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Prof. Emílio Figueira
TEOLOGIA DA
INCLUSÃO A TRAJETÓRIA DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NA HISTÓRIA
DO CRISTIANISMO
Considerando ser uma obra de cunho e importância social que pode beneficiar muitas pessoas nos meios religiosos e na sociedade em geral, por vontade do autor, esta versão digital passa a ser distribuída gratuitamente para todas as pessoas interessadas, independente de qual seja a dominação religiosa. É livre o seu uso para estudos, preparações de materiais religiosos e estudos teológicos, desde que citada a fonte.
1
EMÍLIO FIGUEIRA
Doutor em Teologia Histórica pelo Instituto de Ensino Teológico de São Paulo
TEOLOGIA DA INCLUSÃO:
A trajetória das pessoas com deficiência
na história do Cristianismo
FIGUEIRA DIGITAL SÃO PAULO
2015
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Edição e capa: Emilio Figueira Revisão: ANA SESSO REVISÃO LTDA. www.anasessorevisao.com.br
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL AGÊNCIA BRASILEIRA DE ISBN
© 2015– Emílio Carlos Figueira da Silva
TEOLOGIA DA INCLUSÃO – A trajetória das pessoas com deficiência na história do Cristianismo. Emilio Figueira. – São Paulo : Figueira Digital, 2015.
ISBN: 978-85-911079-8-8
1. Teologia. 2. Cristianismo. 3. Inclusão. 4. Pessoas com deficiência
É PROIBIDA A REPRODUÇÃO
Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida, copiada, transcrita ou mesmo transmitida por meios eletrônicos ou gravações, assim como traduzida, sem permissão, por escrito, do autor. Os infratores serão punidos pela Lei no. 9.610/98.
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SOBRE O AUTOR
Por causa de uma asfixia durante o parto, Emílio Figueira adquiriu paralisia cerebral em 1969, ficando com sequelas na fala e movimentos. Mas nunca se deixou abater por sua deficiência motora e vive intensamente inúmeras possibilidades.
Nas artes, no jornalismo, autor de uma vasta produção científica, é psicólogo, psicanalista, teólogo e personal coach com formação em Programão Neurolinguística .
Como escritor é dono de uma variada obra em livros impressos e digitais, passando de cinquenta títulos lançados. Ator e autor de teatro. Várias entrevistas na mídia e em jornais.
Hoje com cinco graduações e dois doutorados, Figueira é professor e conferencista de pós-graduação, principalmente de temas que envolvem a Educação Inclusiva.
Em seu site há vários artigos, crônicas, cursos e materiais gratuitos. acesse: www.emiliofigueira.com.br
4
“Deus me enviou ao mundo com uma deficiência já escalado
para pesquisar, produzir conhecimento e ajudar na transformação de vidas de tantas outras pessoas com as
mais variadas deficiências. Mas o que Deus não me contou é que eu iria de coadjuvante e espectador de tantas coisas
positivas. De mudanças de mentalidades e atitudes. De ver crianças que hoje, mesmo com algum tipo de deficiência,
estão começando a sua jornada neste mundo em uma realidade muito melhor do que aquela de quando comecei há
quatro décadas”.
A Deus,
o principal motivo de ter
nascido este trabalho!
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AGRADECIMENTO
A Deus, pela presença maravilhosa em todos os momentos da minha existência, pela força que tem me concedido, pela inteligência para terminar esta tese de Doutorado em Teologia, primeiros passos de uma longa caminhada.
À minha família, presença sempre constante na minha vida.
À minha grande amiga, Aninha Pina, que desde o começo me incentivou e acompanhou o processo deste estudo.
Aos amigos e irmãos Helton Luiz Tavoni e Alan Rogério Moreli, por todos os nossos papos abertos.
À amiga de infância e dos nossos primeiros de reabilitação na AACD, Deise Tomazin Barbosa, pelo prefácio desta obra.
À amiga Ana Lúcia Sesso de Cerqueira César, pela revisão
Ao querido amigo Joaquim Teles, companheiro de psicologia e psicanálise, troca de materiais e de tantas ideias e conselhos profissionais.
Aos amigos Pr. Silas Costa e Pr. Rodnei Francisco Teixeira
Ao historiador Otto Marques da Silva, que foi pioneiro em dar uma história oficial às pessoas com deficiência.
À equipe da Rede Saci, em especial à amiga Ana Maria Barbosa e ao estagiário Felipe Salles Silva, por indicação de bibliografias.
A todos aqueles que direta ou indiretamente contribuíram na realização desta obra. Os meus sinceros agradecimentos.
6
SUMÁRIO
AGRADECIMENTO ......................................................................................... 5
INTRODUÇÃO .............................................................................................. 15
I – O ANTIGO TESTAMENTO: AS QUESTÕES DAS DEFICIÊNCIAS NO PRÉ-CRISTIANISMO ............................................................................................ 23
NOÉ: O PRIMEIRO REGISTRO BÍBLICO DE UMA PESSOA COM DEFICIÊNCIA ........... 24 A CEGUEIRA DE ISAQUE POR 80 ANOS ........................................................... 27 A DEFICIÊNCIA TEMPORÁRIA DE JACÓ EM DECORRÊNCIA DE UMA LUTA ESPIRITUAL
................................................................................................................. 31 LIA, DESPREZADA, MAS RECOMPENSADA POR DEUS ........................................ 34 MOISÉS: PROBLEMAS DE FALA E AUTOESTIMA ................................................ 36 AS CAUSAS DAS DEFICIÊNCIAS ORIUNDAS DE CASTIGOS ENTRE OS HEBREUS ....... 46 O MONTE SINAI E A QUESTÃO DA HANSENÍASE NA BÍBLIA ............................... 52 O CÓDIGO DE HAMURÁBI E A SEVERIDADE QUE INSPIROU OS HEBREUS ............. 58 REI ZEDEQUIAS, MAIS UM CASO DE CEGUEIRA COMO PUNIÇÃO .......................... 61 OLHOS DIREITOS FURADOS DOS HABITANTES DE JABES ................................... 69 ZACARIAS CASTIGADO POR NÃO TER ACREDITADO EM GABRIEL ........................ 71 MEFIBOSETE: O PRIMEIRO CASO DE INCLUSÃO VEM DA BÍBLIA ......................... 74 OS ESMOLANTES DA ANTIGA JUDEIA .............................................................. 79 A BUSCA DA CURA ........................................................................................ 80 A HANSENÍASE NO NOVO TESTAMENTO ......................................................... 86 A BAIXA ESTRUTURA DE ZAQUEU .................................................................. 92
III – CASTIGO E PECADO: PRINCIPAIS CONCEITOS BÍBLICOS SOBRE PESSOAS COM DEFICIÊNCIAS E MUDANÇAS DE MENTALIDADES ......... 98
DEFICIÊNCIA É FRUTO DO PECADO? ............................................................... 99 JESUS E O INÍCIO DA INCLUSÃO .................................................................... 106 O INCONSCIENTE COLETIVO E A DESCONSTRUÇÃO DOS ESTIGMAS RELIGIOSOS 112 A HISTORIOGRAFIA DE OTTO MARQUES DA SILVA......................................... 118 AS DEFICIÊNCIAS FÍSICAS COMO IMPEDIMENTO AO SACERDÓCIO CRISTÃO ........ 124 SACERDOTES QUE QUEBRARAM A REGRA ...................................................... 130 NICOLAU, AS PESSOAS COM DEFICIÊNCIAS INTELECTUAIS E A INQUISIÇÃO ........ 133
7
RICHARD BAXTER, UM PASTOR ENTRE O MINISTÉRIO E SUAS ENFERMIDADES .. 144 O ASSISTENCIALISMO DOS JESUÍTAS EM TERRAS BRASILEIRAS ........................ 148 CATÓLICOS E PROTESTANTES SE UNEM CONTRA UMA “INQUISIÇÃO NAZISTA” NO
SÉCULO XX ............................................................................................... 155 A IGREJA CATÓLICA E SUAS POSSIBILIDADES DE INCLUSÃO ............................. 158
V – CAMINHOS PARA A INCLUSÃO RELIGIOSA HOJE ............................. 168
O PROTESTANTISMO PRECISA DESPERTAR PARA A QUESTÃO .......................... 168 IGUALDADE DE OPORTUNIDADES, INCLUSIVE NA RELIGIÃO ............................. 173 BARREIRAS ARQUITETÔNICAS ERAM MOTIVOS DE EXCLUSÃO .......................... 176 “UMA TEOLOGIA DA DEFICIÊNCIA” .............................................................. 179 REFLEXÕES SOBRE A CONVIVÊNCIA PLENA NA RELIGIOSIDADE........................ 181
CONCLUSÕES ............................................................................................. 185
BIBLIOGRAFIA ........................................................................................... 189
8
PREFÁCIO
Deise Tomazin Barbosa*
alar de Emilio Figueira sem tecer uma rede de elogios sobre
seu trabalho é tarefa impossível de ser realizada. Grande
mestre, brilhante doutor, amigo e companheiro desde a
nossa infância na AACD, faz com que pessoas que estejam ao seu
redor sintam orgulho em tê-lo como parceiro de luta.
Eclético e muito perspicaz, Emilio Figueira impressiona
com sua peculiaridade. Sua sapiência se traduz em seus escritos e
seu legado está marcado em suas obras publicadas como “O Que é
Educação Inclusiva”, “Conversando sobre Educação Inclusiva com
a Família”, ”Caminhando em Silêncio”, “Introdução à Psicologia e
Pessoas com Deficiência”, e mais de cinquenta títulos.
________________________ *Licenciada em Matemática e Pedagogia, Pós graduação lato sensu em Inteligência Multifocal e Psicanálise da Educação, Educação Especial Áreas da Deficiência intelectual, física, visual e auditiva (UNESP), Tecnologias da Informação e Comunicação Acessíveis (UFRGS), Psicopedagogia e MBA em Gerenciamento de Projetos (FGV). Mestre em Psicanálise e Educação Especial - UNESP. Aperfeiçoamento em Atendimento Educacional Especializado, Libras, Braille e Sorobã. Tutora em curso de Pós graduação no curso de AEE (UNESP) e Tecnologia Assistiva (UFRGS). Assistente de Direção e Docente em Universidades públicas e particulares. Assessora e Consultora Pedagógica. Atuou na AACD como pedagoga e na Secretaria Municipal de São Paulo como professora itinerante de alunos com deficiência e formadora.
F
9
A relação íntima com Deus e sua deficiência, fez com que o
autor mantivesse o foco de seus estudos voltado ao
desenvolvimento de uma sociedade humanitária e cristã. Não que
fosse diferente se a deficiência não estivesse presente em sua vida,
mas talvez a plenitude de suas obras não seria tão lógica não fosse
sua trajetória humana.
Sua deficiência fez com que passasse por momentos
preconceituosos, porém, isso só o tornou mais convicto e
determinado a buscar soluções para o trato com as pessoas com
deficiência.
Dotado de inteligência e capacidades que fogem ao nosso
entendimento, Emílio sempre demonstrou grande paixão pelos
estudos mantendo seu foco nas investigações históricas da pessoa
com deficiência. Participar de alguns momentos formativos ao seu
lado me deixa a vontade para tecer algumas linhas sobre essa
grandiosa obra.
A pesquisa se desenvolve em cinco partes, trazendo
questões que tratam das deficiências do antigo ao novo
testamento. Interessante reconhecer a visão de estudo que Emílio
traz sobre a relação de castigo e pecado e do desenvolvimento da
pessoa com deficiência no catolicismo, percorrendo caminhos que
chegam à inclusão religiosa nos dias de hoje.
Tais questões intensificaram o estudo por pesquisa
bibliográfica baseada em referencial teórico demonstrando
práticas transformatórias da evolução do ser humano com
registros que contextualizam as passagens bíblicas, enaltecendo e
abominando a deficiência e o impacto que o mundo cristão
demonstra em relação à cura, pecado e castigo quebrando a
prepotência e arrogância da divindade sobre o homem e tudo
10
mais que seja obscuro na visão histórica da passagem do
deficiente pelo mundo cristão.
Encontra-se nessa excelente obra, registros bíblicos de
sacrifício e sacerdócio, impureza e pecado, pureza e castidade,
defeito e perfeição.
Partindo do pressuposto de que a linguagem do evangelho
é uma fonte de referência na pacificação entre as pessoas e entre
os povos, é possível se pensar na espiritualidade como um fator
que promova a inclusão e não a exclusão, abrindo uma questão
fundamental entre as comunidades religiosas que é a permissão
da transformação de suas neuroses em direito à existência.
Várias são as releituras realizadas sobre as escrituras
sagradas, porém os critérios para sua interpretação são definidos
por duas ciências: a Hermenêutica e a Exegese. Para que tal
interpretação se torne correta é preciso que se apliquem essas
“ferramentas” de forma consistente, diluindo os malefícios que
uma má interpretação bíblica pode causar: discriminação,
exclusão, preconceito.
O preconceito é um juízo preconcebido, um
desconhecimento pejorativo de uma pessoa ou grupo social e a
discriminação é um comportamento de não aceitação. O
preconceito para com as pessoas com deficiência vai desde
acreditar que necessitam ser dependentes dos outros, são maus
ajustados e infelizes, são "marcados" e menos inteligentes, são
improdutivos, merecem compaixão e piedade, até acharem que
estes estão sendo "punidos" por algum pecado.
Se existe um lugar onde esse comportamento não deve ser
aceito é a igreja, pois esta não deve estar alienada da sociedade e é
o lugar onde a real prática dos princípios bíblicos como "Amar a
11
Deus de todo coração... amar ao próximo como a si mesmo..."
(Marcos, 12:33) deve ser exercida.
Ora, se a palavra de Deus deve estar ao alcance a todas as
pessoas e Jesus foi inclusivo o tempo todo, constatação escrita no
evangelho, por que então continuar pensando que a deficiência é
uma doença e não uma condição? Coisa rara encontrar um
deficiente que se lamente por causa da sua condição física. A
limitação física, o estigma, a discriminação ao longo do tempo
torna as pessoas resilientes. Sendo assim, natural se pensar que
todos os cristãos são pessoas inclusivas, ou pelo menos, deveriam
ser, porém não é o que se vê na sociedade contemporânea.
Na obra Teologia da Inclusão, é possível se encontrar o
processo religioso das pessoas com deficiência e a evolução da
política inclusiva. A obra traz a interpretação bíblica através da
Hermenêutica com o método analítico sintético a partir de uma
consciência crítica dialética demonstrando as transformações
reais da sociedade. Em termos metodológicos, foi desenvolvida
uma pesquisa documental das escrituras e bibliográfica de textos
que abordam o fenômeno apontado.
O capítulo de abertura – O Antigo Testamento: As
Questões das Deficiências no Pré-Cristianismo mostra a saga
histórica do percurso do deficiente pela história da humanidade,
fazendo um estudo sobre os registros de Noé, mostrando a
cegueira de Isaac, a luta de Jacó, o desprezo de Lia e, pasmem com
os problemas de fala de Moisés que afetaram por tempos sua
autoestima. Em meio atos severos, punição, maldição, encontram-
se pessoas que exercitam a justiça e a bondade de forma amorosa,
sem se incomodar com valores e preconceitos determinados por
seu tempo, sem se omitir de tal sentimento de nobreza.
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No Seu Capítulo – milagres e uma nova visão da pessoa
com deficiência no novo testamento, Emílio Figueira analisa e
debate a visão transformadora de Paulo e a busca da cura através
da fé. Estudiosos dos usos e costumes dos povos afirmavam que a
medicina contida nos evangelhos e mesmo nos atos dos apóstolos
aceitavam três tipos de causas para as doenças e para as muitas
limitações e deficiências que afligiam os homens: o castigo pelos
pecados, a interferência dos maus espíritos e as forças más da
natureza, contra os quais o poder divino era o único remédio. Está
em pauta, agora, a identificação dos possíveis caminhos da cura
dos deficientes: os milagres realizados por Jesus.
De sua pesquisa, o autor conclui que o melhor é se tomar a
mensagem de fundo: não estigmatizar e deixar de lado a questão
da plausibilidade do fato.
O autor em seu capítulo III – Castigo e Pecado: Principais
Conceitos Bíblicos sobre Pessoas com Deficiências e
Mudanças de Mentalidades deu destaque ao debate incansável
sobre a deficiência como fruto do pecado. A deficiência era
atribuída a uma magia hostil ou à violação de um tabu e era tarefa
do sacerdote descobrir as causas e estabelecer a magia certa para
eliminar o mal. A causa podia ser interpretada por erro ou pecado
cometido pela pessoa contra a divindade e era exigida reparação
adequada. A pesquisa confirma que as ações e percepções
praticadas de maneira incorreta, desobediente, era considerada
violação de mandamento divino, ou seja, pecado.
O autor faz ainda realiza um estudo sobre a terminologia
“Pecado”, nos mais diversos segmentos: Judaico, Cristã, Católico,
Protestante (evangélico), atribuindo a deficiência, as doenças, as
fatalidades como consequências diretas de pecados cometidos,
como se fossem castigo.
13
Referindo-se a planejamento de estudo sobre as
deficiências ao longo dos tempos, é preciso manter o foco sobre as
igrejas que lutam para manter a fé cristã, o que Emílio Figueira faz
brilhantemente em seu IV capítulo - O “Caminhar” da Pessoa
com Deficiência dentro do Catolicismo. O “castigo de Deus” era
decorrente de sua ira, enviando sinais ao povo como os problemas
mentais e as malformações congênitas, o que na realidade, era
consequência de uma sociedade sem conhecimentos científicos e
medicinais. A falta de planejamento urbano abriu caminho para
epidemias e doenças mais graves. Mas a visão do povo voltada à
ira celeste entendia a deficiência como uma falta de capacidade
para a vida, devendo ser excluído de tudo, pois não poderiam
realizar nada com dignidade.
Fechando a Coletânea, o capítulo V - Caminhos para a
Inclusão Religiosa hoje - mostra a igualdade de oportunidade,
até mesmo na religião. O autor dá conta de resultados de sua
pesquisa sobre a passagem do deficiente nos atos religiosos
indagando agora sobre outro problema contemporâneo: as
barreiras arquitetônicas dos templos religiosos.
No espaço de inovações/resistências às mudanças
propostas/impostas, o autor rediscute o sentido de se manter
pessoas com deficiências em nossos círculos de amizade a fim de
quebrar mitos e preconceitos. Mostra que, ao ressignificar os laços
de afetividade, paradigmas são quebrados permitindo que se
possam ver as reais habilidades e capacidades das pessoas com
deficiência, refletindo mais sobre a (re)construção de sua
identidade nesse espaço de múltiplas tensões, e assim,
compreender melhor, sua vida pessoal.
Os leitores que compartilham preocupações relacionadas
aos grandes desafios da inclusão, encontrarão na obra Teologia
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da Inclusão, elementos significativos para a retomada e a
discussão dos problemas em pauta. O autor, por sua vez,
disponibiliza sua ferramenta investigativa e sua conclusão,
abrindo-se ao debate, reequacionando as questões e adiantando
hipóteses fecundas, aptas a sustentar novas buscas e novos
projetos, de modo que a produção do conhecimento, nessa área,
possa ter a necessária continuidade em busca de uma qualificada
consolidação.
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TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br
INTRODUÇÃO
A TEOLOGIA DA INCLUSÃO COMO UM
NOVO MINISTÉRIO
“Persiste em ler, exortar e ensinar, até que eu vá.”
1 Timóteo 4:13
osso dizer que, mesmo antes de eu nascer, já tinha uma
relação muito íntima com Deus. O primeiro grande milagre
Dele na minha vida foi no meu nascimento. Foi um parto
muito difícil, passaram-se muitas horas do momento de nascer, fui
tirado à força. Mesmo assim, passei horas no balão de oxigênio
lutando para viver. Deus me deu a vitória, mas deixou uma marca:
paralisia cerebral, comprometendo minha fala e movimentos.
Meus primeiros anos foram de inúmeros tratamentos e,
por onze anos, praticamente todos eles dentro de uma instituição
fechada. Quase ninguém acreditava em um futuro para uma
pessoa nas minhas condições físicas. Deus decretou o contrário.
Aos cinco anos de idade eu já estava alfabetizado. Recebi Dele o
dom da escrita. Ainda muito novo nasceram os meus primeiros
textos que deram origem a uma vasta e variada produção literária.
P
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TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br
Deus me dotou também de uma paixão grande pelos
estudos. Muitos cursos, descobertas em diversas áreas,
desenvolvimento no jornalismo, na psicologia e na psicanálise.
Toda essa minha inquietação levou-me para o universo das
pesquisas, atuando em instituições renomadas e escrevendo
quase noventa trabalhos científicos publicados no mundo todo.
Foi uma caminhada de muitos obstáculos, de gigantescas
montanhas, as quais Deus foi eliminando uma a uma.
O meu principal foco sempre foram as questões das
pessoas com deficiência, melhor qualidade de vida e sociedade
humanitária que abrace a todos. Hoje, consideram-me uma das
principais referências em Educação Inclusiva no Brasil. Deus me
deu a graça de ser testemunha ocular, eu, que sou de uma época
em que pessoas com deficiência viviam isoladas em instituições,
assisto e contribuo com o meu trabalho, pesquisas e escrita para
tantas mudanças positivas.
Apaixonado principalmente pelas investigações históricas,
já há uns vinte anos eu queria pesquisar sobre as pessoas com
deficiência no Cristianismo. Minha intenção inicial era escrever
um artigo de nove páginas. Só que eu era membro de uma igreja
com bases fundamentalistas que não nos permitia estudar
quaisquer outros livros religiosos, senão a Bíblia. Eu, mesmo
tendo vontade de estudar mais sobre religião, respeitava os
ensinamentos da igreja. Independente de ser certo ou errado, os
18 anos que permaneci ali foram fundamentais para o meu
nascimento, desenvolvimento e aprendizagem espiritual. Pude
participar de incontáveis momentos maravilhosos na presença de
17
TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br
Deus. Assisti obras e milagres na vida de muitos e na minha
própria vida.
Eu continuava a guardar anotações e materiais sobre as
pessoas com deficiência e o Cristianismo. Sabia que um dia teria
que escrever algo a respeito. Até que, em 2010, sofri uma grande
discriminação por minha deficiência dentro da igreja onde eu
estava, inclusive por pessoas do alto ministério. Não cabe narrar
esse triste fato aqui. Só que minha permanência naquela igreja se
tornou insustentável. Saí de lá com ainda mais certeza de que teria
que fazer alguma coisa para que outras pessoas com as mais
variadas deficiências não sofressem discriminações nos meios
cristãos, como eu sofri.
Passei meses sem congregar em qualquer igreja. Até que,
em 10 de abril de 2011, manhã de um domingo ensolarado, entrei
pela primeira vez em uma Igreja Batista, vindo de uma
denominação predominantemente fechada em si mesma. Estava
com a cabeça cheia de dúvidas, inseguranças, coração machucado
por discriminações religiosas sofridas. Mesmo machucado, eu
tinha certeza de que era exatamente como fui concebido por Deus
e Ele me amava, apesar da minha deficiência motora. E, ao entrar
por aquelas portas, sabia que jamais poderia me afastar daquele
amor!
Na Igreja Batista percebi logo de início que tudo era
diferente. Senti amor, vi o sorriso no rosto das pessoas. Fui
acolhido. Com humildade. Uma semana se passou e no outro
domingo foi muito forte a vontade de voltar. A mesma vontade
que começou a me mover naturalmente, cada vez mais, sendo
envolvido, acolhido e fazendo parte dessa comunidade cristã. Ali
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TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br
descobri um Deus amoroso, bondoso, Pai paciente... Um Deus
como sempre procurei e no qual acreditei. Foi morrendo dentro
de mim o Deus autoritário e punidor, com o qual convivi por
muitos anos. Fui percebendo que a liberdade e expressão religiosa
que eu procurava realmente existem. Que posso falar ou escrever
abertamente as coisas de Deus, manifestar o meu amor por Ele.
Crescia em mim a cada dia a vontade de estudar mais no campo
teológico. Usar as linguagens de expressões que recebi como dom
dos céus para escrever livros, contos, romances, teatro evangélico
ou textos didáticos.
Fascinou-me o modo de se pregar o evangelho em uma
Igreja Batista tradicional. Eu, que vinha de uma igreja onde
éramos até proibidos de ler livros religiosos, na Igreja Batista
conheci a Bíblia empregada de forma didática, ensinada, estudada,
discutida. Aulas aos domingos. Irmãos lendo outros autores e
teólogos. Estudando, surpreendeu-me ver como o Novo
Testamento fala de ensino, doutrina e exemplo. Jesus é chamado
de mestre 42 vezes. As palavras relacionadas com ensino
repetem-se mais de 175 vezes, quase sempre no sentido positivo.
Só em 1 e 2 de Timóteo vemos mais de 50 referências de ensino,
instrução, doutrina e exemplo, visando vidas mais consagradas e
firmes no Senhor. A aprendizagem é o que orienta e motiva as
outras três funções vitais e comunitárias da igreja local: Adoração,
Comunhão e Evangelização.
Enquanto na outra igreja era apenas mais um membro no
banco, na Igreja batista eu fui incluído de imediato e, tempos
depois, já tinha ministérios. Quis cada vez mais estudar e me
aperfeiçoar como um Educador Cristão. Ao mesmo tempo, quis
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TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br
estar cada vez mais preparado, orando continuamente para que o
Senhor Jesus ilumine minha mente e eu possa dar sempre o
melhor nos Ministérios e cargos que Ele tem confiado em minhas
mãos para o crescimento de Sua igreja, honra e glória.
Graças a essa abertura, em 2012, bacharelei-me em
Teologia pela Instituto de Educação Teológica de São Paulo, com a
monografia: Entre a cruz e a clínica: Do aconselhamento pastoral
ao atendimento psicológico nas igrejas evangélicas como uma
nova proposta de ministério.
Intensifiquei minhas pesquisas e análises sobre as pessoas
com deficiência no Cristianismo. Por já ter mestrado em Educação
Inclusiva e doutorado em Psicanálise, essa mesma instituição
aceitou-me em seu Doutorado em Teologia e, o que era para ser
um artigo de nove páginas, hoje se materializa em uma tese,
apontando para uma nova caminhada e ministério nas
comunidades cristãs.
Hoje entendo que Deus me dotou de inteligência, inúmeras
capacidades e permitiu aquela discriminação na minha vida para
me libertar, me capacitar teologicamente e me usar como um
instrumento em Sua obra. Peço a Deus que o meu amor e
relacionamento com todos os meus irmãos cresça cada vez mais e
que eu esteja sempre preparado para atendê-los em suas
necessidades. Sobretudo, peço principalmente ao Senhor Jesus
que multiplique minha saúde e capacitação para que eu possa
trabalhar pela Sua obra até meus últimos dias, convicto de que,
tudo o que eu fizer, ainda será muito pouco diante de todo o bem
que Ele sempre fez e fará por mim. E posso testificar esse amor.
20
TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br
***
Cabe aqui uma rápida explicação teórica e metodológica
que foi utilizada na construção desta obra, fruto de minha tese de
Doutorado em Teologia pela Instituto de Ensino Teológico de São
Paulo, defendida em 27 de outubro de 2014.
Sendo a função dos teólogos cristãos recorrer à exegese
bíblica e à análise racional para entender, explicar, testar, criticar
e defender o Cristianismo, testando a sua veracidade,
comparando-o a outras tradições ou religiões, defendendo-o de
críticos, corroborando qualquer reforma cristã, esta tese teve
como base teórica a Teologia Histórica. Também conhecida como
história da teologia ou história da doutrina, trata-se do ramo da
teologia que busca investigar as circunstâncias históricas em que
as ideias teológicas se desenvolveram ou foram especialmente
formuladas. Uma investigação teológica que objetiva explorar o
desenvolvimento histórico das doutrinas cristãs e identificar os
fatores que influenciaram sua formulação, documenta as
respostas às grandes questões do pensamento cristão e ao mesmo
tempo procura explicar os fatores que contribuíram para a
elaboração dessas respostas. Por um lado, é uma ferramenta
pedagógica, tendo em vista que oferece informações sobre o
desenvolvimento dos grandes temas teológicos, os pontos fortes e
fracos das diferentes abordagens e os marcos mais notáveis do
pensamento cristão, em termos de autores e documentos. Por
outro lado, é uma ferramenta crítica, pois permite ver as falhas, as
limitações e os condicionamentos de certas formulações
doutrinárias, o que possibilita seu contínuo aperfeiçoamento.
21
TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br
Junto com a Teologia Histórica, utilizei a Hermenêutica
Bíblica, que estuda os princípios da interpretação da Bíblia como
uma coleção de livros sagrados e divinamente inspirados,
abrangendo a relação dialética que visa substancializar os
significados dos textos bíblicos. A hermenêutica bíblica não deve
se afastar do texto bíblico, bem como não se abstém da
problemática inicial do hermeneuta. Seu principal objetivo é o de
descobrir a intenção original do autor bíblico. No caso dos textos
da Bíblia, o leitor, ao menos racionalmente, não tem acesso direto
ao autor original. Por isso é necessário aplicar princípios da
hermenêutica (a ciência da interpretação) ao texto bíblico.
No Cristianismo, essa interpretação é estudada e obtida
através da Exegese, também utilizada nesta tese. A exegese tem
práticas implícitas e intuitivas, sendo os textos sagrados os
primeiros dos quais se ocuparam os exegetas na tarefa de
interpretar e dar seu significado. Por isso, o termo “exegese”
significa, como interpretação, revelar o sentido de algo ligado ao
mundo do humano, mas a prática se orientou no sentido de
reservar a palavra para a interpretação dos textos bíblicos.
Como metodologia, trabalhei com a pesquisa bibliográfica,
que permite ao investigador a cobertura de uma gama de
fenômenos muito mais ampla do que aquela que poderia
pesquisar diretamente. Sua vantagem aumenta ainda mais quando
o problema da pesquisa requer dados muito dispersos pelo
espaço, sendo indispensável nos estudos históricos; em muitas
situações, não há outra maneira de conhecer os fatos passados
senão com base em dados bibliográficos.
22
TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br
Esta pesquisa de caráter bibliográfico reuniu materiais
(livros, artigos científicos, periódicos), obtidos já em um
levantamento preliminar em bibliotecas públicas e universitárias,
em sítios científicos, por meio do meu acervo pessoal. Vale
acentuar que, assim como qualquer outra modalidade de
pesquisa, esta se desenvolveu ao longo de uma série de etapas. Na
primeira fase, realizei a organização do material, já olhando para o
conjunto de documentos de forma analítica, buscando averiguar
trechos significativos dos documentos de acordo com o objetivo
de investigação com leituras e fichamentos, ocorrendo algumas
transcrições de trechos/dados utilizados posteriormente.
Organizando o material e processando a leitura segundo critérios,
utilizei o método analítico-sintético, unindo os anunciados do
contexto principal referencial teórico (exposto no final desta
obra) aos meus conhecimentos pessoais e observações. Na
segunda fase, visando à compreensão do material coletado,
trabalhei com o modo dialético, visando ser o ato de se conhecer a
análise do processo de fenômeno um processo do conhecimento,
realizada aquela a partir de uma consciência crítica, permitindo a
elaboração de conceitos relativos às atividades do individuo e,
portanto, estabelecendo previsões a respeito da transformação da
realidade e da sociedade.
23
TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br
I – O ANTIGO TESTAMENTO: AS QUESTÕES
DAS DEFICIÊNCIAS NO PRÉ-CRISTIANISMO
Antigo Testamento é composto de 46 livros e constitui a
primeira grande parte da Bíblia cristã e a totalidade da
Bíblia hebraica, os primeiros cinco livros – os Livros da Lei
(ou Torá). Entretanto, a tradição cristã divide o Antigo
Testamento em outras partes e reordena os livros dividindo-os
em categorias; Lei, história, poesia (ou livros de sabedoria) e
Profecias. Muitos séculos antes de Cristo, escribas, sacerdotes,
profetas, reis e poetas do povo hebreu mantiveram registros de
sua história e de seu relacionamento com Deus. Esses registros
tinham grande significado e importância em suas vidas e, por isso,
foram copiados muitas e muitas vezes e passados de geração em
geração.
A Lei compreende os primeiros cinco livros. Já os Profetas
incluem: Isaías, Jeremias, Ezequiel, os Doze Profetas Menores,
Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel e 1 e 2 Reis. Os escritos reúnem o
grande livro de poesia, os Salmos, além de Provérbios, Jó, Ester,
Cantares de Salomão, Rute, Lamentações, Eclesiastes, Daniel,
Esdras, Neemias e 1 e 2 Crônicas.
Os livros do Antigo Testamento foram escritos em longos
pergaminhos confeccionados em pele de cabra e copiados
cuidadosamente pelos escribas. Geralmente, cada um desses
O
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livros era escrito em um pergaminho separado; como a Lei
ocupava espaço maior, foi escrita em dois grandes pergaminhos. O
aramaico foi a língua original de algumas partes dos livros de
Daniel e de Esdras. Hoje se tem conhecimento de que o
pergaminho de Isaías é o mais remoto trecho do Antigo
Testamento em hebraico. Estima-se que foi escrito durante o
século II a.C. e, por isso, se assemelha muito ao pergaminho
utilizado por Jesus na sinagoga, em Nazaré. Foi descoberto em
1947, juntamente com outros documentos, em uma caverna
próxima ao Mar Morto.
É no Antigo Testamento que iniciaremos a nossa saga de
contar a história das pessoas com deficiência ao longo do
Cristianismo!
Noé: o primeiro registro bíblico de uma pessoa com
deficiência
Os primeiros cinco livros do Antigo Testamento estão
repletos de regras e histórias. Inicia-se a Bíblia por Gênesis (nome
que significa começo, origem ou criação), formando cinco
pensamentos principais: 1 – O começo do mundo criado por Deus;
2 – O começo do homem como criatura de Deus; 3 – O começo do
pecado, que entrou no mundo através da desobediência do
homem; 4 – O começo da redenção, vista nas promessas e tipos do
livro e da família escolhida; e 5 – O começo da condenação, vista
na destruição e punição de indivíduos, cidades e mundos.
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No contexto do livro de Gênesis encontraremos o nosso
primeiro personagem: Noé ou Noach (do hebraico, “descanso,
alívio, conforto”). De acordo com Moisés, autor desses primeiros
cinco livros, Noé era filho de Lameque, que era filho de
Matusalém, que era filho de Enoque, que era filho de Jarede, que
era filho de Malalel, que era filho de Cainã ou Quenã, que era filho
de Enos, que era filho de Sete, que era filho de Adão, que era filho
de Deus. Era casado Noéma (ou Namá – Na’amah – cheia de
beleza) com uma mulher cananita e seus três filhos mais
conhecidos foram Sem, Cam (ou Cã) e Jafé. Noé é mencionado pela
primeira vez no capítulo 5, versículo 29, encerrando com sua
morte, capítulo 9, versículo 29, com 950 anos. O relato conta que
Noé viveu em uma época em que as outras linhagens humanas (a
partir dos descendentes de Caim e dos próprios parentes de Noé,
provavelmente) mostraram-se corrompidas.
O nascimento de Noé é descrito pela Bíblia em palavras
muito breves. Seu pai Lameque já sentia que Noé veio ao mundo
com uma missão especial dada por Deus, pois, por ocasião do
nascimento do filho, declarou: “29A quem chamou Noé, dizendo:
Este nos consolará acerca de nossas obras e do trabalho de nossas
mãos, por causa da terra que o Senhor amaldiçoou.” (Gn 5:29).
A Bíblia não oferece mais detalhes sobre o nascimento e
características físicas de Noé. No entanto, recorrendo a um
documento escrito em linguagem “apocalíptica” (repleta de sinais)
conhecido como “Livro de Enoque, O Profeta”, um trecho da obra
diz: “Depois de algum tempo meu filho Matusalém escolheu uma
esposa para seu filho Lameque. Ela engravidou e deu à luz uma
criança cuja pele era branca como a neve e vermelha como rosa;
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cujo cabelo era comprido e alvo como a lã e cujos olhos eram lindos.
Quando os abriu iluminou toda a casa, como o sol; a casa ficou cheia
de luz”.
Enoque diz que Lameque, pai de Noé, ficou intrigado com a
aparência do recém-nascido. Talvez até tenha duvidado da
fidelidade de sua esposa. Foi procurar seu pai, Matusalém, a quem
descreveu o menino, informando dentre outras coisas: “Parece o
fruto dos anjos do céu; é de natureza diferente da nossa, sendo no
todo diferente de nós”. (...) “Ele parece não ser meu, mas dos anjos”.
Pelos relatos históricos, hoje podemos dizer que essas são
características básicas de um albino. Noé devia realmente ser
muito diferente dos primos, tios, avós e demais parentes, todos
morenos e de olhos escuros. Foi uma diferença considerada
problemática o suficiente para levar o avô Matusalém, já com 369
anos de idade, a empreender uma viagem longa e cansativa para
procurar seu pai, o patriarca Enoque, bisavô do recém-nascido,
retirado do mundo “nas extremidades da terra”.
Enoque diz em seu livro que analisou a questão com a
sabedoria de seus muitos anos de vidas. Possuidor de um
misticismo nato e informado por seus alegados contatos diretos
com Deus, tranquilizou Matusalém, que voltou sabendo que o
bebê era, de fato, filho de Lameque, que ele deveria ser chamado
de Noé (consolo da Terra) e, com isso, ser preparado para eventos
que culminaram com o dilúvio, 600 anos após.
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A obra Livro de Enoque, O Profeta1 comenta ainda que
Lameque e sua esposa eram primos em primeiro grau, sendo “o
tipo comum de consanguinidade em albinismo”.
A cegueira de Isaque por 80 anos
O grande patriarca hebreu Isaque talvez seja o homem que
mais tempo viveu nessa deficiência. Seu nome é de origem
hebraica e significa “ele sorri” ou “ele ri”. Descendente de Abraão e
Sara, Isaque foi um dos três patriarcas do povo de Israel, junto
com seu pai Abraão e seu filho Jacó.
A história de Isaque começa a ser contada no capítulo 15
de Gênesis, quando, mesmo em idade avançada, o Senhor promete
1 Embora considerados uma obra apócrifa (do grego Apokryphos, significando oculto
ou não autêntico), os escritos deste livro foram encontrados na primavera de 1947,
quando um pastor árabe deixou cair um objeto perto das ruínas de Qumrán. Ao tentar
recuperar o artefato, o religioso ficou surpreso ao se deparar com 20 grandes vasos
dentro de uma espécie de câmara. Logo ele notou que seu objeto tinha quebrado um
desses vasos, descobrindo que dentro deles havia vários rolos de pergaminho que
traziam o conteúdo deste livro; assim eram descobertos os Manuscritos do Mar
Morto. Eles apresentavam escrituras muito bem conservadas que, além de registrar
todos os rituais e informações a respeito de um povo até então desconhecido, os
essênios, traziam também vários evangelhos escritos por apóstolos que não tinham
sido incluídos na Bíblia. Um desses pergaminhos guardava um texto incrivelmente
interessante e revelador: O Livro de Enoque, o Profeta. Essa obra é de grande
importância não somente em virtude da sua menção aos versículos 14 e 15 da epístola
de Judas, mas também por ter sido citada por vários padres da Igreja Católica
primitiva. Sabe-se que mais de 70 textos do livro de Enoque influenciaram não
somente os diversos escritos do Novo Testamento como também as obras de
Clemente de Alexandria, Tertuliano e Jerônimo.
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um filho a Abrão. Sarai, sua esposa, não lhe dera filhos e, por isso,
pediu que Abrão possuísse sua serva egípcia Agar, a fim de terem
filhos por esse meio, nascendo uma criança de nome Ismael. A
convivência entre eles não era agradável, o que ocasionou a
partida de Agar e Ismael para outras terras. Ismael, embora filho
de Abrão, não era o filho da promessa do Senhor. Quando Abrão
atingiu 99 anos, apareceu o Senhor e mudou seu nome para
Abraão e o de Sarai para Sara. Quando o Senhor disse que dentro
de um ano lhe daria um filho, Abraão riu. O mesmo ocorreu com
Sara quando recebeu a notícia, por estarem em idade avançada. O
nascimento de Isaque está ligado ao riso e não apenas faz alusão
ao sorriso de Abraão e de Sara, mas também pode ser uma oração
implícita de que Deus sorrirá para o filho deles e será generoso
com ele.
Isaque protagonizou momentos marcantes do Antigo
Testamento. Seu pai Abraão foi provado pelo Senhor quando
Isaque ainda era criança, pedindo-lhe a sua vida como sacrifício:
“E disse: Toma agora o teu filho, o teu único filho, Isaque, a quem
amas, e vai-te à terra de Moriá, e oferece-o ali em holocausto sobre
uma das montanhas, que eu te direi.” (Gn 22:2). Tendo feito de
acordo com o que o Senhor ordenou, pouco antes de sacrificar seu
filho, um anjo bradou do céu e lhe disse: “Então disse: Não
estendas a tua mão sobre o moço, e não lhe faças nada; porquanto
agora sei que temes a Deus, e não me negaste o teu filho, o teu
único filho.” (Gn 22:12).
Mais tarde, casou-se com uma linda jovem mesopotâmia,
Rebeca, que lhe gerou dois filhos do sexo masculino somente 20
anos depois do casamento: Esaú e Jacó. Eram gêmeos, sendo Esaú
o primogênito. Um homem rude, cheio de pelos no corpo e nas
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mãos, tornou-se caçador, dedicado às atividades do campo e da
guerra, enquanto Jacó era um homem simples e, como diz Gênesis,
“habitante de tendas”. O pai preferia seu primogênito pelo que era
e pelo que trazia das caçadas; Rebeca dedicava sua atenção e
carinho a Jacó, protegendo-o sempre e mal imaginando que ele se
transformaria no maior patriarca hebreu e que um dia receberia
de Deus o nome de Israel (“o que luta com Deus”).
Ao envelhecer e ficar cego, certamente isso foi peça
fundamental para outra passagem bíblica. Sem enxergar, idoso,
com suas faculdades debilitadas e preocupado com a
possibilidade de morte iminente, Isaque chamou seu filho Esaú
para ele apanhar alguma caça, a fim de receber sua bênção.
“E aconteceu que, como Isaque envelheceu, e os seus olhos se
escureceram, de maneira que não podia ver, chamou a Esaú,
seu filho mais velho, e disse-lhe: Meu filho. E ele lhe disse:
Eis-me aqui.
E ele disse: Eis que já agora estou velho, e não sei o dia da
minha morte;
Agora, pois, toma as tuas armas, a tua aljava e o teu arco, e
sai ao campo, e apanha para mim alguma caça.
E faze-me um guisado saboroso, como eu gosto, e traze-mo,
para que eu coma; para que minha alma te abençoe, antes
que morra.” (Gn 27:1-4)
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Para entender a densidade desse fato é preciso entender
que essa bênção paterna não era um mero palavrório, mas um ato
de peso que conferia a herança de um clã ao abençoado pelo pai. E
os envolvidos sabiam muito bem que, uma vez dada, essa bênção
não poderia ser retirada nem transferida a outrem, pois vinha de
Deus!
Enquanto Esaú estava caçando, Jacó, depois de ouvir o
conselho de sua mãe, enganou seu pai cego propositadamente,
passando-se por Esaú, obtendo assim, a bênção de seu pai, de tal
forma que Jacó tornou-se herdeiro principal de Isaque e Esaú foi
deixado numa posição inferior. Isaque enviou Jacó à Mesopotâmia
para escolher uma mulher de sua própria família. Depois de 20
anos trabalhando para Labão, Jacó voltou para casa e reconciliou-
se com seu irmão gêmeo.
Mais tarde Isaque explicaria a Esaú o engano e daria o
veredito final: “Então respondeu Isaque a Esaú dizendo: Eis que o
tenho posto por senhor sobre ti, e todos os seus irmãos lhe tenho
dado por servos; e de trigo e de mosto o tenho fortalecido; que te
farei, pois, agora, meu filho?” (Gn 27:37). Nem o fato de ser cego e
de ter-se enganado devido à deficiência visual levou Isaque a
mudar sua posição anteriormente assumida.
Isaque viveu até os 180 anos de idade e dessa vida toda
passou 80 anos na dependência de Rebeca e de seus criados. Ele
foi o único patriarca bíblico que não deixou Canaã, o único que
não teve o nome mudado e o patriarca de vida mais longa.
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A deficiência temporária de Jacó em decorrência de uma luta
espiritual
Já vimos que Jacó, ao se passar pelo irmão para obter a
bênção do pai, Isaque, entrou em pé de guerra com Esaú. Sua mãe
o aconselhou a sair de casa, prometendo chamá-lo de volta
quando o irmão se acalmasse. Jacó, com idade entre 76 e 78 anos
aproximadamente, foi para Padã-Arã, região da atual Síria. Como
um homem muito errado na fé, traiu seu irmão (Gênesis, 25:33),
enganou o pai (Gênesis, 27:23), fugiu da ira do seu irmão (Gênesis,
27:41-44) e não teve boas relações com o sogro (Gênesis, 31). Mas
Jacó tinha só um pensamento: vencer a qualquer custo, conseguir
tudo que desejava.
Morando em Padã-Arã, casou-se com duas jovens, Lia e
Raquel. Após trabalhar 14 anos pelas esposas e mais seis anos
pela família, Deus diz para retornar à sua terra. Ele parte com suas
duas esposas, duas criadas, onze filhos, seus criados e respectivos
rebanhos. Após fazer um pacto com Deus, que o ajudaria a voltar
para a Terra Prometida são e salvo, já em viagem e rumando sul
ao longo de uma rota que ficaria a leste do rio Jordão, a caravana
chegou ao vale de Jaboque, um afluente do rio maior. Jacó tomou
ciência de que o irmão estaria a caminho com um exército de 400
homens e resolveu então mandar a família atravessar o rio para
ali ficar em comunhão com Deus e passar a noite à margem norte
do afluente.
Mais tarde, naquela mesma noite, sozinho na margem
meridional do Jaboque, em meio a essa crise aparentemente
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grave, Jacó demonstrou coragem em um dos episódios mais
enigmáticos da Bíblia. Sozinho e na escuridão, viu-se lutando com
um estranho misterioso (Gn 32:22-32):
“E levantou-se aquela mesma noite, e tomou as suas duas
mulheres, e as suas duas servas, e os seus onze filhos, e
passou o vau de Jaboque.
E tomou-os e fê-los passar o ribeiro; e fez passar tudo o que
tinha.
Jacó, porém, ficou só; e lutou com ele um homem, até que a
alva subiu.
E vendo este que não prevalecia contra ele, tocou a juntura
de sua coxa, e se deslocou a juntura da coxa de Jacó, lutando
com ele.
E disse: Deixa-me ir, porque já a alva subiu. Porém ele disse:
Não te deixarei ir, se não me abençoares.
E disse-lhe: Qual é o teu nome? E ele disse: Jacó.
Então disse: Não te chamarás mais Jacó, mas Israel; pois
como príncipe lutaste com Deus e com os homens, e
prevaleceste.
E Jacó lhe perguntou, e disse: Dá-me, peço-te, a saber o teu
nome. E disse: Por que perguntas pelo meu nome? E
abençoou-o ali.
E chamou Jacó o nome daquele lugar Peniel, porque dizia:
Tenho visto a Deus face a face, e a minha alma foi salva.
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E saiu-lhe o sol, quando passou a Peniel; e manquejava da
sua coxa.
Por isso os filhos de Israel não comem o nervo encolhido, que
está sobre a juntura da coxa, até o dia de hoje; porquanto
tocara a juntura da coxa de Jacó no nervo encolhido.” (Gn
32:22-32)
Enquanto, no versículo 24, Jacó identifica a criatura como
“um homem”, no versículo 28 fica claro que ele lutou com o
próprio Deus. Jacó precisava dessa experiência marcante com
Deus que o fizesse mudar radicalmente, para demovê-lo de seu
orgulho e quebrar sua prepotência e hipocrisia. Podemos deduzir
que o objetivo da luta era quebrantar Jacó, mostrando-lhe ser uma
criatura sem forças em si mesma. Jacó tinha um “eu” muito forte
que demandou de uma luta de uma noite inteira, quando ele se
recusava a ceder.
Essa experiência com Deus, Ranauro e Limeira da Sá
(1999) assim analisam: “Isto é muito sério, pois muitos entendem
que Deus não pode servir-se de coisas dessa natureza no trato com
as pessoas. Mas Deus usou uma ‘deficiência’ para marcar Jacó, para
mudar sua história, para lembrá-lo constantemente de que ele não
deveria sentir-se autossuficiente. Pode Jacó sentir vitória e derrota
numa única situação. Dessa vez a bênção era dele mesmo, não
precisou ser roubada nem tramada, mas houve um preço: a luta e
um sinal, a deficiência na coxa. Quando se agarrou desamparado,
recebeu o direito que havia tentado comprar (Gn 27:23) e a bênção
que havia tentado (Gn 27:23). De fato sua vida mudou a partir daí e
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veio ele a constituir uma grande nação. Seu novo nome – Israel –
significa “príncipe”. Príncipe não por sua força, mas por sua
fraqueza, como também por sua perseverança. Parece que, tocando
em sua aparência, em sua força física, Deus conseguiu tocar em seu
‘eu’ mais profundo. Crer na existência de um Deus-Pessoa, em um
Deus pessoal, não implica crer que Ele pode, ainda hoje, agir assim
com determinadas pessoas?” (pp. 72-73).
Essa história fascinou gerações de judeus e cristãos.
Matreiro, dúbio e às vezes amedrontado, o segundo filho de
Isaque parecia um candidato improvável para incorporar e
realização da promessa de Deus à nação de Israel. Notaremos, no
Antigo Testamento e na tradição rabínica, que sua falibilidade
humana foi, precisamente, o que ajudou a provar que a vontade de
Deus, e não a iniciativa humana ou o mérito individual, foi a
responsável por estabelecer os israelitas na Terra Prometida e
moldar o destino da nação.
Jacó retornou à terra de seus pais com 98 anos e ainda viu
seu pai durante mais 22 anos, que morreu com 180 anos de idade,
dez anos antes de Jacó ir ao Egito encontrar seu filho José. Jacó
viveu 17 anos no Egito (Gn 47:28) e morreu com 147 anos.
Lia, desprezada, mas recompensada por Deus
Lia fora a primeira esposa de Jacó. A mais velha das duas
filhas de Labão, ela não tinha a mesma beleza que sua irmã
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Raquel. Por isso, fora uma mulher que sentiu o desprezo do pai ao
ser usada em benefício dele. Esse foi só o início do seu sofrimento.
Lia era desprovida de beleza. Em versões mais recentes da
Bíblia, ela é descrita como tendo um “olhar terno” e nenhum outro
detalhe sobre sua aparência física, quando é apresentada em
Gênesis 29:16-17. Entre teóricos e historiadores é debatido se o
adjetivo “terno” foi usado para significar “delicado e suave” ou
“fraco”. Algumas traduções indicam que “olhar terno” pode
significar que Lia possuía olhos azuis ou claros. Na Bíblia vulgata
essa dúvida se acentua ainda mais em Gênesis 29:17: “Lia tinha os
olhos defeituosos e Raquel era bela de talhe e rosto”. Olhos
defeituosos?
A história dela é marcada pela falta de consideração, de
amor, de apreço. Seu pai a usou para ter mais dinheiro. Lia se
tornou esposa de Jacó através de uma artimanha de Labão, que a
colocou no lugar de Raquel na noite de núpcias. Ao se casar, tinha
um marido que não a amava. Depois, sua irmã casou-se com seu
esposo, cujo amor era maior por essa (Gn 29:30). O desprezo era
tanto que Deus teve compaixão de Lia e a fez mãe antes de Raquel.
Gerou seis filhos e uma filha para Jacó, enquanto sua criada Zilpa
deu-lhe mais dois filhos, que também eram contados como de Lia,
antes que Raquel fosso capaz de ter seus próprios filhos.
Essa é a prova de que Deus sabia do sofrimento de Lia e a
colocou em posição de vantagem em relação a Raquel. O Senhor se
mostrou no controle de todas as coisas ao conceder filhos a Lia,
deixou claro que, mesmo que Jacó não a amasse, Ele a amava,
cuidava e ajudava a passar pelos sofrimentos.
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Moisés: problemas de fala e autoestima
O segundo livro da Bíblia, Êxodo, significando saída, ou
partida, tem como palavra-chave a redenção demonstrada pela
libertação do um povo escolhido, liberto de uma situação
angustiante, a escravidão egípcia. O interessante é que o autor e
personagem principal de Êxodo era Moisés, vítima de um sério e
perturbador distúrbio da comunicação, que alguns estudos
históricos apontam como uma acentuada gagueira, que afetou
profundamente sua autoestima. No começo de sua história,
Moisés, personagem predominante do Antigo Testamento, era
tímido, humilde, buscando ficar na obscuridade. Mas foi
justamente uma pessoa com essas características que Deus
escolheu para uma grande obra.
O problema de sua fala deve ter-se agravado em um
momento de forte tensão em que ele, morando no deserto por
muitos anos, decidiu levar seu rebanho ao monte Horeb para
pastar. No meio da noite calma viu uma grande touceira de sarça
pegando fogo, mas sem queimar. Aproximando-se com cautela,
ouviu uma voz. Era o próprio Deus, chamando-o para a grande
missão de vida: tirar os hebreus do Egito e conduzi-los à Terra
Prometida. Parte desse diálogo, em Êxodo 4, acentua bem a sua
deficiência e como Deus começou a instruir Moisés em sua futura
missão:
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“Então disse Moisés ao Senhor: Ah, meu Senhor! eu não sou
homem eloquente, nem de ontem nem de anteontem, nem
ainda desde que tens falado ao teu servo; porque sou pesado
de boca e pesado de língua.
E disse-lhe o Senhor: Quem fez a boca do homem? ou quem
fez o mudo, ou o surdo, ou o que vê, ou o cego? Não sou eu, o
Senhor?
Vai, pois, agora, e eu serei com a tua boca e te ensinarei o
que hás de falar.
Ele, porém, disse: Ah, meu Senhor! Envia pela mão daquele a
quem tu hás de enviar.
Então se acendeu a ira do Senhor contra Moisés, e disse: Não
é Arão, o levita, teu irmão? Eu sei que ele falará muito bem;
e eis que ele também sai ao teu encontro; e, vendo-te, se
alegrará em seu coração.
E tu lhe falarás, e porás as palavras na sua boca; e eu serei
com a tua boca, e com a dele, ensinando-vos o que haveis de
fazer.
E ele falará por ti ao povo; e acontecerá que ele te será por
boca, e tu lhe serás por Deus.
Toma, pois, esta vara na tua mão, com que farás os sinais.”
(Ex 4:10-17)
A reação de Moisés, naquele momento, foi no mínimo
cuidadosa ao dizer: “Ele, porém, disse: Ah, meu Senhor! Envia pela
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mão daquele a quem tu hás de enviar.” (Ex 4:13), sendo o
verdadeiro sentido dessa frase no hebraico “envia outra pessoa”.
Ele preferiu enfatizar a sua deficiência, não se atentando ao poder
de Deus. Quando o Senhor disse em “ser a sua boca”, poderia livrá-
lo da sua dificuldade de dicção ou mesmo usá-lo, a despeito dela.
As desculpas de Moisés nos demonstram, a princípio, sua falta de
autoconfiança e uma fé momentânea.
Ranauro e Lima de Sá (1999) acentuam que, “quando Deus
comprometeu-se a ser com sua boca, não estava assumindo a
responsabilidade de livrá-lo da dificuldade. Apesar dela,
ressaltaríamos, Deus o havia escolhido. Na perspectiva de Deus, essa
deficiência poderia até mesmo ter um propósito, ou simplesmente
não interferiria naquilo a que Ele o destinara. Na narrativa bíblica,
encontramos Deus tentando fazer com que Moisés levantasse seus
olhos para ver a amplitude do significado de existência de pessoas
com dificuldades semelhantes, e até maiores, o que está dentro da
administração do Deus-Criador” (pp. 75-76).
Deus contra-argumentou com o seguinte e forte
questionamento: “E disse-lhe o Senhor: Quem fez a boca do homem?
ou quem fez o mudo, ou o surdo, ou o que vê, ou o cego? Não sou eu,
o Senhor?” (Ex 4:11). O Senhor procurou encorajá-lo também por
outros meios para enfrentar os desafios que se punham à sua
frente, ou seja, os líderes hebreus e a corte do faraó, chegando a
demonstrar que Ele estaria efetivamente ao seu lado.
Moisés, cônscio de suas limitações quanto à desenvoltura
em falar, levou Deus a indicar uma solução: o irmão de Moisés,
Arão, seria seu companheiro de todas as horas, tanto para
convencer os líderes hebreus quanto para falar ao faraó nas horas
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aprazadas. Arão foi vital para o sucesso de todo o ambicioso
projeto, uma vez que os planos, os comentários, as novas ações e
providências, e mesmo os novos argumentos diferentes eram
transmitidos por Deus a Moisés e este os repassava a Arão. Por
sua vez, este não dispensava nunca a carismática presença de
Moisés e tudo transmitia ao faraó e sua corte, aos líderes hebreus
e ao povo, tendo desempenhado essa missão por muitos anos.
Foram várias as tentativas frustradas de tirar o povo de
uma escravidão cada vez mais opressora, levando Moisés a se
queixar com Deus: “Moisés, porém, falou perante o Senhor, dizendo:
Eis que os filhos de Israel não me têm ouvido; como, pois, Faraó me
ouvirá? Também eu sou incircunciso de lábios.” (Ex 6:12). Deus
continuou com a mesma orientação operacional até então
adotada, indicando Arão mais uma vez como o seu porta-voz.
Tudo o que se sabe a seu respeito está na Torá, ou
Pentateuco (os primeiros cinco livros da Bíblia), e em algumas
referências espalhadas pelo Antigo Testamento, sem nenhum
registro primário fora das escrituras. Foi a personalidade de
Moisés que uniu Israel através de sua história, exercendo uma
variedade única de papéis: legislador, chefe militar e político,
profeta e fundador de uma religião de estado. Ele é o profeta mais
importante do Judaísmo, igualmente reconhecido pelo
Cristianismo e Islamismo, assim como em outras religiões, sendo
considerado um grande profeta pelos muçulmanos. É o grande
libertador dos hebreus, tido por eles como seu principal legislador
e mais importante líder religioso. A Bíblia também o destaca: “E
era o homem Moisés mui manso, mais do que todos os homens que
havia sobre a terra.” (Nm 12:3).
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Mesmo com sua deficiência funcional de ordem bastante
grave, Moisés assumiu o papel que foi a ele indicado e conseguiu
sair-se bem da missão, com a ajuda permanente de seu irmão
Arão e foi, sem dúvida, uma das mais fortes figuras de toda a
história dos hebreus.
Pessoas excluídas dos sacrifícios ou sacerdócio
Os antigos hebreus (etnônimo possivelmente oriundo do
termo hebraico Éber, significando “descendentes do patriarca
bíblico Éber”) foram um povo semítico da região do antigo
corredor sírio-palestino, localizado no Oriente Médio. O etnônimo
também foi utilizado a partir do período romano para se referir
aos judeus, um grupo étnico e religioso de ascendência hebraica.
Acredita-se que, originalmente, os hebreus chamavam a si
mesmos de israelitas, embora esse termo tenha caído em desuso
após a segunda metade do século X a.C. Os hebreus falavam uma
língua semítica da família cananeia, à qual se referiam pelo nome
de “língua de Canaã” (Isaías 19:18). Esse povo, apagado pela
grandeza de estados muito maiores, tecnologicamente avançados
e mais importantes politicamente, foi responsável, contudo, pela
composição de alguns dos livros que compõem a Bíblia, obra
considerada sagrada por religiões ocidentais e orientais.
Será no contexto desse povo antigo que descobriremos os
primeiros registros de um olhar diferenciado no qual tanto a
doença crônica quanto a deficiência física ou intelectual, e mesmo
qualquer deformação, por menor que fosse, indicavam um grau de
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impureza ou de pecado. Início de uma visão cultural que ainda
ressoa nos dias atuais.
Em Levítico, terceiro livro da Bíblia, parte do Pentateuco,
sua autoria, tradicionalmente atribuída a Moisés, contém a Lei dos
sacerdotes da Tribo de Levi, a tribo de Israel que foi escolhida
para exercer a função sacerdotal no meio do seu povo. Nesse
conjunto de normas e orientações para os sacerdotes, chegou a
ser determinado por Moisés, capítulo 21:
“Falou mais o Senhor a Moisés, dizendo:
Fala a Arão, dizendo: Ninguém da tua descendência, nas
suas gerações, em que houver algum defeito, se chegará a
oferecer o pão do seu Deus.
Pois nenhum homem em quem houver alguma deformidade
se chegará; como homem cego, ou coxo, ou de nariz chato,
ou de membros demasiadamente compridos,
Ou homem que tiver quebrado o pé, ou a mão quebrada,
Ou corcunda, ou anão, ou que tiver defeito no olho, ou sarna,
ou impigem, ou que tiver testículo mutilado.
Nenhum homem da descendência de Arão, o sacerdote, em
quem houver alguma deformidade, se chegará para oferecer
as ofertas queimadas do Senhor; defeito nele há; não se
chegará para oferecer o pão do seu Deus.
Ele comerá do pão do seu Deus, tanto do santíssimo como do
santo.
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Porém até ao véu não entrará, nem se chegará ao altar,
porquanto defeito há nele, para que não profane os meus
santuários; porque eu sou o Senhor que os santifico.” (Lv
21:16-23)
Imediatamente após o êxodo do Egito, foi dada essa ordem
a Moisés: “Santifica-me todo o primogênito, o que abrir toda a
madre entre os filhos de Israel, de homens e de animais; porque meu
é.” (Ex 13:2). Endossando isso, no tratado de Bechorot – a terceira
mais longa das seis Ordens da Mishná, que aborda na sua maioria
o serviço religioso no Templo de Jerusalém, os Korbanot ou
“oferendas sacrificiais” e outros assuntos considerados ou
relacionados a essas “Coisas Sagradas” –, são citados oito tipos de
defeitos, inclusive a falta de orelhas, seu tamanho ou formato
defeituoso, como impedimento para os serviços do templo.
Uma importante obra paralela à Bíblia, História dos
Hebreus2, do historiador Flávio Josefo, confirma essa
2 A obra História dos Hebreus é outra fonte segura de pesquisa que temos paralela à
Bíblia. Tendo atravessado séculos até os nossos dias, a história do povo judeu
permanece como um fiel relato dos acontecimentos contidos nas escrituras. Esse livro
traz a história de personagens dos evangelhos e de Atos dos Apóstolos, tais como
Pilatos, os Agripas e os Herodes, e inúmeros pormenores do mundo greco-romano.
Seu autor, Flávio Josefo, foi um historiador e apologista judaico-romano, descendente
de uma linhagem de importantes sacerdotes e reis, que registrou in loco a destruição
de Jerusalém, pelas tropas do imperador romano Vespasiano, comandadas por seu
filho Tito, futuro imperador. As obras de Josefo fornecem um importante panorama,
abordando a história judaica, principalmente o período que marcou a segunda maior
tragédia dos filhos de Abraão – a destruição do santo templo no ano 70 de nossa era.
Uma confirmação das promessas de Deus para o seu povo e o cumprimento de sua
palavra em todos os fatos registrados em suas páginas.
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determinação. No capítulo 10, sobre a lei que se refere aos
sacrifícios, aos sacerdotes, às festas e outras solenidades, tanto
civis quanto políticas, ele destaca: “Se entre os sacerdotes houvesse
algum defeito corporal, ser-lhe-ia permitido estar com os demais,
mas não poderia subir ao altar ou entrar no Templo. Eram
obrigados a ser puros e castos não somente quando celebravam o
serviço divino, mas em todo o resto de sua vida” (2004, p. 140).
Mais adiante, capítulo 15, sobre as diversas outras
observações legais do sumo sacerdote, Josefo revela como
deveriam ser tratados aqueles que não podiam exercer tais cargos
por terem deficiência: “Os que eram de família sacerdotal e não
podiam exercer o sacerdócio, porque eram cegos, ficavam com os
que estavam puros e não tinham nenhum defeito corporal.
Recebiam a mesma porção que os levitas, que serviam no altar, mas
estavam vestidos como os leigos, porque só aos que exerciam o
serviço divino era permitido usar o hábito sacerdotal” (2004, p.
1.340).
Muitas vezes era até providencial uma deformidade para
que a pessoa não viesse a ter um sacerdócio no futuro, conforme
se encontra no livro décimo quarto, capítulos 23, 24, 25 e 26,
Antiguidades judaicas, Parte I: “Esses bárbaros não se contentaram
de saquear a cidade, devastaram também os campos, destruíram
Marissa e não somente fizeram Antígono rei, mas entregaram-lhe
Hircano e Fazael, acorrentados. Ele mandou cortar as orelhas ao
primeiro, a fim de que, sobrevindo alguma mudança, ele fosse tido
como incapaz de exercer o sumo sacerdócio, porque nossas leis
proíbem conceder-se essa honra aos que têm algum defeito
corporal” (JOSEFO, 2004, p. 1044).
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Vemos na Bíblia que existem doze defeitos físicos
aparentes, qualquer um dos quais desqualifica um sacerdote para
o desempenho de suas funções (Lev. 21:16-23). Só que a
“Halachá” (nome do conjunto de leis da religião judaica, incluindo
os 613 mandamentos que constam na Torá e os posteriores
mandamentos rabínicos e talmúdicos relacionados aos costumes e
tradições, servindo como guia do modo de viver judaico) aumenta
essa lista para 142, o que achamos desnecessário reproduzir aqui.
Os defeitos físicos que desqualificam um animal para o sacrifício
também são enumerados em Levítico, 22:
“Nenhuma coisa em que haja defeito oferecereis, porque não
seria aceita em vosso favor.
E, quando alguém oferecer sacrifício pacífico ao Senhor,
separando dos bois ou das ovelhas um voto, ou oferta
voluntária, sem defeito será, para que seja aceito; nenhum
defeito haverá nele.
O cego, ou quebrado, ou aleijado, o verrugoso, ou sarnoso,
ou cheio de impigens, estes não oferecereis ao Senhor, e
deles não poreis oferta queimada ao Senhor sobre o altar.
Porém boi, ou gado miúdo, comprido ou curto de membros,
poderás oferecer por oferta voluntária, mas por voto não
será aceito.
O machucado, ou moído, ou despedaçado, ou cortado, não
oferecereis ao Senhor; não fareis isto na vossa terra.
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Também da mão do estrangeiro nenhum alimento
oferecereis ao vosso Deus, de todas estas coisas, pois a sua
corrupção está nelas; defeito nelas há; não serão aceitas em
vosso favor.” (Lv 22:20-25)
Tais defeitos são aumentados para 73 na Lei Rabínica,
escritos rabínicos ao longo da história do Judaísmo, literatura da
era talmúdica, em oposição à literatura rabínica medieval e
moderna. Um defeito temporário desqualifica um sacerdote para
sua função e um animal, para o sacrifício, apenas pelo tempo que
durar. Consultando o verbete “defeito” da Enciclopédia Judaica
(Jewish Encyclopedia, publicada entre 1901 e 1906 por Funk e
Wagnalls, contendo cerca de 15.000 artigos em 12 volumes sobre
a história dos judeus e do Judaísmo, hoje de domínio público),
lemos o seguinte: “Defeito (Heb. mum) – Termo bíblico referente a
um defeito físico ou ritual, que excluía uma pessoa do serviço do
templo e tornava um animal impróprio para ser sacrificado”.
Segundo a Lei Rabínica, por exemplo, um defeito físico do
marido ou da mulher pode, em certas circunstâncias, até invalidar
um contrato de casamento. De volta à Bíblia, o livro Levítico é
contundente quanto aos homens com deficiências físicas,
afirmando isso taxativamente, conforme destaque do capítulo 21:
“Nenhum homem da descendência de Arão, o sacerdote, em
quem houver alguma deformidade, se chegará para oferecer
as ofertas queimadas do Senhor; defeito nele há; não se
chegará para oferecer o pão do seu Deus.
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Ele comerá do pão do seu Deus, tanto do santíssimo como do
santo.
Porém até ao véu não entrará, nem se chegará ao altar,
porquanto defeito há nele, para que não profane os meus
santuários; porque eu sou o Senhor que os santifico.” (Lv
21:21-23)
As causas das deficiências oriundas de castigos entre os
hebreus
No contexto da história do povo hebreu, além das
deficiências ou das deformações consideradas como
consequências diretas de pecados ou de crimes, tais como a
cegueira, a surdez, a paralisia, por exemplo, havia aquelas
provenientes de acidentes, de agressões, de participação em lutas
armadas contra inimigos do povo e as punições previstas em lei.
Outras eram provenientes de marcas da própria escravidão:
orelha ou nariz cortado, dedos ou a mão, olhos vazados.
No quinto livro da Bíblia, Deuteronômio (palavra grega
que significa “segunda lei” ou “lei repetida”), Moisés escreve as
últimas palavras semelhantemente entregues durante os últimos
sete dias de sua vida, não uma repetição da lei, mas sim uma
aplicação dela em vista das novas condições que Israel
encontraria em Canaã e devido à sua desobediência anterior.
Moisés tinha nesses escritos o objetivo de levar Israel à
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obediência, encorajamento e advertência. Deuteronômio é uma
espécie de testamento do velho Moisés às bordas da Terra
Prometida. Nele, capítulo 25, encontramos um castigo severo
(amputação da mão) para um procedimento considerado
altamente pecaminoso por parte da mulher:
“Quando pelejarem dois homens, um contra o outro, e a
mulher de um chegar para livrar a seu marido da mão do
que o fere, e ela estender a sua mão, e lhe pegar pelas suas
vergonhas,
Então cortar-lhe-ás a mão; não a poupará o teu olho.” (Dt
25:11-12)
Os castigos ou penas por faltas contra as leis de Deus e
mesmo de Israel eram por vezes muito cruéis e de caráter
extremo. Eles correspondiam a alguma necessidade da época em
que foram estabelecidos. O próprio Moisés elaborou muitos deles;
no capítulo 13 do livro que disserta sobre os adoradores de outros
deuses, “Para que todo o Israel o ouça e o tema, e não torne a fazer
semelhante maldade no meio de ti.” (Dt 13:11).
Dureza que também é repetida nas palavras de Moisés
com relação à criação de filhos em Deuteronômio, 21:
“Quando alguém tiver um filho contumaz e rebelde, que não
obedecer à voz de seu pai e à voz de sua mãe, e, castigando-
o eles, lhes não der ouvidos,
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Então seu pai e sua mãe pegarão nele, e o levarão aos
anciãos da sua cidade, e à porta do seu lugar;
E dirão aos anciãos da cidade: Este nosso filho é rebelde e
contumaz, não dá ouvidos à nossa voz; é um comilão e um
beberrão.
Então todos os homens da sua cidade o apedrejarão, até que
morra; e tirarás o mal do meio de ti, e todo o Israel ouvirá e
temerá.” (Dt 21:18-21)
Maldições sem fim são indicadas para os que não seguiam
os preceitos e uma delas está em Deuteronômio, 28:
“Será, porém, que, se não deres ouvidos à voz do Senhor
teu Deus, para não cuidares em cumprir todos os seus
mandamentos e os seus estatutos, que hoje te ordeno,
então virão sobre ti todas estas maldições, e te alcançarão:
(Dt 28:15)
(...)
O Senhor te ferirá com loucura, e com cegueira, e com
pasmo de coração;
E apalparás ao meio-dia, como o cego apalpa na escuridão,
e não prosperarás nos teus caminhos; porém somente
serás oprimido e roubado todos os dias, e não haverá
quem te salve.” (Dt 28:28-29).
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O livro de Juízes, que trata da história dos israelitas entre a
conquista da terra de Canaã no final da vida de Josué até o
estabelecimento do primeiro reinado, em seu contexto procurava
levar o povo hebreu a melhor conhecer seus grandes heróis, tais
como Otoniel, Aod, Baraque, Débora, Gideão, Jefté e Sansão,
personagens que libertaram o povo da opressão constante dos
inimigos e tentaram fazer com que esse mesmo povo observasse
as leis estabelecidas. Juízes nos relata fatos que demonstram
claramente que, na luta pela segurança do povo hebreu, às vezes
era indispensável “passar a fio de espada” todos os homens
aprisionados. No entanto, em Juízes 1, existe o relato de um caso
de evidente “desencorajamento” permanente aos ataques aos
hebreus, num severo castigo aplicado a um líder cananeu por uma
das tribos de Judá:
“E sucedeu, depois da morte de Josué, que os filhos de Israel
perguntaram ao Senhor, dizendo: Quem dentre nós primeiro
subirá aos cananeus, para pelejar contra eles?
E disse o Senhor: Judá subirá; eis que entreguei esta terra na
sua mão.
Então disse Judá a Simeão, seu irmão: Sobe comigo à minha
herança. E pelejemos contra os cananeus, e também eu
contigo subirei à tua herança. E Simeão partiu com ele.
E subiu Judá, e o Senhor lhe entregou na sua mão os
cananeus e os perizeus; e feriram deles, em Bezeque, a dez
mil homens.
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E acharam Adoni-Bezeque em Bezeque, e pelejaram contra
ele; e feriram aos cananeus e aos perizeus.
Porém Adoni-Bezeque fugiu, mas o seguiram, e prenderam-
no e cortaram-lhe os dedos polegares das mãos e dos pés.
Então disse Adoni-Bezeque: Setenta reis, com os dedos
polegares das mãos e dos pés cortados, apanhavam as
migalhas debaixo da minha mesa; assim como eu fiz, assim
Deus me pagou. E levaram-no a Jerusalém, e morreu ali.
E os filhos de Judá pelejaram contra Jerusalém, e tomando-
a, feriram-na ao fio da espada; e puseram fogo na cidade.”
(Jz 1:1-8)
Castigo violento também ocorreu com Sansão. Sua
descrição na Bíblia hebraica corresponde a um homem nazireu,
filho de Manoá, nascido de mãe estéril (Juízes 13:2) e que liderou
os israelitas contra os filisteus. Ele era da tribo de Dã e foi o
décimo terceiro juiz de Israel, sucedendo a Abdon. Sansão foi juiz
do povo de Israel por vinte anos, aproximadamente de 1177 a.C. a
1157 a.C. Distinguia-se por ter uma força sobre-humana que,
segundo a Bíblia, era-lhe fornecida pelo Espírito do Senhor
enquanto se mantivesse obediente ao senhor dos Exércitos.
Subjugava facilmente seus inimigos e produzia feitos
inalcançáveis por homens comuns, como rasgar um leão novo ao
meio, enfrentar um exército inteiro e matar uma multidão de
filisteus (depois de descobrir que foi enganado) para pegar suas
roupas, pagando uma aposta. De acordo com Juízes 16, Sansão
apaixonou-se por Dalila, uma mulher do povo filisteu, a qual o
traiu entregando-o aos chefes de sua nação:
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“E descobriu-lhe todo o seu coração, e disse-lhe: Nunca
passou navalha pela minha cabeça, porque sou nazireu de
Deus desde o ventre de minha mãe; se viesse a ser rapado, ir-
se-ia de mim a minha força, e me enfraqueceria, e seria
como qualquer outro homem.
Vendo, pois, Dalila que já lhe descobrira todo o seu coração,
mandou chamar os príncipes dos filisteus, dizendo: Subi esta
vez, porque agora me descobriu ele todo o seu coração. E os
príncipes dos filisteus subiram a ter com ela, trazendo com
eles o dinheiro.
Então ela o fez dormir sobre os seus joelhos, e chamou a um
homem, e rapou-lhe as sete tranças do cabelo de sua cabeça;
e começou a afligi-lo, e retirou-se dele a sua força.
E disse ela: Os filisteus vêm sobre ti, Sansão. E despertou ele
do seu sono, e disse: Sairei ainda esta vez como dantes, e me
sacudirei.
Porque ele não sabia que já o Senhor se tinha retirado dele.
Então os filisteus pegaram nele, e arrancaram-lhe os olhos, e
fizeram-no descer a Gaza, e amarraram-no com duas
cadeias de bronze, e girava ele um moinho no cárcere.” (Jz
16:17-21)
Após ser cegado pelos filisteus, Sansão passou à condição
de escravo. Morreu sacrificando-se para se vingar de seus
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inimigos, após ter clamado a Deus pela restituição de sua força
para um último e definitivo ato.
O vazamento dos olhos era um castigo severo, um tanto
em moda naquelas regiões. Existe um baixo relevo da cultura
assíria, muito conhecido, que nos mostra um soberano vazando os
olhos de três prisioneiros, um deles ajoelhado e os outros dois em
pé, puxados pelo próprio rei para perto de si por meio de um fio
preso aos lábios dos infelizes por argolas. Esse castigo
desencorajava as fugas, sem causar maiores limitações ou
dificuldades para trabalhos pesados.
O Monte Sinai e a questão da hanseníase na Bíblia
No livro de Êxodo, durante a épica migração de todo o
povo hebreu do Egito para a Terra Prometida, que ficou
estacionado por anos a fio na base do monte Sinai, Moisés
elaborou não apenas o Decálogo (ou Os Dez Mandamentos), mas
muitas outras determinações, regulamentos adicionais e códigos
de conduta ao seu povo que ele estava guiando: leis e normas a
respeito de escravos, de conflitos e suas soluções, de homicídios e
seus castigos, de roubos, de seduções, de magia, a respeito de
diversos assuntos de medicina, muitos cuidados e preceitos
relacionados à higiene e à saúde de seu povo, no cenário
grandioso do deserto, lembrando várias daquelas normas que ele
conhecia muito bem no Egito, onde havia sido educado bem
próximo à nobreza e aos sacerdotes. Não é, portanto, de espantar
que apenas sobre a hanseníase haja capítulos inteiros e extensos
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no livro de Levítico. E exatamente como no Egito e outros países
da Mesopotâmia, Moisés deixou a responsabilidade da medicina
sob os cuidados dos sacerdotes, que eram os levitas.
A Bíblia, especialmente no Antigo Testamento, fala muitas
vezes sobre o problema da hanseníase. A antiga e condenada
expressão “pessoas leprosas” referia-se a uma doença da pele,
abrangendo tipos diferentes de doenças. Uma pessoa com
hanseníase era considerada imunda, conforme vemos nestes dois
versos de Levítico 13, embora todo o capítulo só trate desse
assunto:
“Falou mais o Senhor a Moisés e a Arão, dizendo:
Quando um homem tiver na pele da sua carne, inchação, ou
pústula, ou mancha lustrosa, na pele de sua carne como
praga da lepra, então será levado a Arão, o sacerdote, ou a
um de seus filhos, os sacerdotes.
E o sacerdote examinará a praga na pele da carne; se o pelo
na praga se tornou branco, e a praga parecer mais
profunda do que a pele da sua carne, é praga de lepra; o
sacerdote o examinará, e o declarará por imundo.” (Lv
13:1-3)
A doença era vista tal qual uma praga, descrita como
enviada por Deus para repreender o povo desobediente: “Quando
tiverdes entrado na terra de Canaã que vos hei de dar por
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possessão, e eu enviar a praga da lepra em alguma casa da terra da
vossa possessão,” (Lv 14:34).
Os extensos capítulos com as instruções sobre a
hanseníase, obviamente, serviam para conter uma doença
considerada maligna, mesmo séculos antes de cientistas
compreenderem como doenças se propagam. Sobretudo,
concluímos hoje que o motivo para falar tanto sobre a hanseníase
no Antigo Testamento trazia duas lições espirituais:
1. A importância da obediência. Entre as últimas
orientações dadas por Moisés ao povo de Israel
encontram-se estas palavras: “Guarda-te da praga da
lepra, e tenhas grande cuidado de fazer conforme a tudo o
que te ensinarem os sacerdotes levitas; como lhes tenho
ordenado, terás cuidado de o fazer.” (Dt 24:8).
2. A necessidade de distinguir entre o limpo e o imundo. A
chave ao entendimento desse significado da lepra aparece
em Levítico 14:54-57: “54Esta é a lei de toda a praga da
lepra, e da tinha, E da lepra das roupas, e das casas, E da
inchação, e das pústulas, e das manchas lustrosas; Para
ensinar quando alguma coisa será imunda, e quando será
limpa. Esta é a lei da lepra.”
Muitos estudos teológicos apontam que Deus usou coisas
físicas – sejam doenças, questões de higiene, sejam diferenças
entre animais – para ensinar princípios espirituais. Ao ser
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descoberta a “imundícia da lepra”, não mediam esforço para se
livrarem dela. Pessoas leprosas foram publicamente identificadas
e afastadas da congregação para não contaminarem outros.
Quando as tentativas de purificar as casas não foram bem-
sucedidas, foi necessário derrubar casas inteiras para não deixar a
praga se espalhar, como lemos nestes versos de Levítico 14:
“Porém, se a praga tornar a brotar na casa, depois de arrancadas as
pedras e raspada a casa, e de novo rebocada, Então o sacerdote
entrará e examinará, se a praga na casa se tem estendido, lepra
roedora há na casa; imunda está. Portanto se derribará a casa, as
suas pedras, e a sua madeira, como também todo o barro da casa; e
se levará para fora da cidade a um lugar imundo.”
Nesse contexto também há o caso de Naamã, um
comandante dos exércitos de Ben-Hadade II, no tempo de Jorão,
rei de Israel. Ele é mencionado em Tanakh (um acrônimo utilizado
dentro do Judaísmo para denominar seu conjunto principal de
livros sagrados, cujo conteúdo é equivalente ao Antigo
Testamento, porém com outra divisão, consistindo em 24 livros).
Em nossa Bíblia sua história é narrada em 2 Reis 5:
“E Naamã, capitão do exército do rei da Síria, era um
grande homem diante do seu Senhor, e de muito respeito;
porque por ele o Senhor dera livramento aos sírios; e era
este homem herói valoroso, porém leproso. E saíram tropas
da Síria, da terra de Israel, e levaram presa uma menina que
ficou ao serviço da mulher de Naamã. E disse esta à sua
senhora: Antes o meu senhor estivesse diante do profeta que
está em Samaria; ele o restauraria da sua lepra. Então foi
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Naamã e notificou ao seu senhor, dizendo: Assim e assim
falou a menina que é da terra de Israel. Então disse o rei da
Síria: Vai, anda, e enviarei uma carta ao rei de Israel. E foi, e
tomou na sua mão dez talentos de prata, seis mil siclos de
ouro e dez mudas de roupas. E levou a carta ao rei de Israel,
dizendo: Logo, em chegando a ti esta carta, saibas que eu te
enviei Naamã, meu servo, para que o cures da sua lepra.
E sucedeu que, lendo o rei de Israel a carta, rasgou as suas
vestes, e disse: Sou eu Deus, para matar e para vivificar,
para que este envie a mim um homem, para que eu o cure da
sua lepra? Pelo que deveras notai, peço-vos, e vede que
busca ocasião contra mim.
Sucedeu, porém, que, ouvindo Eliseu, homem de Deus, que o
rei de Israel rasgara as suas vestes, mandou dizer ao rei: Por
que rasgaste as tuas vestes? Deixa-o vir a mim, e saberá que
há profeta em Israel. Veio, pois, Naamã com os seus cavalos,
e com o seu carro, e parou à porta da casa de Eliseu. Então
Eliseu lhe mandou um mensageiro, dizendo: Vai, e lava-te
sete vezes no Jordão, e a tua carne será curada e ficarás
purificado.
Porém, Naamã muito se indignou, e se foi, dizendo: Eis que
eu dizia comigo: Certamente ele sairá, pôr-se-á em pé,
invocará o nome do Senhor seu Deus, e passará a sua mão
sobre o lugar, e restaurará o leproso. Não são porventura
Abana e Farpar, rios de Damasco, melhores do que todas as
águas de Israel? Não me poderia eu lavar neles, e ficar
purificado? E voltou-se, e se foi com indignação. Então
chegaram-se a ele os seus servos, e lhe falaram, e disseram:
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Meu pai, se o profeta te dissesse alguma grande coisa,
porventura não a farias? Quanto mais, dizendo-te ele: Lava-
te, e ficarás purificado.
Então desceu, e mergulhou no Jordão sete vezes, conforme a
palavra do homem de Deus; e a sua carne tornou-se como a
carne de um menino, e ficou purificado. Então voltou ao
homem de Deus, ele e toda a sua comitiva, e chegando, pôs-
se diante dele, e disse: Eis que agora sei que em toda a terra
não há Deus senão em Israel; agora, pois, peço-te que
aceites uma bênção do teu servo.” (2 Reis 5:1-15).
Dois pontos de destaques. Naamã volta a Eliseu com
presentes caros, e Eliseu se recusa a aceitar. Naamã também
renuncia ao seu ex-deus Rimom depois de ser curado por Eliseu e
aceitar o Deus de Israel.
Posteriormente, Naamã é mencionado em Lucas 4:27, no
Novo Testamento, como um exemplo da vontade de Deus para
salvar as pessoas que são consideradas pelos homens como
menos piedosas e indignas da salvação. Como a Septuaginta (a
Bíblia hebraica para o grego koiné, traduzida em etapas entre o III
e o I século a.C. em Alexandria), o Antigo Testamento em grego
usa a palavra baptizein para a imersão que cura o pagão Naamã, o
que também ocorre no rio Jordão, onde Jesus Cristo foi batizado
vários séculos depois. Os cristãos muitas vezes interpretam a
história de Naamã como uma prefiguração do batismo cristão das
nações pagãs.
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Voltando a Moisés e ao Monte Sinai, a legislação dos
hebreus da época era violenta, visando manter o povo unido,
disciplinado, com argumentos relacionados à vontade expressa de
Deus com expressões como “...temerás o Senhor o teu Deus, porque
sou o Senhor”. Mas muitas dessas leis e ordens não surtiram os
efeitos esperados. A lei de talião, reinante em alguns países então,
foi também introduzida pelo líder maior, Moisés, que certamente
já conhecia o Código de Hamurábi. Algumas dessas severas
normas lavradas em pedra muitos anos antes de Moisés existir
passaram para o código dos hebreus quase com as mesmas
palavras.
O Código de Hamurábi e a severidade que inspirou os
hebreus
O Código de Hamurábi representa o conjunto de leis
escritas, sendo um dos exemplos mais bem preservados desse tipo
de texto oriundo da Mesopotâmia. Acredita-se que tenha sido
escrito pelo rei Hamurábi, aproximadamente em 1700 a.C. Foi
encontrado por uma expedição francesa em 1901 na região da
antiga Mesopotâmia, correspondente à cidade de Susa, atual Irã. É
um monumento monolítico talhado em rocha de diorito, sobre o
qual se dispõem 46 colunas de escrita cuneiforme acádica, com
282 leis em 3.600 linhas. A numeração vai até 282, mas a cláusula
13 foi excluída por superstições da época. A peça tem 2,25 m de
altura, 1,50 m de circunferência na parte superior e 1,90 m na
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base. Hoje ele encontra-se preservado no Museu do Louve, em
Paris.
A sociedade era dividida em três classes, que também
pesavam na aplicação do código: Awilum, homens livres,
proprietários de terras, que não dependiam do palácio nem do
templo; Muskênum, camada intermediária, funcionários públicos,
que tinham certas regalias no uso de terras; Wardum, escravos,
que podiam ser comprados e vendidos até que conseguissem
comprar sua liberdade.
Os pontos principais do código de Hamurábi eram: lei de
talião (olho por olho, dente por dente), falso testemunho, roubo e
receptação, estupro, família, escravos, ajuda de fugitivos. O
objetivo desse código era homogeneizar juridicamente o reino e
garantir uma cultura comum. No seu epílogo, Hamurábi afirma
que elaborou o conjunto de leis “para que o forte não prejudique o
mais fraco, a fim de proteger as viúvas e os órfãos” e “para resolver
todas as disputas e sanar quaisquer ofensas”.
É a coleção mais antiga de leis que se conhece, bem mais
antiga que o Decálogo de Moisés e que as normas por ele traçadas
no livro de Levítico, com o qual existem pontos de similaridade
eventual. Há semelhanças também no Deuteronômio. Vejamos
alguns pontos que indicam, como punição, amputações:
Eu, Hamurábi, chefe designado pelos deuses, Rei dos Reis,
que conquistei as cidades do Eufrates, introduzi a verdade e
a equidade por todo o país e dei prosperidade ao povo. De
hoje em diante:
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“Se alguém apagar a marca de ferro em brasa de um
escravo, terá seus dedos cortados”
“Se um médico operar um patrício com faca de bronze e
causou-lhe a morte, ou abriu-lhe a órbita do olho e causou-
lhe a destruição, terá sua mão cortada”
“Se um escravo disser ao seu dono: ‘Tu não és meu Senhor’,
seu senhor provará que o é e cortará sua orelha”
“Se um homem bater em seu pai, terá as mãos cortadas”...
“Um olho por um olho, um dente por um dente. Trata-se de
justiça sem piedade. Se um homem tira um olho de um
patrício, também seu olho será tirado; se ele quebrou o osso
de um patrício, seu braço será quebrado. As classes
inferiores da sociedade também merecem compensações. Se
ele tirou o olho ou quebrou o osso de um plebeu, ele deverá
pagar uma mina de prata; se foi de um escravo, pagará
metade de seu preço”...
Nos cinco livros bíblicos escritos por Moisés há textos e
palavras tão semelhantes que parecem pura cópia do Código de
Hamurábi. Eis um deles em uma livre citação: “Se alguém ferir o
olho de seu escravo ou de sua escrava e os deixar cegos de um olho,
deixá-los-á ir livres pelo olho que lhes tirou”. “O que ferir qualquer
de seus compatriotas, assim como fez, assim se lhe fará a ele;
quebradura por quebradura, olho por olho, dente por dente; qual
for o mal que tiver feito, tal será o que há de sofrer”. A mesma linha
de pensamentos encontramos no Êxodo 21:24: “Olho por olho,
dente por dente, mão por mão, pé por pé,".
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Vemos que tanto entre os babilônios como entre os
antigos hebreus sempre houve muitas pessoas marcadas por
crimes cometidos. No entanto, nem sempre a deficiência ou
deformação física ou sensorial correspondiam a uma
demonstração de castigo por feitos delituosos ou à “troca” por
males cometidos a outrem. Reis, generais, líderes, soldados eram
por vezes castigados por combaterem os grandes poderosos e
levavam consigo pelo resto de seus dias as marcas impostas pelos
vencedores, como aconteceu com Zedequias.
Rei Zedequias, mais um caso de cegueira como punição
Os livros Primeiro e Segundo de Reis relatam de forma
contínua relatos de reis, a história de Israel, a morte de Davi, o
reinado de Salomão, os reinos divididos e o cativeiro. Narram
muitas histórias políticas e religiosas, incidentes que são
evidenciados, mas pelo modo com que julgam os vários reis como
maus e bons. Um deles é Zedequias (ou Sedecias), vigésimo e
último rei de Judá, terceiro filho de Josias, cuja mãe era Hamutal.
Quando foi constituído em rei vassalo, o rei babilônio
Nabucodonosor mudou-lhe o nome de Matanias para Zedequias,
tendo 11 anos o seu reinado, substituto ao destronado Joaquim,
refém mantido na capital do reino babilônico. Além de
mencionado na Bíblia (2 Reis, Crônicas e Jeremias), Zedequias é
também citado em diversos documentos e crônicas da Babilônia
que relatam os principais acontecimentos políticos, religiosos e
guerreiros dos séculos VII e VI a.C. sob o ponto de vista babilônio.
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Mesmo sendo indicado e empossado por Nabucodonosor,
porém, Zedequias, tempos depois, começou a conspirar contra o
poderoso rei, fazendo contatos pessoais com diversos monarcas
dos minúsculos países e também com o faraó egípcio. Após ter
governado nove anos quebrou o juramento e, contrário à palavra
de Deus por meio do profeta Jeremias, rebelou-se contra
Nabucodonosor, encorajado pelo novo faraó egípcio Apries, que
organizava uma expedição militar contra a Babilônia. Em 2
Crônicas 36 também dá destaque a isso:
“Tinha Zedequias a idade de vinte e um anos, quando
começou a reinar; e onze anos reinou em Jerusalém.
E fez o que era mau aos olhos do Senhor seu Deus; nem se
humilhou perante o profeta Jeremias, que falava da parte do
Senhor.
Além disto, também se rebelou contra o rei Nabucodonosor,
que o tinha ajuramentado por Deus. Mas endureceu a sua
cerviz, e tanto se obstinou no seu coração, que não se
converteu ao Senhor Deus de Israel.
Também todos os chefes dos sacerdotes e o povo
aumentavam de mais em mais as transgressões, segundo
todas as abominações dos gentios; e contaminaram a casa
do Senhor, que ele tinha santificado em Jerusalém.” (2 Cr
36:11-14).
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O rei Nabuconosor, bem informado das pequenas
conspirações e traições, tomou providências enérgicas. Mandou
todo o seu exército cercar Jerusalém e lá se plantou durante dois
anos. Ocorrido em 586 a.C., está relatado em 2 Reis:
“E sucedeu que, no nono ano do seu reinado, no mês décimo,
aos dez do mês, Nabucodonosor, rei de babilônia, veio
contra Jerusalém, ele e todo o seu exército, e se acampou
contra ela, e levantaram contra ela trincheiras em redor.
E a cidade foi sitiada até ao undécimo ano do rei Zedequias.
Aos nove do mês quarto, quando a cidade se via apertada
pela fome, nem havia pão para o povo da terra,
Então a cidade foi invadida, e todos os homens de guerra
fugiram de noite pelo caminho da porta, entre os dois muros
que estavam junto ao jardim do rei (porque os caldeus
estavam contra a cidade em redor), e o rei se foi pelo
caminho da campina.
Porém o exército dos caldeus perseguiu o rei, e o alcançou
nas campinas de Jericó; e todo o seu exército se dispersou.
E tomaram o rei, e o fizeram subir ao rei de babilônia, a
Ribla; e foi-lhe pronunciada a sentença.
E aos filhos de Zedequias mataram diante dos seus olhos; e
vazaram os olhos de Zedequias, e o ataram com duas
cadeias de bronze, e o levaram a babilônia.” (2 Reis 25:1-7).
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A cidade fora toda destruída. Zedequias, ciente do perigo,
fugiu pelos jardins dos palácios, mas foi preso e levado à presença
do temido rei da Babilônia, em Ribla, ao lado de Jerusalém. Seus
filhos ainda novos foram mortos em sua presença. Segundo todos
os documentos, Zedequias teve seus olhos vazados ali mesmo. E
quando o enorme exército movimentou-se de volta à Babilônia,
levando as últimas levas de prisioneiros de Judá, Zedequias,
carregado de ferros, cego e amargurado, empreendeu a mesma
caminhada. O livro de Jeremias, 52, assim relata o fim de
Zedequias:
“E o rei de babilônia degolou os filhos de Zedequias à sua
vista, e também degolou a todos os príncipes de Judá em
Ribla.
E cegou os olhos a Zedequias, e o atou com cadeias; e o rei
de babilônia o levou para babilônia, e o conservou na prisão
até o dia da sua morte.” (Jr 52:10-11).
A medicina dos hebreus
Pouco nos é relatado pelos diversos livros da Bíblia a
respeito da medicina. Sabemos, sim, que a cirurgia ocorria
basicamente para a circunstância da circuncisão, com uma lâmina
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de sílex. Entre os hebreus, problemas ortopédicos sempre
receberam tratamentos caseiros com bons resultados. Há uma
citação em Ezequiel, capítulo 30, mostrando na cultura hebreia
antiga plenos conhecimentos dos tratamentos indispensáveis para
pernas ou braços quebrados: “Filho do homem, eu quebrei o braço
de Faraó, rei do Egito, e eis que não foi atado para se lhe aplicar
remédios, nem lhe colocarão ligaduras para o atar, a fim de torná-lo
forte, para pegar na espada.” (Ez 30:21).
Um dos juízes da tribo de Neftali, Tobias viveu no século
VII a.C. Sua história nos é narrada pelo livro da Bíblia que leva o
seu próprio nome, embora esse volume só se encontre hoje nas
versões católicas – a Vulgata. Ele era um dos muitos hebreus
desterrados em Nínive e procurava dedicar todos os seus dias à
misericórdia, a fim de minorar os sofrimentos dos seus
compatriotas; “alimentava os famintos, vestia os nus, e, com uma
solicitude toda particular, sepultava os mortos e os que tinham
perecido pela espada” (Tobias, 1:20). Fora denunciado ao rei, que
o condenou à morte por causa desse ato. Tobias fugiu da cidade
com sua família, mas após 45 dias da morte do rei, pôde retornar.
Certa noite resolveu oferecer um banquete em sua casa aos
homens piedosos de sua tribo. No meio do jantar, ao ficar sabendo
de um hebreu morto à espada, correu e recolheu-o, para sepultá-
lo secretamente na madrugada. Voltou a cear, mas com pranto e
temor, lembrando-se de um oráculo que o Senhor tinha
pronunciado pela boca do profeta Amós: “E tornarei as vossas
festas em luto, e todos os vossos cânticos em lamentações; e porei
pano de saco sobre todos os lombos, e calva sobre toda cabeça; e
farei que isso seja como luto por um filho único, e o seu fim como dia
de amarguras.” (Am 8:10)
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Criticado por seus vizinhos por manter aquela prática
mesmo depois de condenado à morte, Tobias, temendo mais a
Deus que ao rei, continuava a levar para sua casa os corpos
daqueles que eram assassinados, que escondia e sepultava
durante a noite. Assim está narrado em Tobias 2:
10. Ora, aconteceu que um dia, cansado desse trabalho,
voltou para a sua casa e deitou-se ao pé do muro onde
adormeceu.
11. Enquanto dormia, caiu-lhe dum ninho de andorinhas
esterco quente nos olhos, e ele tornou-se cego.
12. Deus permitiu que lhe acontecesse essa prova, para que
a sua paciência, como a do santo homem Jó, servisse de
exemplo à posteridade.
13. Como havia sempre temido a Deus, desde a sua infância,
e guardado seus mandamentos, ele não se afligiu (nem
murmurou) contra Deus por ter sido atingido pela cegueira.
14. Mas perseverou firme no temor de Deus e continuou a
dar-lhe graças em todos os dias de sua vida.
Temendo estar próxima sua morte, mandou seu filho, que
também se chamava Tobias, resgatar o pagamento de uma dívida
na cidade de Ragés, no reino dos medos. Em sua viagem, ao lado
de Azarias, que na verdade era o anjo Rafael disfarçado, Tobias
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aprendeu dele que o fel de peixe poderia ser usado com sucesso
como ingrediente para remédios – Tobias 11:
13. Tobias tomou então o fel do peixe e pô-lo nos olhos de
seu pai.
14. Depois de ter esperado cerca de meia hora, começou a
sair-lhe dos olhos uma belida branca como a membrana de
um ovo.
15. Tobias tomou-a e a arrancou dos olhos de seu pai, o qual
recobrou instantaneamente a vista.
16. E louvaram a Deus, ele, sua mulher e todos os que o
conheciam.
17. “Bendigo-vos, Senhor Deus de Israel, dizia ele, porque
depois de me terdes provado, me curastes: – eis que vejo o
meu filho Tobias!”
Cientificamente, Tobias pode ter sofrido de glaucoma, uma
doença ocular causada principalmente pela elevação da pressão
intraocular que provoca lesões no nervo ótico e, como
consequência, comprometimento visual, podendo levar à cegueira.
Mas fato é que o velho Tobias viveu até a idade de 102 anos sem
maiores problemas com a vista.
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Em contrapartida, a cultura hebreia antiga, principalmente
no livro de Levítico, com suas normas e leis relativas à santidade,
à caridade e à justiça, recomendava a todo o povo hebreu não
apenas respeitar os pais, guardar o sábado, evitar a idolatria, a
vingança, o ódio, o furto, mas também que fossem respeitados os
surdos e os cegos. Moisés, em suas orientações, recomenda no
capítulo 19 desse livro: “Não amaldiçoarás ao surdo, nem porás
tropeço diante do cego; mas temerás o teu Deus. Eu sou o Senhor.”
(Lv 19:14)
Recomendação repetida também no livro de
Deuteronômio, dirigida aos hebreus, que garantissem a proteção e
o bom tratamento aos cegos, colocando essas atitudes positivas
diretamente ao lado e em pé de igualdade com o amor aos pais, a
certeza da justiça, a condenação da idolatria, a garantia da
propriedade e algumas outras práticas relacionadas a sexo e
também a traições. Diz: “Maldito aquele que fizer que o cego erre
de caminho. E todo o povo dirá: Amém.” (Dt 27:18).
Apesar dessa forte ênfase nas várias normas de conduta
do povo hebreu, o cego viveu praticamente por muitos séculos em
absoluta degradação social, que só começou a ser combatida sob o
reinado do príncipe Judah-ha-Nasin (135 a 217 d.C.), rabino
redator e editor da Mishná, líder chave da comunidade judia
durante a ocupação romana da Judeia. De acordo com o Talmude –
um registro central das discussões rabínicas que pertencem à lei,
ética, costumes e história do judaísmo –, Judah-ha-Nasin era da
linhagem de Davi, daí o título nasi, o que significa príncipe.
Confirmando a Bíblia, o Talmude narra a sabedoria de
alguns mestres e mesmo de alguns juízes cegos, aos quais, dentre
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as limitações de atuação a eles impostas, não era permitido ler o
Torá (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio), nem
oficiar serviços religiosos públicos. Não tinham também nenhuma
obrigação de ir até Jerusalém para suas orações, nem de cumprir
obrigações religiosas que demandassem o uso da visão. O
Talmude referia-se a esses sábios mestres e juízes cegos por meio
de um apelido afetuoso, ou seja, de “sagui Nehor” (ricos em luz, ou
videntes).
Olhos direitos furados dos habitantes de Jabes
Os hebreus compunham as tribos de Israel e as tribos de
Judá. Israel especificamente controlava os amonitas, povo
habitante a leste do rio Jordão, constantes inimigos em épocas
bem anteriores aos anos de problemas com o cativeiro da
Babilônia, ou seja, em épocas que beiram um milênio antes da Era
Cristã. Naás (que na língua original significa “serpente”), rei de
Amom, da antiga nação de Israel, entrou em batalha contra os
israelitas no território de Jabes, ao sitiar a vila de Jabes-Gileade, e
enviou pelos anciãos da vila uma séria proposta para que a
população sitiada não fosse dizimada.
Vejamos primeiro o que narra a Bíblia sobre esse fato.
Sobretudo, recorremos à versão Vulgata, I Samuel, 11:
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“1. Naás, o amonita, pôs-se em campanha e combateu
contra Jabes, em Galaad. Os habitantes de Jabes disseram-
lhe: Façamos aliança, e nós te serviremos.
2. Mas Naás, o amonita, respondeu-lhes: Só farei aliança
convosco com a condição de vos furar a todos o olho direito,
para impor assim um opróbrio a todo o Israel.
3. Concede-nos sete dias, disseram-lhe os anciãos de Jabes,
para que enviemos mensageiros por toda a terra de Israel;
se não houver quem nos ajude, entregar-nos-emos a ti.
4. Foram os mensageiros a Gabaa, cidade de Saul, e
contaram isso ao povo, e todo o povo pôs-se a chorar em
alta voz.”
Os anciãos da vila sitiada conseguiram, no entanto, o apoio
de um famoso herói da Bíblia, Saul, que conseguiu juntar, com
base em violentas ameaças àqueles que não aderissem, um
exército com 300 mil homens das tribos próximas de Israel e mais
30 mil das tribos de Judá. Com esse impressionante contingente
bateu decisivamente o exército inimigo que apavorava aquele
pacato povo. Tendo sido anteriormente ungido por Samuel como
primeiro rei de Israel, foi nessa oportunidade que Saul foi
confirmado como tal.
A Bíblia não deixa claro se a ameaça de furar o olho direito
das pessoas chegou a ser cumprida. Mas duas respeitadas fontes
paralelas afirmam que sim.
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Em um dos Manuscritos do Mar Morto, que se acredita ser
do século I a.C., há uma inserção logo antes de I Samuel 11:1:
“Naás, rei dos filhos de Amom, oprimiu severamente os filhos de
Gades e os filhos de Rubem, e ele furou todos os seus olhos direitos e
lançou terror e pavor em Israel. Não sobrou nenhum dos filhos de
Israel além do Jordão cujo olho direito não fosse furado por Naás,
rei dos filhos de Amom; exceto que sete mil homens fugiram dos
filhos de Amom e entraram em Jabes-Gileade”. (Bíblia Revista,
1985, volume 1, nº 3, p. 28).
Essa mesma informação é validada na obra História dos
Hebreus, de Flávio Josefo:
“Um mês após Saul ser elevado ao trono, a guerra em que se
encontrou empenhado, contra Naás, rei dos amonitas, conquistou-
lhe grande fama. Esse príncipe, que havia muito causava grandes
males aos israelitas que moravam além do Jordão, entrou no país
deles com um poderoso exército, atacando várias cidades. Para
tirar-lhes de vez a esperança de uma revolta, mandou vazar o olho
direito de cada um, tanto os que fizera prisioneiros quanto os que se
haviam entregado a ele voluntariamente. Fez isso porque os escudos
cobriam a visão do olho esquerdo, e assim, nesse estado, não podiam
mais servir-se das armas e tornavam-se incapazes de guerrear”
(2004, pp. 249-250).
Zacarias castigado por não ter acreditado em Gabriel
Ainda no Antigo Testamento, mas já relacionado com o
Novo, a primeira testemunha do Messias foi Zacarias, sacerdote
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casado com Isabel, prima de Maria, mãe de Jesus. Eram os dois
considerados justos e harmoniosos em seu modo de viver e não
tinham filhos, pois Isabel era estéril. Lucas 1 conta-nos:
“E aconteceu que, exercendo ele o sacerdócio diante de Deus,
na ordem da sua turma,
Segundo o costume sacerdotal, coube-lhe em sorte entrar no
templo do Senhor para oferecer o incenso.
E toda a multidão do povo estava fora, orando, à hora do
incenso.
E um anjo do Senhor lhe apareceu, posto em pé, à direita do
altar do incenso.
E Zacarias, vendo-o, turbou-se, e caiu temor sobre ele.
Mas o anjo lhe disse: Zacarias, não temas, porque a tua
oração foi ouvida, e Isabel, tua mulher, dará à luz um filho, e
lhe porás o nome de João.
E terás prazer e alegria, e muitos se alegrarão no seu
nascimento,
Porque será grande diante do Senhor, e não beberá vinho,
nem bebida forte, e será cheio do Espírito Santo, já desde o
ventre de sua mãe.
E converterá muitos dos filhos de Israel ao Senhor seu Deus,
E irá adiante dele no espírito e virtude de Elias, para
converter os corações dos pais aos filhos, e os rebeldes à
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prudência dos justos, com o fim de preparar ao Senhor u)m
povo bem disposto.
Disse então Zacarias ao anjo: Como saberei isto? pois eu já
sou velho, e minha mulher avançada em idade.
E, respondendo o anjo, disse-lhe: Eu sou Gabriel, que assisto
diante de Deus, e fui enviado a falar-te e dar-te estas alegres
novas.
E eis que ficarás mudo, e não poderás falar até ao dia em
que estas coisas aconteçam; porquanto não creste nas
minhas palavras, que a seu tempo se hão de cumprir.
E o povo estava esperando a Zacarias, e maravilhava-se de
que tanto se demorasse no templo.
E, saindo ele, não lhes podia falar; e entenderam que tinha
tido uma visão no templo. E falava por acenos, e ficou
mudo.” (Lc 1:8-22)
Por ter duvidado do anjo Gabriel, Zacarias ficou mudo até
o dia que tudo se cumprisse. Ele, um parente de Jesus, foi vítima
de uma deficiência passageira. Segundo o evangelista Lucas, na
verdade foi por castigo, corroborando a ideia de que as doenças e
as deficiências estavam fortemente relacionadas a castigos ou
penitências para pagamento de faltas ou pecados.
Nove meses depois, nasceu João Batista, primo de Jesus e
um dos personagens principais do Novo Testamento. Zacarias
indicou numa tabuinha o nome que o menino deveria ter, tendo
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suas primeiras palavras ouvidas novamente na circuncisão da
criança, oito dias após o nascimento.
Mefibosete: O primeiro caso de inclusão vem da Bíblia
Optamos por encerrar este capítulo com a história de
Mefibosete, filho de Jônatas e neto do rei Saul, que foi levado, pela
babá, a uma cidade chamada Lo Debar (sem pasto), onde havia
sequidão e miséria, e cujos habitantes eram todos mendigos ou
doentes. Isso ocorreu após o atentado contra o reino de Saul, por
parte dos filisteus, na sangrenta batalha no monte Gilboa, o que
resultou na morte de Saul e seus três filhos. Sua história está
registrada no livro bíblico 2 Samuel 9:
“E disse Davi: Há ainda alguém que tenha ficado da casa de
Saul, para que lhe faça benevolência por amor de Jônatas?
E havia um servo na casa de Saul cujo nome era Ziba; e o
chamaram à presença de Davi. Disse-lhe o rei: És tu Ziba? E
ele disse: Servo teu.
E disse o rei: Não há ainda alguém da casa de Saul para que
eu use com ele da benevolência de Deus? Então disse Ziba ao
rei: Ainda há um filho de Jônatas, aleijado de ambos os pés.
E disse-lhe o rei: Onde está? E disse Ziba ao rei: Eis que está
em casa de Maquir, filho de Amiel, em Lo-Debar.
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Então mandou o rei Davi, e o tomou da casa de Maquir, filho
de Amiel, de Lo-Debar.
E Mefibosete, filho de Jônatas, o filho de Saul, veio a Davi, e
se prostrou com o rosto por terra e inclinou-se; e disse Davi:
Mefibosete! E ele disse: Eis aqui teu servo.
E disse-lhe Davi: Não temas, porque decerto usarei contigo
de benevolência por amor de Jônatas, teu pai, e te restituirei
todas as terras de Saul, teu pai, e tu sempre comerás pão à
minha mesa.
Então se inclinou, e disse: Quem é teu servo, para teres
olhado para um cão morto tal como eu?
Então chamou Davi a Ziba, moço de Saul, e disse-lhe: Tudo o
que pertencia a Saul, e a toda a sua casa, tenho dado ao
filho de teu senhor.
Trabalhar-lhe-ás, pois, a terra, tu e teus filhos, e teus servos,
e recolherás os frutos, para que o filho de teu senhor tenha
pão para comer; mas Mefibosete, filho de teu senhor, sempre
comerá pão à minha mesa. E tinha Ziba quinze filhos e vinte
servos.
E disse Ziba ao rei: Conforme a tudo quanto meu senhor, o
rei, manda a seu servo, assim fará teu servo. Quanto a
Mefibosete, disse o rei, comerá à minha mesa como um dos
filhos do rei.
E tinha Mefibosete um filho pequeno, cujo nome era Mica; e
todos quantos moravam em casa de Ziba eram servos de
Mefibosete.
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Morava, pois, Mefibosete em Jerusalém, porquanto sempre
comia à mesa do rei, e era coxo de ambos os pés.” (2 Sm 9:1-
13)
Sua história também está detalhadamente registrada no
livro História dos Hebreus. No capítulo 6, Flávio Josefo, após contar
que Davi derrotou Hadadezer, rei de Damasco e da Síria, em
grande batalha, o rei dos bamatenianos procura a sua aliança e
Davi subjuga os idumeus. Josefo descreve:
“Depois de ajustar todas as coisas, Davi lembrou-se da
aliança que fizera com Jônatas e das muitas provas que
recebera de sua amizade, pois dentre outras excelentes
qualidades tinha extrema gratidão. Indagou então se não
restava algum filho de Jônatas, para com o qual pudesse
mostrar a gratidão de que era devedor. Levaram-lhe um dos
libertos de Saul, de nome Ziba, que sabia existir ainda um
dos filhos desse príncipe, de nome Mefibosete, que era coxo
porque a sua ama, ao saber da derrota na batalha e da
morte de Saul e de Jônatas, ficara tão assustada que o
deixara cair.
Davi mandou procurá-lo com todo empenho. Pouco tempo
depois, informaram-lhe que Maquir o educava na cidade de
Labate, e mandou buscá-lo imediatamente. Quando
Mefibosete chegou, prostrou-se diante do rei. Davi disse-lhe
que nada temesse e esperasse dele um tratamento muito
favorável: dar-lhe-ia de novo a posse de todos os bens que
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pertenciam ao seu pai e ao rei Saul, seu avô, e queria que
viesse sempre tomar as suas refeições com ele.
Mefibosete, fora de si diante de tantas gentilezas, prostrou-
se outra vez diante do rei, para humildemente agradecer-
lhe. Davi ordenou a Ziba que fizesse chegar às mãos de
Mefibosete os bens que lhe restituíra, que lhe trouxesse
todos os anos a renda a Jerusalém e que o servisse com os
quinze filhos e os vinte servidores que possuía. Assim, Davi
tratou o filho de Jônatas como se fosse seu próprio filho, deu
o nome de Mica a um dos filhos desse príncipe e tomou
cuidado particular de todos os outros parentes de Saul e de
Jônatas” (2004, pp. 304-305).
Davi deu-lhe os pertences que um dia foram de Saul;
apesar de neto de seu inimigo (Saul), era o filho de seu amigo
(Jônatas) e Davi o tinha por comensal – que frequentava
assiduamente sua casa e ali tomava suas refeições. Mefibosete foi
o único a não ser enforcado, junto com outros sete descendentes
de Saul (entre os quais estava seu tio, também chamado
Mefibosete) por causa da promessa que Davi fez a Jônatas, seu
amigo, de que suas sementes cresceriam juntas.
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II – MILAGRES E UMA NOVA VISÃO
DA PESSOA COM DEFICÊNCIA NO
NOVO TESTAMENTO
Novo Testamento é coleção de livros que compõem a
segunda parte da Bíblia cristã, cujo conteúdo foi escrito
após a morte de Jesus Cristo. Dirigido explicitamente aos
cristãos, embora dentro da religião cristã tanto o Antigo
Testamento (a primeira parte) quanto o Novo Testamento são
considerados, em conjunto, Escrituras Sagradas. Os livros que
compõem essa segunda parte da Bíblia foram escritos à medida
que o Cristianismo era difundido no mundo antigo, refletindo e
servindo como fonte para a teologia cristã.
Essa coleção de 27 livros influenciou não apenas a religião,
a política e a filosofia, mas também deixou sua marca permanente
na literatura, na arte e na música. Entre eles estão os Evangelhos,
um gênero de literatura do Cristianismo primitivo que conta a
vida de Jesus, a fim de preservar seus ensinamentos ou revelar
aspectos da natureza de Deus. O desenvolvimento do cânon do
Novo Testamento deixou quatro evangelhos canônicos.
Literalmente, Evangelho significa “boa mensagem”, “boa notícia”
ou “boas novas”, derivando da palavra grega euangelion (eu, bom,
angelion, mensagem), que também deu origem ao termo
“evangelista” para a língua portuguesa.
O
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Os livros de Mateus, Marcos, Lucas e João são os
Evangelhos canônicos por serem os únicos que o Cristianismo
primitivo admitiu como legítimos e hoje integram o Novo
Testamento da Bíblia, sendo também os únicos aceitos pelos
grupos que sucederam, como os evangélicos. As igrejas cristãs só
aceitam esses quatro evangelhos como tendo sido inspirados e
fazendo parte do Cânon. As igrejas cristãs, católica, ortodoxa e
protestantes têm na Bíblia, incluindo os evangelhos, a base de sua
fé e de sua prática.
Os esmolantes da antiga Judeia
Contextualizando geográfica e historicamente, a cidade da
Judeia era a parte montanhosa do sul da Palestina, entre a
margem oeste do mar Morto e o mar Mediterrâneo. Estende-se, ao
norte, até as colinas de Golan e, ao sul, até a Faixa de Gaza,
correspondendo aproximadamente à parte sul da Cisjordânia.
Atualmente, os termos Judeia e Samaria são usados pelo governo
israelense para designar a Cisjordânia, excluindo Jerusalém
Oriental. A Organização das Nações Unidas utilizou-os em 1948
para se referir à parte sul da atual Cisjordânia.
O Novo Testamento retrata uma Judeia muito viva, muito
real, com seus costumes, atitudes, onde encontramos diversas
considerações sobre pessoas com deficiências ou doenças muito
sérias. Ainda eram fortes e enraizadas as crenças populares de
que a maioria dos males era consequência da interferência de
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maus espíritos ou como um castigo para pagamento de pecados
antigos. Silva (1987) diz que “na Judeia Antiga, inclusive no tempo
de Jesus Cristo, o destino dos deficientes era esmolar para conseguir
sobreviver. Os cegos, os amputados, os paralíticos pelas mais
variadas causas ficavam expostos nos caminhos, ruas e praças. E
pelo que se lê, deviam ser apenas tolerados. Depreendemos isso das
parábolas de Jesus, ou mesmo das atitudes do próprio Jesus para
com eles, demonstrando que estava errada a forma como eram
tratados, mesmo sem expressar esse modo de pensar” (p. 112).
O Evangelho de Mateus, escrito para convencer os judeus
de que Jesus era mesmo o Messias que estava por vir, enfatizando
o Antigo Testamento e as profecias a respeito desse ungido, no
capítulo 20, versículo 30, descreve a existência de dois desses
pedintes: “E eis que dois cegos, assentados junto do caminho,
ouvindo que Jesus passava, clamaram, dizendo: Senhor, Filho de
Davi, tem misericórdia de nós!”. O Evangelho de Lucas, escrito para
os gentios (não judeus), enfatizando a misericórdia de Deus
através da salvação por Jesus Cristo, principalmente para os
pobres e humildes de coração, também no capítulo 14, versículo
21, fica comprovado que o ambiente de exposição da pessoa para
esmolar era um fato concreto: “E, voltando aquele servo, anunciou
estas coisas ao seu senhor. Então o pai de família, indignado, disse
ao seu servo: Sai depressa pelas ruas e bairros da cidade, e traze
aqui os pobres, e aleijados, e mancos e cegos.” (Lc 14:21).
A busca da cura
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Naquela época remota, sem o avanço da medicina ou
ciência, os poucos recursos de cura eram a fé. Tudo era
dramaticamente mais difícil. Podemos imaginar a aflição de
parentes e amigos desses doentes ou de pessoas com deficiência
que, ao saberem da existência ou da presença de um rabino, um
sacerdote, um profeta com dom de cura nos arredores,
procuravam alcançá-los por todos os meios. O Evangelho de
Marcos (discípulo de Pedro) foi escrito para evangelizar
principalmente os romanos e relata somente quatro das parábolas
de Jesus, enfatizando principalmente suas ações. Nele, temos um
registro no capítulo 2 quanto a isso:
“E alguns dias depois entrou outra vez em Cafarnaum, e
soube-se que estava em casa.
E logo se ajuntaram tantos, que nem ainda nos lugares
junto à porta cabiam; e anunciava-lhes a palavra.
E vieram ter com ele conduzindo um paralítico, trazido por
quatro.
E, não podendo aproximar-se dele, por causa da multidão,
descobriram o telhado onde estava, e, fazendo um buraco,
baixaram o leito em que jazia o paralítico.
E Jesus, vendo a fé deles, disse ao paralítico: Filho,
perdoados estão os teus pecados.
E estavam ali assentados alguns dos escribas, que
arrazoavam em seus corações, dizendo:
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Por que diz este assim blasfêmias? Quem pode perdoar
pecados, senão Deus?
E Jesus, conhecendo logo em seu espírito que assim
arrazoavam entre si, lhes disse: Por que arrazoais sobre
estas coisas em vossos corações?
Qual é mais fácil? dizer ao paralítico: Estão perdoados os
teus pecados; ou dizer-lhe: Levanta-te, e toma o teu leito, e
anda?
Ora, para que saibais que o Filho do homem tem na terra
poder para perdoar pecados (disse ao paralítico),
A ti te digo: Levanta-te, toma o teu leito, e vai para tua casa.
E levantou-se e, tomando logo o leito, saiu em presença de
todos, de sorte que todos se admiraram e glorificaram a
Deus, dizendo: Nunca tal vimos.
E tornou a sair para o mar, e toda a multidão ia ter com ele,
e ele os ensinava.
E, passando, viu Levi, filho de Alfeu, sentado na alfândega, e
disse-lhe: Segue-me. E, levantando-se, o seguiu.” (Mc 2:1-
14).
Outro exemplo da busca de cura e sua realização por meio
de um milagre de Jesus ocorreu em Jerusalém, onde havia bem ao
lado do templo uma piscina ou tanque destinado à purificação de
animais que eram sacrificados e que era por esse motivo
conhecida como “piscina probática” (do grego probatikón, ou seja,
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carneiro ou relativo a ovinos em geral). O Evangelho de João 5
narra:
“Depois disto havia uma festa entre os judeus, e Jesus subiu a
Jerusalém.
Ora, em Jerusalém há, próximo à porta das ovelhas, um
tanque, chamado em hebreu Betesda, o qual tem cinco
alpendres.
Nestes jazia grande multidão de enfermos, cegos, mancos e
ressicados, esperando o movimento da água.
Porquanto um anjo descia em certo tempo ao tanque, e
agitava a água; e o primeiro que ali descia, depois do
movimento da água, sarava de qualquer enfermidade que
tivesse.
E estava ali um homem que, havia trinta e oito anos, se
achava enfermo.
E Jesus, vendo este deitado, e sabendo que estava neste
estado havia muito tempo, disse-lhe: Queres ficar são?
O enfermo respondeu-lhe: Senhor, não tenho homem algum
que, quando a água é agitada, me ponha no tanque; mas,
enquanto eu vou, desce outro antes de mim.
Jesus disse-lhe: Levanta-te, toma o teu leito, e anda.
Logo aquele homem ficou são; e tomou o seu leito, e andava.
E aquele dia era sábado.” (Jo 5:1-9).
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Elgood (1951), estudioso dos usos e costumes dos povos
do Oriente Médio, afirma que a medicina contida nos Evangelhos e
mesmo nos Atos dos Apóstolos aceitava basicamente três tipos de
causas para as doenças e para as muitas limitações e deficiências
que afligiam os homens:
o castigo pelos pecados;
a interferência dos maus espíritos;
as forças más da natureza, contra as quais o poder divino
era o único remédio – ou pelo menos era assim
considerado.
Eis alguns pontos destacados dos Evangelhos que ilustram
isso: João 5:14: “Depois Jesus encontrou-o no templo, e disse-lhe: Eis
que já estás são; não peques mais, para que não te suceda alguma
coisa pior.” João 9:2-3: “E os seus discípulos lhe perguntaram,
dizendo: Rabi, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse
cego? Jesus respondeu: Nem ele pecou nem seus pais; mas foi assim
para que se manifestem nele as obras de Deus.” Lucas 9:38-39: “E
eis que um homem da multidão clamou, dizendo: Mestre, peço-te
que olhes para meu filho, porque é o único que eu tenho.
Eis que um espírito o toma e de repente clama, e o despedaça até
espumar; e só o larga depois de o ter quebrantado.”
A Bíblia é a fonte documental que mais revela a existência
e como viviam as pessoas com deficiência naquela época. Por meio
dos Evangelhos vemos “que o povo hebreu – e com ele quase todos
os povos ao seu redor – estava acostumado não apenas à existência
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das doenças e das deficiências que levavam o homem a uma vida de
quase certa indigência ou total dependência, mas também à busca
de soluções naturais e sobrenaturais, quando possível, para sua
eliminação” (SILVA, 1987, p. 140).
Os escritos dos evangelistas registram que Jesus fez mais
de 40 milagres notórios, sendo pelo menos 21 deles relacionados
a pessoas com deficiências físicas ou sensoriais. Optamos por não
reproduzir todos aqui, mas si destacá-los como uma forma de
registro: cego de nascimento (João 9:1-7), cego em Betsada
(Marcos 8:22-26), cego Bartimeu de Jericó (Marcos 10:46 e Lucas
8:35-43), dois cegos de Jericó (Mateus 20:29-34), dois cegos de
Cafarnaum (Mateus 9:27-31), cegos na Galileia (Mateus 15:29-31),
cego e mudo (Mateus 12:22), mudo de Cafarnaum (Mateus 9:32-
34), mudos na Galileia, (Mateus 15:29-31), surdo-mudo na
Decápole (Marcos 7:31-37), surdo-mudo de Cesareia, (Marcos
9:16-26 e Lucas 9:37-43), coxos na Galileia (Mateus 15:29-31),
leprosos de Cafarnaum (Mateus 8:1-4, Marcos 1:40-45 e Lucas
5:12-14), dez leprosos (Lucas 17:13-19), hidrópico (Lucas 14:1-
6), mulher com espinha curvada (Lucas 13:11-13), homem de
“mão seca” (Mateus 12:9-13, Marcos 3:1-6 e Lucas 6:6-11),
paralítico servo do centurião (Mateus 8:5-13), paralítico em
Betsaida (João 5:5-9), paralítico de Cafarnaum (Mateus 9:1-8,
Marcos 2:1-12 e Lucas 5:17-26).
Não é possível ter os registros estatísticos de quantas
pessoas com deficiência existiam naquele período. Mas sabemos
que eram muitas. Na região da Galileia, o lar de Jesus durante pelo
menos 30 anos de sua vida, o Evangelho de Mateus, capítulo 15,
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traz um relato que confirma essa grande quantidade de pessoas e
os milagres de Jesus:
“Partindo Jesus dali, chegou ao pé do mar da Galileia, e,
subindo a um monte, assentou-se lá.
E veio ter com ele grandes multidões, que traziam coxos,
cegos, mudos, aleijados, e outros muitos, e os puseram aos
pés de Jesus, e ele os sarou,
De tal sorte, que a multidão se maravilhou vendo os mudos a
falar, os aleijados sãos, os coxos a andar, e os cegos a ver; e
glorificava o Deus de Israel.
E Jesus, chamando os seus discípulos, disse: Tenho
compaixão da multidão, porque já está comigo há três dias,
e não tem o que comer; e não quero despedi-la em jejum,
para que não desfaleça no caminho.” (Mt 15:29-32).
A hanseníase no Novo Testamento
Nas Escrituras, “lepra” não se restringe à doença
conhecida hoje por esse nome, pois ela podia atingir não só os
humanos, mas também roupas e casas (Le 14:55). No Antigo
Testamento, principalmente em Levítico, há uma ampla descrição
da lepra que, à medida que progride para seu estágio avançado, as
lesões que inicialmente se desenvolveram soltavam pus, faziam
cair os cabelos e as sobrancelhas, as unhas soltavam-se,
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decompunham-se e caíam. Daí, os dedos, os membros, o nariz ou
os olhos da vítima iam lentamente se consumindo. Por fim, nos
casos mais graves, seguiam-se de morte. Que a “lepra” bíblica
certamente incluía tal doença grave é evidente na referência feita
por Arão a ela como sendo um mal em que a carne é “metade
consumida” (Nm, 12:12).
Nos dias de Eliseu, Naamã, o sírio, era “capitão do exército
do rei da Síria, era um grande homem diante do seu SENHOR, e de
muito respeito; porque por ele o SENHOR dera livramento aos
sírios; e era este homem herói valoroso, porém leproso.” (2 Rs 5:1).
Seu orgulho quase o fez perder a oportunidade de ser curado,
mas, por fim, ele fez conforme Eliseu o instruíra, mergulhando no
Jordão sete vezes, e “mergulhou no Jordão sete vezes, conforme a
palavra do homem de Deus; e a sua carne tornou-se como a carne
de um menino, e ficou purificado.” (2 Rs 5:14). Como resultado
disso, tornou-se adorador de Deus. Não obstante, Geazi, ajudante
de Eliseu, obteve gananciosamente um presente de Naamã em
nome do profeta, representando assim mal a seu amo,
transformando, na verdade, a benignidade imerecida de Deus em
meio de ganho material. Por esse erro, Geazi foi afligido de lepra
por Deus e tornou-se “leproso tão branco como a neve” (2 Rs 5:20-
27).
Havia vários leprosos em Israel nos dias de Eliseu,
registrados por quatro leprosos israelitas do lado de fora dos
portões de Samaria, enquanto Eliseu estava na cidade. Nesse
registro fica claro que Deus utilizou-se deles para fazer um
milagre e expulsar o exército inimigo da cidade (2 Reis, 7):
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“Então disse Eliseu: Ouvi a palavra do SENHOR; assim diz o
SENHOR: Amanhã, quase a este tempo, haverá uma medida
de farinha por um siclo, e duas medidas de cevada por um
siclo, à porta de Samaria.
Porém um senhor, em cuja mão o rei se encostava,
respondeu ao homem de Deus e disse: Eis que ainda que o
SENHOR fizesse janelas no céu, poder-se-ia fazer isso? E ele
disse: Eis que o verás com os teus olhos, porém disso não
comerás.
E quatro homens leprosos estavam à entrada da porta, os
quais disseram uns aos outros: Para que estaremos nós aqui
até morrermos?
Se dissermos: Entremos na cidade, há fome na cidade, e
morreremos aí; e se ficarmos aqui, também morreremos.
Vamos nós, pois, agora, e passemos para o arraial dos sírios;
se nos deixarem viver, viveremos, e se nos matarem, tão-
somente morreremos.
E levantaram-se ao crepúsculo, para irem ao arraial dos
sírios; e, chegando à entrada do arraial dos sírios, eis que
não havia ali ninguém.
Porque o Senhor fizera ouvir no arraial dos sírios ruído de
carros e ruído de cavalos, como o ruído de um grande
exército; de maneira que disseram uns aos outros: Eis que o
rei de Israel alugou contra nós os reis dos heteus e os reis
dos egípcios, para virem contra nós.
Por isso se levantaram, e fugiram no crepúsculo, e deixaram
as suas tendas, os seus cavalos, os seus jumentos e o arraial
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como estava; e fugiram para salvarem a sua vida.” (2 Rs
7:1-7)
Nesse episódio, havia da parte dos israelitas uma
generalizada falta de fé nesse homem do verdadeiro Deus, assim
como os judeus no território de Jesus não o queriam aceitar. Por
isso, Cristo disse, em Lucas, 4:27: “E muitos leprosos havia em
Israel no tempo do profeta Eliseu, e nenhum deles foi purificado,
senão Naamã, o siro.”.
No Novo Testamento, muitos leprosos foram curados por
Jesus e seus discípulos. Jesus, durante seu ministério galileu,
curou um leproso, descrito em Lucas 5:
“E aconteceu que, quando estava numa daquelas cidades, eis
que um homem cheio de lepra, vendo a Jesus, prostrou-se
sobre o rosto, e rogou-lhe, dizendo: Senhor, se quiseres, bem
podes limpar-me.
E ele, estendendo a mão, tocou-lhe, dizendo: Quero, sê limpo.
E logo a lepra desapareceu dele.
E ordenou-lhe que a ninguém o dissesse. Mas vai, disse,
mostra-te ao sacerdote, e oferece pela tua purificação, o que
Moisés determinou para que lhes sirva de testemunho.
A sua fama, porém, se propagava ainda mais, e ajuntava-se
muita gente para o ouvir e para ser por ele curada das suas
enfermidades.
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Ele, porém, retirava-se para os desertos, e ali orava.” (Lc
5:12-16)
Essa mesma passagem é descrita em Mateus 8:2-4 e em
Marcos 1:40-45. Quando Jesus enviou os 12 apóstolos, Ele lhes
disse, entre outras coisas: “Curai os enfermos, limpai os leprosos,
ressuscitai os mortos, expulsai os demônios; de graça recebestes, de
graça dai.” (Mt 10:8). Mais tarde, quando percorria a Samaria e a
Galileia, Jesus realizou outra grande cura registrada em Lucas 17:
“E aconteceu que, indo ele a Jerusalém, passou pelo meio de
Samaria e da Galileia;
E, entrando numa certa aldeia, saíram-lhe ao encontro dez
homens leprosos, os quais pararam de longe;
E levantaram a voz, dizendo: Jesus, Mestre, tem misericórdia
de nós.
E ele, vendo-os, disse-lhes: Ide, e mostrai-vos aos sacerdotes.
E aconteceu que, indo eles, ficaram limpos.
E um deles, vendo que estava são, voltou glorificando a Deus
em alta voz;
E caiu aos seus pés, com o rosto em terra, dando-lhe graças;
e este era samaritano.
E, respondendo Jesus, disse: Não foram dez os limpos? E
onde estão os nove?
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Não houve quem voltasse para dar glória a Deus senão este
estrangeiro?
E disse-lhe: Levanta-te, e vai; a tua fé te salvou.” (Lc 17:11-
19).
Vimos que, dos dez, apenas um deles, um samaritano,
“voltou, glorificando a Deus com voz alta”, e se lançou ao solo
diante dos pés de Jesus, agradecendo o que Ele tinha feito em seu
favor.
Vale lembrar que Cristo estava em Betânia, na casa de
Simão, o leproso (Mt 26:6-13; Mr 14:3-9; Jo 12:1-8), quando Maria
ungiu Jesus com o custoso óleo perfumado. Esse Simão era pai de
três amigos próximos do Mestre, Lázaro, Marta e Maria. Não nos
fica claro, mas certamente Simão fora curado por Jesus, pois os
leprosos eram proibidos de se aproximar das pessoas saudáveis.
Era a última Páscoa de Cristo aqui na terra, poucos dias antes de
Sua morte.
A ação de Jesus é demonstração exata de que um doente
não deve ser estigmatizado pela sociedade, apesar dos costumes
da época. Jesus fez várias demonstrações contrárias às leis
judaicas, e essa foi uma das razões pelas quais os líderes judeus
fizeram tanta questão que ele fosse condenado. Como muitas
outras coisas na Bíblia, o melhor é tomarmos a mensagem de
fundo – a de não estigmatizar – e deixarmos de lado a questão da
plausibilidade do fato.
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A baixa estrutura de Zaqueu
Conhecido apenas por um episódio narrado no Evangelho
de Lucas, Zaqueu era o responsável pela coleta de impostos em
Jericó durante o jugo romano. Os coletores de impostos eram
odiados pelos seus compatriotas judeus, que os viam como
traidores trabalhando para o império romano. Em função de a
lucrativa produção e exportação do bálsamo estar centralizada em
Jericó, a posição de Zaqueu era muito cobiçada pelas riquezas que
prometia. Essa é sua história, registrada em Lucas, 19:
“E, tendo Jesus entrado em Jericó, ia passando.
E eis que havia ali um homem chamado Zaqueu; e era este
um chefe dos publicanos, e era rico.
E procurava ver quem era Jesus, e não podia, por causa da
multidão, pois era de pequena estatura, correndo adiante,
subiu a uma figueira brava para o ver; porque havia de
passar por ali.
E quando Jesus chegou àquele lugar, olhando para cima,
viu-o e disse-lhe: Zaqueu, desce depressa, porque hoje me
convém pousar em tua casa.
E, apressando-se, desceu, e recebeu-o alegremente.
E, vendo todos isto, murmuravam, dizendo que entrara para
ser hóspede de um homem pecador.
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E, levantando-se Zaqueu, disse ao Senhor: Senhor, eis que eu
dou aos pobres metade dos meus bens; e, se nalguma coisa
tenho defraudado alguém, o restituo quadruplicado.
E disse-lhe Jesus: Hoje veio a salvação a esta casa, pois
também este é filho de Abraão.
Porque o Filho do homem veio buscar e salvar o que se havia
perdido.” (Lc 19:1-10).
Nos versículos iniciais, vê-se que Zaqueu chegou antes da
multidão que estava ali para se encontrar com Jesus, o qual
passava por Jericó a caminho de Jerusalém. Descrito como um
homem de baixa estatura, o que costuma ser considerado
“deficiência”, quando bastante fora da média, isso nos leva a
acreditar que era tão evidente que chegou a ser registrado na
Bíblia. Zaqueu então subiu num sicômoro para que pudesse ver
Jesus. Quando Ele chegou ao lugar, olhou para os ramos e chamou
Zaqueu pelo nome, pedindo-lhe que descesse, pois pretendia
visitar a sua casa. “Dentre as possíveis coisas que se pode
depreender dessa passagem bíblica está a de se considerar que foi
graças à sua pequena estrutura que Zaqueu pôde vir a chamar a
atenção de Jesus, posto que, ao subir num sicômoro (espécie de
figueira, de oito a quinze metros de altura), veio ele a destacar-se
dos demais. O fato de buscar superar uma ‘desvantagem’, digamos
assim, uma ‘deficiência’, poderão dizer alguns, fez com que ele se
destacasse e chegasse mais próximo até do que ousou almejar: até
Jesus” (RANAURO e LIMA DE SÁ, 1999, p. 70).
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Paulo: Uma visão transformadora
Por volta de 35 a.C., aproximadamente cinco anos após a
crucificação de Jesus Cristo, Saulo, talvez com 30 anos, estava
caminhando rumo a Damasco, levando as cartas do sumo
sacerdote. Deus escolheu aquele momento para promover grande
mudança em sua vida. Anos mais tarde, Saulo descreveria o
acontecimento calmamente, dizendo apenas que Deus “Revelar
seu Filho em mim, para que o pregasse entre os gentios, não
consultei a carne nem o sangue,” (Gl 1:16). Nos Atos dos Apóstolos,
o episódio é contado no mínimo três vezes em detalhes.
Saulo estava se aproximando de Damasco quando uma luz
brilhante vinda dos céus o envolveu e uma voz se dirigiu a ele,
usando seu nome hebraico. Vejamos a narrativa bíblica em Atos 9:
“E Saulo, respirando ainda ameaças e mortes contra os
discípulos do Senhor, dirigiu-se ao sumo sacerdote.
E pediu-lhe cartas para Damasco, para as sinagogas, a fim
de que, se encontrasse alguns deste Caminho, quer homens
quer mulheres, os conduzisse presos a Jerusalém.
E, indo no caminho, aconteceu que, chegando perto de
Damasco, subitamente o cercou um resplendor de luz do
céu.
E, caindo em terra, ouviu uma voz que lhe dizia: Saulo,
Saulo, por que me persegues?
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E ele disse: Quem és, Senhor? E disse o Senhor: Eu sou Jesus,
a quem tu persegues. Duro é para ti recalcitrar contra os
aguilhões.
E ele, tremendo e atônito, disse: Senhor, que queres que eu
faça? E disse-lhe o Senhor: Levanta-te, e entra na cidade, e
lá te será dito o que te convém fazer.
E os homens, que iam com ele, pararam espantados, ouvindo
a voz, mas não vendo ninguém.
E Saulo levantou-se da terra, e, abrindo os olhos, não via a
ninguém. E, guiando-o pela mão, o conduziram a Damasco.
E esteve três dias sem ver, e não comeu nem bebeu.
E havia em Damasco um certo discípulo chamado Ananias; e
disse-lhe o Senhor em visão: Ananias! E ele respondeu: Eis-
me aqui, Senhor.
E disse-lhe o Senhor: Levanta-te, e vai à rua chamada
Direita, e pergunta em casa de Judas por um homem de
Tarso chamado Saulo; pois eis que ele está orando;
E numa visão ele viu que entrava um homem chamado
Ananias, e punha sobre ele a mão, para que tornasse a ver.
E respondeu Ananias: Senhor, a muitos ouvi acerca deste
homem, quantos males tem feito aos teus santos em
Jerusalém;
E aqui tem poder dos principais dos sacerdotes para
prender a todos os que invocam o teu nome.
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Disse-lhe, porém, o Senhor: Vai, porque este é para mim um
vaso escolhido, para levar o meu nome diante dos gentios, e
dos reis e dos filhos de Israel.
E eu lhe mostrarei quanto deve padecer pelo meu nome.
E Ananias foi, e entrou na casa e, impondo-lhe as mãos,
disse: Irmão Saulo, o Senhor Jesus, que te apareceu no
caminho por onde vinhas, me enviou, para que tornes a ver e
sejas cheio do Espírito Santo.
E logo lhe caíram dos olhos como que umas escamas, e
recuperou a vista; e, levantando-se, foi batizado.
E, tendo comido, ficou confortado. E esteve Saulo alguns dias
com os discípulos que estavam em Damasco.
E logo nas sinagogas pregava a Cristo, que este é o Filho de
Deus.” (At 9:1-20)
Em um primeiro momento, aquela voz parecia impossível.
Jesus fora crucificado, amaldiçoado, não podia ser o Messias, e
muito menos lhe falar em uma visão dos céus. No entanto, como
ele mesmo estava tendo aquela visão, Saulo não tinha como negá-
la. Fora uma experiência tão impactante que ele teve a absoluta
certeza de que era uma “visão celeste” (Atos, 26:19) do verdadeiro
Deus que ele vinha servindo, mas o qual tinha entendido de forma
totalmente equivocada. Para Saulo, o impossível tornara-se
realidade.
A luz ofuscante tinha cegado Saulo, talvez para lhe mostrar
a cegueira da violenta perseguição que ele tinha instigado. Mas, ao
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lado de seus companheiros, Saulo seguiu viagem para Damasco,
onde passou três dias orando naquela estranha escuridão –
jejuando, separado de seu passado, sem saber o que o futuro lhe
reservava. Finalmente, aproximou-se o cristão Ananias, um judeu
devoto que também tinha aderido à nova fé, impôs as mãos sobre
ele e escamas caíram de seus olhos, curando milagrosamente a
sua cegueira. Saulo foi batizado e teve o seu nome trocado para
Paulo, experimentando o poder do Espírito Santo que tinha
encorajado Estêvão – o primeiro mártir cristão, cuja história fora
ponto crucial de desenvolvimento dos primórdios da Igreja, cuja
morte marcou o início de uma violenta perseguição,
principalmente contra os fiéis helenistas, uma rebelião
encabeçada por Paulo que fora consciente da execução de Estêvão.
Agora chamado por Deus este mesmo Saulo se torna um apóstolo
da nova fé para continuar e concluir o trabalho iniciado por
Estêvão.
Paulo de Tarso foi um dos mais influentes escritores do
Cristianismo primitivo, cujas obras compõem parte significativa
do Novo Testamento. A influência que exerceu no pensamento
cristão, chamada de “paulinismo”, foi fundamental por causa do
seu papel como proeminente apóstolo do Cristianismo durante a
propagação inicial do Evangelho pelo império romano. A principal
fonte para informações históricas sobre a vida de Paulo são as
pistas encontradas em suas epístolas e nos Atos dos Apóstolos. Os
Atos recontam a carreira de Paulo, mas deixam de fora diversas
partes de sua vida, como a sua alegada execução em Roma.
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III – CASTIGO E PECADO: PRINCIPAIS
CONCEITOS BÍBLICOS SOBRE PESSOAS
COM DEFICIÊNCIAS E MUDANÇAS DE
MENTALIDADES
os relatos dos capítulos anteriores vimos que a
discriminação contra pessoas com qualquer deficiência
era aberta e manifesta nas próprias leis. Certos livros
bíblicos, principalmente do Antigo Testamento, dão-nos algumas
indicações de costumes ou de ambientes, além de apresentarem
relatos – às vezes elaborados na própria época – sobre os
preconceitos contra pessoas e mesmo contra animais defeituosos.
Queremos fazer alguns questionamentos. Será que tais
determinações vieram realmente da parte de Deus, pois, se tudo
que há na face da terra é criação/permissão Dele, iria se
contradizer, criando pessoas com deficiência para depois
discriminá-las? Ou tais restrições partiram da própria mente
humana? Ou seja, pautadas por costumes culturais e a falta de
conhecimentos, principalmente científicos e teológicos, sobre as
pessoas com deficiência?
N
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Deficiência é fruto do pecado?
Vimos ao longo do Antigo Testamento que por inúmeras
vezes a deficiência está associada ao pecado. Deixando o contexto
bíblico e mergulhando ainda mais na história, descobriremos que
essa tendência de interpretação tem suas raízes nas religiões de
Israel, quando nas sociedades primitivas era comum uma doença
ou deficiência ser atribuída ou a uma magia hostil ou à violação de
um tabu. Era tarefa do homem de Deus ou do sacerdote (também
o médico da tribo) descobrir as causas (diagnose) e estabelecer o
encaminhamento ou a magia certa para eliminar o mal
(prognose). A diagnose podia ser interpretada por erro ou pecado
cometido pela pessoa contra as normas sociais ou divindades e
exigia uma reparação adequada.
Essa visão se manteve no Antigo Testamento, além de uma
segunda raiz da tendência teológica de atribuir a doença a um
pecado humano, assim explicada por Kilpp (1990): “É a conhecida
visão assim chamada Sabedoria israelita que vê uma intrínseca
relação entre agir (causa) e acontecer (‘destino’; consequência), ou
seja: os justos terão sucesso enquanto os ímpios, desgosto e
infelicidade. Essa Sabedoria israelita, que, sem dúvida, está baseada
em observações do povo, quer dar lições de vida. Ela tem, pois,
função didática. Essa é, parece-me também a intenção de maldição
condicional de Deuteronômio 28, quando anuncia que a
desobediência aos mandamentos de Deus acarretará, entre outros
males, também ‘loucura, cegueira e demência’. Nesses textos não se
inverte, no entanto, a perspectiva, ou seja, não se afirma (ainda) que
qualquer cego ou demente é um amaldiçoado por Deus ou, então,
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um ímpio. Há reservas, nesses textos, em tirar essa conclusão – e
com razão. Todo o livro de Jó (em parte também Eclesiastes) nos
ensina que não é possível julgar doença e sofrimento como castigo
de Deus por pecado cometido” (p. 43).
Mesmo assim, no Antigo Testamento o conceito de puro e
impuro tinha uma importância extraordinária na vida do fiel e
chegava a ser causa de grande sofrimento por parte do povo
simples, que não conhecia a Lei e devia seguir os rígidos
ensinamentos e interpretações dos escribas e fariseus da cultura
judaica. O conceito de impureza estava ligado a tudo que pertencia
ao mundo dos falsos deuses e dos demônios, em oposição radical
ao Deus verdadeiro, o único santo, contaminando pessoas e coisas,
tornando-as inadequadas para o culto e mesmo para a vida social
com o povo santo de Deus. Vendrame (2001) lembra que o livro
de Levítico “consagra diversos capítulos para declarar o que é puro
ou o que é impuro e ditar normas de purificação. As doenças (de
modo todo particular as doenças de pele), os defeitos físicos, tudo o
que se relaciona com a vida sexual (menstruação, esperma,
nascimento), com o sangue e com a morte, contamina as pessoas; e,
por sua vez, as pessoas, os animais e objetos contaminados
contaminam tudo o que tocam. Quem se contamina, não importa se
por sua culpa ou não, entra na área das potências maléficas, dos
espíritos imundos, e não pode entrar em contato com Deus santo
sem antes se purificar com abluções, banhos e mesmo com
sacrifícios, conforme a gravidade da contaminação. Daí não haver
muita diferença entre pecador, doente ou endemoninhado. Todos os
impuros eram excluídos sem misericórdia do culto e da convivência
na sociedade, o que equivalia a serem condenados à morte social e
por vezes à morte física” (p. 112).
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A lei do puro ou do impuro afastava o povo das práticas do
ambiente pagão circundante, enquanto os profetas pregavam a
pureza interior, afirmando que a beleza exterior não tinha valor.
“Mas com o tempo as normas foram crescendo e as autoridades
religiosas foram se tornando mais rígidas em sua aplicação.
Precisou vir o Cristo para acabar com toda essa carga de normas e
prescrições que infernizavam a vida, excluíam pessoas e desviavam
a atenção dos verdadeiros valores e justiça de misericórdia. A
palavra libertadora e sanante do Cristo purifica todas as coisas,
restituindo ao ser humano a possibilidade de vê-las com o olhar de
Deus Criador. Cristo disse que não é o que toca ou entra no homem,
vindo de fora, que contamina, mas as intenções perversas que
nascem em seu interior, que saem do coração do homem”
(VENDRAME, 2001, pp. 112-113).
Faremos uma contextualização geral do pecado, termo
comumente utilizado em contexto religioso, descrevendo
qualquer desobediência à vontade de Deus, às Leis Divinas. No
hebraico e no grego comum, as formas verbais significam “errar”,
no sentido de errar ou não atingir um alvo, ideal ou padrão. Em
latim, o termo é vertido por peccátu.
A perspectiva judaica considera a violação de um
mandamento divino como um pecado, destacando-o como um ato
e não um estado do ser. A humanidade encontra-se num estado de
inclinação para fazer o mal (Gênesis 8:21) e de incapacidade para
escolher o Bem em vez do Mal (Salmo 37:17). O Judaísmo usa o
termo “pecado” para incluir violações à lei judaica que não são
necessariamente uma falta moral. Por isso, Deus na sua
misericórdia permitiu ao homem arrepender-se e ser perdoado. O
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Judaísmo defende que todo homem nasce sem pecado, pois a
culpa de Adão não recai sobre os outros homens.
Na visão católica, o pecado é uma palavra, um ato ou um
desejo contrários à Lei eterna, causando por isso ofensa a Deus e
ao seu amor. Essa Lei eterna, ou Lei de Deus, é expressa na lei
natural, nos Dez Mandamentos, nos mandamentos de amor, entre
outros. Logo, o pecado é um ato mal e “abuso da liberdade”,
ferindo assim a natureza humana. Cristo, na sua morte na cruz,
revela plenamente a gravidade do pecado e vence-o com a sua
misericórdia. Há uma grande variedade de pecados e a repetição
gera vícios, que são hábitos perversos que obscurecem a
consciência e inclinam para o mal. Os vícios podem estar ligados
aos chamados sete pecados capitais: soberba, avareza, inveja, ira,
luxúria, gula e preguiça. A doutrina católica ensina também que
temos responsabilidade “nos pecados cometidos por outros,
quando culpavelmente neles cooperamos”, distinguindo o pecado
em três categorias: o pecado original, que é transmitido a todos os
homens, sem culpa própria, devido à sua unidade de origem, que é
Adão e Eva; o pecado mortal, que é cometido quando, ao mesmo
tempo, há matéria grave, plena consciência e deliberado
consentimento; além de destruir a caridade, priva-nos da graça
santificante e conduz-nos à morte eterna do inferno, se dele não
nos arrependermos sinceramente; o pecado venial, que, diferente
em essência do pecado mortal, se comete quando se trata de
matéria leve, ou mesmo grave, mas sem pleno conhecimento ou
sem total consentimento, não quebrando a aliança com Deus, mas
enfraquece a caridade, manifesta um afeto desordenado pelos
bens criados, impede o progresso da alma no exercício das
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virtudes e na prática do bem moral, merecendo penas
purificatórias temporais no purgatório.
O segmento protestante (ou evangélico) não crê em
purgatório nem classifica os pecados como venial, mortal ou
capital. Seguindo os preceitos bíblicos, o pecado está em todos os
homens, pois “Porque todos pecaram e destituídos estão da glória
de Deus;” (Rm 3:23). A separação está entre o pecado cometido
contra a carne (pode ser perdoado) e contra o Espírito Santo de
Deus (o qual não pode ser perdoado – Lc 12:10). O pecado nada
mais é do que a transgressão aos mandamentos de Deus. Pecado é
um ato, pois “cada um é tentado, quando atraído e engodado pela
sua própria concupiscência. Depois, havendo a concupiscência
concebido, dá à luz o pecado; e o pecado, sendo consumado, gera a
morte.” (Tiago 1:14-15). Para que tenhamos salvação e
desfrutemos da vida eterna, devemos tão somente crer e
confessar Jesus Cristo como único e suficiente Salvador e Senhor,
sendo necessário arrependimento, e não remorso (que nos leva a
cometer novamente os mesmos erros).
Vimos que nas três visões – judaica, católica e evangélica –
nenhuma cita que uma deficiência é causa ou castigo por algum
pecado. Também no próprio Antigo Testamento há em
Deuteronômio 24:16 um versículo que desmistifica isso: “Os pais
não morrerão pelos filhos, nem os filhos pelos pais; cada um
morrerá pelo seu pecado.”.
Flávio Josefo, em seu conceituado livro História dos
Hebreus (2007), reforça isso: “As crianças não devem ser
castigadas pelos pecados dos pais porque, sendo elas virtuosas, são
dignas de serem lamentadas por terem nascido de pessoas viciadas
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e não devem ser odiadas em razão das faltas cometidas por seus
genitores. Não se deve, do mesmo modo, imputar aos pais os defeitos
dos filhos, e sim atribuí-los à má natureza destes, que os fez
desprezar as boas lições que lhes deram aqueles e os impediu de
aproveitá-las” (p. 187).
Vendrame (2001) reforça o conceito de que pecado não
tem relação com deficiência como uma forma de castigo ou
punição: “O caso do rei Ezequias, mais vezes reportado e proposto à
reflexão no AT, parece contradizer a convicção comum a respeito da
relação entre pecado e doença, pois não se diz que ele tenha pecado
para merecer aquela doença tão grave que o levara à morte, nem
que ele se tenha reconhecido culpado. Aliás, a cura não veio pela
oração ou pela palavra do profeta, mas pela aplicação de um
emplastro de figos (Is 38:21). O mesmo se diga do pequeno Merib-
baal, que ficou aleijado por uma queda (2 Sm 4:4), e do justo Tobias,
que ficou cego apesar de toda a sua bondade (Tb 2:10). Mas
também nesses casos se reconhece que tudo vem de Deus, bom e
justo, que tem suas razões para permitir o mal e depois o curar,
quer diretamente, quer pelos meios que ele mesmo criou e ensina
como usar, para recuperar a saúde” (pp. 28-29).
No Novo Testamento, em João 9, Jesus dá a palavra final,
atestando que as deficiências não são fruto do pecado.
“E, passando Jesus, viu um homem cego de nascença.
E os seus discípulos lhe perguntaram, dizendo: Rabi, quem
pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego?
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Jesus respondeu: Nem ele pecou nem seus pais; mas foi assim
para que se manifestem nele as obras de Deus.
Convém que eu faça as obras daquele que me enviou,
enquanto é dia; a noite vem, quando ninguém pode
trabalhar.
Enquanto estou no mundo, sou a luz do mundo.
Tendo dito isto, cuspiu na terra, e com a saliva fez lodo, e
untou com o lodo os olhos do cego.
E disse-lhe: Vai, lava-te no tanque de Siloé (que significa o
Enviado). Foi, pois, e lavou-se, e voltou vendo.” (Jo 9:1-7).
Como a pessoa poderia ter pecado para originar uma
cegueira se já nasceu com ela? Seria a cegueira, em si mesma, um
castigo por pecados cometidos por seus pais ou pela própria
pessoa em vidas passadas? A ideia de várias vidas, de várias
encarnações era a crença de alguns de muitos daqueles povos
primitivos que começavam a conhecer o Cristianismo.
Só que, ainda hoje, muita gente, até mesmo cristãos,
atribuem deficiências, doenças, fatalidades, mazelas a
consequências de pecados dos antepassados, pautados por
algumas passagens do Antigo Testamento, consequências diretas
de pecados cometidos, como se fosse castigo. Conforme observam
Ranauro e Lima de Sá (1999), “é bastante divulgada entre nós a
visão de diversas religiões de influência oriental que sofrimentos,
fatalidades são castigos, punições, ou situações a que se estaria
exposto para purgação de culpas, da própria pessoa ou dos que a
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cercam. As deficiências são encaradas, muitas das vezes, como uma
cruz a ser carregada pelos que ‘as merecem’. O discurso bíblico,
porém, não dá base para que se o afirme. É importante que se deixe
claro que, com base na narrativa bíblica, existem deficiências e
doenças que nenhuma relação têm com pecados cometidos” (p. 54).
Jesus e o início da inclusão
A vinda de Jesus foi o início de uma mudança geral de
mentalidade pautada pela inclusão dos menos favorecidos ao
Cristianismo. Logo de início, Jesus não aceitou pacificamente as
leis do Antigo Testamento como a vontade de Deus, questionando-
as por servirem para organizar a vida em sociedade, sendo
também a Constituição do país. Jesus rejeitou as leis orais dos
escribas, bem como as leis sobre pureza e impureza. Rejeitou-as
porque elas estavam sendo usadas pelas elites dominantes
(escribas, fariseus, sacerdotes) para explorar a população. Isso
Jesus mostrou claramente em sua visita ao templo de Jerusalém,
como vemos em Marcos 11:
“E vieram a Jerusalém; e Jesus, entrando no templo,
começou a expulsar os que vendiam e compravam no
templo; e derrubou as mesas dos cambiadores e as cadeiras
dos que vendiam pombas.
E não consentia que alguém levasse algum vaso pelo templo.
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E os ensinava, dizendo: Não está escrito: A minha casa será
chamada, por todas as nações, casa de oração? Mas vós a
tendes feito covil de ladrões.
E os escribas e príncipes dos sacerdotes, tendo ouvido isto,
buscavam ocasião para o matar; pois eles o temiam, porque
toda a multidão estava admirada acerca da sua doutrina.
E, sendo já tarde, saiu para fora da cidade.” (Mc 11:15-19).
Segundo as leis da época, era por ali que pecadores e
impuros teriam que passar se quisessem encontrar novamente
Deus, pois a reconciliação com Deus só seria alcançada com a
oferta regular de sacrifícios, dízimos e taxa ao templo, cujo
montante chagava a quase um quarto da população. Mesmo que
os sacerdotes jamais admitissem isso (já que se sentiam
amparados pela lei, pela constituição), a verdade é que o perdão e
a reconciliação com Deus estavam sendo usados como fonte de
exploração. Jesus protesta contra isso, porque entende que a lei,
se quer ser expressão da vontade de Deus, deve ajudar a
promover uma vida plena para todos, e não servir como fonte
legitimadora de exploração. Hofelmann (1990) observa que “Jesus
denuncia o uso ideológico da lei. Os considerados justos e puros
diante de Deus não raramente coincidiam com os representantes da
elite dominante da sociedade. Os pobres e doentes, em
compensação, faziam parte da categoria dos pecadores e impuros,
ou seja, daquelas pessoas que estariam em situação irregular
perante Deus. Mera coincidência? Certamente não! Dessa maneira a
elite dominante procurava justificar a sociedade dividida entre
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empobrecidos e privilegiados. Acompanharemos sua argumentação:
os pobres seriam culpados de sua própria pobreza porque
desobedecem às leis, ou seja, à vontade de Deus. Quanto às elites
dominantes, elas estariam em situação privilegiada porque viviam
numa relação correta da lei, ou seja, com a vontade de Deus. Jesus
desarma esse raciocínio. Ao questionar a lei e escolher em nome de
Deus os que viviam à margem, ele coloca o relacionamento das
pessoas com Deus sobre outras bases e tira da elite dominante a
possibilidade de legitimar a sociedade dividida em nome de Deus.
Assim a divisão da sociedade pode ser percebida em suas
verdadeiras causas, que são a exploração econômica e a opressão de
alguns sobre os outros” (p. 61).
Na Bíblia, as duas doenças mais frequentemente
lembradas, a ponto de merecerem o nome de doenças bíblicas,
com sentido próprio de males físicos, e terem uma conotação
religiosa e simbólica, são a lepra, que era considerada o castigo de
Deus por excelência, e a cegueira, que significava, muitas vezes, a
incapacidade de perceber as maravilhas de Deus.
Em especial a questão da cegueira, para entendermos
melhor, Kilpp (1990) traz um bom esclarecimento histórico: “A
velhice e a guerra, no entanto, não eram as causas principais de
cegueira. Geralmente esta era consequência de oftalmias. Comum,
na época, era uma espécie de conjuntivite grave, transmitida por
moscas e agravada pela poeira e pela luz solar, que geralmente
levava à perda da visão. Bastante frequente parece ter sido também
o tracoma. A cegueira de recém-nascidos (cegos de nascenças) era
comumente provocada por infecção gonocócica da mãe. Apesar de
termos notícias de que, já no segundo milênio a.C., se fizessem na
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Mesopotâmia e no Egito operações na vista (talvez de cataratas) e
se usassem substâncias antissépticas e adstringentes nos olhos para
evitar cegueiras, verdade é que esta era considerada incurável. Uma
eventual cura era tida por milagre, intervenção divina” (p. 40).
É precisamente em favor dos leprosos e dos cegos que
Jesus realiza o maior número de curas, logo no início de seu
ministério, conforme narrado em Lucas 7:
“E de todos se apoderou o temor, e glorificavam a Deus,
dizendo: Um grande profeta se levantou entre nós, e Deus
visitou o seu povo.
E correu dele esta fama por toda a Judéia e por toda a terra
circunvizinha.
E os discípulos de João anunciaram-lhe todas estas coisas.
E João, chamando dois dos seus discípulos, enviou-os a Jesus,
dizendo: És tu aquele que havia de vir, ou esperamos outro?
E, quando aqueles homens chegaram junto dele, disseram:
João o Batista enviou-nos a perguntar-te: És tu aquele que
havia de vir, ou esperamos outro?
E, na mesma hora, curou muitos de enfermidades, e males, e
espíritos maus, e deu vista a muitos cegos.
Respondendo, então, Jesus, disse-lhes: Ide, e anunciai a João
o que tendes visto e ouvido: que os cegos veem, os coxos
andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os
mortos ressuscitam e aos pobres anuncia-se o evangelho.
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E bem-aventurado é aquele que em mim se não
escandalizar.” (Lc 7:16-23).
Nos três anos de ministério, Jesus teve uma atenção toda
particular para com aqueles que, seja pelo tipo de doença ou
deficiência, seja por sua condição social, eram os mais
abandonados, excluídos do convívio social e da participação no
culto. Ele mesmo foi um excluído desde o primeiro dia de sua vida,
quando seus pais não puderam encontrar lugar decente para seu
nascimento (Lucas 2:7): “E deu à luz a seu filho primogênito, e
envolveu-o em panos, e deitou-o numa manjedoura, porque não
havia lugar para eles na estalagem.” (Lc 2:7). Em seguida teve de
refugiar-se no Egito: “E, levantando-se, o expulsaram da cidade, e o
levaram até ao cume do monte em que a cidade deles estava
edificada, para dali o precipitarem.” (Lucas 4:29). Considerado
perigoso e vigiado pelos responsáveis da ortodoxia, era excluído
da sinagoga até por quem o defendesse. Caminhando para
cumprir sua missão, Jesus não tinha onde reclinar a cabeça.
Perseguido por ameaças de autoridades locais, foi expedida
ordem de captura contra ele, que teve que se refugiar nas
proximidades de Jerusalém e em Jericó. Ao ser preso e condenado
pelas autoridades religiosas e civis, Jesus foi crucificado como um
criminoso, junto com dois marginais, como indigno de viver, ele,
autor da vida e que veio proclamar as boas novas, morreu na cruz
sem ter quem o defendesse.
Em seus 33 anos de vida em um corpo humano, Jesus se
fez pobre, teve um amor todo especial pelos empobrecidos e
excluídos, proclamando a bem-aventurança deles, não por serem
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pobres e miseráveis, mas porque – com a vinda do reino de Deus,
reino de justiça e solidariedade, onde todos possam sentir-se
filhos de Deus, cidadãos livres e responsáveis – chegou para eles a
hora da libertação: “E, levantando ele os olhos para os seus
discípulos, dizia: Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o
reino de Deus.” (Lc 6:20).
Jesus já promovia a inclusão, ensinando pela palavra e
pelo exemplo que não basta torcer pelos excluídos, é preciso ser
solidário com eles.
Temos aqui o primeiro grande rompimento
histórico/religioso. Com a vinda de Jesus houve uma mudança
profunda no conceito de Deus e do homem e do mútuo
relacionamento entre eles. Se no Antigo Testamento eram
intuições de místicos e profetas, muitas vezes consideradas
utopia, concretizaram-se com a vinda de Jesus Cristo. Nele, Deus
se manifestou não só como o Criador e soberano, mas,
principalmente, como Pai misericordioso, chamando-nos para
viver em comunhão com Ele e, entre nós, no amor e a
solidariedade.
Vendrame (2001) diz que “por isso não é de estranhar que
os doentes ocupam um espaço privilegiado nos Evangelhos e nos
Atos dos Apóstolos. Cerca de uma quinta parte dos Evangelhos e
dedicada à atividade de Jesus em favor deles e às discussões que se
originavam a partir das curas que ele realizava. Dos 3.779
versículos dos quatros Evangelhos, 727 referem-se especificamente
à cura de doenças físicas ou mentais e à ressurreição dos mortos.
Além disso, há 165 versículos que tratam em geral a vida eterna e
31 referências gerais a milagres que incluem cura” (pp. 45-46).
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O inconsciente coletivo e a desconstrução dos estigmas
religiosos
Voltando àquela época, no Antigo Oriente Médio e no
Israel onde viveram os povos narrados no Antigo Testamento, as
doenças e deficiências físicas eram bem mais frequentes do que
imaginamos. Precárias condições higiênicas, sanitárias e
medicinais eram causas de pestes, que reduziam drasticamente a
população, e de doenças, que levavam a lesões físicas
permanentes. As constantes guerras por conquista e retaliação
por parte dos impérios mutilavam milhares de soldados e
inocentes. Uma crônica alimentação pobre e deficiente que
minava a resistência de grande parte da população. Quando, pois,
se fala de doentes e pessoas com deficiência no contexto bíblico,
não estamos lidando com casos isolados, mas com um problema
social geral daqueles tempos difíceis. E, pelas condições de uma
vida praticamente miserável, pessoas naquele estado estavam
sempre destinadas à pobreza e à mendicância.
Conceitos de que pessoas com deficiência são frutos de
castigos, de pecados, de pessoas que precisam viver à base de
caridade viajaram ao longo do tempo e dos séculos e chegaram até
nós quase intocados. Como observam Ranauro e Lima de Sá,
“muitas vezes, doenças ou deficiências são tratadas como advindas
de uma ou outra procedência, considerando-se os espectadores
capazes de julgar, ou pré-julgar, as situações como se fossem de
todo o conhecimento sobre os casos. Muita confusão ou tristeza é
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gerada na vida de pessoas deficientes ou doentes, cujas dificuldades
têm outras origens que não são as ‘interpretadas’ por pessoas não
conhecedoras de toda a situação” (p. 83).
Esses pré-julgamentos que temos com relação às pessoas
com deficiência viajam pelo nosso inconsciente coletivo, conceito
criado pelo psicólogo suíço Carl Gustav Jung, que colaborou com
Freud, escrevendo diversos artigos e livros de psicanálise, vindo,
posteriormente, a discordar de algumas ideias de Freud e a criar
sua própria abordagem, chamada Psicologia Analítica ou
Psicologia Profunda ou Arquetípica.
Inconsciente coletivo é o nível mais profundo da psique,
que contém o acúmulo de experiências herdadas de espécies
humanas e pré-humanas. Todas as experiências são universais –
aquelas que são repetidas relativamente inalteradas por todas as
gerações –, tornam-se parte da nossa personalidade. O nosso
passado primitivo é a base da psique humana, dirigindo e
influenciando o comportamento presente. Para Jung, o
inconsciente coletivo era o repositório de experiências ancestrais
poderosas e controladoras. Consequentemente, Jung ligava a
personalidade de cada pessoa ao passado, não só à infância, mas
também à história da espécie. Não herdamos essas experiências
coletivas diretamente. Pegando um exemplo bíblico, não
herdamos o medo de cobras, mas sim o potencial para temê-las.
Estamos predispostos a nos comportar e a sentir como as pessoas
sempre se comportaram e sentiram. Essa predisposição pode se
tornar ou não uma realidade, dependendo das experiências
específicas com as quais cada um de nós se depara na vida.
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Vale ressaltar que as experiências antigas contidas no
inconsciente coletivo manifestam-se por temas ou padrões
recorrentes que Jung chamou de arquétipos. Ele também utilizou o
termo imagens primordiais. Existem muitas dessas imagens de
experiências universais, tantas experiências humanas que são
comuns a todos. Repetindo-se na vida de várias gerações
subsequentes, os arquétipos são gravados na nossa psique e
expressos nos nossos sonhos e fantasias.
Trazendo isso para o nosso estudo, não podemos fugir da
questão do preconceito que algumas vezes se instala como fruto
de interpretações do discurso religioso, que também são raízes de
nosso inconsciente coletivo, que apontaram para tempos remotos
de origens do nosso imaginário cultural-religioso, o que, muitas
vezes, influencia nossos conceitos e preconceitos com relação à
doença e às pessoas com deficiência, estabelecendo ligações
inconscientes com o castigo e com o pecado divinamente punido.
Cabe a nós hoje, como seres capazes de refletir, com muito mais
conhecimentos científicos, humanitários e religiosos acumulados,
compreender a influência dessas construções históricas em nosso
imaginário religioso, discernir seu reflexo nos nossos julgamentos
e em nossas atitudes com relação a essas pessoas.
Ranauro e Lima de Sá (1999) observam que “há, em
determinadas comunidades cristãs, muita ênfase na divulgação de
episódios em que as pessoas conseguiram alterar circunstâncias
negativas, difíceis, pelo tanto que exerceram ou exercem sua fé. A
ocorrência dessas possibilidades não implica que todas as
circunstâncias negativas ou difíceis devam ou possam ser alteradas,
pois, a ser assim, deixariam de existir” (p. 86).
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TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br
Muitas vezes, ao vermos uma pessoa com deficiência em
nossas comunidades cristãs, já vamos “profetizando” que Deus
pode fazer uma grande obra na vida dela, como se a exigência da
cura ou milagre em relação a determinadas deficiências ou
doenças, no fundo, pudesse esconder uma discriminação e a nossa
dificuldade em aceitar o outro como ele é. Mas esquecemos que
cada um é exatamente como Deus criou. Que, como cristãos,
temos que receber, acolher e integrar nossos irmãos como eles
são. Não podemos esquecer que qualquer pessoa, tendo uma
doença, uma deficiência, ou seja, o problema que for, é uma pessoa
possuidora de uma alma a alcançar a Salvação em Cristo Jesus!
O primeiro passo para termos uma Teologia da Inclusão
será rever nossos próprios conceitos. Rever a visão que temos das
pessoas com deficiência, abandonando conceitos de coitadinhos,
vítimas, a deficiência como consequência de castigos ou pecados.
Abandonar a posição que nós cristãos sempre tivemos de
assistencialistas ou piedade para com essas pessoas, apoiados em
nossas caridades, trazendo-as para serem parte de nossas
comunidades cristãs em total igualdade. Sobretudo, temos que
cada vez mais identificar e eliminar do nosso meio os estigmas
religiosos!
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IV – O “CAMINHAR” DA PESSOA COM
DEFICIÊNCIA DENTRO DO CATOLICISMO
uando planejamos realizar um estudo sobre as pessoas com
deficiência ao longo do Cristianismo, entendemos que, para
um trabalho histórico perto do completo, precisaríamos
focar em todas as igrejas que mantêm a fé cristã, ou seja, o
protestantismo e o catolicismo, que abordaremos neste capítulo.
A história da Igreja católica remonta ao início do
Cristianismo, cerca de dois mil anos atrás. Depois da morte de
Jesus, o Cristianismo se disseminou pelo Oriente Médio e pela
Europa. Naquela época, o império romano dominava aquelas
regiões. Inicialmente os romanos tinham a sua própria religião e
com frequência perseguiam os cristãos, que usavam as
catacumbas como ponto de encontro para seus rituais.
Com sua expansão, no século IV o Cristianismo já tinha
conquistado tantos adeptos que passou a ser a principal religião
romana. A parte ocidental do império romano se desintegrou no
século V, mas o Cristianismo permaneceu forte ali. Os bispos
(dirigentes da Igreja) de Roma adquiriram poder cada vez maior e
se tornaram conhecidos como papas. Contudo, os bispos da parte
oriental do império (chamada império bizantino) discordaram
desses papas. As metades oriental e ocidental da Igreja cristã
acabaram por se separar em 1054. A metade oriental tornou-se a
Q
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Igreja ortodoxa e a metade ocidental tornou-se a Igreja católica
apostólica romana.
Comandada por Roma, a Igreja católica foi a mais poderosa
organização da Europa ocidental durante séculos. No século XVI,
no entanto, diversas pessoas começaram a se afastar dela para
formar novas Igrejas cristãs. Esse movimento, chamado Reforma,
gerou o protestantismo. Os países do norte da Europa tornaram-
se predominantemente protestantes, mas o sul do continente
continuou católico na maior parte. Para evitar que o
protestantismo se espalhasse, surgiu o movimento da
Contrarreforma, ou Reforma católica.
Enquanto isso, os colonizadores europeus, principalmente
espanhóis e portugueses, levaram o catolicismo para a América.
Os missionários (pessoas que trabalham para disseminar sua
religião) também ajudaram a espalhar o catolicismo pelo mundo.
O catolicismo é o ramo mais antigo e maior do
Cristianismo. Existem mais de um bilhão de católicos no mundo
inteiro. A Igreja católica apostólica romana é representada pelo
papa, que a dirige a partir do Vaticano, um país que fica dentro da
cidade de Roma, na Itália. Essa Igreja tem uma grande estrutura
espalhada pelo mundo, organizada com cardeais, patriarcas,
arcebispos, bispos, presbíteros ou padres e diáconos, que formam
o clero. Os praticantes da religião são chamados fiéis.
Como todos os cristãos, os católicos baseiam suas crenças
na Bíblia, um livro sagrado que engloba a Torá dos judeus e
começa com a história da criação do mundo por Deus. A Bíblia
cristã tem uma segunda parte, chamada Novo Testamento, escrita
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por cristãos. Os católicos acreditam que Jesus é o Filho de Deus e
também atribuem grande importância à virgem Maria, mãe de
Jesus. Ao contrário dos protestantes, os católicos rezam para
Maria e também para vários santos — homens e mulheres que
eles consideram ter proximidade especial com Deus.
A historiografia de Otto Marques da Silva
Quem quer ingressar ou já atua com pessoas com
deficiência (ou é uma delas!), tem de, obrigatoriamente, ler A
Epopeia Ignorada – A pessoa deficiente na história do mundo de
ontem e de hoje, de autoria de Otto Marques da Silva. Impressa em
1986, publicada pelo Centro São Camilo de Desenvolvimento em
Administração de Saúde – CEDAS, é uma leitura obrigatória, mas,
infelizmente, o livro não teve novas edições.
O interessado precisará procurá-lo em bibliotecas ou com
amigos que disponham da obra. Com 470 páginas, cinco anexos,
dezessete ilustrações, o livro está dividido em duas partes. A
primeira foca a visão, conceitos das deficiências e das pessoas com
deficiência ao longo da Pré-História, História Antiga (egípcios,
hebreus, gregos e romanos), advento do Cristianismo, Império
Bizantino, Idade Média, História Moderna e História
Contemporânea, chegando a 1981 – Ano Internacional das
Pessoas Deficientes. Na segunda parte, Silva escreve sobre as
causas de marginalizações das pessoas com deficiência, o
significado da integração social (política em voga na época!), a
questão da adequação pessoal como objetivo último da
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reabilitação, o preparo para a vida de trabalho, as equipes de
reabilitação, a avaliação e o controle das atividades dos centros e
programas de reabilitação. E tudo isso ele escreve com muita
propriedade, pois, há mais de cinco décadas, Otto é especialista
em inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho.
Já foi diretor e/ou membro de várias instituições e entidades
nacionais e internacionais.
Dessa obra queremos destacar o terceiro capítulo, “O
Cristianismo, o Império Bizantino e a Idade Média em face das
pessoas deficientes”. Em 80 páginas, Silva traz informações
detalhadas das relações entre a Igreja católica e as pessoas com
deficiência. Logo na introdução, ele observa: “Houve, com a
implantação e solidificação do Cristianismo, um novo e mais justo
posicionamento quanto ao ser humano em geral, ressaltando a
importância devida a cada criatura como um ser individual e criado
por Deus, com um destino imortal – o que, sem dúvida, muito
beneficiou os escravos e todos os grupos de pessoas sempre
colocadas de lado e menosprezadas na sociedade romana, tais como
os portadores de deficiências físicas e mentais, antes considerados
como meros pecadores ou pagadores de malefícios feitos em vidas
passadas, inúteis, possuídos por maus espíritos, ou simplesmente
como seres que, em muitos casos, deveriam continuar sendo
eliminados ao nascer, segundo as leis e costumes de Roma
recomendavam havia séculos. No entanto, a História nos conta que
as conquistas do Cristianismo não aconteceram nem com facilidade
nem com tranquilidade. Problemas graves e muito sérios surgiram
desde os primeiros anos e mantiveram-se por três séculos” (p. 154).
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As pessoas com deficiência recebiam dois tipos de
tratamento quando se observa a História Antiga e a Medieval: a
rejeição e eliminação sumária, de um lado, e a proteção
assistencialista e piedosa, de outro. Já no período da Idade Média,
entre os séculos V e XV, encontramos algumas informações e
registros sobre pessoas com deficiência. No Império Bizantino,
uma das mais surpreendentes características da vida em
Constantinopla foi a aplicação prática que sua população deu à
caridade cristã, insistente e aguerridamente defendida pela Igreja
católica. Hussey, em sua obra Cambridge Medieval History,
descreve sobre os miseráveis no “Reino de Deus”: “Os benefícios
espirituais da prestação da caridade naturalmente dependiam da
existência de uma classe à qual essa caridade poderia ser dedicada.
Os ‘’pobres’, portanto, eram uma parte integrante da sociedade. Ao
pedirem esmolas os mendigos gritavam: ‘O paraíso bate à sua porta’
... e esmolas eram dadas com liberalidade. Mendigar era uma
profissão reconhecida, da qual, como de outras profissões, os
intrusos eram expulsos. Os pontos mais valiosos eram preservados
ciumentamente. Cada átrio de igreja era cercado por mendigos,
cuja inoportunidade garantiria um suprimento liberal para seu pão
de cada dia. Mas a caridade organizada transcendia de longe os
limites da ajuda meramente casual. A cidade era com justiça famosa
pelos seus hospitais, seus orfanatos e seus abrigos para idosos e
para carentes”.
A coisa era tão bem organizada nessas instituições que a
família imperial e a nobreza mais refinada tomavam parte ativa.
As mulheres dedicavam-se ativamente à ajuda aos doentes,
inclusive algumas delas chegaram mesmo a adquirir o hábito de
visitar as prisões, que eram os ambientes mais degradantes da
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miséria humana na esplendorosa capital. Como auxiliadora cabia à
Igreja católica a principal responsabilidade por essas
organizações várias que, segundo Silva (1986), “ressalte-se que
somas fabulosas, levantadas em banquetes ou por meio de doações e
legados, eram continuamente destinadas aos cofres da Igreja para
distribuição aos pobres e, segundo os historiadores, essa
distribuição era sempre feita com justiça, conhecimento de causa e
pontualidade dignos de nota” (p. 172).
As relações históricas da Igreja católica com os pobres, os
doentes e as pessoas com as mais variadas deficiências foram
objeto de uma norma em pleno século VI, norma essa que
pretendia assisti-los e ao mesmo tempo circunscrever seus
movimentos a um determinado território. Um documento escrito
por P. Guérin, Les Conciles Généraux et Particuliers (Savaète, Paris,
1868), destaca que foi o concílio de Tours, realizado nos anos 566
e 567, que decretou pelo seu cânone quinto o seguinte: “Cada
cidade alimentará os seus pobres. Os sacerdotes da zona rural e os
habitantes também alimentarão seus pobres, a fim de impedir os
mendigos vagabundos de correr as cidades e as províncias”.
Posteriormente no concílio de Lyon, no ano de 583, aprovou-se,
em seu último cânone, a seguinte medida relacionada aos
hansenianos: “Os leprosos de cada cidade e de seu território serão
alimentados e abrigados às expensas da Igreja, aos cuidados do
bispo, a fim de lhes impedir a liberdade para serem vagabundos em
outras cidades”.
As relações entre pecado, doenças, deficiências como
consequência de punição vinda da parte de Deus continuaram a
existir após o Antigo Testamento. Alguns registros entre os anos
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500 até o século XVI, durante toda a Idade Média, o mundo
europeu perdeu muito dos cuidados básicos com a saúde e com a
higiene na imensa maioria das cidades, um pouco em decorrência
do seu contínuo crescimento. A explosão demográfica fez
surgirem aglomerados urbanos, sem qualquer infraestrutura ou
recurso voltado para a saúde de sua população. Por séculos, os
habitantes das cidades medievais viveram sob o permanente
receio das epidemias ou das doenças mais sérias.
A falta de conhecimentos científicos, medicinais,
sanitários, planejamento urbano, dentre outros motivos, abriu
caminhos para as epidemias, as doenças mais graves, as
incapacidades físicas, os sérios problemas mentais e as
malformações congênitas serem considerados como verdadeiros
sinais da ira celeste e taxados como “castigos de Deus”. Eram
diversas epidemias de gravíssimas consequências, grandes
incidências de males não controlados pelos médicos com quase
nenhum recurso. Hanseníase, peste bubônica, difteria, influenza e
outros males devastaram diversas vezes a Europa durante os
vários séculos da Idade Média e deixaram um significativo saldo
de pessoas que sobreviveram. Muitas delas conseguiram
sobreviver, mas com sérias sequelas, para verem o resto de seus
dias passarem em situações de extrema privação e quase absoluta
marginalidade.
Fazendo suas observações sobre os hospitais em face das
pessoas com deficiência nos séculos XIV e XV, Silva (1986)
considera que, apesar dos tropeços sem fim e da heterogeneidade
das situações encontradas nos diversos países europeus que se
formavam com o gradativo esfacelamento do sistema feudal, o
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atendimento médico de um modo geral progredia – o que
seguramente muito significou para pessoas que sofriam as
consequências de males limitantes. Os hospitais da Idade Média
existiam mais para o cuidado do que para a cura das pessoas.
Menos para alívio do corpo e de suas dores do que para
assistência da alma e sua preparação, considerada indispensável
pelas religiosas que dentro deles trabalhavam, para a vida futura.
Silva (1986) conclui que, “na verdade, não havia na quase
totalidade dos hospitais medievais qualquer conhecimento científico
ou preparo técnico, mas outros ingredientes, tais como o amor ao
próximo e a fé na outra vida, na vida após a morte. Parece, todavia,
que médicos treinados em universidades, principalmente as
inglesas, eram muito mais comuns de se encontrar nos hospitais da
época do que se poderia supor. Dessa forma podemos também
imaginar que, apesar dos relatos transmitidos pelos historiadores
menos avisados, todos os pacientes internados em hospitais
europeus de certa qualidade, seja por doença, seja por pobreza
atroz, seja por deficiências muito graves, recebiam mais cuidado
profissional do que o imaginado. De outra parte pode-se também
afirmar que ao final da Idade Média as sociedades existentes na
Europa deram seus primeiros passos no sentido do reconhecimento
de sua responsabilidade em face dos pobres em geral. Inseridos no
contexto estavam todos aqueles que eram, além de pobres,
deficientes e impossibilitados de se sustentar” (SILVA, 1986, p,
221).
Ao final da Idade Média, século XV, os problemas
específicos das pessoas com deficiência ainda não eram nem
entendidos nem atendidos com propriedade, uma vez que elas
faziam parte de um grupo bem maior e de uma problemática mais
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séria ainda, ou seja, aquela representada pelos pobres, pelos
enfermos, pelos mendigos. Para o historiador Otto Marques da
Silva, “na penosa história do homem com deficiência começava a
findar uma longa e muito obscura etapa. Iniciava a humanidade
mais esclarecida, os tempos conhecidos como ‘Renascimento’ –
época dos primeiros direitos dos homens postos à margem da
sociedade, dos passos decisivos da medicina na área de cirurgia
ortopédica e outras, do estabelecimento de uma filosofia humanista
e mais voltada para o homem, e também da sedimentação de
atendimento mais científico ao ser humano em geral. A Igreja
católica dos primeiros cinco séculos sempre procurou demonstrar
pelos mais diversos meios que essas restrições ao sacerdócio davam-
se para benefício maior da Igreja e não por considerar as pessoas
deficientes como indignas ou manchadas pelo pecado. Ressalte-se
também que quando as deficiências ou males incapacitantes
ocorriam "após a ordenação sacerdotal", a Igreja usava do máximo
de benevolência e em geral não impedia o sacerdote de suas funções
básicas” (SILVA, 1986, pg. 167).
As deficiências físicas como impedimento ao sacerdócio
cristão
Existem os documentos intitulados “Cânones Apostólicos”,
um conjunto de decretos eclesiásticos antigos relativos ao
governo e à disciplina da Igreja Cristã Primitiva, encontrados pela
primeira vez como último capítulo do oitavo livro das
Constituições Apostólicas e pertencentes ao gênero das Ordens da
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Igreja Católica. Elaborados no correr dos três primeiros séculos da
Era Cristã, existem restrições claras ao sacerdócio para aqueles
candidatos que tinham certas mutilações. Para a Igreja surgiam
problemas sérios, durante esses três ou quatro primeiros séculos,
principalmente com mutilações de ordem sexual. Na verdade,
mutilações sexuais eram muito comuns, seja como pretexto para
“fuga do pecado”, seja por castigos impostos pelos tiranos
daqueles distantes séculos. Recorrendo novamente ao documento
Les Conciles Généraux et Particuliers (Savaète, Paris, 1868), seu
autor, P. Guérin, diz que, tentando disciplinar a questão e
esclarecer os bispos quanto à seriedade do problema, o cânone
21º ao 24º indica: “Que não se coloque dificuldade em sagrar como
bispo, se o candidato for considerado capaz, aquele que for eunuco
por natureza, ou que se tornou eunuco por malícia dos homens ou
por crueldade dos tiranos”.
Segundo Silva (1986), logo a seguir o cânone 22º declara
como “irregulares” os casos de sacerdotes que se automutilavam,
porque “eles são homicidas de si mesmos”. Para casos de
sacerdotes que tomavam essas medidas, o cânone 23º castiga com
sua deposição, seu afastamento das funções sacerdotais.
Finalmente o cânone 24º “priva da comunhão pelo período de três
anos o leigo que fez a automutilação sexual” (p. 166).
Outro historiador católico destacado na obra de Otto
Marques da Silva é o padre Louis Thomassin (1619 a 1695), que
em sua obra Ancienne et Nouvelle Discipline de l'Église analisa em
muitos pormenores diversas situações relacionadas aos bloqueios
que as deficiências físicas ou sensoriais significavam para um
homem ser aceito como sacerdote da Igreja católica desde o início
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de sua criação até o final do século V. Segundo Thomassin, um dos
primeiros papas a se manifestar abertamente a esse respeito foi
Hilário, que reinou entre 461 e 468. De acordo com as próprias
palavras do papa, na Igreja católica não deveria haver dois tipos
de sacerdotes: nem o analfabeto nem o que não tivesse alguma
parte de seus membros.
No século V houve posicionamentos de dois concílios,
confirmando inclusive a posição do papa Hilário, citada no
documento de Guérin: o concílio realizado em Angers, em 453,
estabeleceu em seu cânone terceiro uma forte medida contra
sacerdotes que adotavam procedimentos cruéis, muito
generalizados no seio da população, acostumada com barbáries
sem conta: “São proibidas as violências e as mutilações de
membros”. O concílio realizado em Roma no ano 465, reunido sob
a autoridade do papa Hilário, aprovou por aclamação cinco
cânones. Um deles, o de número três, diz com clareza: “Deve-se
também excluir das ordens aqueles que não sabem ler, ou que
deceparam algum membro”.
Voltando à obra de Thomassin, veremos que Gelásio I,
papa que reinou de 492 a 496, reafirmou a mesma orientação de
Hilário e do Concílio de Roma contra a aceitação de sacerdotes
com deficiências, afirmando em uma carta ao bispo de Lucânia
que candidatos ao sacerdócio não poderiam ser nem analfabetos
nem “ter alguma parte do corpo incompleta”. Esse mesmo papa
afirmava ainda, muito convicto dessas justificativas para essa
atitude de bloqueio a pessoas com defeitos ou problemas físicos,
que “se trata de uma antiga tradição e um costume observado
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desde muito tempo em Roma; mais do que isso, que se trata de um
desses louváveis costumes que a Igreja emprestou da Sinagoga”.
Em suas observações, Silva (1986) diz que “existem
histórias até de automutilação, destinada a caracterizar uma
irregularidade, como no caso de Amônio, um santo eremita que, ao
se perceber praticamente ‘ameaçado’ pelo povo de ser elevado à
dignidade do bispado, tomou uma providência extrema: cortou uma
de suas orelhas. Todavia, as pessoas que o haviam procurado na
tentativa de fazê-lo bispo ficaram sabendo posteriormente que
aquela mutilação seria apenas válida dentro da religião judaica e
não para os cristãos. Assim sendo, voltaram a insistir com o mesmo
propósito. Tiveram, todavia, uma surpreendente decepção, pois o
eremita, muito resoluto em sua posição de humildade, de faca em
punho ameaçou cortar a própria língua na frente deles,
conseguindo dessa forma dissuadi-los. Caso tivesse efetivado sua
ameaça, Amônio estaria incapacitado inclusive para ser sacerdote”
(pp. 167-168).
Avançando na história, veremos que os bloqueios
interpostos pela Igreja católica para pessoas com deficiência se
tornarem sacerdotes continuavam inabaláveis durante o século
XVIII. Exemplos práticos nos são relatados por M. André, doutor
em direito canônico e membro de diversas sociedades de sábios
do final do século XIX, em adição à obra de Thomassin (Ancienne &
Nouvelle Discipline de l'Église) que fora escrita ao final do século
XVII. Silva (1986, p. 259) destaca alguns dos mais significativos,
citados ao final do capítulo sobre as irregularidades relacionadas
aos defeitos de nascimento, mostrando a posição quase inalterada
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da Igreja católica na aceitação de pessoas com deficiência para o
exercício do sacerdócio até o século XVIII:
no dia 20 de janeiro de 1789 a Sagrada Congregação
recusou concordar com a ascensão às santas ordens de um
clérigo “manco” da diocese de Albenga, na Ligúria;
o padre François Pujol, da diocese de Vincennes, na
França, tendo sofrido um acidente vascular cerebral,
perdeu o uso do braço e da mão esquerdos; solicitou ao
bispo a dispensa da irregularidade para exercício das
funções sacerdotais e para celebrar a missa numa capela
privada. Embora seu bispo tenha apoiado sua consulta, a
Sagrada Congregação recusou o pedido no dia 19 de
agosto de 1797;
o seminarista Ambroise Lamberti, da diocese de Albenga,
tinha um problema de movimentação da perna esquerda,
de tal forma que precisava andar com o apoio contínuo de
uma bengala. O bispo da Diocese foi consultado a respeito
e opinou que haveria graves inconvenientes em promovê-
lo às sagradas ordens, no que foi apoiado pela Sagrada
Congregação no dia 20 de janeiro de 1798;
o sacerdote Philippe Maggiorani, da diocese de Borgo San-
Sepolcro, na Toscana, teve sua mão esquerda de tal forma
mutilada pela acidental explosão de espingarda
excessivamente carregada, durante uma caçada, que foi
necessário amputar parte do braço para evitar sua morte.
Solicitou dispensa da irregularidade para prosseguimento
de seus trabalhos como sacerdote e esta lhe foi negada em
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18 de junho de 1785. No ano de 1787 apresentou uma
nova e humilde solicitação, acompanhada do parecer
favorável de seu bispo e do total apoio de seus
paroquianos. No entanto, a Sagrada Congregação, depois
de haver submetido o assunto à consideração pessoal do
papa, manteve a recusa à dispensa de irregularidade por
um decreto de 7 de julho de 1787.
Essa é uma questão permanentemente discutida por
autoridades eclesiásticas, tendo já merecido o posicionamento de
papas e concílios e um lugar permanente no Código de Direito
Canônico; o problema das deficiências físicas e sensoriais nos
sacerdotes ou nos bispos ao longo da história da Igreja católica
chega ao século XX, quando esse Código continuou impedindo
candidatos ao sacerdócio católico que apresentassem defeitos. Nos
chamados “defeitos corporais”, segundo a disciplina da Igreja
católica, a irregularidade não é um castigo, mas um dos meios
encontrados através dos séculos para preservar a dignidade do
estado sacerdotal e para a exclusão daqueles que não têm
capacidade para essas funções. Ou seja, como irregulares, são
“corporalmente defeituosos que por fraqueza não podem exercer as
funções do altar com segurança ou que por deformidade não o
puderem fazer com dignidade. Quem se torna defeituoso depois de
legitimamente ordenado, só pode ser impedido no exercício de suas
funções se o defeito for notável. Não se proíbem, porém, atos que,
apesar dos defeitos, puderem ser exercidos convenientemente”,
explica Jone-Fox no texto Compêndio de Moral Católica.
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TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br
Se a deficiência ocorresse após a ordenação, as normas
eram bastante condescendentes: quem estivesse quase cego,
poderia obter do papa dispensa para celebrar a chamada missa
“de beata”, ou a missa cotidiana dos defuntos; se um sacerdote
ficasse completamente cego, só poderia rezar a missa com a
assistência de outro sacerdote. O sacerdote que não conseguisse
ficar em pé junto ao altar, ou que pudesse assim permanecer
apenas com o uso de muletas ou apoio especial, só poderia
celebrar missa privadamente e nunca em público. Isso também
era verdadeiro para o sacerdote que sofresse de hanseníase ou
doença grave. Nos casos de epilepsia e de psicopatias ocorria
também a irregularidade, dependendo do bispo local ou das
autoridades eclesiásticas constituídas a permissão do exercício de
suas funções sacerdotais, depois de curados ou de terem o mal sob
controle.
Conforme observa Silva (1986), “é evidente que existe
nesses regulamentos da Igreja católica grande preocupação pela
aparência física de seus ministros, mas, muito mais do que isso, o
firme propósito de não levar os fiéis a se distrair ou a desconsiderar
seus serviços, sua palavra e os atos litúrgicos. Em diversas
cerimônias litúrgicas da Igreja católica é fundamental ao sacerdote
poder ajoelhar-se e levantar-se diversas vezes, em atos de adoração;
é básico também que tenha a mão direita para distribuir a
comunhão ou para dar a bênção” (p. 307).
Sacerdotes que quebraram a regra
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Mesmo com restrições não permitindo a pessoas com
deficiência exercer o sacerdócio, sempre houve casos que
quebraram as regras, até mesmo em outras denominações cristãs.
É o caso de Dídimo, o Cego (ca. 313 d.C.-ca. 398 d.C.), um
teólogo da Igreja Copta de Alexandria, cuja famosa escola
catequética dirigiu por meio século. Diversas Igrejas ortodoxas se
referem a ele como “São Dídimo, o Cego”. Mesmo perdendo a visão
aos quatro ou cinco anos de idade, quando iniciava seus estudos,
graças a sua grande vontade de aprender, gravou o alfabeto em
madeira e depois aprendeu pelo tato as letras, as sílabas, as
palavras e depois frases inteiras. Ouvia professores célebres,
quando já era moço. Pessoas se prontificavam a ler para ele, a fim
de tomar conhecimento dos melhores livros. Quando seus leitores,
cansados, adormeciam, ele meditava muito sobre o que acabara
de ouvir e assim gravava o assunto em sua memória, acumulando
conhecimentos em regras de linguagem e da gramática, belos
trechos dos poetas e dos oradores, bem como noções de retórica.
Tornou-se um ótimo conhecedor de assuntos humanos, das
Sagradas Escrituras, do Antigo e do Novo Testamento. Dídimo
começou a explicar a Bíblia, trecho por trecho, das mais variadas
maneiras. Dominava a dogmática da Igreja católica, discutindo-a
com precisão e muita propriedade. Conhecia a filosofia de Platão e
de Aristóteles, a geometria, a música, a astronomia e as diferentes
opiniões dos filósofos.
Quando chegou à Alexandria, atraiu muito a atenção e
recebia várias visitas de pessoas que queriam ouvi-lo. Ao
ingressar no serviço para a Igreja, foi colocado como líder da
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Escola Catequética de Alexandria, onde vivia e trabalhou do ano
345 até 395.
Dídimo pregava a salvação universal, escrevendo que, “na
liberação de todos, ninguém permanece cativo” e acreditando que
o castigo divino tem natureza corretiva e educativa. Jerônimo, que
se referia a Dídimo não como “cego”, mas como “vidente”,
escreveu que ele “ultrapassava todos de seu tempo em
conhecimento das escrituras”; Sócrates Escolástico depois o
chamou de “o grande bastião da verdadeira fé”. Dídimo era visto
como um professor cristão ortodoxo, sendo muito admirado e
respeitado até o fatídico ano de 553 d.C., pelo menos.
Certa vez, Dídimo recebeu a visita de Santo Antão – santo
cristão do Egito, líder de destaque entre os padres do deserto,
cultuado em muitas igrejas –, que lhe perguntou se a cegueira o
incomodava. Dídimo teve vergonha de responder e de confessar
sua fraqueza. Mas Santo Antão repetiu a pergunta uma segunda
vez, e à falta da resposta perguntou uma terceira. Dídimo
confessou que sim, a cegueira o afligia, o bloqueava. Santo Antão
lhe disse naquela oportunidade: “Admiro-me muito que um homem
sábio como você se aflija de haver perdido aquilo que as formigas e
as moscas possuem, em vez de se alegrar de ter o que os santos e os
apóstolos tinham. É mais importante preocupar-se com a alma do
que com esses olhos dos quais um só olhar poderá perder o homem
eternamente”.
De acordo com Paládio, bispo e historiador do século V
d.C., Dídimo continuou leigo toda sua vida e se tornou um dos
mais cultos ascetas de seu tempo.
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Dentro da Igreja católica também houve um bonito
registro, referente ao padre Lejeune, considerado o maior
pregador do século XVII. Nascido em Poligny (França), Lejeune
perdeu a visão aos 43 anos de idade, quando pregava durante a
quaresma na cidade de Rouen. A cegueira não diminuiu sua
competência de grande orador nem sua alegria sempre muito
natural.
Há muito poucos dados biográficos sobre esse padre. Mas
sabemos que ele morreu aos 80 anos de idade, muito ativo e vivaz.
A solidez de suas ideias e o seu estilo levaram o prelado e ao
mesmo tempo grande pregador das cortes de Luís XIV e Luís XV,
Massillon, a recomendar a muitos seminaristas e jovens
sacerdotes o estudo de seus maravilhosos sermões publicados em
dez volumes sob o título de Le Missionaire de l'Oratoire, entre
1662 e 1676.
Nicolau, as pessoas com deficiências intelectuais e a
Inquisição
São raras as fontes documentais sobre pessoas com
deficiencias físicas ou intelectuais em épocas anteriores à Idade
Média. Sabemos que elas eram consideradas subumanas, o que
legitimava sua eliminação ou abandono, prática perfeitamente
coerente com os ideais atléticos e clássicos, além de classistas, que
serviam de base à organização sociocultural de Esparta e Grécia.
Com o Cristianismo, quando Jesus Cristo pregou o amor e a
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necessidade de se cuidar dos excluídos, na Europa, as pessoas com
deficiência, inclusive as deficiências intelectuais, ganharam status
de pessoa, no plano civil, e alma, no plano teológico, após a difusão
europeia da ética cristã.
Exemplo da influência dos ideais cristãos de vida sobre a
sorte das pessoas com deficiência foi a de Nicolau, bispo de Myra,
nascido na segunda metade do século III e falecido no dia 6 de
dezembro de 342. Tido como acolhedor dos pobres e
principalmente das crianças carentes, preocupava-se com a
educação e a moral tanto das crianças como de suas mães.
Conhecido por inspirar a figura do “Papai Noel” e considerado
como o primeiro santo da igreja, já no século IV da era cristã se
notabilizou por acolher e alimentar crianças com deficiência
abandonadas.
Com a iniciativa de Sao Nicolau e com o advento do
Cristianismo, pessoas com deficiência “ganham almas” que,
segundo Pessotti (1984), “graças à doutrina cristã os deficientes
começam a escapar do abandono ou da ‘exposição’, uma vez que,
donos de uma alma, tornam-se pessoas e filhos de Deus, como os
demais seres humanos. É assim que passam a ser, ao longo da Idade
Média, les enfants du bon Dieu, numa expressão que tanto implica
a tolerância e a aceitação caritativa quanto encobre a omissão e o
desencanto de quem delega à divindade a responsabilidade de
prover e manter suas criaturas deficitárias” (p. 8).
Essa igualdade de status moral ou teológico não
corresponderá, até a época do iluminismo, a uma igualdade civil,
de direitos. Dotado de alma e beneficiado pela redenção de Cristo,
o deficiente mental passa a ser acolhido caritativamente em
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conventos ou igrejas, onde ganha a sobrevivência, possivelmente
em troca de pequenos serviços à instituição ou à pessoa
“benemérita” que o abriga.
Isso porque as pessoas com deficiência e os pobres
passaram ao longo dos séculos por assistência suscitando atitudes
que vão desde a piedade até o desprezo. Mas, segundo Walber e
Silva (2004), muitas vezes, pela própria condição de pobreza, ou
pelas condições físicas de deficiência e doença, recebiam
comiseração, já que eram “alvo” da boa ação de outras pessoas,
“nos modos específicos da ‘gestão da pobreza’, na economia da
salvação: mesmo desprezado, o pobre pode, aceitando sua condição
de pobreza, auxiliar os ricos para que esses pratiquem a caridade –
a ‘suprema virtude cristã’ – e obtenham assim a salvação. Dessa
forma, os pobres também obteriam a sua própria salvação. A
pobreza torna-se, portanto, um valor de troca na economia da
salvação, assim como a doença e o sofrimento, prova inconteste da
pobreza não só econômica, mas física. Doença e deficiência tornam-
se também um valor de troca nessa economia de salvação e na
possibilidade de obter auxílio da comunidade. Observa-se assim que
pessoas doentes e com deficiência devem permanecer na condição
de pessoas de segunda classe para continuar recebendo auxílio. Por
outro lado, a prática assistencialista que valoriza esse tipo de
relação mantém e fixa as pessoas na posição de subalternas”.
Só que surgem as variações da noção teológica de cristão
implicando uma doutrina do pecado e da expiação,
correspondendo a condutas clericais diversas, diante das pessoas
com deficiências intelectuais, segundo a teologia da culpa que
cada corrente do Cristianismo, ortodoxa ou herética, adotará. Se,
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de um lado, como enfant du bon Dieu essas pessoas ganham
abrigo, alimentação e conforto em conventos ou asilos, de outro,
como cristão, é passível de alguma exigência ética ou de alguma
responsabilidade moral e a ter exigências éticas e religiosas. Ou
seja, era como se, enquanto o teto protege o cristão, as paredes
escondessem e isolassem o incômodo ou inútil. Surge o capítulo
sombrio da Inquisição.
Em nossas revisões históricas não temos como não
abordar o assunto da Inquisição, referente às várias instituições
dedicadas à supressão da heresia no seio da Igreja católica. A
Inquisição medieval, da qual derivam todas as demais, foi fundada
durante os séculos XII e XIII para preservar a disciplina
eclesiástica internamente. Visava inicialmente combater o
sincretismo entre alguns grupos religiosos, que praticavam a
adoração de plantas e animais e utilizavam mantras. No século XIX
os tribunais da Inquisição foram suprimidos pelos Estados
europeus, mas foram mantidos pelo Estado pontifício. Em 1908,
sob o papa Pio X, a instituição foi renomeada “Sacra Congregação
do Santo Ofício”. Em 1965, durante o pontificado de Paulo VI e em
clima de grandes transformações na Igreja após o papado de João
XXIII, por ocasião do Concílio Vaticano II, assumiu seu nome atual
– “Congregação para a doutrina da Fé”.
No século XV, a Inquisição mandou para a fogueira os
hereges, que eram considerados loucos, feiticeiras, adivinhos,
criaturas bizarras ou de hábitos estranhos ou pessoas com algum
tipo de deficiência, principalmente intelectuais, por serem vistas
como possuídas por espíritos malignos ou loucas. Em cartas
papais daquele período podem ser encontradas orientações de
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como identificar e tratar tais pessoas: “A estes, se recomendava
uma ardilosa inquisição, para obtenção de confissão de ‘heresia’,
torturas, açoites, outras punições severas, até a fogueira”.
Até o século XVI, crianças com deficiência intelectual grave
eram consideradas como possuídas por seres demoníacos. Mesmo
renomados intelectuais, até fora da Igreja católica, acreditavam
que era o demônio que estava ali presente. Importantes figuras da
Reforma protestante também a perfilharam, como Lutero,
Melanchthon e, notoriamente, Calvino, que comandou
pessoalmente a caça às bruxas em Genebra, no ano de 1545, da
qual resultou a execução de 31 pessoas, o que é um total até
reduzido à vista dos milhões ou do meio milhão de pessoas
queimadas, na Europa, entre os séculos XIV e XVII, por acusação
de intercâmbio com demônios ou forças do mal.
A rigidez luterana, que encontra em Calvino seu “cruzado”,
não permite que se trate sem castigo quem é objeto eletivo da
cólera justiceira e justa de Deus ou, pior ainda, presa de Satanás.
Não é difícil inferir o tratamento dado a idiotas, imbecis e loucos
durante a Reforma. A rigidez ética carregada da noção de culpa e
responsabilidade pessoal conduziu a uma marcada intolerância
cuja explicação última reside na visão pessimista do homem,
entendido como uma besta demoníaca quando lhe venham a faltar
a razão ou a ajuda divina. É o que Pintner (1933) chamou de
“época dos açoites e das algemas” na história da deficiência
mental. O homem é o próprio mal quando lhe faleça a razão ou lhe
falte a graça celeste a iluminar-lhe o intelecto; assim, dementes e
amentes são, em essência, seres diabólicos.
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Martinho Lutero, um monge agostiniano germânico e
professor de teologia que se tornou uma das figuras centrais da
Reforma Protestante, em um de seus escritos, negou a própria
natureza humana de uma criança com retardo mental de alguma
seriedade: “Há oito anos vivia em Dessau um ser que eu, Martinho
Lutero, vi e contra o qual lutei. Há doze anos, possuía vista e todos
os outros sentidos, de forma que se podia tomar por uma criança
normal. Mas ele não fazia outra coisa senão comer, tanto como
quatro camponeses na ceifa. Comia e defecava, babava-se, e quando
se lhe tocava, gritava. Quando as coisas não corriam como queria,
chorava. Então, eu disse ao príncipe de Anhalt: se eu fosse o
príncipe, levaria essa criança ao Moldau que corre perto de Dessau
e a afogaria. Mas o príncipe de Anhalt e o príncipe de Saxe, que se
achava presente, recusaram seguir o meu conselho. Então eu disse:
pois bem, os cristãos farão orações divinas na igreja, a fim de que
Nosso Senhor expulse o demônio. Isso se fez diariamente em Dessau,
e o ser sobrenatural morreu nesse mesmo ano...” (apud PESSOTTI,
1984, p. 11).
Para Martinho Lutero, essa criança de doze anos era
apenas uma massa de carne sem alma, que “o demônio possui esses
retardados e fica onde suas almas deveriam estar”. A confusão
entre ser humano tomado pelo demônio e ao mesmo tempo
“sobrenatural”, que “morre”, por efeito de preces que se
destinavam a salvá-lo pela “expulsão do demônio”, revela a
curiosa natureza do deficiente mental na teologia de Lutero. Em
verdade, trata-se de uma concepção primária e tendenciosa, a
misturar a fúria depuradora à oração caritativa, um purismo
mórbido a uma concepção mitológica e fanática do deficiente
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mental: afogá-lo ou orar por ele são práticas igualmente eficazes e
igualmente morais.
A caracterização do conceito luterano de deficiência
intelectual nos serve mais que tudo, aqui, como o modelo inteiro e
definitivo de visão medieval do problema.
A identidade sobrenatural dos amentes (e também dos
dementes, em alguns aspectos) é a marca da superstição, a
caracterizar toda a “teoria” e prática medieval em relação ao
deficiente mental de qualquer tipo ou nível. Não fogem a essa
marca os promotores da contrarreforma católica, como não lhe
escapava a hierarquia eclesiástica pré-reforma.
A reação contra a crueldade católica e luterana no trato
dos dementes e amentes começou a mudar, mesmo ainda pautada
por superstição, pela obra de duas figuras típicas da cultura do
início do século XVI: os alquimistas Paracelso Philipus Aureolus
(1493-1541) e Jerônimo Cardano (1501-1576).
Paracelso rejeitava as obras ditas diabólicas, embora
acreditasse na magia, na astrologia e na alquimia como recursos
para conhecer desígnios extranaturais ou, de todo modo, sobre-
humanos, e para utilizar propriedades ocultas das substâncias e
dos astros. Mesmo sendo um alquimista, como médico, Paracelso
não podia ignorar que demência e amência podiam também
resultar de traumatismos e doença. Ao escrever a obra Sobre as
doenças que privam os homens da razão, em 1526, ele também foi
vítima da intolerância eclesiástica, na reformulação da visão
medieval da deficiência mental. Essa obra foi publicada em edição
póstuma em 1567, mostrando pela primeira vez uma autoridade
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da medicina, reconhecida por numerosas universidades, em uma
visão ainda supersticiosa, mas não teológica. As pessoas com
deficiência ou doenças mentais deixaram de serem consideradas
perversas, criaturas tomadas pelo diabo e dignas de tortura e
fogueira por sua impiedade ou obscenidade, passando a ser
consideradas doentes ou vítimas de forças sobre-humanas,
cósmicas ou não, e dignas de tratamento e complacência.
Não é muito diversa a contribuição de Jerônimo Cardano,
unindo ao misticismo neoplatônico a magia, a astrologia e a
cabala, professando também sua crença em poderes especiais e
em forças cósmicas que podem ser responsáveis por
comportamentos inadequados. Para ele loucos e deficientes eram
vítimas de tais poderes e, por vezes, até dotados de poderes
mágicos desordenados, o que os tornava merecedores de atenção
médica.
Além dessa postura enriquecida pela preocupação
pedagógica com a instrução das pessoas com deficiências mentais,
graças a Paracelso Cardano a insensatez começa a ceder terreno
ao bom senso.
Os leprosários da Idade Média e o novo destino de pessoas
com deficiências intelectuais
A hanseníase no pós-Bíblia continuou causando muitas
mutilações, outros tipos de deficiências e, consequentemente,
muito estigma, devido à periculosidade que apresentava e ao
pavor de suas consequências. Popularmente conhecida como
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“lepra”, já existia no Egito e na Índia muitos séculos antes da Era
Cristã e foi diagnosticada por gregos e árabes. Levada para toda a
Europa pelos soldados romanos, espalhou-se mais ainda durante
a época das Cruzadas. Desde os tempos mais remotos existiu uma
variedade de males dermatológicos considerados como
contagiosos. Dentre eles destacava-se evidentemente a
hanseníase, mas com ela confundiam-se a psoríase, a escabiose e o
ergotismo.
Na Idade Média, quando um homem era declarado
“leproso” tinha apenas um destino: banimento da sociedade e do
convívio de seus familiares pelo resto da vida. Para tal fim a
sociedade armava-se de certas cautelas, sendo uma delas o
estabelecimento de uma comissão responsável pelo
reconhecimento do mal. Nessa comissão estavam
obrigatoriamente incluídos um médico e um hanseniano. Silva
(1986) observa que em “muitos casos foram vítimas de
diagnósticos mal formulados. Os casos de ergotismo, por exemplo,
apresentavam mutilações seríssimas nos dedos devido à gangrena.
Era um mal causado pelo uso continuado de farinha de centeio com
fungos venenosos e que em sua forma gangrenosa levava a
amputações muito sérias dos dedos. Se o resultado do exame do
doente suspeito de ‘lepra’ fosse positivo, rezava-se uma missa de
Réquiem sobre o doente, o que correspondia a um sepultamento
simbólico. Era então conduzido para fora da cidade e no caminho o
sacerdote, acompanhado de um acólito que tocava uma matraca,
dava orientações básicas ao doente, repassando as proibições que
iriam marcar sua vida futura” (p. 211).
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Para essas pessoas eram impostas tais proibições: entrar
em igrejas, mercados, moinhos, padarias ou qualquer lugar
público; lavar as mãos ou o corpo em qualquer riacho ou fonte
(devia saciar sua sede usando uma caneca de sua propriedade
exclusiva); sair às ruas sem as vestes identificadoras do leproso e
sem calçados; tocar em objetos que desejava comprar (devia
apontar com um bastão); tocar os beirais das pontes ou batentes
de portas (devia ter as mãos cobertas); tocar ou ter relações
sexuais com qualquer pessoa, inclusive sua própria esposa; comer
ou beber na companhia de qualquer pessoa que não fosse leprosa.
Existiam os “lazaretos” ou “leprosários”, onde alguns
conseguiam vaga. Outros passariam o resto de seus dias
“espalhando o terror da doença, mendigando por comida e por
bebida. Muitas vezes identificado por roucos gritos de ‘impuro,
impuro’, o temido ‘leproso’ era também reconhecido por sinetas,
matracas ou pequenas cornetas. A esmola a eles destinada era
colocada às carreiras no meio das vielas ou dos campos. Foram por
séculos marcados e a marca mais forte e evidente ficava nas roupas
que eram obrigados a usar, nas cores cinza ou preta. Deviam usar
chapéus ou capuzes e às vezes faixas vermelhas. Épocas houve na
Europa durante as quais eles eram obrigados a levar ao peito um
tecido vermelho com desenhos característicos” (SILVA, 1986, p.
211).
Só na França dos séculos XII e XIII havia em torno de dois
mil “lazaretos” que se destinavam apenas à segregação e nunca ao
tratamento dos doentes, enquanto na Europa inteira, devido à
extensão do problema, havia aproximadamente 19 mil desses
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abrigos, todos separando duramente seus doentes da sociedade e
deixando que morressem sem qualquer assistência.
Muitos desses locais abrigavam não só os ditos “leprosos”,
mas também outras pessoas indesejadas da sociedade. Entre elas
estavam pessoas com deficiências intelectuais que, mesmo livres
da sanha inquisitorial e da intolerância religiosa, continuavam
sem atendimento educacional. Consideradas inútis para a lavoura
e o artesanato e consumidoras improdutivas da renda familiar,
essas pessoas não tinham outro destino senão o asilo, onde eram
protegidas dos raios e das chuvas, ganhavam alguma alimentação
e deixavam em santa paz a família e a sociedade. Era o caminho
mais cômodo para se livrar do “problema”, mesmo com as
afirmações de homens como Paracelso, Cardano e John Locke
(1632-1704), dizendo que as pessoas com deficiências
intelectuais poderiam ser treinadas ou educadas para várias
atividades.
Após a abolição da Inquisição, a opção intermediária foi a
segregação, não punindo nem abandonando essas crianças e
pessoas, mas também não se sobrecarregava o governo e a família
com sua incômoda presença. Pessotti (1984) observa que “o
apego residual do século XVIII a uma noção fatalista da deficiência
parece uma desesperada tentativa de isentar a família e o poder
público do dever de educar os amentes e criar instituições
adequadas para isso. Já não se pode, justificadamente, delegar à
divindade o cuidado de suas criaturas deficitárias, nem se pode, em
nome da fé e da moral, levá-las à fogueira ou às galés. Não há mais
lugar para a irresponsabilidade social e política diante da
deficiência mental, mas, ao mesmo tempo, não há vantagens, para o
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poder político e para o comodismo da família, em assumir a tarefa
ingrata e dispendiosa de educá-lo” (p. 26).
A Europa na Idade Média enfrentou devastadoras
epidemias de lepra. Inúmeros hospitais ou leprosários, também
chamados hospícios, foram construídos pela nobreza, às vezes
com uma suntuosidade que pareceria irônica. Obras-primas da
arquitetura ou meros casarões, sua função era abrigar e alimentar
o cristão enfermo e, ao mesmo tempo, afastá-lo do convívio social.
Era preciso, mesmo com esse dilema social, respeitar e
socorrer o cristão marginal ou aberrante e, em contrapartida,
livrar-se do inútil, incômodo ou antissocial. Surgiram grandes
hospitais, como o de Bicêtre e a Salpêtrière em Paris, Bethleheni
na Inglaterra, e muitos outros no resto da Europa se abriram para
acolher piedosa e cinicamente, em total promiscuidade,
prostitutas, idiotas, loucos, "libertinos", delinquentes, mutilados e
"possessos" que só na Salpêtríêre perfaziam, em 1778, um total de
oito mil pessoas.
Richard Baxter, um pastor entre o ministério e suas
enfermidades
Richard Baxter nasceu no dia 12 de novembro de 1615, na
casa do avô materno, no vilarejo rural de Rowton, e logo foi
batizado na paróquia Saint Michael. Os primeiros dez anos da sua
vida foram gastos nesse campo inglês, na casa dos avós, pois seu
pai era viciado tanto em bebida quanto em jogos de azar e vivia
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acompanhado de dívidas. Onze anos após o nascimento do jovem
Baxter, seu pai se converteu através da leitura particular da
Palavra de Deus e o chamou para morar com ele. Mais tarde,
Baxter lembrava que as conversas sérias, sobre Deus e a
eternidade, direcionadas a ele pelo pai, foram os primeiros
instrumentos que Deus usou para despertar nele a convicção.
Ao se iniciar no ensino formal, dos quatro instrutores que
tivera em seis anos, dois levavam vidas imorais, outro era
beberrão e todos eram ignorantes. Mesmo assim Baxter tinha uma
mente ágil e, através da leitura e estudo próprio, avançou em sua
educação autodidata. Durante uma longa doença, pela influência
de vários livros, ele se sentiu chamado ao ministério. Pouco
depois, com quinze anos de idade, foi profundamente influenciado
pelas obras de Richard Sibbes, que o fez entender como era
precioso a Jesus Cristo.
Aos 16 anos de idade, ele se transferiu para a escola em
Wroxeter e estudou ali por três anos. Foi então que o pregador
erudito Francis Garbet realmente tomou interesse no seu jovem
aluno e ajudou-o grandemente a avançar em sua educação. Ao sair
de Wroxeter, teve a oportunidade de estudar em Oxford, mas não
o fez, pois o diretor da escola em que estudava o persuadiu a
continuar a educação com um amigo, o capelão Richard
Wickstead. Wickstead o ensinou com muita má vontade por 18
meses. Até o seu último dia, Richard Baxter se arrependia dessa
decisão de deixar Oxford a favor do Wickstead.
Em 1633 se deslocou para Londres com o pretexto de
iniciar estudos, a fim de se tornar um advogado, permanecendo
apenas quatro semanas. Tanto a vida frívola em Londres como o
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enfraquecimento da sua mãe o levaram de volta à cidade em que
morava com os pais, inteiramente certo de que um dia seria
pastor. A doença da mãe continuou por pouco tempo; ela faleceu,
menos de um ano depois da volta de Richard. Os próximos quatro
anos foram dedicados ao estudo particular de teologia.
Aos 23 anos de idade, Richard Baxter foi consagrado. Por
nove meses, trabalhou como diretor da escola em Dudley e depois
se tornou pastor assistente em Bridgenorth, não muito longe da
casa dos avós maternos. Aos 25 anos, teve início seu ministério
mais famoso, que duraria 20 anos, em Kidderminster. Foi ali
também que começou a produzir livros. Certa vez ele comentou:
“Meus escritos são a minha maior obra diária”. Ele trabalhou
arduamente, mesmo com as dores crônicas que o acompanharam
desde os 21 anos.
Duas vezes por semana, ele ensinava o catecismo e ia de
casa em casa visitando os membros da sua igreja, uma hora por
semana. Essas visitas domiciliares deram frutos e foram raros os
membros que não foram comovidos a serem mais fiéis através do
aconselhamento pastoral do Richard Baxter. Ao sair de
Kidderminster, comentou que, dos 600 membros da igreja, tinha
dúvidas acerca da salvação de apenas 12. A sua carreira em
Kidderminster findou-se abruptamente em 1661, quando foi
expulso da Igreja da Inglaterra por não se conformar às regras. Foi
nesse período, depois de sua expulsão, que se casou com Margaret
Charlton, uma jovem de 20 e poucos anos. Com quase 30 anos de
diferença, Richard Baxter descobriu que não havia outra igual a
ela em questão da santidade. Ele relatava todos os casos que
pesavam no seu coração e consciência, e ela o confortava. O
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casamento durou 20 anos e chegou ao fim com a morte de
Margaret.
Nos 10 anos anteriores a sua morte, Richard Baxter
pregava e escrevia muito, mas nunca mais assumiu uma
congregação. Três vezes foi preso por pregar e enfrentava
perseguição constante do Supremo Magistrado Jeffreys – o mesmo
que cerrou Bunyan na prisão durante 16 anos por dissensão.
Durante os anos de perseguição e doenças crônicas, Baxter
produziu a maior parte dos 168 impressos religiosos de sua vida,
dos quais 141 são livros.
Dizem seus biógrafos que, como muitos outros gigantes
espirituais, Baxter foi marcado pela doença. Desde a mocidade até
o fim de seus dias ele foi afligido por constantes e variadas
enfermidades, um homem literalmente enfermo da cabeça aos
pés. Padeceu com dores reumáticas, tinha problemas estomacais,
frequentes hemorragias no nariz, dentre outras manifestações.
Baxter foi tratado por mais de 35 médicos, sem muito resultado, o
que o levou a evitá-los. Suas muitas enfermidades, entretanto, não
o impediram de ser um servo reconhecidamente mais útil e
produtivo do que milhares que desfrutam de perfeita saúde.
Em 1689, o Ato de Tolerância permitiu que Baxter
pregasse e escrevesse com liberdade. Naquela ocasião, ele se
deslocou para Charterhouse Square e logo após faleceu, no dia 8
de dezembro de 1691.
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O assistencialismo dos jesuítas em terras brasileiras
A Companhia de Jesus, em linhas gerais, era uma
sociedade missionária fundada em 1534 por Santo Inácio de
Loyola (1491-1556) com o objetivo de defender o catolicismo
contra a Reforma Protestante na Europa e difundi-lo nas novas
terras do Ocidente e do Oriente. Obteve um rápido crescimento,
alcançando grande prestígio e poder, tornando-se a instituição
religiosa mais influente em Portugal e nas colônias portuguesas.
Os primeiros jesuítas chegaram ao Brasil em 1549, comandados
pelo padre Manuel da Nóbrega (1517-1570), e dedicaram-se à
catequese indígena e à educação dos colonos. Entre os séculos
XVII e XVIII, construíram igrejas e fundaram colégios,
organizaram a estrutura de ensino, baseada em currículos e graus
acadêmicos, e estabeleceram as primeiras “reduções” ou
“missões” - aldeamentos onde os nativos eram aculturados,
cristianizados e preservados da escravização colonial. A maioria
dessas missões foram criadas na região Sul, próximo aos rios
Paraná e Uruguai, onde se reuniam dezenas de milhares de índios,
sendo grande também o número de missões instaladas pelos
jesuítas na região amazônica.
Naquele período, tivemos a chamada medicina jesuítica, a
partir da segunda metade do século XVI, onde padres e irmãos da
Companhia de Jesus foram de fato os médicos, os enfermeiros e os
boticários dos indígenas, dos povoadores, dos colonizadores.
Surgiam os primeiros hospitais das irmandades de misericórdia
que, com poucos recursos, não supriam as necessidades da época.
Locais onde pobres e obscuros habitantes, brancos, mestiços e
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negros, buscaram o socorro, transformando enfermarias e as
boticas dos estabelecimentos da Companhia em hospitais da
população e farmácias dos doentes necessitados.
Embora não tendo registros oficiais da época, pelas
descrições das doenças, podemos presumir a existência de
pessoas com deficiências congênitas ou adquiridas entre os
assistidos pelos jesuítas. Feridas nas pernas, na cabeça;
mortalidade infantil; doenças de pele; males venéreos, como a
sífilis; verminoses variadas; problemas oculares; anemia; febres;
chagas; tumores; dores de cabeça; paralisias; cólicas; males do
estômago, do coração e dos ossos; mordidas de cobra; insônias;
sem contar, é claro, as enfermidades epidêmicas, como varíola e
outras. O Brasil foi muitas vezes fustigado por grandes pestes,
epidemias, doenças gerais, bexigas, priorizes, tabardilho, câmaras
de sangue, tosse e catarro. De todas as epidemias, a que causou
maior estrago, e cuja existência é assinalada várias vezes, foi a
varíola. Agravou-se de forma violenta em 1563. Morreram 30.000
no período de dois ou três meses.
Através desses trabalhos dos jesuítas dirigidos aos
doentes, seja o clínico, o cirúrgico, o obstétrico, seja o
farmacêutico, é que foram escritos os primeiros capítulos da
Medicina brasileira. Eles assistiram, examinaram, operaram,
sangraram e medicaram, em um período em que predominou
realmente a medicina jesuítica. A Companhia de Jesus teve uma
grande importância para o desenvolvimento da medicina
brasileira, pois se pode afirmar que a medicina predominante no
Brasil no século XVI foi a dos jesuítas. Rareando, então, os físicos,
os cirurgiões e os hospitais, os filhos de Santo Inácio supriram a
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alta e assistiram ao índio e ao provedor como médicos,
enfermeiros e boticários. Deve-se-lhes, além de tudo, o
conhecimento da patologia e da terapêutica indígenas.
Dentre esses primeiros “médicos” a atuarem em terras
brasileiras, destaca-se o trabalho de José de Anchieta (1534-
1597), jesuíta e escritor espanhol que nasceu nas ilhas Canárias e
estudou em Coimbra, Portugal. Entrou para a Companhia de Jesus
em 1551, emigrando dois anos depois para o Brasil na comitiva de
Duarte da Costa, com o intuito de catequizar os índios. Anchieta
destacou-se, dentre outros feitos, por sua assistência a enfermos,
doentes crônicos e enjeitados. Foi um grande escritor de cartas
que, como as dos demais jesuítas da época, hoje são uma
importante fonte documental do desvendamento da patologia no
Brasil colonial. Nelas, esse jesuíta revela-se um médico dedicado,
um piedoso enfermeiro, conquistando a estima de todos, índios e
colonos, aos quais procurou servir sem esmorecer.
Em uma de suas correspondências, publicada em Cartas
inéditas: centenário da descoberta do Brasil, Anchieta relatou:
“Quão raras são entre os indígenas as deformidades e os monstros.
Em último lugar tratarei destes Brasis, porque ninguém encontrará
entre eles qualquer pessoa afetada de alguma deformidade natural,
raramente aparece um cego, surdo, mudo, ou coxo, nenhum
monstruosamente nascido. (...) Rarissimamente se acha entre eles
torto, cego, aleijado, surdo, mudo, corcovado, outro gênero de
monstruosidade: coisa tão comum em outras partes do mundo. Têm
os olhos pretos, narizes compressos, boca grande, cabelos corredios,
barba nenhuma, ou mui rara, são vividouros e passam muitos de
151
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cem anos, e cento e vinte, nem entram em cãs, senão depois de
decrépita idade” (apud LOBO, 2008, p. 32).
Diante de tais afirmações, Anchieta leva-nos a pressupor
que, talvez como consequência cultural da política de exclusão dos
índios, a sociedade colonial continuasse a segregar, a esconder
essas pessoas. Até mesmo por motivos de vergonha ou de um
completo desconhecimento, não saber lidar com elas.
Outro motivo para que pessoas com deficiência fossem
excluídas da sociedade pode ser encontrado no campo da
superstição. Naqueles tempos de geral ignorância, apontava-se a
doença como castigo da divindade. Os males sexuais eram devidos
aos hábitos pecaminosos, impulsionados pelo demônio. Os loucos
eram possessos. A lepra, então incurável e de origem não sabida,
causava horror e excluía os seus portadores do convívio social.
Tais conceitos, em verdade, chegam a ser compreensíveis, pois
datam de época anterior às investigações sobre os seres
microscópios e aos estudos sobre as reais causas das doenças.
Como sucedia no resto do mundo, enxotava-se o leproso para fora
das povoações, ou então era preso e internado o infeliz nos
lazaretos ou gafarias, pequenas casas-hospitais situadas nos
arredores das principais cidades. Havendo poucos lazaretos, os
leprosos tiveram mesmo que vagar pelas estradas, esmolando o
alimento e esperando a morte.
Surgiam as “Casas de Muchachos” e as “Rodas dos
Expostos”. Havia as crianças indígenas, os curumins e os
chamados “órphãos da terra”, crianças oriundas das ligações entre
os brancos ou negros e mulheres índias, que normalmente eram
abandonadas por suas mães, pois os índios acreditavam que o
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parentesco verdadeiro só vinha pela parte dos pais; por isso, não
faziam parte do seu povo, uma vez que não foram gerados por um
homem da tribo. Esses órfãos passaram a ser recolhidos em
lugares denominados “Casas de Muchachos”, com o objetivo de
educá-los dentro dos preceitos da Igreja. Nascia assim a primeira
medida de afastamento da criança de seu convívio sociofamiliar
praticada no Brasil. Em 1585 já existiam no país cinco “casas” de
acolhimento, situadas em Ilhéus, Porto Seguro, Espírito Santo, São
Vicente e São Paulo.
Outro capítulo marcante e triste de nossa história foram as
chamadas “Rodas dos Expostos”, que no Brasil funcionaram de
1726 a 1950. Tiveram origem na Itália durante a Idade Média a
partir do trabalho de uma irmandade de caridade e da
preocupação com o grande número de bebês encontrados mortos.
Tal irmandade organizou em um hospital em Roma um sistema de
proteção à criança exposta ou abandonada. O nome da roda
provém do dispositivo onde se colocavam os bebês que se queria
abandonar. Sua forma cilíndrica, dividida ao meio por uma
divisória, era fixada no muro ou na janela da instituição. No
tabuleiro inferior e em sua abertura externa, o expositor
depositava a criancinha que enjeitava. A seguir, ele girava a roda e
a criança já estava do outro lado do muro. Puxava-se uma
cordinha com uma sineta, para avisar a vigilante ou rodeira que
um bebê acabava de ser abandonado e o expositor furtivamente
retirava-se do local, sem ser identificado.
Podemos dizer que dessas duas ações nasceu a ideia de
tutela no Brasil pelas mãos dos jesuítas. Essa opção – que mais
tarde se refletiria também no assistencialismo às pessoas com
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deficiência –, perdurou ao longo de cinco séculos da nossa história
e ainda perdura como forma de ação de atendimento à infância
em nosso país.
Com o nascimento dos primeiros hospitais brasileiros, as
santas casas de misericórdia surgiram a partir das duas grandes
instituições operantes ligadas à Igreja católica, que quase sempre
nasciam como instituições destinadas a apoiar uma ampla
variedade de excluídos: órfãos, mães solteiras, velhos, pobres e,
claro, doentes, já estabelecendo uma cultura assistencialista. E o
que não faltaram foram doenças, epidemias e males
incapacitantes no Brasil Colônia.
Era o estreitamento da cultura deficiência como doença!
Se a associação de deficiência correspondia à doença veio
sendo construída ao longo de nossa história como uma questão
sempre tratada em ambientes hospitalares e assistenciais, outros
fatores também reforçaram essa cultura. Em terras brasileiras,
principalmente no final do século XIX e nas primeiras décadas do
século XX, foi bem considerável o número de médicos que
pesquisaram, escreveram e publicaram trabalhos científicos sobre
pessoas com deficiências, sobretudo as mentais, preocupados com
a aprendizagem dessas crianças. “O despertar dos médicos nesse
campo educacional pode ser interpretado como procura de
respostas ao desafio apresentado pelos casos mais graves,
resistentes ao tratamento exclusivamente terapêutico, quer no
atendimento clínico particular, quer no, muitas vezes, encontro
doloroso de crianças misturadas às diversas anomalias nos locais
que abrigavam todo tipo de doença, inclusive os loucos” (JANNUZZI,
2006, p. 31).
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A medicina passou a influenciar as propostas educacionais
para essas pessoas, principalmente por ser, na área do ensino
superior, uma das mais antigas no Brasil, junto com o ensino
militar, tendo, desde o começo, formado profissionais. Temos
como exemplo a criação das escolas de cirurgia e academia em
1808 na Bahia e Rio de Janeiro, a Faculdade de Medicina da Bahia,
em 1832, a primeira do País, a Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro, dentre outras. Além de vários médicos que tiveram
atuação direta como diretores ou professores das primeiras
instituições brasileiras voltadas para esse público.
Foi na segunda metade do século XIX, em paralelo à
implantação de hospitais públicos, que o Estado passou a intervir
também na área de doenças mentais – tratadas então em rigoroso
isolamento. Surgiu o Hospício D. Pedro II em 1852, no Rio de
Janeiro. Em 1898 era aberto o Hospital Psiquiátrico do Juquery, no
atual município de Franco da Rocha (Grande S. Paulo), nome do
médico que organizou a instituição, enquanto Porto Alegre
ganhava o Hospital S. Pedro. O importante Instituto Philippe Pinel,
do Rio de Janeiro, nasceria em 1937 com o nome de Instituto de
Neurossífilis. Um número muito considerável de pessoas com
deficiências mentais, até mesmo por falta de exames e diagnósticos
mais precisos na época, era confundido com doentes mentais e
internados injustamente nessas instituições. Juliano Moreira,
médico e nome importante da história da psiquiatria brasileira,
chegou a ser fundador de uma instituição para pessoas com
deficiências mentais. Franco da Rocha, no ano de 1921, em São
Paulo, construiu um pavilhão para crianças no Hospital de
Juquery. Mas já eram iniciativas que visavam ao lado pedagógico
dessas crianças, que, segundo Jannuzzi (2006), já apontavam algo
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positivo: “Percebo que esses pavilhões anexos aos hospitais
psiquiátricos, nascidos sob a preocupação médico-pedagógica,
mantêm a segregação desses deficientes, continuando pois a
patentear, a institucionalizar a segregação social, mas não apenas
isso. Há a apresentação de algo esperançoso, de algo diferente,
alguma tentativa de não limitar o auxílio a essas crianças apenas
ao campo médico, à aplicação de fórmulas químicas ou outros
tratamentos mais dramáticos. Já era a percepção da importância de
educação; era já o desafio trazido ao campo pedagógico, em
sistematizar conhecimentos que fizessem dessas crianças
participantes de alguma forma da vida de grupo social de então.
Daí as viabilizações possíveis, desde a formação dos hábitos de
higiene, de alimentação, de tentar se vestir etc. necessários ao
convívio social. Elas colocam de forma dramática o que se vai
estabelecendo na educação do deficiente: segregação versus
integração na prática social mais ampla” (p. 38).
Entre os primeiros médicos que se dedicaram à questão,
havia uma preocupação de estabelecer uma catalogação de
anormalidade. Pessoas com dificuldades pedagógicas seriam os
dotados de inteligência e instrução em grau inferior à sua idade. E,
visando completar os exames precários das chamadas “crianças
com defeitos pedagógicos”, acrescentava-se como modelo do
exame médico uma ficha contendo itens em relação a observações
do físico do aluno.
Católicos e protestantes se unem contra uma “Inquisição
Nazista” no século XX
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Ao longo da história humana temos inúmeros relatos de
discriminações e execução de pessoas com algum tipo de
deficiência. Mas nesse percurso não precisamos ir muitos séculos
atrás, a exemplo da Inquisição. Há pouco mais de 70 anos, durante
a Segunda Guerra Mundial, Hitler foi denunciado por programa de
extermínio de pessoas com deficiências físicas e intelectuais. Essas
mortes representavam uma antecipação das câmaras de gás de
Auschwitz. Alegando os altos gastos com essas pessoas, uma
propaganda nazista em favor do extermínio dizia: “60.000 marcos
é o que essas pessoas com defeitos hereditários custam ao povo
durante sua vida. Companheiro, o seu dinheiro também”.
No dia 3 de agosto de 1941, um domingo, algumas
semanas após Alemanha e União Soviética entrarem em guerra, o
bispo de Münster, na Renânia, denunciou publicamente esses atos
praticados pelos nazistas. O monsenhor Clemens-August von
Galen exclamava: “É uma doutrina tenebrosa aquela que busca
justificar a morte de inocentes, que autoriza o extermínio daqueles
que não são mais capazes de trabalhar, dos enfermos, daqueles que
soçobraram na senilidade… Será que temos o direito de viver só
enquanto pudermos ser produtivos?”.
Percebemos que, no começo do século XX, parecia legítimo
que os seres humanos mais frágeis desaparecessem e abrissem
espaço a seres mais bem preparados para sobreviver, em nome da
seleção natural pregada pelos nazistas. É desse modo que foram
editadas em determinados Estados leis que permitiam esterilizar
pessoas dadas como fracas de espírito ou com deficiências. Em 14
de julho de 1933, Hitler publicou uma lei sobre a esterilização de
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pessoas com deficiências intelectuais. Protestos houve somente do
clero. Um decreto datado de 1º de setembro de 1939, exatamente
no dia da deflagração da Segunda Guerra Mundial, prescrevia não
mais somente esterilizar, mas também levar à morte os
deficientes, os marginais e os que apresentavam tendência
permanente para a depressão. O pretexto era de liberar os leitos
hospitalares para os futuros feridos de guerra.
Esse “decreto da eutanásia” com a data retroativa a 1º de
setembro de 1939, que autorizava a missão do programa, dizia: “O
líder do Reich Philipp Bouhler e Dr. Brandt estão encarregados da
responsabilidade de ampliar a competência de certos médicos,
designados pelo nome, de modo que os pacientes, baseando-se no
julgamento humano, que forem considerados incuráveis, pode ser-
lhes concedida a morte de misericórdia após exigente diagnóstico”.
Hitler confiou toda a operação a Karl Brandt, seu médico
pessoal, e a Philip Bouhler, médico-chefe da chancelaria. Eles se
instalaram sob o nome codificado “Aktion T4”. Os funcionários do
T4 experimentaram diferentes meios de extermínio, começando
com o veneno e depois descobrindo o gás. Num primeiro
momento, encerravam suas vítimas num local fechado, injetando
o gás do escapamento de um caminhão. Muito rapidamente, os
procedimentos foram aperfeiçoados. Em janeiro de 1940, quinze
dessas pessoas foram conduzidas para uma falsa ducha de
chuveiro e asfixiados com o monóxido de carbono. Seus cadáveres
foram em seguida incinerados. Seus familiares avisados por carta
da morte acidental do parente e convidados a recuperar as cinzas.
Era uma antecipação das câmaras de gás de Auschwitz.
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Em torno de 70 mil a 100 mil pessoas com deficiência
seriam assassinadas em menos de dois anos. Porém, malgrado
todos os esforços da administração, o segredo foi descoberto e a
inquietação crescendo. Até dentro do próprio exército cresceu a
preocupação quanto ao destino dos feridos de guerra. Pastores
protestantes começaram a reagir.
O papa Pio XII interveio na questão em 15 de dezembro de
1940, condenando firmemente a eutanásia. Por fim, em 9 de
março de 1941, o bispo católico de Berlim, von Preysing,
denunciou “mortes batizadas de eutanásia”. Joseph Goebbels,
chefe da propaganda, convenceu Hitler de não determinar a
execução do bispo para evitar um conflito aberto com os cristãos
de Münster. Finalmente, três semanas após o golpe de efeito do
monsenhor von Galen, em 24 de agosto de 1941, Hitler decidiu
suspender a “Aktion T4”. Os mais de cem funcionários do T4,
contudo, não ficaram sem funções. Algumas semanas mais tarde,
Heinrich Himmler, ministro do Interior e chefe supremo da SS,
usou de sua expertise para colocar de pé o plano de eliminação
física dos judeus.
A Igreja católica e suas possibilidades de inclusão
A Igreja católica, em 1995, colocou nas ruas a sua
tradicional Campanha da Fraternidade, uma prática anual desde
1964, sempre abordando assuntos de interesse social. O tema
daquele ano foi “A Fraternidade dos Excluídos”, trazendo em seu
contexto a lembrança de milhares de pessoas marginalizadas,
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compondo uma enorme lista de segregados, sendo prostitutas,
aidéticos, moradores de ruas, idosos, pessoas com deficiência,
desempregados, drogados, presidiários e outras realidades
vítimas de um apartheid social invisível que prevalece sobre a
nossa pátria. Todas vítimas de um capitalismo selvagem, pois,
segundo a revista Família Cristã (fevereiro, 1995), “é simples
demonstrar o grau de iniquidade e hipocrisia de uma sociedade.
Basta verificar quantas e quais as categorias de seres humanos
marcadas pela brecha da exclusão”.
Diante desse quadro poderíamos abordar outros inúmeros
aspectos referentes aos “excluídos”; mas vamos nos limitar a uma
classe do nosso estudo: as pessoas com deficiência! Podemos
pegar como ponto de partida para a nossa reflexão o “Programa
de Ação Mundial para as Pessoas com Deficiência”, o PAM,
parágrafos 72 e 73, onde se destaca que, “com frequência, as
atitudes e os hábitos levam à exclusão das pessoas com deficiência
da vida social e cultural. As pessoas tendem a evitar o contato e o
relacionamento pessoal com elas. Para um número significativo de
pessoas com deficiência, os preconceitos e a discriminação de que
geralmente são vítimas e a consciência de que em grande parte são
excluídas das relações sociais normais causam problemas
psicológicos”. Isto, de certa forma, é o retrato de mão dupla da
deficiência, pois, segundo o PAM, “é muito frequente que o pessoal,
profissional ou não, que atende as pessoas com deficiência não se dê
conta de que elas podem participar da vida social normal e, por
conseguinte, não facilita a sua integração em outros grupos
sociais”. Mas é possível reverter essa situação? Quais os caminhos
e qual a colaboração que a Igreja católica, baseada em suas
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campanhas da fraternidade e suas pastorais, poderá continuar
dando à inclusão social e religiosa dessas pessoas?
Sobre a “Campanha da Fraternidade dos Excluídos” de
1996, um trecho de seu texto-base dizia: “No Brasil temos 7
milhões de portadores de doenças físicas e mentais. No modelo de
desenvolvimento competitivo não há espaço para os que têm algum
tipo de limitação física ou mental. Cultua-se o corpo humano que se
apresenta como uma máquina saudável, produtiva, dentro dos
padrões convencionais de estética e eficiência. Nessa situação, os
deficientes, além de terem que lidar com a própria deficiência,
sofrem um processo de rejeição por serem ‘diferentes’. Isso tem
reflexos na vida emocional, afetiva e na formação da autoimagem”.
Todavia, pedimos licença à Igreja católica, para fazermos
algumas reflexões referentes ao seu parágrafo. No que diz respeito
à inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho
competitivo, isso ainda se constitui em um grande desafio, mas
muita coisa já mudou. Muitas dessas pessoas estão conquistando o
seu emprego e, segundo registros, os empregadores estão
satisfeitos com elas. A contratação de mão de obra das pessoas
especiais só não é mais bem aproveitada por falta de informações
e esclarecimentos nos meios empresariais. Achamos também que
é de certa forma errado usar o termo “doenças físicas ou mentais”;
temos que ter bem definida em mente a diferença entre
deficiência e doença, pois muitas vezes, não esclarecidas, podem
reforçar preconceitos. Concordamos plenamente que, ao serem
rejeitadas, muitas pessoas apresentam prejuízos emocionais,
afetivos e na formação de sua autoimagem, mas esse processo de
rejeição analisaremos mais adiante.
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Além dos problemas sociais e emocionais (as “barreiras
invisíveis”) enfrentados pela classe, existe a questão dos
obstáculos materiais, as chamadas “barreiras arquitetônicas”;
portas estreitas impedindo o tráfego de cadeiras de rodas; escadas
e degraus inacessíveis em edifícios, ônibus coletivos, trens, aviões;
telefones públicos, interruptores de luz e botões de elevadores
colocados fora de seu alcance e sanitários que não podem utilizar,
dentre outros pontos menos comuns. Também há a exclusão
quando não se leva a sério a adoção de linguagem de sinais para
quem tem deficiências auditivas e leitura em braile para pessoas
com deficiências visuais.
Mas como mudar tudo isso? Infelizmente, essas barreiras
existem alicerçadas na ignorância e indiferença dos povos devido
à falta de informações corretas. Em nosso ponto de vista, muitos
desses problemas poderão ser evitados, com poucos gastos,
mediante um planejamento cuidadoso.
Acreditamos como sempre, que o problema da deficiência
é muito mais social do que psicológico, e a solução muito mais
simples que possa parecer. Todo encargo e dificuldades que se
despejam sobre essas pessoas estão diretamente ligados à
imagem negativa que essas pessoas têm perante a sociedade,
como serem inferiores, coitadinhos, eternos dependentes e outros
conceitos errôneos dessa natureza, que também foram
alimentados pelos estigmas religiosos ao longo dos séculos e hoje
repousam em nossos inconscientes coletivos. Quem tem uma
deficiência não é um rejeitado; é, sim, um desconhecido. O lado
positivo da deficiência, ou seja, o verdadeiro, do que são capazes,
suas potencialidades e os benefícios que, se incluídos, poderão
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trazer para o contexto social, estão quase todos ocultos da
sociedade e das comunidades cristãs, o que impede a construção
de uma real cidadania.
Assim, se for explorado esse ponto, a divulgação do lado
positivo, grande parte dos problemas dessa classe estará com os
dias contatos. A Igreja, no tocante às pessoas com deficiência,
poderá explorar esse ponto, mostrando sempre aos seus fiéis do
que essas pessoas são capazes; focalizar aqueles que estão
atuando no mercado de trabalho e outros tantos exemplos
positivos, abordando-os sempre de maneira natural e tentando
retirar toda a carga de piedade e/ou sensacionalismo que o tema
suscita. Muitas vezes a sociedade impede ou dificulta o exercício
pleno da cidadania, não por maldade, mas sim por desconhecer o
que realmente é alguém com deficiência e suas potencialidades.
Aliás, que sejam incentivados a participar mais nas atividades da
Igreja, dando sempre voz aos menos, pois assim a inter-relação e a
quebra de mitos e receios entre eles e os demais fiéis ocorrerão
naturalmente. As pessoas com deficiência não precisam de
piedade; precisam de oportunidade!
A Igreja poderá incentivar o nascimento de novas
associações, como a já existente “Fraternidade Cristã de Doentes e
Deficientes – FDC”, organizada e fundada por um grupo com
deficiência e que está aberta a todos, tendo como lema “nossas
capacidades superam as nossas deficiências”. A proposta da FCD é
lutar e defender os direitos da classe. É importante que os
próprios interessados se reúnam para discutir seus problemas e
brigar pelos seus direitos, desde que estejam apoiados em leis
especiais existentes no país. É preciso que a pessoa com
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deficiência tenha a sua consciência despertada a respeito de seus
direitos e obrigações, pois acreditamos que toda mudança precisa
vir de dentro para fora e de baixo para cima.
Sobretudo, propostas e soluções existem. Só é preciso que
não fiquem no papel e em discussões de grupos limitados, mas
partam para a prática, para as ruas, nas realizações de campanhas
de educação do público, visando à eliminação de tais barreiras e à
inclusão concreta dessas pessoas no contexto social.
O padre Luiz Carlos Dutra, em sua obra Pastoral da
Inclusão – Pessoas com deficiência na comunidade cristã (Loyola,
2005), aponta que são três as áreas em que a Igreja católica
poderá trabalhar a inclusão das pessoas com deficiência,
constituindo praticamente sua integridade:
NA CATEQUESE – No passado usávamos a expressão
“catecismo” para indicar em aulas que, com perguntas e
respostas fixas, decoradas, introduziam-se as crianças às
verdades da fé católica. Hoje o termo em uso é “catequese”,
que cobre todas as faixas etárias com suas questões e
problemas específicos. Catequese é a jornada espiritual de
cada pessoa inteirando-se da vontade e doutrina de Deus a
nosso respeito. Os assuntos são tratados em encontros
periódicos liderados por pessoas formadas na doutrina da
Igreja, segundo as fontes da Escritura, Tradição e dentro
da vivência dos nossos tempos modernos.
NA LITURGIA – Nossa comunidade cristã precisa se
acostumar a ver pessoas que, do púlpito, leem a Bíblia em
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braile, pessoas que comunicam a mensagem evangélica em
língua de sinais, pessoas que na condição de leitores têm a
autonomia de chegar em sua cadeira de rodas até o
microfone (adaptável à sua altura) graças a alguma
solução para os tradicionais degraus do presbitério. Essas
pessoas são ministros do altar, na hora mais solene de
nossa fé, a Eucaristia. Têm eles tal amor a Cristo que
desafiam a deficiência a ponto de quererem participar
ativamente da liturgia. São jovens com deficiência
intelectual, por exemplo, que, orientados, podem tirar a
coleta, levar as ofertas do pão e vinho em procissão e
ofertório. Nada de medo. Nada de idiossincrasias ou temor
irracional. São pessoas com deficiência de algum tipo, mas
com voz boa ou que tocam bem algum instrumento e que
querem fazer parte do coral, da música. Liturgia é a família
de Deus toda em prece, cada um fazendo oferta de seus
dons, sem discriminação.
NA VIDA DA COMUNIDADE – Conforme a Sagrada
Escritura, desde os primórdios do Cristianismo, a força da
fé se expressou na união e amor entre os cristãos.
Trabalhando cada um na própria santificação, todos
trabalhavam também para formar uma comunidade que
atendia às necessidades e aos interesses espirituais e
materiais. (...) A comunidade cristã hoje, pelo amor e
exemplo de Cristo, e a sociedade em geral, pela obrigação
de promover o bem comum e defender os direitos de cada
um, devem ambas abraçar o ideal da inclusão das pessoas
com deficiência (pp. 29-31).
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TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br
Segundo o padre, “escolas, centros de trabalhos, programas
biopsicossociais e profissionais surgiram e agora adotam a filosofia
e prática da inclusão. A Igreja tem razões bem mais profundas para
viver o ideal e a prática da inclusão. O chamado para promover
inclusão não é somente das autoridades eclesiásticas. O chamado é
do próprio Deus, que revelou o mandamento do amor, e do próprio
Cristo, que deu o exemplo em palavras e obras. E Deus chama a
todos” (DUTRA, 2005, p. 22).
Façamos nossas as palavras de Elizabete Cristina Costa-
Rendens, as quais cabem não só à Igreja católica, como também às
demais comunidades cristãs: “Se no decorrer da história,
especialmente até a Idade Média, elas atuaram junto às pessoas
com deficiência em perspectiva assistencialista e segregacionista,
em tempos contemporâneos, o tema inclusão desafia essas mesmas
Igrejas cristãs a novas práticas pastorais e ao regaste de discursos
teológicos inclusivos – na perspectiva do Evangelho de Jesus Cristo.
Evangelho este que não faz acepção de pessoas e que propõe a
diaconia como uma forma de convivência social pautada pelo
reconhecimento recíproco. Nessa perspectiva, foi possível
aproximarmos o paradigma educacional da inclusão com a
espiritualidade cristã. A Teologia, pelo papel crítico-profético que
lhe é conferido, tem a tarefa de construir uma antropologia que
diminua (ou hierarquize) o ser humano em função de suas
deficiências, mas que o acolha em sua dignidade humana. A
educação pode beber das águas teológicas, especialmente no que
diz respeito ao reconhecimento da dignidade humana como um bem
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inviolável e, por conseguinte, da demanda ética que se coloca em
termos de justiça social” (2009, pp. 149-150).
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V – CAMINHOS PARA A INCLUSÃO
RELIGIOSA HOJE
O Protestantismo precisa despertar para a questão
ssim como no capítulo anterior falamos sobre a atuação
histórica da Igreja católica junto às pessoas com
deficiência, gostaríamos de ter escrito também um longo
capítulo sobre a atuação do Protestantismo. Só que, em nossa
investigação história, não encontramos nenhum registro. Nem na
vasta historiografia de Otto Marques da Silva há sequer pistas
sobre isso. A não ser a condenação feita pelos principais nomes da
Reforma, considerando as pessoas com deficiência
(principalmente as deficiências intelectuais) como demoníacas,
apoiando as eliminações delas pela Inquisição. Historiadores
apontam que essas pessoas sempre passaram despercebidas pelas
correntes protestantes. Acreditamos que possa até ter ocorrido
ações deles nesse sentido, mas por terem se dividido em várias
vertentes ou seitas, onde cada uma defende seus pontos
teológicos/ideológicos, tais registros não ficaram para a história,
não chegando até nós.
O mesmo não aconteceu com a Igreja católica, que, talvez
por ser uma unidade, foi capaz de preservar os seus registros
históricos. Alguns estudiosos dizem que as ações da Igreja foram
A
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TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br
puramente assistencialistas e colaboram para a segregação de
pessoas com deficiência ao longo dos séculos. Só que preferimos
focar em outro aspecto. Mesmo sendo assistencialismo, ou
pautados pela cultura da caridade, o importante foi que a Igreja
reconheceu a existência e as necessidades dessas pessoas
naqueles momentos históricos, abrigando-as com a visão e
conceitos que tinham na época. Pela falta de mais conhecimentos
médicos/científicos e de uma filosofia humanista, era o que
tinham a oferecer. Do mesmo jeito que não podemos condenar os
protestantes que apoiaram a eliminação das pessoas com
deficiência na Inquisição, pois também faltavam-lhes
conhecimento cientifico e uma teologia mais humanitária com
relação a elas. No Protestantismo tudo ainda era muito novo e a
noção do bem (Deus) e do mal (diabo) ainda era muito acentuada,
não dando margem para outras análises teológicas e/ou
humanitárias.
Não é nossa intenção ficar fazendo julgamento das ações
passadas, seja dos católicos, seja dos protestantes. Mas, sim, trazer
por meio deste estudo dados históricos para que, a partir deles,
possamos rever nossas ações e conceitos referentes às pessoas
com deficiência e ter base para a construção de uma real
TEOLOGIA DA INCLUSÃO.
Uma Teologia da Inclusão que contemple um novo
momento histórico, onde tanto os católicos como os protestantes
reavaliem e reconstruam seus conceitos e ações no sentido da
inclusão das pessoas com deficiência. Se, por um lado, a Igreja
católica continua intensificando suas ações em prol da inclusão
social e religiosa das pessoas com deficiência, sabemos que várias
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TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br
igrejas protestantes estão também realizando ações nesse sentido,
mas de forma simples e isolada, não havendo união, planejamento
nem trabalhos entre elas.
Segundo Costa-Renders (2009), “faz-se necessária,
portanto, a construção de uma Teologia onde também caibam as
pessoas com deficiência. Ou seja, uma Teologia que inclua e dê
visibilidade às expectativas e desafios vividos por essas pessoas, tais
como: as imposições de uma antropologia hegemônica, os desafios
da cura (seja pela religião, seja pela ciência), a percepção da
vulnerabilidade humana e da inegociável dignidade de todos os
seres humanos. Entendemos que, a partir das pessoas com
deficiência, brotam perguntas importantes para a espiritualidade:
sobre a existência, sobre a condição humana, sobre as concepções a
respeito da deficiência e dos limites humanos, etc. são perguntas
provocativas, não tivemos (ou não temos) a intenção, nem a
possibilidade, de responder a elas categoricamente” (p. 149).
Uma sociedade inclusiva
Como nas religiões, na sociedade em geral, as pessoas com
deficiência ficaram por muito tempo escondidas do convívio social
muitas vezes dentro de instituições especializadas. Nos anos 1970
e 1980, vivemos o conceito de integração social. Surgiram, por
exemplo, entidades, centros de reabilitação, clubes sociais
especiais, associações desportivas, todas dedicadas a essas
pessoas com deficiências. A intenção principal era preparar essas
pessoas para ingressar e conviver em sociedade com todos nós.
171
TEOLOGIA DA INCLUSÃO – Emílio Figueira www.emiliofigueira.com.br
Só que, nos últimos vinte anos, um novo conceito surgiu: a
inclusão social, tomando forma e espaço na sociedade, focando a
equiparação de igualdades como tema do milênio. Antes pessoas
com deficiências eram habilitadas ou reabilitadas para fazer todas
as coisas que as demais e, através da integração social, passavam a
conviver em sociedade. Agora, na inclusão social, as iniciativas são
da sociedade, que passou a se preparar, criando caminhos e
permitindo que eles venham conviver com todos. Por esse motivo,
cada vez mais estamos vendo crianças e pessoas com
necessidades especiais em nossas escolas, no lazer e em todos os
lugares da vida diária. E devemos estar preparados para essa
convivência, aceitando as diferenças e a individualidade de cada
pessoa, uma vez que o conceito de inclusão mantém este lema:
Todas as pessoas têm o mesmo valor.
Inclusão Social, um tema explorado em várias partes do
mundo, tendo ampla preocupação internacional, foi explicitado
pela primeira vez em 1990 pela Resolução 45/91, da Assembleia
Geral das Nações Unidas e, cerca de cinco anos depois, começou a
chamar a atenção aqui no Brasil.
Formada de uma resolução e regras bem definidas de uma
sociedade para todos, consiste da diversidade da raça humana,
estando estruturada para atender às necessidades de cada
cidadão, das maiorias às minorias, dos privilegiados aos
marginalizados. Nesse contexto estão incluídos crianças, jovens e
adultos com deficiência, os quais serão naturalmente
incorporados à sociedade inclusiva, e onde todos trabalharão
juntos, com papéis diferenciados, dividindo iguais
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responsabilidades por mudanças desejadas para atingir o bem
comum.
Tudo consiste no processo ao qual a sociedade se adapta
para poder incluir em seu contexto as pessoas com deficiência.
Mas, por outro lado, essas mesmas pessoas precisam ser
preparadas para assumir seus papéis na sociedade. Será uma
forma de parceria entre ambas – sociedade e pessoas especiais –,
visando equacionar problemas, decidindo sobre soluções,
efetuando equiparações para todos. Na prática, a inclusão social
tem como princípios básicos incomuns:
a aceitação das diferenças individuais;
a valorização de cada pessoa;
a convivência dentro da diversidade humana;
a aprendizagem através da cooperação.
O que talvez possa parecer uma utopia, poderá ser na
realidade a construção de um novo tipo de sociedade, mediante
transformações, pequenas ou grandes, dos meios físicos (através
de adaptações), ou das mentalidades (através de conscientização
da população).
Em várias partes do mundo, relata Sassaki (1997), “o
processo de inclusão vem sendo aplicado em cada sistema social.
Assim, existe a inclusão na educação, na saúde, na assistência, no
lazer, no transporte, etc. Quando isso acontece, podemos falar em
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educação inclusiva, na saúde inclusiva, na assistência inclusiva, no
lazer inclusivo, no transporte inclusivo e assim por diante. Uma
outra forma de referência consiste em dizermos, por exemplo,
educação para todos, lazer para todos, transporte para todos" (p.
22).
Igualdade de oportunidades, inclusive na religião
Essa tendência de Inclusão iniciada no campo educacional,
refletindo na sociedade como um todo, também deve ser realizada
nas comunidades cristãs, independente de denominação. É direito
das pessoas com deficiência o livre exercício de sua religiosidade.
Está no “Programa de Ação Mundial Para as Pessoas com
Deficiência“, o PAM (ONU, 1992), parágrafo 136: “Devem-se adotar
medidas para que as pessoas com deficiência tenham a
oportunidade de se beneficiar plenamente das atividades religiosas
que estejam à disposição da comunidade. Para tal, deve-se tornar
possível a participação das pessoas com deficiência nas referidas
atividades!”.
Podemos tirar do próprio PAM noções de Igualdade de
Oportunidades na sociedade em geral que devam refletir nas
comunidades cristãs. Estes parágrafos selecionados dão uma visão
geral dessas mudanças:
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21. Para se alcançar os objetivos de “igualdade” e
“participação plena”, não bastam medidas de reabilitação
voltadas para o indivíduo com deficiência. A experiência tem
demonstrado que, em grande medida, é o meio que
determina o efeito de uma deficiência ou de uma
incapacidade sobre a vida cotidiana da pessoa. A pessoa vê-
se relegada à invalidez quando lhe são negadas as
oportunidades de que dispõe, em geral, a comunidade, e que
são necessárias aos aspectos fundamentais da vida, inclusive
a vida familiar, a educação, o trabalho, a habitação, a
segurança econômica e pessoal, a participação em grupos
sociais e políticos, as atividades religiosas, os
relacionamentos afetivos e sexuais, o acesso às instalações
públicas, a liberdade de movimentação e o estilo geral da
vida diária.
25. O princípio da igualdade de direitos entre pessoas com e
sem deficiência significa que as necessidades de todo
indivíduo são de igual importância, e que estas necessidades
devem constituir a base do planejamento social, e todos os
recursos devem ser empregados de forma a garantir uma
oportunidade igual de participação a cada indivíduo. Todas
as políticas referentes à deficiência devem assegurar o
acesso das pessoas com deficiência a todos os serviços da
comunidade.
27. Das pessoas com deficiência, deve-se esperar que
desempenhem o seu papel na sociedade e cumpram as suas
obrigações como adultos. A imagem das pessoas com
deficiência depende de atitudes sociais baseadas em
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diversos fatores, que podem constituir a maior barreira
para a participação e a igualdade. É costume ver a
deficiência como a bengala branca, as muletas, os aparelhos
auditivos e as cadeiras de rodas, sem se ver a pessoa. É
necessário focalizar a capacidade da pessoa deficiência, e
não as suas limitações.
Transportando essa visão e apontamentos do PAM para o
nível espiritual, podemos dizer que o conceito e a prática de
inclusão encontram eco favorável em verdades básicas de nossa
fé; segundo Dutra (2005, p. 18), a inclusão, espiritualmente, é:
colocar em prática, em relação à pessoa com deficiência, o
amor ensinado por Deus;
viver na prática a universidade da Igreja, sem distinção ou
discriminação;
ver Cristo na pessoa com deficiência.
Em uma comunidade cristã, por meio da fé e batismo
comum, estamos todos inseridos como ramos de videira, ramos
vivos e produtivos, graças a essa inserção na fonte da vida que é
Jesus Cristo. “Assim, a inclusão passa a ser o fato de viver a fé e o
amor que nos fazem um no Senhor, sem exceção, a grande família
de Deus. As aparências contam, mas não decidem nossas
preferências e aberturas de coração” (DUTRA, 2005, p. 19).
Com ou sem deficiência, somos todos possuidores de
dignidade humana e filhos do Deus, o primeiro a não fazer
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acepção de pessoa, como está em I Samuel 16:7: “Porém o Senhor
disse a Samuel: Não atentes para a sua aparência, nem para a
grandeza da sua estatura, porque o tenho rejeitado; porque o
Senhor não vê como vê o homem, pois o homem vê o que está diante
dos olhos, porém o Senhor olha para o coração.”.
Como uma missão cristã, as comunidades religiosas
precisam convidar as pessoas com deficiência a expressar seus
sonhos e realidades, facilitando sua participação de forma
irrestrita. Como as demais, elas procuram independência e
autonomia, o que significa participar do processo, das soluções e
implementações e usufruir os resultados. Incluir essas pessoas na
vida da comunidade cristã será como trazer Cristo a elas e levá-las
a Cristo de maneira condizente com as necessidades pessoais e em
comunhão com todos e com tudo o que Deus criou e reuniu.
Barreiras arquitetônicas eram motivos de exclusão
Parece que não, mas, por muitos séculos, um dos
principais motivos que impediram pessoas com deficiência de ter
acesso às religiões foram as barreiras arquitetônicas. Em 1999,
Ranauro e Lima de Sá já questionavam esse fato: “As igrejas
costumam primar pela importância dos templos e escadarias. O
templo suntuoso, no alto, se destaca. Mas quantos sequer podem se
beneficiar deles pelas dificuldades de acesso impostas às pessoas.
Não se atenta, sequer, no mais das vezes, para a largura e altura
dos degraus. E o corrimão nos degraus e escadarias, quem se lembra
deles?” (p. 105).
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Somavam-se as grandes escadarias na entrada de igrejas,
além de barreiras físicas no interior de suas instalações, as
atitudes paternalistas e piedosas em relação à deficiência.
Essas barreiras são todas as limitações com que as pessoas
com deficiência se deparam no seu dia a dia e que as impedem de
realizar o mais básico direito de qualquer cidadão: IR e VIR.
Existem diversos tipos de barreiras arquitetônicas, como as
escadas, os elevadores e portas muito estreitos, buracos no
passeio, casas de banho mal equipadas, transportes públicos mal
preparados, as edificações, os espaços urbanos, os equipamentos
urbanos, o mobiliário, os aparelhos assistivos, os utensílios.
Só que é um quadro que começa a mudar, conforme
observa Sassaki (1997): “Hoje, é comum vermos igrejas e sinagogas
dotadas de acessibilidade arquitetônica, o que permite aos seus fiéis
com deficiência frequentarem-nas com autonomia e, mais do que
isso, tomarem parte na administração dos ministérios. São
conhecidas as atividades desempenhadas por pessoas com
deficiência intelectual ou física auxiliando os celebrantes de missa
ou culto. Intérpretes de línguas de sinais fazem parte do pessoal que
acompanham os eclesianos com deficiência auditiva. Os próprios
sacerdotes acabam aprendendo a usar os sinais durante a
celebração de missas. Tudo isso, além de ser um direito das pessoas
com deficiência, acaba funcionando como recurso de
conscientização dos frequentadores sem deficiência, o que é muito
educativo para toda a comunidade que se reúne em torno da
religião” (p. 108).
Em tempos de Inclusão Social – e também por que não
dizer Religiosa! –, uma questão que merece uma profunda
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reavaliação de conceito é com relação às pessoas com deficiência
que se utilizam de cadeiras de rodas para a sua locomoção. Aqui
encontraremos um dos maiores erros de visão cometidos pela
sociedade. E também a falta de atenção dos profissionais de
comunicação colabora para uma visão errônea, quando
reproduzem exaustivamente a imagem da pessoa em cadeira de
rodas, usando um “cobertor xadrez” sobre as pernas.
Essa imagem é transmitida historicamente, tendo como
base as primeiras imagens vindas da fria Europa, onde, no pós-
guerra, alguns militares combatentes adquiriram deficiências e
consequentemente passaram a utilizar cadeiras de rodas para sua
locomoção. Nos países europeus o clima gelado é constante na
maior parte do ano e, uma vez que a pessoa na cadeira de rodas
tem pouca circulação sanguínea nas pernas, tendo uma
sensibilidade ainda maior ao frio, justifica-se o uso desses
cobertores.
Mas no Brasil, um país tropical e praticamente quente
durante todo o ano, nada justifica que perdure a utilização do
“cobertor xadrez” sobre as pernas dessas pessoas, o que também
pode significar uma conotação negativa da intenção de esconder a
parte paralisada do corpo. Essa imagem, reproduzida sem
qualquer critério ou avaliação, é constante na mídia, nas
telenovelas, em peças de teatro, nos cinemas e em campanhas de
utilidade pública, sem uma percepção crítica em relação a esse
estereótipo que reforça, principalmente em países quentes como o
Brasil, a ideia de vergonha do corpo, deformação, feiura e
depressão.
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Outro erro que também cometemos e precisamos corrigir
é com relação às expressões que usamos ao nos referirmos a essas
pessoas. Expressões como “condenados”, “confinados”, “presos” a
uma cadeira de rodas refletem totalmente o contrário do
verdadeiro significado de uma cadeira de rodas, sendo um
instrumento para suprir a dificuldade de locomoção de seu
usuário, tornando-se um instrumento para a sua independência,
para sua libertação, para a vida! Por isso, além de acabarmos com
a estereotipada imagem do “cobertor xadrez”, troquemos essas
ultrapassadas expressões por “pessoas que se utilizam de cadeiras
de rodas para sua locomoção”, “usuários de cadeiras de rodas”, ou
simplesmente “cadeirantes”.
O que deve ser feito está previsto no Decreto Federal
5296/2004, conhecido como Lei de Acessibilidade, e em muitas
outras normas. Mas a lei nem sempre é cumprida; na realidade
uma parte significativa da população ainda vive à margem.
“Uma teologia da deficiência”
Esse subtítulo acima é de um artigo escrito por John
Swinton, diretor de Teologia Prática da Universidade de
Aberdeen, Escócia. Traduzido e publicado pelo O Jornal Batista em
29 de fevereiro de /2012, Swinton faz algumas observações –
citando Gênesis 1:27: “E criou Deus o homem à sua imagem; à
imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou” –, como ser
criado por Deus é refletir a Sua glória e ser amado pelo Criador.
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De todo o artigo, queremos reproduzir este trecho final, por ele
ser rico em reflexões:
Ser humano é um ato poderoso e misterioso. Não existe
nenhum ser “normal”. Claramente todos os seres humanos
são anormais, já que “todos pecaram e destituídos estão da
glória de Deus (Romanos 3:23). Todos nós nos distanciamos
de Deus, e assim somos profundamente deficientes. Devemos
tomar cuidado quando chamamos outros de deficientes e
tratamos como se o rótulo realmente explicasse qualquer
coisa.
Deficiência é apenas uma das maneiras de ser humano
diante de Deus. Não há nada na deficiência que nos separe
do outro. Não é o nosso corpo, nem o nosso intelecto, nem as
nossas capacidades que nos fazem aceitáveis a Deus.
Nenhuma dessas coisas nos torna humanos. O amor
interminável de Deus por cada ser humano é o que cria e
sustenta-nos em nossa humanidade. Deficiência é
simplesmente uma variação sobre um tema comum.
De acordo com essa compreensão da questão, a igreja (o
Corpo de Cristo) é chamada a ser um lugar onde a
discriminação e o preconceito são abandonados e o amor
incondicional é abraçado. Somente se cumprimos esse
chamado teremos o tipo de comunidade que Paulo previu,
onde não há “nem judeu, nem grego, nem escravo livre, nem
homem, nem mulher” ...nem preto, nem branco, nem pessoas
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“normais”, nem pessoas “deficientes” (Gálatas 3:28). Em
meio à deficiência é que percebemos essas verdades, e ao
percebê-las aprendemos a viver de forma diferente.
Somos, acima de tudo, conhecidos e lembrados por Deus,
tenhamos uma deficiência ou não, desde mesmo antes do nosso
nascimento, como diz o Salmo 139. Deus não nos vê com
distinção. Mas nós, sim, olhamos os nossos semelhantes com
distinção. Infelizmente o preconceito e estigmas religiosos ainda
existem, conforme esse caso narrado por Pauli (2010): “Em certa
igreja, um homem tentou entrar no templo para o culto de domingo.
Ele não podia andar, era muito pobre e não tinha cadeira de rodas;
por isso, se arrastava pelo chão. Quando ele finalmente chegou à
porta da igreja, depois de uma dolorosa e desgastante jornada
partindo de seu pequeno quarto, os porteiros da igreja negaram sua
entrada sob o argumento de que ele não era digno de entrar
daquele jeito. Ele voltou para casa com o coração triste e nunca
mais tentou entrar numa igreja novamente. Ele morreu pouco
tempo depois. Talvez nunca saberemos a diferença que faria se ele
tivesse sido bem recebido na igreja naquele dia, em vez de ser
rejeitado. Porém quando a igreja age de forma indiferente e não faz
nenhum esforço para receber essas pessoas de braços abertos,
também está agindo com discriminação” (p. 76).
Reflexões sobre a convivência plena na religiosidade
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Uma grande forma de inclusão social, religiosa e
conhecimento da realidade, é termos e mantermos pessoas com
deficiências em nossos círculos de irmandade e amizade. Será
uma forma de ambos se conheceram como de fato são, quebrando,
assim, muitos mitos e os tradicionais preconceitos. Viver em
grupo é uma necessidade de nós, seres humanos. E nada expressa
melhor isso do que a amizade. Durante todos os períodos de
nossas vidas, temos amigos: infância, adolescência, idade adulta e
velhice. Poderá haver uma ciranda, principalmente em cidades
grandes, onde conhecemos inúmeras pessoas que entram e saem
de nossas vidas de maneira mágica, se assim se pode dizer; alguns
até por interesses profissionais. Embora nem sempre sejam os
mesmos, mas sempre é importante a figura dos amigos. Todavia,
há aqueles amigos, geralmente constituídos nas duas primeiras
fases de nossas vidas, que, entra ano e sai ano, estão sempre
presentes em todos os momentos de nossas vidas. E como é boa
essa presença! Pois, para uma pessoa com deficiência, esse círculo
de amizade torna-se ainda mais valioso, uma ajuda inevitável...
Duas reflexões podem ser feitas nesse sentido. Há aquelas
pessoas que nascem ou adquirem uma deficiência no início de
suas vidas e há aquelas que adquirem ao longo do percurso,
principalmente por acidentes. No primeiro caso, a pessoa já cresce
consciente de sua limitação, desafiando seus próprios limites;
realiza tudo com naturalidade, escola, brincadeiras, crescendo
entre a sua turma e participando normalmente de todas as
atividades de acordo com sua condição. Já aquele que adquiriu
uma deficiência terá que passar por um longo processo,
começando pela aceitação de sua nova condição, como lidar com
isso, “reaprendendo” a viver com sua nova realidade e dentro de
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suas possibilidades. Esse notará naturalmente o afastamento de
seus amigos comuns, não por maldade, mas por estarem dando
prosseguimento em suas vidas rotineiras. Sobrarão, sim, alguns
poucos e sinceros amigos, que o acompanharão em seu processo
de reabilitação e, mesmo sem saberem, terão uma participação
praticamente invisível, porém fundamental. Serão eles os
principais responsáveis na reintegração social dessa pessoa, a
partir do momento que passarem a aceitá-lo e incentivá-lo a
participar em suas atividades, mesmo as mais simples, como
passeios, por exemplo.
Pode parecer fácil ter e manter laços de amizade com
alguém com deficiência, mas acredito que não é tão simples assim.
Geralmente, uma pessoa que tem alguma limitação, dependendo o
grau e tipo, ao sair em público torna-se o centro das atenções,
motivo de curiosidade natural de todos. Dessa maneira, aquele
que o acompanha também será o centro de muitos olhares. Em
alguns casos, a pessoa poderá precisar de auxílio para realizar
algo, ao entrar em algum lugar, e certamente os irmãos e amigos
não medirão esforços, tendo boa vontade para tal. Importante
também respeitar as suas limitações, como, por exemplo, numa
caminhada, andar dentro do seu ritmo. Para ser amigo de alguém
com deficiência, deve-se ter muito discernimento, livre de
preconceitos, além de ser algo de enriquecimento e conhecimento
à convivência e a alma humana, exatamente o que se espera de um
comportamento cristão!
Nessas convivências dentro e fora da igreja,
descobriremos inúmeras qualidades e potencialidades; com isso
desaparecerão as diferenças provocadas pelas limitações, pois
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você aprenderá a respeitá-las. Será um mundo completando
outro. Assim a inclusão e a aceitação ocorrerão naturalmente.
Tudo depende de cada um e da união coletiva, e, sobretudo, que a
sociedade respeite e ajude na concretização dessa INCLUSÃO
SOCIAL e RELIGIOSA, para que ocorra, enfim, a CONVIVÊNCIA
PLENA.
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CONCLUSÕES
sociedade como um todo se uniu nos mais diversos
segmentos para promover a inclusão das pessoas com
deficiência. Infelizmente, as comunidades cristãs – sejam
católicas, sejam protestantes – estão muito atrasadas para esse
despertar, ou promovendo ações tímidas. Como observa Costa-
Renders (2009), “a Teologia tem fundamental importância na
construção de uma estrutura inclusiva em nossa sociedade. Como
um instrumental de reflexão sobre a condição humana e de
promoção da dignidade de todas as pessoas, a espiritualidade cristã
forma opinião – a começar, de forma assistemática, em nossas
comunidades, até chegar, de forma sistemática, às instituições
educacionais. A espiritualidade é um dos modos de produção de
sentido para o caminho da existência humana; portanto, uma
teologia inclusiva pode ser educativa – formar pessoas. Nesse
sentido, uma teologia inclusiva pode ser elucidativa no caminho de
construção de uma sociedade e uma educação para todos!” (p. 145).
Na verdade, este estudo teve por objetivo uma revisão
histórica e reflexiva sobre o assunto, como uma forma de
introdução a essa questão. Muita coisa ainda há por se pesquisar e
se escrever como uma forma de orientação para fortalecer essa
TEOLOGIA DA INCLUSÃO, focalizando vários outros aspectos que
envolvem as pessoas com deficiências, sobretudo apontando para
A
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as possibilidades de inclusão social e religiosa. Tanto para os
católicos em suas pastorais quanto para os protestantes em
missões, evangelizações, nas escolas bíblicas dominicais,
aconselhamentos, dentre outras ações.
Como já enfatizado, o primeiro passo para termos uma
Teologia da Inclusão será rever nossos próprios conceitos. Rever a
visão que temos das pessoas com deficiência, abandonando
conceitos de coitadinhos, vítimas, a deficiência como
consequência de castigos ou pecados. Abandonar a posição que
nós, cristãos, sempre tivemos de assistencialistas e piedade para
com essas pessoas, apoiados em nossas caridades, trazendo-as
para serem parte de nossas comunidades cristãs em total
igualdade. Sobretudo, temos que cada vez mais identificar e
eliminar do nosso meio os estigmas religiosos.
Isso constitui um grande desafio, uma vez em que vivemos
em um mundo praticamente “moldado”, que quase nunca aceita o
que sai do convencional, inclusive nas comunidades cristãs, pois
Deus, segundo I Timóteo, 2:4, “Que quer que todos os homens se
salvem, e venham ao conhecimento da verdade.”.
Geralmente, associa-se a imagem de uma pessoa com
deficiência como um ser “totalmente diferente”, “estranho” ou até
mesmo “alvo de gozação”. É normal muitos referirem-se a eles –
ou essas próprias pessoas sentirem-se – como seres “rejeitados”.
Mas preferimos não enfocá-los dessa forma, apontando-os como
seres “desconhecidos”. O que falta, na realidade, é um processo de
convivência para que todos – sociedade, comunidades cristãs e
pessoa com deficiência – se conheçam. Nasce aqui a verdadeira
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importância de uma boa inclusão nas comunidades cristãs. Mesmo
com algum tipo de limitação, essas pessoas devem participar do
processo de inclusão, no seu sentido mais amplo, tendo acesso a
oportunidades e condições adequadas ao desenvolvimento de
suas potencialidades, não apenas como membros de comunidades
cristãs, mas também de todas as atividades, incluindo todos os
ministérios dentro da Igreja.
É importante ainda que essas pessoas não se autolimitem,
lembrando-se sempre de que não são doentes, mas apenas
pessoas com algumas limitações, e que mesmo com elas, ou apesar
delas, podem conviver na sociedade e em comunhão com os
irmãos em Cristo, desde que haja adaptação necessária a essa
convivência. Não podem ficar à mercê dos acontecimentos,
precisam fazer com que as coisas aconteçam. Ao longo dos anos,
muitos dos direitos das pessoas com deficiência foram
reconhecidos pelos poderes governamentais e pela sociedade em
geral. É preciso agora que os envolvidos – principalmente quem
tem deficiência – usem a força de suas vozes para reivindicá-los e
lutar por sonhos e desejos, não esquecendo jamais do que são
capazes. E incluir na Igreja também é incentivar as pessoas com
deficiência a descobrir, desenvolver-se e fortalecer na fé em JESUS
CRISTO!
Na própria história do Antigo Testamento vimos que
muitos dos grandes personagens bíblicos usados por Deus de
alguma forma estavam ligados com algum tipo de deficiência. Já o
Novo Testamento, com a vinda de Jesus ao mundo e sua opção
pelos excluídos, faz com que as pessoas com deficiência “ganhem”
almas, respeito, por meio das quais Ele realiza muitas obras. Isso
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nos faz acreditar com segurança que as pessoas com deficiência
sempre foram canais de bênçãos entre Deus e a humanidade,
como o próprio Jesus Cristo testificou em João 9:3: “Jesus
respondeu: Nem ele pecou nem seus pais; mas foi assim para que se
manifestem nele as obras de Deus.”.
Este estudo histórico, que lançou luz a tantos personagens
e fatos bíblicos e pós-bíblicos, prova como pessoas com
deficiência e/ou circunstâncias que as envolvem são amadas e
usadas por Deus. Não existem deficiências diante dos olhos de
Deus, como diz I Samuel 16:7: “Porém o Senhor disse a Samuel:
Não atentes para a sua aparência, nem para a grandeza da sua
estatura, porque o tenho rejeitado; porque o Senhor não vê como vê
o homem, pois o homem vê o que está diante dos olhos, porém o
Senhor olha para o coração.”.
Uma doença ou uma deficiência apontam para a finitude
do homem e podem conduzi-lo à sensibilidade necessária para a
comunhão com Deus e com o próximo. Incluir não é ser bom ou
um ato de caridade. Incluir é ser realmente cristão!!!
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