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120 R. CEJ, Brasília, n. 17, p. 120-124, abr./jun. 2002 UMA ANÁLISE DA TEXTURA ABERTA DA LINGUAGEM E SUA APLICAÇÃO AO DIREITO AUTOR: NOEL STRUCHINER Dissertação de Mes- trado apresentada, em fevereiro de 2001, ao De- partamento de Pós-gradu- ação em Filosofia da Pon- tifícia Universidade Cató- lica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), como requisito parcial para a obtenção do grau de mestre. Professor Orientador: Dr. Danilo Marcondes de Souza Filho e Professor Co-orientador: Dr. Antonio C. Maia. Esta dissertação tem por objetivo discutir apli- cações e conseqüências do fenômeno “textura aber- ta da linguagem” para a filosofia do Direito, a partir das considerações do Pro- fessor de Oxford H. L. A. Hart, que analisou as rela- ções entre a filosofia da linguagem e a filosofia do Direito. Para tanto, procede à análise do papel da linguagem na constituição e operacionalização do Direito, partindo-se do pressuposto de que as limitações da linguagem refletem diretamente na possibilidade de concre- tização dos propósitos do Direito. A versão de Hart foi escolhida por ser consi- derada uma das constru- ções mais sofisticadas do positivismo jurídico. Ele descreve o Direito por meio da investigação da natu- reza da linguagem. É con- siderado precursor da abor- dagem do Direito conhe- cida como “jurisprudência lingüística”. A dissertação se estrutura em três partes. A primeira trata da origem do conceito de textura aberta da lingua- gem, a qual oferece uma introdução sobre a natureza desse fenômeno. O conceito de “tex- tura aberta” ( open texture) foi empregado de forma pioneira pelo filósofo da linguagem Friedrich Waismann. Emerge do conceito mais amplo da discussão sobre a possi- bilidade de verificação das afirmações em geral. Ele discute a seguinte posição: “o significado de uma afir- mação é o seu método de verificação”, investigando o que se quer dizer por “mé- todo de verificação”. De acordo com Waismann, em situações ordinárias, compreende- mos as afirmações sem exigir nenhuma verificação, uma vez que entendemos todos os seus termos. A questão da verificação surge quando nos depara- mos com afirmações cujas palavras criam uma combi- nação que nunca foi usada e por isso carece de uma explicação, a qual é dada pelo método de verificação. Tal método consiste numa experiência possível, que serve de evidência e de explicação para a afirma- ção. No entanto a afirma- ção não é uma mera abre- viação das verificações, mas possui um estatuto lógico próprio. Isso decorre da textura aberta da maio- ria dos nossos conceitos empíricos. Por isso as verificações de nossas afirmações raramente serão conclusivas. Por textura aberta da linguagem, Waismann pre- tende dizer que os con- ceitos empíricos não apre- sentam uma definição exaustiva, podendo surgir espaços para dúvida sobre o seu significado. De acor- do com ele, a textura aberta da maioria dos conceitos empíricos ocorre por causa da “incompletude essen- cial” das descrições em- píricas, que impossibilita a descrição do conjunto total de situações em que uma palavra se aplica ou não. Isso explica porque as verificações não ocorrem de maneira conclusiva. O conceito de textura aberta da linguagem pro- posto por Waismann nas- ceu do conceito de “hi- pótese” formulado por Wittgenstein, de acordo com o qual uma hipótese admite múltiplas verifica- ções independentes, mas nenhuma delas é conclu- siva. Assim como uma hipótese só pode se tornar mais ou menos provável em função das evidências, e jamais absolutamente certa, a afirmação empírica não pode ser verificada de forma conclusiva em decor- rência da textura aberta da linguagem. Wittgenstein explica a linguagem, recorrendo ao conceito de “jogo”. Assim como ocorre nos jogos, os fenômenos conhecidos como linguagem não pos- suem uma única carac- terística comum que pode ser identificada em todas as suas instâncias. Wittgenstein chama o tipo de semelhança entre os diferentes tipos de jogos de “semelhanças de família”. Da mesma forma, não exis- te uma única essência comum entre os fenômenos da linguagem, mas sim uma similitude do tipo que existe entre os jogos, a semelhança de família. A extensão do uso dos ter- mos que apresentam uma semelhança de família pode ser legitimamente alterada com o tempo. Tanto os conceitos que apresentam uma seme- lhança de família quanto os conceitos dotados de tex- tura aberta podem dar origem a casos fronteiriços, nos quais não se consegue determinar com segurança se o conceito deve ou não ser aplicado. No entender de Waismann: nenhuma linguagem está preparada para todas as possibili- dades. Na segunda parte da dissertação, são analisa- das a forma pela qual a textura aberta da lingua- gem é aplicada ao Direito e as contribuições de al- guns autores para essa discussão. Hart explora dois fenômenos que, segundo ele, geram lacunas (dificul- dade de se aplicar uma regra geral a um caso concreto) no Direito. O primeiro fenômeno decorre da “regra do reconheci- mento”, que determina quais são as regras legais válidas de uma comuni- dade. A regra de reconhe- cimento comporta um con- junto finito de regras e, quando o caso concreto que pode surgir não estiver regulado por nenhuma des- sas regras, haverá uma lacuna no Direito. O segundo fenôme- no decorre da textura aber- ta da linguagem. Hart diz que a textura aberta da linguagem é uma proprie- dade tanto de termos quan- to de sentenças e regras, e faz com que estas apre- sentem sempre a possibili- dade da existência de uma “penumbra de dúvida”, na qual não se sabe com clareza se a regra deve ou não ser aplicada. Hart diz que a função primordial do Direito é o controle social, que tem de ser expresso por uma lin- guagem generalizada, a qual, em certos casos, gera um excesso de simpli- ficação, que deve ser corri- gido nos casos concretos. Hart pretende perquirir em que situações as regras podem ser aplicadas com certeza. Ele expõe as duas formas de se comunicarem os critérios gerais de con- duta para que o controle social seja possível: as formulações verbais e os exemplos, equivalendo estes aos precedentes judiciais e aquelas à legis- lação positivada. Na pri- meira forma, há um uso máximo dos termos gerais classificatórios, e, na última esse uso é mínimo. Por isso, sempre há indetermi- nação quanto aos propó- sitos dos precedentes judiciais.

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120 R. CEJ, Brasília, n. 17, p. 120-124, abr./jun. 2002

UMA ANÁLISE DATEXTURA ABERTA DALINGUAGEM E SUA

APLICAÇÃO AO DIREITO

AUTOR:NOEL STRUCHINER

Dissertação de Mes-trado apresentada, emfevereiro de 2001, ao De-partamento de Pós-gradu-ação em Filosofia da Pon-tifícia Universidade Cató-lica do Rio de Janeiro(PUC-RJ), como requisitoparcial para a obtenção dograu de mestre. ProfessorOrientador: Dr. DaniloMarcondes de Souza Filhoe Professor Co-orientador:Dr. Antonio C. Maia.

Esta dissertação tempor objetivo discutir apli-cações e conseqüênciasdo fenômeno “textura aber-ta da linguagem” para afilosofia do Direito, a partirdas considerações do Pro-fessor de Oxford H. L. A.Hart, que analisou as rela-ções entre a filosofia dalinguagem e a filosofia doDireito. Para tanto, procedeà análise do papel dalinguagem na constituiçãoe operacionalização doDireito, partindo-se dopressuposto de que aslimitações da linguagemrefletem diretamente napossibilidade de concre-tização dos propósitos doDireito.

A versão de Hart foiescolhida por ser consi-derada uma das constru-ções mais sofisticadas dopositivismo jurídico. Eledescreve o Direito por meioda investigação da natu-reza da linguagem. É con-siderado precursor da abor-dagem do Direito conhe-cida como “jurisprudêncialingüística”.

A dissertação seestrutura em três partes.

A primeira trata daorigem do conceito detextura aberta da lingua-

gem, a qual oferece umaintrodução sobre a naturezadesse fenômeno.

O conceito de “tex-tura aberta” (open texture)foi empregado de formapioneira pelo filósofo dalinguagem FriedrichWaismann. Emerge doconceito mais amplo dadiscussão sobre a possi-bilidade de verificação dasafirmações em geral. Elediscute a seguinte posição:“o significado de uma afir-mação é o seu método deverificação”, investigando oque se quer dizer por “mé-todo de verificação”.

De acordo comWaismann, em situaçõesordinárias, compreende-mos as afirmações semexigir nenhuma verificação,uma vez que entendemostodos os seus termos. Aquestão da verificaçãosurge quando nos depara-mos com afirmações cujaspalavras criam uma combi-nação que nunca foi usadae por isso carece de umaexplicação, a qual é dadapelo método de verificação.Tal método consiste numaexperiência possível, queserve de evidência e deexplicação para a afirma-ção.

No entanto a afirma-ção não é uma mera abre-viação das verificações,mas possui um estatutológico próprio. Isso decorreda textura aberta da maio-ria dos nossos conceitosempíricos. Por isso asverificações de nossasafirmações raramente serãoconclusivas.

Por textura aberta dalinguagem, Waismann pre-tende dizer que os con-ceitos empíricos não apre-sentam uma definiçãoexaustiva, podendo surgirespaços para dúvida sobreo seu significado. De acor-do com ele, a textura abertada maioria dos conceitosempíricos ocorre por causada “incompletude essen-cial” das descrições em-píricas, que impossibilita adescrição do conjunto totalde situações em que umapalavra se aplica ou não.

Isso explica porque asverificações não ocorremde maneira conclusiva.

O conceito de texturaaberta da linguagem pro-posto por Waismann nas-ceu do conceito de “hi-pótese” formulado porWittgenstein, de acordocom o qual uma hipóteseadmite múltiplas verifica-ções independentes, masnenhuma delas é conclu-siva. Assim como umahipótese só pode se tornarmais ou menos provávelem função das evidências,e jamais absolutamentecerta, a afirmação empíricanão pode ser verificada deforma conclusiva em decor-rência da textura aberta dalinguagem.

Wittgenstein explicaa linguagem, recorrendo aoconceito de “jogo”. Assimcomo ocorre nos jogos, osfenômenos conhecidoscomo linguagem não pos-suem uma única carac-terística comum que podeser identificada em todasas suas instâncias.Wittgenstein chama o tipode semelhança entre osdiferentes tipos de jogos de“semelhanças de família”.Da mesma forma, não exis-te uma única essênciacomum entre os fenômenosda linguagem, mas simuma similitude do tipo queexiste entre os jogos, asemelhança de família. Aextensão do uso dos ter-mos que apresentam umasemelhança de famíliapode ser legitimamentealterada com o tempo.Tanto os conceitos queapresentam uma seme-lhança de família quanto osconceitos dotados de tex-tura aberta podem darorigem a casos fronteiriços,nos quais não se conseguedeterminar com segurançase o conceito deve ou nãoser aplicado. No entenderde Waismann: nenhumalinguagem está preparadapara todas as possibili-dades.

Na segunda parte dadissertação, são analisa-das a forma pela qual atextura aberta da lingua-gem é aplicada ao Direito

e as contribuições de al-guns autores para essadiscussão.

Hart explora doisfenômenos que, segundoele, geram lacunas (dificul-dade de se aplicar umaregra geral a um casoconcreto) no Direito. Oprimeiro fenômeno decorreda “regra do reconheci-mento”, que determinaquais são as regras legaisválidas de uma comuni-dade. A regra de reconhe-cimento comporta um con-junto finito de regras e,quando o caso concretoque pode surgir não estiverregulado por nenhuma des-sas regras, haverá umalacuna no Direito.

O segundo fenôme-no decorre da textura aber-ta da linguagem. Hart dizque a textura aberta dalinguagem é uma proprie-dade tanto de termos quan-to de sentenças e regras,e faz com que estas apre-sentem sempre a possibili-dade da existência de uma“penumbra de dúvida”, naqual não se sabe comclareza se a regra deve ounão ser aplicada.

Hart diz que a funçãoprimordial do Direito é ocontrole social, que tem deser expresso por uma lin-guagem generalizada, aqual, em certos casos, geraum excesso de simpli-ficação, que deve ser corri-gido nos casos concretos.Hart pretende perquirir emque situações as regraspodem ser aplicadas comcerteza.

Ele expõe as duasformas de se comunicaremos critérios gerais de con-duta para que o controlesocial seja possível: asformulações verbais e osexemplos, equivalendoestes aos precedentesjudiciais e aquelas à legis-lação positivada. Na pri-meira forma, há um usomáximo dos termos geraisclassificatórios, e, na últimaesse uso é mínimo. Porisso, sempre há indetermi-nação quanto aos propó-sitos dos precedentesjudiciais.

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No Direito consuetu-dinário, muitas vezes, apli-car a lei a um caso concretosignifica aplicar decisõesanteriores, de casos pas-sados ao presente, porémantes deve-se averiguar seo caso novo é suficien-temente semelhante aosanteriores, mediante oraciocínio analógico. Osfatores subjacentes a essanoção são valores como:igualdade, consistência,segurança, estabilidadejurídica e previsibilidade.Tais valores são partesconstitutivas do próprioconceito de “justiça” e sãonecessários para a exis-tência de um sistema jurí-dico eficaz.

A dificuldade encon-trada na aplicação dosprecedentes judiciais resi-de nas questões sobre assemelhanças fáticas ne-cessárias e suficientesentre os casos anteriores eo caso presente, para quea mesma decisão possaser tomada. O que falta noraciocínio por meio dosprecedentes são os “fatosoperativos” ou “predicadosfactuais”, que existem nosestatutos positivados eestabelecem as condiçõesnecessárias e suficientespara que a aplicação daregra seja acionada.

De acordo comFrederick Schauer, quandoo caso precedente é conce-bido como um conjunto defatos e uma decisão, o juizou a corte que julga o casopresente deve construir, apartir de uma abstração,um predicado factual queenglobe o caso precedentee o caso atual. Mas não hánada que obrigue logica-mente que o caso presenteseja tratado da mesmaforma que o precedente; apartir de um conjunto defatos e uma decisão, pode-se inferir uma lista infinitade predicados factuais.Faz-se necessário exami-nar a natureza dos julga-mentos pela similaridade,para tentar entender quaisos critérios que determi-nam que certos casos sãoparecidos e, conseqüen-

temente, devem ser trata-dos da mesma maneira.

Porém, de acordocom Nelson Goodman, asimilitude entre objetos nãopode ser medida em termosde posse de característicascomuns. Não basta dizerque uma coisa é seme-lhante à outra; é necessárioespecificar quais as pro-priedades que elas compar-tilham. No entanto isso nãoé o bastante para se afirmarque um objeto é semelhantea outro; é necessário, tam-bém, atribuir um grau derelevância para essa pro-priedade que é compar-tilhada, que pode variar emfunção do contexto no qualse pretende estabelecer acomparação. Advogadosou juízes podem ter pontosde vista conflitantes quefaçam com que eles pri-vilegiem propriedades dife-rentes compartilhadas pe-los casos com que sedeparam.

Pode haver duas li-nhas de precedentes e aaplicação de uma ou outragerar decisões contradi-tórias. Por isso Hart afirmaque a comunicação depautas de conduta pormeio dos precedentes judi-ciais é dotada de umatextura aberta. Por maisque seja possível derivarregras jurídicas, obser-vando os casos prece-dentes, não existe umaforma única para abstrairuma regra determinada; ea regra abstraída a partir daobservação dos casosanteriores sempre pode seralterada se surgir um casosubseqüente, não ante-cipado, que apresentediferenças consideradasrelevantes. Não obstante,na maioria dos casos, osjuízes sabem qual é oprecedente a ser utilizado;bem como concordam comsua incidência no casopresente, além de conver-girem a respeito de suautilização.

Não existe uma únicapropriedade necessária esuficiente capaz de deter-minar todos os casos quedevem ser englobados

dentro de um mesmo pre-cedente. Os casos tratadosda mesma maneira apre-sentam semelhanças defamília. Mas casos novospodem surgir, apresen-tando semelhanças rele-vantes com os casos pre-cedentes e diferenças tam-bém relevantes, fazendocom que o juiz se encontrediante de um campo abertode possibilidades de clas-sificação.

Outra forma de secomunicar critérios geraisde conduta é por meio dasformulações verbais, que noDireito equivalem à legis -lação positivada. No sis-tema jurídico romano-ger-mânico, a segurança jurí-dica deve ser atingida pormeio da observação dasleis escritas, e o com-promisso do juiz é com apalavra das leis. A idéia quepermeia esse sistema é oformalismo do positivismotradicional, segundo o qualo próprio ordenamento ju-rídico é capaz de fornecerrespostas corretas paratodos os casos. Cabe ao juizsubsumir os fatos do casoconcreto à norma, parachegar à conclusão do casoparticular. Contudo, Hartdemonstrou que, assimcomo ocorre com a apli-cação dos precedentesjudiciais, as leis tambémpossuem uma textura aber-ta, em função da texturaaberta dos termos quecompõem a norma posi-tivada. Não sabemos todasas ocasiões em que umaregra é verdadeira ou podeser aplicada com total se-gurança, porque as palavrasque a compõem podemapresentar uma região depenumbra, onde não é clarose elas se aplicam ou não.

De acordo com Hart,para saber se uma regra seaplica ou não a um casoparticular, faz-se necessário“verificar” a regra. O méto-do de verificação consisteno fornecimento das condi-ções de verdade que de-vem ser conhecidas, paraque a regra possa seraplicada. Para fornecer ascondições de verdade da

regra, é necessário aferir ascondições nas quais ostermos gerais das regraspodem ser empregadoscom segurança. Para Hart,os termos gerais são usa-dos para (...) classificarcaracterísticas da vidahumana e do mundo emque vivemos. Esses termostambém são dotados deuma textura aberta, o quesignifica que não podemser verificados conclusiva-mente.

Brian Bix diz que oprimeiro passo, na análisede Hart, para definir o termogeral e saber se ele englo-ba o caso em questão, épensar nos casos “paradig-máticos” para os quais aregra foi construída. Emseguida, deve ser feita umaanálise “criteriológica” parasaber se o fato em questãoé suficientemente seme-lhante aos casos paradig-máticos, para receber omesmo tratamento.

Hart diz que o Direitoé possível, porque todaregra tem um núcleo decerteza onde a maioria doscasos são encontrados eonde sabemos que eladeve ser aplicada ou não.Entretanto, toda regra podeapresentar uma “penum-bra” de dúvida, caso emque cabe ao juiz exercerseu poder discricionário e,assim, tornar a regra menosvaga para os casos futuros.

Uma das discussõesmais interessantes que aintrodução da noção desemelhança de famíliasuscitou é o debate, perti-nente ao campo das ciên-cias cognitivas, acerca danatureza e constituição dosconceitos. A antropóloga epsicóloga Eleanor Roschdemonstrou que os concei-tos não são fixos, masformam categorias cujosmembros apresentam se-melhanças de família. Nãoexiste um conjunto decritérios fixos, necessáriose suficientes estabelecidospor um conceito, para quealgo possa pertencer auma categoria. Os mem-bros de uma categoria nãosão criados de forma igual,

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e os melhores exemplos deuma categoria são chama-dos de “protótipos”. Ascategorias encontradasnas regras legais escritasapresentam as qualidadesque a tradição roschianaapontou: englobam casosconectados por semelhan-ças de família.

Uma das exposiçõesmais elegantes sobre anoção de textura aberta dalinguagem é levada a cabopor Frederick Schauer. Eleanalisa a natureza e o funcio-namento das regras pres-critivas, que pretendemexercer alguma forma depressão no mundo, alteran-do ou canalizando compor-tamentos, em oposição àsregras descritivas, queapenas refletem o mundo:ambas, porém, fazem uso degeneralizações. As regrasprescritivas se decompõemnuma parte antecedente,que Schauer chama de“predicado factual”, e umaconseqüente. O predicadofactual determina as condi-ções que devem ser aferidaspara que a regra seja acio-nada. Trata-se de uma afir-mação descritiva genéricaque, quando verificada,aciona o conseqüente, quefunciona como operadordeôntico da regra, indicandose o predicado factual éproibido, permitido ou obri-gatório.

É comum a regra sercriada a partir de um casoparticular que é tomadocomo caso paradigmáticode uma meta que se queralcançar ou um mal que sepretende erradicar. O se-gundo passo na criação daregra consiste em realizaruma generalização do casoparticular por meio de umaabstração das proprie-dades do caso paradig-mático consideradas rele-vantes para a efetividadedos objetivos da regra, ouseja, para sua justificação.É esta justificação quedetermina quais as pro-priedades do caso parti-cular devem ser levadasem consideração no mo-mento da construção dopredicado factual.

Schauer mostra que,mesmo quando um pre-dicado factual é supos-tamente uma verdade uni-versal, um caso particularnão-antecipado semprepode surgir, pondo emquestão a aplicação dageneralização.

A incompletude es-sencial de nossas des-crições empíricas, segundoa qual não é possível de-limitar os usos dos termosgerais em todas as dire-ções, ocorre porque nãotemos como antecipar to-dos os casos particularesque podem afetar a nossadefinição originária. É aincompletude essencial denossas descrições empí-ricas responsável pelatextura aberta dos termosempíricos e, conseqüen-temente, pela textura abertadas regras.

O Direito, para Hart,tem como principal funçãofornecer pautas de condutapara membros de umadeterminada sociedade.Para que possibilite umacoexistência pacífica entreas pessoas, é necessárioque as pautas de condutafornecidas sejam conhe-cidas previamente. Entre-tanto Alchourron e Bulygin,expoentes da Escola Ana-lítica Argentina do Direito,descrevem alguns empe-cilhos para a boa concre-tização do Direito: quandoexistem dúvidas em rela-ção à solução que deve serfornecida para um casodeterminado, ou quandopessoas pertencentes aogrupo social não têm comohábito obedecer às regras.O problema das lacunas noDireito é referente à pri-meira razão.

Podem-se destacartrês tipos de lacunas. Emprimeiro lugar, quando osistema é defeituoso pornão conter uma regra geral,as lacunas são normativas.Quando não se sabe se umcaso particular deve serinserido dentro de umanorma geral por falta deconhecimento a respeitodos fatos relevantes docaso, as lacunas são de

conhecimento. Nos casosem que não sabemos asolução de um caso parti-cular, porque não sabemosem qual predicado factualele deve ser incluído, fala-se em lacunas de reconhe-cimento.

De acordo comAlchourron e Bulygin, aslacunas de conhecimentosão supridas pelo dispo-sitivo das presunções le-gais, como o ônus da pro-va e a boa-fé. Elas permi-tem que o juiz seja capazde determinar os fatos quepossuem uma existêncialegal, mesmo quando nãose tem conhecimento daexistência real de todos osfatos que poderiam serrelevantes para sua deci-são. Por outro lado, aslacunas de reconhecimentonão podem ser superadas.Em função da textura aber-ta da linguagem, a indeter-minação lingüística é inde-lével. Entretanto a existên-cia de imprecisões nomomento da aplicação dasregras não leva à incom-pletude do sistema jurídico,que é gerada pelas lacunasnormativas. A conclusãodos dois filósofos é que Hartemprega a palavra lacunade maneira imprecisa, nãodiferenciando pelo tipo. Elesugere que os casos delacuna de reconhecimentoimplicam a incompletudedo sistema jurídico; porémesse termo se refere àausência de solução en-quanto o que existe nessecaso é um problema se-mântico nas propriedadesda linguagem.

Na terceira partedesta dissertação, faz-seuma avaliação crítica daaplicação da textura abertada linguagem ao Direito esuas contribuições tantopara o funcionamento doDireito quanto para a filo-sofia do Direito.

A textura aberta dostermos gerais que com-põem as regras jurídicastorna impossível prevertodas as situações em queuma regra deve ser apli-cada ou não; essa imprevi-sibilidade gera um abalo nasegurança jurídica.

A conseqüência datextura aberta da lingua-gem para o Direito é que asregras jurídicas apresen-tam: instâncias em que assuas aplicações são claras;casos fronteiriços nos quaisnão sabemos se as regrasdevem ser aplicadas ounão; e instâncias nas quaisclaramente não devem seraplicadas. De acordo comHart, o Direito funciona,porque a maioria dos casosque aparecem no âmbitojurídico podem ser facil-mente enquadrados dentrodo núcleo de significadodos termos gerais quecompõem as regras. Po-rém, às vezes, diante decasos não-usuais, temosde decidir se um termo seaplica ou não.

Apesar da imprevi-sibilidade significar umestremecimento da segu-rança jurídica, Hart constataque, ainda assim, a texturaaberta da linguagem é umbenefício para o Direito. Nomundo real, apresentamosuma relativa ignorância doconjunto total de fatosrelevantes que devem estarpresentes para a aplicaçãode um termo geral. Sepossuímos uma relativaignorância dos fatos, éinevitável que nossos pro-pósitos também sejamrelativamente indetermi-nados. Na raiz dessa inde-terminação relativa de pro-pósitos está a incapaci-dade de antecipar o futuro.O Direito deve conciliar doistipos de necessidadessociais: por um lado, deveoferecer regras claras queos indivíduos possam se-guir e aplicar sem dificul-dades; por outro, devedeixar abertas, para so-lução posterior, as ques-tões que só podem seradequadamente resolvidasquando surgem os casosconcretos não-antecipa-dos. A textura aberta dalinguagem é vantajosa,porque incorpora essaoscilação entre dois extre-mos: a necessidade decerteza e a de deixar certasquestões em aberto paraserem apreciadas no tem-po adequado.

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Hart identifica oscasos fáceis com os clarose os difíceis com os depenumbra. Nos casos cla-ros, que se encontram nonúcleo do significado dasregras jurídicas, tudo o queo juiz tem de fazer paraalcançar a solução jurídicaválida é subsumir fatosparticulares dentro dostermos gerais classifica-tórios da regra para alcan-çar uma conclusão silogís-tica. Nos casos de penum-bra, em que as nossasconvenções lingüísticasainda não estão solidifi-cadas, o juiz deve elegerentre os possíveis signi-ficados dos termos geraisantes de realizar a subsun-ção e a interpretação, cujopapel é eliminar a indeter-minação da regra para ocaso em questão. Infe-lizmente Hart apresentauma análise superficial daatividade discricionária.

O formalismo jurí-dico defende a tese daplenitude hermética dosistema jurídico, da qual sepode derivar uma únicaresposta correta para todosos casos individuais. Partedo pressuposto de que nãoexistem lacunas no Direito.Entretanto, as observaçõesde Hart mostram que aslacunas de reconhecimentosão inafastáveis. Como aindeterminação semânticapersiste na atividade jurí-dica, então a tese dosformalistas, de que osjuízes devem somentedescobrir as regras previa-mente dadas pelo orde-namento jurídico e aplicá-las ao caso concreto, nãopode ser preservada.

O realismo jurídicosustenta que, para entendera natureza e funcionamentodo Direito, deve-se realizaruma investigação empíricadas atividades dos opera-dores do Direito. Para eles,as regras jurídicas nãodesempenham papel cru-cial nas decisões jurídicas.Revelam uma atitude céti-ca em relação ao papel queas regras exercem na ad-ministração do Direito –este é determinado pelos

juízes. De forma conscienteou não, eles atacam oprincípio da legalidade,que postula que as deci-sões jurídicas são decor-rentes de regras objetivase neutras. Hart rebate osargumentos realistas, de-monstrando que o Direitonão é meramente aquiloque os juízes decidem,mas existem muitos casosclassificados pelo núcleode significado das regrasjurídicas.

É a noção de texturaaberta da linguagem quepossibilita que Hart desen-volva uma teoria interme-diária entre as duas ten-dências opostas. ParaHart, o juiz deve aplicar oDireito nos casos claros e,nos casos de penumbra, aatividade do juiz é criativae construtiva.