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Dados versão impressa ISSN 0011-5258 Dados v.42 n.4 Rio de Janeiro 1999 http://dx.doi.org/10.1590/S0011-52581999000400001 Teoria Democrática e Política Comparada * Guillermo O’Donnell Para minha filha Julia, pela metonímia e muito amor. UMA NOTA PESSOAL Passei boa parte da minha vida acadêmica estudando um tema que detesto o regime autoritário e, mais tarde, um outro tema que me deu grande alegria, a falência desse regime. Durante esses anos, li muita coisa sobre teoria democrática e as democracias existentes, mas sempre o fiz, por assim dizer, de fora, isto é, como um tema importante, mas que não estava diretamente relacionado com minhas principais preocupações. Baseado nessas leituras e também nas grandes esperanças despertadas pelo fim dos vários tipos de dominação autoritária, pus-me a estudar, como tantos outros, os novos regimes que haviam nascido. Concentrei-me na América Latina, especialmente no sul do continente, embora também tenha me ocupado do que vinha ocorrendo na Europa meridional; além disso, a despeito de minhas sérias limitações no conhecimento dos idiomas, procurei manter-me razoavelmente informado sobre a situação dos países da Europa Central e Oriental e de alguns do Leste Asiático. Ao iniciar esses estudos, parti de duas premissas, tal como fazia na época a maior parte da literatura da área. A

Teoria Democrática e Política Comparada - Guillermo O'Donnell

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DadosversoimpressaISSN 0011-5258

Dadosv.42n.4Rio de Janeiro1999

http://dx.doi.org/10.1590/S0011-52581999000400001

Teoria Democrtica e Poltica Comparada*Guillermo ODonnell

Para minha filha Julia, pela metonmia e muito amor.

UMA NOTA PESSOALPassei boa parte da minha vida acadmica estudando um tema que detesto o regime autoritrio e, mais tarde, um outro tema que me deu grande alegria, a falncia desse regime. Durante esses anos, li muita coisa sobre teoria democrtica e as democracias existentes, mas sempre o fiz, por assim dizer, de fora, isto , como um tema importante, mas que no estava diretamente relacionado com minhas principais preocupaes. Baseado nessas leituras e tambm nas grandes esperanas despertadas pelo fim dos vrios tipos de dominao autoritria, pus-me a estudar, como tantos outros, os novos regimes que haviam nascido. Concentrei-me na Amrica Latina, especialmente no sul do continente, embora tambm tenha me ocupado do que vinha ocorrendo na Europa meridional; alm disso, a despeito de minhas srias limitaes no conhecimento dos idiomas, procurei manter-me razoavelmente informado sobre a situao dos pases da Europa Central e Oriental e de alguns do Leste Asitico.

Ao iniciar esses estudos, parti de duas premissas, tal como fazia na poca a maior parte da literatura da rea. A primeira delas que existe um corpo suficientemente claro e consistente de teoria democrtica; a segunda, que esse corpus terico apenas requer modificaes marginais para servir como ferramenta conceitual adequada ao estudo das novas democracias. Estas premissas so muito convenientes, pois nos permitem "navegar" em estudos comparativos sem muita preparao prvia ou grandes dvidas tericas. Elas aparecem em grande parte da bibliografia dedicada a investigar se as novas democracias se "consolidaro" ou no, as relaes dos novos regimes com as polticas de ajuste econmico e as instituies tpicas desses regimes Parlamento, Poder Executivo, partidos. Creio que as anlises institucionais tm produzido conhecimentos valiosos, embora muitas vezes excessivamente limitados s caractersticas formais das instituies. Com relao aos estudos sobre "consolidao democrtica", j manifestei em outros trabalhos (ODonnell, 1996a; 1996b) meu ceticismo ante a vagueza e a tendncia teleolgica desse conceito, de modo que no preciso me repetir aqui. Quanto aos estudos sobre ajuste econmico, a maioria focaliza exclusivamente as condies polticas que favorecem ou dificultam a adoo de medidas de ajustamento. A conseqncia desse enfoque limitado transformar os fatores polticos, inclusive o regime, em varivel dependente do ajuste o que nos velhos tempos seria considerado um caso de flagrante "economicismo". O foco desses estudos to estreito que at recentemente excluiu questes sociais e mesmo econmicas de grande importncia, no s da tica da eqidade mas inclusive da perspectiva do prprio desenvolvimento1.

Da mesma maneira como faziam essas vertentes da literatura, meus primeiros estudos sobre as novas democracias (ODonnell, 19922) basearam-se nas premissas que acabei de mencionar: que existe um claro e consistente corpo de teoria sobre a democracia e que, com ele, possvel "viajar" confortavelmente no assunto. O problema o meu problema, pelo menos que hoje estou convencido de que a primeira premissa errada e a segunda, por conseguinte, impraticvel. Chegar a essa concluso me deixou desconcertado; ela privou-me das lentes com as quais acreditava poder dar incio imediato ao estudo das novas democracias. Vi-me ento obrigado a fazer um longo desvio intelectual, durante o qual internalizei, digamos assim, minhas leituras sobre a democracia e, por razes que esclareo adiante, retomei minhas antigas inquietaes em filosofia, na teoria da moral e no direito.

Outro aspecto dessa mudana de rumo intelectual foi que dei incio a uma srie de estudos em colaborao com outros pesquisadores, com o apoio institucional do Kellogg Institute for International Studies, da University of Notre Dame. Esses trabalhos trataram de temas que considerei importantes para esclarecer certas peculiaridades empricas e tericas das novas democracias e das no to novas assim , em especial, mas no exclusivamente, na Amrica Latina. Um desses projetos fez um balano da situao geral da democracia no incio da dcada de 90, nas Amricas do Sul e do Norte3. Outro examinou a pobreza generalizada e a profunda desigualdade social na Amrica Latina4. Um terceiro analisou vrios aspectos do funcionamento dos sistemas jurdicos da regio. Quanto s suas concluses, basta dizer que mudamos o ttulo do livro que as incorporou de The Rule of Law... [O Estado de Direito...] para The (Un)Rule of Law... [O Fracasso do Estado de Direito...] (Mndez, ODonnell e Pinheiro, 19995). A mudana de rumo levou-me a algumas concluses que talvez caiba resumir aqui:

(a) Uma teoria adequada da democracia deveria especificar as condies histricas do surgimento de vrias situaes concretas, ou, dito de outra forma, deveria incluir uma sociologia poltica, de orientao histrica, da democracia6.

(b) Nenhuma teoria sobre qualquer tema social deveria omitir o exame dos usos lingsticos do seu objeto. A palavra democracia, desde tempos imemoriais, recebeu fortes (mas diferentes) conotaes morais, todas fundamentadas em uma viso dos cidados como agentes. Isso estende teoria da democracia, inclusive a de orientao emprica, os complicados mas inevitveis problemas da filosofia poltica e da teoria moral.

(c) Uma teoria da democracia da democracia tout court deveria tambm incluir, e em uma posio central, vrios aspectos da teoria do direito, visto que o sistema legal determina e respalda caractersticas fundamentais da democracia e, conforme explico mais adiante, da cidadania como agency*1.

(d) Os itens anteriores tm como conseqncia que a democracia no deveria ser analisada apenas no plano do regime, mas tambm no do Estado especialmente do Estado como sistema legal e de certos aspectos do contexto social geral.

Essas concluses esto incorporadas em textos que escrevi nos ltimos dez anos. Neles, examino certas caractersticas de algumas das novas democracias7, as quais dificilmente poderiam ser consideradas como transitrias ou apenas marginalmente diferentes do que pensam as teorias atuais. Nesses textos, questiono os estudos que "exportam" acriticamente as teorias para o caso das novas democracias8. No entanto, meus artigos abordam poucos temas de cada vez e logo voltam a problemas mais gerais da teoria democrtica, sem tentar analisar ou reconstruir a teoria como tal. Sinto agora que essa tentativa precisa ser feita; para tanto estou escrevendo um livro, cujos dois primeiros captulos, em verso preliminar, constituem este artigo. Trata-se, portanto, de um texto sobre a teoria da democracia tout court, e tem o indispensvel objetivo de limpar o terreno conceitual para futuras incurses mais ambiciosas. Mas suas origens intelectuais no estudo das novas democracias se tornaro visveis em algumas digresses comparativas que inseri ao longo da exposio.

INTRODUO

A recente emergncia de pases que so ou dizem ser democrticos colocou importantes desafios ao estudo comparativo dos regimes polticos9 e, inclusive, prpria teoria da democracia, embora nem sempre se perceba isto. Classificar um caso como "democrtico" ou no mais que um mero exerccio acadmico; tem implicaes morais, na medida em que na maior parte do mundo contemporneo existe um consenso de que a democracia, independente de como definida, um tipo de governo normativamente prefervel. Essa qualificao tambm traz conseqncias prticas, pois no atual sistema internacional o acesso a importantes benefcios tem estado dependente da avaliao da condio democrtica de um pas.

Existe, porm, muita confuso e divergncia quanto maneira de definir uma democracia. Veremos que algumas dessas divergncias so inevitveis, mas a confuso no. A necessidade de esclarecimento conceitual manifesta-se na notvel proliferao de qualificativos e adjetivos ligados ao termo democracia, conforme David Collier e Steven Levitsky (1997) registraram e analisaram com grande proveito. Na maioria das vezes, esses qualificativos se referem s novas democracias, sugerindo hesitaes por parte da literatura comparativa e dos estudos nacionais e regionais sobre os critrios que nos permitiriam qualificar um caso como "democrtico". O principal motivo dessas hesitaes que muitos desses novos regimes, e alguns dos mais antigos, no Sul e no Leste, apresentam caractersticas inesperadas ou divergentes das que uma democracia "deveria ter", segundo a teoria ou as expectativas de cada observador.

preciso notar que a lgica de associar qualificativos "democracia" pressupe um significado claro e consistente da palavra, que em parte modificado pelos adjetivos. Assim, o que varia e pode conter vaguides ou ambigidades so as categorias adicionadas ou subtradas do significado principal10. Mas essa presuno problemtica quando esse significado no est bastante claro. Como afirmou H. L. Hart (1961:14): "Uma definio que nos diz que uma coisa pertence a uma famlia no ajuda muito se temos apenas uma vaga ou confusa idia sobre a natureza dessa famlia de coisas."11 Creio que isso que se passa com o conceito de democracia: alm da proliferao de casos potencialmente relevantes, outro motivo da atual confuso reside no fato de que a teoria democrtica no a slida ncora conceitual que se costuma supor. Por essa razo, argumento neste artigo que as definies existentes de democracia, mesmo as que tm uma estrutura bsica com a qual concordo, precisam ser revistas e esclarecidas.

Alm desse problema, temos de enfrentar um outro, de ordem histrico-contextual. Praticamente todas as definies de democracia so uma condensao da trajetria histrica e da situao atual dos pases originrios12. Entretanto, as trajetrias e a situao de outros pases que hoje podem ser considerados democrticos diferem muito do que ocorreu nos originrios. Por isso, uma teoria de alcance adequado deveria dar conta dessas diferenas, tanto pelo que elas significam em si mesmas, quanto porque podem ser causa de caractersticas especficas ou de subtipos de democracias no universo dos casos relevantes.

Afirmo neste artigo que as teorias correntes sobre a democracia precisam ser revistas de uma perspectiva analtica, histrica, contextual e legal, ainda que isso acarrete uma certa perda de parcimnia [no sentido metodolgico N. T.]13. O resultado desses esforos pode ser a criao de instrumentos conceituais adequados elaborao de uma melhor teoria da democracia em suas vrias encarnaes. Este artigo tem a inteno de contribuir para essa tarefa, embora seja apenas um primeiro passo destinado a limpar o terreno conceitual. Portanto, no que diz respeito a diversos tpicos importantes (especialmente a relao entre o regime democrtico e algumas caractersticas do Estado e do conjunto do contexto social, bem como as diversas questes associadas idia de agency), limito-me a estabelecer as primeiras conexes. Estas servem principalmente para sinalizar os temas a serem desenvolvidos em futuros trabalhos.

Na prxima seo, examino algumas influentes definies da democracia e extraio concluses que abrem caminho para as sees posteriores.

A NOTA DE RODAP DE SCHUMPETER

Depois de afirmar que a "democracia um mtodo poltico [...] um certo tipo de arranjo institucional para chegar a decises polticas, legislativas e administrativas," Joseph Schumpeter (1975[1942]:242) enuncia sua famosa definio do "mtodo democrtico": "o arranjo institucional para chegar a decises polticas pelas quais os indivduos adquirem o poder de decidir mediante uma competio pelo voto popular." Esta a definio "minimalista" (ou "processualista") paradigmtica de democracia. No entanto, normalmente se esquece14 que Schumpeter no pra a. Em primeiro lugar, ele esclarece que "o tipo de competio pela liderana que define a democracia [implica] a livre competio por votos livres." (idem:217)15 Nessa mesma linha, faz uma advertncia ao comentar que "o mtodo eleitoral praticamente o nico disponvel para comunidades de qualquer tamanho", acrescentando ainda que isso no exclui outros modos menos competitivos "de garantir a liderana [...] e no se pode exclu-los porque, se o fizssemos, nos restaria um ideal totalmente irrealista." (idem:271) significativo que essa frase termine com uma nota de rodap onde se l: "Como no campo da economia, os princpios morais e legais da comunidade tm algumas restries implcitas." (ibidem, nota 5) O significado dessas afirmaes, contrastando com a definio que Schumpeter acabara de enunciar, bastante nebuloso. A razo, acredito, que o autor compreendeu que estava prestes a abrir uma Caixa de Pandora: se a "competio pela liderana" tem uma relao com "os princpios legais e morais da comunidade", ento sua definio do "mtodo democrtico", ou de como ele funciona, acaba no sendo to minimalista quanto poderia sugerir uma leitura isolada da clebre definio.

Mais ainda, Schumpeter compreende que para haver "livre competio por um voto livre", preciso que se cumpram algumas condies externas ao processo eleitoral. Citando suas prprias palavras: "Se, pelo menos em princpio, todos so livres para concorrer liderana poltica apresentando-se ao eleitorado, isto exige na maioria dos casos, embora nem sempre, um grau considervel de liberdade de expresso para todos. Em especial, isso normalmente pressupe uma grande liberdade de imprensa." (idem:271-272, nfases no original) Em outras palavras, para que o "mtodo democrtico" exista, algumas liberdades bsicas, supostamente relacionadas com "os princpios morais e legais da comunidade", tambm devem existir, e na maioria dos casos, como Schumpeter faz questo de enfatizar, "para todos". Por fim, quando o autor volta sua definio e declarao anloga de que "a funo primordial do eleitorado [] gerar um governo," esclarece que "tive a inteno de incluir nessa frase a funo de derrub-lo." (idem:272; ver, tambm, pp. 269 e 273) Schumpeter deixa claro, embora no o explicite, que no est falando de um acontecimento isolado, mas de um modo de eleger e derrubar governos ao longo do tempo; sua definio desloca-se ento de um acontecimento nico, ou como freqentemente se diz, de um processo as eleies para um regime que se prolonga no tempo.

Nas pginas posteriores s passagens citadas, Schumpeter prope vrias "condies para o xito do mtodo democrtico": (1) uma liderana apropriada; (2) "a real abrangncia das decises de polticas pblicas no deve ser excessiva"; (3) a existncia de uma "burocracia bem treinada, de tradio e prestgio social, dotada de um forte senso do dever e de um esprit de corps no menos forte"; (4) os lderes polticos deveriam exercitar em alto grau o "autocontrole democrtico" e o respeito mtuo; (5) deveria tambm existir "uma alta dose de tolerncia com as diferenas de opinio," a propsito do que, voltando sua nota de rodap, Schumpeter acrescenta que "um carter nacional e hbitos nacionais de um certo tipo" so bem apropriados; e (6) "todos os interesses que tm importncia so praticamente unnimes no s na sua lealdade com o pas, mas tambm com os princpios estruturais da sociedade existente." (idem:289-296)

Essas afirmaes, mais uma vez, esto longe da clareza, tanto em si mesmas quanto em relao s conseqncias previstas por Schumpeter para o caso de faltarem as mesmas condies que enumera. Em primeiro lugar, ele no nos diz se cada uma dessas condies suficiente para "o xito do mtodo democrtico" ou se, como parece mais razovel, preciso que o conjunto delas se cumpra. Em segundo lugar, ele no nos diz se a "falta de xito" significa que o "mtodo democrtico" deveria ser suprimido em si mesmo ou se daria lugar a uma democracia reduzida (Collier e Levitsky, 1997). Se a resposta correta for a primeira, teramos ento de acrescentar definio de Schumpeter, pelo menos como condies necessrias, todo o leque de dimenses que transcrevi acima. Com isso, sua definio poderia ser qualquer coisa, menos minimalista. Se, por outro lado, a resposta correta for que se criaria algum tipo de democracia reduzida, ento, em vez de caracterizar integralmente o "mtodo democrtico", Schumpeter no teria conseguido oferecer uma tipologia capaz de diferenciar as democracias plenas das reduzidas.

Esses esclarecimentos, ressalvas, postulados de condies necessrias e aluses ao regime aparecem nas pginas imediatamente posteriores da clebre definio. No resta a menor dvida de que Schumpeter tem uma viso elitista da democracia: "Os eleitores que no fazem parte do Parlamento devem respeitar a diviso de trabalho entre eles prprios e os polticos que elegeram [...] devem compreender que, uma vez eleito um indivduo, a ao poltica problema deste e no deles." (1975:296) Mas uma definio elitista de democracia no necessariamente minimalista. A essa altura, j deve ter ficado claro que as vrias qualificaes introduzidas por Schumpeter do a entender que sua definio de democracia no minimalista, nem se concentra estreitamente no "mtodo" ou processo eleitoral, como supunham o prprio autor e a maioria dos seus comentadores.

Desejo argumentar que isso tambm acontece, implcita ou explicitamente, com todas as definies contemporneas tidas como "schumpeterianas", ou seja, minimalistas e/ou "processualistas"16. Dentre estas se destaca por sua contundncia a de Adam Przeworski: "Democracia um sistema em que os partidos perdem eleies. H partidos, ou seja, divises de interesses, valores e opinies. H competio organizada por regras. E h periodicamente vencedores e perdedores." (1991:10) Mais recentemente, o mesmo Przeworski e seus colaboradores propuseram uma definio semelhante, que denominam de "minimalista": democracia "um regime no qual os cargos governamentais so preenchidos em conseqncia da disputa de eleies. Um regime s democrtico quando a oposio pode concorrer, ganhar e assumir os cargos que disputou. Na medida em que esta definio pe o foco nas eleies, evidentemente minimalista [...] [isso], por sua vez, implica trs caractersticas: incerteza ex ante [...] irreversibilidade ex post e [...] [repetibilidade]." (Przeworski et alii, 1996:50-51) Note-se que, apesar de limitada s eleies, a irreversibilidade e, especialmente, a repetibilidade das eleies em que "a oposio tem alguma chance de conquistar cargos em conseqncia das prprias eleies" (idem:50)17, supe a existncia de condies adicionais, semelhantes quelas mencionadas por Schumpeter, para que esse tipo de sufrgio se realize. Para que a oposio tenha essas oportunidades, preciso, no mnimo, que tambm existam algumas liberdades bsicas.

Samuel Huntington, por sua vez, depois de declarar que est "seguindo a tradio schumpeteriana", define a democracia "[como um sistema poltico que existe] na medida em que seus mais poderosos decisores coletivos so escolhidos em eleies limpas19, honestas e peridicas, nas quais os candidatos competem livremente por votos e em que praticamente toda a populao adulta est apta a votar." Mas esse autor acrescenta (Huntington, 1991:7), como fazem Schumpeter, de modo explcito, e Przeworski, de modo implcito, que a democracia "tambm envolve a existncia das liberdades civis e polticas de palavra, imprensa, reunio e associao, que so indispensveis para o debate poltico e a conduo das campanhas eleitorais." Da mesma maneira, Giuseppe Di Palma (1990:16) diz que a democracia "tem como premissa [...] o sufrgio livre e isento em um contexto de liberdades civis, partidos competitivos, opo entre candidaturas, e instituies polticas que regulam e garantem os papis do governo e da oposio." Larry Diamond, Juan Linz e Seymour Lipset propem uma definio similar embora mais extensa:

"Um sistema de governo que atende a trs condies essenciais: concorrncia ampla e significativa entre indivduos e grupos organizados (especialmente os partidos polticos) para todas as posies de governo que tm poder efetivo, em intervalos regulares de tempo e com excluso do uso da fora; um nvel altamente includente de participao poltica na seleo dos lderes e das polticas pblicas mediante, ao menos, eleies peridicas e isentas, de modo a no excluir nenhum grupo social importante dentre a populao adulta; e um grau suficiente de liberdades civis e polticas liberdade de expresso, liberdade de imprensa, liberdade de formar e filiar-se a organizaes para garantir a integridade da competio e da participao poltica." (1990:6-7)De sua parte, Giovanni Sartori (1987:24), ainda que mais preocupado com "um sistema de governo majoritrio limitado pelos direitos da minoria" do que com eleies, acrescenta que "para haver democracia preciso que exista uma opinio pblica autnoma [...] [e uma] estruturao policntrica da mdia e seu jogo competitivo" (idem:98 e 110). Por ltimo, embora partindo de perspectivas tericas distintas, Dietrich Rueschemeyer et alii concordam que a democracia "implica, primeiro, a eleio regular, livre e isenta de representantes pelo sufrgio universal e igualitrio; segundo, a responsabilidade do aparelho de Estado perante o Parlamento eleito [...], e, terceiro, as liberdades de expresso e de associao, bem como a proteo dos direitos individuais contra a ao arbitrria do Estado." (1992:43)18 claro que essas definies se prendem a eleies de um tipo especfico, s quais acrescentam, na maioria das vezes de modo explcito, algumas condies simultneas, como as liberdades ou garantias consideradas necessrias e/ou suficientes para a existncia desse tipo de sufrgio. Algumas dessas definies se dizem minimalistas, no estilo de Schumpeter, mas na medida em que tm de supor, pelo menos implicitamente, algumas liberdades simultneas, essa pretenso no parece justificar-se. Por outro lado, dizendo-se minimalistas ou no, essas definies tm a importante vantagem de ser realistas: pelo menos no que se refere s eleies, incluem com razovel preciso atributos cuja ausncia ou presena podemos verificar empiricamente. Fao questo de repetir. Apesar de no inteiramente superpostas, todas essas definies incluem duas espcies de elementos: eleies limpas19 para a maioria dos cargos de alto nvel no governo, conforme estipulado constitucionalmente (salvo para os tribunais superiores, as foras armadas e a diretoria dos bancos centrais); e as liberdades ou garantias j mencionadas. Alm disso, as definies fazem referncia, embora muitas vezes implcita, a um regime que perdura no tempo, e no somente s eleies como acontecimentos isolados. Retornarei a esse ponto mais adiante.

Outras definies tambm pretendem ser realistas, mas no se qualificam como tal, pois propem caractersticas que ou no podem ser verificadas empiricamente, por no serem encontrveis em nenhuma democracia existente, ou postulam atributos demasiado vagos. Entre as primeiras, incluo as definies que continuam presas "democracia etimolgica" (Sartori, 1987:21), quando afirmam que o demos, ou o povo, ou uma maioria que de alguma forma "governa"20. No isso que acontece nas democracias contemporneas, em qualquer interpretao da palavra "governo" que implique a atividade deliberada de um agente, embora talvez tenha ocorrido de maneira ampla, mas ainda incompleta, em Atenas (Hansen, 1991). Outras definies procuram contornar essa objeo, mantendo a noo bsica do demos como um agente. Por exemplo, Philippe Schmitter e Terry Lynn Karl afirmam que "a democracia poltica moderna um sistema de governo em que os cidados responsabilizam os governantes por seus atos na esfera pblica, agindo indiretamente por meio da competio e da cooperao dos seus representantes eleitos." (1993:40, nfases minhas) O problema est nas palavras enfatizadas: nada se diz sobre o que significa "agindo indiretamente".

As definies realistas contrastam com as prescritivas aquelas que afirmam o que deveria ser a democracia na opinio do autor. As definies prescritivas pouco dizem sobre dois assuntos importantes: primeiro, como se deveria caracterizar as democracias realmente existentes (inclusive se, de acordo com essas teorias, deveramos mesmo consider-las como democracias); e segundo, como se deveria mediar, na teoria e no na prtica, a brecha existente entre as democracias definidas de maneira realista e as que so definidas de maneira prescritiva. Por exemplo, Sheila Benhabib diz que a democracia "um modelo para organizar o exerccio pblico e coletivo do poder nas principais instituies de uma sociedade, partindo do princpio de que as decises que afetam o bem-estar de uma coletividade podem ser entendidas como resultados de um processo de deliberao livre e racional entre indivduos concebidos moral e politicamente como iguais entre si." (1996:68, nfases minhas)21 Mais uma vez as palavras decisivas so as que esto enfatizadas; nada se diz sobre em que sentido, at que ponto e por quem as democracias "podem ser entendidas" como tendo satisfeito o requisito estipulado na definio. Objeo semelhante pode ser feita concepo de democracia de Jrgen Habermas, na medida em que, para caracterizar e legitimar a democracia e a legislao democrtica, ele se baseia na existncia de uma esfera deliberativa livre de impedimentos, que muito difcil de encontrar na prtica22.

Invoco agora uma outra definio realista, a de poliarquia, de Robert Dahl23. Prefiro essa definio a outras da mesma espcie porque ela oferece detalhes teis, e porque o termo "poliarquia" permite diferenciar a democracia poltica de outros tipos e espaos democrticos. Ela tem a mesma estrutura das demais definies realistas: primeiramente estipula alguns atributos das eleies (clusulas 1 a 4); em seguida, relaciona certas liberdades que Dahl chama de "direitos polticos primrios [os quais] fazem parte integrante do processo democrtico" (Dahl, 1989:170) (clusulas 5 a 7)24, entendidos como necessrios para que as eleies efetivamente contenham as caractersticas estipuladas. Neste ponto de minha argumentao, cabe-me definir o que entendo por eleies em um regime democrtico.

AS ELEIES EM UM REGIME DEMOCRTICO

Em um regime democrtico, as eleies so competitivas, livres, igualitrias, decisivas e includentes, e os que votam so os mesmos que, em princpio, tm o direito de ser eleitos os cidados polticos. Sendo as eleies competitivas, os indivduos tm pelo menos seis opes: votar no partido A; votar no partido B; no votar; votar em branco; anular o voto; ou adotar algum processo aleatrio para escolher uma opo entre as anteriores. Alm disso, os partidos concorrentes (que tm de ser, no mnimo, dois) devem ter oportunidades razoveis de dar a conhecer suas opinies aos eleitores efetivos ou potenciais. Para que seja uma verdadeira escolha, a eleio deve ser livre, no sentido de que os cidados no devero ser coagidos, nem quando esto decidindo seu voto nem no momento de votar. Para ser uma eleio igualitria, cada voto deve valer o mesmo que os demais e ser computado como tal, sem fraudes, independentemente da posio social, da filiao partidria ou de outros atributos de cada eleitor25. Finalmente, as eleies devem ser decisivas, em vrios sentidos. Primeiro, os vencedores devem tomar posse dos cargos para os quais foram eleitos. Segundo, com base na autoridade conferida aos seus cargos governamentais, os funcionrios eleitos devem poder tomar as decises que o marco democrtico legal e constitucional lhes autoriza. Terceiro, os funcionrios eleitos devem concluir seus mandatos nos prazos e/ou nas condies estipulados por essa estrutura institucional.

Eleies livres, igualitrias e decisivas implicam, como argumenta Adam Przeworski (1991:10), que governos podem perder eleies e devem acatar seus resultados. Esse tipo de eleio uma caracterstica especfica do regime democrtico, ou poliarquia, ou democracia poltica trs termos que usarei como equivalentes neste artigo. Em outros casos, pode at haver eleies (como em pases comunistas ou outros regimes autoritrios, ou na escolha do Papa, ou mesmo em algumas juntas militares), mas somente na poliarquia existe o tipo de eleio que satisfaz a todos os critrios acima mencionados (Sartori, 1987:30; ver, tambm, Riker, 1982:5).

Cabe advertir que os atributos antes especificados no dizem nada sobre a composio do eleitorado. J houve democracias oligrquicas, de sufrgio restrito, que satisfizeram os atributos especificados; acontece, porm, que, em conseqncia dos processos histricos de democratizao nos pases originrios, e de sua difuso em outros, a democracia adquiriu uma nova caracterstica, a da includncia: o direito de votar e de ser votado outorgado, com poucas excees, a todos os membros adultos de um pas26. Por razes de conciso, daqui por diante chamarei de eleies competitivas aquelas que renem as condies de ser livres, isentas, igualitrias, decisivas e includentes27.

DIGRESSO COMPARATIVA (1)

Como o carter decisivo das eleies no aparece nas definies atuais de democracia e de sufrgio democrtico28, preciso dar aqui uma explicao. Em um trabalho anterior, propus acrescentar esse atributo sob o argumento de que sua omisso mostra at que ponto as atuais teorias da democracia incluem pressupostos no examinados, que deveriam ser explicados para que elas adquiram uma adequada abrangncia comparativa. Em outras palavras, a literatura presume que uma vez realizadas as eleies e proclamados os vencedores, estes tomaro posse dos seus cargos para os quais foram eleitos e governaro com a autoridade e pelos prazos que a constituio lhes prescreve29. Isso , evidentemente, um reflexo da experincia das democracias originrias. Mas no necessariamente verdade. Em diversos pases houve casos em que os candidatos, depois de ganharem eleies que satisfaziam os atributos mencionados, foram impedidos de tomar posse, freqentemente por um golpe militar. Por outro lado, governantes democraticamente eleitos, como Boris Yeltsin e Alberto Fujimori, dissolveram anticonstitucionalmente o Congresso e destituram os ocupantes de altos postos no Poder Judicirio. Por fim, em casos como o do Chile contemporneo (e menos formalmente, mas com igual eficcia, em outros pases latino-americanos, africanos e asiticos), certas organizaes impedidas de participar do processo eleitoral, geralmente as foras armadas, mantm, de modo explcito, poder de veto ou "domnios reservados"30 que limitam substancialmente a autoridade dos funcionrios eleitos. Em todos esses casos, as eleies no so decisivas: no geram, ou deixam de gerar, algumas das conseqncias bsicas que supostamente deveriam acarretar.

OS COMPONENTES DE UM REGIME DEMOCRTICO, OU POLIARQUIA, OU DEMOCRACIA POLTICA

Recordemos que as definies realistas de democracia contm dois tipos de componentes. O primeiro consiste de postulados sobre o que exigido para se considerar uma eleio suficientemente competitiva. Trata-se de uma definio estipulativa31, equivalente que diz que "um tringulo uma figura plana delimitada por trs linhas retas". Estabelece que uma eleio ser considerada competitiva se cumprir cada um dos atributos enumerados. O segundo, no entanto, relaciona condies, designadas como liberdades, ou garantias, ou "direitos polticos primrios", que circundam eleies limpas. Essas liberdades so condies de existncia de um objeto eleies competitivas com o qual mantm uma relao de causalidade. As liberdades complementam a definio estipulativa com uma afirmao do tipo "para que exista X, tambm devem existir as condies A ... N." Como vimos ao tratar Schumpeter, nenhuma definio realista, ao que eu saiba, deixa claro se as condies que postula so necessrias e/ou suficientes em seu conjunto, ou se apenas aumentam a probabilidade de haver eleies competitivas. Essa impreciso sugere a existncia de alguns problemas que examinarei mais adiante, quando comentar sobre o terceiro aspecto dessas definies.

Vimos antes que um pressuposto freqentemente implcito nessas definies de democracia o de que elas no se referem a um acontecimento isolado, mas a uma srie de eleies que se prolongam em um futuro indeterminado. Ao dizer isso, entramos no tema da instituio. As eleies a que essas definies se referem so institucionalizadas: praticamente todos os atores, polticos ou no, consideram evidente que as eleies competitivas continuaro a ser realizadas indefinidamente, em datas estabelecidas por lei (nos sistemas presidencialistas) ou em circunstncias legalmente preestabelecidas (nos sistemas parlamentaristas). Isso faz com que os atores tambm admitam sem discusso que as liberdades simultneas continuaro em vigor. Quando essas expectativas so compartilhadas de modo generalizado pela populao, as eleies competitivas esto institucionalizadas32. Esses casos diferem no s daqueles dos regimes autoritrios como tambm daqueles em que, por mais que tenha havido no passado eleies competitivas, no existe a expectativa geral de que eleies semelhantes continuaro a ocorrer. Apenas no primeiro tipo de situao, os agentes relevantes ajustam racionalmente suas estratgias expectativa de que eleies isentas continuaro a ser realizadas. A confluncia dessas expectativas geralmente aumenta a probabilidade de que tal tipo de eleio de fato continue a ocorrer33. Em outros casos, as eleies deixaro de ser "o nico jogo existente"34, e os atores relevantes investiro em recursos extra-eleitorais como via de acesso s mais altas posies no regime35.

O ltimo termo exige esclarecimentos. Modificando um pouco a definio que Philippe Schmitter e eu formulamos (ODonnell e Schmitter, 1986:73, nota 1), entendo por "regime" os padres formais e informais, explcitos ou implcitos, que determinam os canais de acesso s principais posies de governo, as caractersticas dos atores admitidos ou excludos dessas posies e os recursos e estratgias que eles podem usar para alcan-las36. Quando institucionalizadas, as eleies so um componente central de um regime democrtico, j que so o nico meio de acesso (com a notvel exceo dos tribunais superiores, foras armadas e, eventualmente, dos bancos centrais) s principais posies de governo37. Na democracia, as eleies no so apenas competitivas; tambm so institucionalizadas. Esse tipo de eleio um dos elementos que definem um regime democrtico, ou poliarquia, ou democracia poltica.

Passemos agora a um assunto mais complicado, o das liberdades que circundam as eleies.

UM PRIMEIRO EXAME DAS LIBERDADES POLTICAS

Parece bvio que para a institucionalizao de eleies competitivas, sobretudo por envolverem expectativas de durao indefinida, essas eleies no podem existir sozinhas. preciso tambm haver, em torno das eleies, algumas liberdades ou garantias que e isso tem grande importncia continuem a vigorar entre uma eleio e outra. Caso contrrio, o governo do dia poderia facilmente manipular ou mesmo anular futuras eleies. Relembro que para Dahl as liberdades relevantes so as de expresso, associao e informao, e que outros autores propem, com maior ou menor detalhamento, liberdades semelhantes. Note-se, porm, que o efeito combinado das liberdades mencionadas por Dahl e outros autores no garante inteiramente que as eleies sero competitivas. Por exemplo, o governo poderia proibir que candidatos da oposio viajem pelo pas, ou poderia submet-los perseguio policial a pretexto de motivos no relacionados com sua condio de candidatos. Nesse caso, mesmo que estejam em vigor as liberdades relacionadas por Dahl, dificilmente se poderia aceitar que as eleies sejam competitivas. Isso significa que as condies propostas por Dahl e outros autores no so suficientes para garantir eleies limpas. Na realidade, trata-se de condies necessrias que, em conjunto, sustentam um juzo probabilstico: se estiverem presentes, haver, caeteris paribus, uma forte probabilidade de as eleies serem isentas.

Lembremos que os atributos das eleies competitivas so estipulados por definio38. Em troca, as liberdades "polticas" so derivadas por induo: resultam de uma fundamentada avaliao emprica sobre o impacto de diversas liberdades na probabilidade de as eleies serem competitivas. Essa avaliao regida pelo evidente propsito de encontrar um conjunto nuclear de liberdades "polticas"39, no sentido de que sua enumerao no se torne um inventrio intil de todas as liberdades que poderiam influir na iseno das eleies. O problema que, como os critrios de incluso de algumas liberdades e excluso de outras se baseiam em juzos indutivos, no possvel existir uma teoria que estabelea uma clara e slida linha de demarcao entre as condies includas (necessrias e, idealmente, suficientes em seu conjunto), de um lado, e as excludas, de outro. Esta uma das razes embora, como veremos, no a nica que explicam por que no h, e muito provavelmente no haver jamais, um acordo geral sobre quais so as liberdades "polticas". A est, a meu ver, o principal motivo da persistente atrao exercida pelas definies minimalistas da democracia e de sua no menos persistente dificuldade para limitar-se s eleies a Caixa de Pandora que Schumpeter procurou evitar, mas no conseguiu, continua entre ns.

At aqui examinei o que poderamos chamar de limites externos das liberdades ou garantias que cercam as eleies competitivas e as tornam altamente provveis, ou seja, a questo de quais liberdades incluir ou excluir desse conjunto. Mas h um outro problema que refora a concluso cptica a que cheguei antes; denomin-lo-ei de problema dos limites internos de cada uma dessas liberdades. Todas elas contm uma "clusula de razoabilidade" que, mais uma vez, permanece implcita na teoria da democracia, pelo menos na forma proposta pela maioria dos socilogos e cientistas polticos40. A liberdade de associao no inclui criar organizaes com fins terroristas; a liberdade de expresso tem limites, entre outras coisas, na legislao contra os delitos de calnia ou difamao; a liberdade de informao no impede a oligopolizao dos meios de comunicao de massa etc. Como determinar se essas liberdades so ou no efetivas? Certamente os casos que se aproximam de um ou outro extremo no causam problemas, mas h os que caem em uma zona de penumbra entre os dois plos. Novamente, a resposta a esses casos depende de juzos indutivos sobre at que ponto a frgil, ou parcial, ou intermitente existncia de certas liberdades ainda sustenta, ou no, a probabilidade de que as eleies sejam competitivas41. Outra vez, no existem bases tericas para dar uma resposta clara e firme a essa pergunta: os limites externos e internos das liberdades polticas so teoricamente indecidveis.

Outra dificuldade que os limites internos das liberdades enumeradas por Dahl, e de outras tambm potencialmente relevantes para a competitividade das eleies, sofreram mudanas significativas ao longo do tempo. Basta assinalar que certas restries liberdade de expresso e de associao que nos pases originrios eram consideradas aceitveis at pouco tempo atrs, hoje pareceriam claramente antidemocrticas42. Levando isso em conta, quo exigentes tero de ser os critrios que devemos aplicar s novas democracias (e s velhas democracias que no pertencem ao quadrante Noroeste do mundo)? Devemos aplicar os critrios hoje prevalecentes nos pases originrios ou os que estes adotaram no passado? Ou, ainda, devemos fazer em cada caso uma fundamentada avaliao indutiva dessas liberdades, tendo em vista a probabilidade de que permitam ou impeam a realizao de eleies competitivas? Na minha opinio, a ltima opo a mais razovel, mas ela nos joga em cheio na questo do carter indecidvel dessas liberdades, agora ainda mais complicado por sua variabilidade histrica.

Dadas essas razes, cheguei concluso de que existem e continuaro existindo divergncias nos crculos acadmicos e, por certo, no mbito da poltica prtica, a respeito de onde traar os limites externos e internos das liberdades que circundam e tornam provvel a existncia de eleies institucionalizadas e competitivas. Isso no se d por uma falha nas tentativas de enumerar essas liberdades. Elas so muito importantes, so fatores cruciais, so condies necessrias para a existncia de um regime centrado em eleies competitivas, e como tal merecem ser enumeradas. Alm de tudo, intuitivamente evidente, e pode ser verificado empiricamente, que a ausncia de algumas dessas liberdades (digamos, de expresso, associao ou movimento) elimina a probabilidade de haver eleies competitivas. Por outro lado, o carter indutivo das enumeraes e o correspondente problema dos seus limites externos e internos, revelam suas limitaes como enunciados tericos, de per se e em sua capacidade de persuaso intersubjetiva. Essas limitaes tornam a questo rigorosamente indecidvel. Conseqentemente, em vez de ignor-las ou tentar fixar artificialmente os limites internos e externos dessas liberdades, um caminho mais proveitoso consiste em estudar teoricamente as razes e implicaes desse enigma43.

Embora ainda tenhamos um longo percurso a fazer, com a anlise precedente chegamos a um ponto importante em si mesmo e que nos situa, por assim dizer, em um promontrio a partir do qual se podem vislumbrar os caminhos pelos quais teremos de transitar. Um primeiro comentrio que devo fazer neste momento de minha argumentao que concordei, embora com ressalvas e acrscimos, com os autores que propem definies realistas da democracia poltica. Na verdade, em relao ao texto j citado de Collier e Levitsky (1997), "precisei" suas definies, acrescentando alguns elementos que elas deixam implcitos. Penso que convm incluir expressamente nessa definio duas espcies de componentes: primeiro, eleies competitivas e institucionalizadas; segundo, apesar de seu carter indecidvel, um conjunto de liberdades que, de uma perspectiva racional porque derivada de atenta observao , parece ser necessrio para sustentar uma alta probabilidade de haver eleies livres e isentas. Outro comentrio que esse critrio no minimalista: no focaliza exclusivamente as eleies competitivas e no ignora as liberdades simultneas. Penso que uma definio apropriada de democracia poltica deve concentrar-se em um regime que inclui um tipo especfico de eleies, mas no se limita a este. Por outro lado, o critrio que proponho restritivo no sentido de que recusa incluir uma enumerao muito detalhada das liberdades relevantes, o que acabaria sendo inesgotvel e analiticamente estril.

Apesar de ainda ser necessrio incluir outros fatores no situados no plano do regime para se chegar a uma definio adequada de democracia, a definio realista e restritiva de regime democrtico til por vrias razes. Uma, de ordem conceitual e emprica, que ela permite gerar um conjunto de casos diferentes a partir da ampla e variada gama de exemplos de no-democracias, quer se trate de diferentes tipos de regime abertamente autoritrios, quer dos regimes que realizam eleies, embora no competitivas e no institucionalizadas44. A outra razo, emprica e tambm conceitual, que uma vez gerado tal conjunto de casos, abre-se a possibilidade de analisar e comparar as semelhanas e diferenas entre essas situaes e seus subconjuntos45.

A terceira razo ao mesmo tempo prtica e normativa: a existncia desse tipo de regime e das liberdades que lhe so simultneas, apesar das muitas deficincias persistentes em outras esferas da vida poltica e social, implica uma enorme diferena em relao ao regime autoritrio. No mnimo, essas liberdades criam a possibilidade de us-las como base de proteo ou de habilitao para a busca de ampliar os direitos existentes ou obter novos. Outra razo que ao longo da histria as pessoas se mobilizaram e correram riscos justamente para reivindicar esse tipo de regime e as liberdades que o acompanham. Parece claro que, alm das esperanas por vezes mticas em relao aos outros benefcios derivados da concretizao de liberdades polticas, a reivindicao desses direitos esteve no cerne das grandes mobilizaes que freqentemente precederam a instituio da democracia46. Pelo menos em relao aos pases ps-comunistas, h provas empricas de que grande parte das respectivas populaes reconhece e valoriza essas liberdades47. Ademais, se no levamos em conta que essas liberdades so importantes para muitas pessoas, no temos condies de entender o elevado apoio que a democracia recebe hoje em dia em todo o mundo, no obstante o desempenho com freqncia deficiente de seus governos48

Uma ltima razo , como as anteriores,. de ordem prtica e normativa. Tanto os dados das pesquisas citadas quanto numerosas observaes impressionistas sugerem que, sejam quais forem os significados adicionais atribudos palavra "democracia", a maioria das pessoas, na maior parte dos pases, inclui certas liberdades polticas e a realizao de eleies que, no seu entender, sejam razoavelmente competitivas. Na concepo popular, na linguagem dos polticos e dos jornalistas e tambm pelos critrios propostos nas definies acadmicas, que em parte por essa razo denominei de "realistas", a existncia das liberdades e de eleies basta para chamar um pas de democrtico. Esse qualificativo tem uma conotao normativa positiva, como evidencia o fato de que chamar um "pas" de democrtico uma metonmia: isto , designa o todo, um pas, por um atributo de conotao positiva ligado a uma de suas partes, o regime49.

Fao questo de sublinhar os argumentos precedentes porque chegamos a um ponto que se presta facilmente a mal-entendidos. De um lado, acredito ter deixado claro que um regime democrtico extremamente importante em si mesmo. Isto requer uma definio adequada desse regime; por isso propus que um regime que satisfaz os critrios realistas e restritivos j enumerados pode ser chamado de democracia poltica, ou equivalentemente, de poliarquia ou regime democrtico (j observei que estou usando esses trs termos como sinnimos). Levando em conta o uso prevalecente dentro e fora dos meios acadmicos, esse regime pode ser denominado simplesmente de democracia, mas, nesse caso, cabe lembrar que se trata de uma metonmia, ou seja o termo tem uma extenso50 maior que a de regime.

O motivo dessa advertncia que, embora o regime seja uma parte fundamental da questo, ela no se esgota a. Nisso me afasto dos tericos que preferem restringir o conceito de democracia tomando como referncia o regime. No restante deste texto, analiso algumas conexes do regime com outros temas que, a meu ver, tambm se incluem na problmatique da democracia. Antes, porm, resumo em algumas proposies os principais argumentos at aqui expostos:

I. Em uma definio realista e restritiva, o regime democrtico (ou poliarquia, ou democracia poltica) consiste de eleies competitivas e institucionalizadas, acompanhadas por algumas liberdades polticas.II. At as definies "minimalistas", "processualistas" ou "schumpeterianas", que se limitam a mencionar as eleies competitivas como o nico elemento caracterstico da democracia, pressupem a existncia de algumas liberdades bsicas, ou garantias, para que essas eleies existam. Sendo assim, tais definies no so, nem poderiam ser, minimalistas ou processualistas, como se dizem. III. As liberdades simultneas s eleies competitivas e institucionalizadas s podem ser derivadas por induo, tanto no que se refere s liberdades includas quanto aos limites internos de cada uma. Por conseguinte, nessa matria, impossvel chegar a um acordo geral que se baseie em critrios tericos claros e slidos51.IV. Apesar de indecidveis, j que algumas liberdades simultneas podem gerar uma alta probabilidade de haver eleies competitivas, convm explicit-las, tanto porque contribuem para uma definio adequada do regime de que fazem parte, quanto porque ajudam a elucidar as divergncias que inevitavelmente cercam a questo.V. Uma definio realista e restritiva de poliarquia, ou democracia poltica, ou regime democrtico, delimita um espao emprico e analtico que permite distinguir esse tipo de regime de outros, com importantes conseqncias normativas, prticas e tericas.A seguir, sem deixar de ter em vista nosso objetivo a discusso e elucidao de alguns aspectos da teoria democrtica e suas implicaes comparativas , fao uma mudana de perspectiva.

UMA APOSTA INSTITUCIONALIZADA

Vimos que em um regime democrtico cada eleitor tem pelo menos seis opes. Cabe lembrar que este no o nico direito que a democracia reconhece a praticamente todos os adultos residentes no territrio de um Estado. Cada eleitor tem ainda o direito de tentar ser votado. O fato de que ele deseje ou no exercer esse direito irrelevante porque, tendo o direito de ser eleito, cada adulto traz consigo a autoridade potencial de participar de decises governamentais. Os eleitores no somente votam; alm disso, e conforme define a legislao relativa aos cargos para os quais so eleitos, eles tambm podem participar da responsabilidade de tomar decises coletivas de carter impositivo e eventualmente aplicar a coao estatal. O que importa no direito de votar e de ocupar cargos eletivos que isso define um agente. Trata-se de uma definio jurdica; os direitos so atribudos pelo sistema legal maioria dos adultos que habitam no territrio de um Estado, com algumas excees igualmente definidas por lei. uma atribuio de alcance universalista, aplicvel a todos os adultos independentemente de sua condio social e de suas caractersticas adscritas, com exceo da idade e da nacionalidade. Atribuir a todo adulto a condio de agente, implica conferir-lhe a capacidade de tomar decises consideradas suficientemente razoveis para produzir importantes conseqncias, tanto para a agregao dos seus votos quanto para seu desempenho em funes governamentais. Pode ser que os indivduos no exeram esses direitos, mas o sistema jurdico os conceitua como igualmente capazes de exercit-los, assim como de desempenharem as obrigaes correspondentes (por exemplo, abster-se de atos fraudulentos ou da violncia no momento de votar, ou cumprir as obrigaes de cargos pblicos dentro dos limites estipulados pela lei).

Essa a agency a presuno de autonomia e razoabilidade suficientes para tomar decises cujas conseqncias acarretam obrigaes de responsabilidade , pelo menos nas relaes diretamente associadas com um regime fundado em eleies competitivas. Talvez porque a atribuio da condio de agente se tornou um lugar-comum nos pases originrios, tendemos a esquecer quo extraordinria e recente sua existncia.

Vista desse ngulo, a democracia no o resultado de nenhum tipo de consenso, ou deciso individual, ou contrato social, ou processo deliberativo. A democracia resulta de uma aposta institucionalizada. O sistema jurdico (incluindo-se, naturalmente, as constituies) confere a cada indivduo mltiplos direitos e obrigaes. No uma questo de escolha; ao nascer (e mesmo antes, em vrios sentidos) os indivduos esto imersos em uma trama de direitos e obrigaes determinados e respaldados pelo sistema jurdico do Estado-territrio onde vivem. Somos seres sociais bem antes de tomarmos decises conscientes, e nas sociedades contemporneas uma parte importante de nosso ser social definida e regulada por lei. Este fato tambm bvio e tem importantes conseqncias. Entretanto, ignorado pelas teorias contemporneas da democracia.

A atribuio de direitos e obrigaes universalista52: presume-se que cada indivduo aceite o fato de que, com algumas excees especificadas pelo prprio sistema legal, todos gozem dos mesmos direitos e das mesmas obrigaes que lhes cabem. Alguns desses direitos se referem a um modo peculiar de tomar decises coletivas de carter impositivo por indivduos escolhidos em eleies competitivas e institucionalizadas.

O que essa aposta? que, em uma democracia, cada ego deve aceitar que praticamente todos os demais adultos participem votando e eventualmente sendo votados do ato (as eleies competitivas) que determina quem os governar por certo tempo. uma aposta institucionalizada, porque imposta aos indivduos a despeito de sua vontade: cada ego tem de aceitar esse fato, ainda que ache que permitir que certos indivduos votem ou sejam votados um grave erro. No resta outra opo a cada ego seno aceitar o risco de que pessoas "erradas" sejam escolhidas como resultado de eleies competitivas. Cada ego deve correr esse risco53, porque ele determinado e sustentado pelo sistema legal de uma democracia. Ego pode no gostar ou mesmo ter srias objees54 a que alter tenha direitos iguais aos seus de votar e ser votado. Mas esta no uma questo de escolha para ego. Durante sua vida, ego pode escolher muitos aspectos de sua vida social, mas no pode evitar que lhe atribuam, antes e a despeito de sua vontade, um conjunto de direitos e obrigaes. Ego est imerso em um sistema legal que estabelece esses mesmos direitos para alter e probe ego de ignor-los, transgredi-los ou neg-los. Em virtude do local de nascimento ou da nacionalidade, e em muitos aspectos pelo simples fato de residir em dado pas, ego adquire direitos e obrigaes com relao a alter e ao Estado. Insisto que isso no uma questo de escolha: ego um ser social constitudo e configurado pelos direitos e obrigaes promulgados e sustentados pelo Estado se necessrio, por coero.

Quando se instala uma democracia, h evidentes excees ao que acabo de dizer. Existe ento um momento de escolha: na medida em que os direitos e as obrigaes so determinados por organismos constitucionais escolhidos em eleies limpas, ou ratificados por referendos isentos, esses direitos expressam o acordo majoritrio e, portanto, suficiente para a institucionalizao da aposta democrtica. Passado esse momento, as sucessivas geraes so constitudas e configuradas ab initio em e por relaes legalmente definidas pela aposta democrtica: cada indivduo tem de correr o risco de as eleies darem resultados que julgam equivocados. claro que isso est longe de esgotar toda a questo. Mas importante porque significa que descobrimos ento uma outra caracterstica especfica da democracia poltica contempornea: o nico regime que resulta de uma aposta institucionalizada, universalista e includente. Todos os demais, quer incluam ou no eleies, impem algum tipo de restrio a essa aposta, ou a suprimem completamente.

Velhos ou novos, os regimes democrticos, depois do seu momento fundador, so o produto dessa aposta e ficam profundamente marcados por esse fato. Repito: a aposta institucionalizada55. No depende das preferncias dos portadores desses direitos, nem da agregao de seus votos56, nem de algum mtico contrato social ou processo deliberativo. A aposta uma instituio legalmente promulgada e sustentada que todos devem respeitar dentro do territrio delimitado por um Estado. Embora, em si mesma, essa expectativa no implique a obrigao moral de aceitar um regime democrtico e obedecer suas autoridades57, uma expectativa exigente, entrelaada no sistema legal e sustentada pelo poder coercitivo do Estado.

Essa aposta sustentada pela lei define parmetros amplos, mas importantes do ponto de vista operacional, para a racionalidade individual: as tentativas de ignorar, transgredir ou negar os direitos que ela confere a alter normalmente trazem graves conseqncias negativas para quem as perpetua. Em suas interaes com alter, ao menos na esfera poltica delimitada por eleies competitivas, geralmente convm a ego reconhecer e respeitar os direitos do outro. Esse interesse pode ser reforado por motivos altrustas ou orientados para o bem-estar coletivo, mas em si mesmo implica o reconhecimento de outros como portadores de direitos idnticos aos de ego. esse o germe de uma esfera pblica que consiste dos reconhecimentos mtuos baseados na atribuio universalista de determinados direitos e obrigaes.

Recapitulemos agora duas importantes concluses a que chegamos na discusso precedente. A primeira uma definio da cidadania poltica como o correlato individual de um regime democrtico: ela consiste da atribuio legal e do efetivo gozo dos direitos implicados na aposta, isto , ao mesmo tempo as liberdades simultneas (basicamente de expresso, associao, informao e livre movimento, apesar de seu carter indecidvel) e o direito de participar de eleies competitivas, inclusive de votar e ser votado. A segunda que, feita essa definio, samos do plano do regime para o do Estado, entendido em dois sentidos: de um lado, como uma entidade territorial que fixa os limites de quem portador dos direitos de cidadania poltica58; de outro, como um sistema legal que determina e respalda a atribuio universalista e includente desses direitos. A aposta democrtica e a cidadania poltica pressupem uma outra, e ambas supem o Estado, como delimitao territorial e como sistema legal.

A anlise anterior introduziu complicaes que devemos verificar com cuidado. Recordemos que a Proposio 1 estipula que um regime democrtico consiste de eleies limpas e institucionalizadas juntamente com algumas liberdades "polticas" simultneas. Pois bem, ao lado dos aspectos do Estado que acabo de mencionar, encontramos dimenses que no pertencem ao regime (pelo menos como o defini). Na realidade, esses aspectos tm duas faces. De um lado, esto entrelaados em um regime democrtico, no sentido de que so condies necessrias para sua existncia; de outro, conforme discuto abaixo, esses aspectos so caractersticos da "democraticidade" de pelo menos algumas dimenses do Estado e no s do regime.

Neste ponto de minha argumentao, pode ser til acrescentar as seguintes proposies:

VI. A cidadania poltica consiste da atribuio legal e do gozo efetivo de direitos comprometidos com a aposta democrtica, isto , as liberdades simultneas e os direitos de participao em eleies competitivas, inclusive o de votar e ser votado. VII. Um regime democrtico (ou democracia poltica, ou poliarquia) inclui: (a) um Estado que delimita dentro do seu territrio aqueles que so considerados cidados polticos, e (b) um sistema legal vinculado a esse mesmo Estado que outorga a cidadania poltica, conforme definida na proposio anterior, sobre uma base universalista e includente. Essas duas proposies nos levam a um terreno que devemos explorar com ateno.

AGENCY E DIREITOS

Como a adoo da aposta que concede direitos polticos universalistas muito recente, precisamos fazer uma digresso histrica. Ela nos permitir rastrear as origens pr-polticas da agency e depois relacion-la com a democracia contempornea.

Sabe-se que, nos pases originrios, muitas categorias sociais foram excludas do sufrgio durante muito tempo, e portanto, obviamente, da possibilidade de serem votadas: camponeses, operrios manuais, empregados domsticos (e, em geral, os no proprietrios ou os que possuam baixo nvel de instruo), os negros nos Estados Unidos, os ndios nesse mesmo pas e em muitos outros, alm, decerto, das mulheres. Os direitos polticos s foram concedidos s mulheres durante o sculo XX e, em vrios pases, somente depois da Segunda Guerra Mundial59. Por outro lado, pases do Sul e do Leste adotaram em pocas distintas o sufrgio includente, muitas vezes de maneira abrupta. Mas as inmeras variaes das democracias "tutelares" ou "de fachada" que surgiram nessas regies, assim como, bvio, nos regimes abertamente autoritrios, implicavam a negao da aposta democrtica.

A histria da democracia , em toda parte, a histria da difcil aceitao dessa aposta. A histria dos pases originrios foi marcada por previses catastrficas,60 e s vezes por violenta resistncia61, das classes privilegiadas que se opunham extenso dos direitos polticos a setores sociais tidos como "no confiveis" ou "indignos" de os possuir. Em outras latitudes, por meios com freqncia ainda mais violentos e excludentes, essa mesma extenso sofreu resistncia em inmeras ocasies.

Quais os fundamentos dessa recusa? Tipicamente, a falta de autonomia e a falta de responsabilidade em outras palavras, negao da agency. Presumia-se que somente alguns indivduos (seja por sua instruo superior ou pela posse de propriedades, seja por fazerem parte de uma vanguarda poltica capaz de decifrar o sentido da histria ou de uma junta militar que entendeu as exigncias da segurana nacional etc.) teriam a correta motivao para assumir responsabilidades ou para participar das decises coletivas. claro que as vanguardas revolucionrias, as juntas militares e assemelhados criaram regimes autoritrios, enquanto nos pases originrios os privilegiados deram origem, na maior parte dos casos, a regimes democrticos oligrquicos, de carter no-includente para si prprios e politicamente excludente para todo o resto da populao.

Como vimos rapidamente na seo anterior, h uma idia central por trs de tudo isso: a agency. Essa idia envolve complicadas questes filosficas, morais e psicolgicas62. Contudo, para os fins deste artigo, basta dizer que um agente algum concebido como dotado de razo prtica, ou seja, que faz uso de sua capacidade cognitiva e motivacional para tomar decises racionais em termos de sua situao e de seus objetivos, e dos quais, salvo prova conclusiva em contrrio, considerado o melhor juiz63. Essa capacidade faz do sujeito um agente moral, no sentido de que normalmente ele se ver (e ser visto pelos outros) como responsvel por suas escolhas e, ao menos, pelas conseqncias diretas que delas decorrem. Sem dvida, as obras que abordam esse tema pelos mais diversos ngulos introduzem vrias ressalvas ao que acabo de afirmar. Apesar de importantes, essas restries no nos impedem de seguir adiante levantando uma outra questo que tem sido negligenciada pela teoria democrtica.

A CONSTRUO LEGAL, PR-POLTICA, DA AGENCY

A presuno de agency64 outro fato institucionalizado, que nos pases originrios mais antigo e mais arraigado do que a aposta democrtica e as eleies competitivas. Essa presuno no apenas um conceito moral, filosfico ou psicolgico; legalmente determinada e sustentada pela lei. A presuno de agency constitui cada indivduo como um sujeito jurdico, portador de direitos subjetivos. O sujeito jurdico faz escolhas pelas quais responsabilizado, porque o sistema legal o concebe como um ser autnomo, responsvel e racional ou seja, um agente.

Essa concepo de agency passou a ser o ncleo dos sistemas jurdicos dos pases originrios bem antes da democracia. O reconhecimento institucionalizado (isto , legalmente determinado e respaldado, em geral aceito como evidente) de um agente portador de direitos subjetivos foi o resultado de um longo e complicado processo, cujos precursores so alguns sofistas, Ccero e os esticos (ver, esp., Villey, 1968). Posteriormente, deram contribuies decisivas o minucioso trabalho jurdico da Igreja Catlica e das universidades medievais, o nominalismo de William of Ockam (ver, esp., Berman, 1993; Villey, 1968), e, no fim do perodo, a influente elaborao, primeiro, dos escolsticos espanhis do sculo XVI, e depois de Grotius (1583-1645), Pufendorf (1632-1694) e outros tericos do direito natural (ver Van Caenegem, 1992; Gordley, 1991; Berman, 1993). Nessa poca, o que veio a ser chamado de "teoria consensual do contrato" e a viso de agency que dela decorria alcanaram madura expresso. Como disse James Gordley (1991:7):

"Os ltimos escolsticos e os juristas do direito natural haviam admitido o princpio fundamental de que os contratos so realizados pela vontade ou consentimento das partes [...] [em contraste com as concepes de Aristteles e Santo Toms de Aquino] entenderam que um contrato era simplesmente o resultado de um ato de vontade, no o exerccio de uma virtude moral. As partes somente estavam obrigadas ao que haviam concordado voluntariamente, no a deveres originados da essncia ou natureza do contrato." (ver, tambm, Lieberman, 1998)65 Nessa poca, Hobbes props uma tese extremamente elaborada sobre a agency, baseada em direitos subjetivos, e a transps para a esfera da poltica. Essa mesma concepo impregnou a viso de mundo do Iluminismo66, e, aps Hobbes, foi continuada por Locke, Rousseau, Stuart Mill, Kant e outros, apesar das divergncias desses autores em outras questes. Alm disso e este argumento importantssimo para minha anlise , a concepo de agency foi incorporada ao ncleo da teoria do direito por juristas como Jean Domat (1625-1695) e Robert Pothier (1699-1772), cujas obras tiveram profunda influncia sobre Blackstone, Bentham e outros tericos ligados tradio do direito consuetudinrio, assim como nos cdigos franceses e alemes da primeira metade do sculo XIX67.

Essas concepes de agency individual e seu corolrio, a teoria consensual do contrato, opem-se a outra concepo do direito, que provm de Aristteles e Santo Toms de Aquino e que em sua verso organicista continua a ser muito influente em alguns pases fora do quadrante Noroeste do mundo68. Segundo essa viso, a lei diz respeito ao justo ordenamento da polis, onde cada parte deve ter um lugar e uma proporo adequados. O axioma suum cuique jus tribuere exprime essa concepo arquitetnica da justia e da lei como seu instrumento: no h propriamente direitos individuais, mas direitos e deveres que so atribudos, a bem do justo ordenamento do todo, a cada uma das categorias ou status que compem uma sociedade organicamente concebida (cidados, estrangeiros e escravos ou, em outros contextos, reis, nobres, burgueses, plebeus etc.)69.

O surgimento da idia de agency e seus direitos subjetivos representou uma revoluo copernicana: a lei deixou de ter a misso de designar corretamente as partes da totalidade social, e, por conseguinte, de realizar a justia social para todos. Em troca, como j se inferia do nominalismo de Ockam e, mais tarde, do de Hobbes, a lei visava as nicas entidades verdadeiramente existentes os indivduos. A misso da lei a de determinar e proteger a potestas dos indivduos, ou seja, sua capacidade de fazer valer sua vontade em todas as esferas no proibidas por essa mesma lei. O indivduo, concebido como portador dos direitos subjetivos que sustentam sua potestas, o objeto e a finalidade da lei70. De acordo com essa concepo, se eventualmente se produz uma boa ordem social, esta um subproduto (como se afirmar mais tarde a respeito do mercado, em consonncia com essa mesma viso) da soma das conseqncias da existncia dos direitos subjetivos.

claro que tudo isso constitui um captulo da histria do liberalismo. Muitos autores j assinalaram que, como doutrina poltica, o liberalismo condensou as cruis lies deixadas pelas guerras religiosas dos sculos XVI e XVII. Mas preciso acrescentar que boa parte do trabalho de construo do indivduo que Hobbes, Locke, Kant e outros fizeram j havia sido realizada pelas teorias filosficas e, especialmente, jurdicas que citei. O agente portador de direitos subjetivos j estava esboado nessas teorias, quase pronto para ser transposto esfera da poltica por esses grandes autores liberais.

Embora as reflexes anteriores possam parecer muito distantes de uma teoria da democracia contempornea, no bem a verdade. Para demonstr-lo, nada melhor do que invocar Max Weber e seu colossal esforo para explicar o surgimento e as caractersticas singulares do capitalismo ocidental. Sabe-se que Weber no atribuiu status explicativo privilegiado a nenhuma das dimenses que utilizou. Suas idias so especialmente importantes para minha anlise, porque, ao contrrio de grande parte da cincia poltica contempornea, ele deu grande ateno aos aspectos legais, interpretando seu funcionamento como um contraponto emergncia dos Estados, do capitalismo, das classes e dos tipos de autoridade poltica. Weber argumentou que o surgimento do que chamou de direito racional-formal (um repositrio de direitos subjetivos, apresso-me a acrescentar) no pode ser atribudo basicamente s demandas ou interesses da burguesia, pois quando esses processos comearam ainda no existia uma burguesia capitalista, no sentido moderno (Weber, 1968:847 e passim). A criao desses direitos se explica antes pelo trabalho secular que esbocei acima, pelos interesses corporativos dos profissionais do direito que levaram a cabo essa obra e, principalmente, pelos interesses dos principais empregadores desses profissionais os governantes empenhados na formao do Estado e, por conseguinte, interessados em melhorar seu crdito e arrecadao fiscal, bem como em submeter ao seu controle direto a populao dos territrios que pretendiam governar. Para este fim, era fundamental eliminar as ordens estamentais concebidas de forma organicista (especialmente as feudais e as cidades autnomas, bem como a ampla jurisdio que o direito cannico reivindicava), e com estas as concepes aristotlicas e tomistas da lei. Esses governantes encontraram no carter universalizante dos direitos subjetivos um meio eficaz para afirmar sua soberania sobre todos os indivduos residentes em seus territrios71. Apesar de toda a violncia empregada, os contornos bsicos do atual mapa poltico dessa parte do mundo foram enfim traados72.

Pode-se dizer que o processo de construo da concepo jurdica da agency individual foi tudo menos linear e pacfico. Desenvolveu-se atravs de uma relao mutuamente dinamizadora com outro processo: o aparecimento e desenvolvimento do capitalismo. Como novamente nos recorda Weber, e nesse sentido tambm Marx, o reforo mtuo dos processos de formao do Estado, desenvolvimento do capitalismo e expanso do direito racional-formal teve, entre outras conseqncias, a abolio da servido73 e o aparecimento do trabalho "livre". Essa liberdade consistiu do direito subjetivo de celebrar contratos pelos quais indivduos privados da propriedade dos meios de produo vendem sua fora de trabalho. O trabalhador das relaes capitalistas desde cedo um sujeito jurdico, portador de direitos (no incio, poucos) e de obrigaes que "livremente" ajusta com o empregador, como cabe a um indivduo concebido juridicamente como agente. Isso tambm vale para as responsabilidades criminais, que deixaram de ser atribudas coletivamente ao cl, famlia ou aldeia, e foram transferidas aos respectivos indivduos de novo, em concordncia com sua condio de agente74.

Gostaria de ressaltar que a primeira construo dos direitos subjetivos, especialmente do direito de propriedade e de contrato para o intercmbio de bens e servios, um legado do capitalismo e do processo de formao do Estado, no do liberalismo ou da democracia poltica, que surgiram bem depois de os direitos j estarem amplamente difundidos nos pases originrios e tomarem forma detalhada nas doutrinas jurdicas75. O mesmo se pode dizer sobre a construo do direito de propriedade individual, exclusiva e vendvel76. Examinando a convergncia dessas histrias, devemos lembrar que os Estados e o capitalismo criaram mercados territorialmente delimitados, com o que contriburam para a construo de uma densa trama de direitos subjetivos, inclusive de uma rede de tribunais que aplicavam esses direitos, bem antes de o liberalismo e a democracia entrarem em cena77.

Por outro lado, muitos autores chamaram a ateno para o fato de que a construo legal de um agente portador de direitos subjetivos, ao omitir as condies reais de exerccio desses direitos e excluir outros, avalizou e contribuiu para reproduzir relaes extremamente desiguais entre capitalistas e trabalhadores78. Mas essa construo inclua corolrios potencialmente explosivos. Primeiro, se a ego se atribui a condio legal de agente em determinadas esferas da vida que, para ele e para o conjunto da sociedade, so de suma importncia, levanta-se naturalmente a seguinte pergunta: por que se deveria negar essa atribuio a outras esferas e, de todo modo, quem deveria ter autoridade para tomar tal deciso? O segundo corolrio no menos explosivo, ainda que hoje esteja muito menos resolvido do que o anterior: se a agency implica escolhas, que opes reais poderiam ser consideradas como razoavelmente consistentes com a condio de agente de ego?

A resposta primeira pergunta est na histria da expanso dos direitos subjetivos, inclusive o de sufrgio, at sua atual includncia. Essa histria foi escrita atravs dos numerosos conflitos ao fim dos quais as classes dangereuses, depois de terem aceito morrer em massa na guerra para defender seus pases (ver, esp., Levi, 1997; Skocpol, 1992) e de trocarem a revoluo pelo Estado de Bem-Estar79, foram enfim admitidas como partcipes da aposta democrtica isto , obtiveram a cidadania poltica80. Enquanto isso, outros processos continuavam a se desenvolver nos pases originrios. Um deles foi a definio do mapa da Europa Ocidental e da Amrica do Norte como resultado de bem-sucedidos e freqentemente cruis processos de formao do Estado (Tilly, 1985; 1990). Outro foi a expanso dos direitos na esfera civil, um processo que vrios tericos alemes chamaram de "juridificao", no duplo sentido de uma especificao de direitos e deveres j reconhecidos e do acrscimo de novos81.

O resultado desses processos foi que, quando em algum momento do sculo XIX a maior parte dos pases do Noroeste adotou a democracia no includente, a maioria da sua populao masculina (e, embora em menor extenso, tambm a feminina) j contava com uma srie de direitos subjetivos que regulavam numerosos aspectos de sua vida82. No se tratava ainda dos direitos polticos da aposta democrtica; eram direitos civis relativos a atividades econmicas e sociais privadas. T. H. Marshall (1964) resumiu-os no conceito de "cidadania civil"83 e, mais recentemente, Habermas (1996) os denominou de "direitos burgueses"84. Em um trabalho anterior (ODonnell, 1999c), discuti esse tema e formulei algumas restries s tipologias desenvolvimentistas que esses autores propem. O que desejo ressaltar aqui que quando, nos pases originrios, se comeou a discutir a questo da plena incluso poltica, j existia um rico repertrio de critrios legalmente sancionados e elaborados sobre a atribuio de agency a um grande nmero de indivduos. verdade que a restrio da abrangncia desses direitos esfera privada parece muito limitada para os nossos padres contemporneos. Mas tambm certo que, graas a esse processo de expanso da atribuio de direitos subjetivos, preparou-se o terreno para estender cidadania poltica os conceitos, as leis, a jurisprudncia e as ideologias originadas da cidadania civil85.

Nessa poca, s artificialmente se poderia separar o liberalismo, como uma doutrina poltica, da histria jurdica que acabo de resumir. Muitos direitos que, desde o incio, o liberalismo buscava proteger so os mesmos que j tinham sido aperfeioados e extensamente aplicados pela lei. claro que com o tempo o liberalismo os ampliou, mas sempre o fez definindo-os como direitos subjetivos, seguindo suas prprias premissas. Foi na qualidade de defensores dessa espcie de direitos que os liberais conseguiram aprovar Constituies e as Constituies, independentemente do que possam conter a mais, protegem direitos subjetivos86. Foram essas as Constituies que institucionalizaram pela primeira vez a aposta democrtica, embora se baseassem no sufrgio restrito.

Quando, por fim, a aposta includente foi aceita nos pases originrios, muitas pessoas (mas, certamente, nem todas) puderam perceber que essa deciso no era um salto no vazio. Os governos da poca j estavam limitados por direitos subjetivos elaborados e amplamente difundidos, alguns consagrados como normas constitucionais87. Tratava-se, ademais, de sistemas representativos cujo funcionamento atenuava o temor causado pelas experincias de democracia direta ou de governo de massas, desde Atenas at a Revoluo Francesa. J tinham sido tambm adotadas, ou estavam prestes a s-lo, outras medidas liberais de salvaguarda, de fundas razes no passado (embora com histrias diferentes das que narrei aqui), principalmente a determinao de prazos aos mandatos dos funcionrios eleitos e a diviso de poderes no interior do regime88.

Esses arranjos institucionais convergiram para configurar o princpio central do liberalismo: todo governo deve ser um governo limitado, pois diz respeito a portadores de direitos promulgados e respaldados pelo mesmo sistema legal que o prprio governo deve obedecer e do qual deriva sua autoridade. Repito que essa idia fundadora de agentes portadores de direitos subjetivos, que geram uma potestas individual que no pode ser violada ou negada, salvo por razes cuidadosamente especificadas e definidas por lei, j estava enraizada em algumas teorias jurdicas. Essas teorias primeiramente precederam e depois interagiram em contraponto com o capitalismo, o Estado e mesmo mais tarde, antes do advento da democracia poltica includente, com o liberalismo. Como resultado dessa longa e complexa trajetria histrica, a democracia contempornea se baseia na idia de agency promulgada e respaldada por lei. O governo, o regime e o Estado que da resultam existem para e atravs de indivduos portadores de direitos subjetivos89.

essa, em sntese, a arquitetura legal e institucional do Estado democrtico. O fato de que nos pases originrios essa arquitetura j estava basicamente em vigor quando a aposta includente foi adotada amenizou os riscos percebidos dessa deciso. Como assinala Sartori (1987:389): "No foi certamente por acaso que a democracia voltou a ser vista como um bom sistema poltico (aps ser condenada durante sculos) depois da aceitao do liberalismo". No mesmo sentido, John Dunn (1992:248) observou que graas a esses processos a democracia se tornou "amigvel" para o Estado (e, acrescento, para o capitalismo). A aposta democrtica, alm de includente e universalista, uma aposta moderada ou comedida: o enraizamento dos direitos subjetivos (inclusive a incorporao de muitos deles na Constituio), a limitao temporal dos mandatos dos altos postos do regime, a diviso de poderes e a periodicidade de eleies limpas, moderam o que est em jogo em cada eleio.

DIGRESSO COMPARATIVA (2)

Apresentei de forma extremamente compacta alguns processos histricos que ocorreram nos pases originrios at que foi adotada a aposta includente, universalista e moderada. Conforme Weber nunca se cansou de repetir, essas circunstncias histricas foram nicas e marcaram profundamente as caractersticas dos pases. Por outro lado, na maioria das outras democracias, novas e velhas, no Leste e no Sul, esses processos se desenvolveram mais tarde, em seqncias distintas, e tiveram conseqncias muito menos completas e homogeneizadoras do que nos pases originrios. Essas diferenas que esto fartamente documentadas nos registros histricos, tambm marcaram fundo as caractersticas contemporneas dos ltimos pases, inclusive seus Estados e regimes. Contudo, a tendncia anti-histrica e um enfoque estreito nos aspectos formais do regime que caracterizam muitas teorias democrticas atuais criam obstculos ao estudo desses fatores. Na medida em que se pode presumir que tais fatores exeram uma forte influncia nas caractersticas de muitas democracias contemporneas, essa omisso um srio impedimento a uma abrangncia comparativa adequada da teoria da democracia.

Enquanto no se concluem as pesquisas que devero remediar essa omisso, s posso apresentar aqui alguns comentrios preliminares, que retomarei abaixo em outra digresso comparativa. Em muitas novas democracias, mesmo que, por sua prpria definio, se realizem eleies competitivas, e tanto estas quanto a aposta universalista estejam institucionalizadas, os direitos civis tm escassa vigncia em todo seu territrio e nas classes e setores sociais. Alm disso, quando se adotou nesses pases a aposta includente, muitas salvaguardas liberais no estavam em vigor e algumas permaneceram ausentes. Por isso, os privilegiados viram na aposta uma grande ameaa, com o que muitas vezes desencadearam uma dinmica de represso e excluso que teve como resposta uma profunda alienao popular e s vezes uma radicalizao que causou ainda mais obstculos extenso dos direitos civis e das salvaguardas liberais. Foi essa dinmica que, no passado e at muito recentemente, alimentou o aparecimento de vrias formas de regime autoritrio na Amrica Latina e em outras regies90.

A CIDADANIA POLTICA E SEUS CORRELATOS

Vimos em sees anteriores que a cidadania poltica uma condio definida por lei, outorgada por um Estado nos limites do seu territrio, como parte e conseqncia da aposta democrtica, a indivduos concebidos como portadores de direitos pertinentes a um regime que se baseia em eleies competitivas e institucionalizadas, e em algumas liberdades simultneas. Essa condio uma mistura de atributos. adscritiva91, porque, excetuando os casos de naturalizao, atribuda a uma pessoa pelo simples fato de ter nascido em determinado territrio (ius solis) ou ter um parentesco consangneo (ius sanguinis). universalista, porque dentro da jurisdio delimitada por um Estado, designa nos mesmos termos todos os adultos que satisfazem o critrio de nacionalidade. tambm uma condio formal, porque resulta de normas legais que, em seu contedo, promulgao e aplicao, devem satisfazer critrios por sua vez estipulados por outras normas legais. Por ltimo, a cidadania poltica pblica. Com isto quero dizer, em primeiro lugar, que o resultado de leis que devem cumprir exigncias cuidadosamente especificadas quanto sua publicidade e, em segundo lugar, que os direitos e obrigaes conferidos a cada ego pressupem (e demandam legalmente) um sistema de reconhecimento mtuo entre todos os indivduos, independentemente de sua posio social, na qualidade de portadores desses direitos e obrigaes.

Sublinho que essas caractersticas da cidadania poltica so homlogas, ou, mais precisamente, fazem parte dos direitos subjetivos, civis, "privados", que discuti acima. importante entender isto. Por suas origens, pela concepo de agency e por sua definio jurdica, as liberdades polticas que mencionei ao examinar as vrias definies de democracia, so parte integrante e essencial dos direitos civis. Isto significa que entre a cidadania poltica e a cidadania civil h uma conexo histrica, jurdica e conceitual muito mais ntima do que reconhecem muitas teorias da democracia, realistas ou no92. Essas observaes tm conseqncias empricas. Algumas democracias incluem um conjunto nuclear de direitos polticos que so circundados, respaldados e fortalecidos por uma densa rede de direitos civis. Outras, ao contrrio, podem exibir formalmente (por uma questo de definio do prprio regime) esses direitos polticos, mas a trama circundante de direitos civis tnue e/ou se distribui desigualmente entre as diferentes categorias de indivduos, classes e regies. Retornarei adiante a essa questo; por ora, apenas quero ressaltar que essas diferenas entre situaes e pocas influenciam fortemente o que se poderia chamar de profundidade ou grau de democratizao civil e jurdica, ou seja, a qualidade geral da democracia em cada caso ou perodo.

Neste ponto de minha argumentao devo lembrar que uma outra questo levantada pela presuno da agency tem relao com as opes disponveis a cada indivduo, tanto em termos da sua capacidade de escolha, quanto da gama real de escolhas de que dispe93. Nos pases originrios, a resposta a essa questo se ramificou em duas direes. De um lado, centrou-se nos direitos privados, em especial, mas no exclusivamente, na rea dos contratos, definidos em sentido amplo. Criou-se uma srie de critrios jurdicos e jurisprudenciais para anular, reparar ou impedir situaes em que exista uma relao "manifestamente desproporcional"94 entre as partes, e/ou nas quais razovel supor que uma das partes no consentiu livremente no contrato, devido incapacidade mental, fraude ou coao etc.95. Essas medidas tutelares se fundamentam em um critrio bsico de eqidade, que, por sua vez, um corolrio da idia de agency: presume que os agentes se relacionam como tais, isto , que no so vtimas de desigualdades ou de alguma forma de incapacidade que possam anular sua autonomia e/ou acesso a uma gama razovel de opes. O requisito de um mnimo de eqidade foi introduzido nos sistemas jurdicos dos pases originrios por meio dessas construes legais. Em conseqncia disso, ao selo jurdico anterior anterior do ponto de vista histrico e analtico das concepes universalistas de agency, acrescentaram-se vrias consideraes de natureza jurdica e jurisprudencial de eqidade. De um lado, esses acrscimos contradiziam as construes anteriores de agency, j que introduziam critrios no universalistas atribuio e adjudicao de direitos em vrias situaes; de outro, eram coerentes com as construes jurdicas anteriores, porque refletiam o reconhecimento de que a agency no deve ser apenas presumida, mas tambm examinada em sua efetividade. Essa ambivalncia contradio com as premissas universalistas e coerncia com a concepo subjacente de agency contribuiu muito para a enorme complexidade dos sistemas jurdicos tanto dos pases originrios quanto dos que nestes se inspiraram.

A segunda direo em que se ramificou a questo da agency e suas relaes com as opes mais bem conhecida entre cientistas polticos e socilogos. Refiro-me ao aparecimento e desenvolvimento da legislao social. Tambm aqui sobressai o valor da eqidade devida agency, embora esta se concentre em vrias categorias sociais e menos nos indivduos, como acontece no direito privado. Por um longo e complicado processo que no preciso detalhar aqui96, os novos participantes da aposta trocaram a aceitao da democracia poltica inclusive a moderao proporcionada pelas salvaguardas a que me referi por uma parcela dos benefcios do Estado de Bem-Estar. Mas esses benefcios no eram apenas materiais; por meio da representao coletiva e de outros mecanismos, esses atores reduziram a aguda desigualdade de facto, em face dos capitalistas e do Estado, que Marx e outros autores afirmaram esconder-se por trs do universalismo dos sistemas jurdicos ento vigentes. Por meio da legislao social, e com altos e baixos nas respectivas relaes de poder97, foram incorporadas ao sistema legal algumas concepes de eqidade baseadas nas idias anteriores de agency individual, em parte transformando-as. Tal como no direito privado, ainda que em geral aplicadas a categorias de agentes definidos coletivamente, as leis sociais expressaram a idia de que, se devemos presumir que os agentes so de fato agentes, a sociedade, sobretudo o Estado e seu sistema jurdico, no pode ser indiferente s opes que cada indivduo enfrenta. Em conseqncia, essas leis criaram polticas preventivas e corretivas, que variaram desde o apoio a nveis bsicos de bem-estar material at a autorizao de diversos mecanismos de representao coletiva para aqueles que, de outra maneira, seriam demasiado fracos para admitir a presuno de que tm vontade autnoma e opes adequadas. No deixando de incluir falhas98, essas mudanas, fixadas nos direitos pblico e privado, foram democratizadoras: tornaram mais denso o tecido jurdico que promulga e respalda a mesma agency pressuposta pela democracia.

Vemos assim que nos pases originrios houve um longo e complexo processo, que, atravs de normas legais, impregnou a sociedade, a economia e o Estado de uma concepo universalista de agency; esta, posteriormente, foi em parte transformada por valores de eqidade fundados nessa mesma concepo. Adiante tratarei de algumas implicaes desse processo; por ora, desejo salientar que, pelo menos em termos lgicos, a relao entre agency e opes na esfera poltica mantm estreita conexo com a mesma questo, quando formulada no mbito do direito privado e da legislao social. Em outras palavras, formular essa questo na esfera poltica importa em ir alm da atribuio universalista de direitos polticos que examinamos nas sees anteriores. Requer que se indague sobre as condies que permitem ou no o exerccio efetivo da cidadania poltica.

Vimos que, do ponto de vista dos direitos civis e sociais, essa questo no pode ser ignorada nem pelo direito privado nem pela legislao social; no tenho clareza sobre as razes pelas quais pode ser ignorada em relao aos direitos polticos. J que existe uma estreita conexo, como acabei de mostrar, entre direitos civis e direitos polticos (e, mais recentemente, tambm com os direitos sociais), no me parece coerente omitir o problema da efetividade da cidadania poltica quando se aplica a indivduos privados de muitos direitos sociais e civis e, portanto, incapazes de fazer opes minimamente razoveis. certo que em um regime democrtico os indivduos contam com os direitos polticos universalistas que analisamos. Tambm certo que a outorga desses direitos representa em si mesma um grande avano em relao ao regime autoritrio. Entretanto, olhar apenas para esse lado da questo, importa em suprimir da teoria democrtica o mesmssimo tema da agency e suas opes que o direito privado e a legislao social no puderam ignorar. Esta me parece ser uma limitao indevida e profundamente esterilizante. Em vez disso, a teoria democrtica deve aceitar alguns fatos bsicos: primeiro, desde Atenas, embora limitada a uns poucos indivduos, at os tempos atuais, quando abrange muitos, a premissa da democracia poltica a agency; segundo, essa idia j estava incorporada, muito antes dos regimes democrticos contemporneos, tanto nos mltiplos aspectos do sistema legal quanto no valor concomitante da eqidade devida aos agentes; terceiro, os direitos civis e os direitos polticos so homlogos; quarto, as origens histricas, jurdicas e conceituais dos direitos polticos encontram-se nos direitos civis. Esses fatos explicam o pertinaz ressurgimento, na teoria e na prtica, da questo das condies de existncia da cidadania poltica, como preocupao ao mesmo tempo terica e moral.

Compreendemos agora a razo do problema da indecidibilidade dos limites dos direitos polticos. A idia de agency tem implicaes diretas e convergentes na esfera civil e na poltica, porque o aspecto legalmente estabelecido de uma concepo moral do ser humano como indivduo autnomo, racional e responsvel isto , como agente99. Essa noo, ou melhor, presuno, no pode ser validamente separada nem lgica, nem moral, nem legalmente da questo das opes disponveis a cada indivduo, tanto em termos de sua capacidade de escolher quanto da gama de suas opes. Na medida em que a democracia pressupe a agency, no vejo como exorcizar da teoria e da prtica da democracia os problemas morais e prticos concernentes efetividade da cidadania poltica. A Caixa de Pandora revela-se maior do que Schumpeter temia, mas nem por isso inacessvel a um exame intelectualmente disciplinado.

Nesta altura da argumentao, convm acrescentar algum