Tempo e dispositivo no Documentário de Cao Guimaraes

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Consuelo LinsTempo e dispositivo no Documentário de Cao Guimaraes

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  • Tempo e Dispositivo nos Filmes de Cao Guimaresi

    Consuelo Lins

    Os filmes de Cao Guimares expressam de forma exemplar um cruzamento e

    uma circulao cada vez mais intensos entre documentrio e arte contempornea,

    domnios at pouco tempo distantes, e mesmo hostis entre si. Cineastas que trabalham

    prioritariamente no documentrio criam instalaes para serem expostas em museus e

    galerias ao mesmo tempo em que artistas expandem suas criaes para o campo das

    imagens documentais. Os cinco longas metragens de Cao Guimares so fortemente

    marcados pela fotografia, filmes experimentais e vdeos instalaes que o artista

    realiza desde o incio dos anos 90. O fato de Andarilho, seu documentrio mais

    recente, ter sido escolhido para a abertura da 27a Bienal de So Paulo (2006) mais

    um indcio da frtil porosidade de fronteiras entre esses dois campos artsticos.

    Dois aspectos se destacam na passagem do artista de um campo a outro:

    primeiro, a observao silenciosa do mundo praticada na fotografia e em filmes

    experimentais e to bem retomada pelo cineasta ao filmar trabalhadores de ofcios

    em vias de extino (O Fim do Sem Fim - 2001), um ermito (A Alma do Osso -

    2003), trs andarilhos (Andarilho - 2007) ou ainda o tempo que passa nas pequenas

    cidades mineiras (Acidente - 2005); em seguida, a inveno de dispositivos para

    produzir uma obra, operao utilizada em certos curtas-metragens e instalaes e

    recuperada para realizar filmes como Acidente e Rua de Mo Dupla (2003).

    particularmente por meio desses procedimentos que o artista mineiro se

    confronta com estticas, ticas e metodologias do documentrio para filmar

    personagens solitrios, a maioria deles margem da modernidade capitalista, mas

    atravessados por ela; em outras palavras, para filmar o outro, questo central da

    tradio documental. E encontra assim, a seu modo e por conta prpria, um certo

    cinema contemporneo feito de planos-seqncias que duram, realizado por

    cineastas que acreditam que, mais do que de imagens, o cinema se constitui de

    blocos de espao-tempo (Gus Van Sant, Abbas Kiarostami, Alexandre Soukourov,

    Mercedes Alvarez, entre outros). As construes temporais contidas nesses filmes

  • privilegiam a acuidade sensorial do espectador, propem novas experincias

    sensveis e imprimem mudanas em nossa percepo de mundo.

    O tempo como matria do filme

    Em O Fim do Sem Fim, A Alma do Osso e Andarilho, Cao Guimares

    fabrica, atravs de longos planos-seqncias, imagens que perturbam as definies,

    habituais no cinema, de imagens objetivas, registradas do ponto de vista da cmera

    e portanto do diretor, e imagens subjetivas, atribudas aos personagens. Alteraes

    que o cineasta obtm a partir de enquadramentos fotogrficos precisos nos quais ele

    insufla tempo; imagens de texturas diferente, fruto da mistura de suportes (vdeo,

    super 8, 16 mm) presente em quase todos os seus filmes. So planos menos ligados

    s temticas do filme, mais poticos, livres, frgeis.

    Em Andarilho, por exemplo, o cineasta faz uso desse procedimento, levando-

    o ao limite. Extrai das estradas pelas quais perambulam os andarilhos efetivas

    vises: imagens explicitamente objetivas - capturadas com a cmera fixa em um

    trip durante longos momentos - transformam-se pouco a pouco, ganhando uma

    estranha subjetividade, a ponto de adquirirem um carter alucinatrio que dissolve

    distines. como se as imagens, inicialmente capturadas do ponto de vista do

    diretor, contrassem gradualmente a viso do personagem at o momento em que no

    pertencessem mais nem a um nem a outro, transformando ao mesmo tempo a prpria

    experincia do espectador. Objetivo e subjetivo, real e imaginrio, fico e

    documentrio perdem o sentido em imagens beira da abstrao: caminhes e motos

    afundando no fundo da imagem, plantas evanescentes, estradas fumegantes, seres em

    dissoluo.

    Trata-se de um procedimento que favorece uma ateno indita e

    concentrada s pequenas coisas do mundo, aos seres, movimentos, gestos, sons,

    rudos, conversas, utilizado desde o primeiro documentrio, O fim do sem fim,

    dirigido em parceria com Lucas Bambozzi e Beto Magalhes. S que de forma

    atenuada: os planos-seqncias desse filme so distribudos entre os depoimentos de

    muitos personagens dispersos em todo o Brasil. Em A Alma do Osso, Cao Guimares

    realiza uma espcie de depurao das opes ticas e estticas do primeiro filme.

    Reduz personagens, situaes, locaes, e amplia o uso de longos planos para

    acompanhar o ermito. O filme nos desvela pouco a pouco que mesmo existncias

    aparentemente isoladas so perpassadas por questes centrais do mundo atual, tais

  • como a mdia, o dinheiro e a lgica do espetculo: depois de testemunharmos a

    solido durante boa parte do filme, vemos que o ermito tambm ponto turstico.

    como se no fosse mais possvel uma ruptura com o social: o espetculo constitui

    o mundo e o prprio filme no deixa de fazer parte dessa lgica, mesmo se a desloca

    - o ermito torna-se imagem e passa, assim, a circular pelo mundo.

    Dispositivo e jogo

    Os filmes Rua de Mo Dupla, concebido inicialmente como vdeo instalao

    para a 25 Bienal Internacional de So Paulo, em 2002, e Acidente, realizado em

    parceria com Pablo Lobato, so produzidos a partir da idia de dispositivo. No

    primeiro filme, Cao Guimares convidou seis pessoas pertencentes s camadas

    mdias da populao de Belo Horizonte para participar de uma experincia inusitada:

    divididos em duplas, eles trocariam de casa por 24 horas e, munidos de uma pequena

    cmera digital, filmariam o que bem lhes aprouvesse em casa alheia, tentando

    "elaborar uma "imagem mental" do outro (a) atravs da convivncia com seus objetos

    pessoais e seu universo domiciliar"1. Ao final, dariam um depoimento para a cmera,

    contando como imaginaram esse "outro". Portanto, o diretor no filma nem dirige,

    mas concebe um jogo, distribui cartas, determina regras, escolhe jogadores, fornece

    cmeras, transporte, comida. Prov o necessrio e sai de campo. Trata-se de uma

    maquinao que implica a ausncia de controle do diretor sobre o material filmado,

    propiciando uma espcie de "retirada esttica" no propriamente do filme - afinal o

    dispositivo dele, assim como a montagem do filme -, mas das imagens e sons que

    seu filme vai conter, atribuindo a seis outros indivduos a tarefa de filmar e se auto-

    dirigir.

    O dispositivo que dispara a filmagem de Acidente , de certa maneira, mais

    conceitual. No h inicialmente nenhum interesse particular dos cineastas por um

    aspecto concreto da realidade. como se houvesse, antes de tudo, pairando no ar,

    uma questo imensa, questo de vida, em que os cineastas se perguntassem como se

    relacionar com o mundo diante de tantas possibilidades, de tantos filmes j feitos, de

    tantas imagens prontas, sem sucumbir nem ao caos nem aos clichs. Ou, como diria J.

    1 Cao Guimares, no texto na contracapa do vdeo Rua de Mo Dupla.

  • L. Comolli, como fazer para que haja filme2? Cao Guimares e Pablo Lobato

    decidem se apegar s palavras: criam um dispositivo-poema e, de posse dele,

    comeam a filmar. Mas no so palavras quaisquer retiradas do dicionrio poderia

    ser, mas seria outro filme.

    So nomes de cidades mineiras cuja lista eles pesquisaram na internet.

    Selecionaram cem e as imprimiram. Espalharam os papeis sobre a mesa e comearam

    a brincar com as palavras. Sonoridades, sentidos, materialidades, ressonncias: foi

    isso que contou para os cineastas e no um conhecimento prvio da realidade das

    cidades, das quais alis eles ignoravam tudo. Chegam a um poema com 20 nomes que

    evoca uma fbula de amor e dor: Heliodora, Virgem da Lapa, Espera Feliz, Jacinto

    Olhos dgua. Entre Folhas, Ferros, Palma, Caldas, Vazante, Passos. Pai Pedro

    Abre Campo, Fervedouro Descoberto, Tiros, Tombos, Planura, guas Vermelhas,

    Dores de Campos.

    O dispositivo-poema torna-se portanto uma mquina de produzir imagem e

    adquire, como todo dispositivo, um certo poder sobre os cineastas. Decide por eles

    onde vo filmar; retira deles o direito de recusar uma cidade caso no gostassem dela,

    porque nesse caso o poema deixaria de funcionar. Diminui o excesso de

    intencionalidade. um jogo, que tem suas regras, s quais eles devem se submeter.

    No se trata em absoluto de adaptar palavras s coisas, nomes s cidades, mas

    construir uma forma de se confrontar com o caos do mundo sem submergir, de

    imprimir uma direo inicial, abrindo ao mesmo tempo o filme aos acasos,

    imprevistos e imponderveis do real.

    Os documentrios que resultaram desses dispositivos so profundamente

    distintos entre si. Acidente possui traos em comum com os filmes constitudos de

    planos-seqncias, mas no h propriamente personagens nem temas. So blocos de

    espao-tempo que capturam a durao, em vrias camadas, nas cidades do interior de

    Minas, e nos fazem ver e sentir um pouco de tempo em estado puro3, maneira de

    Ozu. Onde Acidente mais parece se aproximar da imagem esttica da fotografia,

    justamente onde mais se distancia, em funo da durao. Na cidade de Entre Folhas,

    por exemplo, vemos o cair da tarde do balco de um bar onde praticamente nada

    acontece, a no ser os movimentos infra-ordinrios do seu proprietrio ou a rara

    2 Sob o risco do real, in Catlogo do 5o Festival do filme documentrio e etnogrfico. Belo Horizonte: novembro de 2001, pp. 99. 3 Gilles Deleuze, referindo-se ao cineasta japons, em A Imagem-Tempo. So Paulo: Brasiliense, 2006.

  • circulao de carros e pessoas do lado de fora. Na cidade de Palma, o filme se atm a

    uma ladeira em que os tempos mortos se alternam com micro-acontecimentos.

    O filme inteiro capturado por uma espcie de inao, que contamina

    personagens e cineastas. O espectador tambm envolvido nesse circuito em que as

    conexes entre palavras e coisas, nomes e cidades, acontecimentos e personagens, so

    tnues, frgeis e, finalmente, de pouca importncia. Trata-se de um filme em que a

    dimenso propositiva se mistura uma dimenso mais plstica, contemplativa e

    formal, mesclando em um s tempo dois movimentos que Cao Guimares identifica

    em sua trajetria, em trabalhos diferentes.

    Quanto Rua de Mo Dupla, a grande inveno do filme, responsvel pela

    solidez da proposta, a solicitao do diretor de que os outros em questo, os

    participantes do filme, se interessem por outros e no por eles mesmos; atitude que

    redireciona o desejo da besta da confisso4 em que nos transformamos a partir do

    momento em que uma cmera postada diante de ns. Cao Guimares no quer que

    eles se voltem para si, que falem de suas vidas, que se revelem para a cmera; pede,

    antes, que falem de pessoas desconhecidas e filmem casas alheias. A mudana do

    foco do eu para o outro faz com que os personagens fiquem menos atentos a auto-

    controles, censuras e filtros que normalmente acionamos para oferecer a imagem que

    desejamos de ns mesmos. A maneira como se relacionam com o espao alheio, o que

    escolhem filmar, o que dizem, como falam, palavras, sintaxes, entonaes que

    colocam em cena, tudo isso revela muito mais deles mesmos do que poderamos

    esperar. So imagens do outro fortemente embebidas da viso de mundo e dos afetos

    daquele que filma.

    O que o filme mostra de modo cristalino o quo encharcado de memrias e

    afeces corporais nosso olhar sobre o mundo, o quo arraigados somos a

    determinadas maneiras de ver e sentir, o tanto que ignoramos nossos preconceitos, o

    tanto de impossibilidade de nos colocarmos no lugar do outro, de aceit-lo na sua

    diferena e singularidade. Em suma, nos mostra que estamos onde menos

    esperamos, no especialmente no contedo do que dizemos ou pensamos de forma

    consciente, tampouco em uma interioridade prvia, j dada, mas em toneladas de

    4 Expresso de Michel Foucault em Histria da Sexualidade 1, A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1984.

  • subjetividades5 que se constituem e se expressam na nossa relao com o mundo e

    com o outro. Atravs de um gesto primeira vista pequeno - alterar a direo do que

    se solicita aos personagens em grande parte dos documentrios baseados em

    conversas o cineasta imprime um estrondoso deslocamento em relao a todas as

    querelas em torno da "voz do outro" que atravessam a histria do documentrio.

    ***

    Nos ltimos anos, os trabalhos de Cao Guimares tm sido selecionados e

    premiados nos principais festivais internacionais de documentrio e vdeo

    experimental e exibidos em diversas manifestaes artsticas mundo afora. O diretor

    no tem formao em cinema, nunca fez escola nem trabalhou no meio

    cinematogrfico. A srio, estudou filosofia e fotografia; cinema, ele comeou em

    casa, quando morava em Londres, com super 8, fazendo uma espcie de dirio

    filmado, um pequeno exerccio de observao solitria do mundo, em uma

    ampliao natural das possibilidades de expresso, diz.

    Sua cinefilia digital e rizomtica6, prpria a uma forma contempornea de

    se relacionar com o cinema que no passa, necessariamente, por filiaes, mas que

    no deixa de ser atravessada por uma paixo e de reencontrar um certo esprito do

    cinema, o da experimentao. Atitude que se confronta tanto com uma postura

    conservadora que v o cinema como patrimnio, objeto de saber e reverncia,

    quanto ao cinema como mercado. E faz filmes libertadores, que inventam narrativas,

    dispositivos e novas percepes do real, sugerindo, nesse movimento, que o cinema

    tem muito a ganhar associando-se ao que lhe , de certa forma, exterior. Tal como

    hoje dominantemente produzido (mercado, marketing, leis, lobbys, projetos

    interminveis, distribuio, exibio), o cinema tem poucas chances de se renovar;

    essa engrenagem o engessa e fossiliza, corroendo do interior suas possibilidades de

    criao.

    5 Expresso de Peter Pl Pelbart, in Vida Capital, Ensaios de Biopoltica. So Paulo: Iluminuras, 2003, p.20. 6 Thierry Jousse, in Pendant les travaux, le cinema continue. Paris: Les Cahiers du Cinema, 2003.

  • i Publicado no livro Cao Guimares, Edio Caja de Burgos, Espanha, 2007.