhamos mais que ramos de cedro como colchão, muito fragrantes mas cheias de vultos

desagradáveis. Meus pensamentos de luxuriosos quedas foram interrompidos pelos gritos

do Ian e Myers. Vinham do bosque e Myers levava uma réstia de esquilos

pendurado de seu cinturão. Ian me apresentou com orgulho um enorme vulto negro que, inspecionado

de perto, resultou ser um peru. -O moço tem bom olho, senhora Claire -disse Myers com gestos de

aprovação-. Os perus são animais muito matreiros. Nem sequer os índios os

apanham com facilidade. Era muito cedo para o dia de Ação de Obrigado, mas estava encantada com

o ave, que seria o primeiro elemento substancial em nossa despensa. O mesmo

acontecia ao Jamie, embora seu prazer vinha motivado pela cauda, que lhe proporcionaria uma boa provisão de plumas para escrever.

-Devo escrever ao governador -explicou durante a comida-, para lhe dizer que vou aceitar sua oferta e lhe fazer uma descrição do terreno.

Agarrou uma parte de torta e o mastigou distraído.

-Tome cuidado com as nozes -pinjente, um pouco nervosa-. Não quererá te romper um dente.

-Não se preocupe, Sassenach -murmurou Jamie e me sorriu-. Está muito boa. -E voltou sua atenção ao Duncan-. Uma vez que terminemos de comer, Duncan, poderíamos caminhar basta o rio para que escolha seu terreno?

O rosto do Innes empalideceu e logo se ruborizou com uma mescla de prazer e desconsolo.

-Meu terreno? Quer dizer minha terra, MacDubh?

Com um movimento involuntário, encurvou o ombro do lado que lhe faltava o braço.

-Sim, sua terra. -Sem lhe olhar, Jamie cravou uma batata-doce quente e começou a cortá-la-. Necessitarei-te para que atue como meu agente, Duncan, se quiser. E receberá seu pagamento. Agora, o que tinha pensado, se você o

considerar justo, é solicitar um pedaço de terra a seu nome e, como não vais

150

estar aqui para trabalhá-la, Ian e eu nos encarregaríamos de semear trigo e de

construir um pequeno cercado. Quando chegar o momento, terá, se quiser, um lugar para te estabelecer- Crie que te convém?

-Mas... -começou e logo se deteve, tragando saliva-. Sim, MAC Dubh. Claro que me convém. -Desde que Jamie tinha começado a falar, o sorriso de

incredulidade do Innes não se apagava-. Agente. -Tragou saliva outra vez enquanto agarrava uma das garrafas de cerveja que havia trazido-, E o que tenho que fazer, MacDubh.

-Duas coisas, Duncan. Primeiro, procurar colonos. -Jamie fez um gesto para o que seria nossa nova cabana-. Agora não posso ir daqui. E quero que

encontre a todos os homens do Ardsmuir que possa. Muitos devem estar na Carolina do Norte ou do Sul. Busca os, lhes diga que estou aqui e vêem com todos os que possa para a primavera.

-Muito bem -respondeu Duncan-. E qual é a segunda? Jamie me olhou e logo ao Duncan. -Minha tia -disse-- Poderia ajudá-la, Duncan? Necessita um homem

honrado, que possa tratar com esses bastardos da Marinha e que fale por ela nos negócios.

-Negócios? Mas eu não conheço... -Não se preocupe -disse Jamie e sorriu a seu amigo-. Minha tia sabe muito

bem o que terá que fazer. Ela te dirá o que terá que dizer e como fazê-lo, mas

necessita um homem que o faça por ela. vou escrever lhe uma carta para que a entregue, lhe explicando que aceita te ocupar disso.

Enquanto conversavam, Ian tinha estado investigando nos fardos

descarregados das mulas. -O que é isto? -perguntou, a ninguém em particular.

Mostrou-nos uma peça de metal escuro, terminada em ponta e com rudimentares través anos –

-Ferro para o lar. -Duncan agarrou a peça e a entregou ao Jamie-. Foi idéia

da senhorita Eu. -Ah, sim? Isso está muito bem. -O rosto do Jamie estava bronzeado por

tantos dias ao ar livre e, apesar de tudo, o rubor se estendeu por ele-. Guarda-o, Sassenach. Benzeremos nosso lar antes de que Duncan se vá.

Estava profundamente emocionado pelo presente, mas não o entendi até

que Ian me explicou isso- Terei que enterrar uma peça de ferro debaixo de um novo lar para assegurar bênções e prosperidade na nova casa. Era a bênção da Yocasta para nossa empresa. Aceitava o que Jamie tinha decidido e lhe perdoava

pelo que podia ter parecido um abandono. Envolvi a peça de ferro em meu lenço e a guardei no bolso.

Dois dias mais tarde benzemos o lar, ainda sem paredes. Myers se tinha

tirado o chapéu por respeito e Ian se lavou a cara. Cilindro também estava

presente, igual à pequena cerda branca em representação de nosso «rebanho», embora não lhe encontrava sentido a que a separassem de sua comida para

participar de um ritual onde era evidente a falta da mesma. Jamie, fazendo caso omisso dos dilaceradores gritos de chateio da cerda,

empunhou e! pequena faca de ferro, riscou uma cruz e disse com calma:

Senhor, benze o mundo e tudo o que contém.

Senhor, benze a minha esposa e a meus filhos. me benza quando me levanto cedo pela manhã

151

e quando me deito de noite.

Estirou o braço e me tocou com o ferro, logo ao Ian e, com um sorriso, a

Cilindro e a cerdita, antes de continuar:

Senhor, protege a casa e a família. Permite que o fogo de sua bênção esquilo para sempre entre nós.

Jamie se ajoelhou ao lado do lar e colocou o ferro no pequeno buraco feito

ao efeito. Tampou-o e, entre os dois, agarramos a pedra sobre a que

acenderíamos o fogo, e a colocamos cuidadosamente em seu lugar. Teria que me haver sentido bastante ridícula em uma casa sem paredes,

com a presença de um lobo e uma cerda e rodeados pela solidão e as brincadeiras de um pássaro bobo, em um ritual mas bem pagão. Mas não era assim.

Jamie permaneceu frente ao novo lar e estirou uma mão para me

aproximar dele. Recordei uma casa abandonada que tínhamos visto em nossa viagem ao norte. Os donos daquele lugar teriam bento também o lar e, de todos os modos, teriam fracassado? A mão do Jamie oprimiu a minha em uma forma

inconsciente de me dar segurança. Em uma rocha plaina, fora da cabana, Duncan acendeu um pequeno fogo

com a ajuda do Myers. Logo agarrou um tição e caminhou ao redor dos alicerces da cabana cantando em gaélico. Jamie traduzia para mim o que Duncan cantava. detinha-se em cada ponto cardeal para saudar aos quatro ventos» e balançava o

tição, que jogava faíscas. Cilindro desaprovava esses efeitos com alguns bufidos, mas Ian o fez calar.

Duncan deu a volta três vezes, porque eram muitos os versos. Quando chegou ao final, perto do novo lar, dava-me conta de que Jamie tinha situado a cabana de forma que a chaminé dava ao norte; o sol da manhã esquentava meu

ombro esquerdo e nossas sombras se estendiam fazia o oeste. Duncan se deteve ante a futura chaminé e entregou o tição ao Jamie para

que acendesse a pira de lenha. Ian lançou uma exclamação em gaélico ao elevá-la chama e houve um aplauso geral.

Mais tarde, vimos a partida do Duncan e Myers. Não foram ao Cross Creek, a não ser ao Mount Helicón, onde os escoceses da região tinham uma reunião anual em outono para dar obrigado pelas boas colheitas, intercambiar notícias,

fazer negócios, celebrar matrimônios e batismos e manter vivos os laços entre clãs e famílias.

Yocasta e a gente de sua casa estariam ali; quão mesmo Farquard Campbell e Andrew MacNeill. Era o melhor lugar para que Duncan começasse a procurar os homens do Ardsmuir: o do Mount Helicón era o major dos encontros

de escoceses, que chegavam desde a Carolina do Sul e Virginia. -Estarei aqui para a primavera, MAC Dubh –prometeu Duncan ao Jamie-.

Com todos os homens que possa encontrar. Entregarei suas cartas. -Deu um golpe ao embornal que lhe pendurava da cadeira e se colocou o chapéu para proteger do forte sol de setembro-. Digo-lhe algo a sua tia?

Jamie pensou por um momento. Já tinha escrito uma carta a Yocasta, que mais podia acrescentar?

152

-lhe diga que não a verei na reunião deste ano, nem talvez na do próximo.

Mas no seguinte, estarei ali sem falta e minha gente me acompanhará. Boa viagem, Duncan!

A partida me deixou uma estranha sensação de desolação. Duncan era nosso último laço com a civilização. Agora estávamos

realmente sozinhos.

Bom, não totalmente sozinhos, corrigi-me. Tínhamos ao Ian, por não falar de Cilindro, a cerda, três cavalos e duas mulas que Duncan nos tinha deixado

para arar na primavera. A contemplação da cena me levantou o ânimo. Em um mês, a cabana estaria terminada e teríamos um teto sólido sobre nossas cabeças. E logo...

-Más notícias, tia -senti a voz do Ian em meu ouvido-. A cerda se comeu o que ficava de seu bolo de nozes.

20 O corvo branco

Outubro de 1.767 -«Corpo, alma e mente» -disse Jamie, traduzindo enquanto se inclinava

para agarrar o extremo de outro tronco-. «O corpo para as sensações, a alma para

a ação e a mente para os princípios. Entretanto, a capacidade para a sensação também a tem o boi, não há animal selvagem que não obedeça seus impulsos, inclusive os homens que são ateus e traidores a sua pátria, O..." Cuidado,

homem! Ian, ame o aviso, deu um passo atrás com a tocha.

-“... ou chegam a perpetrar toda classe de baixezas detrás de portas fechadas, têm mentes para lhes guiar pelo claro atalho do dever” -resumiu Jamie das Meditações de Marco Aurelio.

-Eu sinto uns impulsos em minha barriga -disse Ian-. Isso é mau? -Acredito que é uma sensação normal a estas horas -aceitou Jamie,

grunhindo pelo esforço de colocar o tronco em seu lugar-. Um poquito à esquerda, Ian.

O tronco encaixou no entalhe e os dois homens deram um passo atrás,

lançando um suspiro de alívio. Ian sorriu a seu tio. -Isso quer dizer que você também tem fome, né? Jamie lhe devolveu o sorriso zombador, mas antes de que pudesse

responder. Cilindro levantou a cabeça com as orelhas erguidas e um grunhido surdo. Ian voltou a cabeça para olhar e se deteve antes de secá-la cara com a aba

da camisa. -Temos companhia, tio -disse assinalando o bosque. -Não lhes preocupem -pinjente divertida-. É seu antigo companheiro de

caçadas, vem com o traje de visita.

Nacognaweto, o índio dos tuscarora que tinha açoitado o urso que Jamie matou, esperou cortesmente à sombra de um castanho até estar seguro de que o tínhamos visto.

Então, saiu lentamente do bosque seguido, não por seus filhos esta vez, mas sim por três mulheres, duas delas com grandes fardos sobre as costas.

Uma, a mais jovem, não tinha mas de treze anos e a outra, de uns trinta, era evidentemente a mãe da menina. A terceira era muito major; não devia ser a

153

avó, pensei ao ver seu cabelo branco e seu corpo curvado, mas sim pelo menos a

bisavó. Tinham vindo especialmente vestidos para a visita, Nacognaweco tinha as

pernas nuas, calçava botinhas de couro e vestia calções até os joelhos e uma camisa de tecido rosado rodeada com uma esplêndida bandagem adornada com couro de puercoespín e Conchitas brancas e celestes. Em cima levava um colete

de couro adornado com contas de cores e uma espécie de me turve solto de cor azul sobre seu cabelo despenteado, com duas plumas de corvo pendurando

detrás de uma orelha. Esta imagem se completava com jóias de prata e conchas e um aro, vários colares, uma fivela e pequenos adornos em seu cabelo.

As mulheres foram algo menos adornadas, mas era evidente que era sua

melhor roupa: vestidos soltos até os joelhos, botas de couro e meias-calças. Avançaram em fila e se detiveram metade de caminho.

-meu deus -murmurou Jamie-, parece uma embaixada. –passou-se a

manga pela cara e deu uma cotovelada ao Ian-. Te ocupe de saudar, Ian, volto em seguida.

Ian, algo perplexo, avançou para receber aos índios, agitando uma mão em um cerimonioso gesto de bem-vinda. Jamie me agarrou do braço e me empurrou dentro da casa ao meio construir.

-O que...? -comecei, confundida. -Vístete -interrompeu, empurrando a caixa da roupa para mim-. Ponha sua

roupa mais chamativa. Temos que ser respeitosos. «Chamativa» era algo que não figurava em meu vestuário, mas fiz o que

pude. Pu-me um vestido amarelo e substituí o lenço branco por uma bordada

com cerejas que me tinha enviado Yocasta. As mulheres me observaram com a mesma fascinação que eu a elas, mas

ficaram atrás enquanto Jamie e Nacognaweto se ocupavam do cerimonial de

servir e beber o brandy, ritual no que Ian estava incluído. Só então Nacognaweto fez um gesto e a segunda mulher se aproximou, inclinando a cabeça em uma

tímida saudação. -Bonjour, messieurs, madame -disse brandamente, nos olhando a todos. Seus olhos se fixaram em mim com franco curiosidade, observando cada

detalhe de meu vestuário, por isso me senti com direito a fazer o mesmo. Mescla de sangue? Francesa?

-Je suis safemme -disse com uma graciosa inclinação de cabeça para o Nacognaweto. Suas palavras confirmaram minha hipótese sobre sua origem-. Je m 'appelle Gabríelle.

-Mmm... je m'appelle CÍaire -disse com um gesto um pouco menos gracioso-. S'IL vous piaÍt... -assinalei os troncos para que se sentassem, me perguntando se

haveria suficiente guisado de esquilo. Enquanto isso, Jamie observava ao Nacognaweto entre irritado e divertido.

-«.Não francês», não? -disse-. Nenhuma palavra, imagino! O índio lhe dirigiu um olhar profundamente sério e indicou a sua esposa

por gestos que continuasse as apresentações.

A mulher maior era Nayawenne. Não era a avó do Gabrielle, como tinha pensado, a não ser a do Nacognaweto. Era magra, com os pequenos ossos

deformados pelo reumatismo e olhos brilhantes como os de um pardal, ao que se parecia muito. Levava uma bolsita de couro pendurando do pescoço, adornada com uma pedra verde furada para poder trespassá-la e com as plumas da cauda

de um pássaro carpinteiro.

154

Tinha uma bolsa maior atada à cintura. Viu que observava as manchas

verdes da bolsa e sorriu, mostrando dois grandes dentes amarelos. A menina era, como tinha suposto, a filha do Gabrielle, mas não do

Nacognaweto, pensei; não se pareciam em nada e se comportava timidamente com ele. Seu nome era Berta e os efeitos da mescla de sangue eram mais evidentes nela que em sua mãe; seu cabelo era escuro e sedoso, castanho escuro

mais que negro, e sua cara era redonda e fresca, com a cútis de uma européia, embora seus olhos tinham a forma dos dos índios.

Uma vez terminadas as apresentações oficiais, Nacognaweto fez um gesto a Berta, a qual obedientemente agarrou o vulto que carregava e o abriu ante meus pés, deixando ver uma grande cesta de cabaças alaranjadas com raias verdes,

uma réstia de pescados secos, uma cesta mais pequena com batata-doces e um grande punhado de espigas de milho de milho.

-minha mãe! -murmurei-. Que magnífica extravagância! Todos me olharam sem compreender; tive que sorrir e deixar escapar

exclamações de prazer e alegria pelos presentes.

Não nos serviria para passar todo o inverno, mas ajudaria a melhorar nossa dieta durante um par de meses.

Nacognaweto nos explicou, através do Gabrielle, que era um pequeno e

insignificante presente pelo presente do urso, que tinha sido recebido com grande deleite em sua aldeia, onde o valor do Jamie (neste ponto, as mulheres deixaram

de me olhar e riram entre dentes, demonstrando que conheciam o episódio do urso) tinha sido centro de admiração.

Enquanto Gabrielle fazia de tradutora, a anciã, desoyendo os mútuos

cumpridos, aproximou-se furtivamente a mim. Sem nenhuma intenção de me ofender me aplaudiu com familiaridade,

tocando minhas roupas, levantando o bordo de meu vestido para examinar meus sapatos e fazendo comentários para si mesmo em um suave e rouco murmúrio, que foi aumentando, até alcançar um tom de assombro quando chegou a meu

cabelo. Tirei-me as forquilhas e o deixei solto. A anciã agarrou um cacho de cabelo,

estirou-o, soltou-o e ficou a rir até ficar esgotada.

Os homens olharam em nossa direção. Jaime estava mostrando ao Nacognaweto a construção da casa. Para este tipo de conversação masculina não

necessitavam tradução, assim Gabrielle ficou em liberdade para conversar comigo. Seu francês tinha um acento estranho e estava cheio de giros, mas não tivemos problemas para nos entender.

Em pouco tempo, descobri que Gabrielle era a filha de um francês que comercializava com peles e de uma mulher da tribo dos furões; era a segunda

esposa do Nacognaweto que, a sua vez, era seu segundo marido. O primeiro e pai da Berta era outro francês que tinha morrido na guerra entre índios e franceses, dez anos atrás.

Viviam em uma aldeia chama Anna Ooka (mordi-me a parte interior de minhas bochechas para não rir; sem dúvida «Nova Berna» lhes teria divulgado muito peculiar) a dois dias de viagem para o noroeste. Gabrielle indicou a direção

com uma graciosa inclinação de cabeça. Enquanto falava com o Gabrielle e Berta, me ajudando com gestos, fui

dando conta de que se estava produzindo uma comunicação com a anciã. Tinha a estranha sensação de que falava comigo e eu com ela, sem ter que pronunciar uma só palavra.

155

Vi que Jamie, ao outro lado do claro, oferecia ao Nacognaweto o resto da

garrafa de brandy; era evidente que tinha chegado o momento de oferecer presentes em troca dos recebidos.

Entreguei ao Gabrielle o lenço bordado e a Berta uma forquilha com adornos de cores; as duas lançaram exclamações de prazer. Para o Nayawenne, entretanto, tinha algo diferente.

Tinha tido a sorte de encontrar na semana anterior quatro grandes raízes de ginseng. Busquei-as em minha caixa de remédios e as coloque entre suas

mãos com um sorriso. Olhou-me, sorriu e desatando a bolsita de sua cintura me entregou isso. Não precisava abri-la; podia sentir as quatro formas, largas e toscas. Então eu também ri. Decididamente falávamos o mesmo idioma.

Por curiosidade e por um impulso que não poderia descrever, perguntei ao Gabrielle sobre a bolsita que levava a anciã como amuleto, confiando em que não fora uma falta de educação.

-Grandmere est... -vacilou, procurando a palavra correta em francês, mas eu já a conhecia.

-Ps docteur, et ps sorciére, magicienne. Elle est... -eu também vacilei, depois de tudo, não havia uma palavra adequada em francês.

-Nós dizemos que ela é uma cantor -disse Berta timidamente em francês-. Chamamo-la shaman; seu nome significa «pode ser, pode acontecer».

A anciã disse algo, fazendo um gesto para mim. As duas mulheres mais

jovens olharam assombradas. Nayawenne inclino a cabeça, tirou-se a correia de couro e colocou a bolsita em minha mão.

Era tão pesada, que me afrouxou a boneca e quase a sotaque cair. Assombrada, fechei a mão. O couro gaseado conservava o calor de seu corpo. Por um momento, tive a impressão de que na bolsa havia algo vivo.

Meu rosto deveu mostrar meu assombro, pois a anciã se desternillaba de risada. Estendeu a mão e lhe devolvi o amuleto rapidamente. Gabrielle interveio

cortesmente, me dizendo que a avó de seu marido estaria encantada de me ensinar as novelo úteis que cresciam nos arredores, se queria acompanhá-la.

Aceitei o convite e a anciã empreendeu o caminho, com uma agilidade

incrível para seus anos. Durante um momento caminhamos paralelas ao arroio, seguidas a uma

respeitosa distância pelo Gabrielle e Berta, que se aproximavam quando as

necessitávamos como intérpretes. Mas a maior parte do tempo nos entendemos muito bem com gestos.

Quando chegamos ao grande lago no que tinham pescado trutas Ian e Jamie, Nayawenne se deteve e fez um gesto para que Gabrielle se aproximasse, disse-lhe algo e se voltou fazia mim com ar de surpresa.

-A avó de meu marido diz que sonhou contigo, na lua cheia de faz dois meses.

-Comigo?

Gabrielle assentiu. Nayawenne apoiou sua mão em meu braço e olhou intensamente minha cara para ver o impacto das palavras do Gabrielle.

-Ela nos falou do sonho: tinha visto uma mulher com... -Seus lábios se crisparam, recompôs sua expressão e se tocou as pontas de

seu comprido cabelo murcho-. Três dias mais tarde meu marido e seu filho

retornaram, contaram-nos que se encontraram no bosque contigo e com o lhes Mata isso

Berta me observava com grande interesse, jogando com uma mecha de seu cabelo.

156

-Ela disse imediatamente que tinha que verte, assim quando soubemos que

estava aqui... Impaciente por essas coisas sem importância, Nayawenne disse algo e

assinalou com firmeza a água. -A avó de meu marido diz que o sonho ocorreu aqui.-Gabrielle assinalou o

lago e me olhou com grande seriedade-.Encontrou-se contigo de noite. A lua

estava na água e você te converteu em corvo branco, voou pela água e te tragou a lua.

-Seriamente? Confiei em que não fora nada sinistro. -O corvo branco voltou voando e lhe deixou um ovo na palma da mão. O

ovo se abriu e dentro havia uma pedra brilhante. A avó de meu marido soube que era um fato mágico, que a pedra podia curar enfermidades.

Nayawenne inclinou a cabeça várias vezes e procurou no interior da bolsa.

-O dia depois do sonho, a avó de meu marido foi procurar raízes de kinnea e no caminho viu algo azul no barro, à borda do rio.

Nayawenne tirou um pequeno objeto e o deixou cair em minha mão. Era cristal de rocha, tosco, mas indubitavelmente uma pedra preciosa. O coração da rocha era de uma cor azul profunda.

-É uma safira, verdade? -Safira? -Gabrielle saboreou a palavra-. Nós a chamamos... -vacilou,

procurando a tradução correta- Pierre sanspenr. -Uma pedra valente? Nayawenne falou e esta vez tocou a Berta traduzir.

-A avó de meu pai diz que uma pedra assim evita que a gente tenha medo, fortalece o espírito e faz que sanem mais rápido. até agora, a pedra curou a duas

pessoas com febre e um problema nos olhos que tinha meu irmão pequeno. Gabrielle interveio na conversação: -A avó de meu marido deseja agradecer

seu presente.

-Ah...!, lhe diga que me alegro de que goste. Saudei a anciã e lhe devolvi a pedra azul. Guardou-a na bolsa e se ajustou

o cordão ao redor do pescoço. -A avó de meu marido diz que agora tem poderes curativos, mas que terá

mais. Quando seu cabelo seja branco como o dela, alcançará todo seu poder.

A anciã retrocedeu e disse algo mais. Gabrielle me olhou de modo estranho. -Diz que não deve preocupar-se; a enfermidade é enviada pelos deuses. Não

será tua culpa.

Observei assombrada à anciã, mas já se deu a volta. -O que é o que não será minha culpa? -pergunte, mas a anciã se negou a

dizer nada mais.

21 A noite em uma montanha nevada

Dezembro de 1767

O inverno se atrasava; finalmente a noite de 28 de novembro começou a nevar e quando despertamos encontramos o mundo transformado. As agulhas do

grande abeto azul que havia detrás da cabana estavam congeladas.

157

Não tínhamos velas de cera, unicamente abajures de graxa, velas de junco

e a luz do fogo, que ardia constantemente no lar. Levantávamo-nos com as primeiras luzes e nos deitávamos depois do jantar, igual às criaturas do bosque

que nos rodeava. Ainda não tínhamos ovelhas e, por conseguinte, não havia lã para cardar e

fiar, nem roupa que tecer. Tampouco tínhamos colméia, nem cera para ferver e

fazer velas. Não tinha ganho para cuidar, salvo os cavalos, as mulas e a pequena cerda, que tinha crescido grandemente, tanto em tamanho como em

irritabilidade, e em conseqüência tinha sido desterrada a um compartimento privado em um rincão das quadras que Jamie tinha construído.

Myers nos tinha deixado uma pequena, mas útil, seleção de ferramentas.

Às partes de ferro devíamos lhes colocar as mangas feitas de madeira do bosque. Havia uma tocha para descascar e outra para cortar, uma grade de arado para semear, furadeiras, escovas, formões, uma pequena foice, dois martelos e uma

serra, uma tocha de dobro fio e uma serra, duas facas pequenas bem afiadas, um restelo e uma cunha.

Jamie e Ian tinham conseguido terminar o teto da cabana antes de que começasse a nevar; os abrigos eram menos importantes. Sempre havia troncos de madeira perto do rogo, junto à cunha, para que qualquer que tivesse tempo

cortasse mais lenhos. Myers também tinha deixado coisas para mim: um grande canasto de

costura com agulhas, alfinetes, tesouras, novelos de linho e partes de linho, musselina e lã.

-Outra mais!

Jamie se sentou na cama, a meu lado. -Outra o que? -perguntei meio dormida, abrindo um olho. -Outra maldita goteira! Tem-me cansado na orelha, maldição!

Saiu da cama, foi até o fogo e acendeu uma varinha para ter luz. Levantou sua tocha procurando no teto a perversa goteira.

-Mmm? Ian, que dormia em um soalho de madeira, deu-se a volta com um

grunhido. Cilindro, que insistia em compartilhar a cama com seu amo, emitiu um

breve bufido. -Uma goteira -informei ao Ian, vigiando ao Jamie, pois não pensava

permitir que queimasse meu precioso colchão de plumas. -Sim? -disse Ian- Outra vez nevou? -Parece que sim.

As janelas estavam cobertas com couros de cervo lubrificados com azeite e não se ouviam os ruídos do exterior, mas o ar tinha essa característica especial

que aparece com a neve. Jamie considerava as goteiras como uma afronta pessoal. -Olhe! -exclamou-. Ali está. Vê-a?

Levantei o olhar para o teto. A luz da tocha mostrava a mancha de umidade. Nesse momento se formou uma gota e caiu sobre o travesseiro.

-Podemos correr um pouco a cama -sugeri sem muitas esperanças.

Já tinha passado por isso outras vezes. Jamie se baixou da cama e empurrou ao Ian com um pé.

-te levante e golpeia onde está a goteira. Eu subirei acima. Procurou o martelo, a bolsa de pregos e uma tocha e se dirigiu à porta. -Não suba ao teto assim! -exclamei, me incorporando bruscamente-. É sua

melhor camisa de lã!

158

deteve-se, olhou-me com expressão de resignação, tirou-se a camisa e a

deixou no chão. -Estará bem, tía-assegurou Ian com um bocejo.

depois de uma série de golpes a goteira ficou arrumada. De volta na cama, Jamie apertou seu corpo gelado contra o meu e ficou dormido com a satisfação de um homem que defendeu seu lar contra qualquer ameaça.

Nossa situação na montanha era frágil mas ao menos tínhamos um teto.

Não tínhamos muita carne, pois tinha havido pouco tempo para caçar algo mais que coelhos e esquilos, mas sim muitos vegetais secos, nozes e uma pequena provisão de ervas que eu tinha secado. Servia para uma dieta escassa, mas,

organizando-se com cuidado, poderíamos sobreviver até a primavera. Tínhamos poucas atividades que realizar no exterior e ficava muito tempo

para conversar, para nos contar histórias e para dormir. Jamie se dedicou a

esculpir as peças de um xadrez e tratava de nos convencer ao Ian e a mim de que jogássemos com ele.

Ian e Cilindro sofriam a febre do fechamento e visitavam Anna Ooka com freqüência para sair de caça com os jovens da tribo, quem agradecia os benefícios da companhia de Cilindro.

-O moço fala o idioma dos índios muito melhor que o grego ou o latim -comentou Jamie, observando como se intercambiava cordiais insultos com um de

seus companheiros de caça. -Bom, se Marco Aurelio tivesse escrito sobre a caça dos porco porco-

espinhos, estou segura de que teria encontrado um auditório mais atento -

respondi para lhe acalmar. Embora queria muito ao Ian, não me desgostavam suas freqüentes

ausências, pois havia momentos em que, decididamente, três eram multidão. Quando Ian não estava, deitávamo-nos e ficávamos conversando. Um dos

temas favoritos do Jamie eram as histórias sobre a infância da Brianna.

-Falei-te sobre aquela vez que fui a sua escola a falar do que significa ser médico?

-Não -disse, acomodando-se a meu lado-, por que teve que fazê-lo? -Era o dia dos Ofícios. Os professores convidam a gente de distintas

profissões para que os meninos aprendam no que consistem. Por exemplo um

advogado, Ou um veterinário, que é um médico de animais, ou um dentista, que se ocupa dos dentes...

-Os dentes? O que ouvirá coisa se pode fazer, além de tirá-los?

-Surpreenderia-te. Bom, não importa, o certo é que me convidavam porque então não era muito comum que uma mulher fora médica.

-E agora o é? Jamie riu e lhe dava uma suave patada. -Bom, depois foi muito mais normal. Enquanto estava com os meninos,

perguntei-lhes se queriam me perguntar algo e a gente disse que sua mãe dizia que as mulheres que trabalhavam não eram melhores que as prostitutas; que seu

dever era ficar em casa em lugar de lhe tirar o trabalho aos homens. -Suponho que sua mãe não conheceria muitas prostitutas. -Imagino que não. Nem tampouco muitas mulheres que trabalhassem.

Então Brianna se levantou e lhe disse em voz bem alta: Te vais alegrar de que minha mãe seja médica, porque vais necessitar uma!». Pegou-lhe na cabeça com um livro e, quando caiu, atirou-se em cima e começou a lhe dar murros na boca.

-Que menina mais valente! E o professor lhe pegou?

159

-Na escola não pegam aos meninos. Teve que escrever uma carta

desculpando-se com o pequeno animal e ele teve que me escrever outra . Brianna pensou que era justo. A parte mais incômoda foi descobrir que o pai do menino

era médico, um de meus colegas do hospital. -E suponho que tinha o posto que ele queria. -Como o adivinhaste?

-Olhe. -Notei seu fôlego quente e espesso no pescoço-. Disse-me que ela estudava história, como Frank Randall. Alguma vez quis ser médica, como você?

-Sim, quando era pequena. Estava acostumado a levá-la ao hospital e jogava com meu estetoscópio, mas logo trocou de idéia. Trocou muitas vezes, a maioria dos meninos o fazem.

-Fazem isso? Era uma novidade para o Jamie. A maioria dos meninos de sua época se

limitavam a adotar a profissão de seus pais ou estes escolhiam por eles o que

deviam aprender. Quando terminei minha lista de todas as ocupações do século XX,

estávamos frente a frente com as pernas entrelaçadas. -Nunca soube se realmente queria estudar história ou se o fez por agradar

ao Frank. Queria-o muito e ele estava muito orgulhoso dela.

Fiz uma pausa; sua mão percorria minhas costas. -Se ela seguir com a história, crie que nos encontrará? Refiro a se

encontrará algo em algum livro. Essa idéia não me tinha ocorrido. Por um momento fiquei imóvel. -Não acredito. Não, a menos que façamos algo notável. Mas não temos

muitas possibilidades aqui- E, de todos os modos, teria que procurar deliberadamente.

-Fará-o?

-Espero que não -pinjente finalmente-. Deve ter sua própria vida e não esbanjar o tempo em olhar para o passado.

-É uma mulher muito inteligente, Sassenach, mas te falta perspicácia. Embora possivelmente seja só modéstia.

-E o que te faz dizer isso? -perguntei, algo molesta.

-Disse que a moça é leal. Amava tanto a seu pai para fazer o que lhe gostava, inclusive depois de sua morte. Crie que te queria menos a ti?

-Não -pinjente finalmente, com voz apagada. -Bom, então... Agarrou-me dos quadris e brandamente se colocou sobre mim. Não falamos

mais e os limites de nossos corpos desapareceram. Foi algo lento e cheio de paz, seu corpo era tão meu como o minha era dele.

Quando estávamos a ponto de dormir senti o quente fôlego do Jamie em meu

pescoço. -Ela procurará -disse com segurança.

Dois dias mais tarde aumentou algo a temperatura e Jamie, poseído pela

febre do fechamento, decidiu sair a caçar. Ainda havia neve, mas era uma capa

magra e acreditava que seria fácil andar pelas ladeiras. Eu não estava tão segura, pensava enquanto juntava neve para derretê-la. Mas confiava em que tivesse

razão, já que nossas provisões diminuíam e não tínhamos carne desde fazia uma semana.

Levei a neve e a joguei no grande caldeirão, me sentindo, como sempre que

o fazia, como uma bruxa.

160

Ao princípio não me preocupei quando Jamie não retornou. Quer dizer,

preocupei-me (sempre o fazia quando saía durante tanto tempo), mas tratava de sossegar minha inquietação e de me enganar a mim mesma. E quando o sol

começou a ocultar-se comecei a emprestar atenção a todos os ruídos que pudessem anunciar sua chegada.

Fazia frio na cabana e saí a procurar mais lenha. Em um par de horas a

escuridão seria total. Queria ter um bom fogo para a noite. Jamie voltaria gelado depois de um

dia de caça em meio da neve. -Maldito homem -disse em voz alta-, O que tem feito? Caçar um alce?. O ouvir minha voz me fez sentir algo melhor. Preparei a sopa e a cabana se

encheu ao momento de aroma de cebolas e alho, mas eu não tinha apetite. Fechei a porta, comi um pouco, arrumei o fogo e me deitei para dormir. Certamente Jamie se teria encontrado com os homens da Anna Ooka e teria acampado com

eles. Sabia viver ao ar livre. Tinha passado vários anos em uma cova de Escócia!, respondia-me eu mesma com cinismo, onde a fera mais feroz é o gato Montes e a

pior ameaça humana, os soldados ingleses! -Tolices! -pinjente e me dava a volta na cama-. É um homem grande, está

armado até os dentes e sabe muito bem o que tem que fazer se nevar!

O que faria?, perguntei-me. Procurar ou construir um lugar para proteger-se. Se não estava ferido, provavelmente não morreria congelado.

Se não estava ferido, se não o tinham ferido. supunha-se que os ursos dormiam profundamente; mas os lobos caçavam no inverno e os pumas também. Ao recordar meu encontro na borda do arroio, estremeci-me. Na cabana fazia

calor, mas de repente meus pés e minhas mãos se gelaram. Apartei as mantas, levantei-me e me vesti rapidamente sem pensar no que

estava fazendo. Já tinha pensado muito. Dava graças a Deus por minhas botas

recém engorduradas que me protegeriam da umidade durante um bom momento. Jamie se tinha levado a tocha, assim tive que cortar uma parte de pinheiro

com um berço e um maço, amaldiçoando por minha lentidão enquanto o fazia. Uma vez decidida a atuar, qualquer atraso me irritava. Atei-me à cintura uma bolsita com remédios, pu-me a capa, agarrei a tocha e minhas coisas e saí ao

exterior. Não fazia tão frio como temia. Uma vez em movimento me sentia abrigada.

Jamie era um homem corpulento, assim estava segura de poder seguir seus rastros quando as encontrasse. Passei os castanhos que circundavam nosso claro para o oeste e segui costa acima. Não tinha um bom sentido da orientação, mas

podia distinguir se subia ou baixava. Jamie me tinha ensinado a procurar marcos, grandes e fixos. Olhei em direção às cascatas. Não podia as ouvir, já que o vento devia soprar em outra direção e eram como uma mancha branca na

distância. Jamie me tinha explicado que quando a gente ia caçar, o vento tinha que

soprar para o caçador, para que a presa não pudesse cheirá-lo. Perguntava-me com desgosto quem poderia me cheirar na escuridão. Não tinha armas, salvo minha tocha.

A primeira armadilha estava colocada em uma pequena garganta, a uns duzentos metros custa acima da cabana. Tinha estado com o Jamie quando a colocou. Percorri várias vezes o lugar até que encontrei o que procurava, a marca

escura de umas pegadas. Com muita lentidão fui seguindo seus rastros de uma armadilha a outra. A

neve caía com mais intensidade e isso me fez sentir insegura. Se a neve tampava

161

os rastros antes de chegar a ele, como encontraria o caminho para retornar à

cabana? -Bem -murmurei-. Está perdida. E agora o que?.

Contive um ataque de pânico e fiquei imóvel para pensar. Não estava totalmente perdida. Ainda tinha os rastros do Jamie para me guiar, ao menos as teria até que a neve as tampasse. E se o encontrava poderíamos voltar para a

cabana. O fogo da tocha ardia perigosamente perto de minha mão. Tirei outra dos

ramos seca e a acendi, atirando a brasa antes de que me queimasse os dedos. A quarta armadilha não estava vazia, mas a lebre já estava morta. Sua

rigidez podia ser causa do frio ou do rigor mortis. Tratei de pensar com lógica,

passando por cima o frio que intumescia meus dedos e minha cara. Não havia rastros do Jamie e a lebre estava na armadilha. Muito bem, então não tinha

chegado até ali. portanto, entre a última armadilha e esta, Jamie tinha deixado seu caminho. Onde tinha ido?.

Com urgência, retrocedi procurando as últimas pisadas. Levou-me um

tempo as encontrar, minha segunda tocha estava pela metade quando as vi. deteve-se Y... onde tinha ido?

-Jamie! -gritei.

Chamei várias vezes, mas a neve parecia apagar minha voz. Escutei, mas não ouvi nada. Jamie não estava detrás, nem frente a mim. À esquerda então, ou

à direita? Detive-me escutar. Era um grito de resposta? Gritei outra vez, mas

ninguém respondeu. Dava outro passo e uma rocha geada me fez escorregar por

uma ladeira cheia de barro. O coração me acelerou. Não era um precipício como tinha pensado e a queda não foi mais que de um metro e médio. Não era isso o

que fazia agitar meu coração, a não ser o que viam meus olhos abaixo, no terreno baixo. Os sinais de algo grande que tinha esmagado os arbustos e tinha seguido caindo recordaram as desagradáveis marca deixadas pela lebre que pendurava de

meu cinturão. Com a incerta luz de minha tocha segui um caminho entre umas rochas,

através de um grupo de flores de inverno Y... encontrei-o atirado ao pé de uma

grande pedra, meio talher pelas folhas, como se alguém tivesse querido lhe tampar. Não estava encolhido para esquentar-se, mas sim jazia com a cara

esmagada contra o chão, com uma imobilidade mortal. Deixei cair minha tocha e com um grito de horror me atirei sobre ele. Jamie grunhiu e se agitou baixo meu corpo. Apartei-me, com uma mescla

de alívio e terror. Não estava morto, mas estava ferido- Onde? -Onde? -perguntei, atirando de sua capa enroscada ao redor do corpo-,

Onde te feriste? Está sangrando, tem-te quebrado algo? Não podia ver manchas de sangue, posto que tinha atirado minha tocha e

se apagou. Jamie estava frio e quase não podia falar. Mas ouvi como pronunciava

«costas», tirei-lhe a capa e lhe rasguei a camisa, o que lhe fez grunhir. Coloquei as mãos entre a roupa procurando o buraco da bala. Deveram lhe disparar pelas costas, pensei, embora não via o sangue. Onde estava a bala? Não encontrava

nada; tinha as costas geada, mas não tinha feridas. -É você, Sassenach? -perguntou com voz sonolenta.

-Sim, sou eu! O que te passou? -quis saber, quase com indignação-. Disse que lhe tinham disparado pelas costas!

162

-Não, não o disse. Porque não foi assim -assinalou com lógica. Parecia

tranqüilo e quase dormitado-. Dá-me o ar nas costas, Poderia cobri-la, Sassenach?

Coloquei-lhe a roupa lhe fazendo gemer de novo. -Que diabos te passou? -perguntei. -Ah, bom. Não é nada sério. Mas não posso me mover.

Olhei-o fixamente. -por que? Torceste-te o pé? Tem-te quebrado uma perna?

-Ah... não -parecia envergonhado-. Eu... a ti... desloquei-me a coluna. -Que você o que? -Já me passou Outra vez -assegurou-me-. Dura um par de dias.

-Suponho que não pensaria agüentar dois dias atirado aqui e coberto pela neve.

-Me ocorreu, mas não podia fazer nada a respeito.

Então me dava conta de que eu tampouco podia fazer muito. Assustei-me quando notei que podia estar perto do congelamento.

-Acordada! -pinjente, lhe sacudindo. Abriu os olhos e me sorriu-. Te mova! Jamie, tem que te mover!

-Não posso -disse com calma-. Já te disse que não posso.

Fechou os olhos outra vez. Agarrei-lhe uma orelha e lhe cravei as unhas. Grunhiu e moveu a cabeça.

-Acordada. Não me ouve? Desperta agora mesmo! te mova, maldição! me dê a mão.

-Estou bem, só muito cansado –disse.

-Move os braços -ordenei-. Pode mover as pernas? Suspirou e murmurou algo em gaélico. Muito lentamente começou a mover

os braços. Custou-lhe mover as pernas, porque lhe davam espetadas nas costas

e, de muito má vontade, agitou os pés. -Segue te movendo -adverti. Incorporei-me com certa dificuldade-. Segue te

movendo. Se te detiver, juro-te que te piso nas costas. -Agarra a tocha -disse entre dentes e assinalou um grupo de árvores

próximas com a cabeça-. Ramos- grandes, de dois metros. Curta quatro. -

Respirava pesadamente, mas havia cor em seu rosto e lhe tocavam castanholas os dentes. Eram bons sinais e me alegrei.

-Bem -pinjente-. Ramos grandes, não? E agarrei a tocha. Assentiu estremecendo-se violentamente.

Escolhi os ramos mais baixa. Custou-me bastante porque tinha as mãos intumescidas pelo frio e a madeira estava verde e elástica. Finalmente cortei quatro ramos largos e cheias de folhas.

Arrastei-as até a rocha e encontrei ao Jamie metido entre as folhas, para proteger do frio. Baixo sua direção apoiei os ramos na rocha, cravando os

extremos na terra para formar um pequeno refúgio triangular. Logo agarrei outra vez a tocha e cortei ramos de pinheiro e as coloquei junto com molhos de erva seca na parte superior. E, finalmente, ofegando pelo cansaço, arrastei-me ao lado

do Jamie. Cobrimo-nos com a capa e lhe aconteceu os braços pelo corpo. Logo

comecei a tremer. Sentia-me aliviada mas tinha medo.

-Tudo vai sair bem, Sassenach -disse Jamie ao me sentir tremer-. Se estivermos juntos, tudo sairá bem.

163

-Sei -pinjente e apoiei minha cabeça sobre suas costas-. Quanto tempo faz

que está aqui? ia encolher se de ombros, mas o gesto lhe arrancou um gemido de dor.

-Um bom momento. Tinha passado o meio-dia quando me caí de uma rocha. Não era muito alta, mas ao apoiar o pé as costas fez falência e quão seguinte soube foi que estava atirado no barro, com a sensação de que me tinham

parecido uma faca nas costas. -me diga onde te dói -pinjente, confiando em que não lhe tivesse deslocado

uma vértebra. A espantosa possibilidade de que ficasse inválido para sempre cruzou por

minha mente, junto com as considerações práticas sobre o que faria para lhe

tirar dali. Teria que lhe deixar e lhe alimentar até que se recuperasse? -Aqui -disse com um gemido-. Sim, é aqui. Se me mover, a dor corre pela

parte de atrás da perna, como se passasse um arame ardendo.

Toquei-o com cuidado, com ambas as mãos, apertando e fazendo que levantasse uma perna e logo a outra.

-Disse que te tinha acontecido antes. Quando? -Ai! Maldição, aí dói. Na prisão. -A dor era no mesmo lugar?

-Sim. Notei um nó no músculo da parte direita, justo debaixo do rim, e uma

contractura nos extensores, os músculos largos que há ao lado do espinho dorsal. Por sua descrição do episódio anterior, estava segura de que só era um severo espasmo muscular. E para isso, o tratamento adequado era calor, repouso e um

antiinflamatorio. -Suponho que poderia tentá-lo com acupuntura -pinjente, pensando em voz

alta-. Tenho as agulhas em minha bolsa Y...

-Sassenach -disse com calma-, posso suportar a dor, o frio e a fome. Mas não vou deixar que minha própria esposa me chave agulhas nas costas. Não

poderia me oferecer um pouco de simpatia, em lugar disso?. Ri e me apertei contra seu corpo. -Né... que classe de simpatia te passa pela cabeça?

Sujeitou-me a mão para acautelar ulteriores avanços. -Não é isso -respondeu.

-Poderia apartar sua mente da dor -quis mover os dedos e Jamie os sujeitou com mais força.

-Não o duvido, Sassenach -disse secamente-. Uma vez que retornemos a

casa e tenha uma cama para me deitar e uma sopa quente em meu estômago, a idéia me parecerá tentadora. Mas agora, só de pensá-lo... Mulher, tem idéia do frite que estão suas mãos?

Apoiei minha bochecha em suas costas e ri. Até que, finalmente, ficamos em silêncio escutando o som da neve. Estava

escuro mas meus olhos se acostumaram e pude distinguir a cabeça do Jamie, seu cabelo e seu pescoço.

-Que hora crie que é? -perguntei. Eu não tinha nem idéia.

-Tarde -respondeu-. Embora falta bastante para o amanecer-acrescentou, adivinhando o que queria lhe perguntar-. É uma das noites mais largas do ano.

-Que sorte! -disse com desalento.

Tinha deixado de tremer, mas ainda não sentia os dedos dos pés. A respiração do Jamie se fez mais lenta e mais profunda.

-Não durma! -disse com ansiedade, lhe apertando o braço.

164

-Ai!por que não?

-Se dormimos poderíamos nos congelar e morrer. -Não, não nos acontecerá. Fora está nevando e logo estaremos talheres.

-Já sei -pinjente, algo molesta-. E isso o que tem que ver? -A neve está fria ao tocá-la -explicou com impaciência-, mas mantém o frio

fora, atua como uma manta. Resulta muito mais quente uma casa coberta de

neve que uma poda e exposta ao vento. Como crie que fazem os ursos para dormir durante o inverno e não congelar-se?

-Têm grande quantidade de graxa –protestei-. Acreditava que isso lhes mantinha quentes.

-Ja, ja -respondeu-. Bom, não precisa preocupar-se, né?

-Então, está seguro de que não vamos morrer congelados? -Não -disse. -Mmm. Bom, talvez seria melhor permanecer acordados um momento. Só

se por acaso as moscas, né? . -Mas não vou seguir agitando os braços -disse com determinação-.E se me

põe as mãos geladas no traseiro te juro que te estrangulo. -Está bem, está bem. E se em lugar disso lhe conto um conto. Aos montanheses gostava das histórias e Jaime não era uma exceção.

-Sim -disse com alegria-. Que classe de conto? -Um conto de Natal. Sobre um senhor chamado Ebenezer Scrooge.

-Um inglês, suponho. -Sim -respondi-. Fica aquieto e escuta. Conhecia muito bem a história porque formava parte de nosso ritual

natalino, do Frank, da Brianna e meu. Todos os anos liam por turnos antes de nos deitar o Conto de Natal de Dickens.

-«Deus benza a todos» -terminei e ficamos em silêncio. A escuridão era major porque a neve havia talher todas as aberturas. -Ponha suas mãos dentro de minha camisa, Sassenach -disse Jamie

brandamente. Oprimiu-me uma mão contra seu peito. Agora estava quente e seu coração

pulsava com força baixo meus dedos.

-Dorme, a nighean donn, não vou deixar que te congele -disse.

Despertei bruscamente com a mão do Jamie apertando minha coxa. -Shh, quieta -disse brandamente. A luz tinha trocado. Já era de dia. Sons apagados provinham de fora. Ouvi

um débil eco de vozes que Jamie deveu ter escutado antes e me agitei nervosa. -Quieta! -disse outra vez com um feroz sussurro e me apertou a perna com

mais força. As vozes se aproximavam e se podiam entender as palavras. Eram índios

que falavam um dialeto diferente ao tuscarora, com distinto ritmo.

Tinha sentimentos opostos. Por um lado tinha chegado a ajuda que tanto necessitávamos, a julgar pelos sons eram vários homens, suficientes para mover

ao Jamie com segurança. E por outro lado, devíamos atrair a atenção de um grupo de índios desconhecidos que podiam ser inimigos?

A julgar pela atitude do Jamie, parecia que não devíamos. apoiou-se em um

cotovelo e tinha a faca na mão direita. Pensativo, arranhou-se o queixo enquanto tratava de ouvir as vozes que se aproximavam.

165

Os índios estavam ao outro lado da arvoredo e discutiam por algo. Uma

idéia me pôs a carne de galinha, deviam ter visto os ramos cortados. Teria nevado o suficiente para cobrir meus rastros até nosso refúgio?

produziram-se movimentos entre as árvores e, de repente, apareceram, vestidos com couro e peles e alguns com capas ou mantas além de sua perneiras e botas. Levavam vultos com mantas e provisões e, a maioria, tinham o calçado

para a neve pendurando das costas. Era evidente que a neve não era tão espessa como para que os necessitassem.

Foram armados com uns poucos fuzis e tochas de guerra penduravam dos cinturões. Seis, sete, oito... contei em silêncio enquanto apareciam em fila, cada homem pisando sobre os rastros do precedente. Um dos de atrás disse algo rendo

e o de diante respondeu, mas suas palavras se perderam no vento. Então me dava conta de que o vento devia soprar em nossa direção,

trazendo o som de suas vozes. Não, nem sequer os cães poderiam cheiramos. Mas

veriam os ramos de nosso refúgio? O último homem apareceu ante nós. Era um jesuíta.

-Chama-os! -sussurrei-. São cristãos, têm que sê-lo para levar com eles a um sacerdote. Não nos farão mal.

-Não -respondeu-. Não, pode ser que sejam cristãos, mas... -Sacudiu a

cabeça-. Não. Não tinha sentido discutir com ele.- Fiz um gesto de resignação.

-Como está suas costas? estirou-se e se deteve afogando um grito. -Não muito bem, né? -pinjente, com uma mescla de simpatia e sarcasmo.

Olhou-me insultante e se deslizou em sua cama de folhas fechando os olhos.

-Imagino que já haveria pensado em uma forma engenhosa de baixar da

montanha, não? -perguntei com amabilidade. Abriu um olho.

-Não -disse fechando-o de novo. Era um dia frio mas brilhante e o sol fazia que a neve das árvores caísse em

forma de flocos. Agarrei um e o coloquei dentro de sua camisa. Deixou sair o ar

entre seus dentes, abriu os olhos e me olhou com frieza. -Estava pensando -informou-me.

-Sinto te interromper. Movi-me e meu estômago fez ruído. o do Jamie já tinha protestado antes de

forma contundente. Teríamos que começar a pensar no assunto da comida.

-Quieta -disse ofendido-. Bom -continuou-, esperará um pouco para te assegurar de que seus selvagens estejam longe e então irá à cabana Y...

-Não sei onde está.

Soltou um pequeno bufido de impaciência. -Como me encontrou?

-Segui seus rastros -disse com certo orgulho-. Mas não acredito que possa fazê-lo de novo.

-Ah! -Pareceu impressionado-. Bom, muito engenhoso por sua parte,

Sassenach. Mas não se preocupe, posso te dizer como encontrar o caminho. -Bem. E depois o que? -Trará um pouco de comida e uma manta. Em poucos dias poderei voltar a

me mover, -te deixar aqui? -Olhei-o zangada.

-Estarei bem.

166

-Comerão-lhe os lobos!

-Já o pensei -disse sem lhe dar importância-. O mais provável é que estejam ocupados com o alce.

-Que alce? -que matei ontem. Disparei-lhe na nuca mas não morreu em seguida.

Estava-o seguindo quando me caí, não acredito que tenha ido muito longe.

Suponho que a neve cobriu o corpo, pois do contrário nossos amigos o teriam visto.

-Matou um alce que atrairá aos lobos como moscas e propõe ficar aqui te congelando, esperando a que cheguem. Imagino que pensará que quando voltarem pela segunda vez estará tão congelado que não te dará conta se

começarem a te comer pelos pés. -Não grite. Os selvagens podem estar perto. ia fazer outros comentários quando Jamie me deteve acariciando minha

bochecha. -Claire -disse com afeto-, você não pode me mover. Não se pode fazer outra

coisa. -Sim se pode -pinjente, reprimindo um tremor em minha voz-. Fico contigo.

Trarei mantas e comida mas não vou deixar te sozinho. vou trazer lenha e

acenderei um fogo. -Não há necessidade. me posso arrumar isso eu sozinho -insistiu.

-Mas eu não posso -pinjente, recordando as horas de espera na cabana. Jamie se deu conta de que o dizia a sério e sorriu. -Bom, então também poderia trazer uísque, se é que fica algo.

-Há meia garrafa -disse com alegria. Rodeou-me com um braço e me apoiou sobre seu ombro. Estava

razoavelmente quente baixo tas capas. Sua pele tinha um aroma quente e salgado

e não pude resistir a pôr meus lábios no oco de sua garganta. -Ah! -disse, estremecido-. Não faça isso!

-Você não gosta? -Não, eu não gosto! Como poderia me gostar de? Faz-me sentir um

formigamento na pele.

-Bom, pois eu gosto -protestei. Olhou-me divertido.

-Você gosta? -Sim -assegurei-lhe-. eu adoraria que me mordesse o pescoço. Entrecerró os olhos com gesto de dúvida. Logo me moveu a cabeça, passou-

me a língua pela garganta e brandamente me mordiscou o pescoço. -Sua boca era cálida e suave e, aprovasse ou não o que estava fazendo, o

fazia terrivelmente bem.

-Oooh! -pinjente e me estremeci de prazer. Em um momento dado tive a estranha sensação de que alguém nos vigiava.

Incorporei-me apoiada sobre as mãos e olhei através da tela de folhas. Não vi nada.

Jamie grunhiu.

-O que acontece? por que pára? -Pareceu-me que tinha ouvido algo -pinjente e então ouvi uma risada

diretamente em cima de minha cabeça.

Dava-me a volta entre as folhas e os ramos de pinheiro enquanto Jamie amaldiçoava e procurava sua pistola.

167

Do topo da rocha várias cabeças sorridentes nos espiavam. Eram Ian e

quatro companheiros da Anna Ooka. Os índios riam como se tivessem visto algo incrivelmente gracioso.

-Que diabos está fazendo aqui, Ian? -Voltava para casa para passar o Natal com vós, tio -disse Ian com um

sorriso zombador.

Jamie olhou a seu sobrinho com marcado desgosto. -Natal -disse-. Ora, farsante.

O alce se congelou durante a noite. Seus olhos cristalizados me produziram

calafrios, não por sua morte, mas sim pela idéia de que Jamie também teria

podido morrer do mesmo modo. Então este episódio se titulou "Escocês morto na neve», em lugar de «Alce congelado entre índios discutindo».

A discussão terminou de forma satisfatória. Ian me informou que tinham

decidido retornar a Anna Ooka mas que nos ajudariam a chegar até casa em troca de compartilhar a carne do alce.

Tiraram-lhe as vísceras, cortaram-lhe a cabeça para aliviar o peso e dois dos homens penduraram o corpo de barriga para baixo com as patas atadas. Jamie os observava sombrio, era evidente que pensava que foram dar o mesmo

tratamento. Mas Ian lhe assegurou que o levariam em um rastro. Viajavam a pé mas tinham uma mula para carregar as peles.

No caminho me lembrei do misterioso grupo de índios e me aproximei do Ian.

-Ian, justo antes de que você e seus amigos nos encontrassem vimos uns

índios com um Sacerdote jesuíta. Acredito que não eram da Anna Ooka. Tem idéia dos quais poderiam ser?

-Sim, tia. Sei tudo sobre eles. Estávamo-los seguindo quando lhes

encontramos. Aqueles índios, disse-me, eram mohawk que vinham do norte. Os tuscarora

tinham sido adotados pelos iroqueses uns cinqüenta anos atrás, tinham uma boa relação com os mohawk e se faziam visitas periódicas, tão formais como informais. Agora uma partida de jovens mohawk ia em busca de algemas.

-Uma mulher deve pertencer ao clã adequado –explicou Ian-. Se estiver no clã equivocado não pode casar-se.

-Como os MacDonald e os Campbell? -interveio Jamie interessado. -Estraga, parecido -disse Ian com um sorriso-. Por isso levam o sacerdote

com eles. Se encontrarem mulheres se casarão imediatamente e não terão que

dormir em uma cama fria durante a volta. -Então, são cristãos? Ian se encolheu de ombros.

-Alguns. O jesuíta está com eles faz bastante tempo e muitos furões se converteram. Mas não tantos mohawk.

-Estiveram na Anna Ooka? -perguntei com curiosidade-, por que os seguiam você e seus amigos?

Ian soprou com desprezo.

-Podem ser aliados, tia, mas isso não significa que Nacognaweto e seus homens confiem neles. Inclusive as outras nações da liga iroquesa têm medo dos mohawk, cristãos ou não.

Era perto do pôr-do-sol quando avistamos a cabana. Tinha frio e estava

cansada mas meu coração se animou ao ver nossa pequena propriedade. Uma

168

das mulas, uma pequena criatura cinza chamada Clarence nos viu e zurrou

entusiasmada, contagiando aos cavalos, ansiosos de receber comida. -Os cavalos estão bem –disse Jamie, mais preocupado pelo bem-estar de

quão animais eu, que só desejava um pouco de calor e comida. Convidamos aos amigos do Ian mas não aceitaram, deixaram ao Jamie na

porta e se desvaneceram rapidamente para continuar a perseguição dos mohawk. -Não gostam de ficar em casa de pessoas brancas -explicou Ian-. Dizem que

cheiramos mau.

-Seriamente? -pinjente, recordando ao ancião que tinha conhecido na Anna Ooka, que cheirava como se fora talher de graxa de urso.

É como dizer que o morto se assusta do degolado.

Mais tarde, já com uns goles de uísque no corpo e em nossa própria cama,

escutava os roncos pacíficos do Ian e observava as chamas do fogo. -É bom estar em casa outra vez -pinjente. -É-o -suspirou Jaime e me aproximou mais a ele-. Tive uns sonhos muito

estranhos dormindo com aquele frio. -Sim? O que sonhou?

-Toda classe de coisas. -Parecia um pouco envergonhado-. Sonhei com a Brianna uma e outra vez.

-Sério? -disse com assombro, pois eu também tinha sonhado com a

Brianna em nosso refúgio gelado. -Estava-me perguntando... -Jamie vacilou um momento-, Tem alguma

marca de nascimento? E se a tem, havia-me isso dito?

-Tem-na mas não é visível -pinjente lentamente enquanto pensava-. Não acredito que lhe haja isso dito. Passaram anos até que eu a notei. É...

Sua mão me apertou o ombro para que me calasse. -É uma pequena marca cor castanha, do tamanho de um diamante e justo

debaixo de sua orelha esquerda. É assim?

-Sim. -Na cama fazia calor, mas um calafrio na nuca me fez estremecer-. Viu-a em seu sonho?

-Dava-lhe um beijo sobre ela -respondeu brandamente. 22

O resplendor de uma antiga chama Oxford, setembro de 1970

-Ai, joder. -Roger tinha permanecido sobre aquela página até que as letras

perderam seu significado, convertendo-se em ininteligíveis desenhos-. Maldita seja! -exclamou.

inclinou-se sobre o livro cobrindo-o com os antebraços e com os olhos

fechados. sentia-se chateado e as Palmas de suas mãos estavam fritem e suadas. Por último, depois de tragar o sabor amargo que sentia na garganta, olhou outra

vez. Ainda estava ali. Uma pequena notícia Aparecida em um periódico impresso em 13 de fevereiro de 1776 na colônia norte-americana da Carolina do Norte, na vila do Wilmington.

Com dor recebemos a notícia da morte do James MacKenzie Fraser e sua esposa, Claire Fraser, a conseqüência de um incêndio que destruiu sua casa na

Colina do Fraser a noite de 21 de janeiro passado. O senhor Fraser, sobrinho do defunto Héctor Cameron da plantação do River Run, tinha nascido no Broch

169

Tuarach, Escócia. Era muito conhecido e profundamente respeitado na colônia;

não deixa filhos. Mas os houve.

Roger tratou de aferrar-se a tênue esperança de que não fossem eles. depois de tudo. James Fraser era um nome muito comum. Mas não James MacKenzie Fraser, com uma esposa chamada Claire e nascidos no Broch

Tuarach, Escócia. assim, Claire o tinha encontrado. Tinha encontrado a seu galante

highlander e desfrutado, ao menos, uns anos com ele. Esperava que tivessem sido bons. Claire Randall lhe tinha gostado de muito; não, isso era pouco; para ser sincero tinha que dizer que a tinha querido e lhe tinha desejado tão bem como

a sua filha. Mais que isso. Tinha desejado que encontrasse ao Jamie Fraser e que fora

feliz com ele. Sabê-lo, ou mais exatamente, a esperança de que assim tivesse

sido, era um pequeno talismã para ele, um testemunho de que o amor duradouro era possível, um amor tão forte para suportar separação e penúrias, o bastante

forte para sobreviver ao tempo. Mas toda carne é mortal e nenhum amor pode superar esse fato.

agarrou-se ao bordo da mesa tratando de recuperar o controle. Tolo, disse-

se. sentia-se tão necessitado como depois da morte do reverendo, como se se tivesse ficado de novo órfão.

Não podia dizer-lhe ao Bri, não podia. Isto supunha para ele um novo golpe. Ela conhecia o risco, é obvio, mas... não, nunca se tivesse imaginado algo assim.

A impressão começava a atenuar-se um pouco, mas a dor se instalou no fundo de seu estômago como uma úlcera. Era um intelectual e filho de um erudito. Tinha crescido rodeado de livros e desde sua infância estava convencido

de que a letra escrita era sagrada. sentiu-se como um assassino quando tirou o canivete e o abriu, olhando de esguelha para assegurar-se de que ninguém o

observava. Atuava por instinto, como o homem que cobre os corpos depois de um

acidente para tampar os rastros do desastre embora a tragédia seja impossível de

tampar. Com a folha arranco escondido em seu bolso saiu da biblioteca e caminhou baixo a chuva pelas ruas de Oxford.

O passeio lhe tranqüilizou e pôde pensar racionalmente outra vez, deixar seus próprios sentimentos a um lado e planejar o que devia fazer para proteger a Brianna e lhe evitar uma dor muito mais profundo de que sentia ele.

Tinha controlado a informação bibliográfica do livro. Publicado em 1906 por uma pequena editorial inglesa, não era fácil de conseguir, embora Brianna podia encontrá-lo por seus próprios meios. Tampouco era uma fonte lógica onde

consultar a classe de informação que procurava ela, pois se titulava Cantos e baladas do século XVIII. Mas sabia bem que a curiosidade do historiador pode

conduzir a lugares inesperados. Não havia forma de assegurar-se de que Brianna não chegasse a ver um

exemplar do livro; podia ser o único que ficava ou podiam existir centenas de

exemplares distribuídos pelas bibliotecas dos Estados Unidos, atuando como bombas relógio.

A dor de seu estômago piorava. Estava empapado e congelado. Em seu

interior, um novo pensamento lhe produziu um intenso calafrio. Se Brianna o descobria, o que faria?

170

sentiria-se destroçada, sacudida pela dor. Mas e depois? Ele estava

convencido de que as coisas do passado não podiam trocar-se; tudo o que Claire lhe tinha contado lhe tinha feito estar convencido disso. Claire e Jamie Fraser

trataram de evitar a matança do Culloden sem nenhum resultado. Ela tinha tratado de salvar a seu futuro marido, Frank, salvando a seu

antepassado Jack Randall e tinha fracassado, mas descobriu que Jack não tinha

sido o antepassado do Frank, só se tinha casado com a jovem grávida de seu irmão para legitimar assim à criatura depois da morte de este.

Não, o passado podia retorcer-se como uma serpente, mas não podia trocar-se. Entretanto, não estava seguro de que Brianna compartilhasse sua convicção.

«Como se pode estar de luto por um viajante do tempo?», tinha-lhe perguntado Brianna. Se lhe mostrava a notícia do livro poderia chorar por eles. O saber o a danificaria terrivelmente, mas se curaria e poderia deixar atrás o

passado. Se não fora... se não fora pelas pedras do Craigh na Dun. O círculo de pedras e a aterradora possibilidade que representava. Claire tinha passado

através delas dois anos antes, na antiga festa do fogo do Samhain, o primeiro dia de novembro.

Roger se estremeceu e não pelo trio. Cada vez que pensava nisso o pêlo da

nuca lhe arrepiava. Tinha sido uma manhã clara de um outono aprazível. Era a madrugada da festa de Todos os Santos e nada turvava a paz da colina coberta de

erva, onde o círculo de pedras permanecia vigilante. Nada até que Claire tocou a grande pedra gretada e se desvaneceu para o passado. Aquele dia, a terra pareceu desintegrar-se baixo seus pés e o ar o arrastou com um rugido que

ressonou em sua cabeça como um cañonazo. Tinha-lhe cegado uma rajada de luz a que seguiu uma profunda escuridão.

Em um ato reflito tinha pego a mão da Brianna e a tinha apertado. Foi

como se lhe atirassem água geada desde trezentos metros de altura, a vertigem foi tão terrível e a impressão tão intensa que não pôde sentir outra coisa. Cego e

surdo, privado de seus sentidos, teve dois últimos pensamentos: "Estou-me morrendo —pensou com calma e logo—: Não a solte».

O sol do amanhecer tinha esboçado um brilhante caminho através da greta

pela que tinha passado Claire. Quando finalmente Roger levantou a cabeça, o sol do entardecer brilhava com tons dourados e lavanda detrás da pedra, negra agora

contra o céu brilhante. Estava em cima de Brianna, protegendo-a com seu corpo. A jovem estava inconsciente mas respirava, com o rosto terrivelmente

pálido em contraste com o vermelho escuro de seu cabelo. Era inútil tentar arrastá-la até o carro. Brianna, digna filha de seu pai, media quase metro oitenta, uns poucos centímetros menos que Roger.

ficou com a cabeça da jovem apoiada sobre suas pernas, tiritando e lhe acariciando a cara até que à posta do sol Brianna abriu os olhos azuis e escuros

como o céu e sussurrou: -foi-se? -Tudo foi bem -tinha sussurrado Roger como resposta, enquanto lhe beijava

a frente-. Tudo foi bem, eu te cuidarei. E o dizia a sério. Mas como?

Já tinha escurecido quando retornou a sua habitação. tirou-se a roupa molhada e ficou nu, com a toalha na mão, contemplando seu escritório e a caixa

171

de madeira onde guardava as cartas da Brianna. Faria algo para lhe evitar essa

dor. E faria muito mais para salvar a da ameaça das pedras. Claire havia tornado atrás, esperava, desde 1968 a 1766 e tinha morrido

em 1776. Agora estavam em 1970. Uma pessoa que viajasse agora poderia chegar em 1768. Haveria tempo. Isso era o pior de tudo, que haveria tempo.

Se Brianna pensasse como ele ou se a pudesse convencer de que o passado

não pode trocar-se, poderia viver durante os próximos sete anos, sabendo que a janela da oportunidade se estava fechando, que sua única possibilidade de

conhecer seu pai e de ver de novo a sua mãe desaparecia dia detrás dia? Uma coisa era deixá-la ir saber onde estava ou o que lhe tinha acontecido e outra muito distinta era sabê-lo explicitamente e não fazer nada por evitá-lo.

Conhecia a Brianna desde fazia mais de dois anos, embora tinham estado juntos só uns poucos meses. Entretanto, conheciam-se muito em alguns aspectos, Como não ia ser assim, depois de compartilhar tal experiência?

Também estavam as cartas e as breves férias que lhe deixavam com uma mescla de encantamento e frustração.

Sim, conhecia a Brianna. Era tranqüila mas possuía uma feroz determinação que não a deixaria render-se ante a dor sem antes lutar. E, embora era cautelosa, uma vez que tinha decidido algo atuava com horrível diligencia. Se

decidia arriscar-se a fazer a viagem, não poderia detê-la. O único que lhe aterrorizava mais ainda era pensar que podia perder a Brianna antes de havê-la

tido de verdade. Nunca lhe tinha mentido. Mas enquanto a impressão e a dor se aplacavam lentamente, em sua mente se ia formando um plano.

Uma carta podia fazê-lo. Teria que ser um processo lento de sugestão e

amável disuasión. Pensou que não seria difícil, além do relatório sobre o incêndio da imprensa do Fraser no Edimburgo, não tinha encontrado nada em um ano de busca em Ardia. Ao pensar nas chamas se estremeceu involuntariamente. Agora

sabia por que tinham emigrado pouco depois, embora não tinha encontrado seus rastros nos registros dos navios que tinha investigado.

Poderia lhe sugerir que já era hora de abandonar. Deixar que o passado descansasse e que os vivos enterrem aos mortos.

Seguir procurando poderia converter-se em uma obsessão. Com muita

sutileza poderia lhe sugerir que não era saudável olhar tanto para o passado, que tinha chegado o momento de olhar para o futuro. Que nenhum de seus pais

estaria de acordo em que desperdiçasse sua vida em uma busca inútil. «Eu te cuidarei», havia-lhe dito e assim o pensava. Ocultar uma verdade

perigosa era o mesmo que mentir? Bom, se era assim, então mentiria. Dar o

consentimento para fazer algo mau era um pecado, tinha ouvido de menino. Estava disposto a arriscar sua alma por ela e o faria de boa vontade.

Procurou um lápis em uma gaveta. Logo se deteve, inclinou-se e colocou

dois dedos no bolso das calças molhadas. A folha estava enrugada e empapada, quase destruída. Com mão firme a rompeu em pedacinhos, sem lhe importar o

frio suor que corria por sua cara. 23

A caveira debaixo da casca Havia- dito ao Jamie que não me importava viver longe da civilização. Onde

houvesse gente haveria trabalho para uma curadora. Duncan tinha completo com seu encargo e retornou na primavera de 1768

com oito homens que tinham estado no Ardsmuir. Tinham chegado com suas

172

famílias, preparados para instalar-se na Colina do Fraser, como agora chamavam

o lugar. O assentamento contava já com umas trinta pessoas, por isso a necessidade de meus serviços se fez imediata para suturar feridas e curar febres,

abrir forúnculos e raspar gengivas infectadas. Duas das mulheres estavam grávidas e tive a alegria de ajudar a nascer a duas saudáveis criaturas, um menino e uma menina, ambos a começos da primavera.

Minha fama (se se pode chamar assim) como curadora, muito em breve se estendeu fora de nossa pequena colônia e me encontrei requerida desde lugares

cada vez mais longínquos. Atendi enfermidades em granjas isoladas, disseminadas em cinqüenta quilômetros à redonda de um terreno montanhoso. Também ia alguma vez com o Ian até a Anna Ooka, para ver o Nayawenne e

retornar com cestas e potes cheios de ervas que me podiam resultar úteis. Ao princípio Jamie tinha insistido em que ele ou Ian acompanhariam aos

lugares mais afastados, mas muito em breve ficou claro que nenhum dos dois

podia apartar-se das tarefas da granja. Assim que cada vez mais freqüentemente ia sozinha quando algum desconhecido aparecia súbitamente no pátio de entrada

perguntando por uma curadora ou uma parteira. Nunca pedia que me pagassem, mas sempre me ofereciam algo e como

fomos pobres, todo nos vênia bem.

Meus pacientes provinham de vários lugares e muitos não falavam nem inglês nem francês. Encontrava-me com alemães luteranos, quaisquer, escoceses

e irlandeses e um grande assentamento de nativos da Moravia que falavam um peculiar dialeto europeu. Em geral me arrumava isso com um intérprete e no pior dos casos utilizava a linguagem dos gestos para me fazer entender.

Agosto de 1768 Estava congelada até os ossos. em que pese a meus esforços por conservar

a capa bem apertada, o vento a separava de meu corpo e a fazia revoar,

castigando a cabeça do moço que caminhava a meu lado e me obrigando a me inclinar. A chuva era mais fria que a neve e antes de chegar ao arroio do Mueller já estava empapada.

Tommy Mueller fixou a vista na corrente. Os ombros encurvados quase tocavam a asa do chapéu que tinha metido até as orelhas. Pude ver a dúvida em

toda a atitude de seu corpo e me inclinei lhe gritando na orelha: -Fique aqui! Sacudiu a cabeça me dizendo algo que não pude ouvir.

-Volta! -gritei. O moço assinalou com energia a granja e estirou a mão para agarrar as

rédeas de meu cavalo. Era evidente que pensava que era muito perigoso e

pretendia que retornasse a sua casa e esperasse a que passasse a tormenta. A idéia de ficar apanhada durante uma semana em uma casa com quatro

habitações v os dez Mueller nela foi suficiente para me impulsionar à imprudência. Arranquei as rédeas das mãos do Tommy e me dava a volta, o cavalo movia a cabeça de um lado a outro, molesto pela chuva, e pisava com

cuidado no barro escorregadio. Dirigi-me para a parte mais alta da borda, onde uma capa de grosas folhas

facilitava o caminho, fiz um gesto ao Tommy para que se separasse do caminho e

me inclinei, afundando os cotovelos na bolsa de cevada que levava na cadeira como pagamento pelos serviços emprestados. O cavalo estava tão ansioso como

eu e saímos como se nos atirássemos por um tobogã. Depois de uma sacudida

173

caímos na água geada e finalmente conseguimos sair, jorrando água como um

coador. Olhei para penhor e vi o Tommy Mueller ao outro lado com a boca aberta.

Não podia soltar as rédeas para saudá-lo, assim que lhe fiz uma cerimoniosa inclinação de cabeça, apertei os talões e pus rumo a casa.

Tinha estado na cabana dos Mueller durante três dias, me ocupando da

Petronella, que com dezoito anos estava a ponto de dar a luz por primeira e última vez, segundo a jovem.

Freddy, seu marido de dezessete anos, tinha tentado entrar na habitação ao segundo dia, mas recebeu tal série de invectivas em alemão por parte da Petronella que teve que retornar ao refúgio dos homens, com as orelhas tintas

pela mortificação. Entretanto, poucas horas mais tarde o encontrei com aspecto rejuvenescido, ajoelhado ao lado da cama de sua esposa e com o rosto tão branco como o lençol que cobria a sua filha recém-nascida.

Contemplava a cabecita e olhava a sua esposa. -Ist sie nicht wunderschon? -disse brandamente Petronella.

Freddy assentiu e logo apoiou a cabeça em seu regaço e começou a chorar. Todas as mulheres sorriram com benevolência e partiram a preparar a comida. Esta era uma das gratificações das visitas aos Mueller. Esperava que Jamie e Ian,

em minha ausência, prepararam-se um pouco adequado para comer. Estávamos a finais do verão mas ainda não tinha chegado o tempo da colheita. Nas

prateleiras da despensa ainda temamos queijo, pescado em salmoura e bolsas de farinha, milho, arroz, aveia, feijões e cevada.

Jamie podia cozinhar o que caçava; eu tinha dedicado meus melhores

esforços para iniciar ao Ian nos mistérios da elaboração da aveia; mas sendo homens suspeitava que não foram se incomodar e acabariam comendo carne seca e cebolas crudas.

O vento se acalmou ao resguardo da colina, mas a chuva me golpeava com força e o caminho era traiçoeiro.

Notava o desconforto do cavalo e como suas patas escorregavam a cada passo.

-Bom menino -disse em tom conciliador-. Segue assim, é um bom moço.

As orelhas do cavalo apenas se moveram e seguiu com a cabeça encurvada e pisando com cuidado.

O cavalo não tinha nome, bom, em realidade sim o tinha mas eu não o conhecia. O homem que o tinha vendido ao Jamie tinha dado um nome alemão que, segundo Jamie, não era apropriado para o cavalo de uma dama. Pensava

que seu verdadeiro nome se revelaria com o tempo. Pouco depois se deteve por razões óbvias. Uma correnteza que baixava a

colina cobria o atalho. Permaneci imóvel e jorrando água. Não havia caminho. A

minha direita a colina se elevava quase perpendicularmente e à esquerda se inclinava em forma tão escarpada que baixar tivesse sido um suicídio.

Amaldiçoando pelo baixo fiz retroceder ao cavalo sem nome. Se não tivesse sido pela enchente do arroio teria retornado com os Mueller,

deixando que Jamie e Ian as arrumassem sozinhos por um tempo. Mas agora não

tinha eleição: ou encontrava outro caminho para voltar para casa ou ficava aqui e me afogava.

Encontrei um lugar onde a ladeira da colina deixava um pequeno passo,

uma depressão entre dois «chifres» de granito. De ali via os contrafortes e o oco azul do vale. Ao outro lado, as nuvens ocultavam os topos das montanhas, a

chuva e a escuridão se interrompiam por ocasionais relâmpagos.

174

O passo por este lado da colina era bom, rochoso mas não muito íngreme.

Tomei nota da localização de um grande arbusto de amoras, como referência futura, mas não me detive. Se tinha sorte estaria em casa ao anoitecer.

Para me distrair das gotas frite que caíam por meu pescoço, comecei a fazer um inventário mental de minha despensa. O que faria para jantar quando chegasse a casa?

Sobressaltei-me; face ao capuz e meu cabelo abundante, as gotas de chuva me golpeavam como pedras. Então me dava conta de que granizaba. O cavalo

sacudiu a cabeça em um esforço por escapar das pedras; Atirei das rédeas apressadamente e o levei baixo um grande castanho. As folhas nos protegeriam.

-Bem. -Com certa dificuldade dí uma palmada ao cavalo para tranqüilizá-

lo-. Devagar. Estaremos bem sempre que não nos caia um raio. Essa frase deveu ter refrescado a memória de alguém. Uma silenciosa

forquilha de luz percorreu o céu escuro desde além de Roam Mountain. Poucos

segundos depois o som de um trovão agitou as folhas que nos protegiam. Outros raios atravessaram o céu em zonas mais afastadas, seguidos do retumbar dos

trovões. Tratava de acalmar ao cavalo quando se repetiu outra vez. Um raio iluminou a colina escura e me deixou ver a silhueta das orelhas erguidas do cavalo. Juraria que a terra tremeu quando o cavalo deixou escapar um agudo

relincho e atirou das rédeas. Não tive consciência da queda. Passei de estar atirando das rédeas, com o

cavalo apavorado e tratando de escapar, a ver-me tiragem de costas tratando de respirar.

Os ecos do impacto percorreram meu corpo. Ofegava e tremia. Tratei de

ficar aquieta com os olhos fechados, me concentrando na respiração e tratando de fazer um inventário de meus maus.

A chuva caía sobre minha cara, que estava tão intumescida como minhas

mãos. Mas meus braços se moviam e podia respirar um pouco melhor. A perna esquerda me doía mas não parecia nada sério, só uma raspadura no joelho. Rodei

para um lado, dificultada pelo peso da água que tinha absorvido minha roupa, que por sua grossura me tinha salvado de males maiores.

Então ouvi um relincho audível por cima do rugido do trovão. Olhei fazia

acima e vi a cabeça do cavalo por cima de um grande arbusto, Tínhamos estado parados ao bordo de um pequeno precipício, oculto pelos

matagais. O pânico tinha levado a cavalo até o bordo, mas sentiu o perigo e se deteve, não sem antes me deixar cair.

-Maldito descarado! -exclamei. Perguntei-me se o nome em alemão não

quereria dizer isso-. Podia-me ter quebrado o pescoço! Limpei-me o barro da cara e olhei procurando uma maneira de subir. Não

havia nenhum caminho.

Permaneci quase imóvel tratando de pensar. Ninguém sabia onde estava, nem sequer eu, e ninguém me buscaria até passado um tempo, Jamie pensaria

que estava ainda com os Mueller por causa da chuva, estes não tinham motivos para duvidar de minha chegada a casa e, se os tinham, tampouco podiam me buscar por causa das inundações. Quando alguém pudesse fazê-lo tudo meus

rastros estariam apagados. Não estava ferida, isso já era algo. Mas estava sem cavalo, sozinha, sem

comida, perdida e empapada. Do único que estava segura era de que não

morreria de sede. Ainda chovia e as gotas rodavam por mim nariz com monótona

regularidade. Coxeando por meu joelho golpeado e amaldiçoando, baixei pela

175

ladeira até o bordo do arroio. Não havia mais que rochas molhadas. Entretanto, a

certa distância, vi algo que podia me oferecer alguma possibilidade de refúgio. Um grande cedro vermelho tinha cansado ao outro lado do arroio e se via o

enorme matagal de suas raízes. A cavidade que tinha deixado não seria um amparo total, mas parecia melhor que estar a céu aberto ou agachada entre os arbustos. Não me parei a pensar que aquele refúgio também podia atrair a ursos,

pumas e outros animais selvagens. Por sorte não foi assim. Era um espaço de metro e meio de comprimento pela mesma de largura,

escuro, molhado e frio. O teto o formavam as grandes raízes mescladas com a terra arenosa. Parecia sólido e no chão a terra estava úmida mas não se formou barro.

Esgotada, arrastei-me até o fundo, coloquei meus sapatos molhados a um lado e pus-se a dormir.

Sonhei que estava dando a luz. Não sentia dor, via sair a cabeça como se

estivesse entre minhas próprias coxas; parteira e mãe ao mesmo tempo. Agarrei à criatura nua entre meus braços, ainda manchada com o sangue das duas, e a

entreguei a seu pai. A dava ao Frank, mas foi Jamie quem a recebeu e disse «é preciosa».

Então despertei e me voltei a dormir procurando algo que tinha perdido.

Acordada e dormida, perseguida através dos bosques por alguém desconhecido e temível. Acordada e dormida, com uma faca na mão, vermelho pelo sangue, mas

de quem, não sabia. Despertou um aroma de queimado e me sentei de repente. A chuva tinha

parado e supus que me tinha depenado o silêncio. O aroma de fumaça ainda

persistia em meu nariz, assim não era parte do sonho. Apareci a cabeça com cautela, como um caracol saindo de sua concha. O

céu era de uma cor cinza púrpura, com raias alaranjadas sobre as montanhas. A

queda do sol estava próxima e a escuridão chegava aos vales. Saí engatinhando e olhei ao redor. O riacho tinha crescido e o ruído da

corrente era o único som. Frente a mim havia uma pequena colina com um grande álamo balsâmico no topo, a fonte da fumaça. A árvore tinha sido golpeado por um raio. Uma metade tinha ainda as folhas verdes, mas a outra metade

estava enegrecida. Farrapos de fumaça branca subiam como fantasmas e vermelhas linhas de fogo brilhavam detrás da casca negra.

Procurei meus sapatos mas não os pude encontrar na escuridão. Aproximei-me da árvore procurando calor, maravilhoso calor. Durante um momento nem sequer tentei pensar, simplesmente permaneci ali, sentindo que

minha pele geada se esquentava. Mas quando o sangue começou a circular começaram a me doer os golpes e também apareceu a fome. Fazia muito que tinha tomado o café da manhã.

A escuridão aumentava e seguia perdida. Olhei para a colina oposto, não havia rastro do maldito cavalo.

-Traidor -murmurei-. Provavelmente se foi com uma manada de alces. Minhas roupas estavam muitos secas mas a temperatura baixava, ia ser

uma fria noite. O que seria melhor: passar a noite perto da árvore queimada ou

retornar a meu esconderijo enquanto ainda se pudesse ver? Decidiu-me um ruído a minhas costas. Agora a árvore se esfriou. Não havia

fogo para me proteger dos caçadores noturnos. Sem fogo e sem armas, minha

única defesa era ficar escondida durante a noite, como os coelhos e os ratos. De todos os modos tinha que voltar a procurar meus sapatos.

176

Sem muitas vontades de me apartar dos últimos restos de calor, retornei

até a árvore cansada. Ao me agachar vi uma mancha pálida na terra escura do rincão. Estirei a mão e não encontrei o tato do couro de meus mocasines, a não

ser algo duro e suave. Meu instinto tinha detectado a realidade daquele objeto antes de que meu

cérebro encontrasse a palavra e apartei a mão.

Fiquei sentada com o coração acelerado. Então a curiosidade pôde mais que o temor atávico e comecei a escavar.

Era uma caveira completa, com a mandíbula inferior ainda sujeita por restos de ligamentos. Conservava também um fragmento de vértebra rota no começo do pescoço.

Como tinha chegado até ali? Meu instinto respondeu: violência, embora meu cérebro não estava muito longe daquela idéia. Um explorador podia morrer de uma enfermidade, de fome ou por múltiplos perigos (tratei de passar por cima

os ruídos de meu estômago), mas não terminaria enterrado baixo uma árvore. Os cherokee e os tuscarora enterravam a seus mortos, mas não em um

simples oco e a partes. Borde-os comprimidos da vértebra rota revelavam a triste historia de seu proprietário.

-Alguém te tinha antipatia, não é certo? -pinjente-. Arrancou-te a cabeça.

Perguntava-me se o resto estaria também ali. Passei-me uma mão pela cara, pensando; depois de tudo não tinha nada melhor que fazer, não ia a

nenhum site antes do amanhecer e não tinha vontades de dormir detrás descobrir a meu companheiro.

Deixei a caveira a um lado e comecei a cavar. A terra arenosa era suave e

resultava fácil escavar nela, mas depois de uns poucos minutos os dedos e os nódulos me esfolaram; arrastei-me procurando um pau para continuar, mas choquei com algo duro; pensei que não podia ser um osso, nem tampouco algo

metálico. Uma pedra, decidi, tocando aquela forma ovalada. Uma pedra do rio? Não, a superfície era muito suave, mas com algum relevo, embora ao tato não

podia saber o que era. Segui cavando sem êxito. Guardei-me a pedra no bolso, sentei-me sobre os

talões e me esfreguei as mãos na saia. Ao menos o exercício me tinha feito entrar

em calor. Agarrei a caveira. Embora fora horrível me fazia companhia, uma distração para tão difícil situação. ia ser uma larga noite.

Perguntava-me por que tinha pensado que a caveira pertencia a um índio e não a um europeu; possivelmente se devia à pedra.

Havia uma luz no topo. Um pequeno resplendor que ia crescendo. Ao

princípio pensei que era a árvore, alguma brasa que se reavivou, mas naquele momento começou a mover-se e foi descendendo lentamente para mim, flutuando justo por cima dos arbustos.

Levantei-me, me dando conta de que não levava os sapatos. Busquei-os com desespero mas não estavam ali. Agarrei a caveira e fiquei descalça, frente à

luz. Observei como se aproximava. Aterrei-me à caveira. Não era exatamente

uma arma, mas tampouco tema muito claro que o que se aproximava pudesse ser

detido por facas ou pistolas. Não era somente o estado do tempo o que fazia extremamente improvável

que alguém saísse a passear pelo bosque com uma tocha acesa. A luz não ardia

como uma tocha de pinheiro ou uma lanterna de azeite. Não titilava, tinha um brilho firme e constante. aproximava-se da velocidade de alguém caminhando. Eu

177

tinha visto antes o fogo do Santelmo, no mar. Embora também era misterioso,

seu chiado azul aquoso não se parecia em nada à pálida luz que se aproximava. Não tinha cor nem brilhos, era só um brilho espectral. Quando a gente do

Cross Creek mencionava as luzes da montanha, chamavam-nas gás do pântano. «Ja! -disse-me-. Gás do pântano!"

A luz se moveu entre uns arbustos e apareceu ante mim. Não era gás do

pântano. Era um homem alto vestido unicamente com um tanga, Levava o corpo pintado com raias vermelhas no peito, nos braços e nas pernas e o rosto todo de

negro, do queixo até a frente. Seu cabelo estava engordurado e penteado em um penacho de que saíam duas plumas de peru.

Oculta na escuridão de meu refúgio não me podia ver. A tocha que levava o

banhava com uma suave luz, iluminando seu peito e costas sem cabelo e escurecendo as órbitas de seus olhos. Mas ele sabia que eu estava ali. Não me atrevi a me mover. Permaneceu a uns quatro metros e olhou diretamente à

escuridão onde me encontrava, como se fora pleno dia. Não sei quanto tempo estive assim, até que me dava conta de que já não tinha medo.

-O que quer? -pinjente, notando que tínhamos cercado uma espécie de comunicação sem palavras.

Nada coerente passava entre nós, mas era evidente que algo passava.

Respirei profundamente, sentindo de repente uma grande vitalidade. Terra e ar, pensei de repente, e também fogo e ar. E ali estava eu, entre todos os

elementos e a sua mercê. -O que quer? -perguntei outra vez, me sentindo indefesa- Não posso fazer

nada por você. Sei que está aí, posso vê-lo. Mas isso é tudo.

Nada se moveu nem se disseram palavras. Mas o pensamento se formou claramente em minha mente, com uma voz que não era a minha.

«Isto é suficiente», disse.

Sem pressa, deu-se a volta e partiu. Ao pouco tempo a luz de sua tocha desapareceu como se não tivesse existido nunca.

-OH -pinjente um pouco desconcertada-. Meu deus. Tremiam-me as pernas e me sentei, protegendo com a saia a quase

esquecida caveira. Permaneci assim durante um bom momento, mas não

aconteceu nada mais. Tratava de encontrar um sentido ao acontecido, mas não havia nada que

entender porque em realidade não tinha acontecido nada. Entretanto, estava segura de que ele tinha estado ali. A sensação de sua presença me dava um pouco de consolo, até que finalmente fiquei dormida sobre as folhas.

Tive um sonho inquieto a causa da fria e a fome, uma procissão de imagens desarticuladas: árvores queimadas, ardendo como tochas. Jazia baixo a chuva com a garganta atalho e o sangue quente pulsando em meu peito representava

um estranho consolo para minha carne geada. Meus dedos estavam intumescidos e incapazes de mover-se.

Despertaram os batimentos do coração de meu coração. depois de um momento dormi outra vez e segui com meus sonhos. Os lobos uivavam cada vez mais perto. Um homem estava em pé ao lado de uma árvore lhe sangrem e sobre

sua cabeça cortada se erguia uma crista de cabelo negro gordurento. Tinha olhos profundos e um sorriso fragmentado; o sangue que saía de seu peito brilhava mais que a da árvore. Os lobos continuavam aproximando-se, uivando e

gemendo. Senti que meu braço me chocava contra algo úmido e brando que logo esfregava minha cara. Abri os olhos. Uns grandes olhos amarelos me

contemplavam; gritei e dava um golpe. O animal retrocedeu com um bufido.

178

Despertei tremendo; já tinha amanhecido e a luz me permitiu ver a silhueta

grande e negra de... de Cilindro. -Que diabos faz aqui?

As grandes mãos do Jamie me tiraram de meu esconderijo e me apalparam com ansiedade, procurando feridas.

-Está bem? Maldita seja, Sassenach, está bem?

-Não –disse-. Sim. E comecei a chorar. Não durou muito, foi a impressão do alívio. Tratei de

explicar-lhe mas não me ouvia. Agarrou-me em seus braços para me levar até o arroio.

-Vamos, te acalme -disse me abraçando com força-. Vale, mchridhe, já está

a salvo. Ainda estava confundida pelo sonho e o frio. Sua voz me soava estranha e

difícil de entender. Mas seu quente abraço era algo real.

-Espera -pinjente-. Espera, esqueci-me. Tenho que... -Tio Jamie, olhe isto!

Jamie se deu a volta sem deixar de me sujeitar. Ian estava na entrada do refúgio com a caveira levantada.

Senti que Jamie ficava rígido.

-Sassenach, o que é isso? -Quem, deveria dizer -pinjente-. Não sei. Não deixe que Cilindro a agarre,

não gostaria. Jamie me olhou franzindo o cenho. -Está segura de que está bem, Sassenach?

-Não. Tenho fritou e estou morta de fome. Não haverão trazido algo para comer, não? -perguntei ansiosa-. Mataria por uns ovos.

-Não -respondeu enquanto procurava em seu embornal-. Não tive tempo de

me preocupar com a comida, mas tenho um pouco de brandy. Toma, Sassenach, irá bem. -Arqueando uma sobrancelha acrescentou-: Poderia me dizer que diabos

fazia em meio de um nada? Sentei-me em uma rocha e bebi agradecida. Jamie permaneceu com uma

mão apoiada sobre meu ombro.

-Quanto tempo leva aqui, Sassenach? -Toda a noite -respondi, tremendo outra vez-. Desde antes do meio-dia,

quando esse maldito cavalo, cujo nome deveria ser Judas, atirou-me desde essa rocha. Mas como diabos me encontraste? -perguntei-. Algum dos Mueller me seguiu Y...? Não me diga que esse maldito cavalo lhes trouxe até aqui, como se

fora Rin-tin-tin ou Lassie. -Rin-tin-tin? Lassie? Parecem nomes de vacas –disse Ian-, mas foi Cilindro,

não o cavalo, quem nos trouxe até aqui.

Assinalou ao cão com orgulho e este te devolveu o olhar com dignidade, como se todos os dias fizesse coisas semelhantes.

-Mas se não viram o cavalo -perguntei confundida-, como souberam que me tinha ido de casa dos Mueller? E como pôde Cilindro...? -detive-me o ver que os dois homens se olhavam.

Ian se encolheu de ombros e assentiu olhando ao Jamie. Este se agachou e levantou o bordo de minhas saias para tocar meus pés descalços com suas grandes mãos.

-Tem os pés gelados, Sassenach -disse com calma-. Onde perdeste os sapatos?

179

-por ali -pinjente assinalando a árvore cansada-. Ainda devem estar. Tirei-

me isso para cruzar o arroio, logo os pus ali e não os pude encontrar na escuridão.

-Não estão, tia -disse Ian. Seu tom era tão estranho que o olhei surpreendida. -Não, não estão -disse Jamie com a cabeça inclinada. E começou a me

explicar como tinham conseguido me encontrar-: Estava dormido quando enlouqueceu de repente. -Sem levantar a vista fez um gesto para Cilindro-.

Ladrava e uivava enquanto golpeava a porta como se o Diabo estivesse fora. -Gritei-lhe e tratei de acalmá-lo -interveio Ian-, mas não podia detê-lo de

maneira nenhuma.

-Estava convencido de que tinha enlouquecido e tênia medo de que nos atacasse, assim que disse ao Ian que abrisse a porta para que saísse.

Jamie se sentou sobre os talões e olhou meus pés com rosto preocupado.

-Bom, e estava o Diabo fora? -perguntei com rabugice. Jamie sacudiu a cabeça.

-Procuramos por toda parte e não encontramos nada, salvo isto -procurou em seu embornal e tirou meus sapatos. Levantou a vista e me olhou-- Estavam no degrau da porta.

Me arrepiou todo o pêlo do corpo. Levantei a garrafa e bebi o último gole. -Cilindro saiu correndo como um galgo -disse Ian, continuando a história-.

Mas ao momento retornou e começou a farejar seus sapatos e a gemer. Jamie me colocou os sapatos e pude ver o medo em seus olhos. -Acreditei que podia estar morta. Cinzenta -disse brandamente. Ian

continuou, entusiasmado com a história. -Meu inteligente cão estava igual a quando cheira um coelho, assim que

nos pusemos a roupa, apagamos o fogo e o seguimos. -Acariciou as orelhas de

Cilindro com orgulhoso afeto-, E estava aqui! O brandy me fazia zumbir os ouvidos e me enjoava, mas conservava o

suficiente sentido para me dar conta de que se Cilindro tinha seguido meus rastros... alguém tinha caminhado com meus sapatos.

-Viram alguém pelo caminho? -perguntei.

-Não, tía-respondeu Ian, ficando de repente sério-, Você viu algo? -Sim -respondi-, mas lhes direi isso mais tarde. Agora acredito que me

converterei em cabaça. Retornemos a casa. Jamie havia trazido cavalos, mas era impossível lhes fazer baixar até o

terreno baixo, assim que nos vimos forçados a passar pela borda do arroio e chapinhar pelas partes pouco profundas, para logo subir trabalhosamente por uma costa rochosa até o saliente onde estavam atados os cavalos. Por meu

estado, Jamie e Ian tiveram que me levar como se fora um pacote. Em uma das paradas para descansar, Jamie tinha tratado de me fazer beber; queixei-me,

porque em meu estado o excesso de álcool podia me provocar um desmaio. -Se te deprimir -disse- será mais singelo carregar contigo. É como tirar um

bezerro de um pântano.

-Sinto muito -respondi. Fiquei tiragem no chão com os olhos fechados e com a esperança de não ter

que vomitar. O céu se movia em uma direção e meu estômago na outra.

-Fora, cão! -disse Ian. Abri um olho para ver o que acontecia e vi o Ian apartando a Cilindro da

caveira, que eu tinha insistido que trouxessem.

180

-O que pensa fazer com o Príncipe Encantado? -perguntou Jamie, lançando

um olhar crítica a minha aquisição. Logo me olhou sonriendo. Como te encontra, Sassenach?

-Mejor-assegurei me incorporando. Ainda estava um pouco enjoada, mas o brandy me dava uma sensação

prazenteira.

-Suponho que deveríamos levá-lo a casa e lhe dar cristã sepultura, não?. Ian contemplou a caveira com dúvidas.

-Não acredito que nos agradecesse isso, não deve ser cristão -disse com a vivido lembrança do homem que tinha visto no terreno baixo.

Embora era certo que alguns índios se converteram graças ao trabalho dos

missionários, aquele cavalheiro em particular, nu, com o rosto pintado e o cabelo cheio de plumas, tinha-me dado a impressão de que era tão pagão como parecia.

Procurei em meu bolso com os dedos intumescidos.

-Isto estava enterrado com ele -comentei quando consegui tirar a pedra. Tinha forma irregular e era da metade de! tamanho da palma de minha

mão. Uma cara era arredondada e a outra plaina, nesta tinha gravado algo com forma de espiral. Mas não foi isso o que chamou a atenção do Jamie e Ian.

-O que é isso? -perguntou Ian com temor.

-É uma opala endiabladamente grande -comentou Jamie. Logo me olhou-. Dizem que as opalas são pedras de má sorte, Sassenach.

Pensei que brincava, mas parecia inseguro. Apesar de ser um homem cultivado e que tinha viajado muito, continuava tendo o espírito de um highlander carregado de superstições, embora não o demonstrasse

freqüentemente. «Ja -disse-me-, você passou a noite com um fantasma e crie que ele é supersticioso?»

-Tolices -disse com mais convicção da que sentia.

-Bom, não sempre dão má sorte, tio Jamie –assinalou Ian-. Minha mãe tem um anel com uma pequena opala que lhe deixou sua mãe, muito mais pequeno

que este! -Ian tocou a pedra com respeito-. Dizia que a opala tomava algo de seu dono. Quando uma opala tinha pertencido a uma boa pessoa, tudo ia bem e dava boa sorte. Mas se não...

encolheu-se de ombros. -Ah, bom -disse Jamie e moveu a cabeça em direção à caveira. Se pertenceu

a este tipo não deu muita sorte. -Ao menos -assinalei-, sabemos que ninguém o matou por essa pedra. -Talvez não a quiseram porque sabiam que lhes daria má sorte -sugeriu

Ian-. Possivelmente deveríamos deixá-la, tia. Esfreguei-me o nariz e olhei ao Jamie. -É provável que tenha valor -pinjente.

-Ah. Os dois se olharam um momento, lutando entre a superstição e o

pragmatismo. -Bom -disse finalmente Jamie-. Suponho que não nos passará nada por

guardá-la durante um tempo. -Sorriu-, Me deixe levá-la, Sassenach; se me cair

um raio pode atirá-la. -A ensinarei ao Nayawenne -pinjente-. Ao menos saberá o que significa a

gravura.

-Boa idéia, Sassenach -aprovou Jamie-. E se o destino final do Príncipe Encantado teve algo que ver com ela, pode guardar-lhe com minhas bênções. -

Assinalou um grupo de arces-. Os cavalos estão ali. Pode caminhar, Sassenach?

181

-Não estou segura. Parece-me que estou algo bêbada.

-Não, tia -disse Ian-. Meu pai diz que nunca está bêbado enquanto possa te ter em pé.

Jamie riu e se colocou a capa no ombro. -Meu pai estava acostumado a dizer que um não estava bêbado se podia

encontrar o traseiro com as duas mãos.

Olhou meu traseiro, mas o pensou melhor e não disse nada mais. Ian lançou uma gargalhada, logo tossiu e ficou sério.

-Ah, bom. Não está muito longe, tia. Está segura de que não pode caminhar?

-Eu não vou levar a de novo, isso lhe asseguro isso -apressou-se a

responder Jamie-. Não quero me romper as costas. -Agarrou a caveira com a ponta dos dedos e a colocou sobre minha saia-.

Espera aqui com seu amigo, Sassenach. Ian e eu vamos procurar os cavalos.

Chegamos à Colina do Fraser a primeira hora da tarde. Tinha passado frio,

tinha-me molhado e não tinha comido desde fazia quase dois dias; sentia-me enjoada, estado que tinha aumentado pelo brandy e os esforços por explicar os sucessos da noite anterior ao Jamie e ao Ian. À luz do dia e em meu estado todo

aquilo parecia irreal. portanto, quando chegamos ao claro acreditei que a fumaça da chaminé era uma alucinação, até que o aroma de madeira queimada chegou a

meu nariz. -Acreditei que havia dito que apagou o fogo -disse ao Jamie-. Por sorte não

queimou a casa.

-Fiz-o -respondeu-. Há alguém. Conhece o cavalo, Ian? Ian se içou nos estribos para olhar. -Caramba, é o malvado animal da tia! -disse surpreso-. E um grande

pintalgado está com ele! O recém batizado Judas estava no curral, desensillado e em companhia de

outro cavalo. -Sabe de quem é? —perguntei. -Não, mas é um amigo -disse Jamie-. Deu de comer aos animais e

ordenhou a cabra. Vamos, Sassenach. Meteremo-lhe na cama e tomará um chá. Tinham ouvido nossa chegada. abriu-se a porta da cabana e saiu Duncan

Innes. -Ah! Está aqui, MAC Dubh. O que passou? cheguei esta manhã... -Então

me viu e ficou pálido de surpresa-. Claire! tiveste um acidente? Preocupei-me

quando encontrei o cavalo com a caixa na cadeira. -Sim, tive um acidente, mas estou bem -pinjente tratando de me manter

direita.

-À cama -disse Jamie com firmeza, me sustentando pelos braços-. Agora. -Primeiro um banho -respondi.

-Sassenach, come e vete à cama. Pode te banhar amanhã. -Não. Quero água quente. Não tinha forças para discutir, mas estava decidida. Não ia deitar me suja

para ter que lavar os lençóis depois. Jamie me olhou com fúria e fez um gesto de resignação. -Então, água quente e uma panela -disse-. Ian, traz lenha e a dá ao

Duncan e te ocupe dos porcos. vou esfregar a sua tia. -Posso me esfregar sozinha!

-Isso é o que você te crie.

182

Tinha razão, meus dedos estavam rígidos e teve que me despir. Sentir a

água quente em meus pés machucados foi algo maravilhoso. Cansada e meio bêbada como estava, derretia-me enquanto Jamie me lavava da cabeça aos pés.

-Onde te fez isso, Sassenach? -disse, tocando meu joelho esquerda. -Bom... isso foi quando me caí do cavalo. -Poderia te haver quebrado o pescoço!

-Isso pensei -pinjente fechando os olhos. -Teria que havê-lo pensado melhor, Sassenach, e não ter estado ali

sozinha... -Não pude evitá-lo -pinjente abrindo os olhos-. O caminho estava alagado,

tive que dar a volta.

Olhou-me com fúria, com os olhos como escuras gretas azuis. -Em primeiro lugar, não deveu deixar a casa dos Mueller com essa chuva!

Não tem bastante sentido comum para saber como foste encontrar o terreno?

-Bom... Como ia ou seja? Além disso... -te esteja aquieta! -ordenou-. Não quero discutir contigo!.

Levantei a vista para olhá-lo. -Que diabos quer? por que me grita? Eu não fiz nada mau! -Não, não o fez -aceitou-. Mas me assustou muito, Sassenach, e tenho

vontades de te arreganhar, mereça-o ou não. -por que não me repreende em gaélico? -pinjente-. Acalmará-te e eu não

entenderei quase nada. Soltou um bufido de desprezo e me inundou a cabeça na água. -Espero que não ponha malote por dormir à intempérie com a roupa

molhada. -A roupa molhada e o frio não causam enfermidades -informei-lhe. Arqueou as sobrancelhas.

-Ah, não? -Não. Já lhe hei isso dito antes. São os gérmenes os que causam a

enfermidade. Se não estive exposta a nenhum germe, não me porei doente. -Ah, gérrrrmenes -disse com voz afetada-. Tem um bonito traseiro! Então,

por que há mais enfermidades no inverno que na primavera? Os gérmenes se

produzem pelo frio? -Não exatamente.

me sentindo absurdamente coibida, agarrei a colcha para me cobrir, mas Jamie me agarrou por braço e me empurrou para ele.

-Vêem -disse sem nenhuma necessidade.

antes de que pudesse dizer nada, estava-me beijando. Quando me soltou quase me desabo. -À cama -disse outra vez.

-Mmm -respondi lhe demonstrando que não pensava ir sozinha. -Não -disse tratando de afastar-se, mas não o soltei-. Meu pai me disse que

nunca me aproveitasse de uma mulher que está mal por causa da bebida. -Mas eu não estou mau, estou melhor -assegurei-. Além disso -Executei

uma lenta contorção-. Acredito que disse que se a gente podia tocar o traseiro

com as mãos não estava bêbado. Olhou-me surpreso. -Sinto ter que lhe dizer isso Sassenach, mas não é seu traseiro o que

toucas, a não ser o meu. -É igual -assegurei-lhe-. Estamos casados. Uma mesma carne, disse-o o

sacerdote.

183

Fez um último intento.

-Não deveria comer algo? Deve estar morta de fome. -Mmm -pinjente. Escondi meu rosto em sua camisa e o mordi

brandamente-. Esfomeada. -O que é isso? -perguntei, observando os pálidos grãos que flutuavam na

superfície do líquido. Parecia um jarro cheio de vermes afogados.

-Cevada -disse Ian, olhando com orgulho como se fora seu primeiro filho recém-nascido-. Preparei-a eu; tirei-a da bolsa que trouxe dos Mueller.

-Muito obrigado -pinjente e tomei um gole com precaução.

Pese ao aroma, não acreditava que o tivesse preparado em seu sapato-. Muito bom. Muito amável, Ian.

ficou avermelhado de satisfação.

-Não é nada. E há muito mais, tia. Ou prefere um pedaço de queijo? Posso tirar as partes verdes.

-Não, não, assim está bem -pinjente rapidamente-, Ah... por que não sai e tráficos de caçar esquilos ou coelhos? Estou segura de que estarei bem para preparar o jantar.

Sorriu e sua cara se iluminou. -Me alegro de ouvi-lo, tia -disse-. Deveria ter visto o que comíamos

enquanto você não estava! Deixou-me recostada sobre os travesseiros, pensando no que podia fazer

com o conteúdo do jarro. Jamie me tinha levado a cama sem majores protesta.

Tinha-me deixado dormir para ir saudar o Duncan e lhe oferecer a hospitalidade da casa.

A caveira estava sobre meu escritório, ao lado de um vaso com flores e meu

caderno. Isso me espabiló. O parto que tinha atendido na granja do Mueller me parecia algo vago e longínquo, pensei que era melhor que anotasse os detalhes

enquanto pudesse recordá-los. Saí da cama e me cambaleando cheguei até a chaminé, onde derrubei o

conteúdo do jarro na panela. Ian tinha preparado o suficiente para alimentar um

regimento, sempre que fora de escoceses. A bolsa de cevada estava aberta. Tinha que pôr o grão a secar ou se

apodreceria. Mim joelho protestou um pouco enquanto ia procurar uma grande cesta e me ajoelhava para esparramar o grão úmido.

-Então, é fácil de dirigir, Duncan? -A voz do Jaime me chegava claramente

através da janela- É um bruto grande e forte, mas tem olhos de bom. -É um bom moço -disse Duncan, com uma inconfundível nota de orgulho

em sua voz-, E muito obediente. A senhorita Eu fez que seu caballerizo o

escolhesse no mercado do Wilmington, disse-lhe que queria um cavalo que se dirigisse com uma só mão.

-Mmm. Sim, bom, é uma adorável criatura. Jamie tinha nascido sobre um cavalo e podia dirigi-los sem usar as mãos.

Mas Duncan era um pescador e não lhe faria notar sua inexperiência. Devia ser

uma forma de assinalar algo mais. Duncan o captaria? -É de ti de quem ela espera ajuda, MAC Dubh, e sabe bem. O tom do Duncan era seco. Tinha captado a insinuação do Jamie.

-Não hei dito o contrário, Duncan. A voz do Jamie era tranqüila.

-Mmm.

184

Sorri. Duncan era tão bom como Jamie na arte escocesa da eloqüência

silenciosa. Um som particular que indicava o ter entendido o insulto do Jamie ao lhe reprovar que aceitasse o cavalo da Yocasta. E o desejo de aceitar a desculpa

pelo insulto. -Pensaste-o, então? -Duncan trocou bruscamente de tema-. Será Sinclair

ou Geordie Chisholm? -Sem lhe dar tempo a responder, continuou falando de

uma forma que deixava claro que já o havia dito antes-. É certo que Sinclair é tonelero, mas Geordie é um bom moço, muito trabalhador, e tem dois filhos

pequenos. Sinclair é solteiro, assim não necessitará muito para instalar-se, mas... -Necessitará tornos e ferramentas, ferro e madeira -interrompeu Jaime-.

Pode dormir em sua oficina, é certo, mas necessitará a oficina. E acredito que

custará muito comprar tudo o que necessita. Geordie necessitará um pouco de comida para sua família, mas isso podemos dar-lhe E para começar não necessitará mais que umas poucas ferramentas. Tem uma tocha, não?

-Assim é, está no contrato. Mas agora é a temporada da semeia, MacDubh. Com a limpeza...

-Já sei -respondeu Jamie, um pouco irritado-. Fui eu o que semeou cinco acres de grão faz um mês. E primeiro tive que limpar o terreno, -Enquanto Duncan o passava bem no River Run, conversando nos botequins e passeando

em seu cavalo novo. Ouvi-o e o mesmo aconteceu com o Duncan. O silêncio falava mais alto que as palavras.

-Sua tia Eu te enviou um regalito. -Ah, sim? -Uma garrafa de uísque.

Havia um sorriso na voz do Duncan, a que Jamie respondeu com uma risada desinteressada.

-Ah, sim? -repetiu com tom diferente-. É muito amável.

-vamos procurar a. Um traguito não te fará mal. -Não, claro -disse Jamie arrependido-. Não dormi ontem à noite e não me

encontro bem. Deve desculpar minhas maneiras, Duncan. -Não falemos disso. Ouvi um som, como se uma mão aplaudisse um ombro, e logo se foram

juntos. O que tivesse sido do Duncan se Jamie não lhe tivesse encontrado e

procurado um site para ele? Em Escócia não havia nada para um pescador sem braço. Mas este era o Novo Mundo e, embora havia riscos, também havia novas possibilidades para viver. Não era estranho que Jamie se preocupasse sobre

quem teria as melhores oportunidades. Sinclair, o tonelero, ou Chisholm, o granjeiro?

Duncan já tinha encontrado trinta dos homens do Ardsmuir e nos

tínhamos ficado com vinte, colocando-os em boas terras perto do rio, baixo o apadrinhamento do Jamie.

Quando se acabaram todos nossos recursos, Jamie pediu dinheiro

emprestado e foi com ele aos botequins, ao lado do rio. Esteve jogando durante

três noites, cuadriplicó seu dinheiro e evitou que o apunhalassem, como soube mais tarde. Fiquei muda ao ver o comprido talho que cruzava o peitilho de seu casaco quando voltou. depois de barbear-se e lavar-se, foi devolver o dinheiro aos

donos das plantações vizinhas, acrescentando a seu agradecimento o pagamento dos interesses. E ainda ficou suficiente para comprar sementes para semear,

outra mula, uma cabra e alguns porcos.

185

Não lhe perguntei; remendei seu casaco e o contemplei enquanto dormia

depois de devolver o dinheiro. Agarrei-lhe uma mão e percorri as linhas da palma. As linhas da cabeça e o coração eram largas e profundas. Quantas vistas jaziam

naquelas dobras? A minha. a de seus colonos. a do Fergus e Marsali, que tinham chegado da

Jamaica com o Germaine, gordo, loiro e encantador, e que tinha a seu pai na

palma de sua gorda manita. Ao pensar neles olhei involuntariamente pela janela. Ian e Jamie os tinham

ajudado a construir uma pequena cabana a menos de dois quilômetros da nossa. Algumas vezes, Marsali vinha caminhando a me visitar com o menino. Como sentia nostalgia pelo Bri, o pequeno Germaine representava o substituto do neto

que nunca veria. Suspirei e tratei de afastar aqueles pensamentos. Terminei de estender os grãos e dirigi a meu escritório. Abri meu caderno

forrado de couro e comecei a anotar os detalhes do parto. Foi um trabalho comprido, mas normal. Sem complicações no nascimento, a única coisa incomum

tinha sido a membrana... Deixei de escrever e sacudi a cabeça. O filho da Petronella não nasceu com

a membrana que envolve ao feto. Foi no sonho, pensei; tinha misturado os dois

partos. Era Brianna a que tinha nascido com a membrana. Os escoceses a chamavam "capuz da sorte». Diziam que dava amparo para

não afogar-se. E alguns meninos eram bentos com uma segunda visão. Mas fora sorte ou não, Brianna nunca tinha manifestado signos daquele estranho «conhecimento» celta. Sabia o que representava minha forma peculiar de segunda

visão, o conhecimento de certas coisas que vão acontecer, para lhe desejar a outra pessoa suas complicações.

Olhei a página. Sem me dar conta, tinha desenhado a cabeça de uma

menina, o cabelo e os traços de um nariz largo. Além disso, não tinha rosto. Não era uma artista, não tinha o dom da

Brianna para o desenho. Sua imagem estava em meu coração. Pela primeira vez senti certa simpatia pela Yocasta Cameron e seu desejo de

um herdeiro: alguém que ficasse para ocupar seu lugar e dar testemunho de que

sua vida não tinha sido em vão. Não desejava que Brianna estivesse aqui, mas isso não significava que não a sentisse falta de.

Terminei minhas notas e fiquei sentada durante um momento. Sábia que tinha que ir preparar o jantar, mas o cansaço me deixava incapaz de me mover. Doíam-me todos os músculos e o moratón do joelho. O que realmente desejava

era voltar para a cama. Mas em lugar disso agarrei a caveira e acariciei o crânio arredondado. Tinha que admitir que era um adorno macabro no escritório, mas me sentia ligada a ela. Então recordei a voz do professor Raymond em Paris.

-Simpatia? -havia dito, tocando uma caveira-. É uma emoção incomum para senti-la por um osso, Madonna.

Mas sabia o que eu queria dizer, porque quando lhe perguntei por aquelas caveiras, sorriu ao me responder que eram uma espécie de companhia.

Agora também o entendia, porque o cavalheiro da caveira tinha sido uma

companhia para mim em um lugar escuro e solitário. De novo me perguntei se teria algo que ver com a aparição que vi na montanha, o índio com a cara grafite de negro.

O fantasma, se é que o era, não tinha sorrido nem falado em voz alta. Não tinha visto seus dentes, o que tivesse sido meu único ponto de comparação com a

caveira que tinha entre minhas mãos. Levantei-a para examiná-la à luz. Dava-lhe

186

a volta para examinar os molares e fiquei geada. Pese ao calor do fogo tive frio, o

mesmo frio que quando estava perdida na montanha. A luz do sol tinha feito brilhar o anel de prata de minha mão e o empastelamento de chumbo de meu

defunto companheiro. Olhei-a fixamente e a deixei com cuidado sobre o escritório, como se fora muito frágil.

-meu deus -disse aos olhos vazios e ao sorriso torcido-. Quem foi?

-Quem crie que pôde ser? Jamie tocou a caveira cautelosamente. Duncan tinha ido à privada e Ian

estava com os porcos, assim aproveitei aquele momento para explicar-lhe -Não tenho nem idéia. Salvo, é obvio, que teve que ser alguém... como eu. Estremeci-me e Jamie me olhou com ar preocupado.

-Não te terá resfriado, verdade, Sassenach? -Não. -Sorri fracamente-. Mas é como se alguém tivesse pisado em minha

tumba.

Jamie agarrou o lenço pendurado na porta e me pôs isso. Deixou tas mãos sobre meus ombros, cálidas e consoladoras.

-Isso significa algo, não? -perguntou com calma-. Significa que há outro... lugar. Talvez perto.

Outro círculo de pedras ou um pouco parecido. Também tinha pensado isso

e me estremeci outra vez. Jamie olhou a caveira com ar pensativo, logo tirou um lenço e o colocou sobre os olhos vazios.

-Enterrarei-o depois do jantar -disse. -Já, o jantar. -Tratei de enfocar meus pensamentos na comida-. Sim, vou

ver se encontro ovos. Farão-se rápido.

-Não se preocupe, Sassenach. -Jamie inspecionou a panela posta no lar-. Podemos comer isso.

-Puf -pinjente e Jamie me sorriu zombador.

-Não há nada mau nessa sopa de cevada, não? -Caso que o seja -respondi, olhando com desgosto a panela- E falando de

cevada, terá que tirar a dessa bolsa para que se seque. -Sim? -perguntou distraído-. Sim, farei-o. -carregou-se a bolsa à costas.

deteve-se na porta olhando a caveira-, Disse que não acreditava que fora cristão.

-Olhou-me com curiosidade-, por que crie isso, Sassenach? Vacilei, mas não havia tempo de lhe contar o sonho, se é que tinha sido

isso. Podia ouvir a conversação do Ian e Duncan aproximando-se da casa. -Não há uma razão especial -pinjente encolhendo os ombros. -Ah, bom. Então, vamos conceder lhe o benefício da dúvida.

24 Escrever cartas: a grande arte do amor

Oxford, março de 1971 Roger supunha que no Inverness choveria tanto como em Oxford, mas

nunca lhe tinha importado a chuva do norte. O frio vento de Escócia, soprando

no Moray Firth, era estimulante e a chuva vivificava e refrescava o espírito. Mas isso era em Escócia, quando Brianna estava com ele. Agora que ela

estava na América do Norte e ele na Inglaterra, Oxford era frio e opaco, com ruas

e edifícios cinzas como cinzas de fogos apagados. A chuva jorrava pelos ombros de sua toga de professor; deteve-se procurando o amparo da casita do porteiro

para sacudi-la roupa.

187

-Há cartas? -perguntou.

-Isso acredito, senhor Wakefield. Espere um segundo. Martín desapareceu em seu santuário interior deixando ao Roger ocupado

em ler os nomes dos membros da faculdade mortos na guerra, colocados em uma placa.

Desde que tinha conhecido a Brianna e a sua mãe tinha descoberto que o

passado, muito freqüentemente, tem um rosto turbadoramente humano. -Aqui tem, senhor Wakefield. -Martín se inclinou por cima do mostrador

com um molho de cartas-. chegou uma de Estados Unidos-añadió com uma piscada.

Roger sorriu como resposta enquanto um calor se estendia por seu corpo,

acabando com o frio daquele dia chuvoso. -vamos ver logo a sua noiva, senhor Wakefield? Martín estirou o pescoço espiando abertamente o sobre com selos dos

Estados Unidos. O porteiro tinha conhecido a Brianna quando ela esteve ali com o Roger, justo antes de Natal, e tinha cansado prendado de seu encanto.

-Isso espero. Talvez no verão. Obrigado! voltou-se fazia a escada, sustentando as cartas com cuidado debaixo da

manga de sua túnica enquanto procurava a chave. Tinha uma sensação mescla

de júbilo e desalento ao pensar no verão. Brianna havia dito que voltaria em Julho, mas para julho faltavam quatro meses. Quando estava de mau humor não

acreditava que pudesse agüentar nem quatro dias. Roger dobrou a carta outra vez e a guardou em um bolso perto de seu

coração. Brianna lhe escrevia várias vezes à semana, desde notas breves a largas cartas e todas lhe deixavam um quente fulgor que lhe durava até que chegava a seguinte.

Ao mesmo tempo, naquela época, suas cartas eram de algum jeito insatisfactorias. Seguiam sendo calidamente afetuosas, sempre assinava «com

amor» e dizia que sentia saudades e queria estar com ele. Talvez fora natural, uma progressão normal, à medida que se foram

conhecendo cada vez mais; não se podiam escrever cartas apaixonadas todos os

dias e ser sinceros. Sem dúvida era sua imaginação a que o fazia pensar que Brianna estava

distante em suas cãs. Mordeu o sanduíche e o mastigou distraído, pensando nos últimos artigos que Fiona lhe tinha ensinado. Agora que era uma mulher casada, considerava-se uma perita em assuntos matrimoniais e punha um fraternal

interesse no desigual curso do idílio do Roger. Enviava-lhe constantemente recortes de revistas de mulheres. A última era

um artigo titulado: «Como intrigar a um homem". Em outro aconselhava:

«compara seus interesses». “Se lhe gostar do futebol e lhe aborrece, pense que ele não é aborrecido e fale do tema.”

Roger sorriu um pouco sombrio. Tinha compartilhado os interesses da Brianna. Se seguir os rastros de seus pais através de sua história arrepiante se considerava um passatempo, tinha completo. Entretanto, era pouco o que podia

compartilhar com ela. perguntou-se se Brianna leria artigos semelhantes em revistas norte-

americanas, mas descartou a idéia. Brianna Randall era incapaz de jogar a

aqueles jogos tolos, igual a ele. Não, ela não ia tratar o de outra forma para aumentar seu interesse- Que

sentido teria? Seguro que ela sabia quanto lhe importava. Mas saberia? Inseguro,

188

Roger recordou outro dos conselhos da revista: «Não suponha que ele pode ler

sua mente. lhe dê uma pista de como se sente você». Roger deu outra dentada ao sanduíche e o mastigou. Bom, lhe tinha dado

um sinal. Tinha despido sua alma e ela se colocou em um avião para ir-se a Boston.

-Não seja muito agressivo -murmurou soltando um bufido.

A mulher que estava a seu lado olhou e se afastou um pouco. Roger suspirou e deixou o resto do sanduíche sobre a bandeja de plástico. Procurou

uma taça do que no comilão chamavam café, mas não bebeu. voltou-se a sentar com a taça entre as mãos, absorvendo seu calor.

O problema era que enquanto acreditava que tinha triunfado em afastar a

atenção da Brianna do passado, era incapaz de fazê-lo ele. Claire e aquele maldito highlander o obcecavam; pela fascinação que lhe provocavam, pareciam sua própria família. «Sempre deve ser sincero», dizia outra das entrevistas. Se o

tivesse sido, se a tivesse ajudado a descobrir tudo, talvez o fantasma do Jamie Fraser agora estaria tranqüilo e Roger também.

-Vete ao inferno! -murmurou para si mesmo. A mulher sentada a seu lado deixou a taça na bandeja e se levantou. -você vá-se ao inferno! -disse, e se afastou.

Roger a contemplou durante um momento. -Não tema -disse-. Acredito que já estou nele.

25 Aparece uma serpente

Outubro de 1768

Em princípio não tenho objeções contra as serpentes. Comem ratos, o que é algo louvável, algumas são decorativas e a maioria são o bastante ardilosas para

manter-se fora do caminho. Vive e deixa viver era minha atitude básica. Mas essa era a teoria. Na prática, tinha toda aula de objeções contra a

enorme serpente que estava enrolada no assento do privada. Além do fato de que

naquele momento me incomodava enormemente, não era útil comendo ratos e esteticamente tampouco era agradável, já que era cinza com manchas escuras.

Mas minha maior objeção era o fato de que era uma serpente de cascavel. Suponho que era uma sorte que o fora, porque o ruído das cascavéis impediu que me sentasse sobre ela na tênue luz do amanhecer.

O primeiro som me deixou geada; parada no pequeno privada estendi um pé para trás procurando a soleira. À serpente isso não gostou; fiquei imóvel enquanto seu zumbido aumentava. Podia ver a puma de sua cauda vibrando,

movendo-se como um grosso dedo amarelo. Entretanto, não podia ficar ali para sempre. Deixando a um lado outras

considerações, a impressão de ver a serpente não tinha diminuído a urgência de minhas funções corporais.

Tinha a vaga noção de que as serpentes eram surdas; talvez poderia gritar

pedindo auxílio. Mas e se não era assim? Havia uma história do Sherlock Holmes onde uma serpente respondia a um assobio. Pode que o assobio lhe parecesse inofensivo. Com precaução, franzi os lábios e soprei. Não saiu outra coisa que

uma fraca corrente de ar. -Claire? -disse uma voz intrigada a minhas costas-. Que diabos está

fazendo?

189

Saltei ante a voz e o mesmo fez a serpente, ou ao menos se moveu

súbitamente no que pareceu um iminente ataque. -Há uma maldita serpente -disse entre dentes, tratando de não mover os

lábios. -Bom, por que fica parada? te faça a um lado e a tirarei. Os passos do Jamie se aproximaram. A serpente também o ouviu; era

evidente que não era surda e aumentou seus cascabeleos. -Ah! -disse Jamie em tom diferente-. Fica aquieta, Sassenach.

Não tive tempo de responder a sua advertência porque uma pedra grande passou roçando meu quadril e golpeou à serpente; esta se retorceu e caiu no desculpado com um plaf!

Não felicitei ao vitorioso guerreiro, mas sim saí correndo para o bosque mais próximo. Aos poucos minutos retornei mais tranqüila e encontrei ao Jamie e ao Ian juntos no privada considerando o tamanho, o menor em cuclillas no

banco, com uma tocha, e o tio inclinando-se sobre o buraco esquadrinhando as profundidades.

-Aqui, posso ver algo; aproxima a luz. Jamie se incorporou para baixar a tocha. -Aí está! Vejo-a! -gritou Ian.

As duas cabeças se juntaram e se chocaram com o ruído de melões partidos. Jamie baixou a tocha até que caiu no buraco e se apagou. um pouco de

fumaça subiu como incenso. -Ainda está viva? -perguntei com ansiedade. Jamie abriu um olho e me olhou entre os dedos com os que se sujeitava a

cabeça. -Minha cabeça está bem, obrigado –disse-. Espero que meus ouvidos

deixem de soar para na próxima semana.

-Vamos, vamos -pinjente conciliadora-. Faria falta um martelo especial para romper seu crânio. me deixe ver.

Tinha um galo debaixo do nascimento do cabelo, mas não havia sangue. Beije o galo e lhe dava uma palmada na cabeça. -Não vais morrer -pinjente-. Não por isso.

-Ah, bem -disse com secura-. Talvez mora pela picada da serpente a próxima vez que me sente a fazer minhas necessidades.

-O que vais fazer a respeito? -perguntei. Arqueou uma sobrancelha. -Eu? por que tenho que fazer algo?

-Não pode deixar que fique aí! -por que não? -disse arqueando a outra sobrancelha. Ian se arranhava a cabeça com ar ausente, até que encontrou o galo e se

sobressaltou. -Bom, não sei, tio Jamie -disse dúbio-. Se quer deixar seu Pelotas

pendurando sobre uma serpente é seu problema, mas só de pensá-lome põem os cabelos de ponta. Como é de grande?

-Bastante grande, devo admiti-lo.

Jamie flexionou a boneca mostrando seu antebraço para lhe dar uma idéia. -Né! -disse Ian. -Sabe se saltarem? -colaborei.

-Sim, sei. -Olhou-me com cinismo-. E como quer tirá-la?

190

-Posso lhe disparar com sua pistola -ofereceu Ian, fascinado pela

possibilidade de poder usar as apreciadas pistolas do Jamie-. Não precisamos tirá-la se podemos matá-la.

-pode-se... ah... ver? -perguntei com prudência. -Não muito. Há uns centímetros de imundície no fossa; não acredito que se

veja bem para apontar e detestaria perder um disparo.

-Podemos convidar a todos os Hansen para jantar, servir cerveja e afogar à serpente -sugeri, mencionando a nossa ampla família vizinha.

Ian se afogou com a risada e Jamie me olhou com seriedade e se dirigiu ao bosque.

-Pensarei algo -disse-. Depois do café da manhã.

Por sorte o café da manhã não foi um grande problema, já que as galinhas

tinham posto ovos e o pão se assou bem. A manteiga ainda estava confinada no

fundo da despensa, baixo a custódia de uma cerdita recém-nascida, mas Ian as engenhou para tirar um pote de geléia da prateleira enquanto eu tratava de detê-

la com a vassoura. -Necessito uma vassoura nova -comentei, enquanto preparava os ovos-.

Talvez baixe esta manhã até os salgueiros do arroio.

-Mmm. Jaime estendeu a mão para procurar a bandeja com pão. Toda sua atenção

se centrava no livro que estava lendo: História natural da Carolina do Norte, do Bricknell.

-Aqui está -disse-. Sabia que tinha visto algo sobre as serpentes de

cascavel. -Encontrou o pão e o usou para acompanhar uma porção de ovo. depois de tragar leu em voz alta-: “Os índios com freqüência arrancam os dentes das serpentes para que não possam fazer mal ao morder. A operação se realiza

facilmente: atando um trapo vermelho na ponta de um cano largo e oco, provocando assim à serpente, até que o remói".

-Tem algum trapo vermelho, tia? -perguntou Ian, tragando uma parte de ovo com café de chicória.

Neguei com a cabeça.

-Esse é um bom livro, tio Jaime -disse Ian com aprovação-. Diz algo mais sobre as serpentes?

-Bom, aqui há algo sobre como as serpentes encantam aos esquilos e os coelhos.

Jaime tocou seu prato e o encontrou vazio. Empurrei-lhe a fonte com pão-

doces. -E não diz nada sobre como tratar a porcos viciosos? -Eu me ocuparei dos porcos -murmurou-, Não há mais ovos?

-Há, mas são para nossa hóspede do celeiro. Pus duas fatias de pão na pequena cesta que estava preparando e agarrei a

garrafa com a infusão que tinha deixado descansar durante a noite. Podia lhe ajudar e não lhe faria mau. Em um impulso, levei-me o amuleto que me tinha agradável a anciã Nayawenne; talvez isso daria confiança ao doente. Como a

infusão, não lhe faria mal. Nossa inesperado hóspede era um forasteiro; um tuscarora de uma aldeia

do norte. Tinha chegado à granja vários dias atrás como membro de uma partida

de caça desde a Amia Ooka, seguindo os rastros de um urso. Tínhamo-lhes devotado comida e bebida; alguns dos caçadores do grupo

eram amigos do Ian; durante a comida notei que aquele homem tinha um olhar

191

especial, sem brilho. Ao examinar o de perto, cheguei à conclusão de que tinha o

sarampo, uma enfermidade alarmante para a época. Insistiu em partir com seus companheiros, mas dois deles o trouxeram de

volta poucas horas mais tarde, confuso e delirante. Era alarmantemente contagioso. Fiz-lhe uma cama no novo celeiro e

obriguei a seus companheiros a lavar-se no arroio, antes de partir, o que

certamente consideraram uma tolice. O índio estava de lado e nem se moveu para me olhar.

-Comment seja vai? -pinjente me ajoelhando junto a ao. Não me respondeu, não era necessário. Por sua respiração podia

diagnosticar pneumonia, coisa que confirmei nada mais vê-lo. Tratei de lhe

convencer para que comesse, pois o necessitava desesperadamente, mas nem se incomodou em mover a cara. A garrafa com água que lhe tinha deixado estava vazia. antes de repor-lhe tentei lhe dar a beber a infusão. Tragou um pouco e se

deteve- Então lhe dava água e bebeu sedento. Fui ao arroio para enchê-la de novo. Quando retornei, em um arranque de

inspiração, agarrei o amuleto e me ajoelhei. Não sabia qual era a cerimônia adequada mas tinha sido médica o tempo

suficiente para conhecer o poder da sugestão. Não era melhor que os antibióticos,

mas sem dúvida era melhor que nada. Levantei o amuleto e recitei solenemente o primeiro que me veio à mente,

que resultou ser o tratamento para a sífilis em latim do doutor Rawlings. Completei mim ritual benzendo a garrafa com a infusão e logo a aproximei do paciente. Quase hipnotizado abriu a boca e bebeu.

Tampei-lhe com a manta, deixei a comida a um lado e me parti com uma mescla de esperança e sensação de fraude.

Caminhei com lentidão ao lado do arroio, alerta a algo que pudesse me

resultar útil. Era uma época do ano muito temprana para encontrar muitas novelo medicinais. As melhores eram novelo fortes e velhas, mas também

estavam as flores e os frutos ou as sementes que tinham substâncias utilizáveis. Meti-me no arroio para tirar um lindo conjunto de rabo-de-cavalo e um

tentador arbusto de folhas verdes aromáticas. Movi-me com os ritmos da água e o

vento, passando a ser parte da lenta e perfeita ordem do universo. Ao chegar à curva dos salgueiros ouvi um chiado além das árvores. Tinha

ouvido ruídos similares produzidos por animais, mas podia reconhecer a voz humana quando a ouvia.

Abri-me caminho entre os ramos até chegar a um claro. Um menino

saltava, golpeando-se enlouquecido nas pernas. -O que...? -comecei a dizer. Levantou a vista e me olhou com seus olhos azuis cheios de surpresa por

minha aparição. Não estava mais surpreso que eu. Devia ter onze ou doze anos e era alto e

magro, com um arbusto de cabelo castanho avermelhado. Seus olhos azuis olhavam a ambos os lados de um nariz reta, tão familiar para mim como a palma de minha mão, embora sabia que nunca tinha visto antes a aquele menino.

-Sanguessugas -pinjente. A calma profissional tinha superado minha comoção pessoal. «Não pode ser», dizia-me mesma e ao mesmo tempo sabia que era-. São sanguessugas, não lhe farão mal.

-Sei o que são! -disse-. Tira-me isso estremeceu-se de asco-. São odiosas! -Não tão odiosas. Têm sua utilidade -pinjente, começando a me recuperar

da impressão.

192

-Não me importa a utilidade que tenham! -uivou, paleando com frustração-,

As ódio, tira-me isso -Bom, deixa de brigar com elas -pinjente cortante-. Sente-se e eu me

ocuparei de tudo. Vacilou, me olhando com receio, até que a contra gosto se sentou em uma

rocha e estendeu suas pernas ante mim.

-as tire já! -ordenou. -Ao seu devido tempo -respondi-, De onde vem?

Olhou-me desconcertado. -Você não vive por aqui -disse com total segurança-. De onde vem? -Ah... dormimos em um lugar chamado Salena, faz três noites. Essa foi a

última cidade que vi. -Agitou as pernas-. Hei-te dito que as tire! Havia vários métodos para as tirar, a maioria mais dolorosos que as

próprias sanguessugas. Tinha três em uma perna e quatro na outra. Um dos

pequenos animais estava gordo, a ponto de explorar. Apertei-o com a unha do polegar contra minha mão e arrebentou jorrando sangue.

O moço a contemplou pálido e tremente. -Não quero desperdiçá-la -expliquei. fui procurar a cesta que tinha deixado baixo os ramos e vi sua casaca, os

sapatos e as médias. As fivelas dos sapatos eram de prata e a casaca estava bem atalho, com um estilo inhabitual ao norte do Charleston. Não necessitava mais

confirmação. Coloquei a sanguessuga em um punhado de barro e a envolvi com folhas

úmidas. As mãos me tremiam. O idiota! Desprezível malvado... Que diabos lhe

tinha induzido a trazê-lo aqui? E o que faria Jamie? Aproximei-me do moço e me ajoelhei para lhe tirar outra sanguessuga. -Onde está seu padrasto? -perguntei bruscamente.

Poucas coisas podiam distrair sua atenção de suas pernas, mas isto o fez. Sua cabeça se levantou de repente e me contemplou assombrado.

-Conhece-me? -perguntou com um ar de arrogância que em outras circunstâncias teria sido divertido.

-Tudo o que sei sobre ti é que seu nome de pilha é William. Tenho razão?

Minhas mãos se crisparam e tive a esperança de me haver equivocado. Se era William, isso não era tudo o que sabia sobre ele, mas era bastante para

começar. Suas bochechas se ruborizaram e seus olhos se arrumaram das

sanguessugas para observar a quem lhe tratava com tanta familiaridade, e que

parecia uma bruxa desgrenhada e com as saias levantadas. -Sim, assim é -disse-. William visconde Ashness, nono conde do Ellesmere. -Todo isso? -pinjente amavelmente-. Que agradável.

Agarrei uma sanguessuga mas não a pude arrancar. O moço deixou escapar um grito.

-Deixa-a! -disse-. vai se partir! -Pode ser -admiti. Pu-me em pé e me baixei as saias—, Vêem -pinjente lhe

oferecendo a mão-. Levarei-te a casa. Se lhes puser sal cairão imediatamente.

Não aceitou a mão e ficou em pé. Olhou como se procurasse a alguém. -Papai -explicou ao ver minha expressão-. Perdemo-nos e me disse que o

esperasse no arroio. ia assegurar se de que levávamos a direção correta. Não

quero que se alarme se voltar e não me encontra. -Não se preocupe. Imagino que terá encontrado a casa; não está longe.

193

Era a única casa que havia naquela zona e estava ao final de um atalho

bem marcado. Era evidente que lorde John tinha deixado ao menino para ver primeiro ao Jamie e acautelá-lo.

Muito considerado. Meus lábios se crisparam involuntariamente. -São os Fraser? —perguntou o moço-. viemos a ver o James Fraser. -Eu sou a senhora Fraser -pinjente e lhe sorri. «Sua madrasta», pude ter

acrescentado, mas não o fiz-. Vêem. Seguiu-me apressadamente através das árvores, quase me pisando os

talões em direção à casa. Abandonei a busca de epítetos adequados para insultar a lorde John Grei e

tratei de pensar no que fazer, mas não havia nada que pudesse fazer.

William, visconde Ashness, nono conde do Ellesmere. Ou o que ele acreditava que era. «E o que te propõe fazer –pensei enfurecida com lorde John Grei-, quando descobrir que é o filho bastardo de um criminoso escocês

indultado? E o mais importante, o que ia fazer o escocês?» Detive-me e o moço tropeçou comigo.

-Sinto muito -murmurei-. Pareceu-me ver uma serpente. Continuei com meus pensamentos. teria o trazido para lhe revelar seu

parentesco? Quereria lhe deixar aqui, com o Jamie.. conosco?

Embora a idéia me alarmava, não encaixava com a personalidade do homem que tinha conhecido na Jamaica. Podia ter motivos razoáveis para que eu

não gostasse de John Grei; sempre é difícil mostrar bons sentimentos para o homem que tem uma paixão homossexual pelo marido de uma; mas devo admitir que não conhecia sinais de maldade ou crueldade em seu caráter. Pelo contrário,

tinha-me parecido um homem honorável, sensível e bondoso, ao menos até que conheci sua debilidade pelo Jamie.

E se ao vê-los juntos o parecido os delatava? Não, tranqüilizei-me. Seria

alto, mas agora era ainda muito magro e seu cabelo era mais escuro que o do Jamie. Tinha os olhos dos Fraser e algo na forma de sua cabeça e nos ombros

erguidos que me fazia pensar em.., Bri. Foi como uma corrente elétrica. parecia-se muito ao Jamie, mas era minha lembrança da Brianna o que me tinha feito reconhecê-lo imediatamente.

Era dez anos menor mas suas facções eram muito mais parecidas com as dela que às do Jamie.

Apressei-me porque não queria que chegasse à cabana antes que eu. Sentia uma mescla de ansiedade pelo Jamie e fúria contra John Grei, mas acima de tudo grande curiosidade e no fundo uma pontada de nostalgia por minha filha,

cujo rosto não voltaria a ver. Jamie e lorde John estavam sentados em um banco ao lado da porta. Para

ouvir nossos passos, Jamie se levantou e olhou para o bosque. Tinha tido tempo

de preparar-se. Seu olhar passou com indiferença pelo moço e se voltou para mim.

-Vamos, Claire. encontraste a outro de nossos visitantes. Enviei ao Ian para que o buscasse. Recorda a lorde John?

-Como ia esquecer o? -pinjente, lhe dedicando um sorriso luminoso.

Sua boca tremeu, mas fez uma profunda inclinação. -Para servi-la, senhora Fraser. -Olhou ao moço com o cenho franzido ante

sua aparência-. Posso lhe apresentar a meu enteado, lorde Ellesmere? William,

vejo que já conheceste a nossa encantadora anfitriã, quer saudar nosso anfitrião, o capitão Fraser?

194

O moço quase bailoteaba, mas para ouvir aquilo se endireitou e fez uma

rápida reverência. -Para lhe servir, capitão -disse e me lançou um olhar de sofrimento.

-Poderiam nos desculpar? -pinjente amavelmente. Agarrando ao moço do braço, entrei com ele na cabana e fechei a porta ame

o rosto assombrado dos homens.

William se sentou no banco que lhe assinalei e estirou as pernas. -Rápido! -disse-. Por favor, rápido!

Não havia sal moído, assim com a faca cortei uma peça do bloco e a coloquei no morteiro, amassando-a até conseguir os grãos desejados, que pus sobre as sanguessugas.

-É muito duro para as pobres -disse ao ver cair à primeira-. Mas funciona. Recolhi aqueles pequenos insetos e os atirei ao fogo, logo me ajoelhei com a

cabeça inclinada, lhe dando tempo a recompor sua expressão.

-Agora me deixe me ocupar das picadas. Limpei o sangue e lavei as feridas com vinagre e uma erva especial para

deter as hemorragias. Deixou escapar um trêmulo suspiro de alívio. -Não é que tenha medo de... do sangue -disse com um tom jactancioso que

fez evidente qual era seu temor-. É que são umas criaturas asquerosas. -São umas cositas detestáveis -pinjente.

Incorporei-me, agarrei um trapo limpo, molhei-o na água e sem formalidades lhe lavei a cara. Logo, sem perguntar, agarrei minha escova e comecei a lhe pentear.

Tinha um redemoinho no cocuruto; senti certa vertigem ao comprovar que era igual ao do Jamie.

-perdi minha cinta -disse, olhando ao redor como se pudesse materializar-

se. -Eu te emprestarei uma.

Quando terminei lhe atei uma cinta amarela e tive a estranha sensação de estar lhe protegendo.

Tinha conhecido sua existência poucos anos antes e se tinha pensado nele,

tinha sido com curiosidade e um pouco de ressentimento. Mas agora o grande parecido com minha filha e com o Jaime ou o simples feito de me haver ocupado

dele, produzia-me a estranha sensação de uma preocupação quase possessiva por ele.

abriu-se a porta e Jamie apareceu a cabeça.

-Vai tudo bem? -perguntou. Seus olhos se posaram no menino com amável preocupação, mas pude ver

a tensão na mão que sujeitava a porta.

-Sim –disse-. Crie que lorde John quererá tomar algo? Pus a panela ao fogo para fazer chá e, com um suspiro, tirei a última fogaça

de pão que pensava usar para meus experimentos de obtenção de penicilina. Pensando que a situação o justificava, também tirei nossa última garrafa de brandy. Logo pus a geléia na mesa, explicando que a manteiga estava,

desgraçadamente, baixo a custódia da cerda. -Cerda?-disse William confundido. -Na despensa -pinjente assinalando a porta fechada.

-por que guardam ...? -começou a dizer, mas fechou a boca. Era evidente que seu padrasto o havia paleado por debaixo da mesa

enquanto sorria amavelmente ante sua taça de chá-

195

-É muito amável por nos haver recebido, senhora Fraser -disse lorde John,

lançando um olhar de advertência ao menino-. Devo me desculpar por nossa chegada inesperada; espero não incomodá-la muito.

-De maneira nenhuma -respondi, enquanto pensava onde foram dormir. William podia fazê-lo com o Ian no abrigo, mas a idéia de dormir com o

Jamie e com lorde John no mesmo quarto...

Então Ian, com seu habitual instinto para as comidas, apareceu. Foi apresentado com uma série de confusas explicações e inclinações de cabeça, até

que conseguiram derrubar a bule. Usando isto como desculpa, mandei ao Ian a que ensinasse ao William as

atrações do bosque e o arroio e lhes dava uns sanduíches e uma garrafa de cidra.

Já livre de sua presença, servi o brandy e olhei ao John Grei. -O que está fazendo aqui? -disse sem mais preâmbulos. -Não vim com a intenção de seduzir a seu marido, posso assegurar-lhe

-John! O punho do Jamie golpeou a mesa e fez tremer as taças. Suas bochechas

estavam tintas. -Perdão -disse John Grei com o rosto branco-. Peço-lhe desculpas, senhora.

foi imperdoável. Entretanto, devo assinalar que do primeiro momento me olhe

como se me tivesse encontrado deitado com um conhecido maricas. -Lamento-o -suspirei-. A próxima vez me avise antes para poder trocar de

expressão. ficou em pé e foi até a janela. -Minha esposa morreu -disse bruscamente-. No navio, entre a Inglaterra e

Jamaica. Vinha a reunir-se comigo. -Sinto-o muito -disse Jamie-. O menino ia com ela? -Sim. -Lorde John se voltou e a luz do sol iluminou sua cabeça-. Willie

estava... muito afeiçoado com o Isobel. Era a única mãe que tinha conhecido. A verdadeira mãe do Willie, Geneva Dunsany, tinha morrido no parto. Seu

suposto pai, o conde do Ellesmere, morreu o mesmo dia em um acidente. Isso era o que Jamie me tinha contado. Também que Isobel, a irmã da Geneva, feito-se cargo do menino e que John Grei se casou com ela quando o menino tinha seis

anos; foi então quando Jamie deixou seu trabalho com os Dunsany. -Sinto-o muito -disse com sinceridade.

Grei me olhou e fez um leve gesto de reconhecimento. -Meu período como governador estava a ponto de terminar; tinha a intenção

de me instalar na ilha se o clima resultava bom para minha família. Mas... -

encolheu-se de ombros-. Willie ficou muito triste depois da morte de sua mãe e me pareceu oportuno tratar de lhe distrair. apresentou-se uma ocasião quase imediatamente. As posses de minha esposa incluíam uma grande propriedade na

Virginia que agora é do William e recebi notícias do comissionado da plantação pedindo instruções.

Grei se aproximou da mesa, ocupou seu assento e prosseguiu: -Não podia decidir nada sem ver a propriedade e avaliar as condições.

Assim decidi que navegaríamos até o Charleston e de ali viajaríamos por terra até

a Virginia. Confiava em que a experiência poderia apartar ao William de sua dor e acredito que está dando resultado. Nestas últimas semanas tive o prazer de lhe ver mais contente.

Abri a boca para dizer que a Colina do Fraser se encontrava fora de seu caminho, mas o pensei melhor e calei.

Como se me tivesse adivinhado o pensamento me sorriu com ironia.

196

-Onde está a plantação? -perguntou Jaime.

-A cidade mais próxima se chama Lynchburg, no rio James -disse lorde John, me olhando zombador-. Em realidade, não são mais que uns poucos dias

os que perdemos para vir aqui. -Fixou sua atenção no Jamie-. Disse ao Willie que foi um velho amigo de minha época de soldado. Espero que não te incomode o engano.

Jamie sacudiu a cabeça com uma careta. -É um engano? Nestas circunstâncias não posso pensar em me incomodar

e não é do todo falso. -Crie que te recordará?-perguntei ao Jamie. Tinha trabalhado na quadra da propriedade da família do Willie como

prisioneiro de guerra. -Não acredito. Tinha seis anos quando fui do Helwater, o que para um

menino é muito tempo. E não há razão para que me relacione com uma moço de

quadra chamado MacKenzie. -me diga -disse com um súbito impulso-. Não quero incomodar, mas... sabe

do que morreu sua esposa? -Como? -Pareceu assombrado, mas se recuperou imediatamente-, Sua

criada me disse que morreu de fluxo sangrento. Acredito que não foi... uma morte

fácil. Fluxo sangrento, né? Aquela descrição abrangia da disenteria até o cólera.

-Havia algum médico? Alguém a bordo que se ocupasse dela? -Sim. Onde quer ir parar, senhora? -Não é nada. Perguntava-me se for possível que Willie visse como usavam

sanguessugas. Um brilho de compreensão cruzou seu rosto. -Já vejo. Não o tinha pensado...

Naquele momento vi o Ian fazendo gestos da porta. -Quer algo, Ian? -perguntei, interrompendo a sir John.

-Não, obrigado, tia. É só que... -Olhou com desespero ao Jamie-. Sinto muito, tio, sei que não devi lhe deixar, mas...

-O que? -Alarmado pelo tom de voz do Ian, Jamie ficou em pé-, O que tem

feito? -Bom, verá. Sua Senhoria me perguntou pelo privada e lhe contei o da

serpente e que seria melhor que fora ao bosque. Isso fez, mas quis ver a serpente Y... Y...

-Não lhe terá picado? -perguntou Jamie com ansiedade.

-Não. -Ian pareceu surpreso-. Não víamos nada porque estava muito escuro, assim levantamos a tampa. Então pudemos ver a serpente e a cravamos com um ramo largo; movia-se como põe no livro, mas não parecia que fora a

morder. Y... Y... -Olhou de esguelha a lorde John e tragou ruidosamente-. Foi minha culpa. Contei-lhe que eu tinha pensado em lhe disparar e Sua Senhoria

disse que podia tirar a pistola de seu pai. E então... -Ian -disse Jamie-, me diga já o que lhe tem feito ao moço. Não lhe terá

disparado por engano?

-É obvio que não! -exclamou ofendido. -Seria tão amável de me dizer onde está meu filho? -interveio lorde John- -Está no fundo do privada -disse com um profundo suspiro-. Tem uma

corda, tio Jamie? Com uma admirável economia de palavras e movimentos, Jamie chegou até

a porta e desapareceu seguido por lorde John.

197

-Está ali com a serpente? -perguntei enquanto procurava algo que me

servisse de torniquete, se por acaso fora necessário. -Não, tia -respondeu Ian-. Como o ia deixar com a serpente? Melhor vou

ayudar-acrescentou e desapareceu. Corri atrás dele e encontrei ao Jamie e lorde John costas contra costas na

porta do privada conversando com as profundidades. Pu-me nas pontas dos pés

para olhar por cima do ombro de lorde John. Vi um ramo que me sobressaía do buraco.

Contive a respiração. Lorde Ellesmere fazia sair parte do conteúdo e o aroma era insuportável-

-Diz que não está ferido -disse Jamie, tirando um cilindro de corda.

-Bem -pinjente-. E onde está a serpente? -foi para esse lado -disse Ian, assinalando o atalho-. Não conseguiu lhe dar

com o disparo, eu lhe peguei com o ramo e a condenada se enrolou nela e

avançou. Assustei-me, choquei-me com ele Y... bom, assim aconteceu. Tratando de evitar o olhar do Jamie, inclinou-se para gritar: -!Né! Me alegro

de que não te rompesse o pescoço! Jamie lhe dirigiu um olhar indicativo sobre que pescoço terei que romper,

mas Ian se fez prudentemente a um lado. Por sorte, a água do fundo tinha

diminuído o golpe. Aparentemente o nono conde do Ellesmere tinha cansado de barriga para baixo. Tiraram-no sem problemas e o depositaram no atalho. Lorde

John o contemplava tratando de ocultar um sorriso, até que seus ombros começaram a sacudir-se.

-Que notícias traz dos infernos, Perséfone? -disse, incapaz de conter a

risada. Talher de sujeira, seus olhos azuis tinham uma expressão assassina. Era

uma expressão dos Fraser. A meu lado, Ian teve um repentino sobressalto. Seu

olhar ia do conde ao Jamie, logo se cruzou com a meu e seu rosto se voltou totalmente inexpressivo.

Jamie e lorde John se citavam frases em grego e riam como loucos. William bufava, igual ao fazia Jamie quando não agüentava mais, enquanto Ian se movia inquieto.

-Ejem -pinjente, esclarecendo minha garganta-. Se me permitirem, cavalheiros, embora não sei filosofia grega, há um pequeno epigrama que sei de

cor. Entreguei ao William o bote com sabão líquido que havia trazido em lugar

do torniquete.

-Píndaro –disse-. A água é o melhor. Um breve brilho de gratidão apareceu entre a imundície. Sua Senhoria me

fez uma inclinação, deu-se a volta, olhou duvidoso ao Ian e correu fada o arroio.

Parecia ter perdido os sapatos. -Pobre -disse Ian, sacudindo a cabeça-. Demorará dias em tirar-se esse

aroma. -Sem dúvida -respondeu lorde John abandonando a poesia grega por

preocupações mais materiais—. A propósito, sabe o que passou com minha

pistola? A que usou William antes do desafortunado acidente. -Ah. -Ian lhe olhou incômodo. Levantou o queixo em direção à privada-.

Eu... bom, temo-me...

-Já vejo. Lorde John se esfregou o queixo impecavelmente barbeado. Jamie cravou o

olhar no Ian.

198

-Ah... -disse Ian, retrocedendo.

-Vê -ordenou Jamie em um tom que não admitia discussão. -Mas... -disse Ian.

-Já -disse lhe dando a corda. A noz do moço se agitou. Olhou-me com os olhos espantados de um coelho. -Primeiro te tire a roupa -pinjente serviçal-. Não queremos ter que queimá-

la, não te parece?.

26 Praga e peste

Saí de casa pouco antes do pôr-do-sol para examinar a meu paciente do celeiro. Não estava melhor, mas tampouco tinha piorado. Esta vez, entretanto, seus olhos procuraram meus quando entrei e ficaram fixos sobre minha cara

enquanto o examinava. Ainda tinha o amuleto apertado na mão. golpeou-se o peito com a outra

produzindo um estranho zumbido. Surpreendeu-me, até que entendi. -Sério? -pinjente-. Bom, me deixe pensar. Comecei com Adiante, soldados cristãos; pareceu lhe gostar de e tive que

cantá-la três vezes para que ficasse satisfeito. antes de entrar na cabana me lavei as mãos com álcool. Estava segura de

que não podia me contagiar, posto que tinha passado o sarampo de pequena, mas não queria correr o risco de contagiar a outro.

-Dizem que há um broto de sarampo no Cross Creek -disse lorde John

detrás escutar meu relatório sobre o estado de nosso doente-. É certo, senhora Fraser, que os selvagens som congenitamente mais fracos ante as infecções que os europeus, enquanto que os escravos africanos são mais fortes que seus amos?

-Depende da infecção -disse sem perder de vista o guisado do caldeirão-. Os índios som muito mais resistentes às enfermidades parasitárias como a malária,

causadas por organismos daqui; os africanos suportam melhor as febres, como o dengue que veio com eles da África. Mas os índios não têm muita resistência ante pragas européias, como a varíola e a sífilis.

-É fascinante -disse, um pouco surpreso mas claramente interessado. Passamos uma velada bastante agradável; Jamie e lorde John

intercambiaram anedotas de caça e pesca, comentando a surpreendente abundância da região, enquanto eu remendava meias. Willie e Ian jogaram uma partida de xadrez e ganhou este último com evidente satisfação. Sua Senhoria

bocejava sem dissimulação e seu pai lhe indicou com o olhar que se tampasse a boca. Tinha um dormitada sorriso de plenitude depois de ter devorado junto ao Ian um bolo inteiro de groselhas. Jamie o viu e fez um gesto ao Ian, quem se

levantou e o conduziu ao abrigo onde compartilhariam a cama. «Dois se foram —pensei-, ficamos três.» O assunto resolveu com minha retirada. Jamie e lorde

John se colocaram ante o tabuleiro de xadrez para beber o resto do brandy. Lorde John devia jogar muito melhor que eu, já que a partida durou mais de uma hora.

-Invejo-te, Jamie. Terá suas dificuldades, como todos, mas tem o consolo

nada desdenhável de saber que seus esforços têm significado e são heróicos. Jamie soprou. -Sim. Muito heróico. No momento, minha luta mais heróica é com a cerda

da despensa. -Assinalou o tabuleiro-. Realmente vais fazer esse movimento? Grei estudava o tabuleiro.

-Sim, farei-o -disse com firmeza.

199

-Maldição -disse Jamie com uma careta de resignação.

Grei riu e procurou a garrafa de brandy. -Maldição! -disse a sua vez ao descobrir que estava vazia.

Jamie riu e se levantou para procurar algo no aparador. -Prova um pouco disto -disse e ouvi o som do líquido que servia. Grei levantou a jarra e cheirou, o que lhe provocou um ruidoso espirro.

-Não é vinho, John. É para bebê-lo, não para saborear seu buquê -observou Jamie.

-Já o vejo. O que é? Não, não me diga isso. -Tossiu- Me deixe adivinhar. É uísque escocês?

-dentro de dez ânus pode que o seja. por agora é álcool, é tudo o que posso

dizer. -Sim, assim é -disse Grei-. Onde o conseguiu? -Fiz-o eu -respondeu Jamie com o modesto orgulho de um professor

cervejeiro-. Tenho doze barris mais. -Caso que não queira te lavar as tripas com esta mistura, posso te

perguntar o que tenta fazer com doze barris disto? Jamie soltou uma gargalhada. -Comercializar. Vendê-lo quando for possível. Nem os impostos nem a

licença para elaborar bebidas alcoólicas me preocupam estando tão longe acrescentou com ironia.

-Bom, pode escapar dos impostos; garanto-te que o agente mais próximo está no Cross Creek. Mas não posso dizer que seja uma prática segura. E a quem, se posso perguntar, vende-lhe esta notável mescla? Confio que não será

aos selvagens. Jamie se encolheu de ombros. -Só em pequenas quantidades, como presente ou como troca.

Nunca a quantidade suficiente para que possam embebedar-se. -Muito prudente. Já haveria ouvido as histórias, suponho.

-Se, ouvi-as -assegurou secamente Jamie-. Mas nós temos boas relações com os índios e tampouco são tantos. Procuro ser cuidadoso.

-No Wilmington falavam de um grupo de rebeldes chamados reguladores,

que aterrorizam as zonas mais afastadas e causam problemas provocando motins. encontraste algo semelhante por aqui?

-Aterrorizar a quem? Aos esquilos? Esta zona está muito afastada, John, isto é terreno virgem. Seguro que terá notado a falta de habitantes enquanto vinha até aqui.

-Sim, notei-o -disse Grei-. E entretanto ouvi certos rumores sobre sua presença aqui e sua influência para controlar a crescente rebeldia.

Jamie riu.

-Acredito que passará tempo antes de que haja muitos rebeldes que reprimir. Tudo o que fiz foi golpear a um velho granjeiro alemão que tentava

extorquir a uma jovem. Esse foi meu único intento de manter a ordem pública. Grei riu e agarrou o rei. -Me alegro de ouvir isso. Faria-me a honra de outra partida? Suponho que

não posso pensar em ganhar de novo com o mesmo truque. Dava-me a volta na cama sem poder dormir. Tratava de saber o que me

passava. Ou melhor, por que. Embora sabia que eram ciúmes.

200

Era indubitável que estava ciumenta, uma emoção que não sentia fazia

anos, e me assombrava por senti-los agora. «É uma idiota -disse-me furiosa—. O que acontece contigo? Tratei de me relaxar respirando devagar.

Em parte era pelo Willie, é obvio. Jamie era cuidadoso mas tinha visto sua expressão quando olhava ao moço sem que o observassem. Todo seu corpo irradiava uma tímida alegria, orgulho misturado com insegurança, e isso me

destroçava. Nunca olharia a Brianna, sua primeira filha, dessa maneira. Nunca a veria.

Não era culpa dela mas parecia tão injusto... Tampouco ia reprovar lhe que se alegrasse de ver seu filho. O fato era que ver o moço me produzia uma terrível nostalgia. Seu rosto arrumado era a viva imagem do de sua irmã, esse era meu

problema. Não tênia nada que ver com o Jamie, com o Willie ou com o John Grei, que havia trazido para o menino aqui.

Para que? Isso é o que tinha estado pensando desde que me recuperei da

impressão de sua aparição, e continuava pensando-o. Que diabos queria aquele homem?

A história sobre a propriedade da Virginia podia ser verdade ou só uma desculpa. por que se tinha tomado tantas moléstias em trazer para o moço? E por que tinha deslocado tantos riscos? Willie não era consciente do parecido que até o

Ian tinha notado. Mas e se não fora assim? O murmúrio da conversação quase tinha cessado, só se ouviam os ruídos

das peças de xadrez ao mover-se. -Sente-se satisfeito com sua vida? -perguntou súbitamente lorde John. Jamie fez uma pausa.

-Tenho tudo o que um homem pode desejar-disse com calma-. Um lar, um trabalho honrado, a minha esposa comigo e sei que meu filho está a salvo e bem cuidado- -Levantou a vista e olhou a Grei-. E um bom amigo. —estirou-se e

aplaudiu a mão de lorde John-. Não desejo nada mais. Fechei os olhos com determinação e comecei a contar ovelhas.

Despertou Ian pouco antes do amanhecer, agachado ao lado de minha

cama.

-Tia -disse brandamente com uma mão em meu ombro-. Será melhor que venha, o homem do celeiro está muito mal.

Automaticamente me pus em pé, envolvi-me na capa e saí descalça detrás do Ian enquanto minha mente começava a funcionar. Não faziam falta grandes diagnósticos. de longe se ouvia a respiração entrecortada do índio.

O conde estava na porta com o rosto pálido e atemorizado. -Vete -pinjente cortante-. Não deve estar perto dele, nem você tampouco,

Ian. Parte os duas a casa, tirem água quente do caldeirão, e me trazem isso unto

com minha caixa e trapos limpos. Willie se apressou a obedecer, ansioso por afastar-se daqueles sons

atemorizantes que provinham do celeiro. Mas Ian ficou com rosto preocupado. -Não acredito que possa lhe ajudar, tia -disse Ian. -É muito provável. Mas não posso ficar sem fazer nada.

-Sim. Mas acredito... -Vacilou e continuou apesar de meu gesto-. Acredito que não deveria lhe atormentar com remédios. Está condenado a morrer, tia. Ontem à noite escutamos à coruja e ele também tem que havê-la ouvido. Para

eles é sinal de morte. -O que fazem os índios quando alguém vai morrer? Sabe?

201

-Cantam -disse rapidamente-. A chamán se pinta a cara e canta para que a

alma possa ir-se sem que a levem os demônios. Ian não esperou a que resolvesse minhas dúvidas. Recolheu terra, cuspiu

para umedecê-la e com um dedo riscou uma linha sobre minha frente até a ponte do nariz.

-Ian!

-Shh -murmurou-. Acredito que é assim. -Acrescentou duas raias em minhas bochechas e outra na mandíbula-. Vê, tia. Não lhe vais assustar, já está

acostumado, não? -Ian, pode falar com ele? lhe dizer seu nome e que vai bem? -Não deve dizer seu nome, tia, chamaria os demônios.

Meus olhos se acostumaram à escuridão e pude ver o rosto do homem, que me olhava com certa surpresa.

-Canta, tia -apurou-me Ian em voz baixa-. Talvez Tantum ergo soe

parecido. depois de tudo não podia fazer outra coisa. Comecei a cantar.

Em minha vida havia visto muitíssimas mortes, por acidentes, por enfermidades ou por causas naturais. Tinha visto aceitá-la com filosofia ou com protestos violentos. Mas nunca tinha visto morrer a alguém daquela maneira.

Esperou com seus olhos cravados em meus até que terminei a canção. Logo voltou seu rosto para a porta e, enquanto o sol que saía o iluminava, deixou seu

corpo sem o mais mínimo movimento. Permaneci imóvel sustentando sua mão até que me dava conta de que

também estava contendo a respiração. O ar parecia estático e o tempo parecia

haver-se detido por um momento. Para ele se deteve para sempre. -O que vamos fazer com ele? Já não havia nada que pudéssemos fazer por nossa hóspede; o problema

eram seus restos mortais. Jamie franziu o cenho e se esfregou a cara sem barbear.

-Suponho que devemos lhe dar uma sepultura decente. -Bom, não acredito que possamos deixá-lo no celeiro. Mas o que pensará

sua gente se o enterrarmos aqui? Sabe como enterram a seus mortos, Ian?

-Não sei muito, tia. Mas vi morrer a um homem, como te disse. Envolvem-no em pele de alce e fazem uma procissão pela aldeia, cantando. Logo colocam o

corpo sobre uma plataforma e o deixam no bosque para que se seque. Jamie não parecia entusiasmado com a idéia de ter corpos mumificados

pendurados das árvores de nosso bosque.

-Acredito que será melhor envolver o corpo e levá-lo a aldeia para que sua gente se dele encarregue.

-Não, não pode fazer isso. O problema é que o corpo ainda é infeccioso. Não

o haverá meio doido, Ian? -Não, tia. Não, depois de que caísse doente aqui. Antes não me lembro.

Estávamos caçando todos juntos. -E não aconteceste o sarampo. Maldita seja. E você? -perguntei ao Jamie. Para meu alívio assentiu.

-Sim, tinha uns cinco anos. Disse que não se pode ter duas vezes, assim não me passará nada por tocar o corpo, não é verdade?

-Não e a meu tampouco, eu também passei o sarampo. O problema é que

não podemos levá-lo a aldeia. Não sei quanto tempo sobrevive o vírus no corpo e nas roupas, é uma espécie de germe. Mas como explicamos a sua gente que não o

podem tocar? Não podemos nos arriscar a que se contagiem.

202

-O que me preocupa -disse inesperadamente Ian- é que não é da Anna

Ooka, mas sim de uma aldeia do norte. Se o deixarmos aqui sua gente se inteirará e acreditará que o matamos e o enterramos para ocultá-lo.

Essa era uma sinistra possibilidade que não me tinha ocorrido. Senti como se uma mão geada se apoiasse em minha nuca.

-Bom -disse Jamie-. Melhor envolvemos ao pobre homem em uma mortalha

e o pomos na pequena cova da colina, em cima da casa. Coloquei postes para fazer uma quadra e isso afastará aos animais selvagens. Ian ou eu iremos até a

Anna Ooka e contaremos tudo ao Nacognaweto. Talvez envie a alguém para ver o corpo e poder assegurar a sua gente que não foi vítima de nenhum tipo de violência; então poderemos enterrá-lo.

antes de que pudesse responder a sua sugestão ouvi uns passos que se aproximavam. Tinha deixado a porta entreabierta para que entrasse luz e ar. Ao me voltar me encontrei com o rosto do Willie, pálido e turbado.

-Senhora Fraser! Por favor, quer vir? Papai está doente. -contagiou-se do índio?

Jamie olhava a lorde John, a quem tínhamos metido na cama. Seu rosto empalidecia e se ruborizava, eram os primeiros sintomas.

-Não, não pôde. O período de incubação é de uma a duas semanas. Onde

esteve...? —Voltei-me para o Willie sem terminar a pergunta-. Disse que havia uma epidemia de sarampo no Cross Creek.

Toquei a frente de Grei e me dava conta de que tinha bastante febre. -Sim -disse com voz rouca e tossiu-. Tenho sarampo? Devem afastar ao

Willie.

-Ian, leva ao Willie fora. —Molhei um trapo em água de flores e o passei pelo rosto e o pescoço de Grei—, Sim, tem sarampión-respondi-. Quanto faz que se encontra mau?.

-Ontem à noite, ao me deitar, senti um enjôo e despertei com dor de cabeça, mas acreditei que era o resultado disso que Jamie chama uísque. —

Sorriu fracamente ao Jamie-. Logo, esta manhã... -Se, bom, não se preocupe. Agora trate de descansar. vou preparar algo

com casca de salgueiro que lhe ajudará com a dor de cabeça.

Fiz um gesto ao Jamie e saímos. -Não podemos deixar ao Willie perto dele -pinjente-. Nem ao Ian. É muito

contagioso. -Sim, isso que disse da incubação... Sim, Ian podia haver-se contagiado do índio morto e Willie da mesma fonte

que lorde John. por agora não tinham sintomas. -Acredito -pinjente, vacilando enquanto pensava um plano— que talvez

deveria acampar fora com os moços. Têm que dormir no abrigo ou acampar no

bosquecillo. Esperaremos um dia ou dois. Se Willie está infectado, se se contagiou igual a lorde John, aparecerão os sintomas. Se não ser assim, se

estiver bem, então ele e você poderão ir até a Anna Ooka para avisar ao Nacognaweto sobre o homem morto. Isso manterá ao Willie longe do perigo.

-Ian ficará para te cuidar? -Considerou a idéia e assentiu-. Sim, suponho

que pode ser. voltou-se olhando ao Willie. Podia mostrar-se impassível, mas o conhecia

muito bem como para não notar o brilho de emoção de seu rosto.

-Se não se deu conta já, não o fará -pinjente apoiando a mão em seu braço. -Não -murmurou, dando as costas ao moço-. Suponho que estará a salvo.

203

-vais poder falar com ele sem que pareça estranho. –Fiz uma pausa-. Só

uma coisa mais antes de que vá. Pôs sua mão sobre a minha e me sorriu.

-Sim, o que é? -Não deixe a essa cerda dentro da despensa, por favor.

27 Pescando trutas na América do Norte

A travessia começou desfavorablemente. Em primeiro lugar, chovia.

Segundo, não gostava de deixar ao Claire, especialmente em circunstâncias tão

difíceis. E em terceiro lugar, estava muito preocupado pelo John; não lhe tinha gostado de seu aspecto quando se despediu: semiconsciente e respirando com muita dificuldade com as facções irreconhecíveis pelas rodelas

E como último problema, o nono conde do Ellesmere lhe tinha pego na mandíbula. Tinha agarrado o pescoço do pequeno, sacudindo-o até lhe fazer

chocar os dentes. -Sei muito bem o que está dizendo. Mas eu digo que vem comigo, isso é

tudo, já conhece a causa.

-Não vou! -repetia o moço-. Não pode me obrigar! -deu-se meia volta e se dirigiu para a cabana.

Jamie agarrou ao moço pelo pescoço lhe fazendo voltar. -Deixa de dar patadas -ordenou-lhe Jamie-. É de muito má educação. E

quanto ao de te obrigar, é obvio que posso.

O rosto do conde brilhava, e fechava e abria a boca como se fora um pescado. Lhe tinha cansado o chapéu e a chuva lhe obscurecia as mechas de cabelo.

—É um signo de lealdade que queira ficar com seu padrasto —continuou Jamie, secando-a cara-. Mas não pode lhe ajudar e corre o risco de te contagiar.

Por isso virá -terminou Jamie, agarrando ao conde do braço e levando-o até um dos cavalos selados, onde teve a satisfação de ver como o moço colocava um pé no estribo e montava sobre ele.

-Caipira! -disse com voz enfurecida, enquanto tentava desmontar do cavalo. -Não o tente -avisou ao moço; este se endireitou bruscamente e o olhou

furioso-. Eu não gostaria de ter que te atar os pés aos estribos, mas o farei se for necessário.

Os olhos do moço se entrecerraron formando dois triângulos azuis, mas

acatou as palavras do Jamie. Cavalgaram quase toda a manhã em silêncio enquanto a chuva caía sobre

suas cabeças e molhava a capa que cobria seus ombros. Willie era capaz de

aceitar uma derrota; embora ainda estava mal-humorado quando desmontaram para comer, foi procurar água sem protestar e guardou os restos da comida

enquanto Jamie se ocupava dos cavalos. -Está muito longe? A metade da tarde, a curiosidade do William pôde mais que sua obstinação.

-A uns dois dias. Naqueles terrenos montanhosos, era mais rápido ir a cavalo que a pé. Mas

não havia razão para se dar pressa e sim para tomá-las coisas com tranqüilidade.

Claire lhe havia dito com firmeza que não devia trazer para o Willie antes de seis dias. Para então, John não representaria um perigo de contágio. Ou se estaria

recuperando... ou teria morrido.

204

Claire tinha assegurado ao Willie que seu padrasto ia se curar, mas Jamie

viu a preocupação em seus olhos, o que lhe provocou uma sensação de vazio no oco do estômago.

Não podia ajudar. As enfermidades sempre lhe deixavam uma sensação de impotência que lhe produzia medo e fúria de uma vez.

-Esses índios são pacíficos?

Pôde detectar o tom de dúvida na voz do Willie. -Sim. -deu-se conta de que Willie esperava que acrescentasse “milord” e

teve a perversa satisfação de não fazê-lo-. Conhecemo-los há mais de um ano e estivemos alojados em suas casas. Os habitantes da Anna Ooka são mais amáveis e hospitalares que muitas pessoas que conheci na Inglaterra.

-viveste na Inglaterra? O moço lhe dirigiu um olhar surpreendido e Jaime se amaldiçoou por seu

descuido, mas, felizmente, Willie estava mais interessado em quão índios na

história pessoal do James Fraser e a pergunta passou com uma vaga resposta. John era o único, sem nenhum tipo de dúvidas, além do Claire, que sabia a

verdade sobre a paternidade do Willie. Era possível que a avó do Willie suspeitasse a verdade, mas baixo nenhuma circunstância admitiria que seu neto era o bastardo de um traidor jacobita em lugar do legítimo herdeiro do defunto

conde. Rezou uma pequena oração a Santa Bride pela melhoria do John Grei e

tratou de apartar a preocupação de sua mente. em que pese a suas dúvidas começava a desfrutar de da viagem. Mas se

John morria, seu tênue laço com o William ficaria quebrado. Fazia muito que

tinha aceito com resignação aquela situação, e não se queixava; mas se sentiria realmente despojado se o sarampo lhe roubava, não só a seu melhor amigo, mas também também toda conexão com seu filho.

Tinha deixado de chover. depois de rodear uma montanha apareceram sobre um vale; Willie lançou uma exclamação de surpreso deleite. Contra um

pano de fundo de nuvens obscurecidas pela chuva, o arco íris surgia da ladeira de uma montanha distante e caía em um longínquo vale.

-É maravilhoso! -disse Willie. voltou-se para o Jamie com um amplo

sorriso, esquecidas já suas diferenças-. Alguma vez tinha visto algo semelhante? -Nunca -respondeu Jamie, sonriéndole.

Sempre tinha tido o sonho ligeiro no bosque e qualquer som despertava

imediatamente. Permaneceu imóvel um momento, inseguro do que o tinha

produzido. Então, escutou um pranto contido. Controlou seus desejos de consolar ao moço. Estava fazendo esforços para que não lhe ouvisse e se merecia conservar seu orgulho.

Estaria doente? Talvez lhe doía algo e era muito orgulhoso para admiti-lo. -Milord?

Os soluços cessaram bruscamente. -Sim? -disse o conde tentando mostrar frieza. -Está doente? -Sabia que não era isso, mas era um bom pretexto-. Tem

retortijones? -Eu... ah... sim, acredito que talvez tenho... algo pelo estilo. Jaime se incorporou.

-Não é muito sério -disse com calma-. Tenho uma poção que padre todos os males de estômago. Descansa, vou procurar água.

205

levantou-se e se afastou, cuidando-se de não olhar ao moço. Quando

retornou do arroio com a panela cheia de água, Willie se tinha divulgado o nariz e secagem as lágrimas. Não pôde evitar lhe tocar a cabeça ao passar. Embora devia

evitar essas familiaridades. -Como se lhe atirassem das tripas, não? -perguntou, enquanto colocava a

água a ferver.

-Mmm. -Isso passa logo.

Procurou em seu embornal e tirou uma mescla de flores e folhas secas que Claire lhe tinha dado. Não sabia como tinha suposto que ia necessitar as, mas fazia muito que tinha deixado de questionar seus métodos de cura, já fossem

para enfermidades do espírito ou do corpo. Sentiu uma apaixonada gratidão por ela. Sabia o que tinha sentido ao ver o moço.

Uma coisa era conhecer sua existência e outra muito distinta ver a prova de

que seu marido tinha compartilhado a cama com outra mulher. Não o tinha reprovado. Ao menos, isso pensou, ao recordar súbitamente

que quando Claire se inteirou do do Laoghaire se converteu em uma fera. Talvez com a Geneva Dunsany foi diferente porque a mãe do moço já estava morta.

Ao dar-se conta disso sentiu como se lhe cravassem uma estocada. A mãe

do moço tinha morrido. Não sua verdadeira mãe, a que morreu no parto, a não ser a que chamou mãe durante toda sua vida. E agora seu pai; ou o homem ao

que chamava pai. Jamie sentiu um involuntário rictus em sua boca; seu pai estava doente de um mal que tinha matado a um índio ante os olhos do moço uns dias antes.

Não, não era estranho que o moço sofresse na escuridão. Era uma dor que ele conhecia bem desde que perdeu a sua mãe durante a infância.

Não era teimosia, nem sequer lealdade o que fazia que Willie tivesse

insistido em ficar na Colina. Era amor pelo John Grei e medo por sua perda. E era esse mesmo amor o que fazia chorar ao moço aquela noite, desesperadamente

preocupado por seu pai. Uma rajada de ciúmes golpeou o coração do Jamie. Com firmeza a

rechaçou; tinha a sorte de saber que seu filho desfrutava de uma afetuosa relação

com seu padrasto. A água começava a ferver, derrubou-a sobre a mescla e um aroma doce

subiu com a fumaça. -Já está -disse lhe alcançando a jarra ao moço-. Isto o alivia tudo. Fez-o

minha esposa, que é uma boa curadora.

-É-o? -O moço tocou com a língua o líquido-. Vi-a... fazer coisas. Índio que morreu.

A acusação era clara; ela o tinha cuidado e o homem tinha morrido.

-Sim? -disse com curiosidade, já que Claire não tinha tido tempo de lhe contar nada— Que classe de coisas?

Que diabos teria feito?, perguntou-se. Nada que causasse a morte do homem, isso o teria notado ao vê-la.

-Tinha barro na cara. E cantava. Acredito que era uma canção papista, era

em latim e tinha algo que ver com os sacramentos. -Como? —Jamie ocultou sua própria surpresa ante essa descrição-. Sim,

bem. Talvez quis lhe dar ao homem um pouco de consolo ao ver que não podia

lhe salvar. Os índios som muito mais sensíveis aos efeitos do sarampo. Uma infecção que matasse a um deles não faria nada em um homem branco. Eu tive

sarampo quando era um menino e não me passou nada.

206

Sorriu e se estirou, mostrando sua evidente saúde.

A tensão do moço se relaxou um pouco e bebeu um sorvo do chá quente. -Isso é o que disse a senhora Fraser. Disse que papai ia se pôr bem. Ela...

ela me deu sua palavra. -Então, pode estar tranqüilo -disse Jamie com segurança-. A senhora

Fraser é uma mulher de palavra. —acomodou-se a capa sobre os ombros. Não era

uma noite fria mas pequenas rajadas de brisa baixavam da colina-, Está-te sentando bem?

Willie o olhou desconcertado. -Né? Sim, sim, obrigado. Está muito bom. Sinto-me muito melhor. Talvez

não foi a comida.

-Talvez não -disse Jamie ocultando um sorriso-. Mas acredito que manhã melhoraremos nossa comida. Se a sorte nos acompanha teremos trutas.

Seu intento de distração teve êxito.

-Trutas? Pescaremos? -pescaste na Inglaterra? Não acredito que possa comparar-se com estes

arroios, mas seu pai me contou que há boa pesca no lago de sua comarca. Conteve a respiração. por que tinha perguntado isso? Tinha levado ao

William a pescar quando tinha cinco anos ao lago que havia perto do Ellesmere.

Queria que o moço recordasse? -OH, sim. É muito boa nos lagos, mas nada é como isto. Nunca vi algo

assim. Não se parece em nada a Inglaterra! -Não, claro —Jamie esteve de acordo-. Não estranhas a Inglaterra? William pensou durante um momento enquanto terminava seu chá.

-Não acredito. Algumas vezes estranho a minha avó e a meus cavalos, mas nada mais. Todo o resto são tutores, lições de baile, de latim e de grego. Puf!

Franziu o nariz e Jamie riu.

-Então, não te interessa o baile? -Não, terá que fazê-lo com garotas. -lançou um olhar ao Jamie-. Você gosta

da música? -Não -respondeu sonriendo-, Mas eu gosto das moças. E às moças gostará dele, pensou, com ombros largos, pernas largas e

pestanas largas e escuras que ocultavam seus lindos olhos azuis. -Sim, bom, a senhora Fraser é muito bonita -disse o conde com

amabilidade. Sua boca se curvou repentinamente-. Embora estava muito graciosa com o barro na cara.

-Imagino. Quer outra-taza, milord?

Claire lhe havia dito que essa mescla era sedativo e parecia funcionar. William bocejava e lhe fechavam os olhos.

-A noite está fria. Quer te deitar a meu lado e compartilhar as mantas?

Embora a noite não estava tão fria, Willie aproveitou a desculpa com prontidão e ficou dormido imediatamente. Jaime permaneceu acordado comprido

momento, com um braço brandamente apoiado sobre o corpo dormido de seu filho.

-Agora é o momento adequado? O moço olhou para a água. Estavam baixo a fria sombra de um grupo de

salgueiros negros, mas o sol ainda estava em cima do horizonte e a água do

arroio brilhava como o metal. -Sim, as trutas se alimentam ao pôr do sol. Vê essas ondas na água? Estão

acordadas.

207

Sem aviso, uma linha chapeada saltou no ar e caiu salpicando água. Willie

ofegou. -É um peixe -indicou Jamie innecesariamente-. Agora olhe.

-Apanhaste-o! Apanhaste-o! Podia ouvir os gritos do Willie dançando excitado, mas não podia apartar

sua atenção do peixe.

Não tinha carretel, somente a vara que sustentava o linha. Não podia ver outra coisa que os brilhos de luz, mas sentia os puxões como se tivesse a truta

entre suas mãos, lutando e retorcendo-se. E então... Livre. O linha se afrouxou e ele ficou sentindo as vibrações do esforço em

seus músculos enquanto recuperava o fôlego. -escapou! Má sorte! Willie o olhou com simpatia.

-Boa sorte para a truta. -Jamie fez uma careta zombadora e se secou a cara-, Quer provar?

Muito tarde, recordou que devia chamá-lo «lorde», mas Willie estava muito ansioso para notá-lo.

Com uma expressão decidida, Willie estirou o braço e arrojou o linha. A

vara se deslizou entre seus dedos e caiu na água. O moço dirigiu um olhar de profundo desespero ao Jamie, que não ocultou

a risada. O jovem lorde, surpreso e não muito contente, demorou um momento em recuperar-se e lhe devolver o sorriso. Fez um gesto para o cano que flutuava a uns três metros da borda.

-Se for procurá-la, assustarei aos peixes? -Sim. Toma a minha. Recolherei-a mais tarde. Willie se umedeceu os lábios e se concentrou enquanto sustentava com

força o novo cano. Voltando-se para o rio moveu o braço para atrás e para adiante e arrojou o linha. ficou imóvel; o extremo de seu cano estendido formava

uma linha perfeita com seu braço. O linha pendurava sobre a cabeça do William. -Bem lançada, milord -disse Jamie, esfregando-a boca com um nódulo-,

Mas acredito que devemos pôr primeiro outra mosca.

-Sim? -Willie afrouxou sua rígida postura e olhou envergonhado ao Jamie-. Não tinha pensado nisso.

depois dessas desgraças, o conde permitiu que Jamie lhe colocasse uma nova mosca e o agarrasse da boneca para lhe ensinar a forma adequada de lançar o linha, Em pé depois do moço, agarrou a boneca direita do Willie, maravilhando-

se da elasticidade do braço e do tamanho dos ossos, que já prometiam grandeza e força. Quando a boneca do William se liberou, Jamie teve um momento de confusão e uma curiosa sensação de perda ao romper o contato.

-Isto não está bem -disse Willie, voltando-se para olhá-lo-. Você lança com a mão esquerda.

-Mas eu sou canhoto, milord. A maioria dos homens lançam com a direita. -Canhoto? A boca do Willie se curvou outra vez.

-Minha mão esquerda é mais conveniente para a maioria das coisas que a direita.

-É o que pensei que significava. Eu também. —Willie parecia agradado e

um pouco envergonhado por sua declaração-. Mi... minha mãe dizia que não era correto e que devia aprender a usar a outra, como devem fazê-lo-os cavalheiros.

Mas papai disse que não e fez que me deixassem escrever com a mão esquerda.

208

Disse que não importava se parecia torpe com a pluma, posto que quando se

tratasse de brigar com espada seria uma vantagem. -Seu pai é um homem inteligente.

Seu coração se debateu entre a gratidão e o ciúmes, mas o primeiro sentimento era muito major.

-Papai era soldado. -Willie se endireitou um pouco e ergueu seus ombros

com orgulho-. Brigou em Escócia, em... bom, ejem. Tossiu e seu rosto ficou arroxeado ao ver a capa do Jamie e dar-se conta de que, possivelmente, estava

falando com um guerreiro derrotado naquela guerra. Jogou nervosamente com o cano sem saber onde olhar.

-Sim, sei. Ali foi onde o conheci. -cuidou-se bem de manter um tom

indiferente. Recordar as circunstâncias daquele primeiro encontro seria injusto para o John, o qual lhe permitia passar aqueles valiosos dias com seu filho-. Era um soldado muito galhardo -acrescentou Jaime-. E tinha razão sobre as mãos. Já

começaste a aprender com a espada? -Só um poquito. -Willie esqueceu seu desconforto entusiasmado pelo novo

tema—. Aprendi a fazer fintas e a parar. Papai diz que terei uma espada adequada quando chegarmos a Virginia. Já sou o bastante alto para estocadas e paradas.

-Ah, bem, se agarrar a espada com a mão esquerda, não acredito que haja problema em que o faça com o cano. vamos tentar o de novo ou não teremos

comida. -Fiz-o! Fiz-o! pesquei um peixe!

No terceiro intento Willie o obteve. Esquecendo sua dignidade e seu título, começou a saltar.

-Claro. -Jamie recolheu a truta, que tinha um bom tamanho, e deu uma

palmada nas costas do saltitante conde para felicitá-lo-. Bem feito, moço! Parece que há rivalidade, vamos tentar tirar um par mais, né?

Para quando o sol se ocultava pelas longínquas montanhas negras tinham uma respeitável quantidade de trutas. Os dois estavam empapados, esgotados, médio cegados pelo resplendor e muito contentes.

-Nunca provei nada tão delicioso -disse Willie com voz de sonho-. Nunca. Estava nu, envolto em uma manta, e tinha tendido a roupa em uma árvore.

tornou-se para trás com um suspiro de felicidade e um leve arroto. O moço havia tornado a cabeça para observar o fogo e podia olhá-lo mais

abertamente. Jamie permaneceu imóvel, sentindo o batimento do coração de seu

coração. Era um desses estranhos momentos que ocorriam raramente mas nunca se esqueciam. Momentos que gravava em seu coração e sua mente, um instante que recordaria em cada detalhe durante toda sua vida.

Tinha uma lembrança assim de seu pai: sentado na parede da quadra, com o frio vento de Escócia agitando seu cabelo escuro. Podia evocá-lo e cheirar o

aroma da palha seca, sentir seus próprios dedos gelados pelo vento e seu coração esquentado pela luz dos olhos de seu pai.

Tinha breves visões do Claire, de sua irmã, do Ian... pequenos momentos

recortados do tempo e perfeitamente preservados por uma estranha alquimia da memória, fixados em sua mente como um inseto à luz. E agora tinha outro. Durante toda sua vida poderia recordar este momento. Recordaria a dourada luz

do fogo no doce rosto de seu filho. -Deo gratias -murmurou, dando-se conta de que o havia dito em voz alta

quando o moço se voltou surpreso.

209

-Como?

-Nada. Deve dormir -disse, se sentando e colocando-a capa-. Amanhã será um comprido dia.

-Não tenho sonho. Para demonstrá-lo Willie se sentou e se passou as mãos pela cabeça,

esfregando-se vigorosamente o cabelo. Jamie sentiu um sobressalto ao

reconhecer aquele gesto como próprio. De fato, ia fazer exatamente o mesmo e teve que conter-se com grande esforço. Respirou profundamente e começou a

preparar as moscas para os anzóis. Tinham-nas usado todas, e se queria pescar para o café da manhã precisava as repor.

-Posso ajudar?

Willie não espero a permissão e se sentou ao lado do Jamie. Sem comentários, este empurrou a caixa de madeira com plumas de pássaros para o moço e agarrou um anzol da cortiça onde penduravam.

Durante um momento trabalharam em silêncio, até que Willie se cansou do trabalho e começou a fazer perguntas ao Jamie sobre a pesca, a caça, o bosque,

os índios e o lugar ao que se dirigiam. -Não -respondeu Jamie a uma dessas perguntas-. Nunca vi um couro

cabeludo na aldeia. São boa gente, agora bem, se lhes fizer algum dano não

demoram para vingar-se -sorriu ironicamente-. Nesse aspecto, recordam-me um pouco aos highlanders.

-A avó diz que os escoceses têm filhos... –terminou bruscamente seu comentário, com o rosto ruborizado e a vista concentrada em seu trabalho.

-Como coelhos?

Jamie deixou ver a ironia e o sorriso. Willie lhe olhou cautelosamente. -Algumas vezes as famílias escocesas são muito grandes, é certo.

Consideramos que os filhos são uma bênção. Willie se endireitou enquanto seu rubor desaparecia.

-Entendo. Você tem muitos filhos?

-Não, não muitos -respondeu, com os olhos cravados no chão. -Sinto muito... não pensei, é me queixar levantou a vista e viu que Willie se ruborizou outra vez.

-Pensou o que? -perguntou intrigado. Willie tragou ar.

-Bom, a... a... enfermidade, o sarampo. Não vi meninos, mas não o pensei quando o disse.- quero dizer— que talvez tinha algum, mas...

-OH, não. -Jamie sorriu para lhe tranqüilizar-. Minha filha já é maior e faz

tempo que vive em Boston. -Já. —Willie deixou escapar o ar com grande Isso alívio é tudo?

-Não, também tenho um filho -disse enquanto o anzol se cravava na ponta de seu polegar e uma gota de sangue caía sobre a superfície de metal-. Um bom moço ao que quero muito, embora agora não está em casa.

28 Conversação acalorada

Ao final da tarde Ian tênia os olhos frágeis e a frente quente. sentou-se em

seu camastro para me saudar em meio de alarmantes balanços e com os olhos desfocados. Não tinha a mais mínima dúvida, não obstante lhe examinei a boca para confirmá-lo; as pequenas manchas brancas confirmavam com toda

210

segurança o diagnóstico. No pescoço começavam a apreciar umas pequenas

manchas rosadas. -Bem -pinjente resignada-. Tem-no. O melhor é que te venha comigo a casa

e assim poderei te cuidar com mais comodidade. -Tenho o sarampo? vou morrer me? -perguntou. Não parecia muito interessado; sua atenção se centrava em alguma visão

interior. -Não -pinjente decidida, esperando ter razão-. Encontra-te muito mal, não?

-Dói-me um pouco a cabeça —respondeu. Por sorte ainda podia caminhar, pensei, enquanto o ajudava pelo atalho.

Embora parecia fraco e desajeitado me levava mais de vinte centímetros e ao

menos quinze quilogramas de peso. Não havia mais de vinte metros até a cabana, mas ao chegar Ian tremia

pelo esgotamento. Quando entramos, lorde John se sentou e fez um gesto para

levantar-se da cama, mas o impedi. -Fique -pinjente, depositando ao Ian na outra cama-. Me posso arrumar

isso Eu tinha dormido ali, tinha travesseiro, lençóis e uma manta. Ajudei ao Ian

a tirá-los calções e as meias e o meti na cama. Tinha febre e aspecto de estar

muito mais doente do que parecia com a luz do abrigo. A infusão de casca de salgueiro que tinha deixado repousando estava

escura e aromática, lista para beber. Servi-a com cuidado, olhando a lorde John. -Fiz-a para tí. Mas se pode esperar... -É obvio, dásela ao moço -disse, fazendo um gesto-. Esperarei. Posso ajudar

em algo? Pensei em lhe sugerir que, se realmente queria me ajudar, podia ir até o

privada em lugar de usar a bacinilla que eu tinha que esvaziar, mas podia ver que

ainda não estava em condições de sair sozinho durante a noite. Assim que me limitei a negar com a cabeça e me ajoelhei para dar a medicina ao Ian.

Logo me sentei na cama e pus a cabeça do moço em meu regaço para lhe dar uma massagem nas têmporas. Coloquei os polegares sobre suas sobrancelhas e pressionei para cima; deixou escapar um gemido de desgosto,

mas logo se relaxou deixando cair a cabeça sobre minha saia. -Está bem -murmurou. Sua mão, grande e quente, fechou-se apertando

minha boneca—. É o que fazia o chinês, não?. -Assim é. refere-se ao Yi Tien Cho, o senhor Willoughby -expliquei a lorde

John, que observava o procedimento com gesto assombrado.

Vacilei ao mencionar ao pequeno chinês ante lorde John, já que a última vez que nos encontramos na Jamaica, lorde John tinha quatrocentos homens, entre soldados e marinheiros, percorrendo a ilha em perseguição do senhor

Willoughby como suspeito de um crime particularmente atroz. -O não o fez, sabe? -senti-me forçada a dizer.

Lorde John arqueou uma sobrancelha. -Isso está bem -disse com secura—, já que nunca conseguimos apanhá-lo. -Me alegro.

Olhei ao Ian e movi os polegares pressionando outra vez. -Né... Devo supor que sabe quem matou à senhora Alcott? -Sim, sei -pinjente vacilando-, mas...

-Sabe? Um assassino? Quem foi? O que aconteceu, tia? Ai! Os olhos do Ian se abriram com interesse e se fecharam pela dor que lhe

produzia a luz.

211

-Fica aquieto -pinjente esfregando os músculos de diante de suas orelhas-.

Está doente. -Está bem, tia. Mas quem foi? Não pode começar a contar coisas como esta

e as deixar na metade, esperando que durma sem conhecer o resto. Pode fazê-lo? Abriu um olho pedindo ajuda a lorde John, quem lhe sorriu. -Não quero responsabilidades no assunto —assegurou-. Entretanto —

continuou com firmeza, dirigindo-se ao Ian—, deve pensar que talvez a história incrimine a alguém que sua tia prefere proteger. Nesse caso seria uma

desconsideração insistir nos detalhes. -Não, nada disso -assegurou-lhe Ian- Tio Jamie não mataria ninguém salvo

que tivesse uma boa razão.

Pela extremidade do olho viu como lorde John se sobressaltava. Era evidente que não lhe tinha ocorrido que poderia ter sido Jamie.

-Não -assegure-. Não foi ele.

-Bom, se eu tampouco fui, a quem mais ia proteger tia Claire? -Está-te fazendo ilusões, Ian -pinjente secamente-. Mas já que insiste...

A história implicava a alguém mais: a mulher que primeiro conheci como Geillis Duncan e mais tarde como Geillis Abernathy, quão mesma mandou seqüestrar ao Ian em Escócia, teve-o prisioneiro na Jamaica e lhe fez passar por

coisas que muito tempo depois pôde começar a nos explicar. Os dois doentes estavam esperando minha história, assim, reprimindo a

macabra necessidade de começar com o “era uma vez...”, apoiei-me na parede e com a cabeça do Ian ainda sobre minhas saias comecei a história do Rose Hall e seus donos: a bruxa Geillis Duncan; o reverendo Archibald Campbell e sua

estranha irmã Margaret; a profecia do Fraser e a noite de fogo e sangue de crocodilo, quando os escravos de seis plantações com o passar do rio Yailahs se rebelaram e mataram a seus amos, animados pelo houngan Ishmael.

Dos acontecimentos posteriores na cova do Abandawe, no Haiti, não disse nada. depois de tudo, Ian tinha estado ali- E esses acontecimentos não tinham

nada que ver com o assassinato de Mina Alcott. -Um crocodilo -murmurou Ian—. O viu, tia? -Não só o vi, mas também o pisei -assegurei-. Ou mas bem primeiro o pisei

e logo o vi. Se o tivesse visto teria saído correndo. ouviu-se uma risada da cama. Lorde John se arranhava um braço

sonriendo. -Deve encontrar a vida muito aborrecida aqui depois de suas aventuras nas

Antilhas.

-Posso suportar um pouco de aborrecimento -disse com sabedoria. Falar da Jamaica me tinha distraído um pouco de minhas preocupações

pelo Ian. A dor de cabeça não era um sintoma estranho para alguém com sarampo, mas a dor severo e prolongada sim. A meningite e a encefalite eram perigosas e possíveis derivações da enfermidade.

-Como está sua cabeça? -perguntei. -um pouco melhor -respondeu, tossindo com os olhos fechados. Logo os

abriu com cuidado-. Tenho muito calor, tia.

Molhei um trapo em água fria e o passei pela cara fazendo que se estremecesse.

-A senhora Abernathy me deu a beber ametista para a dor de cabeça -murmurou.

-Ametista? -Estava assombrada, mas segui falando com suavidade-. Bebeu

ametista?

212

-Em vinagre. E pérolas em vinho doce, mas isso era para a cama -disse-.

Era muito boa para as pedras preciosas. Queimou pó de esmeralda na chama de uma vela negra e esfregou meu pênis com o diamante; disse que era para mantê-

lo duro. Ouvi um débil som da outra cama, levantei a vista e vi lorde John apoiado

em um ombro com os olhos muito abertos.

-E funcionaram as ametistas? Sequei a cara do Ian com o trapo.

-O diamante, sim. Tentou rir com picardia adolescente, mas só pôde tossir. -Temo-me que aqui não temos ametistas -pinjente-, mas há vinho se

quiser. Queria e lhe ajudei a beber um pouco rebaixado com água; logo se voltou a

deitar com o rosto avermelhado e os olhos inchados. Lorde John também se

deitou deixando seu cabelo loiro solto sobre o travesseiro. -Para isso é para o que ela queria aos moços. –molhou-se os lábios que

começavam a gretar-se o Dizia que a pedra crescia nas vísceras do moço que elegia. Este não tinha que ter estado nunca com uma moça, isso era importante. Se não era assim a pedra não funcionaria. Se o moço já tinha conhecido mulher...

Fez uma pausa para tossir e ficou sem fôlego, com o nariz gotejando. Alcancei-lhe um lenço.

-Para que queria ela a pedra? O rosto de lorde John estava cheio de simpatia. Sabia muito bem como se

sentia Ian nesse momento, mas a curiosidade lhe impulsionava a perguntar. Não

me opus, eu também queria saber. Ian começou a negar com a cabeça, mas se deteve com um gemido. -Ah! Minha cabeça parece que vá arrebentar! Não sei. Não me disse isso. Só

que era necessário, que tinha que tê-la para estar-se... gura -quase não pôde terminar por um ataque de tosse.

-Melhor não fale... -comecei, quando me interrompeu um suave golpe na porta.

Fiquei imóvel enquanto lorde John saía da cama e tirava a pistola de uma

de suas largas botas. -Quem anda aí? —perguntou lorde John com voz surpreendentemente

forte. A resposta foi uma série de arranhões e um fraco gemido. -É seu maldito cão, Ian -pinjente.

-Está segura? -perguntou lorde John em voz baixa, ainda empunhando a pistola-. Poderia ser uma armadilha dos índios.

-Cilindro! —gritou Ian com voz rouca e entrecortada.

Cilindro conhecia a voz de seu amo, rouca ou não; ouviu-se um profundo e alegre latido, seguido de uma série de frenéticos saltos e arranhões.

-Odioso cão -pinjente, me apressando a abrir a porta. Deixa de fazer ruído ou te converterei em um tapete, em uma jaqueta ou em um pouco parecido.

Minha ameaça recebeu a atenção que merecia. Cilindro entrou enlouquecido de alegria e lançou seus setenta quilogramas sobre a cama do Ian, fazendo que se balançasse perigosamente. Passando por cima os gritos de

protesto de seu ocupante, procedeu a lhe lamber a cara e os braços, que tinha levantado para proteger-se.

-Cão mau -disse Ian, tratando de apartá-lo e rendo em que pese a seu desconforto-. Cão mau, abaixo, hei-te dito.

213

-Abaixo! -repetiu lorde John, com tom gelado.

Cilindro, interrompido em suas demonstrações de afeto, voltou-se para lorde John e lhe mostrou os dentes.

Lorde John levantou sua pistola com gesto convulsivo. -Abaixo, a dhiobhu,il!-ordenou Ian, empurrando os quartos traseiros de

Cilindro-. Aparta o traseiro peludo de minha cara, animal malvado! Cilindro esqueceu imediatamente a lorde John, deu umas voltas ao redor da

cama e se desabou perto do corpo de seu amo. Lambeu a orelha do Ian e, com um grande suspiro, colocou-se sobre o travesseiro com o focinho entre as patas,

-Quer que o tire, Ian? —ofereci-me, embora não sabia como fazê-lo.

-Não, deixa-o -disse tossindo-. É um bom moço. Verdade, a charaid! Apoiou uma mão no cangote do cão e sua bochecha sobre o corpo peludo.

-Muito bem, então a dormir. Toquei-lhe a frente, olhando os olhos amarelos que me vigiavam. A febre

tinha baixado um pouco e já se dormiu.

Movi-me pela habitação sem fazer ruído, me ocupando de guardar os resultados do trabalho do dia na despensa.

Quando retornei, Ian dormia profundamente e Cilindro logo que abriu um

olho para me ouvir. Olhei para lorde John que ainda estava acordado, mas ele não me olhou.

Sentei-me ao lado do fogo e agarrei a grande cesta da lã. Tinham passado dois dias desde que Jamie e Willie se partiram. Dois dias de caminho até a aldeia

tuscarora e outros dois dias para retornar, se não acontecia nada que os detivera. -Tolices -murmurei. Nada os ia deter. Logo estariam de volta em casa.

A cesta estava cheia de meadas de lã e de linho. Algumas me tinha dado isso Yocasta e outras as tinha fiado eu. A diferença era óbvia, mas utilizaria meus fios para algo, não para meias ou casacas mas sim para cobrir a bule.

Jamie se havia sentido impressionado e divertido no Lallybroch, quando descobriu que eu não sabia tecer. Jenny e as faxineiras se ocupavam da malha e

eu realizava outras tarefas. Mas agora que devia aprender, surpreendida-a tinha sido eu, ao me inteirar de que Jamie sim sabia tecer.

-É obvio que sei -havia-me dito, me contemplando intrigado-. Ensinaram-

me quando tinha sete anos. Em sua época não lhes ensinam de tudo aos meninos?

-Bom -senti-me meio tola-, algumas vezes ensinam às meninas, mas aos

meninos não. Assim descobri que Ian também sabia tecer, o qual era uma ocupação

muito útil para as largas horas aos cuidados das ovelhas ou as vacas. Eu tinha aprendido o básico e estava tecendo um xale, mas essa atividade que para o Jamie e Ian resultava relaxante para mim não servia aquela noite.

Deixei a malha sobre minha saia e fechei os olhos um momento. Cuidar doentes é uma tarefa pesada e estava muito cansada. Por um instante, desejei

que todos se fossem. Abri os olhos e olhei a lorde John ressentidamente, mas o ataque de autocompasión se desvaneceu ao vê-lo. Jazia de costas, com um braço detrás da cabeça e olhando sombrio para o teto.

Os olhos escurecidos faziam que seu rosto parecesse marcado pela ansiedade e a dor. Talvez fora efeito do fogo, mas me senti envergonhada. Era certo que não o tinha querido ali, que estava molesta por sua intrusão em minha

vida e o peso das obrigações que havia me trazido sua enfermidade. Sua presença, por não falar da do William, causava-me insegurança. Mas logo

214

partiriam, Jamie voltaria para casa, Ian melhoraria e teria de novo minha paz,

minha felicidade e meus lençóis limpa. O que lhe tinha acontecido a ele era para sempre.

John Grei tinha perdido a sua esposa, como ele a considerava. Fazia falta valor para trazer aqui ao William e deixá-lo ir com o Jamie. Eu não queria me

fazer à idéia de que aquele maldito homem não tinha podido evitar o sarampo. Levantei-me para pôr uma panela no fogo. Uma boa taça de chá me parecia

o mais apropriado. Quando me levantei vi que lorde John movia a cabeça

distraído em seus pensamentos. -Chá? -pinjente, incômoda atrás de meus poucos caridosos pensamentos. Sorriu fracamente e assentiu.

-Agradeceria-o, senhora Fraser. Tirei a caixa de chá, duas taças, as colheres e o de açúcar, essa noite não

poria melaço. Uma vez que esteve tudo preparado me sentei perto da cama e bebemos em silêncio; a ambos invadia um estranho acanhamento.

-Lamento-o -pinjente formalmente, uma vez que deixei minha taça-. Tinha

a intenção de dar minhas condolências pela morte de sua esposa. -É uma coincidência que me diga isso neste momento -respondeu-. Estava

pensando nela.

Como estava acostumada a que todo mundo adivinhasse meus pensamentos com apenas me olhar à cara, a mudança resultou lhe gratifique.

-A estranhas muito...?. Vacilei um pouco, mas a pergunta não lhe pareceu indiscreta

-Realmente, não sei. Parece-te uma insensibilidade?

-Não posso dizê-lo -respondi, um pouco cáustica—. Com segurança, sabe melhor que ninguém como te afetou.

-Sim, afetou-me -deixou cair a cabeça sobre o travesseiro— Ou me afeta. Por isso vim, entende?

-Não, não o entendo.

Ian tossiu e me levantei para vê-lo. Uma mão lhe pendurava fora da cama; ainda estava quente mas a febre já não representava perigo; a levantei e o mesé o cabelo com suavidade.

-É muito boa com ele. Tem filhos? Assombrada, levantei a vista e o olhei. Observava-me com o queixo apoiado

no punho. -Eu..., nós temos uma filha. -Nós? -disse cortante-. A garota é do Jamie?

-Não a chame "a garota» -disse irracionalmente zangada-. Seu nome é Brianna e sim é do Jamie.

-Minhas desculpas -disse ceremoniosamente-. Não quis lhe ofender. Estava surpreso.

Olhei-o diretamente, muito cansada para ser diplomática.

-E um pouco ciumento, possivelmente? Seu rosto, carregado de diplomacia, não deixava traslucir nada depois da

fachada de amabilidade. Mas o segui olhando até que deixou cair a máscara e um

brilho de compreensão iluminou seus olhos azuis. -Então, uma coisa mais que temos em comum.

Assombrou-me sua acuidade. -Não me diga que não o pensou quando decidiu vir aqui. Estudou-me com os olhos entrecerrados.

215

-Pensei-o, sim -disse finalmente-. Entretanto, até no caso de que eu fora o

bastante mesquinho para pensar que te ofenderia ao trazer para o William aqui, devo te pedir que cria que tal ofensa não foi o motivo de minha viagem.

-Acredito-te -pinjente-. O que passa é que não entendo qual foi o motivo. Não o olhei, mas senti que se encolhia de ombros. -O óbvio... permitir que Jamie visse o moço.

-E o outro óbvio.,, ver o Jamie. produziu-se um marcado silêncio.

-É uma mulher notável -disse finalmente. -Em que sentido? -perguntei sem levantar a vista. -Não é nem cautelosa nem sinuosa. De fato não acredito ter conhecido a

ninguém, já seja homem ou mulher, tão cruamente sincero. -Bom, não foi uma eleição. Nasci assim. -Quão mesmo eu -disse muito brandamente.

Não respondi, não acreditava que o houvesse dito para que eu o ouvisse. Levantei-me e fui até o aparador. Agarrei três potes: hortelã, valeriana e

gengibre silvestre e amassei as folhas e as raízes secas no morteiro, enquanto a água da panela começava a ferver.

-O que está fazendo ?—perguntou lorde John.

-Preparando uma infusão para o Ian. A mesma que te dava faz quatro dias. -Ah. Ouvimos falar de ti enquanto viajávamos desde o Wilmington -disse

Grei. Seu tuno era o de uma conversação normal-- Parece que é muito conhecida na zona graças a suas habilidades.

-Mmm.

-Dizem que é uma mulher com poderes. O que querem dizer, sabe? -Algo, desde parteira a médica e desde adivinha a feiticeira. Depende de

quem o diga.

Fez um som que podia ser uma pequena gargalhada e logo ficou em silêncio.

-Crie que estão a salvo. Era uma afirmação, mas me estava perguntando isso. -Sim. Jamie não tivesse levado a moço se pudesse haver algum perigo. Se

conhecer o Jamie seguro que sabe, não? -acrescentei. -Conheço-o.

-Conhece-o, realmente. -Conheço-o o bastante bem, ou acredito conhecê-lo, para me arriscar a

mandar ao William só com ele. E para estar seguro de que não lhe dirá a verdade.

-Não, não o fará, tem razão nisso. -Você o faria? Levantei a vista surpreendida.

-Realmente crie que o faria? Estudou meu rosto cuidadosamente e sorriu.

-Não -disse com calma-. E te dou tas obrigado. Soprei e deixei cair o preparado na bule. Guardei os potes e me voltei a

sentar para continuar tecendo.

-Foi muito generoso de sua parte deixar que Willie fora com o Jamie. E valente -acrescentei um tanto irritada.

-Jamie teve minha vida em suas mãos durante muitos anos-respondió-.

Confio que seja igual com o William. -E sim Willie recorda a uma moço de quadra chamado MacKenzie mais do

que você acreditava? Ou lhe ocorre olhar sua cara e a do Jamie?

216

-Os moços de doze anos não destacam por sua aguda percepção -disse

secamente-. E acredito que para um moço que viveu toda sua vida na segura crença de que é o nono conde do Ellesmere, a idéia de que poderia ser o filho

ilegítimo de uma moço de quadra escocês, é algo que não entraria em sua cabeça ou que, de ser assim, apartaria imediatamente.

Fiquei em silêncio. Ian tossia mas seguia dormido. O cão se moveu e estava

enroscado sobre suas pernas como uma manta de pele. Grei esteve tanto tempo em silêncio que me surpreendeu quando falou de

novo: -Disse-te que sentia algo por minha esposa. É assim. Afeto. Confiança-

Lealdade. Conhecíamo-nos de toda a vida; nossos pais eram amigos e eu

conhecia seu irmão. Poderia ter sido minha irmã, —E ela estava satisfeita com isso... sendo sua irmã? Lançou-me um olhar entre interessada e furiosa.

-Você não é uma mulher com a que se possa viver comodamente. -encolheu-se de ombros com impaciência—. Sim, acredito que ela estava satisfeita

com a vida que levava. Nunca disse o contrário. Minha resposta foi um suspiro muito forte. -Fui um marido adequado para ela -disse à defensiva-, Que não tivéssemos

filhos não foi por mi... -Não quero ouvir isso!

-Não quer? -Sua voz era baixa para não despertar ao Ian, mas tinha perdido o tom diplomático, havia zango nela-. Perguntou-me por que tinha vindo, questionou meus motivos e me acusou de ter ciúmes. Talvez não queira saber,

porque se o faz não poderá seguir pensando de mim o que decidiu pensar desde o começo.

-E como diabos sabe o que decidi pensar sobre tí?

-Não é assim? Olhei-o à cara durante um minuto sem me preocupar com ocultar nada.

-mencionaste o ciúmes -disse Grei. -Fiz-o. Você também. Olhou para outro lado e depois de um momento continuou.

-Quando soube que Isobel tinha morrido... não significou nada para mim. Tínhamos vivido Juntos durante anos, embora não nos víamos desde fazia dois.

Pensei que tínhamos compartilhado uma cama e uma vida, que deveria me importar. Mas não era assim. -Respirou profundamente e continuou-: Mencionou a generosidade. Não foi isso. Vim para ver... para saber sim ainda podia sentir.

SIM eram meus próprios sentimentos os que tinham morrido ou só Isobel. -Só Isobel? -repeti. Permaneceu imóvel olhando ao longe.

-Ao menos posso sentir vergonha -disse muito brandamente. Dava-me conta de que já era muito tarde, o fogo tinha diminuído e a dor de meus

músculos me dizia que fazia momento que deveria haver ido à cama. Ian estava inquieto. fui arrumar lhe os lençóis e lhe dava uma taça da

infusão.

-Sentirá-se melhor pela manhã. Tinha manchas no pescoço, mas a febre tinha baixado. Ficava uma boa quantidade da infusão, assim servi outra taça e a alcancei

a lorde John. Surpreso, sentou-se na cama e agarrou a taça. —E agora que vieste e o viu... ainda lhe afeta?

Olhou-me fixamente durante um momento.

217

—OH, sim.

Com mão firme bebeu da taça.

Ian passou uma má noite e quando conseguiu sumir-se em um sonho reparador, perto da madrugada, aproveitei para descansar e desfrutar no chão de umas poucas horas de sonho, até que despertou e! zurro do Clarence, a mula.

Era uma criatura muito sociável que se alegrava profundamente ante a presença de qualquer que considerasse amigo, categoria que abrangia

virtualmente a tudo o que andará sobre quatro patas. Cilindro, ofendido por ter sido substituído em seu posto de cão guardião, saltou da cama do Ian, passou-me por cima e saiu pela janela aberta uivando como um lobo.

Meu coração deixou de saltar quando vi que não eram Jamie e Willie, mas minha desilusão se transformou em assombro quando vi quem era o visitante: o

pastor Gotcfried, chefe da Igreja luterana de Salem. Tinha visto o pastor nas casas de meus doentes, mas isto era algo insólito.

demoravam-se quase dois dias a cavalo de Salem e o alemão luterano mais

próximo a nossa propriedade estava a umas dezoito milhas. O pastor não era um homem acostumado a cavalgar, assim pensei que tinha que ser algo muito urgente o que lhe trazia para casa.

-Fora, cão malvado! -disse a Cilindro, que mostrava os dentes e rugia ao cavalo do pastor-. Quieto, hei dito!

O pastor era um hombrecito rechoncho, com uma barba cinza e frisada que emoldurava seu rosto habitualmente luminoso e sorridente. Embora agora estava pálido e tinha um aspecto esgotado.

-Meine me Dê -saudou, tirando o chapéu e inclinando a cabeça-, Ist Euer Mann hier.

Eu falava um pouco de alemão e me dava conta de que procurava o Jamie; assinalei o bosque com a cabeça. Segui fazendo gestos até que uma voz falou

cortante, -Was ist os? -quis saber lorde John, saindo à porta. pôs-se os calções, embora seguia descalço e com o cabelo solto.

O pastor me dirigiu um olhar escandalizado, pensando o pior, mas trocou de expressão ante as rápidas explicações de lorde John. O pastor rói dirigiu uma

inclinação de desculpa e falou ansioso com Grei. -O que é o que está dizendo? —perguntei. -Conhece uma família chamada Mueller?

-Sim —respondi, me alarmando imediatamente—. Faz três semanas ajudei a nascer à filha da Petronella Mueller.

-Ah! —Grei se umedeceu os lábios e olhou ao chão-. Temo-me que... a

menina morreu. E também a mãe. -Não, não. -Deixei-me cair no banco ao lado da porta— Não. Não pode ser.

-Diz que tinham Maseru, suponho que será sarampo. -Mas para que quer ao Jamie? —perguntei. -Acredita que Jamie fará entrar em razão ao Herr Mueller. São amigos?

-Não, não exatamente. Jamie golpeou ao Gerhard Mueller na boca e o atiro ao chão a primavera passada frente ao moinho.

-Já vejo. Suponho que o término «raciocinar» não é o adequado. -Com o Mueller não se pode raciocinar com nada que seja mais sofisticado

que uma tocha. Mas no que está sendo pouco razoável?

218

Grei franziu o sobrecenho e me dava conta de que não entendia o de

sofisticado embora captava o sentido. voltou-se, perguntou ao pastor e logo escutou. Pouco a pouco e com constantes interrupções surgiu a história.

Havia uma epidemia de sarampo no Cross Creek, tal como havia dito lorde John. Era evidente que se estendeu por Salem; mas os Mueller, que viviam isolados, tinham contraído a enfermidade fazia muito pouco. Quando apareceu

em sua família, Mueller pensou que era culpa de uns índios que tinham acontecido pedindo comida e bebida. Como Mueller os tratou mau, os índios,

ofendidos, fizeram signos misteriosos antes de partir. Mueller estava convencido de que a enfermidade era um malefício dos

índios. Pintou símbolos nas paredes e mandou chamar o pastor para que

realizasse um exorcismo. Mas aquelas precauções não serviram para nada. Quando Petronella e a recém-nascida morreram, o ancião perdeu o pouco julgamento que tinha, jurou vingança contra os selvagens e obrigou a seus filhos

e a seus genros a que o acompanhassem aos bosques. Tinham retornado três dias atrás, os filhos pálidos e silenciosos e o ancião

pictórico de fria satisfação. O pastor estava ali quando aconteceu. Na quadra lhe tinham ensinado duas largas caudas de cabelo negro que penduravam da porta, com a palavra Rache grafite ao lado.

-Isso quer dizer «vingança» -traduziu lorde John. -Sei -disse com a boca seca-. Tenho lido ao Sherlock Holmes. Quer dizer

que ele... -É evidente. O pastor seguia falando e me sacudia o braço tratando de me transmitir

sua urgência. -Mueller vem para cá.

Grei me olhou alarmado. Impressionado pelos couros cabeludos, o pastor tinha ido procurar ao Herr

Mueller, mas descobriu que tinha partido para a Colina do Fraser para ver-me

para mim. Se não tivesse estado sentada me teria desacordado. Senti que o sangue

abandonava minhas bochechas,

-por que? -perguntei-. Pensará que...? Não pode ser! Não pode acreditar que eu tivesse algo que ver com a morte da Petronella e da menina. Pode ser?

Voltei-me para o pastor. -O pastor diz que não sabe o que pensava Mueller ou o que se propunha ao

vir até aqui -disse lorde John-, Encontrou-o duas horas depois, desacordado a

um lado do caminho. O corpulento granjeiro tinha passado vários dias sem comer em sua busca

de vingança e ao voltar tinha bebido muita cerveja. O pastor não tinha tentado levantá-lo, mas sim tinha deslocado a nos acautelar.

Não tinha dúvidas de que meu Mann poderia enfrentar-se ao Mueller, mas

se Jamie não estava... Sugeriu que nos partíssemos e tratei de lhe explicar que não podíamos deixar ao Ian.

-Ele não passou o sarampo -disse lorde John voltando-se para mim-. Não deve ficar aqui ou correrá perigo de contagiar-se. Não é assim?

-Sim. -Tratei de me recuperar-. Sim, deve ir-se imediatamente. Você já não

é contagioso. Mas Ian sim. -Tentei me arrumar o cabelo, horrorizada por e! lembrança dos couros cabeludos do celeiro do Mueller.

Lorde John falava autoritariamente ao pequeno pastor para que partisse

logo. Eu lhe sorri tratando de lhe tranqüilizar.

219

-lhe diga que estarei bem, quer? Ou não se irá.

-Fiz-o. Disse-lhe que sou um soldado e que não vou deixar que te passe nada.

O pastor se aproximou de mim e do cavalo apoiou uma mão sobre minha cabeça.

-Seid gesegnet -disse-, Benediáte. -Diz... -começou lorde John. -Entendi-o.

Permanecemos em silêncio observando como se afastava. Perguntei-me quem teria sido o branco da cega vingança do Mueller. Sua granja estava longe, mas podia ter chegado até algumas aldeias de tuscaroras ou cherokee. Teria

entrado em alguma aldeia? E se era assim, que matança teria deixado detrás de si? Ou pior, que matança seguiria?

Estremeci-me pese ao calor do sol. Mueller não era o único homem que acreditava na vingança. A família, o clã ou a aldeia de que tivesse matado procurariam vingança e não se deteriam com os Mueller, se é que conheciam a

identidade dos assassinos. E se não era assim, se somente sabiam que os assassinos eram brancos... estremeci-me outra vez.

-Quanto eu gostaria que Jamie estivesse aqui.

Não me dava conta de que tinha falado em voz alta até que lorde John respondeu.

-Eu também. Embora comece a pensar que William estará mais seguro fora, e não só pela enfermidade.

-Não deveria estar levantado! -exclamei e te agarrei do braço-. vá deitar te

imediatamente. -Estou bastante bem -disse irritado, mas não protestou quando insisti em

que voltasse para a cama. Ajoelhei-me para examinar ao Ian; estava inquieto e com muita febre, tinha

os olhos fechados, a cara desfigurada pelas rodelas e os gânglios do pescoço

inflamados e duros. Cilindro colocou o focinho baixo meu cotovelo, cheirando a seu amo e gemendo.

-ficará bem -disse com firmeza— por que não vai fora a vigiar se vierem visitas?

Cilindro desoyó minha sugestão e se sentou pacientemente observando

como lavava ao Ian e lhe dava a bacinilla enquanto esperava o alegre anúncio do Clarence de que se aproximavam visitas.

Foi um comprido dia. depois de várias horas me sobressaltando ante cada

ruído, cumpri com a rotina. Ocupei-me do Ian, que se sentia muito mal, dos lhes

anime, do jardim, de agarrar pepinos e de pôr a lorde John, que queria me ajudar, a debulhar feijões.

-me fale sobre esse Mueller -disse lorde John.

Tinha recuperado o apetite e terminou seu prato de papa fritas. -É o chefe de uma grande família de alemães luteranos, como já te terá

dado conta- Vivem a umas dezoito milhas daqui, abaixo, no vale do rio. -Se? -Gerhard é corpulento e teimoso. Fala pouco inglesa. É velho. Mas é forte!

-Essa briga que teve com o Jamie... pode lhe guardar rancor? -É uma pessoa vingativa, mas não acredito que por isso lhe guarde rancor.

Não foi exatamente uma briga. Foi... Sabe algo sobre mulas? Sorriu e arqueou as sobrancelhas.

220

-um pouco,

-Bom, Gerhard Mueller é uma mula. Não é que tenha mau caráter ou que seja estúpido, mas não disposta atenção a nada que não seja o que está em sua

cabeça e costa muito trabalho tirar o daí. Jamie interveio em uma discussão que teve com uma filha do moleiro pelos sacos de trigo, e teve que lhe fazer raciocinar de um murro. Finalmente, Mueller, depois de que o moleiro lhe desse um saco

mais de farinha, aceitou v partiu agradecido. -Já vejo. Então, não tem má vontade?

-Absolutamente. Foi muito amável comigo quando fui à granja para ajudar no nascimento da menina.

Me fez um nó na garganta ao recordar que já não estavam.

-Toma -disse Grei e empurrou a jarra com cerveja para mi. Bebi e fiquei um minuto com os olhos fechados.

-Obrigado -pinjente, abrindo os olhos.

Grei me observava com expressão de profunda simpatia. -Não é que não tenha acontecido antes -expliquei-. Aqui morrem muito

facilmente, em especial os jovens, e quase não posso fazer nada. Senti algo quente em minha bochecha e me surpreendeu tocar uma

lágrima. Grei tirou um lenço e me alcançou isso. Não estava muito limpo, mas

não me importou. -Perguntei-me o que é o que ele viu em ti -disse em um tom

deliberadamente ligeiro. -Ah, sim? Que adulador. Soei-me o nariz.

-Quando começou a me falar de ti, ambos pensávamos que estava morta. E embora indubitavelmente é uma mulher formosa, nunca falou de sua aparência.

Para minha surpresa me agarrou a mão e a apertou.

-Tem seu valor. Isso me fez rir.

-Se soubesse... -respondi. Sorriu-me fracamente e passou um dedo, suave e quente, pelos nódulos de

minha mão.

-Ele nunca se detém por temor a machucar-se. Acredito que seu tampouco. -Não posso. -Suspirei e me soei o nariz-. Sou médica.

-Sim, é-o. E não te agradeci que me tenha salvado a vida. -Não fui eu. Não há muito que possa fazer ante uma enfermidade. Tudo o

que posso fazer é... estar aí.

-um pouco mais que isso -disse secamente e soltou minha mão-. Tem mais cerveja?

Começava a ver claramente o que tinha visto Jamie no John Grei.

A tarde passou tranqüila. Ian tossia e se queixava, mas se desenvolveu a erupção e a febre baixou um pouco. Não queria comer e pensei que poderia lhe

dar leite. Isso me fez recordar que era hora de ir ordenhar. Deixei minha costura, murmurei algo a lorde John e fui até a porta. Ao me abri-la encontrei frente a Gerhard Mueller no pátio de entrada.

encolheu-se da última vez que o tinha visto. Seu rosto era a caveira de um ancião. Seus olhos se cravaram em mim com a única faísca de vida que ficava em seu corpo.

-Herr Mueller -disse com uma voz que soou tranqüila a meus ouvidos-, Wie geht é Euchf.

Deu um passo para mim e involuntariamente retrocedi.

221

-Frau Klara -disse em tom de súplica.

Detive-me. Queria chamar lorde John, mas vacilei. Não ia chamar me por meu nome de pilha se desejasse me fazer danifico.

-Estão mortas -disse-. Mein Madchen. Mein Kind. As lágrimas saíram de seus olhos injetados em sangue e correram por suas bochechas.

-Sei.-respondi—. O sinto.

Assentiu outra vez e me deixou levá-lo até o banco, onde me obrigou a me sentar com ele.

Súbitamente se voltou e me abraçou me apertando contra sua casaca suja. sacudia-se por causa dos soluços e, até sabendo o que tinha feito, passei-lhe os braços pelo pescoço. Por fim me soltou e de repente viu lorde John, quem não

sabia se devia intervir ou não. O ancião se sobressaltou ao vê-lo. -Mein Gott! —exclamou horrorizado. O sol pegava no rosto de lorde John iluminando suas rodelas.

O ancião começou a procurar ligo em seu casaco, dizendo coisas em alemão que não pude entender.

-Diz que tinha medo de ter chegado tarde e se alegra de que não seja assim —explicou Grei enquanto contemplava ao ancião granjeiro com desgosto-. Diz que lhe trouxe algo, um talismã que a manterá a salvo da enfermidade e a protegerá

das maldições. O ancião tirou algo envolto em tecido e o deixou sobre minha saia.

-Agradece-lhe toda a ajuda que deu a sua família e pensa que é uma mulher muito boa, tão querida para ele como uma de suas noras. Diz que...

Mueller abriu a parte de tecido com mãos trementes e Grei não pôde

continuar. Abri a boca mas não pude deixar sair som algum. Devi fazer algum

movimento involuntário, porque caiu ao estou acostumado a deixando ao

descoberto um molho de cabelo grisalho no que ainda havia um pequeno adorno de prata e as plumas de pássaro carpinteiro empapadas em sangue.

Mueller continuava falando e Grei tratava de traduzir, mas eu só entendia pela metade. Em meus ouvidos ressonavam as palavras que tinha escutado um ano antes, ao lado do arroio, na voz suave do Gabrielle traduzindo ao Nayawenne.

Seu nome significa: "Pode ser, pode acontecer». Agora, tudo o que ficava como consolo eram suas palavras: «Ela diz que não deve preocupar-se; a

enfermidade é enviada pelos deuses. Não será por sua culpa. 29

Sepulturas Jamie cheirou a fumaça muito antes de que a aldeia fora visível para eles.

Willie viu como ficava rígido e se içava na cadeira olhando cautelosamente ao redor.

-O que acontece? -sussurrou o moço-. O que há? -Não sei. -Manteve a voz baixa, embora não havia possibilidade de que

ninguém os ouvisse. baixou-se do cavalo, entregou as rédeas ao Willie e assinalou

um penhasco ao pé do qual havia uns arbustos. -Leva os cavalos atrás do penhasco -disse-. Ali há um atalho esboçado

pelos veados que conduz até um bosque. Fica entre as árvores e me espere ali. -

Vacilou porque não queria assustar ao moço-. Se ao obscurecer não tornei, vete imediatamente, não espere à manhã. Retorna pelo arroio que acabamos de

222

cruzar, gira a sua esquerda e continua até ouvir uma cascata; detrás dela verá

uma cova que usam os índios em suas caçadas. Jamie apertou a perna do moço para lhe dar ânimos.

-Fique ali até que amanheça -disse-, e se não ter retornado para então, volta para casa. Deve manter o sol a sua esquerda durante a manhã e a sua direita depois do meio-dia. depois de dois dias de viagem deixa as rédeas do

cavalo soltas, pois estará o bastante perto como para que encontre sozinho o caminho.

Respirou profundamente perguntando-se que mais podia lhe dizer, mas não ficava nada.

-Que Deus te acompanhe, moço.

Dirigiu-lhe um sorriso para lhe dar confiança; deu uma palmada ao cavalo para que começasse a andar e se voltou para o aroma de queimado. Não era o aroma característico das fogueiras que se faziam nas aldeias; nem sequer o dos

grandes fogos das cerimônias que Ian lhe tinha explicado, quando queimavam árvores no centro da aldeia. O aroma provinha de um fogo muito major.

Com grande precaução, aproximou-se até uma pequena colina de onde sabia que teria uma vista panorâmica da aldeia. logo que saiu do amparo do bosque pôde ver as nuvens de fumaça cinza que subiam do lugar onde se

encontravam as moradias índias. Encontrar-se ante tal desolação o encheu de receio. Observou com cuidado

procurando alguma sinal de vida entre as ruínas. Nada se movia, salvo a fumaça agitada pelo vento. Teriam sido os cherokee atacando do sul? Ou os últimos habitantes de alguma das tribos algonquinas do norte?

Uma baforada de fumaça acompanhada de aroma de carne queimada lhe golpeou a cara. inclinou-se para vomitar e ao endireitar-se, enquanto se limpava a boca, ouviu um latido longínquo. Isso lhe tranqüilizou, pois sabia que os

habitantes da zona não levavam cães para atacar. deu-se a volta e baixou rapidamente nessa direção com o coração pulsando rapidamente. Se havia

superviventes da matança os cães estariam com eles. Ao chegar à aldeia continuou em silêncio, sem atrever-se a gritar, O fogo se

iniciou fazia menos de um dia pois a metade das paredes ainda se mantinham em

pé. O cão o descobriu primeiro; era um grande cão cruzado amarelo. Jamie o conhecia posto que pertencia a Onakara, um de quão índios saía de caça com o

Ian. O cão não ladrou nem correu, mas sim ficou esperando com as orelhas papa e gemendo brandamente. Jamie se aproximou com lentidão estendendo a mão.

-Balach math -murmurou—. Onde está sua gente?.

O cão o farejou e ao reconhecê-lo-se relaxou um pouco. Sentiu então uma presença humana, levantou a vista e se encontrou com o

rosto do dono do cão. A cara da Onakara estava grafite com raias brancas, mas

seus olhos não tinham vida. -Quem tem feito isto? -perguntou Jamie em seu vacilante tuscarora-, Segue

vivo seu tio? Onakara não respondeu, deu-se a volta e entrou no bosque seguido por seu

cão. Jamie caminhou atrás deles. Ao cabo de meia hora saíram a um claro onde

os superviventes tinham instalado o acampamento. Enquanto o atravessavam viu rostos conhecidos. Em uns viu que o reconheciam, em outros distinguiu aquele olhar de dor e desespero que ele conhecia tão bem. Faltavam muitos.

Tinha visto antes cenas como aquela. Enquanto caminhava, os fantasmas da guerra e a morte apareciam a seus pés. Entretanto, notou algo diferente a

suas lembranças de guerras anteriores. O que tinha passado com a Anna Ooka?.

223

Nacognaweto estava em uma loja, no lado mais afastado do claro. Onakara

levantou o tecido que tampava a entrada e fez um gesto ao Jamie para que entrasse. Um brilho apareceu nos olhos do ancião mas se desvaneceu ao vê-lo. O

cacique fechou os olhos para recuperar-se e abri-los depois. -Não se encontrou com a mulher que padre, nem com a mulher que vive em

minha casa?

Habituado ao costume a Índia que considerava de má educação pronunciar o nome da pessoa, salvo em uma cerimônia, Jamie soube que se referia ao

Gabrielle e à anciã Nayawenne. Negou com a cabeça sabendo que aquele gesto ia destruir a última faísca de esperança que ficava.

Não seria um consolo, mas tirou o frasco com brandy e o ofereceu a modo

de desculpa por não trazer boas notícias. Nacognaweto o aceitou e, com um gesto, chamou uma mulher para que lhe desse uma jarra. O ancião serve uma quantidade que tivesse convexo a um escocês e depois de beber o alcançou ao

Jamie. Bebeu um sorvo por cortesia e lhe devolveu a jarra. Não era ético para os

costumes índios tratar imediatamente o assunto da visita, mas não tinha tempo para bate-papos e o ancião tampouco tinha vontades das ouvir.

-O que passou? -perguntou bruscamente.

-Enfermidade -respondeu brandamente Nacognaweto. Seus olhos se umedeceram-. Estamos malditos.

A história foi surgindo interrompida por goles de brandy. O sarampo tinha aparecido na aldeia estendendo-se como o fogo. Durante a primeira semana morreram um quarto dos habitantes da tribo; agora já só ficava uma quarta parte

com vida. Quando começou a enfermidade, Nayawenne cantou sobre as vítimas. Mas

quando continuou estendendose foi ao bosque em busca de... Jamie não conhecia

tantas palavras, mas pensou que devia ser um talismã ou uma planta. Ou talvez esperava uma visão que lhe dissesse o que tinha que fazer.

Como chegar a um acordo com o diabo que havia lhes trazido essa enfermidade ou o nome do inimigo que os tinha amaldiçoado. Gabrielle e Bena a tinham acompanhado porque era velha e não devia andar sozinha; nenhuma das

três tinha retornado. Nacognaweto se balançava ligeiramente obstinado à jarra. A mulher se

inclinou para tirar-lhe mas a fez a um lado e ela obedeceu. Tinham procurado as mulheres e não tinham conseguido encontrar seu

rastro. Talvez as tinham atacado outros índios ou tinham adoecido e morto no

bosque. Mas a aldeia não tinha chamán que falasse por eles e os deuses não os escutavam.

-Estamos malditos.

O cacique falava arrastando as palavras e a jarra se balançava perigosamente entre suas mãos. A mulher se ajoelhou e lhe pôs as mãos nos

ombros para sujeitá-lo. -Deixamos os mortos nas casas e lhes prendemos fuego-explicou a mulher.

Seus olhos estavam escuros pela dor—.Agora iremos ao norte, a Ogianethaka. -

Suas mãos apertaram os ombros do cacique enquanto fazia um gesto ao Jamie-. Você ir agora.

Saiu invadido pela dor e a pena que assolavam o lugar. Em meio de tanto

dor sentiu um enorme alívio egoísta porque esta vez não tinha cansado sobre ele. Sua mulher estava viva e seu filho estava a salvo.

224

Olhou para o céu e viu o pálido resplendor do sol ao ficar. Apurou o passo.

Não ficava muito tempo pois a noite chegaria rapidamente.

OITAVA PARTE BEAUC0UP

30 No ar tênue

Oxford, abril de 1971

-Não -disse com firmeza. Roger se deu a volta com o telefone na mão. Olhava o céu chuvoso através da janela-. Não há possibilidade. Vou de Escócia a semana que vem, já lhe disse isso.

-Vamos, Rog. -Tratava de persuadi-lo-a voz da decana-. É justo a classe de coisa que pode fazer e me havia dito que sua garota não vem até julho. Rog, vêm dos Estados Unidos e tenho entendido que lhe dão muito bem as norte-

americanas -acrescentou com uma risita. -Olhe, Edwina -disse tratando de ser paciente-, tenho muitas coisas que

fazer durante as férias e entre elas não está passear turistas norte-americanos pelos museus de Londres.

-Não, não. —Assegurou-lhe—. Já temos aos que se ocuparão das visitas

turísticas. Só lhe necessitamos para as conferências. -Sim, mas...

-Dinheiro, Rog —ronronou no telefone, utilizando sua arma secreta-. São norte-americanos, já lhe disse isso, e sabe o que isso significa.

Fez uma pausa para lhe permitir que considerasse a quantidade que ia

receber por ocupar-se da semana de conferências. O encarregado oficial do grupo de visitantes universitários norte-americanos se havia posto doente. Em comparação com seu salário normal, parecia uma soma astronômica.

-Ah... Sentiu que sua resistência se debilitava.

-Sei que pensa te casar, Rog. Poderia comprar algumas costure para as bodas, não crie?

-Alguma vez lhe hão dito que é muito sutil, Edwina? -perguntou.

-Nunca. -lançou outra risita e logo seguiu com tom de executivo-. Bem, então te verei na segunda-feira para planejar as reuniões.

E cortou a comunicação. Roger conteve o impulso de arrojar o telefone e o colocou em seu lugar. Talvez não fora má idéia depois de tudo, pensou sombrio. Realmente não

lhe importava o dinheiro, mas ter que ocupar-se das conferências manteria sua mente ocupada. Agarrou a carta enrugada que estava ao lado do telefone, alisou-a e deixou correr a vista pelos parágrafos de desculpa sem lê-los realmente.

Sentia-o tanto, dizia. Um convite especial para uma conferência de engenheiros no Sri Lanka. (Todos os norte-americanos assistiam a cursos do

verão?) Contatos valiosos, entrevistas de trabalho (entrevistas de trabalho? Diabos, sabia, nunca voltaria') que não podia deixar passar. Sentia-o muitíssimo. «Verei-te em setembro. Escreverei-te. Com amor.»

-Sim, claro -disse-. Amor.

225

Enrugou a cã e a atirou sobre o penteadeira, esta pegou contra o marco de

prata e caiu ao tapete. -Poderia me haver dito diretamente que encontrou a outro -disse em voz

alta-. Você é a inteligente e eu o parvo. Mas não podia ser sincera e não me mentir como uma puta?

Estava tratando de enfurecer-se e assim encher o vazio que sentia. Mas não

funcionava. Agarrou a foto com marco de prata com desejos de rompê-la, mas ficou olhando-a durante comprido momento e a voltou a colocar em seu lugar.

-Sente-o muito -disse—. Sim, eu também. Maio de 1971 As caixas lhe esperavam na portaria quando retornou da faculdade,

cansado e farto dos norte-americanos, o último dia da conferência. Eram cinco

grandes caixas de madeira, embaladas e com as brilhantes etiqueta de via marítima internacional.

—O que é isto? Roger colheu com uma mão o recibo enquanto com a outra procurava a

gorjeta para o mensageiro.

—Não sei -disse o homem, suarento e mal-humorado depois de deixar a última gaveta na portaria-. São todo deles, companheiro.

Roger levantou uma caixa para provar. Sim não eram livros seria chumbo. Havia um sobre pego em uma caixa. Com esforço o separou e o abriu.

«Uma vez me disse que seu pai dizia que todos necessitam uma história.

Esta é a minha. Quer guardá-la com a tua?» Não havia saudação nem despedida, somente a letra B escrita com risco

firme. depois de contemplá-la um momento, dobrou-a e a guardou no bolso da

camisa. Com cuidado, levantou a caixa de acima e a carregou. -Deve pesar trinta quilogramas!

Roger deixou as caixas na sala e com um chave de fenda e uma garrafa de cerveja se dedicou a abrir a embalagem. Tratou de acalmar-se, mas não pôde. Uma moça envia suas coisas a alguém que pensa deixar?

-Sua história, né? -murmurou-. Pela forma em que o embalou parecem coisas de um museu.

Uma caixa dentro de outra, logo uma capa de aparas e outra caixa que, uma vez aberta, revelou grande quantidade de cajitas e objetos envoltos em papel de jornal. Tirou uma caixa de sapatos e olhou seu interior. Fotografias antigas

com borde ondulados v outras novas em cor. Sobressaía-me o bordo de um grande retrato e o tirou.

Era Claire Randall, muito parecida com como ele a tinha conhecido: olhos

cor âmbar, quentes e surpreendentes; um arbusto de sedosos cachos cor castanha e um leve sorriso na boca delicada. Voltou-a a guardar na caixa

sentindo-se como um assassino. Entre as folhas de periódico saiu uma boneca de trapo com a cara desbotada em que só ficavam os olhos feitos de botões.

Em outro pacote havia uma máscara do camundongo Mickey com uma

gomita para sujeitá-la detrás das orelhas. Uma caixa de música em que, ao abri-la, soava a canção do Mago de Oz. Um pulôver vermelho que deveu ser do Frank. Uma gasta bata de seda que em um impulso se aproximou do nariz. Claire. Seu

aroma a trouxe para a vida e deixou cair o objeto com um estremecimento.

226

Abaixo havia objetos mais importantes. Três largos cofres com talheres de

prata envoltos cuidadosamente. Cada cofre tinha uma nota escrita a máquina com a história de cada mego. Eram da família.

Com crescente curiosidade, Roger continuou tirando os objetos que formavam a história da Brianna Randall. História. por que a tinha chamado assim? sentia-se intrigado e lhe ocorreu procurar as etiquetas com a direção,

Oxford. Sim, tinha-as enviado a ele. por que ali, quando ela acreditava que ele ia estar em Escócia durante o verão? É onde deveria ter estado se não tivesse sido

pela conferência de última hora, e não lhe havia dito nada sobre ela. Em um rincão do fundo havia um joalheiro pequeno mas valioso. Continha

vários anéis, broches e jogos de pendentes. O broche de quartzo que lhe tinha

agradável para seu aniversário. Colares e cadeias. Faltavam duas coisas: o bracelete de prata que lhe tinha agradável e o colar de pérolas de sua avó.

—Por todos os Santos!

Olhou outra vez para estar seguro e derrubou todo o conteúdo do joalheiro. Não havia pérolas. Um colar de barrocas pérolas escocesas engastadas com

antigas argolas de ouro. Não as levaria a uma conferência de engenheiros no Sri Lanka. Para ela as pérolas eram uma relíquia, não um adorno. Não as usava. Eram seu vínculo com...

-Não o terá feito! -disse em voz alta-. Me diga que não o fez! Atirou o joalheiro sobre a cama e baixou correndo as escadas fazia a cabine

Telefónica. Demorou séculos em conseguir a conferência internacional e, depois de

uma série de ruídos e atrasos, obteve comunicação. O telefone soou três vezes e

seu coração saltou para ouvir que o foram atender. Ela estava em casa! -Lamentamo-lo -disse uma voz de mulher, agradável mas impessoal—, este

número foi desligado ou está fora de serviço.

«Não pôde fazê-lo! Não? Sim, claro que podia, maldita temerária! Onde infernos estará?»

Estava zangado e tamborilava inquieto com os dedos em sua coxa enquanto esperava a conexão através de telefonistas e secretárias do hospital, até que por fim lhe chegou uma voz conhecida, profunda e ressonante.

-Havia Joseph Abernathy. -Doutor Abernathy? Aqui Roger Wakefield. Sabe onde está Brianna? -

perguntou sem preâmbulos. A voz profunda se agudizó levemente pela surpresa. -Com você. Não está aí?

-Não está —respondeu com toda a calma que pôde, embora um estremecimento o encheu de temor— ia vir em outono, depois de graduar-se e assistir a uma conferência.

-Não. Não, não é assim. Terminou seu trabalho de curso no fim de abril, levei-a a jantar para celebrá-lo e me disse que se ia diretamente a Ardia sem

esperar a cerimônia de graduação. Espere, me deixe pensar... sim, isso; meu filho Lenny a levou a aeroporto... quando? na terça-feira... o 27. Quer dizer que não chegou?

A voz do doutor Abernathy aumentava de tom pela agitação. -Não sei. -A mão livre do Roger estava crispada-. Não me disse que ia vir. -

obrigou-se a respirar profundamente-. Onde ia o vôo, a que cidade, sabe?

Londres?. Edimburgo? Se o que queria era surpreendê-lo com uma chegada inesperada, tinha-o

conseguido mas duvidava de que essa fora sua intenção.

227

Visões de seqüestros, assaltos ou bombas do IRA cruzaram por sua mente.

Algo era melhor que o que lhe diziam suas vísceras. Maldita mulher! -Inverness -dizia a voz do doutor Abemathy em seu ouvido-. De Boston ao

Edimburgo e logo em trem até o Inverness. -Pelos pregos de Cristo! Era uma blasfêmia e uma súplica. Se tinha saído de Boston na terça-feira,

poderia ter chegado ao Inverness em algum momento da quinta-feira. E na sexta-feira tinha sido 30 de abril, véspera do Beltane, a antiga festa do fogo, quando os

topos das colinas da velha Escócia resplandeciam com as chamas de purificação e fertilidade. Momento em que a porta da colina mágica do Craigh na Dun se abriria.

A voz do Abernathy lhe exigia respostas. obrigou-se a concentrar-se. -Não -disse com certa dificuldade-. Não chegou, mas eu ainda estou em

Oxford. Não tenho nem idéia.

O silêncio entre ambos se encheu de temor. Tinha que lhe perguntar. -Doutor Abernathy -disse com cuidado-, é possível que Brianna tenha ido

procurar a sua mãe, ao Claire. me diga, você sabe onde está? Esta vez o silêncio se carregou de precaução. -Ah... não. -A voz chegou lema, cautelosa e vacilante-. Não, temo-me que

não. Não exatamente. Não exatamente. Uma boa forma de dizê-lo. Roger se passou uma mão pela cara.

-me deixe lhe perguntar algo -disse Roger cuidadosamente—. Alguma vez ouviu o nome do Jamie Fraser?

A linha ficou em silêncio. Logo chegou um profundo suspiro.

-Por todos os demônios -disse o doutor Abernathy—. O fez. «Você não o faria?» Isso foi o que lhe havia dito Joe Abernathy como conclusão a seu largo

bate-papo. Pergunta-a flutuava em sua mente enquanto conduzia para o norte, quase sem ver os sinais da estrada pela que passava a toda velocidade.

«Você não o faria?» -Eu o faria -havia dito Abernathy-. Se você não conhecesse seu pai, se

alguma vez o tivesse conhecido e de repente descobre onde está, não quereria

conhecê-lo, descobrir como é realmente? Eu sentiria curiosidade. -Você não entende -foi a resposta do Roger. Esfregando-a frente em um

gesto de frustração-. Não é como se uma pessoa que foi adotada descobre o nome de seu verdadeiro pai e se apresenta na porta dê sua casa.

-Acredito que é exatamente assim. -A voz profunda se tornou fria-. Bri era

adotada, não? Acredito que o teria feito antes de não ter tido esse sentido da lealdade para o Frank.

Roger negava com a cabeça sem ter em conta que Abernathy não podia vê-

lo. -Não é assim, o caminho até a porta da casa. Isso... a forma de ir através.

Olhe, Claire o contou? -Sim, fez-o. -Tinha respondido com tom reflexivo—. Disse que não era como

passar por uma porta giratória.

-Por dizer o de forma suave. O pensar no círculo de pedras do Craigh na Dun fez que Roger se

estremecesse.

-Por dizer o de forma suave. Você sabe como é? -Sim, maldição, sei! Sinto muito, olhe, não é... não posso explicar-lhe nem

acredito que ninguém possa. Essas pedras... é evidente que não todos as ouvem.

228

Mas Claire o fez. Bri também e eu também. E para nós... Claire tinha passado

através das pedras do Craigh na Dun dois anos antes, na festa do Samhaln de primeiro de novembro. Roger se estremeceu e não era pelo frio.

-Então, não todo mundo pode passar, mas você sim pode. -A voz do Abernathy denotava curiosidade e algo que soava a inveja.

-Não sei. Pode que sim. O caso é... —Tratou de controlar seu medo-.

Embora tivesse podido acontecer não há forma de saber se o obteve, nem onde saiu.

-Já vejo. Você não sabe nada sobre o Claire, então? Não sabe se o obteve? -Não. -Não quis afundar mais por telefone com quase um desconhecido-. É

uma mulher e não há muitas referências sobre o que faziam individualmente as

mulheres. Salvo que ferissem algo espetacular, como que as queimassem por bruxas ou as pendurassem por assassinas. Ou as assassinassem.

-Estraga. Mas ela o fez, ao menos, uma vez. Foi... e retornou.

-Sim, fez-o. Mas não sabemos se Brianna pôde chegar até ali, nem se sobreviveu às pedras e saiu na época correta. Tem idéia de quão perigoso podia

chegar a ser o século XVIII? -Não —tinha respondido com secura Abernathy—, Embora acredite que

você se. Mas sei que Claire pareceu adaptar-se bem.

-Sobreviveu. Não é muito para promocionar umas férias. Se tiver sorte retornará com vida.

Os nervos fizeram rir ao Abernathy. -Sim. Bem. O fato é que Bri se foi a algum site e acredito que provavelmente

você tenha razão. Quero dizer que se fosse eu, o teria feito. Você não tivesse ido?

«Você não tivesse ido?» Dobrou à esquerda, passou uma caminhonete e seguiu.

«Eu o teria feito.» A voz do Abernathy ressonava em seus ouvidos. INVERNESS 30, dizia o sinal. Torceu bruscamente para a direita e o

pequeno Morris derrapou sobre o pavimento molhado. A chuva caía com força. «Você não tivesse ido? Tocou o bolso de sua camisa, onde guardava sobre seu coração uma foto da Brianna. Seus dedos tocaram o relicário de sua mãe, que

tinha guardado no último momento para que lhe desse sorte. «Você não tivesse ido?

-Sim, talvez o faria -murmurou-. Mas lhe houvesse isso dito. por que não me disse isso?

31 Retorno ao Inverness

Nem o aroma dos móveis recém lustrados, nem a cera do piso, nem a pintura fresca, nem o ar renovado do vestíbulo, nem nenhuma das provas

aromáticas do ardor doméstico da Fiona podia competir com o delicioso aroma que saía da cozinha.

Roger deixou sua mala na entrada. Era evidente que a velha casa paroquial

tinha tomado uma nova direção. Mas sua transformação em estalagem não tinha podido alterar seu espírito original.

Recebido com entusiasmo pela Fiona, e um pouco menos pelo Ernie,

instalou-se em sua antiga habitação e se dedicou imediatamente a investigar os passos da Brianna. Não era difícil, já que uma mulher de um metro oitenta e com

cabelo avermelhado chamava muito a atenção.

229

Tinha chegado ao Inverness desde o Edimburgo. Disso estava seguro

porque a tinham visto na estação. Também sabia que uma mulher ruiva tinha alugado um carro e tinha pedido que a levassem a campo. O condutor não sabia

onde se dirigiam até que de repente a mulher lhe disse: "Aqui, me deixe aqui!».

-Disse que ia encontrar se com seus amigos -explicou o condutor-. Levava

uma mochila e ia vestida para uma excursão, disso estou seguro. Era um dia muito úmido para caminhar pelo páramo, mas já sabe como são esses turistas

norte americanos Claire tinha deduzido que o passo se abria durante as antigas festas do sol

e do fogo. Tudo fazia pensar que era assim. Claire tinha passado a primeira vez

na festa do Bekane, em primeiro de maio, e a segunda vez no Samhain, em primeiro de novembro. Brianna parecia ter seguido os passos de sua mãe no Beltane.

Bom, ele não esperaria até novembro. Só Deus sabia o que podia lhe acontecer em cinco meses. Beltane e Samhain eram festas do fogo, entretanto,

entre médio havia uma festa do sol. O solstício do verão era a próxima festa. Ainda faltavam quatro semanas

para em 20 de junho. Apertou os dentes ao pensar na espera; sentia a

necessidade de ir-se já, esquecendo o perigo, mas não ajudaria em nada a Brianna se seguia seu cavalheiresco impulso e morria no intento.

Com calma começou a fazer os preparativos. Pelas tardes se distraía de seus pensamentos jogando às damas com a Fiona, indo ao botequim com o Ernie ou, como último recurso, revisando as caixas guardadas na garagem.

E algumas noites até conseguia dormir. -Tem uma foto em seu escritório.

Fiona não o olhou, mas sim seguiu atenta a sua tarefa de recolher os pratos.

-Muitíssimas. -Roger bebeu um gole de chá muito quente-. Quê-la? Sei que há umas de sua avó. Agarra as que queira, só há uma que quero guardar.

Olhou-o um pouco surpreendida.

-Da abuelita? Sim, a papai gostava. Mas refiro a grande. - A grande?

Roger tratou de pensar a qual se referiria Fiona. -É daquela que matou a seu marido e partiu. Fiona franziu a boca.

-Aquela que... Refere ao Gillian Edgars? -Sim —repetiu Fiona com teima-, por que tem uma foto dela? -Bom... alguém me deu isso.

-Quem? Fiona normalmente era insistente mas nunca tão direta. O que seria o que

a incomodava? -A senhora Randall. A doutora Randall, quero dizer. por que? Fiona não respondeu e apertou os lábios com força.

Roger a observou com cautela. -Você conhecia o Gillian Edgars? Fiona não lhe respondeu diretamente.

-estiveste nas pedras do Craigh na Dun. Joyce me disse que seu Albert lhe tinha contado que te viu na quinta-feira, quando ia ao Drumnadrochit.

-Sim. Não é um crime, não?

230

Tratou de brincar, mas Fiona não o seguiu.

-Sabe que é um lugar estranho; todos os círculos o são, e não me diga que foste admirar a paisagem.

-Não lhe diria isso. sentou-se na cadeira e a olhou. -Você a conhece. Claire me disse que a tinha conhecido.

A chispada de curiosidade que tinha sentido para ouvir mencionar 3. Gillian Edgars se conveio em uma labareda de excitação.

-Não posso conhecê-la posto que está morta. Não é assim? Roger a agarrou de um braço. -Está morta?

-É o que todos pensam. A polícia não encontrou rastros dela. -Talvez não procuraram no lugar correto. Tudo o sangue abandonou seu rosto ruborizado. Roger a sustentou com

força. Ela sabia algo. Mas o que era o que sabia? -me diga, Fiona. Por favor, me diga, o que sabe sobre o Gillian Edgars e

essas pedras? liberou-se de sua mão mas não partiu. Permaneceu ali olhando-o

assustada.

-Façamos um trato -disse, esforçando-se por falar com calma para não assustá-la-. Se me disser o que sabe, eu te direi por que a doutora Randall me

deu essa foto e por que fui ao Craigh na Dun. -Tenho que pensá-lo. inclinou-se para agarrar a bandeja com os pratos sujos e saiu pela porta

antes de que pudesse dizer uma palavra para detê-la. Voltou a sentar-se. Tinha sido um bom café da manhã, como todos os da

Fiona, mas agora lhe pesava no estômago. Não devia ser tão ansioso, disse-se.

depois de tudo, o que podia saber Fiona? E se cumpria o trato e lhe contava tudo?

Não sobre o Claire Randall e Gillian, a não ser sobre ele e Brianna. Pensou no Bri. Era como uma rocha atirada no lago de seu coração,

enviando ondas de medo em todas direções.

«Ela está morta.» Fiona havia dito isso do Gillian. «Não é assim?» «Ela está morta?'-, tinha respondido ele, com a foto da mulher vívida em sua memória, os

olhos grandes e verdes e o cabelo flutuando pelo vento quente que saía do rogo, decidida a voar através das portas do tempo. Não, ela não tinha morrido.

Ao menos não então, porque Claire a tinha encontrado. Antes? Depois?

Como podia pensar em todo isso com coerência? Não podia ficar sentado. Saiu ao vestíbulo e se deteve na porta da cozinha.

Fiona estava ao lado da pilha olhando pela janela. Seu rosto estava aceso e nele

se via um gesto de decisão. -Não deveria contá-lo mas o farei, tenho que fazê-lo. A mãe do Bri, a

encantadora doutora Randall, perguntou-me sobre minha avó. Sabia que tinha sido uma... uma druida.

-Druida? Refere às das pedras?

Roger estava assombrado. Claire o havia dito mas nunca acreditou. Fiona deixou escapar um comprido suspiro. -Então sabe. É 1o que pensava.

-Não, não sei. Tudo o que sei é o que Claire, a doutora Randall, disse-me. Ela e seu marido viram umas mulheres dançando de madrugada no círculo de

pedras, no Beltane, e sua avó era uma delas.

231

Fiona sacudiu a cabeça.

-Não só uma delas. A avó era a llamadora. -Vêem e sente-se -disse levando-a até a mesa-. Me conte, o que é uma

llamadora? -A que chama ao cair o sol. -Fiona se sentou sem opor resistência-. É a

canção do sol, canta-se em língua antiga, algumas palavras são parecidas com o

gaélico mas não todas. Primeiro dançamos no círculo, logo a llamadora se detém frente à pedra Y... não é exatamente um canto, são versos que se recitam, como o

faz o ministro na igreja. Terá que começar justo no momento adequado, quando a primeira luz aparece sobre o mar; desta forma, quando se termina, os raios do sol atravessam a pedra.

-Recorda algumas palavras? O estudioso que havia no Roger sentia curiosidade entre tanta confusão. -Sei-as todas -respondeu Fiona com uma cara que lhe recordou à avó-.

Agora eu sou a llamadora. Roger se deu conta de que estava boquiaberto.

-Isso não precisa sabê-lo -disse Fiona com praticamente- e não lhe direi isso. Você quer informação sobre a senhora Edgars.

Fiona tinha conhecido ao Gillian Edgars, era uma das novas bailarinas.

Gillian fazia pergunta às mulheres maiores, ansiosa de aprendê-lo tudo. Queria aprender a canção do sol, mas só a llamadora e sua sucessora podiam conhecê-

la. Fiona fez uma pausa e se olhou as mãos. -É um ritual de mulheres, só de mulheres. Os homens não podem formar

parte e nós não lhes dizemos nada. Nunca. Pôs uma mão sobre as dela. -Faz bem em me dizer isso , Fiona -disse brandamente-. Me conte o resto,

por favor. Tenho que sabê-lo. Olhou-o diretamente aos olhos.

-Sabe onde foi Brianna? -Isso acredito. foi por onde o fez Gillian, não é assim? Fiona continuava

olhando-o sem responder. O irreal da situação o sacudiu. Não podia estar

sentado ali, na cômoda cozinha que conhecia desde sua infância, bebendo chá com uma taça que tinha grafite a cara da rainha e discutindo sobre pedras

sagradas e viaje pelo tempo com a Fiona. Com a Fiona, cujos interesses se limitavam ao Ernie e à economia doméstica.

Ou isso era o que ele acreditava.

-Tenho que ir atrás dela, Fiona... se puder. Poderei? Fiona sacudiu a cabeça com evidente medo. -Não lhe posso dizer isso Se só as mulheres conhecerem o ritual, talvez só

elas podem fazê-lo. Isso era o que lhe preocupava, ou uma das coisas às que temia.

-Só há uma forma de descobri-lo, não? -disse, tratando de parecer despreocupado.

-Eu tenho seu caderno -deixou escapar Fiona.

-O que- como? o do Gillian? Escreveu algo? -Sim, fez-o. Há um site onde... -O olhou de esguelha e se umedeceu os

lábios-. Nós deixamos nossas coisas ali, preparadas de antemão. Ela deixou seu

caderno Y... e eu o agarrei, depois... depois de que encontrassem morto no circulo ao marido do Gillian, pensou

Roger que queria dizer Fiona.

232

-Sabia que a polícia o queria -continuou Fiona-, mas... bom, não queria

entregar-lhe a eles. Entretanto, pensava: e se tiver algo que ver com o assassinato? Não podia guardá-lo se era importante Y... -Olhou ao Roger,

rogando que a compreendesse-. Era seu caderno, o que ela tinha escrito, tinha-o deixado naquele lugar,..

-Que era secreto -terminou Roger.

Fiona assentiu e respirou profundamente. -Assim que o li.

-Por isso sabe como se foi -disse brandamente Roger. Fiona se estremeceu e lhe dirigiu um sorriso. -O caderno não teria ajudado à polícia, pode estar seguro.

-Pode me ajudar a mim? -Isso espero -disse com simplicidade; abrindo o aparador tirou um caderno

envolto em tecido verde.

32

Grimoire Este é o grimoire da bruxa Geillis. É um nome de bruxa e tomei para mim;

com o que nasci não importa, só o que vou fazer comigo, só o que vou chegar a ser.

O que é isso? Não posso dizê-lo, somente ao fazê-lo descobrirei o que tenho que fazer. O meu é o caminho do poder. O poder absoluto corrompe absolutamente, sim, como? Bom, a presunção de que o poder pode ser absoluto,

porque nunca o é. Porque somos mortais, você e eu. E entretanto, dentro dos limites da carne muitas costure são possíveis. Se essas coisas forem possíveis além desses limites, esse é o reino de outros, não o meu. E essa é a diferença

entre eles e eu, esses outros que foram antes para explorar o Reino Negro, aqueles que procuram poder na magia e invocando aos demônios.

Eu vou com o corpo, não com a alma. E ao negar minha alma, não lhe dou poder a nenhuma força, só às que posso controlar. Não peço favores nem a deus nem ao diabo, renego de ambos. Porque se não haver alma, nem morte que

considerar, então nem deus nem o demônio mandam, suas batalhas não têm conseqüências para alguém que vive somente na carne,

Nós decidimos em um momento e, entretanto, é para sempre. Só uma vida nos é dada e, entretanto, seus anos podem viver-se em muitas épocas, em quantas?

Se quer exercer o poder, deve escolher sua época e seu lugar, porque somente quando a sombra da pedra cai a seus pés, a porta do destino se abre realmente.

-Um caso de loucura -murmurou Roger-. E um estilo de prosa horrível. A cozinha estava vazia e falava para dar-se confiança. Mas isso não lhe

ajudava. Passou as páginas com cuidado seguindo as linhas de letra redonda e clara. Havia uma seção titulada: «Festas do sol e festas do fogo».

Em meio do que era uma evidente loucura havia método e organização,

uma estranha mescla de fria observação e vôo poético. A parte central se titulava «Casos estudados», e se a primeira seção lhe tinha posto a pele de galinha, esta lhe gelava o sangue.

Era uma lista cuidadosa, com datas e lugares, dos corpos encontrados na proximidade dos círculos de pedras.

233

A aparência de cada um estava cotada; debaixo, umas poucas palavras

especulavam sobre as possíveis causa. 14 de agosto de 1931. Sul-o-Mere, Grã-Bretanha. Corpo de um homem sem

identificar. Idade: 40 ânus aprox. Encontrado perto de um círculo de pedras. Sem causa evidente de morte, queimaduras em braços e pernas. Descrição da roupa; «farrapos». Não há foto.

Causas possíveis do fracasso; r) homem, í) data equivocada, 54 dias depois da festa do sol, 1de abril de 1950. Castierigg, Escócia. Corpo de mulher, sem

identificar. Idade: 15 anos. Encontrada fora do círculo. Causas possíveis do fracasso: i) data equivocada, 2) falta de preparação. 1 de maio de 1963. Tomnahurich, Escócia. Corpo de mulher, identificado

como Mary Walker Willis. Morte devida a ataque cardíaco, ruptura da aorta. Relatório sobre o “estranho” estado de suas roupas.

Falha: esta pessoa sabia o que estava fazendo, mas não o conseguiu.

Devido talvez à omissão de um adequado sacrifício.

A lista continuava, aterrando ao Roger com cada nome. Tinha encontrado vinte e dois em um período que ia desde meios de 1600 em meados de 1900 em diversos lugares de Escócia, Inglaterra e Grã-Bretanha, todos eles lugares com

pedras pré-históricas. Alguns eram acidentes, pensou Roger, gente que caminhava por ali, que não sabia nada.

Mas uns poucos, dois ou três, pareciam saber algo, apreciava-se certa preparação em suas roupas, talvez tinham acontecido antes e o tentavam de novo, mas então não lhes funcionou. Seu estômago se curvou como uma fria

serpente. Claire tinha razão: não era como passar por uma porta giratória. Logo estavam os desaparecimentos... estavam em uma seção à parte, com

idade, sexo, data e as circunstâncias em que se produziram. Umas cruzes

determinavam a quantidade de gente que tinha desaparecido em cada festa. Voltou a página e se deteve como se lhe tivessem chutado o estômago.

1 de maio de 1945- Craigh na Dun, Inverness, Escócia. Claire Randall, 27 ânus, dona-de-casa. Vista por última vez pela manhã cedo, disse que ia visitar o círculo de pedras em busca de uma planta especial; não retornou ao anoitecer. O

carro estava estacionado ao pé da enche. Não havia rastros no círculo. Deu a volta à página cuidadosamente, como se esperasse que estalasse em

sua mão. Assim Claire, sem dar-se conta, tinha dado provas ao Gillian para seu experimento. Teria encontrado os informe da volta do Claire, três anos depois?

Não, evidentemente não, decidiu Roger depois de revisar as outras páginas;

ou, se o tinha feito, não o tinha escrito. A última seção se titulava "Técnicas e preparações». E começava assim: Algo jaz aqui mais antigo que o homem, as pedras guardam seu poder. Os

antigos conjuros falam das linhas da terra" e do poder que flui através delas. O propósito das pedras tem que ver com essas linhas, estou segura. Mas as pedras

desviam as linhas de poder ou som só assinale? Começou a ler cada vez mais rápido até que decidiu fechar o caderno. Leria

o resto mais tarde. Agora tinha que sair a tomar o ar. Não era estranho que o

caderno tivesse turbado a Fiona. Caminhou rapidamente rua abaixo, dirigindo-se para o Não sem preocupar-

se da chuva. Era tarde, soava o sino de uma igreja e o tráfico de caminhantes

cruzando as pontes para os botequins era intenso. Mas por cima do sino, pisada-las e as vozes, ouvia as últimas palavras que tinha lido como se se dirigiram

diretamente a ele.

234

Devo te beijar, menino? Devo te beijar, homem? Sente os dentes debaixo de

meus lábios quando o fizer. Posso te matar tão facilmente como te abraço. O sabor do poder é o sabor do sangue, ferro em minha boca, ferro em meu coração.

É necessário o sacrifício. 33

Véspera do solstício do verão 20 de junho de 1971 Em Escócia, na véspera do solstício do verão, o sol está no céu com a lua.

Solstício do verão, a festa da Litha, Alban Eilir. Era perto de meia-noite e a luz era tênue e leitosa, mas era luz.

Podia sentir as pedras muito antes das ver. Claire e Geillis tinham razão,

pensou, a data era importante. Em suas visitas anteriores lhe tinham parecido mágicas mas silenciosas.

Agora podia as ouvir, não com os ouvidos, a não ser com a pele; era um zumbido baixo como o das gaitas de fole.

Chegaram ao outro lado da crista da colina e se detiveram uns nove metros

do círculo. Para baixo havia um vale escuro e misterioso baixo a lua ascendente. Ouviu o ofego de uma respiração e lhe ocorreu que Fiona podia estar realmente

atemorizada. -Olhe, não é necessário que fique -disse-lhe-. Se tiver medo deveria ir, eu

estarei bem.

-Não tenho medo por mim, tolo -murmurou-. Vamos. Sentiu frio em que pese a sua roupa de casaco. Seu traje parecia

súbitamente ridículo: casaca de abas largas, meias tecidas, colete de lã e calções

fazendo jogo. Uma peça de teatro na faculdade, tinha explicado à alfaiate Fiona entrou primeiro no círculo; não queria que a observasse. Obediente

ficou de costas, deixando que ela fizesse o que tinha que fazer. Levava uma bolsa de plástico, certamente com objetos para a cerimônia. Tinha-lhe perguntado o que continha e a resposta foi que se ocupasse de seus próprios assuntos. Fiona

estava quase tão nervosa como ele. O constante zumbido lhe incomodava. Não era em seus ouvidos, a não ser

em todo seu corpo. Esperava que fora assim, que só os que ouviam as pedras pudessem passar através delas. Nunca se perdoaria que algo acontecesse a Fiona; embora lhe havia dito que tinha estado muitíssimas vezes no círculo

durante as festas, sem que nada lhe ocorresse. Olhou por cima de seu ombro e viu uma tênue chama na base da grande pedra.

Fiona cantava com voz suave e aguda. Não podia entender as palavras.

Todas as outras viajantas que conhecia eram mulheres. Funcionaria com ele? Acreditava que sim. Se a habilidade era genética, por que não? Claire tinha

viajado e também Brianna. Brianna era a filha do Claire. E ele era o descendente da outra viajante do

tempo que conhecia, Geillis, a bruxa.

arranhou-se violentamente o peito para aliviar a irritação e sentiu o tato do relicário de sua mãe, que levava para que lhe desse sorte. Tênia suas dúvidas sobre as especulações do Geillis: não pensava tentá-lo com sangue- Fiona

tentaria substitui-la por fogo, mas depois de cotovelo, as pedras preciosas não fariam mal, e se ajudavam... Não poderia dar-se pressa Fiona?

235

Para distrairse tocou o bolso do peito onde guardava o relicário. Se podia...

se funcionava... Viu o rosto do Jerry MacKenzie em sua mente. Brianna tinha ido encontrar a seu pai, poderia fazer ele o mesmo? Fiona!

Aquilo ficava pior, lhe tocavam castanholas os dentes e a pele parecia lhe arder. Então Fiona se aproximou, agarrou-lhe a mão e lhe disse algo enquanto o conduzia dentro do círculo. Não podia ouvi-la pelo ruído, cada vez mais forte, que

estava dentro de seu corpo. Apertou os dentes e olhou o rosto apavorado da Fiona; inclinou-se e a

beijou nos lábios. -Não o diga ao Ernie -disse. deu-se a volta e caminhou através da greta da pedra.

Um leve aroma de queimado lhe chegou com o vento do verão. Voltou a

cabeça tratando de situá-lo. Ali. Uma chama na colina próxima, uma rosa de fogo

do solstício do verão. Uma vaga sensação de que algo ia mal interrompeu sua paz. De repente

sentia seu corpo e lhe doía. -Roger! A voz estalou em seu ouvido e se sacudiu. Uma dor percorreu seu peito e se

tocou com a mão. Sentiu umidade e pensou que estava sangrando. -Já despertaste, por fim! É um bom moço. Espera, devagar.

Piscou confundido e a sombra se converteu na silhueta da cabeça da Fiona, escura contra o céu.

Seu corpo havia tornado para vingar-se. sentia-se terrivelmente doente e

com um espantoso aroma de café e a carne queimada. Tratou de incorporar-se mas se derrubou sobre a erva. Estava úmida e isso lhe resultou agradável em seu rosto chamuscado.

As mãos da Fiona lhe secavam a cara e a boca. -Está bem? -disse uma vez mais.

Mas esta vez teve forças para responder. -Fui-susurró-. Estou bem. Porquê...? -Não sei. Desapareceu, já não estava; logo houve um estalo de fogo e

apareceu atirado dentro do círculo com o casaco ardendo. Tive que apagá-lo com o recipiente térmico de café.

Desde aí o aroma de café e a umidade que sentia no peito. Havia uma queimadura no tecido molhado de sua casaca. O relicário de sua mãe se derreteu.

-O que aconteceu, Roger?

Fiona tinha o rosto manchado de lágrimas. Quanto tempo tinha estado inconsciente?

-Eu... -ia começar a dizer que não sabia, mas se interrompeu—. me Deixe

pensar um pouco, quer? Pôs a cabeça sobre os joelhos, respirando o aroma de erva úmida e roupa

chamuscada. Levantou a cabeça e respirou profundamente. -Estava pensando em meu pai -disse—. Assim que passei através da pedra

estava pensando se poderia encontrá-lo e eu... fiz-o. -Fez-o? Seu pai? Era um fantasma, isso quer dizer? Sentiu, mais que viu, o som de seus dedos fazendo chifres contra o diabo.

-Não. Não exatamente. Não... não posso explicá-lo, Fiona. Mas o encontrei. Conheci-o. —A sensação de paz ainda permanecia nele-. Então houve uma

espécie de explosão. Algo me golpeou aqui. -Seus dedos tocaram a queimadura de

236

seu peito-- E uma força me empurrou... fora; e isso é tudo o que sei, até que

despertei. Obrigado, Fee, salvou-me de me queimar vivo. A moça fez um gesto lhe tirando importância e se sentou em cuclillas,

pensativa. -Estava pensando, Roger, o que ela dizia no caderno sobre ter certo amparo

se a gente levava alguma pedra preciosa. Havia pedras no relicário de sua mãe,

não? -Pôde ouvir que Fiona tragava com dificuldade-. Talvez... se não tivesse tido

isso... possivelmente não estaria vivo. Ela falava do homem que não tinha amparo e se queimou e você te queimou onde estava o relicário.

-Sim, pode ser.

Roger começava a recuperar-se. Olhou a Fiona com curiosidade. -Sempre diz «ela». por que alguma vez diz seu nome? -A gente não nomeia a alguém a menos que queira que vinga-respondió—.

Tem que sabê-lo. Seu pai era ministro. -Agora que o menciona -disse, tratando de brincar sem consegui-lo-, eu não

pronunciava o nome de meu pai, mas talvez... a doutora Randall disse que pensou em seu marido quando retornou.

Fiona assentiu com o rosto carrancudo.

-Já quase é de dia! Tenho que ir! -Ir ? -Fiona abriu os olhos com horror- vais tentar o outra vez?

-Farei-o, tenho que ir. ficou em pé. Tremiam-lhe os joelhos mas podia caminhar. -Está louco, Rog? Morrerá, estou segura!

Sacudiu a cabeça com o olhar cobre na pedra grande. -Não -disse e confiou em que isso fora verdade-. Não, sei o que saiu mau.

Não acontecerá outra vez.

-Agora não pode, seguro que não! -Sim, poderei. -Sorriu-lhe e lhe agarrou a mão, pequena e fria-. Espero que

Ernie não tenha retornado ou fará que a polícia te busque; será melhor que volte. encolheu-se de ombros com impaciência. -Está pescando com sua primo Neil; não retornará até na terça-feira. O que

quer dizer com que não acontecerá de novo, por que não? Isso era o mais difícil de explicar mas o devia.

-Quando te disse que pensava em meu pai estava pensando no pouco que conhecia dele, as fotos com uniforme ou com minha mãe. O caso é... que fui a sua época. Dá-te conta?

Olhou-a e viu que piscava lentamente compreendendo. -Não encontrou só a seu pai? -perguntou brandamente. Negou com a cabeça sem poder falar. Não havia imagens para transmitir o

que tinha sido encontrar-se consigo mesmo. -Tenho que ir -repetiu devagar. Apertou-lhe a mão-. Fiona, não sabe como

lhe agradeço isso. Contemplou-o por um momento com os olhos úmidos. Logo se soltou e tirando o anel de compromisso o colocou na mão.

-É uma pedra pequena, mas é um diamante de verdade -disse-. Talvez te ajude.

-Não me posso levar isso

Quis devolver-lhe mas Fiona deu um passo atrás e escondeu as mãos detrás das costas-Não se preocupe, está assegurado —disse-, Ernie é muito bom

237

com os seguros. -Tratou de lhe sorrir, embora as lágrimas corriam por suas

bochechas-. Eu também. Não tinham nada mais que dizer-se. Guardou o anel no bolso de sua

jaqueta e olhou de esguelha a grande pedra escura. Podia ouvir o zumbido que agora parecia como o pulso de seu sangue, como se ressonasse em seu interior.

Não necessitavam palavras. Tocou-lhe a cara como despedida e caminhou

para a pedra, vacilando ligeiramente. Entrou na greta. Fiona não ouviu nada, mas o ar claro do dia do solstício do verão se

estremeceu com o eco de um nome. Fiona esperou comprido momento, até que o sol chegou à ponta da pedra. —Sun leat, a charaid chóir -disse brandamente—. Sorte, querido amigo.

Baixou lentamente pela colina e não olhou para trás. 34

Lallybroch Escócia, junho de 1769 O nome do alazão era Bruto, mas por sorte não casava com seu caráter.

Era forte e maciço, e parecia oferecer segurança, embora só fora por resignação do animal.

Brianna soltou as rédeas e o deixou descansar depois da ascensão. Contemplou de acima o pequeno vale e a granja grafite de branco, com as janelas e chaminés de pedra cinza.

Nunca a tinha visto antes mas estava segura de que era Lallybroch. Tinha ouvido muitas vezes as descrições de sua mãe sobre aquele lugar. Por outra parte, era a única casa importante em muitos quilômetros à redonda; não tinha

visto nada parecido nos últimos três dias, salvo pequenas casas de campo abandonadas e em rumas.

Havia alguém em casa posto que saía fumaça da chaminé. Era perto de meio-dia e talvez todos estariam comendo dentro.

Tragou com a boca seca pela excitação e o receio. Quem haveria? A quem

veria primeiro? Ao Ian? Ao Jenny? Como se tomariam sua aparição? E o que lhes ia contar?

Tinha decidido lhes dizer a verdade no referente a quem era ela e o que estava fazendo ali. Sua mãe lhe havia dito que se parecia muito a seu pai e esperava que isso a ajudasse a convencê-los. Os highlanders que tinha conhecido

até então se mostraram cautelosos ante seu aspecto e sua forma de falar. Talvez os Murray não acreditassem. Então recordou e se tocou o bolso de sua casaca. Se não acreditavam utilizaria a única prova que possuía.

Um súbito pensamento a fez estremecer-se. Estariam Jamie Fraser e sua mãe ali? Essa idéia não lhe tinha ocorrido antes, convencida como estava de que

se foram a América do Norte, mas não tinha por que ser assim. Quão único sabia era que estariam na América do Norte em 1776, mas não onde estavam naquele momento.

Bruto levantou a cabeça e relinchou. Chegou uma resposta por detrás e Brianna agarrou as rédeas enquanto o cavalo se dava a volta. Bruto voltou a cabeça com interesse para observar a um formoso baio sobre o que ia um

cavaleiro alto e vestido de marrom. O homem deteve suas arreios ao vê-los e logo a esporeou para aproximar-

se. Era jovem e tinha a cara moréia a pesar do chapéu. Ao aproximar-se e dar-se

238

conta de que estava ante uma mulher, em seu rosto apareceu uma expressão de

surpresa que não lhe impediu de tirar o chapéu e saudar. Não era exatamente uma boa moço, mas tinha um rosto forte e agradável, com os olhos castanhos e o

cabelo escuro e encaracolado. -Senhora -disse-, posso ajudá-la? Brianna se tirou o chapéu e sorriu.

-Isso espero. Isto é Lallybroch? Assentiu assombrado para ouvir seu estranho acento.

-Sim, assim é. Tem negócios por aqui? -Sim -disse com firmeza-. Tenho-os. —estirou-se e respirou profundamente-

. Sou Brianna Fraser.

Resultava-lhe estranho dizê-lo em voz alta, pois nunca tinha usado antes o sobrenome. Mas extrañamente lhe parecia o correto.

-Para servi-la, senhora. Jamie Fraser Murray -acrescentou formalmente

com uma inclinação-, do Broch Tuarach. -O jovem Jaime! -exclamou a mulher, sobressaltando-o por sua ansiedade-.

Você é o jovem Jaime! -Minha família me chama assim -disse ceremoniosamente para dar a

entender que não gostava que o fizesse uma desconhecida vestida com roupas

inadequadas. -Me alegro de te conhecer -disse e lhe estendeu a mão-. Sou sua prima. -

Olhou com incredulidade a mão estendida e o rosto da jovem-. Jamie Fraser é meu pai -acrescentou.

Observou-a de cima abaixo até que um amplo sorriso apareceu lentamente

em sua cara. -Vá se o é! -disse e te estreitou a mão com força-. É igual a ele. -Riu e o

humor transformou sua cara-. Minha mãe vai se ficar de pedra!.

A grande roseira silvestre que adornava a porta tinha folhas novas e

centenas de pequenos casulos verdes que começavam a brotar. Enquanto seguia ao jovem Jamie, Brianna levantou a vista e olhou o dintel. Na gasta madeira se gravou «Fraser, 1716». Se sentiu turvada ao vê-lo e ficou olhando-o com a mão

apoiada na sólida madeira. -Está bem, prima?

O jovem Jamie se voltou para olhá-la. -Sim. apressou-se a segui-lo, baixando, embora não era necessário, a cabeça para

entrar. -Salvo mamãe e a pequena Kitty, somos todos altos -explicou com um

sorriso ao vê-la agachar a cabeça-. Meu avô, e teu também, construiu esta casa

para sua esposa, que era uma mulher muito alta. É a única casa dos Highlands onde pode passar pela porta sem baixar a cabeça.

«... teu também.» Essas palavras a fizeram sentir um súbito calor face à fria entrada. Frank Randall, igual a Claire, era filho único. Tinha vindo a procurar a seu pai sem dar-se conta de que encontraria a toda uma família.

Uma grande família. abriu-se uma porta e quatro meninos entraram correndo; depois deles ia uma moça, alta e com o cabelo castanho e encaracolado.

-|Ah corram, corram, pescaditos! -gritou, estendendo as mãos como pinzas— O malvado caranguejo lhes comerá!

239

Os meninos passaram correndo entre risadas e gritos e olhando por cima

do ombro com aterrorizado deleite. Um deles, de uns quatro anos, viu a Brianna e ao jovem jamie na entrada e trocou de direção gritando.

-Papai! Papai! Papai! -Vamos, pequeno Matthew -disse, levantando-o em seus braços-. Que

classe de maneiras te ensina sua tia Janet? O que pensará sua prima ao verte

correndo como uma galinha louca? O menino riu e observou a Brianna.

-Papai! É uma senhora? -É obvio, já te disse que era sua prima. -Mas leva calções! As senhoras não usam calções,

Matthew a contemplou assombrado. A jovem parecia opinar o mesmo mas o interrompeu com firmeza agarrando

ao menino.

-Estou segura de que terá boas razões para levá-los, mas não é de boa educação fazer notar estas coisas às pessoas. Agora vá lavar te.

-Onde está a avó, Matt? -perguntou o pai. -Na sala de atrás com o avô. vieram uma senhora e um homem -respondeu

o menino com prontidão-. Há duas panelas de café, uma bandeja de pãozinhos e

toda uma torta Dundee, mamãe diz que esperam que lhes dê de comer, mas maldição...

-E se tampou a boca-. De maneira nenhuma pensa lhes dar o bolo de groselhas.

O jovem Jamie olhou com seriedade a seu filho e interrogativamente a sua

irmã Janet. -Uma senhora e um homem? Janet fez uma careta de desgosto.

-A Grizzler e seu irmão. O jovem Jamie olhou de esguelha a Brianna.

-Imagino que mamãe estará encantada de ter uma desculpa para deixá-los. -Fez um gesto ao Matthew-. vá procurar a sua avó, moço. lhe diga que há uma visita que gostará de ver. E cuida sua linguagem, né?

O jovem Jamie se voltou fazia Brianna sonriendo. -É meu primogênito. E ela -assinalou a jovem- é minha irmã Janet Murray.

Janet... a senhorita Brianna Fraser. Brianna não sabia se lhe dar a mão ou não, assim que se contentou com

um sorriso e uma inclinação de cabeça.

-Estou muito contente de te conhecer -disse afetuosamente. Janet a observou com assombro. Brianna não sabia se era pelo acento ou

pelo que havia dito.

-Nunca adivinhará quem é. Jen -disse—. Nem em mil anos! Janet arqueou uma sobrancelha e olhou a Brianna com os olhos

entreabridos. -Prima -murmurou olhando-a de cima abaixo-. Tem o ar dos MacKenzie,

isso sem dúvida. Mas disse que era uma Fraser.,. -Seus olhos se abriram mais-,

Ah, não pode ser! –disse a Brianna com um amplo sorriso que iluminava sua cara-. Não pode ser!

A risada alegre de seu irmão foi interrompida pelo ruído de uma porta e de

uns passos ligeiros. -Se?. Mattie disse que tínhamos uma convidada-la voz se deteve e Brianna

levantou a vista com o coração acelerado.

240

Jenny Murray era pequena e magra. Contemplou a Brianna com a boca

aberta. -Senhor, senhor-disse brandamente.

Brianna sorriu saudando sua tia, a amiga de sua mãe, a única e querida irmã de seu pai. «Por favor, por favor, que goste, que se alegre de lombriga", desejou súbitamente.

-Mamãe, posso ter a honra de te apresentar...? -Jamie Fraser! Sabia que havia tornado, disse-lhe isso, Jenny Murray!

A voz, com tons agudos de acusação, vinha do fundo do corredor. Assombrada, Brianna viu uma mulher que surgia das sombras avançando com indignação.

-Amyas Kettrick me disse que tinha visto seu irmão cavalgando perto do Balriggan! Mas não, não me foste dizer isso, Jenny, disse-me que era tola, que Amyas é cego e que Jamie estava na América! Todos mentem para proteger ao

malvado covarde! Hobart! -gritou-, Vêem aqui imediatamente! -Tranqüila! -disse Jenny com impaciência-. Você é tola, Laoghaire! -Agarrou

à mulher do braço e a obrigou a dá-la volta—, Não pode ver a diferença entre um homem crescido e uma moça com calções?

-Uma moça?

A mulher olhou surpreendida a Brianna. -Jesus, María e José! Quem é você, em nome de Deus?

Brianna respirou profundamente, olhando a uma e a outra, e tratando de manter a firmeza da voz enquanto respondia.

-Meu nome é Brianna. Sou filha do Jamie Fraser.

Laoghaire abria e fechava a boca como se se afogasse. Jenny deu um passo para agarrar as mãos da Brianna. Suas bochechas se ruborizaram, lhe dando um aspecto juvenil.

-Do Jamie? De verdade é filha do Jamie? Oprimiu-lhe as mãos entre as suas.

-É o que diz minha mãe. -Isso diz, né? -Laoghaire tinha recuperado a voz e os brios-. Se Jamie

Fraser for seu pai, quem é sua mãe?

Brianna ficou rígida. -Sua esposa. Quem ia ser?

A mulher lançou uma gargalhada. Não foi uma risada alegre. -Quem ia ser? -disse burlando-se-. E quem é essa esposa? Brianna sentiu como empalidecia e de repente compreendeu. Idiota,

pensou, em vinte anos pôde voltar-se para casar. Desejava correr em busca de sua mãe.

-Vêem te sentar na sala, quer?

A voz do jovem Jamie era firme, como o braço que a guiava através do vestíbulo para uma das portas. Não distinguia as vozes entre a confusão de

acusações e explicações. Viu um homenzinho com cara de coelho junto a outro muito mais alto que

ficou em pé, com rosto de preocupação, quando entraram na sala.

Foi este quem impôs ordem. -A filha do Jamie? -Olhou-a com interesse, mas menos surpreso que

outros—, Qual é seu nome, a leannan?

-Brianna. Estava muito turvada para lhe sorrir.

241

-Brianna. -Fez-lhe um gesto para que se sentasse-. Sou seu tio Ian, moça.

Bem-vinda. -Observou divertido sua roupa-. dormiste à intempérie? tiveste que andar bastante para nos encontrar, sobrinha.

-Diz que é sua sobrinha -disse Laoghaire-. veio para ver o que pode conseguir.

-Eu que você não diria isso, Laoghaire -disse Ian-. Ou vós não tentastes me

tirar quinhentas libras? -Esse dinheiro é meu -disse furiosa— e sabe. Você foi testemunha e

assinou aquele papel. -Fiz-o -disse com paciência—. E terá seu dinheiro logo que Jamie possa

mandá-lo. Prometeu-o e é um homem de honra. Mas...

-De honra, né? É honorável cometer bigamia? Abandonar mulher e filhos? me roubar a minha filha para arruinar sua vida? Honorável! —Olhou a Brianna com os olhos brilhantes e em tom ameaçador lhe disse-: Perguntarei-te outra vez

o nome de sua mãe. -Não importa... —começou Jenny, mas Laoghaire a interrompeu.

-Ah, claro que importa! Se a teve com uma prostituta na Inglaterra é uma coisa, mas se for...

Fazendo ornamento de uma tranqüilidade que não sentia, Brianna colocou

a mão no bolso e tirou seu conteúdo. -O nome de minha mãe é Claire -disse e deixou o colar de pérolas sobre a

mesa. -Ai, senhor, senhor... -disse brandamente Jenny e olhou a Brianna com os

olhos cheios de lágrimas-. Estou tão contente de verte... sobrinha.

-Onde está minha mãe? Sabem? Brianna passou a vista por todos eles, com o coração lhe pulsando

ferozmente. Ian e Jenny trocaram um rápido olhar, logo Ian ficou em pé, equilibrando-

se sobre a perna de madeira. -Está com seu pai -disse, tocando o braço da Brianna-. Não se preocupe,

moça, os dois estão bem.

-Muito obrigado. Tratou de sorrir ao Ian. «a salvo e juntos», pensou com silenciosa gratidão.

-São minhas, tenho direito. Laoghaire assinalou as pérolas. -Não, não o são! -disse Jenny com um broto de fúria-. Eram de minha mãe,

meu pai as deu ao Jamie para sua esposa Y... -E sua esposa sou eu -interrompeu Laoghaire, olhando a Brianna com

frieza-. Eu sou sua esposa -repetiu-. Casei-me com ele de boa fé e prometeu me

pagar pelo mal que me fez. -Levantou o queixo e olhou a Brianna-. Se realmente for sua filha, suas dívidas são as tuas. Diga-lhe Hobart!

-Ah, vamos, irmã -disse, tratando de acalmá-la-. Penso que não... -Não, você nunca pensa. -Estirou uma mão para as pérolas-. São minhas! Por puro reflexo, Brianna fechou a mão sobre elas.

-Um momento -disse Brianna com uma calma e uma frieza que a surpreenderam a ela mesma-. Não sei quem é você e não sei o que aconteceu você e meu pai, mas...

-Sou Laoghaire MacKenzie, e o bastardo de seu pai se casou comigo faz quatro anos, baixo falsas promessas, devo acrescentar.

-Sim? Mas minha mãe agora está com ele...

242

-Disse que não podia viver na mesma casa comigo, nem compartilhar a

cama. Assim que se foi e retornou com a bruxa. Foi ela. Ela o enfeitiçou. Desde dia que chegou ao Leoch fez invisível. Jamie não podia lombriga.

Brianna sentiu um calafrio. -Então ela desapareceu. Disseram que a tinham matado no levantamento.

Ele conseguiu a liberdade e retornou da Inglaterra. Mas não era certo: nem ela

estava morta, nem ele estava livre. Eu sabia, não se pode matar a uma bruxa com aço, terá que queimá-la.

Os olhos do Laoghaire se voltaram para o Jenny. -Você a viu em minhas bodas. Uma aparição. Estava entre os dois. Mais

tarde soube que a tinha visto e não me tinha querido dizer isso Ela é a filha da

bruxa! E vós sabem! Deveram queimar à mãe no Cranesmuir para salvar ao Jamie Fraser do feitiço. Vos pinjente que tomassem cuidado com o que trazia para casa!

-Sujeira -disse Brianna em voz alta dirigindo-se ao Laoghaire ante a surpresa de todos-. Se terá que proteger-se de alguém é de você, maldita

assassina! Laoghaire se tinha ficado com a boca aberta e era incapaz de falar. -Não o contaste tudo sobre o Cranesmuir, verdade?-continuou Brianna-.

Minha mãe deveu havê-lo feito, mas pensou que foi muito jovem para saber o que fazia. Mas não era assim.

-O que...?-disse Jenny com um fio de voz. -Tratou de matar a minha mãe. -Brianna quase não podia controlar sua

voz. Fez-o, não? Disse a minha mãe que Geillis Duncan estava doente e a

chamava. Soube que iria posto que sempre ia ver os doentes. Sabia que foram prender ao Geillis Duncan por bruxa, e se minha mãe estava ali também a levariam a ela para queimá-la. Desse modo poderia o ter a ele, ao Jamie Fraser.

A habitação estava em silêncio quando Hobart se aproximou e agarrou a sua irmã pelo braço.

-Vamos, a, leannan -disse com calma—. Te levarei a casa. Saudou o Ian, quem lhe fez um gesto que indicava simpatia e lástima. -Se for a filha do Jamie Fraser -disse Laoghaire com voz fria e clara-, e deve

sê-lo por seu aspecto, inteira-se disto. Seu pai é um mentiroso e um alcoviteiro, um estelionatário e um descarado.

Brianna sentiu que a fúria se evaporava deixando-a sem forças. -Ele seguiu amando-a -sussurrou, mais para si mesmo que para outros.

Nunca a esqueceu.

-É obvio que não a esqueceu. -Abriu os olhos e se encontrou com o rosto do Ian e sua expressão de bondade—. E nós tampouco -disse, enquanto apoiava uma de suas grandes mãos sobre as dela.

—Não quer um pouco mais, prima Brianna?

Joan, a esposa do jovem Jamie, sorria-lhe do outro lado da mesa. -Não, muito obrigado. Não posso comer nada mais –disse Brianna

sonriendo-. Estou enche!

Isso fez rir ao Matthew e a seu hermanito Henry até que um olhar de sua avó os fez calar. Brianna notou que havia uma alegria especial. Não se deu conta da causa até que Ian fez um comentário.

-Não acreditávamos que Jamie chegasse a ter um filho próprio. -O sorriso do Ian era o bastante cálida para derreter o gelo-, Chegou a

conhecê-lo?

243

Negou com a cabeça, sonriendo em que pese a ter a boca enche. Isso era,

pensou, estavam encantados com ela, e não por ela mesma, mas sim pelo Jamie. Queriam-no e se alegravam por ele.

Ao dar-se conta lhe encheram os olhos de lágrimas. -Escreveu a tio Jamie para lhe avisar de que vinha a nos ver?-perguntou o

jovem Jamie.

-Não -respondeu com a voz rouca pela emoção-. Não sei onde está. -Certo. Havia-o dito e o tinha esquecido.

-Sabem onde estão ele e minha mãe? Brianna se inclinou com ansiedade. Jenny sorriu e se levantou da mesa. -Sim, mais ou menos. Quando terminar vêem comigo e te ensinarei sua

última carta. Brianna se levantou para seguir ao Jenny, mas se deteve bruscamente

perto da porta. Tinha visto os quadros das paredes da sala, mas não os tinha

cuidadoso com atenção. Em um deles estavam os dois meninos, o menor era Jamie. No outro havia uma mulher.

Brianna Ofegou e sentiu que lhe punha a pele de galinha. -O parecido é notável. Jenny olhava a Brianna e ao retrato com uma mescla de orgulho e temor.

-Notável —repetiu Brianna, tragando saliva. -Agora sabe por que lhe reconhecemos imediatamente -continuou sua tia.

-Sim, sei. -Era minha mãe, sabe? Sua avó, Ellen MacKenzie. -Fui-dijo Brianna-. Sei.

Duzentos anos depois tinha estado frente ao mesmo quadro na Galeria Nacional de Retratos, negando furiosamente a verdade que lhe mostrava.

Em seu pescoço se encontrava o colar de pérolas, com as argolas de ouro.

-Quem o pintou? -perguntou Brianna, embora não necessitava a resposta. O cartão do museu dizia “autor desconhecido”.

-Minha mãe -respondeu Jenny com orgulho-. Tinha grande habilidade para o desenho e a pintura. Muitas vezes desejei ter esse dom.

«É dela de quem o herdei», pensou Brianna com um leve estremecimento.

Frank Randall brincava dizendo que não podia desenhar uma linha reta. E Claire nem sequer isso. Mas Brianna tinha o dom das linhas e as curvas, das

luzes e as sombras; agora conhecia a origem desse dom. Que mais terei herdado?", perguntou-se.

-Ned Gowan me trouxe isso do Leoch -disse Jenny, tocando o marco com

respeito-. Salvou-o dos ingleses quando destruíram o castelo depois da insurreição. E agora já não há clã, nem castelo.

-Não há? Estão todos mortos?

O horror de seu tom de voz fez que Jenny a olhasse muito surpreendida. -Não. Mas Leoch não existe. Os últimos Chefes, Colum e seu irmão Dougal,

morreram à mãos dos Estuardo. -Leoch era um grande castelo? -Não sei, nunca cheguei a vê-lo e agora já não existe.

Entrar no dormitório do piso de acima foi como entrar em uma caverna.

Como as demais habitações era pequena, com as paredes brancas e as janelas

grandes. Jenny abriu o grande armário e tirou uma caixa que colocou sobre a cama.

244

-Aqui está -disse, tirando umas folhas dobradas e enrugadas que entregou

a Brianna-. Sabemos que estão na Carolina do Norte e que não vivem perto de nenhum povo -explicou Jenny-. Ao Jamie custa escrever desde que faz um tempo

se rompeu a mão, mas o faz todas as noites que pode. Para nos enviar as cartas tem que esperar a chegada de algum viajante ou a que ele ou Fergus vão até o Cross Creek.

Brianna se deu conta de que Jenny não sabia nada sobre o episódio com o Jack Randall o Negro. Era uma estranha sensação o saber costure sobre um

homem que nunca tinha visto e que inclusive sua amada irmana desconhecia. -Sente-se, criatura -disse Jenny. -Obrigado -murmurou Brianna; escolheu uma banqueta e abriu a carta.

Segunda-feira, 19 de setembro. Colina do Fraser Meu queridísima Jenny:

Todos gozamos de boa saúde e ânimo; e confiamos em que em meu lar todos estejam bem.

Seu filho Ian vos envia seu afeto. Pede-me que diga ao Matthew e ao Henry que os envia de presente a pele curtida de um animal, chamado puercoespín por seus prodigiosos espinhos. Também te mando um presente para tí, feito com o

corpo desse mesmo animal, os índios o preparam dessa forma tão engenhosa que poderá ver.

Claire teve interessantes conversações, se pode chamar-se assim à série de gestos e caretas que utilizam para entender-se, com uma anciã a Índia muito bem considerada como curandeira, quem lhe deu muitas novelo curativas.

Terça-feira, 20 de setembro Hoje estive muito ocupado reparando o curral que protege durante a noite a

nossas poucas vacas, porcos, etc., dos ursos, que por aqui são muito grandes. Mas não tema, não se aproximam dos humanos.

Em matéria de armamento nossa situação melhorou muito. Fergus comprou um rifle novo e várias facas excelentes.

Quarta-feira, 21 de setembro O urso voltou, encontrei seus rastros. Logo chegaram quatro índios

tuscarora- Conhecemo-los e são muito amáveis. Estavam decididos a caçar a nosso urso; lhes dei de presente tabaco e uma faca, Indicaram-me, com toda amabilidade, que o urso tinha abandonado a zona e se dirigia ao oeste.

Por precaução deixei meu rifle preparado. Segunda-feira, 26 de setembro

Ian e seus amigos índios tornaram da caçada. Claire, com sua habitual capacidade para notar as enfermidades, disse que

um de nossas hóspedes não estava bem. E terminou hospedado em nosso celeiro. Sábado, 1 de outubro

Uma grande surpresa no dia de hoje. chegaram duas hóspedes... -Tem que ser um lugar selvagem -disse Jenny, sobressaltando a Brianna-.

Índios, ursos e puercoespines- E muito solitário no alto das montanhas. -Olhou a Brianna com ansiedade-. Mas quererá ir, não?

-Irei logo que possa -assegurou a sua tia.

245

O rosto do Jenny se relaxou.

-Ah, bom -disse, mostrando uma bolsa de couro decorada com pele de puercoespín-. É o presente que me mandou.

-É precioso -disse Brianna voltando para a carta, mas Jenny seguiu perguntando.

-Ficará durante um tempo?

-Ficar ? -Só um par de dias. Sei que desejas ir mas eu gostaria de muito poder

conversar contigo. -Sim -disse brandamente Brianna-. É obvio que ficarei. -Isso está bem -disse com um sorriso e olhou a sua sobrinha com alegria-.

É igual a meu irmão!. Uma vez sozinha, Brianna continuou lendo a carta.

chegaram duas hóspedes do Cross Creek. Acredito que recordará a lorde John Grei, a quem conheci no Ardsmuir. Voltei-o a ver na Jamaica, onde era

governador da Coroa. Sua esposa, embarcada da Inglaterra com seu filho, contraiu umas febres

durante a viagem e faleceu. Lorde John decidiu levar a moço a Virginia para ver

suas propriedades e distrair o de sua dor. O moço se chama William e lorde John é seu padrasto. Seu interesse pelos

índios me recorda ao Ian de não faz muito tempo. Tem uns doze ânus e é um formoso moço.

Brianna voltou a página e se encontrou com uma lacuna que chegava até

em 4 de outubro. Terça-feira, 4 de outubro O índio do celeiro morreu de sarampo, em que pese a todos os esforços do

Claire. Não sabemos como enterrá-lo para não ofender os costumes dos índios e para que não criam que fomos os causadores de sua morte.

Confesso-te que sinto algo dava preocupação pela ameaça que representam os índios e a enfermidade, enviarei-te esta carta com nossas hóspedes.

Se tudo for bem te escreverei logo.

Seu irmão que mais te quer, Jaime Fraser

P.D. 20 de outubro Estamos todos bem. Ian esteve doente de sarampo, igual a lorde John, mas

os dois se recuperam bem. Claire diz que Ian está muito bem e que não deve

temer por ele. Escreve-te ele mesmo. J. Na última página a letra era diferente, mais cuidada e escolar, mas com

manchones de tinta.

Querida mamãe: Estive doente mas já estou bem. Tive febre e sonhos estranhos. Havia um

grande lobo que me falava com voz de homem, mas tia Claire diz que deveu ser Cilindro, que não se moveu de meu lado durante todo o tempo que estive doente; é um bom cão e não remói muito freqüentemente.

Picava-me todo o corpo, como se me tivesse sentado sobre um formigueiro, e a cabeça me doía muito pela febre. Mas hoje me comi três ovos com advenha para tomar o café da manhã e fui só duas vezes à privada, assim já estou bem. Ao

princípio acreditei que a enfermidade me tinha deixado cego, mas tia Claire disse que me passaria e assim foi. Fergus me está esperando para levá-la cã.

Seu filho devoto e obediente,

246

Ian Murray

-E eu acreditava que este era um lugar primitivo –murmurou Brianna

enquanto dobrava as folhas. Não tão primitivo, depois de tudo, pensou enquanto seguia ao Ian pelo

pátio da granja e passavam às outras construções. Tudo estava bem cuidado. A

única diferença real com uma granja moderna era a ausência de equipamento. Não havia tratores. Os animais eram saudáveis, embora talvez, um pouco mais

pequenos que os do século XX. Ian usava sua saia escocesa com a naturalidade de quem não o considera

um uniforme, a não ser parte de seu corpo. Entretanto, Brianna sabia que não

era habitual usá-la porque Jenny o tinha cuidadoso primeiro com assombro e logo com um sorriso quando baixou a tomar o café da manhã.

O tecido era velho e estava gasto, mas se notava que tinha sido conservada

com cuidado. Deveram ocultá-la depois do Culloden, junto com as pistolas, espadas e gaitas de fole, os símbolos do orgulho conquistado.

Não, não exatamente conquistado, pensou, ao recordar ao Roger Wakefield. «Os escoceses têm muita memória -havia-lhe dito-, e não são gente que

perdoe com facilidade. Há uma lápide com o nome MacKenzie, uma grande

quantidade de meus parentes jazem ali. Não sinto algo muito pessoal mas tampouco perdoei.»

Não, não conquistados. Vencidos, dispersos, mas vivos. Como Ian, coxo mas em pé. Como seu pai, banido mas ainda um highlander.

Com um esforço, afastou ao Roger de sua mente e se apressou a seguir ao

Ian. Seu rosto alargado se iluminou de prazer quando Brianna lhe pediu que lhe

ensinasse Lallybroch. Tinham acordado que o jovem Jamie a levaria ao Inverness a semana seguinte, onde poderia encontrar uma embarcação que a levasse até as

colônias com certa segurança. Foi uma larga caminhada. Passaram por um campo semeado de batatas.

Ian lhe explicou que tinha sido idéia do Claire e que mais de uma vez lhes salvou

de morrer de fome. Fazia vento mas o dia era caloroso e Brianna suava quando se detiveram

ante um estreito atalho e se sentaram sobre umas grandes pedras. Desde aquele ponto, com o vale a seus pés, a casa parecia pequena e uma intrusão da civilização no selvagem entorno de penhascos e urzes.

Ian tirou uma garrafa de pedra de seu embornal e lhe tirou a cortiça com os dentes.

-Isto também é devido a sua mãe -disse com um sorriso enquanto lhe

oferecia a garrafa-. Refiro a meus dentes. –passou-se a língua pelos incisivos, com gesto pensativo e sacudindo a cabeça-. É muito boa com as ervas.

-Quando era pequena sempre me dizia que comesse verdura e que me limpasse os dentes.

A cerveja era forte e amarga, mas resultava muito refrescante depois da

caminhada. -Quando foi pequena, né? -Ian a olhou divertido-. Sua mãe soube fazer bem

as coisas, não?

Brianna lhe sorriu lhe devolvendo a garrafa. -Ao menos soube escolher um homem alto.

Ian riu e a olhou com afeto.

247

-Que agradável é verte, moça. É muito parecida com ele. Quanto eu

gostaria de estar quando Jamie te veja! -Não sei o que saberá sobre mim -disse a jovem-. Não te disse nada?

Ian franziu o sobrecenho. -Não -disse lentamente-. Mas talvez não teve tempo de me dizer nada. Não

esteve muito tempo quando voltou Claire. -deteve-se mordendo o lábio e a olhou-.

Sua tia estava preocupada. Pensava que podia culpá-la. -Culpá-la por que?

Olhou-lhe intrigada. -Pelo Laoghaire. -O que tem que ver a tia Jenny com o Laoghaire?

-Foi ela quem pressionou ao Jamie para que se casasse com o Laoghaire. O fazia por seu bem. Então acreditávamos que Claire tinha morrido.

Seu tom guardava uma pergunta, mas Brianna se limitou a assentir

olhando para o chão. Era terreno perigoso e melhor não dizer nada para que Ian continuasse.

-Foi quando voltou para casa da Inglaterra, onde esteve prisioneiro vários anos...

-Sei.

Ian a olhou surpreso, mas não disse nada e sacudiu a cabeça. -Bom, quando voltou tinha trocado. Era como falar com um fantasma.

Olhava-me, falava, sorria, mas não estava aqui. -Respirou profundamente-. depois da derrota do Culloden era diferente. Estava ferido e tinha perdido ao Claire. -Olhou de esguelha a Brianna mas esta continuou imóvel-. Era uma época

de desespero, tinha morrido muita gente na batalha, e também depois, por enfermidades ou por fome. Os soldados ingleses continuavam assolando-o tudo e matando. Em casos assim não pode pensar em morrer porque a luta por sua vida

e pela de sua família te ocupa todo o tempo. Alguma lembrança daquela época fez aparecer um sorriso nos lábios do

Ian. -Jamie se escondeu ali. Há uma cova detrás desse grande arbusto. Por isso

te trouxe até aqui.

Olhou para onde lhe indicava. -Vinha a lhe trazer comida quando estava doente. Disse-lhe que tinha que

voltar para casa, que Jenny tinha medo de que morrera ali, sozinho. Abriu um olho, brilhante pela febre, e com voz rouca me disse que não o ia pôr fácil aos ingleses e que não pensava morrer. Logo ficou dormido.

Olhou-a com ironia. -Fiquei toda a noite com ele, mas tinha razão o muito teimoso. Brianna assentiu e se levantou de repente para subir pela colina. Ian não

protestou e ficou observando-a. A boca da cova era pequena, mas uma vez atravessada, o espaço se alargava. ajoelhou-se e colocou a cabeça; o frio foi

imediato e posso sentir como a umidade se condensava em suas bochechas. Sete anos! Sete anos vivendo ali, passando fome e fria. «Eu não agüentaria

nem sete dias», pensou. «Não o faria?», disse outra parte de sua mente. Então

sentiu outra vez a mesma sensação de reconhecimento que quando viu o retrato do Ellen.

Permaneceu imóvel, escutando, e pensou que sabia o que Jamie Fraser

tinha encontrado ali: não isolamento a não ser solidão, não sofrimento a não ser resignação. Ali descobriu um irônico parentesco com as rochas e o céu, uma paz

248

que transcendia o desconforto física. Não tinha visto a cova como uma tumba,

mas sim como um refúgio. Ian deveu ouvi-la quando retornava, mas não se voltou. Brianna se sentou

a seu lado. -É seguro usá-la agora? -disse bruscamente, assinalando a saia escocesa. -Sim. passaram anos da última vez que vieram os soldados. depois de tudo,

o que ficou? Fez um gesto para o vale.

-Você está aqui. E Jenny. -Sim, isso é verdade -disse finalmente, olhando-a-. E agora está você

também. Sua tia e eu estivemos falando ontem à noite: queremos que quando vir

ao Jamie e tudo esteja bem entre vós lhe pergunte o que quer que façamos. -Fazer? Com o que? -Com o Lallybroch. Talvez não saiba, mas seu pai fez uma escritura depois

do Culloden cedendo Lallybroch ao jovem Jamie, se por acaso o matavam ou o condenavam por traidor. Mas isso foi antes de que você nascesse, antes de que

soubesse que tinha uma filha própria. -Sim, sabia. -Teve um súbito conhecimento do que queria lhe dizer e lhe

pôs a mão no braço surpreendendo-o-, Não vim por isso, tio -disse brandamente-.

Lallybroch não é meu e não o quero. Tudo o que quero é ver meus pais. -Sim, bom. De todos os modos deve dizer-lhe se ele desejar...

-Não, não o fará —o interrompeu com firmeza. Ian a olhou com olhos sorridentes.

-Sabe muito sobre o que fará para não havê-lo visto nunca. -Brianna lhe

devolveu o sorriso enquanto o sol esquentava seus ombros-. Suponho que sua mãe lhe contaria isso. Ela o conhecia.

-Sim -vacilou. Desejava saber mais sobre o Laoghaire e não sabia como

perguntar-lhe O que era isso da aparição, tio Ian? -Está pensando no que disse Laoghaire? -Sem esperar resposta se deu a

volta e começou a baixar para o arroio-. É a visão de uma pessoa quando esta está longe. Algumas vezes ocorre quando alguém morre longe de seu lar. Dá má sorte ter uma aparição, mas é pior encontrar-se com sua própria imagem, pois

indica que vais morrer. -Espero que não. Mas ela disse...

-É certo que Jenny viu sua mãe nas bodas do Jamie. Então se deu conta de que não eram um bom casal, mas já era muito tarde.

agachou-se frente ao arroio e se molhou a cara. Brianna o imitou e bebeu a

água fresca. Como não tinha toalha se secou com as abas da camisa, deixando ao descoberto a cintura ante o olhar escandalizado do Ian.

-foste contar me por que meu pai se casou com ela -disse e, ao dar-se conta

da expressão do Ian, voltou-se a cobrir. -Sim, havia-te dito que quando Jamie retornou da Inglaterra estava como

sem vida. Não sei o que, mas algo lhe aconteceu ali, disso estou seguro. Então Jenny organizou o matrimônio. Talvez já seja o bastante major para saber o que uma mulher pode fazer por um homem, ou ele por ela. Refiro-me a consolá-lo e a

encher seus vazios. Mas acredito que Jamie se casou com o Laoghaire por lástima. -encolheu-se de ombros e sorriu-. Bom. Não tem sentido pensar o que tivesse podido acontecer, não? Mas deve saber que tinha abandonado a casa do

Laoghaire tempo antes de que sua mãe retornasse. Brianna sentiu uma quebra de onda de alívio.

-Bom. Me alegro se soubesse. E minha mãe... quando retornou...?

249

-Jamie se sentiu muito contente de voltar a vê-la -disse Ian com

simplicidade. Esta vez o sorriso lhe iluminou a cara-. E eu também.

35 Boa viagem

Recordava-lhe a loja de cães da cidade de Boston: um espaço grande, algo

escuro e com a atmosfera densa pelo aroma de animais. O grande edifício do mercado do Inverness albergava grande quantidade de empresas: venda de comida, agentes de seguros, recrutamento de pessoal para a Marinha Real... Mas

era o grupo de homens, mulheres e meninos amontoados em um rincão o que dava mais força a aquela desagradável visão.

de vez em quando algum homem ou mulher saía do grupo e ensinava os

ombros e queixo para demonstrar sua boa saúde. A maior parte dos que se ofereciam a si mesmos para a venda olhavam aos paseantes com expressões que

foram da esperança ao temor, muito parecidas com as dos cães enjaulados que tinha visto quando seu pai a levou a adotar um cachorrinho.

O jovem Jamie passava lentamente entre o grupo com o chapéu sobre o

peito para que não o esmagassem e os olhos entrecerrados, observando o que se oferecia. Ian tinha ido ao escritório para ocupar da passagem a América,

deixando a Brianna com sua primo para escolher um servente que a acompanhasse na viagem. Em vão tinha protestado dizendo que não necessitava acompanhante; depois de tudo tinha viajado sozinha da França.

Os homens tinham sorrido com amabilidade e aqui estava, seguindo obediente ao jovem Jamie como uma das ovelhas de sua tia Jenny. Agora começava a compreender o que sua mãe queria dizer ao descrever aos Fraser

como «pessoas teimosas como rochas». Sua primo Jamie interrompeu seus pensamentos assinalando a um

homem. -O que te parece esse, Brianna? -Parece o Estrangulador de Boston -murmurou, gritando logo ao ouvido de

sua primo-: Não! Parece um boi! -É forte e parece honrado.

Brianna pensou que parecia muito estúpido para ser insincero, mas se limitou a sacudir a cabeça. Claire lhe havia dito que a comida podia ser terrivelmente má ou incrivelmente boa. Tudo o que se come está acostumado a

estar salgado ou é fresco e então é uma autêntica maravilha. E o que tinha comprado sua primo era maravilhoso, tinha decidido

Brianna. Era uma torta quente em forma de meia lua, cheia de carne picada e

condimentada com cebola. Enquanto comia, advertiu que a olhava um homem com uma casaca

andrajosa. -Sim? -Necessita um servente, senhora?

-Bom, eu não diria que o necessito, mas de todas maneiras vou ter que aceitar um. Está interessado?

-É... eu... quer dizer, não sou eu. Mas poderia considerar tomar a minha

filha? -disse bruscamente-. Por favor! -Sua filha? -Brianna o olhou assombrada.

250

-O suplico, senhora! -Surpreendida viu como os olhos do homem se

enchiam de lágrimas-. Não sabe quão urgente é nem a gratidão que lhe guardarei se aceitar.

-Bom... mas... -É uma garota forte em que pese a sua aparência e cheia de vontade.

Estará encantada de servi-la e você, desse modo, comprará seu contrato.

-Mas por que, qual é o problema? -Há um homem. O... ele a deseja. Não como faxineira, mas sim como...

como concubina. As palavras lhe saíam com dificuldade e seu rosto se estava pondo

arroxeado.

-Hum. -Brianna descobriu a utilidade dessa ambígua expressão-. Já vejo. Mas não tem por que deixar que sua filha vá com ele, certo?

-Não tenho eleição. -Sua angústia era evidente—. O contrato de minha filha

está em posse do senhor Ransom, o corredor, e a venderá sem vacilar a esse... esse...

Agarrou-lhe uma mão entre as suas. -Vi-a com um aspecto tão nobre e orgulhoso que pensei que meus rogos

tinham sido escutados. Ah, senhora, não se negue ante a súplica de um pai.

Tome-a! -Mas vou a América! Nunca... -mordeu-se o lábio- quero dizer, não poderá

vê-la em muito tempo. -América? -sussurrou-. Prefiro que se vá a um lugar selvagem e longe de

mim, que ver como a desonram ante meus olhos.

Brianna não sabia o que lhe dizer. -Y... qual... sua filha, qual é? -Deus a benza! vou procurar a!

Oprimiu-lhe a mão com ardor e desapareceu entre a multidão. -Esta é Elizabeth -anunciou uma voz agitada-. Saúda a senhora, Lizzie.

Brianna a olhou e soube que a decisão já estava tomada. -Ai, querida -murmurou, vendo a pequena cabeça loira que se inclinava em

uma reverência-, um cachorrito. A cabeça se levantou mostrando um rosto magro

e uns aterrados olhos cinzas que ocupavam quase toda a cara. -Para servi-la, senhora -disse a boquita.

-Ah... quantos anos tem, Lizzie? Posso te chamar Lizzie? A jovem sussurrou algo e olhou a seu pai, que respondeu ansioso. -Quatorze, senhora. Mas tem boa mão para a cozinha e a costura. E é

muito limpa. Permaneceu com as mãos apoiadas sobre os ombros de sua filha. Seus

olhos, suplicantes, encontraram-se com os da Brianna. Seus lábios se moveram

sem emitir som algum, mas Brianna ouviu claramente como diziam «por favor». Mais à frente via seu tio falando com o jovem Jamie. De um momento a

outro viriam a procurá-la. Respirou profundamente e se ergueu. Bom, pensando-o bem ela era muito

mais Fraser que sua primo. vamos ver se também podia chegar a ser tão teimosa

como uma rocha. Sorriu a jovem, ofereceu-lhe a mão e o pedaço de torta que ainda não tinha

provado.

-É um trato, Lizzie. Quer morder para selá-lo?

251

-Ela comeu de minha comida -disse Brianna com toda a segurança que

pôde-. portanto é minha. Surpreendida viu como essa declaração punha fim à discussão.

-Mas do que te servirá uma moça? -disse o jovem Jamie-. Não tem força nem para levar a bagagem.

-Sou o bastante forte para levar minha bagagem, obrigado -assinalou

Brianna. -Mas uma mulher não deveria viajar sozinha.

-Não estarei sozinha, terei ao Lizzie. -E menos a um lugar como a América! -Parece o fim do mundo pela forma em que falas, mas tenho entendido que

nunca esteve ali -disse Brianna com exasperação-. Eu, em troca, nasci na América!

O tio e o primo a olharam com idênticas expressões de assombro. Viu então

uma oportunidade de tomar um pouco de vantagem na discussão, aproveitando o desconcerto de ambos.

-É meu dinheiro, minha faxineira e minha viagem. Dava-lhe minha palavra e a manterei.

Ian se esfregou o lábio para evitar sorrir.

-Acredito que não há lugar a dúvidas sobre de quem herdou a teimosia, criatura.

O jovem Jamie fez um último intento. -É muito pouco comum que uma mulher expresse livremente suas

opiniões.

-Crie que as mulheres não devem ter opiniões? -Isso acredito. Ian olhou a seu filho.

-estiveste casado, quanto tempo? Oito anos? -Sacudiu a cabeça-. Ah, bom, seu Joan é uma mulher com tato.

-voltou-se para o Lizzie-. Muito bem, vá despedir te de seu pai e eu irei procurar os papéis. -Observou afastar-se à pequena criatura e, com gesto de dúvida, voltou-se para a Brianna-. Talvez seja melhor companhia que a de um

homem, mas sua primo tem razão em uma coisa: não te servirá de amparo. Mas bem, será você quem tem que cuidá-la.

Brianna endireitou os ombros e levantou o queixo. -Posso arrumar me disse isso.

Manteve a mão apertada sujeitando a pedra que tinha na palma. Deste modo se dava forças enquanto via como a costa de Escócia se afastava.

Brianna nunca se considerou escocesa, mas tinha uma estranha sensação

ao separar-se daquela gente e aqueles lugares que tinha conhecido fazia tão pouco tempo. Talvez se contagiava da emoção dos outros passageiros.

Muitos estavam na coberta como ela, alguns chorando abertamente. Ou possivelmente era o medo ante o comprido viaje que a esperava. Mas tinha a certeza de que não era nenhuma dessas coisas.

-Isso é tudo, espero. Era Lizzie aparecendo a seu lado para ver as últimas imagens de Escócia.

Seu rosto pálido permanecia inexpressivo, mas Brianna não o interpretava como

uma falta de sentimentos. -Sim, já estamos em caminho.

252

Em um impulso, Brianna agarrou a jovem e a envolveu com o xale,

protegendo-a do vento e dos outros passageiros. -Tudo vai bem -disse tanto para o Lizzie como para si mesmo.

Tinha sobrevivido a muitas despedidas e sobreviveria a esta também. O que a fazia mais dura era que já tinha perdido pai, mãe, amor, casa e amigos. Estava sozinha por necessidade, mas também por eleição, já que inesperadamente tinha

encontrado de novo um lar e uma família no Lallybroch. Teria dado algo por ficar mais tempo, mas antes tinha que cumprir sua promessa; já retornaria a Escócia

e ao Roger. Lizzie permaneceu rígida como um pau. Suas orelhas eram largas e

transparentes e se sobressaíam, tenras e frágeis, de seu cabelo fino e murcho

como as de um camundongo. Brianna lhe secou as lágrimas. Seus olhos permaneciam secos e sua boca firme enquanto olhava a terra por cima da cabeça do Lizzie. Mas aquele rosto frio, de lábios trementes, bem poderia ter sido o seu.

Permaneceram em silêncio até que a terra desapareceu.

36 Não pode retornar a casa outra vez

Inverness, julho de 1769 Roger caminhou lentamente através da cidade, olhando a seu redor com

uma mescla de fascinação e deleite. Inverness tinha trocado um pouco em duzentos anos, disso não havia dúvida; entretanto, era possível reconhecer a

cidade, mais pequena e com a metade de suas enlameadas ruas sem pavimentar; mas «reconhecia» essas ruas pelas que tinha caminhada centenas de vezes.

notava-se a mesma umidade fria no ar, mas o molesto aroma dos motores

tinha sido substituído por um distante aroma de águas residuais. A diferença mais notável estava nas márgenes do rio. Onde um dia se levantariam uma nobre

profusão de agulhas e campanários do Iglesias, agora não havia mais que pequenas edificações.

Existia uma única ponte de pedra, mas o rio Ness era, naturalmente, o

mesmo de sempre. O caudal era baixo e as gaivotas se faziam companhia enquanto pescavam pececillos entre as pedras.

Aqui e lá, confortáveis residências se isolavam com amplos jardins, como uma grande dama que estende suas saias fazendo caso omisso da presença do povo vizinho.

Ali estava Mountgeraid, a grande casa, luzindo exatamente como sempre a tinha conhecido, salvo que as grandes haja ainda não tinham sido plantadas e em seu lugar, contra a parede do jardim, havia uns ciprestes italianos com

aspecto de nostalgia por seu ensolarado país de origem. Mas tinha outras coisas que fazer: Mountgeraid e seus fantasmas teriam

que guardar-se seus segredos. Com um pouco de pesadumbre deixou atrás a grande casa e voltou seu nariz de estudioso para a rua que levava aos moles.

Com uma sensação que só podia qualificar-se de deixa vu empurrou a

porta do botequim e entrou. Era o mesmo ambiente que visse uma semana antes (duzentos anos depois); o aroma familiar da levedura de cerveja reconfortou seu espírito. E1 nome tinha trocado, mas não o aroma da cerveja.

Roger bebeu um gole de sua jarra de madeira e quase se afogou. -Tudo bem?

253

O dono de cantina se deteve com um cubo de areia na mão, observando ao

Roger. -Bem -respondeu Roger com voz rouca-. Estou bem.

O dono de cantina assentiu e continuou esparramando areia sem perder de vista ao Roger, se por acaso lhe ocorria vomitar no chão. Roger se esclareceu garganta e memorou tragar um sorvo. O sabor era bom, muito bom em realidade.

O inesperado era a quantidade de álcool. Era muito mais forte que a cerveja moderna. Claire lhe havia dito que o alcoolismo era endêmico naquela época e

Roger se deu conta facilmente da razão. Entretanto, se a bebedeira era o pior risco ao que se enfrentava, podia corrê-lo.

Permaneceu tranqüilo, saboreando a cerveja, escutando e olhando.

Era um botequim do porto, muito concorrida por capitães de navios e comerciantes, assim como por marinheiros e trabalhadores dos armazéns próximos. Ali se realizavam negócios e transações. Mas não só se comercializava

com mercadorias. Em um rincão estava sentado um capitão de navio que destacava pelo corte

de sua casaca e o tricornio negro da mesa. Um escrivão com um livro de contas e um porquinho lhe ajudava a entrevistar a emigrantes que procuravam passagens para as colônias. Os que não tinham médios para pagar as passagens tinham

outras possibilidades. -Os moços e você podem ter possibilidades -disse o capitão. Olhou à mulher

que não levantava a vista e franziu o sobrecenho-. Mas ninguém comprará uma mulher com tantos meninos. Talvez possa ficar com algum. Mas terá que vender às meninas.

O homem olhou a sua família. Sua esposa mantinha a cabeça baixa sem olhar a ninguém. Uma das meninas se moveu, queixando em voz baixa porque lhe tinham apertado a mão. O homem se deu a volta.

-Muito bem -disse em voz baixa-, Podem... poderiam ir juntas? O capitão se esfregou a boca com indiferença.

-Não seria estranho. Roger não quis presenciar os detalhes do transação. levantou-se

bruscamente e abandonou o local; a cerveja negra tinha perdido seu sabor.

Tinha crescido ouvindo a história dos Highlands; Conhecia muito bem a classe de coisas que tinha levado às famílias a tal estado de desespero, lhes

obrigando a aceitar separações permanentes e situações de semiesclavitud como preço pela sobrevivência.

Caminhou lentamente olhando a coleção de navios ancorados nos moles de

madeira. Podia cruzar a França, é obvio, e embarcar ali. Ou viajar por terra até o Edimburgo, um porto muito mais importante que o do Inverness. Mas já séria tarde para embarcar esse ano. Brianna lhe levava seis semanas de vantagem e

não podia desperdiçar o tempo. Só Deus sabia o que podia lhe passar a uma mulher sozinha.

-O primeiro é o primeiro –murmurou-. Mas deveria me assegurar de onde foi, antes de decidir a viagem.

Foi para a direita pelo estreito espaço que deixavam duas lojas de

departamentos. Seu espírito corajoso da manhã se evaporou, entretanto se recuperou um pouco ao ver que estava frente ao que procurava: o escritório do capitão de porto estava situada no mesmo edifício de pedra onde estaria duzentos

anos depois. Roger sorriu com ironia. Os escoceses não estavam acostumados a fazer mudanças só pelo gosto de trocar.

254

Havia muita gente ocupada no interior; quatro escrivães detrás de um

mostrador de madeira faziam recibos e levavam o dinheiro cobrado a um escritório interior.

Quando Roger conseguiu captar a atenção de um dos empregados, não teve grande dificuldade em conseguir os registros dos navios que tinham zarpado do Inverness nos últimos meses.

-Espere -disse Roger ao jovem empregado que lhe entregava um grande livro forrado de couro-. Quanto lhe pagam por trabalhar aqui?

O empregado arqueou as sobrancelhas. -Seis xelins por semana -disse, desaparecendo para o grito irritado do

Munro» que saiu do outro escritório.

Roger se levou o livro de registros até uma pequena mesa, ao lado da janela.

Em sua cabeça ressonou uma voz fria e tranqüila que lhe dizia: «É um

parvo. Ela estará aqui ou não estará, ter medo a olhar não trocará nada. Começa".

Meia hora mais tarde tinha deixado de maravilhar-se do poético e pitoresco dos nomes dos navios e percorria os artigos com crescente desespero. Não estava, não estava ali.

Mas tinha que estar, tinha que ter embarcado para as colônias. A que outro maldito lugar podia ter ido? Salvo que, depois de tudo, não tivesse encontrado a

notícia... mas estava seguro, nenhuma Outra coisa a tivesse feito arriscar-se a passar pelas pedras.

Respirou profundamente e fechou os olhos. Logo os voltou a abrir e

começou a ler de novo, repetindo todos os nomes para assegurar-se de que não deixava passar nenhum.

Mas não havia Randalls naqueles navios. esfregou-se os olhos, cansados de

decifrar aquela letra. Não tinha abandonado a busca, mas se perguntou o que faria se não a encontrava. Lallybroch, é obvio. Tinha estado ali uma vez em seu

próprio tempo. Poderia encontrá-lo de novo, sem a guia de caminhos e sinais da estrada?

Seus pensamentos se detiveram ante um nome, quase ao final da página.

Não era Brianna Randall, o nome que ele procurava. Mas sim um nome conhecido: «Fraser. Brian Fraser».

Ao olhar mais de perto viu que tampouco era Brian, a não ser Brianna. Fechou os olhos com um profundo alívio. Era ela, tinha que ser ela! Não tinha visto nenhuma outra Brianna no registro. E tinha sentido que usasse o

sobrenome Fraser. Ia em busca de seu pai e esse sobrenome lhe correspondia por direito de nascimento.

O navio era o Phillip Alomo e tinha saído do Inverness em 4 de julho do ano

do Senhor de 1769, para o Charleston, Carolina do Sul. Franziu o sobrecenho súbitamente inseguro. Carolina do Sul. Era esse seu

destino real ou o mais perto que podia chegar? Um rápido olhar ao resto dos navios registrados lhe revelou que não havia nenhum para a Carolina do Norte. Talvez só tinha tomado o primeiro navio para as colônias do sul com a intenção

de fazer o resto da viagem por terra. levantou-se e foi devolver o livro ao mostrador. -Obrigado -disse-. Poderia me dizer se houver algum navio que saia logo

para as colônias?

255

-Sim -disse, agarrando o registro com uma mão e aceitando uma fatura de

um cliente com a outra-. O Glorificaria sai depois de amanhã para as Carolinas. -Olhou ao Roger de cima abaixo-. Emigrante ou marinheiro? -perguntou.

-Marinheiro -respondeu com rapidez. Passando por cima as sobrancelhas arqueadas pela surpresa, fez um gesto para os guichês-. Onde tenho que ir assinar?

O empregado assinalou a porta. -Seu capitão, o capitão Bonnet, deve estar no botequim.-Não acrescentou o

que sua expressão fazia evidente: se Roger era marinheiro, ele, o escrivão, era um louro africano.

-Bem, mo ghille. Obrigado. me deseje sorte! -gritou Roger, com um sorriso

zombador. -Que tenha sorte! E agitou a mão.

Encontrou ao capitão Bonnet no botequim, tal como lhe haviam dito.

Estava em um rincão, envolto em uma nuvem de fumaça ao que se somava a fumaça do charuto do marinho.

-Seu nome?

-MacKenzie -disse Roger em um súbito impulso. Se Brianna o tinha feito, ele também podia.

-MacKenzie. Alguma experiência, senhor MacKenzie? -A pesca de arenques no Minch. Não era mentira; durante sua adolescência tinha pescado arenques no

verão. A experiência lhe tinha deixado uma boa musculatura, ouvido para a cadência da linguagem das ilhas e um marcado desgosto pelos arenques. Mas ao menos sabia o que era sustentar uma corda entre as mãos.

-Ah, bom, é um moço grande. Mas ser pescador não é o mesmo que ser marinheiro.

O suave acento irlandês deixava aberta a possibilidade de que fora uma pergunta, uma afirmação ou uma provocação.

-Não pensava que essa ocupação requeresse grandes habilidades.

Sem nenhuma razão aparente o capitão Bonnet lhe punha os cabelos de ponta.

-Talvez mais do que crie, embora nada que um homem com vontade não possa aprender. Mas a que se deve que um moço como você dita converter-se em marinheiro?

-Acredito que isso não é seu assunto —respondeu tranqüilamente. E com certo esforço manteve as mãos quietas nos flancos.

Os pálidos olhos verdes do Bonnet o estudaram desapasionadamente, sem

piscar. -Estará embarcado ao pôr do sol -disse Bonnet- Cinco xelins ao mês, carne

três dias à semana e pudim de ameixas os domingos. Terá uma rede, mas a roupa é tua coisa. Terá liberdade para abandonar o navio uma vez que a carga esteja desembarcada, não antes. Estamos de acordo, senhor?

-Estou de acordo -disse Roger, e de repente sentiu a boca seca. Tivesse dado algo por uma cerveja, mas não agora, não ante aqueles frios

olhos verdes.

-Pergunta pelo senhor Dixon quando subir a bordo. É o pagante. Bonnet se tornou para trás, tirou um livrinho de couro de seu bolso e o

abriu. Audiência concluída.

256

Roger partiu sem olhar para trás. Sentia um frio sorvete na nuca. Se se

dava a volta sabia que encontraria aquele olhar fixo tomando nota de todas suas debilidades.

37 Gloriana antes de embarcar-se no Gloriana, Roger se considerava em um estado

físico razoavelmente bom. De fato, comparado com a maioria dos especímenes mau alimentados que constituíam o resto da tripulação, considerava-se bem

dotado. Necessitou exatamente quatorze horas, a duração de uma jornada de trabalho, para descobrir seu engano.

Tinha esquecido a profunda fadiga que provocava a roupa molhada e fria.

Recebia com agrado a pesado trabalho de carregar, porque o esquentava temporalmente, embora sabia que aquele calor não duraria, já que ao sair a coberta o vento gelado congelaria sua roupa molhada.

Em dois dias terminaram de carregar os barris de sal, os cilindros de tecido e os pesadas embalagens de quinquilharia que, por seu peso, terei que levantar

com cordas. Para o qual o tamanho do Roger resultou muito útil. Os passageiros subiram a bordo ao anoitecer: uma fila de emigrantes

carregados com vultos de todo tipo, jaulas com galinhas e meninos.

-São emigrantes que se pagam a passagem trabalhando –explicou seu companheiro Duff, olhando com olho prático-. Alguns podem pagar assim, mas a

maioria não. Têm que conseguir comida para sua família durante a viagem. -O capitão não lhes dá a comida? -Sim. -Duff tossiu e cuspiu-. Mas em troca de um preço.

-Sorriu zombador e se secou a boca-. vá jogar lhes uma mão, moço. Não queremos que as lucros do capitão caiam à água, verdade?

Surpreso pela quantidade de roupa que levava uma menina, a que subiu a

bordo, dedicou-se a observar de perto às demais mulheres e se deu conta de que todas levavam um vestido sobre outro, como se levassem postas todas suas

posses. Roger sorriu a um pequeno, obstinado às saias de sua mãe. Não devia ter

mais de dois anos, com cachos loiros e um gesto de temerosa desaprovação acima

de tudo o que via. -Vêem, homem -disse Roger brandamente, estendendo uma mão para

animá-lo. Já não precisava controlar seu acento, saía-lhe de forma natural o highland que falasse durante sua infância-. Sua mãe não pode subir; anda, vêem comigo.

O menino permitiu que Roger o arrancasse das saias de sua mãe e o levasse pela coberta enquanto a mulher os seguia em silêncio. Quando lhe entregou ao menino o olhou fixamente e Roger se afastou com certa insegurança,

como se a tivesse abandonado para que se afogasse. Quando voltava para seu trabalho viu uma moça com um jovem, alto e

arrumado, e um menino em braços. Ao vê-los, Roger sentiu algo que podia ser inveja.

-Você, MacKenzie! -O grito o tirou de sua contemplação-, Há uma carga

esperando e não vai subir sozinha a bordo! Uma vez que embarcaram e se fizeram ao mar, a viagem transcorreu com a

mesma tónica durante algumas semanas. O tempo tormentoso que tinham em Escócia rapidamente degenerou em ventos fortes e grandes cheire, provocando

imediatamente enjôos e vômitos.

257

Roger teve a sorte de não enjoar-se. Sua experiência na pesca de arenques

tinha sido suficiente para lhe dar uma boa perspectiva do tempo, junto com o conhecimento de que sua vida podia depender de se o sol brilhava esse dia ou

não. Seus companheiros não eram amistosos mas tampouco hostis. Ao Roger

não preocupava essa frieza; gostava que o deixassem sozinho com seus

pensamentos, assim tinha a mente liberada enquanto seu corpo se ocupava das obrigações alvos do navio.

Estava mais interessado em quão passageiros na tripulação ou o capitão. Viam-nos muito pouco, já que só podiam subir a coberta duas vezes diárias para tomar o ar, esvaziar seus bacinillas (já que as letrinas do navio não estavam

preparadas para tanta gente) e recolher as pequenas quantidades de água, racionada cuidadosamente para cada família. Roger esperava aquelas breves aparições e tratava de estar trabalhando perto do lugar onde apareciam.

Seu interesse era profissional e pessoal; seu instinto de historiador despertava com a presença daquela gente e sua melancólica solidão se acalmava

para ouvi-los falar. Neles estava a semente de um novo país, a herança do antigo. Tudo o que aqueles pobres emigrantes sabiam e valoravam permaneceria para que outros o conservassem.

-Senhor -disse uma vocecita a seu lado-. Senhor, posso ir tocar o ferro? Olhou fazia abaixo e sorriu a uma pequena menina com seus dois

hermanitos agarrados das mãos. -Sim, a leannan -disse-. Adiante. A menina assentiu e os três passaram com cuidado, sem incomodar a

ninguém, para subir e tocar a ferradura cravada no mastro como amuleto de boa sorte. O ferro era amparo e cura; as mães enviavam freqüentemente a seus pequenos a tocar a ferradura.

Roger pensava que tivesse sido melhor que o ferro tivesse efeitos internos, vendo a palidez dos rostos e as queixa por forúnculos, febre e dentes que caíam.

Continuou com seu trabalho, medindo a água que entregava aos emigrantes. A maioria sobrevivia a base de papa de aveia e ocasionalmente ervilhas secas e bolachas duras, o que constituía o total das "provisões» que lhes proporcionava

durante a viagem. Mas não tinha ouvido queixa a respeito; a água era poda, as bolachas não

estavam mofadas e se a ração de cereal não podia considerar-se generosa, tampouco mesquinha. A tripulação estava melhor alimentada graças às ocasionais cebolas.

-Amanhã fará bom tempo, não? -disse uma jovem muito bonita de cabelo castanho claro que conhecia do mole do Inverness e a que chamavam Morag.

-Espero que seja assim -respondeu enquanto lhe recolhia o balde para a

água e lhe sorria-. por que o diz? A jovem assentiu assinalando com o queixo.

-Há lua nova nos braços da velha, nisso terra significa bom tempo. Suponho que será o mesmo no mar, não?

-Não perca o tempo conversando, moça, e lhe pergunte.

Roger se voltou e viu uma mulher de média idade falando com o Morag. -Quer te calar? -sussurrou a jovem-. Não o farei, já disse que não! -É uma moça teimosa, Morag -declarou a mulher maior enquanto se

adiantava-. Se não o fizer você, farei-o eu! A mulher apoiou uma mão no braço do Roger e lhe dedicou um encantador

sorriso.

258

-Qual é seu nome, jovem?

-MacKenzie, senhora -disse respetuosamente Roger, ocultando um sorriso. -Ah, é MacKenzie! Bom, já vê, Morag, poderia ser parente de seu homem e

seguro que lhe agradará te fazer esse favor. A mulher se voltou com ar triunfal para a jovem e logo para o Roger com

toda a força de sua personalidade.

-Está amamentando a uma criatura e morre de sede. Uma mulher precisa beber mais quando dá de mamar ou lhe seca o leite. Mas é tão parva que não se

atreve a pedir um pouco mais de água. Aqui ninguém lhe terá inveja, não? -dirigiu a pergunta, com cara de aborrecimento, às outras mulheres da cauda.

Como era de esperar todas as cabeças se moveram ao mesmo tempo,

aceitando o que a mulher queria. Embora já tinha escurecido, o rosto do Morag estava visivelmente avermelhado. Com os lábios apertados aceitou o balde cheio de água e fez uma pequena inclinação de cabeça.

-O agradeço, senhor MacKenzie —murmurou.

O capitão, a tripulação, os passageiros, inclusive a questão tão importante do tempo, não ocupava mais que um fragmento dos pensamentos do Roger, No que pensava dia e noite, molhado ou seco, com fome ou alimentada, era na

Brianna. Podia evocar seu rosto sem dificuldade. O resto era também uma ilusão. Quando ela se foi, atravessando as pedras,

levou-se toda sua paz. Vivia em uma mescla de medo e fúria, condimentada pela dor da traição como se lhe atirassem pimenta nas feridas. As mesmas perguntas davam voltas em sua mente sem respostas, como uma serpente mordendo-a

cauda. «por que se tinha ido?» «O que estava fazendo?"

«por que não o havia dito?» O esforço para encontrar uma resposta à primeira pergunte-lhe fazia repetir

todo uma e outra vez, como se essa resposta fora a chave de todo o mistério da Brianna.

Sim, sentia-se sozinho. Sabia muito bem como se sentia um quando não se

tênia a ninguém no mundo. Com essa segurança era uma razão pela que Brianna e ele estavam juntos. Claire também sabia, pensou de repente. ficou-se órfã

depois de perder a seu tio e, embora se casou, esteve separada de seu marido durante a guerra... Sim, ela sabia muito sobre o que era estar sozinha. Por isso se tinha preocupado em não deixar a Brianna sozinha, sem ninguém que a amasse.

Ele tinha tentado amá-la como é devido; ainda o tentava, pensou com ironia, movendo-se inquieto em sua rede. Durante o dia, o esforço do trabalho aplacava as exigências de seu corpo. Mas de noite... a Brianna de suas

lembranças era muito real. Não tinha vacilado. Soube do primeiro momento que a seguiria. Algumas

vezes, entretanto, não estava seguro de se ia salvar a ou a atacá-la grosseiramente; algo, sempre que esclarecesse situação entre eles. Havia dito que esperaria, mas tinha esperado muito.

O pior de tudo não era a solidão, pensou revolvendo-se inquieto, a não ser a dúvida. Duvidava dos sentimentos dela e dos dele. Tinha pânico de não conhecê-la verdadeiramente.

Pela primeira vez desde que passasse entre as pedras, deu-se conta do que tinha significado sua negativa e também de que sua vacilação era sabedoria. Mas

tinha sido sabedoria ou só medo?

259

Se ela não tivesse passado pelas pedras, teria se entregue finalmente com

todo seu coração? Ou se teria afastado procurando algo mais? 38

Pelos que se arriscam no mar Uma súbita tormenta impediu aos passageiros sair a coberta durante três

dias. Enquanto isso os marinheiros permaneciam em seus postos sem apenas

tempo para comer e descansar. Quando tudo terminou, Roger se deixou cair em sua rede, muito cansado para tirá-la roupa molhada.

Esgotado, empapado, com o corpo cheio de sal e com vontades de dar um banho quente e passar uma semana dormindo, teve que responder à chamada da tarde depois de só quatro horas de descanso.

À posta do sol estava tão exausto que todos os músculos lhe tremiam enquanto ajudava a colocar um barril de água fresca,

Uma menina, cheia de alegria por poder sair da adega, corria e saltava

como louca, fazendo sorrir ao Roger apesar de seu cansaço. A menina se apoiou no corrimão nas pontas dos pés, observando com cautela.

-Crie que a tormenta a causou um Cirein Croin? O avô diz que pôde ser. Com suas caudas levantam as ondas –lhe informou a menina.

-Não me tinha ocorrido pensá-lo. Onde estão seus hermanitos, a leannan?

-Com febre -respondeu com indiferença-, Olhe! -gritou-. Olhe, está aí! O terror na voz da menina fez que Roger se inclinasse para olhar. Uma

silhueta escura aparecia na superfície. -Um tubarão -disse Roger, estremecendo-se involuntariamente e acalmando

à menina-. É só um tubarão. Sabe o que é um tubarão, não? Comemo-nos um a

semana passada! A menina estava pálida, tinha os olhos muito abertos e lhe tremia a boca. -Está seguro?

-Sim -disse Roger com amabilidade e lhe deu água para que bebesse-. É só um tubarão.

-Isobel! Um grito indignado fez que a menina retornasse a ajudar nas tarefas

familiares, deixando ao Roger sem outra distração que seu trabalho e seus

próprios pensamentos. Pensou que o navio era um frágil carapaça e que quão único podia fazer era rezam «Pelos que se arriscam no mar. Senhor, tenha

misericórdia». Uma das mulheres lhe aproximou, agarrou-o do braço e lhe mostrou o

menino que levava em braços.

-Senhor MacKenzie, o capitão quereria esfregar os olhos do Gibbie com seu anel? Tem-nos inflamados de estar tanto tempo na escuridão.

Roger vacilou e logo se burlou de si mesmo. Como o resto da tripulação,

tratava de manter-se afastado do Bonnet, mas não havia razão para negar-se à petição da mulher; o capitão já tinha feito uso de seu anel de ouro como remédio,

conhecido popularmente, para os problemas nos olhos. -Sim, claro -disse, esquecendo-se de si mesmo por um momento-. Venha. A mulher piscou surpreendida, mas o seguiu. O capitão parecia tão

cansado como outros. Estava falando com seu assistente quando viu o Roger. Sua expressão se endureceu mas se relaxou quando ouviu o que queria. Sem comentários, esfregou o anel de ouro que levava em seu dedo mindinho sobre os

olhos fechados do pequeno Gilbert. Uma banda Lisa de ouro, observou Roger. Parecia um aliança de casamento e por seu tamanho podia ser o da mulher. O

formidável Bonnet com um símbolo de amor?

260

-A criatura está doente -fez notar Dixon.

Assinalou as manchas vermelhas debaixo das orelhas e suas bochechas ardendo de febre.

-Não é mais que a febre do leite -disse a mulher, abraçando ao menino Com um gesto defensivo-. Estão-lhe saindo os dentes.

O capitão assentiu com indiferença e se deu a volta. Roger acompanhou à

mulher até a cozinha a procurar um pedaço de bolacha para que o menino o mastigasse e logo a mandou à adega com os outros.

ficou pensando na conversação que tinha ouvido. O capitão pensava deter-se em New Bem e no Edenton antes de chegar ao Wilmington. Era evidente que não tinha pressa e procurava os melhores preços para sua carga. Diabos,

demorariam semanas em chegar ao Wilmington! Não podia ser, pensou Roger. Só Deus sabia o que poderia lhe passar a

Brianna até então. Decidiu baixar do Gloriana no primeiro porto que tocassem e

seguir caminho para o sul da melhor forma que pudesse. É verdade que tinha dado palavra de que ficaria no navio até terminar de descarregá-lo; mas como não

cobraria seu salário resultaria bastante justo. Dixon tinha deixado ao capitão e caminhava entre os passageiros, saudando os homens e detendo-se falar com as mulheres com criaturas. Roger pensou que aquilo era bastante estranho. O

assistente não era um homem sociável com a tripulação e muito menos com os passageiros, aos que considerava uma carga bastante molesta.

-MacKenzie! Um dos marinheiros o chamava para que ajudasse a arrumar as velas

rasgadas pela tormenta. Roger grunhiu e estirou seus músculos doloridos. Não

lhe importava o que pudesse acontecer na Carolina do Norte, estaria muito contente de abandonar o navio.

Duas noites mais tarde, um grito despertou ao Roger. Correu pela coberta médio dormido e se deteve o receber um golpe no peito.

-Fique onde está, tolo! -grunhiu Dixon. -O que acontece? O que acontece? Roger sacudiu a cabeça. Havia mais gente na escuridão, pois podia sentir

os corpos que tropeçavam enquanto ele se esforçava por manter-se em pé. —Assassinos! -gritou uma mulher-. Malvados agarra...!

A voz se cortou bruscamente, e se ouviu um forte golpe na coberta de acima.

-O que acontece? -De novo em pé, Roger se abriu caminho gritando ao

Dixon-. O que acontece? Abordaram-nos? Suas palavras foram apagadas pelos gritos e gemidos de mulheres e

meninos, interrompidos pelos uivos e as maldições dos homens.

Uma luz vermelha brilhava. O navio se incendiava? aferrou-se à escada e pôde agarrar ao Dixon por um pé.

-me solte! -O pé se liberou lhe dando uma patada na cabeça-. Fica aquieto! É que quer te contagiar a varíola?

-Varíola? Que diabos acontece aqui?

Com os olhos acostumados à escuridão, Roger lhe sujeitou o pé e o torceu. Pego por surpresa, Dixon se soltou da escada e caiu pesadamente sobre o Roger e os homens de abaixo.

Roger não fez caso dos gritos de fúria e surpresa, e subiu a coberta. Havia um grupo de homens com faróis que lançavam fazem de luz vermelha, branca e

amarela que iluminavam as facas.

261

Procurou outro navio com os olhos, mas o oceano estava negro e vazio. Não

havia piratas, a luta tinha lugar perto da escotilha que ia à adega. A metade da tripulação se reuniu ali, armada com facas e paus. Um motim?, pensou, e

desprezou a idéia. A cabeça sem chapéu do Bonnet destacava por cima das demais, brilhando à luz dos faróis.

-O que acontece? -gritou ao ouvido do contramestre, que levava um farol.

O homem se sobressaltou e o olhou com fúria. -Não tem varíola, verdade? -A atenção do Hutchinson voltou a centrar-se na

escotilha aberta-, Fique abaixo! -Já a tive. O que é o que...? O contramestre o olhou assombrado.

-Teve-a? Não tem picadas. Bom, não importa, baixa, necessitamos ajuda! -Para que? -perguntou Roger. -Varíola! -voltou a gritar o contramestre.

Fez um gesto para a escotilha aberta. Um dos marinheiros apareceu no alto da escada com um menino chutando desesperado baixo o braço. Umas mãos

atiravam das costas do homem e uma voz de mulher uivava cheia de terror. O marinheiro quis defender-se da mulher e soltou ao menino. Roger o

recolheu como se fora uma bola de rugby enquanto o homem e a mulher,

abraçados como amantes, caíam pela boca da escotilha. ouviram-se mais gritos e gemidos.

Roger tratou de acalmar ao menino, sentindo através de sua roupa como ardia pela febre. O contramestre os iluminou e olhou ao menino com desgosto.

-Espero que tenha acontecido a varíola, MacKenzie -disse. Era o pequeno

Gilbert, o menino com os olhos inflamados. Em dois dias tinha trocado tanto que Roger quase não o reconhecia. antes de que pudesse reagir alguém lhe arrancou o pequeno corpo febril.

Os passageiros se recuperaram da surpresa do ataque. Um grupo de homens subiam pela escada armados com o que podiam e caíam sobre os

marinheiros com enlouquecida fúria. Alguém chocou contra Roger e o fez cair. Tratou de levantar-se apoiando-se

em mãos e joelhos, mas o chutaram nos flancos.

Tão grande era a confusão que Roger sentiu que o despedaçavam. Alguém o agarrou por cabelo, mas conseguiu liberar-se enquanto golpeava a outro nas

costelas. Durante um momento se encontrou fora da briga, ofegando para recuperar o fôlego. Duas figuras se aproximaram e lhe voltaram a golpear. À luz do farol do contramestre, Roger viu o rosto de um de seus atacantes: o mando do

Morag MacKenzie, com seus olhos verdes cheios de fúria. -Já é suficiente -disse Hutchinson, e o homem foi arrojado sem cerimônias

escotilha abaixo.

Os companheiros do Roger o ajudaram a levantar-se e logo o deixaram enjoado e cambaleando-se enquanto terminavam sua tarefa. A resistência teve

uma curta vida pois, embora os passageiros foram armados com a fúria do desespero, estavam fracos detrás seis semanas encerrados na adega, com enfermidades e mau alimentados. Os mais fortes foram golpeados até que se

renderam, os mais fracos obrigados a retroceder v os doentes de varíola... Roger olhou por cima do corrimão e vomitou. Estremecido pelo esgotamento

caminhou lentamente pela coberta.

Quão marinheiros encontrou em seu caminho permaneciam em silêncio. Chegou até sua rede, desoyó as perguntas de seus companheiros e se cobriu a

cabeça com a manta tratando de não ouvir os gemidos, de não ouvir nada.

262

-É o melhor, moço -havia-lhe dito Hutchinson ao vê-lo vomitar-. A varíola

se estende como um incêndio, não resistiriam até chegar a terra. Era isso melhor que uma morte lenta? Não para os que ficavam. Os

gemidos seguiam atravessando o silêncio. Tinha ouvido dizer a um marinheiro que os tubarões nunca dormem. Então

se deu conta da carga que tinham arrojado ao mar.

Ao dia seguinte, em metade do guarda, Roger teve a oportunidade de baixar

à adega. Não fez nenhum esforço para não ser visto, tinha aprendido que, naqueles lugares, atuar de forma furtiva chamava mais a atenção.

Se alguém lhe perguntava diria que tinha ouvido um ruído e pensava que

podia haver algum problema com a carga. desprendeu-se, já que se não punha a escada havia menos possibilidades de que o seguissem. Não havia sinais de presença humana. Entretanto, estava seguro de que ali havia alguém.

«por que está aqui, companheiro?", pensou. E se algum dos passageiros se refugiou ali? Se alguém estava escondido o mais seguro era que tivesse varíola.

Roger não ia poder fazer nada. Então, por que incomodar-se em procurar?. Porque não podia deixar de fazê-lo, era a resposta. Não podia reprovar-se nada por não ter salvado aos passageiros com varíola. Talvez uma morte rápida tinha

sido o melhor. Mas não tinha dormido; os sucessos da noite anterior lhe produziam uma sensação de horror e impotência. Agora tinha que fazer algo.

Devia procurar. Algo se moveu nas sombras da adega. Um rato, pensou, e se deu a volta. O

movimento o salvou de um objeto que passou voando perto de sua cabeça.

agachou-se e se dirigiu para onde tinha notado o movimento. Não havia espaço para correr nem site para esconder-se. Ouviu um grito de alarme e se encontrou com a ossuda boneca do Morag MacKenzie.

Chutou-lhe tratando de lhe morder, mas Roger não se alterou. Tirou-a das sombras e a arrastou até a tênue luz da escotilha.

-Que diabos está fazendo aqui? -Nada! me deixe! me deixe, por favor! Suplico-lhe isso, por favor! -Como não

tinha torça para lutar suplicava com desespero-. Por favor, suplico-lhe isso, não

posso deixar que o matem, por favor! -Não vou matar a ninguém. Pelo amor de Deus, te acalme!.

Das sombras, detrás da cadeia da âncora, chegou o pranto de uma criatura- A jovem ofegou e o olhou enlouquecida.

-Vão ouvir! Deixe ir com ele!

Seguiu-a lentamente; ela não podia fugir, não tinha onde ir. Encontrou-os em um rincão do casco, entre o madeiramento e a cadeia da âncora.

-Não vou fazer lhe danifico -disse brandamente.

Ela não respondeu. Seus olhos se foram acostumando à escuridão. Viu uma mancha branca

que resultou ser seu peito; estava amamentando ao menino. -Que diabos faz aqui? -perguntou, embora sabia muito bem. -Estou escondida -respondeu com fúria-. Não te dá conta?

-O menino está doente? -Não! -Protegeu ao bebê e tratou de afastar-se, -Então...

-É só um sarpullido Todas as criaturas o têm, minha mãe me disse isso! Pôde detectar o medo na voz.

-Seguro? -disse com toda a suavidade que pôde.

263

Estirou uma mão para ela.

Morag lhe cravou a mão e Roger a retirou com um gemido de dor. -Maldita seja! Feriste-me!

-Fique aí! Tenho a adaga de meu marido -advertiu-lhe-. Não deixarei que me tire isso, matarei-te, juro que o farei!

Acreditou-. levou-se a mão à boca e sentiu o sabor de seu próprio sangue,

doce e salgada. -Não me vou levar isso. Mas se for varíola...

-Não o é! Juro que não é varíola! É um sarpullido do leite. Vi-o centenas de vezes. Sou a maior de nove irmãos e sei quando um pirralho está realmente doente.

Roger vacilou e logo, bruscamente, decidiu-se. Se estava equivocada e a criatura tinha varíola, ela também estaria infectada e devolver a à adega propagaria a enfermidade.

E se tinha razão, os dois sabiam que aquele sarpullido condenaria a morte à criatura.

-Não te vou delatar -sussurrou Roger. Respondeu-lhe um silêncio cheio de suspeitas. -Necessita comida, não? E água fresca. Sem água ficará sem leite muito em

breve. E então, o que acontecerá a criatura? Podia ouvi-la respirar com dificuldade.

-Quero vê-lo. -Não! Os olhos lhe brilhavam de medo; parecia um rato encurralado.

-Juro que não lhe tirarei isso, mas preciso vê-lo. -por que o jura? Procurou um juramento celta, mas não lhe ocorreu nenhum e disse o que

tinha na mente. -Pela vida de minha mulher -disse- e sobre a cabeça de meus filhos que

ainda não nasceram. Pôde sentir a dúvida e logo como se afrouxava a tensão. -Não posso deixá-lo solo para ir roubar comida. Os ratos o comeriam vivo.

me morderam enquanto dormia. Ainda vacilava, mas ao fim se tirou a criatura de entre as roupas e a

entregou. Não agarrava meninos muito freqüentemente. -Cuidado com a cabeça!

-Já a tenho -disse, sustentando a cabecita com uma mão. Deu uns passos para pôr o menino ante a tênue luz. As bochechas estavam cheias de pústulas que pareciam de varíola. Roger

sentiu um asco instantâneo. Imune ou não, fazia falta valor para tocar algo contagioso e não impressionar-se.

A criatura não parecia doente; seus olhos estavam claros e embora tinha febre não era o calor que sentiu a noite anterior no corpo do outro menino. O bebê gemia e se movia, mas suas patadas eram firmes, não os débeis espasmos

de um moribundo. -Muito bem -sussurrou finalmente-. Acredito que talvez tenha razão. Devolveu-lhe ao menino com uma mescla de alívio e desgosto e a aterradora

noção da responsabilidade que tinha aceito. -Quanto tempo? -sussurrou Roger agarrando-a do braço-. Quanto tempo

dura o sarpullido do leite?

264

-Quatro dias ou talvez cinco -sussurrou como resposta-. Mas se for

diferente pode durar só dois. Então, todos se darão conta de que não é varíola. Dois dias. Se era varíola o menino morreria em dois dias. Mas se não, ele

poderia arrumar-se. E ela também teria que fazê-lo. -Pode manter desperta todo esse tempo? Os ratos... -Sim, posso -disse com ferocidade-, Posso fazer o que tenho que fazer.

Ajudará-me? -Sim, farei-o. -Deu-lhe a mão e depois de um instante de dúvida a

estreitou-. Quantos anos tem? -perguntou súbitamente Roger. -Ontem tinha vinte e dois anos -respondeu com secura-. Hoje talvez tenha

cem.

A pequena mão se liberou da do Roger e se retirou à escuridão. 39 Um homem jogador

A bruma se acumulou durante a noite. Ao amanhecer, o navio parecia navegar dentro de uma nuvem tão espessa que do corrimão não podia ver-se o

mar e só pelos rangidos do casco sabiam que flutuavam sobre a água e não sobre o ar.

A escuridão beneficiava ao Roger; podia andar pelo navio quase sem ser

visto e deslizar-se pela escotilha com a pequena quantidade de mantimentos que me separava de sua comida e escondia dentro de sua camisa.

A criatura estava dormida. Roger só viu a curva da bochecha coberta de pústulas vermelhas. Morag captou seu olhar de dúvida e não disse nada, mas lhe agarrou a mão e a pôs no pescoço do pequeno.

O pulso pulsava forte baixo seu dedo e a pele estava quente e úmida. Isso lhe deu confiança e sorriu a jovem mãe, quem lhe respondeu com apenas um brilho de sorriso.

Um mês de viagem a tinha feito emagrecer e os últimos dois dias tinham gravado em seu rosto as linhas permanentes do temor. Seu cabelo caía sem vida,

sujo e gordurento. Em seus olhos se via o esgotamento e cheirava a urina, a sedimentos, a leite azedo e a suor.

Seus lábios estavam tão pálidos como o resto de sua cara. Roger a agarrou

amavelmente dos ombros e a beijou na boca. Ao chegar ao alto da escada se deu a volta e a olhou. Seguia ali, olhando-o

com a criatura em braços. Talvez poderiam obtê-lo; ao menos Roger estava convencido de que tinha razão e o menino não tinha varíola- Ninguém tinha necessidade de baixar à adega, já que tinham subido um barril com água fresca

no dia anterior. O a seguiria alimentando, se é que ela conseguia seguir acordada...

Enquanto Roger cruzava a popa ouviu um ruído e o navio tremeu.

-Baleia! -chegou o grito de acima. Houve outro movimento e a tripulação ficou em silêncio. Como seria de

grande?, perguntou-se Roger. esforçou-se por olhar, tratando inutilmente de ver através da névoa.

-Ignorantes -disse uma voz com suave acento irlandês. Roger deu um salto

e uns dentes se materializaram em uma sombra que resultou ser Bonnet. O capitão fumava um charuto que iluminava suas facções-. Arranham-se para livrar-se dos parasitas-explicó Bonnet—. Para as baleias não são mais que uma

pedra flutuante. Roger deixou escapar um suspiro um pouco menos ruidoso que os das

baleias. Tinha estado perto Bonnet? Tinha-o visto sair da adega?

265

-Não danificarão o navio? —perguntou, usando o mesmo tom

despreocupado do capitão. -Nunca se sabe -disse enquanto exalava a fumaça do charuto-. Qualquer

desses animais poderia nos afundar se tivesse capacidade para a maldade. Em uma ocasião vi um navio, ou o que ficou dele, destroçado por uma baleia zangada.

-Não parece preocupado pela possibilidade. Bonnet deixou escapar a fumaça entre seus lábios.

-Seria um desperdício de forças me preocupar por isso. O sábio deixa em mãos dos deuses as coisas que estão além de seu poder e reza para que Danu esteja com ele. Conhece o Danu, MacKenzie?

-Conheço o Danu, a que dá sorte -respondeu Roger, confiando contra toda esperança em que a deusa celta fora uma boa blusa de marinheiro e estivesse a seu lado.

-Homem instruído —repetiu Bonnet brandamente, sem ligeireza-, mas não sábio. É homem de oração, MacKenzie?

Roger ficou tenso, mas Bonnet o tinha pego pela boneca e não o soltava. -Pinjente que um homem sábio não se preocupa com as coisas que estão

além de seu poder. Mas neste navio, MacKenzie, tudo está em meu poder.

Apertou-o com mais força-, E todos. -Roger conseguiu soltar-se-. por que? -perguntou Bonnet, com relativo interesse-. A mulher não é tão bonita. E um

homem instruído não arriscaria meu navio e minha sorte só por um corpo quente.

-Não há risco. -As palavras soaram roucas-. O menino não tem varíola, é só

um sarpullido. -Desculpa que ponha minha ignorante opinião por cima da tua, MacKenzie,

mas aqui sou o capitão.

A voz seguia sendo suave, mas o rancor era evidente. -É uma criatura!

-É-o e sem nenhum valor. -Sem valor para um capitão, em todo caso! -E que valor pode ter? -perguntou implacável-. por que?

-Por piedade. Ela é pobre e não há ninguém que a ajude. Bonnet se moveu e Roger foi atrás dele. O capitão tirou um punhado de

moedas, escolheu um xelim de prata e guardou o resto. -Ah, piedade -disse-. Diria que é jogador, MacKenzie? Arrojou a moeda e Roger, por reflexo, apanhou-a.

-Pela vida do lactante, então -disse Bonnet com tom de diversão-. Poderíamos chamá-la uma aposta entre cavalheiros. Cara, vive; cruz, morre.

Não havia lugar para o medo. Arrojou a moeda e viu como caía sobre

coberta. Seus músculos se contraíram. -Parece que Danu está de seu lado esta noite -disse a suave voz de acento

irlandês enquanto recolhia a moeda. Começou a dar-se conta do acontecido quando o capitão o agarrou dos

ombros e o fez dar meia volta.

-Caminha comigo um momento, MacKenzie. Demorou para encontrar sentido às palavras do Bonnet. Quando o fez se

deu conta, com uma vaga sensação de assombro, de que lhe estava contando a

história de sua vida de forma direta e prática. Órfão a muito temprana idade no Sligo, tinha aprendido rapidamente a

cuidar-se trabalhando como grumete em navios mercantes. Mas um inverno em

266

que faltaram navios encontrou trabalho no Inverness, cavando os alicerces para

uma grande casa que foram edificar perto do povo. -Eu tinha só dezessete anos -disse-. Era o mais jovem do grupo de

trabalhadores. Não sei por que me odiavam. Talvez era por minha forma de ser ou porque sentiam ciúmes de minha força e tamanho. Ou porque as moças me sorriam. Ou possivelmente só porque era estrangeiro. Sabia que não era muito

popular entre eles, mas não soube bem até o dia em que terminamos os alicerces. Bonnet fez uma pausa e deu uma chupada a seu charuto.

-Estavam cavados os fossos, levantadas as paredes e a grande pedra angular lista. Eu tinha ido procurar minha comida e, quando retornei ao lugar onde dormia, detiveram-me uns moços que trabalhavam comigo. Tinham uma

garrafa, sentaram-se em uma parede e me convidaram a beber. Teria que ter desconfiado porque nunca tinham sido amistosos, mas bebi e bebi e ao momento estava totalmente bêbado por minha falta de costume. Para minha surpresa me

levantaram e me deixaram cair no porão que tinha ajudado a construir. Todos estavam ali, inclusive Joey o Parvo, que não era do grupo, a não ser um mendigo

que vivia debaixo da ponte, não tinha dentes e comia pescado podre. Estava tão enjoado pelo uísque e a queda que logo que podia ouvir o que diziam, embora me pareceu que discutiam. O chefe do grupo estava zangado com os dois que me

tinham levado até ali. O tomo servirá, dizia, e lhe fazemos um favor. Mas os outros diziam que não, que eu era melhor. Alguém podia sentir falta de ao

mendigo. Outro riu e disse que não teriam que pagar meu salário. Então me dava conta de que queriam me matar.

Tinham falado antes, enquanto trabalhávamos. Um sacrifício, diziam, para

os alicerces, para que a terra não trema e se derrubem as paredes. Mas não tinha emprestado atenção. De havê-lo feito tivesse pensado que foram enterrar um frango, que era o habitual.

Enquanto falava não tinha cuidadoso ao Roger. Tinha os olhos cravados na névoa, como se o que descrevia estivesse acontecendo outra vez naquela cortina

espessa. Roger estava empapado de suor frio e lhe doía o estômago. -Seguiram discutindo -continuou Bonnet- e o mendigo começou a fazer

ruídos porque queria que lhe dessem mais bebida. Até que o chefe disse que não falariam mais e arrojou uma moeda ao ar. Eu não tive forças para me dar a volta

e olhar. Então fizeram sentar ao parvo. Ainda lembrança sua cara sorridente e sua boca aberta. Um momento depois a pedra caiu e lhe esmagou a cabeça.

-me golpearam -continuou Bonnet-. Quando despertei estava no fundo de

um navio de pesca. O pescador me baixou na costa, perto do Peterhead, e me aconselhou que procurasse um navio. Disse-me que eu não estava feito para a vida de terra firme.

Sacudiu o charuto para lhe tirar a cinza. -Tinha meu salário no bolso. Eram homens honrados com toda segurança.

Roger se inclinou sobre o corrimão, aferrando-se à única coisa sólida em um mundo de névoas.

-E retornou a terra?

-Quer dizer se os busquei. -Bonnet se voltou e se apoiou no corrimão de cara ao Roger- Sim, sim. Anos mais tarde. Um por um os encontrei a todos.

Abriu a mão em que tinha a moeda.

-Cara, vive; cruz, morre. Uma possibilidade justa, não te parece, MacKenzie?

-Para eles?

267

-Para ti.

A voz com acento irlandês era tão inexpressiva que poderia ter estado falando sobre o tempo.

Como em um sonho, Roger sentiu o peso do xelim em sua mão. -Uma possibilidade justa -disse Bonnet- A sorte te acompanhou antes,

MacKenzie. Vejamos se Danu te ajuda outra vez.

-É minha vida, atirarei eu -disse Roger, surpreso para ouvir sua própria voz tão tranqüila e segura-. Cruz, escolho cruz.

Fechou os olhos e pensou uma vez mais na Brianna. "Sinto muito", disse em silêncio e levantou a mão. Não abriu os olhos, nem se moveu. Mas notou que Bonnet retirava a moeda.

Demorou um momento em dar-se conta de que estava sozinho.

NOVENA PARTE

APAIXONADAMENTE

40 Sacrifício virginal

Wilmington, colônia da Carolina do Norte 1 de setembro de 1769 Era o terceiro ataque, tivesse o que tivesse Lizzie. Pareceu recuperar-se

depois do primeiro acesso de febre e, depois de um dia de descanso, insistiu em que estava em condições de continuar viagem. Mas não fizeram mais que

cavalgar durante um dia para o norte do Charleston quando a febre voltou de novo.

Brianna tinha pacote os cavalos e acampado perto de um arroio. Durante a noite procurou água para dar de beber ao Lizzie e lavar seu corpo ardoroso. Pela manhã a febre tinha desaparecido e, embora Lizzie estava débil e pálida, podia

voltar a montar. Brianna vacilou, mas finalmente decidiu que era melhor avançar para o Wilmington que retroceder. Agora corria pressa encontrar a sua mãe, tanto

por ela como pela saúde do Lizzie. A jovem se estremecia e Brianna pensou, uma vez mais, que era malária.

Ao chegar à costa os mosquitos não as tinham deixado em paz e a moça tinha

marcas de picadas no pescoço. Necessitava quinina, mas não tinha nem idéia de como chamavam ali à quinina, nem como a administravam. A malária era uma enfermidade antiga e a quinina provinha das novelo; assim estava convencida de

que algum médico poderia ajudá-la, Mas estavam no Wilmington e ainda não tinha encontrado a ajuda que

procurava. A mulher da estalagem mandou a procurar o farmacêutico assim que viu o Lizzie. Brianna sentiu um súbito alívio ao ver um jovem bem vestido e com as mãos razoavelmente limpa.

ficou fora enquanto examinava ao Lizzie, mas para ouvir um grito de angústia abriu a porta, descobrindo ao jovem farmacêutico com uma lanceta na mão e ao Lizzie com o rosto da cor do giz e um talho na curva do cotovelo.

-Isto é para drenar os humores, senhorita! -explicou o farmacêutico, tratando de proteger-se-. Não compreende? Se não o fizer, a bílis intoxicará todo

seu corpo e será muito prejudicial para ela!

268

-Se não sair agora mesmo eu sei quem será o prejudicado-dijo Brianna-.

Fora daqui! -Se não me fizer caso condenará a sua faxineira! -gritou indignado-. Não

sabe como cuidá-la! Era verdade, nem sequer sabia qual era a enfermidade do Lizzie. O

farmacêutico tinha falado de «febres» e a posadera de «aclimatação». Era comum

que os emigrantes adoecessem ao estar expostos a novos gérmenes. A mulher tinha acrescentado que esses emigrantes não estavam acostumados a sobreviver

à aclimatação. Água era quão único tinha, a fazia ferver e a deixava esfriar. Deixou cair um pouco entre os lábios ressecados do Lizzie, logo a lavou e a

voltou a deitar. A jovem lhe dirigiu um sorriso que pareceu um suspiro e ficou dormida como uma boneca de trapo.

Brianna se deixou cair em uma banqueta que havia debaixo da janela, em

um vão intento de respirar ar fresco. No caminho desde o Charleston a atmosfera tinha estado pesada e as envolvia como uma grosa manta. Brianna fechou os

olhos e apoiou a cabeça no marco de madeira. A febre do Lizzie parecia ter desaparecido... mas por quanto tempo? Se continuava era muito provável que acabasse com a jovem; esta tinha perdido todo o peso que tinha ganho durante a

viagem e sua pele tinha adquirido uma cor amarelada. Não ia encontrar ajuda no Wilmington. Devia vender os cavalos e procurar

um bote que as levasse rio acima. Embora lhe voltasse a febre, cuidaria melhor ao Lizzie em uma embarcação que naquele quarto quente e sujo, e enquanto isso se aproximariam de seu destino.

levantou-se, lavou-se a cara e se tirou as calças enquanto fazia planos para a viagem. Seguro que no rio não faria tanto calor e poderiam descansar dos cavalos. Navegariam até o Cross Creek, onde se encontrariam com a Yocasta

MacKenzie. -Tia -murmurou-. Tia avó Yocasta.

imaginava a uma bondosa anciã de cabelos brancos, que a receberia com a mesma alegria que encontrou no Lallybroch. Uma família. Estaria bem ter uma família outra vez. Roger apareceu em seus pensamentos, como acontecia

freqüentemente- Apartou-o a um lado com determinação; já teria tempo de pensar nele quando terminasse sua missão.

Yocasta saberia exatamente onde estavam Jamie Fraser e sua mãe e a ajudaria a encontrá-los. Sua mãe se ocuparia do Lizzie, ela sabia ocupar-se de tudo.

Atirou uma manta no chão e se deitou sobre ela nua. ficou dormida imediatamente, sonhando com montanhas e com neve branca e poda.

À tarde seguinte as coisas tinham melhorado. A febre tinha desaparecido deixando ao Lizzie débil, mas com a cabeça limpa e o corpo tão frio como o

permitia o clima. Recuperada depois de uma noite de descanso, Brianna se tinha lavado o cabelo e o corpo. ficou calções e casaca e, depois de lhe pagar a posadera para que cuidasse do Lizzie, partiu para ocupar-se de seus assuntos.

Levou-lhe quase todo o dia (tendo que suportar as bocas abertas e os olhares de incredulidade, quando os homens se davam conta de que era uma mulher) vender os cavalos pelo que ela pensava que era um preço decente.

Falaram-lhe de um homem chamado Viorst que levava passageiros do Wilmington ao Cross Creek em sua canoa. Mas não pôde encontrá-lo e não tinha intenção de

passear-se pelos moles ao anoitecer, com ou sem calções.

269

Quando retornou à estalagem, ao pôr do sol, encontrou ao Lizzie comendo.

-Está melhor! -exclamou Brianna. Lizzie assentiu enquanto tragava.

-Estou bem, e a senhora Smoots foi muito amável ao me deixar lavar todas nossas coisas. Sinta tão bem sentir-se limpa outra vez! -disse com ardor.

-Não deveria lavar e engomar ainda -disse Brianna sentando-se a seu lado

em um banco-. Pode te cansar e voltar a recair. -Bom, não acredito que você gostasse de te encontrar com seu pai levando

a roupa suja. -Encontrar a meu pai? Inteiraste-te que algo, Lizzie? -Sim, foi quando estava lavando. Meu pai dizia que a virtude traz consigo

um prêmio. -Estou segura disso -respondeu Brianna secamente-. O que é o que

averiguou e como?

-Bom, estava pendurando suas anáguas, essas com a cinta... Brianna levantou um jarro com leite e o agitou amenazadoramente sobre a

cabeça do Lizzie. A moça se fez a um lado entre risadas nervosas. -Está bem! Enquanto lavava, um dos patrões saiu ao pátio a fumar seu cachimbo e

ficou a conversar com o Lizzie. Então se inteirou de que o cavalheiro, chamado Andrew MacNeill, não só tinha ouvido falar do James Fraser, mas também

também o conhecia. -Conhece-o? O que te disse? Está ainda aqui esse MacNeill? Lizzie levantou uma mão para que a deixasse continuar.

-Vou o mais rápido que posso. Não, não está aqui. Tratei de fazer que ficasse, mas devia partir a New Bern e não podia esperar. -Estava quase tão excitada como Brianna-. O senhor MacNeill conhece m pai e a sua tia avó

Cameron também; diz que é uma grande senhora, muito rica, com uma grande mansão, numerosos escravos Y...

-Não importa isso. O que disse de meu pai? Mencionou a minha mãe? -Claire -disse triunfalmente Lizzie-. Disse que esse era o nome de sua mãe,

não? Perguntei-lhe e disse que sim, que o nome da senhora Fraser era Claire.

Disse que era uma surpreendente curadora e que a tinha visto operar um homem em meio da mesa do comilão com todos os comensais olhando.

-Essa é minha mãe. -Riu e os olhos lhe encheram de lágrimas-. Estão bem? Tinha-os visto ultimamente?

-Isso é o melhor de tudo! -Os olhos do Lizzie se abriram e se inclinou para

diante-. Ele está no Cross Creek! Um homem, conhecido dele, vai ser Julgado por uma agressão e foi para declarar como testemunha. O senhor MacNeill diz que a corte não se reúne até na segunda-feira de na próxima semana porque o juiz está

doente. -na segunda-feira que vem..., e hoje é sábado. Pergunto-me quanto se

demorará para chegar rio acima. -Não sei, mas a senhora Smoots me há dito, que seu filho fez a viagem uma

vez. Podemos lhe perguntar a ele.

Brianna se deu a volta olhando ao redor. -Quem é Smoots filho? -perguntou, olhando a todos os homens que comiam

ou bebiam na estalagem. -Yonder, o moço dos olhos castanhos. Posso ir buscá-lo?

Cheia de entusiasmo, Lizzie se levantou e se abriu passo entre a gente

270

Brianna tinha a jarra de leite nas mãos mas não se serve. Tinha a garganta

fechada pela excitação. Pouco mais de uma semana!

Wilmington era um pequeno povo, pensou Roger. Em quantos lugares podia estar ela? Se é que estava ali.

-Está aqui -murmurou-. Maldição, sei que está aqui! Tinha-lhe resultado

fácil ir desde o Edenton ao Wilmington. Quando teve que descarregar a adega do Gloriana, agarrou uma gaveta com chá e o levou até um depósito do porco. Logo

esperou a que passassem os outros homens, torceu à direita em lugar de a esquerda e se dirigiu ao povo. À manhã seguinte encontrou trabalho como carregador em um pequeno navio que transportava equipamento navais até um

depósito do Wilmington, de onde seriam embarcados em um navio maior com rumo à Inglaterra.

Sem remorsos, voltou a escapar do navio no Wilmington. Tinha que

encontrar a Brianna e não podia perder tempo. Sabia que ela estava ali. A Colina do Fraser estava nas montanhas, assim necessitaria um guia e Wilmington

parecia o lugar adequado para encontrá-lo. Em um rápido percurso pela rua principal e o porto pôde contar vinte e três

botequins, Diabos, aquela gente bebia como esponjas! Existia a possibilidade de

que tivesse procurado uma habitação em uma casa, mas os botequins eram o melhor lugar para começar a busca.

Na quinta encontrou a um homem que a tinha visto, e a uma mulher na sétima. «Um homem ruivo e alto», disse o primeiro. E a segunda, com expressão escandalizada, explicou-lhe que tinha visto uma mulher robusta, vestida com

calções de homem, com a casaca na mão e a parte traseira à vista de todos». Ao anoitecer averiguou que a jovem alta e ruiva que levava roupa de homem

tinha sido comentário público durante quase uma semana. Com esta informação,

e depois de um intercâmbio de palavras com dois bêbados, abandonou o botequim número quinze. É que as mulheres não tinham sentido comum? É que

Brianna não sabia do que eram capazes alguns homens? deteve-se em meio da rua secando o suor do rosto. Decidiu gastar um

penique ou duas na comida e talvez o dono o deixasse dormir nas quadras. Assim

que se encaminhou ao Blue Bull. Ali estava ela. Sentada ao lado do fogo, com sua rabo-de-cavalo iluminada

pelas chamas e conversando animadamente com um jovem, cujo sorriso Roger desejou apagar de um golpe, Em lugar disso deu uma portada e se dirigiu para ela. Brianna se deu a volta e contemplou a aquele barbudo. Ao reconhecê-lolhe

iluminaram os olhos e um grande sorriso se apareceu em seu rosto. -Ah! -disse-. É você. Então sua expressão sofreu uma mudança. Gritou. Um grito escandaloso

que fez que todos a olhassem. -Maldita seja! -Agarrou-a do braço-. Que demônios crie que está fazendo?

Seu rosto ficou mortalmente pálido e seus olhos se escureceram pela impressão. Tratou de liberar-se.

-me deixe! .

-Não o farei! Você te vem comigo agora mesmo! Agarrou-a do outro braço, levantou-a e a fez dirigir-se para a porta. -MacKenzie! -Maldição, era um dos marinheiros do cargueiro-. O que lhe

está fazendo à moça, MacKenzie? Deixa-a! Houve um movimento de interesse entre os paroquianos. Tinha que sair

agora ou não poderia fazê-lo nunca.

271

-lhes diga que tudo está bem, lhes diga que me conhece! –sussurrou no

ouvido da Brianna. -Está bem -disse Brianna com voz rouca-. Está tudo bem. Conheço-o.

O marinheiro retrocedeu um pouco, ainda com dúvidas. Uma jovem, com uma garrafa na mão, gritou com voz gritã.

-Senhorita Bri! Não se irá com esse malvado, não?

-Está bem -repetiu com mais firmeza-. Conheço-o. –Fez um gesto à moça—, Lizzie, vete à cama. Eu... eu voltarei mais tarde.

deu-se a volta e caminhou com rapidez para a porta. -Que escás fazendo aqui? -perguntou na porta. Tinha-a agarrado do braço e a arrastava rua abaixo para a sombra de um

grande castanho. voltou-se para ele assim que chegaram às sombras. -O que está fazendo aqui?

-te buscar! E o que está fazendo aqui você? E vestida assim, por todos os Santos! Teria sido o mesmo sair nua à rua!

-Não seja idiota! O que está fazendo aqui? -Já lhe hei isso dito, te buscar. Agarrou-a pelos ombros e a beijou com força. A fúria, o aborrecimento e o

alívio por havê-la encontrado se mesclavam com a intensidade de seu desejo, lhe fazendo tremer. O mesmo acontecia a Brianna, que se estremecia entre seus

braços. -Bem -sussurrou Roger, enterrando a boca entre os cabelos da jovem-. Está

bem, estou aqui. Eu me ocuparei de ti.

endireitou-se liberando-se de seus braços. -Bem? -exclamou-. Como pode dizer isso? Pelo amor de Deus, está aqui! O horror de sua voz era inconfundível-E onde ia estar quando te lança ao

inferno arriscando o pescoço...? por que demônios o fez? -Estou procurando a meus pais. O que outra coisa podia estar fazendo

aqui?. -Isso já sei! O que quero dizer é por que diabos não me disse isso! -Porque não me tivesse deixado vir, por isso! Teria tratado de me deter Y...

-Tem toda a razão! Tivesse-te encerrado em seu quarto, maça de pés e mãos' De todas as estupidezes...

Brianna lhe deu uma torta. -te cale! -Maldita mulher! Esperava que te deixasse ensinar o culo na praça do

mercado? Que classe de homem crie que sou? Intuiu o movimento antes de vê-lo e pôde lhe sujeitar a boneca. -Não estou de humor para lhe toque isso moça! me pegue outra vez e te

juro por minha Santa mãe que te arrependerá! Brianna fechou a outra mão e lhe deu um murro no estômago, tão rápido

como o ataque de uma serpente. Roger teve desejos de golpeá-la. Agarrou-a do cabelo e a beijou com toda a

força que pôde.

Lutou e se retorceu deixando escapar sons afogados, mas Roger não se deteve até que ela cedeu, e os dois caíram de joelhos. Brianna se abraçou a seu pescoço e começou a chorar. Roger a sustentava enquanto ela tossia e chorava.

-por que? -Soluçava-, por que me seguiu? Não te dá conta? Agora o que vamos fazer?

-Fazer? Fazer o que?

272

Não sabia se chorava de fúria ou de medo. Certamente, pensou Roger, seria

por ambas as coisas. A jovem o contemplou através das mechas despenteadas de seu cabelo.

-Retornar! Você é a única pessoa que amo. Como vou retornar se você estiver aqui? E como vais retornar, se eu estiver aqui?

-Por isso? Por isso não me queria dizer isso? Pór que me ama? me valha

Deus! Soltou-lhe as bonecas e se atirou sobre ela- Agarrou-lhe a cara com as

duas mãos e tratou de beijá-la. Brianna dobrou as pernas e o golpeou nas costelas.

-Pelo Judas! -disse Roger, agarrando-a do cabelo-, O que é isto, luta livre?

-me solte- -Brianna sacudiu a cabeça, tratando de liberar-se-. Detesto que me atirem do cabelo.

Roger a soltou e lhe aconteceu as mãos pelo pescoço.

-Muito bem. Você gosta que lhe estrangulem? -Não.

-A mim tampouco. Tira o braço de meu pescoço, quer? Com lentidão, Brianna afrouxou a pressão. -Bem -sussurrou Roger-. Diga-o. Quero ouvi-lo.

-Quero-te -disse entre dentes—, Entende? -Sim, entendo. -Agarrou-lhe a cara com suavidade e a aproximou.

Tremente, Brianna o abraçou-. Está segura? -Sim. O que vamos fazer? -disse e começou a chorar. Roger estava atirado ao lado de um caminho, sujo, machucado, morto de

fome e com uma mulher que tremia e chorava contra seu peito, e que de vez em quando lhe golpeava com os punhos. Não se havia sentido tão contente em toda sua vida.

-Tranqüila -sussurrou embalando-a-. Não passa nada, conheço outra forma de retornar. Não se preocupe, cuidarei de ti.

Por fim deixou de chorar e se sentou. -Tenho que me soar o nariz. Tem um lenço? Deu-lhe o trapo úmido que usava para atar o cabelo. depois de fazer toda

classe de ruídos, Brianna suspirou profundamente e abraçou com força ao Roger, que sorria na escuridão.

-Sinto muito -disse-. Não queria que viesse detrás de mim. Mas... Roger, me alegro muito de que esteja aqui!

Beijou-a na nuca, que estava úmida e salgada pelo suor e as lágrimas.

-Eu também -respondeu, e por um momento todos os perigos dos últimos dois meses pareceram insignificantes. Todos salvo uma coisa...

-Quanto tempo levava planejando-o? -perguntou. E pensou que podia fixar

o dia graças à mudança que percebeu em suas cartas. -Bom... uns seis meses -respondeu, confirmando suas suspeitas-. Desde

que fui a Jamaica durante as férias de Páscoa. -Sim? Jamaica em lugar de Escócia. Lhe tinha pedido que se vissem ali e ele se

negou ofendido por não havê-lo planejado juntos. Brianna suspirou profundamente e se soou o nariz. -Seguia sonhando -explicou-. Comigo pai. Pais. Com os dois. Havia um

sonho em particular... Soavam tambores e eu sabia que havia algo oculto esperando, algo horrível. Minha mãe estava ali, bebendo chá com um crocodilo. -

273

Roger grunhiu e a voz da oven se fez mais cortante-. Era um sonho, dá-te conta?

Logo ele saía de entre os canos. Não podia ver seu rosto porque estava escuro, mas seu cabelo era ruivo, via

reflexos acobreados quando movia a cabeça. -O que estava entre os canos era ele? -Não. Estava entre minha mãe e essa coisa horrível. Não podia vê-la mas

sabia que estava ali, esperando. -estremeceu-se involuntariamente e Roger a abraçou com mais força-. Então soube que minha mãe ia se levantar para ir para

aquela coisa e tratei de detê-la, mas não podia me fazer ouvir. Então gritei a ele que fora a salvá-la. Viu-me! Viu-me e me ouviu. Então despertei.

-Sim? -disse Roger com cepticismo-, E isso te fez ir a Jamaica?

-Fez-me pensar -respondeu cortante-. Você tinha investigado. Não os encontrou em Escócia depois de 1766 e tampouco apareciam nas listas de emigração às colônias. Foi então quando disse que era melhor abandonar; que

não encontraríamos nada. Roger se alegrou de que a escuridão ocultasse sua culpa.

-Mas o lugar onde se desenvolvia meu sonho era tropical... Não podia ser que estivessem nas Antilhas?

-Já procurei -disse Roger-. Olhei as listas de passageiros de todos os navios

que se dirigissem a qualquer parte desde o Edimburgo ou Londres entre 1760 e 1770. Disse-lhe isso -acrescentou com impaciência.

-Já sei -respondeu com igual impaciência-. Mas e se não eram passageiros? por que ia a gente às Antilhas então? Quero dizer, agora.

-A maioria para comercializar.

-Exato. Por isso podiam ter ido em um navio de carga e não figurar na lista de passageiros.

-De acordo -disse lentamente-. É certo, não figurariam. E como foi buscá-

los? -Registros dos depósitos, livros de contas das plantações, declarações nos

portos. Passei todas as férias em bibliotecas e museus. Y... e os encontrei. «Diabos, tinha visto a notícia.» -Sim? -disse, lutando por manter a calma.

Brianna riu um pouco insegura. -O capitão de um navio chamado Artemis, cujo nome era James Fraser,

vendeu cinco toneladas de guano na baía do Montego em 2 de abril do ano 1767. -Sim? Capitão de um navio? depois de tudo o que disse sua mãe sobre

como se enjoava no mar? E não é por te desanimar mas devem existir centenas

do James Fraser. Como pode saber...? -Pode ser, mas em primeiro de abril, uma mulher chamada Claire Fraser

comprou um escravo no mercado de escravos do Kingston.

-Que ela o que? -Não sei por que -disse Brianna com firmeza-, mas estou segura de que foi

por uma boa razão. -Bom, claro, mas... -Os papéis dizem que o nome do escravo era «Temeraire», e o descrevem

dizendo que lhe faltava um braço. Isso o explica, não? De todos os modos procurei esse nomeie em uma coleção de periódicos velhos, não só das Antilhas, mas também também das colônias do sul. Minha mãe não ficaria com um

escravo; se o comprou deveu lhe dar a liberdade de algum jeito. As notícias de emancipação figuravam nos periódicos locais. Pensei que talvez o encontraria.

-E o encontrou?

274

-Não. -ficou em silencio por um instante-. Encontrei... outra coisa. A notícia

de sua morte. a de meus pais. -Onde? -perguntou brandamente-. Como?

Escutava-a pela metade enquanto se amaldiçoava. Deveu ter sabido que era muito obstinada para convencê-la. Tudo o que tinha conseguido com sua estupidez foi obrigá-la a guardar o segredo. E tinha tido que pagá-lo com meses

de preocupação. -A notícia é de 1776, assim estamos a tempo de encontrá-los. -Suspirou-.

Me alegro de que esteja aqui. Estava muito preocupada pensando que podia descobri-lo antes de que retornasse. Não sabia o que faria.

-O que ia fazer... já sabe -disse em tom despreocupado-. Tenho um amigo

com um menino de dois anos. Diz que nunca tinha aceito que se maltratasse aos meninos, mas que agora o entende. Nestes momentos sinto o mesmo sobre os maus entendimentos às mulheres.

-O que quer dizer com isso? Soltou uma leve gargalhada.

-Quero dizer que se fosse um homem desta época, em lugar do que sou, nada me daria mais agradar que me tirar o cinturão e te dar uma surra.

-Assim como não é desta época, não pode fazê-lo? Ou pode, mas não

desfrutaria? Não parecia tomá-lo a sério.

-Desfrutaria -assegurou-lhe-. Nada eu gostaria mais. Brianna se estava rendo. Em um arranque de fúria a apartou e se sentou. -O que passa contigo? Acreditei que tinha encontrado a outro homem. Suas

cartas dos últimos meses... e logo a última. Estava seguro. Por isso quero te pegar, não por me mentir ou por ir sem me avisar, mas sim por me fazer acreditar que te tinha perdido!

-Sinto muito -disse depois de um silêncio-. Nunca quis que pensasse isso. Quão único desejava era evitar que o descobrisse até que fora muito tarde. -

Olhou-o-. Como te deu conta? -Suas caixas. Chegaram à universidade. -Como? Mas os pinjente que as enviassem no fim de maio, quando você

estivesse em Escócia! -Deveria ter sido assim, mas uma conferência de última hora me reteve em

Oxford. Chegaram um dia antes de partir. A voz da Brianna soou curiosamente rouca. -Creíste que tinha encontrado a outro... e mesmo assim veio a me buscar?

-Teria vindo embora te tivesse casado com o rei do Siam. Maldita mulher. Suspirou lentamente. -Disse maltratar à esposa.

-Você disse que estava segura. É a sério? -Sim -respondeu brandamente.

-No Inverness, disse-te... -Disse-me que me teria toda ou não me teria. E eu te disse que te entendia.

Estou segura.

Acariciou-a e afundou o rosto entre seus cabelos. Brianna se aferrou a seus ombros e se tornou para trás. Sim, dizia-lhe. Lhe respondeu lhe abrindo a blusa e deixando ao descoberto seus peitos brancos e suaves.

-Por favor -disse Brianna-. Por favor! -Se tomar agora será para sempre -sussurrou.

-Sim -respondeu.

275

A porta do botequim se abriu lhes provocando um sobressalto. Roger ficou

em pé e lhe deu a mão para ajudá-la a levantar-se- Esperaram até que as vozes se perderam na distância.

-Vêem -disse Roger, grampeando-os calções. Havia um abrigo escuro e tranqüilo a certa distância do botequim;

detiveram-se na entrada esperando; não ouviram nada na parte de atrás da

estalagem; não havia luz nas janelas do piso superior. -Espero que Lizzie se foi à cama.

-Sabe o que é um matrimônio a prova? -disse Roger, perguntando-se quem seria essa Lizzie.

-Não exatamente. É uma espécie de matrimônio temporário?

-Mais ou menos. Nas ilhas e nas partes mais afastadas das montanhas de Escócia, onde é difícil encontrar algum ministro, um homem e uma mulher se casam a prova, fazem votos por um ano e um dia. Ao finalizar o prazo procuram

um ministro e se casam, ou se separam e se vão cada um por seu lado. A jovem lhe oprimiu a mão.

-Não quero nada temporal. -Eu tampouco. Mas não acredito que encontremos um ministro por aqui.

Ainda não se construíram Iglesias. O mais próximo deve viver em New Bern. -

Levantou as mãos- Disse-te que o queria tudo, e se você quer te casar comigo... -Sim, quero.

-Muito bem. Roger respirou profundamente e começou. -Eu, Roger Jeremiah, aceito a Brianna Ellen como legítima algema. Para

protegê-la e cuidá-la... -A mão da Brianna apertou a sua-. Na saúde e a enfermidade, na pobreza e na riqueza, até que a morte nos separe.

«Se fizer estes votos, manterei-os custe o que custar.»

O que estaria pensando ela agora? Brianna falou com grande determinação.

-Eu, Brianna Ellen, tomo a ti, Roger Jeremiah... -sua voz era apenas mais alta que os batimentos do coração de seu próprio coração, mas ouvia cada palavra- enquanto durem nossas vidas.

A frase significava bastante mais para ambos, pensou Roger, que o que tivesse significado uns meses atrás. O passar através das pedras para pensar na

fragilidade da vida. Houve um momento de silêncio logo que interrompido pelo murmúrio de

vozes distantes do botequim. Roger levantou a mão da Brianna e a beijou no dedo

anelar, onde um dia, se Deus o permitia, teria seu anel. O abrigo estava muito escuro e despi-la foi uma sucessão de frustrações e

deleites.

-E eu que acreditava que aos cegos levava anos desenvolver o sentido do tato... -murmurou.

A risada cálida da jovem lhe fez cócegas no pescoço. -Ânfora -murmurou sobre a suave curva de seus lábios, deslizando as mãos

pelas curvas de seus quadris sólidos e frescas que prometiam abundância-. Como

uma vasilha grega. Tem um traseiro precioso! Vibrava contra ele e sua risada passava de seus lábios aos do Roger como

uma corrente. Sua mão baixou pelo quadril do Roger, primeiro vacilante e logo

com mais segurança. -Bom... é como uma corda... não, como uma enguia..., talvez como uma

serpente,., Joder, como se chama?

276

-Tinha um amigo que o chamava Dom Contente -disse Roger-, mas para

meu gosto é um nome muito frívolo. Abraçou-a e a beijou outra vez.

Brianna tremia, mas Roger não acreditava que fora de risada. Aproximou-a mais, surpreso pelo puro tamanho corporal da jovem. Agora que estava nua, todos os complexos planos de ossos e músculos se transformaram em uma

imediata sensação entre seus braços. Fez uma pausa para respirar.

-Nunca pude beijar a uma mulher sem me inclinar -disse, tratando de recuperar o fôlego.

-Bom, homem, não queremos que fique rígido o pescoço.

A voz da Brianna voltava a tremer, outra vez de risada, certamente, e Roger pensou que era uma mescla de humor e nervosismo.

-Ja, ja, ja -exclamou e a abraçou outra vez.

Seus peitos eram firmes e arredondados, e cada vez que os tocava lhe intrigava sua suavidade e firmeza.

Não podia beijá-la e despir-se de uma vez, assim arqueou as costas para que Brianna lhe baixasse os calções. liberou-se deles sem deixar de abraçá-la. Finalmente deixou de beijá-la respirando com dificuldade.

-me poderia soltar isso um momento? Sei que é uma boa asa, mas tem usos melhores.

Em lugar de soltá-la, Brianna ficou de joelhos. Roger se moveu inquieto. -Mulher, está realmente segura de que quer isso? Não estava seguro de se ele o desejava ou não, mas seu membro tremia de

desejo. -Não quer que o faça? As mãos femininas se moviam acariciando suas coxas e Roger sentia que

lhe punham todos os cabelos de ponta. -Bom... sim. Mas faz dias que não me banho –respondeu Roger.

Deliberadamente, Brianna esfregou o nariz sobre o estômago do homem e respirou profundamente.

-Embriaga-me este aroma -sussurrou-. Cheira a macho.

-O que quer que lhe eu faça? -murmurou ele. Que suave e quente era seu corpo.

Sentiu os cabelos da jovem em suas coxas e seus pensamentos abandonaram toda coerência.

-upo'em?

-O que? Foi como despertar de um desvanecimento. -Pergunto-te se chupar bem -disse Brianna, tornando o cabelo para trás.

-Ah... sim, acredito que sim. -Crie? Não está seguro?

Brianna parecia ter recuperado a compostura com a mesma rapidez com que Roger a tinha perdido para ouvir a risada contida da jovem.

-Bom... não -disse-. Quero dizer, eu não... quer dizer, ninguém... Sim, isso

acredito. antes de que pudesse protestar a levantou para deitá-la sobre a palha onde

tinham atirado suas roupas. Excitado mas com cuidado, Roger fez sua parte. Já o

tinha feito em outra ocasião; então se tinha encontrado com emanações femininas que recordavam a flores de igreja.

277

Mas Brianna não era essa classe de mulher higiênica. Seu aroma o encheu

de desejo e luxúria. Beijou-a em seu pêlo encaracolado. -Maldição -disse.

-O que acontece? -perguntou com certo alarme-. Cheiro tão mal? -Não. -Riu-. É que faz um ano que me pergunto de que cor é seu pêlo. E

agora que o tenho em frente não posso vê-lo.

Brianna lançou uma risita. -Quer que lhe diga isso?

-Não, deixa que me surpreenda pela manhã. Inclinou a cabeça surpreso pela variedade de texturas em tão breve espaço.

Então sentiu suas mãos sobre sua cabeça como uma bênção.

-Estou-o fazendo bem? -perguntou médio em brincadeira. -OH, fui-dijo brandamente-. com certeza que sim. aferrou-se a seus cabelos.

-E como diabos sabe? -perguntou. A resposta foi uma risada afogada- Logo, sem saber como, encontrou-se

sobre ela, sua boca na sua, todo o peso de seu corpo apertando-a e sentindo o calor de sua pele.

Ela tinha gosto a ele e ele a ela. Se Deus não o ajudava, não ia poder

conter-se. Mas o fez. Brianna estava ansiosa e o tocava muito rápido. Agarrou-lhe as mãos e as colocou sobre seu peito.

-Sente meu coração -disse-lhe com voz rouca- e me diga se se detiver. Não tinha querido ser gracioso e lhe surpreendeu sua risada nervosa. -Amo-te -murmurou-. OH, Bri, amo-te.

-Continua! -sussurrou Brianna. Fechou os olhos e permaneceu assim, pressionando brandamente. -Roger?

-Sim? -É... é realmente grande, não?

Sua voz tremia. -Ah... -Tratou de recuperar-se-. O normal. -Um relâmpago de preocupação

o sacudiu-. Faço-te mal?

-Não, não exatamente. É... Poderia ficar aquieto um minuto? -Um minuto, uma hora. Toda a vida sim o deseja.

Pensou que morreria feliz, assim, sem mover-se. -Agora está bem -sussurrou Brianna em seu ouvido e, como um autômato,

começou a movê-lo mais lentamente que pôde, guiado pela mão dela em suas

costas. Sabia que agora o fazia danifico mas não podia deter-se. Deixou escapar

um som profundo; agora, tinha que fazê-lo agora.

-Amo-te -disse Brianna com a voz rouca-. Fica comigo. -Toda a vida -respondeu abraçando-a.

Descansavam de seus esforços juntos e em paz. -Está bem, meu amor? -murmurou Roger-- Tenho-te feito mal?

-Sim, mas não importa. -Passou-lhe a mão pelas costas lhe produzindo um estremecimento-, esteve bem? Tenho-o feito bem? -disse com nervosismo.

-Fenomenal!

Inclinou a cabeça e a beijou. -esteve bem então?

-foi a hóstia!

278

-É muito blasfemo para ser filho de um ministro -disse a mulher com tom

acusador-. Talvez essas velhas senhoras do Inverness tinham razão e está diabólico.

-Não são blasfêmias. São preces de agradecimento. Brianna se pôs-se a rir. -Ah, então tudo está perfeitamente bem -disse com evidente alívio.

-Joder, sim -disse, fazendo-a rir outra vez-. Como pode pensar outra coisa? -Bom, não disse nada absolutamente. Ficou como alguém a quem golpeiam

na cabeça; pensei que talvez te tinha desiludido. Agora lhe tocou rir ao Roger. -Não; OH, não -disse, recuperando-se finalmente-. Comportar-se como se

lhe tivessem tirado a coluna vertebral é uma prova da satisfação masculina. Não muito galante, mas sim sincera.

-0h, está bem. -Pareceu satisfeita com a resposta-. O livro não dizia nada

sobre isso, não se incomodaram em falar do que passava depois. -Que livro é esse? -moveu-se com cuidado e seus corpos se separaram com

um som especial-. Toma -alcançou-lhe a camisa. -O homem sensual -Agarrou a camisa com gesto afetado-. Falava de natas,

cubitos de gelo, fellatios...

-Aprendeu isso de um livro? Roger estava tão escandalizado como as senhoras da paróquia de seu pai.

-Não pensará que o fiz a todos com os que saí? Agora era ela a escandalizada. -Escrevem livros para lhes dizer às mulheres o que têm que fazer...! Isso é

terrível! -O que tem de terrível? Do que outra forma o ia aprender? Roger se esfregou a cara sem encontrar resposta. Se lhe tivessem

perguntado uma hora antes, teria se declarado a favor da igualdade sexual. Mas ainda ficavam restos do filho do ministro presbiteriano, que pensava que as

jovens deviam chegar ignorantes de noite de bodas. -Está bem -disse-. Mas ainda tem muito que aprender. -Insígnia me você -sussurrou Brianna e lhe mordeu no lóbulo da orelha.

Brianna despertou com o canto de um galo; Roger se moveu ao senti-la.

Faziam o amor três vezes e se sentia feliz e ardida. O tinha imaginada centenas de vezes e se equivocou. Não havia forma de imaginá-lo que significava sentir-se assim, além dos limites da carne, penetrada e poseída.

-Sinto muito -disse Roger, brandamente. -Porquê? Acariciou-o sem vacilações. Agora podia lhe tocar todas as partes; não

podia agüentar as vontades de vê-lo nu à luz do dia. -Por isso. -Fez um gesto, assinalando o que os rodeava-. Devi esperar.

Queria... o melhor para ti. -Esteve muito bem -respondeu brandamente. -Queria que tivesse uma noite de bodas adequada. Com uma boa cama,

lençóis limpa... teria que ter sido melhor em sua primeira vez. -Já tive boas camas e lençóis limpa. Mas isto, não. Não pôde ser melhor. Beijou-lhe, pegando seu corpo ao do Roger.

-vais matar me, Bri. -Sinto muito -disse ela-. Apertei-te muito? Não quis te fazer danifico.

Roger riu.

279

-Não, mas dá descanso a pobre ferramenta, quer?

-Roger? -me diga.

-Acredito que nunca fui tão feliz. -Isso está bem. -Embora... embora não retornássemos, não me importa se estivermos

juntos. -Retornaremos. -Com uma mão cobriu seus peitos-. Disse-te que há outra

forma de voltar. -É certo? -Isso acredito.

Falou-lhe sobre o grimoire; a mescla de notas cuidadosas e loucas divagações, e sobre o passo pelas pedras do Craigh na Dun.

-A segunda vez, pensei em tí -explicou-lhe brandamente-. Vivi e apareci na

época correta. Mas o diamante que Fiona me deu se derreteu em meu bolso. -Então, há uma forma de dirigi-lo?

Brianna não pôde ocultar um tom de esperança em sua voz. -Pode ser -vacilou-. Havia um... suponho que pode chamar-se poema. E o recitou.

Brianna o escutou com os braços apoiados nos joelhos. ficou em silencio por um momento.

-É uma loucura -disse finalmente. -O ter certificado de loucura desgraçadamente não garante que esteja

equivocado -disse Roger com secura.

Se desperezó e se sentou com as pernas cruzadas. -Não deixa de ser um ritual tradicional. O que diz sobre as quatro direções

está nas lendas celtas. E a faca, o altar e as chamas formam parte da bruxaria.

-Ela atravessou o coração de seu marido e lhe prendeu fogo. Brianna recordou, igual a ele, o aroma de carne queimada no círculo de pedras e se

estremeceu. -Espero que não tenhamos que fazer um sacrifício humano-disse Roger,

tratando de lhe tirar importância-. Entretanto, o metal e as pedras preciosas...

Levava alguma jóia quando veio? Assentiu a modo de resposta.

-Seu bracelete. E tinha o colar de pérolas de minha avó no bolso. Mas as pérolas não se danificaram, passaram em perfeito estado.

-As pérolas não são pedras preciosas -recordou-lhe-. São orgânicas, como

as pessoas. -passou-se a mão pela cara; tinha sido um comprido dia e a cabeça lhe dava voltas-. Tinha o bracelete de prata e engastes de ouro no colar além das pérolas. E sua mãe levava um anel de prata e outro de ouro, não? Seus anéis de

matrimônio. -Estraguem. Três pontos que definem o plano, quatro encerram à terra e o

quinto é o número do amparo... -murmurou Brianna-. Ela quereria dizer que faziam falta pedras preciosas para... para o que tentava fazer? Esses seriam os «pontos»?

-Pode ser. Tinha desenhos e uma lista de pedras preciosas com suas propriedades mágicas. Parece que há linhas de força que percorrem a Terra e de vez em quando se curvam em nós. Se se chegar a um desses nós, está em um

lugar onde o tempo não existe. -Assim se a gente passar por um, poderá fazê-lo de novo- em qualquer

momento.

280

-O mesmo lugar em um tempo diferente. Se as pedras preciosas tiverem

sua própria força, podem chegar a torcer as linhas... -Qualquer pedra preciosa?

-Só Deus sabe -disse Roger-. Mas é nossa melhor possibilidade, não? -Sim -aceitou Brianna-. E de onde tiraremos as pedras? -Esse é outro assunto. Estive pensando enquanto dormia. Sei... acredito

saber onde encontrar uma pedra. Mas... —vacilou-. Tenho que ir imediatamente. O homem que a tem está em New Bern, mas não ficará muito tempo ali. Se coxo

algo de seu dinheiro poderei partir em um bote pela manhã e estar em New Bern ao dia seguinte. Será melhor que você espere aqui. Logo...

-Não posso ficar aqui!

-por que não? Não quero que venha comigo. Em realidade sim -corrigiu-se-, mas acredito que é mais seguro que fique aqui.

-Não digo que queira ir contigo, digo-te que não posso ficar aqui -repetiu

arranca-rabo a sua mão. Quase tinha esquecido seu descobrimento, mas agora voltava a recuperar toda a excitação do dia anterior-, Roger, encontrei-o,

encontrei ao Jamie Fraser! -Fraser? Quando? Aqui? -disse com assombro. -Não, está no Cross Creek e sei onde estará na segunda-feira; tenho que ir,

Roger. Não o compreende? Está tão perto e eu já cheguei tão longe... -Sim, já vejo. -Roger parecia algo ansioso-. Mas não pode esperar uns dias?

Há um dia de navegação até New Bern e outro para voltar. Em um dia ou dois poderia estar de volta.

-Não -respondeu-. Não posso. É pelo Lizzie.

-Quem é Lizzie? -Minha criada... você a viu. ia golpear te com a garrafa. -Brianna riu ante a lembrança-. Lizzie é muito valente.

-Se já me der conta -disse Roger secamente-. Mas isso o que... -Está doente -interrompeu Brianna-. Não viu quão pálida estava? Acredito

que tem malária; embora a febre e os tremores desaparecem, voltam-lhe para os poucos dias. Tenho que encontrar a minha mãe o mais rápido que possa. Tenho que fazê-lo.

-Muito bem -disse-. Muito bem! Voltarei o mais breve possível. Mas me fará um favor, quer? Ponha um vestido!

-Você não gosta de meus calções? -Sua risada se deteve bruscamente, como se algo lhe tivesse passado pela cabeça-. Roger, vais roubar essas pedras?

-Sim -respondeu com simplicidade.

-Não -disse finalmente-. Não o faça, Roger. -Não se preocupe, o homem que a tem -disse, tratando de tranqüilizá-la- a

roubou a outra pessoa.

-Não me preocupo com ele, mas sim por ti! -Não me passasse nada. Estarei de volta antes de que te dê conta.

-Mas e se não ser assim... -Tudo sairá bem -disse com firmeza-. Pinjente que te cuidaria e o farei. -Mas...

Fez-a calar com um beijo e muito brandamente a aproximou de seu corpo. Brianna ofegou quando a penetrava e mordeu suas costas, mas Roger não

disse nada.

-Sabe? -disse Roger, médio dormido-. Acredito que me casei com minhas seis vezes tia avó.

-Que você o que?

281

-Não se preocupe, não é incesto -assegurou-lhe.

-Ah, bom -disse com sarcasmo-. Como posso ser sua tia avó, caramba? -Bom, como te disse, estava pensando e não me tinha dado conta antes.

Mas o tio de seu pai era Dougal MacKenzie. que causou todo o problema ao ter um filho com o Geillis Duncan, não?

O insatisfactorio método anticoncepcional que tinha utilizado lhe tinha feito

pensar nisso. Embora lhe parecia melhor não mencioná-lo. -Bom, não acredito que a culpa fora toda dele. Brianna também parecia

meio dormida. Estava a ponto de amanhecer, os pássaros se ouviam e o ar tinha trocado.

-Se Dougal for mim tio avô eu não sou sua tia avó, a não ser uma prima em

sexto ou sétimo grau. -Tampouco, porque não pertencemos à mesma geração de descendentes;

você está muito mais acima pelo lado de seu pai.

-Ao diabo com isso. Se estiver seguro de que não é incesto... -Não o tinha pensado. -assombrou-se-. Sabe o que significa? Eu também

sou parente de seu pai. Acredito que é meu único parente vivo, além de ti! Roger se sentiu comovido pelo descobrimento. -Não, não é assim -murmurou Brianna.

-Como? -Não é o único. Está Jenny. E seus filhos. E seus netos. Minha tia Jenny é

você... mmm, talvez tenha razão. Porque se ela for minha tia... eu sou... ahh -bocejou e apoiou a cabeça no ombro do Roger-. Quem lhes disse que foi?

-A quem? .

-Ao Jenny e ao Ian. Quando foi ao Lallybroch. -Não estive ali. Se desperezó, aproximando-se de seu corpo.

-Não? Mas então... -Sua voz se quebrou-. Como sabia que eu estava aqui? -Mmm?

aparto-se súbitamente deixando-o com os braços vazios e olhando-o com receio.

-Como sabia onde estava? -repetiu com tom gélido-. Como sabia que tinha

vindo às colônias? -Ah... eu...

despertou para descobrir, muito tarde, o perigo. -Não havia forma de saber que tinha saído de Escócia, salvo que tivesse ido

ao Lallybroch e eles lhe houvessem isso dito, mas se não foi ao Lallybroch...

-Eu... Procurou uma explicação, mas não havia outra que não fora a verdade. -Sabia. Leíste a notícia da morte! Soube todo o tempo, verdade?

-Não -disse, tratando de ganhar tempo-. Quero dizer, sim, mas... -Desde quando sabia? por que não me disse isso? -gritou Brianna.

pôs-se em pé e recolhia sua roupa. -Espera -suplicou-. Bri, me deixe te explicar... -Sim, me explique! Eu gostaria de ouvir sua explicação!

-Olhe -também se levantou-, descobri-o na primavera. Mas eu... sabia que te ia fazer mal. Não lhe queria dizer isso porque sábia que não poderia fazer nada, salvo te romper o coração...

-O que quer dizer com isso de que não posso fazer nada? Começou a vestir-se com os olhos brilhando pela fúria.

282

-Não pode trocar os fatos, Bri! Não te dá conta? Seus pais o tentaram,

sabiam o do Culloden e fizeram todo o possível para deter o Carlos Estuardo mas não puderam. Fracassaram! Geillis Duncan tratou de que um Estuardo fora rei e

falhou. Todos fracassaram! Não pode ajudá-los, Bri -disse com mais calma-. É parte da história, do passado- Você não é deste tempo, não pode trocar o que vai acontecer.

-Você não sabe -disse com rigidez. -Sei! Escuta, se tivesse pensado que havia a mais mínima possibilidade...

mas não há nenhuma. Joder, Bri, não queria que sofresse! -Não é teu assunto, para que ditas por mim -disse com fúria-. Não importa

o que pensasse. É algo muito importante, Roger, como pôde fazê-lo?

sentia-se traída e isso era mais do que Roger podia suportar. -Maldição, tinha medo de que, se lhe dizia isso, fizesse o que tem feito! –

estalou-. Deixaria-me e tentaria passar através das pedras. E agora os dois

estamos aqui... -Culpa-me porque você está aqui? Não fiz todo o possível para que não me

seguisse como um idiota? -Um idiota? Assim me agradece que tenha vindo a te buscar, arriscando

minha maldita vida para te proteger?

Tratou de agarrá-la sem estar seguro de querer sacudi-la ou possui-la de novo. Mas não pôde fazer nada; um forte empurrão lhe fez perder o equilíbrio e

cair. Brianna saltava sobre um pé e amaldiçoava, enquanto ficava as calças. -Maldito arrogante- maldito seja, Roger! Vete! Vete e que lhe pendurem, se

for isso o que quer! Vou procurar a meus pais! E os salvarei! Girou e se encaminhou para a porta antes de que pudesse detê-la. -Vou. Venha ou não, não me importa. Retorna a Escócia, passa pelas

pedras, não me importa. Mas não tente me deter! E partiu.

Lizzie tinha os olhos bem abertos quando a porta se abriu de repente. -Está bem, Bri?

Não o parecia; Brianna ia e vinha sussurrando como uma serpente, detendo-se para chutar sua roupa.

-Está bem? -repetiu, insegura. -Bem! -disse Brianna. Desde abaixo chegou uma voz rouca.

-Brianna! Voltarei a te buscar! Ouve-me? Voltarei! Brianna não respondeu. Fechou a janela com fúria e se deu a volta como

uma pantera deixando a habitação em uma sufocante escuridão.

Lizzie ficou imóvel na cama, temerosa de mover-se e de falar. Ouviu a Brianna tirá-la roupa e os roucos murmúrios que chegavam de abaixo, até que

tudo ficou em silêncio. Então juntou o valor suficiente e se voltou para ela. -Está.., está bem? -perguntou em voz baixa. Por um momento acreditou que Brianna não lhe responderia.

-Sim. -A resposta chegou em uma voz sem matizes-. Agora, durma. Não o fez. Era impossível dormir no estado no que estava Brianna. Não

chorava, mas tremia de uma maneira que estremecia a cama.

Tentou não intervir. «Tola, é seu amiga e sua senhora e lhe aconteceu algo terrível e você não faz nada! Em um impulso se aproximou da Brianna e lhe

agarrou a mão.

283

-Bri? -disse brandamente-. Posso te ajudar em algo?

Brianna lhe apertou a mão e logo a soltou. -Não -respondeu com suavidade-. Vete a dormir, Lizzie, não passa nada.

Por último, incapaz de dormir, Lizzie se levantou da cama e abriu as persianas. Sem saber como atuar se dedicou a fazer o que sempre fazia quando tênia problemas: arrumar as coisas. Recolheu a roupa que Brianna se tirou

violentamente e a sacudiu. Estava suja e com restos de palha. O que tinha feito Brianna? Derrubar-se

pela terra? Naquele instante a cena apareceu em sua mente, tão clara que a impressão a sacudiu:

Brianna lutando com o diabo negro que a tinha levado. Era uma mulher

alta e forte, mas aquele MacKenzie era um bruto enorme, ele poderia... deteve-se, não queria pensá-lo, Mas sua imaginação não se detinha.

Com grande desgosto se aproximou a camisa e a cheirou. Sim, ali estava,

aroma de homem, forte e azedo. Pensar naquela malvada criatura com seu corpo apertado contra o da Brianna, deixando seus aromas como um cão que marca

seu território, fez-a estremecer-se de asco. Com gestos trementes recolheu os calções e as médias para lavá-los.

Tiraria-lhes os rastros daquele MacKenzie e, se ao dia seguinte ainda estavam

molhados... bom, muito melhor. Ainda ficava o sabão que lhe desse a posadera e tinha a bacia com água.

Começava a entrar luz pela janela quando Brianna ficou dormida. Sua respiração era tranqüila, não despertaria ainda.

Não quis olhar, mas não podia fingir que não o tinha visto. Ali estava, uma

grande mancha escura entre as pernas das calças que obscurecia a água. O sol aparecia no céu com um tom avermelhado, confundindo a água da

bacia, o ar da habitação e o mundo que as rodeava, com a cor do sangue fresca.

41 Fim da travessia

Brianna pensou que podia ficar a gritar, mas em lugar disso aplaudiu as costas ao Lizzie e falou brandamente.

-Não se preocupe, tudo irá bem. O senhor Viorst diz que nos esperará.

Assim que se sinta melhor partiremos. Agora não se preocupe por nada, te limite a descansar.

Lizzie assentiu sem poder responder, os dentes lhe tocavam castanholas apesar de ter três mantas e um tijolo quente nos pés.

-Trarei-te algo de beber, querida. Descansa -repetiu Brianna e, depois de

lhe dar outra palmada, levantou-se e saiu da habitação. Não era culpa do Lizzie, é obvio, pensou Brianna, mas não podia ter eleito

pior momento para ter outro ataque de febre. depois da terrível cena com o Roger,

Brianna tinha dormido até tarde mas mau. Ao despertar encontrou sua roupa lavada e tendida para secar-se, seus sapatos lustrados, a habitação limpa e

ordenada e ao Lizzie atirada no estou acostumado a tremendo pela febre. Por enésima vez contou os dias. Faltavam oito dias até na segunda-feira; se

o ataque do Lizzie seguia o processo habitual poderiam partir dentro de dois dias.

Ficariam seis dias e, segundo o jovem Smoots e Hans Viorst, em cinco ou seis dias se podia chegar até o Cross Creek naquela época do ano.

Não podia perder ao Jamie Fraser, não podia! Tinha que estar ali na

segunda-feira fora como fora. O botequim estava enche. Tinham chegado dois novos navios ao porto e os

marinheiros bebiam e jogavam às cartas. Brianna passou entre as mesas com

284

uma jarra de uma infusão de hortelã quente, sem fazer caso dos assobios e as

olhadas. Roger queria que levasse um vestido, não? Maldita seja, com as calças os podia manter a distância, mas agora estavam molhados e devia esperar para

voltar-lhe a pôr. Um dos homens se moveu e o resplendor de um anel chamou sua atenção.

Voltou a olhar assombrada. Era um anel de ouro, mais largo do habitual e com

uma inscrição gravada. Brianna não podia lê-la de ali mas sabia de cor. Apoiou uma mão nas costas do dono do anel. O homem se voltou e sorriu

ao vê-la. -Ah, coração, vieste a trocar minha sorte? Brianna se obrigou a sorrir.

-Isso espero. Posso tocar seu anel para que me dê sorte? E sem esperar a permissão esfregou o anel contra sua manga. Logo o

levantou para admirá-lo à luz e poder ler assim a inscrição.

«Do F. ao C. com amor. Sempre.» -É muito bonito. Onde o conseguiu?

Olhou-a surpreso e logo com cautela. Brianna se apressou em esclarecer sua pergunta.

-É muito pequeno para você. Não se zangará sua esposa se o perder?

«Como o terá conseguido? E o que lhe terá passado a minha mãe?», pensou desesperada.

-Se tivesse uma esposa, querida, deixaria-a por ti. Agora estou ocupado, mas mais tarde... né?

-Amanhã -respondeu Brianna-. À luz do dia.

Observou-a assombrado e logo lançou uma gargalhada. -À luz do dia, então. Espero-te em meu navio, o Gloriana, perto do

embarcadero.

-Fazia muito que não comia?

A senhorita Viorst contemplou a tigela vazia da Brianna com alegre incredulidade. Era uma corpulenta holandesa da mesma idade que Brianna que a tratava com afeto maternal, como se fora maior que ela.

-Acredito que desde anteontem. -Brianna aceitou uma segunda ração de pão com manteiga-, OH, muito obrigado!

A comida ajudava a lhe dar um pouco de consolo. A febre do Lizzie havia tornado detrás dois dias de navegação. Esta vez o ataque foi mais largo e severo. Brianna temeu que a jovem não suportasse a viagem pelo rio Cape Fear.

-Se morrer, avisará a meu pai? -tinha sussurrado Lizzie. -Farei-o, mas isso não acontecerá, assim não chateie –tinha respondido

Brianna com firmeza.

Viorst, alarmado pelo mal estado da jovem, tinha-as levado a casa que compartilhava com sua filha, um pouco mais abaixo do Cross Creek. A grande

força de vontade da jovem se impôs uma vez mais à enfermidade, mas tal e como se encontrava Brianna temia que seu frágil corpo não resistisse tantas exigências.

Finalmente o tinham conseguido; estava no Cross Creek um dia antes do

julgamento. Em algum lugar perto dali tinha que estar Jamie Fraser e junto a ele estaria Claire.

tocou-se d bolso secreto de sua calça. Ali estava o anel. Sua mãe estava

viva e isso era o único importante. depois de comer foi ver o Lizzie. Hanneke Viorst estava sentada ao lado da cama remendando roupa. Sorriu ao ver a

Brianna.

285

-Também deves descansa? -disse, fazendo um gesto para a outra cama.

-Ainda não, muito obrigado. O que preciso é que me emprestem uma mula, se for possível.

Viorst lhe havia dito que River Run estava a um bom trecho do povo. Jamie Fraser podia estar ali ou haver ficado no Cross Creek. Queria ir ao povo e procurar o lugar onde se realizaria o julgamento. Não podia correr o risco de não

encontrá-lo. em que pese a seu cansaço, o caminho em mula lhe resultou relaxante.

Entre a enfermidade do Lizzie e suas dolorosas lembranças quase não tinha emprestado atenção às mudanças da paisagem. Agora se sentia como sim a tivessem transportado magicamente a um lugar diferente. ia encontrar se com o

Jamie Fraser. Como seria? O tinha perguntada centenas de vezes e o tinha imaginado de

mil formas diferentes. em que pese a tudo o que tinha comido voltou a sentir um

vazio no estômago. Ao chegar ao botequim atou a mula e entrou no escuro refúgio. O lugar

estava vazio e o dono dormitava em um banco. levantou-se o vê-la e, depois da habitual surpresa por seu aspecto, serve-lhe uma cerveja e lhe indicou como chegar até o tribunal.

-veio para o julgamento? -perguntou com curiosidade. -Sim, bom, em realidade, não. De que julgamento se trata? -perguntou, ao

dar-se conta de que não sabia nada. -OH, é o do Fergus Fraser -disse o taberneiro, como se todo mundo

conhecesse o Fergus-. Os cargos são assalto a um oficial da Coroa. Mas o

absolverão, Jamie Fraser veio das montanhas para declarar. -Conhece o Jamie Fraser? -perguntou com nervosismo. -Se espera um momento você também o conhecerá. Saiu quando você

chegava. Brianna se tinha posto em pé de um salto e o homem deu um grito de

surpresa ao vê-la sair correndo. Chegou à luz da rua piscando e então o viu. Um homem alto, magro e

elegante urinando ao lado de uma árvore. Usava uma saia escocesa de cores

desbotadas e uma camisa branca. Jamie a viu e sua expressão de receio se converteu em surpresa ao dar-se conta de que era uma mulher.

Brianna não teve nenhuma dúvida, não era tão grande como o tinha imaginado, mas tinha suas mesmas facções: nariz largo, queixo forte e olhos rasgados.

Ao mover-se, o sol iluminou seu cabelo acobreado. -O que quer, moça? -perguntou. Sua voz era mais profunda do que esperava e com um marcado acento

escocês. -A ti -deixou escapar.

-Sinto muito, moça -disse com um sorriso-. Sou um homem casado. Brianna tratou de detê-lo sem atrever-se a agarrá-lo do braço. -Não, digo-o a sério. Tenho uma esposa em casa e não está longe daqui.

Mas... -Observou-a e descobriu sua roupa gasta-. Tem fome? Tenho dinheiro se quer comer.

-É... é Jamie Fraser?

Olhou-a com atenção. -O mesmo. -Seus olhos se entrecerraron pelo sol. Deu um passo para ela-.

Mas quem o pergunta? -disse brandamente-. Tem alguma mensagem para mim?

286

-Meu nome é Brianna -disse. Jamie franziu o sobrecenho com insegurança

e algo iluminou seus olhos. Tinha ouvido esse nome e significava algo para ele-. Sou sua filha. Brianna –disse com voz entrecortada.

Jamie permaneceu imóvel, sem trocar de expressão. Primeiro ficou pálido e logo seu pescoço e seu rosto avermelharam, como se começassem a arder.

Brianna tentou sorrir.

Jamie piscou e deixou de olhar sua cara para passar a observar seu aspecto Y... seu tamanho.

-meu deus -grunhiu-. É enorme. Brianna voltou a ruborizar-se. -De quem será a culpa? -perguntou furiosa.

Jamie deu um passo atrás, surpreso e nervoso. -OH, não, moça! -exclamou-. Não quis dizer isso! É que... -interrompeu-se

olhando-a fascinado-. É certo? -sussurrou-. É você, Brianna?

Pronunciava seu nome com um estranho acento, Briná, que a fez estremecer,

-Sou eu -disse, tentando sorrir—. Não o vê? -Sim, sim, posso vê-lo. Então lhe tocou a cara e percorreu a delicada linha de seu queixo. Brianna

voltou a estremecer-se. -Não pensava que fosse tão maior. Tinha visto os retratos, mas mesmo

assim, em minha mente foi uma criatura, minha menina. Não esperava... -Retratos -disse Brianna-. Viu as fotos? Então, mamãe te encontrou, não?

Disse que tinha uma esposa em casa...

-Claire -interrompeu-a-. Não a viu? ficará muito contente! Pensar em sua mãe pôde com ela. As lágrimas que retinha desde fazia dias

saíram todas juntas com uma mescla de risadas e soluços. -Vamos, criatura, não chore! -exclamou alarmado. Tirou um lenço e quis

lhe secar lhas lágrimas-. Não chore, a leannan, não se preocupe -murmurou--.

Tudo está bem, m'annsachd, todo está bem. -Sou... feliz. -Brianna se secou os olhos e se soou o nariz-, O que quer dizer

a leannan? E o outro que disse?

-Não sabe gaélico? -perguntou Jamie e sacudiu a cabeça-. Não, é obvio, ela não ia ensinar te -murmurou.

-Aprenderei -disse ela com firmeza-, A leannan -Quer dizer «querida» -disse ele com um sorriso-, E m'annsachd, «minha

bênção».

Brianna ia chamar lhe pai e se conteve. Como devia chamá-lo? Papai não: papai tinha sido Frank Randall durante toda sua vida e não o trairia díciéndoselo

a outro homem. Jamie? Não, isso era impossível. Jamie a viu vacilar e ruborizar-se, e entendeu o problema.

-Pode me chamar P -disse com voz rouca e se esclareceu garganta-. Se quer fazê-lo -acrescentou.

-P -disse e sorriu aliviada-. P. É gaélico?

Devolveu-lhe o sorriso. -Não. É... mais simples.

E de repente tudo foi simples. Abriu os braços e ela se deixou abraçar e descobriu que se equivocou. Era tão grande como tinha imaginado e seus braços eram mais fortes do que pudesse atrever-se a pensar.

287

Depois tudo pareceu acontecer em um estado de atordoamento. As emoções

e a fadiga faziam que Brianna fora consciente de uma série de imagens, como fotos, imagens detidas sem movimento.

Lizzie, pálida e magra em braços de uma moço negra com um absurdo acento escocês. Um carro cheio de madeiras v vidros. A voz de seu pai, profunda e cálida, descrevendo a casa que ia construir no alto da montanha e lhe

explicando que as janelas eram uma surpresa para sua mãe. -Mas não uma surpresa como a que vai dar você, moça! -disse, soltando

uma profunda gargalhada de alegria. Logo a grande casa: fresca e com aroma a flores. Uma mulher alta com

cabelos brancos, as facções da Brianna e uns olhos azuis que olhavam ao vazio.

E umas mãos largas que tocavam sua cara e seu cabelo com curiosidade. -Lizzie -disse, enquanto uma bela mulher negra se inclinava para tocar a

cara pálida-. Casca de quina -murmurou.

Mãos, muitas mãos. Tudo parecia mágico; passavam-na de emano em emano com suaves murmúrios. E comida: bolos, pão-doces e doces; também

havia chá, doce e quente, que parecia renovar o sangue de suas veias. Apareceu uma formosa moça loira com rosto carrancudo. Seu pai a tratava

com familiaridade e a chamava Marsali. Lizzie, banhada e envolta em uma manta,

com uma jarra de líquido quente entre as mãos parecia ter florescido. Todos conversavam, mas Brianna só de vez em quando entendia alguma

frase. -P, viu ao Fergus? Está bem? P?, pensou médio intrigada e também indignada porque alguém mais o

chamava assim, porque... porque... Ouviu a voz de sua tia de longe, dizendo: -Essa pobre criatura está ficando dormida na cadeira, posso ouvi-la roncar.

Ulises, leva a à cama. depois de ouvir aquilo, uns braços fortes a levantaram, mas não eram os do

mordomo, a não ser os de seu pai, assim apoiou a cabeça em seu peito e ficou dormida.

Embora o nome do Fergus Fraser soava a clã escocês, seu aspecto era o de um nobre francês. Um nobre francês caminho da guilhotina, corrigiu-se Brianna.

Marsali suspirou ao ver seu arrumado marido e se inclinou sobre a Brianna, sussurrando ao Jamie.

-O que lhe têm feito esses bastardos?

-Nada importante. Fez um gesto para que voltasse a sentar-se direita. Tinham tido sorte ao

conseguir assentos pois o lugar estava lotado de gente que comentava e

murmurava ao fundo da sala. O juiz chegou e ocupou seu lugar. depois de cumprir com todas as

cerimônias, o julgamento começou. Era evidente que não tinha jurado, só o juiz e seus subordinados.

Brianna tinha averiguado mais detalhes da família durante o café da

manhã. A jovem pulseira negra se chamava Fedra e o moço alto de sorriso encantador era Ian, o sobrinho do Jamie; sua primo, pensou, sentindo a mesma emoção que no Lallybroch. Marsali, a formosa loira, era a esposa do Fergus, e

este, é obvio, era o órfão francês que Jamie tinha adotado formalmente em Paris antes do levantamento dos Estuardo.

288

O juiz Conant, um cavalheiro de média idade, colocou-se a peruca,

arrumou-se a túnica e pediu que lessem os cargos, segundo os quais, Fergus Claudel Fraser, residente do Rowao County, em 4 de agosto deste ano de nosso

Senhor de 1769 tinha atacado com traição à pessoa do Hugh Berowne, delegado do delegado do condado, roubando propriedade da Coroa que o deputado tinha em custódia.

O tal Hugh resultou ser uma pessoa nervosa de uns trinta anos. Tinha sido atacado pelo francês quando pretendia cobrar os impostos, ficando em custódia

pela dívida um cavalo selado. Este ensinou um dente quebrado, resultado da briga.

O juiz o contemplou com interesse e logo se dirigiu ao prisioneiro:

-E agora, senhor Fraser, podemos ouvir sua versão deste desafortunado sucesso?

Fergus levantou o nariz olhando ao juiz como se fora uma barata.

-Este repugnante sujeito -começou em tom moderado--se .... -O prisioneiro deve evitar os insultos -disse o juiz com frieza.

-O delegado -continuou Fergus sem alterar-se- aproximou-se de minha esposa quando retornava do moinho com meu filho na cadeira. Esse..., o delegado, baixou-a do cavalo sem nenhuma consideração e lhe informou que

ficava com ele e a cadeira de montar como pagamento do imposto. Deixou-a com o menino a cinco milhas de casa e exposta aos raios do sol.

Lançou um olhar furioso para o Berowne. Marsali soprou com força. -Qual era o imposto que o delegado diz que devia? -Eu não devo nada! Ele diz que minha terra está sujeita a uma renda anual

de três xelins, mas não é assim! Minha terra está isenta desse imposto em virtude dos términos nos que se fez a entrega de terras ao James Fraser por parte do governador Tryon. Disse-lhe ao pestilento salaud que isso era assim quando foi a

minha casa para cobrar o dinheiro. -Eu não sei nada dessa entrega -disse Berowne mal-humorado-. Esses

tipos são capazes de dizer algo para não pagar. O juiz levantou a cabeça e escrutinou a sala. - Está presente James Fraser?

Jamie se levantou e saudou com respeito. -Aqui, senhor.

-Que jure a testemunha, Bailiff. Jamie, uma vez que tomaram juramento, testemunhou que era o

proprietário dos terrenos cedidos pelo governador Tryon. Nos términos da cessão

se incluía que não se pagariam impostos à Coroa durante dez anos, período que não terminaria até dentro de nove. Finalmente assegurou que Fergus Fraser

tinha sua casa e sua granja dentro dos limites do território que gozava de franquia; com permissão dele mesmo. James Alexander Malcolm MacKenzie Fraser. A atenção da Brianna tinha estado cravada em seu pai. Era o homem

mais alto da sala e o mais chamativo, com uma camisa branca e uma casaca de um azul profundo que fazia que ressaltassem seus olhos e seu cabelo.

-Parece que a declaração do senhor Fraser é certa, senhor Berowne -disse o

juiz-, portanto, deverei absolver o de cargos... -Não pode prová-lo! -estalou Berowne-. Não há documentos que o provem,

só a palavra do James Fraser. Seu pai não demonstrou aborrecimento algum, ficou em pé outra vez e fez

um gerou fazia o juiz.

289

-Se Sua Senhoria me permitir isso. -Procurou em sua casaca e tirou umas

folhas com um selo vermelho de cera-. Sua Senhoria conhece o selo do governador, estou seguro -disse, deixando os papéis sobre a mesa.

O juiz Conant observou com cuidado o selo, logo o abriu e leu o documento. -Esta é uma cópia do documento original da entrega de terras -anunciou-

assinado por Sua Excelência, William Tryon.

-Como o conseguiu? -estalou Berowne-. Não teve tempo de ir a New Bern e voltar!

O juiz lhe lançou um olhar cortante e disse: -Dado que este documento constitui uma prova, encontramos que o

acusado não é culpado dos cargos de roubo, já que a propriedade em questão é

dela. Entretanto, no caso do ataque... -Nesse ponto, notou que Jaime seguia em pé- Sim, senhor Fraser? Tem algo mais que dizer a corte?

-Suplico a corre que alivie minha curiosidade, Sua Senhoria. A declaração

original do senhor Berowne descreve com detalhe o ataque que recebeu? O juiz arqueou uma sobrancelha e procurou entre seus papéis.

-O demandante afirma que Fergus Fraser lhe golpeou no rosto com o punho esquerdo e o derrubou; logo agarrou as rédeas do cavalo e se afastou lhe insultando em francês. O demandante...

Uma forte tosse atraiu a atenção sobre o acusado, que, sonriendo de forma encantadora ao juiz Conant, secou-se a cara com um lenço enganchado do

gancho de ferro de seu coto esquerdo. -Vá! -exclamou o juiz e dirigiu um olhar geada ao demandante. -Poderia me explicar como recebeu um golpe no lado direito da cara,

propinando com o punho esquerdo de um homem que não o tem? -Sim, crottin -disse alegremente Fergus—. Explica isso.

O juiz Conant considerou mais adequado receber as explicações do Berowne em privado e pôs fim ao julgamento, deixando em liberdade ao Fergus Fraser sem nenhuma mancha em seu bom nome e honra.

-Fui eu -disse Marsali com orgulho, pendurada do braço de seu marido na

festa que celebraram depois do julgamento.

-Você? -Jamie a olhou divertido-. Você lhe deu o murro ao delegado? -Não, peguei-lhe uma patada -corrigiu-. Quando o malvado salaud tratou

de me baixar do cavalo lhe dava uma patada na mandíbula. Nunca teria conseguido me baixar -acrescentou, zangada pela lembrança-, mas tirou ao Germaine e tubo que me baixar para agarrá-lo.

-Não entendo -interveio Brianna-. O senhor Berowne não quer admitir que uma mulher lhe pegou?

-Ah, não -disse Jamie, lhe servindo outra jarra de cerveja-. Isso foi obra do sargento Murchison.

-Ah -disse Brianna-. Um que estava no julgamento, com cara de porco ao

meio assar? Seu pai riu ante a descrição.

-Estraga, esse é o homem. Tem problemas comigo -explicou- e não é a primeira nem será quão última trata de me incomodar.

-Não podia pensar que ganharia com uma acusação tão ridícula -burlou-se

Yocasta. Estirou uma mão e Ulises lhe tendeu um prato com pão de milho. Agarrou

uma fatia e dirigiu seus desconcertantes olhos cegos para o Jamie.

290

-Era realmente necessário que rechaçasse ao Farquard Campbell? -

perguntou com voz de censura. -Sim, era necessário. -Ao ver a confusão da Brianna, explicou-lhe-:

Campbell é o juiz habitual do distrito. Se não tivesse cansado doente em um momento tão oportuno -riu com picardia-, o julgamento tivesse sido a semana passada. Eles contavam com que não teria tempo de ir a New Bern antes do

julgamento e assim tivesse sido. -Sorriu ao Ian e o moço se ruborizou de prazer, já que ele tinha sido quem tinha cavalgado em busca do documento-. Farquard

Campbell é um bom amigo, tia -disse a Yocasta-, mas sabe bem que é um homem que respeita a lei e se não conseguia apresentar provas teria que falhar em meu contrário. Isso tivesse significado um novo julgamento e uma perda de tempo que

Fergus e eu não podemos nos permitir, posto que temos que recolher a colheita. Olhou a Brianna ficando súbitamente sério. -Espero que não cria que sou um homem rico.

-Não tinha pensado nada parecido -respondeu surpreendida. Jamie lhe sorriu.

-Isso está bem, porque embora tenha muitos terras, ainda não estão cultivadas. E embora sua mãe é uma pessoa muito capaz -disse ampliando seu sorriso- não pode ocupar-se de trinta acres de milho e cevada.

Deixou sua jarra e ficou em pé. -Ian, quer te ocupar do carro e levá-lo junto com o Fergus e Marsali?

Brianna e eu iremos por diante -olhou-a interrogativamente-. Yocasta cuidará de sua criada. Não te importa que vamos tão rápido?

-Não -respondeu, ficando em pé-. Podemos ir hoje?

Tirei as garrafas da despensa uma por uma, desentupindo alguma para

cheirar seu conteúdo. Se não se secavam bem antes das guardar, as ervas

podiam danificar-se dentro das garrafas e as sementes podiam transformar-se em estranhas formas de mofo. Isso me fez voltar a pensar em meus cultivos de

penicilina. Ou o que eu pensava que seriam algum dia, se tinha sorte. Tinha-o tentado durante mais de um ano sem êxito.

Cada uma das novelo é um antídoto para alguma enfermidade, se a gente

souber qual é. Sentia uma renovada sensação de perda quando pensava no Nayawenne, não só por ela, mas também por seus conhecimentos. Tinha-me

ensinado só uma parte do que sabia e isso me enchia de amargura, embora não tanto como a perda de uma amiga.

Entretanto, conhecia algo que ela não sabia: as virtudes múltiplos desse

pequeno cultivo de mofo no pão. Era difícil reconhecê-lo e usá-lo, mas nunca duvidei de que valia a pena a busca do cogumelo da penicilina. Tentaria-o de novo na primavera, pensei enquanto cheirava uma garrafa com manjerona.

conservava-se em bom estado, com um perfume a almíscar que me recordava ao incenso.

A nova casa da colina já tinha os alicerces e as habitações estavam marcadas. Podia ver o esqueleto da estrutura da porta da cabana; para a primavera estaria terminada. ia ter paredes com gesso e chãos de carvalho;

janelas com vidros e Marcos resistentes para que não entrassem ratos nem formigas e um formoso, cômodo e ensolarado gabinete para minhas práticas médicas.

Minhas gloriosas visões se viram interrompidas por um zurro, Clarence anunciava a chegada de visitas. Podia ouvir vozes a distância, em meio dos gritos

291

de êxtase do Clarence, assim comecei a guardar minhas garrafas. Devia ser

Jamie, que voltava com o Fergus e Marsali; ao menos era o que esperava. Os zurros do Clarence se converteram nos gorjeios que usava para

conversações mais íntimas, mas as vozes tinham cessado. Era estranho. Era possível que o julgamento não tivesse ido bem?

Guardei a última garrafa na despensa e fui até a porta. Não havia ninguém.

Clarence me saudou com entusiasmo mas nada se moveu. Entretanto, alguém tinha chegado, as galinhas se dispersaram entre os arbustos.

-Sassenach. Meu coração quase se detém o ouvir a voz do Jamie, mas o alívio deixou

passo ao aborrecimento. O que acreditava que...?

Por um segundo pensei que via dobro. Estavam sentados no banco, ao lado da porta, um ao lado do outro, com o sol da tarde iluminando seus cabelos.

Meus olhos se centraram no rosto me deixar, radiante de alegria; logo olhei

à direita. -Mamãe.

Era a mesma expressão de ansiedade, felicidade e saudade, tudo de uma vez. Não tive tempo de pensar quando ela já estava entre meus braços me levantando no ar.

-Mamãe! Não podia respirar, faltava-me o ar pela impressão e o forte abraço.

-Bri! -ofeguei e me deixou no chão sem me soltar. Olhei-a com incredulidade. Era real. Procurei o Jamie e o vi de pé a seu

lado. Não disse nada, mas o sorriso lhe ocupava toda a cara e tinha as orelhas

vermelhas de prazer. -Eu... ah... não esperava... -pinjente como uma idiota. Brianna me dirigiu um sorriso que fazia jogo com a de seu pai.

-Ninguém esperava a inquisição espanhola! -Como?-disse Jamie desconcertado.

DÉCIMA PARTE Relações deterioradas

42

Luz de lua Septiembre de 1769 despertou de um sonho pesado ao sentir uma mão sobre seu ombro e se

apoiou sobressaltada em um cotovelo, piscando.

Logo que podia distinguir o rosto do Jamie. -Vou caça à montanha, quer vir comigo, moça? esfregou-se os olhos tratando de despertar e assentiu.

-Bem. Vê te vestindo. E saiu em silêncio.

Já se tinha posto os calções e as meias quando Jaime retornou silencioso e carregado com uma braçada de lenha. Fez-lhe um gesto e se agachou para avivar o fogo; Brianna ficou o casaco e saiu em direção à privada.

292

Fora, o mundo era escuro e irreal. Desde não ser pelo frio que sentiu

tivesse acreditado que seguia dormindo. Quando retornou dentro, o ar quase se podia cortar pela fumaça, a comida frita e o aroma dos corpos dormidos; fora, em

troca, o ar era doce e tênue, e tinha que respirar profundamente, como a grandes goles, para sentir-se bem.

Jamie estava preparado: uma bolsa de couro pendurava de seu cinturão;

uma tocha, o corno de pólvora e um costal de lona penduravam sobre suas costas. Brianna ficou na porta observando como se inclinava sobre a cama e

beijava a sua mãe na frente. sentiu-se como uma intrusa, uma olheira. Sobre tudo quando a mão larga e

pálida do Claire saiu de entre as mantas e acariciou e! rosto de seu pai com uma

ternura que a comoveu. Claire murmurou algo que Brianna não pôde ouvir. Brianna o esperou ao bordo do claro. Sorriu-lhe sem falar e se encaminhou

para o bosque. Seguiu-o com facilidade por um atalho que passava entre bosques

de abetos e castanhos. O atalho ziguezagueava ao mesmo nível até que começou a ascender. Ainda

estava escuro, mas súbitamente o silêncio desapareceu. Um pássaro cantou e de repente toda a ladeira da Montana voltou para a vida com toda classe de gorjeios e sons.

Jamie se deteve para escutar. Brianna também se deteve, olhando-o. A luz tinha trocado muito

lentamente. Jamie levava a comida na bolsa e se sentaram em um tronco a compartilhar as maçãs e o pão.

Logo bebeu de um regato, enchendo-as mãos de água fria e transparente.

Ao princípio, seu coração palpitava e lhe atiravam os músculos das pernas pelo esforço da ascensão, até que seu corpo encontrou o ritmo. Com a chegada da luz já não tropeçou e chegou um momento em que seus pés flutuavam baixo um

céu que parecia tão próximo como separado da terra. Por um instante desejou que fora assim. Tinha laços que a atavam à terra,

a sua mãe, a seu pai, ao Lizzie... e ao Roger. O sol da manhã era uma bola de fogo sobre as montanhas. Teve que fechar os olhos para que não a cegasse.

Ali estava o lugar onde tinha querido levá-la; ao pé de um ravina as rochas

se amontoavam cobertas de musgo e líquenes. Fez-lhe um gesto para que fora atrás dele. Havia uma greta difícil de ver primeira vista. Em uma das pedras

grandes notou como vacilava e se deu a volta. Brianna sorriu e assinalou a rocha. -Vai tudo bem -disse brandamente-. É que me faz recordar.

O também recordou e lhe arrepiou o pêlo dos braços. Esperou a que Brianna passasse e se reunisse com ele. Quando saíram ao espaço aberto, no topo da ladeira, o sol começava a sair por cima da colina mais afastada.

A seus pés se estendiam colinas e vales. -Aqui -disse, detendo-se em umas rochas cobertas de erva-. vamos

descansar um momento. -As sensações são muito diferentes aqui -disse Brianna, enquanto o olhava

com um sorriso-, Sabe o que quero dizer? Cavalguei desde o Inverness até o

Lallybroch e tudo parecia selvagem. -estremeceu-se ante as lembranças-. Mas não tinha nada que ver com isto.

-Não. Eu acredito... -começou e se deteve-. Os espíritos que vivem aqui -

disse com estupidez- são muito velhos e viram aos homens durante milhares e milhares de anos; conhecem-nos bem e por isso não se mostram ante nós.

Brianna assentiu sem parecer surpreendida.

293

-Mas alguns são curiosos, não? -Levantou a cabeça olhando entre os

ramos—, Não te dá a sensação de que nos observam de vez em quando? -de vez em quando.

Brianna estirou suas largas pernas respirando os aromas da manhã. -Realmente não te importava? —Falou com muita suavidade, evitando olhá-

lo-. O viver nessa cova, perto do Broch Mhorda.

-Não, não me importava. -Quando ouvi falar disso, pensei que deveu ser terrível. Com frio, só e sujo.

-Então o olhou. -Assim era -disse com um ligeiro sorriso. -Ian, o tio Ian me levou ali para me ensinar isso

-Fez isso? No verão não parece tão desolado. -Não. Mas mesmo assim... -vacilou. -Não, não me importava.

Fechou os olhos e deixou que o sol esquentasse seu rosto. Permaneceram comprido momento em silêncio.

-Roger... -disse súbitamente Brianna e o coração do Jamie se retorceu pelo ciúmes.

Foi uma sensação dolorosa pelo inesperada. Não poderia tê-la para ele,

embora fora por pouco tempo? Abriu os olhos e se esforçou em parecer interessado.

-Uma vez tratei de lhe falar do que era estar sozinho. Pensava que talvez não seria tão mau. -Suspirou-, Não acredito que me entendesse.

Jamie deixou escapar um grunhido evasivo.

-Pensei... -vacilou, o olhou de esguelha e logo olhou ao longe-. Pensei que talvez por isso você e mamãe... -Respirou profundamente-. Ela também é assim. Não lhe importa estar sozinha.

Jamie a olhou desejando saber o que era o que fazia que dissesse isso. Como teria sido a vida do Claire durante os anos que estiveram separados, para

que Brianna pensasse isso? Talvez ela podia dizer-lhe embora não o perguntaria; o último nome que queria pronunciar naquele lugar era o do Frank Randall.

-Bom, talvez seja verdade -aceitou com cautela- Vi mulheres e homens que

não suportam o som de seus próprios pensamentos, e não fazem bom casal com aqueles que podem fazê-lo.

-Não -disse com tristeza-. Talvez não resulte. O ciúmes tinham desaparecido. Assim tinha dúvidas desse Wakefield?

Tinha-lhes contado ao Claire e a ele tudo, sua investigação, a notícia da morte, a

viagem desde Escócia, a visita ao Lallybroch, maldita Laoghaire! Mas sobre esse homem que a tinha seguido não lhes tinha contado tudo, pensou. Já estava bem; ele não queria ouvir mais. Tampouco podia se separar de sua mente ao Randall.

Embora tinha ganho. Claire estava com ele, quão mesmo esta gloriosa criatura; esta jovem mulher, corrigiu-se ao olhá-la. Mas Randall as tinha tido

durante vinte anos e não havia dúvida de que teria deixado sua marca sobre elas. Mas que marca seria?

-Olhe -disse Brianna, lhe apertando o braço.

Seguiu a direção de seu olhar e viu, a uns seis metros de onde estavam sentados, a dois antílopes à sombra das árvores. Os animais os viram, mas seguiram comendo com a inocência da perfeita vida selvagem; então sentiu a

bênção do sol sobre sua cabeça. Aquele era um lugar novo e estava contente de poder estar ali, solo com sua filha.

-O que vamos caçar, P?

294

Jamie estava de pé, imóvel, olhando para o horizonte, mas ela estava

segura de que não procurava um animal; podia falar sem temor de espantar aos antílopes.

-Abelhas -respondeu. -Abelhas? Como se caçam as abelhas? Agarrou sua arma e lhe sorriu

-Procurando nas flores. Sabia que havia abelhas nas flores, pois as ouvia zumbir.

-O que deve fazer -explicou seu pai, rodeando lentamente o lugar- é as observar e ver em que direção vão. E não deixar que lhe piquem.

Uma dúzia de vezes perderam o rastro das pequenas mensageiras que

seguiam. -Ali há algumas! -gritou Brianna, assinalando um brilho vermelho a certa

distância.

Jamie sorriu, negando com a cabeça. -Não, as vermelhas, não. As melhores som as amarelas.

Já estava bem entrada a tarde quando encontraram o que procuravam. As abelhas se reuniram entre os restos de uma árvore de bom tamanho.

-Bem! -disse Jaime com um suspiro de satisfação-. Algumas vezes

constróem a colméia entre as rochas e não se pode fazer nada. -Tirou a tocha de seu cinturão e fez um gesto a Brianna para que se sentasse em uma pedra

próxima-. Esperaremos até que oscurezca para que todo o enxame esteja na colméia. Enquanto isso, quer que comamos algo?

Compartilharam o resto da comida e conversaram com calma enquanto

observavam a luz que desaparecia depois das montanhas próximas. Ensinou-lhe a carregar o comprido mosquete e a deixou disparar e voltá-lo para carregar.

-Muito bem -disse, arqueando uma sobrancelha-. Onde aprendeste a

disparar? -Meu pai atirava ao branco. -Baixou a arma com as bochechas ruborizadas

de prazer-. Ensinou-me a atirar com pistola e com escopeta. Também com fuzil de caça. Ah, você não deve conhecer o fuzil de caça.

-Não, suponho que não -respondeu com rosto inexpressivo.

-Como tirará a colméia? -perguntou, para trocar de tema. -Bom, uma vez que as abelhas vão se dormir farei entrar um pouco de

fumaça para as aturdir. Depois separarei a parte do tronco que tem o favo e apoiado sobre uma madeira Lisa o envolverei com minha capa. Uma vez em casa, cravarei uma parte de madeira na base e outro na parte de acima para que façam

a cera. -Sorriu-lhe-, Pela manhã, as abajas sairão e procurarão flores. -Não se dão conta de que já não estão no mesmo tugar? encolheu-se de ombros.

-E o que poderiam fazer? Não há forma de que encontrem o caminho e tampouco têm sua colméia para voltar para ela. Não, estarão contentes em seu

novo lar. -Agarrou a arma-. Me deixe limpá-lo, já há pouca luz para disparar. O silêncio durava muito. Brianna se esclareceu garganta sentindo que

devia dizer algo.

-Mamãe não se preocupará se chegarmos tão tarde? Sacudiu a cabeça sem dizer nada durante um momento. -Sua mãe me disse uma vez que os homens queriam voar até a Lua -disse

bruscamente-. Não o tinham feito ainda, mas o tentavam. Você sabe algo sobre isso?

Brianna assentiu com os olhos fixos na Lua que surgia entre as árvores.

295

-Fizeram-no. -Sorriu fracamente-. A nave que os levou se chama Apolo.

Pôde ver que lhe sorria como resposta e movia a cabeça pensativo. -Sim? E o que disseram ao voltar?

-Não tiveram que dizer nada, mandaram fotos. Falei-te sobre a televisão? Olhou-a um pouco surpreso e se deu conta de que tudo o que lhe tinha

contado sobre sua época era difícil de entender como algo real.

-Sim? -disse, com insegurança-. Viu essas fotos? -Sim -respondeu com as mãos obstinadas aos joelhos-. Terá que esperar

horas. Ninguém sabia quanto tempo foram demorar para sair com seus trajes espaciais. Sabe que não há ire na Lua?

Arqueou uma sobrancelha e assentiu como um aluno aplicado.

-Claire me disse isso -murmurou. -A câmara, o aparelho que faz essas fotos, estava colocada de forma que

pudéssemos ver a nave apoiada sobre o pó; este se levantava como se uns cavalos

o pisoteassem. Além disso do pó e umas pequenas pedras, a certa distância se viam uns penhascos rochosos; sem novelo, nem água, nem ar mas tudo invadido

por uma beleza misteriosa. -Parece Escócia -comentou. Brianna riu ante a brincadeira, mas lhe pareceu que ocultava certa

nostalgia. Para distrai-lo assinalou as estrelas.

-As estrelas são igual ao sol, mas estão tão longe que sua luz demora muitíssimo em nos chegar. De fato, muitas vezes já estão mortas e ainda vemos sua luz.

-Claire me contou faz isso muito tempo -disse brandamente. ficou em pé com decisão. -Vamos -disse-. Tiremos a colméia e voltemos para casa.

A noite era o suficientemente cálida para deixar a janela sem amparos.

A primeira noite, Ian tinha cedido galantemente sua cama a Brianna para ir-se dormir a um jergón junto a Cilindro no abrigo para as ervas, assegurando que gostava da intimidade. Ao sair, tinha espalmado ao Jamie com um gesto

surpreendentemente adulto de felicitação que me fez sorrir. Jamie também sorriu. De fato, passou vários dias sem deixar de sorrir.

Agora, entretanto, não o fazia; seu rosto tinha uma expressão tenra e pensativa. Surpreendeu-me que ainda não dormisse. levantou-se antes do amanhecer

para passar o dia com a Brianna na montanha; retornaram de noite, com a capa

cobrindo uma colméia de abelhas defumadas que ao dia seguinte despertariam irritadas ao descobrir o seqüestro. Anotei mentalmente que devia me manter separada do fundo do jardim onde estavam colocadas as colméias.

Jamie suspirou e aproximei a seu corpo. Não fazia frio, mas usava uma camisa para dormir por deferência a Brianna.

-Não pode dormir? -perguntei-, Você molesta a luz da lua? -Não -disse, embora a estava olhando—. Não é a lua, é outra coisa. Esfreguei-lhe brandamente o estômago, suspirou e me oprimiu a mão.

-OH, não é mais que uma tolice Sassenach. -Voltou a cabeça para a cama da Brianna-. Entristece-me que tenhamos que perdê-la.

-Mmm -deixei minha mão sobre seu peito. Sabia que chegaria esse

momento, mas não tinha querido romper a magia que unia aos três-. Não pode perder realmente a um filho -pinjente brandamente.

296

-Ela deve retornar, Sassenach, sabe tão bem como eu.-agitou-se inquieto,

mas não se apartou-. Olha-a, não é seu lugar nem seu tempo. -Sim -pinjente, com um desgosto que oprimia meu coração-. É obvio que

deve retornar. Pertence a outra época. -Sei. -Pôs sua mão sobre a minha sem deixar de olhar a Brianna-. Não

deveria me lamentar, mas o faço.

-O mesmo me acontece . -Apoiei a frente em seu ombro, aspirando seu aroma-. Mas o que te disse é verdade. Não se pode perder uma filha. Você... você

recorda ao Faith? Minha voz tremia um pouco; fazia muitos anos que não falávamos de nossa

primeira filha, que tinha nascido morta na França.

-É obvio que sim. Crie que poderia esquecê-la? -Não. -As lágrimas corriam por minhas bochechas por causa da emoção-.

Isso é o que quero dizer. Nunca lhe disse isso, mas quando fomos a Paris para ver

o Jared, fui ao Hospital dê Anges e vi sua tumba. Pu-lhe um tulipa rosado. -Eu lhe levei violetas -disse, com tanta suavidade que quase não lhe ouvi.

-Não me disse isso. -Você tampouco. -Tinha medo de que sentisse...

Me cortou a voz. Tinha tido medo de que se sentisse culpado, pois uma vez já lhe tinha culpado por isso. Acabávamo-nos de encontrar e não queria arruiná-

lo tudo. -Eu também. -Sinto que não pudesse vê-la -pinjente finalmente e o ouvi suspirar. voltou-

se e me abraçou. -Não importa. Se for certo o que diz, Sassenach. Sempre a teremos. E

Brianna seguirá estando conosco.

-Sim, não importa o que aconteça, não importa aonde vá um filho, nem por quanto tempo. Embora seja para sempre. Nunca o perde. Não pode

Não respondeu e me abraçou com força enquanto suspirava uma vez mas. Fomos ficando dormidos enquanto a lua nos banhava com sua paz.

43

Uísque na tinaja Eu não gostava de Ronnie Sinclair. Nunca me tinha gostado. Em especial

eu não gostava da forma em que olhava a minha filha. Esclareci-me garganta fazendo o suficiente ruído para que o ouvisse.

-Jamie diz que para fín de mês necessitará uma dúzia mais de barris

pequenos de uísque, e eu necessito o mais breve possível um grande tonel de madeira de nogueira para a carne defumada.

Assentiu enquanto para uma série de crípticas marca em uma tabela de

pinheiro que pendurou na parede. Sinclair não sabia escrever e utilizava uma espécie de taquigrafia pessoal que lhe permitia anotar os pedidos.

-Muito bem, senhora Fraser. Algo mais? -Não -decidi-. Isso é tudo. -De acordo, senhoras -vacilou-. Virá ele por aqui antes de que os barris

estejam preparados? -Não, não tem tempo. Terá que preparar a carne e destilar o álcool. Tudo

vai atraso por culpa do julgamento. -Olhei-o com uma sobrancelha arqueada-,

por que me pergunta isso? Tem alguma mensagem para ele? Sinclair inclinou a cabeça, pensativo.

297

-Bom, talvez não seja nada. Mas ouvi que há um desconhecido pelo distrito

fazendo perguntas sobre o Jamie Fraser. Com a extremidade do olho vi que Brianna se sobressaltava.

-Sabe o nome do forasteiro? -perguntou ansiosa-. Ou que aspecto tem? Sinclair a olhou surpreso. Tinha as costas magra, mas seus braços eram

fortes e as mãos tão grandes que podiam ter pertencido a um homem muito mais

corpulento que ele. . -Não posso falar de sua aparência -disse com amabilidade, mas por seu

olhar me deu vontade de golpeá-lo-. Disse que seu nome era Hodgepile. Brianna perdeu a expressão de esperança. -Não acredito que seja Roger -disse-me em voz baixa.

-Eu tampouco acredito -pinjente-. Não tem motivos para usar um nome falso.

Voltei-me para o Sinclair.

-Não terá ouvido algo sobre um homem chamado Wakefield, não? Roger Wakefíeld.

Sinclair sacudiu a cabeça com determinação. -Não, senhora. Ele já me falou disso. Se Wakefield aparece terá que mandá-

lo imediatamente para a Colina. Inteirarão-se em seguida.

Brianna suspirou e se tragou a desilusão- Estávamos em meados de outubro e, embora não falava disso, sua ansiedade aumentava dia a dia.

-... sobre o uísque -dizia Sinclair, e voltei minha atenção para ele. -O uísque? Hodgepile perguntava sobre o Jamie e o uísque? Sinclair assentiu.

-No Cross Creek, é obvio, ninguém lhe disse nada. Mas quem me contou isso me disse que parecia um soldado.

-Mas não ia vestido como um soldado, não?

-Não; além disso, dizia que comercializava com peles, mas por sua forma de caminhar parecia que levasse o mosquete. Isso é o que disse Geordie McClintock.

-Poderia ser um dos homens do Murchison. O direi ao Jamie, muito obrigado.

Saímos enquanto Brianna me perguntava que problemas nos traria esse

Hodgepile. E não importa quão virulento fora o ódio do Murchison, ou o bons o que fossem seus espiões, não imaginava que seus superiores lhe foram permitir

mandar uma expedição armada pelas montanhas para terminar com uma destilaria ilegal de tão pouca importância.

Lizzie e Ian nos esperavam fora recolhendo os pequenos troncos que

Sinclair não utilizava. -Pode carregar os barris com o Ian, querida? -perguntei a Brianna-. Quero

examinar ao Lizzie à luz do sol.

Brianna assentiu distraída e foi ajudar ao Ian a tirar meia dúzia de barris pequenos e a carregá-los no carro. Eram pequenos mas pesados.

-Vêem aqui, querida, me deixe te olhar os olhos. Obediente, Lizzie abriu bem os olhos e me permitiu examiná-la. Continuava muito magra mas a melhoria era notável.

-Sente-se bem? -perguntei. Sorriu com acanhamento e assentiu. Era a primeira vez que saía da cabana

desde que chegasse com o Ian três semanas atrás. Já não tinha ataques de febre,

e confiava em que melhorasse seu fígado. -Senhora Fraser? -disse.

298

Sobressaltei-me para ouvi-la falar. Era tão tímida que não nos falava

diretamente, a não ser através da Brianna. -Sim, querida?

-Eu... eu não pude evitar ouvir o que disse o tonelero: que o senhor Fraser lhe pediu que lhe avisasse se esse homem aparecia. E me perguntava...

-Sim?

-Acredita que poderá perguntar por meu pai? E se ruborizou ainda mais.

-Ai, Lizzie! Sinto muito. -Brianna se aproximou e abraçou a sua pequena criada-. Esqueci-o. Espera um minuto e o direi ao senhor Sinclair.

-Seu pai? -perguntei-- O que lhe passou, perdeu-o?

A moça assentiu apertando os lábios. -foi; quão único sei, é que veio às colônias do Sul. Bom, pensei, isso não serviria de muito, mas não se perdia nada por

perguntar ao Sinclair. As notícias nos periódicos eram escassas no Sul. Era mais singelo que corressem de boca em boca, em botequins e negócios, ou através de

criados e escravos nas plantações. O pensar em periódicos me fez recordar. Sete anos parecia bastante tempo.

Além disso, Brianna tinha razão; sim a casa devia queimar-se em 21 de janeiro

nós podíamos evitar estar aí. Brianna retornou com o rosto ruborizado e subiu ao carro tomando as

rédeas enquanto nos esperava com gesto impaciente. Ian, ao notar o rubor, franziu o sobrecenho e lançou um olhar à loja do

tonelero.

-O que passou, prima? Há-te dito algo inconveniente? Flexionou as mãos, quase tão largas como as do Sinclair. -Não -disse brevemente-. Nenhuma palavra. Estamos preparados para

partir? Ian levantou o Lizzie e a colocou no carro, logo me deu a mão e me ajudou a

subir no assento dianteiro junto à Brianna. Tinha-lhe ensinado a conduzir o carro com as mulas e se mostrava orgulhoso de sua prima. Logo se sentou junto ao Lizzie e partimos. Podia ouvir as histórias que lhe contava à moça e as risitas

dela como resposta. Ao ser o menor de sua própria família, Ian estava encantado com o Lizzie, a que tratava como a uma irmã pequena. Olhei de esguelha a

Brianna. -O que é o que fez? -perguntei. -Nada. Interrompi-o.

E se ruborizou de novo. -Que diabos estava fazendo? -Desenhos em um pedaço de madeira. De mulheres nuas.

Ri-me, porque me fazia graça e me impressionava. -Bom, já não tem esposa e não acredito que consiga outra. Nas colônias há

poucas mulheres. Suponho que não lhe pode culpar. Senti uma inesperada simpatia pelo Sinclair. Sua esposa tinha morrido

depois do Culloden e eu sabia o que era sentir-se sozinho.

Brianna se sentiu melhor e começou a assobiar brandamente algo dos Beatles. Uma idéia flutuava em minha mente; se Roger não aparecia, não a deixariam sozinha durante muito tempo; nem aqui e agora nem quando

retornasse ao futuro. Mas isso era ridículo, Roger ia vir. E se não... Sabia que se brigaram, mas Brianna não me tinha explicado o motivo. teria

se zangado tanto como para voltar sem ela?

299

Essa possibilidade também lhe devia ter ocorrido a Brianna. Já não falava

tanto do Roger, mas via a ansiedade em seu olhar cada vez que Clarence anunciava um visitante e a decepção ao descobrir que eram colonos do Jamie ou

amigos índios do Ian. -Vamos! -gritou Brianna e o carro avançou mais ligeiro pelo estreito atalho

que nos levava até casa.

-É muito distinto do destilado no Leoch -disse Jamie-. Mas... é uma espécie

de uísque. em que pese a sua aparente humildade, Brianna se dava conta de que

estava orgulhoso de sua primitiva destilaria- Estava a uns três quilômetros da

cabana; situada, explicava-lhe, perto da casa do Fergus, assim Marsali podia aproximar-se várias vezes ao dia para controlar as operações. Em troca desse serviço, Fergus e ela tinham mais quantidade de uísque que os outros granjeiros,

os quais proporcionavam a cevada e ajudavam na distribuição do licor. -Não, querido, não deve te comer essa coisa tão suja –disse Marsali com

firmeza. Agarrou a seu filho da boneca e lhe abriu os dedos para que soltasse o

inseto que o menino pensava meter-se na boca.

Marsali atirou a barata ao chão. Germaine, um menino gordinho e estóico, não chorou pela perda.

-Não lhe teria feito mal -disse Ian, divertido-. Eu as comi com os índios. Embora sejam melhores as lagostas, sobre tudo as defumadas.

Marsali e Brianna sopraram pelo asco e Ian riu com ânimo zombador.

-Disse-te que não! -Marsali sujeitou ao menino--. Quer que ponha a defumar?

Jamie se aproximou secando-a cara com um lenço.

-vamos acabar de uma vez -disse-. Estou morto de fome. Ian e ele levaram a plataforma umas bolsas de cevada fresca.

-Quanto tempo demora? Brianna observou com atenção como Marsali removia o grão fermentado. -Bom, isso depende um pouco do tempo. -Marsali olhou ao céu com ar de

perita-. Assim como está de claro, diria que... Germaine! Só se viam os pés do menino, o resto tinha desaparecido baixo um tronco.

-Já vou eu para buscá-lo. Brianna avançou rapidamente e levantou o menino. Germaine deixou

escapar um grito de protesto e começou a lhe dar patadas.

-Né! Brianna o deixou no estou acostumado a esfregando-a perna e Marsali

deixou escapar um som de exasperação.

-O que agarraste agora? Gennaine tinha aprendido de sua experiência anterior e se tragou sua

última aquisição. Imediatamente ficou arroxeado e começou a tossir. Com um grito de alarme Marsali caiu de joelhos e tratou de abrir a boca do

menino. Germaine se sacudia com os olhos exagerados.

Brianna agarrou ao pequeno do braço, apoiou-o de costas contra ela e com as duas mãos lhe apertou o estômago. Germaine deixou escapar um gemido e algo pequeno e redondo saiu de sua boca.

-Está bem? -perguntou ansioso Jamie, olhando ao menino que agora chorava em braços de sua mãe. Logo olhou agradado a Brianna-. foste muito

rápida, moça, bom trabalho.

300

-Obrigado. Me alegro de que desse resultado.

Brianna sentiu que tremia. Segundos. Tudo tinha durado uns segundos. Da vida à morte e de novo volta à vida em um instante. Jamie lhe oprimiu o braço

e se sentiu um pouco melhor. -O melhor será que leve a menino a casa —disse ao Marsali-. Lhe dê a

comida e coloca-o à cama. Já terminaremos nós.

Marsali assentiu sonriendo a Brianna. Também ela estava comovida. -Muito obrigado, boa irmã.

Brianna sentiu um surpreendente prazer ante aquele título. -Me alegro de que esteja bem. E lhe sorriu.

-Esteve muito bem, prima. -Ian, depois de terminado o trabalho, tinha

saltado da plataforma para felicitá-la-. De quem aprendeu a fazer isso?

-De minha mãe. Ian assentiu impressionado. Jamie se inclinou procurando no chão.

-O que se tinha tragado o menino? -Isto. -Brianna descobriu o objeto médio escondido entre as folhas e o

levantou. Parece um botão.

-me deixe ver. Jamie estendeu a mão e lhe entregou o botão.

-Você não perdeste um botão, não, Ian? -perguntou com rosto carrancudo. Ian olhou por cima do ombro do Jamie e sacudiu a cabeça. -Talvez Fergus? -sugeriu.

-Possivelmente, mas não acredito. Nosso Fergus é muito presumido para usar algo assim. Todos os botões de seu casaco são feitos de corno gentil. -Sorriu a Brianna e torceu a cabeça para o atalho-. Vamos, perguntaremos aos Lindsey

caminho a casa. Quer terminar de uma vez, Ian? Kenny Lindsay não estava em casa.

-Duncan Innes veio a buscá-lo faz menos de uma hora -disse a senhora

Lindsey-, Estou segura de que irão a sua casa. Querem entrar, MAC Dubh? Você e sua filha podem tomar algo.

-Ah, não, muito obrigado. MIM esposa deve ter o almoço preparado. Mas talvez me possa dizer se este botão é do casaco do Kenny.

depois de observar o botão sacudiu a cabeça. -Não. Os que leva os fez ele com osso de cervo -declarou com orgulho. Logo

olhou especulativamente a Brianna-. Agora está conosco um irmão do Kenny que

tem bons terrenos perto do Cross Creek, vinte acres de tabaco. Irá à reunião no Mount Helicón. Talvez lhes possam conhecer ali.

Jamie sacudiu a cabeça sonriendo ante o intento. Havia poucas mulheres

na colônia e, embora Jamie havia dito que sua filha estava comprometida, isto não bastava para deter os intentos das casamenteiras.

-Temo-me que este ano, não. Talvez o próximo; por agora não posso me afastar.

despediram-se amavelmente e seguiram caminho de casa deixando o sol a

suas costas. -Crie que o botão é importante? -perguntou Brianna com curiosidade. -Não sei. Pode não ser nada, mas também pode significar algo. Sua mãe me

contou o que lhe disse Ronnie Sinclair sobre aquele homem que perguntava pelo uísque.

-Hodgepile?

301

Brianna riu ante o nome e Jamie lhe devolveu o sorriso, mas logo ficou

sério outra vez. -Sim. Se o botão pertencer a alguém do lugar não há problema já que todos

conhecem a destilaria. Mas se for de um desconhecido... -Olhou-a e se encolheu de ombros-. Não é tão fácil passar inadvertido por aqui, salvo que queria esconder-se. Um homem que se aproximasse com motivos inocentes se deteria

ante uma casa para pedir comida e bebida, e eu me inteiraria em seguida. Tampouco pode ser de um índio, eles não usam estas coisas.

Quando chegaram, Claire estava no jardim; sua magra figura se recortava contra o sol e seus cabelos formavam uma grande auréola de cachos dourados.

Os dois ficaram em silêncio, observando-a.

-Papai estava acostumado a dizer que se mamãe nos deixava, seria por que se teria ido procurar um lugar para viver sozinha com todas seu novelo -disse Brianna, pensando em voz alta.

-Ah. -A voz do Jamie era tranqüila. «Mas não está sozinha depois de tudo», pensou Brianna.

Kenny Lindsey tomou um sorvo de uísque, fechou os olhos e moveu a

língua como um provador profissional.

-Mierda -disse com voz rouca-. Esfola as tripas! Jamie sorriu ante o completo e serve outro pouco para o Duncan.

-Sim, é melhor que o último -disse-. Não te arranca a língua. Lindsey se secou a boca com a mão e assentiu. -Bom, encontrará um bom lar. Woolam quer um barril.

-Puseram-lhes de acordo no preço? Lindsey assentiu outra vez. -Um barril para cada uma das casas da Colina, dois para o Fergus -

calculou Jamie-. Talvez dois mais para o Nacognaweto, a gente guardado para envelhecê-lo..., sim, podemos apartar uma dúzia para a reunião, Duncan.

A chegada do Duncan tinha sido oportuna. Jamie as tinha arrumado durante o primeiro ano para trocar o uísque por ferramentas, roupa e outras coisas que necessitava com urgência, com os moravos de Salem; mas não havia

dúvida de que os ricos escoceses das pIantaciones de Cape Fear seriam um melhor mercado.

Nós não podíamos fazer a viagem até o Mount Helicón, mas Duncan podia levar o uísque e vendê-lo... já estava fazendo listas em minha cabeça. Todos levavam coisas para vender na reunião: lã, tecidos, ferramentas, mantimentos,

animais... Eu necessitava com urgência uma pequena panela de cobre, musselina Y...

-Criem que devem lhe dar álcool aos índios?

A pergunta da Brianna me arrancou de meus sonhos ambiciosos. -por que não? -perguntou Lindsey com certa desaprovação-. depois de tudo,

não o damos, moça. Eles o pagam e o pagam bem. Brianna me olhou procurando apoio e logo ao Jamie. -Mas os índios não... ouvi que não lhes sinta bem o álcool.

Os três homens a olharam sem compreender. -Quero dizer que se embebedam com facilidade. Lindsey a observou.

-O que quer dizer, moça? -perguntou mais ou menos amavelmente. -O que quero dizer é que me parece mal fazer beber a gente que uma vez

começa não pode deixar de fazê-lo.

302

Olhou-me e sacudi 1a cabeça.

-O alcoolismo não é uma enfermidade ainda. É só uma falta de caráter -pinjente.

-Direi-te uma coisa -disse Jamie-. Vi muitos bêbados em minha vida, mas nunca vi que nenhuma garrafa saísse da mesa para meter-se na boca de ninguém.

Todos grunhiram a modo de aprovação e se serve outra ronda para trocar de tema.

-Hodgepile? Não, não o conheço, embora acredite que ouvi o nome. -Duncan apurou o resto de sua bebida e deixou a jarra-. Querem que pergunte na reunião?

Jamie assentiu. Lizzie estava lhe dando voltas ao guisado para a comida, mas era muito tímida para falar ante tantos homens- Brianna não tinha essas inibições.

-Eu também tenho algo que te pedir, Innes. -Olhou-o aos olhos-. Poderia perguntar por um homem chamado Roger Wakefield?

-Bom, claro. Farei-o. -Duncan ficou nervoso ante a proximidade da Brianna e se bebeu o uísque do Kenny-, Há algo mais que possa fazer?

-Se -pinjente, colocando outra jarra para o Lindsey-. Enquanto pergunta

pelo Hodgepile e o jovem do Bri, também poderia perguntar por um homem chamado Joseph Wemyss.

Pude ver como Lizzie suspirava aliviada. Duncan assentiu, recuperando a compostura quando Brianna se foi à

despensa a procurar manteiga. Kenny Lindsey a olhou interessado.

-Bri? Assim chama a sua filha? –perguntou. -Fui-dije-. Porquê? Um sorriso apareceu na cara do homem. Logo olhou ao Jamie, tossiu e

enterrou a cara na jarra. -É uma palavra escocesa, Sassenach -disse Jamie, com um amplo sorriso-.

Uma bree é uma grande comoção. 44

Uma conversação com três participantes

Ouctubre de 1769 As vibrações do impacto atravessaram seus braços. Seguindo um ritmo

fruto da larga prática, Jamie liberou a tocha, balançou-a para trás e a deixou cair de novo. Apoiou o pé no lenho e golpeou outra vez cravando o afiado metal a um

par de centímetros de seus dedos. Podia haver dito ao Ian que cortasse a lenha e ir ele a procurar a farinha ao

pequeno moinho dos Woolam; mas o moço se merecia a visita às três jovens

solteiras que trabalhavam com seu pai no moinho. Era uma família de quaisquer e embora as moças se vestiam com cores escuras como os pardais, seus rostos

eram vivazes e inteligentes, mimavam ao Ian e lhe ofereciam cerveja e partes de bolo.

Era melhor que passasse o tempo com aquelas jovens virtuosas que com

índias de expressão atrevida. O tronco já estava quase talhado; outro golpe e dois lenhos mais estariam

preparados para o fogo. A verdade era que gostava de cortar lenha. Era um dia

303

caloroso de finais de outubro e a camisa lhe pendurava dos ombros. secou-se a

cara com a manga e examinou a mancha úmida. Se seguia molhando-a, Brianna insistiria em lavá-la embora ele

protestasse. Enrugaria o nariz e lhe diria «Uf!», para demonstrar seu asco. Sua mãe tinha morrido fazia muito tempo, quando ele era um menino, mas

recordava esse gesto quando aparecia tudo sujo.

Que mistério o do sangue. Como um pequeno gesto ou um tom de voz podia transmitir-se através de gerações?

encolheu-se de ombros, e se tirou a camisa. depois de tudo, aquela era sua terra e ninguém veria as marcas de suas costas.

Amava profundamente aos filhos do Jenny, em especial ao Ian; depois de

tudo eram de seu sangue. Mas Brianna... Brianna era algo mais, provinha de sua mesma carne. Uma promessa não falada para seus próprios pais, seu presente para o Claire e dela para ele.

Não pela primeira vez se encontrou pensando no Frank Randall. O que teria pensado ao ter uma criatura de outro homem ao que não tinha nenhum motivo

para apreciar? Sua mente se concentrava mais em seus pensamentos que em suas ações.

Mas, enquanto isso, a tocha formava parte de seu próprio corpo, passava a ser

um apêndice dos braços que a balançavam. Olhou para o jardim do Claire, ao lado da casa, onde estava o poço que ainda não tinha tido tempo de terminar.

encolheu-se de ombros com irritação ao ver que a cabeça da tocha se separava da manga.

Então se abriu a porta e saiu Claire com uma cesta na mão seguida da

Brianna e toda sua irritação desapareceu. -O que passou? -perguntou Claire imediatamente. Ao vê-lo com a folha da tocha na mão pensou que se feito mal.

-Nada, estou bem -assegurou-. Tenho que arrumar a manga. vais procurar forragem?

-Acredito que irei pelo arroio. -Não vá muito longe, né? Há índios caçando na montanha. Cheirei-os esta

manhã na colina.

-Cheirou-os? -perguntou Brianna. -É outono e estão secando a carne de veado –explicou Claire-. Se o vento

soprar na direção correta se pode cheirar a fumaça a grande distancia. Não vamos longe -acrescentou-. Só até o lago das trutas.

-Bom, suponho que é um lugar seguro.

Sentia certo desgosto ao deixar que partissem sozinhas, mas não podia as obrigar a ficar em casa só porque havia índios perto. Se soubesse com segurança que eram da tribo do Nacognaweto não se preocuparia, mas podiam ser cherokee

ou dessa pequena e estranha tribo que se chamavam a si mesmos os Cães. Não confiavam nos estrangeiros brancos e tinham boas razões para isso.

Os olhos da Brianna se posaram por um momento sobre seu peito nu e as cicatrizes, mas não manifestou desgosto nem curiosidade. Deu-lhe um beijo na bochecha como despedida.

Claire devia lhe haver contado, pensou Jamie, o que ocorreu com o Jack Randall nos dias antes do levantamento. Ou talvez não lhe contou tudo. Um leve estremecimento lhe percorreu as costas; deu um passo atrás e seguiu sonriendo.

-Há pão na despensa e um guisado na panela. Não lhes comam o pudim, que é para o jantar -disse Claire, lhe tirando umas ramitas do cabelo.

304

Jamie lhe agarrou a mão e beijou brandamente os nódulos. Olhou-o

surpreso e um leve rubor iluminou sua pele. ficou nas pontas dos pés e lhe beijou na boca; logo se apressou a seguir a Brianna, que já estava no bordo do claro.

-Tomem cuidado! -gritou-lhes. Saudaram-no com a mão e desapareceram no bosque lhe deixando seus

suaves beijos na cara e um profundo agradecimento no coração.

Estava sentado com um punhado de pregos no chão e os colocava com

cuidado de uma em uma na manga da tocha. Tinha frio e ficou a camisa; também tinha fome mas esperaria aos jovens.

Quem com segurança, pensou com cinismo, já deviam estar fartos de comer.

Quase podia cheirar o aroma dos bolos do Sarah Woolam. Os índios diziam que o inverno ia ser duro, não como o anterior. Como

seria caçar com tanta neve? Em Escócia a capa de neve estava acostumada ser

muito magra e os rastros do cervo vermelho se distinguiam facilmente nas ladeiras nuas.

perguntava-se o que lhe teria contado Claire a Brianna. Era estranha, embora agradável, a forma que tinham de comunicar-se; Brianna e ele se mostravam tímidos entre eles. As coisas mais pessoais as contavam ao Claire,

confiando ambos em que ela as transmitiria, atuando como intérprete naquela nova e torpe linguagem do coração.

Embora estava agradecido pelo milagre de ter ali a sua filha desejava poder fazer o amor com sua esposa e em sua própria cama. Estava fartando-se de fazê-lo no abrigo de ervas ou no bosque, embora admitia que tinha certo encanto.

Deixou a tocha e foi até a casa para medir com seus passados as dimensões da nova habitação que pretendia construir até que tivessem lista a casa grande. Brianna era uma mulher e necessitava um lugar privado para ela e sua criada. E

se isso lhe devolvia a intimidade com o Claire muito melhor. Ouviu o ruído das folhas secas no pátio, mas não se deu a volta até que

percebeu uma débil tosse. -Lizzie? -preguntó,todavía, olhando ao chão-. Desfrutou de do passeio?

Espero que tenham encontrado bem aos Woolam.

Onde estaria Ian com o carro?, perguntou-se. Não os tinha ouvido chegar. A moça não respondeu, antes bem deixou escapar um ruído que lhe

obrigou a voltar-se com surpresa. -tivestes Um acidente? passou algo com o carro? Sacudiu a cabeça sem poder falar.

-Ian está bem? Não queria turvá-la mas começava a assustar-se. Algo tinha acontecido,

disso estava seguro.

-Estou bem e os cavalos também. Silencioso como os índios, Ian tinha aparecido por uma esquina da cabana

e se aproximou do Lizzie para acalmá-la. -O que acontece? -perguntou com um tom mais cortante do que desejava. -É melhor que o diga -disse Ian-. Não temos muito tempo.

Tocou-lhe o ombro para lhe dar valor. Lizzie pareceu recuperar forças e se ergueu.

-Eu... estava- vi um homem. No moinho, senhor.

-Ela o conhecia, tio -disse Ian. Parecia turbado mas não de medo, a não ser excitado de uma forma especial- Viu-o antes... com a Brianna.

-Sim?

305

Tratou de lhe dar confiança, mas o pêlo da nuca lhe arrepiava.

-No Wilmington -prosseguiu Lizzie—. Seu nome era MacKenzie; ouvi um marinheiro que o chamava assim.

Jamie lançou um rápido olhar ao Ian, que assentiu. -Não disse de onde era mas não conheço ninguém do Leoch como ele. Vi-o e

o ouvi falar; talvez seja um highlander, mas seguro que estudou no sul; eu diria

que é um homem educado. -E esse senhor MacKenzie conhece minha filha? -perguntou.

Lizzie assentiu com o rosto carrancudo pela concentração. -Sim, senhor! E ela também o conhece... tinha-lhe medo. -Medo? por que?

Jamie falava com dureza, mas Lizzie já não podia deixar de falar. -Não sei. Mas ficou pálida quando o viu e logo vermelha. Estava muito

zangada, isso o podia ver qualquer!

-O que fez ele? -Bom... nada. Lhe aproximou, agarrou-a dos braços e lhe disse que se tinha

que ir com ele. Tudo no botequim os olhavam. Ela se soltou, branca como meu avental, mas me disse que tudo ia bem e que a esperasse que retornaria. Y... Y... foi com ele.

-E a deixou ir? -Deveria ter ido com ela, sei! -gritou, com o rosto decomposto pela

angústia- Mas tinha medo, que Deus me perdoe! -Bom, está bem. -Jamie fez um esforço fardo acalmar-se-. E o que

aconteceu então?

-Subi como ela me disse, deitei-me e me pus a rezar. -Bom, estou seguro de que isso deve ter ajudado muito. -Tio... -A voz do Ian era suave mas firme e seus olhos castanhos o olhavam

sem vacilar-. Não é mais que uma menina, tio, fez-o o melhor que pôde. -Sim -disse-. Sim, perdoa, não quis te falar assim. Mas que mais aconteceu

-Ela... ela não retornou até o amanhecer. Y... Y... Ao Jamie ficava já muito pouca paciência e, sem dúvida, lhe notava no

rosto.

-Pude sentir o aroma dele em seu corpo -sussurrou-. Seu... sêmen. A onda de fúria o agarrou por surpresa.

-deitou-se com ela? Está segura? A jovem só pôde assentir enquanto se retorcia as mãos e olhava ao chão. -Não o vê? Está esperando um menino e tem que ser dele, era virgem

quando se foi com ele. Veio a procurá-la e agora lhe tem medo. de repente pôde vê-lo tudo e se estremeceu. O olhar da Brianna, seu

comportamento: o mesmo estava animada que perdida em seus pensamentos, e

estava claro que o brilho de sua cara não era só pelo sol. Conhecia bem a expressão das mulheres grávidas; se a tivesse conhecido antes teria notado a

mudança, mas assim... Claire. Claire sabia. O pensamento lhe chegou com fria segurança.

Conhecia sua filha e era médica- Tinha que sabê-lo e não o tinha contado.

-Está segura disso? A frieza acalmou sua fúria. Lizzie assentiu e se ruborizou ainda mais, se é que isso era possível.

-Sou sua criada -sussurrou com a vista baixa.

306

-Quer dizer que Brianna não teve a regra em dois meses -informou Ian com

praticamente. O menor de uma família com várias irmãs maiores não tinha a delicadeza do Lizzie-. Está segura.

-Eu... eu não ia dizer nada -continuou a moça-, mas quando vi o homem... -Crie que virá a reclamá-la, tio? -interrompeu Ian-, Temos que detê-lo, não? Agora era clara o olhar de fúria e excitação.

-Não sei -disse, surpreso pela calma de sua voz. Se esse tal MacKenzie o desejava, podia reclamar a Brianna como sua esposa por direito consuetudinário,

com o filho por nascer como prova ante suas pretensões. Seus próprios pais se casaram assim. Um filho era um laço permanente entre um homem e uma mulher.

-Não virá detrás de vós? Os Woolam lhe devem ter indicado o caminho. -Não -disse Ian, pensativo-.. Não acredito. Tiramo-lhe o cavalo, sabe? Sorriu súbitamente ao Lizzie, quem lançou uma risita.

-Sim? E o que o deterá na hora de agarrar o carro ou uma das muías? O sorriso se aumentou na cara do Ian.

-Deixei a Cilindro sobre o carro -disse-. Acredito que virá caminhando, tio Jamie.

Jamie se viu forçado a sorrir.

-Isso foi atuar rápido, Ian. O moço se encolheu de ombros com modéstia.

-Bom, não queria que o bastardo nos pilhasse despreparados. E embora faça bastante que a prima Brianna não fala disso... Wakefield, não? -Fez uma pausa-. Não acredito que queira ver esse MacKenzie. Em especial se...

-Eu diria que o senhor Wakefield ficou atrás –disse Jamie- Em especial se... Não era estranho que Brianna, uma vez que se deu conta, tivesse deixado

de esperar a chegada do Wakefield. depois de tudo, como ia explicar o de sua

barriga a um homem que a tinha deixado virgem? Com lentidão afrouxou os punhos crispados. Agora tinha que ocupar-se de

tudo. -Procura suas pistolas -disse ao Ian-. E você, moça -tentou um sorriso-,

fique aqui e espera a que voltem Claire e Brianna. lhe diga a minha esposa... que

tive que ir ajudar ao Fergus com sua chaminé. E não lhes diga uma palavra disto ou usarei suas tripas como ligas.

Esta última ameaça foi sorte em brincadeira, mas a jovem ficou pálida como se fora certo.

Lizzie observou afastar-se ao Jamie, tão ameaçador como um grande lobo

vermelho. -Mãe querida -murmurou, obstinada a sua medalha-. Virgem bendita, o

que tenho feito?

45

Metade e metade

As folhas de carvalho estavam secas e rangiam ao as pisar; as dos castanhos caíam constantemente formando uma lenta chuva amarela sobre a terra seca.

-É certo que os índios podem mover-se pelo bosque sem fazer ruído, ou é algo que nos diziam quando fomos meninas exploradoras?

307

Brianna chutou as folhas e as fez voar. Vestidas com saias largas e

anáguas, fazíamos tanto ruído como uma manada de elefantes. -Bom, não podem fazê-lo quando o tempo é tão seco, salvo que saltem pelas

árvores, como os chimpanzés. Mas na primavera, com a umidade, é diferente. Até eu posso caminhar sem fazer ruído; a terra é como uma esponja.

Ao chegar ao bordo de um pequeno arroio nos separamos. Brianna

recolheria agriões enquanto que eu procuraria cogumelos entre as árvores. Vigiava-a continuamente; tinha um olho sobre ela e outro no terreno. Algo

não ia bem, notava-o desde fazia uns dias. Ao princípio pensei que era devido aos nervos causados pela nova situação em que se encontrava. Mas durante as últimas semanas Jamie e ela tinham iniciado uma relação que, embora ainda

estava marcada pelo acanhamento de ambos, era cada dia mais cálida. Desfrutavam estando juntos e eu desfrutava vendo-os.

Entretanto algo a preocupava. Em parte tinha preparado esta expedição

para ter a oportunidade de poder falar com ela a sós; com o Jamie, Ian e Lizzie em casa, e o constante tráfico de colonos e visitantes, era impossível uma

conversação privada. E se o que suspeitava era certo esta ia ser uma conversação que não queria que ouvisse ninguém.

Quando minha cesta já estava quase cheia de grosas cogumelos

alaranjadas, Brianna apareceu pelo arroio carregada de agriões. -É do Roger? -disse-lhe, sem preâmbulos.

Olhou-me surpreendida e logo vi que a tensão de suas costas se relaxava. -Pergunto-me como ainda pode fazer isso -disse. -Fazer o que?

-Ler em minha mente. Em realidade, espero que possa. Tratou de sorrir. -Acredito que perdi um pouco de prática –disse-. Mas espera um tempo. -

Arrumei-lhe o cabelo da cara-. Está tudo bem, neném -pinjente com calma- De quanto tempo está?

-Desde dois meses -disse, exalando um suspiro de alívio. Olhamos aos olhos e a senti diferente; já a havia sentido assim desde sua

chegada. Antes, seu alívio tivesse vindo provocado pelo medo, quando sabe que

vão ajudar a. Mas agora era só o alívio de compartilhar um segredo insuportável, pois não esperava que eu arrumasse as coisas. O saber que eu não podia

solucionar o problema não diminuía meu irracional sentimento de perda. Apertou-me a mão como se queria me dar segurança, logo se sentou com as

costas apoiada em um tronco e estirando as pernas disse:

-Sabia? Sentei-me perto dela. -Isso espero, mas não sabia que soubesse, se isto tiver sentido.

Ao olhá-la agora todo se fazia evidente: o tom de sua pele, as alterações em sua cor e aquela expressão ensimismada. Tudo adquiria uma nova dimensão.

-Roger! -Assentiu, pálida pela luz amarelada que se filtrava pelas folhas-. passaram quase dois meses. Teria que estar aqui... salvo que lhe tenha passado algo.

Minha mente estava ocupada calculando. -Dois meses, estamos quase em novembro. -Meu coração deu um salto-.

Bri, tem que retornar.

-O que? -Levantou a cabeça-. Retornar aonde?. - Às pedras -pinjente agitando o ramo-. A Escócia e rápido!

Contemplou-me com as sobrancelhas arqueadas.

308

-Agora? Para que?

-Pode passar grávida. Sei porque eu o fiz. Mas não pode levar a um recém-nascido através de... de...; não pode. Você sabe o que é.

Tinham passado três anos e recordava a experiência com toda claridade. Seus olhos se obscureceram e seu rosto ficou branco. -Não pode levar a uma criatura -repeti. Tratava de me controlar e de pensar

com lógica-. Seria como saltar às cataratas do Niágara com um menino nos braços. Tem que retornar antes de que nasça O...

Interrompi-me, para seguir com meus cálculos. -Estamos quase em novembro. Os navios não navegam desde finais de

novembro até março. E não pode esperar tanto, isso significaria fazer uma viagem

de dois meses pelo Atlântico grávida de seis ou sete meses. Se não nascer no navio, o qual seria uma morte segura para ti, para o menino ou para os dois, ainda teria que cavalgar uns cinqüenta quilômetros até o círculo, conseguir

passar e procurar ajuda ao outro lado... Brianna, não pode fazê-lo! Tem que ir agora, logo que possamos arrumá-lo.

-E se vou agora..., como vou estar segura de que chegarei à época correta? Falava com calma, mas seus dedos se aferravam à saia. -Você... eu acredito... bom, eu o fiz.

Meu pânico inicial começava a render-se ante um pensamento lógico. -Você tinha a papai ao outro lado. -Olhou-me com acuidade-, Quisesse ou

não retornar com ele, tinha um forte laço afetivo ali; te ia ajudar, ou melhor, nos ia ajudar. Mas já não está. -Seu rosto ficou tenso e logo se relaxou-. Roger sabia... sabe -corrigiu-se-. O caderno do Geillis Duncan diz que se podem usar

pedras preciosas para viajar, que servem como amparo e para dirigir a viagem. -Mas só lhes apóiam em hipóteses! –argumentei-. Quão mesmo essa

maldita Geiilis Duncan! Pode ser que não se necessitem pedras preciosas nem

nenhum outro acrescentado. Nos antigos contos de fadas, quando a gente se mete em uma colina encantada e logo retorna, e! período da viagem são sempre

duzentos anos- Se essa for a medida habitual, então... -Arriscaria-te a descobrir que pode que não seja assim? Geiilis Duncan viajou mais de duzentos anos.

Me ocorreu, um pouco tarde, que minha filha já tinha pensado todo isso por si mesmo. Nada do que eu dizia a tinha surpreso.

-Há outra forma -pinjente, lutando para recuperar a calma-. Outra porta, quero dizer. Está no Haiti, agora a chamam A Espanhola. Na selva há umas pedras sobre uma colina. A greta, a porta para passar, está clandestinamente

dentro de uma cova. -Esteve ali? -inclinou-se para diante, interessada. -Sim. É um lugar horrível. Mas as Antilhas estão muito mais perto que

Escócia, e há navios entre o Charleston e Jamaica quase todo o ano. -Aspirei profundamente, me sentindo um pouco melhor-. Não é fácil atravessar a selva

mas terá mais tempo, o suficiente para encontrar ao Roger. “Se for possível encontrá-lo", pensei, mas não o disse. Esse temor em

particular ficava para logo.

-Esse lugar funciona como o outro? -Não sei como funciona! Mas sonha diferente; é um som de sino, em lugar

do zumbido. Mas é um caminho, disso estou segura.

-Esteve ali -disse lentamente, me olhando com as sobrancelhas arqueadas-. por que? Queria retornar? depois de te haver encontrado com... ele?

Sua voz vacilava, ainda não podia referir-se ao Jaime como «meu pai».

309

-Não. Foi pelo Geiilis Duncan. Ela o encontrou.

Os olhos da Brianna se abriram pela surpresa. -Ela está aqui?

-Não. Está morta. Respirei profundamente. Às vezes pensava nela e quando estava sozinha no

bosque me parecia ouvir sua voz.

-Bem morta -disse com firmeza e a seguir troquei de tema-. Como aconteceu?

-Você é médica. Quantas formas há? Olhei-a com interesse. -Alguma vez pensou em tomar alguma precaução?

Olhou-me zangada. -Eu não planejava ter relações sexuais aqui! -Você crie que a gente o planeja? Quantas vezes fui a seu colégio e lhes

dava bate-papos sobre...? -Todos os anos! Minha mãe, a enciclopédia sexual! Tem idéia de quão

mortificante era para meu ter a minha própria mãe, frente a toda a classe, desenhando frangas?

Seu rosto avermelhou pela lembrança.

-Não o devi fazer bem -pinjente asperamente-, já que parece que não as reconhece quando as vê.

Olhou-me furiosa, mas se deu conta de que o havia dito em brincadeira, para relaxar a tensão.

-Bem –disse-. Mas parecem diferentes quando uma está em terceiro grau.

Agarrou-me por surpresa e ri. Depois de um momento, imitou-me. -Você sabe o que quero dizer. Deixei-te as receitas antes de ir. -Sim e nunca me senti tão atalho em minha vida! Pensava que ia sair

correndo para me deitar com qualquer assim que fosse? -Quer dizer que era meu presencia o que te detinha?

-Bom, não só isso -aceitou-. Mas você tinha algo que ver, você e papai. Eu não queria lhes desiludir.

Tremia-lhe a boca e a abrace com força.

-Não poderia, neném -murmurei, embalando-a-. Nunca nos decepcionou, nunca.

Por último, respirou profundamente e se separou de mim. -Talvez a ti não, nem a papai. Mas o que passará...? Moveu a cabeça por volta da agora invisível cabana.

-Ele não... -comecei e me detive. A verdade era que não sabia o que faria Jamie. Era um homem de mundo,

com uma boa educação, tolerante e compassivo, mas isso não queria dizer que

compartilhasse e entendesse a sensibilidade moderna; sabia com segurança que não o fazia. E não podia pensar que sua atitude para o Roger seria tolerante.

-Bom –pinjente-. Não sentiria saudades que queria lhe dar um murro no nariz ao Roger. Mas não se preocupe -disse ao ver o alarme em seu olhar-. Ele te ama e não deixará de fazê-lo por isso.

Pu-me em pé. -Temos um pouco de tempo, mas não terá que desperdiçá-lo. Jamie fará

correr a voz sobre o Roger rio abaixo. Falando do Roger... -vacilei-. Suponho que

não sabe nada, não? Brianna suspirou profundamente e apertou os punhos.

310

-Bom, há um problema. -Olhou-me e outra vez foi minha pequena menina-.

Não é do Roger. -Como? -pinjente estupidamente.

-Não é do Roger, Não é filho do Roger. Voltei-me a sentar. Súbitamente, a preocupação pelo Roger tomava uma

nova dimensão.

-Quem?-pinjente-. Aqui ou lá? «Não tinha planejado ter relações sexuais», havia-me dito. Não, é obvio que

não. Não o havia dito ao Roger por medo de que a seguisse; ele era sua âncora, sua chave para o futuro- Mas neste caso...

-Aqui -disse, confirmando meus cálculos.

Procurou em seu bolso e tirou algo. Deu-me isso e estendi a mão de forma automática.

-Cristo bendito. -O anel de ouro brilhava ao sol e minha mão se fechou

sobre ele-. Bonnet? Stephen Bonnet? -Não lhe ia dizer isso, não podia depois de que Ian me explicasse o que

tinha passado no rio. Ao princípio não sabia o que faria Jamie, tinha medo de que me culpasse. Mas quando o conheci um pouco melhor soube que trataria de encontrar ao Bonnet, isso é o que tivesse feito. Não podia deixar que o fizesse.

Você conheceu esse homem e sabe como é. -Sei.

Suas palavras ressonavam em meus ouvidos. “Não planejava ter relações sexuais. Não podia dizê-lo... Tinha medo de que

me culpasse..."

-O que te fez? -perguntei, surpreendida de que minha voz soasse tranqüila-. Fez-te mal, neném?

-Não me chame assim, quer? Agora não.

-me quer contar isso Não queria sabê-lo, preferia fingir que não tinha acontecido nada.

Levantou a vista e me olhou com os lábios rígidos formando uma linha branca.

-Não -respondeu-. Não, não quero. Mas acredito que é melhor que o faça.

Tinha subido a bordo do Gloriana a plena luz do dia, com cautela mas

sentindo-se segura por causa de toda a gente que havia ali. Bonnet estava recém barbeado, com os olhos verdes aleña. Examinou-a com interesse.

-Pensava que viria ontem à noite -disse, beijando sua mão-. É muito estranho encontrar uma mulher que seja mais bonita à luz do sol que a da lua.

Brianna tratou de liberar sua mão com um sorriso amável. -Muito obrigado. Ainda tem o anel? Pulsava-lhe o coração. Embora o tivesse perdido no jogo ainda podia lhe

falar sobre ele e sobre sua mãe, mas desejava o ter entre suas mãos. Tratou de esquecer o temor que a tinha açoitado durante toda a noite: que o anel fora tudo o que ficava de sua mãe. Não podia ser sim a nota do periódico era certa, mas...

-Claro, claro. A sorte do Danu esteve comigo e pelo que vejo segue me acompanhando.

Sorriu sem lhe soltar a mão. -Perguntava-me... se me venderia isso. -por que?

Pergunta-a direta a desconcertou.

311

-parece-se com um que tinha minha mãe -respondeu, incapaz de inventar

algo melhor que a verdade-. Onde o conseguiu? Embora seguia sonriendo, algo trocou em sua expressão.

-Assim quer o anel? Vêem meu camarote, querida, e veremos se chegarmos a um acordo.

Uma vez abaixo lhe serve brandy. Ela apenas o provou mas Bonnet se

tomou uma taça e se serve outra. -Onde? -disse em resposta a sua pergunta-. Ah, bom, um cavalheiro não

deve contar histórias sobre suas damas, não?-Lhe piscou os olhos o olho-. Uma amostra de amor -sussurrou.

-A dama que lhe deu está isso bem de saúde?

Olhou-a surpreso, com a boca aberta. -Digo-o pela sorte -continuou Brianna apressadamente. Traz má sorte usar

jóias que tenham pertencido a alguém que... que esteja morto.

-Sim? -Voltou a sorrir-. Não posso dizer que tenha notado esse efeito sobre mim. -Deixou a taça e arrotou-. De todos os modos, posso te assegurar que a

dama da que obtive o anel estava sã e salva quando a deixei. -Me alegro de ouvi-lo. Venderá-me isso então? -Vendê-lo? E o que me oferece em troca?

-Quinze libras esterlinas. Seu coração começou a pulsar mais ligeiro. Aceitaria? Onde o teria

guardado? -Eu já tenho suficiente dinheiro, coração -disse-, De que cor é o pêlo de

entre suas pernas?

soltou-se a mão de um puxão e retrocedeu até a parede da cabine. -Está-te equivocando. Eu não queria... -Talvez não -disse com um sorriso-. Mas eu sim. E acredito que talvez foi

você a que me confundiu, carinho. Deu um passo para ela. Brianna agarrou a garrafa e a agitou para lhe pegar

na cabeça, mas ele a tirou e lhe deu um forte golpe. A jovem se cambaleou cegada pela súbita dor. Agarrou-a dos ombros e a

obrigou a ajoelhar-se. Logo a agarrou por cabelo lhe colocando a cabeça entre

suas pernas enquanto com a outra mão se abria o calção. -Saúda o Leroi -disse.

Leroi não estava circuncidado nem lavado e tinha um forte aroma de urina. Brianna sentiu que ia vomitar e tratou de apartar a cabeça. A resposta foi um puxão de cabelo que a fez gritar.

-Saca essa língua rosadita e nos dê um beijo. -Bonnet parecia alegre e despreocupado, mas seguia sujeitando-a com força-. Não está mau, não está mau. Muito bem, agora abre sua boca.

antes de que pudesse moverlhe deu um forte puxão em uma orelha. Se vomitava se afogaria, e sem dúvida a deixaria morrer. Assim que se

dedicou a sua tarefa, até que Leroi desapareceu. Soltou-a dando um passo atrás. A jovem começou a tossir apoiada sobre as mãos; então a levantou e a beijou.

-Mmm -disse com prazer-. Hora de ir à cama, né?.

Brianna levantou a cabeça e lhe golpeou com a frente. O homem deixou escapar um grito de surpresa e a soltou. Brianna correu, mas se encontrou com o

resto da tripulação que não a deixava passar. -Você gosta dos jogos, preciosa? -Era a voz do Bonnet em seu ouvido. Um

par de mãos a levantaram com facilidade-. Está bem, querida. Ao Leroi também

gosta dos jogos. Verdade, Leroi? -Olhou para baixo e ela seguiu seu olhar.

312

Estava médio nu e Leroi se agitava nervoso contra ela.

Agarrou-a de um cotovelo e a fez entrar no camarote. Deu um passo cambaleante até que ele ficou detrás, ensinando as brancas nádegas à tripulação.

-depois disso... não foi tão mau. Eu... já não resisti mais. Não se incomodou em despi-la, só lhe tirou o lenço e lhe deixou os seios ao

descoberto.

Dois minutos, talvez três. Logo tudo terminou e Bonnet se derrubou sobre ela, respirando pesadamente. Permaneceu imóvel durante intermináveis minutos,

contemplando o teto. Finalmente, o homem suspirou e se moveu. -Não esteve mau, querida, embora haja tido melhores montadas. A próxima

vez move mais seu traseiro, né?

incorporou-se, bocejou e começou a vestir-se. Brianna se assegurou de que não ia reter a e se dirigiu à porta. Enquanto

lutava por lhe abri-la pareceu que lhe dizia algo e se deu a volta surpreendida.

-O que? -Pinjente que o anel está no escritório. Também há dinheiro. Agarra o que

queira. A parte superior do escritório estava coberta de tinteiros, jóias, moedas de

prata, ouro, cobre e bronze, papéis e botões de prata.

-Está-me oferecendo dinheiro? Observava-a com gesto zombador.

-Eu pago por meus prazeres -disse-. Pensava que não o ia fazer? -Não quero pensar nada -respondeu com voz clara mas distante, como se

falasse de longe.

Recolheu seu lenço tratando de não pensar na umidade pegajosa que lhe corria pelas coxas.

-Sou um homem honrado... para ser pirata -disse renda-se.

aproximou-se da porta e a abriu com facilidade. -te sirva, carinho -disse assinalando o escritório-. Ganhaste-lhe isso.

Ouviu seus passos entre as risadas da tripulação. Tremiam-lhe as mãos quando tratava de agarrar o anel; então agarrou o recipiente onde estava guardado, esvaziou-o em seu bolso e saiu sujeitando-lhe como se levasse um

talismã. Encontrou seus sapatos sobre uma mesa e os pôs. Passou entre os marinheiros, muito ocupados para lhe emprestar atenção, subiu pela escada e

saiu ao mole. —Ao princípio, pensei que podia fazer como se não tivesse acontecido. -

Respirou profundamente e me olhou. Tinha as mãos cruzadas sobre o estômago,

como escondendo-o-. Mas suponho que isso não é possível, não? Fiquei em silêncio, pensando. Não era momento para delicadezas. —Quanto? Quanto tempo depois de... do Roger?

—Dois dias. Arqueei as sobrancelhas.

—por que está tão segura de que não é do Roger? É óbvio que não tomou pastilhas e arrumado minha vida a que Roger não usava o que aqui consideram que são camisinhas.

Sorriu e se ruborizou. -Não. ELE. mm... ele... ah... -Coitus interruptus? Assentiu. Aspirei ar e o exalei com ruído.

313

-Há uma palavra -pinjente- para a gente que utiliza esse método de controle

da natalidade. -E qual é? -perguntou circunspeta.

-Pais -respondi. 46 Chega um forasteiro

Roger inclinou a cabeça para beber fazendo uma terrina com as mãos. Foi

uma sorte que um raio de sol que passou entre as árvores lhe indicasse aquele arroio um pouco afastado do caminho pelo que ia.

O saber que logo veria a Brianna, possivelmente em menos de uma hora,

acalmava seu chateio de forma tão efetiva como a água refrescava sua garganta seca. Tinham-lhe roubado o cavalo e seu único consolo era que já faltava pouco e podia chegar a pé. Além disso, tinha perdido uma pistola quase tão velha como o

cavalo e muito menos confiável, um pouco de comida e um cantil com água. A perda do cantil lhe tinha preocupado no último lance do caminho, cheio de pó e

com o calor apertando. Mas isso já se solucionou. Tinha o aspecto de um malfeitor, pensou com pesadumbre. Não era muito

apropriado para apresentar-se ante seus sogros. Embora a verdade era que não

estava muito preocupado pelo que pudessem pensar Claire e Jamie Fraser. Todos seus pensamentos se centravam na Brianna.

Retornou ao caminho pensando que tinha sido um estúpido ao subestimar a teima da Brianna, um estúpido ao não ter sido sincero com ela. E um estúpido por havê-la obrigado a atuar em segredo. Tinha tratado de mantê-la segura no

futuro, e isso não tinha sido uma estupidez, pensou com uma careta ao pensar em tudo o que tinha visto e ouvido durante aqueles meses.

Mas apesar do perigoso, sujo e incômodo que era tudo, tinha que admitir

que lhe fascinava estar ali, poder experimentar coisas sobre as que tinha lido e ver objetos de museu que se utilizavam na vida diária. Se não fora pela Brianna

não lamentaria a aventura, em que pese ao Stephen Bonnet e as coisas que aconteceram a bordo do Gloriana.

Uma vez mais, sua mão se tocou o bolso. Tinha tido mais sorte da que

esperava. Bonnet tinha duas pedras preciosas. Serviriam? Caminhou agachado entre os ramos das árvores até que se limpou o atalho. Era difícil pensar que

alguém vivia ali, mas a jovem do moinho lhe tinha assegurado que não podia perder-se, e agora sabia por que: não havia outro lugar ao que dirigir-se.

Enquanto caminhava, seus pensamentos seguiam seu curso, tirando

rápidas conclusões. Como teria sido o encontro entre a Brianna e seus pais? O que lhe teria

parecido Jamie Fraser? Seria o homem que tinha imaginado durante o último ano, ou só um pálido reflexo da imagem construída através das histórias de sua mãe?

Pelo menos tinha um pai a quem conhecer, pensou com uma estranha pontada ante a lembrança da véspera do solstício do verão e o estalo de luz do passo através das pedras.

Ali estava! Não se encontrou com a colina, como esperava, a não ser com um claro natural, bordeado de carvalhos e arces. Quando olhou procurando a

continuação do atalho ouviu um relincho e descobriu a seu cavalo movendo a cabeça contra a árvore ao que estava pacote.

-Como diabos chegaste aqui? -perguntou assombrado.

-Da mesma forma que você -respondeu uma voz.

314

Um jovem alto surgiu do bosque ao lado do cavalo, lhe apontando com uma

pistola que Roger reconheceu como própria. Depois de uma sensação de ultraje e de apreensão respirou profundamente e fez a um lado seus temores.

-Já tem meu cavalo e minha pistola -disse Roger com frieza-. Que mais quer? Meu chapéu?

tirou-se o maltratado tricornio a modo de convite. O ladrão não podia saber

o que outras coisas levava; não lhe tinha ensinado as pedras preciosas a ninguém.

O jovem, em que pese a seu tamanho, não era mais que um adolescente, pensou Roger.

-Algo mais que isso, espero.

Pela primeira vez, o jovem apartou a vista do Roger para olhar a um lado. Ao seguir a direção de seu olhar, Roger sentiu como uma descarga elétrica.

Não tinha visto o homem que havia no bordo do claro, embora tinha que ter

estado ali todo o tempo, imóvel. Mais que o inesperado de sua aparição foi seu aspecto o que deixou ao Roger mudo de assombro. Uma coisa era que lhe

houvessem dito que Jamie Fraser se parecia com sua filha, e outra muito distinta era ver as facções da Brianna em alguém tão masculino e de aspecto tão feroz.

-Você deve ser MacKenzie -disse.

Não era uma pergunta. A voz era profunda e baixa. -Sou-o -disse, dando um passo adiante-. E você deve ser... ah... Jamie

Fraser? Estendeu a mão, mas a deixou cair rapidamente. Dois pares de olhos o

contemplavam com frieza.

-Esse sou eu -disse o homem ruivo-. Conhece-me? O tom era evidentemente agressivo. -Bom... parece-se um pouco a sua filha.

O jovem soltou uma gargalhada, mas Fraser não se alterou. -E que assuntos tem com minha filha?

Fraser se moveu pela primeira vez, saindo da sombra das árvores. Não, Claire não tinha exagerado. Era imponente, media uns cinco centímetros mais que Roger. Roger sentiu confusão e alarme. Que diabos lhe teria contado

Brianna? Não podia ter estado tão zangada como para... Bom, averiguaria-o quando a visse.

-vim para reclamar a minha mulher -disse com valentia. Algo trocou na expressão do Fraser. Roger não soube que era mas lhe fez

atirar o chapéu e levantar as mãos em um gesto reflito.

-Não, não o fará -disse o mais jovem com tom de satisfação. Roger lhe olhou e sentiu alarme ao ver a forma em que empunhava a

pistola.

-Tome cuidado! Não quererá que se dispare por acidente –disse. O jovem soprou com desprezo.

-Se se disparar não será um acidente. -Ian. A voz do Fraser era tranqüila e o jovem baixou a arma a contra gosto. O

homem corpulento deu outro passo adiante. Seus olhos, de um azul profundo e desconcertantemente iguais aos da Brianna, estavam fixos nos do Roger.

-vou perguntar te isto só uma vez e quero ouvir a verdade. Desvirginou a

minha filha?

315

Roger sentiu que avermelhava. O que lhe teria contado Brianna a seu pai?

E por que? Quão último esperava era encontrar um pai ofendido pela virtude de sua filha.

-É... bom... não é o que pensa -deixou escapar bruscamente-, Quero dizer... nós... isso... nós queríamos...

-Fez-o ou não?

O rosto do Fraser estava a uns trinta centímetros do dele, inexpressivo salvo pelo fogo que saía de seus olhos.

-Olhe... eu... maldição, sim! Ela queria... Fraser o golpeou justo debaixo das costelas. -Detenha-se -disse Roger, tratando de recuperar a respiração-. Detenha-se!

Disse-lhe que eu...! Fraser lhe golpeou na mandíbula. O golpe lhe doeu. Roger retrocedeu

enquanto seu temor se convertia em fúria. Aquele maldito desgraçado queria lhe

matar! Deu um passo atrás tentando tirá-la casaca. Ante sua surpresa, Fraser não

o seguiu, mas sim o esperou com os punhos em alto. O sangue retumbava nos ouvidos de um Roger que não tinha olhos mais

que para o Fraser. Aquele maldito queria brigar, pois teria briga e não voltaria a

agarrá-lo por surpresa. Começaram a golpear-se. Um olho do Roger ficou fora de combate; embora ele também golpeava, Fraser não parecia notá-lo.

-Ela é.., minha -disse Roger entre dentes. Estava abraçado ao corpo do Fraser e lhe apertava pelas costelas. ia arrebentar a aquele bastardo como a uma noz-. Minha... Ouça-me?

Fraser lhe deu um golpe na nuca e lhe fez afrouxar a pressão do braço esquerdo. Roger o empurrou com o ombro, mas Fraser baixou a cabeça e arremeteu contra ele atirando-o de costas ao chão. Saía-lhe sangue do nariz e lhe

corria pela boca e o queixo. Com uma sensação de, lonjura observou a mancha que se aumentava em sua camisa.

Rodou tratando de evitar a patada, mas não foi o bastante rápido. Enquanto girava desesperado para o outro lado lhe ocorreu, como se se tratasse de outra pessoa, que embora ele era quinze anos mais jovem que seu competidor.

Jamie Fraser devia ter empregado todos aqueles anos em combates corpo a corpo.

Uma mão lhe atirou do cabelo e lhe torceu a cabeça. Viu o brilho dos olhos azuis e sentiu a respiração do homem em sua cara.

-Não é suficiente -disse Fraser e o golpeou na boca.

deu-se a volta e tratou de ficar em pé. Estava lutando por sua vida e o sábia. Fraser lhe agarrou os testículo e os retorceu com toda sua força. Roger se dobrou como se lhe tivessem partido o espinho dorsal. Durante um segundo,

antes de que a dor lhe fizesse perder a consciência, teve um pensamento claro e frio como o gelo. Pensou: «vou morrer antes de ter nascido!».

47 Uma canção de pai.

Fazia momento que tinha escurecido quando Jamie retornou. Meus nervos

estavam tensos pela espera; só podia imaginar como se sentia Brianna. Tínhamos jantado, melhor deveria dizer que tínhamos servido o jantar já que nenhuma

316

tínhamos apetite nem vontades de conversar. Até a natural voracidade do Lizzie

se aplacou. Já fazia uma hora que estavam acesas as velas quando ouvi que as cabras

baliam. Brianna levantou a vista com o rosto pálido pela luz amarela das velas. -Tudo vai bem –pinjente. A confiança de minha voz a tranqüilizou e assentiu. Embora acreditava que

tudo sairia bem. Deus sabia que não ia ser uma agradável velada familiar. Nas horas transcorridas desde que Brianna esclarecesse minhas suspeitas,

tinha considerado todas as reações possíveis do Jamie, várias acompanhadas de golpes de punho sobre objetos sólidos, uma conduta que sempre considerei molesta. O mesmo ocorria com o Bri e eu sabia, quase melhor que ela, o que

podia chegar a fazer quando estava molesta. Tão pouco acostumados a estar juntos e tão ansiosos de sentir prazer o

um ao outro, comportaram-se com delicadeza até então, mas não havia

forma de levar aquilo com delicadeza. Não estava segura de si meu papel ia ser de advogado ou de intérprete.

lavou-se no arroio e secagem com as abas da camisa. -Chega muito tarde, não? -perguntei, me pondo nas pontas dos pés para

lhe dar um beijo-. Onde está Ian?

-Fergus deveu pedir ajuda com as pedras da chaminé. Ian ficou ajudando-o a terminar o trabalho.

Deu-me um beijo distraído na cabeça e me aplaudiu no traseiro. -Marsali te deu de jantar? Observei-o e notei algo diferente que não pude precisar o que era.

-Não. Me caiu uma pedra e talvez me rompeu de novo o dedo. Pensei que era melhor retornar a casa para que me curasse isso.

Isso era, pensei, tinha-me espalmado com a mão esquerda em lugar de

com a direita. -Vêem a luz e me deixe ver.

Fiz-o sentar em um dos bancos ao lado do fogo. Brianna se levantou e se aproximou para olhar.

-Suas pobres mãos, P! -disse ao ver os nódulos esfolados.

-Não é grande coisa -disse, lhe tirando importância-. Salvo pelo maldito dedo.

Apalpei-lhe o quarto dedo da mão direita, da base até a unha, sem me preocupar com seus grunhidos. Estava vermelho e inchado mas não parecia deslocado. Fechei os olhos para sentir melhor o que apalpava. Podia ver o

osso em minha mente e o lugar da fratura. -Aqui? -perguntei, abrindo os olhos. Assentiu, me olhando com um ligeiro sorriso.

-Justo. Eu gosto de te olhar quando faz isto, Sassenach. -E o que é o que te pareço? -pinjente, um pouco surpreendida.

-Não posso descrevê-lo exatamente -disse, torcendo a cabeça para me examinar-. É como...

-Madame Lazonga com sua bola de cristal -disse Brianna com tom

divertido. Logo olhou ao Jamie e lhe explicou-: Uma adivinha que te diz o futuro.

Jamie riu.

-Sim, acredito que tem razão. Embora eu pensava em um sacerdote quando diz missa e, olhando o pão, vê o corpo de Cristo. Mas não é que

317

queira comparar meu dedo com o corpo de Nosso Senhor -acrescentou com

modéstia. Brianna não e um sorriso curvou a boca do Jamie. Estava cansado,

tinha tido um comprido dia, pensei. -Parecem ridículos -pinjente e te toquei brandamente o dedo-. O osso

está quebrado justo debaixo da articulação. Mas não é uma má fratura.

Porei-te uma tabuleta no caso de. fui procurar o que necessitava. Algo estranho acontecia essa noite,

mas não podia descobrir o que era. Quando queria, Jaime sábia ocultar o que acontecia. Que diabos teria acontecido em casa do Fergus?

Brianna lhe disse algo em voz baixa e sem esperar resposta se

aproximou de mim. -Tem algum ungüento para suas mãos? –perguntou. E logo disse em voz mais baixa-: O digo esta noite? Está cansado e

ferido. Não é melhor deixá-lo descansar? Olhei ao Jamie. Não estava depravado, parecia tenso e preocupado.

-Descansará melhor se não souber, mas você não -respondi, também em voz baixa-. Vê e diga-lhe Embora deixe que jante antes -acrescentei com praticamente.

Acreditava que era melhor receber más notícias com o estômago cheio. Enquanto lhe punha a tabuleta, Brianna lhe esfregou a outra emano

com o ungüento. -Tem rota a camisa, deixe-me isso depois de jantar e lhe remendarei

isso. Que tal ficou? -pinjente, terminando a vendagem com um nó.

-Muito bonito, Madame Lazonga-disse-. vou jogar me a perder com tantas cuidados.

-Quando mastigar a comida para ti poderá começar a preocupar-se -

pinjente asperamente. Riu e entregou a outra emano a Brianna para que a curasse. -Ciamar a tha você, mo chridhe -disse súbitamente.

Era sua forma acostumada de saudá-la quando começavam suas classes de gaélico, mas sua voz era diferente, mais suave. «Como está, querida?»

Suas mãos cobriram as dela. -Tha meu gle mhach, athair -respondeu com um pouco de surpresa.

«Estou bem, pai.» A lição começava normalmente depois do jantar. Levantou a outra mão lentamente e a colocou no estômago da Brianna. -An e'n fhirínn a th'agad? -perguntou. «Dirá-me a verdade?»

Agora sabia a razão de sua atitude; sabia a verdade e embora lhe custasse a aceitaria.

Brianna não sabia suficiente gaélico para entendê-lo, mas se dava conta do que queria lhe dizer. Olhou-o geada, logo tomou a outra mão e a

aproximou da bochecha. -P -disse muito devagar—. O sinto. -Ah, vamos, m'annsachd- disse brandamente-, tudo irá bem.

-Não -disse com voz clara-. Nunca estará bem. Você sabe. -Tudo o que sei é que eu estou aqui e também sua mãe. E não queremos verte envergonhada ou ferida. Alguma vez. Ouve-me?

Brianna não respondeu e manteve o olhar fixo em sua saia, com o rosto oculto por seu cabelo.

-Lizzie tinha razão? -perguntou amavelmente-. Foi uma violação?

318

-Não acreditava que soubesse. Não o disse.

-Adivinhou-o. Não é tua culpa, isso não o pense nunca -disse com firmeza- Vêem aqui comigo, a leannan.

E a fez sentar em seus joelhos. -Ocuparei-me de que te case e de que seu filho tenha um bom pai -

murmurou-. Juro-lhe isso.

-Não quero me casar com ninguém -disse molesta-. Isso não estaria bem. Não posso procurar a outro quando amo ao Roger. E agora, Roger não

me vai querer. Quando descobrir... -Não haverá diferença para ele -disse Jamie, sujeitando-a com mais

força, como se pudesse arrumar as coisas por sua força de vontade-. Se for

um homem decente não lhe importará. E se lhe importa, bom, não te merece e então o esmagarei, cortarei-o em pedaços e logo procurará um homem melhor.

Brianna soltou uma gargalhada que se converteu em pranto e escondeu a cabeça no ombro de seu pai. Jamie a abraçou e a acalmou murmurando

como se fora uma criatura. Meus olhos se encontraram com os do Jamie enquanto ele a deixava chorar acariciando seu cabelo.

Quando Brianna deixou de chorar Jamie me sorriu.

-Tenho muita fome, Sassenach, -disse-. Não nos viria mal beber algo, não?

-Bem -pinjente e me esclareci garganta- vou procurar leite. -Não referia a isso! -disse com tom de ultraje. Ignorei-o igual à risada da Brianna e abri a porta.

Fora tudo estava tranqüilo e silencioso. -O que vamos fazer? -pinjente, dirigindo a pergunta às profundidades

do céu.

Quando retornei, as duas cabeças vermelhas estavam juntas e o aroma do guisado se mesclava com o aroma do pinheiro queimado e o ungüento.

Súbitamente tive fome. Fechei a porta com suavidade, procurei pão e manteiga na despensa,

logo agarrei algo doce e um pouco de queijo e uma garrafa de vinho para

acompanhar a comida. Um monge franciscano me tinha ensinado que terei que pôr a

confiança em Deus e rezar para que nos guiasse. E ante a dúvida, terei que comer. Quando retornei contudo, Jamie falava brandamente com a Brianna.

-Quando vivia na cova -dizia Jamie- pensava em ti, quando foi pequena. Imaginava que te tinha em braços, que apoiava sua cabeça sobre meu peito e te cantava olhando as estrelas.

-E o que cantava? A voz da Brianna também era baixa.

-Velhas canções. Canções de berço que recordava de minha mãe, quão mesmas minha irmã Jenny cantava a seus filhos.

Brianna suspirou profundamente.

-Canta agora para mim, por favor, P. Vacilou, mas logo voltou a cabeça para ela e começou a cantar uma

canção em gaélico. Jamie desafinava e a canção ia e vinha sem música, mas

o ritmo das palavras era agradável e consolador. -Sabe uma coisa, P? —perguntou Bri.

-O que? -disse, suspendendo seu canto.

319

-Não sabe cantar.

Houve um murmúrio de risadas. -É certo. Deixo-o então?

-Não. aproximou-se mais, apoiando a cabeça em seu ombro. Seguiu sua desafinada canção e logo se interrompeu. -Sabe uma coisa, a leannan?

-O que?

-Pesa tanto como um cervo grande. -Devo me levantar, então? -perguntou sem mover-se. -É obvio que não.

incorporou-se e lhe acariciou a bochecha. -Meu gradhaich a thn, athair -sussurrou. «Meu amor para ti, pai.»

Jaime a beijou na frente. O fogo os iluminou deixando seus rostos em

negro e dourado. As facções do Jamie mais duras e marcadas, as da Brianna mais delicadas, mas com os mesmos rasgos. E ambos, graças a Deus, meus.

Brianna ficou dormida depois da comida, esgotada pelas emoções. Eu

não queria pensar, só queria deixar a um lado o presente e o futuro e

retornar à paz da noite anterior. Mas os problemas estavam em casa essa noite e não havia paz entre nós.

Jamie se passeava pela casa como um lobo enjaulado, trocando as coisas de site. Desejava falar com o, mas ao mesmo tempo tinha medo. Tinha prometido a Brianna que não lhe falaria do Bonnet, mas era muito

malote para mentir e Jaime conhecia muito bem meu rosto. Levei-me os pratos para lavá-los. Quando retornei, Jamie estava ante a

pequena prateleira onde guardava o papel, a tinta e as plumas. Não se tinha

despido para meter-se na cama e com a mão machucada, não podia escrever. -Quer que te escreva algo? -disse ao ver que agarrava uma pluma e a

deixava. -Não, devo lhe escrever ao Jenny mas agora não posso ficar sentado. -Sei como se sente -pinjente pormenorizada.

Olhou-me surpreso. -Eu não sei como me sinto, Sassenach -disse com uma estranha risada.

Se você crie que sabe, diga-me isso -Cansado -pinjente e apoiei uma mão em seu braço-. Zangado.

Preocupado. -Olhei de esguelha a Brianna, dormida em sua cama-. Com o

coração destroçado, talvez -acrescentei muito brandamente. -Todo isso e bastante mais. -afrouxou-se o pescoço da camisa, como se

se afogasse-. Não posso ficar aqui. Quer me acompanhar a dar uma volta?

fui procurar minha capa. Fora estava escuro e não ia poder ver minha cara. Caminhamos comprido momento através das árvores em silêncio.

-Jamie -pinjente finalmente-. O que te passou nas mãos? -Como? deu-se a volta surpreso.

-Suas mãos- -Agarrei uma e a sustentei entre as minhas-. Não pôde te machucar assim com as pedras da chaminé.

-Ah. -Permaneceu imóvel-. Brianna... não te disse nada sobre o

homem? Disse-te seu nome? Vacilei e perdi. Conhecia-me muito bem.

-Disse-lhe isso, não?

320

Sua voz tinha um tom perigoso.

-Fez-me prometer que não lhe diria isso -deixei escapar-. Disse-lhe que foi dar conta, mas, Jamie, o prometi. Não me lhe faça dizer isso por favor!

-Sim, é verdade, conheço-te bem, Sassenach, não pode manter um segredo frente a ninguém que te conheça. Até o Ian pode ler em sua cara como em um livro aberto.

Agarrou-me a mão. -Não se preocupe. Deixa que ela me diga isso quando queira. Posso

esperar. -Suas mãos -pinjente outra vez. -Recorda que uma vez me disse «golpeia algo e se sentirá melhor»?

Bom, peguei a uma árvore. Doeu-me, mas tinha razão. -Ah! -deixei escapar um suspiro, aliviada. -Ela te contou... contou-te o que aconteceu? Quero dizer... Esse

homem lhe fez mal? -Não, não fisicamente.

Vacilei, imaginando que podia ver o anel que tinha no bolso, coisa que, é obvio, era impossível. Brianna só lhe tinha pedido que não dissesse o nome do Bonnet; tampouco ia lhe dar detalhes, salvo que me perguntasse isso. E

não o ia fazer, seria o último que queria escutar. -O que está pensando?

-Estava-me perguntando... sim é algo terrível o ser; violada... se não haver... dano.

Sábia muito bem o que estava pensando. A prisão do Wentworth e as

cicatrizes de suas costas, uma cadeia de aterradoras lembranças. -É bastante mau, suponho -pinjente-, Mas espero que tenha razão. É

mais fácil de suportar se não houve danos físicos. Mas neste caso, há uma

conseqüência física -senti-me obrigada a acrescentar-. E um pouco muito apreciável!

-Sim, claro -murmurou. Olhou-me inseguro-. Entretanto, que não lhe tenha feito mal já é algo. Se o tivesse feito... matá-lo tivesse sido muito bom para ele –terminou bruscamente.

-Mas do embaraço um não se recupera -disse com sarcasmo-. Se lhe tivesse quebrado um osso, recuperaria-se. Mas assim, alguma vez o

esquecerá, sabe, não? -Sei! Fiz a um lado e Jamie fez um gesto de desculpa.

-Não quis gritar. Seguimos caminhando sem nos tocar. -Sei. Deve me perdoar, Sassenach. Mas eu sei muito mais que você

sobre esse assunto. -Não estava discutindo contigo. Mas você não tiveste um filho, não

sabe o que se sente. É... -Está discutindo comigo, Sassenach. Não o faça. Estou tratando de te

dizer o que sei. Tinha afastado de minha mente ao Jack Randall e não quero

recordá-lo agora. Mas está aqui. -encolheu-se de ombros e se esfregou a cara-. Há um corpo e há uma

alma, Sassenach -disse lentamente, ordenando suas idéias-. Você é médica,

conhece bem um. Mas o outro é mais importante. Abri a boca para lhe dizer que sabia igual, se não melhor que ele, mas

ao final não disse nada.

321

-Randall -continuou-. A maioria das coisas que me fez podia as

suportar. Podia ter medo, podia me machucar e poderia havê-lo matado por isso, mas depois tivesse vivido sem senti-lo em minha pele, mas queria

minha alma e a teve. Sim, bom, você sabe de todo isso. -Começou a caminhar mais rápido e tive que me apressar para alcançá-lo-. O que quero dizer é... Esse homem era um estranho para ela e só tomou por um

momento? Se era só seu corpo o que queria... então acredito que se curará. Mas se a conhecia, se a que desejava era a ela e não a qualquer mulher,

então, talvez chegou até sua alma e lhe fez mal de verdade... -Você não crie que lhe fez mal de verdade? -minha voz se voltou

aguda-. Já seja que a conhecesse ou não...

-É diferente. Disse-lhe isso! -Não, não o é- Sei o que quer dizer... -Não sabe!

-Sei! Mas porque... -Porque não é seu corpo o que importa quando estou contigo-disse-, E

você sabe bem que é assim, Sassenach. voltou-se e me beijou com fúria, me agarrando por surpresa. Sabia o

que desejava de mim, quão mesmo eu desejava desesperadamente dele:

segurança. Mas nenhum dos dois nos podíamos dar isso essa noite. Abraçou-me com força e logo me soltou.

-Não posso -disse, respirando agitado-. Não posso. Deu um passo atrás e se voltou para a perto, aferrando-se como se

estivesse cego. Permaneceu ali, com os olhos fechados.

-Desejo-te, talvez mais que nunca -disse devagar-. Necessito-te, Claire, mas não posso suportar o me sentir como um homem. Não posso te tocar e pensar no que ele... não posso.

Toquei-lhe o braço. -Entendo-o -pinjente, e era assim.

Alegrava-me de que não me perguntasse detalhes, pois eu também tivesse desejado não conhecê-los. Como tivesse sido fazer o amor com ele, vendo um ato similar em seus movimentos, mas profundamente distinto em

sua essência? -Entendo-o, Jamie -pinjente outra vez.

Abriu os olhos e me olhou. -Sim, verdade? Isso é o que quero dizer. Agarrou-me do braço e me aproximou dele.

depois de um momento me apartei e o olhei. -Bri é muito forte -pinjente-. Como você. -Como eu? -Deixou escapar um som zombador-. Que Deus a ajude

então. Suspirou e começamos a caminhar lentamente ao lado da perto.

-Esse homem, esse Roger do que ela fala, ficará com ela? -perguntou bruscamente.

Respirei profundamente sem saber o que responder. Tinha estado com o

Roger uns meses e eu gostava, tinha-lhe carinho. Só sabia dele que era muito decente e um jovem honorável. Mas como ia ou seja o que podia pensar, fazer ou sentir quando se inteirasse de que Brianna tinha sido violada? Ainda pior: que

estava grávida do violador? -Você o faria? -disse por fim-. Se fosse eu?

Olhou-me, abriu a boca para me responder e a fechou.

322

-Queria dizer Sim, certamente!» -disse lentamente-. Mas te prometi uma vez

que seria sincero contigo, não? -Fez-o -pinjente, e me senti culpado.

Como podia obrigá-lo a ser sincero se eu não podia sê-lo? -Ifrinn! Sim, maldição, faria-o. Você seria minha embora a criatura não o

fora. Aceitaria a ti e à criatura, e ao diabo com o mundo. -E alguma vez voltaria a pensar nisso? -perguntei-. Alguma vez voltaria

para sua mente quando eu estivesse em sua cama? Alguma vez veria o pai ao

olhar ao filho? Alguma vez me reprovaria isso ou marcaria uma diferença entre ambos?

-Maldita seja -disse-. Frank. Não eu. É ao Frank a quem te refere.

Assenti e me agarrou pelos ombros. -O que te fez? -exigiu-. O que? diga-me isso Claire!

-ficou comigo -disse com voz tremente- Tratei de que me deixasse mas não quis. E quando Brianna nasceu, amou-a, Jamie. Não sabia se ia poder fazê-lo mas o fez. Sinto muito -acrescentei.

-Não deve senti-lo, Sassenach. O que dizia quando ia a sua cama? Pensava... -se interumpió bruscamente e ficou em silêncio.

-Era minha culpa. Eu não podia esquecer -pinjente finalmente-. Se eu

tivesse podido teria sido diferente. -Devi me deter, mas não pude-. Para ele tivesse sido melhor, mais fácil, que me tivessem violado. Isso é o que lhe disseram

os médicos, que me tinham violado e que tinha alucinações. Isso era o que todos acreditavam, mas eu insistia em lhe dizer que não tinha sido assim, em lhe dizer a verdade. depois de um tempo me acreditou, ao menos em parte. Esse era o

problema, não que eu tivesse a filha de outro homem, mas sim te amava e não podia deixar de fazê-lo, não queria. Frank era melhor que eu. Podia deixar atrás o

passado, ao menos pelo Bri. Mas para mim... -não pude continuar. Jamie me olhou durante um momento. -E viveu vinte ânus com um homem que não podia te perdoar por algo que

não era tua culpa? Deixei escapar um suspiro. -Sinto muito -sussurrou e me abraçou com força.

-Que te amasse? Não lamente isso. Nunca. Ficamos em silêncio até que finalmente o soltei e dava um passo ira.

-É melhor que retornemos a casa -pinjente, tratando de falar em um tom natural-. É muito tarde.

-Sim, suponho que sim. -Ofereceu-me o braço e tomei-. Ah, bom, espero

que Roger Wakefield seja melhor homem que nós dois, que Frank e que eu. -Me olhou de esguelha-, E se não o é o esmagarei até convertê-lo em purê.

-Isso será uma grande ajuda para a situação, estou segura-dije rendo. Soprou e seguiu caminhando. Justo quando chegamos ao atalho da casa o

detive.

-Jamie -pinjente vacilante-, Crie que te amo? -Bom, se não ser assim, Sassenach -disse finalmente-, escolheste um mau

momento para me dizer isso

Deixei escapar um suspiro que foi quase uma risada. -Não, não é isso -assegurei-lhe-. Mas... Não o digo freqüentemente. Talvez

porque me criou meu tio, que era afetuoso, mas, bom, não sabia como era a gente casada... o que queria te dizer é como sabe que te amo?

-Sei porque está aqui, Sassenach -disse com calma-. Isso é o que quer

dizer, não? Que ele, Roger, veio a procurá-la.

323

E que então talvez a ame o suficiente.

-Não é algo que alguém faça por amizade sem mais. Assentiu outra vez, mas eu vacilava querendo lhe dizer mais, para que

entendesse o significado. -Não te disse muito sobre isso, porque... não há palavras para explicá-lo.

Mas há uma coisa que posso te dizer, Jamie.

-Estremeci-me involuntariamente-. Não todos os que acontecem das pedras saem outra vez.

-Como sabe, Sassenach? -Porque os ouvi. Gritavam. Agarrou-me as mãos entre as suas e me aproximou de seu peito.

-Faz frio, Sassenach. Vamos dentro. voltou-se para a casa mas o detive outra vez. -Jamie?

-Sim? -Devo... quereria... necessita que o diga?

-Não o necessito -disse brandamente-, Mas não me importa se quer dizê-lo. Agora e quando quiser, mas não muito freqüentemente porque não quero perder a satisfação da novidade para ouvi-lo.

Podia ouvir a risada em sua voz e eu também sorri. -Mas de vez em quando não viria mau, não?

-Não. Aproximei-me mais e apoiei as mãos em seus ombros. -Amo-te.

Olhou-me durante um momento. -Me alegro, Claire. -E me tocou a cara-. Estou muito contente. Vêem a

cama, eu te esquentarei.

48 ao longe em um pesebre

O pequeno estábulo se encontrava em uma cova pouco profunda, baixo um

saliente rochoso, e a entrada estava protegida por uma paliçada de troncos o

bastante forte para deter o mais atrevido dos ursos. A luz entrava pela metade superior da porta aberta.

-por que uma porta dobro? -perguntou.

Parecia-lhe um trabalho desnecessário para uma estrutura tão rústica. -Os animais têm que poder olhar para fora -explicou-lhe seu pai enquanto

lhe ensinava como se passavam as tiras de couro ao redor dos madeiros. Com o

martelo e sem deixar de sorrir, cravava o couro na madeira-. Assim estão mais contentes, sabe?.

Brianna não sabia se os animais estavam contentes na quadra, mas ela sim o era. Só havia cinco minutos de caminho de casa, mas quando chegou à quadra tremia baixo a capa. A luz que se filtrava vinha não só de um farol pendente, mas

também também do braseiro do rincão. Seu pai estava deitado sobre a palha e abafado com a capa, muito perto da

pequena vaca salpicada que grunhia de vez em quando. Jamie levantou a cabeça bruscamente para ouvir os passos e se levou a mão ao cinturão.

-Sou eu -disse Brianna, e viu como se relaxava ao vê-la aparecer ante a luz.

sentou-se e se esfregou a cara.

324

-Sua mãe ainda não tornou?

Era evidente que estava sozinha, mas olhou por cima do ombro da jovem esperando que Claire se materializasse na escuridão.

-Não. Disse-me que se não voltava te trouxesse eu a comida. ajoelhou-se e começou a tirar coisas de uma pequena cesta: fatias de pão

com queijo e tomate em conserva, um bolo de maçã e duas garrafas, uma de

cidra e outra de caldo de verduras. -Que bem! -Sorriu agarrando uma das garrafas-, comeste já?

-Sim -assegurou-lhe-. Muito. Tinha comido, mas não podia deixar de olhar com desejo os pão-doces

frescos; o mal-estar dos dias anteriores tinha sido substituído por um imenso

apetite. Jamie captou seu olhar e, com um sorriso, tirou a faca e cortou um dos

pão-doces pela metade para lhe dar a maior.

No fundo da quadra havia uma perto que formava um curral para uma enorme cerda com sua cria que quase não se viam na escuridão; dormiam juntas

apresentando o profético aspecto de umas salsichas. O resto do pequeno espaço estava divido em três rústicos pesebres: a gente

pertencia à vaca Madalena e a seu bezerro de um mês; o segundo estava vazio,

com palha limpa, preparado para receber à vaca salpicada e sua cria tardia, e no terceiro se encontrava a égua do Ian, com os flancos avultados pelo peso da

preñez. -Parece uma sala de maternidade -disse Brianna. Jamie sorriu e arqueou as sobrancelhas como fazia cada vez que não

entendia algo do que se dizia. -Ah, sim?

-É uma parte especial dos hospitais, onde põem às mães com os recém-nascidos –explicou-. Mamãe me levava com ela às vezes e me deixava olhar aos meninos enquanto fazia sua ronda.

Recordou quando escolhia o que mais gostava. Rosa ou azul? Pela primeira vez se deu conta de que não sabia qual era a cor que lhe tocaria, e preferiu seguir falando.

-Põem aos meninos detrás de um vidro, assim um os pode ver sem lhes jogar o fôlego e encher os de micróbios.

-Micróbios -disse pensativo-. Sim, ouvi falar deles. São pequenos animais muito perigosos, não?

-Podem chegar a sê-lo.

E recordou a sua mãe lhe explicando ao Roger Wakefield todos os perigos dos partos nesta época: só cinqüenta por cento sobrevivia ao parto. Deixou o

resto do pão-doce e tragou como se tivesse algo na garganta. A grande emano de seu pai lhe tocou o joelho. -Sua mãe não deixará que te passe nada; já brigou contra os gérmenes

antes, eu a vi. Não deixou que me vencessem e o mesmo fará contigo. É muito cabezota, sabe?

Riu e desapareceu a sensação de sufoco.

Jamie ficou em pé estirando-se e lançando um grunhido ante um rangido de suas costas.

-Acompanho-te até casa? Isto vai demorar. Contemplou-o duvidando, mas logo se decidiu. -Não, ficarei um momento contigo. Não te importa, não?

325

Agora, decidiu-se impulsivamente. O perguntaria agora. Fazia dias que

esperava o momento oportuno. Mas qual era para algo como aquilo? Ao menos agora estavam sozinhos e ninguém os incomodaria.

-Como quer- Me alegro de que me faça companhia. «Não por muito tempo», pensou. Teria preferido a escuridão, mas as

palavras não eram suficientes, precisava lhe ver a cara para lhe perguntar o que

queria saber. Aceitou a jarra de cidra porque tinha a boca seca e não esperou a que ele

também bebesse. -P? estava-se servindo mais cidra.

-Preciso te perguntar algo. -Mmm? -Matou ao Jack Randall?

-Onde ouviu esse nome? -perguntou olhando-a aos olhos-. De seu pai talvez? Do Frank Randall?

-Mamãe me falou dele. -Fez-o. Não era uma pergunta, mas lhe respondeu.

-Disse-me... disse-me o que tinha acontecido. O que ele te fez. No Wentworth.

Muito depois, pensou que seu pai deveu sentir-se traído pelo Claire, por haver o contado. Mas estava muito nervosa.

-Não foi agora, fué antes... de que te conhecesse. Ela pensou que nunca te

conheceria. Quero dizer... ela não quis... sei que não pensava... -te cale, quer?-disse Jamie arqueando uma sobrancelha. Fixou a vista em sua saia. Teria que ter falado com sua mãe, deixar que lhe

perguntasse... mas não. Tinha que ouvir o dele. Seus pensamentos se viram interrompidos pela voz tranqüila de seu pai.

-por que me pergunta isso? Levantou a cabeça de repente, encontrando-se com o olhar de seu pai. Não

parecia estar molesto.

-Preciso saber se isso serve de alguma ajuda. Quero matá-lo A... ele. Ao homem que... -Fez um gesto para sua barriga e tragou saliva-, Mas se o faço e

logo não ajuda... Não pôde continuar. Não pareceu impressionado.

-Mmm. mataste a algum homem antes? Disse-o como uma pergunta, mas ela sabia que não era assim. -Você crie que não posso? me acredite, posso fazê-lo! E entretanto... O que

ganharia matando-o? Não havia forma se soubesse, salvo que seu pai o dissesse.

-Dirá-me isso? -deixou escapar-. Matou-o? Isso te ajudou? Pensou-o enquanto a olhava atentamente. -No que me ajudaria cometer um assassinato? -perguntou-. Isso não tiraria

a criatura de sua barriga, nem te devolveria a virgindade. -Isso já sei! —Sentiu que se ruborizava e se deu a volta, irritada com seu

pai e consigo mesma-. Mamãe me disse que tratou de matar ao Jack Randall em

Paris, em um duelo. O que acreditava que foste recuperar? -Queria recuperar minha dignidade -respondeu brandamente-. Minha

honra.

326

-E crie que minha honra não vale a pena? Ou crie que é igual a minha

virgindade? -disse com tom irônico. Olhou-a com dureza.

-É o mesmo param? -Não, não o é -disse. -Bem.

-Então, me responda, maldição! -Deu um murro sobre a palha, sem nenhum resultado satisfatório-. O te matá-lo devolveu a honra? Ajudou-te? me

diga a verdade! - A verdade? A verdade é que não sei se o matei ou não. Brianna abriu a boca surpreendida.

-Não sabe se o matou? -Isso hei dito. -Um movimento de seus ombros revelou sua impaciência-

Morreu no Culloden, eu estava ali. Despertei no páramo, depois da batalha, com

o cadáver do Randall em cima de mim. Isso é o que sei, não muito mais. -Fez uma pausa pensativo e logo, decidido já, estirou um joelho e fez um gesto-. Olhe.

Era uma velha cicatriz, ainda impressionante, na parte interior da coxa. -Uma baioneta, suponho -disse, olhando-a com tranqüilidade. Baixou a

perna-. Lembrança a sensação da folha golpeando o osso e nada mais. Não sei o

que aconteceu depois, nem o que tinha acontecido antes. Respirou profundamente e Brianna se deu conta, pela primeira vez, do

esforço que custava a seu pai manter a calma. -Depois... bom, a vingança não parecia importante então. Havia milhares de

homens mortos no campo de batalha e pensava que em pouco tempo eu seria um

mais. Jack Randall... -Fez um gesto estranho, de impaciência-. O era um deles. Pensei que naquele momento podia deixar-lhe a Deus.

Brianna suspirou para ocultar seus sentimentos. A curiosidade e a

simpatia lutavam contra a frustração. -Você está bem? Quero dizer... apesar do que te fez?

Contemplou-a com exasperação e com uma mescla de fúria e diversão. -Não se está acostumado a morrer por isso, moça. Eu não morri e você

tampouco.

-Ainda não. -Involuntariamente pôs uma mão sobre seu abdômen. Olhou-o-. Suponho que em seis meses saberemos se morrerei ou não por isso.

Isso o confundiu. -Tudo sairá bem. -vou morrer -disse com frieza.

Seu pai não podia defender a de seu próprio filho. -Não será assim! -Agarrou-a dos braços com força-. Não o permitirei! Teria dado algo por lhe acreditar.

-Não me pode ajudar -disse com desespero-. Não pode fazer nada! -Sua mãe sim que pode -disse, mas não muito convencido.

Brianna se liberou de suas mãos. -Não, ela não pode, necessita um hospital, com remédios e outras coisas.

Se as coisas saírem mau, quão único poderá fazer é... tratar de salvar ao menino.

Tremiam-lhe os joelhos e teve que sentar-se. Jamie lhe serve um pouco de cidra.

-Bebe, moça, está muito pálida.

-Sabe o que é o pior? Você diz que não foi minha culpa, mas sim foi. -Não é assim!

Fez um gesto para tranqüilizá-lo.

327

-Falou de covardia e eu fui covarde, devi lutar. Não devi lhe permitir.. mas

tinha medo. Se tivesse sido valente isto não teria acontecido, mas não fui, estava assustada! E agora estou mais assustada ainda. Não pode me ajudar e tampouco

mamãe, eu não posso fazer nada. E Roger... mordeu-se o lábio para evitar chorar. -Brianna... a leannan... Fez um gesto para aproximar-se, mas Brianna se afastou dele com os

braços cruzados.

-Não posso deixar de pensar que poderia matá-lo. É o único que posso fazer. Se... se tiver que morrer, ao menos o levaria comigo e se não, bom talvez possa esquecê-lo se ele estiver morto.

-Não o esquecerá. Mas isso não importa, buscaremo-lhe um marido e uma vez que nasça o menino não terá muito tempo para preocupar-se.

-Como? O que quer dizer me buscando um marido? -Necessitará um, não? -disse, um pouco surpreso-. A criatura necessita um

pai. E se não querer me dizer o nome do que lhe fez isso para fazer que se faça

cargo de suas obrigações, então... -Você crie que me casaria com o homem que fez isto? -Bom, estive pensando. Não estará jogando um pouco com a verdade,

criatura? Tailandês vez não foi exatamente uma violação, possivelmente depois você não gostou do homem, escapou-te e inventou a história. depois de tudo, não

está ferida. É difícil submeter a uma moça de seu tamanho se ela não o desejar. -Crie que estou mentindo? Jamie arqueou uma sobrancelha com cinismo. Furiosa, levantou uma mão,

mas a agarrou pela boneca. -Ah, não -disse com tom de recriminação-: Não é a primeira moça que o

tem feito. Ou queria ao homem e ele te deixou? Foi isso? Tratou de soltar-se e de lhe golpear com o joelho na entrepierna. Só chegou

à coxa; Jamie não a soltou. Brianna se retorceu amaldiçoando suas saias

enquanto seu pai ria, como se se estivesse divertindo. -Maldito bastardo! -gritou- Mas antes de que pudesse mordê-lo-se

encontrou chutando no ar-, Quieto! -grunhiu.

Afrouxou a pressão mas sem chegar a soltá-la. Sentia-o como uma força inexorável.

-Posso te romper o pescoço -disse com muita calma. Sentiu os dedos que pressionavam suas artérias-. Poderia te matar.

Sentiu que se sufocava pela fúria.

-Posso fazer o que quiser -continuou-. Poderia me deter, Brianna? me responda.

-Não! Deixou-a em liberdade. Foi tão repentino que teve que apoiar uma mão

para não dar com a cara no chão.

Seu pai a observava com os braços cruzados. -Maldito seja! -ofegou-. Quero te matar! Permaneceu imóvel, olhando-a.

-Estraga -disse com calma-. Mas não pode. Olhou-o sem entender nada. E se encontrou com um olhar carente de fúria

e de brincadeira. Seu pai esperava. E então se deu conta. -Não -disse-. Não posso, não posso. Embora tivesse lutado com ele... não

tivesse podido.

328

de repente começou a chorar e a tensão se relaxou.

-Não tivesse podido detê-lo -disse, ofegando para poder recuperar o fôlego-. Eu pensava que se tivesse brigado- mas não teria servido- Não tivesse podido

detê-lo. Uma mão grande e afetuosa lhe tocou a cara. -É uma moça muito valente -sussurrou-. Mas não deixa de ser uma

menina. Quer deixar de pensar que é covarde por não lutar contra um leão só com suas mãos? Porque é o mesmo.

Brianna se limpou o nariz com e1 dorso da mão. -me podia haver isso dito antes, sabe? -disse-. Que não tinha sido minha

culpa.

Sorriu fracamente. -Fiz-o. Mas devia averiguá-lo por ti mesma. -Suponho.

Uma profunda e pacífica debilidade a cobriu como se fora uma manta. Mas esta vez não tinha pressa por recuperar-se.

Esperou enquanto seu pai lhe limpava a cara e lhe dava de beber. -Pôde te defender mas não o fez. Apertou-lhe a mão e logo a soltou.

-Não, não lutei. Tinha dado minha palavra, pela vida de sua mãe. E não o lamento.

Seu olhar era clara como a água. Agarrou-a pelos ombros e a recostou sobre o feno. -Descansa um momento, a leannan. deitou-se e estirou uma mão para tocá-lo. -É verdade.., que não o esquecerei?

Estava ajoelhado a seu lado e esperou um momento antes de responder. -Sim, é verdade -disse brandamente-, Mas também é verdade que com o

tempo não te importará.

-Não? -Estava muito cansada para seguir lhe perguntando. sentia-se extrañamente longínqua-. Embora não seja o bastante forte para matá-lo?

-É uma mulher muito forte.

-Não o sou. Acaba-me isso de demonstrar, não sou... Uma mão no ombro a deteve.

-Não é isso o que queria te dizer -disse pensativo-, Jenny tinha dez anos quando morreu nossa mãe. -E ao dia seguinte do funeral a encontrei com o avental de minha mãe.

Tinha estado chorando como eu. Mas me disse: «vá lavar te, Jamie, vou fazer a comida para ti e para papai».

Fechou os olhos e tragou com força. -Sei o fortes que podem chegar a ser as mulheres. E você é muito forte, me

acredite.

ficou em pé e foi ocupar se da vaca que se movia inquieta. Colocou uma mão na cauda desta e falou em gaélico para lhe dar ânimo. Brianna entendia quase todas suas palavras.

Tudo podia sair bem, ou não. Mas acontecesse o que acontecesse, Jamie Fraser estaria ali, lutando. E isso era um alívio.

Jamie estava cansado e era tarde, mas sua mente o mantinha acordado. O

parto tinha terminado e tinha levado a Brianna até a cabana dormida como um

329

menino em seus braços. Havia tornado a sair para tranqüilizar-se na solidão da

noite. Doía-lhe todo o corpo pela briga com sua filha, pois era

surpreendentemente forte para ser uma mulher. Isso não lhe incomodava, de fato, mas sim, pelo contrário, sentia um curioso e inesperado orgulho. "Ela estará bem», pensou. com certeza que sim.

«Ninguém morre por isso. Nem você, nem eu», havia-lhe dito. A voz que fazia muito que não escutava voltou para seus ouvidos. Essas

insinuações que lhe queimavam em sua memória como se estivessem gravadas em sua pele.

“Suave ao princípio. Suave. Tenro como se fosse meu filho pequeno. Suave

e prolongado até que esqueça que houve um tempo em que eu não possuía seu corpo."

"E então -seguia dizendo a voz-, então farei que lhe aduela muito- E me dará as obrigado e me pedirá mais.»

Permaneceu imóvel olhando para as estrelas. Respirou uma e outra vez,

lutando contra as lembranças. Esperou até que chegou a paz. A visão necessária para acalmá-lo: a

lembrança do rosto do Jack Randall no Edimburgo, destruído pela morte de seu

irmão. E uma vez mais sentiu o dom da piedade enquanto a calma se apoderava de seu ser.

Fechou os olhos sentindo que as feridas se fechavam e liberavam seu coração.

Suspirou, o demônio se partiu. Só era um homem, Jack Randall nada mais.

E ante o reconhecimento da fragilidade compartilhada pelos seres humanos, todo o poder do medo e a dor passadas se desvaneciam como a fumaça.

-Vê em paz -sussurrou, para o homem morto e para si mesmo-. Está perdoado.

Pensou que talvez deveu dizer todo isso a Brianna... mas não. Não tivesse

podido entendê-lo, tinha que mostrar-lhe Como lhe dizer com palavras o que tinha aprendido através da dor e a

graça? Que só perdoando poderia esquecer, e que o perdão não era um simples

ato, a não ser um assunto de prática constante? Possivelmente ela poderia encontrar essa graça por si mesmo. Talvez aquele

desconhecido Roger Wakefield poderia ser seu santuário, como Claire tinha sido o seu. Seu ciúmes naturais de homem se dissolveram pelo apaixonado desejo de que o tal Roger Wakefield pudesse lhe dar a Brianna o que ele não podia lhe dar.

Rogava a Deus que chegasse logo e que fora um homem decente. Mas e se Wakefield não chegava? Bom, haveria outras maneiras de proteger

a Brianna e sua criatura. Ao menos, sua filha estava a salvo do homem que a tinha prejudicado. a salvo para sempre. esfregou-se a cara com uma mão que ainda cheirava ao sangue do bezerro.

Sim, o perdão existia e Brianna devia encontrar a forma de perdoar a aquele homem, por seu próprio bem. Mas para ele o assunto era diferente.

-«A vingança é minha, disse o Senhor» -sussurrou para si mesmo-. O

inferno -disse em voz alta, envergonhado mas desafiante. Sabia que estava mau, mas não tinha sentido enganar-se nem mentir a Deus.

-O inferno -repetiu, mais alto-. E se sou condenado pelo que fiz... Que assim seja! É minha filha.

330

Permaneceu imóvel por um momento olhando para o céu, mas não recebeu

resposta do firmamento. Assentiu, como se lhe respondessem, e seguiu colina abaixo com o vento frio lhe dando nas costas.

49 Opções

Novembro de 1769 Abri a caixa de instrumentos do doutor Rawlings e contemplei a fila de

botellitas; as suaves cores verdes e castanhas pertenciam às raízes e às folhas

esmagadas e o dourado claro às destilações. Não havia ali nada que me servisse. Com muita lentidão abri a tampa que guardava as facas. Tirei o escalpelo

de folha curva e provei o frio metal sobre meu pescoço. Era um belo instrumento,

bem afiado. Deixei-o sobre a mesa e agarrei a raiz larga e grosa. Só uma; tinha procurado no bosque durante quase duas semanas para encontrá-la.

As espécies de ervas não eram quão mesmas as européias. Talvez poderia conseguir absinto, que se usava para dar gosto a absenta.

-Mas quem faz absenta na Carolina do Norte? -perguntei em voz alta,

agarrando novamente o escalpelo. -Ninguém que eu conheça.

Sobressaltei-me e a folha penetrou profundamente em meu dedo polegar. O sangue se estendeu pela mesa e me cobri o dedo com o avental.

-Sassenach! Está bem? Não quis te assustar.

-Está bem, é só um corte. De onde vem? Acreditei que estava ainda na destilaria.

-Ali estava. Mas ainda não está lista o malte. Está sangrando como um

porco, Sassenach. Está segura de que está bem? -Sim, provavelmente me cortei uma veia. Mas não uma artéria, já se deterá.

me agüente a mão levantada, quer? Jamie me ajudou a me enfaixar isso -O que fazia com essa faca? -perguntou.

-Ah... ia cortar essa raiz. -Sim? Nunca te tinha visto usá-los -disse, assinalando os escalpelos- salvo

com a gente. Tremeu-me a mão e me olhou intensamente com o cenho franzido. -O que acontece, Sassenach? Parece que te tivesse surpreso a ponto de

cometer um crime. -Estava... decidindo -respondi a contra gosto. Não sabia mentir e cedo ou

tarde ia ou seja, se Bri...

-Decidindo o que? -Sobre o Bri- Qual é a melhor forma de fazê-lo.

-Fazer o que? Quer dizer...? -Se ela quiser que o faça. -Toquei a faca com a pequena folha manchada

por meu próprio sangue-. Pode-se fazer com ervas ou com isto. As ervas têm

riscos desagradáveis: convulsões, danos cerebrais, hemorragias; mas agora isso não importa, porque não tenho as necessárias.

-Claire, tem-no feito alguma vez?

-Se o tivesse feito seria diferente para ti? Contemplou-me por um momento.

-Não o tem feito -disse brandamente-. Sei.

331

-Não, é certo. —Contemplei sua mão que cobria a minha-. Não, nunca o

tenho feito. -Sabia que não seria capaz de matar -disse.

-Sou-o. E o fiz. Matei a um homem, um paciente que tinha a meu cargo. Contei-lhe isso.

-Acredito que não é o mesmo -disse finalmente-. Ajudar a um homem que

deseja a morte... é misericórdia, não assassinato. E talvez, também seja um dever.

-Dever? Olhei-o surpreendida. -Acredito que é o dever do médico -disse Jamie com doçura-. jurou curar,

mas se não poder e pode salvar a um homem da dor... -Sim -respirei profundamente e apertei o escalpelo-. Jurei, mas isto está

por cima do juramento de um médico, Jamie, ela é minha filha. Eu faria algo por

ela, até isto. -Olhei-o com os olhos cheios de lágrimas-. Crie que não o pensei? Que não

conheço os riscos? Jamie, poderia matá-la! Olhe, não deveria sangrar tanto, mas o faz. Cortei-me uma veia. Poderia fazer o mesmo com a Brianna e não sabê-lo até que começasse a sangrar Y... então não poderia deter a hemorragia. morreria

e não haveria nada que eu pudesse fazer. Nada! Olhou-me com os olhos obscurecidos pela impressão.

-Como pode pensar em fazer isso, sabendo o que pode acontecer? Seu tom era de incredulidade. -Porque sei outras coisas -disse sem olhá-lo-. Sei o que é criar um filho. Sei

o que é que lhe troquem o corpo, a mente e a alma sem que a gente queira. Eu sei o que é que ocupem um lugar que acreditava teu, que escolham por ti. Sei o que é, ouve-me? E é algo que ninguém deve fazer se não querer. -Levantei a vista e o

olhei com o punho fechado-. E você sabe o que eu não sei, sabe o que é viver com a violação. Quer me dizer que se eu tivesse podido te contar isso, antes do

Wentworth, não me tivesse deixado fazê-lo face aos riscos? Jamie, pode ser o filho do violador!

-Sim, sei -disse e se deteve, muito transtornado para seguir-. Sei -disse

outra vez—. Mas sei outra coisa: se não poder conhecer seu pai, conheço seu avô. Claire, essa criatura tem meu sangue!

-Seu sangue? -repeti. Contemplei-o compreendendo a verdade-, Desejas tanto um neto, para sacrificar a sua filha?

-Sacrificar? Eu não sou o que pensava matá-la a sangue frio!

Olhou-me com teima. -Se tiver o filho não se poderá ir. Não poderá, salvo que se separe da

criatura,

-Por isso quer separá-la agora? -Você quer que ela fique. Não te importa que tenha uma vida em outro

lugar, que queira retornar. Se ficar e, melhor ainda, se te der um neto... não te importará o que aconteça com ela, não?

Tocou a ele tornar-se para trás, como se o tivessem golpeado.

-Claro que me importa! Isso não quer dizer que me pareça bem que a obrigue A...

-O que quer dizer com que a obrigue? -O sangue queimava meu rosto-. Crie

que quero fazer isso? Não! Mas terá a possibilidade de escolher! Podia sentir seus olhos fixos em mim. Sábia que estava tão afetado como

eu. Importava-lhe desesperadamente o que acontecesse com Bri, mas agora que

332

lhe havia dito a verdade os dois tínhamos que assumi-la: privado de sua própria

filha e vivendo tanto tempo no desterro, não havia nada que desejasse mais que uma criatura de seu próprio sangue.

Não podia me deter e sabia. Não estava acostumado a sentir-se indefeso e não gostava- Voltou-se bruscamente apoiando-se no bordo do aparador. Nunca me havia sentido tão desolada e com tanta necessidade de sua compreensão.

-Jamie. -Apoiei uma mão sobre suas costas-. Tudo vai sair bem- Estou segura de que será assim.

Falava para lhe convencer a ele tanto como a mim. Não se moveu e me atrevi a pôr minha mão em sua cintura e a apoiar minha bochecha sobre seu ombro. moveu-se bruscamente e apartou minha mão.

-Confia muito em seu poder, não? -perguntou com frieza, voltando-se para me olhar à cara.

-O que quer dizer com isso?

-Crie que é quão única decide? Que a vida e a morte estão em suas mãos? -Não sou eu quem decide! Mas se ela disser sim, então é meu poder. E sim,

o vou usar. Igual ao faz você quando tem que fazê-lo. Fechei os olhos para lutar contra o medo. Não me faria mal, impressionada

fui consciente de que podia me deter: se me rompia a mão...

Muito lentamente inclinou a cabeça e apoiou sua frente sobre a minha. -me olhe, Claire.

Abri os olhos e o olhei. Soltou-me a mão para me tocar brandamente o peito.

-Por favor -sussurrou e logo se foi.

Estava tão molesta pela discussão com o Jamie que não podia me concentrar em nada, assim que me pus a capa e saí a caminhar. Teria que levar a Brianna ao Cross Creek? Decidisse ter à criatura ou não, estaria mais segura ali?

Não, decidisse o que decidisse, estaria melhor aqui, comigo. Envolvi-me na capa e tratei de esquentar meus dedos.

«Por favor», havia-me dito. Por favor, o que? Por favor, não pergunte a ela, por favor, não o faça se lhe pede isso.

Mas devia fazê-lo. Fazia um juramento, mas Hipócrates não tinha sido

cirurgião, nem mulher, nem mãe. Nunca tinha praticado um aborto, mas tinha adquirido certa experiência no

hospital como residente, no cuidado posterior a uma perda. Nunca pude fazê-lo. E agora tinha que pensar que ia matar a meu próprio

sangue. Sim terei que fazê-lo, tinha que ser o mais breve possível; já tinham

acontecido quase três meses e, além disso, não podia estar com o Jamie na mesma habitação até que resolvesse isto. Não queria sentir sua angústia, acrescentada à minha.

Brianna tinha levado ao Lizzie a Casa do Fergus para que ficasse ajudando ao Marsali, que tinha que ocupar-se da destilaria, do pequeno Germaine e do

trabalho da granja que Fergus não podia realizar com uma só mão. Era muito trabalho para uma moça de dezoito anos, mas as arrumava com empenho e graça. Lizzie podia ajudá-la nas tarefas da casa e cuidar de pequeno para que sua

mãe descansasse um pouco. Brianna retornaria a comer. Ian estava fora caçando com Cilindro. Jamie...

embora não houvesse dito nada não retornaria logo. íamos ter tempo para nós. -Pensei-o -disse com um profundo suspiro-. logo que me dava conta. E me

perguntei se poderia fazer algo aqui.

333

-Não será fácil. Pode ser perigoso e te pode doer. Nem sequer tenho

láudano, só uísque. Mas sim, posso fazê-lo se você quiser que o faça. O procedimento tem que ser cirúrgico, já que não tenho as ervas adequadas e de

todos os modos não é tão confiável. Ao menos a cirurgia... é segura. Tinha deixado o escalpelo sobre a mesa; não queria que se fizesse falsas

ilusões. Assentiu e seguiu dando voltas. Igual a Jamie pensava melhor

caminhando. Até que, finalmente, voltou-se e me olhou. -Tivesse-o feito? Se tivesse podido?

-Se tivesse podido...? -Uma vez disse que quando estava grávida me odiava. Se tivesse podido... -Não a ti! Nunca. -Juntei as mãos para ocultar o tremor que me sacudia-.

Não. Nunca. -Disse-o -disse, me olhando com intensidade-. Quando me falou sobre P. Passei-me uma mão pela cara. Sim, o havia dito. Idiota de mim.

-Era uma época terrível, morríamos de fome e estávamos em guerra, o mundo se destruía. Parecia que não havia esperanças; tênia que deixar ao Jamie

e o pensá-lo apagava todo o resto de minha mente. Mas havia algo mais -pinjente. -O que era? -Não foi produto de uma violação -pinjente brandamente-. Eu amava a seu

pai. Assentiu com o rosto algo pálido.

-Sim, mas pode ser do Roger. Você o disse, não? -Sim. Pode ser. A possibilidade é suficiente para ti? acariciou-se o abdômen.

-Sim- Bem, não sei, mas... -deteve-se e me olhou envergonhada-. Não sei o que te parecerá, mas... -encolheu-se de ombros apartando as dúvidas-. Poucos dias depois tive de noite uma dor rápida, como se alguém me cravasse algo.

Seus dedos se curvaram no lado direito, justo em cima do osso púbico. -Implantação -pinjente brandamente-, quando o zigoto joga raízes no útero.

Quando se forma o primeiro laço entre a mãe e a criatura. Assentiu. -Foi uma sensação estranha. Estava meio dormida, mas de repente soube

que não estava sozinha. E pinjente: ah, é você, e me voltei a ficar dormida. Acreditei que era um sonho. Foi bastante antes de sabê-lo. Mas o recordo

perfeitamente. Eu também o recordava. -Sim, compreendo -pinjente. E logo acrescentei-: Ai, Bri!

Observava-me e me dava conta de que podia acreditar que era eu quem lamentava havê-la tido.

Curvada pela idéia de que pudesse acreditar que não a tinha querido,

arrojei o escalpelo e me aproximei dela. -Bri -disse com temor-. Brianna, quero-te. Crie que te quero?

Assentiu sem falar e estendeu uma mão para mim. Aferrei a ela como a um salva-vidas, como ao cordão que uma vez nos unisse.

Fechou os olhos e pela primeira vez vi as lágrimas entre suas grosas

pestanas. -Isso o soube sempre, mamãe -sussurrou. Seus dedos apertaram minha

mão, enquanto que com a outra se tocava o ventre-. Do começo.

50 Quando todo tira o chapéu

334

No fim de novembro, os dias e as noites eram frios e as nuvens de chuva

começavam a aparecer pelas colinas vizinhas. Mas, desgraçadamente, o clima

não acalmava o temperamento da gente e todos estavam inquietos por razões evidentes: não havia nenhuma só notícia sobre o Roger Wakefield.

Brianna ainda guardava silêncio sobre a causa da briga; em realidade, já

quase nunca se referia ao Roger. Tinha tomado sua decisão: só podia esperar e deixar que Roger tomasse a sua se não o tinha feito já. Entretanto, eu podia ver

nela o medo misturado com a fúria quando acreditava que não a viam. As dúvidas rodeavam a todos, como as nuvens às montanhas.

Onde estava Roger? O que aconteceria quando finalmente aparecesse?

Saía da despensa com uma parte de queijo e um recipiente de batatas quando ouvi um golpe na porta. antes de que pudesse responder, a porta se abriu e apareceu a cabeça do Ian esquadrinhando com precaução.

-Brianna não está aqui? -perguntou. Como era evidente que não estava, entrou tratando de repeinarse o cabelo.

-Tem um espelho, tia? –perguntou-. E um pente? -Sim, é obvio -pinjente. Ian levava sua melhor casaca e uma camisa limpa, algo estranho para um

dia de trabalho, junto com uma gravata que parecia estrangulá-lo. -Está muito bonito, Ian -pinjente, me mordendo o lábio para não rir -.Vai a

algum lugar especial? -Bom, como vou declarar me pensei que devia estar decente. -Já vejo -pinjente, e pensei “declarar-se?”-. E essa jovem é alguém que eu

conheço? esfregou-se o queixo. -Sim, claro. É Brianna.

ruborizou-se sem me olhar. -Como? -pinjente, incrédula, e o olhei-. Há dito Brianna?

Seguia olhando ao chão, mas sua mandíbula mostrava determinação. -Brianna -repetiu-. vim a lhe propor matrimônio. -Ian, não pode dizê-lo a sério.

-Sim. Crie que virá logo? -disse olhando pela janela. -Ian? -pinjente, com uma mescla de fúria e ternura-. Faz-o pelo menino da

Brianna? -Sim, é obvio -disse, surpreso por minha pergunta. -Então, não está apaixonado por ela?

Conhecia a resposta, mas era melhor falá-lo. -Bom... não -disse com dificuldade-. Mas não estou comprometido com

ninguém. Assim não passa nada.

-Não está bem -disse com firmeza-. Ian, é um ato muito honroso por sua parte, mas...

-Não é minha idéia -interrompeu-me surpreso- Tio Jamie o pensou. -Ele... o que? Uma voz forte e com tom de incredulidade ressonou a minhas costas.

Voltei-me e descobri a Brianna que olhava fixamente ao Ian e que avançou lentamente enquanto Ian retrocedia.

-Prima -disse inclinando a cabeça; uma mecha lhe tampou a cara e tratou

de pentear-se-. Eu... eu... -Ao ver a expressão da Brianna fechou os olhos-. Vim para expressar meu desejo de pedir sua mão em santo matrimônio-disse de um

puxão-. Eu...

335

-te cale!

Bri nos olhou furiosa. -Sabia algo disto? -perguntou-me.

-É obvio que não! Brianna... -antes de que pudesse terminar minha frase Brianna saiu-. Melhor vou buscar-a-dije.

-Eu também vou -ofereceu-se Ian e não o detive.

Poderia necessitar reforços. -O que crie que fará? -perguntou Ian.

-Só Deus sabe -pinjente-, Mas tenho medo do que possamos encontrar. Estava muito familiarizada com a expressão de fúria dos Fraser. Nem Jamie

nem Bri perdiam facilmente o controle, mas quando o faziam era por completo.

-Me alegro de que não me golpeasse -disse Ian-. Por um momento pensei que o faria.

apressou-se com suas largas pernas. Já podíamos ouvir as vozes que saíam

da quadra.

-Como diabos obrigou ao pobre Ian a fazer algo assims Nunca pensei que

fosse tão arrogante e déspota... -Pobre Ian? -disse Ian, evidentemente ofendido-., Mas o que se crie...? -Como! Sou um déspota? -interrompeu a voz do Jamie.

Parecia impaciente e irritável, mas ainda não estava zangado-, E que melhor eleição podia fazer, me quer dizer isso Pensei em todos os solteiros em

oitenta milhas à redonda antes de me decidir pelo Ian. Poderia ter pensado em te casar com um homem cruel ou bêbado, ou tão velho que poderia ser seu avô.

passou-se a mão pelo cabelo., como sinal de sua alteração e de seus

desejos de acalmar-se, e baixou a voz tratando de tranqüilizá-la. -me acredite, Brianna, fiz todo o possível para verte bem casada. -E o que te faz pensar que quero me casar com alguém?

Jamie a olhou com a boca aberta. -Como? -disse incrédulo-. E o que tem que ver o que quiser com isto?

-Tudo! Deu uma patada no chão. -Nisso está equivocada, moça -advertiu-lhe-. Tem uma criatura que

necessita um nome. E já aconteceu muito tempo. Ian é um jovem de bom caráter e muito trabalhador, tem suas próprias terras e com o tempo terá as meu Y...

-não me vou casar com ninguém! -gritou Brianna. -Bom, então escolhe você -disse Jamie cortante-. E te desejo sorte! -Não... me... está... escutando! -disse Brianna, chiando os dentes-. Já

escolhi. Pinjente que não vou casar me com ninguém! E deu outra patada no chão. -Ah, bom. Acredito recordar uma opinião similar expressa por sua mãe a

noite antes de nossas bodas. Não lhe tornei a perguntar se lamentava haver-se visto forçada a casar-se comigo, mas me faço ilusões de que não fomos tão

desgraçados os dois juntos. por que não fala com ela? -Não é o mesmo! -gritou Brianna. -Não, não o é -esteve de acordo Jamie, contendo-se com energia-. Sua mãe

se casou comigo para salvar sua vida... e a minha. Foi algo muito valente o que fez, e muito generoso. Asseguro-te que isto não é assunto de vida ou morte, mas... tem idéia do que é viver marcada como uma prostituta ou como um

bastardo sem pai? Ao ver que a expressão de sua filha trocava um pouco, Jaime aproveitou a

vantagem para lhe estreitar a mão em um gesto de bondade.

336

-Vamos, moça. Não o faria pelo bem da criatura?

Seu rosto se endureceu de novo e deu um passo atrás. -Não -disse com voz estrangulada—. Não, não posso.

-Assim te educou Frank Randall? De maneira que não te importe o que está bem e o que está mau?

Brianna tremia como um cavalo que correu muito.

-Mim pai sempre fez o correto para mim! E nunca me tivesse impulsionado a fazer algo semelhante! -disse-. Nunca! Ele se preocupava comigo!

Ante essa frase Jamie perdeu o controle. -E eu não? -gritou-. Eu não estou tratando de fazer o melhor para ti? em

que pese a que está...

-Jamie. -Voltei-me para ele, para ver seus olhos escuros de fúria, e logo para minha filha Bri... eu sei que ele não quis... deve compreender...

-É a forma de comportar-se mais egoísta, desconsiderada e imprudente que

vi! -disse Jamie. -É um fariseu, um insensível bastardo!

-Bastardo! Você me chama bastardo e sua barriga cresce como uma cabaça, com uma criatura que está condenada a que a assinalem com o dedo e a insultem durante toda sua vida Y...!

-A qualquer que assinale a meu filho romperei todos os dedos e os farei tragar!

-É uma insensata! Tem a mais mínima idéia de como são as coisas? Será um escândalo e estará na boca de todos! Dirão-lhe na cara que é uma puta!

-Deixa que o tentem!

-Deixa que o tentem? E suponho que pretenderá que fique ouvindo-os! -Não é sua obrigação me defender! Estava tão furioso que seu rosto ficou branco como um lençol.

-Não é minha obrigação te defender? E quem o fará, mulher? Ian me agarrou do braço e me fez retroceder.

-Agora há duas possibilidades, tia -murmurou a meu ouvido-. lhes atirar um balde de água fria aos dois ou ir. Eu vi a tio Jamie e mamãe brigando. me acredite, não terá que interpor-se entre dois Fraser que brigam. Meu pai diz que

uma vez o tentou e ficaram cicatrizes para recordá-lo. Fiz um balanço final da situação e me rendi. Ian tinha razão. Embora

tivesse aceso fogo à quadra, nenhum dos dois o teria notado. -Não se preocupe, tia -disse Ian para me consolar-. Terão fome cedo ou

tarde e então voltarão.

Não foi necessário que morreram de fome. Jamie apareceu uns minutos

mais tarde e, sem dizer uma palavra, agarrou seu cavalo, selou-o e partiu para a

cabana do Fergus. Enquanto observava como se ia, Brianna saiu da quadra soprando e se aproximou da casa.

-O que quer dizer nighean não galladh'? -exigiu que lhe dissesse à lombriga na porta.

-Não sei -pinjente. Sabia, mas me pareceu mais prudente não dizer-lhe Mas

estou seguro de que não o pensa -acrescentei-. Seja o que seja que queira dizer. -Ja! -soprou e entrou na cabana, saindo um momento depois como uma

exalação com a cesta para os ovos. Sem dizer uma palavra desapareceu entre os arbustos fazendo tanto ruído

como se fora um furacão.

337

Respirei várias vezes e entrei em preparar a comida, amaldiçoando ao Roger

Wakefield. Durante a comida a conversação se limitou a pedir o sal.

Depois, Brianna lavou os pratos e foi sentar se para fiar entre ruídos desnecessários. Jamie lhe lançou um olhar furioso, olhou-me e saiu. Esperava-me no atalho que ia à privada.

-O que tenho que fazer? -quis saber. -te desculpar -respondi.

-me desculpar? -Pareceu que lhe arrepiava o cabelo, embora certamente era pelo vento-. Se eu não fiz nada!

-E qual é a diferença? -pinjente irritada-. Perguntou-me e eu te respondi.

Soprou com força, vacilou um momento e logo se voltou para a casa com ar de mártir ou de guerreiro.

-Desculpo-me -disse ante ela.

-OH! -Brianna se ruborizou. -Estava equivocado -disse, com um rápido olhar para mi.

Assenti para lhe dar ânimos e se esclareceu garganta-. Não devi... -Está bem -falou com rapidez, ansiosa por reconciliar-se-. Você não... quero

dizer, só tratava de me ajudar. Também te peço desculpas, não devi me zangar

contigo. Jamie fechou os olhos e suspirou. Ao me abri-los olhou com a sobrancelha

arqueada. Sorri-lhe e voltei para minhas tarefas. -Sei que queriam o melhor -continuou Brianna-. Ian e você. Mas não te dá

conta? Tenho que esperar ao Roger.

-Mas se lhe aconteceu algo a esse homem... se teve um acidente... -Não está morto. Sei. -Falava com o ardor de quem quer fazer realidade

seus desejos-. Virá. E o que passaria se chegar e me encontra casada com o Ian?

Jamie se passou os dedos pelo cabelo em um gesto de frustração. -Enviei ao Ian a que perguntasse no Cross Creek e avisasse no River Run

ao capitão Freeman, para que passasse a voz aos outros marinheiros. Também enviei ao Duncan para que perguntasse pelo vale de Cape Fear e pelo Edemon e New Bern, e nos navios que vão da Virginia ao Charleston.

Olhou-me pedindo compreensão. -Que mais posso fazer? Esse homem não aparece por nenhum lado... -

deteve-se mordendo o lábio. -Já vejo. Obrigado, P. ficou imóvel; seu aspecto era o da mais completa desolação.

Jamie a estudou com o rosto carrancudo e logo me olhou . Então, com ar decidido foi até a prateleira e tirou seus utensílios de escritura e os colocou sobre a mesa.

-Há outra possibilidade -disse com firmeza-. Fazer uma descrição que levarei ao Gilleite, no Wilmington. O pode imprimir e Ian e os jovens Lindsey

poderão distribuir as cópias pela costa, desde o Charleston até o Jamestown. Talvez haja alguém que não saiba seu nome, mas o reconheça por seu aspecto. me diga, como é esse homem?

A sugestão devolveu um brilho de vida ao olhar da Brianna. -Alto –disse-. Quase tão alto como você, P. A gente tem que havê-lo notado,

sempre se fixam em ti. Tem o cabelo negro e olhos verdes muito brilhantes, é o

primeiro que se vê nele. Não é verdade, mamãe? Ian deixou escapar um estranho som.

338

-Sim -pinjente, me sentando no banco perto da Brianna- Mas pode

desenhá-lo. Bri tem um talento natural para o desenho-expliqué ao Jamie-. Crie que pode desenhar ao Roger?

-Sim! -Procurou a pluma, ansiosa por tentá-lo-. Sim, claro que posso, já o tenho feito antes.

-pode-se imprimir um desenho em tinta? -perguntei.

-Bom, sim, espero que sim, não é difícil se as linhas forem claras. Enquanto falava, Jamie tinha os olhos fixos no desenho da Brianna.

Ian empurrou a cabeça de Cilindro, que descansava em seus joelhos, e se

aproximou para ver melhor, com uma exagerada curiosidade.

O desenho da Brianna era claro e preciso. Então, Ian deixou escapar um gemido.

-Passa-te algo, Ian? Olhei-o, mas estava olhando ao Jamie com expressão angustiada. Dava-me

a volta e encontrei a mesma expressão nos olhos do Jamie.

-O que acontece? -perguntei. -Não... nada. -Ao diabo! -Alarmada, aproximei-me para tomar o pulso-. Jamie, o que

acontece? Dói-te o peito? Sente-se mau? -Eu sim -disse Ian, como se fora a vomitar em qualquer momento-. Prima...

quer-me dizer que de verdade... este... –e assinalou o desenho- é Roger Wakefield?

-Sim -disse, olhando-o intrigada—. Ian, passa-te algo? Comeu algo que te

sentou mau? Não respondeu e se deixou cair no banco com a cabeça entre as mãos.

Jamie estava pálido. -O senhor Wakefield -disse a Brianna- Por acaso... tem outro nome? -Sim -dissemos as dois ao mesmo tempo.

Detive-me e a deixei explicar-se enquanto ia procurar o brandy. Tinha a horrível sensação de que íamos necessitá-lo.

-... foi adotado. MacKenzie é o sobrenome de sua família -explicava

Brianna-. por que? Alguém ouviu falar do Roger MacKenzie? Ian e Jamie intercambiaram olhadas e os dois pigarrearam.

-O que acontece? -Brianna os olhou ansiosa-. Viram-no? Onde? -Sim -disse Jamie com muita cautela-. Vimo-lo na montanha. -Como? Aqui? Nesta montanha? -ficou em pé, com alarme e excitação em

seu rosto-- Onde está? O que aconteceu?, -Bom -disse Ian à defensiva-, depois de tudo, ele disse que te tinha tirado a

virgindade. -O disse o que? -Bom, seu pai o perguntou para estar seguro e ele o admitiu...

-Você fez isso? Brianna se voltou para o Jamie com os punhos apertados. -Sim, bom, foi um engano.

-Pode estar seguro! O que é o que fizeram? Jamie aspirou e a olhou diretamente aos olhos.

-A moça- Lizzie. Ela me disse que estava grávida e que o que te tinha violado era um malvado chamado MacKenzie.

Brianna abriu e fechou a boca sem poder falar.

-Você me disse que lhe tinham violado, não?

339

Assentiu balançando-se como uma boneca de trapo.

-Bom, Ian e a moça estavam no moinho quando MacKenzie chegou perguntando por ti. Vieram a me avisar; então Ian e eu o esperamos no claro.

-O que lhe fizeram? -perguntou com voz rouca-, O que aconteceu? -Foi uma briga limpa -disse Ian, ainda à defensiva-. Eu queria lhe disparar,

mas tio Jamie disse que não, que queria lhe pôr as mãos em cima.

-Pegou-lhe? -Sim, fiz-o! -disse Jamie recuperado-. Maldita seja, o que esperava que

fizesse com o homem que te tratou dessa maneira? Você queria lhe matar, não? -Além disso, também pegou a tio Jamie -interveio Ian-. Foi uma luta limpa,

asseguro-lhe isso.

-Fica tranqüilo, Ian, é um bom moço -pinjente; servi brandy para o Jamie e o aproximei.

-Mas ele não foi...

Brianna parecia a ponto de estalar, até que golpeou a mesa com os punhos. -O que fizeram com ele? -gritou.

Os dois se olharam indecisos. Pus uma mão no braço do Jamie apertando-o com força. Não pude evitar o

tremor em minha voz ao lhe fazer a pergunta.

-Jamie... matou-o? Olhou-me e a tensão de seu rosto se relaxou.

-Ah... não -disse-. Entreguei-o aos Iroqueses. -Mas, prima, podia ter sido pior. -Ian aplaudiu as costas da Brianna-.

depois de tudo não o matamos.

Brianna deixou escapar um gemido e levantou a cara. Seu rosto estava branco.

-O íamos fazer -continuou Ian, algo nervoso-. Tinha a pistola lhe apontando à cabeça e então pensei que o que tinha direito a lhe voar os miolos era tio Jamie, então ele...

Brianna tossiu outra vez; coloquei-lhe um cubo se por acaso queria vomitar.

-Ian, acredito que não precisa ouvir todo isso agora -pinjente.

-Sim, quero. Tenho que ouvi-lo. -Voltou a cabeça para o Jamie-. por que? por que?

Olhou-a como se tivesse preferido algo antes que responder, mas o fez. -Queria matá-lo. Detive o Ian porque me matá-lo parecia muito fácil, uma

morte muito rápida para o que tinha feito. -Respirou profundamente-. Detive-me

pensar, mas seguia ouvindo o que me havia dito uma e outra vez. -O que é o que te disse?

Até seus lábios estavam brancos. Igual aos do Jaime. -Disse... que você lhe tinha pedido que se deitasse contigo. Que você... mordeu-se o lábio.

-Disse que o queria.- que lhe tinha pedido que te desvirginasse -disse Ian. Falou com frieza, com os olhos fixos na Brianna. -Fiz-o -disse, deixando escapar um gemido.

Lancei um involuntário olhar para o Jamie. Tinha os olhos fechados. Ian deixou escapar um som de assombro e Brianna lhe deu um soco.

-Como pôde fazer uma coisa assim? -gritou zangado-. Eu disse a tio Jamie que você nunca tinha sido uma puta, alguma vez. Mas não foi asi, não?

-Quem te deu direito a me chamar puta, maldito fariseu?

Brianna estava em pé, furiosa.

340

-Direito? -Ian ficou sem palavras-. Eu... você... ele...

antes de que pudesse seguir, Brianna lhe deu um murro no estômago. Com um olhar de assombro ficou sentado no chão, ofegando.

Movi-me, mas Jamie foi mais rápido e a sujeitou. -Fica aquieta -disse com voz muito fria, evitando que pegasse também a ele-

. Não queria lhe acreditar, pensei que o dizia para salvar-se. Mas se era assim...

não podia lhe tirar a vida a um homem, sem estar seguro. -Fez uma pausa e a observou.

O que procurava? Tinha remorsos, estava arrependido? Mas tudo o que encontrou foi fúria-. Quando retornei essa noite senti não havê-lo matado e senti vergonha por ter duvidado da virtude de minha filha. E agora descubro que não

somente não foi pura, mas sim me mentiu. -Que te menti? -Sua voz era um sussurro-. Te mentir? -Sim, mentiu-me ! -com súbita violência se voltou para ela-. Deitou-te com

um homem por luxúria e o acusou de violação quando descobriu que estava grávida! Não te dá conta de que só por acaso não tenho em minha alma o pecado

do assassinato e que a culpa seria tua? Estava muito furiosa para falar e eu tampouco podia fazê-lo. Procurei no

bolso de meu vestido o anel e o deixei cair sobre a mesa. A aliança de ouro rodou,

com a inscrição: «Do F. para o C. com amor. Sempre». Jamie o contemplou com rosto inexpressivo.

-Esse é seu anel, tia -disse Ian. Parecia enjoado e se aproximou para vê-lo melhor-. Seu anel de ouro. que te tirou Bonnet no rio.

-Sim -pinjente, e me sentei sentindo os joelhos frouxos. Jamie me agarrou

da boneca. -Onde o conseguiu? -perguntou. -Eu o traga. -As lágrimas da Brianna se evaporaram pela fúria. ficou detrás

de mim-, não te atreva a olhar a dessa forma! Olhou-a com a mesma dureza que a mim, mas Brianna não retrocedeu.

-Onde o conseguiu? -perguntou em um sussurro-. Quando? -Consegui-o do Stephen Bonnet.-Sua voz tremia de fúria, não de medo—.

Quando... me... violou...

O rosto do Jamie se derrubou como se algo tivesse estalado em seu interior. Senti que Brianna se movia, que Ian repetia «Bonnet?». Ouvi o tictac do

relógio; era consciente de todo isso, mas só tinha olhos para o Jamie. Teria que ter podido dizer ou fazer algo, me fazer carrego deles. Mas não pude fazer nada. Não podia fazer nada sem trai-los aos dois. Não havia dito nada procurando a

segurança do Jamie e isso tinha cansado sobre o Roger, destruindo a felicidade do Bri.

Brianna se afastou, caminhou ao redor da mesa e se deteve frente a Jamie

olhando-o à cara. -Maldito seja! -disse em voz quase inaudível-, Maldito seja, maldito

bastardo! Lamento te haver conhecido.

DÉCIMA PRIMEIRA PARTE PS DU TOUT

51

Traição

341

Outubro de 1769

Roger abriu os olhos e vomitou. O gosto a bílis que lhe vinha do nariz e os rastros de vômito em seu cabelo não eram nada comparados com a dor que sentia na cabeça e na virilha.

Uma voz ressonou perto e o pânico o invadiu de novo. Tinha sido apanhado pela tripulação do Gloriana. Estava pacote. Bonnet. Tinham-no apanhado e agora

o foram matar. Vomitou outra vez, mas seu estômago estava vazio. Não estava em um navio, a não ser sobre um cavalo. Maço de pés e mãos sobre um maldito cavalo. O cavalo deu uns passos mais e se deteve. Murmúrio de vozes, mãos que

o moviam e o punham bruscamente em pé para desabar-se imediatamente, pois era incapaz de sustentar-se.

ficou dobrado no chão, concentrando-se em sua respiração. Ninguém lhe incomodava; gradualmente começou a ser consciente do que lhe rodeava. Via o céu de uma profunda cor entre azul e púrpura, ouvia o som das folhas das

árvores e de um arroio próximo. Tudo lhe dava voltas. Fechou tosse olhos e apertou as mãos sobre a terra.

«Mierda, onde estou?» As vozes soavam perto, mas não podia entender as

palavras. Sentiu um momento de pânico quando nem sequer pôde identificar o idioma.

Tinha um golpe debaixo de uma orelha e outro na parte de atrás da cabeça, A dor lhe atravessava as têmporas. Tinham-no golpeado com força, mas quando? Abriu os olhos e com infinita precaução se deu a volta. Uma cara quadrada e

escura o olhou sem nenhum interesse especial e logo olhou ao cavalo. Índios. A impressão foi tão grande que esqueceu, por um momento, sua dor

e se sentou de repente. Ofegando apoiou a cara sobre os joelhos sem abrir os olhos.

«Onde estou?» Lutou para recuperar a memória. Fragmentos de imagens

retornavam a sua mente, mas se negavam a juntar-se para adquirir um sentido. O rosto do Bonnet e as baleias e o pequeno menino chamado.,. chamado... Mãos juntas na escuridão. «Faço-te minha esposa Y...»

Bri. Brianna. Um suor frio escorregou por suas bochechas e as imagens flutuaram em sua mente. O rosto da Brianna! Não tinha que perdê-lo, não podia

deixá-lo ir! Mas não era um rosto amável. Um nariz direita e uns frios olhos azuis...

não, não eram frios..

Uma mão sobre suas costas o arrancou da lhe torturem busca de sua memória para levá-lo a presente. Era um índio com uma faca na mão. Aturdido

pela confusão, Roger se limitou a olhá-lo. O índio, um homem de média idade, agarrou ao Roger do cabelo e lhe

moveu a cabeça de um lado ao outro com ar crítico. A confusão se evaporou e

Roger pensou que lhe arrancaria ali mesmo o couro cabeludo. aferrou-se aos joelhos do índio e este caiu com um grito de surpresa. Roger ficou em pé e correu

para salvar sua vida. O fazia como uma aranha bêbada, com as pernas atadas procurando o refúgio das árvores. Ouvia gritos e o som de passos quando algo lhe golpeou nos pés e caiu de bruces.

Não tinha sentido lutar. Eram quatro, incluído o que Roger tinha atirado. Este se aproximou, ainda empunhando a faca.

-Não te ferir! -dueto zangado.

342

Deu uma bofetada ao Roger e o agarrou por couro que lhe sujeitava as

bonecas, deu-se a volta e se encaminharam para onde estavam os cavalos. Roger pensou desconcertado: «Incrível. Não estou morto. Em que maldito

inferno estou?». Não tinha resposta para isso. passou-se a mão pela cara e descobriu várias feridas mais. Olhou ao redor.

Estava em um pequeno claro rodeado por carvalhos e nogueiras. O ar frio e

a cor do céu lhe diziam que estavam perto da queda do sol. Os índios, quatro em total, não lhe faziam o menor caso e se ocupavam do acampamento sem olhá-lo.

Deu um cauteloso passo para o arroio. Seus lábios estavam secos e bebeu, embora a água fria o fazia machuco nos dentes. Então começou a recordem.

A Colina do Fraser. Brianna e Claire... e Jamie Fraser. de repente,

apareceram as imagens; o rosto da Brianna, seus olhos azuis e seu nariz robusto. Mas o rosto da Brianna se fazia cada vez mais amadurecido, mais duro e masculino e os olhos se voltavam escuros pela fúria assassina: Jamie Fraser.

-Maldito desgraçado -disse Roger brandamente-. Maldito asqueroso desgraçado. Tratou de me matar,

O sentimento inicial foi de surpresa, mas a ira não estava longe. Agora recordava tudo: a reunião em e! claro, as folhas de outono como fogo e mel, o jovem de cabelo castanho, quem diabos seria? A briga (tocou-se as costelas,

provocando uma careta de dor) e o final, atirado entre as folhas e convencido de que o foram matar.

Bom, não o tinham feito. Tinha uma ligeira lembrança de uma discussão entre o homem e o moço; a gente queria matá-lo e o outro não. Mas não sabia qual dos dois. Logo, golpearam-no e já não recordava mais. Olhou ao redor. Os

índios tinham aceso o fogo e colocado uma panela. Não o olhavam mas estava seguro de que o vigiavam.

Talvez lhe tinham arrebatado de lhas mãos do Fraser e o moço, mas por

que? O mais provável era que Fraser lhe tivesse entregue aos índios. O homem da faca disse que não queriam lhe fazer danifico. O que queriam fazer com ele? Os

índios não o vigiavam porque sabiam que não tinha onde ir. Deixou a um lado a desagradável verdade desta observação e ficou em pé. Primeiro, o primeiro. Lutou para abri-los calções. A primeira sensação foi de alívio. Doía-lhe, mas não era tão

mau. E a cor da urina lhe indicou que não havia danos internos. Mas quando se voltou para o fogo, o alívio foi superado por um estalo de

fúria tão forte que apagou a dor e o medo. Em sua boneca direita tinha um manchón negro em forma ovalada, o rastro de um polegar, clara e zombadora como uma assinatura.

-Pelas portas negras do inferno -disse brandamente. A fúria ardia em seu interior-. Espera, maldito desgraçado. Os dois, esperem a que retorne.

Embora não em seguida, os índios lhe permitiram compartilhar a comida, um guisado que comiam com as mãos, mas seguiam indiferentes. Tratou de lhes

falar em inglês, francês, inclusive no pouco de alemão que sabia, mas não recebeu resposta alguma.

Quando chegou a hora de dormir, ataram-no à boneca de um de seus

captores. Não acreditava que pudesse dormir, mas o fez esgotado pela dor. Foi um sonho muito agitado, com pesadelos violentos e a constante sensação de que o estrangulavam.

Pela manhã empreenderam o caminho. Esta vez não o ataram ao cavalo, fizeram-no caminhar o mais rápido possível, com um laço corrediço frouxo ao

redor do pescoço e uma corda que lhe sujeitava as bonecas à cadeira de um dos

343

cavalos. cambaleou-se várias vezes, mas as arrumou para continuar em que pese

a seus músculos doloridos. Tinha a sensação de que se não o fazia o arrastariam sem compaixão.

dirigiam-se para o norte. Podia dar-se conta pelo sol. Não sabia aonde o levavam, mas não podia estar tão longe da Colina do Fraser. Tinha que procurar marcos para recordar o caminho, se é que alguma vez podia retornar.

A viagem durou dias, sempre para o norte. Seus captores não lhe falavam e ao quarto dia se deu concha de que estava perdendo a noção do tempo e

entrando em um estado de transe pela fadiga e o silêncio das montanhas. Tirou um largo fio da prega de sua casaca e começou a marcar os dias com um nó para ter uma conexão com a realidade e poder calcular a distância da viagem.

ia retornar. Não importava como, mas retornaria à Colina do Fraser. Ao oitavo dia encontrou sua oportunidade. No dia anterior tinham cruzado

um desfiladeiro, onde os cavalos tinham que ir a passo lento. Os índios tinham

desmontado e caminhavam conduzindo os cavalos. Roger não perdia de vista ao índio que levava o cavalo ao que estava pacote. Com uma mão se sujeitava à

corda e com a outra tratava de desatá-la. Pouco a pouco foi afrouxando a corda até que, finalmente, ficou sujeito a

um fio. Esperou, suando pelo temor e o esforço, deixando passar oportunidades e

temendo que depois fora muito tarde, já que se se detinham para acampar, o índio se daria conta de que a corda estava gasta.

Mas não se detiveram e o índio não se voltou. «Agora», pensou. Abaixo havia uma ladeira boscosa, ideal para ocultar-se. Atirou da corda e saltou. Correu colina abaixo perdendo os sapatos. Cruzou um arroio e ouviu vozes, logo se fez o

silêncio, mas soube que o perseguiam. Corria enquanto procurava um lugar para esconder-se. Escolheu um

bosquecillo de abedules e logo cruzou um prado; ao olhar para trás divisou duas

cabeças entre as folhas. Seguiu correndo entre a maleza e baixou por um ravina, aferrando-se às novelo. Chegou ofegante até o fundo.

Um dos índios baixava o ravina justo detrás dele. tirou-se a corda que tinha no pescoço e golpeou com força as mãos do índio, Este escorregou e então Roger lhe aconteceu a corda pelo pescoço, atirou com força e fugiu deixando o de

joelhos, tossindo e lutando para afrouxá-la corda. Árvores. Necessitava amparo. Tropeçou, levantou-se e seguiu correndo

quase sem fôlego. meteu-se entre os abetos, passando entre milhões de agulhas com os olhos fechados, até que caiu e rodou enjoado e sangrando. ficou imóvel durante um momento, logo se voltou limpando-a sujeira e o sangue do rosto.

Levantou a cabeça com precaução, procurando. Havia dois índios no topo da ladeira, baixando com cuidado por onde ele tinha cansado.

arrastou-se sobre mãos e joelhos para salvar sua vida. "Inferno” foi seu

primeiro pensamento coerente. Logo se deu conta de que era tanto uma descrição como uma maldição.

Estava em um inferno de rododentros. Ao dar-se conta, já muito tarde, diminuiu sua carreira, se podia chamar-se assim a arrastar-se três metros por hora.

meteu-se em uma espécie de túnel onde não podia dá-la volta, mas as engenhou para colocar a cabeça. Não havia nada, só terra e escuridão. Não se via outra coisa que ramos de rododendro.

Seus membros trementes não resistiram e se desabou. Por um momento, Roger ficou respirando terra e folhas podres.

344

-Queria um lugar para te esconder, companheiro -murmurou para si. Tudo

lhe doía. Tinha feridas que sangravam em várias partes do corpo. Fez um rápido inventário dos danos enquanto tratava de detectar a seus

perseguidores. Não lhe surpreendeu que não estivessem. Tinha ouvido falar do inferno dos rododendros nos botequins do Cross Creek, historia sobre cães que perseguindo uma lebre se colocaram nesse labirinto e se perderam para sempre.

Roger esperava que fossem exageros, embora o que via não era muito tranqüilizador. Olhasse onde olhasse tudo parecia igual. Com uma sensação de

pânico, deu-se conta de que não sabia por onde tinha chegado ali. Pôs a cabeça sobre os joelhos e respirou profundamente tratando de pensar. Muito bem, o primeiro era o primeiro. Seu pé direito sangrava e usou uma média para enfaixar-

lhe Não parecia necessitar outra vendagem, salvo no profundo sulco de seu couro cabeludo que ainda lhe sangrava, úmido e pegajoso ao tato.

Tremiam-lhe as mãos e lhe resultava difícil atá-la média ao redor da

cabeça. Entretanto, essa pequena ação lhe fez sentir-se melhor. Tinha escalado infinidade de munros em Escócia. Se um se perdia em um lugar assim, o

habitual era esperar a que alguém o encontrasse. Mas isso não servia, pensou, já que as únicas pessoas que o buscavam eram as que não queria que o encontrassem.

Não havia forma de saber que tamanho tinha aquele Inferno. Sabia que estava perto de um dos limites, mas esse conhecimento era inútil, já que não

tinha idéia de qual era a direção. deu-se conta de que tema muito frio e as mãos lhe tremiam. O que se fazia

nesses casos? Bebidas quentes, mantas. Brandy. Sim, claro. Levantar os pés, isso

sim podia fazê-lo. meteu-se em uma pequena depressão, tampou-se com folhas e fechou os

olhos tremendo.

Não foram perseguir o. por que foram fazer o? Era muito melhor esperá-lo se não tinham pressa. Finalmente ele sairia, se podia.

Com as mãos juntas sobre o peito, ordenou-se descansar e pensar em algo diferente a sua situação atual. Brianna. Podia pensar nela. Sem fúria nem confusão, não havia tempo para isso. Tentaria pensar que tudo seguia entre eles

como aquela noite, sua noite. Seu calor, suas mãos tão francas e curiosas, ansiosas por conhecer seu corpo. A generosidade de sua nudez, sua liberdade, e

ele, com sua segurança, equivocada, de que tudo estava bem no mundo. Pouco a pouco deixou de tremer e dormiu.

despertou depois de que saísse a lua. Podia ver o brilho no céu. Estava

dolorido e tinha frio, fome e sede. Bom, se podia sair daquele matagal ao menos encontraria água. Nas

montanhas havia arroios por todos lados. sentia-se como uma tartaruga sobre

sua carapaça, deu-se a volta lentamente. Uma direção era tão boa como outra. Uma vez mais, sobre mãos e joelhos,

atravessou os ramos tratando de manter-se em linha reta. Seu principal temor não era encontrar-se com os índios, a não ser perder o rumo e ficar dando voltas, apanhado para sempre. A história dos cães já não lhe parecia exagerada.

Cada vez que se detinha para recuperar o fôlego, esperava para ver se ouvia algo, mas não ouvia nada, salvo ocasionais pássaros e o som das folhas. secava-se o suor e seguia arrastando-se.

Não sabia quanto tempo tinha passado quando encontrou a rocha. Mais que se encontrá-la chocou contra ela. Cego pela dor, tocou-a para sentir contra o

que se golpeou. Era uma pedra Lisa e alta.

345

A provas a rodeou. Havia um grosso tronco perto e seus ombros se

entupiram no estreito espaço, até que finalmente pôde passar, perdeu o equilíbrio e caiu de bruces.

De novo se incorporou apoiando-se nas mãos e se deu conta de que podia as ver. Olhou ao redor totalmente surpreso. ficou em pé e viu que estava em um lugar aberto frente a um penhasco que se levantava um lado do pequeno claro.

Sim é que era um claro, porque nada crescia ali. Assombrado, deu-se a volta devagar respirando profundamente o ar puro e fresco.

-minha mãe -disse brandamente, em voz alta. O claro tinha forma oval, estava rodeado por pedras e pelo penhasco. As

pedras estavam separadas por espaços iguais, formando um círculo. Um par

delas tinham cansado pela pressão das raízes do rododendro. Mas nenhuma outra planta crescia ali.

Caminhou lentamente, sentindo calafrios em todo seu corpo, para o centro

do círculo. Não podia ser, mas era. E por que não? Se Geillis Duncan tinha razão... voltou-se para ver as marcas à luz da lua.

aproximou-se para olhar de perto. Havia vãos petroglifos, alguns do tamanho de sua mão e outros quase tão altos como ele, forma em espiral e o que podia ser um homem inclinado, dançando ou movendo-se. Um círculo quase

fechado, como uma serpente que se remói a cauda. Sinais de aviso. estremeceu-se outra vez e sua mão foi para o bolso do calção. As pedras

preciosas estavam ali, por elas tinha arriscado a vida. Eram, ou isso esperava, o passaporte de segurança para ele e para a Brianna.

Não ouvia nada, nem zumbidos, nem murmúrios. Mas deviam estar perto

da festa do Samhain. Aquele círculo seguiria o mesmo ritmo de datas? Supunha que assim era,

se as linhas de força da Terra se regiam pelo movimento ao redor do Sol, então

tudas as passagens deviam abrir-se e fechar-se com essas mudanças. Deu um passo para aproximar-se do penhasco e viu a abertura. Talvez fora uma cova. Um

frio sorvete o sobressaltou, e não era devido ao vento da noite. Seus dedos se fecharam sobre as pedras preciosas. Não ouvia nada. Estaria aberto? Se era assim...

«Escapar.» Seria isso. Mas escapar onde? E como? Tentá-lo seria abandonar a Brianna.. «E ela não te abandonou?»

-Não, que me amaldiçoem se o fez! -sussurrou. Havia uma razão para o que ela tinha feito, sabia. Tinha encontrado a seus

pais, estaria segura. “Por esta razão, uma mulher deixará a seus pais e se unirá a

seu marido”. Não era a segurança o que importava, era o amor. Se lhe tivesse importado a segundad nunca teria tomado esse caminho.

Se não penetrava na rocha... então ficavam dois caminhos. Voltar para os

rododendros ou escalar o penhasco. Moveu a cabeça e viu um rosto sem facções que o olhava na escuridão. Não teve tempo de mover-se, nem de pensar antes de

que a corda passasse por sua cabeça e lhe apertasse os braços contra o corpo.

52 Deserção

River Run, dezembro de 1769

346

Tinha estado chovendo e logo o faria de novo. Gotas de água penduravam

baixo as pétalas de mármore das rosas jacobitas na tumba do Héctor Cameron. Semper Fidelis, dizia debaixo do nome e a data. Semper Fi. Brianna tinha saído

com um cadete da Marinha que levava isso gravado no anel que tentou lhe dar de presente. Sempre fiel. A quem tinha sido fiel Héctor Cameron? A sua esposa? A

seu príncipe? Não tinha falado com o Jamie Fraser desde aquela noite. Nem ele com ela.

Não até o momento final, quando ante a fúria pelo medo e o ultraje, tinha-lhe

gritado: «Meu pai nunca houvesse dito uma coisa semelhante!». Ainda podia lhe ver a cara depois de que lhe dissesse isso e desejava poder

esquecê-lo. deu-se a volta para sair da cabana sem dizer uma palavra. Ian se

tinha posto em pé e o tinha seguido; nenhum dos dois retornou aquela noite. Claire ficou com ela consolando-a e mimando-a enquanto chorava e se

enfurecia. Embora sua mãe a tinha abraçada e lhe secava a cara, Brianna podia sentir que uma parte dela sofria por não poder ir buscá-lo, sentia que desejava segui-lo e consolá-lo, e também o culpava por isso.

Doía-lhe a cabeça pelo esforço de permanecer com o rosto inexpressivo. Não queria relaxar os músculos da cara até estar segura de que se partiram, se o fazia era possível que se desmoronasse. Não o tinha feito, não desde essa noite. Uma

vez recuperada, assegurou a sua mãe que já estava bem e insistiu em que Claire se fora à cama. ficou sentada até o entardecer, com os olhos brilhando pela fúria

e com o desenho do Roger sobre a mesa. O tinha retornado ao amanhecer; sem olhar a Brianna tinha chamado a

sua mãe. Tinham murmurado na porta e logo a enviou, com os olhos cheios de

preocupação, a que empacotasse suas coisas. havia a trazido aqui, baixando pela montanha até o River Run. Brianna

tinha querido ir com eles, sair imediatamente a procurar o Roger sem esperar um minuto. Mas ele tinha sido inflexível, igual a sua mãe.

Estavam no fim de dezembro e a neve do inverno se amontoava na ladeira

da montanha. Estava de mais de quatro meses e a curva de sua barriga aparecia bem arredondada. Não se podia saber quanto duraria a viagem e teve que aceitar, a contra gosto, que não queria dar a luz em meio da montanha. Aceitava a

opinião de sua mãe, mas não a teima dele. Não podia deixar de ouvi-lo nem de vê-lo. Seu rosto, deformado pela ira

como uma máscara diabólica. Sua voz, cheia de fúria e desprezo, lhe reprovando, a ela, a perda de sua maldita honra.

-Sua honra? -havia-lhe dito incrédula-, Sua honra? Seu maldito sentido da

honra é o que causou todos os problemas! -Não deve usar essa classe de linguagem comigo!

-Direi o que me dê a maldita vontade! -tinha gritado, dando um murro na mesa.

Sua mãe tentou detê-los, mas nenhum dos dois fez conta, muito ofuscados

pela sensação de mútua traição. Sua mãe lhe havia dito, em uma oportunidade, que tinha temperamento

escocês. Agora sabia de onde provinha, mas o saber o não a ajudava.

Dobrou os braços sobre seu abdômen, apoiou a cara neles e aspirou o aroma de lã. Isso lhe fez recordar os jerséis tecidos à mão que a seu pai, seu

verdadeiro pai, pensou com uma rajada de desolação, gostava de usar. -por que teve que morrer? -sussurrou-. Mas por que? Se Frank Randall não tivesse morrido nada disso teria acontecido. Claire e

ele estarian ali, na casa de Boston, e sua família e sua vida estariam intactas.

347

Mas seu pai se foi e tinha sido substituído por um violento desconhecido;

um homem que tinha seu mesmo rosto, mas não compreendia seu coração; um homem que lhe tinha roubado a família e o lar e, não contente com isso, também

lhe tinha tirado o amor e a segurança, deixando-a sem nada, em uma terra dura e estranha.

ajustou-se o lenço sobre os ombros, estremecendo-se pelo vento. Teria que

haver ficado uma capa. Tinha beijado a sua mãe para despedir-se e logo se voltou e correu pelo jardim sem olhá-lo. Esperou até estar segura de que se foram, sem

lhe importar o frio. Ouviu passos mas não se voltou. Talvez era algum servente ou Yocasta,

para persuadir a de que retornasse. Mas eram passos muito compridos e fortes.

Não queria dá-la volta, não devia fazê-lo. -Brianna -disse uma voz detrás dela. Bri não respondeu, nem sequer se moveu.

Jamie soprou: fúria, impaciência? -Tenho algo que te dizer.

-Diga-o -disse e as palavras machucaram sua garganta. Tinha começado a chover outra vez. -vou trazer o para casa, contigo -disse Jamie Fraser com voz tranqüila-, ou

não retornarei jamais. Não pôde dá-la volta. Ouviu o som dos passos que se afastavam. Ante seus

olhos nublados pelas lágrimas o atalho ficou vazio. A seus pés havia um papel dobrado, molhado pela chuva e sujeito por uma pedra. Levantou-o e o sustentou na mão com medo de abri-lo.

Fevereiro de 1770 face à preocupação e a fúria, adaptou-se facilmente à vida diária no River

Run. Sua tia avó, encantada com sua companhia, animava-a a procurar

distrações. Ao saber que tinha facilidade para o desenho, Yocasta lhe deu sua própria equipe de pintura, insistindo em que Brianna o utilizasse.

Em comparação com a cabana, a vida no River Run era tão luxuosa que

quase parecia decadente. Entretanto, por hábito, Brianna seguia despertando ao amanhecer. estirava-se com frouxidão, desfrutando de do prazer do colchão de

plumas. Sempre havia um fogo ardendo no lar e água quente para lavar-se. Teria

que haver-se sentido culpado por deixar-se atender por escravos, pensou. Mais

tarde o recordaria. Havia um montão de coisas nas que não queria pensar agora, uma mais não lhe faria mal.

Estava abrigada e podia ouvir os ruídos da casa, uma confortável sensação

caseira. Tema um ritual cada manhã, reconhecer seu corpo e aceitar as pequenas mudanças que ocorriam durante a noite para não sentir uma estranha em seu

próprio corpo. «Um estranho em meu corpo já é suficiente», pensou. Percorreu o abdômen

com as mãos.

-Olá -disse brandamente. Sentiu um ligeiro movimento em seu interior, logo o ocupante voltou para

seus misteriosos sonhos.

Aquela manhã sua pele parecia diferente, tenra e reluzente. Mais tarde, quando se levantasse, pareceria mais forte e resistente. ficou apoiada sobre o

travesseiro, observando a luz que entrava na habitação. A casa despertava além

348

de onde estava ela. Podia ouvir todos os ruídos e rumores da gente que

trabalhava. Quando era pequena despertava nas manhãs do verão para ouvir seu pai conversando com os vizinhos baixo sua janela. sentou-se segura e protegida

sabendo que ele estava ali. Mais recentemente se despertou ao amanhecer para ouvir a voz do Jamie

Fraser falando brandamente em gaélico com seus cavalos e havia sentido que

retornavam esses mesmos sentimentos. Mas não passaria nunca mais. O que sua mãe havia dito era verdade. Estava trocada e alterada, sem que soubesse ou

aceitasse. Apartou as mantas e se levantou. Não podia ficar na cama lamentando-se pelo perdido, já não era tarefa de outros o protegê-la. Agora era ela a protetora.

O bebê era uma presença constante e, embora lhe resultasse estranho,

uma constante segurança. Pela primeira vez se sentia benta e reconciliada. Seu corpo o tinha sabido antes que sua mente, tal como sua mãe lhe havia dito freqüentemente: «Escuta a seu corpo».

apoiou-se no marco da janela olhando a neve do jardim. Uma pulseira, com capa e lenço, estava ajoelhada no atalho arrancando cenouras.

Permaneceu imóvel escutando a seu corpo. O intruso se estirou um pouco e sentiu as quebras de onda de seus movimentos seguindo o pulso de seu sangue, o sangue dos dois. Nos batimentos do coração de seu coração, Brianna pensou

que podia ouvir o eco do outro, desse coração mais pequeno, e nesse som encontrou finalmente o valor para pensar com claridade, com a segurança de que

se acontecia o pior não estaria totalmente sozinha. 53 Culpa

Jamie quase não disse nada desde nossa partida da Colina do Fraser até

que chegamos à aldeia tuscarora do Tennago. Tinha falado pouco com o Ian, a Yocasta havia dito o indispensável no Cross Creek e não me dizia nada.

Cavalgava atrás dele me sentindo bastante desgraçada e rasgada entre a culpa por ter deixado sozinha a Brianna, o temor pelo Roger e a dor ante o silêncio do Jamie. Culpava-me amargamente por não lhe haver contado imediatamente o do

Stephen Bonnet e por tudo o que tinha acontecido depois. guardou-se o anel de ouro que atirei sobre a mesa e não tinha nem idéia do

que tinha feito com ele. Vários índios que nos conheciam da Anna Ooka nos receberam ao chegar

ao Tennago. Os homens olhavam os barris de uísque quando descarregávamos as

mulas, mas ninguém interveio. Levávamos duas mulas carregadas de uísque, em total uma dúzia de barris pequenos, todos eles da parte que correspondia aos Fraser na partilha anual. Um resgate digno de um rei, que confiava que fora

suficiente para o de um jovem escocês. Era o melhor e quão único tínhamos para negociar, mas também era

perigoso. Jamie entregou um barril ao sachem da aldeia e desapareceu com o Ian para parlamentar na casa comunal. Ian tinha entregue ao Roger a seus amigos tuscarora, mas não sabia onde o tinham levado. Eu esperava, contra toda esperança, que tivesse sido ao Tennago. Se era assim poderíamos estar de retorno no River Run em um mês. Era uma débil esperança, já que em meio da terrível briga com a Brianna.

Jamie admitiu que havia dito ao Ian que se assegurasse de que Roger não voltasse nunca. Tennago estava a dez dias de viagem da Colina, muito perto para

um pai enfurecido.

349

Eu levava o amuleto do Nayawenne e a opala que encontrasse baixo o cedro

vermelho com intenções de devolvê-lo, embora não sabia a quem. Se era necessário, estes objetos aumentariam o poder de persuasão do uísque. Pela

mesma razão Jamie trazia seus pertences mais valiosas, que não eram muitas, só faltava o anel de rubi que tinha sido de seu pai e Brianna havia lhe trazido de Escócia. O tínhamos deixado a esta se por acaso não retornávamos, uma

possibilidade que terei que ter em conta, Não havia forma de saber se Geillis Duncan tinha ou não razão sobre o uso das pedras preciosas, mas ao menos

Brianna teria uma. Quando deixamos River Run me abraçou e beijou com força. Não queria ir,

mas tampouco ficar. Uma vez mais me encontrei apanhada entre dois

sentimentos: o desejo de ficar para cuidar da Brianna e a urgente necessidade de ir com o Jamie.

-Tem que ir -disse Brianna com firmeza-. Estarei bem, você o há dito: sou

forte como um cavalo, e crostas de volta muito antes de que te necessite. Tinha olhado de esguelha a seu pai, que fiscalizava os cavalos e as mulas.

-Tem que ir, mamãe. Confio em ti para encontrar ao Roger. E pôs uma incômoda ênfase em sua confiança em mim, que esperei que

Jamie não tivesse notado.

-Não pensará que Jamie poderia... -Não sei -interrompeu-me-. Não sei o que pode chegar a fazer.

Endureceu a mandíbula em um gesto que já conhecia. Discutir era inútil, mas tinha que tentá-lo.

-Bom, eu sim sei. Fará algo por ti, Brianna. Algo. E embora não fora por ti,

faria todo o possível por trazer para o Roger. Seu sentido da honra... Seu rosto me demonstrou o engano cometido. -Sua honra -disse-. Isso é o que lhe importa. Suponho que está bem se isso

fizer que encontre ao Roger. E me deu as costas.

-Brianna! Mas não me respondeu. -Tia Claire? Já estamos preparados.

Ian apareceu com rosto preocupado. -Bri?—repeti.

Então se voltou para me abraçar. -Volta! -suplicou-. Mamãe, volta! -Não posso te deixar, Bri, não posso!

-Tem que ir -sussurrou-. Traz-o, você é quão única pode trazê-lo. depois de me beijar rapidamente saiu correndo. Jamie, com rosto

inexpressivo, viu como se ia.

-Não pode deixá-la assim -pinjente me secando as lágrimas-. Jamie, por favor, vê e te despeça.

ficou imóvel, como se não me ouvisse, e logo se deu a volta e se afastou pelo atalho.

-Tia?

Ian me ajudou a montar. Pouco mais tarde, Jamie tinha retornado e subido ao cavalo sem dizer uma palavra; nem sequer olhou para trás. Eu sim que o fiz, mas já não havia sinais da Brianna.

Tinha anoitecido e Jamie seguia com o Nacognaweto e o sachem da aldeia.

Finalmente, Ian saiu acompanhado de uma figura baixa e gordinha.

350

-Tenho uma surpresa para ti, tia -disse sonriendo e, apartando-se, deixou-

me ver a cara redonda e sorridente da pulseira Poliyanne. Em realidade a ex-pulseira, porque ali era livre. sentou-se a meu lado

sonriendo e me ensinou o menino que levava em braços, cujo rosto era idêntico ao dele.

Com o Ian como intérprete, os poucos conhecimentos que tinha de inglês e

gaélico e a linguagem dos gestos, conseguimos manter uma interessante conversação. Tinham-na aceito na tribo dos mascarora e valoravam sua

capacidade para curar. casou-se com um homem que ficou viúvo depois da epidemia de sarampo, e fazia uns meses que havia trazido um novo membro à família.

Então me lembrei e tirei o amuleto do Nayawenne -Ian... quer lhe perguntar se souber a quem devo lhe devolver isto? Enquanto Ian falava, toqueteó o amuleto com curiosidade, logo sacudiu a

cabeça e respondeu com sua voz profunda. -Diz que ninguém o quererá, tia -traduziu Ian-. É perigoso. Teriam que

havê-lo enterrado com seu dono; ninguém o tocará por temor a atrair ao fantasma do chamán.

-lhe pergunte, o que acontece não se enterra ao chamán? Se não se

encontrar o cadáver? -Nesse caso o fantasma caminha contigo, tia- Diz que não o ensine a

ninguém daqui, pois se assustariam. -Mas ela não tem medo, não? Poliyanne sacudiu a cabeça e se tocou o peito.

-Agora a Índia -disse-. Mas não sempre. voltou-se para o Ian e lhe explicou que em seu povo veneravam aos

espíritos da morte.

O que me disse não me turvou. De fato, encontrei consoladora a possibilidade de que Nayawenne caminhasse comigo, dadas as circunstâncias.

Voltei a me colocar o amuleto baixo a camisa; seu tato era como sentir a proximidade de um amigo. Poliyanne duvidava se me dizer algo. Olhou de esguelha ao Jamie e se decidiu. aproximou-se do Ian e lhe murmurou algo ao

ouvido, logo me abraçou e se foi. Ian a contemplou assombrado. -Disse que deveria lhe dizer a tio Jamie que a noite em que morreu a

mulher na serraria ela viu um homem. -Que homem? -Não o conhecia. Só disse que era um homem branco, corpulento e não tão

alto como tio Jamie ou eu. Diz que saiu e caminhou rapidamente para o bosque. Ela estava sentada na choça e o viu passar; acredita que ele não a viu. Tinha marcas de varíola e cara de porco.

-Murchison? Meu coração se sobressaltou.

-O homem tinha uniforme? -perguntou Jamie com o cenho franzido. -Não. Mas sentiu curiosidade por saber que fazia ali. Quando foi olhar

soube que algo horrível tinha acontecido, cheirou o sangue e ouviu vozes, por isso

não entrou. Tinha sido um assassinato que não pudemos evitar por muito pouco tempo.

Jamie apoiou uma mão em meu ombro e, sem pensá-lo, aferrei a ela. Então me

dava conta de que fazia um mês que não nos tocávamos.

351

-A moça morta era lavadeira do exército -disse Jamie-. Murchison tem a

sua esposa na Inglaterra; suponho que uma amante grávida lhe resultaria um inconveniente.

-Não é estranho que tenha provocado tanto alvoroço para apanhar ao responsável e culpar a essa pobre mulher, que nem sequer podia falar para defender-se. -Ian estava vermelho de indignação--. Se tivesse podido fazer que a

pendurassem se haveria sentido a salvo. -Quando voltarmos, talvez tenha uma conversação privada com o sargento -

comentou Jaime. -Não crie que já tem muitos vinganças pendentes para te manter ocupado? Falei com mais dureza da que tivesse querido e Jaime me soltou a mão.

-Isso espero -disse, sem expressão na voz nem em e! rosto, e se voltou para o Ian-. Wakefield, MacKenzie ou qualquer que seja seu nome, está no norte. Venderam-no aos mohawk de uma pequena aldeia na parte baixa do rio. Seu

amigo Onakara aceitou nos levar; sairemos ao amanhecer. depois de dizer isto ficou em pé e se afastou. Quis segui-lo mas Ian me

deteve. -Tia -disse vacilante-. Não lhe perdoaste? -lhe perdoar? -Contemplei-o assombrada-. por que? Pelo Roger?

Fez uma careta. -Não, isso foi um lamentável engano, que se voltará a repetir se seguimos

vendo as coisas desta forma. Não... pelo Bonnet. -Pelo Stephen Bonnet? Como pode acreditar Jamie que lhe culpo por isso?

Nunca lhe disse nada semelhante! Estava muito ocupada acreditando que me

culpava , para pensar algo assim. -Bom... não te dá conta, tia? Ele se culpa por isso, faz-o desde que nos

roubou no rio, e agora, depois do que lhe tem feito à prima... —encolheu-se de

ombros algo molesto-, E ao ver que está zangada com ele... -Mas não estou zangada com ele! Eu acreditava que estava zangado comigo

por não lhe dizer em seu momento que tinha sido Bonnet. -Não! -Ian não sabia se rir ou chorar—. Bom, suponho que se o tivesse feito

nos teríamos economizado alguns problemas, mas estou seguro de que não está

zangado por isso, tia. depois de tudo, quando a prima Brianna o disse, já nos tínhamos encontrado com o MacKenzie.

Respirei profundamente. -Crie que pensa que estou zangada? -Bom, isso o pode ver qualquer, tia —assegurou com sinceridade-. Não o

olha e só lhe fala quando não tem mais remédio...e-- -esclareceu-se garganta- e não te vi ir a sua cama há mais de um mês.

-Bom, ele tampouco o tem feito! -pinjente acalorada, antes de me dar conta

de que não era uma conversação adequada para ter com um moço de dezessete anos.

-Ele tem seu orgulho, não? -Deus sabe que o tem. Eu... olhe, Ian, obrigado por me dizer isso Dirigiu-me um de seus estranhos e doces sorrisos que transformavam sua

cara alargada. -Bom, detesto vê-lo sofrer. Eu quero muito ao tio Jamie. -Eu também -pinjente, tragando para passar o nó que tinha na garganta-.

boa noite, Ian.

352

por que não tinha sido capaz de ver o que Ian me dizia? Era fácil responder;

não era a fúria a não ser sua própria culpa o que me tinha cegado. Tinha calado o que sabia do Bonnet, tanto pelo anel de ouro, como porque Brianna me tinha

pedido isso, mas pude tratar de convencê-la, até sabendo que ela tinha razão: cedo ou tarde tivesse ido detrás o Bonnet. Embora eu tinha mais confiança que Brianna no triunfo do Jamie, não tinha sido o anel o que me tinha feito guardar

silêncio. por que me sentia culpado? Não havia uma razão lógica. Tinha escondido o

anel por instinto, porque não queria acostumar-lhe ao Jamie nem voltar a me pôr isso no dedo. E entretanto, queria, precisava guardá-lo.

Vi-o deitado, imóvel mas sem dormir. Entrei na loja e me tirei a roupa.

Meus olhos se acostumaram à escuridão e senti seu olhar fixo em mim. Deslizei-me baixo a manta e, sem pensá-lo, apertei meu corpo nu contra o seu, ocultando a cara em seu ombro.

-Jamie -sussurrei-. Tenho frio- Te aproxime e me esquente, por favor. voltou-se em silêncio, com uma ferocidade que podia ter sido desejo

contido, mas eu sabia que era desespero. Não desejava prazer, quão único queria era lhe dar consolo. Mas ao me abrir a ele senti uma súbita necessidade, tão cega e se desesperada como a sua.

Permanecemos abraçados, tremendo, incapazes de nos olhar, mas sem poder nos separar.

-Jamie, sinto muito -pinjente finalmente-. Não foi tua culpa. -E de quem, se não? -disse com tom sombrio. -De todos. De ninguém. Do Stephen Bonnet, principalmente. Mas não tua.

-Bonnet?-perguntou surpreso-. O que tem que ver? -Bom... tudo -pinjente confundida. separou-se e apartou o cabelo de sua cara.

-Stephen Bonnet é uma criatura perversa e o matarei à primeira oportunidade que tenha. Mas não acredito que possa culpá-lo por minhas faltas

como homem. -Do que está falando? Que faltas? -Não acreditei que pudesse sentir tanto ciúmes de um morto -sussurrou-.

Não acreditei que fora possível. -De um morto? -Minha voz subiu de tom pelo assombro-. Do Frank?

-Perseguiu-me estes dias de viagem e posso ver seu rosto em minha mente. Disse que se parecia com o Jack Randall, não?

Abracei-o com força e aproximei minha boca a seu ouvido. Graças a Deus

que não lhe tinha mencionado o anel, mas me teria traído a expressão? -Como? -sussurrei-- Como pôde pensar isso? liberou-se apoiando-se em um cotovelo e deixando cair o arbusto de cabelo

avermelhado sobre sua cara. -E como não pensá-lo? Ouviu-a, Claire, sabia o que me dizia!

-Brianna? -Disse que gostaria de lombriga no inferno e que venderia sua alma por

recuperar a seu pai, seu verdadeiro pai. -Ouvi o ruído de sua garganta ao tragar

para continuar-. Estive pensando que ele nunca tivesse cometido esse engano, teria crédulo nela, teria sabido que ela... Pensei que Frank Randall era melhor homem que eu. Ela o pensa. E pensei que... talvez você acreditava o mesmo,

Sassenach. -Tolo -sussurrei-. Tolo, vêem aqui -pinjente acariciando suas costas.

-Sim, sou tolo. Mas não te importa muito, não?

353

-Não -pinjente. Seu cabelo cheirava a fumaça e a pinheiro-. Ela não quis

dizer isso. -Sim, disse-o. Ouvi-a.

-E eu lhes ouvi os dois. -Esfreguei-lhe as costas sentindo todas suas cicatrizes-. Brianna é igual a você, diz coisas que não sente quando está zangada. Ou você queria lhe dizer tudo o que disse?

-Não. -Seu corpo ficou rígido-. Não, não quis dizê-lo. Não tudo o que pinjente.

-lhe aconteceu o mesmo, me acredite –sussurrei-. Quero-lhes aos dois. Suspirou profundamente e ficou quieto um momento. -Se posso encontrar ao homem e levar-lhe crie que me perdoará algum dia?

-Sim. Sei que o fará. Brianna me havia dito: «Tem que ir. É a única que o pode trazer de volta». Pela primeira vez me ocorreu que possivelmente Brianna não se referiu ao

Roger.

Era um comprido trajeto através das montanhas que se complicava ainda mais no inverno. Uma vez que chegamos às montanhas, a viagem se fez mas fácil, embora as temperaturas baixavam à medida que nos dirigíamos ao norte. Tinham

passado seis semanas e Brianna já estaria de seis meses. Se encontrávamos logo ao Roger (e se era capaz de viajar, pensei com ironia) possivelmente poderíamos

retornar antes de que nascesse a criatura. Mas se Roger não estava ali, se os mohawk o tinham vendido a outros... ou se estava morto, dizia uma fria vocecita em minha cabeça, então poderíamos retornar sem atrasos.

Onakara não aceitou nos acompanhar até a aldeia, o que não ajudou a aumentar minha confiança. Jamie o despediu lhe entregando um dos cavalos, uma boa faca e uma garrafa de uísque como pagamento por seus serviços.

Enterramos o resto do uísque a certa distância da aldeia. -Entenderão-nos? —perguntei enquanto voltávamos a montar—. O

tuscarora é como o mohawk. -Não é o mesmo mas se parece, tia -disse Ian. Nevava brandamente e os

flocos se derretiam em suas pestanas-. Como o espanhol e o italiano. Mas

Onakara disse que o sachem e alguns índios sabem algo de inglês, embora não o usam. Lutaram com os ingleses contra os franceses, assim que alguns têm que

saber inglês. -Vamos e provemos sorte -disse Jamie; sorriu e cruzou o rifle sobre a

cadeira de montar.

54 Cautividad I

Fevereiro de 1770 Tinha estado na aldeia mohawk uns três meses, conforme podia comprovar

nos nós do fio. Ao princípio não sabia quem eram, só que eram índios diferentes a

seus captores e que estes lhes temiam. Tinha permanecido aturdido pelo cansaço. Os índios novos eram diferentes; foram vestidos com peles e couros para

o frio e a maioria dos homens levavam o rosto tatuado. Um deles lhe ameaçou com a ponta da faca e o fez despir-se. Obrigaram-lhe

a permanecer nu em meio de uma cabana de madeira, onde vários homens e

mulheres o golpearam e se burlaram dele. Seu pé direito estava inflamado por um

354

profundo corte infectado. Ainda podia caminhar, mas cada passo que dava lhe

produzia fortes dores e a febre o fazia tremer. Empurraram-no até a porta da cabana. Fora se escutava o ruído provocado

por duas filas de selvagens formando um corredor e que gritavam armados com paus. Alguém lhe cravou a nádega com uma faca e sentiu como corria o sangue por sua perna. “Cours.”, disseram-lhe. Corre. Não havia forma de evitar tosse

golpes. Tudo o que podia fazer era correr o mais rápido possível entre as duas filas de índios.

Perto do final, um pau lhe golpeou no estômago; dobrou-se e sentiu outro golpe detrás da orelha que lhe fez rodar sobre a neve, quase sem sentir o frio. Sentiu uma chicotada nas pernas e outro debaixo dos testículo; seguiu rodando

até que pôde apoiar-se sobre mãos e joelhos. O sangue que emanava de seu nariz e de sua boca se mesclava com o barro gelado.

Chegou até o final da fila. Com os últimos golpes ainda ardendo em suas costas, ficou em pé e se voltou apoiando-se nas varas para olhá-los. Isso gostaram e riram com gargalhadas que pareciam latidos. Roger fez uma

inclinação de cabeça e se ergueu. Riram com mais força. Sempre tinha sabido agradar à multidão.

Então o levaram dentro e lhe deram água para lavar-se e comida.

Devolveram-lhe sua camisa esfarrapada e seus calções imundos, mas não a casaca e os sapatos. Fazia calor dentro da cabana já que tinham vários fogos

acesos. arrastou-se até um rincão e ficou dormido. Depois do recebimento, os mohawk o trataram com indiferença mas sem

crueldade. Era o escravo daquela moradia comunitária e o podiam usar rodos os

habitantes. Se não entendia uma ordem a repetiam uma vez; se se negava ou pretendia não entender lhe golpeavam. Davam-lhe comida suficiente e um lugar

decente para dormir em um rincão da cabana. Com grande precaução, preocupou-se com aprender algumas palavras,

para o qual escolheu uma menina, que lhe pareceu menos perigoso. Esta o

contemplava assombrada, como se ouvisse falar com um sapo, e ria. Mas com o passo dos dias, a menina acabou chamando a seus amigas e entre todas lhe faziam repetir palavras. Assim soube que eram mohawks. Guardiães da Porta do

Leste da liga Iroquesa. O, em troca, era algo assim como um «cara de cão». —Obrigado -disse-lhes, tocando sua barba enchente e lhes ensinando os

dentes entre grunhidos. As meninas riram muito. Uma das mães das meninas se interessou por ele e lhe curou o pé

infectado. As mulheres começaram a lhe falar quando lhes levava lenhos ou água.

Quando apareceu o jesuíta, a borda do rio ainda estava geada. Roger estava fora e ouviu ladrar a tosse cães. A gente se juntou e ele se aproximou com curiosidade.

Os recém chegados eram um grupo de homens e mulheres mohawk que foram a pé, carregados com os habituais vultos de viagem. Roger se aproximava, ansioso por inteirar-se, até que um dos índios da aldeia lhe empurrou para trás.

Alcançou a ver que o homem era um sacerdote. Não atuava como um prisioneiro, mas teve a impressão de que não ia por própria vontade.

O sacerdote, com gesto de preocupação em sua jovem cara, entrou com vários índios na casa do Conselho. Roger nunca tinha entrado ali, mas conhecia sua existência por suas conversações com as mulheres.

355

Algo acontecia na aldeia, podia senti-lo mas não o compreendia. Os homens

falavam ao redor do fogo e as mulheres murmuravam entre elas enquanto trabalhavam, mas a discussão ultrapassava os rudimentares conhecimentos do

idioma mohawk que tinha Roger. Perguntou a uma das pequenas e só pôde lhe dizer que os visitantes provinham de uma aldeia do norte, que desconhecia o motivo e que só sabia que tinha algo que ver com o Roupa Negra, como

chamavam o jesuíta. Uma semana depois, Roger saiu com uma partida de caça; carregaram-no

com toda a carne para levá-la à aldeia. A sua chegada surpreendeu encontrar a vários índios lhe esperando. Liberaram-no de sua carga e o empurraram para uma pequena choça.

Não sabia suficiente mohawk para fazer perguntas e, de todos os modos, não lhe tivessem respondido. Havia um pequeno fogo que não lhe permitia ver nada em contraste com a luz do dia.

-Quem é você? -disse uma voz assombrada em francês. Roger piscou várias vezes, até poder divisar a figura sentada frente ao fogo.

Era o sacerdote.

-Roger MacKenzie. Et vous?

E experimentou uma inesperada alegria pelo simples feito de dizer seu

nome. -Alexandre. -O sacerdote se aproximou agradado e incrédulo-, Pai

Alexandre Ferigault. Vous étes anglis? -Escocês -disse Roger; teve que sentar-se porque a perna ferida não lhe

sustentava.

-Um escocês? Como chegou você até aqui? É um soldado? -Um prisioneiro.

-Quer comer comigo? Era um homem jovem. O poder falar o mesmo idioma foi um alívio para

ambos.

-por que me trouxeram aqui com você? -perguntou Roger depois de comer. Não acreditava que fora para lhe proporcionar companhia ao sacerdote,

pois a consideração não estava entre as qualidades daqueles índios.

-Não sei. Em realidade, surpreendeu-me ver outro homem branco. Roger olhou de esguelha para a porta. Havia alguém fora.

-Você é um prisioneiro? -perguntou assombrado. O sacerdote vacilou e logo se encolheu de ombros com um ligeiro sorriso. -Não saberia dizer. Com os mohawk, a linha que divide à hóspede do

prisioneiro é muito tênue e pode trocar em qualquer momento. Vivi vários anos com eles, mas sigo sendo “o outro”-, não um deles. E você, como caiu prisioneiro?

Roger vacilou, sem saber como explicar-lhe -Traíram-me -disse ao fim-. Venderam-me. O sacerdote assentiu pormenorizado.

-Há alguém que possa pagar um resgate por você? Manterão-o com vida se tiverem esperanças de cobrar algum resgate.

Roger negou desesperado com a cabeça.

-Não, não há ninguém. A conversação cessou; foram ficando às escuras e já não havia mais lenha.

-Leva muito tempo nesta choça? -perguntou finalmente Roger para romper o silêncio.

Quase não podia ver o sacerdote.

-Não. Trouxeram-me hoje, pouco antes de que você chegasse.

356

O sacerdote tossiu.

Roger pensou que era melhor não dizer nada. Era evidente para ambos que a linha entre hóspede e prisioneiro já tinha sido cruzada. O que teria feito aquele

homem? -Você é cristão? -perguntou bruscamente Alexandre. -Sim. Meu pai era ministro.

-Ah. Se me levarem, posso lhe pedir que reze por mim? Roger sentiu um frio que não tinha nada que ver com a temperatura lhe

reinem. -Sim -disse com estupidez-. É obvio. Se assim o desejar. O sacerdote ficou em pé e começou a caminhar inquieto.

-Talvez tudo saia bem -disse, como se queria convencer-se-. Ainda estão decidindo.

-Decidindo o que?

-Se viverei -disse, encolhendo-se de ombros. Não havia resposta para isso e outra vez reinou o silêncio. Roger dormitava

quando despertou um ruído na porta. incorporou-se e viu quatro guerreiros mohawk; um deles atirou lenhos no fogo quase apagado enquanto os outros três, sem emprestar atenção ao Roger, levantaram o pai Ferigault e lhe arrancaram a

roupa. Roger se moveu instintivamente mas o atiraram ao chão de um golpe. O

sacerdote o olhou, implorando que não interviesse. Um dos guerreiros aproximou da cara do sacerdote um tição aceso e disse

algo que pareceu uma pergunta. Logo o passou por seu corpo, tão perto de quão

genitais o rosto do Alexandre se cobriu de suor. A choça se encheu de aroma de cabelo queimado e os índios riram. Dois dos guerreiros o arrastaram pelos braços fora da choça.

«Sim me levam, reze por mim.» As roupas do sacerdote estavam atiradas no chão; Roger as recolheu e as

dobrou com mãos trementes. Tratou de rezar, mas lhe resultava difícil concentrar-se. Seguia ouvindo a voz do sacerdote lhe pedindo que rezasse por ele.

Tinham-lhe deixado o fogo aceso. Até que dormiu, tratou de convencer-se de que isso significava que não o matariam.

O ruído de várias vozes despertou de um sonho intranqüilo. abriu-se a porta e o corpo nu do sacerdote caiu ao chão. O ruído de passos se afastou enquanto Alexandre se estirava e gemia. Roger se aproximou de joelhos. Podia

cheirar o sangue fresca. -Está ferido? O que lhe têm feito?

Encontrou a resposta ao dar a volta ao corpo semiconsciente do sacerdote e ver o sangue na cara e o pescoço. Tratou de limpar a ferida e descobriu que lhe tinham talhado uma orelha e parte do couro cabeludo.

O homem se queixava. Roger lhe molhou a cara e lhe deu de beber. -Tudo irá bem -murmurava Roger uma e outra vez, sem saber se te ouvia-.

Tudo vai bem, não lhe mataram.

perguntou-se a si mesmo se isto terminaria aqui ou seria uma antecipação de majores tortura.

O fogo se consumou e a luz avermelhada dava uma cor escura ao sangue. O pai Alexandre se retorcia constantemente entre gemidos. Não podia

dormir e Roger tampouco. Pela primeira vez compreendeu os motivos do Claire

357

Randall para curar feridos. Acalmar a dor e o medo à morte servia para atenuar

os próprios temores. Para acalmar seu medo teria feito algo. Ao final, incapaz de suportar os gemidos e as rezas, deitou-se ao lado do

sacerdote e o agarrou entre os braços. -Tranqüilo -sussurrou-. Descanse. O corpo do sacerdote se agitou com os músculos duros pela dor e o frio.

-ficará bem -disse Roger, dando-se conta de que não importava o que dissesse, sempre que seguisse lhe falando-. Poderia ser um cão e te cuidaria

igual, não, chamaria um veterinário. -Acariciou-lhe a cabeça com cuidado de não lhe fazer danifico-. Ninguém trata assim a um cão, selvagens de mierda. Queixarei-me à polícia e publicarão sua foto no Teme.

uma espécie de risada espantosa saiu de seus lábios. aferrou-se ao corpo do sacerdote e o embalou na escuridão.

-Reposez-vous, mon ami. C'est bem, a, c'est bem.

55 Cautividad II

River Run, março de 1770 Brianna passou o pincel úmido pelo bordo da paleta para tirar o excesso de

pintura e acrescentou uma fina sombra no bordo do rio. ouviram-se passos pelo atalho que vinha da casa. Reconheceu o duplo

passo sem ritmo e ficou tensa, lutando com a necessidade de esconder-se atrás do mausoléu do Héctor Cameron. Não lhe importava que fora Yocasta, quem

freqüentemente a visitava pelas manhãs para falar de técnicas de pintura e mesclas de cores. De fato, gostava da companhia de sua tia avó e valorava as histórias da mulher sobre sua infância em Escócia, junto à avó da Brianna e aos

outros MacKenzie do Leoch. Mas o assunto era diferente quando Yocasta aparecia com o Cão que Via por Ela.

-bom dia, sobrinha! Não faz muito frio para ti?

Yocasta, envolta em sua capa, deteve-se e sorriu a Brianna. Se não a tivesse conhecido não se teria dado conta de que era cega.

-Estou bem; a... a tumba me protege do vento. Mas por hoje já é o bastante. Não era certo, mas colocou os pincéis no frasco de terebintina e começou a

limpar a paleta. Não pensava pintar com o Ulises descrevendo cada pincelada a

Yocasta. -Sim? Bom, deixa suas coisas; Ulises lhe levará isso. Deixou-as a contra

gosto, não sem antes ficar o caderno de desenho baixo o braço e lhe oferecer o outro a sua tia avó. Não ia deixar lhe isso ao senhor Todo o Vê e Todo o Conta.

-Temos companhia hoje -disse Yocasta, dirigindo-se para a casa-. O juiz

Alderdyce, do Cross-Creek, e sua mãe. Pensei que talvez quereria ter tempo para te trocar antes do almoço.

Brianna se mordeu as bochechas para não dizer nada. Mais visitantes.

A vida social da Yocasta era assombrosa. Mas Brianna tinha notado que ultimamente os visitantes eram homens. Homens solteiros.

Fedra, enquanto lhe buscava um vestido limpo para trocar-se, confirmou as suspeitas da Brianna.

-Não há muitas mulheres solteiras na colônia –observou Fedra quando

Brianna mencionou a peculiar coincidência de que a maioria dos visitantes

358

fossem homens solteiros. Fedra observou o ventre volumoso da Brianna-. Em

especial jovens. E menos ainda que vão ser proprietárias do River Run. -Proprietária do que...?

Fedra se tampou a boca e a olhou com os olhos muito abertos. -Não lhe há dito nada a senhorita Eu? Estava segura de que sabia; se não,

tivesse-me calado.

-Bom, agora que começaste termina de me contar isso O que quer dizer com isso?

Fedra, fofoqueira por natureza, deixou-se convencer com facilidade. -Assim que seu pai e outros se foram, a senhorita Eu mandou chamar o

advogado Forbes e trocou seu testamento. Quando a senhorita Eu mora, deixará

um pouco de dinheiro a seu pai e alguns objetos pessoais ao senhor Farquard e outros amigos, mas todo o resto será para você. A plantação, a serraria...

-Mas eu não quero nada!

As sobrancelhas arqueadas da Fedra expressaram profunda dúvida. -Bom, não se trata do que queira. Com a senhorita Eu está acostumado a

ser o que ela quer. -E exatamente, o que é o que quer? Esse também sabe? -Não é nenhum secreto- Quer que River Run dure mais que ela e que

pertença a alguém de seu sangue. Para mim, tem sentido pois ela não tem filhos, nem netos. Quem fica então?

-Bom... está meu pai. Fedra deixou o vestido sobre a cama e franziu o sobrecenho lhe olhando a

cintura.

-Do modo em que cresce sua barriga, este vestido só lhe valerá durante um par de semanas. OH, sim, está seu pai. Ela tratou de lhe nomear seu herdeiro, mas pelo que ouvi ele se negou. -Franziu os lábios divertida-. Esse sim que é um

homem cabeçudo. foi às montanhas para viver como os índios, só para evitar que a senhorita Eu lhe deixasse tudo. O senhor Ulises acredita que seu pai tem feito

bem, porque se se tivesse ficado a senhorita Eu não o teria deixado tranqüilo. Brianna tratou de arrumar o cabelo, mas lhe caiu a forquilha. -Venha, deixe me fazer isso .

Fedra se colocou a suas costas e começou a penteá-la. -E todos esses visitantes, esses homens...

-A senhorita Eu escolherá o melhor -assegurou Fedra-. Você não poderia levar River Run sozinha, nem sequer ela pode. O senhor Duncan é alguém cansado do céu; não sei o que faria ela sem ele.

O assombro ia deixando passo ao ultraje. -Ela está tratando de me buscar um marido? Está-me oferecendo como

uma noiva com dote?

-Estraga. Fedra não parecia encontrar nada mau nisso.

-Mas ela sabe o do Roger... o senhor Wakefield! Como pode tratar de me casar, se.,.?

Fedra suspirou com simpatia.

-Para falar a verdade, não acredito que a senhorita Eu pense que vão encontrar ao homem... Ela conhece bem aos índios; todos ouvimos o senhor Myers falando dos iroqueses.

Fazia bastante frio na habitação, mas Brianna começou a suar. -Além disso -continuou Fedra-, a senhorita Eu não conhece esse Wakefield.

Poderia não ser um bom administrador. Ela acredita que seria melhor que se

359

casasse com um homem que pudesse cuidar bem da propriedade e fazê-la

prosperar. -Eu não quero este lugar!

Agora o ultraje dava passo ao pânico. Fedra lhe atou a cinta ao redor de um pequeno coque.

-Bom, como já disse, não importa o que você queira, a não ser o que queira

a senhorita Eu. Agora, vamos provar lhe o vestido.

Brianna ouviu uns passos no corredor e girou a página de seu desenho do rio e as árvores. Passaram de comprimento e se tranqüilizou, voltando de novo para a página. Estava olhando seus desenhos anteriores: tinha esboços do Jamie

Fraser, de sua mãe e do Ian. Tinha-os começado a desenhar porque sentia nostalgia e agora os contemplava com medo, confiando contra toda esperança que aqueles pedaços de papel não fossem os únicos restos da família que

conheceu durante tão pouco tempo. “Para falar a verdade, não acredito que a senhorita Eu pense que vão

encontrar ao homem... Ela conhece os índios.” Lhe umedeceram as mãos. Uns suaves passos chegaram até a porta e

fechou o caderno.

Entrou Ulises e começou a acender o grande candelabro. -Não faz falta que o acenda por mim. Não me importa estar às escuras.

O mordomo sorriu amavelmente e continuou com sua tarefa. -A senhorita Eu virá logo -disse-. Ela pode ver as luzes e o fogo, assim sabe

onde está.

Brianna o observou enquanto colocava o recipiente com uísque e os copos. Toda uma vida dedicada às necessidades de outra pessoa. Ulises sabia ler e escrever em inglês e francês, sabia aritmética, cantava e tocava o clavicordio.

Tudo o que tinha aprendido era utilizado só para entreter a uma anciã autocrática que dava ordens que ele obedecia. Era a forma de ser da Yocasta.

E se Yocasta conseguia o que queria.., era porque aquele homem era de sua propriedade.

O pensamento era ridículo.

-Ulises -disse de repente-, quer ser livre? -No momento em que falou, mordeu-se a língua e se ruborizou-. Sinto muito -acrescentou imediatamente-. foi

uma pergunta muito grosseira. Por favor, me perdoe. O alto criado a olhou intrigado. -Nasci livre -disse finalmente em voz muito baixa-. Meu pai tinha uma

pequena granja, não muito longe daqui. Quando eu tinha seis anos morreu pela picada de uma serpente. Minha mãe não podia encarregar-se de tudo, não tinha força suficiente para trabalhar na granja, assim que se vendeu a si mesmo e

entregou o dinheiro a um carpinteiro para que me tirasse de aprendiz à idade adequada.

Pôs a caixa de marfim na mesita de jogo. -Mas ela morreu -continuou com tom prático-, E o carpinteiro, em lugar de

me ensinar, declarou que eu era filho de uma pulseira e que por lei também era

um escravo. Assim que me vendeu. -Mas não era verdade! Olhou-a com paciente diversão e seus olhos pareciam lhe dizer: E o que

tem que ver a verdade com tudo isto? -Tive sorte -contínuo-. Venderam-me barato, porque era pequeno e fraco, a

um professor que ensinava aos filhos dos donos das plantações de Cape Fear.

360

Íamos de uma casa a outra e eu me ocupava do cavalo e de outras tarefas. Como

as viagens eram largas, falava-me e me ensinava a cantar. Tinha uma voz preciosa.

A Brianna a surpreendia o ar nostálgico daquele homem, mas se repôs rapidamente.

-O foi quem me deu o nome do Ulises. Sabia grego e latim e, para entreter-

se, ensinou-me a ler e a escrever. Quando morreu eu era um jovem de vinte anos; então me comprou Héctor Cameron e descobriu minhas habilidades. Não todos os

senhores valorariam esses conhecimentos em um escravo, mas o senhor Cameron não era um homem comum. -Ulises sorriu fracamente-. Ensinou-me a jogar xadrez e me fazia jogar contra seus amigos. Também me ensinou a tocar o

clavicordio e a cantar para entreter a seus convidados. Quando a senhorita Eu começou a perder a vista, entregou a ela para que fora seus olhos.

-Qual era seu nome? Seu verdadeiro nome?

Fez uma pausa pensativo e logo sorriu, mas só com os lábios. -Não estou seguro de recordá-lo -disse amavelmente, enquanto se retirava.

56 Confissões da carne

despertou pouco antes do amanhecer. Alexandre não estava.

-Alexandre? -sussurrou com voz rouca-. Pai Ferigault? -Estou aqui. A voz do jovem sacerdote era suave e longínqua, embora estava a um metro

de distância. Roger se apoiou em um cotovelo; já mais acordado começou a ver.

Alexandre estava sentado com as pernas cruzadas, as costas reta e a cabeça

erguida. -Está bem?

Um lado do pescoço do sacerdote estava manchado de sangue, embora seu rosto parecia sereno.

-Me vão matar logo. Talvez hoje.

-Não -disse Roger levantando-se-. Não, não o farão. -Quer ouvir minha confissão?

-Não sou sacerdote. -Roger se aproximou com a pele de veado com a que se cobria-. Tenha, está gelado.

-Não tem importância.

Roger não sabia se se referia ao frio ou a que Roger não era sacerdote. Mas o homem estava gelado.

-Seu pai... -disse Alexandre-. Disse-me que era sacerdote.

-Ministro. Sim, mas eu não. -Em momentos de necessidade qualquer homem pode oficiar como

sacerdote -disse Alexandre, e lhe tocou com seus dedos frios-, Quer ouvir minha confissão?

-Se for o que quer.

sentia-se torpe, mas se isso lhe ajudava... esclareceu-se garganta. Como se esse som tivesse sido o sinal, o francês baixou a cabeça.

-me benza, irmão, porque pequei -disse Alexandre em voz baixa.

E com a cabeça inclinada e as mãos juntas se confessou. Tinham-no enviado de Detroit com uma escolta de furões. aventurou-se rio abaixo, até o

361

assentamento da Santa Berta do Ronvalle para substituir ao ancião sacerdote

encarregado da missão, que estava muito doente. -Fui feliz ali -disse Alexandre com voz sonhadora—. Era um lugar selvagem,

mas eu era muito jovem e minha fé ardente. Jovem? O sacerdote não podia ser maior que Roger. -Passei dois anos com os furões e converti a muitos. Então fui com um

grupo ao Fort Stanwix, onde havia uma grande reunião de tribos da região. Ali conheci um chefe guerreiro dos mohawk. Ouviu-me pregar e, por inspiração do

Espírito Santo, convidou-me a ir com o a sua aldeia. Esse foi meu primeiro pecado -disse com calma-. O orgulho. Mas Deus ainda estava comigo. -Tinha aprendido o idioma dos mohawk para que não desconfiassem.

Teve êxito e converteu a muitos índios da aldeia, em especial ao Chefe guerreiro que o protegia. Mas desgraçadamente, o sachem se opunha a sua

influência e havia contínuos problemas entre cristãos e não cristãos -E então -disse com um grande suspiro- cometi meu segundo pecado. apaixonou-se por uma de suas conversas.

-Tinha tido alguma mulher... antes? -Não, nunca -deixou escapar uma risada amarga e zombadora—. Acreditei

que era imune a essa tentação. Mas o homem é frágil ante as tentações da carne.

Tinha vivido em casa da moça durante vários meses. Até que uma manhã que se levantou cedo e foi ao arroio a banhar-se, viu seu próprio reflexo na água e

sentiu que era um sinal de Deus para que cuidasse sua alma. foi se viver sozinho a uma choça, mas já tinha deixado grávida a seu

amante.

-E por isso o trouxeram aqui? -perguntou Roger. -Não, eles não vêem as coisas do matrimônio e a moralidade como nós -

explicou Alexandre—, As mulheres vão aos homens quando querem, casam-se por acordo e o matrimônio dura enquanto se levam bem. A mulher pode jogar ao homem ou ele pode ir-se. Os filhos, se os houver, ficam com a mãe.

-Mas então... -A dificuldade foi que, como sacerdote, sempre me neguei a batizar a

meninos cujos pais não fossem cristãos e estivessem em estado de graça, e é

obvio não pude batizar a essa criatura. Isso ofendeu ao chefe, por isso ordenou que me torturassem. A moça intercedeu por mim com o apoio de sua mãe e de

vões pessoas influentes. Então me trouxeram aqui para que tivesse um julgamento imparcial.

-Temo-me que não compreendo -disse Roger com cuidado—. Você se negou

a batizar a seu próprio filho porque a mãe não era uma boa cristã? Alexandre pareceu surpreso.

-Ah, non! Ela não perdeu a fé, embora tinha todos os motivos para fazê-lo. —Suspirou-- Não, não podia batizar à criatura porque eu, seu pai, não estava em estado de graça.

-Ah. Por isso quer que lhe ouça em confissão? Então recuperará o estado de graça e poderá...

O sacerdote o deteve com um gesto. -Perdão. Não devi pedir-lhe Estava tão contente de poder falar em meu

próprio idioma que não pude resistir a tentação de aliviar minha alma. Mas não

está bem, não há absolvição possível para mim. O desespero do homem era tão evidente que Roger lhe apoiou a mão no

braço para tranqüilizá-lo.

-Está seguro? Disse-me que em tempos de necessidade...

362

-Não é assim. Embora me confessasse, não tenho perdão. Faz falta

arrependimento para obter a absolvição, devo rechaçar meu pecado, e isso não posso fazê-lo.

ficou em silêncio. Roger não sabia o que dizer. Um sacerdote houvesse dito algo como «Sim, meu filho?», mas ele não podia fazê-lo. Em troca, agarrou a mão do Alexandre e a apertou com força.

-Meu pecado foi amá-la -disse com muita suavidade- e isso não posso evitá-lo.

57 Um sorriso frustrado

-«Duas Lanças» está conforme. O assunto terá que falá-lo ante o Conselho e

tem que ser aceito, mas não acredito que haja problemas.

Jamie se apoiou no pinheiro com gesto de esgotamento. Fazia uma semana que estávamos na aldeia; ele tinha estado com o sachem da aldeia os últimos três

dias. Quase não o tinha visto e tampouco ao Ian. Tinha estado com as mulheres; estas eram amáveis mas distantes. Eu mantinha meu amuleto cuidadosamente escondido.

-Então, têm-no? -perguntei, e senti o nó de ansiedade que não conseguia afrouxar-. Roger está aqui?

Até o momento, os mohawks não tinham querido admitir se tinham ao Roger ali ou não.

-Bom, o velho descarado não quer admiti-lo por medo de que o libere. Mas

o têm aqui ou não muito longe da aldeia. Se o Conselho aprovar o trato, intercambiaremos o uísque pelo homem em três dias e iremos. —Lançou um

olhar às nuvens que cobriam as distantes montanhas-. Espero que isso que vem seja chuva e não neve.

—Crie que há alguma possibilidade de que o Conselho não aceite?

Suspirou profundamente e se passou uma mão pelo cabelo. Tinha-o solto sobre os ombros; era evidente que a negociação tinha sido difícil.

-Se, há-a. Querem o uísque, mas são cautelosos. Alguns dos anciões estão

em contra do negócio, por medo ao dano que o licor pode causar na tribo. Em troca os jovens estão todos de acordo. Há outros partidários de ficar o uísque e,

embora não o bebam por seus efeitos nocivos, utilizá-lo para negociar. -Todo isso lhe disse isso Wakatihsnore? Estava surpreendida. O sachem Atos Rápidos parecia muito frio e matreiro

para tanta franqueza. -Não, foi Ian. -Jamie sorriu ligeiramente—. O moço tem grandes condicione

como espião. conquistou todos os corações da aldeia e encontrado uma jovem a que gosta de muito. Lhe explicou o que opina o Conselho das Mães.

Abriguei-me com minha capa. Nossa posição entre as rochas nos isolava de

toda interrupção, mas fazia frio. -E o que é o que diz o Conselho das Mães?.

Uma semana com elas me tinha dado uma idéia da importância da opinião das mulheres na vida da aldeia. Embora não tomavam decisões diretas em assuntos gerais, muito poucas coisas se faziam sem sua aprovação.

-Querem que ofereça algum resgate distinto ao uísque e não estão seguras de querer ceder ao homem; mais de uma está encamada com ele. Não lhes importaria adotá-lo.

363

Jamie torceu a boca e eu, em que pese a minha preocupação, não pude

evitar uma gargalhada. -Roger é um moço muito arrumado -pinjente.

-Já o vi -disse cortante-. A maioria dos homens pensa que é um horrível bastardo peludo. É obvio, pensam o mesmo sobre mim. -Como conhecia o desgosto dos índios pelas barbas, barbeava-se todas as manhãs.-E sendo assim,

isso pode ser o que marcar a diferença. -O que, o aspecto do Roger? Ou o teu?

-O fato de que mais de uma dama queira ao sujeito. A amiga do Ian lhe há dito que sua tia acredita que podia ser perigoso ficar com o Roger, e que seria melhor devolvê-lo antes de que haja problemas entre as mulheres.

Esfreguei-me os lábios tratando de evitar a risada. -E os homens do Conselho sabem que há mulheres interessadas nele?. -Não acredito. por que?

-Porque se se inteirem-se o darão grátis. Jamie soprou, mas me olhou dúbio.

-Sim, talvez. Farei que Ian o mencione entre os jovens. -Disse-me que as mulheres querem que ofereçamos outra coisa em lugar de

uísque. Mencionou-lhe a opala a Atos Rápidos?

Jamie se mostrou interessado. -Sim, fiz-o. Não se teria surpreso mais se tivesse tirado uma serpente do

focinha!. ficaram muito nervosos, tanto pelo aborrecimento como pelo medo. Acredito que me teriam atacado se não fora porque já tinha mencionado o uísque.

Procurou em sua casaca e tirou a opala deixando-o cair em minha mão.

-Melhor que o você tenha, Sassenach, e que não o ensine a ninguém. -Que estranho -pinjente, olhando a pedra com seu petroglifo em forma de

espiral- Então para eles tem algum significado.

-OH, sim -afirmou-. Não posso te dizer qual, mas sim que não gostam de nada. O chefe guerreiro ordenou que lhe dissesse de onde a tinha tirado e lhe

disse que lhe tinha encontrado isso. Isso os acalmou um pouco, mas estavam agitados.

-por que quer que a eu tenha?

A pedra estava quente. -Como te disse, quando a viram se turvaram e se zangaram. Um par deles

fizeram um gesto para me golpear mas retrocederam. Observei-os com a pedra na mão e me dava conta de que tinham medo, de que não me tocariam enquanto a tivesse comigo.

Fechou meu punho sobre a pedra. -Guarda-a. Se houvesse algum perigo a sacas. -Você enfrentará a mais perigos que eu -protestei, tratando de lhe devolver

a pedra. -Não, agora que sabem que há uísque não me farão mal sem saber onde

está. -Mas por que vou estar eu em perigo? A idéia me turvava. As mulheres tinham sido cautelosas mas não hostis e

os homens da aldeia me desdenhavam totalmente. Jamie franziu o sobrecenho e olhou para a aldeia. De onde estávamos se

via muito pouco.

-Não lhe posso dizer isso Sassenach. Só que fui caçador e também caçado. Sabe o que se sente quando há algo estranho perto? Os pássaros deixam de

cantar e o ar fica imóvel. Há algo semelhante aqui. Acontece algo que não posso

364

ver. Não acredito que esteja relacionado conosco... e entretanto-.- sinto-me

incômodo -disse bruscamente-. E vivi muito para deixar a um lado essa sensação.

Ian se reuniu conosco e reforçou a opinião do Jamie. -Sim, é como sustentar o bordo de uma rede que está inundada na água. A

gente pode sentir os movimentos sem ver o pescado, mas sabe que está ali, embora não onde. -O vento despenteou seu cabelo castanho e as mechas lhe

tamparam a cara. O apartou com ar distraído-. Algo acontece entre a gente, algum desacordo. E algo aconteceu ontem à noite na Casa do Conselho; Emily não me quis responder quando lhe perguntei, só olhou para outro lado e me disse

que não tinha nada que ver conosco. Mas eu acredito que, de algum modo, está relacionado conosco.

-Emily?

Jamie arqueou uma sobrancelha e Ian sorriu. -Chamo-a assim porque é mais curto -disse-. Seu nome é

Wakyo'teyensnonhsa, que significa «A que trabalha com as mãos". A pequena Emily tem habilidade para esculpir. Olhem o que fez para mi.

Com orgulho, tirou de! bolso uma pequena lontra esculpida em talco

branco. O animal estava alerta, com a cabeça levantada; deu-me risada. -Muito bonito. -Jamie o examinou com aprovação—. Deve lhe gostar de

muito a essa moça, Ian. -Sim, bom, também eu gosto dela, tio -disse Ian com tom despreocupado,

mas suas bochechas se ruborizaram. Tossiu e trocou de lema-. Diz que acredita

que o Conselho poderia inclinar-se um pouco a nosso favor se lhes dermos a provar o uísque. Se estiver de acordo, procurarei um barril e esta noite faremos um pequeno ceilidh. Emily se encarregará de tudo.

Jamie arqueou as sobrancelhas e depois de um momento assentiu, -vou confiar em seu julgamento, Ian -disse-- Na Casa do Conselho?

Ian sacudiu a cabeça. -Não. Emily diz que será melhor fazê-lo na casa comunitária de sua tia, a

anciã Tewaktenyonh, a Mulher Bonita.

-Ao que...? -perguntei surpreendida. -A Mulher Bonita -explicou, limpando-a nariz com a manga- é uma mulher

com influencia sobre a aldeia que tem poder para decidir o que se faz com os cativos, e a chamam assim tenha o aspecto que tenha. Poderemos tratar de convencer a de que aceite nosso trato.

-Suponho que o cativo liberado a deve ver formosa -disse Jamie com ironia-. Bom, adiante então. Pode ir você sozinho a procurar o uísque?

Ian assentiu e se voltou para partir. -Espera um minuto, Ian -pinjente, e lhe mostrei a opala-. Pode lhe

perguntar ao Emily se souber algo sobre esta pedra?

-Sim, tia Claire, o perguntarei. Vamos, Cilindro!. Assobiou e Cilindro, que tinha estado farejando entre as rochas, saiu detrás

de seu amo. Jamie os observou com certa preocupação. -Sabe onde passa as noites Ian, Sassenach? -Se te referir à casa, sim. Se quer saber na cama de quem, não. Mas posso

imaginar o -Mmm. -endireitou-se e sacudiu a cabeça-. Vamos, Sassenach, quero que

retorne à aldeia.

365

O ceilidh do Ian começou pouco depois do anoitecer. Os convidados eram os

membros mais proeminentes do Conselho, quem foi chegando de um em um para oferecer seus respeitos ao sachem Duas Lanças, que estava sentado na fogueira

principal com o Ian e Jaime. Uma jovem bonita e magra, que supus era a Emily do Ian, estava detrás com o barril de uísque.

Com a exceção do Emily, as mulheres não intervinham na prova do uísque. Não obstante, aproximei-me de observar e me sentei ante uma das pequenas fogueiras para ajudar a duas mulheres com as cebolas, enquanto intercambiava

ocasionais frases amáveis em uma mescla de tuscarora, inglês e francês. A mulher ante cujo fogo me sentei me ofereceu cerveja e um preparado com

farinha de milho que aceitei com amabilidade, embora meu estômago estava fechado pelos nervos.

Jogávamo-nos muito naquela festa improvisada. Roger estava ali, em algum

lugar da aldeia. Isso sabia. Estava vivo e esperava que estivesse bem, ao menos o suficiente para viajar.

depois de que Duas Lanças dissesse algumas palavras, deu começo a festa.

A moça media as porções de uísque, não servindo-o em taças, a não ser tomando um gole e cuspindo-o em cada jarra antes das entregar aos homens.

Olhei de esguelha ao Jamie, quem por um momento pareceu surpreso, mas logo aceitou e bebeu sem vacilar.

Algo distraiu minha atenção, a chegada de um menino que se sentou ao

lado de sua mãe. A mulher o observou com preocupação. Pude ver que o menino tinha o ombro esquerdo deslocado e por isso se sentava torcido, fazendo gestos de dor.

Fiz-lhe um gesto à mãe, quem vacilou com o rosto carrancudo. O menino deixou escapar um gemido e ela o abraçou. Por uma inspiração repentina tirei o

amuleto do Nayawenne. A mulher não podia saber de quem era, mas sim o que era. E o fez, porque

seus olhos se abriram ao ver a bolsita de couro.

-Je sais une sorciere. C'est medique, a -pinjente docemente. «Confia em mim —pensei—. Não tenha medo».

O menino me olhou com os olhos muito abertos pelo assombro. As mulheres intercambiaram olhadas para fixar-se finalmente na anciã.

Enquanto seguia olhando ao menino, sorria-lhe e lhe apertava a mão com a

pedra, esperando a permissão da mãe. Uma vez que foi autorizada pela anciã, a mãe me entregou o menino.

Foi muito fácil colocar de novo a articulação. Era pequeno e o dano não era grave; era uma operação muito satisfatória pois a dor se aliviava imediatamente. Moveu o ombro, sorriu-me timidamente e me devolveu a pedra que lhe tinha

colocado na mão. Enquanto isso a festa avançava. Ian cantava em gaélico, desafinando

enquanto um par de índios lhe faziam coro.

Senti um olhar nas costas e me dava a volta para ver que Tewaktenyonh me observava desde seu site. Assenti e ela se inclinou para falar com uma de

quão jovens a rodeavam. A moça se levantou e se aproximou. -Minha avó pergunta se quer ir até onde está ela.

Surpreendi-me para ouvi-la falar em inglês, embora Onakara nos havia dito que alguns dos mohawk conheciam esta língua, mas que só o utilizavam por

necessidade.

366

Pu-me em pé e a acompanhei, me perguntando o que necessitaria a Mulher

Bonita. Eu já tinha minhas próprias necessidades, pensar no Roger e Brianna. A anciã me saudou, fez um gesto para que me sentasse e, sem me tirar os

olhos de cima, falou com sua neta. -Minha avó pergunta se pode ver sua medicina. -É obvio.

-É a esposa de Arbusto Ursos?. -Sim. Os tuscarora me chamam Corvo Branco -pinjente.

A moça se sobressaltou e traduziu rapidamente à anciã. A mulher me devolveu a pedra rapidamente. Logo falou com sua neta sem

deixar de me olhar.

-Minha avó tinha ouvido que seu homem também tem uma pedra brilhante. Quer saber mais sobre isso, como é e de onde a tirou.

-Pode vê-la -pinjente e, ante os olhos surpreendidos da moça, tirei a opala e

o tendi à anciã que o observou sem tocá-lo. «Ela o viu antes. Ou ao menos, sabe o que é», pensei. Não necessitei que a

moça fizesse de intérprete pois os olhos da anciã me fizeram claramente a pergunta.

-Como chegou a suas mãos? -era a pergunta que a jovem repetiu.

-Chegou-me em um sonho -pinjente, sem saber como explicá-lo melhor. A anciã suspirou. O medo não abandonava seu olhar, mas havia algo mais:

curiosidade, talvez? Disse algo e outra das mulheres se levantou e foi procurar um canasto que deixou ante ela. Esta começou a cantar com voz quebrada pela idade, mas ainda forte. esfregou-se as mãos ante o fogo e delas caíram umas

partículas de cor castanha que se converteram em fumaça que cheirava a tabaco. Tewaktenyonh falou com os olhos cravados em mim e a moça me traduziu. -me conte esse sonho.

Era verdadeiramente um sonho o que lhe ia contar, ou uma lembrança que revivia com a fumaça de um tronco ardendo? Não importava; tudas minhas

lembranças eram sonhos. Disse-lhe o que pude. A tormenta, meu refúgio no cedro avermelhado, a caveira enterrada com a pedra e o sonho, a luz na montanha e o homem com o rosto pintado de negro.

A anciã a Índia se inclinou com ar tão assombrado como sua neta. -Viu ao Portador do Fogo? -deixou escapar a moça—. Viu seu rosto?

Olhou-me como se eu pudesse ser perigosa. A anciã disse algo imperativo, com gesto de interesse. -Minha avó diz: pode dizer como era ele, que roupa levava?

-Nada. Um tanga. E ia pintado. -Pintado. Como? -perguntou a moça em resposta ao que disse sua avó. Descrevi o corpo pintado do homem com todo o cuidado que pude. Não foi

difícil; se fechava os olhos ainda podia vê-lo. -E seu rosto era negro, da frente até a mandíbula -terminei, abrindo os

olhos. Enquanto descrevia ao homem, meu intérprete se mostrou visivelmente

turvada e olhava com medo a sua avó. Quando terminei, a anciã permaneceu em

silêncio, com os olhos cravados em mim. Finalmente assentiu e agarrou o colar de contas que lhe pendurava das costas, que era sua árvore de família, o símbolo de sua função. Myers me tinha falado disso.

-Na festa do Milho Verde, faz muitos anos, um homem chegou do norte. Podíamos entendê-lo, mas falava de forma estranha e só nos disse que seu clã era

o da Tartaruga. Era um homem selvagem mas valente. Um bom caçador e um

367

guerreiro. A todas as mulheres gostava, mas não se atreviam a aproximar-se

muito. Os homens não eram tão cuidadosos, os homens nunca o são. Falavam, bebiam e fumavam com ele. Falava-lhes desde meio-dia até a noite e logo, ante as

fogueiras, falava da guerra e seu rosto era sempre feroz. Sempre a guerra. Não contra os da aldeia do lado, não. Terei que matar a todos os ou'seroni antes de

que fora muito tarde, dizia. Muito tarde para que?, perguntavam os homens. E para que a guerra, se não necessitarmos nada? Isso era antes dos franceses, sabe? É a última oportunidade, dizia-lhes. Eles seduzirão com o metal, com suas

facas e rifles, e nos destruirão. Matem agora ou eles lhes comerão. Meu irmão, que era o sachem, e meu outro irmão, que era Chefe guerreiro, disseram que

eram loucuras. Os brancos não comiam os corações de seus inimigos, nem sequer na batalha.

"Os jovens lhe escutavam. Eles escutam a qualquer que fale forte, mas os

anciões o olhavam com desconfiança e não diziam nada. Ele sabia -continuou a jovem e a anciã assentiu com firmeza-, sabia o que aconteceria, que os ingleses e os franceses foram lutar entre eles e pedir nossa ajuda. Tawineonawira, Dente de

Nutria, era seu nome, disse-me: você vive no momento. Conhece o passado, mas não olha ao futuro. Seus homens dizem: não necessitamos nada e não querem

mover-se. Não se dão conta de nada pela cobiça e a ociosidade. -Não é verdade, disse-lhe. Não somos ociosos, trabalhamos. E riu de mim,

mas seus olhos eram tristes. Não pode ver o bastante longe, disse-me. Perguntei-

lhe até onde podia ver e não me respondeu. Eu conhecia a resposta e me pôs a pele de galinha. Sabia muito bem até

onde podia ter visto e quão perigoso isso era.

-Mas nada do que eu dizia servia. Dente de Nutria se zangava cada vez mais. Um dia veio tudo pintado e dançou a dança da guerra e muitos Jovens o

seguiram. Meu irmão se reuniu na loja com o Conselho e decidiu que Dentes de Lontra devia deixar a aldeia. Que fizesse o que tivesse que fazer, mas que não íamos deixar que nos trouxesse a destruição. Causava problemas entre a gente e

devia partir. zangou-se mais que nunca e gritou coisas terríveis. Depois ficou muito quieto e nos assustamos. Sem comer e sem dormir seguiu falando durante

dois dias, logo se foi. Mas retornou outra vez. escondia-se no bosque e retornava de noite, magro e faminto, com os olhos brilhantes como uma raposa e não nos deixava dormir. Começamos a acreditar que tema em seu interior um espírito

maligno, até que meu irmão, o Chefe guerreiro, disse-lhe que devia ir-se ou o matariam.

A anciã fez uma pausa em sua história. -Era um estrangeiro, mas nunca soube. Acredito que nunca o entendeu. Um calafrio percorreu minhas costas. Um estrangeiro. Um índio por seu

rosto, por sua linguagem. Um índio com empastelamentos nos dentes. Não, ele não tinha entendido, ele tinha acreditado que eles eram seu povo. Sabendo o que trazia o futuro, tinha tratado de salvá-los. Como ia pensar que lhe fariam mal?

Mas o fizeram. Ataram-no a um poste no centro da aldeia e pintaram sua cara com carvão.

-O negro é para a morte; aos prisioneiros que vão matar sempre tosse pintam assim. Sabia isso quando te encontrou com o homem na montanha?

Neguei com a cabeça, muda.

Torturaram-lhe com paus afiados e com tições acesos. Suportou-o sem gritar e o deixaram pacote ao poste.

-Pela manhã se foi.

368

O rosto da anciã era indecifrável. Se lhe tinha gostado que aquele homem

escapasse ou não, era seu segredo. -Pinjente que não o seguissem, mas meu irmão disse que não era bom e

que retornaria. Uma partida de guerreiros saiu para buscá-lo; não foi difícil seguir o rastro de sangue. Perseguiram-no para o sul. Mas era forte e escapava. Durante quatro dias o seguiram e, finalmente, apanharam-no.

Viu a pergunta em meus olhos e assentiu. -Meu irmão, o chefe guerreiro, esteve ali e me contou isso.

Estava sozinho e desarmado, não tinha possibilidades e sabia. Um homem lhe golpeou a boca com uma lança mas seguiu falando, sangrando e com os dentes quebrados. Dizia que seríamos esquecidos, que não existiria a nação dos

iroqueses e que ninguém contaria nossas histórias. Que tudo o que tínhamos sido se perderia. Retornaram à aldeia, mas sua voz os seguia. De noite não podiam dormir e pelo dia ouviam gritos e gemidos. Até que, finalmente, meu

irmão disse que o homem era um bruxo. A anciã me olhou: eu havia dito que era uma bruxa. Traguei saliva e apertei

o amuleto que levava no pescoço. -Meu irmão disse que terei que lhe cortar a cabeça para que não falasse

mais. Um homem valente o faria e o enterraria longe. -Sorriu ligeiramente-. Esse

homem era meu marido. Enterrou a cabeça baixo as raízes do cedro vermelho e já não se ouviu a

voz. Meu marido retornou à aldeia e ninguém mais nomeou a Dentes de Lontra até o dia de hoje.

Traguei saliva e tratei de respirar profundamente. O círculo de bebedores se

tranqüilizou. Dois homens já estavam médio dormidos e outro se levantou cambaleando-se.

-E isto? -pinjente, mostrando a opala-. Tinha-o visto? Era dele?.

A anciã se inclinou para tocar a pedra mas não o fez. -Há uma lenda -disse a moça sem deixar de olhar a pedra—. As serpentes

mágicas levam pedras em suas cabeças. Se um arbusto uma e agarra a pedra, terá grande poder.

A anciã falou súbitamente assinalando a pedra. A moça repetiu.

-Era dela, chamava-a billé-bueltá. Olhei a intérprete e sacudiu a cabeça.

-Billé-bueltd -disse com claridade-. Não é uma palavra inglesa? Neguei com a cabeça. A anciã me olhou com ar pensativo.

-por que te falou? por que te deu isso? -Não sei -respondi, mas não pude dissimular minha expressão. Soube que

mentia, mas como lhe podia dizer a verdade? Podia lhe dizer acaso quem tinha sido Dentes de Lontra? Que suas profecias eram verdadeiras?

-Acredito que talvez era parte de mi... família -pinjente finalmente,

pensando no que Poliyanne me havia dito sobre os fantasmas dos antepassados de cada um. Não sabia se era antepassado ou descendente. Se não o era meu,

era-o de alguém como eu. -Ele te enviou para mim para ouvir isto. Estava equivocado –declarou com

confiança- Meu irmão diz que não devemos falar dele, devemos esquecê-lo. Mas

um homem não é esquecido enquanto fiquem outros dois baixo o céu. Um para contar a história e outro para ouvi-la.

Tocou minha mão, guardando-se de tocar a pedra.

-Eu sou uma. Você é a outra. Ele não foi esquecido.

369

Fez um gesto à moça para que fora a procurar comida e bebida.

Quando me levantei para retornar à moradia onde nos alojávamos, olhei para a festa. O terreno estava talher de corpos que roncavam. Jamie, Ian e a

moça já não estavam ali. Jamie me esperava fora. Seu fôlego cheirava fortemente a uísque e a

tabaco.

-Parece que te divertiu -pinjente, agarrando seu braço-. houve algum progresso ?

-Isso acredito. Saiu bem, Ian tinha razão; Deus lhe benza-disse, enquanto caminhávamos-. Acredito que estarão dispostos a fazer o trato. E você, Sassenach? Esteve falando com a anciã. Sabia algo sobre a pedra?

-Sim, vamos dentro e lhe contarei isso. Entramos. Eu tinha a opala bem apertada em minha mão. Eles não sabiam

por que o chamava billé-bueha, mas eu sim. O homem com empastelamentos nos

dentes, chamado Dentes de Lontra, tinha vindo a levá-los a guerra para salvar a nação. Eu sabia o que queria dizer billé-bueha. Era seu bilhete de volta sem usar.

Minha herança.

58 LordJohn retorna

River Run, março de 1770 Fedra me trouxe um vestido de seda amarela, com a saia muito ampla, que

tinha sido da Yocasta.

-Esta noite a companhia é melhor que a do velho senhor Cooper ou a do advogado Forbes -disse a pulseira com satisfação-. Vem um lorde de verdade. Que lhe parece?

-Que lorde? Não necessito que me ponha todo isso para ocultar minha barriga.

Fedra se endireitou para contemplar a Brianna entre as dobras de seda amarela.

-Não o necessita, né? -disse com tom reprobador-. Com uma barriga de seis

meses? No que está pensando? Acredita que vou deixar que se presente assim? -E que mais dá? Todo o condado sabe que vou ter um filho. Não me

surpreenderia que esse tal senhor Urmstone dissesse um sermão contra mía.

Fedra deixou escapar uma breve gargalhada. -Já o fez -disse-. Faz dois domingos. Mickey e Drusus estavam ali v lhes

pareceu divertido, mas sua tia não pensou o mesmo e enviou ao advogado Forbes para acusar o de calúnia; mas o ancião reverendo Urmstone lhe disse que não podia ser calunia o que era verdade.

Brianna contemplou à criada. -O que é o que disse sobre mim?

-Não queira sabê-lo -disse sombria-. Que todos saibam não é o mesmo a que ande exibindo a barriga, assim me deixe arrumá-la.

Brianna permitiu que a mulher a enfaixasse, prometendo-se a si mesmo

que se tiraria todo aquilo assim que partirá. Ao diabo com aquele lorde, quem quer que fosse.

—Quem é esse lorde que deve jantar? -perguntou pela terceira vez.

370

-É lorde John William Grei, da plantação do Mount Josiah, na Virginia. É

um amigo de seu pai, ou ao menos, isso é o que diz a senhorita Eu. Bom, já está. Por sorte tem um bonito peito; este vestido é especial para realçá-lo.

Brianna confiou em que isso não significasse que o vestido não lhe cobriria os seios que a vendagem lhe tinha levantado e pareciam apontar ao teto. Mas não foi essa preocupação o que lhe distraiu do bate-papo da Fedra, a não ser a frase

casual: «É um amigo de seu pai».

Yocasta nunca convidava a muita gente, mas aquela noite havia mais convidados que de costume: o advogado Forbes com sua irmã solteira; o senhor MacNeil e seu filho; o Juiz Alderdyce, sua mãe e um par de filhos solteiros do

Farquard Campbell- Nenhum era o lorde do que Fedra tinha falado. Brianna sorriu para si com amargura. «Deixa-os que olhem», pensou,

endireitando as costas.

Sua aparição foi recebida com tanta cordialidade que se envergonhou de seu cinismo. Eram homens e mulheres bondosos, incluída Yocasta, e a situação,

depois de tudo, não era culpa dela. Não obstante, desfrutou da expressão que o juiz tratou de ocultar ao ver

seu ventre. Yocasta poderia propor mas a mãe do juiz disporia, disso não cabia

dúvida. Brianna saudou a senhora Alderdyce com um doce sorriso. O senhor MacNeill ocultou uma careta de diversão e a saudou com uma

inclinação, perguntando por sua saúde sem amostras de desconforto. Quanto ao advogado Forbes, recebeu-a com sua acostumada suavidade e discreta profesionalidad.

-Ah, senhorita Fraser! -disse- Estávamo-la esperando. A senhora Alderdyce e eu discutíamos amigavelmente sobre um tema de estética. Você, com seu instinto para a beleza, poderá me dar sua valiosa opinião.

Agarrou-a do braço, afastando a do MacNeill, que arqueou uma sobrancelha, para conduzi-la até a chaminé. Em uma mesa havia quatro caixas

de madeira, cada uma com uma pedra preciosa colocada sobre veludo azul. -Estou pensando em comprar uma destas pedras –explicou Forbes- para

engastá-la em um anel. Enviaram-nas de Boston. -Sorriu a Brianna com evidente

satisfação por ter tirado um ponto na competência com o MacNeill-. Me diga, querida, qual delas prefere? A safira, a esmeralda, o topázio ou o diamante?

Pela primeira vez desde seu embaraço, Brianna sentiu náuseas. Sua cabeça parecia flutuar e lhe adormeciam os dedos. Safira, esmeralda, topázio, diamante. O anel de seu pai tinha um rubi. Cinco pedras de poder, os pontos do

pentagrama do viajante, a garantia de uma passagem segura. Para quantos? Sem pensá-lo pôs uma mão protetora sobre seu ventre.

deu-se conta da armadilha do Forbes. Deixava-a escolher e dava de

presente a pedra em público, forçando-a, acreditava ele, a aceitá-lo ou a rechaçá-lo protagonizando uma desagradável cena. Geraid Forbes não sabia nada sobre

mulheres, pensou Brianna. -Ah... não queria aventurar uma opinião sem ouvir antes a da senhora

Alderdyce -disse, obrigando-se a sorrir cordialmente à mãe do juiz, quem a olhava

entre surpreendida e agradecida pela deferência. A senhora Alderdyce estendeu seu dedo artrítico para a esmeralda e

explicou os motivos de sua eleição, mas Brianna não emprestava atenção. Um

súbito impulso selvagem se apoderou dela. Se dizia sim, agora, essa noite, enquanto ele ainda tênia as quatro pedras...

poderia enganá-lo, beijá-lo e roubar-lhe Sim, podia... E logo, o que? Escapar às

371

montanhas com as pedras? Deixar a Yocasta com a desonra e fugir como uma

benjamima? E como ia chegar às Antilhas antes de que nascesse o menino? Contou os meses mentalmente sabendo que era uma loucura, mas... podia fazê-

lo. As pedras brilhavam: tentação e salvação. Todos as olhavam entre

murmúrios de admiração.

Embora não o quisesse, o plano se desenvolvia ante seus olhos. Podia roubar um cavalo e dirigir-se ao vale Yadkin. face à proximidade do fogo sentiu

um calafrio. Podia esconder-se nas montanhas e esperar a que retornassem com o Roger. Estaria sacrificando sua única possibilidade de retornar, esperando a um homem que podia estar morto e que, se não o estava, podia rechaçar a seu

filho?. -Senhorita Fraser? Forbes esperava ansioso.

-São todas muito formosas -disse, surpreendida por sua própria frieza-, Mas não posso escolher nenhuma porque não sinto uma preferência especial

pelas pedras preciosas. Temo-me que meus gostos são muito simples. Captou um brilho de sorriso no rosto do MacNeill e o rubor no do Forbes. -Acredito que não devemos esperar mais para o jantar -murmurou Yocasta

em seu ouvido-. Se se atrasou lorde... Ulises apareceu naquele instante na porta, com. seu elegante librea. Com

voz melíflua disse: -Lorde John Grei, senhora. E se retirou a um lado.

Yocasta suspirou com satisfação e empurrou a Brianna para a figura esbelta que aguardava.

-Será sua companheira para o jantar, querida.

Brianna olhou para a mesa, mas as pedras preciosas já tinham desaparecido.

Lorde John Grei a surpreendeu. Tinha ouvido sua mãe falar dele: soldado,

diplomático e nobre; assim esperava um homem alto e imponente. Em lugar disso

se encontrou com um homem bastante mais baixo que ela, de compleição magra, com olhos grandes e belos e um rosto e uma pele que como únicos rasgos

masculinos tinham a firmeza da boca e a mandíbula. Pareceu assombrado ao vê-la; muita gente se surpreendia ante sua altura;

mas logo desdobrou seu encanto e falou sobre viagens, admirou os quadros que

Yocasta tinha no comilão e lhes transmitiu as notícias que tinha sobre a situação política da Virginia. Mas não mencionou a seu pai e Brianna se sentiu agradecida por isso.

Brianna os ouvia falar e pensava que eram todos escoceses, bons mas práticos. Yocasta a queria, mas era evidente que pensava que seguir esperando

era uma loucura. por que sacrificar a possibilidade de um bom matrimônio sólido e respeitável pela esperança do amor?

O mais terrível era que ela também sabia que era uma loucura. Se seus

pais voltavam Y... e Roger não vinha com eles... Possivelmente não encontrassem aos índios que o tinham levado. Ou o faziam e resultava que Roger tinha morrido pelas torturas infligidas ou por alguma enfermidade. Ou se negava a retornar

porque não desejava voltar a vê-la. Ou retornava pelo absurdo sentido da honra escocesa, decidido a aceitá-la, mas odiando-a durante o resto de sua vida. Ou

retornava, via o menino Y... Ou não retornava nenhum deles e ela viveria ali, para

372

sempre, só com sua culpa, atada por um cordão umbilical podre pelo peso morto

daquele menino. -Senhorita Fraser? Senhorita Fraser, encontra-se bem?

-Não muito -respondeu-. Acredito que me vou deprimir. E o fez, arrastando porcelana e toalhas em sua queda.

Tudo tinha trocado outra vez, pensou, rodeada do afeto e a preocupação da gente. Quando finalmente a deixaram sozinha, a verdade apareceu em sua

mente. Era o momento de chorar por todas suas perdas: por seu pai e seu apaixonado, por sua família e sua mãe, pela perda do tempo, do lugar e de tudo o que deveu ser e nunca seria.

Mas não podia chorar. Tentava-o sem consegui-lo. Bom, ela também era meio escocesa, murmurou para se. E também era teimosa. Eles retornariam, todos, sua mãe, seu pai e Roger.

A porta se abriu e apareceu a silhueta da Yocasta. -Brianna?

-Estou aqui, tia. Yocasta entrou na habitação, seguida por lorde John e Ulises, com uma

bandeja com o chá.

-Como está, criatura? Faço chamar o doutor Fentiman? Passou uma mão pela frente da Brianna.

-Não! -Conhecia-o e não gostava-. Né... não, obrigado. Já estou bem. Foi só um enjôo

-Ah, bom. -Yocasta se voltou para lorde John-. Lorde John parte amanhã

ao Wilmington e queria despedir-se, se se sentir bem. -Sim, é obvio. sentou-se e apoiou os pés no chão. Sua tia devia estar desiludida, mas

podia ser amável. Ulises deixou a bandeja e saiu detrás de seu Yocasta deixando-os sozinhos.

Sem esperar convite, agarrou uma banqueta e se sentou. -Está bem, senhorita Fraser? Não queria vê-la desabar-se entre as taças de

chá.

Sorriu e Brianna se ruborizou. -Estou bem -disse cortante-. Tinha algo que me dizer?

Não lhe surpreendeu sua brutalidade. -Sim, mas pensei que talvez preferiria que não o fizesse diante de todos.

Tenho entendido que está interessada no paradeiro de um homem chamado

Roger Wakefield. -Se. Como sabe-.? Sabe onde está? -Não. -Viu que o rosto da jovem trocava e lhe agarrou uma mão-. Não, sinto

muito. Seu pai me escreveu faz uns três meses me pedindo ajuda para encontrar a esse homem. Lhe ocorreu que podia haver-se embarcado e me ocupei de

averiguá-lo. Sentiu uma onda de remorso ao dar-se conta de tudo o que tinha feito seu

pai para encontrar ao Roger.

-Não está em nenhum navio. surpreendeu-se ante a segurança da Brianna. -Não encontrei provas de que estivesse entre o Jamestown e Charleston.

Mas amanhã viajo ao Wilmington; cabe a possibilidade de que tenha subido a bordo sem que o registrassem até chegar a porto.

-Não é necessário que vá- Sei onde está.

373

Em poucas palavras lhe narrou os fatos.

-Jamie, seu pai, quer dizer, seus pais foram resgatar a esse homem dos iroqueses?

Sem perguntar serve duas taças de chá e lhe entregou uma -Sim, eu queria ir com eles, mas... -Sim, já vejo -disse com delicadeza. Olhou de esguelha seu ventre e tossiu-.

Suponho que há certa urgência em encontrar ao senhor Wakefield. Brianna riu sem nenhuma alegria.

-Posso esperar. Pode me dizer algo, lorde John? ouviu falar alguma vez de um matrimônio de palavra?

-Sim -disse lentamente-. Um costume escocês: um matrimônio temporário,

não é assim? -Sim. O que quero saber é se aqui é legal. Lorde John se esfregou o queixo com gesto pensativo.

-Não sei -disse finalmente-. Nunca o considerei do ponto de vista da lei. Mas a qualquer casal que convive como marido e mulher lhes pode considerar

um matrimônio, segundo o direito consuetudinário. Acredito que o matrimônio de palavra pode ser um caso similar.

-Poderia ser, salvo que nós, obviamente, não vivemos juntos -disse

suspirando-. Eu acredito que estou casada, mas minha tia não. Segue insistindo em que Roger não retornará, ou que embora o faça, não estou legalmente unida a

ele. Inclusive para o costume escocês, não estou ligada a ele mais que por um ano e um dia. Quer me escolher um marido e a fé que o está tentando. Quando me anunciaram sua chegada, pensei que se tratava de outro candidato.

Lorde John pareceu divertir-se ante a idéia. -Ah, isso explica os convidados ao jantar. Esse Juiz, Alderdyce, parecia

muito interessado em você.

-Não lhe servirá de muito -disse Brianna com desprezo—. Teria que ter visto as olhadas que me lançava a senhora Alderdyce. Ela não permitirá que seu

corderito, que deve ter como quarenta anos, perca-se com a rameira local. Acredito que não lhe deixará voltar.

Grei sorriu zombador e se levantou para servir uma taça de xerez.

-Ah! Bom, embora admire sua estratégia, senhorita Fraser, lamento lhe informar de que suas táticas não servem para o terreno que escolheu.

-O que quer dizer com isso? -A senhora Alderdyce- Eu também me fixei em como a observava durante a

velada. Mas me temo que você entendeu mal suas intenções. Não a olhava com

ultrajada respeitabilidade, a não ser com cobiça. Brianna se endireitou em seu assento. -Como?

-Cobiça de abuelita. Já sabe, o desejo de uma mulher maior de ter um neto em suas saias. -levou-se a taça até o nariz e cheirou-. Que delícia. Faz dois anos

que não provo um xerez decente. -Então, a senhora Alderdyce pensa que... que como posso ter filhos poderei

lhe dar netos? Mas isso é ridículo! O juiz pode escolher qualquer moça sã e de

bom caráter —acrescentou com ironia- e estar seguro de que terá filhos. -Bom, não. Acredito que ela sabe que seu filho não pode, ou não quer, que

para o caso é o mesmo. -Olhou-a com seus olhos celestes sem pestanejar-. Você

mesma o disse, tem quarenta anos e é solteiro. -Quer dizer...? Mas é um juiz!

deu-se conta da tolice de sua exclamação e Grei riu.

374

-É o mais provável. Você tem razão, poderia escolher a qualquer moça. Mas

não o fez... Acredito que a senhora Alderdyce se deu conta de que casar a seu filho com você é a melhor e talvez a única possibilidade de ter o neto que tanto

deseja. -Maldição! Estou condenada. Casarão-me com qualquer, faça o que faça! -me permita duvidar disso -disse com um sorriso-. Por isso vi, você tem a

brutalidade de sua mãe e o sentido da honra de seu pai. E todo isso será suficiente para preservá-la.

-Não me fale do sentido da honra de meu pai -disse cortante—. O me meteu nesta confusão!

-Impressiona-me -disse com amabilidade e muita calma.

-Sabe perfeitamente que não é isso o que queria dizer! -Minhas desculpas, senhorita Fraser -disse, escondendo um sorriso-.

Então, o que queria dizer?

-Referia a este problema em especial, que me ofereçam como se fora um gatinho para que alguém me recolha. E a que me tenha deixado sozinha aqui —

terminou, com voz inesperadamente tremente. -por que está sozinha aqui? Pensei que sua mãe poderia haver... -Ela queria, mas não a deixei. Porque ela,.. o que passa é que ele... Isto é

uma confusão! Deixou cair a cabeça entre as mãos, a ponto de chorar.

-Já vejo. É muito tarde e, se me perdoar a observação, precisa descansar. levantou-se e lhe pôs uma mão nas costas. Foi um gesto amistoso e não

condescendente, como o tivesse sido de outro homem.

-Como parece que minha viagem ao Wilmington é desnecessário, acredito que vou aceitar o amável convite de sua tia e ficarei aqui uns dias. Voltaremos a falar e talvez encontremos algum paliativo a sua situação.

59 Chantagem

A poltrona-privada era um magnífico móvel de mogno, muito adequado

para uma fria noite de chuva como aquela. Brianna se levantou meio dormida e se sentou aliviando sua bexiga com prazer.

antes de voltar-se para deitar, deteve-se ante a cama enrugada para olhar a beleza das colinas. Os cristais da janela estavam gelados; não nevava, mas era uma noite terrível. O que fariam nas montanhas? Teriam encontrado ao Roger?

estremeceu-se e sentiu o irresistível desejo de voltar para a cama quente, mas se dirigiu para a porta e agarrou sua capa.

As urgências do embaraço faziam necessário que usasse a poltrona em sua

habitação, mas tinha decidido que enquanto ela pudesse caminhar nenhuma criada tiraria seu bacinilla. abrigou-se com a capa, tirou o recipiente da poltrona

e saiu ao corredor. A chuva geada castigou seu rosto e a fez ofegar. Uma vez passado o primeiro impacto do frio começou a desfrutar; o vento era lhe vivifique e a fez sentir liviana pela primeira vez desde fazia meses. Esvaziou a bacinilla no

privada e deixou que se limpasse com a chuva. sacudiu-se o cabelo molhado como se fora um cão, até que um brilho de luz a fez deter-se.

Uma porta da quadra dos escravos se abriu um momento e logo se fechou.

Vinha alguém? Pôde ouvir passos sobre o cascalho e se escondeu entre as sombras. Quão último queria era ter que explicar sua presença ali.

375

A luz o iluminou ao passar. Era lorde John Grei, em mangas de camisa e

sem chapéu, com o cabelo revolto pelo vento, sem preocupar-se com o frio passou sem vê-la e desapareceu pela entrada da cozinha. Ao dar-se conta de que corria

perigo de ficar fora, correu atrás dele. Estava fechando a porta quando ela a empurrou e entrou precipitadamente na cozinha. Lorde John a contemplou com incredulidade.

-Bonita noite para passear -disse Brianna sem fôlego. E com uma cordial saudação, passou por diante de Grei e subiu a escada, deixando os rastros de

seus pés descalços no chão de madeira lustrada. Já em seu dormitório se secou o cabelo e a cara e se deitou nua na cama.

Repassou todo o ocorrido, até que os pensamentos que flutuavam em sua mente

durante aqueles dias adquiriram uma forma racional. Tinha que haver-se dado conta antes, pensou. Já se tinha encontrado com essa indiferença em uma oportunidade, em um companheiro de quarto de um noivo ocasional. Mas lorde

John sabia ocultá-lo muito bem. Nunca o tivesse adivinhado de não havê-lo visto aquela noite saindo tão entusiasmado das dependências dos serventes.

perguntou-se se seu pai saberia, mas rechaçou tal possibilidade. depois de sua experiência na prisão do Wentworth, não era possível que fora amigo de lorde John sabendo a verdade.

Caminhou nua pela habitação e se deteve ante a janela acariciando seu volumoso ventre. Logo seria muito tarde. Quando eles se foram, sabia que já era

muito tarde, e sua mãe também. Não tinham querido admiti-lo e fingiram que Roger chegaria a tempo para viajar juntos até A Espanhola e encontrar o passo através das pedras. Estavam a princípios de março. Talvez lhe faltavam três

meses, possivelmente menos. A viagem até a costa lhes levaria uma ou duas semanas. E quanto demorariam até as Antilhas? Duas semanas, três? Estariam no fim de abril e ainda teriam que encontrar a cova, o que supunha uma viagem

lenta e perigosa através da selva, grávida de mais de oito meses. Isso se estivesse Roger. Mas não estava. Estava convencida de que se não pensava nas diferentes

forma em que teria podido morrer Roger, este não estaria morto. Esse era um artigo de sua teimosa fé; os outros eram que Roger não morreria e sua mãe chegaria a tempo, antes de que nascesse o menino. Quanto a seu pai, a ira a

invadia cada vez que pensava nele; nele ou no Bonnet; assim tentava pensar o menos possível neles.

É obvio que rezava, mas seu caráter não era apropriado para rezar e esperar, estava feita para a ação. Se tivesse podido ir com eles em busca do Roger... mas não a tinham deixado escolher. Só tinha tomado uma decisão, tinha

eleito ficar com seu filho e agora deveria viver com as conseqüências. estremeceu-se pelo frio e se aproximou da chaminé. O calor a acariciou como uma mão, e centrou sua mente na lembrança do Roger e a ternura de suas carícias.

(“Desejaria ver seu rosto para saber o que sente e se o fizer bem. Você gosta assim? me diga, Bri, me fale...”) Ela também o tinha acariciado, explorando seu

corpo, e havia sentido toda a força do poder do Roger e o temor à penetração se transformou em aceitação e recebimento para romper a última membrana que os separava, unindo-os para sempre em uma corrente de suor, sangue e sêmen.

levantou-se e se dirigiu à cama. deixou-se cair como um animal ferido, tampou-se e ficou com as mãos sobre o ventre, protegendo ao menino. Sim, era muito tarde. Devia deixar a um lado sensações e desejos, amor e fúria. Tema que

tomar decisões.

376

Demorou três dias em convencer-se das virtudes de seu plano, sobrepor-se

a seus próprios escrúpulos e encontrar o momento e o lugar para lhe falar a sós. Quando chegou sua oportunidade, levava um vestido azul que fazia jogo

com seus olhos. Com o coração palpitante se dirigiu para sua vítima. Encontrou-o na biblioteca, lendo as Meditações de Marco Aurelio. Levantou a vista ao vê-la

entrar e se aproximou para saudá-la. «Um hipopótamo o faria com mais graça», pensou Brianna recolhendo-a saia para não se chocar contra uma mesita.

-Não, obrigado, não quero me sentar- Perguntava-me se não quereria me

acompanhar a dar um passeio. Fazia muito frio, mas lorde John era um cavalheiro. -Nada eu gostaria mais -assegurou com galanteria e abandonou a Marco

Aurelio sem vacilação. Era um dia radiante mas muito frio. Bem abrigados com as capas se

dirigiram à horta, onde a perto os protegia do vento. -Tenho uma proposição que lhe fazer -disse finalmente Brianna. -Estou seguro de que, provindo de você, será algo encantado.

-Bom, não sei. Mas lá vai. Quero que se case comigo. Lorde John seguiu sonriendo. Era evidente que acreditava que se tratava

de uma brincadeira. -Digo-o a sério -disse Brianna. O sorriso se alterou. Brianna suspeitou que tratava de reprimir uma

gargalhada. -Não quero seu dinheiro –lhe assegurou-. Estou disposta a assiná-lo e não é

necessário que vivamos juntos, embora acredite que seria uma boa idéia que vá a

Virginia com você, ao menos durante um tempo. Quanto ao que posso fazer por você... -Vacilou, porque sabia que essa era a parte mais fraco do trato-. Sou forte,

mas isso não significa nada para você, porque tem suficientes serventes. Sou uma boa administradora, posso levar as contas e acredito que posso me fazer carrego da propriedade que tem na Virginia enquanto você está na Inglaterra. Y...

você tem um filho, não? Eu lhe cuidaria e seria uma boa mãe para ele. Lorde John se ficou imóvel durante o discurso.

-Deus dos céus. O que terá que ouvir! -Olhou-a diretamente aos olhos-. Está você louca ou é o embaraço?

-Não -respondeu, tentando conservar a compostura- Me escute, lorde John.

Não estou louca, não sou uma frívola e não quero lhe causar nenhum inconveniente, mas falo muito a sério.

sentia-se mau, mas tinha que fazê-lo. Tivesse desejado evitá-lo, mas era

impossível. -Se não aceitar casar-se comigo, verei-me obrigada a lhe delatar.

-Que fará o que?. Sua máscara de urbanidade tinha desaparecido e a olhou intrigado. -Sei o que fazia a outra noite nas dependências dos escravos. O contarei a

todos: a minha tia, ao senhor Campbell e ao delegado. Escreverei cartas ao governador, e ao da Virginia também. Aqui levam aos p... pederastas à armadilha,

o senhor Campbell me contou isso. As sobrancelhas de Grei se juntaram em uma só linha muito magra. -Deixe de me ameaçar, por favor.

Agarrou-a do cotovelo com firmeza e a obrigou a afastar-se da casa. Não falou até que estiveram em um rincão protegido.

377

-Estou um pouco tentado de aceitar sua ultrajante proposição-disse

finalmente, com uma careta-. Com segurança agradaria a sua tia. Mas ultrajaria a sua mãe. E ensinaria a você a não jogar com fogo, isso o asseguro.

O brilho dos olhos de lorde John a fez duvidar de suas conclusões sobre suas preferências. apartou-se um pouco dele.

-Pois não tinha pensado que,.. que você podia... homens e mulheres, quero

dizer. -Estive casado -assinalou com certo sarcasmo.

-Sim, mas pensei que tinha sido um matrimônio como o que lhe estou propondo. Um acerto formal. Isso é o que pensei quando me dava conta de que você... -interrompeu-se com um gesto de impaciência-. Está-me dizendo que

gosta de deitar-se com mulheres? Lorde John arqueou uma sobrancelha. -Isso trocaria seus planos?

-Bom... -disse insegura-. Sim, trocaria-os. De havê-lo sabido, não o tivesse sugerido.

-Diz sugerido -murmuro-. Denúncias públicas? A armadilha? Sugerido? -Sinto muito, não o teria feito. Quando riu, não sei, mas nunca lhe

houvesse dito uma palavra a ninguém. Se queria deitar-se comigo não poderia me

casar com você, não estaria bem. Grei fechou os olhos e esperou um instante. Logo a olhou.

-Porquê não? -Pelo Roger. -E lhe quebrou a voz— Maldição! Nem sequer queria pensar

nele! -secou-se uma lágrima com fúria—. Além disso, agora choro por algo.

-Eu não diria que isto é algo -disse secamente. Respirou profundamente. Ficava uma última carta que jogar. -Se lhe gostarem das mulheres-, eu não posso, não quero me deitar com

você. E não me importaria que o fizesse com outros homens ou mulheres. -O agradeço -murmurou, mas Brianna fez caso omisso e seguiu falando,

-Mas pode querer ter um filho próprio, não estaria bem privar o desse direito. Eu poderia lhe dar um filho, todos dizem que estou feita para a maternidade. Poderíamos pôr isso no contrato, o senhor Campbell pode fazê-lo.

Lorde John se esfregou a nuca como se lhe doesse a cabeça. Logo a agarrou do braço.

-Venha a sentar-se, criatura -disse com calma-. É melhor que me diga o que é o que quer.

-Não sou uma criatura -disse.

-Não, não o é. Deus ajude a ambos. Mas antes de que faça que Campbell tenha um ataque de apoplexia com sua idéia do contrato matrimonial, rogo-lhe que se sente comigo e pensemos juntos.

sentaram-se, mas Brianna não podia ficar quieta, assim começaram a caminhar de novo, um ao lado do outro, sem tocar-se.

-Estive pensando e pensando e não me ocorria nada. dá-se conta? Minha mãe e P estão longe. Pode-lhes ocorrer algo e ao Roger pôde ocorrer de tudo. E eu estou aqui, engordando cada dia mais. E não há nada que possa fazer!

Olhou-o e se secou o nariz. -Não estou chorando -assegurou, embora o estava. -É obvio que não. -Agarrou-lhe a mão e a apoiou em seu braço-O cria ou

não, esperar é tudo o que pode fazer em seu estado. por que não pode esperar até ver se a busca de seu pai tem êxito? É seu sentido da honra o que lhe impede de

ter um filho sem pai?

378

-Não é minha honra. É o seu, o do Roger. O me seguiu; deixando-o tudo,

quando devi buscar a meu pai. Mas quando souber isto -tocou-se o vientre,se- quererá casar comigo e não posso deixar que o faça.

-por que não? -Porque lhe amo- Não quero que se case comigo por obrigação. Tenho-o

decidido.

-Já vejo. Bom, estou de acordo com sua tia quanto a que necessita um marido. Mas por que eu? É por meu título, ou por minha riqueza?

-Por nenhuma das duas coisas. Era porque estava segura de que não gostava das mulheres -disse, olhando-o com ingenuidade.

-Eu gosto das mulheres -disse irritado-. Admiro-as e as respeito, e por

várias tenho um considerável afeto, entre elas, sua mãe, embora duvide que seja um sentimento recíproco. Entretanto, não encontro prazer na cama com elas. fui bastante claro?

-Se. É o que pensei. dá-se conta de que não seria correto me casar com o MacNeill ou com qualquer desses homens? Teria que prometer algo que não

posso dar. Mas você não o quer, assim não vejo razão para que não possa me casar com você.

-Entretanto a há, e muitos.

-Quais? -Por nomear alguma, seu pai me romperia o pescoço.

-por que? -quis saber com rosto carrancudo-. Diz que você é um de seus melhores amigos.

-Sinto-me honrado por sua estima. Entretanto, essa estima desapareceria

assim que Jamie Fraser descobrisse que sua filha serve de algema a um degenerado sodomita.

-E como ia descobrir o? Eu não o diria. -encontrou-se com o olhar ofendido

de Grei e de repente começou a rir. O não pôde menos que imitá-la-. Bom, sinto muito, mas você o disse.

-Se, claro, eu o disse. -Tratou de secá-la nariz, mas não tinha lenço-. Maldição, onde está meu lenço? Disse-o porque é verdade. E quanto a seu pai, sabe muito bem.

-Sabe? -Pareceu muito surpreendida-. Mas eu pensei que ele nunca... Uma das criadas da cozinha apareceu no pomar. Lorde John ficou em pé e

lhe deu a mão. Seguiram caminhando até um banco de pedra mais afastado. -O que era isso de me ensinar a não jogar com fogo? O que queria dizer com

isso?

-Nada. Agora lhe tocou ruborizar-se a ele. -Nada, né? Se alguma vez ouvi uma ameaça, foi essa. Suspirou e se secou

com o lenço que Brianna lhe tinha dado. -Foi sincera comigo, muito franco, assim que lhe responderei. Sim,

suponho que era uma ameaça. Você é igual a seu pai, não se dá conta? Olhou-o com as sobrancelhas franzidas, sem entender. Até que o

contemplou assombrada.

-Você não... P não! Ele não! -Não -disse, com secura lorde John-. Ele não. E não posso me aproveitar de

seu parecido com ele, a ameaça foi semelhante a que você me fez ao dizer que o

contaria a todos. -Onde conheceu meu pai? -perguntou com curiosidade.

-Na prisão. Sabia que esteve na prisão depois do levantamento?

379

Brianna assentiu.

-Bom, digamos que senti um afeto especial pelo Jaime Fraser durante vários anos. -Suspirou-. E você vem com seu inocente corpo, um reflexo de sua

carne, e me oferece um filho que mesclaria meu sangue com a do Jamie. E tudo porque sua honra não a deixa casar-se com o homem que ama nem amar ao homem com o que se case. -agarrou-se a cabeça com as mãos e continuou-.

Criatura, você faria chorar a um anjo e Deus sabe que eu não sou um anjo. -Minha mãe pensa que sim.

Contemplou-a assombrado. -Que pensa o que? -Bom, talvez exagere, mas diz que você é um homem bom. Acredito que a

seu pesar você gosta, agora a entendo. Ela deve conhecer seus... sentimentos sobre...

ruborizou-se e tossiu.

-Diabos -murmurou-. Maldição. Sim, ela sabe. Embora não estou seguro de por que me olhe com suspicacia. Ciúmes não podem ser.

-Acredito que é porque tem medo de que você lhe faça mal -disse Brianna-. Tem medo por ele.

Observou-a atônito.

-lhe fazer danifico? Como? Acredita que o vou submeter e lhe fazer cometer depravações indignas?

-Alguma vez viu meu pai sem camisa? -refere-se às cicatrizes das costas? Brianna assentiu.

-Sim, vi-as. As fiz eu. ficou pálida e o olhou com os olhos muito abertos. -Não todas. Tinham-no açoitado antes, o que fazia que tudo fora pior,

porque ele sabia o que fazia. -Fez... o que?

-Eu era o comandante da prisão do Ardsmuir. O disse? Não, suponho que não. Ele era um oficial, um cavalheiro. O único oficial que havia ali. Comíamos juntos em meu escritório. Jogávamos xadrez, falávamos de livros, tínhamos

interesses comuns e nos fizemos amigos. E logo... deixamos de sê-lo. ficou em silêncio.

-Quer dizer... que o fez açoitar porque não quis... -Não, maldição, não! Como se atreve a pensar algo assim? -Mas você disse que o tinha feito!

-Ele o fez. -Mas a gente não pode açoitar-se a si mesmo. -Ao diabo com que não se pode. Por isso me contou, você o vem fazendo há

meses. -Não estamos falando de mim.

-É obvio que sim. -Não, não é assim! Que diabos quer dizer com que ele o fez? -O que estou fazendo aqui? Devo estar louco para falar com você disto.

-Não me importa se estiver louco ou não. me diga o que aconteceu! Apertou os lábios e, por um momento, Brianna acreditou que não ia falar. -Fomos amigos. Então... descobriu o que sentia por ele e por sua eleição

deixamos de sê-lo. Mas isso não foi suficiente para ele e deliberadamente procurou um final drástico. Mentiu durante uma requisição na quadra dos

380

prisioneiros: declarou que uma parte de tartán era dele. Ia contra a lei, ainda está

proibido em Escócia. Suspirou profundamente e seguiu falando sem olhá-la.

-Eu era o comandante, o encarregado de fazer cumprir a lei. Estava obrigado a açoitá-lo e ele o sábia. Podia perdoar que não me quisesse -disse com amargura-, Mas não podia lhe perdoar por me obrigar a lhe fazer isso. Não só me

forçou a machucá-lo, mas também também a humilhá-lo. Não se limitou a não aceitar meus sentimentos, mas sim os destruiu. Era muito para mim.

-Havia uma razão. Não era por você, mas deve contar-lhe ele. Entretanto, você o perdoou. por que?

-Tive que fazê-lo. Odiei-lhe todo o tempo que pude. Mas então me dava

conta de que querê-lo formava parte de mim e era uma de meus melhores parte. Não importava que ele não pudesse me amar, isso não tinha nada que ver. Mas se não o perdoava não poderia amá-lo, e isso me fazia falta. -Sorriu fracamente-.

Assim já vê, foi por egoísmo. Oprimiu-lhe a mão, ficou em pé e a ajudou a levantar-se.

-Vamos, querida Nos congelaremos se ficamos mais tempo aqui. Caminharam muito juntos e em silencio para a casa. Quando chegaram à

horta Grei começou bruscamente a falar.

-Acredito que tem razão. Viver com alguém ao que se ama, sabendo que tolera a relação por obrigação..., não, eu tampouco o faria. Mas se for um assunto

de conveniência e respeito por ambas as partes, então sim, um matrimônio assim é honorável. Sempre e quando ambas as partes sejam sinceras e não haja motivo de vergonha.

-Então, aceita minha proposta? Não sentiu o alívio esperado. -Não. Pude perdoar ao Jamie Fraser no passado, mas ele nunca me

perdoará se me caso com você. -Sorriu e lhe apertou a mão-. Mas acredito que posso lhe dar uma pausa com seus pretendentes e com sua tia.

Olhou para a casa e continuou: -Acredita que alguém nos está observando? -Eu apostaria a que fui-dijo Brianna.

-Bem. -tirou-se o anel de safira que levava e lhe agarrou a mão. Logo o colocou ceremoniosamente no dedo mindinho da jovem, o único no que lhe

entrava, ergueu-se e a beijou nos lábios. Sem lhe dar tempo a recuperar-se da surpresa, agarrou-a da mão e se voltou para a casa-. Vamos, querida -disse-. Anunciemos a todos nosso compromisso.

60 Julgamento pelo fogo

Deixaram-nos sotos durante todo o dia. O fogo se apagou e não ficava

comida. Não importava, nenhum dos dois tinha fome e nenhum fogo poderia esquentar a alma geada do Roger.

Os índios retornaram ao entardecer. Vários guerreiros escoltavam a um

ancião com o rosto pintado de vermelho e vestido com uma capa; o sachem levava um recipiente com líquido negro.

Alexandre estava vestido e ficou em pé, sem falar. O sachen começou a cantar enquanto pintava de negro a cara do sacerdote. Os índios se retiraram e o sacerdote se sentou com os olhos fechados. Roger tratou de lhe falar, de lhe

381

oferecer água ou companhia, mas Alexandre não respondeu. Até que, finalmente,

falou. -Não fica muito tempo -disse brandamente-. Antes lhe pedi que rezasse por

mim, não sabia se por minha alma ou por meu corpo. Agora sei que nada disso é possível. Só há uma coisa que quero lhe pedir. Reze por mim, irmão, para que possa morrer em silêncio. Não quero envergonhá-la a ela gritando.

Pouco depois de obscurecer, os tambores começaram a soar. Roger não os tinha ouvido antes na aldeia. Era impossível dizer quantos eram; o som parecia

vir de todas partes. Os mohawk retornaram. Quando entraram, o sacerdote ficou em pé imediatamente. despiu-se ele mesmo e saiu, nu e sem olhar atrás.

Roger ficou rezando e escutando. Sabia o que podia fazer um tambor, ele

mesmo o tinha feito: evocar o temor reverente e a fúria com os golpes, chegando aos mais profundos e ocultos instintos dos que escutavam. Entretanto, o saber o que acontecia não o fazia menos terrorífico.

de repente os tambores se detiveram. Logo começaram outra vez; uns poucos golpes e cessaram. Houve gritos e uivos. Roger tentou espiar através da

porta, mas o guarda que estava ali levantou a lona e lhe fez gestos ameaçadores com a lança.

Então pareceu como se todos os demônios do inferno estivessem soltos. O

que acontecia? Uma luta terrível, isso era evidente. Mas entre os quais e por que? Depois da primeira gritaria baixou o nível dos uivos; ouviam-se chiados

individuais e toda classe de ruídos e gemidos que indicavam um combate violento. Algo golpeou a choça, abrindo uma fissura. Roger olhou para a porta. O guarda não o observava, assim alargou o buraco com os dedos para poder olhar.

O único visível era um estreito espaço no claro central, onde destacava a enorme fogueira. Umas sombras avermelhadas e amareladas lutavam contra outras negras como se fossem demônios ferozes. Alguns dos demônios eram

reais; duas figuras escuras passaram lutando abraçadas. Mais figura cruzaram sua linha de visão correndo para o fogo. ficou rígido em meio dos

incompreensíveis uivos; podia jurar que alguém tinha gritado em gaélico. "Caisteal DhunU”, gritou alguém nas imediações, e depois ouviu um guincho. Escoceses, homens brancos! Tinha que chegar até eles! Roger golpeou a parede

de madeira tentando abrir-se passo com os punhos. Outra voz em gaélico. E outra. E logo a primeira, que lhe respondia: "Dou

meu! Dou meu!». A mim! A mim! Logo ouviu uma série de gritos dos índios e vozes de mulheres, pois eram mulheres quem gritava agora. Suas vozes eram mais

force que as dos homens. Roger tentou várias vezes romper a parede sem resultado. Não havia nada

ali que pudesse usar como arma, nada. Em seu desespero, atirou de uma das

madeiras da cama, até conseguir um madeiro de quase dois metros com a ponta afiada. lançou-se para a porta e saiu à escuridão e às chamas, ao ar frio e à fumaça. Viu uma figura e carregou contra ela. O homem se fez a um lado e

levantou seu pau. Roger não podia deter-se nem voltar-se atrás, esmagou-se contra o chão e o pau se estrelou a poucos centímetros de sua cabeça.

Rodou e agitou seu madeiro, golpeando na cabeça do índio, que caiu sobre o Roger.

Uísque. O homem cheirava a uísque. Sem deter-se fazer averiguações,

conseguiu ficar em pé sustentando o madeiro na mão. Um grito lhe chegou desde atrás e se voltou. O homem ao que tinha

golpeado tratava de lhe tirar o pau. Conseguiu liberar-se e o homem voltou a cair.

382

Roger se cambaleou e se voltou para o fogo. Era uma imensa fogueira cujas

chamas se elevavam contra a escuridão da noite. Entre as cabeças dos observadores divisou a figura negra, atada a um poste no centro da pira, com os

braços abertos em sinal de bênção. Então algo golpeou sua cabeça e o fez cair. Não perdeu do todo o conhecimento. Não podia ver nem mover-se, mas

ainda podia ouvir. Havia vozes próximas e os gritos soavam como o rugido do

oceano. Sentiu que o levantavam no ar e o som do fogo se fez mais próximo. Mierda, foram atirar o à fogueira! Estirou a cabeça, mas seu corpo não se podia

mover. O ruído do fogo diminuiu, mas, paradoxalmente, sentiu o ar quente em seu rosto. Depois de um golpe tocou a terra com os dedos. Respirou mecânica e lentamente enquanto a sensação de enjôo ia desaparecendo.

Abriu os olhos e se deu conta de que estava outra vez na choça. Tratou de conter a respiração e não pôde. Ouvia uma respiração pesada e ofegante que não era a sua. Soava debaixo dele. Com grande esforço, ficou a quatro patas, com os

olhos fechados pela imensa dor na cabeça. -minha mãe –murmurou, passou-se a mão pela cara e piscou, mas o

homem seguia ali, a menos de dois metros de distância. Jamie Fraser. Estava atirado a seu lado com a metade da cara obscurecida

pelo sangue, mas era inconfundível. Roger o olhou sem alterar-se. Durante meses

se imaginou um encontro com aquele homem. Agora tinha acontecido e parecia simplesmente impossível. Não podia sentir outra coisa que assombro.

voltou-se a esfregar a cara. O que... o que estava fazendo Fraser ali? Quando seus pensamentos e sentimentos se conectaram outra vez, o primeiro que sentiu não foi fúria nem temor, a não ser um absurdo alívio.

-Ela não o fez -murmurou, e sua voz soou estranha a seus ouvidos-. Não foi ela!

Jamie Fraser estava ali por uma única razão: resgatá-lo. E se era assim, era

porque Brianna lhe tinha obrigado. Todos os mal-entendidos ou a malevolência que lhe tinha feito acontecer aquele inferno, não eram obra dela. Acreditava que

ia viver para sempre com esse vazio, mas agora havia algo sólido em seu coração. Brianna. Tinha-a de novo.

Morrer sabendo que Brianna o amava ainda era melhor que morrer sem

sabê-lo, mas não desejava morrer. Recordou o que tinha visto fora e vomitou. Com mão tremente começou a fazer o sinal da cruz-se. arrastou-se até o

corpo do Fraser, confiando em que o homem estivesse vivo. E assim era. Saía-lhe sangue de uma ferida na nuca, mas quando lhe buscou o pulso no pescoço, pôde senti-lo. Encontrou um recipiente com água. Molhou o bordo da capa e começou

a lhe lavar a cara. Ao pouco momento, Jamie começou a piscar. Logo tossiu, moveu a cabeça a um lado e vomitou. Então abriu os olhos e, antes de que Roger pudesse falar ou mover-se, apoiou-se sobre um joelho, com a mão na faca que

tinha na média. Os olhos azuis o olharam furiosos e Roger levantou um braço para

defender-se. Então Fraser piscou, sacudiu a cabeça, grunhiu e se sentou pesadamente no chão.

-Ah, é você -disse.

Fechou os olhos e voltou a gemer. Depois levantou a cabeça e abriu os olhos, mas esta vez com um olhar de alarme.

-Claire! -exclamou-. Minha esposa, onde está?

Roger o olhou boquiaberto. -Claire? Trouxe-a aqui? trouxe para uma mulher a isto?.

383

Fraser o olhou com profundo desgosto, mas não gastou palavras. Tocando

a faca olhou fazia a porta. A lona estava baixada e não se via ninguém. Os ruídos se acalmaram, embora chegava o murmúrio de vozes.

-Há um guarda -disse Roger. Fraser o olhou de esguelha e ficou em pé. O sangue ainda corria por sua

cara mas parecia não lhe importar. Em silêncio se aproximou da porta e levantou

uma esquina para olhar. Fez uma careta ante o que via, retornou, sentou-se e guardou a faca em seu lugar.

-Há uma dúzia fora. Isso é água? Estendeu a mão e Roger a alcançou. Bebeu e logo se atirou água na cara e

a cabeça, secou-se e olhou ao Roger.

-Wakefield, não? -Agora uso meu próprio sobrenome. MacKenzie. Fraser deixou escapar um bufo zombador.

-Isso me hão dito. -Tinha uma boca larga e expressiva, como a do Bri-, Equivoquei-me contigo, MacKenzie, como já deve saber. Vim para arrumar as

coisas, mas talvez não tenha a possibilidade. -Fez um gesto para a porta-. por agora, tem minhas desculpas. Para qualquer outra satisfação que queira, e suponho que será assim, devo te pedir que esperemos até sair daqui.

Roger o contemplou durante um momento e assentiu. -Feito-disse.

Permaneceram sentados em silencio durante um momento. -O que acontece aí fora? -perguntou Roger, assinalando para a porta. Fraser respirou profundamente e suspirou. Pela primeira vez, Roger se deu

conta de que se sustentava o cotovelo direito com a mão esquerda e se sujeitava o braço contra o corpo.

-Maldita seja se sei.

-queimaram ao sacerdote? Está morto? Não tinha dúvidas depois do que tinha visto, mas Roger sentiu a

necessidade de perguntar. -Era um sacerdote? -Arqueou as sobrancelhas com surpresa-. Sim, está

morto. E não só ele.

estremeceu-se involuntariamente. Fraser não sabia o que foram fazer quando começaram a tocar os tambores

e se reuniram ao redor da grande fogueira. Falavam muito, mas seu conhecimento da língua era insuficiente para compreendê-los e seu sobrinho, que falava mohawk, não aparecia por nenhum lado.

Os brancos não estavam convidados mas ninguém os apartou. Assim foi como Claire e ele ficaram no bordo da multidão quando chegou o sachem e os

membros do Conselho. O ancião começou a falar e também o fez outro homem, muito zangado.

-Então levaram a homem nu e o ataram a uma estaca. -Fez uma pausa e

olhou de esguelha ao Roger-, Vi aos verdugos franceses manter com vida a um homem que tivesse preferido estar morto. Isto não foi pior, mas tampouco melhor.

Fraser, sedento, bebeu outra vez.

-Tratei de afastar ao Claire, porque não sabia o que fariam depois. Mas a gente não os deixava mover-se e não ficou mais remedeio que seguir

olhando. Roger sentiu que lhe secava a boca. Não queria perguntar, mas tinha a

perversa necessidade de saber, tanto pelo Alexandre como por ele mesmo.

-Ele... ele gritou?

384

Fraser o contemplou surpreso, logo pareceu compreender.

-Não -disse muito lentamente-. Morreu bem. Conhecia-o?. Roger assentiu sem palavras. Era difícil acreditar que Alexandre se foi.

Onde se tinha ido? «Não serei perdoado.» Certamente não. -Quantos homens trouxe com você? Os olhos azuis resplandeceram de assombro.

-A meu sobrinho Ian. -Isso é tudo?

Roger não pôde evitar que se notasse sua incredulidade. -Esperava aos 78 Regimento Highland? -perguntou Fraser com sarcasmo.

ficou em pé com cuidado sustentando o braço-. Traje uísque.

-Uísque? Teve que ver com a briga?. -Pode ser. Fraser se aproximou do buraco da choça, apoiou um olho e ficou olhando

durante um momento. Fora as coisas se acalmaram. O enorme escocês tinha muito mau aspecto. A cara branca e suarenta estava cheia de marcas de sangue

seca. Roger serve mais água e a deu. Mas sabia que as feridas não eram sua preocupação.

-Quando a viu por última vez?

-Quando começou a briga. -Incapaz de ficar sentado, Fraser ficou em pé e começou a passear-se como um urso inquieto-. Tem idéia do que acontecia?

-Posso supô-lo. -Informou ao Fraser sobre a história do sacerdote e sentiu certo alívio ao fazê-lo-. Não têm por que lhe fazer danifico. Não tem nada que ver com isto.

Fraser deixou escapar um grunhido de desgosto. -Sim. Maldita mulher! E pegou um murro no chão.

-Estará bem —repetiu com teima Roger— Ouvi seu sobrinho durante a briga. Ouvi-o quando lhe chamava e parecia estar bem.

Roger sabia que essa informação não era suficiente para tranqüilizar ao Fraser.

-É um bom moço -murmurou Fraser com a cabeça inclinada sobre os

joelhos-. E tem amigos entre os mohawk. Deus queira que o tenham protegido. Roger voltou a sentir curiosidade.

-Sua esposa -disse-. O que é o que fez? Como pôde envolver-se nisto? Fraser suspirou. -Não devi dizer isso. Em realidade, não foi culpa dela. Mas se a ferem...

-Não o farão-disse Roger com firmeza- O que aconteceu? Fraser se encolheu de ombros e fechou os olhos. -Não vi a moça em meio de toda essa gente. Nem sequer sei que aspecto

tênia, até o final não a vi. Claire estava a seu lado. Quando os índios quase tinham terminado com o sacerdote, desataram-no do poste, ataram-lhe as mãos a

um comprido pau pendurado sobre sua cabeça e o suspenderam sobre as chamas.

Fraser o olhou e se secou os lábios com a mão.

-Em uma ocasião vi como lhe arrancavam o coração a um homem -disse-. Mas não que o comessem ante seus olhos. Falava quase com acanhamento, como

sim se desculpasse por ser afetado. Impressionado, tinha cuidadoso ao Claire. Foi então quando viu a jovem a Índia a seu lado, com o berço entre os braços. Com muita calma, a moça a entregou ao Claire e se deslizou entre a multidão.

385

-Não olhou nem a direita nem a esquerda, caminhou diretamente para o

fogo. -Como?

Roger sentiu que lhe fechava a garganta. -As chamas a envolveram; quando chegou até ele era como uma tocha e se

converteram em uma única figura negra entre as chamas que subiam. Então foi

quando todos enlouqueceram. Tudo o que sei é que uma mulher uivou e se desatou o inferno, e todos começaram a brigar.

Tratou de proteger ao Claire e abrir-se passo. Incapaz de escapar, empurrou ao Claire contra uma choça e agarrou um madeiro para defender-se, gritando e chamando o Ian.

-Alguém me golpeou, dava-me a volta para brigar e outros três me jogaram em cima. -Algo lhe golpeou na nuca e não soube nada mais até que despertou na choça com o Roger.-Após não sei nada do Claire, nem tampouco do Ian.

O fogo se consumia e fazia frio na choça. Jamie se cobriu com a capa como

pôde e se apoiou em um lado. Seu braço direito devia estar quebrado pela forma em que lhe doía, mas nada disso tinha importância comparado com sua preocupação pelo Claire e Ian.

Era muito tarde. Se Claire não tinha sido ferida estaria a salvo, disse-se. A anciã não deixaria que lhe fizessem mal. E quanto ao Ian, sentiu uma onda de

orgulho em que pese a seu medo; era uma boa lutadora e uma honra para ele, Jamie, que lhe tinha ensinado a defender-se.

Roger estava sentado frente ao fogo com os braços sobre os joelhos e a

cabeça inclinada, sem notar que Jamie o observava. Não teve mais remedeio que admitir que o homem tinha um bom corpo.

Pernas largas e costas largas. Era alto como todos os MacKenzie do Leoch e

descendente do Dougal, pensou súbitamente, embora umas quantas gerações mais adiante. Dougal tinha sido seu padrasto e, para ser sinceros, tinha que

reconhecer que uma parte dele tinha amado a aquele homem. Se teve que matá-lo foi porque não ficava eleição: era matar ou que lhe matassem.

Sim, dava-lhe certo consolo o saber que ficava uma parte do Dougal. A

outra parte da herança MacKenzie era um pouco mais preocupem-se. O primeiro que viu o recuperar o conhecimento foram os olhos daquele homem, de um verde

brilhante e intenso que, por um momento, fizeram-lhe pensar no Geillis Duncan. Queria que sua filha se unisse com o feto de uma bruxa? Olhou-o disimuladamente. Talvez fora melhor que a criatura da Brianna não fora do

sangue daquele homem. -Brianna -disse MacKenzie, levantando súbitamente a cabeça-. Onde está?. Jamie fez um movimento brusco e sentiu uma dor no braço, como se lhe

dessem uma navalhada. -Onde? -repetiu Fraser-. No River Run, com sua tia. Está a salvo.

O coração lhe palpitava. Podia ler seus pensamentos? Tinha poderes? -por que trouxe para o Claire e não a Brianna? por que não veio com você? Jamie lhe devolveu um olhar frio. Se não podia ler sua mente, quão último

queria era dizer a verdade ao MacKenzie, já teriam tempo quando estivessem a salvo.

-Também tivesse deixado ao Claire de ter podido. Mas ela é muito teimosa e

nem atando a de pés e mãos o teria conseguido. Algo escuro cruzou os olhos do MacKenzie. Dúvida ou pena?

386

-Não acreditava que Brianna fora a classe de moça que obedecesse tanto a

seu pai -disse. Jamie se relaxou ao ver que não podia ler sua mente.

-Não crie? Bom, então talvez não a conhece tão bem -respondeu com um tom que tivesse feito enfurecer a qualquer outro homem.

Mas não ao MacKenzie, quem se endireitou e deixou escapar um profundo

suspiro. -Conheço-a bem. É minha esposa.

-Ao inferno com isso -disse, endireitando-se a sua vez e apertando os dentes pela dor.

-Casamo-nos de palavra. Não o disse?

Não o tinha feito, mas invadido pela fúria não lhe tinha dado tempo de nada. Enfurecido ao saber que tinha querido deitar-se com um homem, que não

era perfeita, a não ser tão humana como ele, não a tinha deixado explicar-se. -Quando? -perguntou. -A princípios de setembro, no Wilmington. Quando eu... justo antes de

deixá-la. Admitiu-o a contra gosto e com uma culpa que era o reflexo da que sentia

Jamie. Mas pensou que o covarde o merecia. Se não tivesse abandonado a

Brianna.. -Não me disse isso.

Viu a dúvida e a dor nos olhos do MacKenzie. O homem se preocupava porque ela não o houvesse dito, de havê-lo feito estaria ali. Sabia bem que não existia poder na terra para reter o Claire se pensasse que ele estava em perigo.

Então sentiu uma pontada de medo. Onde estava Claire? -Suponho que ela pensou que você não considerava que casar-se de palavra

era uma forma legal de matrimônio –disse MacKenzie. -Ou talvez era ela a que não o considerava assim -sugeriu com crueldade

Jamie.

Poderia ter aliviado ao Roger lhe dizendo parte da verdade: que Brianna não tinha vindo porque estava grávida, mas não se sentia caridoso. Fechou os olhos e não disse nada mais.

61

O ofício de um sacerdote O aroma de queimado invadia o ar- Passamos perto da fogueira e não pude

evitar olhar com a extremidade do olho, não me atrevia a fazê-lo diretamente. Tropecei na terra geada e minha escolta me agarrou por braço. Conduziu-

me para uma choça em que dois homens faziam guarda. Não tinha dormido nem provado a comida que me tinham devotado. Tinha

os pés e as mãos geladas. De longe se ouvia o canto pela morte. Cantavam pela

moça ou talvez por alguém mais? Estremeci-me. Os guardas me olharam de esguelha e se fizeram a um lado. Levantei o tecido e entrei.

Estava escuro e o fogo se apagou. A mancha vermelha que vi naquela capa

me fez sentir um súbito alívio. -Jamie!

Jamie levantou a cabeça, a seu lado havia outra figura, a de um homem que me resultava curiosamente familiar. Então se moveu e captei o brilho de seus olhos verdes.

-Roger! -exclamei.

387

levantou-se sem dizer uma palavra e me abraçou. Apertou-me com tanta

força que não me deixava respirar. -Roger, está bem?

Soltou-me e o olhei de cima abaixo, procurando feridas. -Sim -disse com voz rouca-. E Brí? Está bem? -Está bem -assegurei-lhe-. O que te passou no pé?

-Nada, é só um corte. Onde está Brianna? Apertou-me o braço com ansiedade.

-Em um lugar chamado River Run, com sua tia avó. Não lhe há isso dito Jamie? Ela...

Jamie me interrompeu me agarrando do outro braço.

-Está bem, Sassenach? -Sim, é obvio. Eu... O que te passou? Minha atenção se separou do Roger para centrar-se no Jamie. Chamou-me

a atenção, mais que a ferida da nuca, a forma em que se sustentava o braço. -Acredito que me tenho quebrado o braço -disse—. Me dói muito. Quer vir a

me curar? Sem esperar resposta se voltou e se dirigiu para a cama rota. Dava- uma

palmada ao Roger e segui a um Jamie incapaz de admitir sua dor ante o Roger.

-O que te acontece? -murmurei enquanto lhe tocava o braço. Não havia fratura.

-Não lhe hei dito nada sobre a Brianna -disse muito devagar-. E acredito que é melhor não fazê-lo.

Olhei-lhe fixamente.

-Não podemos fazer isso! Tem que sabê-lo. -Baixa a voz. Sim, possivelmente devamos lhe dizer algo sobre a criatura,

mas não sobre o outro, sobre o Bonnet.

Mordi-me o lábio e toquei seu braço. Tinham-lhe dado um terrível golpe, embora estava segura de que não havia fratura. Mas não estava tão segura sobre

sua sugestão. Pôde ver a dúvida em meus olhos porque me apertou a mão. -Agora não, ao menos não aqui. Espera até que estejamos a salvo.

Refleti enquanto rasgava a manga de sua camisa para fazer um tipóia. O inteirar do embaraço da Brianna lhe ia impressionar. Talvez Jamie tivesse razão,

não podíamos saber como ia reagir Roger ao conhecer a violação e faltava bastante tempo para poder voltar livres a casa. Assenti a contra gosto.

-Muito bem -disse em voz alta-. Não acredito que esteja quebrado; de todas

formas o levá-lo em tipóia te ajudará. Deixei ao Jamie e me aproximei do Roger, me sentindo como uma bola do

PING-pong.

-Como está seu pé? Ajoelhei-me para lhe tirar os trapos que faziam de atadura, mas me deteve

me agarrando do ombro. -Brianna. Sei que algo não está bem. Ela está .......? -Está grávida.

Essa possibilidade não tinha passado por sua mente. Sua surpresa foi inconfundível. Piscou como se lhe tivessem golpeado a cabeça com uma tocha.

-Está segura?.

-Está de sete meses, lhe nota. Jamie se tinha aproximado tão rápido que não o notamos. Falou com frieza

mas Roger não estava para sutilezas. A excitação iluminava seus olhos.

388

-Grávida. Mas como pode ser?

Jamie deixou escapar um bufido de brincadeira e desprezo. Roger o olhou. -Quero dizer, que nunca pensei...

-Como? Deixou a minha filha para que pagasse o preço de seu prazer! Roger levantou a cabeça e olhou com fúria ao Jaime -Não a deixei! Disse-lhe que é minha esposa!

-É assim? -perguntei. -casaram-se de palavra —disse Jamie muito zangado- por que não nos

disse isso? Pensei que podia lhe responder de mais de uma maneira. Mas a segunda

resposta não podia dizê-la diante do Roger: não nos disse isso porque acreditava

que era do Bonnet. Assim, deixava ao Roger a possibilidade de escapar, se é que desejava fazê-lo.

-Certamente porque pensou que não o consideraria como um verdadeiro

matrimônio -pinjente-. Tinha-lhe falado sobre nossas bodas e como tinha insistido em te casar em uma igreja, com um sacerdote. Não queria te dizer nada

que pensasse que não foste passar. Desejava tanto te agradar... Jamie teve a graça de parecer envergonhado, mas Roger passou por cima o

argumento.

-Está bem? -perguntou. -Sim, está muito bem -assegurei, esperando que fora verdade-. Queria vir

conosco, mas não podíamos deixar que o fizesse. -Queria vir? -O alívio e a felicidade Invadiu sua cara. Então ela não... —

deteve-se bruscamente e nos olhou-. Quando conheci senhor Fraser na ladeira da

montanha parecia pensar que... disse-me... -Um terrível mal-entendido -apressei-me a esclarecer-. Não nos havia dito

nada sobre o matrimônio de palavra... e quando nos demos conta de que estava

grávida, supusemos .... Jamie olhava ao Roger com chateio, mas se conteve ante meu olhar severo.

-Sim -disse-. Um mal-entendido. Já me desculpei e lhe disse que faria todo o possível por reparar o engano. Mas agora temos outras coisas em que pensar. Viu ao Ian, Sassenach?

-Não. Não me tinha dado conta de que Ian não estava com eles e senti medo.

-Onde estiveste toda a noite? -Estive com... Ai, Meu deus! Esqueci-me de sua pergunta ao ver o pé do Roger. Estava inflamado e

infectado, tinha uma úlcera na planta do pé e ao apertar senti o pus baixo a pele. -O que te passou? -Cortei-me quando tratava de escapar. Enfaixaram-me isso mas se

infectou. Ao princípio melhorou, mas logo... encolheu-se de ombros; sua mente não estava no pé. Olhou ao Jamie. Era evidente que tinha chegado a uma

conclusão. -Então, Brianna não lhe enviou para me buscar? Não lhe pediu que... que

se livrasse de mim?

-Não -disse Jamie surpreso. Sorriu com um repentino encanto. Essa decisão foi minha.

Roger deixou escapar um suspiro e fechou os olhos.

-Graças a Deus -disse e os abriu-. Pensei que ela, talvez-tivemos uma terrível briga justo antes de que me fora e pensei que possivelmente por isso não

lhe havia dito nada sobre o matrimônio. -Suava-lhe a frente, mas sorria

389

fracamente-. Mas fazer que me dessem uma surra e me vender como escravo me

parecia uma medida excessiva, inclusive para uma mulher de seu temperamento. -Mmm -disse Jamie, um pouco acalorado-. Já te disse que o sentia.

-Sei. Roger o olhou e decidiu algo. Suspirou e apartou gentilmente minha mão de

seu pé. endireitou-se e olhou ao Jamie à cara.

-Tenho algo que lhe dizer. O motivo da briga. Ela lhes disse por que veio até aqui?

-A notícia de nossa morte? Sim, disse-nos isso. Crie que, de não sabê-lo, tivesse permitido que Claire me acompanhasse?

-O que?

Roger o olhou intrigado. -Se formos morrer na Colina do Fraser dentro de seis anos, não podemos

morrer agora, à mãos dos índios, não crie?

Contemplei-o. Eu não tinha chegado a essa conclusão: uma imortalidade temporária. Mas isso significava assumir que...

-Isso significa supor que não se pode trocar o passado. Crie isso? Roger se inclinou com intensidade. -Que me condenem se sei. Você o crie?

-Sim -disse Roger-. Acredito que o passado não pode trocar-se. Por isso o fiz.

-Fez o que? umedeceu-se os lábios mas não se deteve. -Encontrei a notícia muito antes que Brianna e pensei que era inútil tentar

trocar as coisas, assim que o ocultei.-Olhou-nos-. Não queria que ela viesse; fiz tudo o que pude para evitá-lo. Pensava que era muito perigoso. Y... tinha medo de perdê-la -terminou com simplicidade.

Surpreendida vi como Jamie o olhava com súbita aprovação. -Então, tratou de mantê-la a salvo? Para protegê-la?

Roger assentiu com certo alívio. -Entende-me? -Sim. É a primeira coisa que ouço que me faz ter uma boa opinião de tí,

senhor. Eu não compartilhava essa opinião.

-Encontrou a notícia e não o disse? Roger viu meu olhar e arrumou a vista. -Não. E me temo que ela pensa como você. Acredita que a traí Y...

-E o fez! A ela e a nós! Roger, como pôde fazer algo semelhante?. -Fez bem -afirmou Jamie-. depois de tudo... -Não! -interrompi com ferocidade-. Deliberadamente o ocultou. Não te dá

conta de que, se tivesse tido êxito, alguma vez a teria conhecido? -Sim, dou-me conta. E também de que o que lhe aconteceu, não lhe teria

acontecido. Olhava-me fixamente com seus olhos azuis. Traguei saliva para acalmar

minha fúria e minha dor.

-Não acredito que ela pense assim. Além disso, é ela quem deve dizê-lo. Roger interveio antes de que Jamie pudesse falar. -Há dito que o que lhe aconteceu não lhe teria acontecido? refere-se ao

embaraço?

390

Não esperou a resposta. Sua mente o levou a mesma desagradável

conclusão a que Brianna tinha chegado fazia meses. Olhou-me com os olhos muito abertos.

-Disse que está de sete meses! Maldição! Não pode retornar! -Agora não -disse com amargura-. Tivesse podido fazê-lo quando nos

encontrou. Tratei de que retornasse a Escócia, ou ao menos às Antilhas, onde há

outra... porta. Mas não quis fazê-lo. Não queria ir-se saber o que te tinha acontecido.

-O que me tinha acontecido -repetiu e olhou de esguelha ao Jamie. -Sim -disse Jamie, com gesto tenso-. É por minha culpa e não posso

remediá-lo. Está apanhada aqui e não posso fazer nada, salvo te levar com ela.

Dava-me conta então de que por isso não queria dizer nada ao Roger, por medo de que se negasse a retornar conosco. Uma coisa era havê-la seguido através do passado e outra ficar ali para sempre.

Roger o observou sem encontrar as palavras. Então se ouviram uns passos e entraram vários índios. Olhamo-los surpreendidos. Eram quinze mohawk,

homens, mulheres e meninos preparados para uma viagem. Uma das anciãs levava o berço. Sem vacilar se aproximou do Roger e disse umas palavras em mohawk.

Roger franziu o cenho sem compreender. Jamie, súbitamente alerta, aproximou-se da mulher. Esta, impaciente, repetiu-lhe as palavras fazendo um

gesto para um jovem. -Você é... sacerdote -disse, assinalando ao Roger e mostrando o berço-.

Água.

-Não sou sacerdote. Roger tratou de lhe devolver o berço, mas a mulher se negou a agarrá-la. -Sacerdote -disse decidida-. Batismo.

Assinalou a uma das jovens, que se adiantou com um recipiente cheio de água.

-Pai Alexandre disse você sacerdote, filho de sacerdote -disse o homem jovem.

Vi que Roger empalidecia.

Jamie se tinha afastado murmurando em francês a um homem que tinha reconhecido no grupo.

-São os que ficam da congregação do sacerdote-disse Jamie brandamente-. O Conselho lhes disse que se fossem. Querem ir à missão da Santa Berta, mas antes desejam ter batizado ao menino, se por acaso morre na travessia. -Olhou ao

Roger—. Acreditam que é sacerdote? -Evidentemente. Roger olhou ao menino que tinha em braços.

Jamie vacilou, olhando a quão índios aguardavam com expressão tranqüila. Podia tratar de adivinhar o que ocultavam atrás dela: fogo, morte, desterro, que

mais? Havia rastros de dor na da anciã. O menino devia ser seu neto. -Em caso de necessidade -disse Jamie ao Roger-, qualquer homem pode

exercer de sacerdote.

Não tivesse acreditado que Roger pudesse empalidecer mais, mas o fez. cambaleou-se e a anciã, alarmada, estirou uma mão para sujeitar o berço.

Roger se repôs e fez um gesto a quão jovem tinha a água.

-Parlez-vous françáis? -perguntou e as cabeças assentiram. -C'est bem -disse. Levantou o menino e o ensinou à congregação-. Ouçam

as palavras de Nosso Senhor Jesus Cristo –disse em francês-. Obedecendo essas

391

palavras e seguros de sua presença entre nós, vamos batizar ao que chamou para

ser parte de sua igreja. Deixou que passassem o menino de mão em mão e logo fez as perguntas do

ritual em voz alta. Finalmente, estendeu a criatura para o Jamie. -Quem é seu Senhor e Salvador? -Jesucristo -respondeu sem vacilar e me entregaram ao menino.

-Confia nele? -Faço-o -respondi pela criatura.

Roger agarrou água e lhe molhou a cabeça. -Eu te batizo -começou e se deteve, me olhando de reojo. -É uma menina -murmurei e Roger assentiu.

-Eu te batizo, Alexandra, no nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Amém.

depois de que o pequeno grupo de cristãos partisse não tivemos mais visitantes. Um guerreiro nos trouxe lenha para o fogo e comida, mas fez caso

omisso às perguntas do Jamie. -Criem que nos matarão? -perguntou súbitamente Roger depois de um

momento de silêncio. Sua boca se curvou em um intento de sorriso-. Em

realidade, suponho que me matarão . Vós dois estão presumivelmente a salvo. Não parecia preocupado, a não ser muito cansado para ter medo.

-Não vão matar nos -disse mesándome o cabelo. Dava-me conta de que eu também estava exausta. Fazia mais de trinta e seis horas que não dormia.

-lhe ia dizer isso disse ao Jamie-- Passei a noite em casa do Tewaktenyonh.

O Conselho de Mães se reúne ali. Não me tinham contado isso tudo, nunca o faziam. Mas detrás largas horas

de cerimônias e discussões, quão jovem falava inglês me havia dito tudo o que

queriam que soubesse antes de me enviar com o Jamie. -Alguns jovens encontraram o esconderijo do uísque-continuei-O trouxeram

para a aldeia e começaram a beber. As mulheres acreditaram que não faziam nada desonesto, porque o trato já parecia. Mas logo começaram a discutir entre eles, justo antes de que acendessem o fogo para executar ao sacerdote. E

começaram a brigar e uma coisa levou a outra. -Esfreguei-me a cara, tratando de manter as idéias claras-. Morreu um

homem na briga -pinjente olhando ao Roger-, Acreditam que o fez você, foi assim? Sacudiu a cabeça. -Não sei. Eu.,, é provável. O que pensam fazer a respeito?

-Bom, estiveram muito tempo discutindo e ainda não se decidiram. Mandaram uma mensagem ao Conselho, mas ainda não tinham a resposta do sachem. Não vão matar te porque agarraram o uísque e isso era o preço de sua

vida. E como decidiram não nos matar, em revanche pela morte desse homem, o que habitualmente fazem em troca é adotar a um inimigo na tribo e substituir

assim ao morto. Isso alterou ao Roger. -me adotar a mim? Querem ficar comigo?

-Um de nós. Não acredito que eu sirva porque sou uma mulher. Tratei de sorrir sem consegui-lo.

-Então tenho que ser eu -disse Jamie com calma. Roger moveu a cabeça, assombrado-. Você o disse: se o passado não pode trocar-se, nada poderá me acontecer. me deixem, conseguirei escapar e retornarei a casa.

392

Agarrou-me o braço antes de que pudesse protestar.-Ian e você levarão ao

MacKenzie jumo a Brianna. depois de tudo, é a vós dois aos que necessita. Roger quis discutir, mas o impedi.

-Deus me libere da teima dos escoceses! -Olhei-os zangada-. Ainda não o decidiram; só lhes hei dito a opinião do Conselho das Mães. Assim não tem sentido discutir até que não estejamos seguros. E a tudo isto -pinjente, tratando

de distrai-los-, onde está Ian? Jamie me olhou.

-Não sei -disse e vi que tragava saliva antes de falar-.Mas confio em que esteja a salvo na cama dessa moça.

Não chegou ninguém. A noite transcorreu tranqüila, embora nenhum pudemos dormir bem. Ao meio dia ouvimos o som de vozes que se aproximavam. Meu coração deu um tombo ao reconhecer uma das vozes. Jamie se tinha

levantado antes de que abrissem a porta. -Ian? É você?

-Sim, tio. Sou eu. Sua voz soava estranha, sem fôlego e insegura. Entrou e se aproximou da

luz. Quando o vi tive a sensação de que me golpeavam o estômago. Tinham-lhe

talhado o cabelo dos lados lhe deixando uma crista e uma larga cauda sobre as costas; além disso lhe tinham perfurado uma orelha da que agora pendurava um

aro de prata. Seu rosto estava tatuado. -Eu... não posso ficar muito momento, tio -disse Ian. Estava pálido, mas se

mantinha erguido-. Disse-lhes que deviam deixar que me despedisse. Jamie também estava pálido. -Ian -sussurrou.

-A cerimônia do nome é esta noite -disse Ian, tratando de não nos olhar-. Dizem que depois serei índio e não poderei falar nem em inglês nem em gaélico. -

Sorriu com pesar-. E vós não sabem muito mohawk. -Ian, não pode fazê-lo! -Já o tenho feito, tio Jamie -disse brandamente. Então me olhou-. Tia, dirá

a minha mãe que alguma vez a esquecerei? -OH, Ian! -pinjente, abraçando-o com força.

-Poderão ir pela manhã -disse ao Jamie. Quando o soltei se aproximou do Roger, quem o olhava assombrado. Ian

lhe ofereceu a mão.

-Lamento o que lhe fizemos -disse com calma-. Encarregará-te de minha prima e da criatura?

Roger lhe estreitou a mão e se esclareceu garganta.

-Farei-o -disse-. Prometo-o. Então Ian se voltou fazia Jamie.

-Não, Ian -disse-. Deixa que eu seja! Ian sorriu, embora seus olhos estavam cheios de lagrimas. -Uma vez me disse que minha vida não era para esbanjá-la. Não o será. Eu

tampouco vou esquecer te, tio Jamie. Levaram ao Ian à borda do rio pouco antes do pôr-do-sol. meteu-se na água

geada acompanhado por três mulheres que riam enquanto o esfregavam com

areia. Cilindro corria e ladrava enlouquecido, somando-se ao que acreditava um jogo divertido.

393

Todos os espectadores o encontraram gracioso, salvo as três pessoas

brancas. Uma vez acabada a cerimônia de lavar o corpo para tirar seu sangue de

homem branco, as mulheres o secaram e o vestiram com roupa limpa para levá-lo ante o Conselho, onde teria lugar a cerimônia do nome.

Toda a aldeia estava ali. Jamie, Roger e eu permanecemos silenciosamente

em um rincão, observando ao sachem que cantava e falava enquanto os tambores soavam e a pipa passava de emano em mão. A moça que Ian chamava Emily

permanecia a seu lado e seus olhos brilhavam ao olhá-lo. O ver como a olhava Ian dissipou algo minha amargura. Chamaram-no Irmão do Lobo. Seu irmão lobo estava aos pés do Jamie, observando a cerimônia com interesse. Ao finalizar a

cerimônia, Jamie saiu do rincão. Todas as cabeças se voltaram enquanto ia para o Ian e vi que mais de um guerreiro desaprovava sua atitude. desabotoou-se o

tratam escocês e o colocou sobre os ombros de seu sobrinho. -Cmmhnich -disse brandamente, e deu um passo atrás. «Recorda.»

À manhã seguinte guardávamos silêncio quando enfiamos o estreito atalho que nos afastava da aldeia. Ian nos tinha despedido formalmente com sua nova

família. Ao ver minhas lágrimas se mordeu o lábio ocultando sua emoção. Jamie o abraçou, beijou-o na boca e se foi dizer uma palavra.

De noite, Jamie se ocupou de montar o acampamento com sua habitual

eficácia, mas me dava conta de que sua mente estava em outro lugar. Não era estranho; também eu dividia minhas preocupações entre o Ian e Brianna,

deixando pouco tempo para as atuais circunstâncias. Roger deixou a lenha ante o fogo e se sentou a meu lado.

-estive pensando -disse-. Na Brianna.

-Eu também. Estava tão cansada que tinha medo de dormir antes de que a água fervesse.

-Disse que há outro círculo..., abertura, ou o que seja, nas Antilhas ? -Sim. -Pensei em lhe falar do Geillis Duncan e a cova do Abandawe, mas

desprezei a idéia. Não tinha força. Em outro momento possivelmente; então me

dava conta do que me estava dizendo-. Outro círculo? Aqui? -Não aqui -disse Roger-. Em algum lugar entre a aldeia e a Colina do

Fraser.

-Sim, sei que existe, mas... -Então entendi e o agarrei do braço-- Quer dizer que sabe onde está?

-Você sabia? Contemplou-me assombrado. -Sim, eu... olhe...

E saque a opala. Agarrou-o antes de que pudesse lhe explicar nada. -É o mesmo símbolo! Está gravado em uma rocha do círculo. De onde

diabos o tirou?

-É uma larga história -pinjente-. Contarei-lhe isso mais tarde. Mas sabe onde está esse círculo? Viu-o?

Jamie, atraído por nossas exclamações, aproximou-se. -Um círculo? -Um círculo do tempo, uma abertura, uma...

-Eu estive ali -interrompeu Roger-. Encontrei-o por acaso quando tratava de escapar.

-Poderia encontrá-lo de novo? A que distância está do River Run?

394

Minha mente fazia cálculos frenéticos. Poderíamos levar a Brianna a

tempo? E se o fazíamos, o que seria mais perigoso, passar através do túnel do tempo a ponto de dar a luz ou ficar no passado para sempre?

Roger tirou o fio com os nós. -Aqui -disse-. Tinham passado oito dias desde que me capturaram. Oito

dias da Colina do Fraser.

-E uma semana mais desde o River Run até a Colina -calculei-. Não o conseguiríamos.

-Mas o tempo está trocando -disse Jamie-. A viagem será mais fácil se podemos fazê-lo com melhor tempo.

-Ou não. -Sacudi a cabeça a contra gosto-. Sabe tão bem como eu que a

primavera significa barro. E o barro é pior que a neve para viajar. Não, é muito tarde, muito arriscado. Ela terá que ficar.

Jamie observava ao Roger. -Ele não o fará. Roger o olhou assombrado.

-Eu... -começou, logo afirmou sua mandíbula -e começou de novo-. Farei-o. Não pensará que a vou deixar? A ela e a meu filho?

Abri a boca e senti que Jamie ficava rígido, tentando me advertir.

-Não -pinjente lhe cortando-. Não. Devemos dizer-lhe Brianna assim o quereria. É melhor que saiba agora; se isso trocar as coisas para ele é melhor que

saiba antes de vê-la. Jamie franziu os lábios mas assentiu. -Está bem -disse-, Diga-lhe então.

-me dizer o que? Roger parecia mais alarmado e excitado que nunca.

-Poderia não ser seu filho -pinjente. Por um momento sua expressão não trocou, logo me agarrou dos braços tão

súbitamente que me fez gritar.

-O que quer dizer? O que aconteceu? Jamie se moveu como uma serpente e golpeou ao Roger para que me

soltasse.

-Quer dizer que quando deixou sozinha a minha filha a violaram-dijo bruscamente-. Dois dias depois de que estivesse com ela- Assim que talvez a

criatura seja tua ou talvez não. Olhou furioso ao Roger. -Então, ficará ou não? Roger sacudiu a cabeça tratando de esclarecer suas idéias e se levantou.

-Violada. Quem? Onde? -No Wilmington. Um homem chamado Stephen Bonnet.

O... -Bonnet? -Pela expressão do Roger era evidente que o nome lhe era

familiar-. Stephen Bonnet violou a Brianna?

-É o que hei dito. Súbitamente toda a fúria do Jamie se liberou. Agarrou ao Roger do pescoço

e o atirou contra um tronco.

-E onde estava você quando isso acontecia, covarde? Ela estava zangada contigo e a deixa sozinha? Se tinha que ir, por que não a deixou a salvo comigo?

Agarrei ao Jamie do braço. -Solta-o! Fez-o e se apartou ofegando. Roger, tão furioso como Jamie, sacudiu-se.

395

-Não a deixei porque discutíssemos! Deixei-a para ir em busca disto! -

Procurou no bolso de seu calção e tirou algo que brilhou na palma de sua mão-. Arrisquei minha vida para as conseguir, para que pudesse passar segura através

das pedras! Sabe onde fui e a quem as tirei? Ao Stephen Bonnet! Por isso demorei tanto em chegar à Colina do Fraser. Bonnet não estava onde eu acreditava e tive que percorrer toda a costa para encontrá-lo.

Jamie ficou gelado ante as pedras preciosas. O mesmo me aconteceu . -Viajei com o Bonnet desde Escócia. -Roger ia recuperando a calma-. O é...

é... -Já sei o que é. -Jamie saiu de seu transe-. E também pode ser o pai da

criatura que leva minha filha. -Olhou ao Roger com frieza-. Assim que lhe

pergunto isso de novo, MacKenzie: retornará e viverá com eles sabendo que talvez seja o filho do Bonnet? Se não for fazer diga-o agora. Porque te juro que se o tráficos mau... matarei-te sem me pensar isso duas vezes.

-Por todos tosse Santos! –estalei-, Lhe dê um minuto para pensar, Jamie! Não te dá conta de que ainda não o assimilou?

Roger fechou e abriu os punhos deixando cair a pedra. -Não sei-disse-. Não sei! Jamie se aproximou, recolheu a pedra e a atirou aos pés.

-Então vete! -disse-. Agarra sua pedra e busca esse maldito círculo. Vete, porque minha filha não necessita a um covarde!

Não havia desensillado os cavalos, assim dessalgou os nossos e montou de um salto.

-Vêem-me disse.

Olhei ao Roger com desconsolo, este olhava ao Jamie com os olhos brilhantes como esmeraldas.

-Vê -disse brandamente Roger sem deixar de olhar ao Jamie-. Se puder...

irei. Minhas mãos e meus pés pareciam mover-se por sua conta, levaram-me até

o cavalo e montei. Quando olhei atrás tinha desaparecido até a luz do rogo. Só havia

escuridão.

62

Três terços de um fantasma River Run, abril de 1770 -capturaram ao Stephen Bonnet. Brianna deixou cair a caixa do xadrez e as peças de marfim se pulverizaram

pelo chão. Sem dizer uma palavra ficou olhando a lorde John; este deixou sua taça de brandy e se aproximou rapidamente a ela.

-Está bem? Quer te sentar? Sinto-o de todo coração. Não devi... -Sim, deveu. Não, no sofá não ou nunca poderei me levantar. Rechaçou sua mão e se dirigiu até uma cadeira de couro, perto da janela.

Uma vez sentada o olhou airadamente. -Quando?-disse-. Como? Lorde John fué até a porta e olhou o escuro corredor, como era de esperar,

uma das criadas aguardava na escada se por acaso necessitavam algo. -Vete à cama -disse-. Não vamos necessitar nada mais esta noite.

396

A pulseira assentiu aliviada; estava acordada do amanhecer e era perto de

meia-noite. O também estava esgotado depois da larga cavalgada desde o Edenton, mas as notícias não podiam esperar. Tinha chegado ao anoitecer e

ainda não tinha tido oportunidade de estar a sotas com a Brianna. Fechou as portas para evitar interrupções. -Capturaram-no aqui, no Cross Creek -disse sem preâmbulos, sentando-se

a seu lado-. Quanto a como, não sei. A acusação era de contrabando, mas uma vez que descobriram sua identidade se somaram outros delitos.

-Contrabando do que? -Chá e brandy. Ao menos, esta vez. Inteirei-me no Edentoo, é evidente que é

um homem muito conhecido, sua reputação se estende desde o Charleston ao

Jamestown. Observou-a de perto; estava pálida mas não gasta. -Condenaram-no -continuou-. Pendurarão-o a semana próxima no

Wilmington. Pensei que quereria sabê-lo. Brianna respirou profundamente e deixou sair o ar sem dizer nada. Olhou-

a assombrado; Brianna estava enorme. Só fazia dois meses desde seu compromisso e tinha engordado notavelmente.

-Muito obrigado -disse olhando-o com desconcertante firmeza-. Quando o

pendurarão? -na sexta-feira que vem.

-Está no Wilmington?. Já mais tranqüilo foi procurar sua taça e bebeu um gole. -Não. Ainda está aqui, não faz falta julgamento porque já tinha sido

condenado anteriormente. -Então, levarão-o ao Wilmington para a execução? Quando? -Não tenho nem idéia.

O olhar da Brianna tinha um brilho que reconheceu: não era abstração, era cálculo.

-Quero vê-lo. Com determinação bebeu o resto do brandy. -Não, disse cortante, enquanto deixava a taça.- Embora seu estado te

permitisse viajar ao Witmington, que com toda segurança não é assim -acrescentou, olhando o volumoso ventre-, assistir a uma execução não seria bom

para seu filho. Agora bem, eu simpatizo totalmente com seus sentimentos, querida, mas...

-Não, não me entende, não tem nem idéia de quais são meus sentimentos -

disse com total convicção. Contemplou-a, ficou em pé e foi procurar o botellón. Brianna observou a

líquida cor âmbar e esperou a que lhe servisse antes de seguir falando.

-Não quero vê-lo morrer. -Graças a Deus —murmurou Grei, bebendo de sua taça.

-Quero falar com ele. engasgou-se e tossiu cuspindo o brandy. -Talvez deveria te sentar -disse Brianna-. Não tem bom aspecto.

-Não o entendo. sentou-se e se secou a cara. -Sei o que me vais dizer -disse Brianna com firmeza-, assim não te

incomode. Pode conseguir que o veja antes de que o levem ao Wilmington? E antes de dizer «não, claro que não», te pergunte o que é o que farei se me

responde isso.

397

Tinha a boca aberta para dizer "não", mas a fechou contemplando-a em

silêncio. -Suponho que não tentará me ameaçar outra vez, não? Porque se o faz...

-É obvio que não. Teve a delicadeza de ruborizar-se. -Bom, então, confesso que não sei o que pensa...

-Direi a minha tia que Stephen Bonnet é o pai de meu filho. E também ao Farquard Campbell, ao Geraid Forbes, ao juiz Alderdyce; e logo irei à guarnição e

o direi ao sargento Murchison e se não me deixa entrar lhe pedirei ao senhor Campbell uma ordem para vê-lo- Tenho direito.

Observou-a e se deu conta de que não era uma ameaça ociosa. Estava ali,

firme e sólida como uma estátua, impossível de convencer. -Não te importa provocar um escândalo? -Não -respondeu com calma—. O que tenho que perder? Suponho que

teremos que romper nosso compromisso. Mas se todo o condado sabe quem é o pai do menino terá o mesmo efeito que o compromisso: evitar que outros homens

queiram casar-se comigo. -Sua reputação... -começou, sabendo que era inútil. -Será pior que saibam que estou grávida porque me violou um pirata, que

por ter sido uma licenciosa, como assinalou encantadoramente meu pai? Havia uma nota de amargura que impediu a lorde John dizer nada.

-De todos os modos, a tia Yocasta não me jogará pelo escândalo. Não morrerei de fome e o menino tampouco.

Lorde John voltou a beber; sentia curiosidade pelo que tinha ocorrido entre

a jovem e seu pai, mas não queria falar agora. Em troca lhe perguntou. -por que? por que quer falar com o Bonnet? Disse que não conhecia seus

sentimentos, o qual é verdade. Mas devem ser exigentes para fazer que queira

empreender tão drástica expedição. Um sorriso iluminou sua cara.

-Realmente eu gosto de sua forma de falar. -Sinto-me muito adulado. Entretanto, se queria responder a minha

pergunta..

Brianna suspirou, ficou em pé e tirou um papel dobrado de um bolso de seu vestido.

-Lê isto -disse entregando-lhe Logo se voltou e foi até a outra ponta da habitação, onde tinha suas

pinturas. A letra lhe resultou conhecida. Tinha visto a letra do Jaime Fraser em

outra ocasião e isso era suficiente, era inconfundível. Filha:

Não sei se voltarei a verte. Meu fervente esperança é poder fazê-lo e que todo se arrume entre nós, mas isso está em mãos de Deus. Escrevo-te agora se

por acaso Ele dispõe de outra maneira. Uma vez me perguntou se estava bem matar como vingança pelo grande

mal que lhe fizeram. Disse-te que não devia fazê-lo.

Pela bem de minha alma, pelo bem de minha própria vida deve encontrar a graça do perdão. A liberdade é difícil de conseguir, mas nunca é fruto do assassinato.

Não tenha medo de que ele escape à vingança. Um homem assim leva a semente de sua própria destruição. Se não morrer por minha mão será pela de

outro. Mas não deve ser seu emano a que o castigue.

398

me escute, pelo amor que te tenho.

Abaixo tinha escrito: «Seu mais afetuoso e amante pai, Jamie Fraser». E logo, simplesmente, P.

-Não me despedi dele. Lorde John levantou a vista surpreso. Brianna estava de costas a ele,

contemplando o tecido de uma paisagem ao meio pintar como se estivesse olhando pela janela. aproximou-se dela e se voltou para olhá-lo à cara.

-Quero ser livre -disse com calma-. Tanto se retornar Roger como se não. Não importa o que aconteça.

A criatura estava inquieta. Podia ver os movimentos em seu ventre como se

fora um gato dentro de uma bolsa. -Está segura de que tem que ver o Bonnet? -P diz que tenho que encontrar uma maneira de perdoá-lo. Tento-o desde

que eles se foram, mas não posso fazê-lo. Talvez se o vejo possa consegui-lo. Tenho que tentá-lo.

-Muito bem. Baixou os ombros em sinal de rendição. Uma luz iluminou os olhos da Brianna. Alívio? Grei tratou de sorrir.

-Fará-o? -Sim. Deus saberá como, mas o farei.

Apagou todas as velas, salvo uma para iluminar o caminho. Ofereceu-lhe o braço e caminharam pelo vazio salão. Ao pé da escada se deteve para deixar que fora diante.

-Brianna. voltou-se intrigada. Grei vacilou, não sabia como lhe pedir o que

súbitamente desejava tanto. Levantou a mão.

-Posso...? Sem falar, Brianna lhe agarrou a mão e a apoiou em seu ventre. Então

sentiu um empurrão que o estremeceu de emoção. -minha mãe -disse encantado-. É de verdade. Contemplou-o risonha.

-Sim -disse-. Já sei.

Fazia muito que tinha escurecido quando se detiveram ante a guarnição. Era um edifício pequeno que o depósito de atrás diminuía ainda mais.

- Têm-no aí?

-Não. Lorde John olhou ao redor enquanto atava os cavalos. Uma luz brilhava na

janela, mas a rua estava silenciosa e vazia. Ajudou-a a baixar do carro sustentando-a com as duas mãos.

-Está no porão, debaixo do depósito -respondeu em voz baixa-. Subornei ao

soldado de guarda para que nos deixasse entrar. -Deixará-nos, não -disse, também em voz baixa mas com firmeza—. A mim.

Quero vê-lo a sós.

Apertou os lábios por um momento e logo assentiu. -Asseguraram-me que está encadeado. De outra forma não tivesse aceito.

abriu-se a porta iluminando a entrada -É você, senhor? —O soldado se surpreendeu ao ver a Brianna-. Não me

tinha dado conta...

399

-Não é necessário. -A voz de lorde John era iria-. Nos mostre o caminho, por

favor. Depois de olhar com preocupação o ventre volumoso da Brianna, fez-os

passar por uma pequena porta que dava ao depósito. As noites de abril eram fritem, mas ali o ar era pesado e cheirava a

terebintina. Brianna se sentia sufocada. O depósito estava quase cheio de caixas

de madeira e barris de brandy e rum, preparados para rodar pelas rampas que levavam até o mole onde aguardavam as barcadas.

-Devem tomar cuidado com o fogo do abajur -indicou o guarda-. Embora não há perigo aqui embaixo...

O depósito estava construído frente ao rio para facilitar a carga. O chão da

parte dianteira era de madeira. Entretanto, na parte de atrás tinha sido substituída por tijolo. Brianna sentiu a mudança do eco dos passos ao cruzar o limite.

-Não demorarão muito, verdade, senhor? -Só o necessário -respondeu lorde John.

Agarrou o abajur e esperou a que o soldado levantasse a trampilla. Ante eles apareceu uma escada de tijolo.

-É uma sorte que as tenham feito o bastante largas para que passem os

barris -murmurou Brianna, apoiando-se no braço de lorde John para baixar. deu-se conta de por que o guarda não se preocupava com o fogo naquela

parte. O ar era tão úmido que não lhe tivesse sentido saudades ver cogumelos pelas paredes. Podia ouvir o som da água gotejando e ver as baratas fugindo da luz.

Enquanto o guarda lutava com a chave, Brianna sentiu uma quebra de onda de pânico. Não tinha nem idéia do que dizer ou fazer. .O que estava fazendo ali?, perguntava-se.

Quando finalmente a porta se abriu, lorde John lhe apertou o braço para lhe dar valor. Respirou profundamente, inclinou a cabeça e entrou. Estava

sentado em um banco, com os olhos fixos na porta. Era evidente que esperava a alguém, mas não a ela. agitou-se surpreso e o verde de seus olhos brilhou ante a luz. Ouviu um ruído metálico e recordou que estava encadeado, o que lhe deu um

pouco de confiança. Brianna agarrou o farol que lhe dava o soldado e fechou atrás dela. apoiou-se na porta de madeira, examinando-o em silêncio. Parecia

menos corpulento. Talvez fora porque agora ela estava enorme. -Sabe quem sou? Sacudiu a cabeça e a percorreu com o olhar.

-Não acredito que saiba embora me diga seu nome, carinho. -Não me chame assim! A rajada de fúria que sentiu a agarrou por surpresa. Tinha ido com a

intenção de perdoá-lo e esse não era um bom começo. -Como quer -disse, com frieza mas sem aborrecimento-. não, não sei quem

é. Conheço seu rosto... e outras coisas –seus dentes brilharam sobre sua loira barba—, mas não seu nome. Suponho que me dirá isso, não?

-Reconhece-me?

-Claro que se. Parecia divertido e teve vontades de cruzar a cela para esbofeteá-lo. Em

lugar disso respirou profundamente. Foi um engano, porque aspirar o aroma do

homem lhe provocou uma arcada súbita e violenta. Não se tinha chateado antes, mas o aroma do Bonnet lhe trouxe para a memória tudas as lembranças. deu-se

a volta e vomitou bílis e comida sem digerir. Apoiou a frente na parede, secou-se

400

a boca e se voltou. Seguia sentado, observando-a como um animal encadeado em

sua jaula. Seus olhos, de um verde pálido, só mostravam cautela. -Meu nome é Brianna Fraser.

Assentiu repetindo. -Brianna Fraser. Um bonito nome. E?. -Meus pais são James e Claire Fraser. Salvaram-lhe a vida e você lhes

roubou. -Sim.

Disse-o com total naturalidade. Sentiu uma imperiosa necessidade de rir, tão inesperada como as náuseas. O que esperava? Remorsos? Desculpas de um homem que tomava as coisas porque as desejava?

-Se vier com a esperança de recuperar as jóias me temo que chega tarde -disse com amabilidade-. Vendi uma para comprar um navio e as outras dois me roubaram isso. Talvez cria que foi justo.

-Roubadas? Quando? Roger lhe havia dito: «Não se preocupe pelo homem que as tem, seguro que

as roubou a outro». Bonnet se encolheu de ombros. -Faz uns quatro meses. por que?

-Por nada. Se tinha sido Roger, eram as pedras que lhes tivessem permitido cruzar a

salvo. Um pobre consolo. -Também havia um anel, não? Mas esse lhe levou isso você. Sorriu mostrando os dentes.

-Paguei por esse anel. -Que negócios há entre nós então, carinho? Olhou-a com curiosidade.

Esta vez respirou profundamente pela boca. -Hão-me dito que lhe vão pendurar.

-me hão dito o mesmo. Não terá vindo por lástima. Não, não acredito. -Não -disse, olhando-o pensativa-. Para ser sincera te direi que vou

descansar muito mais tranqüila uma vez esteja morto.

Contemplou-a por um instante e começou a rir a gargalhadas enquanto caíam as lágrimas pelas bochechas.

-O que quer de mim então? Abriu a boca para responder e, de repente, a união entre eles desapareceu.

Era como se tivesse dado um passo mas cruzado um abismo. Agora estava a

salvo e sozinha, em uma bendita solidão. Já não podia chegar até ela. -Nada -disse-. Não queira nada teu, vim para te dar algo. abriu-se a capa e se passou as mãos pelo ventre.

-É teu. Bonnet passou a vista pelo ventre e logo a olhou a ela.

-Já houve outras prostitutas que trataram de que carregasse com seus filhos -disse sem maldade, mas seu olhar era distinto.

-Crie que sou uma prostituta? -Não lhe importava se acreditava ou não,

embora duvidava que acreditasse-. Não tenho motivos para mentir. Já lhe disse isso, não quero nada teu.

Fechou a capa em um gesto de amparo. Já o tinha feito. Podia ir-se.

-vais morrer. -Surpreendeu-lhe descobrir que sentia certa piedade por aquele homem-. Se o saber que deixar a alguém na terra lhe faz isso mais fácil,

você gostará de havê-lo sabido. Mas eu já terminei contigo.

401

Ao voltar-se para agarrar o farol lhe surpreendeu ver a porta entreabierta.

Não teve tempo de zangar-se com lorde John por espiá-la, porque a porta se abriu de tudo.

-Bom, foi um bonito discurso -disse o sargento Murchison levantando a culatra do mosquete-. Mas eu não posso dizer que tenha terminado contigo.

Brianna deu um passo atrás e agitou o farol ante a cabeça do homem, em

um gesto defensivo. O sargento agachou a cabeça com um grito de alarme e a agarrou pela boneca.

-Diabos, esteve perto! É rápida, moça, embora não tanto como um bom sargento.

Bonnet agarrou o abajur e lhe soltou a boneca.

-Não estava encadeado -disse estupidamente Brianna enquanto se dava a volta para tratar de chegar até a porta.

Murchison a ameaçou com o mosquete lhe fechando o caminho, mas não

antes de que pudesse ver o corredor, no que havia uma figura atirada de barriga para baixo.

-Matou-o -sussurrou-. Mierda, matou-o. -A quem mataram? -Bonnet levantou o abajur para poder ver uma cabeça

loira manchada de sangue-, Quem diabos é esse?

-Um intrometido -respondeu Murchison bruscamente-, Vamos! Não há tempo que perder. Já me encarreguei do guarda e as mechas estão acesas.

-Espera! -Bonnet olhava ao sargento e a Brianna com o rosto pensativo. -Não há tempo. -O sargento levantou sua arma- Não se preocupe, ninguém

os encontrará.

Brianna podia cheirar a pólvora. O sargento se voltou para ela mas não havia espaço para apontar a arma. Grunhiu irritado e levantou o mosquete para lhe pegar com a culatra. Brianna aferrou o canhão sem dar-se conta do que fazia.

Tudo pareceu mover-se com lentidão. Murchison e Bonnet permaneceram petrificados e ela sentiu como se visse a cena desde fora. Arrebatou- o mosquete

ao Murchison como se fora um pau de vassoura, levantou-o e o deixou cair. Ante seus olhos viu trocar o rosto daquele homem, passando de uma expressão de assombro a outra de horror e finalmente a de inconsciência, tão lentamente que

pôde ver as mudanças e as manchas de sangue que foram aparecendo em sua nuca.

Estava totalmente tranqüila. olhou-se as mãos e sentiu o poder que percorria seu corpo. O homem ainda não tinha chegado ao chão quando o golpeou outra vez.

Uma voz repetia incesantemente seu nome. -Detenha! Mulher... Brianna... detenha! Umas mãos a agarraram pelos ombros sacudindo-a. liberou-se delas ainda

com a arma na mão. -Não me toque! -disse.

O homem retrocedeu olhando-a com surpresa, e talvez com medo. Medo dela? por que ia ter medo dela? Estava-lhe falando, podia ver como movia os lábios, mas não ouvia as palavras, estava enjoada. Então o tempo começou a

correr de novo; Apoiou o canhão para sujeitar-se. -O que há dito? -Pinjente que não podemos perder o tempo! Não lhe ouviste dizer que as

mechas estavam acesas? —perguntou com impaciência. -Que mechas?

402

Viu seu olhar e se colocou ante a porta lhe impedindo o passo. O homem

deu um passo atrás e se chocou com o banco. -Não pensará me matar?

Bonnet tratou de sorrir, mas o pânico apareceu em seus olhos. Ela havia dito que descansaria mais tranqüila depois de sua morte.

«A liberdade é difícil de conseguir, mas não é fruto do assassinato.» Agora

tinha a liberdade em suas mãos e não ia perdê-la por ele. -Não -disse, sujeitando a arma firmemente-, Mas te dispararei nos joelhos e

te deixarei aqui se não me disser agora mesmo que diabos passa. Bonnet observou a arma. Se apertava o gatilho não faltaria. encolheu-se de

ombros.

-O depósito de acima está cheio de pólvora -disse, falando rapidamente-. Não sei quando, mas estalará. Saiamos daqui!

-por que? -Suavam-lhe as mãos, mas sujeitava a arma com força. O menino

se movia para lhe recordar que ela tampouco tinha muito tempo. Mas podia arriscar um minuto para saber a verdade, pela memória do John Grei, que estava

atirado no corredor-. Matou a um bom homem e quero saber por que! -Contrabando! O sargento e eu fomos sócios. Eu lhe trazia produtos de

contrabando muito mais baratos e ele lhes punha o selo da Coroa. Quase

dançava de impaciência. -Segue falando.

-Um soldado, o guarda, estava fazendo muitas perguntas. Murchison não sabia se o tinha contado a alguém, mas não era prudente esperar, menos ainda depois de que me capturassem. O sargento tirou os barris de licor e os substituiu

por lhes ouvir de terebintina. Ao incendiar-se, ninguém poderá dizer que não era brandy. Isso é tudo. Agora, me deixe sair!

-Muito bem. -Baixou a arma sem deixar de lhe apontar-. E o que passa com ele?

Fez um gesto para o sargento Murchison que começava a despertar.

-O que acontece ele? Olhou-a inexpressivo. -Não o vais levar contigo?

-Não. Mulher, deixe ir e você vete também. vai estalar tudo! -Mas está vivo! Não podemos deixá-lo aqui!

Bonnet a olhou com exasperação; cruzou a habitação com grande rapidez, inclinou-se, tirou a adaga do cinturão do sargento e lhe cortou a garganta.

-Já está -disse, endireitando-se-. Já está morto. Deixa-o.

Brianna começou a tremer. Ouvia afastá-los passos do Bonnet enquanto contemplava o corpo do John Grei. Seu ventre se contraiu e ficou sem respiração.

«Não. -Pensou no menino que tinha em seu interior-. Não posso dar a luz. Não são contrações. Agora não tenho tempo.» Deu uns passos pelo corredor e se deteve. Não, devia estar segura. voltou-se e se ajoelhou ante o corpo de Grei.

Estava imóvel e parecia morto. Tratou de lhe dar a volta mas era muito pesado. Procurou o pulso na garganta. Onde diabos estava? Tinha visto sua mãe fazê-lo em urgências; era mais fácil de encontrar que na boneca, dizia, mas não podia

encontrá-lo. Quanto tempo faltaria para que todo aquilo estalasse? Tentou-o uma vez mais e encontrou um fraco pulsado. Podia estar

morrendo, mas ainda vivia. Estava muito assustada para sentir alívio. Agora tinha que tirá-lo também a ele. Então recordou o que tinha visto. Sim, podia ter razão. O teto era de tijolo. Bonnet havia dito que estalaria... mas seria assim? A

terebintina ardia e, se estava baixo pressão, podia estalar, mas não como uma

403

bomba. Havia pólvora, mas não explosivos de grande potencializa. Esta podia

estalar em vários lugares e incendiar os barris próximos que arderiam devagar. Tinha visto o Sinclair fazer barris como aqueles.

Os barris se queimariam mas sem explorar e, se o faziam, não seria ao mesmo tempo. Sua respiração se tranqüilizou e ficou as mãos sobre o ventre- Logo se sentou no chão.

-Acredito que toda irá bem -sussurrou, não muito segura de se lhe falava com o John, ao menino ou a ela mesma.

Então se dedicou a atender a Grei. Ouviu passos, mas não vinham da escada, mas sim do outro lado. Depois dela apareceu Stephen Bonnet na escuridão.

-Corre! -gritou-. por que não sai? -Aqui é mais seguro. -Levantou o mosquete que tinha deixado no chão-.

Vete.

Contemplou-a boquiaberto. -Seguro? Mulher, está louca! Não ouviste o que há dito...?

-Sim, mas estava equivocado. Não explorará e, se acontecer, aqui estaremos mais seguros.

-Ao diabo! Embora não caia o porão, o que passará quando o fogo incendeie

o teto? -Não pode, é de tijolo.

Olhou-o com o queixo erguido. -Aqui sim, mas na parte dianteira é de madeira. Queimará-se e logo se

desabará. E o que passará quando entre a fumaça?

-Não está aberto? O porão não está fechado? A outra porta do corredor não está aberta?

Já sabia a resposta. Tinha deslocado para aquele lado, não fazia as

escadas. -Sim!Agora vêem!

Tratou de agarrá-la do braço, mas se apartou apontando-o com a arma. -Não vou sem ele. -Esse homem está morto!

-Não! Levanta-o! A fúria e o assombro cruzaram pelo rosto do Bonnet.

-Levanta-o! -repetiu com fúria. Muito lentamente, Bonnet levantou o John Grei e o carregou sobre os

ombros.

-Vamos, então. E sem dizer nada avançou pela escuridão levando a Brianna atrás dele. Bonnet se movia bastante mais rápido que ela; quase não podia lhe seguir.

-Mulher! Brianna! -Já vou! -respondeu, e se apressou cambaleante.

Podia cheirar a fumaça. Estavam debaixo do mole, pensou Brianna ao ver a água brilhando sobre

suas cabeças. Bonnet não se deteve nem a soltou, empurrou-a para a erva e o

barro da borda até que se deteve baixo umas árvores. Se, inclinou, deslizou o corpo de Grei na terra e ficou naquela posição até recuperar o fôlego.

Brianna se deu conta de que podia ver claramente aos dois homens. deu-se

a volta e viu o depósito ardendo e as chamas subindo pelas paredes. Sentiu uma mão no ombro; ao dá-la volta se encontrou com a cara do Bonnet.

-Tenho um navio me esperando rio acima. Quer vir comigo?

404

Brianna negou com a cabeça. Ainda tênia a arma, mas já não a

necessitava. Ele já não era uma ameaça para ela. -É verdade? -perguntou bruscamente Bonnet.

Sem pedir permissão pôs as mãos sobre seu ventre. Brianna se fez a um lado e se cobriu com a capa. Assentiu sem poder falar.

Levantou-lhe o queixo e a olhou à cara. Possivelmente para assegurar-se de

sua sinceridade. Então a soltou e se meteu um dedo na boca para procurar algo. Agarrou-lhe a mão e lhe deixou algo úmido e duro sobre a palma.

-Para que o mantenha -disse, e sorriu zombador-, Cuida-o, carinho! E desapareceu como um demônio no meio do fogo. Levantou o mosquete

com o dedo no gatilho. Não estava a mais de vinte metros, um branco perfeito.

«Não por sua mão.» Baixou a arma e o deixou partir. O depósito estava em chamas e o calor lhe coloria as bochechas e lhe

frisava o cabelo. Ainda tinha o punho fechado com o objeto que lhe tinha dado. Abriu a mão e olhou o úmido diamante negro que o fogo iluminava, fazendo

brilhar suas caras com tons avermelhados.

DÉCIMA SEGUNDA PARTE JE T´AIME

63 Perdão

River Run, maio de 1770

-É a mulher mais teimosa que conheci em minha vida!. Brianna entrou na habitação como um navio a toda vela e se deixou cair

no sofá, ao lado da cama. Lorde John Grei abriu um olho baixo o turbante de vendagens. -Sua tia?

-Quem, se não? -Tem um espelho em seu dormitório, não?.

Sua boca se curvou formando um sorriso e ela acabou imitando-o. -É por seu maldito testamento. Disse-lhe que não queria River Run, que

não vou ser a proprietária de nenhum escravo, mas ela não quer trocá-lo.

Simplesmente sorri como se eu fora uma menina de seis anos que tivesse um manha de criança, e logo me diz que com o tempo me alegrarei. me alegrar! -

Soprou e se acomodou na poltrona—. O que posso fazer? -Nada. -Nada? -Derrubou seu desgosto sobre ele- Como não vou fazer nada?

-Para começar, surpreenderia-me muito que sua tia não fora imortal. Muitos membros dessa particular raça de escoceses parecem sê-lo. Entretanto -agitou a mão para descartar a idéia—, sim não o é e ela persiste em sua idéia de

que pode ser uma boa proprietária do River Run... -O que te faz pensar que não posso sê-lo? -disse com seu orgulho ferido.

-Não pode dirigir uma plantação deste tamanho sem escravos e não quer os ter por questões de consciência. Voltando para tema, se for a proprietária dos escravos sempre poderá fazer algum tipo de acerto para liberá-los.

-Não na Carolina do Norte. A Assembléia...

405

-Não, não na Carolina do Norte -disse e continuou pacientemente-. Mas se

surgir a ocasião e te encontra em posse dos escravos, me pode vender isso a mi. -Mas isso...

-Eu os levaria a Virginia, onde a emancipação está muito menos controlada. Quando forem livres, devolve-me o dinheiro. Por então não ficará nada, o que parece ser seu principal desejo, além de te acautelar contra toda

possibilidade de ser feliz, te esforçando por não te casar com o homem que amas, por exemplo.

-Prometi que primeiro o escutaria. -Olhou a lorde John-. Embora siga dizendo que é uma chantagem sentimental.

-Muito mais efetivo que outros. Quase vale a pena rompê-la cabeça para

poder dominar a uma Fraser. Brianna passou por cima o comentário. -Só disse que escutaria ao Roger. Ainda penso que quando o souber tudo

não quererá..., não poderá. —Pôs uma mão sobre seu enorme ventre-. Você não poderia, não? Refiro-me a te fazer carrego de um filho que não é teu.

Lorde John fez uma careta e se acomodou na cama. -Pelo bem de seus pais? Suponho que sim. -Abriu os olhos e a olhou

sonriendo-. Em realidade, é o que estive fazendo.

-Refere-te para mim? Bom, se, mas... quero dizer... eu não sou uma menina e não tem que me reclamar como própria; e espero que não o faça, sobre tudo por

meu pai. ficou quieto um instante e lhe apertou a mão. -Não, não é isso. -E deixou escapar um grunhido.

-Encontra-te mau? -perguntou ansiosa-. Quer que te traga algo? Chá? Um cataplasma?

-Não, é a maldita dor de cabeça -disse-. A luz me incomoda.

Fechou os olhos de novo. -me diga -disse, com os olhos fechados-, por que está tão convencida de

que um homem não pode querer a um menino, salvo que seja de seu sangue? Quando disse que o tinha feito, não referia a tí. Meu filho, meu enteado, é o filho da irmã de meu difunta algema. Por um trágico acidente, seus pais morreram

com um dia de diferença. Minha esposa Isobel e seus pais o criaram desde recém-nascido. Eu me casei com o Isobel quando Willie tinha seis anos. Como vê, não

há laços de sangue entre nós, entretanto, ninguém pode duvidar de meu afeto para ele, nem dizer que não é meu filho, porque lhe pediria contas por isso.

-Já vejo -disse—. Não sabia. —Pensativa, jogava com seu anel-. Acredito...

acredito que não estou tão preocupada com o Roger e o menino. Para ser sincera...

-Não poderia ser de outra maneira -murmurou.

-Para ser sincera -continuou- acredito que me preocupa mais o que acontecer nós, entre o Roger e eu. -Vacilou e seguiu falando-. Eu não sabia que

Jamie Fraser era meu pai, não soube até que fui maior. Depois do levantamento, meus pais se separaram, cada um pensou que o outro tinha morrido e por isso minha mãe se casou de novo. Acreditava que Frank Randall era meu pai e não

descobri a verdade até depois de sua morte. -Ah! -Observou-a com crescente interesse—, E esse Randall foi cruel

contigo?.

-Não! O foi... maravilhoso. —Lhe quebrou a voz e tossiu—, Não, foi o melhor pai que pude ter tido. Pensava que meus pais eram um matrimônio feliz.

406

preocupavam-se o um pelo outro e se respeitavam; bom eu acreditava que tudo ia

bem. Lorde John se arranhou as vendagens. O médico lhe tinha barbeado a

cabeça, o qual, além de ferir sua vaidade, produzia-lhe picores. -Não vejo a diferença com sua situação atual. Brianna suspirou.

-Então meu pai morreu Y... descobrimos que Jamie Fraser ainda vivia. Minha mãe veio a reunir-se com ele e atrás dela cheguei eu. Y... era diferente,

notei-o quando vi como se olhavam o um ao outro. Nunca tinha visto um olhar assim entre o Frank Randall e ela.

-Ah, sim.

Ele tinha visto aquele olhar um par de vezes. A primeira vez desejou desesperadamente cravar uma faca no coração do Claire.

-Sabe o estranho que é? -perguntou Grei-, Essa paixão mútua?

-Sim. O que passa é que... acredito que a senti. Por muito pouco tempo, muito pouco. -Voltou a cabeça e o olhou, deixando que visse através de seus

olhos-. Se a perdi, quer dizer que a tive. Poderei viver com ela ou sem ela. Mas não vou viver com uma imitação. Não o poderia suportar.

Brianna lhe colocou a bandeja do café da manhã e se desabou na poltrona. -Drusus chegou correndo à cozinha avisando da chegada de dois

cavaleiros. Diz que alguém é meu pai: um homem grande com o cabelo avermelhado. Deus sabe que não há muitos como ele.

-Não, não muitos. -Grei sorriu-. Assim dois cavaleiros?

-Têm que ser P e minha mãe. Não encontrariam ao Roger. Ou o fizeram e não quis vir -disse jogando com o anel-,Que sorte que tenho este refúgio!

Lorde John piscou e tratou de tragar o bocado de torrada.

-Sim com essa extraordinária metáfora quer dizer que tenta te casar comigo, asseguro-te que.,.

-Não. -Dirigiu-lhe um sorriso indiferente—. Era uma brincadeira. -Ah, bom. -Tomou um sorvo de chá, fechando os olhos para desfrutar de

melhor o aroma-. Dois cavaleiros. Não foi com eles sua primo?.

-Sim. Espero que não lhe tenha acontecido nada ao Ian. -Podem ter ocorrido muitas coisas que obrigassem a sua mãe e a sua primo

a empreender a viagem depois que seu pai e MacKenzie. Ou para que sua primo e MacKenzie venham detrás de seus pais.

-Suponho que tem razão.

Grei apartou a bandeja. -me diga..., até onde chegam seus remorsos por ter provocado o incidente

que quase me custa a vida?

-O que quer dizer? ruborizou-se incômoda.

-Se te pedir que faça algo que não deseja fazer... Seu sentido de culpa e obrigação te empurrará a fazê-lo?

-Uma chantagem. Do que se trata? -perguntou cautelosa.

-Perdoa a seu pai. Não importa o que tenha acontecido. O embaraço a tinha feito mais sensível e as emoções lhe notavam na pele. Grei lhe acariciou a bochecha. -Por seu bem, tanto como pelo dele.

-Já o tenho feito. Baixou o olhar, com as mãos quietas sobre o regaço. O som dos cascos dos

cavalos chegou do exterior.

407

-Então, acredito que será melhor que vá e o diga, querida.

mordeu-se os lábios e assentiu. Sem dizer uma palavra mais ficou em pé e desapareceu como uma nuvem de tormenta no horizonte.

-Quando ouvimos que vinham dois cavaleiros e um deles era Jamie,

tememos que lhe tivesse passado algo a seu sobrinho ou ao MacKenzie. Seja

como for, a nenhum nos ocorreu que te pudesse ter acontecido algo a ti. -Sou imortal -murmurou, olhando alternativamente a seus olhos— Não

sabia? —Afrouxou a pressão de seus polegares sobre as pálpebras de Grei e este piscou-- Tem um ligeiro alongamento de uma pupila, mas é muito pequeno. Oprime meus dedos o mais forte que possa.

Obedeceu, assombrado de sua pouca força. -Encontraram ao MacKenzie? Incomodava-lhe não poder controlar sua curiosidade.

Claire lhe lançou um olhar rápido e voltou a fixar sua atenção nas mãos de lorde John.

-Sim. Já virá. um pouco mais tarde. -Fará-o? Captou o tom da pergunta e vacilou, logo o olhou diretamente.

-O que é o que sabe? -Tudo -disse, e teve a momentânea satisfação de vê-la assombrada.

-Tudo? -O suficiente -corrigiu com sarcasmo-. O suficiente para perguntar se a

afirmação de que MacKenzie retornará é algo que sabe ou só seu desejo de que

ocorra. -Chama-o fé. Abriu-lhe a camisa de dormir lhe deixando o peito ao descoberto. Apoiou

uma ponta do tubo sobre o peito e colocou o ouvido no outro extremo. -Por favor, senhora!

-Cala, não posso ouvir -disse fazendo gestos com uma mão.. Foi colocando o tubo em diferentes parte e lhe apalpou o fígado. -Fez de ventre hoje? -perguntou, lhe tocando com familiaridade o abdômen.

-Nego-me a responder -disse, fechando-a camisa com dignidade. Parecia mais extravagante do habitual. A mulher devia ter mais de

quarenta anos, mas não mostrava signos de envelhecimento salvo umas pequenas linhas junto aos olhos e mechas chapeadas nesse ridículo arbusto de cabelo. Estava mais magra do que recordava, embora era difícil julgar sua figura

vestida com a camisa e os calções de couro. notava-se que tinha estado exposta ao sol, pois tanto seu rosto como suas mãos estavam bronzeados. Isso fazia que seus grandes olhos dourados parecessem mais assombrosos quando olhavam do

modo em que o fazia nesse momento. -Brianna me disse que o doutor Fentiman lhe trepanó o crânio.

-Isso me hão dito. Então não me dava conta. -Melhor. Importaria-te que o olhasse? É por curiosidade-disse com uma

delicadeza desacostumada-. Nunca vi uma trepanação.

Lorde John fechou os olhos em sinal de rendição. -Deixando a um lado o estado de minhas tripas, não tenho secretos para

você, senhora.

Torceu a cabeça indicando a localização do orifício baixo as ataduras. -Brianna está com seu pai? -perguntou, ainda com os olhos fechados.

408

-Sim. -Sua voz se suavizou-. Disse-me... disse-nos— algo do que fez por ela.

Muito obrigado. -Foi um prazer estar a seu serviço. Inclusive com o crânio perfurado.

Sorriu fracamente. -Jamie virá a verte depois. Agora está falando com a Brianna no jardim. -Estão.,, de acordo? -perguntou com um toque de ansiedade.

-Você mesmo o pode ver. -Passou-lhe um braço pelas costas e com uma força surpreendente para uma mulher de seu tamanho, endireitou-o. Viu as duas

figuras ao fundo do jardim, com as cabeças juntas, rendo e abraçando-se. -Acredito que chegamos bem a tempo -murmurou Claire, observando a sua

filha-. Não lhe falta muito.

-Confesso que me alegro de sua chegada -disse, deixando que o voltasse a deitar sobre o travesseiro- Logo que sobrevivi à experiência de ser a babá de sua filha, e me temo que ter que fazer de parteira tivesse terminado comigo.

-Quase me esquecimento. -Claire procurou na bolsita de couro que lhe pendurava do pescoço-. Brianna me disse que lhe devolvesse isso... já não o

necessitará. Levantou a mão e o brilhante azul caiu sobre sua palma. -Cabaças! -disse com um sorriso zombador.

64

O final do nono mês -É como no beisebol -assegurei-lhe-. Largos períodos de aborrecimento,

seguidos de tempos curtos de intensa atividade. Brianna riu e logo se deteve bruscamente.

-Ah. Intensos. Sim, ah... Ao menos nos partidos de beisebol pode beber

cerveja e comer perritos quentes quando te aborrece. Jamie, fazendo caso só à parte da conversação que podia entender,

interveio. -Há cerveja fresca na despensa. Quer que te traga? - E olhou ansioso a

Brianna.

-Não -pinjente-, o álcool não é bom para o menino. -Ah. E o cão quente?

Parecia preparado para caçar um. -É uma espécie de salsicha metida em pão -pinjente, fazendo esforços para

não rir -.Não acredito que queira comer agora.

-Não -disse Brianna fracamente. Jamie lhe limpou o suor da cara e do pescoço. —Ponha sua cabeça entre os joelhos.

Brianna o olhou indignada. -Não posso pôr... a cabeça... entre os joelhos -disse com os dentes

apertados. O espasmo passou e a cor voltou para suas bochechas. Jamie franzia o cenho com preocupação. Deu um passo fazia a porta.

-Acredito que será melhor que vá, assim... -Não me deixe! -Mas é que... quero dizer, tem a sua mãe Y...

-Não me deixe! -repetiu e o agarrou por braço,-sacudindo-o com desespero-. Não pode fazê-lo! Disse que não morreria. Se fica estarei bem e não morrerei.

409

Era forte e saudável, Eu tinha perdido um filho e quase morro por culpa da

febre. Senti medo. Eu podia proteger a da febre mas ante uma hemorragia não tinha defesas, salvo tratar de salvar à criatura com uma cesárea. Como medida

de prevenção tinha esterilizado meu bisturi. -Não morrerá, Bri -pinjente; com calma pus uma mão sobre seu ombro,

mas deveu sentir meu temor detrás de meu aspecto de profissional.

-P, não me deixe. apoiou-se no Jamie.

-Não tenha medo, não te deixarei. Fico aqui. Sustentou-a com um braço e me olhou desesperado. -Caminha com ela -disse-lhe-. Como se fora um cavalo com um cólica -

acrescentei. Isso fez rir a Brianna. -Está bem? -perguntou ansioso, depois de dar várias voltas.

-Já lhe direi isso quando não o estiver —assegurou. depois de quase uma hora de caminhar, Brianna se deteve em meio da

habitação respirando como um cavalo depois de uma carreira. -Quero me deitar -disse. Fedra e eu lhe tiramos o vestido e a deitamos. Pus as mãos sobre seu

ventre e senti, depois de uma contração, os movimentos da criatura. -Pai!

Jamie a agarrou da mão. -Estou aqui, a bheanachd, estou aqui. Respirou pesadamente, relaxou-se e tragou.

-Quanto falta? -perguntou. -Não sei. Mas acredito que não muito.

As contrações eram a cada cinco minutos mais ou menos, isso podia durar ou terminar bruscamente.

-Está-o fazendo bem, carinho -murmurei-. Muito bem.

—Olhei ao Jamie e sorri-. Você também. Tentou me devolver o sorriso. -me fale, P -disse súbitamente Briannna.

-Né? -Me. olhou desesperado-, O que devo dizer? -Não importa. o conte histórias, algo que distraia sua mente.

-Bom. ouviste falar do Habetrot a solteirona?. Brianna respondeu com um grunhido. -Pois resulta que em uma antiga granja, perto do rio, vivia uma mulher

chamada Maisie, com cabelo avermelhado e olhos azuis. Não tinha marido... -deteve-se e o olhei lhe avisando.

Brianna deixou escapar um gemido terrível. Jamie lhe sujeitou as mãos e seguiu falando. de repente, Brianna se incorporou soltando ao Jamie e agarrando-as joelhos com o rosto congestionado pelo esforço.

-Agora, vamos -pinjente. Pu-lhe travesseiros detrás, fiz-a apoiar-se na cabeceira e chamei a Fedra

para que me iluminasse com o candelabro. Lubrifiquei-me os dedos com azeite e

toquei aquela carne que não tocava desde que Brianna era uma menina. Senti força, relaxação, logo outra contração e o líquido amniótico que se derramava

pela cama e gotejava no chão. Rezei para que não chegasse muito rápido e não a machucasse. O anel de carne se abriu súbitamente e meus dedos tocaram algo úmido e duro. Brianna empurrava, até que de repente apareceu uma cabecita

manchada com sangue e líquido amniótico. Encontrei-me frente a frente com

410

uma cabeça branca e uma cara enrugada como um punho que fazia caretas de

fúria. -O que é? Um menino? -perguntou Jamie com voz rouca.

-Isso espero. É a coisa mais horrível que vi. Que Deus a ajude se for uma menina.

Brianna deixou escapar um ruído que podia ser uma risada. Quase não tive

tempo de recolher a larga forma molhada. Envolvi-o em uma toalha de linho: era um menino, com o escroto redondo e púrpura entre suas gordas coxas; controlei

os signos do Apgar: respiração, cor, atividade... tudo bem. Fazia ruiditos de aborrecimento e golpeava o ar com seus punhos. Apoiei-o na cama enquanto me ocupava da Brianna. Não havia sinais de hemorragia e o cordão pulsava; era a

conexão entre eles. Brianna ofegava na cama, com o cabelo pego pelo suor e um enorme sorriso

de alívio e triunfo em seu rosto. Toquei a placenta.

-Uma vez mais, querida -pinjente brandamente. A última contração expulsou a placenta e então cortei o cordão e depositei o

menino em seus braços. -É precioso –sussurrei. Deixei-o com ela e dediquei ao que ficava por fazer. Apertei-lhe o abdômen

com o punho, com o fim de que o útero se contraíra e deixasse de sangrar. Podia ouvir a rajada de excitação que invadia a casa depois dos passos da Fedra, que

corria dando a notícia. Jamie sorria com as bochechas molhadas pelas lágrimas. Disse algo a

Brianna em gaélico e a beijou detrás da orelha.

-Terá fome? -A voz da Brianna era rouca-. Devo lhe dar de mamar?. -Prova. Algumas vezes estão dormidos, mas outras querem comer. abriu-se a camisola deixando ao descoberto seu volumoso peito. A criatura

fez uns ruídos e sua boca se prendeu do mamilo com ferocidade. -É forte, né? -pinjente, e me dava conta de que estava chorando.

Mais tarde, depois de deixar a Brianna e ao menino acomodados e lhes fazer um último controle para me assegurar de que tudo seguia bem, saí à galeria.

Jamie tinha ido contar se o ao John e me esperava ao pé da escada. Agarrou-me entre seus braços e me beijou.

-Você também o fez muito bem -sussurrou. Logo seus olhos brilharam de alegria e sorriu-. Abuelita!

-É branco ou moreno? -perguntou súbitamente Jamie, apoiando um cotovelo na cama-. Contei seus dedos, mas não emprestei atenção a nada mais.

-Não se pode saber ainda. -Eu tinha contado seus dedos e também o

pensei-. por agora é avermelhado e está talher por esse líquido branco. É provável que passe um dia ou dois antes de que sua pele tenha a cor natural. Tem um

pouco de cabelo escuro, mas lhe cairá. Além disso a cor de sua pele não provará nada, já que Brianna é branca de pele.

-Sim... mas se fosse moreno teríamos a segurança.

-Talvez não. Seu pai tinha a pele escura, como o meu. Podem ser gens recessivos Y...

-Podem ser o que?

Tratei, sem êxito, de explicar-lhe mas estava muito cansada para tanto esforço.

411

-Pode ser de qualquer cor e nunca teremos a segurança -pinjente

bocejando-. Não saberemos até que seja o bastante major para lhe encontrar algum parecido. Mas importa quem seja seu pai? A fim de contas, não vai ter

nenhum. Jamie me abraçou. Dormia nu e senti o pêlo de seu corpo contra minha

pele. Beijou-me brandamente no pescoço e suspirou.

-Ah, bom -disse pouco depois com tom desafiante-. Embora não conheça seu pai, ao menos estou seguro de quem é seu avô.

-Agora, durma, avô. Já tivemos suficiente por um dia. Ao momento estava dormido. Fiquei com os olhos bem abertos olhando as

estrelas através da janela. Havia dito a frase favorita do Frank, a que utilizava

quando Brianna ou eu nos preocupávamos com algo: «Foi suficiente por um dia». O ar da habitação tinha vida, movia as cortinas e acariciava minhas bochechas.

-Sabe? -sussurrei-- Sabe que já tem um filho?

Não houve resposta, mas a paz se apoderou gradualmente de mim na quietude da noite, até que finalmente o sonho chegou.

65 Retorno à Colina do Fraser

Yocasta se mostrava pouco disposto a separar-se de seu novo parente, mas

a semeia da primavera já ia com atraso e tínhamos nosso lar abandonado; precisávamos retornar à Colina quanto antes e Brianna não queria nem ouvir falar de ficar. O que nos facilitou as coisas, porque tivéssemos necessitado

dinamite para separar ao Jamie de seu neto. Lorde John já estava em condições de viajar e veio conosco até a rota do

Great Bufa-o, onde beijou a Brianna e ao menino, abraçou ao Jamie e, para

minha surpresa, a mim também; e se dirigiu para o norte, fazia Virginia e haciaWillie.

-Confio em que te ocupará deles -disse-me brandamente, assinalando o carro onde duas cabeças avermelhadas se inclinavam sobre o menino.

-Farei-o -respondi apertando sua mão-. Eu também confio em ti.

Levou minha mão brevemente até seus lábios e me sorriu. afastou-se sem olhar para trás.

Uma semana mais tarde chegamos ao caminho onde cresciam os morangos silvestres: verde, branco e vermelho juntos, perseverança e valor, doçura e amargura mescladas à sombra das árvores.

A cabana estava suja, o jardim descuidado e a estrutura da nova casa era como um esqueleto negro. Pareciam umas ruínas. Nunca senti tanta alegria ao chegar a casa. Nunca.

«Nome», escrevi e me detive. Seu sobrenome estava aberto a discussão e seu nome de pilha ainda não tinha sido decidido. Eu o chamava «tesouro» ou

«querido». Lizzie o chamava «querido moço» e Jamie lhe falava em gaélico, lhe dizendo «neto» ou ao Rnaidh, «o Vermelho», já que seu penugem negro e sua pele escura se converteram em uma espécie de incendeio sobre sua pele branca, o que

deixava bem claro quem era seu avô, à margem de quem fora seu pai. Brianna não precisava chamá-lo de maneira nenhuma. Sempre o tinha com

ela. Não queria lhe dar um nome ainda. -Quando? -tinha perguntado Lizzie, mas Brianna não respondeu. Eu sabia quando, quando retornasse Roger.

412

-E se não vir? -disse-me Jamie em privado-. A pobre criatura não pode viver

sem nome. Essa moça é muito teimosa!. -Ela confia no Roger -disse com imparcialidade-. Você deveria tentar fazer o

mesmo. Olhou-me de forma cortante. -Há uma diferença entre confiança e esperança, Sassenach, e você sabe tão

bem como eu. -Então, por que não tem esperança?.

Dava-lhe as costas. Jamie me rodeou e se sentou frente a mim. -Farei-o -disse com uma faísca de humor em seus olhos—. Se posso decidir

entre se tiver esperança de que venha ou de que não venha. Sorri.

-O que está fazendo, Sassenach? -Faço um certidão de nascimento para nosso pequeno Gizmo, o melhor que

posso -acrescentei.

-Gizmo? -disse duvidando-. É o nome de um santo? -Não acredito, mas nunca se sabe com gente chamada Pantaleón e

Onuphrius. Ou Ferreolus.

-Ferreolus? Acredito que não o conheço. -É um de meus favoritos -pinjente, anotando com cuidado a data e a hora

do nascimento, embora isso era estimativo. Só havia duas informações exatas em meu certificado, a data e o nome do médico.

Jamie se deu a volta no banco, olhando através da porta aberta. Brianna e

Lizzie estavam sentadas no prado, observando ao menino nu, de barriga para baixo sobre um xale e com as nádegas tintas como um macaco.

«Brianna Ellen», escrevi e me detive. -Brianna Ellen Randall, parece-te bem? -perguntei-. Ou Fraser? Ou

ambos?.

Jamie não se voltou, mas se encolheu de ombros. -Importa isso? -Pode. Se Roger retornar, fique ou não, se escolhe reconhecer ao pequeno

Anônimo, suponho que seu sobrenome será MacKenzie. Se não o fizer ou não quer, então imagino que o menino terá o sobrenome da mãe.

Permaneceu em silêncio, olhando às duas moças. -Ela se chama a si mesmo Fraser. Ou assim o fazia. Estendi a mão para lhe tocar o braço.

-Perdoou-te -pinjente-. Sabe que o fez. -por agora. Mas e se esse homem não vier?.

Vacilei. Tinha razão; Brianna o tinha perdoado pelo equívoco anterior. Mas se Roger não aparecia logo culparia ao Jamie, e não sem razão, devia admiti-lo.

-Ponha os dois -disse bruscamente-. Deixa que ela escolha.

-Ele voltará -disse com firmeza- e tudo irá bem. E acrescentei em um murmúrio-: Confio em que assim seja.

deteve-se para beber. Era um dia caloroso da primavera. Sua lembrança de

uma navalha de barbear era muito longínquo; sua barba era espessa e seus cabelos caíam por debaixo dos ombros. A noite anterior se banhou em um arroio

e tinha lavado sua roupa, mas não se fazia iluda sobre seu aspecto. Tampouco lhe importava, disse-se. Seu aspecto não tinha importância.

Foi coxeando até onde tinha deixado seu cavalo. Doía-lhe o pé, mas isso

tampouco lhe importava. Montou e percorreu lentamente o claro onde

413

encontrasse pela primeira vez ao Jamie Fraser. Agora as folhas eram novas e

verdes. Conduziu seu cavalo para o topo da Colina, apurando-o com seu pé são. Não tinha nem idéia de como o receberiam, mas isso era o de menos. Nada

importava, salvo o fato de que estava ali. 66

Filho de meu sangue Os coelhos tinham estado de novo no pomar. Havia trazido brotos e

sementes desde o River Run e, apesar de ter estado tanto tempo sem cuidados, a maioria tinham sobrevivido.

Fiquei pensando a forma de afugentar aos coelhos. Nayawenne me havia dito que o aroma da urina dos carnívoros os espantava. Decidi que Jamie seria o melhor repelente. Então captei um movimento no limite do claro. Acreditando que

era ele, voltei-me para lhe informar de sua nova tarefa, mas me detive quando vi de quem se tratava.

Estava pior que a última vez que o tinha visto. Não tinha chapéu, e o cabelo e a barba se uniam formando um arbusto escuro. Sua roupa se converteu em farrapos. Ia descalço, com um pé envolto em trapos, e coxeava.

Viu-me imediatamente e se deteve enquanto eu me aproximava. -Me alegro de que você seja -disse-. Perguntava a quem veria primeiro.

-Seu pé, Roger.. -Não importa. -Agarrou-me do braço-, Estão bem? O menino e Brianna? -Estão muito bem. Todos na casa estão bem. -Sua cabeça se voltou para a

cabana-. Tem um filho. Olhou-me assombrado. -É meu? Tenho um filho?

-Suponho que assim é. Está aqui, verdade? A esperança e o assombro se atenuaram, mas sorriu.

-Estou aqui-disse e se voltou para a cabana. Jamie estava sentado frente à mesa junto à Brianna, fazendo desenhos de

planos da casa enquanto o menino dormia plácidamente em seu berço e Brianna

o balançava com um pé. Lizzie fiava junto à janela, cantarolando brandamente uma canção.

-Uma cena muito caseira -disse Roger-. Parece-me uma vergonha turvá-los. -Pode escolher? -Sim, já o fiz.

E entrou decidido pela porta aberta. Jamie reagiu ante o desconhecido apartando a Brianna e agarrando a

pistola da parede. Já estava apontando-o quando se deu conta de quem era e

baixou a arma com uma exclamação de desgosto. -É você -disse.

O menino, sobressaltado pelos ruídos, despertou gritando. Brianna o tirou do berço e o apertou contra seu peito, olhando com os olhos muito abertos o que para ela era uma aparição.

Tinha-me esquecido de que não o via desde o Wilmington. Roger deu um passo para ela; instintivamente, Brianna retrocedeu. Roger permaneceu imóvel, olhando ao menino, e Brianna se sentou para lhe dar de mamar, mas se tampou

os peitos com o xale. Vi os olhos do Roger ir do menino para o Jamie, quem permanecia ao lado

da Brianna com essa rigidez que tanto me assustava. Nunca tinha encontrado

414

parecido entre eles. Agora eram como o dia e a noite, imagens de fogo e

escuridão. «MacKenzie», pensei súbitamente: animais, vikingos, grandes e

sanguinários. E vi o terceiro eco dessa herança brilhando nos olhos da Brianna. Queria dizer ou fazer algo para romper a tensão, mas era inútil.

Roger estendeu sua mão para o Jamie com a palma para cima. O gesto não

era de súplica. -Não acredito que eu você goste mais do que você eu gosto -disse com sua

voz rouca-, mas é meu parente mais próximo: me faça um corte. vim para fazer um juramento com nosso sangue compartilhado.

Não sei se Jamie vacilou ou não. O tempo se deteve e o ar se cristalizou

quando a faca do Jamie cortou a magra boneca do Roger e o sangue brotou. Para minha surpresa, Roger não olhava a Brianna, nem tão sequer agarrou sua mão. passou-se o polegar pelo corte e deu um passo para o menino. Brianna o apartou

instintivamente, mas Jamie lhe pôs uma mão no ombro. Roger se ajoelhou, apartou o xale e riscou uma cruz com o polegar

manchado de sangre na frente da criatura. -Você é sangue de meu sangue -disse brandamente- e carne de minha

carne. Proclamo-te meu filho ante todos os homens, desde hoje e para sempre.

Olhou desafiante ao Jamie, o qual, depois de um comprido momento, fez um ligeiro gesto de assentimento e retrocedeu.

Roger olhou a Brianna. -Que nome lhe pusestes?. -Ainda... nenhum.

Olhou-o. Era evidente que o homem que tinha retornado não era o mesmo que a tinha deixado. Tinha os olhos cravados nos dela. Quando ficou em pé o sangue lhe jorrava pela boneca. Com certa impressão, dava-me conta de que ela

estava tão trocada para ele como ele para ela- -É meu filho -disse Roger, assinalando ao menino-, E você é minha

esposa?. Brianna empalideceu. -Não sei.

-Este homem diz que lhes casaram de palavra. -Jamie deu um passo adiante-, É certo?

-Nós... fizemo-lo. -Ainda estamos casados. -Roger respirou profundamente e me dava conta de que ia desabar se.

Agarrei-o do braço e o ajudei a sentar-se; depois mandei ao Lizzie a procurar leite enquanto lhe curava a boneca.

Servi brandy ao Jamie e o mesclei com o leite ao Roger. A tensão pareceu

relaxar-se um pouco. -Muito bem -disse Jaime-. Se está casada de palavra, Brianna, é seu

marido. Brianna se ruborizou, mas olhava ao Roger, não ao Jamie. -Disse que o matrimônio de palavra durava um ano e um dia.

-E você disse que não queria nada temporal. Brianna vacilou, mas logo juntou os lábios com firmeza. -E não o quero, mas não sei o que acontecerá. -Olhou a todos-. Disseram-

lhe... que o menino não é teu?. Roger arqueou as sobrancelhas.

-Mas é meu, não?

415

Levantou a boneca enfaixada para prová-lo.

-Sabe o que quero dizer. Olhou-a aos olhos.

-Sei o que quer dizer. E o sinto. -Não foi tua culpa. Roger olhou de esguelha ao Jamie.

-Sim, foi. Devi ficar contigo, me assegurar de que estava a salvo. -Disse-te que fosse e era a sério. -Brianna moveu os ombros com

impaciência-. Mas isso não importa agora. Quero saber uma coisa -disse com voz tremente-. Quero saber por que tornaste.

Deixou sua jarra sobre a mesa.

-Não queria que voltasse? -Não importa o que eu queria. O que agora quero saber é se veio porque

queria ou porque pensou que devia fazê-lo.

Olhou-a durante um momento. -Talvez por ambas as coisas. Talvez por nenhuma. Não sei. Tal é a verdade

ante Deus: que não sei. -Foi ao círculo de pedras? -perguntou. Assentiu sem olhá-la e tirou a grande opala de seu bolso.

-Estive ali. Por isso demorei para voltar. Levou-me tempo encontrar o círculo de novo.

—Não foi. Mas pôde fazê-lo. Talvez deveu fazê-lo. -Olhou-o com firmeza-. Não quero viver contigo se o fizer por obrigação. Vi um matrimônio por obrigação e um por amor. Se não houvesse visto ambos teria podido viver com o primeiro.

Mas os vi e não quero. Senti como se me golpeassem: estava falando de meu matrimônio. Olhei ao

Jamie e vi em seu rosto a mesma expressão que devia ter o meu.

Jamie tossiu e se dirigiu ao Roger. -Quando lhes casaram?

-Em 2 de setembro -respondeu Roger. -E agora estamos em meados de junho. -Olhou-os aos dois com o cenho

franzido-. Bom, se está casada de palavra com este homem, então está unida a

ele, não há discussão. -voltou-se para o Roger-. Viverá aqui como seu mando. E em 3 de setembro

ela escolherá se vos casa um sacerdote ou se deve deixá-la e não incomodá-la nunca mais. Tem esse tempo para averiguar por que está aqui e convencê-la a ela.

Roger e Brianna foram protestar, mas Jamie os deteve. -Pinjente que viverá aqui como seu marido. Mas se a toucas sem que ela

queira te arrancarei o coração e o darei aos porcos. Entende-me?

Roger lhe olhou fixamente. -Acredita que me aproveitaria de uma mulher que não me quisesse?

Uma pergunta inconveniente, tendo em conta que Jamie quase o mata por supor que o tinha feito.

Roger saiu bruscamente e Jamie foi atrás dele. Brianna me olhou.

-O que crie que...? Interromperam-na uma série de ruídos e grunhidos. -Trata-a mau e te arrancarei as Pelotas e lhe farei tragar isso. Jamie falava

em gaélico. Brianna o entendeu e ficou com a boca aberta, sem poder falar. -Volta a me pôr as mãos em cima -disse Roger— e te colocarei a cabeça no

culo, que é de onde provém.

416

Houve um momento de silêncio e logo um ruído de passos que se

afastavam. -Excesso de testosterona -disse a Brianna.

-Não pode fazer algo?. Não sei se queria rir ou estava histérica. -Bom -pinjente finalmente-, só há duas coisas que podem fazer, alguém é

matar o um ao outro. Brianna se esfregou o nariz.

-Ah! E a outra... Nossos olhos se encontraram com perfeito entendimento. -Eu me ocupo de seu pai. Mas Roger é teu problema.

A vida na montanha transcorria cheia de tensão pela conduta da Brianna e

do Roger, que Jamie olhava com desaprovação; pela do Lizzie, que tratava de

fazer-se perdoar por tudo e o menino, que tinha decidido ter cólicas noturnos. Talvez os cólicas impulsionaram ao Jamie a terminar a nova casa. Fergus e

outros vizinhos tinham semeado nossas terras e, embora não teríamos trigo para vender, ao menos poderíamos comer.

Roger fazia o que podia para ajudar nas tarefas da granja, mas seu pé lhe

incomodava. Rechaçava meus intentos de curá-lo, mas não quis esperar mais, assim fiz meus preparativos e lhe informei que o curaria ao dia seguinte.

Tirei-lhe as ataduras e lhe limpei a ferida infectada. -Tem abscessos muito profundos. -Apertei tas bolsas de pus; Roger

empalideceu e se agarrou aos barrotes da cama, mas não disse nada-. Tem sorte,

os abscessos se abriram e drenaram bem sem chegar a te infectar o osso. -Bom -disse fracamente. -Bri, necessito sua ajuda -pinjente, me dirigindo para onde as duas moças

estavam com o menino. -Já vou eu, me deixe fazê-lo -disse Lizzie, ansiosa por ajudar.

Seus remorsos por sua parte de culpa nas desgraças do Roger a impulsionavam a lhe oferecer sua ajuda, a lhe levar comida e a ocupar-se de sua roupa.

Sorri-lhe. -Sim pode ajudar. Agarra ao menino, asi Brianna poderá vir aqui. por que

não o leva fora, para que tome o ar.?. Com gesto de dúvida, Lizzie obedeceu e Brianna se colocou a meu lado

evitando olhar ao Roger.

-vou abrir isto, limpá-lo e drená-lo o melhor que possa -expliquei-lhes-. Logo tenho que retirar a malha morta. Não se preocupe, acredito que por sorte o osso não está infectado. O arrancar a malha morta não dói.

-Não? . -Não. O que dói é a drenagem e a desinfecção. -Olhei a Brianna-. Por favor,

sujeita o pelas mãos. Vacilou um instante, foi até a cabeceira e lhe agarrou as mãos. Ele as

apertou sem lhe tirar os olhos de cima. Era a primeira vez que se tocavam em

quase um ano. -lhes agarre com força -indiquei-lhes-. Esta é a pior parte. Trabalhei rápido

e sem levantar a vista.

-Quer algo para morder, Roger? -perguntei, tirando meu botellita de álcool diluído-. Queimará-te um pouco.

Brianna respondeu por ele.

417

-Está bem. Continua.

Quando levantei a vista, Brianna estava sentada na cama com seus braços ao redor das costas do Roger, que tinha a cara na saia da Brianna e se aferrava a

suas bonecas. -terminaste? Brianna tinha o rosto pálido, mas me sorriu.

-A pior parte. Só fica um pouco -assegurei. Fazia meus preparativos dois dias antes. Saí, agarrei a pequena fonte que estava fora e a meti em casa.

-Puf! -Brianna franziu o nariz-, O que é isso? Cheira a carne podre. -É o que é. Brianna ainda te sustentava as mãos. Sorri para meus adentros.

-Mamãe! O que está fazendo? -Não lhe doerá -pinjente. Tirei um verme branco da carne podre e o coloquei em uma das incisões

que tinha feito. Roger tinha os olhos fechados e a frente cheia de suor.

-O que? -Levantou a cabeça em um esforço por ver o que acontecia-. O que está fazendo?

-te pondo uns vermes na ferida. Aprendi-o de uma anciã a Índia que

conheci. Chegaram-me os sons de asco e náuseas, mas segui trabalhando. -Funciona -pinjente enquanto abria outra incisão e depositava três larvas

brancas-. Nossos pequenos amigos vão se comer a malha morta e chegarão a lugares que eu não posso chegar.

-Nossos amigos os vermes -murmurou Brianna-. Mas, mamãe!

-O que os deterá para que não se comam toda minha perna?-perguntou Roger, tratando de mostrar indiferença-. Eles... vão avançando, não?

-Não! -assegurei alegremente-. São larvas e não comem tecido são, só o

morto. Se houver muito alimento, convertem-se em pequenas moscas e voam; do contrário, quando se acaba a comida, vão em busca de mais.

Suas caras se haviam posto verdes. Terminei meu trabalho, enfaixei o pé e dava uma palmada ao Roger.

-Já está. Não se preocupe, já o vi antes. Um guerreiro índio me disse que

não doía, só picava. Ao sair me encontrei com o Jaime, que vinha da nova casa com o menino

em braços. -Esta é a abuelita -informou à criatura-. Não é uma mulher muito bonita? -GA -disse o menino e tratou de chupar o botão da camisa de seu avô.

-Não lhe deixe chupar isto -pinjente, beijando primeiro ao Jamie e logo ao menino-. Onde está Lizzie?

-Encontrei-a sentada chorando. Por isso me traga para o menino e lhe disse que se fora a passear um pouco.

-Estava chorando? O que lhe passa?

Uma sombra cruzou a cara do Jamie. -Deve sentido pelo Ian, não crie? -Agarrou-me do braço-. Vêem comigo,

Sassenach, verá o que tenho feito hoje. terminei o chão de seu gabinete; tudo o

que se necessita agora é um teto provisório e já se poderá dormir ali. Estava pensando que, por agora, poderia ir Mackenzie.

-Boa idéia. Até com o pequeno quarto adicional que tinha construído na cabana para a

Brianna e Lizzie, estávamos muito apertados. E se Roger ia ter que ficar em cama

vários dias era melhor não o ter ali no meio.

418

-Como andam? -perguntou, pretendendo demonstrar certa

despreocupação. -Quais? Refere a Brianna e Roger?.

-A que outros, se não? -disse, deixando a um lado suas pretensões-. Vai tudo bem entre eles?.

-Acredito que sim. estão-se acostumando de novo o um ao outro.

- Fazem-no?. -Sim -pinjente, olhando de esguelha à cabana-- Roger acaba de vomitar na

saia da Brianna. 67

Jogar no ar uma moeda Roger se deu a volta e se sentou. Ainda não havia cristais nas janelas, mas

não eram necessários enquanto o tempo veraniego se mantivera. O gabinete se encontrava na parte frontal da casa. Se torcia a cabeça podia ver a Brianna no

caminho de volta à cabana, antes de que a nogueira a ocultasse. Essa noite tinha ido sem o menino, mas não sábia se interpretá-lo como

um avanço ou não. Tinham podido falar sem as interrupções ocasionadas pelas

mudanças de fraldas, a alimentação, os choros e os arrotos, o que tinha sido um luxo inesperado.

Mas Brianna não se ficou tanto tempo como de costume. O menino a reclamava como se fora uma cinta de borracha que atirasse dela. Não é que não gostasse daquele pequeno patife, mas se sentia relegado.

Ainda não tinha comido; não tinha querido esbanjar esses momentos em que podia estar a sós com ela. Desentupiu a cesta e aspirou o delicioso aroma do guisado e do pão com manteiga, aos que seguiria o bolo de maçã.

O pé ainda lhe doía e tinha que fazer esforços para não pensar nos vermes, mas tinha recuperado o apetite. Fraser sabia o que fazia quando escolheu o lugar

para a casa. Era um dos espaços mais solitários, magníficos e românticos que tinha visto. E Brianna se dedicava a alimentar a um pequeno parasita descascado enquanto ele estava ali, sozinho.

por que diabos lhe havia dito que não sabia o motivo, quando lhe perguntou por que havia tornado? Bom, porque então não sabia. Depois de vários

meses de fome, solidão e dor, sentou-se durante três dias, sem comer nem beber, no círculo de pedras. Finalmente se levantou e começou a andar, sabendo que era sua única eleição possível. Obrigação? Amor? Como diabos se podia amar

sem obrigações? O problema de recuperar a saúde era que certas partes de seu corpo

estavam muito saudáveis. Não podia nem sugerir-lhe a Brianna. Em primeiro

lugar ia acreditar que tinha vindo só por isso. E em segundo, aquele maldito gigante escocês não brincava com o do porco.

Agora já sabia a resposta; havia tornado porque não poderia viver no outro lado. Sabia tudo o que deixava e nada disso lhe importava; tinha que estar ali, isso era tudo. Como poderia dizer-lhe para que lhe acreditasse? Se quase não

deixava que a tocasse... Salvo o dia em que o sustentou enquanto Claire torturava seu pé. Então esteve realmente com ele, com toda sua força. Ainda podia sentir seus braços. Isso lhe fez pensar que Claire o tinha feito a propósito.

Tinha-lhe dado ao Bri a possibilidade de tocá-lo sem sentir pressões. E a ele, a possibilidade de recordar quão forte era a união entre eles.

419

sentia-se disposto a deixar-se cortar o outro pé se Brianna ia estar a seu

lado.

Claire o via uma ou duas vezes ao dia, mas esperou ao fim de semana, quando foi tirar lhe as vendagens.

-Precioso. Quase não há inflamação e a cicatrização é perfeita.

-Estupendo. Já se foram? -Os vermes? Sim. Fizeram um bom trabalho.

-Aceito sua palavra. Já posso começar a andar? -Sim. Não ponha o sapato durante uns dias. Claire começou a reunir suas coisas. Estava contente, mas cansada.

-O menino ainda chora de noite? -perguntou. -Sim, pobrecito. Pode ouvi-lo daqui? -Não. É que parece cansada.

-Não me surpreende. Ninguém dormiu bem em toda a semana, em especial a pobre Bri. É a única que pode alimentá-lo. -Bocejou e sacudiu a cabeça-. Jamie

quer que nos translademos aqui logo que esteja preparado o chão. Bri e o menino terão mais espaço e nós um pouco de paz e tranqüilidade.

-Boa idéia. Ah... falando do Bri...

-Mmm? -Olhe -era melhor dizê-lo diretamente-, estou tentando-o tudo. A amo e

quero demonstrar-lhe mas me escapa. Vem e conversamos e então tudo é estupendo, mas quando vou passar lhe o braço pelos ombros ou a beijá-la, ela, de repente, vai à outra ponta. Há algo que não vai bem, algo que eu deva saber?

Dirigiu-lhe um de seus olhares desconcertantes, direta como a de um falcão.

-Você foi o primeiro, não? O primeiro em deitar-se com ela.

Roger sentiu que o sangue enchia suas bochechas. -Eu... ah... sim.

-Bom, então sua experiência do que podemos chamar as delícias do sexo consiste em ser desflorada. E por muito considerado que tenha sido, está acostumado a doer. Dois dias mais tarde a violaram e logo deu a luz ao menino.

Crie que todo isso a fará cair em seus braços quando pretender reclamar seus direitos matrimoniais?

-Nunca o interpretei assim—murmurou. -Naturalmente -disse com um tom que mesclava a exasperação e a risada-.

É um homem. Por isso lhe estou dizendo isso.

Roger respirou profundamente e a contra gosto a olhou aos olhos. -Exatamente, o que é o que me está dizendo? -Que ela tem medo -disse-. Embora não é de ti de quem tem medo.

-Não? -Não -disse bruscamente-. Pode haver-se convencido a si mesmo de que

tem que saber o motivo de sua volta, mas não é isso; um regimento de cegos poderia vê-lo. Seu temor é o de não ser capaz de... mmm.

Arqueou uma sobrancelha para marcar a pouco delicada sugestão.

-Já vejo -disse com um suspiro-. E o que me sugere que faça? Claire levantou a cesta e a colocou no braço. -Não sei -disse lhe olhando intensamente com seus olhos dourados-. Mas

acredito que deve ser muito cuidadoso.

420

Tinha terminado de recuperar a equanimidade depois de seu inquietante

consulta, quando chegou outro inesperado visitante. Jamie Fraser, que lhe trazia alguns pressente.

-Trouxe-te uma navalha -disse Fraser, olhando-o com olho crítico-, E um pouco de água quente.

Claire lhe tinha recortado a barba com suas tesouras de cirurgião poucos

dias antes, mas se havia sentido muito fraco para tentar barbear-se com isso que chamavam navalha cortagargantas», por razões óbvias.

-Obrigado. Fraser havia trazido um pequeno espelho e um recipiente com sabão para

barbear-se. Teria preferido que partisse em lugar de ficar apoiado na porta,

observando-o com frieza, mas naquelas circunstâncias Roger não podia lhe pedir que o deixasse sozinho. A pesar do indeseado espectador, a sensação de alívio que sentiu ao tirá-la barba foi maravilhosa. Picava-lhe e não tinha visto seu

próprio rosto desde fazia meses. -O trabalho vai bem? -Tratou de lhe dar conversação enquanto se

barbeava-. Esta manhã te ouvi trabalhar. -Sim. -Fraser seguia seus movimentos com interesse-. Já tenho o estou

acostumado a acabado e uma parte do teto. Acredito que Claire e eu já

poderemos dormir aí esta noite. -Ah! -Roger torceu a cabeça-, Claire me disse que já posso começar a

andar, assim me diga do que me posso encarregar. Jamie assentiu com os braços cruzados sobre o peito. -Sabe utilizar ferramentas?

-Não tenho muita experiência na construção -admitiu. «Uma casa para pássaros feita no colégio não deve contar», suspeitou. -Suponho que não saberá o que fazer com um arado ou com uma piara de

porcos. Havia um evidente brilho de diversão nos olhos do Fraser. Roger levantou o

queixo para tirá-los restos de sabão do pescoço. Nos últimos dias tinha estado pensando nisso. Em uma granja do século XVIII, seus dotes de historiador ou cantante folclórico não lhe seriam muito úteis.

-Não -disse com tranqüilidade, deixando a navalha- Nem tampouco sei ordenhar uma vaca, nem construir uma chaminé, nem matar ursos, nem

esquartejar cervos ou atravessar a alguém com uma espada. -Não? A diversão foi evidente.

Roger se tornou água na cara, a secou e logo se voltou fazia Fraser. -Não. Só tenho as costas forte. Isso serve? -Sim! Não poderia pedir mais. É capaz de distinguir em uma pá uma ponta

da outra, não? -Isso sim.

-Então o fará bem. O pomar do Claire necessita que lhe revolvam a terra; há muito abono na quadra. Depois te ensinarei a ordenhar uma vaca.

-Obrigado.

Limpou a navalha, guardou-a na caixa e a entregou. -Claire e eu vamos esta noite a casa do Fergus –disse Fraser com

indiferença enquanto agarrava a caixa-. Lizzy virá conosco para ajudar ao

Marsali. -Ah? Bom..., que o passem bem.

421

-Espero que seja assim. -Fraser se deteve na porta- Brianna decidiu ficar; a

criatura está um pouco melhor e não quer incomodá-lo com a caminhada. Roger olhou fixamente ao outro homem. podia-se ler tudo, ou nada, em

seus olhos azuis. -Sim? Então, está-me avisando de que ficarão sozinhos? Cuidarei deles. Arqueou uma sobrancelha. -Estou seguro de que o fará. -Fraser abriu a

mão sobre o recipiente vazio. Houve um ruído metálico e uma faísca vermelha que brilhou contra o estanho-. Já lhe disse isso, MacKenzie, minha filha não

necessita um covarde. antes de que pudesse responder, Fraser baixou a sobrancelha e o olhou

com calma.

-Por ti perdi um sobrinho ao que quero muito e não estou muito predisposto a que eu goste. -Olhou o pé do Roger e levantou a vista-. Mas talvez você perdeu mais que isso. Considerarei que estamos em paz, ou não, segundo o

que diga. Atônito, Roger assentiu antes de poder falar.

-De acordo. Fraser também assentiu e se foi tão rápido como tinha chegado, deixando

ao Roger olhando a porta vazia.

Tentou abrir a porta da cabana, mas tênia o ferrolho jogado. depois de

desprezar a idéia de despertar com um beijo à Bela Adormecido, levantou o punho para golpear e se deteve. A autêntica Bela Adormecido não tinha a um anão irascível em sua cama, preparado para uivar ante qualquer moléstia.

Deu a volta à pequena cabana, controlando as janelas enquanto os nomes dos sete enanitos apareciam em sua mente. Como chamaria a este? Ruidoso? Cheiroso?.

A casa estava fechada por toda parte. Com lentidão, voltou a dar a volta. O mais razoável seria retornar a sua habitação e esperar à manhã seguinte. Então

poderia falar com ela. Era melhor isso que despertar a de um sonho profundo, e com ela ao pequeno.

Sim, isso era o que tinha que fazer. Claire se faria cargo do pequeno bs... do

menino, se o pedia. Poderiam falar com calma, sem medo a interrupções, caminhar pelo bosque e esclarecer coisas entre eles. Bem, isso é o que faria.

Dez minutos mais tarde, depois de sua décima volta à casa, ficou olhando um débil brilho que saía de uma janela.

-Quem diabos te crie que é? -murmurou para si mesmo-, Uma maldita

traça? Um ruído o fez voltar-se e viu uma figura branca, como um fantasma, que

ia para o privada.

-Brianna? : A figura soltou um pequeno grito pelo susto.

-Sou eu -disse, e viu que se levava uma mão ao peito. -O que faz me espiando assim? -perguntou furiosa. -Quero falar contigo.

Não respondeu e seguiu seu caminho. -Hei dito que quero falar contigo. -E eu quero ir ao banho. Vete.

Fechou a porta do privada com gesto decidido. retirou-se a certa distância e esperou. Quando Brianna saiu se deteve o vê-

lo.

422

-Não deveria caminhar com esse pé -disse.

-O pé já está bem. -Deveria ir à cama.

-Muito bem -disse, colocando-se frente a ela no meio do atalho-. A qual? -A qual? ficou imóvel, mas não fingiu não entender.

-Vamos? -Assinalou para a colina-. Ou aqui? -Eu... ah...

«Deve ser cuidadoso», havia dito sua mãe; «minha filha não necessita um covarde», tinha-lhe recordado o pai. Podia atirar uma moeda ao ar, mas por agora aceitaria o conselho do Jamie Fraser.

-Disse que conheceu um matrimônio por obrigação e outro por amor. Crie que alguém elimina ao outro? Olhe, passei três dias nesse círculo, pensando.

Pensei em ficar, pensei em ir. E fiquei. -Mas nunca saberá o que deixa se fica para sempre. -Sim sei! E embora não soubesse saberia muito bem o que perco se vou. -

Agarrou-a do ombro sentindo sua pele quente-. Não posso ir e viver pensando que deixei um menino que poderia ser meu, que é meu. -Lhe quebrou a voz-. Nem posso ir e viver sem ti.

Brianna vacilou tentando soltar-se. -Meu pai... meus pais...

-Olhe, eu não sou nenhum de seus malditos pais! Ao menos me julgue por meus próprios pecados!

-Você não cometeste nenhum pecado!

-Não, nem você tampouco. Olhou-o e captou o brilho de seus olhos.

-Se eu não houvesse... -começou. -E se eu não houvesse- interrompeu-a com brutalidade-. Deixa-o já, quer?

Não importa o que fez ou o que fiz. Pinjente que não sou nenhum de seus pais e é

assim- Mas conheceste bem aos dois, muito melhor que eu. Frank Randall não te amou como se fosse sua filha? Tomou como a filha de seu coração, sabendo que foi do sangue de outro homem, de um que tinha boas razões para odiar.

Agarrou-a do outro ombro e a sacudiu ligeiramente. -E esse bastardo ruivo não quer a sua mãe mais que a sua vida? E não te

quis tanto como para sacrificar esse amor por te salvar? Brianna deixou escapar um gemido e Roger sentiu sua dor, mas não a

soltou.

-Se crie neles -disse, quase em um sussurro-, então deve acreditar em mim. Porque eu sou um homem como eles. Juro-te pelo mais sagrado que te quero!

Brianna levantou a cabeça com lentidão e Roger sentiu seu fôlego quente no rosto.

-Temos tempo -disse brandamente e, nesse momento, soube por que tinha

sido tão importante falar agora, ali, na escuridão. Agarrou sua mão e a apoiou sobre seu peito-. Sente-o? Pode sentir os batimentos do coração de meu coração?

-Sim -sussurrou Brianna, e com suavidade lhe agarrou as mãos e as apoiou sobre seu peito.

-Este é nosso tempo. Até que deixem de pulsar é nosso tempo. Agora. vais

desperdiçar o, Brianna, porque tem medo? -Não —respondeu com voz clara—. Não o farei. Um suave pranto lhes chegou da cabana.

423

-Tenho que ir -disse, apartando-se. Deu dois passos e se voltou-. Vêem -

disse correndo pelo atalho, veloz e branca como o fantasma de um cervo. Quando chegou à porta, Brianna tinha pego ao menino e lhe estava dando

de mamar. -De noite lhe dou de mamar na cama -explicou-, Dorme mais se o tiver ao

lado.

Roger murmurou uma espécie de aceitação. Fazia muito calor na habitação e cheirava a fraldas usados, comida e a Brianna. Embora aqueles dias tema um

novo matiz, um aroma doce que devia vir do leite. Tinha a cabeça inclinada, o cabelo avermelhado solto em uma cascata brilhante e a camisola aberta, com a cabeça do menino apoiado em seu peito arredondado. Como se sentisse seu

olhar, Brianna levantou a cabeça. -Sinto muito -disse brandamente Roger para não lhes incomodar-. Não

posso pretender dizer que não estava olhando.

-Segue -disse-. Não há muito para olhar. Sem uma palavra, Roger começou a despir-se.

-O que está fazendo? Sua voz era baixa, mas estava assombrada. -Não é justo que fique sentado, te olhando, não? Tampouco há muito que

valha a pena olhar, mas... -Lutou com o nó do laço dos calções-. Mas ao menos, não acreditará que te está exibindo.

-Ah! Não a olhou, mas lhe pareceu que a tinha feito sorrir. endireitou-se e

deixou cair os calções antes de tirar-lhe de tudo.

-É um espetáculo de desentupa?. Brianna se conteve para não deixar escapar uma gargalhada. -Não me dito a ficar de frente ou de costas. Tem alguma preferência?

-Fica de costas -disse brandamente-. por agora. Fez-o. -Fique assim um minuto -disse Brianna-. Por favor. Eu gosto de te olhar.

Permaneceu erguido, olhando o fogo. O calor lhe fez recordar ao pai Alexandre e deu um passo atrás. por que recordava isso agora?.

-Tem marcas nas costas, Roger -disse com voz muito suave-. Quem lhe fez

isso? -Os índios- Não tem importância. Já não.

Não se tinha talhado o cabelo e lhe caía sobre os ombros. Podia sentir o olhar da Brianna percorrendo seu corpo.

-Vou me dar a volta. Vale?

-Não me vou impressionar -assegurou-lhe. Vi fotos. Tinha a mesma qualidade que seu pai; podiam manter a mesma expressão

quando o desejavam. Estava assustada, impressionada ou divertida? E por que tinha que ser assim? Havia meio doido e acariciado tudo o que agora via a luz. Mas tinha passado toda uma vida após. Agora estava nu e ela tinha um menino

nos braços. Qual dos dois tinha trocado mais desde sua noite de bodas? Não podia ficar assim muito tempo e se sentou, observando-a.

-O que se sente? —perguntou, em parte por curiosidade e em parte por

romper o silêncio. -É agradável. Quando começa a chupar acontece algo, como se todo fora de

mim para ele. -Não é como se lhe esvaziassem? Como se lhe tirassem algo teu? -Não, nada disso. Olhe. -Pôs um dedo na boca do menino e o apartou.

424

Roger viu o mamilo e o leite que saía com uma força incrível. Brianna

colocou de novo ao menino, antes de que começasse a chorar. -meu deus -disse, assombrado-, Não sabia que fora assim!

-Eu tampouco. -Sorriu-. Há um montão de coisas que não tivesse imaginado.

E seu sorriso se apagou.

-Bri. -inclinou-se para ela, esquecendo sua nudez ante a necessidade de tocá-la-. Bri, sei que está assustada. Eu também, e não quero que tenha medo de

mim mas... Bri, desejo-te. Deixou as mãos apoiadas sobre os joelhos da Brianna e ela, ao pouco momento, apoiou sua mão livre sobre as suas.

-Eu também te desejo -sussurrou.

Permaneceram assim durante o que lhes pareceu muito tempo. Roger não sabia o que faria depois, mas sim que não se apressaria, que não a assustaria.

-Está dormido —sussurrou Brianna-

ficou em pé com o cuidado de quem leva uma carga de nitroglicerina. ia pôr ao menino no berço, mas Roger levantou os braços instintivamente.

Ela vacilou um segundo e o entregou. O menino era surpreendentemente pesado e estava muito quente. Roger o aproximou com cuidado. Suas pequenas nádegas cabiam na palma de sua mão. depois de tudo, não estava totalmente calvo. Tinha

um penugem avermelhado por toda a cabeça. As orelhas eram pequenas, quase transparentes.

-Não pode sabê-lo só olhando-o. Eu o tentei. A voz da Brianna o arrancou de sua contemplação. -Não é isso o que estava procurando. É que... é a primeira vez que posso

olhar a gosto a meu filho. -Ah, bom. Havia uma pequena nota de orgulho que lhe chegou ao coração. Agarrou-

lhe o punho e o abriu brandamente com o polegar até poder colocar seu dedo indicador. O puñito se fechou outra vez, com uma força assombrosa. Pôde ouvir

um rítmico som e se deu conta de que ela se estava escovando o cabelo. Tivesse-lhe gostado de olhá-la, mas estava muito fascinado com seu filho.

«Meu filho», pensou, e não soube bem o que sentia. Teria que passar um

tempo até acostumar-se. "Mas pode sê-lo”, foi o seguinte pensamento. Não só o filho da Brianna, mas também também o fruto de sua própria carne. Esse

pensamento era inclusive mais remoto. Tratou de apartar o de sua mente, mas voltava. Aquela união na escuridão, aquela mescla de dor e gozo, teria sido o começo disto? Não queria fazê-lo, mas esperava sobre todas as coisas que fora

assim. Com curiosidade, abriu-lhe o fralda para olhar. -Disse-te que o tem tudo.

Brianna estava a seu lado. -Bom, sim -disse-. Mas não é... um pouco pequeno?

-Crescerá -assegurou rendo-. por agora, parece não necessitar mais. Seu próprio pênis caía fláccido entre suas coxas. -me quer dar isso Sacudiu a cabeça.

-Ainda não. Cheira a leite e a um pouco docemente podre, não? -Mamãe o chama colônia de bebê. Díce que é um aroma protetor que os

recém-nascidos usam para impedir que seus pais os matem.

-Matá-lo? Mas sim é uma criatura preciosa -protestou Roger.

425

-Não estiveste vivendo com ele este último mês. É a primeira noite em três

semanas que não tem cólicas. Sim não fora meu, o teria deixado na ladeira da montanha.

«Se não fora meu.» Essa segurança, supunha, era o prêmio das mães. Sempre o tinha sabido, sempre saberia. Durante um instante a invejou. O menino se agitou e emitiu um débil som. antes de que pudesse mover-se, Brianna

o agarrou e aplaudiu as costas da criatura. Um suave arroto e ficou dormido de novo; colocou-o no berço com muito cuidado. Quando se voltou, Roger estava

preparado. -Pôde retornar quando se inteirou. Teve tempo. –Sustentou-lhe o olhar, sem

deixá-la olhar para outro lado-. Assim agora toca a meu perguntar. O que te fez

me esperar? Amor ou obrigação? -Ambos -disse com os olhos obscurecidos-. Nenhum dos dois. Eu... não me

podia ir sem ti.

Respirou, sentindo que o abandonava a última dúvida. -Então sabe.

-Sim. Levantou os ombros e deixou que sua camisola caísse, ficando tão nua

como ele.

Deus bendito, era vermelho, e mais que vermelho, ouro e âmbar. Desejava-a com um anseia que ia além da carne.

-Disse que me amava por tudo o que considera sagrado -sussurrou-. O que é sagrado para ti, Roger?

Abraçou-a com cuidado e a manteve contra seu coração, recordando aquela

jovem magra do Gloriana que cheirava a leite. Também recordava o fogo, os tambores, o sangue e a uma órfã batizada com o nome do pai, que se tinha

sacrificado a si mesmo por temor ao poder do amor. -Você -disse-. Ele. Nós. Não há nada mais, verdade? 68 Felicidade doméstica Agosto de 1770 Era uma manhã tranqüila. O menino tinha dormido toda a noite, por isso

merecia a aprovação geral; duas galinhas tinham deixado seus ovos no galinheiro, sem me obrigar para buscá-los entre os arbustos; o pão se cozeu bem

e o presunto e o peru deixavam escapar deliciosos aromas. Todas essas coisas ajudavam, mas a atmosfera geral de bem-estar se devia

mais de noite anterior que aos acontecimentos da manhã. Foi uma noite perfeita. Jamie tinha apagado a vela e me tinha chamado para que fora a olhar da porta.

-O que acontece? -perguntei.

-Nada. Vêem e olhe. Tudo parecia flutuar em uma luz misteriosa. Na lonjura, quebrada-las

pareciam congeladas, como suspensas no ar de não ser pelo vento que nos trazia

o som da água que caía. O ar da noite tinha aroma de erva, de água v de pinheiro.

Jamie estava nu a meu lado e estendeu a mão. Deixei cair minha camisola e o segui me agarrando de sua mão. Despertamos na escuridão depois de que se ocultou a lua. Não nos dissemos uma palavra, mas nos rimos e retornamos

426

cambaleantes até chegar a nossa cama para dormir uma hora antes de que

amanhecesse. Para tomar o café da manhã lhe pus um recipiente com cereais e lhe limpei

um rastro de aveia da orelha. Voltou a cabeça. Com um sorriso brilhando em seus olhos me agarrou a mão e a beijou. Toquei-lhe a nuca e o vi sorrir.

Levantei a vista e me encontrei com o olhar da Brianna. Seus olhos eram

quentes e pormenorizados. Logo vi que estava olhando ao Roger, quem comia com o olhar cravado nela.

A cena de felicidade doméstica foi rota pelos escandalosos avisos do Clarence anunciando visita. Sentia saudades a Cilindro, pensei enquanto ia para a porta para olhar. Enfim, ao menos Clarence não saltava sobre os visitantes nem

os atirava ao chão. O visitante era Duncan Innes. Devia trazer um convite.

-Sua tia pergunta se forem assistir à reunião do Mount Helicón, em outono. Diz que lhe deu sua palavra faz dois anos.

Jaime pôs um prato com ovos ante o Duncan.

-Ainda não 1o pensei -disse-. Há muito que fazer e tenho que terminar o teto antes de que comece a nevar.

-Virá um sacerdote de Baltimore -disse Duncan, evitando olhar ao Roger e Brianna-. A senhorita Eu pensa que talvez queiram batizar à criatura.

-Aaah! -Jamie se tornou para trás pensativo-. Sim, talvez deveríamos ir,

Duncan. -Isso está bem, sua tia estará muito contente. Algo passou na garganta do Duncan que lhe fez ficar vermelho. Jamie lhe

aconteceu a jarra de cidra. -Tem algo na garganta?

-Ah... não. Todos deixaram de comer, olhando com certa fascinação as mudanças na

cara do Duncan.

-Eu... né... desejo pedir seu consentimento, an fhearr MAC Dubh, para o matrimônio da senhora Yocasta Cameron com... com...

-Com quem? -perguntou Jamie-. Com o governador da colônia? -Comigo! Duncan levantou a jarra e enterrou a cara nela, com o alívio do homem que

se está afogando e vê chegar um navio. Jamie lançou uma gargalhada, o que não pareceu acalmar o desconforto do

Duncan. -Meu consentimento? Não lhe parece que minha tia já tem idade para

decidir? Ou você?

Duncan respirava melhor, embora ainda tinha as bochechas rosadas. -Pareceu-me o adequado --disse com certa cerimônia- Considerando que é

seu parente mais próximo -tragou antes de seguir falando-. Y... e não me parece

correto, MAC Dubh, que eu agarre o que deveria ser teu. Jamie sorriu e sacudiu a cabeça.

-Eu não vou reclamar nenhuma das propriedades de minha tia, Duncan, não as agarrei quando me ofereceu isso. Casarão-lhes durante o encontro? Então, lhe diga que iremos e dançaremos nas bodas.

69

Jeremiah

427

Outubro de 1770 Roger cavalgava com o Claire e Fergus perto do carro. Jamie não confiava

na Brianna como condutora de um veículo se ia seu neto nele e tinha insistido em levá-lo ele, com o Lizzie e Marsali detrás e Brianna a seu lado. Da arreios, Roger ouvia parte da discussão que tinham começado desde sua chegada.

-John, seguro -dizia Brianna, olhando carrancuda a seu filho envolto no xale-. Mas não sei se deveria ser seu primeiro nome. Não deveria ser Ian? É John

em gaélico e eu gostaria de chamá-lo assim. Mas não será uma fonte de confusões entre tio Ian e nosso Ian?

-Como nenhum dos dois está aqui, não acredito que haja problemas -

assinalou Marsali, olhando a seu padrasto-, Não disse que queria lhe pôr um dos nomes de P?

-Sim, mas qual? —Brianna deu meia volta para falar com o Marsali-. James

não, isso sim que daria lugar a confusões. E Malcoml eu não gosto de muito. Já tem o MacKenzie, é obvio, assim que talvez...

Viu o olhar do Roger e lhe sorrio. -O que te parece Jeremiah? -John Jeremiah Alexander Fraser MacKenzie.

Marsali pronunciou os nomes para prová-los. -eu gosto de Jeremiah -interveio Claire-. Jeremías. É do Antigo Testamento.

É um de seus nomes, verdade, Roger? Sorriu-lhe e se inclinou para falar com a Brianna. -Por outra parte, se Jeremiah te parecer muito formal pode chamá-lo

Jemmy -disse-. Embora se parece muito ao Jamie, não? Roger sentiu um calafrio ao recordar súbitamente a outro menino ao que

sua mãe chamava Jemmy, um menino cujo pai tinha o cabelo loiro e os olhos tão

verdes como os do Roger. Esperou a que Brianna estivesse ocupada trocando fraldas e se aproximou da égua que montava Claire.

-Recorda a primeira vez que foi ao Inverness com a Brianna? Você conhecia de antemão minha árvore genealógica.

-Sim?

-Faz tempo e talvez não o tenha notado... -Vacilou, mas tinha que sabê-lo, se é que se podia-. Assinalou o lugar da árvore onde se fez a substituição, quando

o filho do Geillis Duncan e Dougal foi adotado em lugar de um que tinha morrido e lhe deram seu nome.

-William Bucdeigh MacKenzie -pinjente rapidamente, e sorri ante sua

surpresa-. Tenho lido muitas vezes sua árvore genealógica; é provável que pudesse te dizer todos os nomes.

Respirou profundamente, com insegurança.

-Poderá? O que queria saber... sabe o nome da esposa da criatura suplantada, minhas seis vezes bisavó? Seu nome não figura em minha árvore

familiar; só figura William Bucdeigh. Fiz memória franzindo os lábios. -Sim -pinjente finalmente-. Morag. Seu nome era Morag Gunn. Porquê?

Sacudiu a cabeça, muito impressionado para responder. Olhou fazia Brianna. Tinha ao menino semidesnudo nos joelhos e o fralda sujo a um lado. Então recordou a roupa empapada do menino chamado Jemmy.

-O nome de seu filho era Jeremiah -disse ao fim,, tão devagar que Claire teve que inclinar-se para ouvi-lo.

-Sim. . . .

428

Observei com curiosidade, olhando o caminho que se perdia entre os

escuros pinheiros. -Perguntei ao Geiilis -disse súbitamente-. Perguntei-lhe o porquê. por que

podíamos fazê-lo? -E tinha uma resposta? -Ela disse: "Para trocar coisas”. -Sorri com uma careta de ironia-. Não sei se

for uma resposta ou não.

70 O encontro

Tinham passado quase trinta anos do último encontro que tinha visto.

Tinha sido no Leoch, quando o Clã MacKenzie fez seu juramento. Colum

MacKenzie e seu irmão Dougal tinham morrido, e com eles o resto dos Clãs. Leoch estava em ruínas e não haveria mais encontros em Escócia.

Mas aqui estavam as capas e as gaitas de fole, levadas pelos que ficavam daqueles highlanders, reclamando com orgulho essas novas montanhas. MacNeill e Campbell, Buchanan e Lindsey, MacLeod e MacDonald; famílias, escravos e

serventes, homens contratados e latifundiários. Tratava de encontrar ao Jamie entre o tumulto quando descobri uma figura

familiar. -Myers! John Quincy Myers me viu e se aproximou de nosso acampamento

sonriendo. -Senhora Claire! -exclamou, inclinando-se para me saudar-. Me alegro

muito de voltar a vê-la. -O sentimento é mútuo -assegurei sonriendo-. Não esperava vê-lo aqui. -Bom, trato de vir sempre, se posso baixar das montanhas a tempo. É um

bom lugar para minhas vendas, para me liberar das coisas que trago. Falando disso...

Começou a rebuscar em sua bolsa.

-Esteve no norte, senhor Myers? -Sim, no rio Mohawk, em um lugar que chamam Upper Castle.

-O Mohawk? Meu coração pulsou com força. -Mmm. -Seguiu procurando em sua bolsa-. Imagine minha surpresa,

senhora Claire, quando me detive na aldeia mohawk e vi um rosto conhecido. Ian! Viu ao Ian? Está bem?.

Estava tão excitada que o agarrei do braço. -Sim! -assegurou-. É um menino muito simpático, embora me custou

reconhecê-lo convertido em todo um guerreiro de rosto escuro, mas quando me

chamou por meu nome... Ao fim encontrou o que procurava. Entregou um pequeno pacote envolto

em couro, pacote com uma tira e com uma pluma de pássaro carpinteiro no nó.

-Confiou-me isto para que o entregasse a você e a seu marido. -Sorriu com bondade-. Estou seguro de que quer ler agora a carta, assim que me retiro; já a

verei depois. Fez uma solene reverencia e se afastou. Não ia ler a sem o Jamie. Felizmente, apareceu em seguida.

A nota começava: «Ian salutat avunculus Jacobus”. Jamie sorriu.

429

Ave! Com isto terminam minhas lembranças da língua latina, por isso

continúo na língua inglesa, de lembrança mais fresca. Estou bem, tio, e contente, me acredite. Case-me segundo os costumes dos mohawk e vivo na casa tic minha

esposa. Recordará ao Emily, a que fazia aquelas rala de madeira tão bonitas. Cilindro é pai de muitos cachorrinhos e a aldeia está cheia de pequenas réplicas

do lobo. Não posso dizer que minha descendência tenha prosperado da mesma forma, mas espero que escreva a minha mãe para lhe dizer que poderá acrescentar um neto a sua lista. Nascerá na primavera, avisarei-lhes cão logo

como posso. Enquanto isso, me recordem no Lallybroch, no River Run e na Colina do Fraser. Eu lhes recordo a todos com afeto e o farei enquanto viva. Meu

carinho para tia Claire, para a prima Brianna e para ti. Seu mais afetuoso sobrinho, Ian Murray. Vale, avunculus.

Jamie piscou um par de vezes, dobrou com cuidado a carta e a guardou em

seu embornal. -É avúnculo, pequeno idiota -disse brandamente-. Com a saudação se usa o

vocativo. O segundo dia, enquanto Lizzie, Brianna e eu comparávamos meninos com

duas das filhas do Farquard Campbell, Jamie se abriu passo, com um amplo

sorriso no rosto, entre a massa de mulheres e meninos. -Lizzie -disse-. Tenho uma pequena surpresa para ti- Fergus!

Fergus, igual de contente, apareceu acompanhado de um homem de cabelo loiro.

-Papai! -gritou Lizzie, correndo a seus braços.

Jamie se meteu um dedo no ouvido com ar zombador. -Acreditei que nunca a ouviria gritar assim -disse. Sorriu-me e me deu duas partes de uma folha que originalmente tinha sido

um documento. -É o contrato de trabalho do senhor Wemyss -explicou-. Guarda-o,

queimaremo-lo esta noite na fogueira. E voltou a perder-se entre a multidão, onde todos lhe saudavam gritando

MAC Dubh. O terceiro dia estive a par de notícias, intrigas e diversas conversações em

gaélico. Os que não falavam, cantavam; Roger estava em seu elemento, ronco já por tudo o que tinha cantado.

-Faz-o bem? -tinha-me perguntado Jamie, olhando com dúvidas a seu

genro suposto. -Melhor -assegurei. Arqueou uma sobrancelha encolhendo-se de ombros e logo me pediu ao

menino. -Bom, aceito sua palavra. Acredito que o pequeno Ruaidh e eu vamos jogar

aos jogo de dados. -vais levar te a menino a jogar aos jogo de dados? -É obvio -disse, sonriéndome zombador-. Nunca se é muito jovem para

aprender uma ocupação honrada. Irá bem em caso de que não possa ganhá-la comida cantando como seu pai.

Tinha improvisado uma clínica e atendia a uma mulher com dois meninos

talheres de ampolas, causadas pela hera venenosa, quando me dava conta de que passava algo entre a gente e saí a ver. Os reflexos do sol sobre o metal se viam o

bordo do claro. Jamie não foi o único que procurou sua faca.

430

Apareceram partindo, mas seus tambores não soavam. Fui contando. Eram

quarenta, com os mosquetes apontando para o céu como manchas escarlates e com as saias verdes ondulando sobre seus joelhos. Todos os grupos vigiavam aos

intrusos e olhavam a seus chefes esperando indicações. Procurei a Brianna e me surpreendeu encontrá-la detrás de mim com o

menino em braços, observando por cima de meu ombro.

-Quais são?-perguntou em voz baixa. -Um regimento highland -pinjente.

-Isso já o vejo -disse asperamente-, Amigo ou inimigo? Era toda uma pergunta. Estavam ali como escoceses ou como soldados?

Mas, a julgar pelos murmúrios, nem eu nem ninguém tínhamos resposta.

Estávamos em uma reunião pacífica, sem propósitos políticos, mas a simples presencia de muitos escoceses juntos tinha sido sempre uma declaração política.

Muitos dos pressente recordavam aqueles tempos. Os murmúrios se fizeram mais fortes.

Eram quarenta soldados com mosquetes e espadas, e ali haveria uns

duzentos escoceses, a maioria armados e muitos com escravos e serventes. Mas também com suas mulheres e filhos.

-Se algo passar -disse a Brianna— leva a menino para as rochas.

Roger apareceu súbitamente frente a mim com a atenção posta nos soldados. Não olhou ao Jamie, mas se pegou a ele formando uma parede

protetora frente a nós. O mesmo acontecia por todo o claro. Então o oficial deu uma ordem e os soldados passaram à posição de

descanso. Este dirigiu o cavalo para nós. Seus olhos estavam fixos no Jamie, que

ressaltava sobre outros por sua altura e seu cabelo. O homem se tirou o casco com plumas, baixou do cavalo, deu dois passos para ele e o saudou com uma

inclinação de cabeça. Ao ver o de perto distingui um broche de metal aceso de seu casaco vermelho.

-Meu nome é Archie Hayes -disse com os olhos fixos no Jamie e cheios de

esperança—. Dizem que você conhecia meu pai. 71

fecha-se o círculo -Tenho algo que dizer -disse Roger. Tinha estado esperando a oportunidade de encontrar-se a sós com o Jamie

Fraser. Todos queriam falar com ele, mas naquele momento estava sozinho,

sentado sobre um tronco. Roger se sentou com o menino em braços, Brianna e Lizzie estavam

preparando a comida e Claire tinha ido visitar os Cameron do Isle Fleur, cuja fogueira estava perto. Jamie levantou os braços ao ver o Jemmy e, com uma pequena vacilação, Roger lhe entregou ao menino dormido. Murmurou-lhe algo

em gaélico e logo olhou ao Roger. -Disse que tinha algo que me dizer. Roger assentiu.

-Sim, é uma mensagem que devo transmitir. Quando Brianna se foi pelas pedras do Craigh na Dun me vi obrigado a esperar umas semanas anees de poder

segui-la. -Sim? Jamie o olhou com cautela, como cada vez que mencionava as pedras.

431

-Fui ao Inverness -continuou Roger sem deixar de lhe olhar-, Fiquei na casa

onde tinha vivido com meu pai e estive revisando seus papéis. Guardava muitas cartas.

Jamie assentiu, sem saber onde queria chegar, mas sua educação lhe impedia de interrompê-lo.

-Encontrei uma carta e me aprendi isso de cor pensando no momento em

que encontrasse ao Claire. Mas agora não estou seguro de se devo dizer-lhe a ela ou a Brianna.

-E me pergunta sim deve dizer-lhe Olhou-o intrigado. -Talvez. Embora, pensando-o bem, acredito que a carta se refere mais a ti

que a elas. Nesse momento, Roger sentiu simpatia pelo Fraser. -Sabia que meu pai era ministro? A carta era para ele. Suponho que foi

escrita a modo de confissão, mas imagino que a morte anula esse segredo. Roger respirou profundamente e fechou os olhos. Estava seguro de cada

palavra. A carta dizia: Querido Reg:

Algo acontece a meu coração, além da presença do Claire (dito com ironia). O médico diz que posso viver durante anos com cuidados, mas que pode

acontecer algo. As monjas do colégio do Bri assustavam aos meninos com o terrível destino que esperava aos que morriam com pecados sem confessar e sem perdoar. Que me condenem (perdoa a expressão) se tiver medo do que me

passará depois, se é que passa algo. Tudo pode ser,não? Nada de tudo isto lhe posso contar ao padre de minha paróquia por óbvias

razões. Não acredito que veja pecado nisto, mas certamente chamaria para pedir

ajuda a um psiquiatra. Você é um sacerdote, Reg, embora não seja católico e, o mas importante, é

meu amigo. Não precisa me responder nem acredito que te seja possível fazê-lo. Mas pode me escutar. Um de seus grandes dons é saber escutar. Havia-lhe isso dito antes? Estou-me entretendo, não sei por que. Melhor começo. Recorda o

favor que te pedi faz uns anos, sobre as lápides no St. Kilda? Como bom amigo que é, nunca me perguntou nada, mas é o momento de lhe explicar isso

Deus saberá por que o velho Jack Randall foi enterrado em uma colina de Escócia e não no Sussex. Talvez a ninguém importava o bastante para levá-lo a casa. Algo triste, espero que não fora assim. Se alguma vez Bri se interessar por

sua história (por minha história) procurará e o encontrará ali. A localização de sua tumba está mencionada nos documentos da família. Por isso te pedi que fizesse pôr perto a outra lápide, a do James Fraser. Claire a levará a Escócia

algum dia. Estou seguro. Se for ao St. Kilda a verá, ninguém vai a um velho cemitério sem dar uma volta entre as tumbas. Se o fizer, se a encontrar e

pergunta ao Claire... eu não posso fazer mais, o que aconteça o deixo para quando eu não esteja.

Seu conhece todas as loucuras que Claire contava a sua volta. Fiz tudo o

que pude para que o esquecesse, mas não quis. Que mulher mais teimosa! Talvez não cria isto, mas quando fui visitar te aluguei um carro e fui a essa maldita colina, ao Craigh na Dun. Contei-te o das bruxas que dançavam no círculo pouco

antes de que Claire desaparecesse. Quando estive ali quase acreditei. Toque uma pedra e, é obvio, não aconteceu nada.

432

E entretanto, investiguei. Procurei o homem, ao Fraser, E talvez o

encontrei. Ao menos, encontrei uma pessoa com esse nome e o que pude averiguar coincidia com o que Claire me tinha contado. Já seja porque haja dito a

verdade, ou porque convertesse uma ilusão em uma experiência real... bom, havia um homem. Disso estou seguro!

Não poderá acreditá-lo, mas estive ali e pus a mão sobre a maldita lápide,

desejando que se abrisse para ver cara a cara a esse James Fraser. Seja quem for e esteja onde esteja, não desejo na vida mais que o ter diante para matá-lo.

Nunca o vi e não sei se existir, entretanto, odeio a esse homem como nunca odiei a ninguém. Se o que Claire disser e o que eu descobri é lama, então a tirei e a tive comigo graças a uma mentira. Talvez uma mentira por omissão. Suponho

que posso chamá-lo vingança. Os sacerdotes e os poetas dizem que a vingança é uma espada de dobro fio, e o outro fio é que alguma vez saberei o que tivesse feito se tivesse podido escolher, teria ficado comigo se lhe houvesse dito que Jamie

tinha sobrevivido ao Culloden ou teria saído para Escócia como uma flecha? Não posso pensar que Claire deixaria a sua filha. Confio em que não me

deixe tampouco... mas... se tivesse a segundad, juro que o houvesse dito, mas não o fiz e essa é a verdade. Fraser. Devo amaldiçoá-lo por me roubar a mim esposa, ou benzê-lo por me dar a minha filha? Penso essas coisas e logo me

detenho, assustado por acreditar nessa teoria absurda. E entretanto- tenho uma estranha sensação sobre o James Fraser, quase uma lembrança, como se o

tivesse visto em alguma parte. Embora isso é o produto do ciúmes e a imaginação. Eu sei muito bem como é esse bastardo, vejo seu rosto em minha filha todos os dias.

Esta é a parte estranha, um sentido da obrigação. Não só para o Bri, embora acredite que tem direito ou seja o. Algumas vezes, quase posso sentir ao bastardo olhando por cima de meu ombro.

Não o tinha pensado antes- Crie que me encontrarei com ele alguma vez? Encontraremo-nos como amigos, pergunto-me, com os pecados da carne detrás

de nós? Ou terminaremos encerrados para sempre em algum inferno celta, com as mãos obstinadas à garganta do outro?

Eu tratei mal ao Claire; bem, dependendo de como se olhe. Não vou entrar

em detalhes sórdidos, digamos que o sinto. De modo que é assim, Reg. Ódio, ciúmes, mentiras, roubos, infidelidade, tudo completo. Salvo o amor, não há

muito para equilibrar. Amei-a. Talvez não é a forma correta de amor, ou não é suficiente. Mas é tudo o que tive.

Não quero morrer sem confessar e confio em ti para uma absolvição

condicional. Eduquei ao Bri como católica, crie que haverá alguma esperança de que ela reze por mim?

-Estava assinada «Frank», é obvio -disse Roger. -É obvio -repetiu Jamie. Permaneceu imóvel, com o rosto inescrutável. Roger não precisava ler seu

rosto; conhecia bem os pensamentos que passavam pela memore do outro homem. Os mesmos pensamentos que tinha tido nas semanas transcorridas entre o Beltane e a véspera do solstício do verão, durante a busca da Brianna

pelo oceano, durante seu cautividad, e ao final no círculo de pedras e no inferno de rododendros, ouvindo a canção que saía das pedras.

Se Frank Randall tivesse eleito manter em segredo o que tinha descoberto e nunca tivesse feito colocar essa lápide no St. Kilda... Claire teria sabido a verdade? Talvez sim, talvez não. Mas tinha sido essa lápide a que fez que Claire

433

contasse a sua filha a história do James Fraser e a que pôs ao Roger no caminho

do descobrimento que os levou até esse lugar, até esse tempo. Foi a lápide a que enviou ao Claire de volta aos braços de seu amante

escocês e lhe deu a possibilidade de poder morrer neles. A que lhe tinha dado à filha do Frank Randall a possibilidade de voltar com seu outro pai e, ao mesmo tempo, condenava-a a viver em um tempo que não era o seu, como resultado; o

nascimento de um menino ruivo, que representava a continuação do sangue do Jamie Fraser. «Os interesses pela dívida?», pensou Roger.

E logo estavam os pensamentos privados do Roger, outro menino que pôde não ser, salvo pela críptica lápide deixada pelo Frank Randall para obter o perdão. Morag e William MacKenzie não estavam na reunião; Roger não sabia se

estava desiludido ou aliviado. Jamie Fraser se moveu ao fim, embora seguia olhando ao fogo. -Inglês -disse brandamente, como um conjuro.

Roger sentiu que lhe arrepiava o pêlo da nuca e acreditou ver algo movendo-se entre as chamas.

Jamie estendeu suas grandes mãos embalando a seu neto. -Inglês -repetiu, falando com o que fora que via entre as chamas-. Poderia

desejar que nos encontrássemos algum dia, mas espero que não o façamos.

Roger esperou com as mãos sobre seus joelhos. Os olhos do Fraser estavam sombrios. Ao fim, algo sacudiu o fogo; Fraser moveu a cabeça e pareceu que se

dava conta então de que Roger estava ali. -O digo a ela? Ao Claire? -perguntou Roger. -O disse a Brianna?

-Ainda não, mas o farei -disse olhando fixamente ao Fraser-. Ela é minha esposa.

-por agora.

-para sempre..., se assim o quiser. Fraser olhou para a fogueira dos Cameron. A pequena silhueta do Claire se

recortava escura contra o fogo. -Eu lhe prometi sinceridade -disse por fim muito devagar-. Sim, diga-lhe Ao quarto dia, as ladeiras das montanhas estavam cheias de escoceses que

tinham chegado. Cada família tinha sua fogueira, mas estava o grande fogo ao redor do qual se reuniam todas as noites para ver quem tinha chegado durante o

dia. Tive a visão da insígnia do clã dos MacKenzie, “uma montanha ardendo", e

de repente me dava conta do que significava. Não se referia a um vulcão, como

tinha pensado. Não, era uma imagem como a de agora: os fogos familiares brilhando na

escuridão, um sinal de que cada clã estava presente e unido. Pela primeira vez,

entendi o lema que acompanhava à imagem: Lnceo non uro; «.Brilho, não queimo». Muito em breve as ladeiras pareciam vivas por causa das fogueiras. Uma

dúzia de famílias se apresentou antes de que Jamie terminasse sua conversação com o Geraid Forbes e se levantasse. Entregou-me ao menino e acendeu um tição com nosso fogo. Os gritos chegavam de longe.

-Os MacNeill de Barra estão aqui! -Os Lachlan do Glen Linnhe estão aqui!

E ao cabo de um momento, a voz do Jamie, forte e clara. -Os Fraser da Colina estão aqui! Houve um breve aplauso a nossos redor e gritos e vivas de outros.

434

Permaneci quieta, desfrutando de do pequeno corpo dormido em meus

braços. Jamie retornou cheirando a fumaça e a uísque e se sentou no tronco,

detrás de mim. Agarrou-me dos ombros e me apóio contra ele. Ao outro lado do fogo, Brianna e Roger falavam com as cabeças juntas. Seus rostos brilhavam pelo fogo, cada um refletindo-se no outro.

-Não pensará que vão trocar seu nome de novo, não? -disse Jamie, olhando-os com o cenho franzido.

-Não acredito -respondi-. Os ministros fazem outras coisas além de batizar, você sabe.

-Ah, se?

-Já passou em 3 de setembro. Você te disse que então devia escolher. -Isso pinjente. inclinou-se e me beijou na frente.

Logo pôs minha mão na sua. -E você, quer escolher? -perguntou brandamente. Abriu-me a mão e vi o

brilho do ouro-. Quê-lo de novo? Observei-o, procurando dúvidas em seu olhar mas não as encontrei; havia

algo mais: curiosidade pelo que eu ia dizer.

-Foi faz muito tempo -pinjente. -Um comprido tempo. Sou um homem ciumento, mas não vingativo.

Separei-te de seu lado, mas não vou apartar o de ti. Fez uma pausa com o anel brilhando em sua mão. -Foi sua vida, não?

E perguntou outra vez. -Quê-lo de novo? Em resposta estendi a mão e me deslizou o anel no dedo.

«Do F. para o C. com amor. Sempre.» -O que há dito? -perguntei.

Tinha murmurado algo em gaélico, muito baixo, como para que o entendesse.

-Pinjente: «Vê em paz» -respondeu-. Mas não estava falando contigo,

Sassenach. Ao outro lado do fogo algo vermelho cintilou. Olhei a tempo para ver que

Roger se levava a mão da Brianna aos lábios, o rubi do Jamie brilhava em seu dedo, apanhando a luz do fogo e da lua.

-Acredito que ela já escolheu -disse brandamente Jamie.

Brianna sorriu com os olhos posados no rosto do Roger e se inclinou para beijá-lo. Então ficou em pé, limpou-se a saia e foi acender um tição. O entregou

falando em voz alta para que a ouvíssemos. -Vê -disse- e lhes diga que os MacKenzie estão aqui.