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Nathalia Paula
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UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO Instituto Multidisciplinar
Departamento de Tecnologias e Linguagens
Letras – Morfologia do português Prof. Luiz Claudio
FORMAÇÃO DE PALAVRAS
Introdução – o léxico
Segundo Basílio (2004: p.7), o “léxico é tradicionalmente definido como o
conjunto de palavras de uma língua”, ficando a lexicologia responsável pela
reconhecimento da maior quantidade possível de características de propriedades de cada
palavra, e a morfologia, pelo estudo da flexão. Essa dicotomia lexicologia vs.
morfologia advém de dois pressupostos clássicos: o de que o léxico, ao contrário da
flexão, é “um conjunto não estruturado” (id., ibid.) e o de que é o dicionário o
responsável pela atribuição de informações normativas a respeito da palavra.
No entanto, o léxico apresenta um alto teor de regularidade e é um componente fundamental da
organização linguística, tanto do ponto de vista semântico e gramatical quanto do ponto de
vista textual e estilístico. Os diferentes processos derivacionais de mudança e extensão de
classe servem a funções pré-determinadas, traduzidas em estruturas morfológicas lexicais. (Id.,
ibid.)
Por exemplo, substantivos que terminação por -ção raramente servem de base
para formar adjetivos pela sufixação de -oso; assim, apesar de uns poucos exemplos
como atencioso (de atenção) e pretensioso (de pretensão), em geral o que se tem são
palavras formadas por -al quando a base termina por -ção: vocacional (de vocação, e
não *vocacioso), intencional (de intenção, e não *intencioso).
Ora, o léxico existe primeiro para “identificar as coisas de que queremos falar e,
portanto, designar pessoas, lugares acontecimentos etc. sobre os quais vamos nos
expressar. Assim, a língua é ao mesmo tempo um sistema de classificação e um sistema
de comunicação” (id., p.9).1
1 Pode-se entender que o que Basílio designa como “sistema de classificação” é o mesmo que Mattoso
Câmara Jr. (1977: p.21) chama de função representativa da linguagem e Azeredo (2004: p.16-17), função
simbólica da linguagem.
2
Mais um motivo para depreendermos que há uma estrutura que organiza o léxico
(sendo esse portanto, mais do que uma mera “lista de palavras”, um sistema dinâmico)
encontra-se no fato de que existem “estruturas a serem utilizadas em sua expansão.
Essas estruturas, os processos de formação de palavras, permitem a formação e novas
unidades do léxico como um todo e também a aquisição de palavras novas por parte de
cada falante” (id., ibid.). Levando em conta esse entendimento,
O léxico corresponde não apenas às palavras que um falante conhece mas também ao
conhecimento de padrões gerais de estruturação, que permitem a interpretação ou produção de
novas formas. Assim, o léxico interno é constituído por uma lista de formas já feitas e por um
conjunto de padrões, os processos de formação de palavras, que determinam estruturas e
funções tanto de formas já existentes quanto de formas ainda a serem construídas. (id., p.10).
A conjunção desses dois elementos do léxico (lista de palavras e processos de
formação) conferem ao léxico uma muito bem-vinda economia linguística, já que a
memorização do léxico, por parte do falante, não ocorre como a memorização de
números de telefone – para os quais não há padrões. Ao contrário, por ser o léxico
“ecologicamente correto”, já que se utiliza material já existente da língua para formar
novas palavras, a partir de fórmulas padronizadas. “Por meio desses padrões, podemos
formar ou captar a estrutura de palavras e, portanto, adquirir palavras que já existiam
mas que não conhecíamos anteriormente” (id., idid.) ou interpretar/criar novas palavras,
sem que o potencial semiótico da língua seja comprometido.
Com isso, há de se distinguir o léxico real – ou seja, o conjunto das palavras das
quais de fato nos valemos em nossas comunicações – do léxico virtual – ou seja, “o
conjunto de padrões que determinam as construções lexicais possíveis e sua
interpretação” (id., p.11). Essa distinção é importante pois os falantes só criam palavras
em caso de necessidades reais, “já que novas formas correspondem a mais itens a
consumir esforço da memória” (id., ibid.).
1. Razões por que formamos novas palavras
Basílio reconhece três motivos pelos quais formamos novas palavras. O primeiro
deles diz respeito à mudança de classe: assim, “temos uma palavra ou categoria lexical,
como ‘verbo’, e precisamos usá-la como ‘substantivo’. Nesse caso, formamos uma
palavra nova para poder utilizar o significado de uma palavra já existente num contexto
que requer uma classe gramatical diferente” (Basílio: 1995, p.7-8). Essa motivação, de
natureza gramatical, fica exemplifica a partir da seguinte situação: caso haja
necessidade de nos referir à atividade expressa por um verbo, mas num contexto em que
3
se exija um substantivo, “podemos usar um processo de sufixação para transformar o
verbo em substantivo, assim possibilitando o uso do conteúdo verbal num contexto
gramatical que só permite substantivos” (Basílio: 2004, p.28). Então, caso tenhamos a
frase “Clonaram o macaco” seguida de “Todos se preocuparam com a ...”, fica claro que
a semântica do verbo clonar deve ser utilizada na segunda frase em um contexto no qual
é necessário um substantivo, que vem a ser criado pela soma do sufixo -gem à base
verbal, obtendo-se então “Todos se preocuparam com a clonagem”.
O segundo motivo, de natureza denotativa, seria o acréscimo semântico, ou seja,
conferir às unidades léxicas já existentes na língua novos conteúdos significativos. Um
exemplo muito claro dessa razão é a prefixação, quer dizer, a adjunção de um prefixo a
uma base, como em pré+fabricado, re+lembrar. Percebe-se nesse caso que não há
mudança de classe; portanto, são exemplos que não se enquadram no primeiro motivo
para formarmos neologismos lexicais. O que ocorre aí é que à base acrescenta-se um
novo conteúdo semântico. Assim, ao conceito de “fabricado” adiciona-se o de
“anterioridade” (devido ao prefixo pré-) e ao de “lembrar”, o de “novamente” (graças ao
prefixo re-).
No entanto, esses dois motivos são, por assim dizer, de importância secundária,
pois o principal motivo pelo qual se formam novas unidades léxicas é a já salientada
economia linguística: ora, a língua permite que palavras se relacionem semanticamente
sem que haja redundância morfológica, como em bonito e feio, querer e vontade,
homem e mulher, calor e frio, abrir e fechar, raso e fundo etc. No entanto, se todas as
relações semânticas ocorressem pela heteronímia, haveria uma sobrecarga na memória
do usuário da língua, tornando impossível a própria comunicação.
Assim, a razão básica de formarmos palavras é a de que seria muito difícil para nossa memória
– além de pouco prático – captar e guardar formas diferentes para cada necessidade que nós
temos de usar palavras em diferentes contextos e situações.
Em última análise, a razão por que formamos palavras é a mesma razão por que formamos
frases: o mecanismo da língua sempre procura atingir o máximo de flexibilidade em termos de
expressão simultaneamente a um mínimo de elementos estocados na memória. É essa
flexibilidade que nos permite contar com um número gigantesco de elementos básicos de
comunicação sem termos que sobrecarregar a memória com esses mesmos elementos. (Basílio:
1995, p.10)
A própria Basílio (2004, p.30-31), no entanto, reconhece que essas três
motivações não são as únicas que determinação a criação de neologismos morfológicos.
Ela cita também que pode haver uma motivação expressiva, na qual certos sufixos, por
exemplo, adquirem noção pejorativa, como ocorre com -ice (em carioquice), -gem (em
politicagem), -udo (em narigudo), -ento (em gordurento) e -ão (em resmungão).
4
Além dessa motivação expressiva, a autora (id., p.31) cita ainda uma motivação
textual, na qual todo um contexto vem a ser retomado, anaforicamente, por um
substantivo formado a partir de um verbo que ocorre no contexto retomado. No exemplo
a seguir, o substantivo “declaração” retoma toda a oração em que o verbo “declarar”
ocorre:
O presidente da empresa mais poderosa do país declarou que não pouparia esforços e não
descansaria enquanto não conseguisse derrubar o projeto em tramitação na Câmara sobre a
limitação do uso de energia de caráter poluente. A declaração deixou os ambientalistas
enfurecidos. (id., ibid.)
2. Principais processos de formação de palavras – derivação e composição
São dois os principais processos de formação de palavras no português: a
derivação – caracterizada pela junção de um afixo a uma base – e a composição –
caracterizada pela junção de uma base a outra base.
Por definição, uma palavra é formada por derivação quando provém de outra, dita primitiva
(jardineiro deriva de jardim, incapaz deriva de capaz, desfile deriva de desfilar). Também por
definição, uma palavra é formada por composição quando resulta da união de outras duas ou
mais palavras, ditas simples. Por exemplo guarda-roupa, porco-espinho, azul-marinho, pé-de-
moleque, fotomontagem (formado de foto(grafia) + montagem), motosserra (formado de
moto(r) + serra), eletrodoméstico (formado de elétr(ico) + doméstico). (Azeredo: 2004, p. 79)
No entanto, as diferenças entre esses dois processos não se resumem a suas
características estruturais; antes, eles se complementam “na função de formar palavras
de acordo com nossas necessidades comunicativas” (Basílio: 1995, p.27), ficando a
derivação em geral reservada às necessidades de expressão de categorias nocionais mais
gerais e regulares; já a composição se destina à expressão de combinações mais
particulares, menos gerais.
2.1 A derivação
2.1.1 Fundamentos
A derivação se destina a satisfazer nossas necessidades mais regulares na
formação de palavras porque os afixos têm funções sintático-semânticas muito precisas,
o que limita “os possíveis usos e significados das palavras a serem formadas pelos
diferentes processos de derivação” (id., p.28). Ou seja, há na composição um elemento
de caráter semântico e sintático muito estável – o afixo –, e essa estabilidade se
transmite para o próprio processo do qual faz parte.
Exemplos dessa generalidade da derivação encontram-se na formação sufixal de
substantivos abstratos a partir de verbos (abafamento, compensação), na formação
5
prefixal de verbos a partir de outros verbos para expressar a noção de negação ou ação
contrária (desabonar, descalçar), na formação prefixal de substantivos agentivos a partir
de verbos (falante, amante) ou de outros substantivos (padeiro, chaveiro), na formação
sufixal de substantivos a partir de outros substantivos para a expressão de
dimensão/afetividade (livrinho, carrão), todos processos bastante comuns na língua.
6
Exatamente por ser um processo de caráter mais geral, já que conta com um
elemento constante, o afixo,
a derivação é aparentemente o processo mais disponível para a construção de palavras, não
apenas na língua portuguesa, como nas línguas românicas. Tal fato verifica-se não só na
quantidade de palavras registradas nos dicionário que são palavras derivadas, como, ainda, na
possibilidade de construir novas palavras por derivação (Correia: 2012, p.38).
O que leva à vulgarização desses processos morfológicos é o fato de os
conceitos por eles vazados (designação de conceitos abstratos, negação/ação contrária,
agentividade, dimensão/afeição) serem, eles mesmos, “noções bastante comuns e de
grande generalidade; consequentemente, esperamos que os processos que incluam tais
noções em sua função sejam altamente produtivos” (id., p.29).
Obviamente, pode-se pressupor uma gradação na generalidade das noções
vazadas pelos afixos derivacionais; se nos exemplos citaram-se prefixos e sufixos que
transmitem noções muito gerais, pode-se, por outro lado, perceber uma restrição no uso
do sufixo -ada para formar substantivos designativos de tipos de refeição a partir de
outros substantivos (feijoada, macarronada). Como se nota, esse sufixo é de utilização
bastante restrita, pois, entre todos os substantivos da língua, ele aciona como sua base
apenas os designativos de alimentos para formar o nome de refeições feitas a partir
desses alimentos.
2.1.2 Principais processos derivacionais por afixação
A seguir, fornecem-se alguns exemplos de afixos derivacionais no português.
Essa lista não é extensiva, servindo apenas de exemplário. A listagem de prefixos fica
ainda mais comprometida, pois se citam apenas alguns casos especiais.
a) sufixos -idad(e), -ez(a), -ic(e) – formam substantivos deadjetivais:2
inventivo > inventividad(e); sincero > sinceridad(e)
belo > belez(a); duro > durez(a)
burro > burric(e); chato > chatic(e)
b) sufixos -ção, -ment(o), -d(a), -agem, -dor – formam substantivos deverbais
2 Há ainda, menos comuns, os sufixos formadores de substantivos deadjetivais -idão – pronto > prontidão
–, -ur(a) – alto > altur(a) –, -itud(e) – pleno > plenitude(e) –, -ism(o) – formal > formalism(o) etc.
7
formar > formação; obturar > obturação
levantar > levantament(o); merecer > merecimento(o)
correr > corrid(a); partir > partid(a)
olhar > olhad(a); passar > passad(a); [usada na expressão perifrástica dar
uma X-da] cobrar > cobrador; correr > corredor
c) sufixos -eir(o)/-eir(a), -ist(a), -ão, -aç(o), -inh(o)/-zinh(o) – formam
substantivos denominais:
porta > porteir(o); limão > limoeir(o)
banana > bananeir(a); laranja > laranjeir(a)
flauta > flautist(a); língua > linguist(a)
mala > malão; gol > golaç(o)
livro > livrinh(o); gol > golzinho(o)3
d) sufixos -al/-ar, -ic(o), -ári(o), -os(o), -ud(o), -ad(o), -ês, -ens(e), -an(o) –
formam adjetivos denominais:
indivíduo > individual; família > familiar4
anarquia > anárquic(o); símbolo > simbólic(o)
banco > bancári(o); universo > universitári(o)
montanha > montanhos(o); valor > valoros(o)
chifre > chifrud(o); nariz > narigud(o)
barba > barbad(o); clorofila > clorofilad(o)
montanha > montanhês; Portugal > português
Ceará > cearens(e); Pará > paraens(e)
Acre > acrean(o); Saussure > saussurian(o)5
3 “A situação entre -inho e -zinho é de certo interesse do ponto de vista morfológico. Por um lado, -inho e
-zinho parecem ser complementares, já que -zinho é utilizado em ambientes fonológicos em que -inho
não é usado. Entretanto, não se trata de uma restrição absoluta. No caso da ditongação, há pelo menos
variações regionais, como em painho e mãinha; algumas formações terminadas em [r] também ocorrem
com -inho, como colherinha e florinha; e formações em -zinho podem frequentemente alternar com
formações em -inho, como brinquedinho/brinquedozinho, Glorinha/gloriazinha, Liginha/Ligiazinha etc.”
(Basílio, 2004: p.71) 4 Basílio (2004: p.54-55) considera entende que os sufixos -al e -ar são alomorfes, sendo o último
selecionado quando há a consoante -l na base: angular, linear, polar etc. 5 Pode-se entender -ean(o) e -ian(o) como alomorfes: o primeiro é selecionado quando a base termina em
-e tônico – Daomé > daomean(o) – ou em -eu tônico ou átono – Galileu > galilean(o); Cúneo > cunean(o)
–; o segundo, nos demais casos – Camilo > camilian(o); Freud > freudian(o). Cf.
8
e) sufixos -nt(e), -iv(o)/-tiv(o), -óri(o)/(t)óri(o), -vel, -do – formam adjetivos
deverbais:
comover > comovent(e); falar > falant(e)
agredir > agressiv(o); lesar > lesiv(o); legislar > legislativ(o)
casar > casóri(o); decidir > decissóri(o); operar > operatóri(o)
contornar > contornável; lavar > lavável6
lavar > lavad(o); cansar > cansad(o)
f) sufixo -mente – forma advérbios deadjetivais:
complementar > complementarmente; lento: lentamente
g) sufixo -iz(ar) – forma principalmente verbos deadjetivais:
disponível > disponibilizar; fértil > fertilizar; mínimo > minimizar
h) sufixos -e(ar), -(ar) – formam principalmente verbos denominais:7
bomba > bombear; golpe > golpear; pente > pentear
cola > col(ar); número > numer(ar); perfume > perfum(ar)
i) afixos en-/-ec(er), a-/-ec(er), en-/-(ar), a-/-(ar) – formam verbos a partir de
adjetivos ou substantivos:8
duro > endurec(er); raiva > enraivec(er); tarde > entardec(er)
maduro > amadurec(er); noite > anoitec(er)
curto > encurt(ar); faixa > enfaix(ar)
longo > alongar; tapete > atapetar
6 “Adjetivos deverbais formados com o sufixo -vel apresentam uma peculiaridade de uso. Tais adjetivos
são usados frequentemente com o prefixo negativo, porque a negação da potencialidade do ato verbal,
realizada através do adjetivo em -vel negado pelo prefixo, constitui um mecanismo enfático, conforme
vemos [nos seguintes exemplos:] filme imperdível, aula interminável, pessoa incansável, compromissos
inadiáveis, coisas impensáveis. É de se observar que a forma não prefixada nem sempre é viável.
Podemos falar em compromissos adiáveis, por exemplo, mas não em *pessoas cansáveis. (Basílio: 2004,
p. 58-59) 7 A respeito dos verbos formados em -(ar), veja a discussão desenvolvida nas páginas XXXX.
8 Veja nota anterior.
9
j) prefixos mini-, micro-, macro-, mega-, super- – formam substantivos
denominais:9
minissaia, microcomputador, macroestrutura, megainvestidor, supermercado
2.2 A composição
2.2.1 Fundamentos
Na composição, ao contrário da derivação, não há em sua estrutura um elemento
estável com funções sintático-semânticas bem definidas. O que caracteriza a
composição é o fato de ela ser “um processo de formação de palavras que utiliza
estruturas sintáticas para fins lexicais” (id., p.30). Assim, não é um elemento estrutural
que caracteriza a composição (como o é na derivação), mas a própria estrutura em si,
“de tal maneira que, das bases que se juntam para formar uma palavra, cada uma tem
seu papel definido pela estrutura” (id., p.29).
Assim, na composição em que entra um verbo e um substantivo – como mata-
mosquito –, o que determina a função de cada palavra é a própria estrutura
composicional, em que o verbo seria o núcleo da estrutura e o substantivo o termo
adjacente, em função análoga a do objeto direto. Já no composto adjetivo seguido de
substantivo – livre-arbítrio – ou substantivo seguido de adjetivo – caixa-alta –, o
substantivo é o núcleo estrutural e o adjetivo, o adjunto adnominal. Se o composto se
forma por dois substantivos – sofá-cama, p.ex. –, o segundo funciona como
modificador, à moda de um aposto.
Ou seja, mecanismos ou estruturas que são normalmente utilizados na formação de enunciados
passam a ser utilizados na função de denominar e/ou caracterizar seres, que é uma função
fundamental do léxico. [...] Com a utilização de estruturas sintáticas para fins lexicais, os
processos de composição permitem a nomeação ou caracterização de seres pela junção de dois
elementos semânticos, de existência independente no léxico, em apenas um elemento lexical.
(id., ibid.)
Como se pode notar, são possíveis se formarem palavras compostas a partir da
cristalização de estruturas sintáticas subordinativas em que se percebe um termo nuclear
(determinado) e um termo que lhe é subordinado (determinante). Por exemplo :
verbo+complemento objeto direto (guarda-roupas, passatempo);
substantivo+adjetivo adjunto (amor-perfeito, obra-prima; belas-artes, segunda-
feira);
9 Nem todos classificam desses elementos como prefixos. Cunha (1982: p.127), p.ex., entende vários
deles como radicais de origem grega. Aqui, acompanha-se a interpretação de Basílio (2004: p.69,72 e 73).
10
substantivo+locução adjetiva (cavalo de pau, chapéu de sol, mula sem cabeça);
substantivo+substantivo apositivo (escola-modelo, manga-rosa, porco-espinho);
numeral adjunto+substantivo (mil- folhas);
advérbio adjunto+verbo (bem-aventurar, maldizer);
advérbio adjunto+adjetivo (bem-amado, sempre-viva);
adjetivo+adjetivo (azul-marinho, luso-brasileiro).
Além da subordinação, também palavras relacionadas pela coordenação podem
se cristalizar em compostos, como a seguir:
verbo+verbo (corre-corre, perde-ganha, vaivém);
verbo+conjunção+verbo (leva e traz).
2.2.2 Funções de denominação – descritiva e metafórica
A composição é um processo de formação de palavras que fundamentalmente se
presta a nomear novos conceitos na língua. Em alguns dos exemplos dados, como livre-
arbítrio e sofá-cama, percebe-se um alto grau de transparência na relação entre a
estrutura da palavra e seu significado; ou seja, o conteúdo expresso pelo composto é
perceptível pela soma dos elementos estruturais: livre-arbítrio é um arbítrio livre; sofá-
cama é um sofá que se transforma em cama.
Porém, algumas formas se opacificam, uma vez sua estrutura não é suficiente
para a depreensão do significado da palavra. Mata-mosquito, por exemplo, designa um
agente com a função de exterminar larvas de mosquitos; no entanto, o termo também
poderia designar um produto com a mesma finalidade, como o é o composto
mata-moscas ('dispositivo ou substância tóxica us. na exterminação de moscas'). Nesses
casos, diz-se que a relação entre a estrutura do composto e sua semântica é opaca.
A razão de encontrarmos um distanciamento sistemático entre o significado de uma palavra
composta e o significado da função estrutura-partes componentes é exatamente o objetivo
preponderante do processo de composição, ou seja, a função de nomeação e/ou caracterização
de seres, eventos, etc. em combinações particulares de significações de itens lexicais. (id., p.31)
Todos os exemplos até aqui tratados – sejam cristalinos ou opacos – se encaixam
na função denominativa que tem a composição. Segundo essa função, um composto é
criado para designar um ser, entidade, substância etc. “a partir de suas características
objetivas mais relevantes” (id., ibid.).
11
Além de compostos descritivos (cristalinos ou opacos), há ainda os metafóricos,
em que não há mais objetividade denominativa, mas a denominação instituída a partir
da associação entre o ser, entidade, substância etc. designado e algum outro elemento.
Ou seja, transferem-se características desse para aqueles. É o que ocorre, p.ex., com
olho-de-sogra, composto designativo de um doce não pelas suas propriedades
subjetivas, mas pela associação que se faz do formato desse doce – que parece um olho
bem aberto – com a sogra, percebida negativamente em nossa cultura exatamente por se
ter uma ideia de ser um familiar que constantemente se intromete na vida do casal. Pé-
de-meia ('dinheiro economizado e reservado para uma eventualidade futura'), louva-a-
deus ('inseto de peculiar aparência'), linha dura (' linha de pensamento intransigente ou
radical, esp. em política e religião'), testa de ferro ('pessoa que se apresenta como
responsável por ato(s) ou empreendimento(s) de outrem, que não quer ou não pode
aparecer') são exemplos de compostos de denominação metafórica.
“Resumindo, o distanciamento entre o significado do todo e o significado das
partes é normal nas formas compostas pela própria função da nomeação; esse
distanciamento é especialmente acentuado no caso das nomeações metafóricas.”
(Basílio: 1995, p.32).
Referências
AZEREDO, José Carlos de. Fundamentos de gramática do português 3 ed. São Paulo:
Jorge Zahar, 2004.
BASÍLIO, Margarida. Teoria lexical. 4 ed. São Paulo: Ática, 1995.
_________. Formação e classes e palavras de palavras no português do Brasil. São
Paulo: Contexto, 2004.
CORREIA, Margarita; ALMEIDA, Gladis Mª de Barcellos. Neologia em português.
Série Estratégias de ensino. São Paulo: Parábola, 2012.
CUNHA, Celso Ferreira da. Gramática da língua portuguesa. 8 ed. Rio de Janeiro:
Fename, 1982.
MATTOSO CÂMARA JR., Joaquim. Introdução às línguas indígenas brasileiras. 3 ed.
Rio de Janeiro: Ao livro técnico, 1977.
12
DERIVAÇÃO IMPRÓPIA (OU CONVERSÃO)
Introdução
Como já visto, derivação é um processo no qual se soma(m) afixo(os) à base,
sendo então o afixo um elemento estrutural que serve inclusive para definir o processo
em si. A derivação imprópria seria então um caso especial de derivação, uma vez que se
trata de um processo no qual não entram afixos. Mesmo a tradição gramatical já
apresenta críticas à inclusão desse processo entre os de derivação morfológica. Cunha
(1982: p.120-121), por exemplo, após afirmar que as “palavras podem mudar de classe
gramatical sem sofre modificação na forma. [...] A este processo de enriquecimento
vocabular pela mudança de classe das palavras dá-se o nome de derivação imprópria”,
continua: “A rigor, a derivação imprópria (também denominada conversão ou
habilitação por linguistas modernos) não deve ser incluída entre os processos de
formação de palavras que estamos examinando, pois pertence à área da semântica, e não
da morfologia.” Por fim, Basílio (1995: p.60, destaques acrescidos): “O processo de
transposição de uma palavra de uma classe gramatical para outra é tradicionalmente
conhecido pelo nome de derivação imprópria. O termo “conversão”, bem mais
adequado, também é utilizado para designar o fenômeno em gramáticas normativas.”
Há, grosso modo, quatro casos de conversão comuns no português: de adjetivo
para substantivo (pobre, jovem, idoso), de substantivo para adjetivo (porco, burro,
laranja, rosa), de verbo para substantivo (andar, falar, poder, dever) e de adjetivo para
advérbio (alto, rápido).10 Desses, os casos mais comuns são de adjetivo para substantivo
e de adjetivo para advérbio.
1. Conversão de adjetivo a substantivo
No caso de conversão de adjetivo para substantivo, a motivação é semântica:
enquanto adjetivo tem a função de caracterizar, qualificar, substantivo tem a de
denominar, designar. Ora, um tipo de designação muito comum é aquela que se sustenta
nas características, nas qualidades de seus referentes. Assim, rico designa uma classe de
seres que têm a característica de serem financeiramente abastados, ou seja, de serem
ricos. Assim, designa-se eficiente e economicamente essa classe de referentes por uma
10 Cunha (1982: p.120-121) inclui entre os casos de conversão a passagem de substantivo próprio a
comum (narciso, quixote, damasco) e vice-versa (Castelo, Figueira, Pinto). Essa posição não é
unanimemente aceita, já que aí não se configura a transposição de uma classe a outra, mas de uma
subclasse a outra.
13
característica que lhe é inerente. Incluem-se nesse caso termos como passado, absurdo,
mortal, humano, fiéis, visto, corrente, circular, português (nomes pátrios em geral),
genérico.11
2. Conversão de substantivo a adjetivo
Já a conversão de substantivo a adjetivo não é tão normal, já que, por um ser
apresentar inúmeras características, não é simples destacar uma dessas características
para servir qualificador. Em casos como burro e porco, percebe-se uma integral
conversão de substantivo a adjetivo, já que a palavra convertida passa a aceitar todas as
marcas morfológicas da classe gramatical para a qual se transpõe. Assim, como
adjetivos, porco e burro passam a ter gênero e número determinados pela concordância:
técnico burro, técnicos burros, técnica burra, técnicas burras.
No entanto, essa não é a normalidade dos casos. No mais das vezes, “não se trata
propriamente de uma conversão, pois os substantivos não adquirem as propriedades de
morfológicas do adjetivo, visto não apresentarem concordância de gênero e número”
(Basílio: 1995, p.62). Assim, nomes como cereja, rosa, laranja e areia podem passar a
qualificar a substantivos, no que diz respeito a cor; no entanto, não se percebe uma
conversão integral, como se pode constatar nos exemplo: gravatas cereja, sapatos rosas,
calções laranja, bolsas areia.
3. Conversão de verbo a substantivo
O mesmo cuidado deve ser tomado quando se observa a conversão de um verbo
a substantivos. De fato, qualquer elemento linguístico (mesmo afixos!) podem ser
eventualmente substantivados pela anteposição de um artigo definido, por exemplo, sem
que a conversão se efetive: o amar é algo penoso, os ismos das ciências sociais, o mento
é um sufixo derivacional, etc.
Diferentemente, há os casos de andar (prédio de dois andares), falar (os falares
brasileiros, poder (os três poderes), dever (os deveres dos pais). Neles, percebe-se que
os verbos convertidos passam a aceitar toda a morfologia própria da classe dos
11
Aqui, deve-se distinguir claramente a designação pela qualidade da designação da qualidade. Nesse
último caso, a qualidade é nomeada através da sufixação, por exemplo: velhice (o estado de ser velho),
mortalidade (o estado de ser mortal), circularidade (o estado de ser circular). Como se pode perceber, são
nominalizações deadjetivais que fazem referência ao elemento caracterizador; já na conversão, “a
referência é a seres que teriam tal qualidade ou propriedades (absurdo = “algo que é absurdo”; os velhos
= “indivíduos que são velhos”, etc.).
14
substantivos, ou seja, apresentam um gênero inerente e são passíveis de se flexionarem
em número.
4. Conversão de adjetivo a advérbio
Por fim, o caso da passagem de adjetivo a advérbio, comum na linguagem
coloquial, como se pode perceber em peças comerciais, p.ex. (a cerveja que desce
redondo), é um último de conversão a ser observado. Aqui, deve-se entender que a
passagem de uma classe a outra não é fortuita, pois morfológica e semanticamente, o
adjetivo convertido passa a ter todas as características da classe dos advérbios, quais
sejam, sintaticamente ele se relaciona a um verbo, modificando-o, e morfologicamente é
invariável. É exatamente o que se nota nos exemplos a seguir: ela canta desafinado; elas
falaram alto e grosso; os carros passaram apertado na viela; as clientes foram direto ao
caixa; segurei forte o corrimão para não cair.
5. Conversão de radicais?
Há uma série de verbos formados pela terminação -ar, tanto por sufixação
(arquivo > arquivar) quanto por parassíntese (lata > enlatar). Tradicionalmente, tanto
gramáticos quanto linguistas consideram o -ar um caso de sufixo derivacional. O
problema é que esse elemento é a combinação da vogal temática verbal de primeira
conjugação com a desinência de infinitivo, portanto morfema classificatório e morfema
flexional, respectivamente.
Correia e Almeida (2012: p.46) apresentam uma proposta variante: segundo as
autoras, nesses casos não haveria derivação sufixal, mas antes a conversão de um
radical nominal a verbal (arquiv-n > arquiv-v; lat-n > lat-v). A partir daí, o radical estaria
apto a receber a vogal temática verbal e as demais desinências próprias do verbo, bem
como o prefixo, no caso da parassíntese.
A mesma interpretação pode ser dada para os casos de derivação regressiva para
a formação de substantivos deverbais. Em fugir > fuga, combater > combate, usar >
uso. Esses elementos morfológicos em destaque não são de natureza derivacional, mas
classificatória, já que são vogais temáticas.
15
Referências bibliográficas
AZEREDO, José Carlos de. Gramática Houaiss da língua portuguesa. São Paulo:
Publifolha, 2008.
BASÍLIO, Margarida. Teoria lexical. 4 ed. São Paulo: Ática, 1995.
_________. Formação e classes e palavras de palavras no português do Brasil. São
Paulo: Contexto, 2004.
CORREIA, Margarita; ALMEIDA, Gladis Mª de Barcellos. Neologia em português.
Série Estratégias de ensino. São Paulo: Parábola, 2012.
CUNHA, Celso Ferreira da. Gramática da língua portuguesa. 8 ed. Rio de Janeiro:
Fename, 1982.
16
PARASSÍNTESE
Introdução
A parassíntese é um processo morfológico e derivacional no português:
morfológico pois se trata de um fenômeno que se observa no vocábulo formal
mattosiano; derivacional porque tem finalidades lexicogênicas (ou seja, de formar novas
palavras) a partir da soma de afixos. A característica fundamental da derivação
parassintética é que há a utilização simultânea de prefixo e sufixo à base. Cf. o que
afirma Rocha Lima (1991: p.213): “[A derivação parassintética] consiste na criação de
palavras com o auxílio simultâneo de prefixo e sufixo: enforcar (en + forca + ar);
entristecer (en + triste + ecer)”
Realmente, o que caracteriza a parassíntese é essa simultaneidade, essa
concomitância, na utilização de prefixos e sufixos para a formação de novas palavras.
Por isso, não se deve confundir derivação parassintética com palavras derivadas de
bases complexas. Essas bases seriam aquelas em que se observam não só um radical,
mas também um (ou mais) afixo(s). Mais uma vez, cita-se Rocha Lima (id., pp.213-214,
grifos no original):
Fato diferente [da derivação parassintética] é a existência de palavras como: deslealdade,
viscondado, esprequiçamento, injustiça, etc., nas quais a análise descobre prefixo e sufixo. Aqui,
cada uma das palavras já possuía ou o prefixo ou o sufixo quando se lhe juntou o outro elemento
formativo. Assim, a palavra desleadade não se criou, em português, pela adição concomitante de
prefixo e sufixo ao adjetivo leal, senão que pelo acréscimo do prefixo des ao substantivo
preexiste lealdade, ou pela soma do sufixo dade à forma, já prefixada, desleal.
Em nota de rodapé, complementa o autor, citando um estudioso espanhol
(Ramón Menéndez Pidal, Manual de gramática histórica española, 1918, p.183,
tradução):
Os compostos de prefixo e sufixo a uma vez se chamam parassintéticos, de pará, que indica a
justaposição, e syntheticós, a síntese de vários elementos que formam um termo novo, como
desalmado, donde, sem que exista um substantivo desalma, nem um adjetivo almado, a reunião
dos três elementos forma um derivado12
claro e expressivo.
12
No original, composto, termo que se preferiu traduzir por derivado, para evitar confusão com
composição, processo de formação de palavras pelo qual se forma termos como passa-fora, cabo-de-
guerra, etc.
17
1. A proposta da Gramática Tradicional
Pelas palavras de Rocha Lima, autor da Gramática Normativa da Língua
Portuguesa, pode-se inferir como a tradição gramatical trata os processos de formação
de palavras: em geral, os gramáticos listam esses processos (sufixação, prefixação,
composição etc.), e, a partir dessa lista, analisa as palavras já formadas em português.
Seguindo esse modelo está Bechara (1999: pp.342-343), que, porém, oferece
informações mais aprofundadas; observe:
[O conceito de parassíntese não é] de todo assente entre os estudiosos, para uns, para haver
parassíntese basta a presença de prefixo e sufixo no derivado; é o caso de descobrimento,
maneira de ver que rejeitamos, por não levar em conta a noção dos constituintes imediatos. Para
outros, o processo consiste na entrada simultânea de prefixo e sufixo, de tal modo que não
existirá na língua a forma ou só com prefixo ou só com sufixo; é o caso de claro para formar
aclarar, em cujo processo entram concomitantemente o prefixo a- e o final -ar, elemento de
flexão verbal que funciona, por cumulação, como sufixo.
Como se nota, Bechara, apesar de citar a noção dos constituintes imediatos,
apresenta a tendência tradicional de analisar os processos de formação a partir de
palavras já existentes no léxico do português. Tal tendência fica evidente com a
observação de que, na parassíntese, não é possível a eliminação ou do prefixo ou do
sufixo, pois o que resultaria seria uma forma não existente na língua, como, no exemplo
de Bechara, *clarar (se se elimina o prefixo a-) ou *aclara (se se elimina o sufixo -ar).
2. Os Constituintes Imediatos
Laroca (1994: p.85) apresenta a análise da parassíntese levando em conta que, na
formação da palavra, da base nominal chega-se imediatamente ao derivado verbal, sem
que haja algum estágio intermediário entre as duas palavras; cf.
lata / en- + lata + -ar / enlatar
terra / en- + terra + -ar / enterrar
graxa / en- + graxa + -ar / engraxar
Assim, de acordo com essa proposta, a formação do verbo derivado se daria
imediatamente a partir do substantivo. De fato, essa interpretação não é muito distinta
da da tradição gramatical, havendo apenas uma mudança de foco; aqui, não se analisam
mais palavras já formadas, mas sim o processo de formação de palavras ele próprio.
Quem explica com muita propriedade a noção de constituintes imediatos é
Bechara (id.: p.342):
18
Em análise mórfica é importante ter em conta o princípio dos constituintes imediatos para que
não se façam confusões no plano descritivo da classificação morfológica (vale o mesmo para as
relações sintáticas) e se estabeleçam as possíves gradações de estrutura. Assim é que diante de
uma forma como descobrimento, não iremos enquadrá-la no grupo das palavras chamadas
parassintéticas (considerando des + cobri + mento); trata-se de um derivado secundário [grifo
acrescido] cujos constituintes imediatos são o radical secundário descobri- e o sufixo -ment(o).
[...] Também em desrespeitosamente os constituintes imediatos são desrespeitosa (por destaques
sucessivos) > respeitosa > respeito > speit (este último radical primário ou raiz).13
Por essa análise, e exatamente por não mais se fundamentar em palavras já
formadas, Laroca (id.: pp.85-86) rebate a noção de “derivação prefixal e sufixal”, que
alguns autores defendem para palavras como deslealdade e infelizmente: levando em
conta uma análise por constituintes imediatos, deve-se proceder como Rocha Lima,
acima, quando se reconhece que leal gera lealdade, e daí advém deslealdade; e feliz
deriva infeliz, que por sua vez é a base para infelizmente. No primeiro caso, então, há a
prefixação a uma base complexa (desleal); já no segundo, na base complexa observa-se
um sufixo (infeliz), ao qual se soma o prefixo.
3. O aspecto semântico
Basílio (1990: p.43) aceita, em parte, a posição da tradição gramatical: “Damos
o nome de derivação parassintética ao processo de formação de palavras que consiste na
adição simultânea de prefixo e sufixo a uma base para a formação de uma palavra.”
Porém, a autora, assim como Laroca, desloca o foco de sua atenção, saindo da palavra
formada, como faz a tradição gramatical, e indo para o processo de formação
propriamente dito. Confira (id., ibid., p.44, grifos acrescidos):
O que caracteriza a derivação parassintética não é a presença ou ocorrência simultânea de prefixo
e sufixo junta a base, mas a estrutura de formação, que exige utilização simultânea de prefixo e
sufixo no processo de formação. Assim, nem todas as palavras que apresentam prefixo e sufixo
em sua formação devem ser consideradas como de formação parassintética.
De fato, o que Basílio afirma até aqui não é muito distinto do que já diz Bechara
a respeito da parassíntese; porém, a autora (id., pp.45-46) realmente dá um passo a
frente ao ressaltar que ela
é um processo complexo de formação, não só morfologicamente, mas também semanticamente,
já que acopla a função semântica do prefixo com a função sintática e/ou semântica do sufixo.
Essa complexidade é bastante nítida em casos como desalmado, onde a função de -ado, que
13
Esse radical ainda se observa em suspeitar e seus derivados.
19
caracteriza um ser como possuidor virtual do processo que é expresso na base, resultando da
combinação o sentido “sem alma” para o adjetivo.
[...]
O procedimento tradicional de reconhecimento de formações parassintéticas é insuficiente por
tratar apenas de uma das faces da questão, a da possibilidade de formação.
De fato, é correto dizer que temos uma formação com acréscimo simultâneo de prefixo e sufixo
quando vemos que é impossível ter esta formação com acréscimo de afixos em dois níveis,
conforme verificamos no caso de desalmado.
No entanto, isso não justifica que limitemos a esses casos a derivação parassintética. Na verdade,
a derivação parassintética não é necessariamente ligada à existência ou não de formas prefixadas
ou sufixadas [...]
Com essas informações, Basílio indica a complexidade não só morfológica, mas
também semântica, da parassíntese, já que tanto prefixo quanto sufixos têm função
semântica na derivação, e este ainda possui função sintática (função anafórica e
estabelecimento de classes de palavras). Portanto, a solução da tradição gramatical é
insuficiente por tratar desse processo apenas em termos morfológicos (simultaneidade
na utilização de prefixos e sufixos), mas deixa de lado o aspecto semântico. Com isso, a
autora não nega que a proposta tradicional tenha lá seus méritos, pois sempre há a
parassíntese quando, da eliminação um prefixo ou um sufixo de uma palavra, não
resultar uma forma livre na língua; porém, Basílio reconhece que, em alguns casos,
mesmo que se encontre uma palavra existente na língua quando se elimina um prefixo
ou um sufixo, há ainda a necessidade de “verificar se o significado da construção global
[a formação parassintética] corresponde à função semântica do afixo retirado com a
base resultante” (id., ibid.: p.47)
Esses casos são os da formação parassintética em -ado, como em desdentado e
deformado: em língua portuguesa, realmente há as palavras desdentar e deformar;14 pela
tradição gramatical, então, desdentado e deformado não seriam parassintéticos.
Porém, como afirma Basílio, deve-se recorrer à semântica do sufixo -ado, que
significa ‘paciente do ato de X; que se X’, sendo X a semântica do verbo-base. Cf.:
abalado ‘paciente do ato de se abalar; que se abalou’; flexionado ‘paciente do ato de se
flexionar; que se flexionou’; ora, desdentado e deformado não são propriamente
‘paciente do ato de desdentar’ nem ‘paciente do ato de deformar’, mas sim ‘sem dentes’
e ‘que perdeu a forma original, que mudou para pior’.
14
Assim como há as formas dentado e formado.
20
4. Parassíntese ou circunfixação?
Apesar de alguns autores interpretarem esses termos como sinônimos (cf.
Azeredo: 2003, p.465), eles refletem antes pontos de vistas distintos sobre o processo
ora em análise. A parassíntese, como discutido até aqui, é um processo ternário, na
medida que incorpora a um só tempo três elementos estruturais, uma base e dois afixos
(prefixo e sufixo). Essa característica foge do que é o comum na derivação morfológica
de palavras no português, caracterizada por ser um processo binário: prefixo+base ou
base+sufixo. Nas palavras de Correia e Almeida (2012: p.50):
Apoiado nessa noção, a circunfixação passa a ser um processo segundo o qual a
uma base soma-se apenas um afixo, de natureza descontínua, pois esse afixo “se divide
(parte) para acolher o radical”.15 Esse proposta carrega então a vantagem de adequar o
processo ao caráter binário da derivação.
Assim, na formação de envelhecer, por exemplo, haveria segundo essa proposta
a base velho e um afixo (o circunfixo) en...ecer. Por ser descontínuo, esse sufixo, como
mostram as reticências, se reparte em dois, indo uma parte para o início e outra para o
final da base. Esquematicamente:
en...ecer
en- velh- -ecer
5. Parassíntese ou conversão?
Ainda há de se analisar outra proposta, já pontuada anteriormente: a de que há,
para parassintéticos formados em -ar – como em enlatar –, a conversão do radical, que
de nominal passa a verbal, para então receber as desinências verbais (vogal temática aí
incluída) e o prefixo. Tratar-se-ia, então, de uma prefixação.
Repare-se que essa proposta não se adequa aos casos em que ocorrem -e(ar),
como esverde(ar), pois nesse caso antes da vogal temática ocorre o elemento -e-, que é
então interpretado como sufixo que entra na parassíntese junto com o prefixo es- (como
em es-verd-e-ar).16
15
Corado: 2002, p. 22. 16
Ou parte do circunfixo es...e(ar), caso se opte pela interpretação circunfixal.
21
6. Conclusão
Como se percebe, a parassíntese é um processo de formação de palavra muito
complexo, por tratar da utilização concomitante de prefixos e sufixos, e também da
concomitância das respectivas funções (semânticas, morfológicas e sintáticas) desses
elementos. Há assim uma superposição dessas funções, e uma análise que leve em conta
apenas palavras já formadas (como faz a tradição gramatical), não é suficiente; deve-se
considerar que a parassíntese é um processo disponível na língua portuguesa para
formar novas palavras, e é automático o reconhecimento dessas funções por parte dos
nativos da língua portuguesa (ou seja, faz parte da competência linguística, da gramática
internalizada, do falante de português). Assim, uma análise morfológica que se preste a
descrever a estrutura desse processo não pode desconsiderar essas informações.
Bechara (id.: p.343) apresenta ainda a possibilidade de não haver derivação
parassintética: o que haveria seria, na verdade, seria a existência de uma base virtual
entre a base primária e o dito parassintético, assim: claro > *clarar > aclarar; tarde >
*tardecer > entardecer. A existência de bases virtuais não é estranha ao falante, pois o
português permite, por exemplo, que se crie termos como presidenciável e prefeitável,
que pressupõe a existência dos verbos *presidenciar (> presidente), *prefeitar (>
prefeito), respectivamente, verbos esses virtuais. Assim, esses casos, bem como os de
parassíntese, se encaixam na análise por constituintes imediatos.
Essa proposta, apesar de trazer alguma vantagem, também acarreta problemas: a
virtualidade de formas intermediárias é muito pequena em formações sufixais como as
dos exemplos, podendo ser considerada como uma excepcionalidade. Porém, se as
formas analisadas como parassintéticas passam a ser interpretadas pela existência de
uma forma virtual intermediária, então esse fenômeno adquire um aspecto muito mais
abrangente.
Por outro lado, essa análise também é problemática quando se observa a
direcionalidade: nos exemplos trabalhados, as formas virtuais para aclarar podem ser
tanto *aclaro (prevendo-se uma sufixação posterior) quanto *clarar (havendo então uma
prefixação subsequente); já para entardecer, a virtualidade pode ser *entarde e também
*tardecer.
22
Referências Bibliográficas
AZEREDO, José Carlos de. Gramática Houaiss da língua portuguesa. São Paulo:
Publifolha, 2008.
BASÍLIO, Margarida. Teoria Lexical. São Paulo: Ática, 1990.
BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. [37ª ed., rev. e ampl.] Rio de
Janeiro: Lucerna, 1999.
CORREIA, Margarita; ALMEIDA, Gladis Mª de Barcellos. Neologia em português.
Série Estratégias de ensino. São Paulo: Parábola, 2012.
CORADO, Patrícia Ribeira. A circunfixação como processo de formação de palavras.
In: Soletras. Ano II, nº 4, São Gonçalo, jul./dez. 2002.
LAROCA, Maria Nazaré de Carvalho. Manual de Morfologia do Português. Campinas:
Pontes; Juiz de Fora: UFJF, 1994.
ROCHA LIMA, Carlos Henrique. Gramática Normativa da Língua Portuguesa. [44ª
ed.; reimpressão de 2005] Rio de Janeiro: José Olympio, 1991.
23
DERIVAÇÃO REGRESSIVA (OU REGRESSÃO)
Introdução
A derivação regressiva é um processo pelo qual se gera uma nova palavra a partir
do apagamento de uma parte da base que é interpretada como afixo.
Por esse processo formou-se em português o termo sarampo ‘doença virótica,
caracterizada por erupções cutâneas avermelhadas’, por exemplo. Originariamente, a
palavra que designava esse referente era sarampão; a terminação -ão desse termo não
indicava grau aumentativo, apesar da identidade sonora com o sufixo que expressa esse
conceito. Porém, essa terminação acaba sendo interpretada como sufixo de grau
aumentativo, e, por consequência, a palavra como um todo passa a ter o significado de
grandeza incorporado em si: assim, sarampão passa a ser ‘forte doença virótica’.
Obviamente, a língua passa então a carecer de um termo para indicar o referente
desprovido da valoração dimensiva/intensiva. E exatamente a partir daí se cria o
derivado regressivo sarampo. É o que afirma Basílio (1990: p.38, grifos acrescido):
“[...] temos um caso de derivação regressiva quando uma palavra é interpretada como
sendo uma construção base + afixo e então o afixo é retirado para se formar uma outra
palavra constituída apenas da suposta base”.
Esse fenômeno também se observa no termo quindim ‘doce feito com gema de
ovo etc.’, em que a terminação -im não é sufixo de grau diminutivo (como o é em
espadim ‘espada de pequeno tamanho’), mas apenas parte de seu radical. A partir da
reinterpretação dessa terminação como sufixo dimensivo resulta no novo radical quind-,
o qual serve de base para quindão ‘quindim grande’. A curiosidade nesse caso é que
existem apenas as formas avaliativas ‘pequeno’ e ‘grande’, mas não existe a forma
desprovida de valoração dimensiva. Potencialmente, essa forma pode ser *quinde,
*quinda ou *quindo, que são exatamente as vogais temáticas nominais postuladas por
Mattoso Câmara Jr. (1970: §40)
Por esse fato, percebe-se que a característica inicial que se deve apontar para a
derivação regressiva diz respeito ao fato de esse processo não se dar apenas por
apagamento de partes do corpo fônico da palavra (o que caracteriza o morfema
subtrativo), mas pela concomitante adição de uma vogal final. Por isso, Basílio (id.:
p.39) crê ser melhor falar em um caso misto, pois ao lado da subtração, “[...] também
ocorre o acréscimo das vogais”.
24
1. Os ditos regressivos deverbais
Alguns autores incorporam na derivação regressiva, os substantivos como jogo,
luta e ataque, formado a partir de verbos. Esses casos, no entanto, possui algumas
singularidades em relação ao que foi afirmado até então: além de também ser um caso
misto, ocorre que não se apagam supostos sufixos, mas sim sufixos de fato, os sufixos
flexionais do verbo: de jogar, lutar e atacar, apagam-se as vogais temáticas verbais e a
desinência de infinitivo, para que se chegue às bases jog-, lut- e atac-, às quais se
somam, em seguida as vogais temáticas nominais.
1.1 Um processo ou dois?
O exemplo lutar > luta, e também outros, como abater > abate, pode levar a crer
que há apagamento apenas do sufixo -r, pois cada vogal temática verbal é idêntica à
respectiva vogal temática nominal, -a, para o primeiro par, e -e, para o segundo.
Levando-se em conta essa opção, haveria realmente apenas a derivação regressiva, pois
se trataria não mais do que o apagamento de partes do corpo fônico da base do processo
de formação de palavra.
Porém, é inegável que existe o processo no qual há de fato, ao lado do
apagamento de partes finais do verbo, a adição de uma vogal nominal, como no já
citado par retornar retorno. Assim, se se admite a solução de existir o fenômeno da
derivação regressiva pura e simplesmente, sem que haja a concomitante adição de um
vogal temática nominal, devem-se postular duas regras: a primeira, quando a vogal
temática nominal é idêntica à vogal temática verbal, como nos pares lutar/luta e
abater/abate, há apenas o apagamento do sufixo -r; a segunda, quando não existe
identidade entre as vogais temáticas do verbo base e do substantivo derivado, como nos
pares jogar/jogo e atacar/ataque, além do apagamento do sufixo -r, apaga-se também a
vogal temática verbal (no exemplo, -a) e da desinência de infinitivo, para em seguida
somar-se a vogal temática nominal (nos exemplos, -o e -e, respectivamente).
A primeira proposta gera uma incongruência teórica fundamental, que seria a de
interpretar duas unidades distintas como tendo a mesma natureza; ou seja, utiliza-se um
elemento classificatório próprio de uma determinada classe em outra. A vogal temática,
seja ela nominal ou verbal, tem a função essencial de classificar as palavras de sua
classe gramatical (vogal temática como elemento classificatório), além de servir de base
para as marcas flexionais (vogal temática como atualizador léxico). Sendo elemento
classificatório, a vogal temática é de fato e de direito um elemento morfológico, logo,
25
um elemento que faz parte do plano do conteúdo da língua (primeira articulação) e não
do plano da expressão (segunda articulação). E sendo elemento seletor das marcas
flexionais que se somam ao tema, a vogal temática de um verbo se relaciona com certas
marcas flexionais (as chamadas desinências modo-temporal e número-pessoal),
enquanto a vogal temática de um nome, com outras (as desinências de gênero17 e de
número).
Com esse tipo de derivação regressiva, há uma efetiva mudança de classe
gramatical:18 ora, ainda que, depois da derivação regressiva levada a cabo, a vogal
temática verbal se mantenha imutável no que diz respeito ao plano da expressão (ou
seja, que foneticamente fique inalterada), essa vogal mudou de natureza, pois não está
mais classificando um verbo, e sim um substantivo. Assim, mesmo nesse caso, a vogal
temática é diferente, pois enquanto no verbo ela se alinha em um paradigma que reporta
à classe dos verbos (paradigma esse que inclui as unidades -a, -e e -i), no substantivo,
obviamente, ela se introduz num paradigma classificatório de nomes (esse paradigma é
composto pelos elementos -a, -e e -o).
É sintomático que a natureza de uma vogal temática nominal é de distinta da da
vogal temática verbal o próprio fato de cada uma reportar a um paradigma distinto.
Logo, a vogal temática nominal -a de luta se relaciona com as vogais -e e -o; já a vogal
temática verbal -a de lutar se encaixa em paradigma distinto, composto ainda, como já
dito, pelas vogais -e e -i.
Logo, o fato de os pares lutar luta e abater abate apresentarem identidade
formal no que diz respeito à vogal temática de cada classe nada mais é do que fruto do
acaso, pois trata-se apenas de uma coincidência que se dá no plano da expressão, mas
não no plano do conteúdo.
17
A noção de que o substantivo se flexiona em gênero, como determina parte da tradição gramatical, está
perdendo força, pois muitos autores, como Bechara (1999: pp.337-8) e Azeredo (2000: § 138) defendem a
ideia da inexistência da flexão de gênero nos substantivos, retomando, inclusive, uma antiga lição de
Herculano de Carvalho: “não é o fato de em português existirem duas palavras diferentes –
homem/mulher, pai/mãe, boi/vaca , e ainda filho/filha, lobo/loba (das quais estas não são formas de uma
flexão, mas palavras diferentes, tanto como aquelas) – para significar o indivíduo macho e o indivíduo
fêmea (duas espécies do mesmo “gênero”, em sentido lógico) que permite afirmar a existência das classes
do masculino e do feminino, mas, sim, o fato de o adjetivo, o artigo, o pronome etc., se apresentarem sob
duas formas diversas exigidas respectivamente por cada um dos termos de aqueles pares opositivos –,
“este homem velho”/“esta mulher velha”, “o filho mais novo”/“a filha mais nova” –, formas que de fato constituem uma flexão.
18 Essa mudança de classe é, inclusive, segundo Basílio (Ano: Página), um dos princ ipais motivos
para que haja a derivação lexical.
26
Além disso, mais econômico seria entender que existe apenas um processo de
derivação regressiva, e já que o segundo processo descrito anteriormente é capaz de dar
conta de todos os casos, inclusive aqueles em que há identidade formal entre as vogais
temáticas do verbo e do substantivo, deve-se escolher essa opção.
1.2 A direção do processo
Um sério problema que ocorre com os substantivos regressivos deverbais é que os
elementos que entram nesse processo, a saber, vogal temática verbal e desinência de
infinitivo – que se apagam – e vogal temática nominal – que se adiciona –, são os
mesmo que entram no processo de formação de verbos a partir de substantivos, havendo
apenas uma inversão: a vogal temática verbal e a desinência de infinitivo agora são
adicionadas, e a vogal temática nominal, apagada. Acresce ainda que tanto a derivação
regressiva para gerar substantivos a partir de verbos, quanto a derivação sufixal para
criar verbos a partir de substantivos, são processos que disponíveis na
contemporaneidade da língua.
Deve-se, inicialmente, determinar muito claramente se se trata de verbo gerando
um substantivo a partir do apagamento dos sufixos do verbo, havendo então derivação
regressiva, ou se se trata de substantivo gerando verbo, havendo, então, derivação
sufixal. Observe-se, por exemplo, os pares abaixo:
Algema algemar Cola colar Baba babar
Confeito confeitar Concreto concretar Concurso concursar
Retrato retratar Enfeite enfeitar Grude grudar
De acordo com o Dicionário Houaiss, o que existe nesses pares, na verdade, é o
substantivo gerando o verbo; logo, não se trata de derivação regressiva, mas sim de
derivação sufixal, que respeita a seguinte regra geral: [X]n [[X]n -ar]v. Assim, se se
tem uma base nominal algema e a essa base se soma os sufixos verbais -a e -r, obtém-se
o verbo algemar. Porém, como reconhecer essa direção nesse exemplo, e não o
contrário.
A tradição gramatical sugere que, para se reconhecer essa derivação sufixal, se
deve determinar que, como nos exemplos acima, o substantivo concreto gera um verbo,
e não o contrário. Essa solução, no entanto, é parcial, já que há também, em número
27
significativo, substantivos abstratos que geram verbos, como em ameaça > ameaçar,
cobiça > cobiçar e tortura > torturar.
Existem também verbos que, por derivação regressiva, geram substantivos
concretos, como em retalhar retalho. Esse processo, no entanto, é em número muito
reduzido. Mesmo assim, um caso como esse confirma que o critério para
estabelecimento da direção dos processos aqui explicados não pode ser o da concretude
ou abstração do substantivo, tal qual o faz parte da tradição gramatical.
Nesses casos, pode-se advogar que uma análise diacrônica é capaz de levar a cabo
um resultado distinto daquele que se alcança quando se efetua uma pesquisa sincrônica.
Mattoso Câmara Jr. apontava essa possibilidade com a já tradicional análise da forma
comer, que na sincronia apresenta o radical verbal com-, a vogal temática -e e o sufixo
de infinitivo -r; já no latim cumedere, cum- é preposição, ed- é o radical verbal, e -ere,
os sufixos verbais.19 Assim, as informações históricas, segunda a qual ameaça gera
ameaçar e retalho gera retalhar, não estariam incompatíveis com a análise diacrônica
proposta pela tradição gramatical, que determina exatamente o contrário: os verbos
ameaçar e retalhar geram ameaça e retalho, respectivamente.
Deve-se levar em conta ainda a existência de substantivos que têm tanto acepções
concretas como abstratas. Exemplos:
Balanço pode ser ‘ato ou efeito de balançar’ e ‘brinquedo’ Processo pode ser ‘ato ou efeito de processar’ e ‘conjunto de documentos’
Retiro pode ser ‘ato ou efeito de retirar’ e ‘local de clausura’ Retorno pode ser ‘ato ou efeito de retornar’ e ‘local para retornar’
Controle pode ser ‘ato ou efeito de controlar’ e ‘dispositivo para controlar máquina’
Como se observa, esses exemplos não são contemplados pelo critério proposto
pela tradição, já que se trata de termos polissêmicos que podem ter significados tanto
abstratos quanto concretos.
Por isso, nos pares desses exemplos, levando-se em conta apenas a sincronia da
língua, é muito interessante a conclusão a que chega Basílio (1990: p.41-43), segundo a
qual
Em casos de dúvida, [...] a análise de uma palavra como formação deverbal pode ser mais
interessante, sempre que esta tiver um sentido mais abstrato.
Existem duas boas razões para isso. A primeira é que a formação de substantivos a partir de
verbos é infinitamente mais produtiva do que a formação de verbos a partir de substantivos. A
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O exemplo de fidalgo também é bastante citado quando se apresenta a diversidade de resultado
que se pode alcançar entre uma análise sincrônica e outra diacrônica: na sincronia, reconhece -se fidalg-
como radical, da qual se deriva inclusive a forma fidalguia; já diacronicamente, deve-se reconhecer a
composição filho-de-algo, que, com o tempo, se aglutinou em fidalgo.
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segunda é que uma relação sintático-semântica se estabelece entre verbo e forma nominalizada, a
qual muitas vezes é independente da origem da forma substantiva ou da forma verbal.
É essa relação que vai importar na determinação de uma formação como deverbal ou não,
independente de sua origem concreta . Podemos dizer que uma formação deve ser considerada
como deverbal quando puder ser usada com sentido verbal .
[...]
Ora, se uma palavra não preenche as funções da substantivação do verbo [a saber, “expressar o
significado do verbo dentro de uma visão nominal” – função denotativa – e “dar ao significado
do verbo uma forma sintática de substantivo para que possa figurar em certos tipos de estrutura,
exigidos pelo discurso, em que um verbo não caberia sintaticamente” – função anafórica],
cremos ser razoável dizer, na falta de outras evidências, que essa palavra não é um substantivo
deverbal. Do mesmo modo, devemos considerar como substantivo deverbal o substantivo que,
sendo morfologicamente relacionado a um verbo, apresentar a relação verbo/nome prevista
como função dos processos de substantivação de verbos.
Assim, de acordo com Basílio, por mais que diacronicamente ameaça tenha
gerado ameaçar, em uma análise sincrônica deve-se postular a direção contrária, já que
não importa a “origem concreta” e a palavra ameaça “pode ser usada com sentido
verbal” (‘ato de ameaçar’), ou seja, pode ser parafraseada.
Já com retalhar, mesmo sendo o étimo de retalho, em sincronia é preferível
advogar a favor da direção substantivo > verbo, pois retalho “não preenche as funções
de substantivação do verbo”, ou seja, é possível parafrasear retalhar como ‘cortar em
retalhos’ – função denotativa –, além de ser impossível retomar a semântica de retalhar
por retalho (como o é para os substantivos deverbais; cf.: “ele tentou atacar o quartel,
mas o ataque fracassou”).
2. Regressão ou conversão?
Como já apontado anteriormente (cf. p.XXX) , a conversão pode ser um
processo que atua não só em palavras, mas também em radicais. A partir dessa
perspectiva, a substantivos deverbais tradicionalmente interpretados como regressivos
podem passar a ser entendidos como casos de conversão de radicais. A partir dessa
ideia, o radical atac-, por exemplo, da categoria dos verbos, se converteria a dos nomes,
para passar a receber as vogais temáticas próprias dessa classe, no caso, -e, como
demonstra o esquema a seguir:
atac-v > atac-n + vt -e: ataque
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Essa proposta se mostra pertinente pelo ponto de vista que os elementos -a, -e e
-o que se adjungem ao radical são de fato vogais temáticas, que têm a função de
classificar o radical, e não morfemas derivacionais.
3. Conclusão
Realmente, a regressão é um dos processos mais complexos de formação de
palavras em português; como afirma Basílio (id.: p.43),
[...] podemos ver que o caso das chamadas derivações regressivas em português é bastante
complexo. Por um lado, é questionável se as formações deverbais em pauta são mesmo formações
regressivas ou não; por outro, é difícil distinguir formações deverbais de casos em que um verbo
se formou a partir de um substantivo básico. Do ponto de vista estrutural e de formação, o critério
a ser utilizado é o da relação sintático-semântcia entre o verbo e o substantivo.
De fato, a proposta de Basílio refina a da tradição gramatical, mas ainda deixa
dúvidas, já que se podem revelar incoerências quando se compara com a diacronia.
Além disso, deve-se, inclusive, questionar se essa questão da direcionalidade é relevante
para a descrição da competência linguística do falante. Parece que, nesses casos, o que o
falante tem como competência linguística é que, de um lado, se podem formar, pela
sufixação, substantivos a partir de verbos;, por outro lado, verbos podem ser a base para
a formação de substantivos pela regressão. A partir daí, com as palavras incorporadas ao
léxico, e com a identidade os elementos que entram nesses processos (identidade essa já
aludida no início do tópico 1.2), a própria dificuldade na explicação dessa
direcionalidade leva a crer que ela não é um fator pertinente para a descrição do
processo.
Por fim, há de se questionar se o processo não deveria ser reinterpretado como
uma conversão do radical, já que o elemento que o elemento que entra na constituição
do substantivo deverbal – a vogal temática nominal – não é de natureza derivacional,
mas sim classificatória.
Referências Bibliográficas
AZEREDO, José Carlos de. (2000) Fundamentos de Gramática do Português. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
BASÍLIO, Margarida. (1990) Teoria Lexical. São Paulo: Ática.
BECHARA, Evanildo. (1999) Moderna Gramática Portuguesa . [37ª ed., rev. e ampl.] Rio de
Janeiro: Lucerna
KHEDI, Valter. (1990) Morfemas do português. São Paulo: Ática.
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LAROCA, Maria Nazaré de Carvalho. (1994) Manual de Morfologia do Português. Campinas:
Pontes; Juiz de Fora: UFJF.
MATTOSO CÂMARA JR., Joaquim. (1970) Estrutura da Língua Portuguesa . Petrópolis: Vozes. [Edição de 1984]
_____. (1974) Dicionário de Filologia e Gramática Referente à Língua Portuguesa. [6ª ed.] Rio de Janeiro: J. Ozon.
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CASOS PROBLEMÁTICOS:
BAIXO > BAIXAR > ABAIXAR
BARRA > BARRAR > ESBARRAR
BOLA > BOLAR > EMBOLAR
?CIFRA > CIFRAR > DECIFRAR
LARGO > LARGAR > ALARGAR
NOTA > NOTAR > ANOTAR
Prova > provar > aprovar
firme