Tese Raquel Cavalcanti Ramos Machado

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    RAQUEL CAVALCANTI RAMOS MACHADO

    COMPETNCIA TRIBUTRIA: ENTRE A RIGIDEZDO SISTEMA E A ATUALIZAO

    INTERPRETATIVA

    Tese de Doutorado

    rea de Direito Econmico, Financeiro e Tributrio

    Subrea de Direito Tributrio

    Orientador: Prof. Titular Luis Eduardo Schoueri

    Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo

    So Paulo

    2013

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    Raquel Cavalcanti Ramos Machado

    COMPETNCIA TRIBUTRIA: ENTRE A RIGIDEZ DO SISTEMA EA ATUALIZAO INTERPRETATIVA

    Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de DireitoEconmico, Financeiro e Tributrio da Faculdade de Direito daUniversidade de So Paulo, como exigncia parcial para aobteno do ttulo de Doutor em Direito.

    Aprovado em:

    Banca Examinadora

    Orientador: Professor Titular Luis Eduardo Schoueri

    Instituio: Faculdade de Direito da USP Assinatura: ___________________

    Professor: ______________________________________________________________

    Instituio: ______________________________ Assinatura: ____________________

    Professor: ______________________________________________________________

    Instituio: ______________________________ Assinatura: ____________________

    Professor: ______________________________________________________________Instituio: ______________________________ Assinatura: ____________________

    Professor: ______________________________________________________________

    Instituio: ______________________________ Assinatura: ____________________

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    A civilizao consiste em dar a qualquer coisa um nomeque lhe no compete, e depois sonhar sobre o resultado. Erealmente o nome falso e o sonho verdadeiro criam umanova realidade. O objeto torna-se realmente outro, porque otornamos outro. Manufaturamos realidades. FernandoPessoa

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    RESUMO

    A presente tese de doutorado analisa, de forma crtica, a interpretao dada ao textoconstitucional na parte em que trata das competncias tributrias, tendo em vista a rigidezda discriminao dessas competncias. Procura-se verificar se adequada a interpretaomuitas vezes pretendida para as palavras e expresses empregadas no texto, segundo a qualnelas se veiculam termos de conceito, cujo significado extrado geralmente de liescolhidas no mbito do Direito Privado, e ainda em viso esttica, assimilando o conceitocomo entendido no momento da entrada em vigor da Constituio. Para empreender aanlise crtica, parte-se do exame histrico das constituies brasileiras, verificando se, na

    passagem de uma para outra, com a alterao da distribuio de competncias, as palavrase expresses permitem, j no plano constitucional, certeza quanto a seu significado. Emseguida, faz-se anlise da forma de pensar a realidade, levando em considerao o conceitoe o tipo. Busca-se refletir sobre a possibilidade de existncia de abertura e graduabilidadena figura dos tributos, ainda no plano constitucional, o que afasta o obrigatrio emprego deconceitos de Direito Privado e acena para a admisso de tipos. Considera-se tambm amudana pela qual passou a interpretao do Direito, sobretudo tendo em vista as tcnicasde interpretao constitucional, como premissa para analisar a alegada imposio literal eautomtica do art. 110 do Cdigo Tributrio Nacional, que cuida da interpretao dasregras de competncia e determinaria a opo por conceitos de Direito Privado, sempre queos termos utilizados na Constituio tiverem correspondentes em tais conceitos. Comfundamento nessa anlise, procura-se verificar os limites interpretao das regras de

    competncia, caso se tolere maior abertura. Admitir outras significaes das palavras, almda conceitual privatista, ou admitir a interpretao global da regra de competncia sem aanlise especfica de cada palavra, no implica aceitar falta de rigidez ao sistema. Por maisque a regra s seja construda diante da realidade, atual e verificvel no tempo, e no serestrinja anlise palavra por palavra, prvia, estanque e jusprivatista, o texto traz

    programa normativo cujo limite delineado por vrios fatores, dentre os quais a amplitudehistrica do tributo, o confronto com as demais regras de competncia e com os princpiosda tributao, o recurso linguagem natural e ainda prtica discursiva.

    Palavras-chave: Sistema Constitucional Tributrio. Competncia Tributria.Interpretao. Conceito. Tipo. Rigidez. Atualizao e graduabilidade. Limitesinterpretativos.

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    ABSTRACT

    This doctoral thesis conducts a critical analysis of how constitutional text is interpreted,more specifically the section that addresses taxing powers, considering how strictly such

    powers are discriminated. The aim is to determine whether the interpretation oftenintended for words and expressions deployed in that text is appropriate. According to suchinterpretation, the text carries concept terms whose meaning is usually derived fromlessons in the field of Private Law; and also under a static perspective, assimilating theconcept as it was construed when the Constitution came into effect. Critical analysis is

    based on a historical review of Brazilian constitutions in order to determine whether wordsand expressions, in the transition from one constitution to another, as the distribution oftaxing powers changed, allow any certainty with regard to their meaning, at the

    constitutional level. This is followed by an analysis of how one reflects on reality, takinginto account concept and type. The intention is to consider the possibility of flexibility andprogressibility in tax types, still at the constitutional level; this rejects a mandatory use ofPrivate Law concepts and signals toward the admission of types. We also consider changeswhich the interpretation of Law has undergone, taking into account, above all,constitutional interpretation techniques, as a premise to analyze the alleged literal andautomatic imposition of Article 110 of the Brazilian National Tax Code CTN, whichaddresses the interpretation of taxing power rules and that would determine the option forPrivate Law concepts, whenever the terms in the Constitution have an equivalent in PrivateLaw. Based on that analysis, this study aims to find the limits to interpretations of taxing

    power rules, if more open interpretation is possible. Admitting that words have meaningsother than privatist concepts, or admitting a global interpretation of the taxing power rule

    without specifically analyzing every single word, does not imply accepting that the systemis not very stringent. Even though the rule can only be conceived based on reality, which isup to date and verifiably in time, and though it is not limited to a word-by-word, prior,static and privatist analysis, the text introduces a normative framework whose boundariesare set by several factors, some of which include taxs historical range, confrontations withother taxing power rules and with principles of taxation, resorting to natural language andfinally discourse practice.

    Keywords: Constitutional Tax System. Taxing Power. Interpretation. Concept. Type.Stringency. Flexibility, modernization and progressibility.

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    RSUM

    La prsente thse de doctorat analyse, dune faon critique, linterprtation donne au texteconstitutionnel en ce qui concerne les comptences fiscales, vu la rigidit de ladiscrimination de telles comptences. On cherche vrifier ladquation delinterprtation, souvent souhaite pour les mots et expressions employe dans le texte,selon laquelle se transmettent termes de concept, dons le sens est gnralement extrait deleons cueillies dans le cadre du Droit Priv et encore en vision statique, assimilant leconcept, tel quil est compris au moment de lentre en vigueur de la Constitution. Pour

    procder lanalyse critique, on part de lexamen historique des constitutions brsiliennes,vrifiant si, lors du passage dune lautre, avec la modification de la distribution decomptences, les mots et expressions permettent, dj au niveau constitutionnel, lacertitude quant sa signification. Ensuite, on fait lanalyse de la forme de penser la ralit,

    tout en considrant le concept et le type. On cherche rflchir sur la possibilitdexistence douverture et gradualit dans la figure des impts, encore sur le planconstitutionnel, ce qui loigne lemploi obligatoire des concepts de Droits Priv et fait

    penser ladmission de types. On considr aussi le changement qui sest produit par lainterprtation du Droit, compte tenu des techniques dinterprtation constitutionnellecomme prmisse pour analyser limposition littrale et automatique allgue lart. 110 duCTN, charge de linterprtation des rgles de comptence et qui dterminerait loption parles concepts de Droit Priv, toujours que les termes utiliss dans la Constitution auraientdes correspondants dans le Droit Priv. Partant de cette analyse, on cherche vrifier leslimites linterprtation des rgles de comptence, au cas o lon accepterait une plusgrande ouverture. Admettre dautres significations des mots, outre celle conceptuelle

    privatiste, ou admettre linterprtation globale de la rgle de comptence sans analysespcifique de chaque mot, nimplique pas lacceptation dun manque de rigidit dusystme. Por plus que la rgle soit construite face la ralit actuelle et vrifiable dans letemps, et ne soit pas restreinte lanalyse mot mot, pralable, tanche et jusprivatiste, letexte comporte un programme normatif dont la limite est dline par plusieurs raisons,

    parmi lesquelles, lampleur historique dimpt, le confront avec les autres rgles decomptence et avec les principes de la taxation, le recours au langage naturel et encore la

    pratique discursive.

    Mots-cls: Systme Constitutionnel. Comptence fiscale. Interprtation. Concept. Type.Rigidit. Actualisation et gradualit. Limites interprtatives.

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    SUMRIO

    INTRODUO............................................................................................................. 10

    1. RIGIDEZ DO SISTEMA CONSTITUCIONAL TRIBUTRIO ............................ 21

    1.1. Os vrios significados da palavra competncia..............................................22

    1.2. Poder de tributar, competncia tributria e capacidade tributria ativa.....25

    1.3. Competncia e a diviso harmnica entre os entes........................................28

    1.4. O trato do assunto nas constituies anteriores.............................................30

    1.5. A diviso de competncias na Constituio Federal de 1988.........................43

    1.5.1. Inicial tendncia descentralizao............................................................. 44

    1.5.2. A diviso em 1988 e as emendas subsequentes ............................................ 47

    1.6. Forma federativa de Estado e diviso de rendas tributrias.........................50

    1.6.1. Federalismo, autonomia e recursos financeiros.................................... ....... 51

    1.6.2. Atribuio de competncias e repartio de receitas .................................. 52

    1.6.3. Diviso de rendas em face da federao brasileira e seus reflexos na

    compreenso das normas de competncia tributria............................................ 55

    1.6.4. Bitributao jurdica e econmica ............................................................... 56

    1.6.5. Particularidades do Direito brasileiro .........................................................60

    2. AS PALAVRAS E AS REALIDADES QUE DESIGNAM: ENTRE TIPOS E

    CONCEITOS................................................................................................................. 64

    2.1. De Crtilo a Wittgenstein ...............................................................................70

    2.2. Tipos e conceitos..............................................................................................75

    2.2.1 Maior adequao dos tipos para designar parcelas da realidade concreta . 85

    2.2.2. Tipos e conceitos indeterminados................................................................. 92

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    2.3. Tipos e conceitos nas normas de competncia tributria ..............................94

    2.4. Tipos e segurana jurdica............................................................................103

    2.5. Tipos e regras de tributao .........................................................................107

    3. INTERPRETAO CONSTITUCIONAL E NORMA DE COMPETNCIA

    TRIBUTRIA ............................................................................................................. 115

    3.1. Notas sobre alguns julgados do STF e dos problemas hermenuticos que

    suscitam................................................................................................................116

    3.2. Escolas hermenuticas e a interpretao constitucional contempornea ...126

    3.3. Aplicao de critrios diferenciados na interpretao do texto constitucional,quando pertinente ao Direito Tributrio ............................................................138

    3.4. Entre a cristalizao e a atualizao do texto .................... ..........................146

    3.5. Termos empregados no texto constitucional e o art. 110 do CTN...............148

    3.5.1. Existncia de mais de um significado, luz do Direito Privado............... . 171

    3.5.2. Alterao do significado, no mbito do Direito Privado ................... ........ 172

    3.5.3. Como deve ser compreendido o art. 110 do CTN...................................... 176

    4. ALGUMAS PONDERAES PARA A ESCOLHA DE UMA ACEPO ........ 179

    4.1. Distino entre sentido e significado e a moldura kelseniana......................182

    4.2. Viso sistmica do texto constitucional na formao de uma moldura.......188

    4.3. Legislao infraconstitucional e o sentido do texto constitucional..............194

    4.4. A relevncia do caso concreto no a supremacia do caso concreto ..........201

    4.5. Emendar o texto ou atualiz-lo, com coerncia, pela via interpretativa? ...207

    4.6. Significados possveis e consequencialismo jurdico ....................................221

    4.7. O papel da lei complementar ........................................................................228

    4.7.1. Lei complementar e contribuies ............................................................. 240

    4.8. Necessidade de uma fundamentao racional..............................................243

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    CONCLUSO ............................................................................................................. 253

    REFERNCIAS .......................................................................................................... 260

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    INTRODUO

    A norma jurdica (re)construda pelo intrprete atravs (ou a partir) do texto1, e

    as tcnicas interpretativas empregadas na apreenso deste podem produzir prescries

    distintas, ou com diferentes graus de densidade normativa. A ordem jurdica sofreu

    modificaes diante de considervel evoluo no mbito da Hermenutica.

    De forma mais evidente, at porque mais recente, basta considerar o grau de

    normatividade que se reconhece atualmente aos chamados direitos fundamentais,

    sobretudo em decorrncia de tcnicas prprias de interpretao2. As palavras so

    similares, o que se alterou foi a forma de empreg-las. Ou, em outros termos, trata-se de

    significante semelhante, com sensvel evoluo em seu significado. Isso revela como as

    tcnicas interpretativas empregadas em determinada poca histrica tm relevante efeito

    prtico na forma como o Direito compreendido e aplicado.

    No poderia ser diferente, at porque a apreenso do significado de um objeto

    que possibilita sua operacionalidade pelo ser humano. Antes de qualquer explicao

    prvia, um nativo americano do sculo XVI, em seu primeiro contato com a cultura do

    europeu colonizador, no saberia identificar e muito menos usar um garfo, mesmo

    estando diante de um. Quando se trata do estudo do Direito, essa afirmao tem ainda

    mais relevncia, pois as normas jurdicas so realidade institucional, e, nessa condio,

    sequer existem enquanto reguladoras de condutas seno depois de os textos, sinais

    grficos ou gestos que as exprimem terem sido entendidos como tal3.

    1 Cf., v.g., VILA, Humberto Bergmann. Teoria dos princpios. 4. ed. So Paulo: Malheiros Ed., 2004. p.

    23-24; CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributrio: fundamentos jurdicos da incidncia. 2. ed. So

    Paulo: Saraiva, 1999. p. 58; GUERRA, Marcelo Lima. Competncia da Justia do Trabalho . Fortaleza:Tear da Memria, 2009. p. 17-29; MELIS, Giuseppe. Linterpretazione nel Diritto Tributario. Padova:Cedam, 2003. p. 7.

    2 O art. 179 da Constituio de 1824, por exemplo, tem texto que guarda razovel semelhana com o art. 5.da Constituio Federal de 1988. No obstante, as normas construdas a partir de cada um deles, no sculoXIX e nos dias de hoje, so bastante diferentes. Alterou-se no tanto a letra, mas muito a forma como esta compreendida.

    3 SEARLE, John.Libertad y neurobiologia. Traduo de Miguel Candel. Barcelona: Paids, 2005. p. 99. importante lembrar que, como a criatura humana no possui acesso direto realidade bruta, sendo possvelfalar, assim, em graus de institucionalidade, estando as normas jurdicas entre os mais elevados deles.

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    Tomando essas premissas para anlise do sistema constitucional tributrio4, mais

    precisamente das competncias tributrias, pouca utilidade tem, por exemplo, um texto

    que tenha sido escrito para delimitar o poder e organizar seu exerccio por parte dos entes

    de uma Federao, se de sua interpretao no se apreende norma capaz de

    operacionalizar tais delimitao e organizao5. Por outro lado, pouco vale defender uma

    interpretao quando se constata que a norma dela decorrente incompatvel com as

    peculiaridades histricas do prprio ordenamento e com a evoluo jurdica ou social,

    porque impede que o texto seja aplicvel a realidade j diferente, s vezes criando

    situao conflitante com os valores que inspiraram sua elaborao.

    corriqueira a afirmao de que o Sistema constitucional tributrio rgido, pois

    h clara delimitao de competncias para cada ente da Federao, sobretudo porque osconceitos empregados pela Constituio so determinados e no podem ser modificados

    pelo intrprete ou pelo legislador infraconstitucional. A segurana que se tem diante

    dessas afirmaes, porm, constantemente desafiada pelo surgimento de novas

    realidades que mostram no ser to clara a aludida delimitao, e por decises judiciais

    que, examinando litgios decorrentes da tentativa dos diversos entes de tribut-las, no

    veem no texto constitucional conceitos com o aludido grau de hermetismo.

    Por certo, a prpria jurisprudncia pendular, nem sempre havendo constnciaentre seus posicionamentos, quando vistos em conjunto. Um intrprete isolado

    dificilmente teria viso do Direito Tributrio como a tem o Supremo Tribunal Federal ou

    o Superior Tribunal de Justia, examinados de forma global em uma tentativa de

    sistematizao todos os seus julgados em matria tributria. Anlises tpicas,

    ponderaes marcadas por forte influncia poltica e, s vezes, certa falta de tcnica para

    tratar de questes tributrias e de compromisso com posies j firmadas geram essas

    situaes que no raro tomam de perplexidade os profissionais do Direito e demais

    4 Tecnicamente, deve-se distinguir o Ordenamento Jurdico do Sistema Jurdico, sendo este o resultado dabusca de organizao daquele pela doutrina. Utilizar-se-, porm, neste trabalho, o termo Sistemaconstitucional tributrio, tendo em vista que a prpria Constituio fez referncia a ele.

    5 Como observa Luis Eduardo Schoueri, conquanto no parea mandatria a aproximao unitria doordenamento jurdico, podendo igualmente ser concebido como pluralista, reconhece-se a necessria buscaconstante da coerncia, exigida para a manuteno da coeso do sistema. SCHOUERI, Lus Eduardo.Segurana jurdica e normas tributrias indutoras. In: RIBEIRO, Maria de Ftima (Coord.). Direitotributrio e segurana jurdica. So Paulo: MP Ed., 2008. p. 117.

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    membros da sociedade, que tm de planejar seu viver e sua atuao nessa aparente falta

    de plano.

    Alm disso, no se pode ignorar que, apesar da afirmao de que o Sistemaconstitucional tributrio rgido, e de que o poder de tributar est clara e inteiramente

    delimitado na Constituio, o Sistema Tributrio brasileiro sofre mais alteraes do que

    muitos sistemas estrangeiros em que a respectiva Constituio pouco ou nada dispe

    sobre matria tributria. Em virtude disso, prejudica-se a compreenso do texto

    constitucional, como uma unidade dotada de lgica interna6, pois este, no Brasil, diante de

    tantas emendas pontuais, tem parecido mais uma colcha de retalhos.

    Se, por um lado, essas alteraes podem ser fruto da constitucionalizao de um

    maior nmero de disposies tributrias, algo que no seria verificvel em outros

    ordenamentos jurdicos, por outro demonstram que a colocao de tais preceitos na

    Constituio, em vez de enrijecer as normas de tributao, levou instabilidade do texto

    constitucional. O problema, igualmente, no est apenas na frequncia com que alteraes

    acontecem, mas na quebra de sistematicidade delas decorrente, em face de seu carter

    casusta. Muitas emendas constitucionais se revelam ntidas rplicas do Congresso

    Nacional jurisprudncia do STF, alterando pontualmente a Constituio apenas para

    contornar entendimentos da Corte Maior restritivos da competncia tributria. Foi o quese deu, por exemplo, com as EC 20/1998 e 33/2001, no que tange aos mbitos de

    incidncia de contribuies de seguridade e do ICMS, respectivamente, e com a EC

    39/2002, relativa contribuio de iluminao pblica.

    No se est sugerindo, por certo, que as decises do STF referentes ao ICMS7, s

    contribuies de seguridade8 e taxa de iluminao pblica9, depois contornadas pelas

    EC 20/98, 33/2001 e 39/2002, estivessem erradas. Pelo contrrio. Apenas se est

    recordando que a proteo representada por raciocnio conceitualista, apoiado apenas na

    6 Cf. FERRAZ JNIOR, Trcio Sampaio.Direito constitucional: liberdade de fumar, privacidade, Estado,direitos humanos e outros temas. So Paulo: Manole, 2007. p. 338.

    7 Smula 660/STF No incide ICMS na importao de bens por pessoa fsica ou jurdica que no sejacontribuinte do imposto.

    8 STF, Tribunal Pleno, RE 166772, Rel. Min. Marco Aurelio, j. em 12/5/1994,DJ16/12/1994, p. 34896,RTJ156-2/666.

    9 Smula 670/STF O servio de iluminao pblica no pode ser remunerado mediante taxa.

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    rigidez do texto constitucional, relativa e vem sendo continuamente contornada. Talvez

    um debate mais preocupado com a racionalidade do sistema e com os valores a ele

    subjacentes, a exemplo dos consagrados nos princpios da capacidade contributiva, da

    igualdade tributria, permita controle mais efetivo e adequado da atividade tributria no

    plano constitucional.

    certo que esse apego ao conceitualismo se deve em parte ao disposto no art. 110

    o Cdigo Tributrio Nacional - CTN10, mas talvez ele decorra, tambm, a desprezo por

    uma anlise histrica do Sistema constitucional tributrio brasileiro, a qual revela que,

    muitas vezes, a significao isolada de cada palavra integrante do texto normativo no

    to relevante para a compreenso das caractersticas do tributo a que se est fazendo

    aluso.

    Em outros termos, reexame histrico do surgimento e da evoluo das normas de

    competncia nas constituies brasileiras, alm da evoluo jurisprudencial, da sociedade

    e da semntica das palavras demanda que se revisite o tema das competncias tributrias,

    para adequar teoria e realidade.

    Diante desse cenrio, questes surgem, tais como: quais limites devem ser

    observados pelo legislador, no exerccio da competncia tributria, tendo em vista as

    caractersticas histricas de cada tributo e a possvel elasticidade das palavras empregadas

    pelo texto constitucional? De que forma se pode relacionar segurana jurdica com o

    dinamismo prprio da realidade econmica e das palavras, subjacente questo

    tributria? Como saber qual o significado inicialmente acolhido no texto constitucional de

    termos cuja compreenso essencial para conhecer a extenso da competncia? As

    consequncias de uma ou outra interpretao devem ser levadas em conta pelo intrprete?

    Nesse caso, quais, como e por qu?

    Tais so os questionamentos que se pretende enfrentar na presente tese,

    considerando a doutrina sobre competncia tributria e julgados recentes do STF, com

    nfase para a relao da Constituio com o art. 110 do CTN, sendo este, portanto, o seu

    10 O art. 110 do CTN dispe: A lei tributria no pode alterar a definio, o contedo e o alcance deinstitutos, conceitos e formas de Direito Privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela ConstituioFederal, pelas constituies dos Estados, ou pelas Leis Orgnicas do Distrito Federal ou dos Municpios,para definir ou limitar competncias tributrias.

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    objeto de estudo. Em outros termos, procurar-se-, a partir dos enunciados do texto

    constitucional que tratam da competncia tributria, aferir qual a estrutura e como se deve

    determinar o sentido das palavras que os compem.

    Apesar de o estudo da competncia figurar como uma das premissas para o estudo

    do Direito Tributrio, e, portanto, ser desde h muito realizado, sua atualidade no

    poderia ser maior. Basta considerar inmeros julgados recentes do STF e outras tantas

    questes pendentes de julgamento, envolvendo quantias significativas, em que a anlise

    parte exatamente do delineamento da competncia tributria. o caso, v.g., das

    discusses relativas acepo de valor aduaneiro para fins de PIS/Cofins importao,

    acepo de servio para fins de incidncia do ISS sobre leasing, de mercadoria para fins

    de incidncia do ICMS sobre downloadde software etc. Esses julgados demonstram que adoutrina tradicional, construda em torno das normas de competncia tributria e sua

    interpretao, nem sempre considerada como apta a resolver satisfatoriamente as

    questes submetidas ao seu exame.

    Marciano Seabra de Godoi, a propsito, v nos questionamentos surgidos nos

    ltimos tempos, submetidos apreciao do STF, uma demonstrao suficiente que

    tornaria prescindvel a anlise de mais de 100 anos de produo cientfica no mbito da

    Teoria Geral do Direito da desatualizao ou do anacronismo do que ele considera seruma viso conceitualista do Direito11. Mas no por isso se deve concluir que essa

    doutrina tradicional esteja necessria e inteiramente equivocada. O desacerto pode estar,

    talvez, no todo ou em parte, na jurisprudncia. De qualquer sorte, o apontado

    descompasso justifica, pelo menos, que se reexamine o tema.

    frequente, no mbito do constitucionalismo contemporneo, a realizao de

    estudos em torno da interpretao das normas constitucionais, pugnando-se pela

    necessidade de que ela seja mais ampla, a fim de assegurar maior longevidade ao texto12.

    Paradoxalmente, para que este tenha preservada a sua rigidez, preciso que o intrprete

    possa coloc-lo em dia com a realidade mutante, sob pena de, procedendo-se a uma

    11 GODOI, Marciano. O qu e o porqu da tipicidade tributria. In: RIBEIRO, Ricardo Lodi; ROCHA,Srgio Andr (Coords.). Legalidade e tipicidade no direito tributrio. So Paulo: Quartier Latin, 2008. p.76-77.

    12 Cf. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 12. ed. So Paulo: Malheiros Ed., 2002. p. 471.

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    reviso constitucional, trazer-se a insegurana de uma alterao mais radical, por meio de

    emenda que no atualiza o texto, mas o modifica substancialmente.

    Entretanto, quando se cogita da interpretao de textos constitucionais relativos competncia tributria, pugna-se s vezes por literalismo ou estreiteza na significao da

    palavra, ou ainda a um apego ao passado no verificados na exegese de textos relativos a

    outros temas, o que talvez seja incompatvel com a prpria ideia de unidade da

    Constituio. Qui esse rigor se possa justificar tendo em vista a diversidade de normas

    contidas na Constituio brasileira, mas, ainda assim, trata-se de circunstncia que refora

    a necessidade de o tema ser detidamente examinado, a fim de que essa justificativa seja

    mais adequadamente clarificada, se for o caso.

    Alis, no raro se assiste defesa de teses contraditrias, ora destinadas a atualizar

    o texto pela via hermenutica, ora destinadas a cristaliz-lo no tempo, mesmo no que

    tange a normas situadas em uma mesma parte da Constituio. o caso, por exemplo, da

    defesa da ampliao do significado das palavras mercadoria e faturamento (para que

    sobre imveis pudesse incidir a COFINS13, ou sobre o download pudesse incidir o

    ICMS14), e, contraditoriamente, da restrio ao significado da palavra livro (a fim de

    restringir o alcance da norma imunizante contida no art. 150, VI, d, da CF/88, para que

    no alcance os chamados livros eletrnicos)15

    .

    Sem entrar ainda no mrito a respeito do acerto ou do equvoco desta ou daquela

    forma de compreender o texto constitucional e do papel do intrprete em face dele, o que

    importa que tais questes evidenciam a importncia e a atualidade de se examinar e

    teorizar com coerncia a interpretao das normas constitucionais tributrias,

    notadamente das que cuidam da atribuio de competncias.

    Quanto ao ineditismo do estudo, ele se revela, de incio, diante da ainda

    relativamente escassa bibliografia em torno do assunto. H estudos notveis acerca da

    13 SARAIVA FILHO, Oswaldo Othon de Pontes, A No-Extenso da Imunidade aos Chamados Livros,Jornais e Peridicos Eletrnicos.Revista Dialtica de Direito Tributrio, n. 33, So Paulo: Dialtica, junhode 1998, p. 138.

    14 Cf. Lei Estadual 7.098/1998, art. 2., 1., VI e art. 6., 6.., do Estado do Mato Grosso.15 SARAIVA FILHO, Oswaldo Othon de Pontes. Cofins nas operaes sobre imveis. Revista Dialtica deDireito Tributrio, n 1, So Paulo: Dialtica, outubro de 1995, p. 63.

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    interpretao da lei tributria, mas construdos sob um paradigma anterior, marcado pela

    influncia de um positivismo legalista, no qual a lei era o principal objeto das

    preocupaes do jurista16. H, tambm, estudos mais recentes, j elaborados sob um

    paradigma no-positivista contemporneo, mas voltados interpretao constitucional em

    geral, ou interpretao das normas que veiculam direitos fundamentais, em particular17.

    Existem tambm textos atuais em torno da teoria do conhecimento e da hermenutica, em

    geral18. Mas, como dito, praticamente no existem trabalhos que procurem aplicar tais

    ideias, hauridas do constitucionalismo contemporneo e da hermenutica, s normas

    constitucionais que estabelecem competncias tributrias19, tendo em conta as

    particularidades luz das quais estas foram editadas, considerando ainda a histria das

    competncias nas constituies anteriores e a possvel relao entre estas e o texto atual.

    Relativamente considerao da jurisprudncia do STF, por sua vez, observa-se,

    ainda, o fenmeno denunciado por Humberto vila, do entrecruzamento de correntes que,

    de um lado, teorizam o direito positivo sem qualquer considerao aos pronunciamentos

    dos Tribunais, ou, de outro, simplesmente compilam tais pronunciamentos, de forma

    mecnica e acrtica, sem submeter seus fundamentos a uma anlise mais aprofundada 20.

    o que se tem verificado em relao ao tema da tese em questo. Ao lado dos autores que

    16

    NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Da interpretao e da aplicao das leis tributrias. 2. ed. So Paulo: Ed.Revista dos Tribunais, 1965; VANONI, Ezio. Naturaleza e interpretacin de las leyes tributarias.Traduo de Juan Martin Queralt. Madrid: Fabrica Nacional de Moneda y Timbre, 1973; AMAYA, AdolfoA.La interpretacin de las leyes tributarias. Buenos Aires: Arayu, 1954.

    17 Cf., v.g., SILVA, Lus Virglio Afonso da.Direitos fundamentais: contedo essencial, restries e eficcia.2. ed. So Paulo: Malheiros Ed., 2011; PEREIRA, Jane Reis Gonalves. Interpretao constitucional edireitos fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 2006; BARROSO, Luis Roberto (Org.). A novainterpretao constitucional: ponderao, direitos fundamentais e relaes privadas. Rio de Janeiro:Renovar, 2006; TRIBE, Laurence. The invisible constitucion. New York: Oxford Press, 2008. ______.;DORF, Michael. Hermenutica constitucional. Traduo de Amarlis de Souza Birchal. Belo Horizonte:Del Rey, 2007.

    18 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretao/aplicao do direito. 5.ed. So Paulo:Malheiros Ed., 2009. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: Constituio, hermenutica e teoriasdiscursivas. 4. ed. So Paulo: Saraiva, 2012.

    19 Jos Maria Arruda de Andrade, Humberto vila, Paulo Ayres Barreto, Luis Eduardo Schoueri e FernandoAurlio Zilveti tm observaes profundas sobre o tema em trabalhos que tratam da interpretao dasnormas tributrias ou da regra de competncia, mas diante de outras questes de natureza diversa, como ainterpretao do Direito Tributrio como um todo, ou o exame da natureza das contribuies, ou assuntosvariados da Teoria Geral do Direito Tributrio. ANDRADE, Jos Maria Arruda de.Interpretao da normatributria. So Paulo: MP Ed., 2006; VILA, Humberto Bergmann. Sistema constitucional tributrio. SoPaulo: Saraiva, 2004; BARRETO, Paulo Ayres. Contribuies: regime jurdico, destinao e controle. SoPaulo: Noeses, 2006. SCHOUERI, Lus Eduardo. Direito tributrio. So Paulo: Saraiva, 2011; ZILVETI,Fernando Aurlio. Obrigao tributria: fato gerador e tipo. So Paulo: Quartier Latin, 2009.

    20 Cf. VILA, Humberto Bergmann. Sistema constitucional tributrio, cit., p. 3.

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    simplesmente compilam, catalogam e reproduzem os pronunciamentos do STF, sem

    tentar compreend-los, entender-lhes as premissas e eventualmente critic-los, esto

    aqueles que constroem suas teorias a respeito do texto constitucional e do as costas, por

    completo, ao que o STF decide a respeito do tema, limitando-se, quando muito, a dizer

    que tais decises so equivocadas21. s vezes se d as costas ao prprio texto

    constitucional, que enxergado apenas em algumas de suas partes, sobrevalorizadas

    diante de outras, ignoradas.

    No presente trabalho, almeja-se fazer estudo que seja de algum modo inovador,

    tambm neste ponto, pois se pretende examinar a jurisprudncia do Supremo Tribunal

    Federal, com o propsito de compreender-lhe os fundamentos e, se for o caso, fazer-se a

    devida crtica.

    O tema difcil, e no se pode iniciar seu exame sem admitir que alguns dogmas

    ou conhecimentos elementares de Direito Tributrio talvez tenham que ser

    abandonados ou, pelo menos, revistos. Antes isso, porm, do que viver a fantasia de uma

    estabilidade inexistente.

    Na consecuo da pesquisa de que se cuida se utilizou a tcnica monogrfica,

    valendo como ferramentas artigos, livros e decises judiciais. A pesquisa teve natureza

    predominantemente bibliogrfica e jurisprudencial, sendo descritiva (do texto

    constitucional, da doutrina e da jurisprudncia construdas em torno das normas de

    competncia tributria, bem como do texto das constituies anteriores), mas tambm

    compreensiva e crtica.

    Quanto ao mtodo, sabe-se que ele molda o prprio objeto a ser estudado22.

    Assim, se se pretende ter do objeto a viso mais completa possvel, h de se ter cuidado

    21 H, reconhea-se, notveis excees, como o caso de GODOI, Marciano. Questes atuais do direitotributrio na jurisprudncia do STF. So Paulo: Dialtica, 2006, e Id. GODOI, Marciano. Crtica jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal. So Paulo: Dialtica, 2011, livros em que o autor procuracompreender os fundamentos das decises judiciais para, eventualmente, criticar-lhes possvel incoernciaou inconsistncia. Abordando problema semelhante ao aqui proposto, inclusive no que tange jurisprudncia: PIZOLIO, Reinaldo. Competncia tributria e conceitos constitucionais. So Paulo:Quartier Latin, 2006, que no o analisa, porm, luz do contexto histrico subjacente s normas decompetncia, do paradigma hermenutico do giro-lingustico e do raciocnio tipolgico.

    22 Como observa Richard Palmer, o mtodo j delimitou o que veremos, pelo que mtodo e objeto no podemseparar-se. PALMER, Richard. Hermenutica. Traduo de Maria Lusa Ribeiro Ferreira. Lisboa: Edies70, 1989. p. 33.

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    para no se valorizar excessivamente um determinado mtodo, amesquinhando-se a

    prpria imagem do objeto examinado23. Utilizar-se-o, portanto, alguns mtodos

    diferentes, sem rigidez ou exclusivismo. A induo o caminho para se identificarem os

    critrios, ou a falta deles, usados pelos Tribunais e pela doutrina na interpretao dos

    textos constitucionais, e a prpria explicao histrica para a sua redao atual. Mas a

    realizao da induo pressupe noes prvias a respeito do que ser examinado e

    induzido24, a serem posteriormente confirmadas (ou no), com o uso do mtodo

    popperiano25. Como se est no mbito de uma cincia humana aplicada, tendo-se como

    tema central a interpretao de textos constitucionais, o mtodo dialtico ser tambm

    empregado, at para que se contrastem os diferentes posicionamentos construdos em

    torno dos aspectos examinados.

    O primeiro captulo tratar do Sistema constitucional tributrio e de suas

    particularidades. Partindo de uma anlise de seu surgimento e de sua evoluo, cuidar de

    suas caractersticas atuais na viso da doutrina, e das relaes existentes entre rigidez e

    supremacia constitucional com o federalismo. Nele se pretende, ainda, destacar o que o

    Sistema Tributrio Brasileiro tem de particular, ou peculiar, relativamente ao sistema dos

    demais pases, mesmo aos que tambm adotam a forma federativa de Estado, assim como

    demonstrar que na passagem de uma constituio a outra, o nome do tributo carrega

    caractersticas histricas que vo alm do que cada termo isoladamente significa.

    Em seguida, o captulo segundo analisar a forma de se pensar a realidade,

    considerando sua mutao gradual e a possvel relao dessa mudana com a palavra que

    se lhe associa, assim como a natureza aberta da linguagem, o carter de vaguidade

    inerente a todas as palavras, e, com base nisso, a estrutura dos termos empregados pela

    23 Cf. FEYERABEND, Paul. A conquista da abundncia. Traduo de Marcelo Rouanet e Ceclia Prada.Porto Alegre: Unisinos, 2006.passim.

    24 CHALMERS, A. F. O que cincia afinal? Traduo de Raul Filker. Braslia:Editora Brasiliense, 1993. p.19.

    25 Cf. POPPER, Karl. A lgica da pesquisa cientfica. Traduo de Lenidas Hegenberg e Octanny Silveirada Mota. 12. ed. So Paulo: Cultrix, 2006, passim. Sobre a aplicao do mtodo do falseamento, ou dofalsificacionismo, de Karl Popper, s cincias sociais, confira-se: POPPER, Karl. A lgica das cinciassociais. Traduo de Estvo de Rezende Martins. 3. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2004. p. 13-34;CRUZ, lvaro Ricardo de Souza. O discurso cientfico na modernidade: o conceito de paradigma aplicvel ao direito? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 41; PRAKKEN, Henry; SARTOR, Giovanni.The three faces of defeasibility in the law. Disponvel em:. Acesso em: 12 ago. 2012.

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    Constituio na atribuio das competncias tributrias, aferindo-se se estes so a

    expresso de conceitos ou de tipos, vale dizer, se tm significao rgida ou dctil.

    O propsito o firmar premissas que depois sero utilizadas para revelar algumasincongruncias na doutrina dominante, a qual, no obstante afirme que as normas

    constitucionais sejam enunciadas por meio de conceitos rgidos, geralmente no

    questiona, por exemplo, a validade de disposies como a do art. 32 do CTN, segundo o

    qual o Municpio tem competncia para instituir imposto sobre algo diverso da

    propriedade imobiliria estritamente considerada, tal como definida na lei civil de 1916.

    Da mesma forma, essa doutrina no raro ignora que, na passagem de uma constituio

    para outra, alguns tributos previstos nas regras competncias so considerados em sua

    totalidade, ora incorporando caractersticas da legislao anterior e ora abandonandooutras, sem que o conceito jusprivatista de cada palavra empregada no texto possa ser

    analisado de forma rigorosa e isolada.

    No captulo terceiro, objetiva-se cuidar da interpretao constitucional em geral, e

    de um aparente descompasso entre o que se defende em seu mbito e o que se passa em

    relao interpretao das normas constitucionais tributrias em particular. No que tange

    a essas ltimas, ser nesse captulo que o disposto no art. 110 do CTN submeter-se- a

    exame mais detido. Pretende-se, sob o prisma da interpretao constitucional, analisar adoutrina que defende a necessidade de se recorrer a significaes empregadas por outros

    ramos do Direito, na busca da significao das palavras utilizadas pelo texto

    constitucional, que, no obstante, alm de ser hierarquia superior, no se vale obrigatria

    e necessariamente da linguagem tcnica.

    Alm disso, busca-se examinar que essa mesma doutrina, ao afirmar que o

    significado dos conceitos utilizados pela Constituio deve ser haurido das normas de

    Direito Privado, no explica qual deles deve ser levado em considerao quando

    diferentes normas de Direito Privado empregarem uma palavra ou expresso com

    significados dspares. Tampouco esclarece como se deve proceder quando a acepo for

    modificada pelo Direito Privado, ou quando houver mudana na prpria realidade factual

    designada. Importa, aqui, encontrar-se um ponto de equilbrio entre o papel (re)criador do

    intrprete, na determinao do sentido dos textos normativos, e o significado pr-existente

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    destes, a ser minimamente reconhecido sob pena de inviabilizar-se a prpria

    comunicao, diante da possibilidade de cada sujeito atribuir arbitrariamente significados

    distintos aos mesmos significantes, equilbrio este cuja necessidade ser ento apontada,

    mas que somente ser buscado nos captulos subsequentes.

    o momento, tambm, de examinar e analisar a apontada falta de sintonia entre a

    teoria e a prtica, no que tange s normas de competncia tributria, de sorte a: (i) apontar

    exemplos concretos em que se verifica; (ii) aferir se a falta de sintonia deve ser evitada,

    sendo, no caso de resposta afirmativa, de se considerar ento se a prtica que deve ser

    alterada ou a teoria que deve ser revista.

    Cuidar-se-, ento, no quarto e ltimo captulo, de dar resposta aos

    questionamentos que ensejaram a elaborao deste trabalho, explicando como os textos

    constitucionais que veiculam normas relativas ao Direito Tributrio, notadamente os que

    estabelecem as competncias tributrias, devem ser interpretados. Ser possvel, ento,

    responder quais descompassos entre a prtica, notadamente a prtica levada a efeito pela

    jurisprudncia, e a teoria devem ser solucionados com a correo da primeira, e quais

    devem ser motivo para a reviso da ltima, procedendo-se, ento, a essa reviso, ou pelo

    menos se contribuindo para ela. Pretende-se demonstrar como e em que termos as

    consequncias factuais de uma ou de outra interpretao devem ser levadas emconsiderao, delimitando-se, ainda, o papel do legislador complementar na interpretao

    das disposies constitucionais pertinentes ao tema.

    Finalmente, o trabalho ter uma sntese conclusiva, na qual a pergunta central

    lanada nesta introduo, e alguns questionamentos que em torno dela gravitam, sero

    sumariamente respondidos, luz das premissas traadas nos quatro captulos.

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    1. RIGIDEZ DO SISTEMA CONSTITUCIONAL TRIBUTRIO

    Diz-se rgido o sistema constitucional brasileiro, principalmente, considerando a

    forma como se d a atribuio de competncias impositivas. O legislador

    infraconstitucional no livre para escolher as realidades a serem tributadas, pois a

    Constituio26j lhe delimita o mbito de atuao27. comum, a propsito dessa rigidez,

    afirmar-se que ela assegurada ainda, entre outras razes, pelo uso de conceitos fechados

    jusprivatistas que aludem s realidades que podero ser alcanadas pelos entes tributantes,

    cuja significao no pode ser dada, elastecida, ou por qualquer forma alterada, pelo

    legislador infraconstitucional, seja por meio de lei ordinria, seja atravs de leicomplementar. o que consta, por exemplo, de clebre parecer no qual Geraldo Ataliba e

    Clber Giardino tratam de situao de conflito de competncia entre o ISS e o ICM,

    amparados em vasta doutrina nacional28.

    Dentre vrios autores que defendem o mesmo entendimento, pode-se mencionar

    ainda Paulo de Barros Carvalho, que, apesar de reconhecer uma possvel interpenetrao

    de competncias no plano constitucional, a ser resolvida pelo legislador complementar29,

    de forma aparentemente contraditria destaca:

    O tema das competncias legislativas, entre elas o da competncia tributria, ,eminentemente, constitucional. Uma vez cristalizada a limitao do poderlegiferante, pelo seu legtimo agente (o constituinte), a matria se d pronta eacabada, carecente de sentido sua reabertura em nvel infraconstitucional.30

    26

    Constituio que, por ter sua modificao submetida a procedimento formal mais rigoroso e exigente que ode aprovao dos demais atos normativos, igualmente rgida.27 ATALIBA, Geraldo. Sistema constitucional tributrio brasileiro. So Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,

    1968. p. 23-24.28 ATALIBA, Geraldo; GIARDINO, Clber. Imposto sobre circulao de mercadorias e imposto sobre

    servios. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva; BRITO, Edvaldo (Coords.). Doutrinas essenciais do direitotributrio. So Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2011, v.4, p. 517.

    29 CARVALHO, Paulo de Barros.Direito tributrio, linguagem e mtodo. 3.ed. So Paulo: Noeses, 2009. p.383.

    30 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributrio. 12. ed. So Paulo: Saraiva. 1999. p. 229.

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    Por partir das mesmas premissas, Roque Antonio Carrazza, cuidando do assunto,

    afirma que os possveis conflitos de competncia em matria tributria j se encontram

    resolvidos na prpria Constituio.31

    Transcreveram-se, literalmente, essas passagens, para que se tenha a correta

    compreenso do que esto os seus autores a sustentar, e para que no se diga que seu

    pensamento no foi aqui fielmente reproduzido, o que poderia ocorrer se apenas se

    afirmasse qual posicionamento defendem. Cada um sua maneira acolhe a ideia de que a

    Constituio j traz, em si, uma significao inteira para as palavras que emprega na

    distribuio de competncias; como se fosse inequvoca a (supostamente nica) forma de

    dirimir possveis conflitos a partir do prprio texto constitucional. Da o emprego de

    expresses como pronta e acabada.

    Todavia, para testar essa ideia, quanto a premissas e concluses, e compreender a

    extenso da rigidez, inerente ao Sistema constitucional tributrio brasileiro e guia

    indispensvel para sua interpretao, relevante, inicialmente, dedicar alguma ateno

    competncia tributria, s relaes entre ela e o poder de tributar e, brevemente, ao

    histrico de sua disciplina ao longo das constituies anteriores. Algumas digresses

    tero de ser feitas sobre palavras de significao aparentemente bvia, o que pode parecer

    primrio, mas elas se fazem necessrias, na medida em que muitos dos pensamentos queaqui sero analisados gravitam ao seu redor.

    A primeira dessas digresses sobre a significao do termo competncia,

    isoladamente considerado, sem que ainda seja parte da expresso competncia

    tributria. At porque somente a partir dela possvel compreender melhor a teleologia a

    guiar a interpretao jurdica.

    1.1. Os vrios significados da palavra competncia

    Apesar da aparente distino entre a significao na linguagem coloquial e a

    significao tcnico-jurdica do termo competncia, ambas guardam sutil relao.

    31 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributrio. 21. ed. So Paulo: Malheiros

    Ed., 2005. p. 877.

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    Competncia, no vocabulrio coloquial, liga-se, geralmente, a duas ideias

    distintas, porm relacionadas, a saber: autorizao e proficincia32. Nesse segundo

    significado, designa a habilidade para realizar uma ao, a aptido para fazer bem alguma

    coisa33. Mas, em ambos os casos, a palavra refere-se precipuamente a uma qualidade ou a

    uma possibilidade ftica. Diz-se, assim, que um bom profissional pessoa competente em

    seu ofcio, quando o realiza com qualidade, conforme as expectativas. Note-se que a

    palavra empregada, com sentido especfico, em outras reas do conhecimento, como a

    pedagogia e a psiquiatria, por exemplo, estando sempre a designar algo relacionado

    habilidade ou proficincia para desempenhar uma funo. Vale dizer, algo apto ou

    profcuo dentro de um mbito determinado a realizao de uma tarefa, o combate a uma

    doena etc.

    No vocabulrio jurdico, por outro lado, a palavra representa a atribuio ou o

    reconhecimento de um poder, cujos contornos so delimitados, para realizar uma dada

    atividade administrativa34, elaborar uma norma ou exercer a atividade jurisdicional. Caso

    se d palavra norma sentido bastante amplo, de sorte a abranger inclusive as

    proposies prescritivas de cunho concreto, que no dependem da ocorrncia de uma

    hiptese para incidir, pode-se dizer que em todos os casos mencionados a competncia

    diz respeito faculdade de produzir normas jurdicas (hipotticas ou concretas).

    Da cogitar-se da classificao das normas entre normas de conduta e normas de

    competncia35, ou, como prefere Aulis Aarnio36, normas de prescrio (proibitivas,

    facultativas ou obrigatrias), normas de competncia e normas de definio, embora estas

    ltimas paream ser fragmentos destinados a complementar as duas primeiras.

    32 SPAAK, Torben. The concept of legal competence: an essay in conceptual analysis. Translated by Robert

    Caroll. Massachusetts: Dartmouth, 1994. p. 2.33 ACADEMIA DAS CINCIAS DE LISBOA. Dicionrio da lngua portuguesa contempornea. Lisboa:

    Verbo, 2001. v. 1, p. 887.34 Neste primeiro sentido, a expresso utilizada sobretudo pelos tericos do Direito Administrativo. Nombito do Direito Tributrio, conforme ser visto no item subseqente deste trabalho, o exerccio dessaatividade administrativa (de fiscalizao e arrecadao dos tributos), embora tambm decorra decompetncias legalmente definidas, mais comumente designado como um produto da capacidadetributria ativa (CTN, art. 120), entendida com uma das atribuies da competncia. Mas tanto no inadequado falar-se em competncia, tambm nesse caso, que o prprio art. 120 do CTN alude capacidade tributria ativa como a competncia para exigir o cumprimento da obrigao tributria.

    35 Cf. ROSS, Alf.Direito e justia. Traduo de Edson Bini. So Paulo: Edipro, 2000. p. 57.36 AARNIO, Aulis.Essays on the doctrinal study of law. London; New York: Springer, 2011. p. 119.

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    Mas note-se que a palavra competncia utilizada, nesse contexto, para designar

    ora a regra jurdica que faz a delimitao, ora as faculdades por ela abrangidas, ora a

    prpria delimitao. Tal como se d com as palavras prova, raciocnio e

    pensamento, designa-se de forma ambgua tanto o produto quanto a atividade

    desenvolvida para obt-lo e, s vezes, tambm os processos nela empregados.

    Seja como for, percebe-se que a relao entre uma e outra significao (a

    coloquial e a tcnico-jurdica) reside no fato de que, tanto nesta como naquela, sem

    competncia, no se pode praticar o ato corretamente. E mais: a proficincia ou a

    autorizao para a prtica correta do ato refere-se a atividades ou aes especficas e

    determinadas. Varia apenas o critrio de correo, definido por uma habilidade factual no

    primeiro caso, ou por uma norma jurdica no segundo. Isso, desde logo, permite aconcluso de que, juridicamente, a competncia a autorizao normativa mnima, sem a

    qual no se pode praticar o ato validamente. Diz-se mnimaporque, evidentemente, outros

    requisitos, de forma e de contedo, devem ser observados para que os mais variados atos

    sejam vlidos.

    Uma sentena, por exemplo, mesmo proferida por juiz competente, pode ser nula

    se proferida em desateno ao princpio do contraditrio. Do mesmo modo, um tributo,

    mesmo institudo por lei editada pelo ente federativo dotado de competncia para tal,poder ser invlido por outras razes (v.g., a lei no cumpriu o procedimento legislativo

    corretamente, sua alquota exagerada ou suas disposies so contrrias isonomia).

    Poder-se-ia dizer, certo, que a competncia envolveria, em si, a atribuio para praticar

    o ato validamente, consideradas todas as demais normas do sistema, que a delimitariam,

    positiva e negativamente, a exemplo das regras de imunidade, e de princpios como o da

    irretroatividade e da legalidade, por exemplo. No essa, porm, a postura aqui adotada,

    at porque ela, por considerar todas as normas que disciplinam a instituio do tributo de

    cuja competncia se cogita, torna sem sentido a prpria distino pretendida entre asnormas de competncia e todas as demais.37

    37No mbito do processo civil, por exemplo, embora no se ignore que o juiz, ao exercer a jurisdio, deve

    faz-lo em obedincia ao devido processo legal, ampla defesa, publicidade, ao dever de motivao etc.,cogita-se de competncia (v.g., material, territorial...) sem considerar essas demais normas que disciplinamo agir do magistrado. Do mesmo modo se reputa adequado proceder-se aqui.

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    Da se conclui, por igual, que a competncia h de ser designada por norma com

    estrutura de regra jurdica,38pois opera base do tudo ou nada: no h como estar mais

    ou menos autorizado prtica de um ato, que no ser mais ou menos vlido por ter sido

    praticado por autoridade mais ou menos competente. Se o ato praticado por autoridade

    incompetente, a consequncia a nulidade, o que no comporta gradao.39

    Mas essa larga acepo jurdica de competncia como atribuio de uma faculdade

    ou de uma funo (que vale tanto para demarcar o poder de um agente administrativo,

    como do legislador, ou de um juiz)40, carece ainda de alguma delimitao adicional, para

    os fins com que ser utilizada ao longo do presente trabalho.

    1.2. Poder de tributar, competncia tributria e capacidade tributria ativa

    No raro ver-se a palavra competncia de algum modo associada palavra

    poder, sendo ambas ora usadas como sinnimos, ora como figuras assemelhadas. H,

    contudo, importante distino a ser feita, no que tange ao uso que tais palavras podem ter,

    notadamente no mbito do Direito Tributrio.

    Poder a aptido de decidir e fazer valer a deciso41. Se essa aptido meramente

    factual, decorrendo da fora fsica, da superioridade econmica, da capacidade

    argumentativa etc. usa-se para design-la simplesmente a palavra poder, agregada, se for

    o caso, do correspondente adjetivo (poder fsico, econmico, argumentativo etc.). Se,

    porm, essa aptido decorrncia de uma norma, que a confere ou reconhece, e a

    disciplina, limitando assim seu exerccio, o mais apropriado , em vez de poder

    jurdico, empregar-se o termo competncia42.

    38 ROSS, Alf. op. cit., p. 57.39 ALEXY, Robert. Teora de los derechos fundamentales. Traduo de Ernesto Garzn Valds. Madrid:Centro de Estudos Polticos y Constitucionales, 2002. p. 233.

    40 Cf. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributrio, cit., p. 211.41 Cf. MACHADO, Hugo de Brito; MACHADO, Schubert. Dicionrio de direito tributrio. So Paulo:

    Atlas, 2011. p. 176. Em termos semelhantes: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO,Gianfranco. Dicionrio de poltica. Traduo de Carmen C. Varriale, GaetanoLo Mnaco, Joo Ferreira,Lus Guerreiro Pinto Cacais e RenzoDini. 11. ed. Braslia: Ed. da UnB, 1998. v. 1, p. 933.

    42 Depois de dividir os direitos (no sentido de direito subjetivo) em direitos a alguma coisa, liberdades ecompetncias, Alexy esclarece ter reunido sob essa ltima denominao posies que podem ser tambm

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    Certamente por isso, entre os tericos do Direito Tributrio, a expresso

    competncia tributria mais comumente utilizada para designar o poder dos entes da

    Federao de elaborar normas para a criao, majorao, arrecadao e fiscalizao de

    tributos, devidamente reconhecido, limitado e, no caso das federaes, dividido em seu

    exerccio por normas de uma Constituio43. Roque Antnio Carrazza, por exemplo, em

    breves e precisas palavras, afirma que competncia tributria a aptido para criar, in

    abstracto, tributos.44

    Nessa ordem de ideias, no presente trabalho, a palavra competncia ser

    empregada com o significado de atribuio para feitura de normas jurdicas veiculadas em

    lei, assim entendidas as proposies prescritivas de carter hipottico elaboradas pelo

    Poder Legislativo, ou por quem lhe faa as vezes45.

    Em relao ao Direito Tributrio, essa atribuio aquela outorgada pela

    Constituio aos entes da Federao para instituir normas criadoras de tributos46, razo

    pela qual o art. 6. do CTN esclarece estar por ela abrangida a competncia legislativa

    plena. tambm esse o motivo pelo qual se diz que a competncia no pode ser

    delegada, nem caduca pelo fato de no ser exercitada: do contrrio, ter-se-ia um ente

    federativo (poder constitudo), por meio de normas infraconstitucionais (ou pela falta

    delas), alterando o prprio texto constitucional, em notria subverso da hierarquianormativa.

    designadas com as expresses poder jurdico, autorizao, faculdade, direito de configurao,competncia ou capacidade jurdica. E, em suas palavras, a palavra competncia prefervel porquetodas as demais so menos adequadas. Poder o poder jurdico hacen referencia a algo fctico,facultad est estrechamente emparentada con la permisin, los derechos de conformacin son solo un

    segmento del mbito de las competencias y capacidad jurdica sera adecuada si no fuera de difcil

    manejo. (ALEXY, Robert. op. cit., p. 227). No Brasil, a dificuldade de manejar a expresso capacidadejurdica, sobretudo em matria tributria, decorre do fato de que por capacidade tributria ativa j sedesigna um dos desdobramentos da competncia tributria, que a aptido para ser sujeito ativo da relaotributria, fiscalizando e exigindo o seu cumprimento, o que geraria ambiguidade.

    43 Cf. MACHADO, Hugo de Brito; MACHADO, Schubert. op. cit., p. 41; GAMA, Tcio Lacerda.Competncia tributria: fundamentos para uma teoria da nulidade. So Paulo: Noeses, 2009. p. 343.

    44 CARRAZZA, Roque Antonio. op. cit., p. 491.45 Excluindo-se, portanto, atos de efeitos concretos, como as sentenas e os atos administrativos, que,

    mngua de hipoteticidade, sero designados aqui como provimentos ou ordens, e no como normas. Eincluindo-se as medidas provisrias, que, conquanto no sejam leis, tm a mesma fora delas (CF/88, art.62).

    46 Emprega-se a palavra tributo, aqui, no sentido do art. 3. do CTN. Para os vrios sentidos em que essapalavra pode ser utilizada, confira-se: CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributrio, cit., p. 16e ss.

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    Esse o significado em que a expresso aqui utilizada, no apenas porque se

    trata do mais difundido entre os que a empregam, mas em razo do disposto nos art. 6. e

    7. do CTN, em face dos quais parece mais didtico fazer aluso a competncia para

    designar aquelas atribuies indelegveis, relativas instituio de normas criadoras de

    tributos, que por isso mesmo s podem ser exercidas, luz do princpio da legalidade, por

    entes dotados tambm da faculdade de editar leis em sentido estrito, distinguindo-as assim

    daquelas passveis de delegao, que dizem respeito fiscalizao e arrecadao de

    tributos, mais adequadamente rotuladas de capacidade tributria47. Insista-se que,

    conquanto em ambos os casos se tenha, em sentido amplo, uma competncia (no

    primeiro caso, para elaborar a norma, e, no segundo, para aplic-la), prefervel o uso de

    palavras diferentes, para uma maior preciso da linguagem48.

    Perceba-se que, nessa ordem de ideias, a competncia tem como premissa a

    existncia de um poder, ao mesmo tempo em que tem como razo de ser a necessidade de

    sua delimitao, sobretudo quando se trata de um Estado de Direito, regido pelo

    princpio49 da legalidade. Esse ponto j se apresenta como marcante premissa para as

    ideias a serem desenvolvidas adiante, qual seja: a norma de competncia tributria

    delimitadora de poder. Sendo assim, a hermenutica da competncia tributria h de

    gravitar em torno dessa finalidade, o que leva a que se questione se a fora evolutiva do

    uso das palavras pode operar com igual velocidade no Direito Tributrio, no que tange a

    tais normas, ou aos textos que as veiculam.

    Com efeito, o poder de tributar nada mais do que uma das facetas50 ou

    manifestaes do poder(ou da soberania) que, conjuntamente com os elementos povo e

    territrio, caracteriza o Estado. Isto posto, com ou sem normas jurdicas que o

    47 Cf. MACHADO, Hugo de Brito. Comentrios ao Cdigo Tributrio Nacional. So Paulo: Atlas, 2003. v.1, p. 149.

    48 Sobre a importncia dessa preciso, veja-se VILLEY, Michel. Filosofia do direito: definies e fins dodireito. Os meios do direito. Traduo de Mrcia Valria Martinez de Aguiar. So Paulo: Martins Fontes,2003. p. 10.

    49 A depender do critrio de classificao adotado para apartar regras e princpios, pode-se defender a ideiade que a norma veiculada no art. 150, I, da CF/88 uma regra. Apesar disso, a expresso princpio dalegalidade, por mais difundida, seguir sendo utilizada aqui.

    50 Cf. HENSEL, Albert. op. cit., p. 107.

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    disciplinem, o Estado exerceria seu poder51; sendo esse Estado adjetivado como de

    Direito, a norma de competncia delimita o poder, determinando as condies e as

    circunstncias em que h de ser validamente exercido, e, no caso de uma federao,

    dividindo ainda esse exerccio entre os entes que a compem.

    Isso deve ser lembrado, na interpretao das regras de competncia, porque, se

    todo titular de poder tende a abusar dele, e se as competncias so limites jurdicos ao

    poder, pr-existente, de cobrar tributos, ser natural a tendncia dos entes tributantes de

    extrapolarem os limites por elas representados, a qual no necessariamente dever ser

    vista como uma manifestao da desatualizao ou do anacronismo de seu texto.

    1.3. Competncia e a diviso harmnica entre os entes

    Visto que competncia tributria, na acepo aqui empregada, designa o poder de

    criar tributos, depois de reconhecido, limitado e, no caso de uma federao, dividido em

    seu exerccio por normas constitucionais, importante investigar se realmente, no

    contexto brasileiro, essa diviso se deu com a atribuio de competncias exclusivas para

    os vrios entes, as quais, em regra, no se sobrepem.

    Eventualmente se diz que exclusivas so as competncias impositivas, vale dizer,

    para a criao de impostos, pois a competncia para instituir taxas e contribuies de

    melhoria seria comum. No correta, porm, a afirmao. Em verdade, a competncia

    para instituir taxas e contribuies de melhoria to exclusiva quanto a dos impostos. O

    que ocorre que, em relao a tais tributos, que so vinculados a uma atividade estatal, o

    captulo dedicado ao sistema tributrio no os divide, o que feito em outra parte da

    Constituio. Unio, Estados, Distrito Federal e Municpios podem instituir taxas, mas

    taxas diferentes. Assim como instituem impostos, mas o fazem em relao a impostosdiferentes. Ningum defenderia, por exemplo, uma competncia comum para

    Municpios e Unio institurem taxas sobre a expedio de passaportes, ou sobre a

    51 BALEEIRO, Aliomar. Limitaes constitucionais ao poder de tributar. Atualizado por Misabel AbreuMachado Derzi. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 1; HENSEL, Albert. Derecho tributario. Traduode Andrs Bez Moreno, Mara Luisa Gonzlez-Cullar Serrano e Enrique Ortiz Calle. Madrid: MarcialPons, 2005. p. 111-112.

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    concesso de licenas para o funcionamento de restaurantes. A primeira s compete

    Unio, enquanto a segunda exclusiva dos Municpios.

    Esse aspecto de suma importncia na interpretao dos textos que veiculam taisnormas, pois representa limite a ser observado, pelo intrprete, na determinao de seu

    sentido. relevante, ainda, verificar como surgem e so batizados os tributos, ao longo da

    histria constitucional brasileira, e qual a relao entre seus nomes e as materialidades

    sobre as quais incidem.

    Como observa Luis Eduardo Schoueri52, anlise do art. 154, I da Constituio

    Federal revela que, se para exercer sua competncia impositiva residual, a Unio no

    pode criar impostos novos que tenham fato gerador ou base de clculo prprios dos

    discriminados na Constituio, isso significa que as competncias discriminadas so

    exclusivas de cada ente. Alm disso, o sistema no admite a bitributao, em matria de

    impostos. Tais concluses, que decorrem da regra veiculada no mencionado art. 154, I,

    so relevantes na determinao do sentido dos demais artigos por meio dos quais se

    estabelecem as competncias impositivas.

    Entretanto, poder-se-ia contest-las alegando que no necessariamente a vedao

    imposta ao exerccio da competncia residual deveria ser entendida como uma proibio

    de bitributao, ou como uma indicao do carter exclusivo das competncias

    impositivas, as quais se poderiam interpenetrar, o que, alis, seria verificvel em outras

    federaes, como a Norte-Americana53. importante, portanto, para que melhor se

    compreenda a razo de ser das disposies constantes da Constituio Federal de 1988, o

    que inegavelmente til na determinao de seu sentido, investigar como o assunto foi

    tratado nas constituies anteriores.

    do que cuidam os itens seguintes, nos quais, conquanto no se faa anlise

    aprofundada do sistema tributrio em cada perodo do constitucionalismo brasileiro, algo

    que no seria pertinente aos propsitos deste trabalho, se enfatiza a forma como as

    competncias tributrias eram repartidas, a preocupao constante com eventuais

    52 SCHOUERI, Lus Eduardo. Discriminao de competncias e competncia residual. In: SCHOUERI, LuisEduardo; ZILVETI, Fernando Aurlio (Coords.). Direito tributrio: estudos em homenagem a BrandoMachado. So Paulo: Dialtica, 1998. p. 82-115.

    53 ATALIBA, Geraldo. Sistema constitucional tributrio brasileiro, cit., p. 29.

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    sobreposies ou interpenetraes nos seus mbitos, e, principalmente, como o trato desse

    assunto evoluiu ao longo das constituies Brasileiras, culminando com as disposies

    atualmente em vigor. Isso importante para entender o papel da lei complementar e at

    que ponto tudo est, ou no, j pronto e acabado na Constituio Federal de 1988,

    assim como cada termo do seu texto deve ser interpretado.

    1.4. O trato do assunto nas constituies anteriores

    relativamente comum, nos trabalhos escritos em torno do Direito Positivo no

    Brasil nos ltimos vinte anos, sobretudo no mbito constitucional, tomar-se o texto da

    Constituio Federal de 1988 como ponto de partida, o que inegavelmente correto. Mas

    isso feito, muitas vezes, em desprezo ao que existia antes dele, como se o texto

    constitucional do nada houvesse brotado, e, pior, como se antes muito do que nele se acha

    previsto no j existisse, de forma igual ou muito semelhante atual, o que talvez se faa

    de forma um tanto exagerada.

    Cogita-se de direitos que s teriam sido consagrados em 1988, de princpios que

    s ento teriam sido positivados etc., em excesso cujo equvoco se confirma quando se

    examinam os textos constitucionais anteriores, testemunhas de que esse ineditismo,conquanto verdadeiro em muitos pontos, no to grande quanto se preconiza54.

    Em verdade, embora do ponto de vista jurdico-positivo, a Constituio de 1988

    seja induvidosamente o ato normativo supremo do ordenamento,55 no qual as demais

    normas buscam fundamento de validade, no se pode esquecer que havia uma realidade

    antes dela, cuja anlise auxilia, enormemente, a compreenso de suas disposies. com

    54 Exemplo disso reside no art. 179 da Constituio de 1824, j mencionado na introduo, que tem contedobastante parecido com o do art. 5. da Constituio Federal de 1988. claro que este ltimo contmdisposies mais avanadas do que o primeiro, escrito mais de 160 anos antes, mas a diferena entre ambos(que diminui paulatinamente nas constituies seguintes) no to grande que justifique a afirmao deque apenas com a Constituio de 1988 se teriam constitucionalizado os direitos fundamentais,inaugurando uma era de ps-positivismo. Sobre o tema, confira-se: MACHADO SEGUNDO, Hugo deBrito. Fundamentos do direito. So Paulo: Atlas, 2010.passim.

    55 Embora se diga, usualmente, que a Constituio uma norma (falando-se inclusive em Grundnorm), emverdade ela um ato normativo do qual se extraem diversas normas. O mesmo se d com as leis, osdecretos etc.

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    esse propsito que se examinam, apenas no que toca s competncias tributrias, as

    constituies Brasileiras que a antecederam.

    Essa anlise importante, convm insistir, para que melhor se compreenda anatureza peculiar da forma como as competncias tributrias foram previstas e dividas

    pelo texto constitucional, o que central para firmar as premissas necessrias s

    concluses a que se prope este trabalho. Afinal, se as competncias so exclusivas e no

    pode haver bitributao, um importante limite determinao do sentido das expresses

    usadas na delimitao de uma competncia ser representado pelas palavras utilizadas na

    disciplina das demais competncias, que com aquela devero ser conformadas, limite este

    inexistente em ordenamentos de estados unitrios, ou de estados federados que consagram

    competncias tributrias comuns. til a anlise, tambm, para que se constate, a cadanovo texto constitucional promulgado ou outorgado, onde e como se buscava o sentido

    para as expresses utilizadas pelo constituinte na delimitao das competncias.

    Tanto compreender o sistema pr-existente Constituio importante que, nos

    debates travados na Assembleia Constituinte, em 1987, os Deputados partiram, de forma

    explcita, do arcabouo existente, para ento, sobre ele procedendo a ajustes, construir o

    novo Sistema Tributrio56.

    Estudos importantes sobre o assunto, como os desenvolvidos por Rubens Gomes

    de Sousa57, Alcides Jorge Costa58 e Luis Eduardo Schoueri59, fazem esse apurado

    histrico. s vezes, a crtica requer um olhar ao passado e talvez sua reanlise. O imposto

    sobre a renda, por exemplo, est previsto constitucionalmente desde 1934. Ao longo das

    constituies seguintes no houve substancial alterao textual na expresso renda e

    proventos de qualquer natureza. No obstante, sua significao, vale dizer, a parcela da

    56 SENADO FEDERAL. Anais do Senado Federal, Subcomisso de Tributos, Participao e Distribuio dasReceitas, Comisso do Sistema Tributrio, Oramento e Finanas, ata da dcima reunio ordinria,realizada em 7 de Maio de 1987, cit., p. 6.

    57 SOUSA, Rubens Gomes de. Curso de introduo ao direito tributrio (parte especial). Escola Livre deSociologia e Poltica de So Paulo. 3 Termo Letivo, set./nov. 1948.

    58 COSTA, Alcides Jorge. Histria do direito tributrio I e II. In: FERRAZ, Roberto (Coord.). Princpios elimites da tributao. So Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 61 e ss.

    59 SCHOUERI, Lus Eduardo. Discriminao de competncias e competncia residual, cit., p. 82-115.

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    realidade por ela designada, no a mesma60. Diante dessa constatao, de se indagar:

    ser que renda para a Constituio de 1988 somente pode significar o que constava na

    redao do art. 43 do CTN na poca em que Carta Magna entrou em vigor?

    Contrrio aclamada certeza quanto significao das palavras utilizadas nas

    regras de competncia, Rubens Gomes de Sousa, ainda em 1948, alertava que o sistema

    tributrio brasileiro, em verdade, teria o inconveniente que chamou de nominalismo. Em

    suas palavras,

    um nome apenas um smbolo e s tem significao quando a coisasimbolizada corresponde ao smbolo. Isso nem sempre acontece e o que vemosso os Estados, premidos pela rigidez do sistema e pela impossibilidade prticade criar novos impostos, procurar encaixar na legislao dos tributos que lhe

    so privativos, figuras tributrias diferentes tanto econmica, comojuridicamente.61

    Referida tenso existe at hoje e pode ser demonstrao da necessidade de uma

    interpretao rigorosa, tal como preconizam Geraldo Ataliba, Clber Giardino, Paulo de

    Barros Carvalho e Roque Antonio Carrazza, nas passagens transcritas anteriormente,

    exatamente para evitar uma extrapolao dos limites da significao da palavra, a qual

    seria sempre buscada pelos que exercitam o poder tributante. Afinal, esse o papel do

    intrprete: anunciar e assim (re)construir normas claras a partir de textos cuja redao

    nem sempre tranquila. Por outro lado, a tenso revela, tambm, que talvez no haja no

    texto constitucional um limite to claro entre as fronteiras dos significados possveis de

    cada um dos nomes. nesse contexto que a anlise das constituies pretritas se faz

    esclarecedora.

    A primeira Constituio brasileira, como se sabe, no continha previso das

    competncias tributrias, nem, a fortiori, diviso destas entre diversos entes, at mesmo

    por causa da administrao fortemente centralizada ento existente62. Embora em 1824 jexistissem provncias, estas no eram dotadas de autonomia, sendo sua administrao

    levada a efeito por presidentes que poderiam ser livremente nomeados e destitudos

    60 Realmente, a forma por meio da qual se apura a renda tributvel variou consideravelmente de 1934 athoje.

    61 SOUSA, Rubens Gomes de. op. cit., p. 6.62 COSTA, Alcides Jorge. op. cit., p. 62.

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    pelo Poder Central63. Havia, como herana do perodo colonial, a diviso das receitas

    entre o Errio Nacional e as Cmaras Municipais64, mas isso se dava em virtude veja-se

    de normas infraconstitucionais anteriores, e no por efeito de atribuio de

    competncias, contempladas no texto constitucional. O sistema constitucional era muito

    flexvel, alm de bastante primrio.65

    S com o advento do Ato Adicional de 1834, com o qual se deu importante passo

    rumo forma federativa, assegurou-se alguma autonomia s Provncias e se passou a

    tratar, ainda embrionariamente, das competncias tributrias, demonstrando que diviso

    constitucional de rendas tributrias66 e federalismo so dois assuntos indissociveis, pelo

    menos em nossa histria constitucional. Entretanto, no houve ainda delimitao precisa

    de competncias, tendo apenas se estabelecido que as Provncias poderiam (art. 10, 5.)estabelecer os impostos necessrios s despesas provinciais e municipais, desde que no

    prejudiquem as imposies gerais do Estado67.

    Essa disposio do Ato Adicional, demasiado vaga, foi transformada em uma

    diviso mais clara de competncias pela Lei n. 99, de 1835, que, elencando um extenso

    rol de tributos, separou as receitas que o Imprio reservava sua competncia, a fim de

    que as provncias buscassem fontes fiscais fora desse raio.68

    O rol dos tributos de competncia do poder central era demasiado amplo,

    praticamente impedindo o exerccio da competncia residual pelos demais entes. Mas

    preciso lembrar que ainda no se tinha, poca, uma federao, notadamente devido

    63 Da a observao de Pimenta Bueno, de que as Provncias no so Estados distintos, ou federados, sim

    circunscries territoriais, unidades locais, ou parciais de uma s e mesma unidade geral. BUENO, JosAntonio Pimenta. Direito pblico brasileiro e anlise da Constituio do Imprio. Braslia: Servio deDocumentao do Ministrio da Justia, 1958. p. 19.

    64 BALEEIRO, Aliomar. Uma introduo cincia das finanas. 17. ed. atualizada por Hugo de BritoMachado Segundo. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 359.

    65 ATALIBA, Geraldo. Sistema constitucional tributriobrasileiro, cit., p. 45.66 Por diviso de rendas tributrias se entende o gnero do qual a atribuio de competncias e a repartio dereceitas so espcies. Voltar-se- ao tema mais adiante.

    67 Essa parte final, na viso de Ataliba, invalida seu contedo principal, no se podendo, por isso, falar emautonomia das Provncias, no sentido prprio da palavra. ATALIBA, Geraldo. Sistema constitucionaltributrio brasileiro, cit., p. 46.

    68 BALEEIRO, Aliomar. Uma introduo cincia das finanas, cit., p. 359. Como nota Alcides JorgeCosta, teve-se, com a Lei n. 99, um princpio de soluo para o problema da diviso de rendastributrias, tendo a soluo aparecido, realmente, a partir da primeira Constituio Republicana. COSTA,Alcides Jorge. op. cit., p. 68.

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    resistncia das foras conservadoras69, tendo o Ato Adicional apenas representado uma

    tendncia descentralizao poltica.

    De qualquer modo, apesar de a Constituio ainda no utilizar termosrepresentativos das realidades econmicas tributveis, j possvel observar o surgimento

    de duas caractersticas. A primeira a exclusividade das competncias, pois as provncias

    somente poderiam exercer as suas em relao a realidades situadas fora do mbito de

    competncia do poder central. A segunda, por sua vez, a ideia de que o exerccio da

    competncia por um ente pode prejudicar outro, tanto que s Provncias se reconhecia a

    possibilidade de institurem seus prprios impostos, desde que assim no se prejudicasse

    o poder central. Isso mostra o quando a presente anlise histrica, conquanto

    aparentemente no muito relevante, conduz a constataes surpreendentes. interessante,portanto, observar como, nas constituies seguintes, essas duas ideias foram

    desenvolvidas e desdobradas.

    Com a adoo da forma federativa, assume relevo o trato, na Constituio, da

    diviso das rendas tributrias70. Alis, as regras de competncia justificam-se na

    Constituio de 1891 mais pela preocupao dos entes em assegurar suas receitas, do que

    propriamente com os direitos do cidado-contribuinte71. Em virtude disso, a Constituio

    de 1891 estabeleceu competncias exclusivas para a Unio (art. 7.) e para os Estados (art.9.). Entre a competncia impositiva estadual achava-se o imposto sobre imveis, o que

    certamente explica a sua cobrana inclusive nas situaes em que o contribuinte no ,

    sob o prisma do Direito Privado, proprietrio deles, mas apenas titular de seu domnio

    til ou posse, conforme explicitado, muitas dcadas depois, no art. 32 do CTN.

    A competncia residual cabia de forma cumulativa Unio e aos Estados, mas

    s poderia ser exercida em relao a mbitos distintos dos j atribudos de forma privativa

    a cada um desses entes (art. 12). Foi no exerccio dessa competncia residual, alis, que a

    69 Paulo Bonavides e Paes de Andrade pontuam que, com o Ato Adicional, pretendeu-se efetivamenteimplantar uma monarquia federativa no Brasil, o que no se conseguiu por conta da resistnciaconservadora do Senado. Apesar disso, o ato adicional introduziu uma relativa e at ento indita autonomia das Provncias. BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes. Histria constitucional do Brasil. 4.ed. Braslia: OAB Ed., 2002. p. 123.

    70 Cf. CAVALCANTI, Joo Barbalho Uchoa. Constituio Federal brasileira: comentrios por JooBarbalho. Braslia: Senado Federal, 1992, notas ao art. 5.

    71 COSTA, Alcides Jorge. op. cit., p. 71.

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    Unio instituiu o imposto sobre vendas (que em 1934 seria transferido aos Estados, e,

    posteriormente, transformar-se-ia no ICM, hoje ICMS), o imposto sobre o consumo (que

    posteriormente daria origem ao IPI) e o imposto de renda72.

    Os Municpios, que sob a vigncia da Constituio Imperial possuam alguma

    autonomia, tiveram-na praticamente abolida, pois, com a Constituio de 1891, cabia aos

    Estados estabelecer quais dos seus tributos poderiam ser cobrados pelos seus

    Municpios73. O importante, porm, que uma vez mais se observa a separao de

    competncias para o ente central e para os entes perifricos, no se permitindo a uns que

    invadam aquelas atribudas aos outros, o que est bastante claro nas disposies relativas

    ao exerccio da competncia residual.

    Sabe-se que, subsequentemente, com a Constituio de 1934, influncia centrpeta

    levou concentrao de um maior nmero de atribuies no mbito da Unio. Tal como

    na Constituio anterior, foram conferidas competncias distintas Unio (art. 6.) e aos

    Estados (art. 8.), com a correo de algumas imperfeies74.

    Uma das correes consistiu em j se atribuir, no prprio texto constitucional,

    metade da arrecadao obtida com o imposto estadual sobre indstrias e profisses (que,

    posteriormente, daria lugar ao atual imposto sobre servios - ISS) aos Municpios, de

    sorte a no deixar a sua receita inteiramente merc dos Estados, garantindo queles,

    assim, alguma autonomia75. V-se, aqui, j a conjugao da tcnica da atribuio de

    competncias com a da partilha de receitas. Outra foi a de no outorgar competncia

    residual comum (ou cumulativa, nas palavras da Constituio de 1891) a Unio e

    72 BALEEIRO, Aliomar. Uma introduo cincia das finanas, cit., p. 360. COSTA, Alcides Jorge. op. cit.,p. 75.

    73 BALEEIRO, Aliomar. Uma introduo cincia das finanas, cit., p. 359; COSTA, Alcides Jorge. op.cit., p. 74.

    74 Paulo Bonavides e Paes de Andrade observam que os debates que mais agitaram a Constituinte de 1933foram os relativos diviso das rendas tributrias. Um grupo pugnava por reforma mais profunda, quetornasse o sistema racional, dizendo-o catico, organizado com base apenas nos interesses arrecadatriosdo Fisco. Prado Kelly, por exemplo, discursou dizendo que o que temos hoje, o que repete o anteprojetonada mais do que a primitiva classificao de rendas do Imprio, com partilha mais ou menos arbitrriados recursos entre a Unio e os Estados. (BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes. op. cit., p. 313). Derigor, conquanto no se tenha procedido racionalizao por ele pretendida, no se pode negar que algunsdefeitos das formas de diviso anteriores foram corrigidos, como se aponta no texto.

    75 BALEEIRO, Aliomar. Uma introduo cincia das finanas, cit., p. 360; COSTA, Alcides Jorge. op.cit., p. 78.

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    Estados. Atribuiu-se a competncia residual aos Estados, uma vez mais relativa a mbitos

    no compreendidos nas competncias j previstas no texto constitucional, mas se lhes

    incumbiu a partilha com Unio e Municpios do produto da arrecadao. E, de forma

    curiosa, estabeleceu-se que, caso o Estado faltasse ao pagamento em relao a essa

    partilha, a Unio passaria a arrecadar o imposto, partilhando-o com Estado e Municpios

    (art. 10).

    A partir de 1934 j se observa, portanto, que tambm a competncia residual deixa

    de ser comum, passando de forma exclusiva a um dos entes, e que a partilha das receitas

    assume cada vez maior importncia na garantia das autonomias federativas.

    Outro aspecto digno de nota que se passou a vedar, de forma explcita, a

    bitributao, estabelecendo-se a prevalncia da competncia federal, e j se ensaiando

    critrios para solucionar eventuais conflitos. Era o que constava do art. 11 da Constituio

    de 1934:

    Art. 11 - vedada a bitributao, prevalecendo o imposto decretado pelaUnio quando a competncia for concorrente. Sem prejuzo do recurso judicialque couber, incumbe ao Senado Federal, ex officio ou mediante provocao dequalquer contribuinte, declarar a existncia da bitributao e determinar a qualdos dois tributos cabe a prevalncia.

    Parece precrio o critrio de soluo dos possveis conflitos de competncia,

    consistente em o Senado declarar a bitributao e determinar qual tributo deve

    prevalecer, em cada caso, de ofcio ou por provocao de contribuinte, e, pior, sem

    prejuzo do recurso judicial cabvel, o que torna confusa a atribuio de competncias

    para a soluo de tais conflitos, se ao Senado ou ao Judicirio. De qualquer maneira, o

    relevante constatar que j a estava presente a noo de que as competncias tributrias

    no se podem sobrepor, sendo necessrio encontrar caminhos para definir as fronteiras

    entre elas. Afinal, se se considera que a sobreposio um conflito que precisa ser de

    algum modo dirimido, o carter privativo de tais competncias uma premissa

    inafastvel. Contudo, fosse preciso o significado de cada palavra utilizada na diviso

    dessas competncias, no surgiriam conflitos, nem seria necessrio um procedimento para

    dirimi-los, sendo essa previso, de rigor, um reconhecimento de que os conflitos, embora

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    indesejveis, acontecem. Essa ideia, ver-se- a seguir, central no delineamento das

    competncias tributrias em todas as constituies posteriores.

    Mas esse breve repasse das constituies Brasileiras j capaz de revelar, at aqui,outro aspecto tambm de grande importncia. Trata-se da utilizao, nas constituies

    seguintes, de palavras e expresses hauridas da experincia anterior, inclusive

    infraconstitucional, para designar figuras tambm pr-existentes. Esse ponto que guarda

    relao direta com o percurso central do presente estudo.

    Exemplificando, os impostos sobre o consumo e sobre a renda, criados em 1922 e

    1924 com amparo na competncia residual prevista na Constituio de 1891,

    incorporaram-se realidade financeiro-tributria do Pas, fazendo, naturalmente, com que

    surgisse todo um vocabulrio para lidar com eles. Nesse contexto, quando, cerca de dez

    anos depois da criao dos tais impostos, promulgou-se outra Constituio, que procedeu

    a nova diviso das competncias tributrias, foi natural que esta se utilizasse prec