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Maria de Lourdes Rabetti (Beti Rabetti) Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) com pós-doutora- do na Università di Torino/Itália. Professora do Departamento de Teoria e do Pro- grama de Pós-graduação em Teatro da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Pesquisadora do CNPq. Autora de Teatro e comicidades 2: modos de produção do teatro ligeiro carioca. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007. [email protected] Presença musical italiana na formação do teatro brasileiro DEBRET, Jean Baptiste. Sapatarias (detalhe), 1834/1839.

Teatro Italiano

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Práticas sociais do Rio de Janeiro no século XIX.

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  • Maria de Lourdes Rabetti (Beti Rabetti)Doutora em Histria Social pela Universidade de So Paulo (USP) com ps-doutora-do na Universit di Torino/Itlia. Professora do Departamento de Teoria e do Pro-grama de Ps-graduao em Teatro da Universidade Federal do Estado do Rio deJaneiro (Unirio). Pesquisadora do CNPq. Autora de Teatro e comicidades 2: modosde produo do teatro ligeiro carioca. Rio de Janeiro: 7 Letras, [email protected]

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    * Este texto resulta, parcial-mente, de conferncia proferi-da no Ciclo sul teatro italianonel secondo Ottocento, naUniversit degli Studi di Pisa,ocorrido no Setor Teatro da Es-cola de Doutorado, e tradu-zido por sua prpria autora.Ele ser publicado, em suaverso italiana, em Il castellodi Elsinore, revista semestralde teatro, editada sob a chan-cela do Departamento de Dis-ciplinas Artsticas, Musicais edo Espetculo da Universitdi Torino (Unito). Este ensaiofoi escrito no mbito do est-gio ps-doutoral realizado naUnito, de agosto de 2007 ajulho de 2008, com a colabo-rao de Roberto Tessari e debolsa PDE/Capes. A pesqui-sa de ps-doutoramento de-dicou-se ao teatro oitocentistaitaliano, por meio do estudoda formao artstica da bai-larina Maria Baderna (CastelSangiovanni, 1828 Rio de Ja-neiro, 1892), tema geral doprojeto de pesquisa docentejunto Unirio.

    Presena musical italiana na formao do teatro brasileiro*Maria de Lourdes Rabetti (Beti Rabetti)

    Os estudos sobre a histria do teatro brasileiro concentraram-sepor muito tempo na questo de suas origens, que remontariam ao sculoXIX, se observadas suas caractersticas determinantes e mais persisten-tes. Para alguns, seu marco de origem seria o ato oficial de inauguraode um edifcio teatral, em princpio destinado a acolher a produo deelite, e na verdade construdo especialmente como smbolo da presenareal aps a transferncia da Corte portuguesa para o Brasil (1808). Logodepois da chegada, o prncipe regente D. Joo ordenou a construo(autorizada em 1810) de um teatro real erguido no Largo do Rossio, como nome de Teatro So Joo, cuja inaugurao se deu em 12 de outubrode 1813 com a presena da famlia real portuguesa. Segundo a maiorparte dos historiadores, no entanto, o nascimento do teatro brasileiroocorreu somente em 1838, quando pela primeira vez um texto dramti-co com autor e temas nacionais Antonio Jos ou O poeta e a Inquisio,de Gonalves Magalhes (Domingos Jos Gonalves Magalhes, Rio deJaneiro 1811, Roma 1882) foi encenado pela companhia teatral dogrande ator Joo Caetano dos Santos, formada substancialmente poratores brasileiros, e no mais dominada pelos atores portugueses.

    Por sua vez, os estudos sobre a formao teatral brasileira do scu-lo XIX debateram-se, e confrontam-se ainda, com as noes de influn-cia e de modelos externos, que tendem a desaguar numa histria dasidias demarcada pelos fluxos de correntes literrias. Neste estudo, lon-ge de resolver tais problemas, procuro detectar e discutir o que entendecomo efetivas co-presenas em circuitos culturais e artsticos historica-mente determinados.

    Quanto ao problema das origens, o fato que, ainda bastante dis-tantes de qualquer concluso, as vises sobre o propalado nascimentodo teatro brasileiro, se, de incio, se coligaram defesa de um teatro na-cional, percebido como espao ilustrado destinado a um projetocivilizador, posteriormente se aproximaram das concepes de um gru-po de estudiosos conhecidos como intrpretes ou explicadores do pas,estudiosos de vrios campos que procuraram, em fecundos momentosdo sculo XX, compreender a formao do pas por meio de sua arte e desua cultura, de maneira mais complexa e orgnica.

    O sistema literrio de Antonio Candido

    O chamado grupo de explicadores do Brasil envolve um conjun-to de intrpretes do pas, voltados para a percepo e a compreenso de

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    rouma identidade nacional. Esses estudiosos de uma gerao, dedicados a

    diversas disciplinas, entre os anos 30 e 50 do sculo XX, procuraram, emltima instncia, como j se disse, tornar mais inteligvel o pas aos pr-prios brasileiros. Caio Prado Jnior, Srgio Buarque de Holanda e Gil-berto Freyre foram os representantes de ponta desse grupo, e a eles re-monta um conjunto de noes, de categorias, de instrumentos operativos,consistentes e criativos, que geraram vrios files de pensamento e pes-quisa nos anos sucessivos.

    Importantssimo o filo sociolgico e literrio que, em algumaspesquisas voltadas para o exame da relao entre literatura e sociedade,coloca problemas fundamentais e elabora categorias de anlise muitoimportantes para a historiografia do teatro brasileiro. Seu representantemximo Antonio Candido de Mello e Souza (Rio de Janeiro, 1918),professor da Universidade de So Paulo, ensasta de referncia para osestudos culturais e de teoria literria, pois como ainda recentementerecordou Roberto Schwarz: maneira daqueles mestres do ensaio deinterpretao do Brasil, que haviam repassado a gnese de nossos irre-gulares padres de sociabilidade e vida econmica, Antonio Candido,identificando dinamismos especficos da vida cultural brasileira, expu-nha a constituio de uma tradio literria nacional relativamente es-tvel.1

    Para o estudo da formao do teatro brasileiro do Oitocentos, An-tonio Candido nos interessa inicialmente porque elabora a noo funda-mental de conscincia amena do atraso do pas, que vigorou no Brasilpor todo o sculo XIX e derivou da percepo do Brasil como pas jo-vem. Esta concepo, observa Antonio Candido, baseava-se na idiade que a cultura, as letras e as artes poderiam mudar a situao de de-pendncia poltica, social e econmica do pas: No tempo do que cha-mei conscincia amena de atraso, o escritor partilhava da ideologia ilus-trada, segundo a qual a instruo traz automaticamente todos os benef-cios que permitem a humanizao do homem e o progresso da socieda-de.2

    Tambm interessa ao estudo da formao do nosso teatro um ou-tro importante trabalho do autor, pensado e escrito no arco de um dec-nio e publicado em 1959 sob o ttulo Formao da literatura brasileira:momentos decisivos. A relao histrica, necessria e orgnica, entre li-teratura e sociedade, solicitada para o estudo da formao da literaturano Brasil, explicitada na conhecida introduo obra:

    Uma literatura empenhadaEste ponto de vista, alis, quase imposto pelo carter da nossa literatura, sobretudonos momentos estudados; se atentarmos bem, veremos que poucas tm sido to cons-cientes da sua funo histrica, em sentido amplo. [...] Depois da Independncia opendor se acentuou, levando a considerar a atividade literria como parte do esforode construo do pas livre, em cumprimento a um programa, bem cedo estabelecido,que visava diferenciao e particularizao dos temas e modos de exprimi-los. Istoexplica a importncia atribuda, neste livro, tomada de conscincia dos autoresquanto ao seu papel, e inteno mais ou menos declarada de escrever para a suaterra, mesmo quando no a descreviam. [...] Esta disposio de esprito, historicamen-te do maior proveito, exprime certa encarnao literria do esprito nacional, redun-dando muitas vezes nos escritores em prejuzo e desnorteio, sob o aspecto esttico. Ela

    1 ARANTES, Paulo Eduardo.Providncias de um crtico li-terrio na periferia do capita-lismo. In: ARANTES, OtliaBeatriz Fiori e ARANTESPaulo Eduardo (orgs.). Senti-do da formao: trs estudossobre Antonio Candido, Gil-da de Mello e Souza e LcioCosta. So Paulo: Paz e Ter-ra, 1997, p. 12.

    2 Candido, Antonio. Literatu-ra e subdesenvolvimento. Ar-gumento: revista mensal decultura, ano 1, n. 1, So Pau-lo, 1973, p. 12.

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    continha realmente um elemento ambguo de pragmatismo, que se foi acentuando atalcanar o mximo em certos momentos, como a fase joanina e os primeiros tempos daIndependncia, a ponto de sermos por vezes obrigados, para acompanhar at o limiteas suas manifestaes, a abandonar o terreno especfico das belas-letras.3

    Essa relao substancial entre literatura e sociedade brasileira im-punha ao estudioso uma viso articulada dos vrios elementos a seremtomados em considerao; um modo de estudar, de interpretar e de ex-por o processo de formao ou de desenvolvimento que permitisse en-tender o momento de fundao de nossa literatura no como fato inau-gural, mas como momento decisivo. Em tal momento se podia obser-var a presena de um sistema literrio apto a distinguir tanto a literatu-ra verdadeira e prpria; quanto a emergncia de elementos imprescin-dveis ao estabelecimento de uma tradio literria, condio fundamen-tal para identificar a formao compreendida como processo de longadurao.

    Um sistema literrio necessrio para que exista literatura pro-priamente dita e no apenas manifestaes literrias dispersas e in-termitentes pressupe um conjunto de autores, obras e pblico nacio-nais, que dialoguem e se influenciem reciprocamente, de modo a fazersistema, e que, ao dialogar tambm com os modelos externos, consegueoperar uma sntese de tendncias universalistas e particularistas, comcapacidade de relao com experincias brasileiras anteriores. Em suma,o sistema exige uma complexidade de relaes que possibilite a emergn-cia de estruturas de produo e de recepo literria especiais e decisi-vas. Isso implica a confluncia de snteses entre externo e interno (metr-pole e periferia) e o empenho de convergncia para hipteses de tradi-o, a ponto de formar uma histria dos brasileiros no seu desejo de teruma literatura. Portanto, pode-se concluir que a categoria sistema emAntonio Candido , ao mesmo tempo, uma noo empenhada, porquecoligada a uma ideologia, a um projeto nacional de literatura, e um ins-trumento para explicar a formao dessa literatura no pas.

    Se desejarmos focalizar os momentos em que se discerne a formao de um sistema, prefervel nos limitarmos aos seus artfices imediatos, mais os que se vo enquadran-do como herdeiros nas suas diretrizes, ou simplesmente no seu exemplo. Trata-se,ento, (para dar realce s linhas), de averiguar quando e como se definiu uma conti-nuidade ininterrupta de obras e autores, cientes quase sempre de integrarem umprocesso de formao literria.4

    Diante desse grande enquadramento cultural, quepersiste como referncia fundamental para vrios cam-pos de estudos, o problema adquire hoje num mo-

    mento de crise das grandes identidades nacionais novssimas dimenses, especialmente ao se discutir a oportunida-

    de das colocaes dos primeiros grandes explicadores, voltados paraa busca e a explicao do Brasil como nao. Contudo, nas formulaesfundadoras de Antonio Candido no campo literrio, sob muitos aspec-tos insuperveis, desenvolveu-se toda a primeira estao acadmica de

    historiografia brasileira direcionada para o estudo da for-mao do nosso teatro. Os mestres desse grupo so,

    3 CANDIDO, Antonio. Intro-duo. In: Formao da litera-tura brasileira: momentos de-cisivos. So Paulo: Martins,1959, p. 28.

    4 Idem, ibidem, p. 26.

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    roindiscutivelmente, Sbato Magaldi e Dcio de Almeida Prado, da Uni-

    versidade de So Paulo.

    A grande estao culturalista de estudos teatrais

    A Dcio de Almeida Prado, professor, crtico teatral, escritor (SoPaulo, 1917 2000), deve-se cerca de uma dezena de livros dedicados literatura dramtica, histria e formao de inmeros pesquisadoresdo teatro brasileiro. Ele participou ativamente do chamado processo demodernizao teatral do pas; em mais de uma obra, tratando do proble-ma do desenvolvimento do teatro no Brasil durante o sculo XIX, Dciode Almeida Prado usou, fundamentalmente, a categoria sistema pro-posta por Antonio Candido.

    Joo Roberto Faria (professor da Universidade de So Paulo e, semdvida, um dos principais discpulos de Dcio de Almeida Prado), numensaio de sntese sobre a formao do teatro brasileiro, sublinha as rela-es existentes entre o discurso teatral de Dcio e o de seus companhei-ros de gerao:

    Em outras palavras, no romantismo que o teatro brasileiro se constitui como umsistema integrado por autores, atores, obras e pblico. Desse modo, semelhanade seus companheiros de gerao, Antonio Candido e Paulo Emlio Salles Gomes, queestudaram o processo formativo da literatura e do cinema em nosso pas, Dcio deAlmeida Prado procurou fazer o mesmo com o teatro, investigando o primeiro mo-mento ou o que Antonio Candido chamaria de momento decisivo em quehouve entre ns as condies intelectuais e materiais que puderam proporcionar umacontinuidade fecunda do trabalho cnico.5

    Na tentativa de compreender o desenvolvimento do teatro brasi-leiro, Dcio de Almeida Prado buscou seu momento inicial: o romantis-mo lhe pareceu um gnero dramtico e um movimento artstico-teatraldecisivo para o nosso teatro porque por meio deles se conseguiu colocarem prtica o complexo de elementos articulados, necessrios ao que oestudioso caracterizou como teatro verdadeiro e prprio.

    Nessa direo, os fundadores do teatro brasileiro teriam sido Gon-alves Magalhes, com a tragdia Antonio Jose ou O poeta e a Inquisio(1838), e o ator Joo Caetano, (Rio de Janeiro, 1808 1863), o Talma bra-sileiro, como destaca nosso autor, graas articulao sistmica que con-seguiu estabelecer uma certa relao entre autor, dramaturgia e ator/pblico. Todavia, a comdia de costume, que no Brasil nasceu com MartinsPena, teria sido a nossa nica tradio teatral6 possvel. Da que, emmais de uma obra de Prado, a comdia de costumes brasileira foi com-preendida no seu papel de protagonista na formao do teatro em umpas em busca de si prprio.

    Da mesma forma, ela foi cuidadosamente estudada no Panoramado teatro brasileiro (1962), livro clssico de Sbato Magaldi7 (nascido emMinas Gerais em 1927, crtico teatral, professor da Universidade de SoPaulo, historiador do teatro e membro da Academia Brasileira de Le-tras). Essa obra bastante representativa dos estudos sobre a origem doteatro brasileiro em termos literrios culturalistas. Centrada na histriada literatura dramtica, a busca de uma tradio teatral nacional

    5 FARIA, Joo Roberto. A for-mao do teatro brasileiro. In:O teatro na estante: estudos so-bre dramaturgia brasileira eestrangeira. So Paulo: Ate-li, 1998, p. 15 e 16.

    6 PRADO, Dcio de Almeida.Histria concisa do teatro brasi-leiro. So Paulo: Edusp, 1999,p. 138.

    7 Ver MAGALDI, Sbato. Pa-norama do teatro brasileiro. SoPaulo: Global, 1997.

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    elemento bsico do pensamento relativo formao teatral , pe emdestaque sua profunda conexo com a nossa comdia de costumes, comoser visto a seguir.

    A questo da comdia de costumes brasileira

    El teatro di costumbres en Brasil es el ms genuino ejempo sinoel nico de teatro nacional, escrevia em 1961 Walter Rela na intro-duo ao seu Teatro costumbrista brasileo8, segundo volume de uma co-letnea de tradues espanholas de grandes autores brasileiros.

    Efetivamente, na esteira dos estudos de Dcio de Almeida Prado eSbato Magaldi, a comdia de costumes considerada, pela quase tota-lidade dos estudiosos da histria do teatro brasileiro do sculo XIX, umgnero dramtico que alcanou originalidade e maturidade suficientespara constituir uma tradio teatral no Brasil. Ela teria sido o espaoadequado, no que tange ao exerccio de construo dramatrgica, paraaprendizado da escrita compositiva, pela relao de confronto que esta-beleceu entre autores de diversas geraes, de modo a sugerir a criaode uma tradio. Por outro lado, na comdia de costumes teria sido rea-lizada a sntese do universalismo e do particularismo, devido ao fato deque nela se aproximavam os modelos externos ou clssicos da comdia(dentre os quais sobressaiu a comdia nova, com seu eixo temticoamoroso explorado em mbito domstico) e a matria local (com tra-tamento de tipos e costumes localmente identificveis, em quadros vivosou em desfile, inmeras vezes festivos, quase sempre exageradamenteridculos).

    Como j foi discutido em texto anterior9, a essa sntese articulou-seainda, de modo recorrente, outro campo temtico, verdadeiro cnoneda comdia de costumes brasileira: a oposio entre campo e cidade (Cor-te e provncia, capital federal e interior, centro da cidade e periferia),operada com freqncia e com suaves atualizaes que mantiveram, noentanto, a sempre essencial positividade do campo, reserva de valoresmorais que se andavam perdendo nos raros mas atrativos centros urba-nos [idem] daquele longo perodo. Tal oposio, frise-se, permitiu apro-ximar veios de comicidade ridcula e rstica a conceitos e gracejos espiri-tuosos, mantidos estes ltimos na superfcie aparente e pitoresca de fe-nmenos que eram ligados, todavia, a radicais contradies internas denossa sociedade e, acima de tudo, oposio entre nacional e estran-geiro.

    O retrato sem trato da comdia brasileira

    Ao elenco de caractersticas mencionadas, deve-se acrescentar umltimo dado fundamental, a meu ver, especialmente derivado do empe-nho presente em tantos estudos de nossa histria teatro ou de nossadramaturgia: de modo predominante, as interpretaes clssicas da tra-dio teatral brasileira das comdias de costume a entendem como re-trato, algumas vezes inclusive como documento de costumes que contri-buiu para fixar. No entanto, estas comdias parecem ser feitas sobretudode fatos da cena, expedientes cmicos antigos e novos, movimentos eritmos diversos, msica: elementos que falam mais do teatro, e de seus

    8 Ver RELA, Walter (org.). Te-atro costumbrista brasileo. Riode Janeiro: MEC/INL, 1961.

    9 Ver RABETTI, Maria deLourdes (Beti Rabetti). Tem-rios do teatro cmico no Bra-sil: o urdimento da trama a-morosa entre moldura famili-ar e circulao urbana nas co-mdias de costumes ligei-ras. In: Teatro e comicidades 2:modos de produo do tea-tro ligeiro carioca. Rio de Ja-neiro: 7 Letras, 2007, p. 19-33.

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    rorecursos metateatrais, que de matria local caracterstica ou tpica, qua-

    dros sociais bem retratados, a ttulo de fixao de costumes.O olhar do historiador do teatro sobre o processo de formao

    oitocentista do teatro no Brasil, crivado pela normativa de gneros lite-rrios, pelo parmetro dos modelos estrangeiros, e pela defesa de umteatro nacional no qual colar imagens de realidade brasileira, tendeu arefutar, ou no deu a ateno necessria, a algumas formas de aproxi-mao entre teatro e msica como componentes formativos da experin-cia dramatrgica e cnica brasileira. Aproximaes, no entanto, que narealidade dos espetculos e no gosto do pblico eram a razo do sucessodo melodrama, em desvantagem para o drama romntico, transforman-do tantas tragdias em dramalhes. Mas, se presenas musicais con-triburam para a transfigurao de tragdias em dramalhes, pateti-camente melodiosos, ou rimbombantes, ou em melodramas opersticos,elas infiltraram-se tambm nas divertidas farsas e comdias de costumeonde ocuparam papis relevantes, temtica e estruturalmente.

    Grande parte da obra cmica de Martins Pena e de Joaquim Manoelde Macedo, por exemplo, atesta a excelente conjugao prosa e msicaalcanada em nossas comdias de costume, com vantagem para o rendi-mento cnico, a despeito da perda do enfoque do retrato da realidade,que resulta deformado.

    Se ento, como acredito, a concepo culturalista do desenvolvi-mento teatral brasileiro percebeu o teatro de costumes como retrato, aca-nhado, porm testemunho social, crtico, alegre e festivo, isso se deu prin-cipalmente porque nele perseguiu exemplos aproximativos da alta co-mdia de Molire e da comdia realista. Penso que, demasiadamentefocada na perspectiva classicista, determinada pela teoria do gnero, aconcepo culturalista da histria do teatro, norteada por modelos lite-rrio-dramatrgicos e no suficientemente voltada para o modo de pro-duo teatral do tempo da formao, submeteu-se aos limites ditadospelas vagas correntes da histria das idias e superfcie de seu jogo deinfluncias. Criou enquadramentos da realidade teatral do sculo XIXbrasileiro onde o teatro emergia com demasiada vida prpria, ou emdependncia quase que exclusiva da relao que estabelecia com as idi-as europias; parecendo se desprender dos fatos da cultura local quandoentendidos em seu sentido mais amplo. Mesmo considerando que mani-festos e programas mais ou menos guiados por modelos matriciais gera-ram importantes experincias locais de carter um pouco mais cannicoe constituram parte importante do teatro brasileiro em formao, tantoou mais relevantes e significativas foram a produo (dramatrgica,atorial e de cena) e a recepo que no conseguiam ou pretendiam afas-tar o teatro da msica, fazendo nele explodir o carter melodramtico, otom declamatrio, gerando um teatro de prosa banhado de infiltraes.Terreno em que floresceram muitas comdias de costume: retratos umtanto falsos, acanhados frente aos exemplares europeus, e marcados porfortes traos musicais.

    O trao musical da formao

    A co-presena de msica e teatro, no suficientemente considera-da nas anlises histricas dedicadas ao estudo da formao do teatro no

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    10 PRADO, Dcio de Almeida.Teatro de Anchieta a Alencar.So Paulo: Perspectiva, 1993,p. 121.

    11 ALENCASTRO, Luiz Felipe.Vida privada e ordem priva-da no Imprio. In: ALENCAS-TRO (org.). Histria da vidaprivada no Brasil Imprio: acorte e a modernidade nacio-nal. So Paulo: Companhiadas Letras, 1997, p. 47.

    12 Ver MAUAD, Ana Maria.Imagem e auto-imagem doSegundo Reinado. In: ALEN-CASTRO, Luiz Felipe (org.).Histria da vida privada no Bra-sil Imprio: a corte e a moder-nidade nacional. So Paulo:Companhia das Letras, 1997,p. 181-231. A viagem que D.Pedro realizara pela provn-cia fluminense no vero de1848, diz a autora, contribu-ra para ajudar a classe senho-rial a construir sua auto-ima-gem semelhana da imagemdo Imprio. E qual era essaimagem? A imagem do pr-prio imperador? (p.184). Paramais adiante afirmar: o Im-perador a imagem do Imp-rio nas exposies universais,e a fotografia possibilita essaidentificao. (p.197).

    13 Adelaide Ristori, clebreatriz italiana do teatro doRisorgimento, nascida de paisartistas (Friuli, 1822 Roma,1906), foi membro, nume tu-telar, da importante Com-pagnia Reale Sarda, institu-da por decreto real de 1820,mas que pouco relevo teve noteatro italiano da poca, sesua existncia e seus decretosforem comparados s pers-pectivas teatrais institucionaisreformadoras pensadas pelosjacobinos e s proposiesatoriais de Gustavo Modena.A Ristori, casada com o mar-qus Grillo, de Paris empre-endeu viagens pelo mundo,duas das quais contemplaramapresentaes na Corte do Riode Janeiro. Cf. COSTETTI,Giuseppe. La Compagnia RealeSarda e il Teatro Italiano dal 1821al 1855. Bologna: ArnaldoForni, 1979 (re-impressoanasttica, Milano, 1893)

    14 Carlotta Augusta AngeolinaCandiani nasce em Milo a 3de abril de 1820 e chega noBrasil em 1843, onde passa aviver, como cantora e atriz.Morre em 1890, no Rio de Ja-neiro.

    Oitocentos brasileiro, , ao meu ver, fundamental para compreender osentido e as vrias facetas que a lrica italiana apresentou ao manifestar-se no interior da comdia de costume. Ao levar em conta que o teatrolrico italiano encantava a Corte brasileira desde o perodo joanino, eque continuou sendo muito apreciado e cultivado pelo imperador D.Pedro II, o estudo das relaes entre msica e teatro daquele perodosolicita mais que nunca uma abordagem cultural e poltica. Nesta dire-o, porm, a discusso ditada estritamente por gneros literrios ouestilos de espetculo ou de atuao teatral resulta insuficiente ou mesmopouco til para a compreenso da formao do teatro em nosso sculoXIX.

    No Brasil do Oitocentos, o teatro nasce e se desenvolve sob os dita-mes do romantismo europeu, no sentido de que faz sistema tambm comaquela ideologia da formao de um teatro nacional, como se l nos prin-cipais estudos da bibliografia corrente. No entanto, no se pode deixarde levar em conta o fato que este romantismo chega e se realiza no Brasilde modo bastante particular. Pois, se, de repente, em 1836, chega aoteatro brasileiro, de cambulhada, como nos diz Dcio de AlmeidaPrado10, todavia no consegue interromper a avalanche dos dramas his-tricos diante dos quais a classe dirigente e os jovens intelectuais ba-charis vero reafirmado seu ambguo pertencimento a uma histriano limitada elite monrquica exclusiva do Novo Mundo; dramasde uma cena mais ampla em que os atores, agora brasileiros e negros emgrande parte, no adquirem ou assumem outra conscincia poltica queno aquela de sentido bastante restrito, isto patritico.

    O Segundo Reinado, que perdurou da declarao de maioridade,em 1840, at a proclamao da Repblica, em 1889, estabelecido apsum perodo de regncia em que eclodiram rebelies por todo o pas, al-canou alguma estabilidade. Os recursos monetrios e econmicos especialmente advindos da extino do trfico de escravos (em 1850, sobpresso da revoluo industrial inglesa, lembre-se) permitiriam elitedirigente e classe abastada da Corte e de algumas provncias a impor-tao de vrios bens, inclusive culturais. A entrada de pianos e de pro-fessores de msica e de canto fez com que fossem rapidamente conside-rados presenas obrigatrias em palcios, palacetes, solares ou casas ur-banas mais prsperas, nos saraus, nos bailes, como colorao da maissimples recepo. O piano, que era objeto de desejo dos lares patriar-cais11 do Brasil colnia e do primeiro Imprio e que se transformou,vale lembrar, em corriqueiro e indispensvel elemento de composio decena em tanta comdia de costume do Oitocentos brasileiro -, tornou-seento importante smbolo da modernidade possvel ao pas, e pareceuabundar subitamente nas casas mais importantes da Corte e das cidadesde provncia, onde preceitos e costumes reais chegavam junto com oimperador D. Pedro II em estudadas e freqentes visitas polticas, ou denegcios, sempre teis propaganda e reafirmao da imagem doImprio.12

    O imperador admirava a recitao de Adelaide Ristori13, que seapresentou no Brasil em duas temporadas, 1869 e 1874, e com a qual omonarca manteve correspondncia por muitos anos. Mas o imperadorapreciava muitssimo Augusta Candiani14, cantora lrica responsvel peloque teria sido uma verdadeira mania da Norma, de Bellini que tomou

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    roa Corte brasileira, onde viveu at sua morte. Teresa Cristina Maria das

    Duas Siclias, Bourbon de nascimento e esposa do imperador brasileiro,teria sido tambm a boa cantora e musicista, que alegrava o palciocom seus constantes saraus, batizara a filha de Candiani e teria obtidode D. Pedro um apoio econmico para a primeira temporada de estudosdo compositor Antonio Carlos Gomes em Milo, em 1863.

    Alis, qualquer referncia ao papel da msica na formao do tea-tro no Brasil do Oitocentos seria impensvel sem pelo menos lembrareste maestro compositor, o mais importante do sculo, nascido em 1836e morto em 1896: Carlos Gomes estudou na Itlia a partir de 1864, eobteve em Milo o ttulo de Maestro junto ao Conservatrio. Em marode 1870, apresentou no Scala a pera O guarany, com libreto extrado doromance indianista de Jos de Alencar. Certos indicadores relativos sua carreira e ao seu longo soggiorno italiano, com visitas regulares aoBrasil, ajudam a pensar nos fortes laos musicais, por vezes com colori-dos institucionais, entre Brasil e Itlia naquele perodo. Quanto ao libretode Antonio Scalvini, de 1870, diga-se que substituiu o aventureiro itali-ano Loredano pelo espanhol Gonzales e alterou o final: em lugar deuma grande inundao, o palacete devorado pelo fogo e desmorona,sem ferir, no entanto, a perdurao da imagem indianista romnticaresultante do sobrevivente amor entre Cecy e Pery.15

    A elite oficial, monrquica e burguesa, com seus projetos e realiza-es espetaculares, por meio de mecenato direto ou favorecimentos, naItlia e no Brasil, garantiu a vinda de importantes companhias lricas ede prosa italianas Amrica do Sul, com passagem obrigatria pela Cortedo Rio de Janeiro. Algumas destas companhias foram co-envolvidas emverdadeiras misses poltico-diplomticas. Um fenmeno que, certamen-te, teve papel fundamental na formao do espetculo e do pblico noBrasil do sculo XIX. Referimos Adelaide Ristori, da Compagnia RealeSarda, mas poderamos lembrar Tommaso Salvini, Augusta Candiani,Ida Edelvira, as bailarinas Maria Baderna e Emilia Bernacchi, que vive-ram ou estiveram vrios anos no Brasil (em alguns casos at a morte,como Candiani e Baderna) e que, ao menos no momento de partida daEuropa, possivelmente tiveram algum apoio oficial ou privado para agarantia da viagem. Mas, vai lembrado tambm que, nos anos mais fr-teis do Segundo Reinado, alm da presena de renomados artistas dalrica, da prosa e da dana, experincias menos ilustres e semqualquer tipo de chancela oficial fizeram conhecer a msi-ca italiana por meio de circuitos inesperados e imprevistos.

    A inegvel presena da lrica italiana na formaodo teatro brasileiro no se fez s de excurses ou misseselevadas, como as comumente referidas. Nesta direo,para compreender as vrias instncias que compem aexperincia teatral em formao no Brasil do sculo XIX,podem nos auxiliar em boa medida as consideraes feitaspor Giusi Baldissone sobre a provncia das maravilhasitaliana:

    Mas o que maravilha e encanta no tanto a passagemvercellese [Vercelli, cidade do Piemonte] de Carlota Marchionniem 1812, ou a de Adelaide Ristori em 1864, ou de Irma

    15 A pera O guarani estreouem 19 de maro de 1870, noScala de Milo, depois seguin-do para Florena, Gnova, Fer-rara, Londres, Vicenza, Tre-viso, Turim, Palermo, Cat-nia, Reggio Emilia, Lugo, Bue-nos Aires, Varsvia, Rio de Ja-neiro, Montevidu, Paris, SoPetersburgo e Moscou, numtotal de 231 apresentaes emoito anos. Segundo interpre-tao que de modo aproxima-do se repete em vrios sitesque circulam atualmente naweb, a obra de Carlos Gomescelebra o amor entre Cecy ePery, que transpe as diferen-as tnicas e culturais do ca-sal e carrega elementos sim-blicos da formao do Bra-sil. Disponvel em .Acesso em 15 jan. 2007.

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    Gramatica em 1896, quanto prpria forma de teatro proposta em seu conjunto:apenas a tragdia no ia ao encontro de contaminaes, a comdia, ao contrrio, eraproposta com a aproximao a formas do espetculo de variedade, ao teatro de bone-cos e a outras formas espetaculares que iam da montagem do balo aerosttico exibio de animais em jaulas, a jogos de magia e fantasistas [...]. Tudo isso, longe decaracterizar uma realidade provincial que no mantinha bem diferenciadas as for-mas baixas e as formas altas da representao teatral, ao contrrio, caminhava nadireo tpica assumida pelo teatro em todos os paises europeus: a da mistura dosgneros e das formas, a da espetacularizao das novidades, do prprio progresso dacincia e da tcnica. [...] nica exceo, em funo dos custos de montagem, o teatro depera, que freqentemente resultou decepcionante devido modstia dos recursosempregados.16

    Um quadro histrico contaminado de musicalidade

    Apesar das limitaes de toda ordem, a comdia de Martins Pena representa de fato omarco inicial da fixao dos costumes brasileiros, que so explorados por JoaquimManoel de Macedo, Jos de Alencar, Frana Jnior e Artur Azevedo, os principaiscultores do gnero, numa continuidade de trabalhos que vem at o princpio destesculo.Numerosos traos da comdia de Martins Pena reaparecem nos sucessores, conser-vando o seu eco e as qualidades mais autnticas. Pode-se afirmar que os textos de reaismritos que se distinguem na segunda metade do sculo passado nascem de umasugesto contida em suas farsas despretensiosas.17

    Nestes dois trechos de Sbato Magaldi, colhidos de sua detalhadaanlise das obras de um dos mais importantes dramaturgos brasileiros,esto assinalados os aspectos substanciais da pedra angular da nossacomdia de costume, lugar de fundao do teatro e meio de construoda tradio teatral brasileira, em virtude do papel decisivo desempenha-do pelo teatro de Martins Pena (Rio de Janeiro, 1815-Lisboa, 1848): afixao dos costumes brasileiros, a construo de farsas despretensi-osas, a emergncia de sucessores.

    No que se refere aos modelos inpiradores do autor, alm de ele-mentos estruturais e temticos da comdia nova, Magaldi e outros estu-diosos convocam os entremezes ibricos, mais que a alta comdia fran-cesa de Molire, cujos tipos psicolgicos Martins Pena no conseguiuimitar, reelaborar.

    Martins Pena foi bravo conhecedor e tambm exmio cronistafolhetinista do teatro lrico. So seus os folhetins publicados na sesso Asemana lrica do Jornal do Commercio, em que Pena analisou o espetcu-lo lrico da Corte, entre agosto de 1846 e outubro de 1847, cuidandotanto das questes de gnero como dos problemas de encenao nos palcosdo Rio de Janeiro. Mas, como veremos, sua relao com a lrica italianano se esgotou nas pginas dos folhetins: a lrica italiana foi motivo defundo de sua comediografia, permitindo, por exemplo, que a mania daNorma e a sensibilidade das almas provocada por Bellini protagoni-zassem a comdia O diletante, de 1844:

    Ato nicoSala em casa de Jos Antnio. No fundo, porta de sada; direita e esquerda, portas

    16 BALDISSONE, Giusi apudSGOTTO, Mario. La fabbricadelle meraviglie: teatro e spe-ttacolo nellOttocento a Ver-celli. Torino: SEB 27, 2003, p.13 e 14 (Lnea Teatrale 5).

    17 MAGALDI, Sbato, op. cit.,p. 61.

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    roque do para o interior. Rica moblia de mogno. direita, um piano, sobre o qual

    estaro vrias msicas, e esquerda, um sof, sobre o qual estar uma viola.18

    Dentro do tpico espao de gabinete da comdia brasileira doOitocentos, cerrado ponto de encontro do interior familiar, a sala nacasa do protagonista desta comdia de Martins Pena contm os elemen-tos tradicionais necessrios ao: portas que do acesso a espaos ain-da mais internos, uma porta de fundo para o contato com o mundofsico externo, o sof, o piano, smbolo da modernidade do ncleo fami-liar, e tambm um outro elemento fundamental, a viola, instrumentorstico, colocada em ponto oposto ao piano. O tema da oposio entrecampo e cidade, provncia e Corte, periferia e centro, se apresenta, deimediato, em seus elementos essenciais, musicalmente evocados pelonosso dramaturgo folhetinista da Semana Lrica. Os dois instrumentosmusicais, de fato, sero o trao principal dos personagens antagonistas:de um lado, Jos Antnio, o diletante da Corte, dominado pela maniada Norma, cantada por Augusta Candiani, que excita toda a cidade(recorde-se que este tema presente tambm no romance de Macedo, Omoo loiro), e leva-o a confundir arte e vida; de outro, Marcelo, o caipi-ra da provncia, um paulista dos sertes, comerciante rico, decidido,sincero, mas ignorante das regras do gosto e da elegncia da Corte e, oque mais importante para o rendimento da pea, do lugar em que seencontra em visita (a casa de um diletante fantico). Ao esprito musi-cal da lrica italiana, obsessivamente cultivada pelo alucinado Jos An-tnio, mas que Marcelo traduz como cantigas que no percebe, pre-fere a matria do fado, melanclico e corpreo, pra danar rasgadinho.

    Marcelo quer desposar Josefina, cujo pai, Jos Antnio justamente,coloca na sua balana, de uma parte, o dinheiro do pretendente, de ou-tra, seu to rstico modo de ser, a ponto de impedir que aprecie o quepara ele tornou-se no apenas objeto de conhecimento e deleite, masmotivo guia, como para um cego, de todos os minutos de uma vidadiletante. De conseqncia, tece insensatas consideraes sobre o modode resolver o grande problema de fundo o matrimnio da filha oproblema que toda a comdia de costume brasileira do perodo deve re-solver:

    Cena IIIJos Antnio (s) [...] O amigo Marcelo homem rico, honesto e bom, ainda querstico. Coitado, nunca saiu de S. Paulo! [a] primeira vez que vem Corte; andaespan[ta]dio. S uma coisa desgosta-me nele: o no gostar da msica. Levei- o ontemao teatro para ouvir a Norma e dormiu a sono solto durante toda a representao.Dormir, quando se canta Norma! Isto s faz um paulista dos sertes! Dormir quandose pode ouvir esse canto incomparvel do Cisne da Itlia! Infeliz mancebo! Belliniinimitvel, rei das almas sensveis, portento de harmonia, morreste, e to pouco nosdeixaste! Morreste... A terra te seja... melodiosa!19

    Que a situao, nesse caso, no seja de fcil resoluo pode-se bemdeduzir em funo dos caracteres ficcionalmente fixados: de um lado, arusticidade musical do duro caipirismo paulista e, de outro, a hiperblicae cega mania diletante de Jos Antnio. Os fatos se complicam mediantea rigidez de gostos musicais to diversos, que arriscaria imobilizar o jogo

    18 PENA, Martins. O diletan-te (1844). In: DAMASCENO,Darcy (org.). Martins Pena comdias. Rio de Janeiro: INL,1956, p. 215.

    19 Idem, ibidem, p. 216.

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    20 Ver ALENCASTRO, LuizFelipe, op.cit., especialmentep. 45 a 51.

    21 A configurao, contamina-da e danante do fado, quesurge do confronto da canopopular portuguesa com olundu brasileiro, confirma-da tambm pelos dicionrioscorrentes, como o Novo dicio-nrio Aurlio: verso eletrni-ca Positiva V. 5.11.70: 2 .Cano popular portuguesa,de carter triste e fatalista, li-nha meldica simples, ao somda guitarra ou do acordeo, eque provavelmente se originado lundu do Brasil colnia,introduzido em Lisboa apso regresso de D. Joo VI(1821). 3. Bras. No sc. XVIII,dana popular, ao som da vi-ola, com coreografia de rodamovimentada, sapateados emeneios sensuais.

    22 Vale a pena notar a im-plementao do carter sen-svel ao personagem simpl-rio, realizado por nosso au-tor, nesse momento, apenaspor meio de uma intervenode ordem vocabular, to den-sa quanto precisa: fadinho,diminutivo que exprime agra-do; rasgadinho, diminutivode rasgado, utilizado parao mesmo fim e referindo-se aoacompanhamento peculiar acertos instrumentos popula-res, como a guitarra, o violo,a viola de arame, e que con-siste em passar as unhas, su-cessiva e rapidamente sobreas cordas, sem as pontear.Dana executada ao somdesse acompanhamento. No-vo dicionrio Aurlio: verso ele-trnica Positiva V. 5.11.70.Mas, vale a pena notar, sobre-tudo, a corporeidade danan-te implicada na musicalidaderasgadinha, aqui recordadapelo caipira do interior Mar-celo.

    23 PENA, Martins, op. cit., p.217 e 218.

    24 Ver SCHWARZ, Roberto. Asidias fora do lugar. EstudosCebrap 3, So Paulo, Cebrap/Editora Brasileira de Cinci-as, 1973.

    entre os personagens, no tivesse nosso autor criado esta exagerada con-traposio com carter exclusivamente formal, musicalmente contra-pontstico, propiciador de intenso ritmo cnico. A confirmar que o em-penho maior formal, musical, e no apenas o de retratar, ou fixar, umquadro real, que no subsistiria frente qualquer realidade, mesmo quepara fins de crtica feroz, estaria o fato de que, quando se tornou fre-qente nas casas dos aristocratas e da pequena burguesia urbana daCorte, o piano j era utilizado para tocar msicas mais populares; almda pera, a msica e as danas afro-brasileiras, a modinha20. No entan-to, como e quanto Martins Pena tira vantagem musical de um argumen-to que evidentemente encontra lastro em prticas sociais da poca, pode-se ver no trecho que segue:

    Cena IVMarcelo [...] Tomara-me j em S. Paulo! (Senta-se no sof.)Jos Antnio Homem, goze primeiro os prazeres da Corte. No queira enterrar-seem vida no serto. V ao teatro ouvir Norma, Belisrio, Ana Bolena, Furioso.Marcelo No acho graa nenhuma. Umas cantigas que eu no percebo e que no sepode danar. No h nada como um fado.21

    Jos Antnio Que horror, preferir um fado msica italiana! ( parte:) O que faza ignorncia!Marcelo que o senhor ainda no ouviu um fadinho bem rasgadinho e bemchoradinho.22 (Pega na viola e afina, enquanto Jos Antnio fala)Jos Antnio Nem quero ouvir! No diga isto a ningum, que desacredita. Amsica italiana, meu amigo, o melhor presente que Deus nos fez, o alimento dasalmas sensveis.Marcelo Pois o meu alimento feijo com toucinho, fub de milho e lombo deporco.Jos Antnio Que blasfmia! ( parte:) o que faz a ignorncia!23

    Certamente, no se trata aqui de fixar um costume, mas sim deprovocar, por meio da exagerada contraposio de caracteres formaisto evidenciados, elaborados artisticamente a partir de matria local, ahiprbole que deriva desta verdadeira oposio por oxmoro, bem pre-sente naquela comicidade popular tradicional dos entremezes e das far-sas, verdade. Trata-se ao mesmo tempo de uma operao cultural fun-damental: no tanto espelhar a realidade, mas colocar o dedo numa desuas principais feridas, a que deriva da violncia do escravismo diantedo qual todo sonho liberal, cultivado por intelectuais ou diletantes espi-rituosos, sempre obrigado a reconhecer seu prprio avesso. Quanto inteno ou capacidade de espelhamento, no mximo, esta espcie decomdia musical oferece um retrato invertido, que diverte levando cenao ponto crucial da mais profunda contradio oitocentista do Brasil: so-nhar uma realidade de inspirao liberal e viver a evidncia da escravi-do, diante da qual todo homem livre v-se constringido a enganar-secontinuadamente e no pode deixar de reconhecer que se encontra numacondio privilegiada, que se situa, afinal, sempre fora de lugar.24

    No deixa de ser uma vida feita teatro aquela com que joga cenica-mente Martins Pena, justamente graas predominante impostaomusical. A sua torna-se assim metateatralidade trabalhada sobre o rit-mo, numa comdia que termina por se confundir com um melodrama,

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    rocom direito a uma pattica morte final. A leitura das ltimas cenas

    interessante para avaliar o envolvimento do autor na calibrao do rit-mo com o qual, na verdade, elabora a inteira comdia, de ato nico (najusta medida da durao adequada para sua funo cnica, prxima ado intermezzo musical, no percurso da apresentao espetacular sria,lrica ou no):

    Cena XVIIIJosefina [...] (Quando volta para sair, aparece-lhe porta D. Perptua comdois filhinhos pela mo) Quem ?Perpetua, entrando Perdoe-me, minha senhora, se a venho importunar...Josefina, com bondade No me importuna. Se quisesse ter a bondade de dizer-mequem ?Perpetua Sou uma desgraada que venho implorar a sua bondade e compaixo, epor[que] sei que est nas suas mos o no ser eu mais infeliz do que sou...Josefina Quem ser?Perpetua Como eu, a senhora moa e inexperiente, e como eu, tambm pode serenganada...Josefina Ah!Perpetua No me queixo; fui culpada. Abandonei aos meus para seguir um prfi-do, mas meus filhos, meus inocentes filhos, que culpa tm dos meus desvarios? (Obri-ga-os a ajoelharem-se.) Eles vos pedem pela minha voz que no lhe roubeis seupai... (Aqui aparece porta Antnio, que vendo o que se passa, pra sur-preendido.)... que talvez algum dia, arrependido, ainda se compadea deles...

    Cena XIXJos Antnio, caminhando para frente Bravo! Bravssimo! (As duas surpre-endem-se; os pequenos conservam-se de joelhos.) Continuem, eu acompanho.(Vai para o piano.)Perpetua Ah!Josefina Continuar o qu, senhor?Jos Antnio Pois no o dueto da Norma que estavam cantando?Josefina Qual dueto! Que loucura!Jos Antnio, caminhando para ela filha, pois eu pensei que ias cantar. Vi estesdois pequenos de joelhos, julguei que tu ias fazer de Norma e ali a senhora de Adalgisa...Josefina E no se enganou de todo. Somente trocou os nomes: aqui a Adalgisa soueu, e a senhora a Norma, porque a trada e aband[onada] pelo falso...Jos Antnio Pollione?Josefina Qual Pollione! Pelo Dr. Gaudncio!Jos Antnio Hem? O que ests dizendo?

    Cena XXIEntra um pajem com uma carta, que entrega a [Jos] AntnioPajem Esta carta que acabam de trazer para o senhor. (Entrega a carta.)Jos Antnio, abrindo a carta Com sua licena. (Lendo em voz alta:) Meuamigo, dou-lhe a mais triste e infausta nova que se pode dar a um diletante. (Dei-xando de ler:) O que ser? (Lendo:)Fecha-se o nosso teatro e a Companhia Italianavai para a Europa. (Jos Antnio acaba de ler a carta; fica por alguns instan-tes trmulo, levanta os braos, d um pungente gemido e cai morto.)Todos Ah! (Merenciana abaixa para socorrer Antnio. Grupo.)Gaudncio, de joelhos, junto de Jos Antnio Est morto!

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    Todos Morto! Que desgraa! (Grupam-se em redor do corpo de Antnio e caio pano)[FIM]25

    A modulao cmica musical inteiramente melodramtica desteato nico do nosso folhetinista de teatro lrico, fundador da tradio dacomdia de costume brasileira, criador ou recriador dos recursos teatraismais importantes depois utilizados por tantos outros autores at o finaldo sculo XIX, emblemtica de uma caracterstica presente em toda aobra de Pena e que prosseguir, mais ou menos fortemente, na produocmica em que a msica foi tema importante ou estrutura fundante:composio teatral voltada para a gerao de intermezzi na noitada doespetculo srio e elegante, que tambm satisfazia o pblico da classemdia urbana paulatinamente em formao no Rio de Janeiro. Dra-maturgia considerada sem pretenses, distendida por um nico ato, es-crita pensando justamente no lugar e na durao de sua colocao emcena: os intervalos, ou ao final da obra sria que era o ponto forte, se nodo gosto, ao menos do projeto de teatral nacional civilizador.

    Alm de criar um bem sucedido e funcional sistema, a comdia decostume de Martins Pena, ainda quando buscou elaborar, gradualmen-te, uma comediografia mais empenhada, mais sria e realista, jamaisalcanou, no desenvolvimento de nossa tradio teatral, um lugar dehonra no seio do projeto iluminista ilustrado. Mas, extremamente musi-cal e teatralizada, esta espcie inicial de teatro musicado ofereceu festivi-dade popular e jogo farsesco com nossas piores caractersticas ou condi-es mais problemticas, devidas, como vimos, situao de privilgio,de auto-engano contnuo e necessrio para sobreviver, com a liberdadepossvel, em convvio com a escravido. Comdias de costumes com tan-to de musicalidade que, tambm por isso, encontraram o gosto do pbli-co e assim realizaram uma certa continuidade teatral espetacular noBrasil do sculo XIX.

    A capacidade de Martins Pena de observar esses costumes e ope-rar artisticamente, por aproximaes de opostos, desnudando falsas apa-rncias e descobrindo o avesso da medalha, com expedientes cmicosteatrais e musicais, trar sua grande contribuio para a constituio deuma comdia de costume brasileira que nele no se torna tanto um refle-xo passivo ou realista da matria local, colocada em confronto com asperspectivas externas, mas escrita justamente como matria de cena,como obra cmica intensamente teatralizada. Os sucessores deverofazer suas contas com um fundador desse gnero e nvel e, alm de co-lher e reformular as sugestes destas experincias iniciais to farsescasquanto melodramticas, e decisivas para o teatro em formao no pas,tero a rdua tarefa de se enderear para um modelo mais alto decomdia e de teatro: a comdia de costume realista no Brasil, como vere-mos, dever confrontar-se com esta tradio de teatro cmico musicado.

    Represamento musical na alta comdia realista

    Por meio das comdias de Jos de Alencar (Cear, 1829 Rio deJaneiro, 1877) romancista indianista de O guarani (1857), Iracema(1865), Ubirajara (1874) e dramaturgo realista de Rio de Janeiro, verso e

    25 PENA, Martins, op. cit., p.233, p. 236 e 237.

    26 Joaquim Manuel de Macedo(Itabora, 1820 Rio de Janei-ro, 1882). Autor fecundo, degrande sucesso de pblico, cu-jo romance mais conhecido A moreninha (1844). Situadopelos estudiosos da formaodo teatro brasileiro na linha decontinuidade entre MartinsPena e Jos de Alencar, parano falar de Arthur Azevedo,a musicalidade esfuziante desuas comdias de costume(lembre-se A torre em concurso(1863), a ttulo de exemplo)pode corroborar as considera-es do presente texto.

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    roreverso e O demnio familiar (1857) , o projeto realista, primorosa expe-

    rincia da ideologia ilustrada traduzida na percepo do teatro comomisso, foi colocado na cena de nossa formao, aliando de modo par-ticular, e no sem contradies, o particular e o universal, com o mritode cruzar as formas de tratamento da relao amorosa presente na co-mdia nova com os novos modelos do amor romntico, minuciosamenteanalisado e resolvido, no entanto, num matrimnio ditado por preceitosmorais prprios da constituio da famlia brasileira, ento estruturadaa meio caminho entre os modelos patriarcal e burgus. Nessa dramaturgia,a musicalidade fluente na prosa cmica de Martins Pena e de Macedo26

    ser estancada e reduzida a papis secundrios, principalmente por meioda presena do raisonneur.

    No que se refere ao projeto realista, entre os anos cinqenta e ses-senta do sculo XIX, nos encontramos em ponto nodal da formao tea-tral e para compreender o papel da msica e com ela o da presenaitaliana nesse momento, fundamental observar o lugar a ela reservadona pea O demnio familiar, a mais importante comdia de costume rea-lista brasileira.

    No emblemtico O demnio familiar, como a ela parece referir-seDcio de Almeida Prado27, uma comdia em quatro atos de 1857 quepode relacionar Alencar tradio da comdia de costume, o autor seaproximou com mais eficcia que em outras obras cmicas do projetorealista de teatro empenhado e civilizador, ao mesmo tempo em quemelhor realizou a ambio de compor alta comdia, segundo o modelofrancs da comdia burguesa moderna. importante frisar desde logoque, seja em relao ao argumento da pea, seja pela resoluo formalda obra, Jos de Alencar alcana uma maturao que, ao sintetizar tosignificativamente os elementos mais importantes do projeto realista noBrasil, termina por alcanar o ponto mais alto daquele carter ilustradoe civilizador, liberal e burgus, ento possvel em terra e teatro brasi-leiros.

    A dramaturgia, os folhetins, as idias teatrais em geral de Jos deAlencar se inserem limpidamente no universo mental e cultural delinea-do por Antonio Candido e por ele denominado conscincia amena doatraso. Em perspectiva realista liberal, ao meu ver, a tessitura de O de-mnio familiar, encenada no mesmo ano em que foi escrita, no TeatroGinsio Dramtico do Rio de Janeiro, teatro depositrio das maiores ex-perincias cnicas brasileiras neste mbito, o exemplo mximo das pos-sibilidades e dos limites do movimento teatral realista traduzido em co-mdia; limites que ao final dos anos sessenta ainda eram insuperveis,dada a continuidade modernizada do sistema escravista, elementodeterminante da configurao do perfil do pas durante todo o sculoXIX, como bem demonstra Alencastro:

    o escravismo no se apresenta como uma herana colonial, como um vnculo com opassado que o presente oitocentista se encarregaria de dissolver. Apresenta-se, istosim, como um compromisso para o futuro: o Imprio retoma e reconstri a escravidono quadro do direito moderno, dentro de um pas independente, projetando-a sobre acontemporaneidade.28

    O demnio familiar, curioso protagonista cmico e ridculo da co-

    27 Ver PRADO, Dcio de Al-meida. Teatro de Anchieta aAlencar, op. cit., p. 299-344.

    28 ALENCASTRO, Luiz Felipe,op. cit., p. 17.

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    29 ALENCAR, Jos de. O de-mnio familiar (1857). In :AGUIAR, Flvio. (org.) An-tologia do teatro brasileiro: aaventura realista e o teatromusicado. So Paulo: Senac,1998, p. 99 e 100. Engono:a escolha do vocbulo no casual, mas jogo de palavras,a indicar tambm uma poss-vel crtica sutil dana e aodivismo nela presente. En-gono, de fato, sugere per-nas que se dobram, extrema-mente maleveis, mas tam-bm aparelho, mecanismo. Eremete hiptese de crtica,rebaixadora, do movimentocorpreo danante. Vale apena lembrar a grande pol-mica gerada pelo divismo de-corrente da presena protago-nista das bailarinas no balromntico e do grande espa-o que os espetculos de dan-a comearam a ocupar, emmuitos momentos, assustan-do at mesmo os dramatur-gos do teatro de prosa. Foi ocaso, na Itlia, do autor daconhecida A morte civil (1861),Paolo Giacometti. Autor decompanhia, que trabalhoupara Compagnia Reale Sardae escreveu para Adelaide Ris-tori, escreveu em 1841 Il poetae la ballerina, uma pea-mani-festo em que atribuiu ao fas-cnio da bailarina, de seu cor-po em movimento sobre a ce-na (que neste caso teria obser-vado no que chamou triun-fos de Fanny Cerrito) no es-petculo de dana, a decadn-cia do pblico do teatro deprosa.

    mdia de costumes realista de Alencar, o tpico moleque (o vocbulodicionarizado diz: quimbundo, lngua banta africana: menino; negrinho,jovem domstico, indivduo sem palavra, canalha, velhaco, demnio) denome Pedro, escravo domstico, propriedade de nhanh Carlotinha (iai,sinh, expresso com que os escravos se dirigem a suas senhoras), desti-nado a desenvolver inmeras atividades, dentro e fora de casa: limparquartos e tapetes, servir o ch na sala de visitas, andar pra l e pra c, acumprir pequenos afazeres, realizar pequenas despesas, entregar milcoisas, dentre as quais cartas e bilhetes de todo tipo, mas especialmentede amor. Pedro sabe um pouco de italiano, que, como todo o resto, foiaprendido de memria, principalmente em funo da tarefa de entregaras flores que seu patro envia danarina do teatro, mas tambm emmeio ao rumorejo da gente elegante que caminha pela Rua do Ouvidor,com suas vitrines cheias de objetos ltima moda francesa e cujos sons emovimentos o moleque traz pra o interior da casa, embalados no ritmovivaz de sua fala e de seu corpo. As pessoas saem dos cafs ou do teatro,e pela estrada ecoam as rias mais populares da ltima pera encenada,os jovens se apaixonam pelas bailarinas italianas e mandam flores, demodo que nosso Fgaro pode-se permitir tiradas de cena moderadas eespirituosas como esta:

    Cena VPedro, CarlotinhaCarlotinha J escrevi! Ah! Mano no est!... Pedro!...Pedro- Nhanh!Carlotinha Que fazes tu a?Pedro Oh! Pedro no est to bom hoje, no; senhor est zangado.Carlotinha Por qu? Por causa de Henriqueta?Pedro Sim. Pedro fez histria de negro, enganou senhor. Mas hoje mesmo tudofica direito.Carlotinha Que vais tu fazer? Melhor que estejas sossegado.Pedro Oh! Pedro sabe como h de arranjar este negcio. Nhanh no se lembra, noteatro lrico, uma pea que se representa e que tem homem chamado senhor Fgaro,que canta assim:Tra-la-la-la-la-la-la-la-tra!!Sono un barbiere di qualit!Fare la barba per carit!...Carlotinha (Rindo-se.) Ah! O Barbeiro de Sevilha!Pedro isso mesmo. Esse barbeiro, senhor Fgaro, homem fino mesmo, faz tantacousa que arranja casamento de sinh Rosinha com nhonh Lindrio. E velho doutorfica chupando no dedo, com aquele frade D. Baslio!Carlotinha Que queres tu dizer com isto?Pedro Pedro tem manha muita, mais que senhor Fgaro! H de arranjar casamentode senhor moo Eduardo com sinh Henriqueta. Nhanh no sabe aquela ria quecanta sujeito que fala grosso? (Cantando:) La calunnia!...Carlotinha Deixa-te de prosas!Pedro Prosa, no; verso! Verso italiano que se canta!Carlotinha (Rindo.) Tu tambm sabes italiano?Pedro Ora! Quando senhor moo era estudante e mandava levar ramos de flor danarina do teatro, aquela que tem perna de engono, Pedro falava mesmo comopatrcio dela: Un fiore, signorina!29

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    roComo se pode ver, nosso demnio familiar emblema tambm, e

    de no pouca monta, do mesmo circuito promotor de co-presenas deespetculos musicados, entre Europa e Brasil, a que j remetemos: o quepermitiria, neste caso, a multiplicao da referencialidade da msica,devido declinao musical de experincias artsticas anteriores basea-das na obra paradigmtica de Beaumarchais.30 A conciso realista deAlencar, no entanto, no tira proveito destes veios musicais anunciados,que ficaro retidos na cena referida.

    A memria de Pedro, campo preferencial a partir do qual acionarsua vivaz inteligncia e idear planos imediatos de sobrevivncia e decuriosa e controlada ascenso (seu nico sonho , preservada sua condi-o escrava, tornar-se cocheiro de nanh), guia o seu discurso e todo oseu corpo, sempre de modo esperto e veloz, pela casa e pelas ruas, emsuas constantes escapadas de repreenses e bastonadas, sempre que fazhistria de negro, como ele mesmo diz, enganando seu senhor. Eser a mesma linguagem corprea extremamente gil deste Fgaroalencariano a trazer um pouco daquele mundo externo, aberto e todomovimento, de praas e ruas da Corte do Rio de Janeiro, para o internoquase imvel desta pequena famlia burguesa, toda intimidade e confi-dncias, que mantm, porm, como nos far ver a trama da pea, forteslaos com a casa grande patriarcal. A casa citadina, modesta casa bur-guesa da Corte, onde habita e trabalha o demnio familiar, falso Fgaroe verdadeiro escravo, o lugar que custodia os negcios sociais, econ-micos e sentimentais. Ali deve encontrar seu lugar tambm este Pedro,todo vrtices e piruetas fsicas e verbais, ao qual a ausncia de identida-de prpria no consente o uso da lngua em primeira pessoa. O escravodomstico, quando fala, diz sempre, referindo-se a si mesmo, ele,Pedro, a exprimir, no cerco da memria gerada pela habitualidadeconsentida, a sua conscincia possvel, derivada de uma existncia queconsiste no ser exclusivamente propriedade de outrem.

    Personagem importante, Pedro uma espcie de protagonista savessas, que se sustenta num frgil equilbrio at o momento final da altacomdia de costumes de Jos de Alencar, pois que, afinal, o Fgaro damais importante comdia realista de costumes brasileira personagemreduzido ao espao de uma memria (sensvel e corprea) no original,transfigurada para fins de sobrevivncia. E nele Alencar ir concentrara musicalidade calculada na medida para o tom srio e conciso adequa-do ao modelo da alta comdia. Comparativamente, resulta que a experi-ncia lrica resta bastante circunscrita, coloratura irrisria, destinada asufocar junto com a radicalmente invertida punio impingida ao per-sonagem no encerramento da pea. Encerramento, alis, em completaconcordncia com aquela modernizao destinada a projetar o siste-ma escravo para o futuro, como j referido.31

    Pedro, reduzido figura na longa conversao que constitui e dsentido aos demais personagens, contraposto ao protagonista razo-vel, todo bom senso, de calmos e longos discursos, temperados, plenosde lgica e boa moral burguesa, Eduardo. O protagonista srio da altacomdia de estampo francs adequada realidade brasileira para aju-dar a civiliz-la em moldes modernos tem o papel de primognito, irmomais velho de grande envergadura moral e social: substituto do velhopai, ampara a unio familiar, prov a sua continuidade e, com sabedoria

    30 Il Barbiere di Siviglia umapera cmica de GioacchinoRossini com libreto de CesareSterbini, baseado na pea deBeaumarchais Le Barbier deSville, de 1775. Ao lado de LeMariage de Figaro, de 1784,colocada em pera por Mo-zart, Le nozze di Figaro, LeBarbier composio drama-trgica de Beaumarchais his-toricamente referida comopea teatral que, pela primei-ra vez, admite, como obra s-ria de alta comdia, a possi-bilidade de efetivo protago-nismo exercitado por parte deum personagem de classe su-balterna. A conciso realistade Alencar, no entanto, notira proveito desses versosmusicais anunciados, que fi-caro retidos na cena refe-rida.

    31 por isso que a liberdadefinal concedida por Eduardoa Pedro vista por Alencarcomo punio: uma gravepunio destinada ao mole-que escravo pela mo (e pelasidias) do raisonneur brasilei-ro, digno, socialmente sensa-to, espirituoso e elegante, masque mantm a fora herdadado pai patriarca quando deveresolver problemas decisivoscomo aqueles procurados porPedro, a quem agora cabertotal responsabilidade pelosprprios atos, como bem fri-sa o ex-senhor.

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    32 FARIA, Joo Roberto. Idiasteatrais: o sculo XIX no Bra-sil. So Paulo: Perspectiva,2001, p. 155. Mais adiante,dir Joo Roberto que almde Machado, Alencar, LuisLeito e Joaquim Manoel deMacedo, vrios escritores eintelectuais importantes[...]manifestaram-se sobre a situ-ao do teatro brasileiro nosanos que se seguiram ence-nao de Orphe aus Enfers, noAlcazar, p. 160.

    sem par, administra do incio ao fim da comdia a trama amorosa dajovem irm Carlotinha e o restrito crculo de existncia do escravo Pedro.

    Eduardo, o protagonista elevado da alta comdia, realista, brasi-leira, sonha alturas que no consegue alcanar, em funo de um apa-rentemente duplo protagonismo constitudo base de um espelho inver-tido, e sobretudo porque a trama mantm-se suspensa, presa do incioao fim da pea aos fios entretecidos por uma exclusiva, contnua, ele-gante e etrea conversao moral, liberal e exemplar, que praticamenteno varia o tom e no se faz jamais ao. Na linearidade dessa prosdia,o jorro musical anunciado fica contido e se restringe a aquelas pequenasdoses de suave e pitoresco sabor, destiladas pela traquinice do Fgaroescravo amoroso aqui referidas.

    E no poderia ser de outro modo, pois que a comdia de Jos deAlencar, ali onde procurou soerguer as aspiraes civilizadoras do tea-tro brasileiro em formao no sculo XIX, bem sob os ditames dos ideaisburgueses, e devendo, para tanto, retratar e ao mesmo tempo propor oque seria um pas melhor porque moderno, exprime, como foi dito, oponto mximo da contradio prpria daquele querer formar-se no scomo o espelho do outro, mas tambm com o espelho do outro, que,nesse caso, resulta em espelho diverso. De sua superfcie as idias libe-rais do momento escorrem como gua e perdem p na estilhaada reali-dade nacional, escravocrata, sulcada de modo profundo por seus con-trastes extremados.

    A musicalidade reanimada do final do sculo

    O retrato parcial e invertido construdo pela comdia realista decostume no Brasil parece indicar que as experincias iniciadas com otrabalho farsesco empreendido por Martins Pena teriam chegado a ummomento crucial, segundo termos do projeto iluminista. Demonstra-ouma significativa passagem do malogro da encenao de O Jesuta deJos de Alencar em 1875, pois para tristeza do escritor, a encenao foium enorme fracasso. Depois de dois espetculos, no havia mais pblicointeressado no drama histrico concebido para glorificar a luta pela in-dependncia no pas e na mesma noite em que O Jesuta estreava, a 18de setembro, estavam em cartaz as operetas Orphe aus Enfers e La fille deMme Angot.32

    Para a perspectiva ilustrada, o paulatino sucesso do teatro musicadopareceu indicar um dos principais motivos do que via como a decadn-cia do teatro nacional. Uma falncia que parecia poder abarcar a inteiraexperincia da produo cmica teatral brasileira, no fosse o fato queesta, sempre sob o perfil da comdia de costume, voltava a ligar-se complenitude msica que a ela sempre estivera bastante prxima, parte adensa mas breve experincia realista.

    De fato, antes que a comdia perdesse totalmente o lugar conquis-tado durante o processo de formao do teatro brasileiro, novamenteteatro e msica estes dois mundos artsticos que o projeto teatralcivilizador, na dialtica entre grandes experimentos dramatrgicos e gostodo pblico, no parecia querer ver coligados aproximaram-se nova-mente nos ltimos anos do sculo, em virtude especialmente da enormee divertidssima criao dramatrgica espetacular de Arthur Azevedo

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    ro(So Lus do Maranho 1855 Rio de Janeiro 1908), um de nossos mais

    importantes dramaturgos, autor de inmeras obras teatrais, verdadeirohomem do espetculo, jornalista e crtico, do qual se pode dizer que te-nha criado o teatro de revista brasileiro e consolidado a possibilidade dacomdia musical de costumes por meio de uma nova relao por eleestabelecida entre teatro e msica popular.

    Arthur Azevedo o autor de uma das mais conhecidas obras doteatro brasileiro do Oitocentos, A capital federal, de 1897, por ele definidacomo comdia opereta de costumes! Sua maestria na nova reunio demsica e teatro nos ltimos anos do sculo durante o qual o teatro brasi-leiro veio se formando finalmente estabeleceu um sistema bastante sli-do e capaz de articular, de modo intensamente produtivo, autores e com-positores, dramaturgia, cena e pblico. Gerou uma produo espetacu-lar cmica que, ao imitar, parodiar, traduzir e recompor os recentssimosmodelos do teatro popular europeu (da opereta revista), uniu matriauniversal (o teatro parisiense, neste perodo, era o centro que acolhia efazia fervilhar experincias espetaculares populares de boa parte daEuropa) e matria local, de maneira totalmente nova no Brasil. Criouuma espcie de dramaturgia cnica avant la lettre, feita de matria tea-tral e musical, de fatos do dia radicalmente transformados, porm, emfatos de cena, num ritmo de criao jamais visto anteriormente por par-te de um autor brasileiro. Criao que alimentou o profissionalismo detrabalhadores teatrais, de modo a que se pudesse atender a demandados teatros cheios de uma cidade que vivia intensamente a instauraoda repblica e a virada do sculo: momento e lugar em que o chamadoteatro de evaso encontrou um modo de reatar o dilogo com a longatradio da nossa comdia de costume, por onde alguns files damusicalidade italiana, at ento, se infiltraram.

    A formao do teatro brasileiro comoformao do teatro musicado

    O que deve importar na perspectiva que se adotou para este estu-do, a de compreender a formao teatral no Brasil e a participao itali-ana, por meio de presenas musicais insuspeitadas, ou aparentementeno dominantes no teatro de prosa, o fato que, mesmo que a comdiade costume seja tradicionalmente considerada gnero menor, como omelodrama por exemplo, com o qual manteve no Brasil contatos interes-santssimos, ela desenvolveu, sob formas diversas e durante todo o Oito-centos, o importante papel de nos ajudar em nossa formao, ou na ne-cessidade de reconstruir continuadamente nosso desenvolvimento paraexplicar a ns mesmos.

    Se, de fato, entre ns, jamais se expressou como gnero puro, sejamais constituiu um retrato verdadeiro e prprio da sociedade brasilei-ra, se no impulsionou de modo suficiente uma continuidade de tradi-o, a comdia de costume correspondeu ao gosto do pblico ento emvias de formao e contribuiu, especialmente em suas constantes experi-ncias de contaminao entre msica e teatro, para criar aquele mnimode tradio teatral com base na qual a idia de formao, de desenvolvi-mento, compreende a de transformao e contnua adequao smutveis realidades locais: uma tradio, de todo modo, muito particu-

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    lar, onde o espelhamento alcanou sempre um frgil retrato e encontroudificuldade para fixar tipos, costumes, ou uma realidade local determi-nada, fazendo resultar quase sempre quadro muito aberto, profunda-mente teatralizado e musical.

    No que se refere sua relao com a msica, vale notar, foi habitu-al que nos casos melhores jamais tenha eliminado uma presena musicalmarcadamente italiana por grande parte do sculo, at a constituio deum teatro finalmente reconhecido como teatro musicado; o estabelecidopor Arthur Azevedo, inspirado sobretudo nos gneros populares que,como dissemos, encontravam ento fervida acolhida em Paris, num fi-nal de sculo em que tambm na Frana o melodrama se fazia em m-sica, como ocorreu marcadamente durante todo o sculo XIX italiano.

    Um teatro musical sui generis esteve presente durante todo o scu-lo XIX no Brasil, e seu papel fecundo e combativo, seguramente menosilustre e elegante que o das manifestaes teatrais mais elevadas, desen-volveu uma crtica social, feita de pardia, da mistura da diversidade deritmos, dos fatos do dia reinventados, feita de metateatro. Esta experin-cia acumulada no seio do processo oitocentista de formao do teatrobrasileiro foi relativamente longa e permitiu, aps a breve experinciarealista, contundente mas intervalar, o florescimento de tanta opereta erevista (lembre-se da comdia opereta de costumes de Arthur Azeve-do), e j nos primeiros decnios do sculo XX soube se transformar emcomdia ligeira, oferecida ento a mais amplas camadas de pblico queo desenvolvimento da comdia de costume musical contribuiu para for-mar. Por isso, pode-se dizer que, nos primeiros anos do sculo XX, acidade do Rio de Janeiro foi ela tambm uma festa, mesmo submetidaa uma ainda pesada memria da escravido que ento se acreditavaencerrada de fato, pela Lei urea de 1888.

    Nesta direo, vale notar ainda uma vez que o melodrama, no Brasil,no se fez somente graas grande lrica, mais ou menos tutelada ofici-almente, atravs das companhias italianas que visitaram a Corte brasi-leira durante todo o sculo, mas aproximando-se da fecunda comicidadeespetacular de nossos melhores autores, como foi o caso de Martins Pena,infiltrou-se em nossas comdias de costume.

    E como o teatro do Oitocentos viveu a contradio principal quefundava a sociedade brasileira em formao, e j que da fundamentalpresena italiana neste teatro, atravs da msica, se falou, vale a penarecordar, a ttulo de concluso, que a 27 de setembro de 1889 um anoe meio depois da Lei urea, a lei por meio da qual a monarquia brasilei-ra, sob forte presso externa, decretaria o fim da escravido, e apenasdois meses antes da proclamao da Repblica subiu ao palco doTeatro Imperial D. Pedro II (conhecido como Teatro Lrico) uma obraespetacular emblemtica para o sentido de nossa formao teatraloitocentista: a pera que Carlos Gomes dedicou princesa Isabel, LoSchiavo, composta na Itlia um ano antes, com libreto de Paravicini, ex-trado do romance do Visconde de Taunay, que girava em torno de eixoamoroso que envolvia um casal de ndios escravos, Ilara e Iber, eAmrico, jovem fidalgo.

    Mas, o estudo das relaes entre msica italiana e formao doteatro brasileiro no Oitocentos tem ainda muitos caminhos a percorrer, eacredito que, de modo orgnico, dando cada vez mais ateno diversi-

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    rodade de projetos e experincias de teatro vividos na complexa e multi-

    facetada sociedade da poca, e menos s sugestes de modelos, gnerosou estilos, possa-se melhor compreender as chamadas influncias cultu-rais ou artsticas que atuaram naquele processo. Quero dizer que a m-sica italiana no Brasil do sculo XIX foi significativa a ponto de permitirfalar de sua efetiva co-presena no processo de formao de nosso tea-tro. No apenas porque oficialmente, ou segundo determinados mode-los, influenciou o teatro lrico brasileiro por meio de participaes tem-porrias de muitas companhias lricas, financiadas para que realizas-sem turns alm-mar. Mas, porque a msica italiana contaminoumarcadamente nosso chamado teatro de prosa e contribuiu de fato parauma insistente interao entre msica e teatro durante aquele sculo. Oque pode demonstrar, numa concepo mais ampla de teatro musicadono Brasil, que seu nascimento e sua formao tiveram importantes mo-mentos constitutivos, decisivos, durante todo o decorrer de nossa forma-o teatral oitocentista.

    Publicao autorizada pela autora em dezembro de 2007.