Upload
jorge-luis-castro-de-souza
View
270
Download
2
Embed Size (px)
Citation preview
FACULDADE SÃO LUIZ
JORGE LUÍS CASTRO DE SOUZA
A PROPOSTA DE UMA ÉTICA COMUNITARISTA
SEGUNDO ALASDAIR MACINTYRE
BRUSQUE 2011
JORGE LUÍS CASTRO DE SOUZA
A PROPOSTA DE UMA ÉTICA COMUNITARISTA
SEGUNDO ALASDAIR MACINTYRE
Trabalho de conclusão de curso para obtenção do grau de
Bacharelado em Filosofia pela
Faculdade São Luiz
Orientador: Prof. Ms.Francisco
Lawall
BRUSQUE 2011
Dedico este trabalho aos meus pais José
Paulo e Jucileide, aos meus irmãos José
Paulo, Josyane, James, aos meus cunhados
Marcos e Elli, à minha sobrinha Julia Mori e à
minha avó Rosália Vieira, bem como meus
amigos, Tânia Calhau, Anne Roepcke, Maria
Oneda e Cláudio , Herbert e Taísa,
Ideraldo e Margarida
Agradeço primeiramente a Deus, aquele que
tudo provê em minha vida.
Agradeço, com grande admiração, aos
grandes pastores e mestres que Deus pôs em
minha caminhada: Dom Angélico Sândalo
Bernardino e Dom José Negri.
Aos sacerdotes que foram meus formadores
e amigos: Padre Almir, Padre Vanderlei,
Padre Paulo,Padre Ronchi,Padre
Valmir,Padre João,Padre Norbey,Padre José
Carlos, Padre Vicente SCJ, Padre Djalmo,
Padre André SCJ, Frei Edimar Moreira
A todos os meus irmãos da Ordem do Carmo,
Comunidade Bethânia e companheiros de
curso, de forma especial àqueles que
estiveram mais próximos: Felipe Xavier,
Murilo Guesser, Erik Dorf Schmitt, Edegar
Fronza Jr e William Fernandes de Jesus,
Willian T. Cláudio
e, por fim, ao meu orientador
Prof. Mestre Francisco Lawall.
RESUMO O presente trabalho monográfico, de ordem teórico-bibliográfico, busca apresentar a ética comunitarista segundo MacIntyre. Tendo como problemática a repercussão da mesma na atualidade e suas possíveis limitações filosóficas. A ética comunitarista é uma proposta de atualização da ética aristotélica. Para tanto será utilizada como obra básica: Depois da Virtude (2001), de MacIntyre. Será apresentado num
percurso de reflexão a partir dos comportamentos emotivistas, que se enquadram na preferência e no sentimentalismo. Neste mesmo caminho, apresenta-se uma reflexão daquela que é conhecida como ética comunitarista, defendida pelo mesmo contrapondo-se a ética emotivista. Este trabalho quer auxiliar na valorização do pensamento deste escocês e seu modelo ético, descrevendo o comunitarismo, recuperando as virtudes morais nos indivíduos, virtudes estas, que capacitam o homem para realizar o bem de modo compartilhado e no interior de determinada comunidade, já que não se pode conceber o indivíduo apartado da comunidade política de que faz parte. Finalizando, serão mostradas algumas críticas sobre o pensamento oferecido por MacIntyre. Para ele, as alternativas contemporâneas ficam por conta de comunidades mais ou menos organizadas em torno de crenças comuns, tais como igrejas, seitas ou certos tipos de associações políticas. A pequisa justifica-se como busca de um modelo ético baseado na recuperação das virtudes como instrumentos apropriados de formação moral. Nesse sentido, MacIntyre é uma rica oportunidade para dialogar com a atualidade, no contexto ético. PALAVRAS – CHAVE: MacIntyre; Comunitarismo; Virtudes.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................... 6 1. A ÉTICA COMUNITARISTA CONFRONTADA COM A ÉTICA EMOTIVISTA ...... 8
1.1 Conceituação de ética e moral na Filosofia ................................................... 9 1.1.1 Conceituação de ética ........................................................................... 9 1.1.2. Conceituação de moral ....................................................................... 10 1.1.3. A relação entre moral e ética .............................................................. 14
1.2 A teoria da ética emotivista ........................................................................ 16 1.3. A teoria da ética comunitarista .................................................................. 19
2. A ÉTICA COMUNITARISTA SEGUNDO ALASDAIR MACINTYRE .................. 25
2.1. Vida e obra de Alasdair MacIntyre ............................................................. 25 2.2. A influência da ética aristotélica na obra de MacIntyre ................................ 41 2.3. A atualização da ética aristotélica em Alasdair MacIntyre............................ 44
3. PONTOS POSITIVOS E CONTROVÉRSIAS DA PROPOSTA MACINTYREANA
....................................................................................................................... 47 3.1. O comportamentalismo sentimental, histórico e cultural e a ética Macyntireana...................................................................................................................... 47 3.2. O lugar na ética comunitarista de MacIntyre na filosofia política .................. 59 3.3 Discussão de autores sobre a proposta comunitarista Macyntireana ............ 66
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................ 72 REFERÊNCIAS ................................................................................................. 76
INTRODUÇÃO
MacIntyre ganhou destaque em nosso tempo através de sua grande defesa à
ética comunitarista, fazendo uma releitura da ética aristotélica, construindo uma
proposta que pretende combater os modelos éticos contemporâneos, que se
baseiam no modelo iluminista de justificação da moralidade pelo dado empírico,
chamando-os de emotivistas, atualizando o pensamento Aristotélico da ética de
virtudes.
Baseando-se na crítica estabelecida por MacIntyre, chegamos à análise da
possibilidade de uma ética comunitária que possa vir a ser indispensável para a
manutenção das tradições que permitem práticas sociais convenientes à sociedade
atual. Mostrar a repercussão da ética apresentada por MacIntyre na atualidade e
quais as possíveis críticas dessa proposta filosófica.
Este trabalho tem como tema a proposta de uma ética comunitarista segundo
Alasdair MacIntyre, com o objetivo geral de apresentar a ética comunitarista
segundo este autor. Dada a condição sociável presente no ser humano, despertado
após este se conhecer racional e passível de pensamento, reflete-se sobre as
relações que estes humanos desenvolvem.
Todo o comportamento relacional dos homens ao longo dos tempos foi
gerado por circunstâncias e motivações variadas, quando não por estados de
submissão, mas o fato é o interesse do homem em relacionar-se, socializar-se e ao
mesmo tempo, valorar ou intencionar como e por que estabelecer este contato entre
si. No campo moral tem-se muitas descrições de como é o ser sociável; muitas
éticas são estudadas na busca de melhor entenderem essa relação.
Neste mesmo caminho, apresenta-se nesta pesquisa uma reflexão daquela
que é conhecida como ética comunitarista, defendida por Alasdair MacIntyre. Será
7
desenvolvida num percurso de reflexão a partir dos comportamentos emotivistas,
que se enquadram na preferência e no sentimentalismo, quando estudam-se alguns
comportamentos ou atitudes.
Em seu discurso teórico, MacIntyre apresenta o comunitarismo como o
resgate dos valores morais, das virtudes, já anteriormente apreendidas de
Aristóteles. MacIntyre acredita que a vivência comunitária, embora criticado por não
garantir os direitos individuais, se torna fonte de novos valores em sociedades em
que a consciência moral esteja subtraída.
Assim, é objeto deste trabalho de conclusão de curso a ética comunitarista
segundo MacIntyre, tendo como objetivos: apresentar primeiramente o conceito de
ética e de moral; da ética emotivista; descrever a proposta da ética comunitarista,
como atualização da ética aristotélica; mostrar os pontos positivos e limitações da
proposta macintyreana.
1. A ÉTICA COMUNITARISTA CONFRONTADA COM A ÉTICA EMOTIVISTA
É a partir de uma análise histórica da moral que MacIntyre propõe articular e
justificar uma teoria ética comunitária vinculada à tradição aristotélica, que venha por
meio de uma análise da racionalidade prática também vinculada à tradição, mas que
ao mesmo tempo essa racionalidade não seja relativizada. Entende-se que é preciso
construir argumentos válidos que passem pelas premissas relativas à natureza
humana. Podemos entender que esses conceitos apresentados, para renovar a
concepção de moralidade em Aristóteles, passam pela própria narrativa, prática e
tradição.1
A história da moralidade e a história da filosofia moral formam uma única e
mesma história. A multiplicidade de moralidades emergidas nos diferentes contextos
sociais na história correspondem diferentes filosofias morais que organizam tais
moralidades com base em racionalidades diferentes, uma vez que toda a filosofia
moral tem uma sociologia particular como sua contrapartida.
Repassando a história da filosofia, analisa-se a noção de virtude. MacIntyre
destaca o critério de avaliação moral constituído pela forma de vida na qual o
cidadão está inserido e pelo caráter de seu autor que se funde e desenvolve num
contexto social junto à participação dos que possuem bens internos. Assim, todo
amadurecimento moral de uma pessoa acontece na reflexão sobre o tipo de vida
que ela leva e pela construção de uma narrativa individual em função de seus atos
1 Cf. VERÍSSIMO, Martha. Teorias sobre a natureza dos Valores. Disponível em:
<http://www.notapositiva.com/pt/apntestbs/filosofia/10_teorias_natureza_valores.htm>. Acesso em 31
de jul. 2011.
9
que serão julgados como virtudes e vícios. As virtudes relacionam-se então com as
práticas, mas também com a boa vida para o homem. 2
A história da vida está embutida na história das comunidades de onde o sujeito deriva a sua identidade. O que sou, é, portanto, em grande parte, o que herdei, um passado específico que se apresenta de alguma forma no meu presente. Encontro-me como parte de uma história, isto é, como portador de uma tradição. E o que sustenta uma tradição é o exercício das virtudes relevantes. As virtudes encontram o seu objetivo não apenas sustentando as relações sociais necessárias a atingir os bens internos a uma prática, e não apenas sustentando uma forma de vida individual na qual o indivíduo busca o seu próprio bem, mas também sustentando as tradições que
fornecem as práticas à vida individual e seu contexto.3
O que importa nesse estágio é a construção de formas locais de
comunidade dentro das quais possam se sustentar a civilidade e a vida intelectual e
moral durante a nova idade das trevas que já estamos vivendo.
1.1 Conceituação de ética e moral na Filosofia
1.1.1 Conceituação de ética
Segundo Valls,4 o termo ética deriva do grego ethos e significa modo de ser,
caráter, ou seja, designa a reflexão filosófica sobre a moralidade e os códigos
morais. Ao nortear a conduta humana, esclarece, sistematiza e determina as
diretrizes e os princípios da moral. Sendo assim, a ética é uma criação consciente e
reflexiva sobre a moralidade, e também uma criação espontânea e inconsciente de
um grupo social.
Para Oliveira5 a ética é uma reflexão sobre os costumes ou as ações
humanas em diversas manifestações e em diversas áreas, tida como os costumes
considerados corretos, devendo o cidadão se adequar aos padrões vigentes numa
sociedade, pois, caso não siga, é passível de coação das ações e dos costumes
humanos considerados virtuosos.
2 Cf. VERÍSSIMO, 2011.
3 Cf. Ibid.
4 Cf. VALLS, Alm. O Que é a Ética. São Paulo: Brasilense. 1998. p. 16.
5 OLIVEIRA, M. Araújo de. Ética e sociabilidade. São Paulo: Loyola, 1993. p. 22.
10
Na Filosofia, conforme Tugendhat,
A ética pode ser considerada a parte da filosofia que tem como objeto de estudo o domínio da ação humana, que desvenda não o que o homem é, mas aquilo o que ele "deve fazer" perante o seu campo do juízo de valor e não o do juízo de realidade, da existência.6
Os valores podem ser padrões sociais ou princípios mantidos pela
sociedade, de modo que cada um adquire uma percepção individual de valor, com
pesos diferenciados que, sob determinado enfoque, dependerão do modo de vida de
cada pessoa, de suas convicções filosóficas, experiências ou de crenças religiosas.
A consciência se manifesta diante de possibilidades variadas, decorrentes de uma
ação realizada. No processo de condutas, avaliam-se os meios e os fins, pesam-se
as conseqüências que podem ser esperadas.7
Singer,8 nos lembra que o estudo da ética vem articulado a questões
culturais, políticas e econômicas, mostra o respeito e a valorização da ética
enquanto direito e dever de todos em uma sociedade mais democrática e humana,
sendo a cultura de uma sociedade o bom ponto de partida para o estudo do tema
por conter o registro histórico dos mais diferentes grupos sociais, elementos como o
agir, o pensar, o sentir e o reagir, para formar a realidade ética social.
Percebe-se que a discussão ética tem sido constante em toda a história da
filosofia, sendo complexo conceituá-la de forma radical, mas sempre é possível
mostrar sua importância nas ações humanas e o papel que desempenha ao ajudar o
homem na igualdade social. Dentre todos os conceitos, um ponto comum, é que a
grande parte dos pensadores estuda os comportamentos humanos dentro do
contexto social onde estão inseridos, o que demonstra que a ética é fundamental
para o convívio das pessoas, por estabelecer a importância dos valores, a
responsabilidade e a consciência no indivíduo de se reconhecer e conhecer os
outros.
1.1.2. Conceituação de moral
6 TUGENDHAT, Ernst. Lições sobre Ética. Petrópolis: Vozes.1997. p. 31.
7 Cf. VERÍSSIMO, 2011.
8 SINGER, Peter. Ética Prática. Lisboa: Gradiva. 2000. p. 23.
11
De acordo com Appel9 a moral é algo relativo, cultural e temporal, já que é
um conjunto de regras de condutas sociais, logo, que varia de sociedade para
sociedade, ou seja, é dependente da herança cultural de cada sociedade.Nos
remonta a resultado dos valores de um determinado povo, o que a torna temporal,
visto que suas normas não são eternas ou imutáveis, muito pelo contrário, variam
conforme as épocas e a assimilação de novos valores sociais dentro de um novo
contexto histórico.
Entretanto para Weston10, o principal aspecto da Moral é o seu sentido de
obrigatoriedade. As normas estabelecidas devem ser seguidas por todos os
componentes da sociedade, de forma coletiva, envolvendo questões como o que é
"certo" e o que é "errado", o que podemos ou não fazer:
A moral relaciona-se com o limite da liberdade humana ao normatizar e estabelecer até que ponto o homem é livre e a hora em que deve regrar-se e limitar-se para sentir-se seguro dentro de uma sociedade, ao mesmo tempo em que é um ser autônomo e pensante, um
agente modificador e transformador. Moral pode ser entendida como a padronização do "certo" e do "errado"; também afirma que esta é temporal e cultural como conduta de regra, por visar o coletivo. As normas morais adotam limites que aos poucos tornam-se costumes e tradições. Aqueles que vivem sob certa neutralidade quanto ao agir moral ou imoral, são tidos como amorais, alienados, indiferentes.11
E continua o autor:
E esses indivíduos são rapidamente devorados pela sociedade, perdem a sua identidade mediante um caos moral. Apesar de vivermos em uma sociedade dita democrática, sua base política é o conflito junto à diversidade de opiniões. A liberdade do indivíduo quanto ao pensar e agir, se confrontada com a coletividade, perde para esta. A coletividade está sempre acima da individualidade, de forma que o sujeito moral, o imoral e o amoral geram um conflito em uma convivência politicamente democrática em sociedade.12
Podemos observar que, de um lado, temos atos e comportamento dos
homens e determinados problemas morais, e, do outro lado, temos os juízos que
aprovam ou desaprovam moralmente esses atos. Mas, tanto os atos quanto os
9 APPEL, Karl Otto. Estudos de Moral Moderna. São Paulo: Vozes, 1994.
10 WESTON, Anthony. Ética para o Dia-a-Dia. Lisboa: Esquilo. 2002. p. 68.
11 WESTON, 2002, p. 68.
12 WESTON, loc. Cit.
12
juízos morais pressupõem normas que apontam o que se deve fazer, levando por
vezes o indivíduo deslocado da conduta moral estabelecida a tentar argumentar
para justificar o seu comportamento desnivelado.
Destacamos que a moral é um fato histórico e a ética uma ciência da moral,
que enfoca o modo comportamental do homem.
Ao histórico moral, Weston13 cita três campos de reflexão como
fundamentais: a) Deus como fonte da moral (o poder sobrenatural); b) A natureza
como fonte da moral (igualando o homem ao animal, como fator biológico da moral e
seus sentimentos;c) O homem como origem e fonte (o homem é um ser majoritário,
com essência eterna e imutável).
Estas três concepções procuram a origem e a fonte da moral fora do homem
como um ser histórico e social. O comportamento moral existe desde as sociedades
mais primitivas, onde a moral muda e se desenvolve nas diversas sociedades. Tais
mudanças históricas da moral, conforme o autor, levantam dois problemas: causas
que determinam estas mudanças e o seu sentido ou direção. Assim, normas,
mandamentos ou prescrições não escritas, a partir de virtudes que beneficiam a
comunidade, fazem nascer a moral com a finalidade de assegurar uma concordância
do comportamento individual com interesses coletivos. É a necessidade de ajustar o
bom comportamento aos interesses coletivos que leva o indivíduo a contribuir para
reforçar ou minar a união. Estabelece-se o que é bom e o que é mau, deveres e
obrigações conforme o que se considera bom ou útil para a comunidade, com uma
conduta moral única e válida para todos.14
Para Weston15 a coletividade é como um limite da moral, mas uma moral
pouco desenvolvida porque é obrigatória, enquanto que a verdadeira moral é
baseada na responsabilidade pessoal espontânea e inerente ao indivíduo. O autor
cita como exemplo a divisão da sociedade antiga em duas classes antagônicas, com
clara divisão da moral. Existia uma moral dominante, dos homens livres, considerada
como verdadeira, efetiva, fundamentada e justificada nas grandes doutrinas éticas
dos filósofos da antiguidade e a moral dos escravos.
13
Ibid., p. 57. 14
Cf. WESTON, loc. Cit. 15
Cf. WESTON, loc. Cit.
13
Aristóteles, lembra Weston16, opinava que uns homens são livres e outros
escravos por natureza, e que esta distinção é justa e útil, já que os escravos eram
objeto de um tratamento desapiedado, feroz, e que nenhum dos grandes filósofos
daquele tempo julgava imoral. Reprimidos, os escravos eram influenciados por
aquela moral servil e forçados a considerar a si próprios como coisas.
Desaparecendo o mundo antigo, assentado sobre a instituição da
escravidão, nasce a nova sociedade feudal e dos camponeses servos, que eram
vendidos e comprados com as terras às quais pertenciam e não podiam abandonar.
Havia a garantia ao senhor feudal e homens considerados livres (artesãos,
pequenos industriais, comerciantes, etc.) sujeitos à autoridade da Igreja como o
instrumento do senhor supremo, Deus.
Frankl17 relata que a moral da sociedade medieval correspondia às suas
características econômicas, sociais e espirituais entrelaçadas com o papel
dominante da Igreja na sociedade, cuja moral estava impregnada de conteúdo
religioso. Na Idade Média havia pluralidade de códigos morais, como o código dos
nobres, o código das ordens religiosas, o código das corporações, o código dos
universitários. Somente os servos não tinham código e nem direitos diante da
aristocracia feudal.
Esse breve passeio histórico é relevante para se compreender a moral vivida
na sociedade, pelo fato de esta mudar historicamente de acordo com as reviravoltas
no desenvolvimento social, passando por constantes mudanças, como visto da
sociedade escravista feudal à sociedade burguesa. Uma nova moral,
verdadeiramente humana, implica num desenvolvimento do espírito coletivista, e a
história mais uma vez apresenta uma sucessão de morais correspondentes às
diferentes sociedades que se sucedem no tempo, postas numa relação onde a
conquista de uma sociedade determinada prepara o caminho para um nível posterior
e mais avançado ou mais rico do que a outra sociedade. Afinal, o homem é um ser
criador, transformador, mas produz somente em sociedade, materialmente e
espiritualmente. 18
16
Cf. WESTON, loc. Cit. 17
FRANKL, George. Os Fundamentos da Moralidade: Uma Investigação da Origem e Finalidade dos Conceitos Morais. Lisboa: Bizâncio. 2003. p. 45.
18 DAMASCENO, Márcia Marques. O Projeto Filosófico Central De Alasdair Macintyre.
Prometeus - Viva Vox - Dfl - Universidade Federal De Sergipe. Ano 4 - n.7 Janeiro-Junho / 2011. Disponível em: http://www.posgrap.ufs.br/periodicos/prometeus/7/6.pdf Acesso em 31de jul.
2011.
14
O progresso histórico-social cria as condições ideais para o progresso moral,
afeta os homens de uma determinada sociedade sob o ponto de vista moral, tanto
de forma positiva quanto negativa, como, por exemplo, a abolição da escravidão,
que enriqueceu o mundo da moral, integrando nele o escravo. O exemplo demonstra
que o progresso histórico cria condições para o progresso moral e traz
conseqüências para este, porque os homens não progridem somente na direção
moralmente boa, mas também na direção má, pela violência, pelo crime e pela
degradação moral.19
Mas, há vícios morais, antigas virtudes morais que correspondem a
interesses da classe dominante, valores morais reconhecidos depois de o homem
percorrer um caminho no seu progresso social e moral, pois a mudança numa linha
ascensional tem suas raízes na mudança de formações sociais.
1.1.3. A relação entre moral e ética
Segundo Novaes20 a imposição a que as pessoas são submetidas na
necessidade de convivência faz surgir a moral, reunião de regras destinadas a
orientar os indivíduos numa comunidade social. Os termos "ética" e "moral" são
constantemente empregados como sinônimos, mas o fato moral, difere da ética,
que se designa pela reflexão filosófica sobre o mesmo. Os problemas simplesmente
morais são restritos, nunca generalizados e correspondem à singularidade daquela
situação; trata-se de um problema prático-moral. Já os problemas éticos são
caracterizados pelas generalidades, como problemas teórico-éticos. Assim, quando
se indaga o que é correto, o que é bom, sendo de caráter amplo e geral, o problema
é teórico, ou ético. A moral é a ação; a ética é a norma, já que ela não cria a moral, e
sim, faz uma abordagem científica da moral; é a ciência do comportamento moral
dos homens na sociedade, enquanto enfoca o comportamento humano
cientificamente.
Podemos entender que moral é o que é vivido, o que acontece. Já a ética, é, ou, pelo menos, deveria ser, o objeto. A ética estuda,
aconselha e até ordena. A moral é expressão da existência. Tanto a ética como a moral relacionam-se a valores e a decisões com
19
Cf. DAMASCENO, 2011, 20
Cf. NOVAES, Adauto. Ética. São Paulo: Companhia das Letras.1992. p. 5-8.
15
conseqüências para o próprio indivíduo e para os outros. A Moral pode ser conceituada como o conjunto de regras de conduta válidas, que regula o comportamento individual e social das pessoas, envolvendo o conjunto de costumes, normas e regras de conduta em uma sociedade, cuja obediência é imposta, variando de cultura para cultura e sempre se modifica com o tempo em uma mesma sociedade.21
Oliveira22 explica que os dois vocábulos se referem a qualidades humanas,
como o modo de ser ou o caráter, em que se baseiam os costumes ou as normas, o
que pauta o comportamento moral do homem. Assim, a ética analisa as regras e os
princípios morais destinados a orientar a ação humana; sua estrutura é capaz de
analisar diferentes opções sobre o que é ou não correto em determinado momento.
Como os indivíduos só podem viver em função da comunidade, ficam reféns do
sacrifício pessoal que fazem.
A ética, como a moralidade, não se situa no campo puramente dos valores,
porque a sociedade cria valores e ações que orientam e determinam o impulso
moral e impelem a ação dos indivíduos. Tais valores levam ao próprio
aperfeiçoamento e ao bem comum do grupo para se poder dizer que possuem valor
moral. Quando o homem encontra um dilema, os valores pró ou contra determinam
a sua escolha.23
Pelo exposto, encontramos que uma reflexão ética e moral contemporânea
acha-se em constante processo de revisão, pois a sociedade da informação se vê
confrontada com descobertas e possibilidades tecnológicas, intervenções científicas
até então nunca pensadas, como a genética molecular e discussões ético-jurídicas
(aborto, eutanásia, reprodução humana), dentre outras. O comportamento é
ensinado e utilizado como exemplo, como cultura que se apodera de cada um de
nós e determina a nossa conduta. A ética norteia o caminho a ser seguido.
O homem é aparentemente livre, mas diante de uma situação concreta é obrigado a escolher um caminho e, assim surge a ética como limitação da liberdade individual. Nasce a responsabilidade,
que é elemento moral de qualquer conduta. A ética, se comparada à moral, possui um caráter mais abrangente, vai além do que seja o "certo" e o "errado" temporais, do bem e do mal. Ao contrário da moral, a ética é permanente e universal e parte do individual rumo ao bem comum. A moral trata de questões mais concretas e práticas
21
NOVAES, 1992, p.67. 22
OLIVEIRA, 1993, p.28. 23
DAMASCENO, 2011
16
enquanto que a ética lida com temas mais complexos e teóricos que dizem respeito ao juízo de valores que todos possuímos.24
Podemos entender que a ética fragmentou-se ao longo do tempo, seja ética
médica, ética jurídica, ética social, mas, no seu discurso inicial, o "espírito" ét ico é
universal e lembra que a ética envolve a questão da escolha, que a diferencia da
moral. Apesar de ética e moral possuírem uma ligação intrínseca referente a valores
humanos, possuem diferenças e particularidades. O fato é que é impossível
conceber uma sociedade sem moral e sem ética, visto que as duas formam os
principais pilares do respeito e do comportamento social humano.
1.2 A teoria da ética emotivista
Segundo Veríssimo25, as teorias respondem ao problema da natureza dos
valores, como realismo moral, subjetivismo moral e emotivismo. Por realismo moral
entende-se o bem e o mal como propriedades das situações e das pessoas. O
correto e o incorreto são propriedades das ações, e essas propriedades morais são
parte real do mundo. O realismo moral consiste em saber se há fatos acerca do
correto e do incorreto e de que tipo se trata. O subjetivismo moral defende que
existem fatos morais, mas que estes são subjetivos, porque podem ser verdadeiros
ou falsos, dependendo do sujeito que os pratica. Os juízos morais descrevem os
nossos sentimentos de aprovação ou reprovação acerca das pessoas e do que elas
fazem. O certo ou errado depende, dos sentimentos de cada um.
O subjetivismo partilha com o emotivismo a idéia de que não existem verdades morais independentes dos sujeitos individuais e de que os juízos morais derivam dos sentimentos que cada pessoa tem acerca de um determinado assunto. Porém os emotivistas vão mais longe, afirmando que ao utilizarmos a linguagem moral apenas manifestamos as nossas emoções e tentamos convencer os outros a agirem de uma determinada maneira. Deste modo, os juízos morais não expressam qualquer tipo de fato e não transmitem valor de verdade algum, mesmo que estejam relacionados com pessoas.26
24
Ibid. 25
VERÍSSIMO, 2011. 26
Ibid.
17
Para um realista, os juízos morais não dependem do que o sujeito faz, ou
seja, das propriedades que as pessoas e as situações assumem. Segundo um
subjetivista o juízo moral possui valor de verdade, embora não seja objetivo
(verdadeiro). Os juízos morais relatam fatos morais e esses fatos podem ser
avaliados quanto ao seu valor de verdade, apesar de serem subjetivos, ou seja,
apesar de diferirem de pessoa para pessoa.27
Segundo um emotivista o juízo moral possui valor de verdade, embora não seja objetivo (falso). Para um emotivista os juízos morais não relatam qualquer tipo de fato, logo, não expressam valor de verdade. Para os emotivistas, os juízos morais descrevem apenas os nossos sentimentos de aprovação ou reprovação (Falso). O emotivismo não aceita a existência de fatos morais subjetivos. Logo, se os nossos sentimentos de aprovação ou reprovação forem considerados como tal, o emotivismo não os aceita. Para os emotivistas os juízos morais manifestam apenas emoções do sujeito sem valor de verdade algum.28
O emotivismo nos é apresentado por seus mais cultos protagonistas como
uma teoria acerca do significado dos enunciados para emitir juízos morais. Segundo
Alasdair MacIntyre, o emotivismo é
[...] a doutrina segundo a qual todos os juízos valorativos e mais especificamente, todos os juízos morais não passam de expressões de preferência, expressões de sentimento ou atitudes, na medida em que são de caráter moral ou valorativo. Os juízos particulares podem naturalmente, reunir elementos morais e factuais.29
Essa teoria distingue o juízo moral do factual. Os juízos morais não são
verdadeiros ou falsos; no terreno do fato existem critérios racionais por meio dos
quais podemos chegar a um acordo quanto ao verdadeiro e o que é falso. Mas nos
juízos morais, por serem expressões de atitudes ou sentimentos, os emotivistas não
chegam nem ao verdadeiro nem ao falso; e não se tem um acordo no juízo moral
por meio de nenhum método racional, pois não existe nenhum. Somente se chega a
um acordo, caso se produza certos resultados não racionais sobre as emoções ou o
comportamento dos que discordam, “empregamos os juízos morais para expressar
27
Ibid. 28
Ibid. 29
MACINTYRE, Alasdair. Depois da virtude. Tradução Jussara Simões. 2. ed. Bauru:
EDUSC, 2001, p. 30.
18
nossos próprios sentimentos e atitudes, mas também para produzir tais resultados
em outras pessoas.”30
Segundo MacIntyre, o emotivismo consiste numa teoria filosófica que
devemos confrontar, pois como teoria do significado de certo tipo de enunciados, o
emotivismo fracassa claramente por, pelo menos, três razões muito diferentes.
Primeiro, se essa teoria pretende elucidar o significado de determinada classe de
enunciados, de expressar sentimentos ou atitudes, uma parte essencial da teoria
terá de consistir em uma identificação e caracterização dos sentimentos ou atitudes
em questão. Mas a teoria resta em silêncio sobre esse ponto:
Os juízos morais expressam sentimentos ou atitudes é o que se diz. Que espécie de sentimentos ou atitudes? Perguntamos. ‘Sentimentos ou atitudes de aprovação’ é a resposta. ‘Que espécie de aprovação?’ perguntamos, talvez para acrescentar que existem
diversos tipos de aprovação. É na resposta a essa pergunta que todas as versões do emotivismo permanecem em silêncio.31
A segunda razão do fracasso do emotivismo consiste no fato de que o
emotivismo, como teoria do significado de determinado tipo de enunciado, empenha-
se numa tarefa impossível desde o início, porque caracteriza como equivalentes as
expressões de preferência pessoal e expressões valorativas, citando o modo como
as elocuções do primeiro tipo dependem de quem as emite para quem, por qualquer
poder justificativo que tenham, ao passo que as elocuções valorativas não são
dependentes de forma semelhante na sua força justificadora do contexto da
elocução.
O escocês critica a equivalência:
Isso parece suficiente para provar que existe uma grande diferença de significado entre os membros das duas classes; contudo, a teoria emotivista deseja torná-los equivalentes em significado. Isso não é apenas um erro; é um erro que exige explicação.32
A terceira é que o emotivismo pretende ser uma teoria acerca do significado
de enunciados; mas a expressão de sentimentos ou atitudes não é função do
significado dos enunciados, mas de seu uso em determinadas ocasiões. Tal uso de
30 MACINTYRE, 2001, p. 31.
31 Ibid., p. 32.
32 Ibid., p. 33.
19
um enunciado para expressar sentimentos ou atitudes não tem absolutamente nada
a ver com o seu significado. Ao contrário, ela deveria ser proposta como teoria do
uso compreendido como finalidade ou função de membros de determinada classe de
expressões e não acerca do seu significado. Como demonstra o exemplo de
MacIntyre:
O professor primário furioso, para usar o exemplo de Gilbert Ryle, pode dar vazão aos sentimentos gritando com o garotinho que acaba de cometer um erro de cálculo: “sete vezes sete é igual a quarenta e nove!” Mas o uso desse enunciado para expressar sentimentos ou
atitudes não tem absolutamente nada a ver com o significado.33
O emotivismo revela-se uma tese empírica, um rascunho preliminar de tese
empírica, a ser concluído por observações sociológicas, psicológicas e históricas.
MacIntyre a isso acrescenta:
Quero argumentar que qualquer projeto dessa forma estava fadado ao fracasso, devido a uma discrepância inerradicável entre seu conceito em comum de normas e preceitos normais, por um lado, e o que tinham em comum – apesar de divergências muito maiores – em seu conceito de natureza humana, por outro lado. Ambos os
conceitos têm uma história e suas relações só podem tornar-se inteligíveis à luz dessa história.34
Observa-se que o surgimento do emotivismo demonstra com ênfase que tal
teoria incorporou-se em nossa cultura, passou por uma transformação do eu e de
seu relacionamento com seus papéis, das modalidades mais tradicionais de
existência para as formas emotivistas contemporâneas.
1.3. A teoria da ética comunitarista
As teorias éticas nascem e desenvolvem-se em diferentes sociedades como
resposta aos problemas resultantes das relações entre os homens. Os contextos
históricos são, pois, elementos muito importantes para se perceber as condições
que estiveram na origem de certas problemáticas morais que ainda hoje
permanecem atuais.
33
Ibid., p. 33. 34
Ibid., p. 99.
20
MacIntyre diz:
Se existe, então, para as coisas que fazemos, algum fim que desejamos por si mesmo e tudo o mais é desejado por causa dele; e se nem toda coisa escolhemos visando à outra (...), evidentemente tal fim deve ser o bem, ou melhor, o sumo bem. 35
A idéia aristotélica de bem está indissociavelmente ligada à idéia de
felicidade e à idéia de virtude. A felicidade significa a realização plena do ser; é o
bem supremo da política. Segundo Aristóteles, "tanto o vulgo como os homens de
cultura superior dizem que esse bem supremo é a felicidade e consideram que o
bem viver e o bem agir equivalem a ser feliz."36
Aristóteles, ao tratar do tema da virtude, a divide em dois tipos: virtudes
dianoiéticas, também chamadas virtudes da razão e virtudes morais. Para
Aristóteles, a chamada virtude intelectual deve, "em grande parte, sua geração e
crescimento ao ensino, e por isso requer experiência e tempo."37 De outro lado "a
virtude moral é adquirida em resultado do hábito, de onde o seu nome se derivou,
por uma pequena modificação dessa palavra."38 Segundo ele: "a sabedoria
filosófica, a compreensão e a sabedoria prática são algumas das virtudes
intelectuais; e a liberalidade e a temperança são algumas das virtudes morais."39
A virtude moral se constitui em um meio termo entre dois extremos, e é
adquirida pelo hábito. Afirma ele:
É evidente, pois, que nenhuma das virtudes morais surge em nós por natureza, visto que nada que existe por natureza pode ser alterado pelo hábito.(...). Não é, portanto, nem por natureza nem contrariamente à natureza que as virtudes se geram em nós; antes devemos dizer que a natureza nos dá a capacidade de recebê-las, e tal capacidade se aperfeiçoa com o hábito.40
Aristóteles, apesar de ter sido discípulo de Platão, diferencia-se do ponto de
vista de seu mestre, pelo fato de ser um filósofo eminentemente prático, no sentido
de entender que as virtudes adquirem-se pelo agir, e não por meio da contemplação.
35
MACINTYRE, 2001, p. 17. 36
Ibid., p. 19. 37
Ibid., p.40. 38
MACINTYRE, loc. Cit. 39
Ibid., p.39. 40
Ibid., p.40.
21
Daí advém a relação que ele estabelece entre a virtude e o hábito, capaz de produzir
em nós uma segunda natureza. Em suma, para Aristóteles o bem é "a finalidade em
todas as ações e propósitos, pois é por sua causa que os homens realizam tudo o
mais".41
A felicidade é, na visão aristotélica, o supremo bem, já que é buscada por si
mesma e não por qualquer outro interesse. Para Aristóteles, a honra, o prazer, a
razão, e todas as demais virtudes, ainda que as escolhamos por si mesmas (visto
que as escolheríamos mesmo que nada delas resultasse), fazemos isso no interesse
da felicidade, pensando que por meio dela seremos felizes.
Segundo Galuppo,42 vem daí a indissociável relação entre os três conceitos
básicos da ética de Aristóteles: bem, felicidade e virtude.
Conceitos, estes, fundamentais ao entendimento de todo o arcabouço teórico do comunitarismo. O contexto histórico de surgimento do comunitarismo se refere a um período bem distante e diverso do atual. O pensamento comunitário acompanha as
transformações pelas quais a sociedade vem passando desde a Grécia antiga até nossos dias.43
Alasdair MacIntyre defende o conceito de virtude, derivado da filosofia de
Aristóteles, e acrescenta a idéia de tradição, importantíssima para se compreender o
sentido do agir humano. MacIntyre concebe Aristóteles como sendo o autor capaz
de ser confrontado com os autores da modernidade liberal, assim como o
"representante de uma longa tradição, alguém que articula o que inúmeros
antecessores e sucessores também articulam com graus variáveis de êxito."44
MacIntyre45 seguindo os passos de Aristóteles, entende que "toda atividade,
toda investigação, toda prática tem algum bem como finalidade", afirma que, "o bem"
ou "um bem" é “aquilo a que os seres humanos normalmente aspiram".
Conforme Galuppo46, a modernidade emergiu em razão da ruptura com o
mundo antigo-medieval, ocorrida, paulatinamente, com o advento da Revolução
Científica, das Grandes Navegações e da Reforma. Com a Modernidade, não havia
41 Ibid., p.25.
42 Cf. GALUPPO, Marcelo Campos. A virtude da justiça. In: Extensão, v. 10 – 11. Belo
Horizonte: 2001, p. 67 – 187. Disponível em: <http://www.biblioteca.pucminas.br/teses/Direito_HordonesFV_1.pdf>. Acesso em 31 de jul. 2011.
43 GALUPPO, 2001.
44 MACINTYRE, 2001, p. 249.
45 Ibid., p. 252.
46 GALUPPO, 2001.
22
mais um único centro orientador da conduta, o que exigiu que o indivíduo, e não
mais a comunidade, como entendia Aristóteles, fosse o referencial na tomada de
decisões. MacIntyre vê na multiplicidade de centros orientadores um obstáculo ao
entendimento da vida, entendida como unidade.
Qualquer tentativa contemporânea de considerar cada vida humana como um todo, (...) se depara com duas espécies de obstáculo, um social e um filosófico. Os obstáculos sociais provêm do modo como a modernidade divide a vida humana numa série de segmentos, cada um com suas próprias normas e modalidades de comportamento. Portanto, o trabalho fica afastado do lazer, a vida privada afastada da vida pública, a vida empresarial afastada da pessoal.47
Afirma MacIntyre:
A teoria aristotélica das virtudes pressupõe, portanto, uma distinção fundamental entre o que qualquer indivíduo em determinado momento acredita ser bom para ele e o que é realmente bom para ele como homem. É para alcançar o segundo bem que praticamos as virtudes e o fazemos por meio da escolha de meios para alcançar tal fim, meios em ambos os sentidos acima caracterizados. Tais escolhas exigem discernimento, e o exercício das virtudes requer, portanto, a capacidade de julgar e fazer o certo, no lugar certo, na hora certa e da maneira certa.48
MacIntyre, reafirmando a dimensão comunitária do pensamento de
Aristóteles, aduz a insistência deste em sustentar a tese de que as virtudes devem
ser analisadas, não somente tendo em vista a vida do indivíduo, mas, sobretudo, a
vida da pólis, já que não é possível desvincular-se o indivíduo da comunidade
política de que faz parte.49
MacIntyre, ao transportar o pensamento de Aristóteles (principalmente no
que se refere à sua dimensão comunitária traduzida em um projeto compartilhado de
busca de um bem comum) para o contexto da sociedade contemporânea, afirma:
Um modo de elucidar o relacionamento entre as virtudes e a moralidade das leis é pensar no que consistiria, em qualquer época, fundar uma comunidade para realizar um projeto comum, realizar algum bem reconhecido como bem comum por todos os
47
MACINTYRE, 2001, p. 343. 48
Ibid., p. 255. 49
Ibid., p. 256-257.
23
participantes do projeto. Como exemplos modernos de tal projeto, podemos pensar na fundação e na administração de uma escola, um hospital ou uma galeria de arte; no mundo antigo, os exemplos característicos teriam sido os de uma seita religiosa, ou de uma expedição, ou de uma cidade.50
Contrapondo os paradigmas políticos afirma MacIntyre:
Essa idéia de comunidade política como projeto comum é estranha ao mundo individualista liberal moderno. É assim que, pelo menos às vezes, encaramos nossas escolas, hospitais ou instituições filantrópicas; mas não temos idéia de tal forma de comunidade envolvida, como Aristóteles diz que a pólis está envolvida, na totalidade da vida, não com esse ou aquele bem, mas com o bem do homem como tal. Não é de admirar que se tenha relegado a amizade à vida privada e, portanto, ela esteja enfraquecida em relação ao que um dia foi.51
Paralelamente às mudanças ocorridas no campo da moralidade, ocorreram
transformações no conceito de identidade. Para compreendermos o sentido de uma
ação, devemos, inevitavelmente, perquirir sobre as crenças que condicionam o
comportamento de alguém, e não somente isso, pois é também necessário que se
conheçam as intenções e o cenário onde a ação se desenvolve. 52
A vida é uma história narrada, donde se extrai a importância do conceito de narrativa para se compreender o sentido do agir. Cada um de nós, sendo o protagonista de seu próprio drama, tem papéis coadjuvantes nos dramas de outras pessoas, e cada drama restringe os outros.53
Galuppo54 explica que se trata de uma narrativa contada por cada um de
nós. Nela, cada um se vê a si mesmo como centro da vida, o que é, obviamente,
paradoxal, pois o tema da tradição em MacIntyre é de vital importância. É por meio
da tradição que compreendemos o sentido de nossa ação e, conseqüentemente, de
nossa história. Para MacIntyre, portanto, a virtude não pode ser reduzida, como dito,
a um amontoado de capacidades profissionais, mas, sim, analisada, tendo-se em
vista a identidade do eu desenvolvida no contexto de uma tradição. Assim como em
50
Ibid., p. 257. 51
Ibid., p. 265. 52
Ibid., p. 33-35. 53
Ibid., p. 359. 54
GALUPPO, 2001.
24
Aristóteles, também em MacIntyre, o agir virtuoso se refere ao agir visando o bem
em geral, sobretudo de modo compartilhado (ou seja, conjuntamente, no interior de
uma comunidade, seja ela doméstica ou política, uma vez que não posso buscá-lo
individualmente).
MacIntyre afirma:
A vida virtuosa para o homem é a vida passada na procura da vida virtuosa para o homem, e as virtudes necessárias para a procura são as que nos capacitam a entender o que mais é a vida virtuosa para o homem.55
Portanto, como Aristóteles, também MacIntyre pode ser considerado um
comunitarista, já que toda a sua filosofia é desenvolvida tendo por base as virtudes
aristotélicas, virtudes estas que capacitam o homem realizar o bem de modo
compartilhado e no interior de determinada comunidade, já que não se pode
conceber o indivíduo apartado da comunidade política de que faz parte. A
individualidade e a fragmentação do indivíduo no contexto da sociedade moderna
constitui, segundo MacIntyre, um óbice ao desenvolvimento das virtudes no sentido
atribuído por Aristóteles. MacIntyre relaciona as virtudes como algo que informa a
vida do indivíduo e não como um conjunto de habilidades profissionais, donde se
extrai a importância que ele confere a phrónesis como a virtude capaz de conduzir o
homem na busca por uma vida virtuosa e conseqüentemente capaz de realizar o
bem comum dos participantes de uma comunidade.56
55
MACINTYRE, 2001, p. 369. 56
GALUPPO, op. cit.
2. A ÉTICA COMUNITARISTA SEGUNDO ALASDAIR MACINTYRE
2.1. Vida e obra de Alasdair MacIntyre
Alasdair MacIntyre57 é considerado um dos autores que tem escrito, de uma
forma mais inteligente e informada, sobre ética, constituindo, hoje, uma das vozes
mais autorizadas e singulares neste domínio. Profundamente devedor do
pensamento filosófico de Aristóteles e de Tomás de Aquino, o filósofo escocês
conseguiu, numa obra notável, comentar e continuar a filosofia de Aristóteles e de
Aquino e, simultaneamente, construir uma teoria ética singular e inovadora.
A singularidade da teoria ética de MacIntyre justifica-se pelo fato de não se
integrar nem nas perspectivas éticas surgidas com o moderno iluminismo, nem nas
perspectivas pós-modernas e pós-nietzscheanas. A crítica que faz à esterilidade da
ética moderna e, em particular, à perspectiva individualista liberal, faz dele um
comunitarista ético.
No entanto, a complexidade da ética de MacIntyre é difícil de arrumar e de
etiquetar.
57
Alasdair MacIntyre nasceu na Escócia em 1929. Estudou no Queen Mary College, formou-se na Universidade de Londres e na Universidade de Manchester. Lecionou em várias universidades britânicas e americanas, incluindo a Oxford University de 1963 a 1966, University of Essex de 1966 a 1970, na Brandeis University de 1970 a 1972, na Boston University de 1972 a 1980, Wellesley College de 1980 a 1982, na Vanderbilt University de 1982 a 1988 e Yale University de 1988 a 1989.
Atualmente está vinculado a University of Notre Dame. Dentre as principais obras de Alasdair MacIntyre encontram-se A Short History of Ethics (1966);
Secularization and Moral Change (1967); After Virtue (1981); Whose Justice, Which Rationality? (1988); Three Rival Versions of Moral Enquiry (1990); Dependent Rational Animals (1999); Marxism and Christianity; Against the Self-Images of the Age (1971). Macintyre foi, ainda, o organizador das coletâneas: Hume’s Ethical Writtings e Hegel: A Colection of Critical Essays [Cf. GALUPPO, 2001].
26
A crítica que ele faz ao relativismo ético radical, tão querido de uma certa pós-modernidade, pode fazer-nos tentar ver nele um universalista ético, coisa que ele não é. E a crítica que ele faz à tese kantiana da autonomia do agente moral e do imperativo categórico, obriga-nos a colocar MacIntyre num lugar bem diferente de todos os que se mostram devedores da filosofia do grande Immanuel Kant. Não é, por isso, um acaso, a rejeição que MacIntyre faz da ética de John Rawls, a qual mais não é do que um kantismo de conteúdo social e igualitário. A complexidade da ética de MacIntyre é tal que também não é possível arrumar o seu pensamento junto dos seus
compatriotas escoceses que, no século XVIII, criaram a ética utilitarista. No fundo, a melhor designação para a ética de MacIntyre é dizermos que estamos perante um neo-aristotelismo e um neotomismo. Mas, mesmo assim, fica de fora tudo aquilo que é novo e inovador no pensamento de MacIntyre, e que é muito. E aquilo que é novo no pensamento de MacIntyre é tanto, que não será exagero afirmar que há uma ética antes de MacIntyre e uma ética depois de MacIntyre.58
O mesmo Galuppo relata que MacIntyre é um autor tão complexo que só é
possível estudá-lo adequadamente lendo a sua obra. Por essa razão, seguem
trechos e comentários por ordem cronológica de publicação.
A Short History of Ethics59 é considerado um clássico da história da
ética,pois guia o leitor através da história da filosofia moral, desde os gregos até ao
século XX. No prefácio da 2ª edição, escrito em 1997, MacIntyre reconhece a ampla
aceitação da obra e também suas limitações pelo fato de o título ser inadequado e
não figurar na obra referência à filosofia oriental. Também constitui falha o fato de o
autor ter dedicado apenas 20 páginas, num total de 280 páginas, à filosofia moral da
cristandade medieval.
Nos livros seguintes, em particular no After Virtue e no Three Rival Versions
of Moral Enquiry, houve oportunidade de emendar tal erro, dedicando parte desses
livros a analisar a ética da cristandade medieval, com relevo para a ética de
Agostinho de Hipona e para a ética de Tomás de Aquino, considerada central para
compreender o pensamento de MacIntyre e a sua crítica à ética moderna.
58
Ibid.
59 As obras Short History of Ethics, After Virtue , Dependent Rational Animals: Why Human
Beings Need the Virtues. Chicago, A Short History of Ethics, e Three Rival Versions of Moral Enquiry,
de Alasdair MacIntyre, foram lidas e estudadas na sua versão original, isto é, no inglês. Todavia, para
as citações neste texto serão usadas as traduções feitas, dos livros acima referendados, pela
professora Mirella Vieira e por Jorge Luís Castro de Souza [nota do pesquisador].
27
O livro A Short History of Ethics acentua o contexto histórico das idéias e
conceitos morais, antecipa o que será a característica principal das obras
posteriores. MacIntyre pretende com a ênfase no contexto histórico lembrar o leitor
de que não é possível o inquérito moral e a compreensão dos conceitos éticos sem
uma clara alusão à época histórica que os criou; que não é possível uma ética sem
uma história da ética, nem uma filosofia sem uma história da filosofia.
O que diferencia MacIntyre de Nietzsche é a noção de genealogia usada
para a compreensão da origem e evolução dos conceitos éticos.
Mas, ao contrário do que pensava Kant, é impossível compreender a moral, desligando as questões morais dos seus contextos e das circunstâncias. Desde logo, com esta argumentação, o filósofo escocês mostra que é necessário regressar a Aristóteles, fazer o trabalho de casa sobre a ética a Nicômaco e a ética a Eudemo e, depois, atualizar a ética aristotélica, sem perder de vista o caráter historicista, situado e contextual da ética.60
No citado prefácio, MacIntyre reconhece a justiça das críticas não só com
relação à brevidade e superficialidade com que apresenta a filosofia moral da Idade
Média cristã, mas também a falta de clareza com que analisa a filosofia moral do
iluminismo escocês e alemão do século XVIII, em particular a filosofia de Adam
Smith e a filosofia moral de Kant. Depois de dedicar 109 páginas à ética grega, e
apenas 10 páginas à ética medieval, MacIntyre resume a ética européia moderna e
contemporânea (desde o Renascimento até ao século XX) em 149 páginas.
O seu grande erro foi tentar resumir a época mais importante da história da ética ocidental em apenas 10 páginas. Com efeito, o autor havia de reconhecer, nos seus livros posteriores, a extrema importância da ética dos dois primeiros séculos da nossa era e da ética dos séculos XII e XIII, num caso e noutro, períodos que conheceram um florescimento invulgar da ética. É esse reconhecimento, tantas vezes esquecido, quer pela ética iluminista do século XVIII, quer pela ética individualista contemporânea, que lhe vai permitir ensaiar uma alternativa ao atual vazio moral que
ameaça as sociedades ocidentais material e tecnologicamente desenvolvidas, mas espiritualmente empobrecidas.61
A este propósito comenta MacIntyre:
60
GALUPPO, op. cit. 61
Ibid.
28
É necessário corrigir as minhas omissões e erros, de duas maneiras diferentes. Primeiro, tomar na devida consideração a contributo da cristandade, o qual deve ser não só aumentado, mas revisto radicalmente. A base desse relato imputa à ética cristã um paradoxo por resolver, pois tentou prescrever um código para a sociedade, a partir de afirmações originalmente dirigidas a indivíduos e a pequenas comunidades que se separaram do resto da sociedade na expectativa de um segundo regresso de Cristo, que de fato não ocorreu. Aquilo que eu não consegui reconhecer foi que esse paradoxo já tinha sido resolvido pelo Novo Testamento, através das
doutrinas paulinas da igreja e da missão da igreja no mundo. Essas doutrinas definem, com sucesso, uma vida para os cristãos que inclui tanto a esperança na segunda vinda de Cristo, como o comprometimento com a atividade do mundo.62
Está criado o terreno para fertilizar uma nova tábua de virtudes que implica
tanto a obediência à Lei Divina, captada pela razão e pela fé, como a obediência à
revelação, mediada pela Igreja.
O capítulo sobre Kant, embora pequeno, toca numa questão central: o imperativo categórico como critério de uma ética formalista,
independente das circunstâncias, do contexto e da cultura. Precisamente aquilo que mais afasta a ética de MacIntyre da ética moderna: a concepção kantiana do imperativo categórico, que defende que nós devemos agir no respeito por máximas que sejamos capazes de tratar como se fossem leis universais. Na vida real, não existe tal coisa. O Homem como agente moral é um ser situado, condicionado pelas circunstâncias e com laços que o prendem a uma comunidade com uma dada tradição. Pretender que é possível criar abstratamente um Homem universal, capaz de se libertar das circunstâncias e separado da comunidade e da tradição, é o mesmo que recusar a evidência da evolução histórica e da diversidade cultural. Um olhar pela História Ocidental faz-nos lembrar
que a ética ocidental mudou consoante os contextos históricos e culturais.63
O livro After Virtue, ao ser publicado em 1981, foi imediatamente
reconhecido como uma das maiores críticas à filosofia moral contemporânea. O livro
ocupa-se da relação da filosofia com a história e da questão do relativismo das
virtudes. O livro possui 19 capítulos, num total de 286 páginas e aborda questões do
tipo: a natureza do desacordo moral atual, o projeto iluminista da justificação da
moral, razões que explicam o projeto iluminista, as virtudes nas sociedades
62
MACINTYRE, Alasdair. A Short History of Ethics. Notre Dame: University of Notre Dame,1998. p. 65.
63 GALUPPO, op. cit.
29
heróicas, as virtudes em Aristóteles, as virtudes na Idade Média, a concepção
tradicional das virtudes e, ainda, a ética de Nietzsche face à ética de Aristóteles. O
livro faz a defesa filosófica da variedade e heterogeneidade das crenças, conceitos e
práticas morais, revela e explica a ascensão e a queda das diferentes moralidades.
Esta tese conduz MacIntyre à afirmação da atual ausência de critérios morais que possam imprimir uma direção moral nas modernas sociedades ocidentais. Na ausência de critérios morais, torna-se difícil arranjar argumentos para combater os novos males contemporâneos. Este fato resulta do corte radical com as tradições, imposto por grande parte das concepções éticas pós-kantianas e pós-nietzscheanas. Sabendo que, umas e outras, obtiveram o predomínio do pensamento ético contemporâneo das sociedades ocidentais, não é difícil antever por que razões as concepções éticas ancoradas na defesa dos laços comunitários e culturais continuam a
ser tão mal aceites. Ora, a concepção ética de MacIntyre é um dos melhores exemplos de uma ética ancorada nos laços comunitários e culturais. O fato de ele ter fundamentado a sua ética em dois autores ignorados e combatidos pela ética individualista do iluminismo, respectivamente Aristóteles e Tomás de Aquino, torna a sua ética um caso ainda mais singular no panorama atual do pensamento filosófico.64
A ética de MacIntyre é profundamente preocupada com o Bem. Mas é,
também, uma ética racionalista que, contudo, não se distancia do processo de
criação das emoções e dos afetos e da dependência das circunstâncias e dos
contextos culturais e sociais. É uma ética situada.
Sobre o papel da razão, MacIntyre afirma:
A razão ensina-nos tanto a encontrar o nosso verdadeiro objetivo como a alcançá-lo. Temos, então, um esquema tripartido no qual a natureza humana em estado natural é inicialmente discrepante e discordante dos preceitos da ética e precisa de ser transformada pelo ensino e experiência da razão prática em natureza humana como ela deverá ser para poder realizar a sua finalidade. Cada um dos três elementos do esquema - a concepção da natureza em estado natural, a concepção dos preceitos da ética racional e a concepção da natureza como ela deverá ser para poder realizar a sua finalidade - requer referência aos outros dois estados para que o seu estado e a sua função se tornem inteligíveis.65
64
Ibid. 65
MACINTYRE, Alasdair. After Virtue. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1984. p.
53.
30
À noção aristotélica de erro junta o filósofo escocês o conceito tomista de
pecado igual a erro. A verdadeira finalidade do homem já não pode ser
completamente realizada neste mundo, mas apenas no outro. Esta perspectiva
percorreu a noção aristotélica de erro. Esta perspectiva percorreu todo o período da
História do Ocidente, desde a afirmação do cristianismo até, pelo menos, ao
Renascimento. Mas foi só com a vitória do iluminismo e da sua concepção ética
individualista, a partir do século XVIII, que entrou em declínio.66
É essa concepção que a nova ética de MacIntyre pretende recuperar, colocando-a em diálogo quer com a concepção iluminista, na versão individualista kantiana e na versão utilitarista de Adam Smith, quer com a concepção genealogista de Nietzsche. Desse
diálogo a três vozes poderá nascer uma nova ética que dê respostas para as interrogações contemporâneas. Pelo menos, é essa a esperança de MacIntyre.67
O período em que a concepção teísta da moral foi predominante, ela
representava uma resposta satisfatória para o problema da escolha do bem. Dizer
aquilo que uma pessoa devia fazer era o mesmo que dizer qual era o curso de ação
capaz de fazer cumprir a verdadeira finalidade do homem. E dizer isso era o mesmo
que dizer o que é que a Lei Divina, iluminada pela razão, prescrevia. 68
Durante esse longo período da história da civilização ocidental, não houve,
na verdade, uma crise moral prolongada. Cada um conhecia o lugar que lhe estava
reservado e o caminho a seguir estava previamente traçado pelos laços
comunitários e culturais que uniam cada um aos seus. A maior parte dos
proponentes medievais desta perspectiva moral acreditava, claro está, que fazia
parte de uma verdade revelada por Deus, mas descoberta pela fé e pela razão, em
conjunto. Tomás de Aquino, no século XIII, foi a voz sublime desta proposta moral. A
Lei Moral Divina constituiu, durante esse período, o instrumento para elevar o
homem do estado da natureza natural para o estado da natureza que permite ao
homem a realização da sua verdadeira finalidade. Foi só a partir do momento em
que a corrente que rejeita a visão teológica da natureza humana começou a ser
66
GALUPPO, op. cit. 67
Ibid. 68
Ibid.
31
preponderante, a partir de Descartes, é que a proposta moral da cristandade
medieval começou a ser substituída lentamente pelas visões positivistas, utilitaristas
e individualistas. O século XIX e o século XX assistiram, assim, à vitória dessa
substituição.
Alasdair MacIntyre não vê nessa vitória um sinal de progresso espiritual e ético da civilização ocidental. Traçando um quadro comparativo com o período que antecedeu a queda do império romano sob o avanço das hordas bárbaras vindas do Leste e do Norte da Europa, MacIntyre argumenta que os novos bárbaros partiram, desta vez, não da periferia do império, mas do centro do império para a periferia. E, sem termos consciência disso, a nova barbárie tomou conta dos destinos do império e corrói o espírito e a moral das sociedades ocidentais tecnologicamente desenvolvidas. Aplica-se, neste cenário, a tese de Tomás de Aquino sobre a
diferença entre bens interiores e bens exteriores e a sua argumentação de que existe alguma incompatibilidade entre eles. Quando uma sociedade começa a dar preferência aos bens exteriores, inicia um processo de exclusão das virtudes, já que estas só podem florescer em sociedades que dão a primazia aos bens interiores.69
Ao lembrar esta tese de Tomás de Aquino, o filósofo escocês está a avisar-
nos que já percorremos o caminho que nos leva ao abandono das virtudes, porque
as sociedades ocidentais materialmente desenvolvidas deixaram-se, há muito,
seduzir pelos bens exteriores, vendendo a alma ao dinheiro e aos bens exteriores
que ele proporciona. A responsabilidade da exclusão das virtudes nas sociedades
ocidentais materialmente desenvolvidas não pode deixar de ser assacada à
predominância da ética individualista, nascida com Kant e alimentada, mais tarde,
pela genealogia da ética pós-moderna.
A atual ética individualista ignora um fato extremamente importante que Aristóteles lembrou há 24 séculos: o Homem é uma entidade funcional, com uma natureza essencial e uma finalidade essencial. Na Ética a Nicômaco, Aristóteles toma essa característica como ponto de partida do inquérito ético e afirma que a relação do Homem com a vida boa é análoga à do harpista face ao tocar bem harpa.
Esta concepção funcional do homem é ainda mais antiga do que Aristóteles e não deriva apenas da sua biologia metafísica. As suas
69
Ibid.
32
raízes podem encontrar-se nas formas de vida social expressas nas obras dos filósofos e poetas da tradição clássica grega.70
E continua o autor:
De acordo com essa tradição, ser Homem é cumprir e realizar um conjunto de papéis e funções, cada um dos quais com a sua
finalidade: ser membro de uma família, ser um cidadão de uma polis, etc. Quando a moderna ética individualista começou a ver o homem como indivíduo separado das suas funções, o Homem deixou de ser encarado com um conceito funcional. Começou aí um doloroso caminho de empobrecimento moral que atingiu o seu cume com os avanços niilistas que marcaram o século XX. O paradoxo do século XX exprime-se pelo fato de nunca um século ter conhecido tanto progresso material e tecnológico e, simultaneamente, tanta regressão espiritual e moral.71
O refúgio emotivista constitui uma defesa irracional, mas compreensiva, face
a um paradoxo: apesar da abundância material e tecnológica, o século XX não
conseguiu providenciar alimento para o corpo e para a alma para uma grande parte
da população mundial. A invenção do indivíduo, ocorrida a partir do Renascimento,
correspondeu a importantes transformações na vida social das populações
européias. Quando o "self" se separa dos modos de pensamento e de cultura
herdados, torna-se necessário criar novos consensos que permitam a invenção de
novas tradições culturais, porque a idéia de um "self" separado da tradição herdada
não passa de uma mera ideia sem correspondência com a realidade.72
No final do livro After Virtue, MacIntyre coloca Aristóteles e Nietzsche a
dialogar, dando a crer que o fracasso do projeto iluminista deixou apenas duas
alternativas: ou a vitória do irracionalismo niilista de Nietzsche, tão encarecidamente
abraçada pela ética pós-moderna, ou o regresso a um Aristóteles vivificado e
complementado por Tomás de Aquino. Nietzsche é apresentado como o último
antagonista da tradição aristotélica. O desprezo com que Nietzsche trata Aristóteles
nas raras alusões que lhe faz nas suas obras, é bem a prova do reconhecimento de
que fora elevado à categoria do seu principal adversário. Esse antagonismo é a
tradução da oposição entre o individualismo liberal, numa das suas várias versões, e
a tradição aristotélica, em qualquer das suas versões, mas, sobretudo, na versão de
70
Ibid. 71
Ibid. 72
Ibid.
33
Tomás de Aquino. No fundo, MacIntyre propõe apenas uma alternativa aceitável ao
niilismo nietzscheano, com o nome de neotomismo. A obra filosófica de Alasdair
MacIntyre pretende constituir-se como um importante contributo para a criação
dessa alternativa.
A minha própria conclusão é muito clara. É que, por um lado, apesar de três séculos de filosofia moral e de um século de sociologia, nós ainda não temos uma afirmação racionalmente defensável e coerente de um ponto de vista individualista liberal; e que, por outro lado, a tradição aristotélica pode ser reafirmada de uma forma que restaure a inteligibilidade e a racionalidade ao nosso envolvimento moral e às nossas atitudes sociais.73
O livro After Virtue termina com uma visão pessimista da condição ética do
homem contemporâneo: ao contrário do que aconteceu com a queda do Império
Romano, em que a invasão bárbara se deu a partir do exterior, as sociedades
contemporâneas do Ocidente estão já, sem o saberem, a ser comandadas por
novos bárbaros que surgiram a partir do centro do império e tomaram conta do seu
destino, sem que nós tomássemos consciência disso. É esse paradoxo que torna a
nossa condição absurda. O pessimismo desta afirmação é aliviado pela proposta
ética de MacIntyre que vê no regresso à tradição aristotélica e tomista um
instrumento de salvação. Essa proposta passa pelo reconhecimento da necessidade
de nos ligarmos a uma comunidade, com fortes laços de pertença e uma forte
identidade cultural, à semelhança do que os primitivos cristãos fizeram nos primeiros
séculos da nossa era. Assim sendo, continua em aberto a esperança de que as
sociedades ocidentais possam sobreviver à vinda de novas idades das trevas.
No livro Dependent Rational Animals: Why Human Beings Need the
Virtues?, MacIntyre estabelece a diferença entre a razão prática dependente e a
razão prática independente. A primeira é comum aos homens e aos animais
inteligentes não humanos, como o chimpanzé, o cão ou o golfinho. A segunda é
própria apenas do homem. A passagem da razão prática dependente à razão prática
independente faz-se, lentamente, durante a infância e a adolescência, graças à
experiência acumulada, à aprendizagem, ao exemplo dos mais velhos e à
transmissão da herança cultural:
73
MACINTYRE,1984, p. 259.
34
O que uma criança que está a fazer a transição do exercício da inteligência animal, na infância, para o exercício da razão prática independente tem de realizar, é uma transformação do seu esquema motivacional, para que as razões externas também se tornem internas...Quais são as qualidades que uma criança deve desenvolver, primeiro para redirecionar e transformar os seus desejos, e subsequentemente para os dirigir consistentemente em direção aos bens dos diferentes estádios da sua vida? São as virtudes intelectuais e morais. É porque a não aquisição dessas virtudes torna impossível realizar essa transição que as virtudes têm
uma importante função e lugar na vida humana.74
Essa tese permite a MacIntyre fazer a crítica de fundo à ética moderna
individualista. As sociedades que prezam mais pelos bens exteriores, ou seja, pelas
riquezas materiais, do que pelos bens interiores, isto é, as virtudes intelectuais e
morais, impedem o desenvolvimento das virtudes. E MacIntyre acrescenta:
O progresso da criança em direção a uma condição na qual ela é capaz de controlar os seus desejos e avaliá-los é, então, uma componente essencial de uma prolongada iniciação aos hábitos que são as virtudes. E os professores da criança também precisam, de certa forma, de possuir essas virtudes, caso queiram ser capazes de instruir a criança. Mas estaríamos a cometer um erro, se inferíssemos disto que uma parte da educação da criança deve constituir uma área específica para a educação moral. Tal como as virtudes são exercidas em todas as nossas atividades, também são aprendidas em todas as atividades, nos contextos da prática em que nós aprendemos com os outros a cumprir os nossos papéis e
funções, primeiro como membros de uma família, depois, nas tarefas escolares, e depois, como trabalhadores agrícolas, carpinteiros, professores, pescadores ou músicos. Assim, ser educado nas virtudes, juntamente com as competências relevantes, não é diferente de aprender a cumprir esses papéis e funções de uma forma correta.75
O longo processo de transição da razão prática dependente para a razão
prática independente exige que a criança desenvolva competências de julgamento
autônomo, mas para que isso seja possível, é necessário que, primeiro, crie e
fortaleça os laços com uma determinada comunidade e tradição cultural. Os pais e
os professores são os primeiros responsáveis desse processo. Para que a criança
se transforme num adulto independente, tem, durante muito tempo, de manter as
dependências físicas, intelectuais, afetivas e morais com os progenitores e os
74
MACINTYRE, Dependent Rational Animals: Why Human Beings Need the Virtues. Chicago: Open Court, 1999. p. 87.
75 MACINTYRE,1999, p. 89.
35
professores. Se os progenitores e os professores não forem capazes de aplicar as
virtudes, dificilmente a criança pode vir a tornar-se um adulto eticamente
independente e com virtudes. Provavelmente será um adulto eticamente
independente e sem virtudes, que é bem pior do que ser um adulto eticamente
dependente e com virtudes.76
A presença e a orientação continuada dos pais e dos professores, capazes
de aplicarem as virtudes é, segundo MacIntyre,
o primeiro passo para fazer da criança um agente moral independente. Aquilo que a criança teve de aprender para se tornar educada é ser capaz de controlar os seus desejos e perguntar se este ou aquele desejo particular é um dos que é melhor satisfazer
aqui e agora e assim a criança mover-se apara além do seu estado animal inicial de ter razões para agir desta maneira, em vez daquela, para um estado humano específico de ser capaz de avaliar aquelas razões, revê-las ou abandoná-las e substituí-las por outras.77
Alasdair MacIntyre defende que uma das distinções entre a razão prática
independente do homem e a razão prática dependente da criança ou do golfinho e
do gorila é que o homem é capaz de avaliar as suas razões, julgar os atos passados
e corrigir situações e ações. A razão prática independente é a capacidade para
avaliar as razões que os outros avançam para justificar uma determinada ação e,
também, as razões que nós damos para justificar as nossas ações.
O Homem é o único animal capaz de o fazer. Quais são as capacidades exigidas ao agente moral autônomo capaz de exercer a razão prática independente? Desde logo, tem de possuir, em algum grau, as virtudes intelectuais e morais. Só dessa forma será capaz de se distanciar dos seus desejos imediatos e imaginar, com realismo, futuros alternativos. O paradoxo de tudo isto é que a aquisição das virtudes intelectuais e morais que nos podem tornar agentes morais autônomos exige o contacto prolongado e a
orientação segura da nossa família, dos nossos professores e de outras figuras da nossa comunidade de quem nós dependemos afetiva, intelectual e culturalmente durante grande parte da nossa vida.78
76
GALUPPO, 2001. 77
MACINTYRE, op. cit., p.91. 78
GALUPPO, op. cit.
36
Ou seja, para nos tornarmos julgadores autônomos, capazes do exercício da
razão prática independente, precisamos estabelecer, desde o nascimento até à
idade adulta, laços profundos de dependência cultural e comunitária, para nos
apoiarem no processo de julgamento, de deliberação e de escolha moral.
A crítica que MacIntyre faz à ineficácia e esterilidade da moderna ética individualista, preponderante nas sociedades ocidentais materialmente desenvolvidas é a ausência crescente de oportunidades seguras e prolongadas para a criação de laços de dependência cultural e comunitária durante a infância e a adolescência. No fundo, é a ausência cada vez maior de comunidades com virtudes. À semelhança do que Aristóteles afirma na Ética Nicómaco, também MacIntyre dá um relevo particular às condições particulares no processo de deliberação e de escolha moral. Muitas vezes, somos incapazes de escolher o bem porque
não damos a atenção devida, nem estamos bem informados sobre as condições particulares da situação. É o que Aristóteles chama de erro intelectual que afeta e diminui a nossa capacidade de julgar e de exercer a razão prática. Outras vezes, fazemos generalizações abusivas a partir de evidências insuficientes. Mas, nós podemos, também, escolher mal por causa de um erro moral: tornamo-nos insensíveis ao sofrimento alheio, deixamo-nos escravizar pelas paixões ou deixamo-nos prender num projeto fantasioso. E os nossos erros intelectuais são, muitas vezes, produto dos nossos erros morais. A melhor forma de nos protegermos desses erros é optarmos pela colegialidade e pela amizade, uma e outra facilitadoras do fortalecimento dos laços que nos unem a uma
tradição cultural e a uma comunidade.79
MacIntyre afirma, a este respeito:
No contexto de práticas particulares, geralmente só podemos buscar apoio nos nossos colegas de trabalho, para nos apercebermos dos nossos erros específicos nesta ou naquela atividade particular e das origens desses erros nas nossas falhas a respeito das virtudes e competências. Fora desses contextos de prática, temos de nos
apoiar nos amigos, incluindo os familiares, para nos corrigirmos. Quando somos incapazes de nos apoiar nos colegas e amigos, então a nossa confiança nos nossos julgamentos pode tornar-se sempre uma fonte de ilusão. E para sermos julgadores práticos eficazes temos de ter confiança justificada nas nossas conclusões. Ter de continuar geralmente a depender dos outros no nosso raciocínio prático, não significa que nós não devamos, de tempos a tempos, defender e agir de forma distinta dos juízos dos outros, incluindo aqueles de quem confiamos. A independência de espírito
79
GALUPPO, op. cit.
37
exige isso. Mas é preciso razões excepcionalmente boas para o fazer.80
MacIntyre reconhece e acentua a necessidade de dependência mútua, tanto
durante o processo de desenvolvimento da razão prática independente, como
depois. O grande problema é que nem sempre as pessoas de quem dependemos,
possuem as virtudes consideradas necessárias para o desenvolvimento e a
sustentação da nossa razão prática independente. Por vezes, vivemos rodeados de
pessoas que, não só não possuem as virtudes, mas, também, fazem uso da
manipulação, da opressão e da exploração, tornando-se causas ativas da deficiência
de caráter. Há, portanto, comunidades virtuosas, onde há condições para o
florescimento de pessoas virtuosas e há comunidades vis e maliciosas, onde não há
condições para o desenvolvimento do caráter.
MacIntyre identificou três aspectos essenciais em que a existência das
virtudes se torna essencial ao florescimento e desenvolvimento humano:
Sem o desenvolvimento de um certo nível de virtudes intelectuais e morais, não podemos atingir, nem continuar a exercer o razão prática; e sem ter desenvolvido algum nível de virtudes, não podemos cuidar e educar adequadamente os outros no processo de aquisição e sustentação do exercício da razão prática. Mas agora é preciso ter em consideração um terceiro aspecto: sem as virtudes, não podemos proteger-nos uns aos outros adequadamente contra a negligência, as simpatias deficientes, a estupidez, a mentalidade
aquisitiva e a malícia.81
Entendemos que a ética de MacIntyre incorpora a ética do cuidar dos outros,
considerando que a linguagem moral do cuidar dos outros deve estar sempre
presente durante o processo de deliberação e de tomada de decisões.
Há uma relação complexa entre o cuidado e a educação que recebemos e o cuidado e a educação que nós devemos aos outros. Mas é, apesar de tudo, em virtude daquilo que recebemos que nós devemos. Então, o que dizer das pessoas que não receberam? Algumas delas podem ser, em resultado disso, bastante deficientes.
Outras pessoas, que foram capazes de se tornarem julgadores
80
MACYNTYRE, 1999, p. 97. 81
Ibid., p.97- 98.
38
práticos independentes, olham pelos seus progenitores sem terem boas razões para lhes estar gratos.82
MacIntyre quer dizer-nos com isto que há sempre esperança no processo de
aquisição das virtudes. Até em ambientes estéreis e vis é possível criar e educar
pessoas de caráter, mas é difícil, porque os sistemas de relações sociais que são
deficientes nas virtudes estão mais aptos para produzirem um caráter deficiente.
Contudo, nem os sistemas de relações sociais mais virtuosos garantem o
desenvolvimento de um bom caráter. Não garantem, mas tornam mais provável e
mais fácil. MacIntyre retoma a perspectiva aristotélica da razão prática, segundo a
qual cada um de nós dialoga com os outros com que nos relacionamos socialmente,
quer essas relações sejam restritas à família, à escola, ao local de trabalho ou às
instituições comunitárias onde exercemos a cidadania. 83
A criação e a sustentação dessas relações são inseparáveis do desenvolvimento dessas disposições e atividades através das quais cada um é levado a tornar-se um julgador prático independente. É por isso que o bem de cada um não pode ser alcançado sem também alcançar o bem daqueles que participam nessas relações. Isso é assim porque nós não podemos ter uma compreensão adequada do nosso próprio bem, desligados do florescimento e desenvolvimento da comunidade onde nos relacionamos
socialmente.84
A importância das comunidades virtuosas para o desenvolvimento do caráter
e para o florescimento das virtudes das pessoas que as habitam é evidenciado por
MacIntyre da seguinte forma:
Quando uma rede com tais relações familiares e comunitárias está a florescer, isso acontece porque essas atividades dos membros dessa comunidade que aspiram a um bem comum, são informadas pela sua racionalidade prática. Mas aqueles que beneficiam do florescimento comum, incluem os que são menos capazes de
julgamento prático independente, como as crianças, os doentes, os feridos e os deficientes, e o seu florescimento individual será um importante critério do florescimento de toda a comunidade.85
82
Ibid., p.101. 83
GALUPPO, 2001. 84
GALUPPO, 2001. 85
MACINTYRE, 1999, p. 109.
39
Ou seja, uma sociedade que trata mal as crianças, os idosos, os doentes e
os deficientes é uma sociedade doente e incapaz de florescer.
O significado do conceito de bem comum para Alasdair MacIntyre não é seguramente a soma dos bens particulares de cada indivíduo, porque há bens particulares que são mais importantes para o indivíduo do que a totalidade do bem comum. Por exemplo: a vida de um familiar querido vale mais, para uma determinada pessoa, do que todo o bem comum de uma comunidade. O bem do indivíduo não aparece subordinado ao bem comum, mas o bem comum também não surge subordinado ao bem do indivíduo. Mas, o indivíduo para poder definir e procurar o seu bem individual em termos concretos e particulares, tem de reconhecer, em primeiro lugar, o bem comum
como um bem que o indivíduo é capaz de fazer seu. Para que o indivíduo reconheça o seu bem individual, é necessário que ele reconheça, antes, o bem comum. Passa-se exactamente a mesma coisa com a dialética dos deveres e dos direitos. Na verdade, uma pessoa só está em condições de poder reconhecer e usufruir bem de um direito se, antes, tiver reconhecido e interiorizado o correspondente dever. Quer isto dizer que uma pessoa incapaz de se identificar com o bem comum, não reconhece devidamente o seu bem individual.86
E isso é assim, porque lhe faltam as virtudes, sem as quais é impossível
esse reconhecimento, conforme MacIntyre:
Sem tais virtudes e sem o seu exercício, nós não seremos capazes de deliberar adequadamente com os outros acerca da distribuição das responsabilidades. E, uma vez que tal deliberação é necessária
para alcançar o nosso bem comum, sem as virtudes seremos incapazes de o conseguir.87
Uma comunidade preocupada com o bem comum é uma comunidade onde
todos dão e recebem na justa medida, nas alturas adequadas, nos montantes certos
e de modo apropriado. Uma comunidade de pessoas que dá e recebe, exige
consensos acerca da tábua de virtudes.
O filósofo escocês Alasdair MacIntyre faz suas a tábua de Aristóteles e a tábua de Tomás de Aquino, não receando afirmar a sua atualidade. Justiça, coragem, temperança e prudência. Mas, também, a verdade, a confiança, a concórdia, a humildade, a generosidade, a caridade, a misericórdia, a esperança e a
86
GALUPPO, 2001. 87
MACINTYRE, op. cit., p. 111.
40
benevolência. Estas virtudes são essenciais a uma comunidade de pessoas que dão e recebem na justa medida, nas alturas adequadas, nos montantes certos e de modo apropriado. Sem a prática destas virtudes, falta o cimento que pode unir a comunidade: a confiança. Mas, o exercício da razão prática independente torna-se ainda mais complicado quando a pessoa tem de optar por agradar a uma comunidade e desagradar a outra comunidade a que pertence. É o caso de uma tomada de decisão que leva a pessoa a optar por estar mais tempo em casa, com os filhos, ainda que isso a obrigue a desistir de uma promoção no emprego. Cada um de nós desdobra a
sua vida por uma série de comunidades, onde precisa de se adaptar a diferentes regras e normas, respeitar diferentes lealdades e dar e receber de diferentes maneiras.88
Alasdair MacIntyre acrescenta às tábuas de virtudes de Aristóteles e de
Tomás de Aquino uma virtude a que dá o nome de generosidade justa.
Cataloguei três características salientes que são informadas pela virtude da generosidade justa: são as relações comunitárias que comprometem os nossos afetos, é o alargamento das relações dos membros de uma comunidade às relações de hospitalidade para com os estranhos e, através do exercício da virtude da misericórdia, é a inclusão daqueles que têm necessidades urgentes.89
A generosidade justa exige uma ação não calculista e não proporcional. A
generosidade justa incorpora a virtude da misericórdia e também as virtudes da
temperança e da prudência, como, por exemplo, se eu não der aos outros na
medida certa das minhas possibilidades, quando necessário e a quem precisa,
poderei estar a fazer uma de duas coisas erradas: ou dou a quem não precisa e
depois fico impedido de dar a quem precisa, ou dou mais do que aquilo que posso
dar e, rapidamente, fico sem condições de poder ajudar quem vier a precisar de
mim. Para evitar esses dois erros é que a temperança e a prudência são
necessárias. Mas, para além das virtudes da generosidade, justiça, caridade e
misericórdia, é preciso considerar as virtudes do receber, tais como gratidão,
cortesia e paciência.
Em sociedades que dão a preferência aos bens materiais e ao modo de ser
aquisitivo, torna-se extremamente difícil optar pelas comunidades naturais, como a
família, quando essa opção pode fazer diminuir ou perigar a nossa posição na
hierarquia social das restantes comunidades. É por essa razão que não há exagero
88
GALUPPO, 2001, p.13. 89
MACINTYRE, 1999, p. 126.
41
quando se diz que as sociedades ocidentais materialmente desenvolvidas são
sociedades contra a família e as comunidades naturais.
2.2. A influência da ética aristotélica na obra de MacIntyre
Atualmente, o pensamento aristotélico passa por um período de
renascimento e revalorização com a publicação de obras com novas interpretações
na segunda metade do século XX. As obras de Alasdair MacIntyre são exemplo
dessa proliferação no campo da Filosofia. A obra aristotélica é de extrema
importância tanto para a Filosofia e para muitas outras ciências que constantemente
fazem reflexões na contemporaneidade.
Aristóteles expõe uma teoria do ethos e da justiça da Atenas do
século IV a.C., discutindo conceitos como "o bem", "a virtude", "a justiça", "a lei", "a amizade" e "a felicidade". Nos Tópicos, apresenta um método de argumentação (o dialético) que parte de opiniões geralmente aceitas, por todas as pessoas, ou pela maioria, ou pelos mais eminentes (os filósofos). Aristóteles, diferentemente de seu mestre Platão (de índole essencialmente idealista), foi
ideologicamente mais conservador, dando maior ênfase às condições reais do homem e de suas instituições, discordando, inclusive, da teoria das formas ou idéias de Platão, por considerá-la desnecessária para os fins da ciência.90
Para Lacerda91 o mundo é concebido por Aristóteles de forma finalista, onde
cada coisa tem uma atividade determinada por seu fim. O Bem é a plenitude da
essência, aquilo a que todas as coisas tendem. O Bem, portanto, é a finalidade de
uma coisa (ou de uma ciência, ou arte). Assim, a finalidade da medicina é a saúde, e
a da estratégia é a vitória. Dentre todos os bens, contudo, há um que é supremo,
que deve ser buscado como fim último da pólis. Esse bem é a felicidade, entendida
não como um estado, mas como um processo, uma atividade através da qual o ser
humano desenvolve da melhor maneira possível suas aptidões. Os meios para se
atingir a felicidade são as virtudes (formas de excelência), discutidas por Aristóteles
na Ética a Nicômaco. As virtudes são disposições de caráter cuja finalidade é a
realização da perfeição do homem, enquanto ser racional. A virtude consiste em um
90 LACERDA, Bruno Amaro. O pensamento de Aristóteles e as reflexões jusfilosóficas
atuais. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/2046>. Acesso em: 31 de jul. 2011.
91 LACERDA, 2001.
42
meio-termo entre dois extremos, entre dois atos viciosos, um caracterizado pelo
excesso e outro pela falta, pela carência.
Aristóteles divide as virtudes em dianoéticas (ou intelectuais), às quais se chega pelo ensinamento, e éticas (ou morais), às quais se chega pelo exercício, pelo hábito. As virtudes éticas, enquanto virtudes do saber prático, não se destinam ao conhecer, como as dianoéticas, mas à ação. Para sua aquisição o conhecimento tem pouca ou nenhuma importância. Das virtudes dianoéticas, a de maior importância é a phrónesis (prudência), capacidade de deliberar sobre
o que é bom ou mau, correto ou incorreto. Das virtudes éticas, a mais importante é a justiça. Aristóteles distingue a justiça em duas importantes classes: a universal e a particular. A justiça universal é o
cumprimento da lei (lei, na Antiguidade, designava mais o modo de ser da pólis do que propriamente uma prescrição). O homem justo, portanto, é aquele que, como Sócrates, no diálogo platônico Críton,
cumpre a lei. Neste caso, abrange as demais virtudes, pois o que a lei manda é cumprir todas as virtudes éticas particulares. A justiça particular é o hábito que realiza a igualdade, a atribuição a cada um do que lhe é devido. Neste caso, a justiça se coloca ao lado das demais virtudes, pois respeitar a igualdade implica, quando necessário, agir com coragem, ou com temperança etc.92
Segundo Lacerda93, Aristóteles estabelece as bases do que posteriormente
denominou-se lógica formal, expondo os raciocínios analíticos, que têm por base o
silogismo dedutivo. O silogismo de Aristóteles pode ser definido assim: é um trio de
termos, no qual o último, que é a conclusão, contém uma verdade à qual se chega
obrigatoriamente, através dos outros dois. A lógica formal aristotélica,
essencialmente demonstrativa, embora tendo sofrido diversas críticas, atravessou os
séculos praticamente sem ser alterada e predominou sobremaneira sobre sua lógica
dialética.
No início da segunda metade do século XX, entretanto, ocorreu uma
redescoberta das diversas formas de racionalidade de Aristóteles pelos filósofos. O
primeiro foi Chaim Perelman94 que, insatisfeito com o formalismo lógico, foi buscar
nos Tópicos e na Retórica de Aristóteles a lógica do discurso não formalizável (ético,
político e jurídico), formulando sua "teoria da argumentação", mais conhecida por
"nova retórica", uma retomada da retórica e principalmente da dialética aristotélica.
Os Tópicos, portanto, foram revalorizados, sendo considerados, não mais como um
92
Ibid. 93
Ibid. 94
PERELMAN apud DAMASCENO, 2011, p. 4.
43
modo de pensar do passado, mas como um modo de pensar diferente do contido
nos Analíticos. Merece referência também a recente obra do brasileiro Olavo de
Carvalho95, Aristóteles em nova perspectiva, de 1996, em que expõe interessante
teoria (a teoria dos quatro discursos) sobre as relações entre lógica formal e lógica
dialética. Ainda sobre essa relação, Carvalho cita o filósofo Eric Weil, que apresenta
um excelente argumento: se para Aristóteles a lógica analítico-formal é tão
importante na construção do conhecimento, por que ele nunca se utiliza dela em
seus tratados, preferindo sempre argumentar dialeticamente? Os raciocínios
dialéticos expostos nos Tópicos não se referem às demonstrações científicas
(apodíticas), mas às deliberações e às controvérsias. Diferentemente dos raciocínios
apodíticos (analíticos) que partem de premissas verdadeiras e primeiras, esses
raciocínios partem de opiniões geralmente aceitas e, por isso, são apenas prováveis.
Funcionam como meio de persuasão e de convencimento por um discurso cuja
função é levar a uma decisão.
A estrutura da argumentação dialética, que motiva uma decisão, é diferente do silogismo, pelo qual se passa das premissas à conclusão necessariamente. A passagem dos argumentos dialéticos à decisão, ao contrário, não é obrigatória, pois uma decisão envolve sempre a possibilidade de decidir de outro modo (ou mesmo de não decidir). Daí a importância da dialética de Aristóteles na atualidade. Os raciocínios são raciocínios dialéticos e não analíticos. A lógica não é uma lógica de demonstração formal, mas uma lógica argumentativa, que não utiliza provas analíticas, mas dialéticas, que visam o convencimento do juiz no caso concreto. Como os casos
concretos não se repetem, não podem ser tratados de modo universal. As normas de uma sociedade não devem ser axiomas, mas "lugares comuns", princípios comumente aceitos. Dentro dessa concepção, o Direito, por exemplo, não deve ser entendido como um sistema formal já pronto, pois comporta opiniões e raciocínios os mais diversos. O Direito constrói-se através da argumentação que promove sua interpretação e aplicação. Nesses termos, não deve o juiz decidir através de um silogismo, com base em um sistema dedutivo, mas sim criar um sistema próprio para cada problema, para cada caso concreto, que possibilite que todos nele envolvidos tenham oportunidades iguais de emitirem suas opiniões e seus valores. Só assim uma decisão poderá ser considerada justa.96
95
CARVALHO, apud DAMASCENO, 2011, p. 8. 96
Ibid.
44
Portanto, através dos raciocínios dialéticos, recorre-se a argumentos de
todas as espécies. Através da ação virtuosa, a justiça pode ser alcançada, o
cumprimento da lei e realização da igualdade tornam-se possíveis de prática.
2.3. A atualização da ética aristotélica em Alasdair MacIntyre
Conforme Martins97, no ambiente acadêmico da filosofia não é tão comum
em termos de pesquisa ética, a investigação sobre pensadores recentes, dando-se
certa preferência ao estudo de filósofos antigos, medievais e modernos. Aqui no
Brasil, isso decorre talvez da jovialidade das nossas universidades, cuja mais antiga
sequer completou ainda os seus 80 anos de existência. É possível que possa ficar
mais fácil escrever sobre um pensador antigo do que sobre um contemporâneo, pelo
lastro de obras e de críticos que esses tão recentes ainda não possuem em se
comparando aos filósofos do passado e modernos, quando seus respectivos
sistemas ou propostas já adquiriram certa "quilometragem" de reflexões e
indagações, portando de um imenso conteúdo bibliográfico entre fontes primárias e
secundárias nos diferentes idiomas.
No caso desta pesquisa, dá-se um certo salto epistemológico ao analisar
um pensador como Alasdair MacIntyre, porém com a característica de seu sistema
se prender a uma natureza historicista, haja visto que ele se pauta em um pensador
da História da Filosofia Antiga (Aristóteles) e outro da Medieval (Tomás de Aquino).
Escrever sobre Alasdair MacIntyre é pensar principalmente a tradição, sem, contudo, descartar de serem debatidos os problemas contemporâneos e emergentes que permeiam o debate da filosofia hoje, sobretudo no âmbito da filosofia prática, notadamente no campo da ética e da política, projetados nos diversos desafios que requer a sociedade hodierna. Em sua obra Depois da Virtude, MacIntyre, como pioneiro do movimento comunitarista, surge como
uma reação à tradição tanto da filosofia anglo-saxônica bem como da norte-americana, realiza uma profunda análise sobre o porquê do fracasso moral da modernidade, denunciando a abstração de uma
97
MARTINS, Daniel. A educação e o pensamento comunitarista em Alasdair Macintyre. Publicado em: 14 de outubro de 2010. Disponível em: <http://www.artigonal.com/ciencia-artigos/a-educacao-e-o-pensamento-comunitarista-em-alasdair-macintyre-3475830.html>. Acesso em 31 de jul.
2011.
45
proposta moral na sociedade jurídica do dever-ser, preocupada exclusivamente em fundamentar teorias do que em narrar histórias.98
Conforme Martins99 o fato desse pensador, nascido em 1929 na Escócia,
insistir na emergência de se criar formas de comunidades locais inspiradas no
aristotelismo, contribuiu para que sua obra se convertesse em um grande “best
seller” na década de 80, movendo as editoras a publicá-lo, em curto espaço de
tempo e em diversos idiomas, transformando After Virtue em um ponto de referência
imprescindível no debate acadêmico da filosofia e áreas afins.
O pensamento de MacIntyre denuncia o pós-moderno que ele considera produto do emotivismo decorrente dos preceitos ilustrados – e crê que a falta de consenso racional sobre o "bem" e a "boa vida" contribui mais ainda para a ampliação da irracionalidade individual do homem contemporâneo e sua perda de responsabilidade, privando os indivíduos de um olhar ao outro. Assim, realizar um estudo e uma crítica da filosofia de MacIntyre significa utilizar uns conceitos e uma relação estabelecida entre eles que giram em torno de uma tese
nuclear: o atual desencantamento cultural e de valores causado pela modernidade e em especial pela Ilustração.100
A princípio, de acordo com Martins 101, isso faz soar como certa dicotomia
filosófica, ou seja, uma nova genealogia de valores (Nietzsche) ou uma recuperação
do projeto cultural tradicional (Aristóteles). Nesse momento a análise gira em torno
da obra de MacIntyre denominada de After Virtue: A Study in Moral Philosophy.
Porém, tanto nesse livro como nas demais obras de MacIntyre, na maioria das vezes
a tradução portuguesa nos obriga a atuar em favor do rigor científico para que o
raciocínio macintyreano não sofra certos perigos das más interpretações. Em função
disso, preferimos não abreviar os títulos das obras para que elas possam ser
denotadas mais facilmente quando no momento de suas utilizações.
Embora a filosofia moral de MacIntyre não aborde de maneira específica o âmbito da educação moral, cabe fazer uma leitura de sua obra a partir desta perspectiva e procurar desenhar, ao longo do texto, uma reflexão coerente ao assunto. A fim de tornarmos nosso
trabalho também voltado a certas questões emergentes – pois, particularmente achamos que em um trabalho acadêmico sempre
98
MARTINS, 2010. 99
Ibid. 100
Ibid. 101
Ibid.
46
cabe um olhar para o espaço onde nos situamos ou do que está "entre nós" – nos valemos, no decorrer de toda a análise, e na medida do possível, de algumas reflexões pontuais a respeito da viabilidade de uma interpretação macintyreana no contingente da sociedade brasileira. Isso se deu inicialmente pelo espírito filosófico da curiosidade e da indagação ao percebermos que, há pouco mais de dez anos, os contingentes populacionais que eram chamados de "favelas" repentinamente receberam a nominação de "comunidades", a partir dos preceitos de sociedade inclusiva bem latente nesse início de milênio.102
Em um sentido geral, a contribuição inovadora de MacIntyre dirige-se contra
o critério empírico do bem-estar ou utilidade.
MacIntyre vê com clareza a contradição em que se baseia tal postura, o que lhe faz se mostrar pessimista diante da possibilidade atual da virtude. Pois, na sua tese, o individualismo liberal não pode sustentar valores comuns, haja visto que pensa MacIntyre que os direitos humanos e o critério de utilidade, princípios próprios do “individualismo burocrático", são incompatíveis entre si. Assim não há nem pode haver utilidade comum, porque os desejos e preferências das pessoas são diferentes e não há modo de agregá-los em um fim útil para todos.103
O momento atual justifica o quanto é relevante estudar a proposta de
MacIntyre sobre a necessidade de buscarmos um modelo ético baseado na
recuperação das virtudes como instrumentos apropriados de formação moral. Como
pesquisdores, segundo Martins, “dissertar sobre MacIntyre é uma rica oportunidade
para aprofundar nossos estudos e contribuir academicamente com uma reflexão
sobre um tema a partir de um autor bastante atual”. 104
102
Ibid. 103
Ibid. 104
Ibid.
3. PONTOS POSITIVOS E CONTROVÉRSIAS DA PROPOSTA MACINTYREANA
3.1. O comportamentalismo sentimental, histórico e cultural e a ética
macyntireana
A crise contemporânea assolou os fundamentos da moralidade e causou
grandes inquietações em Alasdair MacIntyre, um filósofo preocupado em formular
uma teoria moral capaz de oferecer uma saída consistente para tal crise. Para tanto,
MacIntyre publicou obras com variadas temáticas, e desde a publicação de After
Virtue em 1981, este pensador se manteve engajado em um projeto filosófico
pautado na reabilitação racional implícita nas práticas que constituem as tradições
morais.
As questões éticas referentes a aborto, guerra, manipulações genéticas, aquecimento global, produção nuclear e eutanásia são, por natureza, difíceis de serem resolvidas, isso devido a grande
variedade de argumentos contraditórios que nos são postos, argumentos que estão fundamentados em teorias igualmente contraditórias e divergentes. Essas questões levantam inúmeras inquietações tanto nos cidadãos comuns como em filósofos morais que se propõem a discuti-las e resolvê-las. Esse contexto em que as teorias morais se embatem por nossa adesão moral se tornou o ambiente ideal para o surgimento de uma teoria moral que ganha a cada dia mais adeptos, justamente por defender a tese de que nossa adesão moral a qualquer sistema de pensamento é mero fruto de escolha arbitrária, não existindo um critério racional para escolhermos entre defender a proibição do aborto legal ou negar tal possibilidade, por exemplo. O chamado emotivismo ético está
diretamente relacionado a esse contexto da filosofia moral contemporânea, principalmente se levarmos em consideração o fato
48
de que a moralidade contemporânea está permeada pela racionalidade instrumental, até então própria das ciências.105
A racionalidade no âmbito da moralidade trouxe a idéia de que as normas e
preceitos morais não podem ser justificados racionalmente. Vínculos entre ética e
racionalidade são rompidos e a ética passou a ser entendida como uma esfera que
diz respeito a preferências e interesses. É nesse contexto na contemporaneidade
que surge MacIntyre, contextualizando em suas obras uma preocupação
fundamental com a situação ética atual. Seus livros recentes têm obtido grande
repercussão no cenário filosófico mundial justamente por apresentar um novo
conceito de investigação moral vinculado à Sociologia, Antropologia e à História,
defendendo um retorno ao aristotelismo de forma sofisticada, ligado ao pensamento
de São Tomás de Aquino, como uma espécie de continuador dessa tradição.
O impacto intelectual das obras de MacIntyre não se restringe apenas à Filosofia, pois ele tem evitado separar questões de filosofia geral e de filosofia moral do contexto histórico e social nas quais estão inseridas. Desde 1981, Alasdair MacIntyre tem publicado obras importantes para a discussão acerca da moral e a filosofia política, quais sejam, Depois da Virtude em 1981, Justiça de quem? Qual racionalidade? em 1988, Three Rival Versions of Moral Inquiry em 1990 e Rational Dependent Animals em 1999. Estas obras
expressam o pensamento maduro de MacIntyre, onde podemos encontrar seu projeto central e é justamente nelas que concentramos nossos estudos para alcançar os objetivos deste trabalho.106
Com Depois da Virtude, MacIntyre surge no cenário filosófico mundial como
um filósofo engajado na tentativa de devolver às normas e preceitos morais a
inteligibilidade e racionalidade que lhe foram negadas em nosso tempo, pois nesta
obra MacIntyre reconhece que as normas e preceitos morais se resumem, hoje, à
mera expressão de preferências e interesses. A ética contemporânea não constitui
um todo coerente e, a partir da modernidade, abandonou-se a possibilidade de
formular critérios para fundamentar nossos juízos morais. Este é o desafio de toda
teoria que pretenda pensar a moral hoje: enfrentar o fato de que a linguagem moral
contemporânea reduz-se à expressão de sentimentos pessoais.
105
DAMASCENO, 2011. 106
Ibid.
49
De acordo com Veríssimo (2010), Depois da Virtude, publicada em 1981,
surpreendeu o mundo filosófico pela profundidade de sua desilusão com a
moralidade moderna em geral, e o que MacIntyre chama de “o projeto Iluminista” em
particular. Para Porter107 é essa problemática que move MacIntyre na tentativa de
apresentar uma saída para a crise moral. Para MacIntyre possuímos fragmentos de
um esquema conceitual e restam-nos apenas partes às quais faltam os contextos
dos quais derivavam seus significados e esses fragmentos não formam mais um
todo coerente, o que ocasiona a impossibilidade conceitual de formular
racionalmente critérios morais objetivos.
Possuímos, com efeito, simulacros de moral, continuamos usando muitas dessas expressões-chave. Mas perdemos- em grande parte, senão totalmente nossa compreensão, tanto teórica quanto prática da moral.108
O que pensamos sobre moralidade hoje constitui restos deslocados de um
esquema moral coerente e socialmente embutido em práticas existentes
anteriormente, o que resultou em uma fragmentação e levou ao surgimento
inevitável do individualismo moral em que o indivíduo passou a ter autonomia para
decidir sobre qual bem é o melhor a ser buscado, visto que não existem padrões
racionais para fundamentar tal escolha. Entende MacIntyre que a moralidade chegou
a um vazio ético, desapareceu a distinção entre “aquilo que é bom aqui e agora” e
“aquilo que é bom genuinamente”. A moralidade moderna é privada de qualquer
conteúdo racional; não há distinção entre “verdade” e “o que acredito como
verdade”109.
A característica mais marcante da linguagem moral contemporânea é ser muito utilizada para expressar discordâncias; e a característica mais marcante dos debates que expressam estas discordâncias é seu caráter interminável, não quero dizer apenas que esses debates se arrastam embora seja o que acontece mas também que obviamente não conseguem chegar a um fim. Parece que não existe meio racional de garantir acordo moral em nossa cultura.110
107
PORTER, 2003 apud VERÍSSIMO, 2010, p. 123. 108
MACINTYRE, 1984, p. 2.
109 PORTER, 2003 apud VERÍSSIMO, 2010, p. 123.
110 Ibid., p. 6.
50
MacIntyre afirma a existência de um pluralismo moral, que ele entende como
uma mistura desarmônica de fragmentos mal organizados, como conceitos que
tiveram origem em totalidades maiores de teoria e prática, nas quais ocupavam um
papel e função fornecidos por contextos dos quais foram agora privados.
Uma parte fundamental de minha tese é afirmar que o discurso e os métodos da moral moderna só podem ser compreendidos como uma série de fragmentos remanescentes de um passado mais antigo e que os problemas insolúveis que geraram para os teóricos modernos da moral permanecem insolúveis até que isso seja bem compreendido.111
MacIntyre conclui que o discurso moral na contemporaneidade das
sociedades ocidentais perdeu seu significado e agora serve apenas como um
disfarce para a expressão de preferências, emoções e atitudes, deixando de ter
qualquer relação com o que é verdadeiramente bom ou direito. Para ele, a
responsabilidade pelo colapso das éticas ocidentais resultou do fracasso das
pretensões do Iluminismo.112
Em três capítulos de Depois da Virtude Alasdair MacIntyre descreve aquilo que ele considera o Projeto do Iluminismo, cujo fracasso é gerador da crise nos valores morais da cultura contemporânea. O projeto iluminista é caracterizado pela preocupação em dar à
moralidade uma justificação racional, livre de influências teológicas e independente das tradições. Seu intuito é dar total autonomia à moral na forma de princípios morais universais, assim a conduta moral teria que estar sujeita à validação e crítica de acordo com esses princípios universais inteligíveis. Depois da Virtude critica vários aspectos do pensamento Iluminista, entre eles os expressos nas teorias de Hume, Kant, dos utilitaristas, dos emotivistas, e na filosofia política liberal contemporânea, especialmente a elaborada por John Rawls. Outros argumentos contrários às teses iluministas são encontrados em suas obras posteriores, Whose Justice? Which Rationality? e Three Rival Versions of Moral Inquiry, bem como em outros artigos publicados posteriormente, embora todos apresentem ênfases
diferentes a ideia central permanece.113
Porter114 ressalta que nesse contexto de crise moral MacIntyre afirma que
dispomos apenas de duas saídas: ou nós aceitamos o niilismo nietzschiano de uma
111
Ibid., p. 110-111. 112
Cf. VERÍSSIMO, 2011.
113 PORTER, 2003, apud VERÍSSIMO, 2010, p.47.
114 Ibid., apud Ibid., 2010, p. 58-59.
51
crítica radical da moralidade moderna ou retomamos a perspectiva da ética
aristotélica das virtudes como forma de devolver coerência e racionalidade ao
desacordo moral que reina na cultura moderna. Nietzsche é um dos mais ferrenhos
críticos das pretensões da modernidade e dos ideais iluministas. Para ele, a
modernidade segue a tendência a anular as diferenças individuais em favor de uma
globalidade uniformizadora que transforma a todos em rebanhos. Nietzsche escreve
suas obras em um momento de crise da modernidade no fim do século XIX, por isso
suas obras se levantam contra a tirania da razão científica, contra o conformismo
dos princípios democráticos e igualitários e contra a confiança no progresso
determinista. Apesar de procurar elaborar uma crítica à cultura liberal moderna, a
análise nietzschiana da moralidade torna-se a expressão maior do individualismo
liberal, o resultado maior do projeto iluminista de um sujeito moral autônomo
concebido à parte e anteriormente à sociabilidade histórica. Nietzsche teve o mérito
e a coragem de radicalizar conscientemente o fracasso do projeto iluminista de uma
moralidade universal. Ele, melhor que qualquer outro pensador, percebeu que a
linguagem moral da modernidade estava disponível para qualquer uso, que a moral
pode agora ser performada para um número considerável de causas, que a forma
dos proferimentos morais modernos fornecia uma máscara possível para qualquer
rosto.
De fato, a percepção de Nietzsche dessa flexibilidade vulgarizada do discurso moral moderno foi, em parte, responsável por sua aversão a ele. E essa percepção é uma das características da filosofia moral de Nietzsche que a torna uma das duas opções teóricas genuínas com
que se depara qualquer pessoa que tente analisar a situação moral de nossa cultura, se minha argumentação estiver até aqui substancialmente correta.115
Para MacIntyre o grande mérito de Nietzsche foi ter percebido que aquilo
que na linguagem moral do iluminismo parecia ser um apelo à objetividade, era, no
fim, expressão de uma vontade subjetiva; ele percebeu também que este fato trazia
sérias conseqüências para a filosofia moral. No entanto, a análise de Nietzsche
incorreu em um grave erro: ele generalizou ilegitimamente da condição do juízo
moral em sua própria época para a natureza da moralidade enquanto tal.
115
MACINTYRE, 1984, p. 110.
52
A realização histórica de Nietzsche foi entender mais claramente do que qualquer outro filósofo - decerto com mais clareza do que suas contrapartidas do emotivismo anglo-saxão e do existencialismo continental – não só que o que se fazia passar por apelos à objetividade era, de fato, expressão de uma vontade subjetiva, mas também a natureza dos problemas que isso representou para a filosofia moral.116
Apesar de reconhecer Nietzsche como uma alternativa para a crise moral e
que ele compete com Aristóteles em virtude da importância de seu papel histórico
para a filosofia contemporânea, MacIntyre opta pela defesa da ética das virtudes
aristotélica por reconhecê-la como uma tradição superior em racionalidade e que,
portanto, oferece a melhor saída para a crise moral da modernidade. Essa
retomada aristotélica que MacIntyre defende em Depois da Virtude, recebeu duras
críticas, justamente porque deixa aberta a pergunta sobre a possibilidade de
retomarmos a ética das virtudes de Aristóteles em um mundo completamente
diverso daquele para o qual a ética aristotélica fora dirigida. Para compreender essa
opção de MacIntyre, pode-se tomar como ponto de partida a explicação
contextualizadora do que MacIntyre chama de prática:
Por prática, Eu entendo qualquer forma coerente e complexa da atividade humana cooperativa, socialmente estabelecida, através da qual bens internos àquela forma de atividade são realizados durante a tentativa de alcançar os padrões de excelência apropriados para tal forma de atividade, e parcialmente dela definidores, tendo como consequência a ampliação sistemática dos poderes humanos para alcançar tal excelência, e dos conceitos humanos dos fins e dos bens envolvidos.117
Em Depois da Virtude, MacIntyre cita alguns exemplos de práticas, tais
como as artes, ciências, jogos, política no sentido aristotélico, a formação e sustento
da vida familiar, entre outros.
Todas as práticas têm certa complexidade e profundidade e como tal elas desenvolvem e expressam capacidades humanas significativas. Uma prática implica padrões de excelência e obediência a normas, bem como a aquisição de bens. Ingressar numa prática é aceitar a autoridade desses padrões e a inadequação do meu próprio desempenho ao ser julgado por eles. As práticas têm uma história,
116
Ibid., 1984, p. 113. 117
Ibid., p. 316.
53
assim os padrões que aí atuam não são imunes à crítica, porém, não podemos nos iniciar numa prática sem aceitar a autoridade dos melhores padrões até o momento alcançados. MacIntyre fundamenta sua ideia com um exemplo: “Se, ao começar a ouvir música, não aceito minha própria incapacidade de julgar corretamente, jamais aprenderei a ouvir, muito menos a apreciar, os últimos quartetos de Bartok”.118
Conforme Frankl (2003), no terreno das práticas, a autoridade dos bens e
dos padrões funciona de forma a excluir todas as análises subjetivistas e emotivistas
do juízo. É importante apresentar a diferença que MacIntyre faz entre bens internos
e bens externos às práticas:
Existem, portanto, dois tipos de bens que são possíveis conquistar no jogo de xadrez. Os bens externos e contingentes ligados aos jogos e a outras práticas por acidentes das circunstâncias sociais.
Sempre há modos alternativos de alcançar esses bens, e sua conquista nunca se dá apenas engajando-se no exercício de uma determinada prática. Por outro lado, há os bens internos à prática de xadrez, que não se podem alcançar de nenhum modo que não seja jogando xadrez ou algum outro jogo do mesmo tipo.119
Esse conceito de prática aponta para um conceito inicial de virtude, mesmo
que provisório. A virtude é uma qualidade humana adquirida, cuja posse e exercício
nos capacita a alcançar bens internos às práticas e cuja ausência nos impedem de
alcançar tais bens. A formulação de um conceito adequado de virtude é o de
unidade narrativa da vida humana. O conceito de narrativa é de suma importância
dentro do projeto filosófico de MacIntyre ao tematizar os grandes dilemas que a
modernidade enfrenta atualmente em virtude da fragmentação do eu.
Para MacIntyre a narrativa revela o tipo de gênero fundamental e essencial
para caracterização das ações humanas, ou seja, nossas ações só podem ser
compreendidas em termos de narrativa que se encaixam em contextos sociais
através dos quais ganham sentido e podem assim ser explicadas.
É porque todos vivenciamos narrativas nas nossas vidas e porque
entendemos nossa própria vida nos termos das narrativas que
118
Ibid., p. 190. 119
MACYNTIRE, loc. Cit.
54
vivenciamos, que a forma de narrativa é adequada para se entender os atos de outras pessoas.120
A unidade de uma vida humana é a unidade de uma busca narrativa pelo
bem, e nesse estágio é possível formular um conceito mais elaborado de virtude.
Virtudes são disposições que, além de nos sustentar e capacitar para alcançar os bens internos às práticas, também nos sustentam no devido tipo de busca pelo bem, capacitando-nos a superar os males, os riscos, as tentações e as tensões com que nos deparamos, e que nos fornecerão um autoconhecimento do bem cada vez maior.121
A elaboração de um conceito nuclear de virtude é a compreensão do que
constitui uma tradição, é esta se torna é então um argumento historicamente
estendido e socialmente encarnado, e um argumento precisamente em parte sobre
bens que constituem a tradição.122
Ele explica que as virtudes são necessárias para sustentar o nosso
relacionamento com o passado, com o presente e com o futuro. Para MacIntyre, as
virtudes encontram sentido e finalidade não só no sustento dos relacionamentos
necessários para se alcançar a variedade de bens internos às práticas, e não só no
sustento da forma de vida individual em que cada indivíduo procura por seu bem de
sua vida inteira, mas também no sustento das tradições que proporcionam tanto às
práticas quanto às vidas o seu contexto histórico.
Para Carvalho123, MacIntyre encara a filosofia moral de Aristóteles como o
núcleo central de toda tradição de pesquisa e prática social, da qual ele não é o
único representante, ainda que seja o que lhe forneceu os principais parâmetros de
sua formulação e desenvolvimento. O remédio que ele propõe para os males da
herança iluminista da modernidade é a reapropriação desse instrumental teórico que
foi forjado na construção e justificação de uma ética das virtudes, numa perspectiva
narrativa em que história, filosofia e sociologia se entrelaçam no tecido
compreensivo que busca explicar a moralidade e seu caráter específico, como
também justificá-la racionalmente.
120
Ibid., p. 212. 121
Ibid., p. 219. 122
Ibid., p. 222. 123
CARVALHO, Helder Buenos Aires de. Tradição e racionalidade na filosofia de Alasdair
Macintyre. São Paulo: Unimarco Editora, 1999. p.36.
55
Carvalho (1999) cita que, no posfácio à 2ª edição de Depois da Virtude,
lançada em 1982, MacIntyre enumera alguns tipos de críticas que foram dirigidas à
1ª edição publicada em 1981:
As numerosas críticas da primeira edição deste livro me deixaram muito grato em mais de um aspecto. Alguns identificaram asneiras, desde confusão com nomes a erros factuais sobre Giotto; alguns indicaram impropriedade na narrativa histórica que dá continuidade
argumentativa a Depois da Virtude; alguns contestaram meu diagnóstico da situação da sociedade moderna e, em especial, da sociedade contemporânea, e alguns questionaram de diversas maneiras tanto a substância quanto o método de determinados argumentos [...] Eu espero que alguma parte, pelo menos, do que ficou faltando brote nos meus futuros intercâmbios com uma série de críticas nos jornais Inquiry, Analyse and Kritik e Soundings e que muito mais seja esclarecido com a sequência de Depois da Virtude, na qual estou trabalhando agora, sobre “Justiça e racionalidade Prática”.124
Essa tematização aberta por Depois da Virtude constitui o projeto filosófico
central da obra de MacIntyre, e as obras que se seguem, aprofundam os
argumentos defendidos. Dentro do projeto filosófico de MacIntyre, a defesa das
tradições de pesquisa racional é um dos pontos que teve continuidade em suas
obras posteriores. Em Depois da Virtude a tradição ganha um conceito inicial e
bastante significativo: “uma tradição é então um argumento historicamente estendido
e socialmente encarnado, e um argumento precisamente em parte sobre os bens
que constituem tal tradição”125
O conceito de tradição se encontra articulado com os conceitos de prática e
narrativa como os três elementos necessários para uma compreensão do conceito
de virtude. Essa tematização da tradição é conseqüência do novo conceito de
investigação moral com o qual opera MacIntyre, que mescla questões sociais,
históricas, antropológicas e literárias. Mas para Frankl (2003), a tematização da idéia
de tradição de pesquisa racional que MacIntyre faz em Depois da Virtude, deve ser
considerada apenas como uma visão preliminar sendo desenvolvida nos trabalhos
que se seguem. Em Justiça de quem? Qual racionalidade? MacIntyre aprofunda as
reflexões apresentadas em Depois da Virtude e à luz de duras críticas, reformula e
esclarece sua posição filosófica:
124
MACINTYRE, 2001, p. 443-444. 125
Ibid., p. 222.
56
Em 1981, publiquei a primeira edição de Depois da Virtude. Neste livro concluí que 'nós apesar dos esforços de três séculos de filosofia moral e de um século de sociologia, ainda carecemos de uma formulação coerente e racionalmente defensável de um ponto de vista individualista liberal' e que 'a tradição aristotélica pode ser reformulada de modo a restituir a racionalidade e a inteligibilidade às nossas atitudes e compromissos morais e sociais'. Mas também reconheci que essas conclusões exigiam o apoio de visão do que é a racionalidade, à luz da qual Depois da Virtude pudesse ser adequadamente compreendidas. Prometi um livro no qual tentaria
dizer o que faz com que seja racional agir de um modo e não de outro, e o que faz com que seja racional propor e defender uma concepção da racionalidade prática e não outra. Eis aqui o livro.126
Esta é uma passagem do prefácio de Justiça de quem? Qual racionalidade?
e o objetivo da mesma é advertir o leitor de que, embora o livro possa ser lido
independentemente de Depois da Virtude, ele preenche algumas lacunas e corrige
alguns erros daquele, reafirmando suas teses centrais. Nas palavras de Perine:
Nos seus vinte capítulos, encontramos uma verdadeira odisséia em torno dos conceitos de justiça e raciocínio prático. O autor parte da mesma constatação inicial de Depois da Virtude, ou seja, a rivalidade e incompatibilidade das concepções atuais de justiça e racionalidade prática, e a inconclusividade do debate.127
Segundo Perine128 este livro é importante para nossa temática uma vez que
MacIntyre o elabora como resposta às críticas dirigidas a Depois da Virtude e onde
ele aprofunda suas reflexões acerca da ideia de tradição de pesquisa racional. Em
Justiça de quem? Qual racionalidade? MacIntyre admite que suas conclusões até
aquele momento mostraram que é a partir de debates, conflitos e da pesquisa de
tradições socialmente encarnadas e historicamente contingentes, que as disputas
referentes à racionalidade prática e à justiça são propostas, modificadas,
abandonadas ou substituídas. Não há nenhum outro modo de realizar essa
formulação, elaboração, justificação racional e a crítica das concepções da
racionalidade prática e da justiça, que não seja a partir de uma tradição particular,
através do diálogo, da cooperação e do conflito entre aqueles que habitam a mesma
tradição. Essa é a reivindicação central do livro, como o próprio título sugere:
126
Ibid., 2001, p. 7. 127
PERINE, Marcelo. Virtude, Justiça, Racionalidade: A propósito de Alasdair MacIntyre. Síntese Nova Fase. V. 19 n. 58. 1992. p. 391.
128 PERINE, 1992, p. 399-400.
57
sustentar a tese de que é impossível estabelecer padrões universalmente válidos de
justiça que possam ser reconhecidos como tal por qualquer pessoa racional.
MacIntyre tenta mostrar que esta reivindicação é falsa através de um exame íntimo
de ideais contraditórios de justiça que emergiram em três sociedades: Grécia antiga
e clássica, Europa medieval, e século XVII na Escócia e Inglaterra.
MacIntyre procura fundamentar a tese de que padrões de racionalidade e
justiça podem ser radicalmente diferentes de tradição para tradição. No entanto,
reconhece que as tradições podem compartilhar algumas crenças, imagens e textos,
podem ser logicamente incompatíveis e incomensuráveis. MacIntyre reivindica que
tradições encarnam suas próprias concepções de justiça e racionalidade, mas
também afirma que não há um ponto neutro fora de todas as tradições no qual seja
possível decidir que concepção de justiça ou racionalidade é superior.
Não há uma base, nenhum lugar para a pesquisa, nenhum modo de se avançar, avaliar, aceitar e rejeitar argumentações raciocinadas que não seja fornecida por uma ou outra tradição particular.129
Sobre a racionalidade ou sobre a justiça é necessário tomar partido por uma
tradição e questionar as teses das outras tradições: assumir o ponto de vista de uma
tradição particular é uma saída para termos boas razões para dar mais peso às
alegações propostas por uma tradição do que as proposta por outra.130
É preciso que deixemos claro o fato de que MacIntyre não nega a existência
de certos padrões de racionalidade que podem ser aplicados em qualquer contexto
social e cultural, como por exemplo, as leis fundamentais da lógica. No entanto, ele
enfatiza que esse compartilhamento não é suficiente para superar os conflitos
substanciais que emergiram de debates acerca dos conceitos de justiça em
competição. Nos capítulos finais, MacIntyre desenvolve sua teoria construtiva da
racionalidade como pesquisa guiada pela tradição. Levando em consideração as
narrativas das tradições em conflito desenvolvidas na primeira parte do livro, ele
começa rejeitando as reivindicações centrais da filosofia de iluminismo, ou seja, a
reivindicação de que é possível chegar a um conjunto de padrões racionais
universais e substantivos capazes de prover uma base para julgar as convicções e
compromissos de tradições intelectuais particulares. Pelo contrário, ele afirma que
129
MACINTYRE, 2001, p. 307. 130
MACINTYRE, loc. Cit.
58
nós habitamos uma cultura em que podemos encontrar fragmentos de diferentes
formas de pensar e precisamos dialogar com tradições sociais e intelectuais que são
em algum grau incomensuráveis umas com as outras. Ele não afirma que é
impossível haver uma comunicação significativa entre os que são adeptos de
tradições incomensuráveis.
Apesar de reconhecer que certos assuntos são intratáveis devido ao grau de discordância entre as tradições, MacIntyre acredita ser impossível entrar no debate racional sem dar adesão a uma tradição particular. Em 1990 MacIntyre publicou Three Rival Versions of Moral
Inquiry, onde ele oferece uma defesa mais elaborada das teses centrais de Justiça de quem? Qual racionalidade? Admitindo que, apesar da incomensurabilidade significante e da intradutibilidade nas relações entre dois sistemas de pensamento e prática contrários, pode existir um prólogo não só para o debate racional, mas para aquele tipo de debate no qual um sistema pode emergir como indubitavelmente superior. Este debate pode revelar falha em um sistema de pensamento e apontar outro sistema como superior em racionalidade.131
Segundo Perine132, este livro continua a trajetória de seu antecessor, além
de voltar a temas de Depois da Virtude que não eram tão proeminentes em Justiça
de quem? Qual racionalidade? Ao mesmo tempo, este livro também modifica os
relatos anteriores das tradições de modos mais significativos. A tematização do
conceito de tradição como pesquisa racional ganha aqui sua maior profundidade,
mesmo estando inserido em seu argumento global. As três tradições que MacIntyre
apresenta, são: a Enciclopédia, exemplificada pelos autores do século XIX, a
Genealogia, representada por Nietzsche e seus herdeiros pós-modernos e o
Tomismo que, corretamente entendido, requer um compromisso com uma forma de
pesquisa baseada numa tradição. O debate entre estes três sistemas de
pensamento pretende mostrar que mesmo num contexto de incomensurabilidade e
intradutibilidade, como o contexto da moralidade contemporânea, pode apontar para
a superioridade racional de um destes sistemas. A tese de MacIntyre é a de que o
tomismo, como forma de pesquisa baseada numa tradição moral, é capaz de
mostrar sua superioridade frente aos enciclopedistas e genealogistas.
Na seqüência, Dependent Rational Animals (1999) aprofunda ainda mais as
discussões apresentadas nas obras anteriores. MacIntyre deixa claro que sua
131
PERINE, 1992, p. 407. 132
Ibid., p. 405-406.
59
pretensão maior é corrigir investigações das obras anteriores na tematização da
dependência, vulnerabilidade e animalidade humana, questões que segundo ele são
imprescindíveis a uma teoria moral. “De modo que este livro não é só uma
continuação, mas também uma correção de minhas investigações anteriores em
Depois da Virtude, Justiça de quem? Qual racionalidade?”133
Cumpre-se, neste tópico, o objetivo de mostrar a unidade de propósito que
permeia o núcleo do pensamento de MacIntyre, captando toda a sua problemática
filosófica.
3.2. O lugar na ética comunitarista de MacIntyre na filosofia política
Na filosofia política, o nome de MacIntyre se encontra associado entre o
debate travado entre o Comunitarismo e Liberalismo, durante a década de 80, no
contexto da filosofia anglo-saxônica sem deixar de se enraizar na tradição filosófica
européia, já que os comunitaristas são herdeiros de Aristóteles, Hegel e da tradição
republicana da Renascença como Maquiavel. Já os liberais são herdeiros de Locke,
Hobbes, Stuart Mill e Kant.
Os comunitaristas desconfiam da moral abstrata, têm simpatia pela ética das virtudes e uma concepção política com um amplo espaço para a história das tradições. O indivíduo deve ser considerado membro inserido numa comunidade política de iguais e, para que possa existir um aperfeiçoamento da vida política na democracia, devem existir formas de comportamentos que ajudem a enobrecer a vida comunitária; os liberais partilham a idéia de liberdade de
consciência, respeito pelos direitos do indivíduo e desconfiança frente à ameaça de um Estado paternalista. Defendem, dentro da perspectiva hobbesiana, a idéia de que a política está desprovida de significação moral, que o Estado não é mais do que um instrumento destinado a assegurar a coexistência pacífica dos indivíduos numa determinada sociedade contratualista. Já na linha de Kant, consideram que o Estado tem uma função moral autêntica e que transcende as considerações pragmáticas ou naturalistas.134
Com a publicação da obra A theory of justice, “talvez a obra mais influente
da filosofia moral e política produzida no século XX”, Rawls denominou a sua própria
teoria de “justiça como eqüidade”, e tenta dar sentido à noção de justiça buscando
133
MACINTYRE, 1990, p. 11.
134 VICENTE, 2010, p. 2.
60
uma base universalmente aceita, capaz de assegurar a legitimação dos valores e
normas. Com base nos principais pressupostos da sua teoria (1. convicção de que a
totalidade dos recursos é menor do que a procura; 2. existência de desacordo sobre
as concepções do bem defendidas pelos indivíduos; e 3. reconhecimento de que
todos os membros da sociedade são indivíduos racionais e razoáveis, capazes de
formular concepções de bem e de desenvolver um “sentido de justiça”), ele retoma a
filosofia do contrato social, da fundação da sociedade como produto de um acordo
entre seus membros acerca do modo “justo” de viver em comum – contrato que
constitui a base “moral” de uma sociedade democrática. 135
Meu objetivo é apresentar uma concepção de justiça que generaliza e leva a um plano superior de abstração a conhecida teoria do contrato social como se lê, digamos, em Locke, Rousseau e Kant. Para fazer isso, não devemos pensar no contrato original como
contrato que introduz uma sociedade particular ou estabelece uma forma particular de governo. Pelo contrário, a idéia norteadora é que os princípios de justiça para a estrutura básica da sociedade são o objeto do consenso original. São esses princípios que pessoas livres e racionais, preocupadas em promover seus próprios interesses, aceitariam numa posição inicial de igualdade como definidores dos termos fundamentais de sua associação. Esses princípios devem regular todos os acordos subsequentes; especificam os tipos de cooperação social que se podem assumir e as formas de governos que se podem estabelecer. A essa maneira de considerar os princípios de justiça eu chamarei de justiça como eqüidade136
A teoria do contrato social de Rawls fundamenta-se numa posição em que
os indivíduos atuam sob um “véu de ignorância”137 e são animados por seus próprios
interesses – é a “posição original”.138 Eles devem, também, entrar em acordo sobre
um sistema de cooperação. No entanto, como desconhecem o lugar que ocuparão
nesse sistema, cada um deles considera a possibilidade pior, em outras palavras, o
caso em que ocupará uma posição inferior. A partir daí, Rawls explica que cada um
desses indivíduos adota uma estratégia em que para o jogador que não tem certeza
de ganhar a melhor jogada consiste em assegurar-se de que o pior resultado será o
melhor possível; ele minimiza, deste modo, suas perdas máximas, ou ainda,
maximiza suas perdas mínimas – é a famosa “estratégia do máximo” inspirada na
135
VICENTE, 2010. 136
RAWLS, J. Uma teoria da justiça. São Paulo: M. Fontes, 2000. P. 12. 137
RAWLS, 2000, p. 146-152. 138
Ibid., p. 127-200.
61
teoria dos jogos. Em virtude da “estratégia do máximo”, na “posição original” nascem
os princípios básicos da justiça: liberdade e diferença. 139
Na perspectiva da teoria da justiça de Rawls, ninguém é um meio com vistas a servir a sociedade, e as liberdades civis são sempre superiores à economia. Mas as desigualdades não são necessariamente injustiças. Elas podem ser admitidas sob duas condições: as situações capazes de oferecer vantagens devem ser acessíveis a todos; a sociedade deve poder tornar os menos ricos tão ricos quanto seja possível ser, ou seja, chegar a um ponto ótimo na distribuição da renda. Nesse sentido, as únicas desigualdades admitidas por Rawls são aquelas que dão vantagens aos menos favorecidos. Insatisfeito com a tendência em estabelecer o conceito
da “filosofia moral” como um campo isolado de pesquisa e com a esterilidade da “idéia de que o filósofo moral pode estudar os conceitos de moralidade por meio de mera reflexão, no estilo poltrona de Oxford, sobre o que ele e os que o cercam dizem e fazem”.140
Assim, conforme Vicente141 MacIntyre publica em 1981 a sua grande obra
After virtue na qual discute a questão do relativismo das virtudes e a relação da
filosofia com a história. Nessa discussão, ele demonstra e explica a ascensão e a
queda das diferentes moralidades e defende a variedade e heterogeneidade das
crenças, conceitos e práticas morais. Com uma visão pessimista da condição ética
do homem contemporâneo, MacIntyre termina a sua obra dizendo:
O que importa nesse estágio é a construção de formas locais de comunidade, dentro das quais se possa sustentar a civilidade e a vida intelectual e moral durante a nova Idade Média que já estamos vivendo. E se a tradição das virtudes foi capaz de sobreviver aos horrores da Idade Média passada, não estamos totalmente desprovidos de base para ter esperança. Desta vez, porém, os bárbaros não estão esperando além das fronteiras; já estão nos
governando há muito tempo. E é a nossa falta de consciência disso que constitui parte dos nossos problemas. Estamos esperando, não Godot, mas outro – sem dúvida bem diferente – São Bento.142
Segundo Vicente 143essa visão é minimizada pela proposta que vê no
regresso à tradição aristotélica e tomista um instrumento de salvação, pois nessa
139
VICENTE, 2010. 140
MACINTYRE, 2001, p. 9. 141
VICENTE, op. cit. 142
MACINTYRE, 2001, p. 441. 143
VICENTE, op. cit., p.3-4.
62
tradição a justificação das virtudes não dependia de uma prévia justificação de
regras e princípios. As virtudes eram colocadas sempre em primeiro lugar para que a
função e a autoridade das regras fossem compreendidas. Uma proposta que, de
acordo com MacIntyre, deve passar, pelo reconhecimento da necessidade de nos
ligarmos a uma comunidade, com fortes laços de pertença e uma forte identidade
cultural, à semelhança do que os primitivos cristãos fizeram nos primeiros séculos da
nossa era, enraizado na filosofia de Aristóteles e de Tomás de Aquino e com forte
vínculo no pensamento anti-liberal. MacIntyre nega os valores morais da
modernidade e elege como um dos principais objetos da sua crítica a ética de Rawls
que, para ele, mais não é do que um kantismo de conteúdo social e igualitário que
não tem outra preocupação senão com aquilo que, na ética, pode ser formulado em
termos de direitos e obrigações e que negligencia assim, todo o domínio da
“virtude”. Ou seja:
Para MacIntyre, a teoria da justiça de Rawls possui um subjetivismo ético que opera com a idéia de um Estado neutro com respeito aos valores morais. Um Estado que garante apenas a liberdade de expressão dos indivíduos. Em outras palavras, um Estado que
garante apenas a capacidade de decidir livremente e de perseguir racionalmente uma certa concepção de bem.144
Para fundamentar a sua crítica à teoria de Rawls, MacIntyre recorre à obra
Ética a Nicômaco, de Aristóteles145, no Livro V, que trata do tema da justiça, e
afirma:
Quando louvou a justiça como primeira virtude da vida política, Aristóteles o fez de maneira a sugerir que a comunidade que carece de acordo prático com relação a um conceito de justiça também deve carecer da base necessária para a comunidade política. Porém, a
falta de tal base deve, portanto, ameaçar a nossa própria sociedade.146
Conforme Vicente147 na nossa cultura individualista esse acordo é
impossível, pois, a “virtude” constatada por MacIntyre passou a ser entendida como
“disposição ou sentimento” que produz no indivíduo obediência a certas normas,
144
Ibid., p. 5. 145
Aristóteles (2001), 146
MACINTYRE, 2001, p. 409. 147
VICENTE, 2010, p. 7.
63
entendendo-se que a justificação das virtudes depende de uma prévia justificação de
regras e princípios.
A conseqüência de tudo isso pode ser percebida com maior incidência no campo da justiça, nas controvérsias fundamentais da vida cotidiana (reivindicações com base em direito de propriedade legal contra reivindicações com base na necessidade) impossíveis de serem resolvidas racionalmente. Isso prova “que a tradição das virtudes é incompatível com características fundamentais da ordem econômica moderna e, mais especialmente, com seu individualismo, sua ganância e sua elevação dos valores do mercado a um lugar social de destaque”.148
Essas controvérsias, conforme MacIntyre, poderão ser declaradas falsas
caso a “filosofia analítica moral recente” apresente princípios racionais atraentes
para que as partes com interesse em conflito possam apelar.
Uma das declarações mais importante dessa filosofia sobre o assunto em questão, de acordo com MacIntyre, está na obra Uma teoria da justiça de Rawls, onde estão descritos os princípios de justiça como sendo escolhidos por um agente racional “situado por trás de um véu de ignorância”, de modo que ele não saiba que lugar ocupará na sociedade – isto é, qual será sua classe ou seu status, quais talentos e capacidade ele possuirá, qual será seu conceito do
bem ou seus objetivos na vida, qual será seu temperamento ou que tipo de ordem econômica, política, cultural ou social ele habitará.149
Para MacIntyre o que foi dito nos debates tributários ocorridos na Califórnia,
em Nova Jersey e em outros locais, fica evidente, na vida real, que o leva as
pessoas à convicção de que estão reclamando de injustiça, e não de outro tipo de
erro ou dano, é a menção ao demérito. Uma questão essencial que Rawls não
concedeu a devida atenção.150
Ele admite que as teorias da justiça atribuídas ao bom senso a ligam ao demérito, mas antes argumenta que só sabemos o que qualquer pessoa merece depois de formular as normas da justiça (e, portanto, não podemos basear no demérito o nosso entendimento da justiça),
e, em segundo lugar, percebemos que não é o demérito que está em questão afinal, porém apenas expectativas legítimas. Ele também
148
MACINTYRE, 2001, p. 426-427. 149
Ibid., p. 413. 150
VICENTE, 2010.
64
argumenta que seria impraticável tentar aplicar noções de demérito – o fantasma de Hume caminha por suas páginas neste ponto.151
Para MacIntyre, portanto, os argumentos defendidos por Rawls deixam claro
que, para ele, a sociedade é constituída de indivíduos com interesses próprios e
particulares e, por isso, precisam reunir-se para criar normas de vida em comum.
As restrições existentes são apenas aquelas impostas possivelmente por uma “racionalidade prudente”. Isso significa dizer que, para
Rawls, o indivíduo está sempre em primeiro lugar em relação à sociedade “e a identificação dos seus interesses individuais antecede a criação de quaisquer laços morais ou sociais entre eles, e também é independente dessa criação”152
O que Rawls expressa com toda profundidade em sua teoria da justiça, é:
O ato voluntário de indivíduos pelo menos potencialmente racionais com interesses anteriores que têm de perguntar:Que tipo de contrato
social com as outras pessoas me é razoável fazer?‟Como conseqüência disso é a exclusão em sua teoria de uma comunidade onde a idéia de demérito pudesse servir de base para juízos acerca da virtude e da injustiça em relação às contribuições para as tarefas comuns na busca dos bens. Um conceito de justiça mais antigo, mais tradicional, mais aristotélico e cristão.153
Segundo Vicente154 MacIntyre ataca os pressupostos básicos da teoria
liberal de Rawls, a concepção “absurda” de pessoa como um indivíduo “sem laços”,
sem identidade comprometida apenas com a sua escolha livre e que, segundo
MacIntyre, não contribui em nada com o objetivo de reconstrução da comunidade. A
justiça deixou de ser uma “virtude”. Ela consiste apenas, em suas análises sobre os
comunitaristas, no respeito mecânico pelo Estado e pelos indivíduos, de certas
regras formais. É uma justiça desprovida de carne, pela qual é impossível
entusiasmar-se. Uma ordem social que, na perspectiva de MacIntyre, não se pode
estabelecer, estruturar e estabilizar baseada num encontro de egoísmos. É
necessário um Estado, uma comunidade política com o objetivo de assegurar a cada
151
MACINTYRE, op. cit., p. 418. 152
Ibid., p. 419. 153
Ibid., p. 422. 154
VICENTE, 2010, p. 8.
65
um, um livre desenvolvimento, promovendo os valores da tradição e encorajando os
modos de vida que realizam esses valores.
Segundo Vicente155 no entender de MacIntyre, a idéia de Rawls, de um
indivíduo racional capaz de escolher livremente o seu destino deve ser reprovada. A
única maneira de entender a conduta humana é através de uma referência aos
indivíduos nos seus contextos sociais, culturais e históricos. A crítica de MacIntyre à
teoria liberal de Rawls se estende, também, ao Estado e à sua ordem política.
Mesmo reconhecendo que existem tarefas que somente serão realizadas por
intermédio das instituições governamentais, como, por exemplo, justificar a
imposição e o cumprimento das leis, a defesa da liberdade e a questão da injustiça,
MacIntyre entende que é preciso avaliar os méritos próprios de cada um dessas
tarefas, de cada uma dessas responsabilidades.
A política sistemática moderna, seja liberal, conservadora, radical ou socialista, simplesmente precisa ser rejeitada de um ponto de vista que deve lealdade genuína à tradição das virtudes; pois a própria política moderna expressa em suas formas institucionais uma rejeição sistemática dessa tradição.156
Conforme Vicente pode-se afirmar que a teoria liberal da justiça de Rawls
não pressupõe apenas indivíduos sem “laços”, como mostrou MacIntyre, “mas os
segrega”. Talvez a realização da preocupação de permitir a cada um perseguir sua
própria concepção pessoal da boa vida nas sociedades liberais seja ainda
“imperfeita”, mas isso não impede de observar as “tendências penosas que revelam
as implicações profundas das teorias liberais da justiça”157
A grande facilidade de mobilidade individual (geográfica, certamente, mas também social, matrimonial e política) permite que Os membros dessas sociedades [...] são mais do que nunca deixados a si mesmos, sem laços duradouros com as comunidades nas quais nasceram, portadores de identidades frágeis, de vínculos precários,
de compromissos efêmeros. E seria difícil pretender que a preocupação liberal de permitir eqüitativamente a todos perseguir a realização de sua concepção de boa vida (qualquer que seja a interpretação exata que propúnhamos dessa preocupação) é estranha a essa evolução. Por mais justa que possa ser, semelhante sociedade atomizada, sede de uma concorrência onipresente e de
155
Ibid., p. 9. 156
MACINTYRE, 2001, p. 427. 157
VAN PARIJS, 1997 apud VICENTE, 2010, p. 224.
66
uma cooperação ocasional entre indivíduos perseguindo cada qual seus próprios fins, oferece a imagem de uma sociedade desejável? Esta não deve incluir uma dimensão comunitarista que a justiça liberal, por mais imperfeitamente realizada que seja, já solapou seriamente e que a perseguição do esforço para assegurar a “neutralidade” do Estado corre o risco de terminar por abolir completamente? Se atribuímos a essa dimensão comunitarista mais do que uma importância marginal, não devemos conseqüentemente rejeitar como profundamente pernicioso o próprio projeto de uma teoria liberal da justiça?158
Segundo Vicente159 na democracia, uma discussão importante no campo da
ética está diretamente ligada à participação dos membros de cada comunidade na
vida pública. A teoria de Rawls defende que uma vez que os cidadãos se vejam a si
mesmos como pessoas livres e iguais, reconhecerão que para realizarem as suas
diferentes convicções de bem necessitam dos mesmos bens primários, ou seja, os
mesmos direitos básicos, liberdade e oportunidade, bem como dos mesmos meios
destinados a todos os fins, como o rendimento, a riqueza e as mesmas bases
sociais de auto-estima. Nessa perspectiva, a cidadania é entendida como
capacidade de cada pessoa formar, rever e realizar racionalmente a sua definição
de bem. Para MacIntyre, no entanto, é preciso resgatar a concepção republicana
cívica da política, onde a noção de bem comum está bem presente. Essa noção
deverá ser anterior e independente das vontades e desejos individuais. É preciso
propor uma homogeneização e uma poderosa forma de união no lugar da
exacerbação das diferenças e da desencarnação. Portanto, a crítica de MacIntyre à
teoria de justiça de Rawls pode ser encarada como uma discussão política de propor
soluções para uma democracia que parece estar longe dos conceitos éticos.
3.3 Discussão de autores sobre a proposta comunitarista Macyntireana
Alguns críticos atuais desaprovam as bases com as quais MacIntyre erigiu
seu pensamento. Um exemplo é Anabela Gradim160. Ao seu ver, MacIntyre não
consegue resolver o problema de como, partindo do interior de uma tradição, ter
acesso a outras sem ficar restrito a um relativismo dependente de um determinado
158
VAN PARIJS, 1997 apud VICENTE, 2010, p. 224. 159
VICENTE, 2010, p. 11. 160
Anabela Gradim, jornalista, professora Universidade Beira Rio, Portugal autora do livro Em
Busca da Perfeita Conspiração dos Pombos [Nota do pesquisador].
67
registro histórico. A virtude dependente de práticas e de tradições é assim um tanto
redutora. Gradim aponta a necessidade de um mínimo denominador comum de
valores universais, em torno dos quais poderiam ser desenvolvidas formas
particulares e locais para todos os homens de virtude e moralidade. Pois sem esses
valores as “[...] sociedades como a Alemanha nazista e o Iraque de há poucos anos
podem se constituir como modelos de comunidades onde triunfa este revivalismo
aristotélico.[...]”161
Alain Renaut e Lukas Sosoe162 enxergam outros tipos de dificuldades:
primeiramente a restauração aristotélica constitui uma forma particular de negação
jurídica: quando se substitui a ótica do direito pela da virtude e também a
consideração da crítica vital a uma tradição, isto pode levar a negação da mesma.
Anabela Gradim vê outra dificuldade que é a questão da motivação que se relaciona
com o problema de como fazer nascer comunidades neo-aristotélicas num mundo
fundamentalmente emotivista,de fato como convencer o cidadão produto de séculos
de desencantos, a imaginar-se separado dos papéis que a história lhes acometeu.
Para Nogueira163 apesar das críticas, a ética de virtudes tem real utilidade na
sociedade contemporânea, já que nos tempos em que vivemos, perdeu-se o
paradigma da moralidade. Ao resgatar uma ética baseada no modelo aristotélico,
teremos um perfeito entendimento de uma ética que dá valor à tradição e à
comunidade.
Kelvin registra que a teoria de MacIntyre diferencia-se de outras teorias de práticas sociais especialmente quanto à questão de uma prática subordinada às regras sociais. Numa clara relação com a tese de Aristóteles, MacIntyre, na visão de Kevin, sustenta que as práticas sociais não são construtoras da moralidade, mas são as escolas da virtude. É na prática que os praticantes encontram validação para as suas ações virtuosas e inspiração para prosseguir nessa procura . Mas essa ausência de subordinação não significa desconsiderar determinados padrões de virtudes desenvolvidos em uma determinada tradição: toda a prática requer um certo tipo de
relacionamento entre os que dela participam. Para ele é
161
VIEIRA, Daniela Arantes. Alasdair Macintyre e a crítica da modernidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002, p. 99.
162 Alain Renaut é professor de Filosofia Política na Universidade de Paris-Sorbonne. É autor de
vários ensaios que renovaram a nossa compreensão da modernidade, crítico dos comunitaristas. Lukas Sosoe, professor na Universidade de Luxemburgo, professor de sociologia [nota no pesquisador].
163 NOGUEIRA, José Francisco. Comunidade, nas elaborações de Taylor e Macintyre:
seriam eles comunitaristas? Publicado em 2003. Disponível em:
<http://www.gamaon.com.br/pdf/vol7/jose-artigo.pdf>. Acesso em 01 de agosto de 2011.
68
fundamental observar que Ingressar numa prática é ingressar numa relação não só com seus praticantes contemporâneos, mas também com aqueles que nos precedem na prática. Virtudes funcionam como referência para definir nosso relacionamento com aquelas pessoas com quem compartilhamos os propósitos e os padrões que configuram as práticas. Ao mesmo tempo em que devem ser orientadoras, são dinâmicas: não é por acaso que toda a prática tenha a sua própria história. Significa dizer que, se por um lado o virtuoso precisa submeter-se aos padrões esperados das práticas virtuosas estabelecidas em uma comunidade, essas práticas não são
imutáveis. Ao contrário, são reformuladas pela análise crítica que ela deve sofrer ao longo de sua história.164
Mas as virtudes, ao mesmo tempo em que são sustentadas por certos tipos
de instituições sociais são ameaçadas por outras. É aqui que MacIntyre, conforme
Resende, intensifica sua crítica à modernidade. A análise que Taylor 165 faz sobre o
debate permite observar algumas de suas posições a respeito da questão
comunidade. O primeiro aspecto na correlação com a sugestão metodológica de
Thiebaut é que Taylor não concorda com a separação entre comunitaristas e liberais
por achá-la insustentável na prática contemporânea. Freqüentemente Taylor afirma
que o debate entre comunitaristas e liberais é visto como sendo uma questão entre
atomistas e holistas, e nesse sentido sua visão descarta a hipótese de teses auto-
suficientes de ambos os lados desse debate. Ele cita Sandel para destacar que os
diferentes modelos como vivemos juntos em sociedade – atomista e holista – se
vinculam com diferentes concepções de self e da identidade: selves "libertos" versus
selves situados.
Taylor não vê, portanto,sustentação para a idéia de um debate polarizado, nesses termos.Parece-nos, neste ponto, que MacIntyre não pretende rever a ênfase na individualidade contemporânea dando-lhe novo enfoque. Seu foco aqui está na importância no papel
do desenvolvimento intelectual e social da comunidade como definidora dos parâmetros morais ideais. Ao indivíduo cabe entender e até reavaliar tais parâmetros para praticá-los. De formas específicas, ambos estão empenhados em uma análise crítica à ênfase do individualismo moderno na razão instrumental e na valoração do meio em detrimento dos fins. Nesse sentido, Taylor afirma que a sociedade é uma associação de indivíduos, cada um dos quais tem uma concepção de uma vida boa ou válida. Por essa razão, eles estão próximos quanto à constatação de que não há e nem pode haver um interesse na articulação do bem porque a visão individualista sugere independência nas decisões morais. Mas as
164
NOGUEIRA, 2003, p.4. 165
TAYLOR apud RESENDE, 2003, p.7.
69
aproximações entre os dois autores, na questão definição do bem maior, estão limitadas.166
Nogueira167 ressalta que, por um lado, MacIntyre é cético quanto às chances
de um acordo moral. Para ele, os debates entre as tradições resultam em uma
história de disputas continuamente não resolvidas. E dessas disputas não emerge
nenhuma concepção não-contestada ou incontestável de que seja a moralidade
independente da tradição. Por outro lado, Taylor entende que o problema da moral
na modernidade é a falta de capacidade de articulação causada especialmente pela
ausência de fontes qualificadas. Para ele, um bem definido sob uma perspectiva
individualista, caso seja resultante de uma forte avaliação, pode ser tão importante
quanto um bem sob uma perspectiva holística: no sentido amplo, em que uma regra
de direito também pode contar como bem, pode haver um bem partilhado
extremamente importante.
Vale destacar, nesse ponto, que há uma convergência importante entre os
dois autores: em uma das passagens de Taylor a respeito da avaliação forte, ele faz
referências explícitas a um alinhamento com MacIntyre:
[...] os vocábulos de que precisamos para explicar o pensamento, a ação e o sentimento humanos, ou para deliberar acerca do que fazer, se apóiam incontornavelmente na avaliação forte. E Taylor complementa essa reflexão validando, entre outras, aposição de MacIntyre:parece-me que a formulação desse problema foi apresentada convincentemente em inúmeros lugares .Ao analisar a perspectiva de Taylor e MacIntyre sobre a primeira classificação de Thiebaut na caracterização do comunitarista (prioridade do bem
sobre a justiça),somos levados naturalmente à segunda característica proposta por ele, que é a crítica ao pensamento atomista. Assim, quando Taylor discute o atomismo, em especial quando compara o posicionamento do cidadão com relação aos regimes despóticos ou livres da sociedade, ele faz uma síntese que define uma visão cívico-humanista, com a qual confessa ter aproximação.168
Nogueira169 comenta que MacIntyre é incisivo quanto à crítica ao atomismo.
Qualquer pessoa pode, então, ser agente moral porque é no eu, e não nos papéis
ou nos costumes sociais que deve residir o agir moral . Assim, na segunda
166
RESENDE, 2003, p. 9. 167
NOGUEIRA, 2003, p. 4. 168
RESENDE, op. cit., p. 6. 169
NOGUEIRA, op. cit., p. 5.
70
categorização de Thiebaut (crítica ao pensamento atomista), a perspectiva crítica de
MacIntyre ajusta-se perfeitamente. Na opinião de Kelvin Knight,MacIntyre é
radicalmente um pensador político e politicamente um pensador radical. No caso da
terceira caracterização de comunitarista de Thiebaut (contexto e história como
determinantes inevitáveis) observamos alguns aspectos importantes nas posições
de Taylor e MacIntyre.
Conforme Nogueira170 na concepção de Taylor, o engajamento do agente
reforça a importância que ele dá à questão da correlação do agente com o ambiente
que o cerca. O mundo do agente é moldado por sua forma de vida, por sua história
ou por existência corporal. Mas esse engajamento não é destacado nem promovido
no contexto contemporâneo:
[...] a visão racionalista dominante descartou esse engajamento,dando-nos um modelo de nós mesmos como pensadores desprendidos.Em sua obra Fontes do Self, Taylor revela que ele precisa contar a história da mudança das idéias sobre as
fontes morais, iniciando pelo debate ou oposição entre a perspectiva de julgamento de nossas ações baseadas nas influência internas ou externas do ser humano. Parte substancial dessa obra é feita sob a perspectiva histórica. Um exemplo: ele observa a frase de Platão de que somos bons quando a razão governa e maus quando dominados por novos desejos. Desse ponto ele destaca que a narrativa histórica fez, porém, uma inversão importante na conceituação de Platão. O que ele chama de razão, Taylor prefere analisar como pensamento. É importante notar, na lógica da ênfase metodológica de Taylor, que ele vê nesse modelo de Platão a oportunidade do confronto de idéias para as suas análises. Taylor contrapõe, assim, uma posição original de Platão, e a usa como ponto de partida para gerar novas
perspectivas da narrativa histórica. Nesse exemplo, ele demonstra seu apreço pela construção intelectual através da narrativa histórica quando a considera uma referência para a formação do eu moderno: MacIntyre rejeita as críticas de que essa noção de tradição é conservadora.171
Assim, explicar uma virtude significa para MacIntyre, entender os conceitos
de unidade narrativa e da prática os quais sofreram sensíveis mudanças desde
Aristóteles.
Enquanto que a política, segundo Aristóteles é uma prática com bens
internos, o mundo moderno caracteriza-se por ter a maior parte de
170
Ibid., p. 7. 171
Ibid., p. 8.
71
sua produção fora do lar e a serviço do capital impessoal. Desvincula-se o bem interno do processo de sobrevivência biológica e da reprodução da força de trabalho. Assim, a força que movimenta o trabalho produtivo moderno é a concepção aristotélica. A comunidade de MacIntyre é a única alternativa para o florescimento das virtudes, base para um acordo moral. Porém, não há mais como pensar em uma comunidade aristotélica (polis) de âmbito nacional.172
Para MacIntyre, as alternativas contemporâneas ficam por conta de
comunidades mais ou menos organizadas em torno de crenças comuns, tais como
igrejas ou seitas, religiosas ou não-religiosas, ou certos tipos de associações
políticas. Mas, nessa perspectiva, um acordo maior está fora de cogitação.
172
RESENDE, 2003, p. 9.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O pensamento de Alasdair MacIntyre parte de uma crítica de prover para a
moral de nossa cultura, uma teoria das virtudes. Sendo porque a sociedade atual
está marcada pela globalização, pela pluralidade cultural, pelo individualismo moral
e pelo emotivismo. Os seus argumentos procuram oferecer uma resposta positiva
para a questão defendendo que o que precisamos, dentro de sua visão reformulada
da teoria das virtudes, é compreender que as virtudes são necessárias para nossa
sobrevivência no mundo natural, pois somos animais vulneráveis a diversos tipos de
males, e justamente por isso, dependentes dos membros da comunidade.
A moral contemporânea se caracteriza por um pluralismo superficial e a
perspectiva da moral no século XX é o emotivismo, segundo o qual os juízos de
valor e juízos morais não são nada mais que expressões de preferências,
expressões de atitudes ou sentimentos, na medida em que estes possuem um
caráter moral ou valorativo.
Os preceitos morais ordenam as virtudes e instruem como alcançar a
realização do bem e da felicidade racional. Os desejos e as emoções devem ser
educados pelos preceitos morais e pelo cultivo de hábitos de ação prescritos pelo
estudo da ética de uma natureza humana não educada; de preceitos de uma ética
racional. Ou seja, a lei moral divina pode conduzir de um estágio do ser para o
estágio do dever ser.
Para o escocês, a razão não compreende essências ou passos ao ato,
conceitos que pertencem ao esquema ultrapassado da escolástica. A razão é
cálculo, que só pode avaliar verdade de fatos e verdades matemáticas e nada mais.
Sobre os fins, ela tem que se calar. As justificações morais da modernidade rejeitam
a natureza essencial ao homem, que definiria seu verdadeiro fim. Sem uma natureza
73
humana verdadeira, que pudesse dar uma direção para corrigir essa
natureza em busca do aperfeiçoamento, o projeto fica desprovido de um esquema
coerente.
A interpretação do fracasso iluminista feita por MacIntyre traz uma dupla
possibilidade: escolher o projeto nietzschiano de uma crítica radical a moralidade ou
retomar a ética aristotélica das virtudes. Nietzsche teve o mérito de ver o quanto as
objetivações morais são fruto da vontade de poder, que o sujeito autônomo, racional
e racionalmente justificado é uma ilusão. Desse modo, MacIntyre escolhe a ética
aristotélica das virtudes, para retomá-la à luz de uma tradição de pesquisa racional.
Isso implica o reconhecimento de que a compreensão humana é desenvolvida no
interior das tradições e constitui a base do agir moral. Nas palavras deste, a tradição
é uma argumentação, desenvolvida ao longo do tempo, na qual certos acordos
fundamentais são definidos e redefinidos em termos de dois tipos de conflitos:
conflitos com críticos e inimigos externos à tradição que rejeitam todos ou, pelo
menos, partes essenciais dos acordos fundamentais; e debates internos,
interpretativos, através dos quais o significado e a razão dos acordos fundamentais
são expressos e através de cujo progresso uma tradição é constituída. Assim, só no
horizonte das histórias das tradições é que se pode compreender os compromissos
morais. Por isso, MacIntyre assume a ética aristotélica das virtudes no contexto da
narrativa histórica mais ampla, mas o faz a partir de um aparato conceitual
contemporâneo.
As virtudes, entendidas de uma forma ampliada, são aquelas disposições
que, não só mantêm as práticas e permitem alcançar os bens internos às praticas,
mas também conduzem a uma busca do bem, ajudando-se a vencer os riscos,
perigos, tentações e distrações com os quais se depara e a procurar um crescente
autoconhecimento e crescente conhecimento do bem. MacIntyre refuta o modo de
vida fragmentado da sociedade contemporânea, pelo qual se separam trabalho,
lazer, vida coletiva e pessoal, entendida como unidade de um relato de busca. As
particularidades morais constituem um ponto de partida, mas o homem pode lançar-
se para além delas, em busca do bem universal, pois a identificação com o universal
leva os homens a comportar-se orientados por parte de uma história e de uma
tradição, sendo essa reforçada ou destruída pelo exercício ou pela falta de virtudes
relevantes.
74
A preocupação crescente da sociedade com a preservação e a conservação
ambiental tem resultado na busca por enfoques ecológicos, rentáveis e socialmente
justos. A prática de considerar o outro como sujeito de direito ou pessoa que possui
uma “dignidade é o fundamento de direitos e deveres, pois se uma pessoa respeita
os outros como pessoa, a justiça social a esta prática retrata um mútuo
reconhecimento no interior de uma comunidade”. A justiça social suprime privilégios,
no sentido de uma desigualdade de direitos. Aquele que não é reconhecido como
sujeito de direitos no interior da comunidade também não é sujeito de deveres, e
esse fica desobrigado de reconhecer os direitos dos demais.
O pensamento de MacIntyre denuncia o pós-modernismo que ele considera
produto do emotivismo e crê que a falta de consenso racional sobre o "bem" e a
"boa vida" contribui mais ainda para a ampliação da irracionalidade individual do
homem contemporâneo e sua perda de responsabilidade, privando os indivíduos de
um olhar ao outro. Assim, realizar um estudo e uma crítica da filosofia de MacIntyre
significa utilizar conceitos e uma relação estabelecida entre eles que giram em torno
de um desencantamento cultural e de valores.
Embora a filosofia moral de MacIntyre não aborde de maneira específica a
questão das comunidades cristãs, cabe fazer uma leitura de sua obra a partir desta
perspectiva e procurar uma reflexão coerente ao assunto, a fim de tornarmos o
trabalho também voltado a certas questões e reflexões pontuais a respeito da
interpretação macintyreana no contingente da sociedade atual. Afinal, a
interpretação da proposta de MacIntyre, sob o ponto de vista da sociedade
contemporânea, sugere um novo estilo de "princípio, meio e fim" com etapas e
direções a fim de contribuir para uma mensagem ética para o nosso tempo,
mostrando que o individualismo é negativo quando somente se refere a direitos
individuais, e não vê os deveres e obrigações que devem garantir esses direitos. É o
critério empírico do bem-estar ou utilidade social. MacIntyre vê com clareza a
contradição em que se baseia tal postura, o que lhe faz se mostrar pessimista diante
da atual virtude. Na sua tese, o individualismo não pode sustentar valores comuns,
os direitos humanos e o critério de utilidade, incompatíveis entre si, nem pode haver
utilidade comum, porque os desejos e preferências das pessoas são diferentes e
não há modo de agregá-los em um fim útil para todos.
O momento atual, portanto, justifica buscar-se um modelo ético baseado na
recuperação das virtudes como instrumentos apropriados de formação moral – um
75
dos debates centrais da filosofia nas últimas décadas – e entende-se que dissertar
sobre MacIntyre foi uma rica oportunidade para aprofundar os estudos e contribuir
academicamente com uma reflexão sobre um autor bastante atual.
REFERÊNCIAS
APPEL, Karl Otto. Estudos de Moral Moderna. São Paulo: Vozes, 1994.
BACH, J. Marcos. Consciência e Identidade Moral. São Paulo: Vozes, 1985.
CARVALHO, Helder Buenos Aires de. Tradição e racionalidade na filosofia de Alasdair MacIntyre. São Paulo: Unimarco Editora, 1999.
DAMASCENO, Márcia Marques. O Projeto Filosófico Central De Alasdair MacIntyre. Prometeus - Viva Vox - Dfl - Universidade Federal De Sergipe.
Ano 4 - no.7 Janeiro-Junho / 2011 . Disponível em: http://www.posgrap.ufs.br/periodicos/prometeus/7/6.pdf Acesso em 31 de jul. 2011.
FRANKL, George. Os Fundamentos da Moralidade: Uma Investigação da Origem
e Finalidade dos Conceitos Morais. Lisboa: Bizâncio. 2003.
GALUPPO, Marcelo Campos. A virtude da justiça. In: Extensão, v. 10 – 11. Belo
Horizonte: 2001, p. 67 – 187. Disponível em: http://www.biblioteca.pucminas.br/teses/Direito_HordonesFV_1.pdf Acesso em 31 de jul. 2011.
LACERDA, Bruno Amaro. O pensamento de Aristóteles e as reflexões jusfilosóficas atuais. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 51, 1 out. 2001. Disponível
em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/2046>. Acesso em: 31 jul. 2011.
MACINTYRE, Alasdair. Depois da Virtude: um estudo em teoria moral. Tradução de
Jussara Simões; revisão técnica de Helder Buenos Aires de Carvalho. Bauru, SP: EDUSC, 2001.
____________________. Justiça de Quem? Que Racionalidade? Trad. Marcelo
Pimenta. São Paulo: Loyola, 2001. ___________________. After Virtue. Notre Dame: University of Notre Dame Press,
1984.
77
____________________. Three Rival Versions of Moral Enquiry: Encyclopedia,
Genealogy, and Tradition. Notre Dame, University of Notre Dame Press, 1990.
____________________. Whose Justice? Which Rationality? Notre Dame:
University of Notre Dame Press, 1988.
____________________. A Short History of Ethics. Notre Dame: University of
Notre Dame,1998
_____________________. Dependent Rational Animals: Why Human Beings
Need the Virtues. Chicago: Open Court,1999.
MARTINS, DANIEL. A educação e o pensamento comunitarista em alasdair macintyre. Publicado em: 14/10/2010. Disponível em:
http://www.artigonal.com/ciencia-artigos/a-educacao-e-o-pensamento-comunitarista-em-alasdair-macintyre-3475830.html Acesso em 31 de jul. 2011.
NOVAES, A. Ética. São Paulo: Companhia das Letras.1992.
OLIVEIRA, M. Araújo de. Ética e sociabilidade. São Paulo: Loyola, 1993.
PERINE, Marcelo. Virtude, Justiça, Racionalidade: A propósito de Alasdair
MacIntyre. Síntese Nova Fase. V. 19 n. 58 (1992).
RAWLS, J. Uma teoria da justiça. São Paulo: M. Fontes, 2000.
SINGER, Peter. Ética Prática. Lisboa: Gradiva. 2000.
TUGENDHAT, Ernst. Lições sobre Ética. Petropólis:Vozes.1997.
VALLS, Alm . O Que é a Ética. São Paulo: Brasilense. 1998.
VICENTE, José João Neves Barbosa. A crítica de MacIntyre à teoria da justiça de Rawls. Ano III, número 2, jul.-dez. 2010 .Disponível em: http://www.uern.br/outros/trilhasfilosoficas/conteudo/N_06/III_2_art_7_Vicente.pdf Acesso em 31/07/2011.
VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. 20º edição Civilização Brasileira, Rio de Janeiro,
2000.
78
VERÍSSIMO, MARTHA. Teorias sobre a natureza dos Valores. Data de
Publicação: 17/11/2010. Disponível em: http://www.notapositiva.com/pt/apntestbs/filosofia/10_teorias_natureza_valores.htm Acesso em 31 de jul. 2011.
VIEIRA, Daniela Arantes. Alasdair MacIntyre e a crítica da modernidade. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002.
WESTON, Anthony. Ética para o Dia-a-Dia. Lisboa: Esquilo, 2002.