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UMA TARTARUGA CHAMADA DOSTOIEVSKI - FERNANDO ARRABAL UMA TARTARUGA CHAMADA DOSTOIEVSKI de Fernando Arrabal TIPO - TEATRO DO ABSURDO Distribuído pelo site:http://www.oficinadeteatro.com/ Para uso comercial, entre em contato com o autor ou detentor dos direitos autorais. Personagens: Malik Liska, sua mulher Papiri, funcionário do zoológico Voz de Fiodor, funcionário do zoológico CENA 1 Escuridão De repente, ruídos de martelar metálico e rugidos de leão Lentamente ilumina-se uma enorme silhueta dominando todo o palco Novamente ruídos, terminando agora por uma espécie de murmúrio humano e tilintar de campainhas Fumaça multicolor sai da "coisa" Rugido e tiro de canhão Espessa fumaça negra Silêncio Pouco a pouco todo o palco se ilumina e vemos uma tartaruga com dois metros de diâmetro Ela se mexe e balança parecendo feliz. Logo dorme profundamente, só se notando sua respiração. Seu território é cercado por um fosso com uma grade de 50 cm de altura. Diz um cartaz: "Tartaruga gigante com cabeça de leão nascida após explosão nuclear. Dorme o dia todo só acordando à noite. Cuidado! Animal radioativo! Mantenham distância!" Papiri desce do teto sentado num antigo sofá. Joga pílulas metálicas e de borracha ao animal . Sempre de mau humor, limpa-o com uma comprida vassoura. Com uma vara em cuja ponta há uma rede recolhe seu cocô, bolinhas de metal dourado. Sobe e desaparece Entram Liska e Malik Liska - (desapontada) - É esse o monstro que queria me mostrar? Malik - Não gostou? Liska - Você disse que era enorme, uma tartaruga gigante. Malik - Não é?

Textos Diversos - Arrabal Beckett Pinter Ionesco

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UMA TARTARUGA CHAMADA DOSTOIEVSKI - FERNANDO ARRABAL

UMA TARTARUGA CHAMADA DOSTOIEVSKI de Fernando ArrabalTIPO - TEATRO DO ABSURDO Distribuído pelo site:http://www.oficinadeteatro.com/Para uso comercial, entre em contato com o autor ou detentor dos direitos autorais.

Personagens:

MalikLiska, sua mulherPapiri, funcionário do zoológicoVoz de Fiodor, funcionário do zoológico

CENA 1

EscuridãoDe repente, ruídos de martelar metálico e rugidos de leãoLentamente ilumina-se uma enorme silhueta dominando todo o palcoNovamente ruídos, terminando agora por uma espécie de murmúrio humano e tilintar de campainhasFumaça multicolor sai da "coisa"Rugido e tiro de canhãoEspessa fumaça negraSilêncioPouco a pouco todo o palco se ilumina e vemos uma tartaruga com dois metros de diâmetro Ela se mexe e balança parecendo feliz. Logo dorme profundamente, só se notando sua respiração. Seu território é cercado por um fosso com uma grade de 50 cm de altura. Diz um cartaz: "Tartaruga gigante com cabeça de leão nascida após explosão nuclear. Dorme o dia todo só acordando à noite. Cuidado! Animal radioativo! Mantenham distância!"Papiri desce do teto sentado num antigo sofá. Joga pílulas metálicas e de borracha ao animal . Sempre de mau humor, limpa-o com uma comprida vassoura. Com uma vara em cuja ponta há uma rede recolhe seu cocô, bolinhas de metal dourado. Sobe e desapareceEntram Liska e Malik

Liska - (desapontada) - É esse o monstro que queria me mostrar?Malik - Não gostou?Liska - Você disse que era enorme, uma tartaruga gigante.Malik - Não é?Liska - Já viu uma baleia?Malik - Nunca viu uma tartaruga? (faz com o polegar e o indicador o tamanho de uma tartaruguinha)Liska - E a cabeça de leão, cadê?Malik - Olha, lá. (indica o fundo do palco, mas a cabeça não é vista pelo público)Liska - Aquilo é cabeça de leão?Malik - Um mistério, uma coisa que apaixona os cientistas.Liska - Mas não apaixona as pessoas que vêm aqui. Não tem ninguém.Malik - Foi depois da explosão nuclear que ela apareceu. É uma mistura de réptil com fauno.Liska - Está viva?Malik - Claro, ou você acha que no zoológico tem animal morto?

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Liska - (Malik toca o animal com uma vara) - Não se mexe.Malik - Está dormindo.Liska - Você parece criança, qualquer coisa te entusiasma.Malik - Vou acordar ela. (cutuca novamente)Liska - Cuidado, é perigoso! (pausa) Você é a fonte da minha vida, meu verbo.(beijam-se)Malik - Olha só o tamanho da boca!Liska - Enorme.Malik - Dá pra comer um homem inteiro.Liska - Se ela acordasse.Malik - Que linda! (toca outra vez a tartaruga)Liska - Linda? Ela é horrível, parece teus pesadelos!Malik - Olha só o que ela come: pílulas de metal!Liska - Queria que fosse sorvete de menta?Malik - Eu adoraria ter um animal desses lá em casa. Vestir ela não deve ser difícil. Que felicidade acordar de manhã com ela ao lado. Bonita como você é, ela faria amor com você. Nós três, num aconchegante ninho!Liska - Eu teria de dormir de couraça.Malik - (inquieto) - Querida, você não gosta de animais?Liska - E você, está com vontade de ser pai?Malik - (amistoso) Por que, está achando que eu quero ter um filho assim?Liska - Ontem à noite você sonhou o quê?Malik - Que tinha na cabeça uns peixinhos compridos como enguias, uma cabeleira de enguias me cobria todo. Estava ao teu lado, pegava tua cabeça e fazia com uma faca um buraco na tua testa. Com a ponta da faca arrancava lá de dentro uma ervilha murcha, igualzinha ao rosto de uma velha.Liska - Pois é, você quer ser pai, todas as noites sonha coisas assim.Malik - Eu?Liska - Tua cabeça, essa cabeleira de enguias...você é a medusa de muitos sexos, eles saem da tua cabeça, da tua inteligência. Para me penetrar você usou uma imagem fálica e com ela tirou da minha cabeça o teu filho.Malik- Meu filho seria uma ervilha murcha com cara de velha?Liska - Nos teus sonhos há imagens indecentes e impossíveis, sem bom gosto ouelegância. São matéria bruta, pássaros selvagens, barulho noturno.Malik - Você não sonha?Liska - Não, só te amo, me enrosco em você como num novelo, é o paraíso.Malik - Também te amo, beijo teu sexo e ele cria a luz, som de flauta e vôo de pluma.Liska - Você é um poeta e um revoltado, qualquer coisa te encanta, com tudo você quer brincar. Mesmo esse animal um pouquinho maior que o normal, para você é um monstro gigantesco.Malik - Que barbaridade, pílulas de metal como comida! Por isso que ela caga bolinhas douradas. Um animal assim devia comer amendoim...Vai comprar alguma coisa pra ela, vai.Liska- Ovo cozido?Malik - Lá atrás vendem salgadinhos. Traz amendoim, ela come e acorda.Liska - Olha só o tamanho da fila...(sai)

CENA 2

Malik - (olhando embevecido a tartaruga. debruça-se sobre a grade e toca o bicho. dá-lhe tapinhas amistosos, faz carinho. coloca-se defronte da boca invisível) Que boca enorme, meu Deus! Como ela é grande, igualzinha a de um leão. (toca a boca da tartaruga. repentinamente, o animal se agita e abocanha Malik que berra e se debate, tenta escapar, mas termina sendo engolido. Liska chega e assiste ao final da cena, horrorizada)Liska - Malik! Malik! (chora e agita-se, não sabe o que fazer) Socorro!

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Papiri - (vindo do alto) - Quê que aconteceu? Por que essa gritaria?Liska - Por favor, faça alguma coisa!Papiri - Calma. O que foi?Liska - A tartaruga engoliu meu marido.Papiri - Engoliu?!Liska - É.Papiri - Vai morrer.Liska - (chorando) - Oh, meu Deus...Papiri - Que responsabilidade a minha!Liska - Coitadinho dele!Papiri - É dela que estou falando, ela vai explodir.Liska - Pense no meu marido, a gente tinha acabado de se casar.Papiri - Pense no meu emprego. Quando o diretor souber!Liska - Faça alguma coisa.Papiri - O quê?Liska - Chama alguém!Papiri - Já vou. Tomara que ela aguente até o engenheiro chegar.Liska - Traz logo esse engenheiro. Não quero meu marido enterrado dentro de uma tartaruga.Papiri - Como você é egoísta! Pense um pouco no animal. Ele está acostumado a comer pílulas, de repente...não vai aguentar, vai morrer! É a maior atração do zoológico. Vou ser despedido.Liska - E meu marido? Você é um monstro!Papiri - Ninguém conhece teu marido, mas nossa tartaruga todo mundo conhece. (pausa) Bom, vou chamar o engenheiro. (puxa uma das cordas e seu sofá é levado para cima).CENA 3(Liska chorando. tempo. ela se impacienta, anda de um lado para o outro. Acaba descobrindo uma porta dando para uma prancha cheia de polvos que não se sabe se são ornamentais ou verdadeiros. fecha a porta. continua buscando algo)Liska - (falando a alguém em cima) - Ei! Passa o telefone, quero falar com Malik. (ninguém responde. ela continua olhando para cima. puxa um fio que estava no chão e aparecem na outra extremidade, pendurados numa barra, animais mortos: ratos, morcegos, sapos. Liska larga o fio e tudo desaparece. volta a chorar)Malik - (dentro do animal e sem emoção na voz) - Dois seios cortados...(Liska emocionada aproxima-se cuidadosamente do animal dando a volta em torno dele. Malik agora com voz normal)...numa baixela de prata.Liska - Malik, você está vivo?Malik - Claro. Um raio poderia cair em cima de mim e não me aconteceria nada.Liska - Mas...você está dentro da tartaruga.Malik - (sem emoção) - Ela me comeu cru.Liska - Está sofrendo?Malik - Estou ótimo.Liska - Você tem de sair daí.Malik - Espera!Liska - O que?Malik - Está fazendo um dia lindo aqui.Liska - É tudo escuro aí. Como é que enxerga?Malik - Enxergo com as mãos, pelo tato. Como os cegos.Liska - Você falou em seios. Viu eles pelo tato?Malik - Não.Liska - Como então?Malik - De vez em quando acende uma luz verde psicodélica.Liska - E esses peitos?Malik - Um quadro lindo.

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Liska - Descreve pra mim.Malik - Oh! (silêncio)Liska - Malik? (com medo) Fala! Diz alguma coisa, eu te amo tanto! Moço, vem logo, vem!Malik - É maravilhoso!Liska- O quê?Malik - Tão lindo!Liska - É?Malik - A luz continua acesa.Liska - Está vendo o quê agora?Malik - A revolução francesa!Liska - Pintada?Malik - Projetada.Liska - Toda a revolução?Malik - Só um resumo: o fim dos privilégios, a declaração dos direitos do homem, Robespierre, Saint-Just. Um resumo instantâneo com a mesma intensidade de um sonho.Lisla - Não acredito.Malik - Às vezes quando um fato fora de série vai acontecer, por exemplo, quando vamos bater num obstáculo, a gente não vê as consequências da batida antes que ela aconteça?Liska - Você está no escuro mesmo?Malik - Na maior escuridão. Meus pés...Liska - Cuidado!Malik - Tudo aqui é duro e dourado.Liska - (chorando) - Não fiquei nem com uma foto tua.Malik - Basta a lembrança do meu sorriso. Não se encha de objetos. Você é a salvação do século, sua mão inocente e sábia. Quando menos esperar, meu rosto aparece na tua memória.Liska - Verdade?Malik - É.Liska - Tinha certeza que um dia ía te acontecer uma coisa dessas. Você vivia falando de coisas fantásticas, do poder da imaginação...(é interrompida pela voz de Papiri)Papiri - Acaba de chegar a resposta do engenheiro. As máquinas do deserto virão para cá. Só elas poderão arrancar teu marido de dentro da tartaruga sem risco de contaminar o zoológico. Fique longe da boca do animal. As máquinas chegarão logo, em três semanas ou um mês. Não toque na tartaruga! Sendo realistas, podemos dizer que dificilmente teu marido sairá de lá.Liska - Não é possível! (para Papiri) Olha, ouve! (silêncio) O senhor me ouve? Não é possível que meu marido fique todo esse tempo dentro da tartaruga, é preciso fazer alguma coisa. (chora)Malik - (calmamente) - Não acredito, tem uma máquina de costura aqui!Liska - Você ouviu o altofalante?Malik - Daqui se ouve tudo.Liska - Dá para comer aí?Malik - Tenho um apetite incrível.Liska - E pra fazer pipi, para...Malik - Igual a tartaruga, cago bolinhas douradas. (blecaute. tempo. pouco a pouco a luz retorna. Liska adormece num carrinho de pedreiro. minueto e tilintar de sinos. a tartaruga se balança ao ritmo da música. assovio de Malik. silêncio. duas luzes verdes, são os olhos do animal)Fantástico! Que maravilha! Você está vendo, Liska? (Liska dorme. a tartaruga se balança. minueto. luzes coloridas. Malik ri prazeiroso) Vejo minha infância toda, o harpista, a estrada...revivo meu passado e meus sonhos, dédalos e sombras. (grita) Liska! Liska!

CENA 4

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Papiri - Que barulho é esse? Silêncio! (desce no seu sofá. a tartaruga pára de brilhar e se imobiliza. de vez em quando ouve-se Malik exclamando "maravilhoso!" Papiri vai até Liska. olha-a com ternura. cobre-a cuidadosamente)Malik - Liska, agora estou no Hospital dos Indefesos...viajando na lua...nas peças de Shakespeare...voando no passado dos meus antepassados...Papiri - Está doente?Malik - E minha mulher?Papiri - Meu Deus, não seja mau, como ela poderia estar de pé depois de tudo que fez durante o dia enquanto você ficou aí de pernas pro ar coçando o saco?Malik - Ela está dormindo?Papiri - Como uma pedra, nem um tiro de canhão acordaria ela.Malik - Coitadinha.Papiri - Ontem, quando ela me chamou, fui grosseiro. Sinto muito, é a profissão. Às vezesnão enxergo nada além do serviço e me esqueço das coisas mais simples. (pausa) Tua mulher é maravilhosa.Malik - Ouvi toda a conversa de vocês.Papiri - Dobramos o preço das entradas.Malik - O público veio em massa.Papiri - Uma grande vitória para o nosso país. O mundo todo está de olho na gente.Malik - Sabe o que eu vejo daqui?Papiri - Nada do que você vê me espanta. Você está prestando um enorme serviço ao turismo do país, acho que poderia pedir um salário como pagamento.Malik - Estou pouco me importando com dinheiro.Papiri - Acho que deveriam te pagar como um funcionário normal.Malik - Por que?Papiri - Ora, aí dentro...seria bom pra tua esposa.Malik - Só penso nela.Papiri - Eu também. (olha Liska com ternura) Não deve ser muito confortável dormir aí.Malik - Tudo aqui é formidável.Papiri - Não se sente numa prisão?Malik - É um verdadeiro conto de fadas. Estou são e salvo, nunca estive tão em forma como agora.Papiri - Ótimo. Você é um homem prático, não consigo suportar pessoas covardes.Malik - É como o azul do silêncio ricocheteando na água.Papiri - Daí de dentro você poderia fazer observações fantásticas, tanto do ponto de vista científico como do ponto de vista moral.Malik - Aqui eu consigo vencer o mal, meus instintos animais ficam doces.Papiri - E sobre a tua mulher, o que é que você vai fazer?Malik - Tenho projetos para ela.Papiri - Você vai ficar famoso, ela deveria lucrar com isso também, não é honesto que a fama seja só tua.Malik - Estou sereno.Papiri - Personalidades virão te ver, tomarão nota de tuas palavras, comprarão tuas memórias, dirão que foi injusto alguém como você ter sido comido por uma tartaruga. Claro, em outro país você já seria ministro ou teria ganho uma medalha olímpica.Malik - Eu e minha mulher somos muito diferentes, nos completamos, somos como a água e o fogo, o ar e a terra.Papiri - Você é o talento, ela a beleza. (pausa) Está se sentindo bem?Malik - Muito bem.Papiri - Como é aí dentro?Malik - Oco.Papiri - Oco?Malik - É.Papiri - E os pulmões, o ventre, os intestinos dela?

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Malik - Ainda não vi eles.Papiri - (pega pílulas) Por falar nisso, posso?Malik - O quê?Papiri - Dar de comida a ela, já é hora. (chama) Fiodor!

CENA 5

Fiodor (só voz) - O que é? Os jornais ainda não chegaram.Papiri - Não foi pra isso que te chamei, mas fez bem em lembrar. Logo que chegarem manda eles pra cá, quero saber o que dizem de tudo isso. (pausa) Joga duas pílulas, já são três da manhã.Fiodor - Quais?Papiri - (olha sua agenda) - A rosa e a azul.Fiodor - Toma! (lança-as. são duas balas que provocam enormes buracos no chão, Papiri tem dificuldade em pegá-las) Ei!Papiri - Sim.Fiodor - Ela já cagou?Papiri - Vou ver. (inspeciona e nada encontra)Fiodor - Olha bem.Papiri - Não tem nada.Fiodor - Nem mesmo uma bolinha de prata?Papiri - Nada. (continua procurando com a ajuda da rede. finalmente, tira uma bolinha dourada de dentro dela) Uma pequena, encontrei!Fiodor - Prateada?Papiri - Dourada! La vai. (levanta a rede e lá em cima pegam a bolinha)Fiodor - Maravilha!Papiri - Como é?Fiodor - Radioatividade 3,5.Papiri - 3,5?Fiodor - É.Papiri - Só quero ver o que os engenheiros vão falar! (silêncio)CENA 6

Papiri - (para Malik) - Ouviu?Malik - Ouvi.Papiri - Tudo mudou depois da tua chegada. Creio que a tua colaboração científica será decisiva. Daqui pra frente, quando for perguntado nas escolas qual a principal função das tartarugas a resposta será: engolir homens.Malik - Vou trazer Liska pra cá.Papiri - Tua mulher?Malik - Faço mal?Papiri - Não sei, essa é uma pergunta muito pessoal.Malik - Eu e ela estamos eternamente juntos, para o que der e vier.Papiri - Está com febre? Quer tirar sangue?Malik - Aqui?Papiri - Oh...mas diga, o que foi que você comeu hoje?Malik - Não tem mulheres que colocam bifes no rosto para ficarem com a pele fresca e sedutora? Pois então, é isso que acontece comigo, a tartaruga me alimenta pelo contato da sua pele, recebo dela tudo o que preciso.Papiri - Nesse caso, ela também deve se alimentar de você.Malik - Claro.Papiri - Não se mexa tanto, faz mal a ela.Malik - Estou parado.Papiri - Que vida boa! São as pessoas que não fazem nada que criam as mais brilhantes

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teorias, são elas os motores de toda a evolução intelectual da humanidade.Malik - Daqui vejo tudo com a mais absoluta clareza.Papiri - Que cheiro tem aí dentro?Malik - Um cheiro ótimo, de bateria de carro.Papiri - Pensei que cheirasse a sapato velho.Malik - Nem café da manhã preciso tomar.Papiri - Você é um sortudo. A tartaruga tem fama de viver mil anos, você vai viver séculos e séculos aí dentro.Malik - Uma aventura maravilhosa!Papiri - Está se sentindo bem mesmo?Malik - Nunca me senti tão bem.Papiri - Sobre a tua esposa, o que é que as pessoas irão pensar sabendo que ela estará aí dentro com você?Malik - Vão compreender.Papiri - Mas ela vai comer o quê aí? Não faz sentido. Além disso, esse cheiro de bateria de carro...Fiodor - Papiri!Papiri - Fala.Fiodor - Chegaram os jornais.Papiri - Joga eles. (caem dois jornais) Certamente falam de você.Malik - Acredita?Papiri - (depois de percorrer com os olhos algumas páginas) - Olha, aqui tem um artigo. Vou ler.Malik - (sem entusiasmo) - Lê.Papiri - (à medida em que lê vai se indignando) - Estranhos rumores circulam em nossa capital: um célebre gastrônomo, sem dúvida cansado de frequentar os restaurantes da moda, comeu a tartaruga gigante do zoológico, sem dúvida depois de haver subornado o encarregado de tomar conta dela. O animal desapareceu completamente nesse abismo sem fundo que é o estômago do gastrônomo. Nosso jornal, evidentemente, não alimenta qualquer tipo de preconceito contra essa espécie de iguaria que é a tartaruga, perfeitamenteapreciada em outros países mais civilizados que o nosso. Achamos mesmo que um dia essa moda culinária chegará até nós. Mas nos faltou o senso das medidas! Era preciso que um só homem devorasse todo o animal ao risco da maior das indigestões? Esse tipo de banquete deveria acontecer entre toda a comunidade, pois apenas assim o nosso país chegará a igualar o renome turístico de nossos vizinhos! Ouviu isso?Malik - Ouvi.Papiri - Não é possível! Tem um outro artigo. (lê e se indigna outra vez) Desejaríamos manter todo o nosso sangue frio ao relatar o que segue. Ontem, logo depois que o zoológico abriu, um homem enorme e completamente bêbado foi à caverna onde está presa a nossa tartaruga gigante, um exemplar único que honra profundamente o nosso país. O bêbado colocou-se em frente à boca do animal, o qual não teve outro remédio do que engoli-lo. Uma vez dentro do ventre da tartaruga, o homem caiu no mais profundo sono. Mais tarde, já acordado, começou a rir sem parar, exigindo que o tirassem de lá enquanto o batácreo sofria horrores por haver sido obrigado a ingerir prato tão indigesto. Nossos leitores podem imaginar o quadro! Há já muitos anos os tribunais estrangeiros condenam a pesadas multas ou a prisão os que maltratam os animais. No nosso caso, o que é que está esperando a Sociedade protetora dos animais para tomar suas medidas? É o cúmulo! (abatido) O que é que tudo isso significa?Malik - Não se preocupe.Papiri - Como assim?Malik - Minha mulher e eu viveremos muito bem aqui, distantes da vã agitação do mundo.Papiri - Tem certeza de que vocês dois cabem aí?Malik - Claro.Papiri - Certeza mesmo?Malik - Cabemos nós dois e mais dois.

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Papiri - (pausa) - É verdade que nem nos conhecemos pessoalmente, mas apesar disso, você me considera seu amigo?Malik - Um amigão.Papiri - Então, como amigo íntimo, eu não poderia viver aí dentro com vocês?Malik - Nós três?Papiri - Por que não? Se nos respeitarmos mutuamente poderemos viver os três muito bem aí dentro.Malik - Sem dúvida.Papiri - Acho que seremos felizes. Às segundas-feiras, o zoológico fechado, poderemos receber os nossos amigos na maior das intimidades.Malik - Ótima idéia.Papiri - Espero que a tua dignidade não se fira com esta proprosta minha.Malik - Absolutamente.Papiri - Então vou me vestir e volto já, me aguarde. (sobe com o seu sofá. blecaute. os olhos da tartaruga voltam a brilhar. De tempos em tempos, Malik solta exclamações exprimindo sua satisfação. ouve-se de dentro do animal uma música suave. projeções de um quadro de Bosch e de uma ilustração de Alice no país das maravilhas. parecem que saem dos olhos do animal, o qual balança-se com ar de felicidade. risos felizes de Malik. Liska ainda adormecida. finalmente, acorda e levanta-se. olha e ouve extasiada as projeções, o balançar da tartaruga, suas luzes cintilantes, as risadas e a música. é tomada pela atmosfera fantástica reinante que durará até o final do espetáculo.

CENA 7

Liska - Malik, Malik!Malik - (em êxtase) - Você está aí?Liska - Que lindo o que eu estou vendo!Malik - O quê?Liska - Luzes, quadros estranhos, a tartaruga se mexendo!Malik - Aqui dentro vejo coisas ainda mais lindas, como se tivesse novos olhos!Liska - Ah...Malik - Revejo toda a história do mundo e do homem.Liska - Não acredito!Malik - Tenho a impressão de haver renascido.Liska - Ouvi teus risos.Malik - Assisti minha vida desde o momento em que nasci, como se fosse a de outra pessoa. Ouvi toda a conversa de meus pais. A visão se precipitava mas pude sentir cada detalhe.Liska - Meus Deus!Malik - Tudo isso em alguns segundos apenas.Liska - Viu novamente tudo e todos?Malik - Sim, vertiginosamente. Revivi o começo do nosso amor.Liska - Verdade?Malik - Graças a ele, quando dou ordens às montanhas, elas andam; os rios remontamseus cursos; os peixes voam e pousam em minhas mãos.Liska - Te amo.Malik - Sinto calor ou frio, mas mornidão nunca. Meu coração está dentro de um ovo,quando entro nágua não me molho.Liska - Preciso de você.Malik - Tenho mãos de pedra, cabeça dágua e pernas de mercúrio, as portas abrem parao nada e meu sangue borbulha. De repente, tudo fica azul e instantaneamentenegro, em seguida verde, amarelo, branco ou vermelho, depois tudo invisível.Liska - Estou tendo um troço!Malik - Mil mãos acariciam meu rosto e meu corpo, como se viessem de dentro de mim. Te

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amo como nunca.Liska - (chorando de alegria) - Malik!Malik - Não sonho nem penso, esqueço que existo. Meu rosto se reflete num espelho e o espelho só reflete você.Liska - Sou você, minhas mãos são as tuas.Malik - Felicidade!Liska - Amor!Malik - Tudo se transformou desde que estou aqui, é uma viagem, sem fim.Liska - Agora, onde é que você está?Malik - Meu corpo voa no futuro a uma velocidade vertiginosa, como um raio escorrego no passado, vejo e sinto tudo, os anos são segundos, os séculos minutos.Liska - Não me deixe sozinha.Malik - Conheço o Universo e minha memória é eterna, vejo o pássaro que a cada anoColhe do oceano uma gota d'água, sou esse pássaro! Compreendo o sentido daVida, sou felino e fênix, cisne e elefante, criança e idoso. Estou só mas ao mesmotempo acompanhado, amo e sou amado, é o paraíso, estou simultaneamente emtodos os lugares, possuo o selo dos selos e à medida em que resvalo no porviro êxtase me toma para nunca mais deixar.Liska - Vou contigo, serei Eva!Malik - Vem!(Liska fica nua. entra na tartaruga. blecaute. tempo)Papiri - (chegando) - Senhor Malik, já estou vestido, vou acompanhá-lo!

(luz fantástica em torno do animal. ouvimos as vozes do casal cantando um aleluia. Papiri entra em cena correndo vestido de D. Quixote)PANO

FIM

O CANDIDATO - HAROLD PINTER

O CANDIDATO de Harold Pinter TIPO - TEATRO DO ABSURDODistribuído pelo site:http://www.oficinadeteatro.com/Para uso comercial, entre em contato com o autor ou detentor dos direitos autorais.

Personagens:

LAMB: O candidatoPIFFS: Responsável pela seleção de candidatos

UM ESCRITÓRIO. LAMB, UM JOVEM ANSIOSO, ENTUSIASMADO, ANDA DE UM LADO PARA OUTRO NERVOSAMENTE. ESTÁ SOZINHO, A PORTA SE ABRE. ENTRA MISS PIFFS. ELA É A ESSÊNCIA DA EFICIÊNCIA.

PIFFS: Bom dia.LAMB: Bom dia, senhorita.PIFFS: Senhor Lamb?LAMB: Isso mesmo.PIFFS: (ESTUDANDO UMA FICHA) Pois não. O senhor está se candidatando à vaga, não é? LAMB: Exatamente.

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PIFFS: O senhor é físico?LAMB: Sim. Aliás, a Física é a própria vida para mim.PIFFS: (LANGÜIDAMENTE) Bom. Costumamos proceder da seguinte forma: antes de discutir as qualificações do candidato, nós o submetemos a um pequeno teste a fim de determinar sua adequadação psicológica. Alguma objeção?LAMB: Não, claro que não.PIFFS: Muito bem.

MISS PIFFS RETIROU ALGUNS OBJETOS DE UMA GAVETA E VAI ATÉ LAMB. ELA COLOCA UMA CADEIRA PARA ELE.

PIFFS: Sente-se, por favor. (ELE SENTA) Posso colocar isso nas suas mãos?LAMB: (AMÁVEL) O que é isso?PIFFS: Eletrodos.LAMB: Ah, sim, é claro. São engraçados, não é?

ELA OS PRENDE NAS MÃOS DELE.

PIFFS: Agora, os fones de ouvido.

ELA PRENDE OS FONES NA CABEÇA DELE.

LAMB: Estou me divertindo.PIFFS: Agora vou ligar.

ELA PÕE A TOMADA NA PAREDE.

LAMB:(LIGEIRAMENTE NERVOSO) A senhora vai ligar? Sim, é claro. A Senhora tem que ligar, não é mesmo?

MISS PIFFS SE SENTA NUM BANCO ALTO E FICA OLHANDO PARA ELE.

LAMB: Isto vai ajudar a determinar a minha... a minha adequadação, não é ?PIFFS:Sem dúvida. Agora, relaxe. Relaxe mesmo. Procure não pensar em nada.LAMB: Está certo.PIFFS:Relaxe completamente. Re-la-xe... Está bem relaxado ?

LAMB FAZ QUE SIM. PIFFS APERTA UM BOTÃO AO LADO DOBANCO DELA. OUVE-SE UM ZUMBIDO ALTO E AGUDO. LAMB SE SACODE COM RIGIDEZ. SUAS MÃO TENTAM ALCANÇAR OS FONES. ELE CAI DA CADEIRA. TENTA SE ARRASTAR ATÉ DEBAIXO DELA. A SENHORITA PIFFS TUDO OBSERVA, IMPASSÍVEL. O RUÍDO CESSA. LAMB SAI DEBAIXO DA CADEIRA, SE ARRASTA, LEVANTA-SE, TEM UMA CONTRAÇÃO, EMITE UMA RISADINHA E DESABA NA CADEIRA.

PIFFS: O senhor se considera uma pessoa nervosa?LAMB: Não sem motivo, não. É claro que eu...PIFFS: O senhor diria que tem um gênio instável?LAMB: Instável? Não, eu não diria que sou instável, quer dizer, às vezes, eu...PIFFS: O senhor costuma ficar deprimido?LAMB: Bem, deprimido, exatamente, não...PIFFS: O senhor faz coisas de que se arrependa na manhã seguinte?LAMB: Coisas de que me arrependo? Bom, depende do que a Senhora quer dizer com freqüentemente... pois é, quando a Senhora diz freqüentemente...PIFFS: O senhor costuma se perturbar com as mulheres?

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LAMB: Mulheres?PIFFS: Homens.LAMB: Homens ? Bem, eu ia responder à pergunta sobre as mulheres.PIFFS: O senhor freqüentemente fica perturbado?LAMB: Perturbado ?PIFFS: Pelas mulheres.LAMB: Mulheres ?PIFFS: Homens.LAMB: Oh, me desculpe...eu... a Sra. deseja respostas separadas ou uma resposta conjunta? PIFFS: Depois de uma dia de trabalho, o senhor costuma se sentir cansado? Nervoso? Desgastado? Irritado? Sem saída na vida? Triste? Frustrado? Mórbido? Incapaz de se concentrar? Incapaz de dormir? Incapaz de comer? Incapaz de ficar sentado? Incapaz de ficar de pé? Lascivo? Indolente? Excitado? Cheio de desejo? Cheio de energia? Cheio de medo? Vazio? De energia? De medo? De desejo?

PAUSA.

LAMB: (PENSANDO) Bem, realmente é difícil de dizer...PIFFS: O senhor se dá bem com as pessoas ?LAMB: Agora, sim, a Senhora menciono uma coisa interessante...PIFFS: O senhor sofre de eczema, apatia ou impotência ?LAMB: Hum...PIFFS: O senhor é virgem?LAMB: Como?PIFFS: O senhor é virgem?LAMB: Bem, eu... eu agora fiquei sem graça. Quer dizer, falando com uma senhora...PIFFS: O senhor é virgem?LAMB: Sim, eu sou, realmente. Não vou mentir.PIFFS: O senhor sempre foi virgem?LAMB: Ah, sim, sempre. Sempre.PIFFS: Desde o início?LAMB: ...? Sim, desde o início.PIFFS: As mulheres o assustam?

ELA APERTA UM BOTÃO DO OUTRO LADO DO BANCO. O PALCO FICA MERGULHADO NUMA LUZ VERMELHA, COM FLASHES QUE ACENDEM E APAGAM JUNTO COM SUAS PERGUNTAS.

PIFFS: As roupas delas? Os sapatos? Suas vozes? Seu riso ? Seus olhares ? O jeito de andar ? O jeito de sentar ? O jeito de sorrir ? O jeito de falar ? Suas bocas ? Suas mãos? Seus pés ? Canelas ? Coxas ? Joelhos ? Seus olhos ? Seus (TOQUE DE TAMBOR). Suas (TOQUE DE TAMBOR). Seus (CÍMBALO). Suas (TROMBONE). Seus (NOTA MUITO BAIXA).LAMB: (BEM ALTO) Bem, realmente, depende do que a senhora quer dizer.

A LUZ CONTINUA PISCANDO. ELA APERTA OUTRO BOTÃO E O ZUMBIDO AGUDO VOLTA A SER OUVIDO. AS MÃOS DE LAMB VÃO ATÉ OS FONES. ELE É JOGADO FORA DA CADEIRA, CAI, ROLA, SE ARRASTA, DESABA E DESMAIA.

SILÊNCIO.

ELE ESTÁ NO CHÃO COM O ROSTO PARA CIMA. MISS PIFFS OLHA PARA ELE, DEPOIS SE APROXIMA E SE CURVA SOBRE ELE.

Page 12: Textos Diversos - Arrabal Beckett Pinter Ionesco

PIFFS: Muito obrigada, senhor Lamb. Comunicaremos o resultado.

FIM

ROUGH FOR THEATRE I - SAMUEL BECKETT

ROUGH FOR THEATRE I de Samuel Beckett TIPO - TEATRO DO ABSURDODistribuído pelo site:http://www.oficinadeteatro.com/Para uso comercial, entre em contato com o autor ou detentor dos direitos autorais.

Personagens:

A: Um homem cegoB:

Esquina de uma rua. Ruínas

A, cego, sentado em um banquinho de montar, arranha um violino. A seu lado um estojo, meio aberto, de pé, entremeado por uma tigela de esmolas. A pára de tocar, vira sua cabeça para a direita do público, ouve. Pausa.

A : Uma esmola para um pobre velho. Uma esmola para um pobre velho. [Silêncio. Ele volta a tocar, pára de novo, volta a sua cabeça para a direita do público, ouve. Entra B pela direita, em uma cadeira de rodas que ele movimenta com uma vara. B pára. Irritado.] Uma esmola para um pobre velho! [Pausa.]

B : Música! [Pausa.] Então não é sonho. Pelo menos! Nem uma visão, eles estão mudos e eu também. [B avança, pára, olha para a tigela. Sem emoção.] Pobre coitado. [Pausa.] Agora eu posso voltar, o mistério está resolvido. [Ele se empurra para trás, pára.] A menos que fiquemos juntos, até que a morte chegue. [Pausa.] O que você diria sobre isso, Billy, posso te chamar de Billy, como meu filho? [Pausa.] Você gosta de companhia, Billy? [Pausa.] Você gosta de comida em lata, Billy?

A : Que comida em lata ?

B : Bife, Billy, somente bife. O suficiente para manter corpo e alma juntos, até o verão, com cautela. [Pausa.] Não? [Pausa.] Umas batatas também, algumas poucas batatas. [Pausa.] Você gosta de batatas, Billy? [ Pausa.] A gente pode até deixar que elas brotem e, quando chegar a hora, colocá-las na terra. A gente pode tentar. [Pausa.] Eu escolheria o lugar e você as colocaria na terra. [Pausa.] Não?

A : Como estão as árvores?

B : Difícil de dizer. É inverno, você sabe. [Pausa.]

A : É dia ou noite?

B : Oh ...... [ele olha para o céu] ....dia, se você quiser. Sem sol, é claro, senão você não teria perguntado. [Pausa.] Você está seguindo meu raciocínio? [Pausa.] Você tem tutano, Billy, você ainda tem algum tutano?

Page 13: Textos Diversos - Arrabal Beckett Pinter Ionesco

A : Mas e a luz?

B : Sim. [Olha para o céu.] Sim, a luz, não há nenhuma outra palavra para isso. [Pausa.] Quer que eu descreva para você? [Pausa.] Quer que eu tente te dar uma idéia sobre essa luz?A : Me parece que eu passo a noite inteira aqui, tocando e ouvindo. Às vezes eu sentia uma luz forte e me aprontava. Colocava de lado o violino e a tigela e me punha de pé, quando ela me tomou pela mão. [Pausa.]

B : Ela ?

A : Minha mulher. [Pausa.] Uma mulher. [Pausa.] Mas agora ... [Pausa.]

B : Agora?

A : Quando parto eu não sei, quando chego eu não sei e enquanto estou aqui eu não sei, se é dia ou noite.

B : Você não foi sempre assim. O que te aconteceu? Mulheres? Jogo? Deus?

A : Eu sempre fui assim.

B : Por favor!

A : [Violentamente.] Eu sempre fui assim, agachado no escuro, arranhando essa velha joça aos quatro ventos.

B : [Violentamente.] Nós tivemos nossas mulheres, não tivemos? Você, a sua, pra te levar pela mão e eu, a minha, pra me tirar da cadeira à noite e botar de volta pela manhã. E pra me empurrar até a esquina quando eu perdia a cabeça.

A : Aleijado. [Sem emoção.] Pobre coitado.

B : Havia somente um problema: a meia - volta. Eu sempre caía. Dizia que seria mais rápido continuar e dar a volta ao mundo. Até o dia em que percebi que poderia voltar pra casa de ré. [Pausa.] Por exemplo, eu estou em A. [Ele se empurra um pouco para a frente, pára.] E vou para B. [Ele se empurra um pouco de volta, pára.] E eu volto para A. [Com élan.] A linha reta! O espaço vazio! [Pausa.] Está comovido?

A : Às vezes eu escuto passos. Vozes. Eu falo pra mim mesmo: - Eles estão voltando, alguns deles estão voltando para ficar, ou para procurar por alguma coisa que eles deixaram para trás. Ou alguém que eles deixaram para trás.

B : Voltar? [Pausa.] Quem iria querer voltar? [Pausa.] E você nunca chamou? [Pausa.] Gritou? [Pausa.] Não?

A : Você não percebeu nada?

B : Oh, eu, você sabe, veja ... Eu sento lá, no meu canto, na minha cadeira, no escuro, 23 das 24 horas do dia. [Violentamente.] O que você queria que eu percebesse? [Pausa.] Você acha que nós poderíamos fazer um par, agora que você está me conhecendo melhor?

A : Bife, você disse?

B : À propósito, do que você tem vivido esse tempo todo? Você deve estar faminto.

Page 14: Textos Diversos - Arrabal Beckett Pinter Ionesco

A : Há coisas, por aí.

B : Comestíveis?

A : Às vezes.

B : Por que você não se deixa morrer?

A : No fim das contas, eu tenho tido sorte. Outro dia tropecei num saco de castanhas.

B : Não!

A : Um saquinho, cheio de castanhas, no meio da rua.

B : Sim, tudo bem, mas por que você não se deixa morrer?

A : Tenho pensado nisso.

B : [Irritado] Mas você não se deixa!

A : Não sou infeliz o bastante. [Pausa.] Esta sempre foi minha maior infelicidade. Infeliz, mas não infeliz o bastante.

B : Mas a cada dia você deve estar um pouco mais.

A : [Violentamente.] Não sou infeliz o suficiente! [Pausa.]

B : Se você me perguntar, fomos feitos um para o outro.

A : [Gesto compreensivo.] Como tudo se parece agora?

B : Oh, eu, você sabe ... Eu nunca vou longe, um pouco pra lá e pra cá da minha porta. Eu nunca nem tinha vindo até aqui.

A : Mas você olha em volta?

B : Não, não.A : Depois de todas essas horas de escuridão você não -

B : [Violentamente.] Não! [Pausa.] É claro que se você quiser que eu olhe em volta, eu olho. E se você não se importar de me empurrar, eu posso descrever a cena, enquanto caminhamos.

A : Você quer dizer que me guiaria? Eu não me perderia mais?

B : Exatamente. Eu diria: - Devagar, Billy, tem um monte de merda alí na frente, vire pra esquerda quando eu disser.

A : Você faria isso?!

B : [Enfatizando sua vantagem.] - Devagar, Billy, devagar, estou vendo uma lata ali na sarjeta, talvez seja sopa ou feijão.

A : Feijão! [Pausa.]

Page 15: Textos Diversos - Arrabal Beckett Pinter Ionesco

B : Você está começando a gostar de mim? [Pausa.] Ou é só minha imaginação?

A : Feijão! [Ele se levanta, coloca a tigela e o violino de lado e vai até B.] Onde você está?

B : Aqui, amigo. [A toma conta da cadeira e começa a empurrar cegamente] Páre!

A : [Empurrando] É um milagre! Uma benção!

B : Pare! [B bate em A com a vara. A solta a cadeira, encolhe-se. Pausa. A tateia em direção ao seu banco, pára, perdido.] Me perdoe! [Pausa]. Me perdoe!

A : Onde estou? [Pausa]. Onde eu estava?

B : Agora eu o perdi. Ele estava começando a gostar de mim e eu o acertei. Ele me deixará e eu nunca mais irei vê-lo. Nunca mais verei ninguém. Nunca mais ouviremos a voz humana.

A : Você já não ouviu o bastante? Os mesmos velhos lamentos e queixas desde o berço até o túmulo.

B : [Lamentando]. Faça alguma coisa por mim, antes de ir embora.

A : Olha lá! Está ouvindo? [Pausa. Gemendo]. Eu não posso ir! [Pausa]. Você está ouvindo?

B : Você não pode ir?

A : Eu não posso ir sem as minhas coisas.

B : Para que elas te servem?

A : Para nada.

B : E você não pode ir sem elas?

A : Não. [Ele começa a tatear de novo, pára]. Eu as encontrarei no fim. [Pausa]. Ou as deixarei para sempre. [Começa a tatear de novo].

B : Arrume o meu tapete, eu sinto o ar frio no meu pé. [A pára]. Eu mesmo arrumaria mas, demoraria muito. [Pausa]. Faça isso por mim, Billy. E então, talvez eu volte e, entocado, novamente em meu buraco, eu diria: - Eu vi um homem pela última vez, bati nele e ele me socorreu. [Pausa] Eu deveria encontrar alguns pedaços de amor no meu coração e morrer de bem com a minha espécie [Pausa]. Por que você me olha desse jeito? [Pausa] Eu disse alguma coisa que não devia? [Pausa] Com que minha alma se parece? [A tateia na sua direção.]

A : Faça um som. [B faz. A tateia na sua direção, pára].

B : Você também não tem olfato?

A : É o mesmo fedor em todo lugar. [Ele estica sua mão]. Estou ao alcance da sua mão? [Ele fica imóvel com a mão esticada]

B : Espera, você vai me ajudar por nada? [Pausa] Quero dizer, sem nenhum motivo? [Pausa] Bom Deus! [Pausa. B pega a mão de A e o traz até ele].

Page 16: Textos Diversos - Arrabal Beckett Pinter Ionesco

A : Seu pé.

B : O quê?

A : Você disse seu pé.

B : Se eu pelo menos soubesse! [Pausa] Sim, meu pé, coloque ele pra dentro. [A se inclina, tateia]. De joelhos. De joelhos você ficará mais confortável. [Ele o ajuda a ajoelhar no lugar certo] Aí.

A : [Irritado] Solta minha mão! Você quer que eu te ajude e fica segurando a minha mão!? [B solta a mão de A, que arruma o tapete]. Você só tem uma perna?

B : Só.

A : E a outra?

B : Ficou ruim e foi amputada. [A põe o pé pra dentro].A : Assim tá bom?

B : Um pouco mais apertado. [A aperta mais]. Que mãos você tem! [Pausa].

A : [Tateando em direção ao tronco de B]. O resto está aí?

B : Você agora podia se levantar e me pedir um favor.

A : O resto todo está aí?

B : Nada mais foi tirado, se é isso que você quer saber. [A mão de A, tateando mais pra cima, atinge o rosto de B, fica]

A : Este é o seu rosto?

B : Eu confesso que é. [Pausa]. Que mais poderia ser? [Os dedos de A passeiam no rosto de B, páram]. Isso? Minha verruga.

A : Vermelha?

B : Violeta. [A retira sua mão, ainda ajoelhado]. Que mãos você tem! [Pausa].

A : Ainda é dia?

B : Dia? [Olha para o céu]. Se você quiser. [Olha]. Não há outra palavra pra isso.

A : A noite virá logo [B se inclina para A, sacode-o].

B : Vamos, Billy, levante-se, você está começando a me incomodar.

A : A noite virá logo? [B olha para o céu]

B : Dia... Noite ... [olha]. Às vezes me parece que a terra fica entalada, um dia sem luz, no coração do inverno e no cinza da noite. [B se inclina para A, sacode-o]. Vamos, Billy, de pé, você está começando a me deixar constrangido.

Page 17: Textos Diversos - Arrabal Beckett Pinter Ionesco

A : Tem mato em algum lugar?

B : Eu não vejo nada.

A : [Vêemente]. Não há verde em nenhum lugar?

B : Tem um pouco de musgo. [Pausa. A junta as mãos no tapete e apóia a cabeça.] Bom Deus! Não me diga que você vai rezar?

A : Não.

B : Ou chorar.

A : Não. [Pausa] Eu poderia ficar assim para sempre, com minha cabeça nos joelhos de um velho homem.

B : Joelhos. [Sacudindo-o bruscamente] Levante-se! Vamos!

A : [Ajeitando-se mais confortavelmente]. Que paz! [B o empurra bruscamente, A cai sobre suas mãos e joelhos.] Dora dizia, nos dias em que eu não havia ganho o bastante: - Você e sua harpa! É melhor você andar de quatro, com as medalhas do seu pai penduradas no seu rabo e uma caixa de esmolas em volta do pescoço. Você e sua harpa! Quem você pensa que é ? E ela me fazia dormir no chão. [Pausa] Quem eu pensava que eu era ... [Pausa.] E então... eu nunca poderia... [Pausa. Ele se levanta.] Nunca poderia ... [Começa a tatear em direção ao banco, pára, escuta.] Se eu ouvisse por bastante tempo, eu escutaria, uma corda vibrando.

B : Harpa? [Pausa] Que estória é essa de harpa?

A : Uma vez tive uma pequena harpa. Fique quieto e deixe-me ouvir. [Pausa.]

B : Por quanto tempo você vai ficar assim?

A : Eu posso ficar horas ouvindo os os sons. [Eles ouvem]

B : Que sons?

A : Eu não sei o que eles são. [Eles ouvem.]

B : Eu posso vê-lo. [Pausa.] Eu posso -

A : [Implorando.] Você não vai ficar quieto?

B : Não! [A toma a cabeça de B em suas mãos] Eu posso ver claramente, lá, atrás do banco. [Pausa.] E se eu o pegasse, Billy? E se eu o roubasse? [Pausa.] Ei, Billie, o que você diria? [Pausa.] Talvez, algum dia, haja um outro velho que sairia do seu buraco e encontraria você, tocando gaita. Você diria a ele que uma vez teve um violino. [Pausa]. Ei, Billie? [Pausa.] Ei, Billie? O que você diria? [Pausa.] Resmungando ao vento de inverno, porque perdeu sua gaitinha. [B cutuca as costas de A com a sua vara] Ei, Billie? [A vira-se, pega a ponta da vara e a joga fora do alcance de B].

FIM

A PONTE - ZUCA ZENKER

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A PONTEde Zuca Zenker TIPO - TEATRO DO ABSURDODistribuído pelo site http://www.oficinadeteatro.com/ Para uso comercial, entre em contato com o autor ou detentor dos direitos autorais.

Personagens:

Maria - Uma pirua decepcionada com a vidaHomem - Um homem rico e decepcionado com a vida.Mendigo - Um homem totalmente louco (fanático religioso)

(A cena acontece numa ponte)Mendigo-Sangue de Jesus tem poder! Eu sou a luz do mundo, quem me segue não andará em trevas, mas terá a luz da vida! Cristo!Cristo! Cristo! Tenha piedade de mim. Santo! Santo! Santo! (Abre a bíblia) Jesus disse: “Ainda que eu testifico de mim mesmo, aos peitos imundos da cadela, a vaca, a faca da minha mão, o meu testemunho é verdadeiro, porque sei de onde vim e para onde vou; mas vós não sabeis de onde venho, nem para onde vou”.Deus que me perdoe. Ai! Filho da puta! (Começa a procurar algo entre os pêlos do braço, encontra uma pulga e a esmaga entre os dedos) Deus! Deus! Deus! Deus! Deus!Deus! Adeus! Adeus! Adeus! Que a graça de nosso Senhor Jesus Cristo esteja comigo! Amém! (Sobe no pára-peito) Porque Jesus é a Salvação!Porque um homem não pode ser tratado como um animal, como um verme, e se ainda fosse um verme teria o que comer, mesmo que fosse a matéria podre de que é feito o homem. Ser verme é ser irracional, ser irracional é ser verme! Eu penso, portanto não sou um verme e, aliás, não deveria sentir fome. Mas se é fome que sinto e se penso que é para ter certeza do que sinto, então que eu me torne irracional! Que eu seja um verme ou uma barata. Eu quero ser uma barata. Está me ouvindo? Hein? Quero ser uma barata, ouviu?Eu posso ser uma barata, porque eu sou o Messias, eu sou Deus? Eu sou o Messias? Ou eu sou uma barata? Eu sou o verme... O verme não, eu sou a barata do Messias!(Abre novamente a Bíblia) Jesus é meu pastor e nada me faltará! Que caia sobre a terra um mal terrível! Que caia sobre os homens um mal terrível! Que Cristo caia sobre a terra! Que eu caia sobre os braços de Deus! Amém, amém...(Entra uma mulher exageradamente produzida)Maria-Onde você pensa que vai seu vagabundo?! (O puxa com força para traz) Aqui Não é lugar de ficar proferindo contra o pai. Seu porco imundo! Some da minha frente seu verme! Você não vai estragar o meu dia! Não mesmo.Mendigo-Queima! Queima Jesus, queima! (Continua murmurando)Maria-Você cala a sua boca porque eu chamo a polícia! Eu estou te avisando. O que é isso na sua mão? Onde você roubou? (Aponta para a bíblia)Mendigo-É meu, é meu, é meu, é meu...Maria-Eu devia ter ido a outro lugar. Não, eu escolhi aqui, eu vou ficar aqui. (Ignora o Mendigo, retoca o batom, o pó e coloca os óculos escuros, sobe no pára-peito para se jogar da ponte. Entra um Homem, aparentemente bem vestido).Homem-Maria?(Ela olha tentando reconhecê-lo)Homem-

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Maria é você?Maria-É, sou.Homem-Não se lembra de mim?Maria-Não.Homem-Olha bem.(Ela tira os óculos e o observa atentamente)Maria-Não. Não me lembro...Um momento, você é o...Nós estudamos juntos...Homem-Não, não.Maria-Você é primo daquela... Como é o nome dela?...Homem-Não.Maria-Claro como eu poderia me esquecer, a gente se conheceu naquele curso... Como era mesmo o nome do curso?...Homem-Não, não foi no curso.(Grande pausa) Maria, nós fomos casados a uns Três, cinco, seis anos atrás.Maria-Henrique?Homem-Não.Maria-Cláudio!Homem-Não.Maria-Eu não acredito! Luiz Alberto é você?Homem-Não, não.Maria-Eu não me lembro do seu nome.Homem-Não tem importância. Eu também não me lembro do meu nome. Pensei que você soubesse...Maria-Não, não sei.Homem-É.Maria-Mas você mudou hein?!Homem-Você também.Maria-É...Você acha?Homem-Acho.Maria-Muito ou pouco?

Page 20: Textos Diversos - Arrabal Beckett Pinter Ionesco

Homem-Bastante.Maria-Pra melhor ou pior?Homem-Não sei.Maria-Um pouco de cada?Homem-É pode ser.(Silêncio. Os dois ficam se olhando e o Mendigo olhando para os dois).Homem-Então você ia...(Ele faz a mímica de um mergulho)Maria-É, eu ia... (Faz mímica de quem vai mergulhar)Homem-Mas por quê? Uma mulher tão jovem como você!Maria-Jovem? (Ri) Mulher até posso ser, mas jovem? Olha bem para minha cara. Quantos anos você acha que eu tenho? Não interessa! Não quero a sua opinião, eu decidi e pronto.Hoje eu acordei, lavei o meu rosto, passei o meu creme contra acne, o creme para sardas, o de rugas, o adstringente, o hidratante, o tonificante e o protetor solar.Tomei algumas vitaminas; me deitei sobre a banheira de água morna com sais, óleos e outros condimentos. Quando entrei no closet: abri todos os armários e gavetas, tudo o que eu podia abrir eu abri, foi aí que tudo aconteceu. (Emocionada) Eu não tinha mais o que vestir, nada! Elas estavam lá e estavam rindo de mim, as velhas, as novas, as importadas, riam com aquele sorriso de traça!(Quase chorando) Eu pirei, fechei tudo e vim pra cá.Homem-Eu só queria dizer...Maria-Não tente me impedir, não se aproxime de mim! Eu vou me jogar! Eu vou me jogar!Homem-Eu também vou me jogar!Maria-É mesmo?Homem-Hoje eu vou acabar com todos os meus problemas.(Pausa) Estou cansado de não estar cansado; não agüento mais ouvir minha voz calma e lenta, mas ela é minha voz e eu não posso deixar de ouvi-la. Eu não suporto ter dinheiro todos os dias e poder gastá-lo onde eu quiser; não suporto chegar em casa e encontrar a minha família perfeita, dois filhos lindos e perfeitos, uma mulher linda e perfeita, uma casa linda e perfeita e um cachorro lindo e perfeito. É tudo tão lindo e tão perfeito...Maria-Será que você ama mesmo a sua mulher?Homem-Amo, mas ela também me ama. Aí eu amo, ela ama e nós nos amamos...Maria-Uma amante iria apimentar sua vida.(Se insinuando)Homem-É pode até ser que no começo seja bom, mas com o tempo iria se tornar normal...O estranho pode até espantar no início, mais um dia ou dois e ele passa a ser normal. Estou cansado de ver essa novidade empoeirada. Você já reparou como os dias estão quentes nesse inverno? Você não deve ter reparado, você já está acostumada com esse tempo...(O Mendigo começa a cantar baixinho)

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Homem-O que é isso?Maria-É essa coisa! A vontade que eu tenho é de tacar fogo em tudo! É um bando de vagabundo, só sabe pedir dinheiro, depois sentar o rabo num boteco qualquer e encher o bucho de cachaça! Olha só o jeito como ele me olha! Eu poderia acusá-lo de ter estuprado a minha moral! E esse cheiro de mijo seco?! Agora agüentar ele falar de Jesus como se falasse da puta que o pariu! Ele acha o quê? Acha que ficar vomitando Deus e arrotando esses discursos religiosos ele será salvo? ”Caiam mil ao teu lado e dez mil à tua direita; tu não serás atingido, pois disseste: O Senhor é o meu refúgio”.Eu acredito nisso. Agora fica aí! Fala tanto de Deus que queria se jogar da ponte. Eu vi!Eu que não deixei, mas podia ter deixado, assim ele ia logo para o inferno e acertava as contas com Satanás! (Percebendo a palavra que pronunciou, dá tapinhas na boca) Deus me livre! (Olha para o Mendigo) Ateu! (O Mendigo pára de cantar, silêncio total) Quer dizer que fomos casados?Homem-É, a uns dez, quinze anos atrás.Maria-Tanto tempo assim? O tempo realmente me surpreende!Homem-A mim também. É, tanta coisa que eu já sabia. Parece que não há mais nada que eu possa descobrir ou aprender.Maria-Existem sim, coisas incríveis que nós nem imaginamos.Homem-O que seria?Maria-(Pensa) Não sei.(Silêncio)Homem-Pois é...Maria-É...(Ela tira uma revista da bolsa e começa a folhear. O Mendigo e o Homem ficam por algum tempo olhando a revista.).Homem-Que horas são?Maria-Estou sem relógio.Mendigo-Duas horas.Homem-Como disse?Mendigo-Duas, eu disse.Homem-Obrigado.Estranho aquele rapaz.Maria-Estranho é você!Homem-Você também é estranha. No dia da sua morte e você se enfeita toda!Maria-O que tem?Homem-Nada. É exatamente isso. De nada vai adiantar se produzir tanto. Você vai morrer! E quem te encontrar, se te encontrarem...Não, eles não vão te encontrar, não será você, mas uma outra

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pessoa.Maria-O que é isso que você está dizendo? Agora eu sei porque nos separamos...Homem-Não nos separamos, não chegamos nem a nos casar.Maria-Mas você disse...Homem-Eu não disse nada minha Senhora, está enganada a meu respeito. Acho que ainda não nos conhecemos Maria, é Maria mesmo o seu nome? Maria do quê?Maria-O que o quê?Homem-Do que você é feita?Maria-Quer parar com isso! Eu não te devo satisfações e além do mais, como você mesmo disse, eu nem te conheço.(Joga a revista no chão)Homem-Eu preciso dizer o que penso. As palavras vêm a minha boca, não sei de onde, não sei como.E que boca é essa que fala o que eu não quero? Que ouvidos são estes que não ouvem o que quero? Que olhos são esses? O que foi que eu vi? O que foi que eu achei que vi, e o que eu pensei ter visto e o que eu nunca imaginei ver?Não sei, às vezes eu acho que eu nunca enxerguei nada.Tudo perdeu o sentido e virou pó.Você me entende?Maria-(Faz que não com a cabeça)Mendigo-Eu entendo. Eu conheço isso que ele disse. Esse sou eu, sou eu. É verdade, é de mim que ele está falando.Maria-Que de você o quê! Cala essa boca!Mendigo-Queima Jesus! Queima!Maria-Eu vou queimar o seu rabo, seu filho da puta!Mendigo-Ta amarrado! Ta amarradoMaria-(Se recompondo)Você acha mesmo que eles não vão me reconhecer? Mas se não me conhecerem como irão publicar na manchete sobre a minha morte, eles tem que saber que eu sou eu, que eu sou Maria. Maria...(pausa) Você acha que eu ainda sou a Maria?Homem-Eu acho que não sei.Maria-O que será que eles irão fazer com as minhas roupas? Meus cremes? (Emocionada) A Lolita minha cachorra...Homem-O que importa o que vão pensar? Se você vai sair na manchete ou não? Você não estará aqui para ver. Jogue fora todas essas porcarias! Vamos ficar mais leves! Quanto mais leves estivermos mais tempo irá demorar a queda.Mais tempo o ar nos sustentará sobre as nuvens. Vamos voar! Voar! Você não precisa de nada disso!Maria-Preciso, eu sei que preciso.Homem-

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Não vai precisar mais. Isso tudo é o quê? Essa lataria e essa massa? É pra te deixar bonita ou mais feia?Maria-Feia?Homem-Mais do que feia, horrível! Um monstro!Maria-Um monstro feio?Homem-Não é só um monstro, é mais do que isso...Maria-Mais ainda?Homem-Como eu posso dizer é algo...Parecido com...Como eu posso dizer?Mendigo-Nada.Homem-Como?Mendigo-Algo parecido com nada.Homem-É exatamente isso: Nada!Maria-Nada?Homem-Nada!Mendigo-Nada, nada, nada...Maria-Nada? Nada.Homem-Nada.Mendigo-Nada, nada, nada...Maria-Eu não preciso de nada. Eu sou mais eu! Não preciso desses ferros velhos, nem dessa porcaria industrializada! (Abre a bolsa, joga os produtos de beleza, remédios, pente, espelho, cigarros, isqueiro, chaves, celular, absorventes, camisinhas, vibrador, algema, chave de fenda, garfo e outros objetos) Não preciso de nada! De nada! Fora de mim!(Se observa) Olha, eu tenho mais coisas. (Começa a se despir, tira os colares, brincos, pulseiras, cílios, sapatos, meia, enchimentos, vestido e a peruca. Pega a carteira, a joga fora fica só com o dinheiro).Maria-Você quer? (Para o Mendigo)Mendigo-Não! Pode jogar fora. Eu não quero essa porcaria. Pra quem não tem, ficar sem dá na mesma. Deus há de me compensar. Amém!Homem-Deixe para alguém que for precisar.Maria-Não vou deixar pra ninguém, é meu! (Come o dinheiro) Pára de ficar me olhando! Espera um pouco, olhe um pouco pra mim.(Pausa) Quando nós fomos casados mesmo?Homem-Foi no ano passado.Mendigo-

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Foi um lindo casamento, eu estive lá, foi lindo! Foi lindo! Realmente muito bonito aquele bolo.Maria-Você se casaria comigo, se soubesse que eu era assim?Homem-Bom...Maria-Por favor, não responda a verdade.Homem-Sim.Maria-Obrigada.Homem-Disponha.(Silêncio. Observam o rio por algum tempo. Sobem no pára-peito).Maria-Chegou a hora.Homem-Não vejo mais sentido, nenhum sentido em me matar.(Refletem)Homem-Que horas são?Maria-Estou sem relógio.Mendigo-Duas horas.Homem-Como disse?Mendigo-Duas, eu disse.(O Homem um pouco atordoado começa a abotoar a camisa e sai de cena como se estivesse esquecido alguma coisa. Maria desce do pára-peito, fica pensativa, pega a bíblia que está no chão, pega um pente que estava dentro da bíblia, a joga no rio e começa a se pentear. O mendigo que estava observando a ação tenta impedir que a bíblia caia e acaba caindo junto; ficando pendurado na ponte).Mendigo –Irmã! Moça! Hei! Dê-me a sua mão! Pelo amor de Deus! Ajuda-me!Maria –Vá com Deus! Amém! (Sai se penteando)Mendigo –Que caia um raio sobre a tua cabeça! Que caia o mundo sobre a cabeça dos homens! Que eu caia sobre os braços de Deus! Amém!

FIM

RASTO ATRÁS - JORGE ANDRADE

RASTO ATRÁSde Jorge AndradeTIPO - DRAMA Distribuído pelo site: http://www.oficinadeteatro.com/Para uso comercial, entre em contato com o autor ou detentor dos direitos autorais

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PERSONAGENS

VICENTE................ personagem principalLAVÍNIA ............... mulher de VICENTEJOÃO JOSÉ ............ pai de VICENTEELISAURA ............ mãe de VICENTEMARIANA ............. mãe de JOÃO JOSÉETELVINA ............. filha de MARIANAJESUÍNA ................. filha de MARIANAISOLINA ................. filha de MARIANAPACHECO .............. pretendente de JESUÍNAMARCELO ............. amigo de VICENTEMARIA ................... ex-noiva de VICENTEMARIETA .............. mãe de ELISAURADOUTORFRANÇA ................. médico da Santa CasaVAQUEIRO............. antigo empregado da famíliaJUPIRA ................... uma prostitutaMARUCO ............... vendedor de doces (italiano)MOROZONI ........... cantora de igrejaEUGÊNIA ............... cantora líricaJOZINA ................... uma vizinhaGALVÃOPOETAPREFEITOJORNALISTADRAMATURGOANIMADORPADRE .................... um professorALUNOS DE GINÁSIOMÚSICO E POVO DA CIDADE NATAL DE VICENTE

PRIMEIRA PARTE

Época: De 1922 a 1965

Cena: Quando se abre o pano, alguns casais estão sentados em um cinema: entre eles, Vicente e Lavínia. Ouve-se assobios de protestos.

vozes: Acenda a luz! Êta galinheiro. Pardieiro. Miauauuuu! Au, áu, áu, áu! (Risadas) Miauauuuu! Larga o osso!vicente: Deve ter faltado luz.lavínia: é o cinema que não presta. Eu quis assistir esse filme quando estava no centro. Todo mundo dizia que era ótimo. Você não quis.vicente: Não tive tempo.lavínia: Você tinha prevenção contra ele.vicente: Estou com dor-de-cabeça.lavínia: Quem manda esquecer os óculos.

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(Subitamente, uma grande tela é iluminada, onde está sendo projetado o filme “AS AVENTURAS DE TOM JONES”. Passa-se a cena da caçada. De repente, Vicente, aflito, levanta-se.)

vicente: Vamos embora, Lavínia!lavínia: Mas, Vicente...vicente: Não quero ver mais.lavínia: Estou gostando. Nãovejo nunca um filme até o fim.vicente: (Grita) Então, fique! (Sai)lavínia: (Sai atrás) Vicente! Que foi, Vicente?vicente: (Aflito) Não sei.vozes: Psiu! 'Psiu! Calem a boca! Fora! Miauuu!(No momento em que a caça épêg pelos cachorros, a cena do filme desaparece, enquanto vemos Vicente entrando em primeiro plano, carregando uma mala de viagem. Lavínia vem abraçada a ele, com expressão de uma grande estação de estrada de ferro, onde há muito movimento de passageiros e de trens que chegam e partem, é projetado tomando todo o fundo e as laterais do palco).

vozes: Carregador? Carregador? Táxi? Quer táxi? Hospedem-se no Hotel Boa Viagem. Carregador? Táxi? Táxi?vicente: (Olha para trás, preocupado) Eu disse a você para não trazer as crianças.lavínia: Marta está com eles no carro. (Aconchega-se a ele, carinhosa) Queria que levasse, com você, a imagem das carinhas.vicente: Assim, você faz as coisas mais difíceis, Lavínia.lavínia: Tenho receio dessa viagem.vicente: Preciso encontrar meu pai. Ele está perdido no meio da mata, no norte de Mato Grosso. Há quase vinte anos. É necessário que eu compreenda de uma vez por todas o que se passou entre nós.lavínia: (Algo retesada) É o que desejo acima de tudo.vicente: É terrível pertencer a um meio, e conseguir fugir dele. Lavínia.lavínia: Não foi o que sempre quis?vicente: Sonhei com isto ainda adolescente.lavínia: Você conseguiu, Vicente.vicente: Mas, ficaram, escondidos em mim, atos que não me deixam viver em paz, me atormentam. O fracasso da minha peça não me magoa mais. Mas, é ele que está levantando um passado... que pensei ter esquecido para sempre.lavínia: Sua peça não fracassou. Só porque meia dúzia de idiotas não compreendeu você, não justifica que julgue seu trabalho um fracasso.vicente: Você está invertendo os dados, Lavínia. Foi meia dúzia que me compreendeu. E minha peça contava verdades de nossa gente. Verdades quepresenciei quando morava na fazenda. Cada pessoa que saía do teatro, fazia-me sentir como se o meu trabalho fosse gratuito, inútil. Parecia que havia destruído um mundo em mim, e não conseguira substituí-lo. Eu sei que o fracasso também é positivo, mas quando se tem coragem de voltar-se para dentro de si mesmo e avaliar os erros que cometemos. Devo aproveitá-lo para entender-me... e criar alguma coisa. Para isto, preciso compreender esse passado e me libertar.lavínia: E você não está criando? O que está fazendo, então?vicente: Pensei que tivesse encontrado a explicação de minha angustiei, de minha vida.Agora, vejo que tenho mentido. A pior coisa que pode acontecer a um autor. Lavínia, é perceber que mente e não saber como sair da mentira.lavínia: Pronto! Já foi ao extremo. Agora, já é mentiroso, também. Você exagera tudo, Vicente!vicente: Mas, é verdade, meu bem.

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lavínia: Você está é querendo explicar a vida, através de uma fuga para um mundo imaginário que será apenas seu. E é necessário viver no mundo de todos. No mundo de seus filhos, por exemplo. Você vive perguntando sobre a verdade dos outros. Nunca perguntou sobre as minhas, que são suas também e estão bem próximas.vicente: Nunca perguntei?lavínia: Nunca. Mas, eu digo: só tenho cinco: você e quatro filhos.vicente: (Abraça Lavínia com carinho)lavínia: ê sempre assim, quando falo de nós! Você me abraça, mas não nos vê. Sabe por quê? Porque vive prisioneiro de uma "ave de asas de aço", não é assim?vicente: (Sorri) É.lavínia: Uma verdadeira escravidão! Minha pior inimiga. E de seus filhos, também!vicente: é um meio de expressão, Lavínia, não uma escravidão.lavínia: Mas, quem sofre as conseqüências sou eu e meus filhos. Lembra-se daquele dia no cinema? Quando saiu desorientado? Do filme da caçada?vicente: Sei, sei.lavínia: Qual foi a explicação de seu pai de que se lembrou?vicente: Sobre a manha das caças?lavínia: É. Ela se aplica muito bem ao que se passa entre nós.vicente: (Alheia-se pouco a pouco) Papai dizia que certas caças correm rasto atrás, confundindo suas pegadas, mudando de direção diversas vezes, até que o caçador fica completamente perdido, sem saber o rumo que elas tomaram. E muitas vezes, são tão espertas que ficam escondidas bem perto da gente, em lugares tão evidentes que não nos lembramos de procurar.

(Ouvem-se, distantes, dezenas de latidos de cães, entrecortados pelo som de uma buzina.O som da buzina funde-se com o apito do trem.)

lavínia: (Sacode Vicente) Vicente! Não ouve o apito do trem? Desistiu de ir?vicente: Não. Eu vou. Preciso ir. Eu mando notícias.lavínia: Amanhã mesmo?vicente: Amanhã. Adeus.lavínia: Adeus. (Beijam-se com amor)

(O apito do trem se transforma, lentamente, em som de buzina de caça. Voltam os latidos dos cães. Vicente e Lavínia desaparecem. À medida que aumentam os latidos dos cães e se acentua o som da buzina, corta-se o filme. A projeções de "slides" coloridos sugerindo uma floresta, ambientaabstralamente a cena. JOÃO JOSÉ, olhando fixamente para frente, está encostado n uma árvore e VAQUEIRO, mais distante, anda à volta tocando a buzina. João José é grisalho e está com a barba de uma semana. Apesar da idade, ainda é forte, disposto e ágil. Vaqueiro é um negro claro, de idade indefinida: tanto pode ter cinqüenta como setenta anos. Vaqueiro observa João José, revelando certa preocupação.)

joão josé: Não adianta, compadre. A caça amoitou.vaqueiro: Velhaca como esta, eu nunca vi.joão josé: Vamos matular, Vaqueiro. Depois rastejamos.vaqueiro: é a terceira vez que ela volta rasto atrás.joão josé: Está ouvindo o latido? Escuta!vaqueiro: É a Lambisgóia. Cachorra briosa está ali.joão josé: Ela acaba levantando. Deixa trabalhar.vaqueiro: Se não levantar, eu levanto, compadre.joão josé: Deixa o cabrito brincar, Vaqueiro. Ele também tem direito de ter brio. Um dia a gente pega.vaqueiro: Nunca carreguei humilhação de catingueiro em garupa de cavalo, compadre.

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joão josé: Nem eu. (Pausa) Minha mãe costumava dizer: "p'ra catingueiro, só caçador matreiro".

(Quando João José pronuncia a palavra "MÃE", ilumina-se o quarto da casa da rua 14, onde MARIANA, deitada, fuma em um cachimbo de barro. Mariana tem mais ou menos quarenta e cinco anos, é forte e tem uma expressão um pouco masculina. Os cabelos são puxados para a nuca em grande coque. Percebe-se que ela não conhece a vaidade, a não ser como coisa censurável nos outros. As sobrancelhas são grossas, as mãos ásperas e tem buço ligeiramente acentuado.)

vaqueiro: Sá Mariana sabiao que falava. (Observa João José) Compadre!joão josé: Que é?vaqueiro: Sei que o senhor não gosta de...joão josé: (Corta) Se não gosto, não diga, compadre.vaqueiro: Às vezes, carece de falar.joão josé: Que é?vaqueiro: Não tem vontadede voltar, compadre?joão josé: Não.vaqueiro: Eu tenho.joão josé: Verdade, compadre?vaqueiro: Tenho, sim.joão josé: Aqui não tem luz, rádio, missa e cerca, compadre. Se minha mãe nos visse nesta mata, aí, sim, ela podia dizer que vivemos num mundo sem porteira.vaqueiro: A gente pode ficar doente.joão josé: Se ficar, a natureza cura. (Odiento) Melhor do que aquela Santa Casa. E se não curar, morro onde sempre tive vontade: no meio da mata. Depois, compadre, somos pagos p'ra olhar essas terras. Dez mil alqueires! Onde vamos encontrar uma coisa assim? Já pensou?vaqueiro: Só p'ra dar uma olhada, compadre. Dezessete anos é muita coisa.joão josé: Se notícia ruim não veio até aqui, é porque está tudo bem.vaqueiro: Tenho saudade das meninas!

(Quando Vaqueiro diz "MENINAS", uma luz difusa ilumina a sala da casa da rua 14. ISOLINA e JESUÍNA, sentadas, e PACHECO, de pé, estão estáticos. Jesuína e Isolina vestem-se mais ou menos iguais; vestidos em tons escuros, compridos e de mangas até os pulsos; gola alta fechada sobre o pescoço. Dão a impressão de extremo asseio. Percebe-se que os vestidos estão gastos, mas não remendados. Usam meias grossas e sapatos de bico fino. Pacheco apoia-se em uma bengala e a roupa é nitidamente do começo do século. Estão todos entre sessenta e setenta anos. Tanto eles quanto Mariana, parecem figuras de um quadro onde os contornou não estão bem definidos.)

joão josé: Aposto que estão sentadas na sala, conversando com o Pacheco. Se é que ele ainda vive.vaqueiro: Homem soberbo, aquele.joão josé: E ainda estão falando em lord Astor.vaqueiro: Quem é, compadre? Ê inglês do frigorífico?joão josé: Não. Morreu num barco chamado Titanic.vaqueiro:: Coitado!joão josé: Não agüento aquilo dois dias. (Encerra o assunto) Vamos caçar!

(João José levanta-se. As perneiras de couro, presas à cinta, aumentem o seu porte desempenado. O sorriso torna seu rosto sereno, com qualquer coisa de infantil.)

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joão josé: (Grita, com grande força de vida) Braúna! Fanfarra! Melindroso! Toca a buzina, compadre! Bota esses cachorros p'ra trabalhar. (Vaqueiro sai, buzinando) Vamos ensinar p'ra esse velhaco que correr rasto atrás é artimanha que caçador matreiro conhece...

(João José pára, subitamente, levando a mão ao peito e apoiando-se à árvore. Vicente (5 anos) aparece atrás da árvore e caminha, admirando a Lua.)

vicente: (5 anos) Papai! Por que a lua está quebrada?joão josé: (Muda o tom) Não estou vendo lua nenhuma no céu, Vicente.vicente: Eu vi no livro.joão josé: É desenho, meu filho.vicente:: Vi também no céu e estava quebrada. Por quê, papai?joão josé: Não sei.vicente: (Um pouco aflito) Por que a lua fica quebrada? Quem sabe? Ninguém sabe?joão josé: Vicente!vicente: Senhor!joão josé: Você já sabe laçar?vicente: Não.joão josé: Laçar é mais importante do que saber por que a lua fica quebrada.vicente: Por quê?joão josé: Porque é. Quer aprender?vicente: (Afastando-se, até desaparecer) Se o senhor me explicar por que a lua fica quebrada, aprendo a laçar também. (Sai)vaqueiro: (Volta correndo) Que foi, compadre? É aquela dor novamente?joão josé: Não foi nada.vaqueiro: Está pensando no menino, compadre? Estava falando sozinho outra vez! Vamos se embora, compadre! Pelo amor de Deus!joão josé: Deixa de besteira,Vaqueiro. Corre! Que está esperando? Aquele velhaco vai embarcar no rio.vaqueiro: Você está bom mesmo, compadre?joão josé: Mais firme do que esta árvore. É fígado. Herança de família. Lá em casa, todo mundo sofria do fígado.

(João José e Vaqueiro, alegres, saem correndo. Desaparecem os "slides". Vaqueiro sai tocando a buzina, que vai se distanciando e se confundindo ao apito do trem que reaparece. Mariana, Isolina, Jesuína e Pacheco movimentam-se. O apito do irem passa da sala para o quarto em tons diferentes: máquina elétrica e da década de VINTE. Pacheco olha o relógio. Mariana, recostada nos travesseiros, fuma espalhando a fumaça com as mãos.Percebe-se que ela está irritada com a cama. Na sala, Jesuína e Isolina fazem crochê. As mãos de Isolina trabalham automaticamente. Isolina tem o pensamento longe. Jesuína enrola a lá, enquanto Pacheco segura o novelo. No momento em que a sala se ilumina, vê-se Pacheco, com dificuldade, pegando o novelo no chão, Jesuína suspira, enlevada com a amabilidade de Pacheco. Quando fala, Pacheco não encara as pessoas, virando a cabeça ligeiramente para cima. Fala mais para si mesmo do que para os outros. Os três conversam, dando a impressão de que os assuntos já foram milhares de vezes repetidos.)

jesuína: (Ouvindo o apito do trem) Não está atrasado o trem, senhor Pacheco?pacheco: (Guarda o relógio) Como sempre.jesuína: Igualzinho ao nosso relógio. Só tem tamanho. Pensei que o serviço houvesse melhorado.pacheco:: O que nasce torto não tem conserto.jesuína: De primeiro, andávamos de trole e havia tempo p'ra tudo. Há tanta velocidade perigosa por aí, e ninguém acha tempo nem para visitar os outros.

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pacheco: As estradas de ferro sempre foram muito mal organizadas. Falta de gente especializada.jesuína: Não sabem nem esperar uma senhora descer. (Olha Pacheco) Antigamente sabiam esperar e ainda davam a mão à gente.pacheco: Delicadezas!jesuína: Mimos! Mimos, senhor Pacheco!isolina: (Voltando de seus pensamentos) Não se salvou ninguém?pacheco: Ninguém. Ira divina.jesuína: Por quê?pacheco: As jóias, a riqueza e o orgulho que havia dentro do navio, pesavam mais do que ele. Tinha que ir ao fundo.isolina: Disseram que nem Deus afundaria o Titanic. Vigia!pacheco: Presunções.jesuína: Riqueza só traz infelicidade; e a vaidade e a beleza, castigo de Deus. Que vale a beleza, não é. senhor Pacheco? Aparências.isolina: Lord Astor parecia um príncipe encantado.jesuína: (Olha Pacheco) Um olhar profundo, magnético!isolina: Delicado, gentil. Lembrava um pouco o doutor França.pacheco: A mesma fronte altiva.isolina: Porém, perdia para o doutor França. Lord Astor era apenas um homem de escol. França era um grande médico, homem caridoso perdido neste sertão. Cientista!pacheco: Que foi feito de França?jesuína: Voltou para a Bahia.isolina: (Suspirante) Morreu numa cidade solitária do interior.pacheco: Mágoas insondáveis.isolina: Ainda sem mulher. É tão triste um homem sem companheira.pacheco: Ia tão bem aqui. Por que partiu daquele jeito, da noite para o dia?jesuína: (Olha ligeiramente Isolina) Coisas de mamãe.pacheco: Levei-o à estação, mas não me disse nada.isolina: (Sorri a Pacheco, agradecida)

(Os três têm um momento de evocação. Mariana agita-se na cama.)

mariana:Doutor França! Doutor França!frança: (Aparece à porta, todo de branco) Está sentindo alguma coisa, dona Mariana?mariana: Claro que não. Não é necessário um exame rigoroso, doutor. (Algo enigmática) Ainda se fosse em Isolina. Etelvina é forte como um boi de carro.frança: O que tem Isolina?mariana:Anda com tanta suspiração. (Intencional) Isolina não sabe se queixar de nada. Nunca sei o que sente. O senhor é médico, quem sabe pode descobrir. Depois, é uma filha exemplar. De prendas raras. Já disse a ela que terá que prestar contas a Deus.frança: Por quê, dona Mariana?mariana:Quem nasce com as qualidades dela precisa fazer muito na vida. Não é a todas que Deus dá tantos dotes. Isolina ainda não chegou?frança: Não.mariana: (Irritada) Ande depressa, doutor. Quem está doente sou eu.frança: (Sorri, sentindo o cheiro da fumaça) Estará mesmo, Dona Mariana?

(França sai. Mariana retoma o cachimbo com uma expressão de enfado com França. Pacheco suspira.)

jesuína: Dizem que lord Astor era também poeta.pacheco: Na minha modesta opinião, era o único erro dele. Erro grave!jesuína: Por quê, senhor Pacheco? Os poetas embelezam a vida.

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pacheco: Falar à lua, perdido em alamêdas, é mais p'ra aluados.jesuína: Homens sensíveis, senhor Pacheco. Lembra-se, Isolina, daquela conferência linda de Coelho Neto?isolina: Lembro. Foi quando Elisaura brigou a primeira vez com João José.jesuína: Não foi.isolina: Foi, sim. João José achou Coelho Neto muito tonto e saiu da conferência.jesuína: (Evocando) "Vim como mariposa atraída pela luz!... porque os poetas são as cigarras que cantam nas folhas dos livros!"pacheco: Tenho para mim, que cigarra é inseto músico que dá prejuízo.isolina: Foi o que João José saiu dizendo. Elisaura ficou tão magoada, coitada.pacheco: Esse negócio de poesia nunca deu nada p'ra ninguém.jesuína: (Faceira) Ah, senhor Pacheco! Quanta desilusão!pacheco: A verdade é que hoje e sempre, quem quer a môça, mexe com o pé e a bôlsa.isolina: Por isto não se casou?pacheco: (Como se já esperasse a pergunta) O fogo nasceu da pedra, a pedra nasceu do chão, firmeza nasce dos olhos, o amor do coração. Não nasceu.jesuína: Mas isto é poetar, senhor Pacheco!pacheco: Simples trovar.jesuína: Só temos amor uma vez na vida. Mamãe dizia: quem casa com qualquer um, aceita qualquer sorte.pacheco: Mulher de caráter, dona Mariana.isolina: Mas, muito injusta.jesuína: Ora, Isolina!isolina: Era mesmo. Igual a ela só mesmo João José, Para ele, não existimos. Nem nós, nem o filho.jesuína: Não sei que prazer você tem em falar dos mortos.isolina: Estou falando que mamãe era injusta. Pelo que eu saiba, não recebemos ainda notícia da morte de João José.jesuína: Quem pode saber. Socado naquela mata!isolina: Mortos ou não, não deixam de ter sido injustos. A morte não apaga essas coisas. Muito menos a impiedade. Suas marcas ficam em nós para toda a vida. Penso que nada morre, Pacheco. Tudo permanece fechado entre as paredes, nas gavetas, agarrado aos objetos.jesuína: Enclausurado no coração, esse relicário mágico!pacheco: Que foi feito de Vicente?jesuína: Nunca nos mandounotícias. Mudou de nome, senhor Pacheco! Quer ingratidão maior?isolina: Não mudou. É nome literário.jesuína: Para mim, mudou. Há pouco tempo foi que descobrimos que os dois nomes eram de uma só pessoa. Renegou até o nome do pai! Então, isto é coisa que se faça?pacheco: Meio sem propósito.

(Etelvina entra enxugando as mãos no avental. Embora seja a mais moça das irmãs, Etelvina tem a cabeça completamente grisalha. Seu rosto, porém, é moço e curtido de sol, revelando ser a única que faz trabalhos fora de casa. É a mais parecida com Mariana.)

etelvina: Não ouviram bater à porta?isolina: Não!etelvina: Preciso largar a cozinha e atender! E vocês sentadas aqui.isolina: Não ouvimos. Etelvina.etelvina: É sempre assim!jesuína: Não sou copeira.etelvina: Nem eu, cozinheira. Mas, se não cozinho, vocês morrem de fome. (Etelvina sai)jesuína: Comer é tão prosaico!

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pacheco: Fastidioso! (Etelvina volta)isolina: Que foi, Etelvina? Por que está assim?etelvina: (Mostra o telegrama, meio passada)jesuína: Telegrama?! Para nós?!etelvina: Está em seu nome, Isolina.isolina: (Nervosa) Então, abra, Etelvina!jesuína: Não gosto de telegramas, senhor Pacheco. Só trazem notícias más.pacheco: Mensageiros funestos!etelvina: Morte não pode ser. Não conhecemos ninguém fora daqui.jesuína: Está se esquecendo de João José?etelvina: Meu Deus!isolina: De quem é, Etelvina? Diga logo!etelvina: Louvado seja Deus!jesuína: Deus nos proteja!etelvina: (Num sussurro) É de Vicente.jesuína: Vicente? Que Vicente?etelvina: O filho de João José, Jesuína!isolina: Vicente?!jesuína: Você leu direito, Etelvina?etelvina: (Lê) "Chegarei quarta-feira trem das nove. Ansioso rever família. Abraços sobrinho Vicente".isolina: (Comovida e ansiosa) Está com saudade da família. Ele tem família! Somos nós! Somos nós, Etelvina!jesuína: Claro que somos nós. Está vendo, Etelvina? Você vivia acusando o coitado. Estava trabalhando, estudando, ilustrando-se, honrando o nome da família.pacheco: Da comunidade!etelvina: Podia ter nos visitado, mandado uma cartinha de vez em quando. Para mim é como se fosse um estranho.isolina: (Terna) Vicente era muito solitário.jesuína: Um pouco neurastênico.isolina: Incompreendido, nada mais!

(Ilumina-se uma vitrola, onde Vicente (23 anos) está sentado, ouvindo cm grande concentração, Maria Caniglia cantando "Vissi d'art", da ópera Tosca de Puccini. Por um momento, todos ficam evocativos como se escutassem a música. Arrebatado, Vicente fecha os olhos, seguindo com as mãos o modular da voz. Quando termina a música, Vicente desaparece.)

etelvina: Mais do que um estranho. Um menino que nunca consegui compreender.isolina: Tão fácil.etelvina: Mas, era um belo menino! Perguntador e espreitador, só ele!jesuína: Aposto que agora as sirigaitas vão nos visitar.etelvina: (Saindo) Preciso ver o que temos na despensa.isolina: Vamos receber muitos convites!jesuína: Nossa casa vai ficar cheia de gente outra vez!isolina: Podemos dar reuniões, fazer seções literárias.jesuína:: Convidamos o poeta do jornal...pacheco: É um bardo e tanto!jesuína: ... a cantora da matriz, o doutor Galvão...pacheco: Homem de todas as luzes!jesuína: ... e... e... enfim, as pessoas cultas do lugar.pacheco: Os homens grados!isolina: O filho da comadre Eulália recita muito bem.jesuína: O filho da comadre Eulália está com mais de cinqüenta anos, Isolina, e é notário.

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isolina: (Desolada) Já? Meu Deus!etelvina: (Reaparece, aflita) Hoje não é quarta-feira?pacheco: Até a meia-noite.etelvina: Então, é hoje que Vicente vai chegar.jesuína: Agora mesmo. Santo Deus. Ainda bem que o trem está atrasado.isolina: Vamos telegrafar a João José.jesuína: Venha conosco, senhor Pacheco. (Subitamente aflita) Etelvina! Você sabe o que escritor gosta de comer?etelvina: (Empertigada e impertinente) Antes de ser escritor, tem o nosso sangue, Jesuína! Bastante carne de porco, biscoitos e frango!

(Saem. França entra no quarto.)

frança: A senhora tem razão. Etelvina é forte como uma colona)

(França é de meia idade e há qualquer coisa de descuidado em suas roupas. Seu rosto é sereno e os gestos, calmos. Arruma constantemente o cabelo, que cai no rosto.)

mariana: É a única que me puxou.frança: Agora nós, dona Mariana. Não há mais pretextos.mariana: Basta um purgante, doutor.frança: Por quê?mariana: Isto é fígado. A família toda sofre do fígado.frança: Como sabe, dona Mariana?mariana: Não posso comer ovo, só chupo lima. Jesuína não toma leite, Isolina não suporta laranja e João José não pode nem ver abacate. Fica tudo desarranjado. Então, não é fígado?frança: Parece.mariana: (Observa França) Que idade tem, doutor?frança: Quarenta e seis.mariana: Está na hora de se casar.frança: Já passou, dona Mariana.mariana: Meu marido também quando se casou, já era madurão assim como o senhor. Já tinha farreado bastante, queria sossegar. São os melhores casamentos. Casa e sossega. Não está vendo a burrada que João José vai fazer hoje?frança: É na idade dele que a gente deve se casar.mariana: Meu filho precisava de uma colona, uma italiana daquelas, que o prendesse na fazenda, fizesse ele trabalhar ou trabalhasse por ele. Como eu fiz. O sol nunca me pegou na cama, doutor! Moça educada em colégio de freira, que lê livro em francês! O que pode sair daí? Pra mim, esse casamento é o começo do fim.frança: Pode ser que aconteça o contrário, dona Mariana.mariana: Qual! É o ovo e o espeto. Comprei esta casa só por causa de minhas filhas. Queria arranjar casamento pra elas. (Insinua) Garanto ao senhor que qualquer uma das minhas filhas vai acompanhar o marido. Seja lá p'ra onde o desgraçado for. Sabem as obrigações de uma mulher. Gostam um pouco desse negócio de moda. Mas, com a idade, isto passa.frança: São moças.mariana: Mas, feias. Me puxaram. E homem é bicho muito à toa. Gosta é de cara bonita. ...ou pernas. Casa... e logo põe outra por conta! O senhor é diferente: é médico. Minhas filhas precisam de um bom reprodutor. Um, assim como o senhor.frança: Obrigado, dona Mariana.mariana: Conheço o senhor. Pensa que não sei que gasta por aí as gemadas que toma em casa?frança: (Ri) Se estou no tempo das gemadas, não estou mais em idade de me casar, dona Mariana.mariana: Repõe, quem gasta muito! (Subitamente) Conhece o Pacheco? O dono da companhia

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de troles?frança: Apenas de vista.mariana: Hoje, vai partir daqui o primeiro trem. O que ele devia fazer? Pegar os troles e vender ou queimar. Mas, não! Vai tentar chegar no frigorífico primeiro do que o trem, só para desmoralizar a estrada de ferro. Não é capadócio?frança: É uma reação natural, dona Mariana.mariana: Ele anda festejando Jesuína. Mas, p'ra mim, daí não vai sair nada.frança: Suas filhas são simpáticas, dona Mariana.mariana: (Rápida) Por que, então, não se casa com ela?frança: Por que não me caso com quem, dona Mariana?mariana: Isolina! Ela gosta muito do senhor. Garanto que é uma môça sadia. Não tem doença nenhuma.frança: Dona Mariana!mariana: É uma ótima menina. Bom! Não e tão menina assim!... mas será uma boa companheira.frança: Não duvido. Mas, não pretendo me casar mais.mariana: Não diga isto, doutor. Homem solteiro é traste.frança: É verdade. Não gosto de Isolina para casar.mariana: E Jesuína ou Etelvina?frança: Ora, dona Mariana!mariana:Com qualquer uma o senhor será feliz.

(Percebemos Etelvina na porta. Um amargo desencanto estampa-se em seu rosto. Logo depois, desaparece.)

mariana:Algum caso deixado na Bahia?frança: Não, senhora.mariana:Então, não há problema. Em um casamento, gostar é o de menos. Afinal, o que sabe uma mulher? Somos levadas p'ra cama e parimos. Nada mais. Quando tia Marta, mãe de Bernardino, me pediu em casamento, eu estava dentro de um rego d'água, dando banho em minha boneca. Não me perguntaram se queria ou não. Tia Marta sabia o que fazia, quando me escolheu! Decerto já desconfiava do filho. É o que eu devia ter feito também com João José. (Concentrada) Mas parece que o que tem de ser, nada muda. (Pausa) Com quinze anos, me vi em uma cama com um homem barbudoao meu lado. Sabe o que fiz? Brinquei com a barba dele... e fiquei sabendo o que era um marido!

frança: A senhora sempre disse que foi feliz.mariana: Se felicidade é segurança — e é — fui muito, até que descobri a flauta.frança: Flauta?mariana: Meu marido tinha uma... que ele tratava como um objeto sagrado. Se Bernardino não tivesse morrido, tínhamos ficado na miséria. Morreu na hora certa. Que Deus o guarde! Para mim, naquela flauta estava todo o mal.frança: Ora, por quê?mariana: Para que um homem quer uma flauta?frança: A vida não é feita só de trabalho, dona Mariana!mariana: A minha, foi. A dele, não.frança: Um homem que tinha trinta mil alqueires...mariana: E trinta mil dívidas.frança: A senhora está amarga, hoje.mariana: É a verdade. A vida era assim. Os homens aprendiam a andar depois que sabiam montar a cavalo. Passavam a vida correndo atrás das caças. Enquanto isto, nós, mulheres, olhávamos as fazendas e as dívidas amontoavam.frança: Onde está a flauta?

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mariana: Na fazenda. Um dia, eu dou sumiço nela. Guardei só para não me esquecer dos negócios do meu marido. Para cada compadre que vendia uma fazenda, dava duzentos ou trezentos alqueires de presente. Recolhia em casa todo mundo que via. "A humanidade é muito sofredora, Mariana!", dizia. Também!... era só ele virar as costas, eu punha tudo p'ra andar. (Pausa) É uma pena, doutor.frança: (Foge ao assunto) A senhora está mais forte do que Etelvina.mariana: Eu sei. Só vou deitar p'ra morrer.frança: Então, por que mandou me chamar?mariana: Isolina! Minhas filhas não têm nenhuma iniciativa. Pensam em vocês e falam da lua. Isolina vai gostar do senhor em silêncio até o túmulo. Mulher é o bicho mais bobo que Deus esqueceu no mundo! (Pausa) Etelvina será o homem da família. Se ela morrer, as outras estão perdidas.frança: Quanta amargura! A senhora está doente, mas é da alma.mariana: Eu sei, doutor França. Sinto aqui dentro. Com a partida deste trem, muita coisa vai acabar.frança: Estrada de ferro é progresso, dona Mariana. Só pode trazer coisas boas.mariana: E más. Obrigada, doutor França. (Chama) Etelvina! Etelvina! Acompanhe o doutor França.frança: A senhora me permite?mariana: O quê?frança: Gostaria de beijar sua mão.mariana: P'ra quê?frança: Admiro muito a senhora.mariana: Não gosto de beijação. Até logo, doutor.frança: (Sorri) Até a vista. (Saí)

(Percebe-se a profunda preocupação de Mariana. Jesuína e Isolina entram, vindas da rua, vestidas no rigor da moda, mas trazendo pano amarrado à cabeça. As duas formam contraste bem acentuado com Etelvina. Esta examina as irmãs com admiração secreta.)

jesuína: Ah! Bom dia, doutor França.isolina: Bom dia.frança: Bom dia. Como vão?jesuína: Muito bem.frança: Esperei-as, mas agora preciso ir.jesuína: Mamãe pensa que ainda estamos na fazenda, quando a visita do médico era aproveitada até para as vacas!etelvina: Onde foram?jesuína: Arrumar a igreja.isolina: Está linda! Um ninho de flores!frança: Então? Tudo pronto para as bodas?jesuína: Tudo.etelvina: E João José?isolina: Foi se vestir no hotel.etelvina: Não vai aparecer mesmo?jesuína: Cabeçudo, só ele.isolina: Também! Mamãe tem cada uma! É a moça de quem ele gosta, não é, doutor França ?frança: Demonstra que é.jesuína: Paixão arrasadora!isolina: João José disse que não viria aqui, se mamãe não fosse ao casamento. Cumpre a palavra.etelvina: Mas, mamãe está doente!jesuína: João José não acredita. E quem acredita? Ela vive dizendo que só deita p'ra morrer!

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(Subitamente, Jesuína tira o pano da cabeça. O cabelo cortado "à la garçonne" dá a ela um toque ligeiramente ridículo.)

jesuína: Tire também, Isolina!etelvina: Mas, vocês?!isolina: (Faceira) O que tem nós?etelvina: (Com inveja oculta) Cortaram o cabelo?!jesuína: Gosta, doutor França?frança: Está usando muito.jesuína: Somos escravas, mas da moda. Não ficou bem para Isolina?frança: Para as duas.etelvina: (Aflita) Desculpe-me, doutor França, mas preciso me arrumar.frança: Passe bem!etelvina: Até à vista (Sai)frança: Espero que gostem da festa.jesuína: Promete muito.isolina: Não vai, doutor?frança: Não posso.jesuína: O senhor é tão solitário!isolina: Temos tão poucas festas!jesuína: (Olha Isolina) E raros casamentos.isolina: Não vai nem à estação?frança: Não são todos os dias que assistimos ao nascimento de uma estrada de ferro. Mas, tenho obrigações.jesuína: (Ameaça com o leque) A vida vai passando, doutor.frança: De qualquer maneira ela passa.jesuína: Pode passar em atitudes namoradas!isolina: (Com mais evidência do que pensa) Cheia de afetos!frança: Ou de espinhos.jesuína: São os afetos que não deixam os espinhos nascerem.frança: Alguns já nascem conosco.isolina: (Falso horror) Meu Deus! Quanto desengano.jesuína: O seresteiro da moda vai cantar na estação.isolina: O Gondoleiro do Amor.frança: Não é uma canção imprópria para o momento?jesuína: É a única que ele canta.isolina: Sabe que a Corina vai recitar, doutor?frança: Outra vez?!jesuína: A Morte da Águia! Já ouvimos a morte desta águia milhares de vezes.isolina: A Morozoni vai repetir o sucesso de domingo: "Vissi d'arte, vissi d'amore".frança: Ela canta bem.isolina: Vai cantar em cima da plataforma da máquina. Imagine, doutor! (Com fragilidade um pouco acentuada) Eu morreria de medo!frança: Tem coragem. Bom! Espero que ninguém tome o trem sem querer.isolina: (Ouve-se a banda que se aproxima e passa) Nem ao casamento o senhor vai?frança: A Santa Casa me espera.jesuína: Nem todas as pessoas de quem o senhor deve cuidar, estão na Santa Casa, doutor.isolina: Doutor França parece não gostar de cerimônias latinas. Nunca o vemos à missa.frança: Sou descrente.isolina: (Faceira) Desilusões?frança: Sou livre pensador.isolina: Ah! Que coisa mais feia, doutor!jesuína: Os homens são assim mesmo. Não acreditam em nada!frança: Apenas disse que faço pensaduras. Curativos.

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isolina: Um jogo de equívocos?frança: (Penalizado) Sim. De equívocos.jesuína: Trocadilhista? Mais uma prenda de espírito que não conhecia no senhor.frança: Tenho muitas... ocultas, Até logo. Divirtam-se!jesuína: Até logo.isolina: (Sussurro) Adeus! (França sai)jesuína: (Corre e olha-se no espelho) Não agüentava mais minha cara.isolina: (Triste) Muita gente vai se ralar de inveja.jesuína: Se vai! (Subitamente) Você notou alguma coisa, Isolina? No doutor França? Estava com um ar misterioso. Pareceu-me tão esquivo!isolina: Cientista! São misteriosos como os poetas.jesuína: Devem amar também como eles: em silêncio!isolina: (Perdida) São os mais sinceros. Duradouros!jesuína: O meu Pacheco não é poeta, mas também se mantém em silêncio.isolina: É sentir difícil de se externar.jesuína: Mas, descobri o meio de fazer Pacheco se declarar.isolina: É? Como?jesuína: Vou mentir que seguirei na primeira viagem.isolina: Que ótimo! Vai ficar aterrado.jesuína: Subirei na plataforma, prometendo escrever e quando ele ficar desolado, recitarei:

Da boca farei tinteiro.Da língua, pena afiada.Dos dentes, letras muídas.Dos olhos, cartas gravadas!

jesuína: Aí ele se declara... e partiremos juntos! Partir! Partir! Que sensação deleitosa! Partir para qualquer lugar. (Olha-se no espelho)isolina: (Olha-se no espelho) Navegar em transatlânticos!jesuína: (Olha-se no espelho) Convivendo com lordes!isolina: (Olha-se no espelho) Seguindo os últimos jornais da moda!jesuína: (Olha-se no espelho) Quem é aquela rainha da moda, coberta de arminho?isolina: (Olha-se no espelho) Com vestido perlê e lindas aigrettes!jesuína: (Olha-se no espelho) São as duas irmãs misteriosas!... fabulosamente ricas!... que esmagam corações!isolina: (Subitamente) Você vai magoá-lo, Jesuína! Os troles! Está se esquecendo?jesuína: Direi que vou até ao frigorífico para assistir à vitória dele. Sabe que ele vai apostar corrida com o trem?isolina: A cidade toda comenta!jesuína: Ele é tão afoito, irá me esperar lá. Está sofrendo tanto por causa dos troles. Tão lindos! Que trem mais antipático! E você? O que recitaria ao doutor França?isolina: Meu amor, meu doutorzinho! Meu amor, que Deus me deu! Dona Mariana governa tudo! Querer bem, governo eu!jesuína: Que lindo! (Canta diante do espelho)

Tua voz é a cavatinaDos palácios de Sorento!

isolina: (Acompanha) Por isto eu te amo querido! Quer no prazer, quer na dor!

(As duas cantam, revezando-se diante do espelho, retocando-se. Depois, desaparecem dentro da casa. Ao mesmo tempo, Etelvina entra no quarto já pronta para o casamento.)

etelvina: Mamãe! Vou ao casamento.

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mariana:João José não vem mesmo?etelvina: Não, senhora.mariana:Aquele cabeça-dura.etelvina: Ê bem filho da senhora.mariana: Teimoso como uma mula.etelvina: Vamos, mamãe! Ainda dá tempo.mariana: Não. Não vou.etelvina: Fica feio, mamãe!mariana: Que me importa. Já estamos entrando com o noivo, Etelvina, a única coisa realmente importante num casamento. E a mais difícil! Vocês que o digam!etelvina: A senhora devia pensar em João José.mariana: É por isto mesmo. Meu filho não vai ser feliz.etelvina: Por que não? Vai casar com quem gosta.mariana: Até parece que não conhece seu irmão.etelvina: Conheço muito bem.mariana: João José é um caboclão que nunca leu um livro. Primitivo e selvagem como um potro. Não estudou, não tem profissão, depende só da fazenda! E com quem vai casar? Com a filha de Sebastião Villela, um homem que nunca saiu da cidade! Uma casa onde se toca piano! Moça de cidade! Diante do primeiro tacho de sabão, vai desmaiar. Como posso ir nesta igreja, se é isto que vou ouvir o padre falar? Não, não vou mesmo.etelvina: Eles terão que viver conosco, mamãe.mariana: Na fazenda. Aqui, não (Subitamente) Você não percebe que suas irmãs vão depender de João José ou de você? Se perdermos o que sobrou, vocês vão viver como? De brisa?etelvina: A gente trabalha, mamãe.mariana: Você trabalha! Quanto mais penso mais raiva sinto de Bernardino.etelvina: Não fale mais de papai, mamãe. Morreu.mariana: Trinta mil alqueires jogados fora! É aquela flauta!etelvina: Não vamos falar sobre isto, mamãe. Por favor!mariana: É bom mesmo. Senão, acabo xingando aquele merda!etelvina: (Pausa) Mamãe! A senhora não devia ter dito aquilo ao Doutor França. Já pensou no que significa para Isolina?mariana: Já pensei até me doer a cabeça. Mas, aquelas não têm jeito.etelvina: Não têm jeito, por quê?mariana: A feiúra é uma desgraça. minha filha!etelvina: Não diga nada a ela, mamãe. Não, hoje!

(Isolina e Jesuína aparecem à porta, novamente com os panos na cabeça.)

isolina: (Disfarça, forçando naturalidade) A igreja está linda, mamãe!jesuína: Enfeitaram todos os altares!mariana: (Despeitada) Esbanjamento!isolina: Cobriram a nave com pétalas de flores, Etelvina!mariana: (Ri, maliciosa) Gostaria de ver João José no meio de tanta flor! (Com raiva) Estão enfeitando o cabresto! Quando ele virar o arreio na barriga, eles vão ver.isolina: Elisaura vai entrar na igreja, pisando flôres!mariana: Logo sentirá os espinhos.etelvina: Mamãe!mariana: (Explode) Deixa eu falar, Etelvina!jesuína: Ajudamos Elisaura arrumar a mala! As camisolas são lindas!isolina: Todas bordadas!mariana: (Ri com prazer) Pois não vai usar nenhuma! João José quando...!etelvina: (Adverte) Mamãe!mariana:Que significa esse pano na cabeça, Isolina?

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isolina: (Meio aflita) É para não desmanchar o penteado.jesuína: Não estamos chiques?mariana: Os vestidos são indecentes.jesuína: Ê a moda, mamãe.mariana: Moda de artista de revista. Gente à-toa! Que significa esse coração pintado na cara, Jesuína?jesuína: Usa, mamãe!mariana: Vai lavar a cara! Não é tudo que se vê em revista que uma moça de família usa!jesuína: Fique a senhora sabendo, que alguém disse que eu estava linda!mariana: Mentiu! Sei muito bem o que espera vocês.etelvina: (Pedindo) Mamãe!jesuína: O quê? O que é que nos espera?mariana: Você é muito feia, minha filha.etelvina: Não diga isto, mamãe!mariana: Pode ir, Etelvina! Preciso falar com Isolina e Jesuína.etelvina: Prefiro ficar.mariana: E eu que você saia! (Etelvina sai meio relutante)isolina: O que foi, mamãe?mariana: Falei com o doutor França. Sei que gosta dele. É um casamento que eu também gostaria. Mas, não é possível. Ele não quer. Não gosta de você!isolina: A senhora disse ao doutor França que eu queria me casar com ele?! A senhora teve coragem?!mariana: É verdade, não é? E vou falar também com esse Pacheco, se não resolver logo. E precisa me dizer o que pretende fazer, já que trole não significa mais nada nesta cidade!jesuína: Proíbo a senhora!mariana: Proíbe! É só ele aparecer.jesuína: (Nervosa) Os troles são tudo para ele, mamãe.mariana: Só para ele! Precisa pensar em outra coisa. E você, Isolina, deixe de rodear o doutor França. Não adianta ficar pensando em um homem que não quer você.isolina: (Profundamente ferida) A senhora não tinha o direito!mariana: O que você quer? Passar a vida gostando de um homem... que sabe lá o que deixou na Bahia? Vai ver que até família. Mas, eu acabo descobrindo. Ele não perde por esperar.isolina: (Subitamente, arranca o pano da cabeça)jesuína: (Tenta evitar) Isolina...!mariana: Mas... o que é isto?isolina: (Desafiante) Cortamos o cabelo.mariana: Quem deu autorização?isolina: Não preciso mais da sua autorização. Para nada!mariana: (Possessa) Vocês não são raparigas!jesuína: Mamãe! Não diga isto!mariana: Minha casa não é bordel! Saiam da minha frente com essa cara de mulher à-toa!isolina: É a cara que a senhora nos deu. Ninguém nos procura, nenhum moço serve para nós...mariana: Também não aparece nenhum! Já me agarrei com todos os Santos. Gastei dúzias de terços...isolina: Porque somos feias como a senhora. E pobres...mariana: Ah! Isto é por conta de seu pai.isolina: A senhora teve mesmo mais sorte do que nós. Papai conheceu a senhora depois de estar casado. Tenho pena dele.mariana: É a sorte que eu gostaria que vocês tivessem, minha filha. Mas, os tempos mudaram. E vão mudar mais ainda!isolina: Não preciso da sua preocupação. Também vou fazer um coração na cara. E bem grande!mariana: (Grita enquanto as filhas saem) Eu sempre desconfiei que vocês duas eram filhas

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daquela flauta!

(Isolina e Jesuína, arrebatadas, saem do quarto. MARUCO aparece na sala com alguns tabuleiros vazios. Enquanto espera, canta "SE SONO ROSE FIORIRANNO".)

maruco: Dona Etelvina! Dona Etelvina!etelvina: (Entra com tabuleiros cheios de doces) Bom dia, Maruco.maruco: Buon giorno, dona Etelvina. Já soube!etelvina: Recebemos o telegrama hoje cedo. Fiquei tão atarantada que as brevidades quase queimaram.maruco: Má... estão lindas!etelvina: Não gosto de serviço mal feito. Assim, perdemos a freguesia.maruco: Má... che perde! Ninguém vende doces como os nossos. A cidade no parla de outra coisa, dona Etelvina.etelvina: Sinto receio deste regresso, Maruco.maruco: Má... che receio! No Café Central estão dizendo que é o piu grande escritor do mundo. É per che no conhecem o d'Annunzio!etelvina: É uma coisa que não entendo, Maruco! O filho de João José metido nessas coisas!maruco: Ehêêêê!... na Itália tem muito!etelvina: Como passa o tempo! Parece que foi ontem mesmo que João José se casou!maruco: A vida é breve, dona Etelvina!etelvina: E trabalhosa, Maruco. Acho que é isto que nos faz esquecer tanta coisa. Já perdi até a conta dos anos que trabalhamos juntos.maruco: Dezessete anos.etelvina: Dezessete anos?! Não sei o que teria sido de nós, se mamãe não me tivesse ensinado tanta coisa. Mamãe era uma mulher da realidade, Maruco. Só via o lado prático das coisas. (Ri evocativa) Coitada! Quando ficava brava, não tinha papas na língua. Isto, trouxe a elamuito desgosto! (Olha à sua volta. Disfarça, enxugando os olhos. Maruco percebe)maruco: A senhora sabe que em duas horas os tabuleiros ficam vazios?etelvina: A semana passada você disse que andava sobrando, Maruco!maruco: Io disse? Ê questa língua maledetta! Decerto queria dizer outra cosa!etelvina: Então, seria possível aumentar a encomenda?maruco: (Rápido, como se já esperasse o pedido) Má, claro! Já trouxe seis tabuleiros.etelvina: Seis?maruco: Os fregueses aumentaram. É questo!etelvina: Você faz isto para me ajudar.maruco: Má... che ajudar!etelvina: Eu sei. Maruco.maruco: Una visita importante dá despesas, dona Etelvina. Estava com medo que a senhora não aceitasse.etelvina: Aceito, sim. Eu precisomaruco: Questo, pode ficar. Presente.etelvina: Eu faço mais. Maruco.maruco: É uma obrigaçon. Un artista é un artista! Se ele morasse na Itália... êhêêê!... oggi seria festa municipale!etelvina: (Comovida) Obrigada!maruco: Non parlare. Non parlare.

(Isolina e Jesuína entram muito excitadas.)

jesuína: Telegrafamos para João José, Etelvina.isolina: Uma verdadeira carta. (Certo despique) Contamos tudo sobre Vicente. Gostaria de ver a cara de João José.etelvina: Não ficou caro?

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isolina: (Hirta) Dinheiro dos meus crochês!jesuína: Avisamos o prefeito, o vigário e os professores.isolina: Não se fala em outra coisa na cidade.jesuína: Nem na inauguração da estrada de ferro, comentou-se tanto!isolina: (Aflita) Precisamos nos arrumar.etelvina: Já não estamos arrumadas?jesuína: Claro que não, Etelvina!etelvina: P'ra que complicar as coisas, Jesuína? É o nosso sobrinho quem vai chegar.isolina: Vai entrar por aquela porta... junto com as autoridades de Jaborandi, Etelvina.jesuína: Receberá o título de cidadão honorário!isolina: (Enigmática) Será o triunfo de papai!jesuína: Nossos vestidos da congregação já estão passados?etelvina: (Notando a transformação das irmãs) O meu, está. Tratem de passar o de vocês. Até logo, Maruco. Obrigado. (Sai)isolina: Etelvina tem prazer em parecer cozinheira!jesuína: Maruco!maruco: Senhora.jesuína: Queremos pedir um favor.maruco: Tudo que quiserem, dona Jesuína.jesuína: Quer falar, Isolina?isolina: Fale você!maruco: Má... che sucede?jesuína: Queremos pedir a você que não volte...isolina: ... só enquanto nosso sobrinho estiver aqui.maruco: Má... per che?jesuína: Porque sim.maruco: Má... e dona Etelvina? Como vai entregar os doces?jesuína: Etelvina não fará doces para vender enquanto nosso sobrinho estiver aqui.maruco: Má... perche?isolina: Porque sim. Pode nos fazer esse favor?jesuína: Uns dias apenas. Vamos ter muita gente aqui em casa.maruco: Falarei com dona Etelvina.jesuína: Obrigada!isolina: Obrigada, Maruco.

(Saem, excitadas e aflitas)

maruco: (Sai cantando) Se sono rose fioriranno... !

(Enquanto a voz de Maruco se distancia, ELISAURA surge vestida de noiva. MARIETA acompanha Elisaura, retocando o vestido. Elisaura é esguia e delicada como se fosse de porcelana. Percebe-se que é uma moça fina, muito bem tratada. Em seu vestido de noiva, parece uma aparição.)

marieta: Você não pára, Elisaura!elisaura: A senhora está falando coisas desagradáveis! Não quero ouvir.marieta: Mas, é verdade, minha filha.elisaura: A verdade é que a senhora e papai não compreendem por que gosto de João José.marieta: Não compreendemos mesmo, minha filha.elisaura: Eu compreendo. Isto não basta?marieta: Falo para que fique prevenida. É minha obrigação.elisaura: Sei o que quero!marieta: (Pausa) Sabe como são chamadas?elisaura: (Mente) Não.

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marieta: As môças da rua quatorze. As meninas da dona Mariana.elisaura: Que é que tem? Elas moram na quatorze e são filhas de dona Mariana.marieta: Recitam por aí:

As meninas já chegam aos trinta!Usam coque, saia curta e pinta!Mas, do cartório não usam tinta!

elisaura: Quanta maldade, meu Deus!marieta: É dona Mariana!... a culpada. Ninguém serve para as filhas.elisaura: A senhora não viu que as duas já cortaram o cabelo, mandaram fazer para o casamento, modelos que eu escolhi? Quando dona Mariana perceber, estará tudo mudado naquela casa.marieta: Você não vai poder com' ela, Elisaura.elisaura: Posso, sim.marieta: É uma mulher terrível, minha filha.elisaura: (Irritada) Terrível por quê, mamãe?marieta: Prepotente! Lá, só vivem como ela quer. Domina a família como se vivesse no século passado. Vai obrigar você a se levantar de madrugada para fazer biscoitos, quitandas e não sei mais o quê. Educada como você foi... e ir terminar à beira de um tacho de sabão! Como posso compreender?elisaura: (Ri) Não vou me casar com ela.marieta: (Orgulho ferido) É o cúmulo da grosseria não assistir ao casamento do filho. Quem é que ela pensa que é?elisaura: Ela está doente.marieta: Fingimento! Aquela mulher morre, não fica doente!elisaura: Hoje, é o dia do meu casamento, mamãe! Até parece que vou para o exílio... ou ser condenada à morte.marieta: Você gosta, está certa em se casar. Mas, estando prevenida, poderá enfrentar melhor certas situações, não sofre desilusões. É uma gente violenta, indiferente, só pensam em caçadas, cachorros e cavalos.elisaura: João José é rude, mamãe, eu sei. Mas, é ao lado dele que quero viver. Ele gosta de mim, será diferente comigo.marieta: São incapazes de certas atenções... um carinho!... uma flor...!elisaura: Que belo futuro a senhora está me predizendo.marieta: É que é o último momento que eu...elisaura: (Beija a mãe) Não precisa temer. O amor modifica tudo.marieta: Deus queira.elisaura: Eu quero. Agora... um sorriso. Este é o dia mais feliz da minha vida. Não temo nada, mamãe. Ruim com ele, muito pior sem ele. Eu gosto muito de João José, mamãe! Mais do que tudo na vida.marieta: (Segurando as lágrimas) Que Deus a faça muito feliz, minha filha.elisaura: (Uma esperança profunda ilumina seu rosto) Eu serei feliz. Terei muitos filhos. João José será o mais terno dos maridos e eu... eu serei a única caça que ele procurou realmente na vida. Vamos! Papai está nos esperando.

(Marieta, comovida, abraça Elisaura, enquanto desaparecem. Dois ou três apitos cortam a cena. Meia dúzia de músicos uniformizados surgem ao fundo e cruzam a cena em direção à estação. Nos instrumentos está escrito: EUTERPE MUSICAL. A medida que passam, aumenta o barulho de vozes e vivas. Um filme de inauguração, em 1922, de uma pequena estação de estrada de ferro, é projetado, tomando todo o fundo e as laterais do cenário. A máquina cresce no sentido da platéia. Em cima da plataforma da frente, por entre a fumaça, uma melindrosa canta "Vissi d'arte", da ópera Tosca de Puccini. Apesar de ter uma bela voz, percebe-se que ela não conhece a arfe do canto. Os homens e as mulheres estão vestidos

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como julgam ser o rigor da moda. Os vestidos, lantejoulas, vidrilhos, miçangas, chapéus, aigrettes, lenços e leques, dão grande colorido à cena; a excitação, o medo, a expectativa e a alegria, ocasionam grande movimentação.)

morozoni: (Canta) Arte e amor têm sido toda a minha vida. Fui sincera na minha fé. Por que, oh Deus! me abandonas nesta hora de necessidade?

(Entre as pessoas, percebemos Jesuína e Isolina. Quando a Morozoni acaba de cantar, há muitas palmas e grande murmúrio. Todos examinam a máquina, encantados e temerosos. Um dos presentes oferece, galante, a mão à cantora. A Morozoni desce e corre para o meio das moças, excitada como se tivesse cometido um ato mais do que temerário. Ouve-se um apito. Algumas pessoas, apavoradas, saem correndo; outras se abraçam. Algumas moças escondem o rosto, fingindo um medo incontrolável. Moços, afoitos, batem as bengalas na máquina como se batessem em um animal perigoso.)

jesuína: Meu Deus!isolina: Ah! Que medo!jesuína: Onde está João José?isolina: Já entrou.jesuína: Você viu? Onde?isolina: Como vou saber?Um trem tão grande!

vozes: Será que não sai dos trilhos? Está pegando fogo! É assim mesmo! Está pegando fogo! Fechem as janelas! Fechem! Vai partir! Cuidado! Olha as crianças! Cuidado! Credo! Fechem as janelas!

marieta: Elisaura! Elisaura, minha filha! Adeus! Não abra a janela! Seja feliz!jesuína: João José! Adeus! Adeus, João José!marieta: Seja muito feliz, Elisaura!

(Uma grande quantidade de fumaça encobre a cena e o barulho do trem vai se distanciando. Duas ou três moças caem, supostamente desmaiadas. Todos correm na mesma direção, abanando lenços. Corta-se o filme. Quando todos desaparecem, ilumina-se o quarto de Mariana.)

etelvina: João José vai passar vergonha nesta viagem, mamãe.mariana:João José? Não tem perigo! Quem vai passar vergonha é ela. Coitada!(Concentrada) Camisola bordada!etelvina: Trouxe doces do casamento para a senhora.mariana:Não quero doce nenhum.etelvina: Estava linda a mesa de doces.mariana: (Despeitada) Doce bonito não é bom. Leia a notícia!etelvina: O Emílio Pinto vai publicar amanhã na Gazeta do Povo.mariana: (Esperançada) Ele levou para você, minha filha? É um bom moço!etelvina: Levou para a senhora.mariana: (Desencantada) Ah! Leia!etelvina: Uniram-se pelos laços sagrados do matrimônio, a senhorita Elisaura Villela, fino ornamento de nossa sociedade e dileta filha do coronel Sebastião Villela...mariana: (Resmunga) Humm! Coronel!etelvina: ... e de sua excelentíssima esposa dona Marieta Villela - e o senhor João José Venâncio, abastado fazendeiro neste...mariana: (Ri, nervosa) Abastado! É o que eles pensam.etelvina: ... abastado fazendeiro neste município, emérito caçador e...

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mariana: (Carinhosa) Ah! Isto ele é! Caçador, ele é! Sem igual!etelvina: ... emérito caçador e forte esteio da futura política local, filho do...mariana: João José?! Político?!etelvina: Deixe-me ler, mamãe!... filho do saudoso coronel Bernardino Venâncio e de dona Mariana Venâncio, dama de acrisoladas virtudes e excelsos dons de coração.mariana: (Sorriso de secreta satisfação) Parolice!etelvina: Ao ensejo do enlace, abriram-se de par em par os amplos portões da tradicional mansão dos Villelas...mariana: Não tem dez anos... a tal mansão!etelvina: Assim, não posso continuar.mariana: Leia!etelvina: ... mansão dos Villelas...mariana: Mansão!etelvina: Mamãe!mariana: (Explode) Então, não leia mais esta palavra!etelvina: ... que foi pequena para abrigar os incontáveis amigos que pressurosos acorreram a festejar o feliz evento. Na corbeille da noiva viam-se custosos mimos, que bem falavam da amizade e do afeto que todos nutrem pelo simpático e jovem casal.mariana: (Resmunga depreciativa)etelvina: Aos presentes foi oferecida uma lauta mesa de doces em caprichados arranjos. Ao champagne usou da palavra, saudando os nubentes, o doutor Ezequiel Pousadas, conhecido beletrista, estimado poeta, brilhante jornalista, ilustrado Promotor que exorna com seu inflamado verbo os foros da Comarca, que em sentidas palavras, repassadas de suave emoção, disse da alegria que todos sentiam pelo grato acontecimento. Ao depois...mariana: (Enfadada) Ainda tem mais?!etelvina: Ao depois, numa primorosa coincidência, seguiram todos para a novel e suntuosa estação local, de onde partiria o nosso primeiro trem, levando para outras plagas o feliz casal, o buliço crepitante de nossa vida moderna e agitada, as novas de que nossa cidade entrava para o concerto das grandes cidades do Estado.mariana: E o nosso sossego também.etelvina: Bem certa estava a nosa divisa — "Frates sumus omnes"...mariana: Que é isto?etelvina: ...somos todos irmãos ...mariana: Ah!etelvina: ...que vai simbolizar ao vivo, a existência em comum dos naturais do lugar, com homens de todas as procedências do mundo, que desembarcarão em nossa urbe.mariana: (Triunfante) Não falei, Etelvina? Lá se foi o sossego para sempre. E outras coisas também!etelvina: Os maviosos e afinados acordes da Sociedade Euterpe Musical, a fina voz de extraordinário soprano e os apitos que reboaram pelo nosso sertão, comemoraram os felizes eventos.

(Ouvem-se os apitos das máquinas — elétrica e da década de VINTE. Um se distancia, outro se aproxima.)

mariana: (Com tristeza) Só quero ver o que vai sair daí. Boa coisa não será!

(Subitamente comovida, Etelvina se volta e sai. Desaparece a cena lentamente, enquanto Vicente (43 anos), carregando sua mala, entra no cenário, examinando à sua volta. Voltam, por alguns momentos, os latidos de coes e os sons de buzinas. "Slides" com cores sombrias, sugerindo a evocação torturada de Vicente, dão â cena um efeito expressionista. A expressão de Vicente é de evocação intensa. Ele recua, como se relutasse chegar, encostando-se à boca de cena. Olhando fixamente para a frente, é uma imagem viva da solidão, da desesperança. Ilumina-se a sala onde Isolina, Jesuína e Etelvina, vestidas de filhas de Maria, aguardam sua

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chegada. Estáticas, elas parecem suspensas no espaço. As expressões, as medalhas grandes, presas em fita larga e azul, a imobilidade ansiosa, tudo nelas é profundamente comovente. O garoto entra, admirando o rio.)

vicente: (5 anos) O rio está cheio de igarapés! Olha, papai! Quantos! A lua quebrada está boiando nele!

(Vicente (15 anos), agitado, surge ao fundo. Vicente (43 anos) se contrai ainda mais.)

vicente: (15 anos) Por que se encarniçam tanto contra mim? Será que não podem compreender?vicente: (5 anos. Abre os braços e anda, equilibrando-se) Preciso perguntar p'ra vovó... como é que gente grande é; por que choram escondidos debaixo da mangueira; por que não respondem minhas perguntas...!

mariana: (Apenas a voz) João José! Dá corda no relógio. Não gosto de relógio parado.vicente: (23 anos. Entra, nervoso, seguro por Maria)maria: Vicente! Vicente!vicente: (23 anos) Deixe-me, Maria. Vá embora!maria: (Segura Vicente, desesperada) Não! Não!vicente: (23 anos) Aqui não posso, viver. Você não compreende?maria: Leve-me com você!vicente: Que vida eu ia dar p'ra você, Maria?maria: (Afastando-se) Vicente! Eu espero você. Eu espero... Vicente!vicente: (23 anos) Sinto-me acuado, Maria.maria: (Desaparecendo) Eu espero, Vicente. Eu espero...!mariana: (Destaca-se da sombra, fremente de raiva) Homem não chora! Não faça como sua mãe!vicente: (5 anos. Abraça-se às pernas de Mariana) Por que a lua está quebrada? Por quê?mariana: Nós somos assim. P'ra que serve uma igreja coberta de flores se cada mulher que nasce é motivo de tristeza? Lua é lua, flor é flor, rio é rio. No fundo só tem lôdo!vicente: (15 anos. Caminha, transfigurado) Não diga isto, vovó! A lua mora nas nuvens, as flores são lindas!... e os rios estão sempre caminhando, cobertos de flores e de luas!

(Os três VIGENTES caminham, desaparecendo)

mariana: Mergulhe num pr'a ver! (Revoltada) É aquela flauta! Também... virou penico de soldado na revolução de 32! (Volta-se e sai)

(Vicente (43 anos) domina-se, pega a mala e entra na sala. Desaparecem os "slides", voltando a luz fria que caracteriza as cenas das tias. Vicente para e vira o rosto, não podendo suportar a visão das tias. Esconde o rosto, enquanto é sacudido pelos soluços. Subitamente, não agüentando mais, Isolina adianta-se.)

isolina: Vicente! Você está chorando? Meu filho...!

Isolina e Vicente se abraçam. Etelvina e Jesuína enxugam os olhos.

SEGUNDA PARTE

cena: Quando se abre o pano, as tias, amigos, autoridades e intelectuais, realizam seção literária em homenagem a Vicente. Sentado entre as tias, Vicente observa os presentes.

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Eugênia, muito branca, com vestido de babados e rendas que lembra um pouco Violeta Valery, canta a ária da Traviata: "Ah, fors' é lui". As expressões revelam enlevo sincero. Jesuína e alguns dos presentes sondam Vicente, tentando descobrir o que ele sente. Vicente parece perdido em si mesmo. Isolina, possessiva, acaricia a mão de Vicente. Há uma cumplicidade afetuosa e evocativa entre os dois. Subitamente, todos ficam extáticos, enquanto a voz de Eugênia vai sumindo, lentamente, até ficar quase inaudível. As luzes abaixam, deixando a sala na penumbra. Somente Isolina fica iluminada. Vicente (23 anos) surge ao fundo, passa entre os convidados e vem se sentar em primeiro plano, examinando atentamente o livro que traz nas mãos.

isolina: (Enquanto Vicente passa) Já disse p'ra você partir, meu filho.vicente: (23 anos. Parado em primeiro plano) Tudo começou, tia, em uma caçada com meu pai. O pior, viria depois.isolina: (Apreensiva) Que se passou entre você e seu pai, Vicente?vicente: Não sei. Sempre acontecem coisas entre nós. É inevitável.isolina: O que aconteceu?vicente: (Distanciando-se, pouco a pouco). Ele queria me ensinar. Eu não queria aprender. Disse a meu pai que estava cansado e deitei-me encostado ao tronco de uma árvore. Ele se escondeu distante de mim, piando, chamando o macuco. Fiquei imóvel, ouvindo a resposta da ave, desejando intensamente que ela descobrisse o logro. (Senta-se, olhando, perdido para o alto) Olhando a copa da árvore, pensei estar embaixo do meu colchão. A mata ficou imóvel, silenciada numa magia estranha. Esqueci-me de mim mesmo. De tudo! Senti-me no começo de uma grande busca, perto de algo terrível! O mundo parou e me transformei em um homem diante de sua razão. Foi aí que a pergunta brotou pela primeira vez: Quem sou eu? Quem? Era o canto que começava. Então, minha verdade saiu da terra, cresceu e ultrapassou a mata. Percebi... como devia ser maravilhoso compreender, interpretar e transmitir! Partir da minha casa, minha gente, de mim mesmo... e chegar ao significado de tudo, tendo como instrumentos de trabalho apenas as palavras e a vontade. Não usar nenhum suor, a não ser o meu. Nenhum braço, além dos meus. Nenhuma inteligência, exceto a minha. Isto era ser livre! Eu me comunicaria! Seria tudo! De repente, um tiro ecoou na mata. Papai veio ao meu encontro, sorridente, segurando sua presa. Eu, fui ao encontro dele com a minha bem firme nas mãos, sentindo que voltaria ao alto da árvore novamente.

isolina: (Com incentivo obsessivo) Você vai se realizar, Vicente!vicente: (23 anos. Levanta-se, revoltado) Realizar como... levando a vida que levo ? (Sai)isolina: (Carinhosa e convicta) Confie em si mesmo! Você ainda vai ser importante!

(Quando Vicente diz "eu me comunicaria", começa-se a ouvir uma música popular moderna. Lentamente, "slides" de mulheres e homens a rigor, cobrem as paredes da cena. Durante as palmas, o ANIMADOR adianta-se. Agora, somente Vicente (43 anos) fica iluminado: a rememoração é dele.)

animador: E agora!.. o prêmio de melhor autor. Devo adiantar que esse prêmio veio criar um problema de decoração para a mulher do autor, pois é o quarto que ele recebe. (Subitamente) Melhor autor nacional do ano... VICENTE!

(Vicente se adianta. Lavínia surge, ao fundo, muito bem vestida.)

lavínia: (Beija Vicente) Satisfeito? Agora... um prêmio em cada estante!vicente: (43 anos. Abaixa a voz) E. um papagaio em cada Banco.lavínia: Não recomece, Vicente.vicente: É o resultado de cinco peças prontas que ninguém quer encenar.lavínia: P'ra que tanta amargura. Vicente?

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vicente: (Olha o prêmio em suas mãos) Com esse, são oito em meu escritório... e estou só diante deles. E como eu, muitos! Com encenações quenão obedecem a nenhum objetivo, ninguém pode se sentir realizado. Cada espetáculo se transforma em questões de lucros e perdas! Como um autor pode criar, se precisa pensar em número de personagens, temas proibidos, censura, intolerância política...?lavínia: Vicente! Por favor!vicente: (Com obsessão) Existem, nesta cidade, cinco milhões de habitantes! Como levar a eles. o que é preciso dizer? (Senta-se)

(Lavínia sai e os "slides" desaparecem. A voz de Eugenia se eleva novamente, terminando a ária da Traviata. Voltando a si, Vicente (43 anos) observa Isolina, disfarçadamente, e sorri, reconhecido e afetuoso. Isolina, compreensiva, acaricia a mão de Vicente.)

vozes: Muito bem! Que voz! Bem cantado! A Traviata é a Traviata! Parabéns! Obrigado!isolina: Linda! Não achou? Você parecia tão distante!vicente: Ainda aquela mania horrível de me ausentar, de repente.isolina: (Cúmplice) Eu percebi.jesuína: Queríamos que Eugênia cantasse "Vissi d'arte", mas...eugÊnia: Não é para o meu registro.galvÃo: Você devia ter feito carreira.eugÊnia: Papai não deixou, doutor Galvão.jozina: Com certeza ficou preocupado. Vida de artista é tão perigosa!isolina: (Ofendida) Perigosa, por quê, Jozina?jozina: Queria dizer... uma moça fazer carreira sozinha na capital.galvÃo: Que foi que aconteceu?eugÊnia: (Vexada) Recebi convite para cantar a Traviata no Municipal, mas papai achou que era uma ofensa, cantar o papel de uma mulher...jesuína: De vida fácil. (RISOS EXAGERADOS ENTRE OS PRESENTES)jozina: (Hirta e pudica, revela estar com a razão)poeta: É o cúmulo!galvÃo: Que atraso!eugÊnia: (Criando coragem) Gritou comigo: "Além de cantora, ainda quer fazer o papel de rapariga? Onde está com a cabeça? O que não vão pensar de mim?" Perdi a oportunidade.isolina: (Olha Vicente) Os artistas são tão mal compreendidos!pacheco: (Aproveitando-se) Nossos troles eram puxados por quatro bestas boas e bem ferradas. Aí...prefeito: Teria sido mais uma conquista artística aqui da terra.pacheco; (Rápido) Aí. trouxeram a estrada de ferro e acabaram com a minha companhia de troles. E diga-se de passagem, bem mais eficiente do que isto que está aí. Então, resolvi comprar umas terras e plantar café: o governo proibiu a plantação de café. Vendi as terras: o governo mandou queimar o dinheiro. "Esse governo está com prevenção contra mim", pensei. Um dia, comprei umas vaquinhas. Pum! Proibida a matança de vacas. Ah! É comigo mesmo. Larguei mão. Que havia de fazer? Viver de uns jurinhos. É o que faço.jesuína: Nossos governos nunca tiveram visão nenhuma. Não deixam o povo trabalhar.galvÃo: Vi grandes cantatrizes morrerem divinamente na Traviata. Quando era estudante no Rio de Janeiro, fui muitas vezes comparsa nas temporadas líricas.jesuína: Verdade, doutor Galvão?galvÃo: A bolsa era curta. Fui escravo na Aída, soldado na Tosca. . . matei muitos Cavaradossis.dramaturgo: Sabe que, no passado, assistimos aqui a seções de teatro memoráveis?prefeito: Tivemos um belo teatro, avantajado, amplo.pacheco: Teatro Aurora.dramaturgo: (Olhando o Prefeito com reprovação) Ali, onde é hoje a garagem da Ford.isolina: Hilário de Almeida escreveu uma peça linda sobre a fundação da cidade.

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dramaturgo: (Sorri, agradecido )prefeito: O que vem provar que nossa cidade não é só terra de orelhas de zebu.poeta: Sandices!prefeito: Gente da oposição.dramaturgo: (Agradecido, olha o poeta) Há também outras coisas que se medem a palmos, nesta cidade.jornalista: O bardo, cá da terra, vai nos deliciar com uma de suas produções.vozes: Muito bem! ótimo!pacheco: (Despeitado) Poetas que não difundem letras, mas espalham tretas.jornalista: O autor, Vicente, é uma dessas raras flores, que, brotando por aqui, têm perfumado nossos lares com a fragrância das pétalas coloridas de seus versos inspirados.poeta: (Adianta-se) Genetlíaco! (Explica) Que celebra o nascimento de alguma coisa.poeta :Estrelas festivas no infinito cintilam!Mil trovões no espaço ribombam!E sobre a terra — madre-humosa,Leito de mil folhas, generosa,Ouvem-se passos de alma destemerosa!De clã de primitivos temposQue batendo mil léguas afoitamenteAqui aportou só e destemidamente!Para lares, colégios e capelas erguer,E um imenso chão santificar.Surge, assim, o cruzeiro altaneiroDe uma cidade, vagido primeiro!

vozes: (Palmas) Muito bem! Tem sustância. Épico! Grandioso! Luminar! meu filho.jornalista: Agora, vamos ouvir nosso caro Vicente.vicente: Não sei falar. Desculpem-me.poeta : Queremos ouvir uma de suas poesias.vicente: (Apavorado) Nunca escrevi poesia.jesuína: Nem diga isto!isolina: (Íntima) Pensa que me esqueci? "Teu silêncio será tua moita!" Era uma poesia linda, Vicente!vicente: (Expressão de desgôsto)jornalista: Nós sabemos que você é um grande poeta.prefeito: Um puro-sangue da arte.vicente: Apenas escrevo para teatro e não sei ler o que escrevo.prefeito: E quem escreve teatro não é poeta? E o grande Xakespir? (Olha para o jornalista, satisfeito por ter se lembrado do nome)jesuína: Não seja modesto, meu filho. (Abaixa a voz) Prometi a eles que você recitaria.vicente: Só uma vez escrevi poesia para uma das peças. Querem ouvir esta?isolina: (Excitada) Queremos!

(Todos, excitados e ansiosos, preparam-se para ouvir. Trocam de lugar, procurando melhores posições. Ao mesmo tempo, ilumina-se o quarto, onde Elisaura, nos últimos tempo da gravidez, está lendo. Etelvina entra com uma xícara de chá.)

etelvina: Tome, Elisaura?elisaura: Não quero.etelvina: Você precisa pensar em seu filho. Beba!elisaura: Não tenho fome.etelvina: Essa tristeza faz mal p'ra você.elisaura: Eu sei o que me faz mal, Etelvina!

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etelvina: Eu guardo, você toma depois. (Sai com a xícara)

(Vicente vai ficar quase encostado em Elisaura. Elisaura sorri enternecida, sentido o filho mexer em seu ventre)

vicente:

Pra que o menino nasceu?O menino nasceuCaminhando, falou!O menino cresceuFalando, cantou!O menino sofreuCantando, amou!O menino viveuAmando, sonhou!O menino morreuSonhando, acabou!P'ra que o menino nasceu?

(Ficam todos um pouco confusos. Elisaura rompe em soluços. Isolina e Vicente trocam um olhar de compreensão profunda. )

jesuína: Continue, Vicente!vicente: (Disfarça) Não terminei ainda de escrever.jesuína: Ah! Mas, você deve terminar! Não é, senhor Prefeito?prefeito:Tem sustância!poeta : É poesia moderna, não é?vicente: Não sei.poeta : Tenho lido muito!

(Apaga-se a imagem de Elisaura. Etelvina entra com uma bandeja com xícaras e uma travessa cheia de biscoitos e brevidades.)

jesuína: Vamos tomar café com brevidades.etelvina: Como você gostava, Vicente.(Subitamente, num gesto, O Poeta bate no braço de Etelvina, derrubando a travessa. Por um momento, as irmãs ficam hirtas, olhando para Jozina.)

jozina: Ah! Meu Deus! A travessa que comprei de vocês.etelvina: Poremos outra no lugar.jozina: Quero então aquela azul.etelvina: (Nervosa) Ajude-me, Jesuínaisolina: (Tenta salvar as aparências) Afinal o que é uma travessa!jesuína: (Abaixa a voz.) Disfarce, Etelvina! Pelo amor de Deus!isolina: Temos tantas!jozina: Mas, esta era minha! (As três irmãs ficam em volta da travessa quebrada. As outras pessoas saem.)vicente: Que foi, tia?jesuína: Nada!isolina: Nada, Vicente.jesuína: Etelvina é muito nervosa.etelvina: Vamos deixar de mentiras, Jesuína! Não suporto mais isto.

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vicente: Não suporta o quê, tia?etelvina: A travessa não era nossa. Já vendemos toda a louça.vicente: Pediram emprestado? Eu pago.etelvina: Não. Serão entregues... depois que morrer a última de nós.jesuína: Ora, Etelvina!etelvina: Nada mais nos pertence: nem casa, nem louças, nem cristais. Só restou o relógio... porque é seu. Pode levar também.vicente: (Horrorizado) Mas... isto é um saque contra a morte!etelvina: E contra o que deveríamos sacar?vicente: (Confuso, não sabe responder)etelvina: (Resolvendo) Por que voltou, Vicente?isolina: Você tem cada uma, Etelvina!etelvina: (Com crescente animosidade) Você partiu, esqueceu-se da gente, volta sem a mulher e os filhos... p'ra quê? P'ra fazer a gente sofrer com coisas que passaram... que não gosto nem de lembrar? Já não basta o que tivemos de agüentar sozinhas?

(Etelvina e as irmãs ajoelham-se em volta da travessa quebrada. Subitamente, extáticas, Jesuína e Isolina ficam olhando para frente, com expressão de desesperança.)

etelvina: Veio procurar o quê? A agonia demorada de tudo? O rápido desaparecimento do pouco que restou? Que adianta falar agora?

(Vai se acentuando, pouco a pouco, o apito de um trem que se distancia. Às veies, temos impressão de que o apito se confunde com o som de uma flauta. É, porém, uma coisa muito vaga.)

etelvina: Você disse bem: fizemos um saque contra a morte. Foi o que nos restou de tudo. Moramos numa casa, comemos em louças e bebemos em cristais que já não nos pertencem. Só temos o corpo, nossos vestidos de filhas de Maria, livros de missa, santinhos e os caminhos da igreja e do cemitério. Foi só isto que você e seu pai nos deixaram. Consumiu-se tudo numa incompreensão odienta. A sua verdade! A sua verdade é a nossa agonia. É tudo e todos desta casa. Você fez da sua inclinação o mesmo que seu pai, das caçadas: um meio de fugir para um mundo só de vocês.

(O apito do trem torna a atravessar a cena. Isolina com os olhos marejados, levanta a cabeça, enquanto vemos doutor França passar com uma mala acompanhado por Pacheco. Logo depois desaparecem.)

etelvina: Os amigos foram desaparecendo, um a um! A pobreza acabou levantando uma cerca de espinhos em volta desta casa. O lugar... onde demoram as moças da rua quatorze. Que direito tem você de vir pedir que soframos mais uma vez, humilhações, angústias e vergonhas tantas vezes sofridas? Era preciso trabalhar e esquecer. Só isto! Trabalhar e rezar. Noite e dia! Não havia outra saída para nós. Rezei! Rezei para não morrer. Eu era a burra de carga. Forte como uma colona... preparada para aquilo que sou hoje: o homem da casa.

(Subitamente, Etelvina começa a soluçar. Vicente vai se afastando, enquanto as três irmos catam os cacos da travessa. Desaparece a cena. Ilumina-se o quarto de Elisaura.)

mariana: A sua infelicidade é que é sensível demais. Chora à toa!elisaura: Não estou chorando.mariana: Se tivesse ficado na fazenda, não viveria longe de seu marido. Nem ele longe da fazenda, onde é o lugar dele,elisaura: A senhora conhece seu filho melhor do que eu. Sabe que não tenho culpa.mariana: Sei o quê?

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elisaura: A verdade. Que não importa morar lá ou não. Não é isto que está errado.mariana: O que está errado, então?elisaura: (Nervosa) P'ra que conversar sobre isto?mariana: Porque eu quero.elisaura: Mas, eu não quero.mariana: Pode conversar, brigar à vontade. Gravidez não é doença. Tive todos os meus filhos, sozinha na fazenda, só com uma colona.elisaura: Eu não sou a senhora.mariana: Nunca ouviu dizer que as mulheres grávidas marcam os filhos com suas preocupações?elisaura: Onde a senhora quer chegar?mariana: Que, se continuar assim, seu filho vai sair um chorão, só pensando em coisas de delicadeza. Quando eu estava esperando João José. coloquei a flauta do pai dele pendurada no banheiro. Pelo menos uma vez por dia, eu xingava ela.elisaura: Foi por isto mesmo que não fiquei na fazenda. Não queria passar meus dias xingando cachorros... e ver essa mentalidade aparecer mais tarde em meus filhos.mariana: Se gosta de ler, escolha livros que não façam você chorar.elisaura: Com estampas de goiabas, milhos, tachos e panelas?mariana: Seria mais útil.elisaura: O rosto de quem a senhora quer que eu veja? Não bastam os que me rodeiam?mariana: O nosso, não. Eu sei que somos feias.elisaura: (Amarga) Se depender de presença, meu filho não terá nada do pai.mariana: João José é um cabeça dura, mas é bom.elisaura: Espero que meu filho tenha maneiras mais amáveis.mariana: P'ra quê? P'ra sofrer também?elisaura: Sofrer por quê?mariana: Você não está sofrendo? Gente fraca sofre à toa. Reze! Reze para que ele seja igual ao pai. Veja bem onde ele vai viver. João José é egoistão, duro... e assim é que é bom. Faz sofrer, mas não sofre. Pelo menos isto eu consegui, xingando aquela flauta, pendurada bem em frente da privada.elisaura: (Explode) Quero que ele seja tudo, menos igual a seu filho. Que viva em qualquer parte, menos aqui. Nunca desejei qualquer coisa na vida, tão intensamente!mariana: (Raivosa) E você diz que gosta de João José?elisaura: Gosto. Ainda gosto!mariana: Diga logo a verdade! Deixe de fingimento.elisaura: A senhora também não xingava seu marido? Xinga até hoje.mariana: Nunca disse que gostava dele. Foi o homem que me deram.elisaura: Mas, era seu marido. Merecia respeito.mariana: Só estava querendo ajudar. Tome! Isto é seu. (Entrega a carta)elisaura: Que é isto?mariana: Carta de João José. O Augusto chegou da caçada. João José vai ficar mais quinze dias. Comece a xingar. Motivo você tem.

(Enquanto Elisaura lê a carta, Vicente (5 anos) entra no palco. Percebe-se que ele apanha flores. Simultaneamente, vemos Vicente (43 anos), Isolina e Jesuína ajoelhados no túmulo de Elisaura.)

vicente: (5 anos) Zínias, margaridas... flores de todas as cores para minha avó! Zínias, ziiinias, ziiiiiinas, zínias...!vicente: (43 anos) Quem cuida dos túmulos de mamãe e vovó?isolina: Seu pai deixou dinheiro só para isto.jesuína: Precisamos plantar margaridas. Elas duram bastante.vicente: (43 anos. Distante) E zínias!

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(Subitamente, o livro e a carta caem no chão. Elisaura, com os olhos esgazeados, revelando espanto e ira, parece indefesa, frágil.)

elisaura: (Sussurro doloroso) Meu Deus!mariana: Elisaura...!elisaura: (Profundamente ferida) Que impiedade!mariana: (Preocupada) Que foi, Elisaura?elisaura: (Subitamente, contorce-se) Meu filho... meu filho!mariana: (Abraça Elisaura) Eu ajudo você.elisaura: (Empurra Mariana e sai cambaleando)mariana: (Aflita) Etelvina! Jesuína! ajudem...!elisaura: Sozinha!... eu quero. .. sozinha...!vicente: (5 anos) Zínias, zínias e mais zínias...!mariana: (Raivosa) Deixa aquele "argola de laço" chegar, que quero ensinar ele.

(Enquanto Elisaura sai se contorcendo, ilumina-se a beira do rio, onde João José está diante de duas varas de pescar: uma maior e outra menor. "Slides" coloridos onde percebemos, vagamente, diversas luas, misturados aos "slides" da floresta, iluminam todo o palco.)

joão josé: Vicente!vicente: (5 anos) Senhor.joão josé: Venha, meu filho! Tem lambari mexendo na vara.vicente: (5 anos) Já vou, papai.

(João José observa o garoto brincar. Vicente (43 anos) se levanta do túmulo e se aproxima do garoto. Jesuína e Isolina desaparecem. Vicente (5 anos), ainda colhendo flores, sai do palco. João José, sempre olhando o filho, se levanta e caminha como se fosse segui-lo. Vaqueiro ataviado para caçar, surge ao fundo e se aproxima. Reaparecem os sons de latidos e de buzinas.)

vaqueiro: E aí, compadre?joão josé: Aí, eu pensei: esse ladino vai embarcar no rio. Se deu essa volta e veio amoitar no ribeirão do Rosário, quando levantar vai como uma flecha no rio. Mas o safado, numa matreirice desusada, levantou, correu rasto atrás e perdeu. Tá danado! E agora?vaqueiro: (Conhecedor) Era cair em cima do rasto!joão josé: (Expressão matreira) Claro! Eu tinha uma escrita antiga com ele. A velhacaria dele já tinha enchido um borrador. Chamei a Lambisgóia, a Fanfarra e a Braúna — o trio tira-prosa — e caí em cima do rasto do velhaco. Pulou aqui, pulou ali, foz que foi mas não foi, deu uma enganada... e foi amoitar numa unha-de-gato. Vim rastejando com as cachorras e dei com os olhos do bicho. Olhou p'ra mim e deu uma abanadinha de orelha, o atrevido! (Abaixa a voz, numa risadinha casqueiro) Vai ser à unha, pensei.vaqueiro: (Expressão astuta) Ah, eu lá!joão josé: De repente, o bicho espirrou e eu gritei: vai manhoso... filho da puta! Hoje, nós vamos fechar nossa escrita!vaqueiro: E foi nó rio, o malicioso?joão josé: Ficou só na intenção. Quando ele espirrou na várzea, eu e a Lambisgóia espirramos juntos. Ehêêêê!... compadre! O lombo da cachorra foi esticando, esticando... achatou no chão e quando vi... os dois rolaram. O velhaco deu o último berro, vidrou os olhos já nesses braços.vaqueiro: (Observa João José, preocupado) Pois eu digo que esse cervo é ainda mais velhaco. Há três dias que malicia com a gente.joão josé: Mas, vai acabar numa parede.vaqueiro: (Pausa) Compadre! Não é hora não de dona Elisaura adoecer? (Adverte com tato) A lua é danada p'ra mudar as coisas!joão josé: Mais uma semana, compadre. Desde pequeno, meu filho vai aprender que pode ser

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caçador tão bom quanto eu, melhor não. Vai saber que nunca voltei sem minhas caças. E é esse cervo que...

(Diversos cachorros começam a latir. João José salta de pé, com os músculos retesados. Seu porte é majestoso.)

joão josé: É ele! É ele, compadre! Corre, Vaqueiro! Cerca que ele vai p'ro banhado outra vez!vaqueiro: Já está na garupa!joão josé: (Joga o chapéu no chão) Virou caveira de parede. Presente p'ro meu filho!vicente: (43 anos. Perdido em si mesmo) Presente para o meu filho!

(Vaqueiro sai tocando a buzina, enquanto Vicente (5 anos) entra no palco. João José se dirige para onde estão as varas de pescar.)

joão josé: Vicente!vicente: (5 anos) Estou indo, papai.joão josé: Você veio pescar ou não ?vicente: (43 anos. Senta-se diante dele e os observa)vicente: (5 anos. Meio sonhador) Papai!joão josé: (Atento à pescaria) Que é?vicente: Por que a água corre p'ra lá?joão josé: Por causa da queda.vicente: Acho que devia correr ao contrário.joão josé: Mas, não corre.vicente: Seria mais bonito. Passaria primeiro naquela árvore cheia de... Que árvore é aquela, papai?joão josé: Figueira branca. Padrão de terra boa, filho.vicente: A raiz parece escada de barranco. Que é aquilo pendurado na figueira, papai?joão josé: Ninhos de guachos.vicente: Parecem pacotes de balas.joão josé: Pescaria exige silêncio, meu filho.vicente: (Pausa) Nunca passou tanto igarapé florido, como hoje!joão josé: Assim, você não pesca, Vicente.vicente: Um rio de flores e de luas! Papai! Por que os igarapés descem o rio?joão josé: Porque as águas arrancam das margens.vicente: (Aflito) Papai!joão josé: Fica quieto, Vicente!vicente: Olha, papai!joão josé: Será possível que não pode calar essa boca?vicente: Uma traíra está comendo um lambari!joão josé: O que é que você pensa que traíra come? Pão-de-queijo?vicente: Salva ele! Salva, papai!joão josé: Assim, você cai no rio, menino!vicente: (Agarra-se às pernas de João José) A traíra está comendo o lambari! Salva ele, papai!joão josé: Não é possível. Vamos embora! (Olha a cesta) Mas... onde estão os peixes?vicente: Não sei.joão josé: Você soltou outra vez?vicente: (43 anos. Levanta-se, aflito) Soltei!joão josé: (Dá um safanão no garoto) Seu pamonha! Estou tentando ensinar a você um divertimento de gente, de homem!... está ouvindo? De homem! E você com esta alma de mocinha. Vamos! E não comece a chorar.vicente: (5 anos) Eu fiquei com pena, papai. Eles saltavam tanto na direção da água. Quando eu for grande, eu pesco, viu, papai!joão josé: (Amolecendo) Está bem, meu filho.

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vicente: Papai!joão josé: Que é, agora?vicente: É bom ser homem?joão josé: Claro. Você não é?vicente: Não, papai! É bom ser homem grande?joão josé: (Examina o garoto) É, sim. É bom ser homem grande. É a melhor coisa, ouviu meu filho? São os homens que mandam. Os homens! Eles domam, caçam, dominam os bichos e são donos do mundo. Não há caça, por mais matreira que seja, que possa fugir deles. (Tenta impressionar) Aquela cabeça grande de cervo que está na parede...vicente: Aquela que parece ter duas àrvorezinhas secas na testa?joão josé: (Aborrecido) É. Aquele cervo, cacei quando você estava p'ra nascer. Afrouxei cinco cavalos. Nunca vi bicho mais astuto. Mas, acabou na garupa do meu cavalo.vicente: (Em sua nascente visão do mundo, olha para cima) A lua já não é mais uma bola! É um queijo partido. Quando eu ficar grande, a lua ainda será quebrada?joão josé: Acho que sim.vicente: Quando o senhor era do meu tamanho, ela já era?joão josé: Era.vicente: E o senhor nunca descobriu por quê?joão josé: (Retesado) Não.vicente: Por quê?joão josé: (Explode) Larga mão dessa porcaria de lua, Vicente!vicente: Quando eu for homem grande... eu caço, viu papai. Quando ficar grande, vou ser como o senhor... e vou descobrir por que a lua fica quebrada. Montarei no meu corcel e descerei pelas ribanceiras. (Saboreando a palavra) Ribanceiras! RIBANCEIRAS! Vou caçar as negras malas, sulfurosas... (Sai)

(Desaparecem os "slides". João José se 'dirige para o fundo do palco, saindo. Vicente (43 anos) acompanha-o perdido em si mesmo. Lavínía surge, atarefada, seguida por um garoto de mais ou menos sete anos. O garoto não aparece de frente, mas lembra muito o jeito de Vicente (5 anos).)

garoto: Mamãe! Por que só a cara do pai sai no jornal?lavínia: Porque ele escreve estórias que os outros gostam.garoto: Por que ele não conversa comigo?lavínia: Seu pai conversa sempre que pode, Martiniano.garoto: Ele não sai de cima da garagem, mamãe! Quando vai consertar meu papagaio?lavínia: Domingo ele conserta.garoto: Mas, domingo ele manda a gente p'ra matinê.lavínia: Seu pai anda muito ocupado, meu filho. Está terminando um trabalho importante. Onde está o papagaio? Venha! Eu conserto.

(Lavínía e o garoto saem. Elisaura surge com um vestido de miçangas brancas, logo seguida por Jesuína e Isolina. Ilumina-se a sala onde se realiza a conferência. Uma pequena orquestra toca uma música alegre de 1923. Algumas sombras de pessoas dançando são projetadas no fundo onde Elisaura e as cunhadas passam e desaparecem.)

isolina: Sobre o que Coelho Neto vai falar?elisaura: As cigarras! (Aflita) João José já deve estar aflito...! (Saem)

(Vicente parece perdido em si mesmo. Lavínía torna a entrar, segurando papéis coloridos e um papagaio. As sombras da conferência desaparecem. Vicente se volta, aflito.)

vicente: (43 anos) Há muitas coisas em minha vida, Lavínia, pedindo explicações. De muitas, lembro-me bem. Mas, são as escondidas que nos atormentam. (Volta a cabeça, ligeiramente,

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numa recordação fugidia. O GAROTO, ESCONDENDO ALGUMA COISA, SURGE CORRENDO, PÁRA, MEIO ASSUSTADO, OLHA PARA OS LADOS E DESAPARECE, RÁPIDO.)

mariana: (Passa ao fundo, atarefada) João José! Dá corda no relógio. Não gosto de relógio parado. (Sai)vicente: (Retoma o tom) As que ficam perdidas não sei em que imobilidade, agarradas às paredes como hera, guardadas em fundo de gavetas de cómodas velhas, refletidas em caixilhos, escondidas dentro de nós...!lavínia: Quando se refere às coisas de sua vida que pedem explicações, você pensa no passado, ou no presente?vicente: (Confuso) Creio que... nos dois.lavínia: (Resolvendo-se) Quer saber como é que vejo você? Como um grande egoísta, que só pensa em seu trabalho. Mas, é assim mesmo, não é? O mais importante para você, é escrever. Mas, é verdade também que nunca reclamei. Reclamei?vicente: Não.lavínia: (Pausa) Pensei muito, antes de me casar, Vicente.vicente: Não gostava de mim?lavínia: Não se trata disso!vicente: (Deprimido) Não lhe dei a vida que esperava.lavínia: Não me casei para ficar rica. Não sou tão burra assim.vicente: Por favor, Lavínia!lavínia: Mas, é verdade. Era necessário muita burrice... pensar em ficar rica com teatro neste país.vicente: Podia, ao menos, ter uma vida melhor.lavínia: Minha vida mudou,Vicente. Só isto!vicente: A ponto de não olhar mais vitrines, não é?lavínia: Para que olhar o que não preciso comprar?vicente: O que não podemos comprar, é melhor dizer!lavínia: Você também não entra menos nas livrarias? E os livros são importantes para você.vicente: (Auto-acusação) Sinto que... já não é a mesma!lavínia: Nem podia ser. Sou mãe de quatro filhos. (Sorri com carinho) Não basta?vicente: E vive preocupada com o futuro deles.lavínia: Vivo mesmo. Mas, nem por isto deixo de ser feliz.vicente: É a insegurança que eu...!lavínia: (Corta) Minha preocupação maior é que você seja feliz; possa trabalhar em sossego.vicente: (Abraça Lavínia)lavínia: Para que se atormentar tanto, Vicente? Você sempre diz que quer viver só de seu trabalho! Eu também acho que deve ser assim.vicente: (Afasta-se, agitado) Este é o problema, Lavínia. Tenho estado preso num círculo vicioso. Preciso passar nove horas no Ginásio, dando aulas...!lavínia: Você ficou tão feliz com a reação dos alunos no Ginásio, não ficou?vicente: Muito! Mas, é que não me sobra tempo para escrever. E o que consigo escrever, não nos permite viver. Estamos sendo isolados cada vez mais. Esta é a verdade.lavínia: Isolados, por quê?vicente: Porque nesta situação, não é possível criar nada!lavínia: E não está criando? Você escolhe seus temas, Vicente, e escreve como quer!vicente: E depois guardo nas gavetas.lavínia: Não vão encenar mais a peça?vicente: Não.lavínia: (Preocupada) Mas, não pediram a você que escrevesse?vicente: Pediram. Disseram-me, inclusive, que não me preocupasse com nada, deixasse a imaginação correr. Agora, vêm me dizer que o espetáculo vai ficar numa fábula; que teatro, neste país, é diversão para uma elite que não está interessada em resolver problemas... e por

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aí afora. (Amargo) O pior é que eles têm razão. Com os preços que são obrigados a cobrar...!lavínia: (Disfarçando a preocupação) Sua peça é linda, Vicente. Um dia, será encenada.vicente: Preciso viver da minha profissão, Lavínia. Não posso esperar... um dia!lavínia: Quer que ajude? Posso trabalhar também!vicente: E com quem ficam nossos filhos?lavínia: Trabalho aqui! Há muita coisa que uma mulher pode fazer, sem sair de casa. Costurar, fazer tricô...vicente: (Corta) Por favor, Lavínia. Não vamos voltar a este assunto.lavínia: (Pausa. Com esforço) Quer que fale com papai? Ele pode nos ajudar.vicente: (Seco) Não. O problema é profissional, não de ajuda.lavínia: Você e seu orgulho!vicente: (Impaciente) Mas, não se trata disto. Enquanto não se encarar o teatro como manifestação cultural, será sempre assim. Não posso receber ajuda a vida inteira. Nem posso ver você em cima de uma máquina. (Subitamente, atormentado) Já basta o que presenciei naquela cidade!lavínia: Há uma semana que não fala com ninguém, Vicente! Anda em casa como alma penada. É horrível viver assim!vicente: (Revoltado) Trabalhei nesta peça durante dois anos, fechado em cima daquela garagem, preso a uma máquina...! Começo a duvidar do que desejei tanto!lavínia: Duvidar?!vicente: É que... já não sei até que ponto... tudo que quero dizer tem importância.lavínia: Tem muita importância, Vicente! Seu trabalho fala de uma realidade nossa. Uma estória sua! Importante ou não, é a que tem para contar...!(Repara em Vicente e percebe que ele já está perdido em si mesmo. Sorri compreensiva.) E você vai contar!

(Lavínia beija Vicente e se afasta, observando-o perdido em seus pensamentos. Voltam as sombras da conferência. Subitamente, Vicente se volta para o fundo. João José, apressado, sai da sala da conferência, acompanhado por Elisaura. João José está com terno de casimira azul. Percebe-se que ele se sente mal.)

elisaura: João José!joão josé: Esse escritor é uma besta!elisaura: Por favor. João José!joão josé: P'ra mim, cigarra é inseto músico que dá prejuízo.elisaura: Você não está sendo delicado.joão josé: Eu não queria vir. Você insistiu.elisaura: Se fizer um esforço, acabará gostando.joão josé: Gostando do quê, Elisaura?elisaura: Da conferência de Coelho Neto, João José!joão josé: (Confuso) Por que me pede essas coisas, Elisaura? Eu tenho vergonha de ficar lá.elisaura: Vergonha por quê? Não está cheio de homens?joão josé: Não entendo o que aquele sujeito fala. Ele me dá sono. Só sei que cigarra é bicho daninho. Nunca vi cigarra cantando dentro de livro, Elisaura!elisaura: Fale baixo! Podem nos escutar.joão josé: Pois que escutem.elisaura: Faça a minha vontade! (Insinua) Hoje, é um dia muito importante.joão josé: (Sem compreender a insinuação) O sapato está me apertando. Não suporto gravata! Sinto-me como se estivesse arreado, uma besta de carga.elisaura: Não brigue comigo.joão josé: Mas, quem é que está brigando?elisaura: Você é áspero, não é capaz de ser amável.joão josé: É o meu jeito, Elisaura.elisaura: Freqüento tudo sozinha com suas irmãs. Afinal, não sou viúva, nem desquitada.joão josé: Fale baixo, Elisaura! P'ra que dizer essas coisas?

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elisaura: Não pode gostar nem um pouquinho do que gosto?joão josé: (Olha à sua volta, com certo receio de ser ouvido) Gosto de você. Só de você.elisaura: (Comovida, abraça João José)joão josé: (Com pudor) Estamos em público, Elisaura!elisaura: Preciso dançar, ouvir música, ver gente inteligente.joão josé: Você é mulher casada! Ver gente p'ra quê?elisaura: Estou cansada de ver sua mãe o dia inteiro. Só fala em biscoitos, pamonhas, goiabada...! (De repente) Quer coisa melhor do que palavras bonitas, música... para nosso filho?joão josé: Que filho?elisaura: O que vou dar a você.joão josé: (Numa alegria crescente) Você está esperando, Elisaura?elisaura: Estou. Não diz nada?!joão josé: Então... é preciso participar p'ros parentes!elisaura: Fique comigo!joão josé: Estou satisfeito, Elisaura! Pode ficar. Você está com minhas irmãs. Espero você em casa. Vou contar p'ros amigos. Ah! Vou tirar o papo do Augusto. Meu filho veio primeiro do que o dele. (Ri) Quem não dá no couro, é ele. (Vai sair e pára) Quando voltar dos campos gerais, Elisaura, vou trazer p'ra meu filho as mais belas cabeças de cervo. Juntos, então, traremos muitos mais. Ele será o meu companheiro. (Sai)

(Humilhada e magoada, Elisaura levanta a cabeça com decisão. Profundamente ferida, fica um instante meio desnorteada. Vicente (43 anos) encosta-se ao batente, olhando fixamente para frente; fecha os olhos com amargura. Elisaura atravessa o palco, saindo, com expressão de quem se sente muito só.)

vicente: (Sussurro doloroso) Ele será o meu companheiro. (Enquanto Vicente (43 anos) se perde em meditação profunda, ilumina-se, lentamente, a sala da casa, onde Mariana, Isolina e Jesuína fazem tricô e croché. Vicente (15 anos) lendo atentamente, entra e senta-se. Mariana observa Vicente,olhando por cima dos óculos.)

isolina: (Abaixa a vai, cúmplice, guardando um segredo) Gostei muito "daquilo", Vicente.vicente: (15 anos) (Faz sinal de silêncio, disfarçando)vicente: (43 anos, rememorando) Uma ave com penas de prata, asas de aço e olhos do tempo!mariana: (Sorri enigmática, revelando conhecer o segredo dos dois)isolina: (Disfarça) Chegaram livros novos no Tedesco, Vicente?vicente: Não. Só Pitigrilli deitado pêlos balcões, agachado nas prateleiras, brigando com Willy Aurelli p'ra todo lado.isolina: Que desolação! E discos?vicente: (Desprezo odiento) Guarânias paraguaias!isolina: Não sei por que gostam tanto de música paraguaia!mariana: (Enigmática e maliciosa) Eu sei. (Troca olhar com Vicente)isolina: Também, nesta terra não há nada. Dizem que a saúva ainda vai acabar com o Brasil. Pois, eu digo que será a falta de cultura. (Suspira, sofredora) Parece que vivemos esquecidos em um canto do mundo.mariana: Deixe de suspiração, Isolina, e acostume a se distrair com as mãos. Será pelo menos útil, no futuro. Nunca é demais lembrar que seu pai deixou vocês quase na indigência! (OUVE-SE O APITO DO TREM) Este apito incomoda até os mortos! (Raivosa) Porcaria de trem, que só serviu p'ra queimar invernada.jesuína: (Odienta) Semeador de incêndios!isolina: Vou à estação pedir a alguém que me compre livros em São Paulo.mariana: O que é que você quer? Abrir uma livraria?isolina: (Acintosa) Apenas ler.

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mariana: Não há mais lugar nesta casa p'ra nada.isolina: Estamos formando nossa biblioteca.mariana: P'ra que isto? Livro a gente lê e queima.isolina: (Ignora Mariana) Somos autodidatas, não é, Vicente?mariana: (Desconfiada) O que é isto?vicente: (Sorri) Pessoas que aprendem sem professores, vovó.mariana: (Maliciosa) Pesados, são! Bons p'ra acender fogo.vicente: Está aí a explicação: a senhora queimou os que estavam em meu guarda-roupa?!mariana: Aqueles eram indecentes. Onde se viu livro com mulher pelada na capa? Inglês sem vergonha! Na sua idade, eu sei p'ra que serve livro com mulher pelada! Não é à toa que sempre desconfiei desta inglesada do frigorífico.isolina: Não adianta, Vicente. Ela não entende.mariana: Não entendo mesmo. Logo chega a época das tachadas de goiabada. Vou precisar de muito papel. Já marquei alguns por aí.isolina: Os meus a senhora não queima. Não se atreva!mariana: Então, tire da minha vista.vicente: A senhora nunca leu, vovó?mariana: Muito! Não faço minhas orações todos os dias?isolina: (Troca sorriso depreciativo com Jesuína)vicente: Digo, romance?mariana: Vamos conversar sobre coisas importantes! Como está a fazenda, Vicente?vicente: Naquela batidinha: sem dinheiro, sem trator...!vicente: (43 anos) E muito pavor de Banco.mariana: Companhia e ajuda, é o que se espera de um filho, Vicente.isolina: E o que se espera de um pai? Compreensão, pelo menos.mariana: Isolina! Você já está passadona, mas ainda pode levar uns tapas.vicente: Ajuda, não é bem o que papai espera de mim. Se gostasse de caçar e me contentasse com uma rocinha aqui e outra ali, aia tudo bem.mariana: Caçar é o divertimento que seu pai aprendeu.isolina: A senhora mesma vive chamando João José de atrasadão.mariana: Eu posso falar. Ninguém mais.jesuína: Ele é mesmo.mariana: Antes isto do que viver de dinheiro a juros. Como muitos por aí que não têm peito nem para sustentar uma mulher.jesuína: Isto é p'ra mim?mariana: É, sim. É p'ra esse bundudo do Pacheco que não emprenha nem sai de cima.jesuína: Mamãe! Por favor!isolina: Que vulgaridade, mamãe! E na frente de Vicente!mariana: Vicente não é mais criança (Insinua, maliciosamente) Já é um homem.jesuína: Pacheco ainda não está em condições p'ra casar. Desde que ele perdeu os troles...mariana: (Corta) A estrada de ferro já está ficando velha, e ele ainda pensa naquelas porcarias de troles. Sei! Vamos todos assistir a esse casamento... no além! Melhor! Assim, contaremos com os parentes do cemitério e com Bernardino. Seu pai tocará a marcha nupcial naquela flauta!isolina: Sem falar de papai a senhora não passa.mariana: E você, Isolina, vive me censurando por causa de um homem que não quis você. Um médico que vivia amigado com uma preta!isolina: Não é verdade.mariana: Foi com ele para a Bahia.isolina: Era empregada dele. Uma empregada fiel!mariana: Só que o fogão era na cama! Pior do que essas putas paraguaias que mandam, hoje, na cidade. Quanto a você, Vicente, deixe de censurar seu pai.vicente: (Crispado) Só quando estiver bem longe daqui.mariana: (Violenta) Seu lugar é na fazenda, ajudando seu pai. E pare com esse negócio de rio

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de flores e de luas! Lua é lua, flor é flor, rio é rio. Você não está mais em idade p'ra isto. (Vira-se para Isolina) Pois eu não gostei nada "daquilo". (Depreciativa) "Penas de prata!" Pena que conheço é pena mesmo.vicente: (Indignado) A senhora mexeu em minhas coisas?mariana: Mexo em tudo aqui. Quem não gostar que coma menos. De prata, basta aquela flauta. É você, Isolina, quem anda pondo essas besteiras na cabeça de Vicente. Que ninguém se atreva a falar em viagens em minha presença. (Arruma-se) Hoje é dia de novena no cemitério. Venham! (Volta-se para Vicente) Que aconteceu entre vocês, meu filho? Por que esta raiva? Você e seu pai não trocam meia dúzia de palavras sem se agredir!vicente: Não sei. Pergunte a ele!mariana: (Temerosa) Se continuam assim, onde vão parar?vicente: Onde ele quiser!

(Diversos túmulos são projetados na parede da esquerda. Mariana, ladeada pelas filhas, anda no meio deles, rezando. Concentradas e hieráticas, elas caminham com expressão de reverência profunda. Vicente (43 anos) se apoia em um dos túmulos e fica observando.)

mariana: Padre Eterno, nós oferecemos o sangue preciosíssimo de Nosso Senhor Jesus Cristo para alívio das almas mais abandonadas no Purgatório... entre elas, a de meu marido. Suplico-vos proteção para a minha família. Iluminai meu filho e meu neto! Ave Maria, cheia de graça... etc.FILHAS: Santa Maria, mãe de Deus... etc.

(Enquanto ouvimos a oração, Vicente (15 anos), aflito, abre um livro e retira diversas cédulas de dinheiro. Depois, corre num movimento de fuga e libertação. A estação ferroviária é projetada na parede da direita. Uma locomotiva, prestes a partir toma toda a parede do fundo. A cena é invadida por apitos, fumaça, sons de automóveis e de trens. Mariana e as filhas desaparecem. Vicente (43 anos) se aproxima da estação, olhando, penalizado, a Vicente (15 anos).)

vicente: (75 anos) Uma passagem para São Paulo.voz: (Que ressoa em toda a cena) Você está só?vicente: Estou.voz: Que idade tem?vicente: Dezessete.voz: Quinze! Vá andando, Vicente!vicente: Eu quero uma passagem para São Paulo.voz: Quer que chame sua avó? Ou aquele soldado ali?vicente: Eu tenho ordem para viajar.voz: Como da outra vez? Fomos prevenidos por dona Mariana. Vá andando! Outro, por favor.vicente: (Desesperado) É a minha vez! (Grita) Me dá uma passagem. Eu vou embora. Vou trabalhar e estudar. Não quero morar na fazenda. Largue-me! Deixe-me! Aqui, não consigo viver! Não posso ser o que sou! Vão me ferir...! Por favor...!

(Ouvem-se os apitos de partida. Vicente corre na direção da locomotiva, enquanto esta parte, crescendo em sua direção como se fosse passar por cima dele. O apito vai se distanciando até sumir. Vicente (15 anos) fica parado em grande solidão. O som do apito vai se confundindo com o som de uma flauta. Humilhado, Vicente se afasta, até desaparecer. Vicente (43 anos) o segue,sentindo a mesma solidão.)

vicente: (43 anos. Rememora, profundamente ferido) Seria melhor... que não tivesse nascido!

(Subitamente, Vicente se volta, aflito. Lentamente, João José, sentado e perdido em

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pensamentos, é iluminado. Percebe-se que seus pensamentos o torturam, que dúvida humilhante lhe corrói a alma.)

mariana: (Entra e pára enraivecida) João José! Fazendeiro precisa levantar e urinar no chiqueiro. São os olhos do dono que engordam os porcos. Já empobrecemos demais, meu filho. Foram até os anéis, naquela maldita crise. Não deixe que nos arranquem os dedos. A fazenda está lá, ao deus dará.joão josé: (Concentrado) Aqui, pelo menos, eu vejo gente.mariana: Vicente não está na fazenda?joão josé: Quem sabe onde esse menino anda! Do mundo da lua ele não sai nunca. (Pausa) Elisaura morreu e me deixou um filho assim!mariana: Você quer é obrigar o menino a gostar do que não gosta. Vicente é bem diferente quando está longe de você, João José.joão josé: Pois, comigo, é sempre aquela vergonheira. Se for preciso arrancar a roupa e cercar uma caça no rio, ele prefere morrer de bota e tudo.mariana: João José! Aconteceu alguma coisa na caçada? Entre você e Vicente? Desde aquele dia que vivem como cão e gato!

(O GAROTO, ESCONDENDO ALGUMA COISA, SURGE CORRENDO, PÁRA, MEIO ASSUSTADO, OLHA PARA OS LADOS E DESAPARECE, RÁPIDO.)

joão josé: Sempre acontece tudo entre nós. Parece sina! Agora, não se contenta mais em pôr tábuas nas árvores do pomar para ler. Um dia desses, ia passando a cavalo no meio da invernada, olho para cima e quem vejo? Vicente, lendo, sentado no galho mais alto de uma árvore!mariana: Decerto, é onde se vê livre da sua implicância.joão josé: E quando perguntei o que estava fazendo, sabe o que me respondeu? Que procurava uma ave com penas de prata! (Subitamente) Mamãe! Nós temos algum caso de loucura na família?mariana: Só se for na de seu pai. Os meus foram sempre uns mineirões muito normais.joão josé: A senhora não viu Vicente vestido de noiva a semana passada? (Contendo-se) Já estão falando dele, mamãe. Tenho certeza!mariana: Falando o quê, João José?joão josé: Falando!mariana: Marcelo e os amigos dele também estavam fantasiados de noiva.joão josé: Desejei tudo para ele, mamãe. Por que detesta o que eu gosto? Por que não é um companheiro p'ra mim? Parece que ele tem prazer em me ferir.mariana: (Condoída) Vicente é ainda uma criança. Depois que sua mulher morreu, você quase virou um bicho, vivia socado no mato, caçando... e ele cresceu entre quatro mulheres velhas. Não desespere. Procure ajudar o menino!joão josé: Já tentei. Ficou uma fera. Acabamos brigando. (Explode) Na idade dele eu já era um homem. Tinha até mulher por minha conta!mariana: É você quem desconfia de seu filho. Sei muito bem como foi que ajudou: empurrando o menino na cama de uma puta! Ê isto que é ser homem p'ra você?joão josé: (Violento) É! É isto mesmo que é ser homem! E se ele não é assim, prefiro que ele... prefiro que...! Seria melhor que não tivesse nascido!mariana: (Dá uma bofetada em João José) Não se atreva a dizer isto em minha presença! Isto é que é loucura! Mania de gente fraca! (Amarga) E dizer que um dia você foi um sol p'ra mim! Enquanto trabalhava como uma burra, eu pensava: ele vai fazer tudo isto germinar e o mundo será um campo tombado, e sementes dele espalharão espigas e cachos amarelos pra todo lado. E os trinta mil alqueires voltarão para nós, outra vez! E uma paca fez você rodar num rio qualquer! Eu disse que seu casamento não daria certo. Veja no que deu! Só peço a Deus que esta raiva não vire ódio. Vocês ainda vão se ferir de maneira impiedosa, meu filho! Não quero estar aqui... quando isto acontecer.

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(Mariana e João José saem. Vicente (15 anos) atrás da porta, trespassado, sem poder fazer qualquer movimento, observa a saída de João José. Em sua imobilidade, sentimos uma mágoa imensa. A porta deve ser iluminada, lentamente, durante Q última cena. Encostado à parede, olhando Vicente (15 anos), numa evocação dolorosa, está Vicente (43 anos). Mais distante, Isolina, revoltada, observa Vicente (15 anos), que dá vazão ao seu desespero, batendo com as mãos no batente da porta. Volta o apito do trem que se distancia, com qualquer coisa de profundamente triste.)

isolina: Vicente!vicente: (75 anos. Não se contém mais) Por que se encarniçam tanto contra mim, tia? Por que não posso ser o que sou? Por quê? Por quê, meu Deus?isolina: Eles não podem compreender, meu filho.vicente: Mas, é justamente o que me desespera. Vivemos isolados! Ninguém se compreende, se comunica, tia!isolina: É difícil, meu filho.vicente: (Concentrado) Como vencer esse homem que me barra todos os caminhos! Estou começando a duvidar de mim mesmo, tia.isolina: (Preocupada) O que é que você espera, Vicente?vicente: (Exalta-se) Escapar deste mundo, caduco para mim, e me comunicar... de uma maneira ou de outra. Deve haver um meio!

(Isolina senta-se, abraçada a Vicente. Enquanto fala, acaricia os cabelos dele com grande ternura, tentando acalmá-lo. O SOM, DISTANTE, DE UMA FLAUTA ACOMPANHA A CENA. Isolina perde-se numa rememoração repleta de amor.)

isolina: Você me lembra muito papai. É verdade! Ele nos compreenderia! Papai era lindo. Parecia um poeta. Tinha alma de poeta. Era inteligente, nobre, sensível... sentia pena de todo mundo. "A humanidade é muito sofredora", dizia. E recolhia todo mundo em casa. Ao entardecer, sentava-se no alpendre e tocava músicas para nós. Ele também gostava de olhar as estrelas. Contava uma história linda sobre a luta da Terra com a Lua por causa do sol. A lua perdia e, envergonhada, ocultava a face iluminada, mostrando a face obscura. Era assim que nos explicava as fases da Lua. Lembro-me de que ele dizia que mamãe era como a terra: generosa, mas impiedosa. E nós, as filhas, éramos astrês Marias! (Sorriso doloroso) Sempre juntas em um céu limpo! Assim seria nossa vida! (Fica perdida, com os olhos marejados)

vicente: (43 anos. Perdido em sua rememoração) Ninguém se compreende, se comunica...!vicente: (15 anos. Preocupado e carinhoso) Tia!... tia Isolina!isolina: (Subitamente, levanta-se) Não fique nesta casa. Vicente. Vão ferir você. (Calma, mas determinada) Vá embora, meu filho, antes que o pior aconteça. Não vão entender você nunca!(Vicente (15 anos) e Vicente (43 anos) caminham na mesma direção, enquanto Isolina se afasta, desaparecendo. Subitamente, dominado por agitacão crescente, Vicente (43 anos) se volta, soltando uma praga. Lavínia entra, preocupada e nervosa. Vicente (15 anos saí.)

vicente: (43 anos) Maldita condição! Será possível que ninguém compreende!lavínia: Que foi, Vicente?vicente: Não sei como vencer essa incompreensão.lavínia: Que incompreensão?vicente: No governo passado, eu era aristocrata... um fascista! Agora, sou subversivo! Minha obrigação, como escritor, é denunciar o que está errado, é dizer a verdade, Lavínia. Doa a quem doer. Escrevi sobre um fato publicado nos jornais, em todas as revistas. Que querem mais?

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lavínia: Sempre o fracasso desta peça! Esqueça isto, Vicente, pelo amor de Deus.vicente: Esquecer como? Ele explica tudo!lavínia: Explica também que vive socado naquele escritório, depois de passar o dia inteiro no Ginásio, esquecendo-se de que tem família?vicente: Explica isto também, porque ela depende de mim... e eu estou num beco sem saída.lavínia: Você podia ter feito o programa da televisão, Vicente! Ajudaria!vicente: O que eles queriam era demais! Inaceitável! (Indignado) Não podemos fazer tudo que o público quer, Lavínia.lavínia: Devolveram seu trabalho?vicente: Não. Contrataram uma pessoa para reescrevê-lo... e eu não aceitei. Não assino trabalho de ninguém. Não permito que assinem o meu. Sabe? Quem manda é o número de cartas que o programa recebe. Se o público não gosta de uma personagem, eles simplesmente cortam! Acha que podia aceitar uma coisa assim?lavínia: Sempre o seu trabalho!... a honestidade artística!... a coerência! E sua família? Você mal conversa com seus filhos. Vive perdido no mundo das suas personagens... e nem sabe comoção eles. Brincar, então, nem se fala.vicente: Que é que você quer? Que deixe meu trabalho, nas poucas horas que tenho, para ir brincar?lavínia: Faria bem a você!vicente: (Áspero) Que quer dizer?lavínia: (Exalta-se) Que vive obcecado, querendo provar alguma coisa a um pai que não vê nunca!vicente: (Agressivo) Não é verdade!lavínia: Se tem o seu mundo, eu tenho o meu... que também é seu. É disto que se esquece. Você se fecha... e nos deixa de fora. Passa os olhos por nós, mas não nos vê... como se eu e Martiniano não tivéssemos rosto.vicente: (Atônito) É assim que tem se sentido?!lavínia: (Magoada) E não é verdade?vicente: (Subitamente, abraça Lavínia) Lavínia!lavínia: (Entrega-se, amorosa) Vicente!vicente: Compreenda, meu bem! Estou com mais de quarenta anos e ainda lutando para me realizar. Preciso me comunicar... de uma maneira ou de outra! Mas, sinto que falta sentido em tudo! (Subitamente, atormentado e consigo mesmo) Será que estou no caminho errado, Lavínia? Vivemos numa sociedade em crise, de estruturas abaladas, valores negados, soluções salvadoras que não levaram a nada! (Obsessivo) Qual o caminho certo? Onde achar resposta? No presente? No passado? Será que fiquei apenas em lamentações sobre a decadência... sem ter saído dela?lavínia: Você está no caminho certo, Vicente! Se não vencer seus fantasmas, não terá paz.vicente: (Perdendo-se cada vez mais) Não posso passar a vida, perguntando quem sou eu! (Subitamente, atemorizado) Será que a incompreensão tem sido minha? A verdade já estará solta nas ruas... e eu não estou vendo? Acreditar em quê... neste vazio? (Abraça-se à Lavínia) O que está errado comigo, Lavínia? Ajude-me!lavínia: (Preocupada) Volte a Jaborandi, Vicente. Sem conhecer o porquê da sua confusão, não pode encontrar o caminho certo... nem a si mesmo. Faça isto! Por mim.vicente: (Perdendo-se) Está certo, Lavínia. Eu vou.lavínia: Que foi?

(Vicente (5 anos) entra e faz jogo de cena como se estivesse olhando alguma coisa na parede. Mexe com os braços, imitando o crescimento de uma planta, desloca o corpo seguindo-o movimento do pêndulo de um relógio, até ficar parado, observando, perdido. Mariana entra e, preocupada, olha o garoto. Depois sai.)

vicente: Em nossa casa, na fazenda, havia um relógio em frente à janela da sala. Como meu pai só se orientava pela posição do sol, minha avó levou quando foi para a cidade. Fiquei para

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sempre com a impressão de ter perdido alguma coisa... sem saber o quê! (Sorri) Gostava de ver no vidrodele, refletidos, galhos de árvores do pomar, cachorros e galinhas que passavam, gente. Era como se fosse uma bola de cristal onde eu pudesse ver tudo. Um espelho que era só meu, que refletia o que eu desejasse. Às vezes, tentava imitar o que pensava ser o crescimento de uma planta. Ou ficava olhando e pensando: se tia Isolina passar é porque vou ganhar um caderno. Se for meu pai, vamos passear em Jaborandi. Mas ele nunca aparecia no vidro. Só minha avó... jogando milho, passando as mãos no rosto suado. Um dia...lavínia: Que aconteceu?vicente: ...vi que ela levantava a saia e urinava onde estava, no meio do terreiro! (O garoto sai correndo)lavínia: (Sorri) Começo a compreender as mulheres de suas peças.

(Lavínia sai. Vicente adianta-se, sentindo-se perto de acontecimentos penosos. Pouco a pouco, João José vai sendo iluminado, sentado com a cabeça entre as mãos, em grande preocupação. Alguma coisa o tortura profundamente. Vaqueiro surge ao fundo e olha, preocupado, para João José. "Slides" com formas estranhas, sugerindo grades, são projetadas em toda a cena. Por um momento, voltam os "slides" de cores sombrias do final do primeiro ato.)

vicente: (43 anos) Que impiedade cometemos, papai? Que momento foi esse que nos separou? Onde procurar mais? Em que canto de mim mesmo, ainda não desci, para tirá-lo de lá como realmente foi? Há uma imagem que precisa ser destruída, para que a verdadeira apareça. É esta que vim buscar.(Vicente sai, enquanto Vaqueiro se aproxima)

vaqueiro: Vamos se embora, compadre! Vá procurar seu filho duma vez.joão josé: Sai daqui, Vaqueiro! Me deixa em sossego.vaqueiro: P'ra que continuar nesta penação?joão josé: (Violento) Quem disse que estou penando?vaqueiro: Nem caçar a gente tem caçado, compadre!joão josé: Nunca cacei tanto em minha vida! Dia e noite....!vaqueiro: O senhor não tem saído deste tronco de árvore!joão josé: Sabe o que o Vicente me disse uma vez? "Há outros caminhos, outras matas onde um homem pode se perder!" Deve haver caças que a gente não pega nunca...vaqueiro: (Mais preocupado) Compadre!joão josé: ... que amoítam...! (Agitado, passa a mão pelo peito. ELISAURA surge, ao fundo) Sai daqui, Vaqueiro! Nesta caçada você não entra.elisaura: O filho que vou dar a você! Fique comigo!joão josé: (Dominado por um pensamento obsedante) Anda, Vaqueiro! Não volte aqui enquanto eu não chamar.(Vaqueiro sai)

(Etelvina, Jesuína, Isolina e Mariana entram e saem rapidamente, repetindo as frases fora da cena.)

mariana: Deixe o menino, João José! Ele não aguenta!etelvina: Não judie dele. Vicente não gosta!jesuína: Não judie da criança!isolina: Não judie do menino, João José!

(As vozes vão se distanciando. A aparição de Elisaura é um pouco irreal. Quando Elisaura se aproxima, um frémito percorre o corpo de João José. O garoto entra correndo e rindo, parando quando avista o pai. Logo depois, Vicente (23 anos), com camisa colorida e lança-perfume na mão, passa ao fundo e pára, observando João José, Vicente (43 anos) entrei

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examinando atentamente um livro. Vicente (15 anos) surge ao fundo, fantasiado de noiva, para e olha João José com expressão decidida, de desafio. João José passa as mãos na cabeça como se quisesse afugentar uma lembrança. Por alguns momentos, João José parece cercado. Os quatro VICENTES, espreitando João José, vão se aproximando com expressão que é um misto de raiva, carinho e súplica de compreensão. A expressão evolui conforme a idade, atingindo o seu ponto mais exasperado em Vicente (15 anos). Os movimentos que fazem parecem ter qualquer coisa de louco, de suspeito: é como João José os vê. MARCELO e mais sete adolescentes, entram fantasiados de noiva. Eles andam, já meio bêbados, fazendo com que os véus se agitem no ar. O garoto, rindo, sai correndo e desaparece. Enervado, Vicente (23 anos) volta-se e sai. João José se envolve no bloco e diz qualquer coisa a Marcelo, entregando-lhe um pacote de dinheiro. O bloco, evoluindo sempre em silêncio, vai saindo de cena.)

marcelo: (Subitamente) Vicente! Venha. Vamos entrar no Maringá. A putada está tudo pelada.vicente: (Cambaleia) Como no inferno de Dante.marcelo: Lá vem você com suas frases.vicente: Não posso ver aquelas caras...marcelo: (Ri) Na hora "agá"... a gente vira o rosto!

(Elisaura vai se afastando até desaparecer. Como que atraído, João José desaparece na mesma direção.)

vicente: (Agarra-se a Marcelo) Sabe que gosto da sua irmã Maria? Domingo, na missa, ela contou que sonhou comigo!marcelo: Então foi um pesadelo.vicente: Escrevi p'ra ela:

Assim como vou em seus sonhos,Meu amor é tão grande, meu bem,Que as brisas em bailados risonhos,Trazem você em meus sonhos também!

marcelo: Nunca ouvi piores. Se pretende ser poeta, desista de cara.vicente: Vou amar Maria a vida inteira.marcelo: Aí vem a sua paraguaia. Firme, rapaz!vicente: (Sem rumo) Que paraguaia...?

(Jupira, fantasiada de boneca, entra e pára, observando Vicente com desgôsto.)

marcelo: (Entrega o dinheiro a Jupira) Está bêbado como um gambá.jupira: És la primeira vez que levo una novia p'ra cama.marcelo: Não quer mais uma?jupira: Yo tengo trinta anos de ventana... e não vi una ciudad como esta. Nunca encontrei padres tão apresurados como nesta tierra. Parece una questão de honor! Venha, chiquito mio. Vamos abrir la cartilia. Por enquanto, es como um ciego que empieza a descobrir el mundo.marcelo: Yo tambien estou ciego! Não vejo nadie.jupira: (Ri com prazer) Venga usted tambien... vá!

(Jupira sai abraçada a Vicente e Marcelo. A recordação humilhante faz Vicente (43 anos) se contrair. Vicente (23 anos) e Maria entram enlaçados, sobrepondo-se às figuras de Jupira e Vicente (15 anos). Vão surgindo, à medida que Vicente (43 anos) levanta o rosto, angustiado.)

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maria: Nunca tive um baile de carnaval tão fúnebre.vicente: (23 anos) Carnaval me traz más recordações.vicente: (43 anos. Contrai-se, recordarão)maria: Eu quero acabar com elas, você não deixa.vicente: (23 anos) Você acha que casamento funciona como apagador em quadro negro?maria: E por que não? É uma vida mais importante que começa.vicente: Apenas mais coisas serão escritas. Importantes, eu sei. Mas, não apaga nada.maria: Estamos noivos e não casamos nunca. É o que vejo escrito há dois anos.vicente: Não solucionamos a vida, apenas casando. Há outras coisas precisando de solução. Importantes também.maria: (Magoada) Mais do que eu, não é?vicente: O problema não é este. Cada coisa tem sua importância, Maria. Sou eu que preciso ser... alguém que você respeite e meus filhos admirem.maria: Mas, ser quem?vicente: Não sei. Gostaria de viajar; tenho necessidade de saber... de me comunicar. Preciso escrever, Maria!maria: Escrever? Escrever o quê?vicente: Há tanta coisa errada à nossa volta. Tanto sofrimento inútil!maria: É só escrever.vicente: Não é tão fácil assim.maria: Por que não?vicente: Tenho procurado resposta e não encontro. De tanto viver perguntas sem respostas, vou acabar andando à minha volta... e não chegarei nunca a uma solução.maria: (Fechando-se) Solução do quê?vicente: Acho que... escapar desse dia a dia que não muda nunca. O largo, a igreja, o cinema, a vizinha... sempre atrás das cortinas de filé, espreitando cada passo que a gente dá. Minha avó... vendo a fazenda sair por entre os dedos. Os colonos... sem nenhuma saída, obtusos, emparedados, sonhando com o Paraíso. Parece que não faço outra coisa, que assistir à agonia da minha gente, de tudo! Deve haver um meio de escapar, de lutar, de ser alguém.maria: E é depois de dois anos que vem me dizer isto?vicente: (Cai em si) Só preciso de um prazo maior, Maria... porque quero p'ra você, um mundo que seja meu, que só eu posso conquistar. Um mundo diferente deste que nos rodeia, que não tem mais sentido. Para isto, preciso me realizar.maria: E serei uma noiva eterna, como sua tia? Vicente! Ou será agora, ou nunca.vicente: Você acha que será feliz assim? Casada com um homem que ainda não encontrou a verdade dele? Que não sabe o que é?maria: Que importância tem, Vicente?vicente: Se me casar agora, terei de morar na fazenda, Maria. E eu não sou fazendeiro. Seria infeliz e a faria infeliz também.maria: Trabalha-se em qualquer lugar.vicente: Não é questão de trabalhar. Será que viver p'ra você é só casar, pôr filho no mundo, comida na mesa e dinheiro no Banco? É o que espera de mim, Maria?maria: O que mais posso esperar?vicente: (Num grito) Tudo!maria: Tudo o quê, Vicente?!vicente: (Desesperado, abraça Maria) Não sei. Ajude-me!maria: Já fui sua! Fiz tudo por você! Que mais posso fazer, Vicente?vicente: Só sei que não consigo viver aqui, Maria. No entanto, amo tudo...! Meu Deus! Por que não viver como todos? Por que não aceitar esse mundo como ele é? Não sei como me realizar. Maria. Sinto-me acuado. O que está errado comigo? (Consigo mesmo) Quem sou eu? Quem?maria: Vicente! Não fique assim. Eu espero você. Eu espero... Vicente.

(Os dois se beijam, e vão se deitando, sugerindo uma posse. Desaparece a cena, saindo os

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"slides". Fascinado, no limite de uma descoberta, Vicente (43 anos) caminha para o fundo do palco, como que atraído por uma grande força.)

vicente: (43 anos) Quem? Eu tinha necessidade de saber, Maria! Precisava ler todos os livros do mundo... preocupar-me com os problemas da minha gente. O conhecimento da verdade...!

(Diversos "slides" de ginásio nos são projetados nas paredes. As expressões são positivas, de grande determinação; são alegres, sadias e abertas. Três deles se adiantam em direção de Vicente.)

vicente: (Subitamente) Continuamos, hoje, nossa leitura e análise da peça "O caso Oppenheimer". Onde paramos?ALUNO 1: Página seis. Oppenheimer fala sobre Einstein.vicente: Paramos aí, para que ficasse bem claro a importância desta fala. Diz Oppenheimer: "Recebi uns cinco ou seis telefonemas. Einstein me disse: se eu pudesse escolher outra vez, iria ser funileiro ou vendedor ambulante, para gozar, ao menos, de um modesto quinhão de independência". Luís Fernando. Que conclusão você tira desta fala?ALUNO 2: Bom, professor! Penso que os cientistas foram usados para outros fins, que não os da ciência.vicente: Sobretudo, ela quer dizer que podemos fazer com nossas próprias mãos as armas que podem destruir a personalidade fazendo de cada um, um instrumento cego.ALUNO 2: Como assim, professor?vicente: É que o trabalho deles concentrou um poder econômico e político nas mãos de uma minoria, que não só os levou a uma dependência material, como também trouxe uma terrível ameaça à sua existência intelectual, o que pode impedir o aparecimento de mentalidades independentes. A partir daí, o trabalho intelectual se torna impossível. É quando as feiticeiras, assanhadas, saem à rua. (Os ALUNOS ENTREOLHAM-SE) Falamos delas do começo...! Que foi?ALUNO l: O senhor não soube?vicente: O quê?ALUNO 3: O que se passou na aula de religião?vicente: Não.

(Vicente se afasta, enquanto entra o PADRE.)

padre: Que foi que você disse?ALUNO l: (Expressão maliciosa, provocante) Que sou ateu.padre: Você não sabe o que diz.ALUNO l: Se um cientista não precisa de Deus, eu também não preciso.padre: Quem disse que um cientista não precisa de Deus?ALUNO 2: O professor Vicente.padre: Sempre o professor Vicente! O que mais ele afirmou?ALUNO 2: Precisa mais, professor?padre: Não. Mas, está certo! Certo para uma pessoa como o professor de teatro, que todo mundo sabe não passar de um comunista notório. Pior ainda: subversivo!ALUNO 3: É Oppenheimer quem é acusado de comunista, não o professor de teatro.padre: Isto não é teatro! Esta peça não presta. Como não presta também a peça do professor Vicente, encenada na cidade.ALUNO l: (Agressivo) Não presta por quê? Eu gostei muito!padre: Porque é uma mentira. Aquela personagem não foi daquele jeito. É baseada no avô dele, e todo mundo sabe que não passou de um freqüentador do meretrício.

(OS ALUNOS FALAM AO MESMO TEMPO)

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ALUNO 2: Então, o senhor não entende de teatro!ALUNO l: A personagem não é o avô dele!ALUNO 3: Simboliza a mentalidade de antes de trinta...ALUNO 2: ... a queda de famílias do café...ALUNO l: ... vítimas da crise de 29!ALUNO 3: São questões econômicas e não religiosas!ALUNO l: Problemas sociais!ALUNO 2: E que me importa se o avô dele foi assim?padre: (Grita, tentando dominar a balbúrdia) Esse autor nunca passou de um fazendeiro fracassado que acabou vendendo a fazenda.ALUNO l: Ele nunca foi fazendeiro. É um dramaturgo!padre: E o que significa um dramaturgo nesta terra? Nada!ALUNO 2: Mas, ele está entre os melhores. E o senhor, como padre?ALUNO l: Que vem aqui fazer uma delação?ALUNO 3: Está entre os piores!ALUNO 2: Não se usa mais padres como o senhor!ALUNO l: O senhor veio ensinar religião, não falar mal dos outros!padre: Saiam da classe!ALUNO 3: Isto é falta de ética profissional!padre: Calem a boca!ALUNO 2: Calem a boca, não, senhor. Um professor não manda o aluno calar a boca: argumenta!padre: (Subitamente, sai enfurecido)vicente: (Procurando se dominar) Em primeiro lugar, ninguém falou que cientista não precisa de Deus. Isto é problema deles... e nem é o da peça. Cientista é ateu, fulano é comunista, sicrano é fascista! Isto é rotular... e demostra intolerância e falta de cultura. Comentamos, apenas, a ironia de se mandar um homem jurar em nome de Deus, quando se deseja a verdade, e não se lembrar de Deus para matar setenta mil pessoas com uma bomba! Não foi isto?ALUNO l: Foi, Sim senhor.vicente: Não podia ter acontecido incidente mais feliz, para exemplificar as raízes do processo de Oppenheimer, e provar a exatidão das palavras de Einstein, de que o fim das nossas aspirações deve ser o conhecimento da verdade. (Perdendo-se) O mais extraordinário é que tudo tem certamente um sentido.ALUNO 2: Que foi, professor?!vicente: Nada. Lembrei-me de uma estória antiga, que também falava de intolerância... de incompreensão!

(Os alunos saem e Vicente caminha, perdido em si mesmo, enquanto "slides" coloridos de livros fechado, abertos, amontoados, em estantes, em livrarias,cobrem as paredes da cena. Subitamente, Vicente se volta: o garoto surge correndo e, rápido, entra debaixo da cama e fica admirando os livros, que vai empilhando. Vicente (15 anos) e Vicente (23 anos) entram lendo atentamente, cruzam o palco e vão se sentar em lados opostos, ficando absortos na leitura. Vicente passa de um para outro, numa agitação crescente. João José aparece sentado, na mesma posição em que estava. Subitamente, levanta-se e vai recuando, até se encostar à parede, ficando entre os livros. A recordação dolorosa desfigura seu rosto. Ilumina-se o quarto de Mariana. Ela está recostada em travesseiros. João José, agitado, aproxima-se da cama, seguido por Vicente (43 anos).

mariana: Basta eu fechar os olhos... e esta incompreensão odienta vai acabar com o pouco que restou.joão josé: Um filho que só serviu para me atormentar.mariana: Esta foi minha sina: passar a vida no meio de homens fracos. Na minha luta contra aquela flauta, e na sua, contra a inclinação de seu filho, consumiu-se tudo.

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joão josé: Não diga isto, mamãe. Não neste momento!mariana: Lutei a vida inteira contra um fantasma... e perdi. O que foi que fez na vida, João José? Usou a fazenda p'ra quê? Só olhou naquele relógio antes de sair pra caçar. Chuva é boa... porque a caça deixa rasto! Você pensa que ainda esta no tempo antigo. Desde que o trem chegou aqui, que tudo mudou. E você não percebeu, meu filho.joão josé: Se ele tivesse me ajudado...mariana: Não adiantaria nada. O mal... está em você também. Coitado do meu filho! É ainda uma criança... correndo num mundo sem porteiras.vicente: (43 anos. Recua, penalizado) Papai! Agora eu compreendo!mariana: (Vendo Vicente (23 anos) se aproximar) E o meu neto... um menino perdido no mundo da lua. (Contrai-se) Trinta mil alqueires, meu Deus! (Subitamente) Minhas filhas! Onde estão minhas filhas...?

(Etelvina, cansada e suada, aparece mexendo um tacho. Jesuína e Isolina, debruçadas a janela, olham quem passa na rua. Volta o apito do trem que se distancia e se confunde ao som da flauta.)

mariana: (Agita-se, angustiada) Eu sempre achei... que Bernardino... acabaria ganhando a parada. (Retesada) Maldita flauta! Ninho de cigarras daninhas! Me fez quatro filhos... e jogou na pobreza! (Odienta) Quero encontrar Bernardino... nas profundezas do inferno!

(A cama de Mariana desaparece. Vicente (23 anos) volta à posição em que estava. O som da flauta vai se acentuando cada vez mais, até formar um verdadeiro duelo com João José e Vicente. João José surge ao fundo. O sorriso torna seu rosto sereno, infantil.)

joão josé: Ah!... porque eu trago tudo ali, na escrita, filho! Só dou baixa nos livros, quando o cabrito já está na garupa. A velhacaria dele já tinha enchido um borrador. Tem caça, maliciosa como o demónio! Corre rasto atrás, confunde suas pegadas, muda de direção diversas vezes, até que o caçador fica completamente perdido, sem saber o rumo que ela tomou. E muitas vezes, é tão esperta, que fica escondida bem perto da gente, em lugares tão evidentes, que não nos lembramos de procurar. Nem estas puderam comigo, filho! (Desaparece)vicente: (43 anos) Nós nos procuramos tanto, papai, e estávamos tão perto... perdidos no mesmo mundo! (Subitamente) Papai! Estou pronto! Pode ser odioso, porque eu também fui. Cada um levanta a caça que quer, mas deve voltar com ela bem firme nas mãos. Agora, eu estou!

(Os "slides" dos livros desaparecem. João José entra procurando Vicente em diversos lugares. Durante toda a cena, João José vai se preparando para uma caçada. Põe perneiras, cinturão de balas, buzina, chapéu etc. Vai achando suas coisas nos lugares onde estão os Vicentes. Os sons de latidos, de buzina, vão aumentando pouco a pouco.)

joão josé: Vicente! Onde está você, meu filho? Vicente! (Olha a' cama) Vicente! Quer que eu arranque você daí? P'ra que se esconder, meu filho?vicente: (5 anos) Não estava escondido, papai.joão josé: (sorri) Amoitado pior do que catingueiro!vicente: É a minha gruta, papai.joão josé: Gruta?vicente: Onde guardo minhas coisas. Como se fosse um segredo.joão josé: Também podemos chamar de amoitador, filho.vicente: Que é isto?joão josé: Lugar onde as caças amoitam. (Saindo) Não acho minha perneira. Casa sem mulher é um inferno!

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(João José se aproxima de Vicente (15 anos), que continua absorto na leitura. João José pega a perneira e observa Vicente.)

joão josé: O que é isto?vicente: (15 anos) Um livro!joão josé: Até aí eu sei. É sobre o quê?vicente: Sobre a solidão de um menino que procura um caminho, um lugar no mundo. Jacques Thibault!joão josé: E por isso sente solidão?vicente: Sente-se perdido.joão josé: (Satisfeito com a oportunidade) Ah! Não sabe se orientar, não é? Não falo p'ra você? Nunca me perdi. Por pior que fosse o mato. Isto não acontece a um verdadeiro caçador. Ainda não encontrei caça que me desorientasse.vicente: (Sorri superior) O senhor vê tudo em termos de caçada! (Consigo mesmo e com mágoa) Há caças que não pegamos nunca! Há outros caminhos e matas onde um homem pode se perder.joão josé: Esse caminho não foi aberto, nem cresceu a mata que me faça perder.vicente: Falei em sentido figurado, papai. Tem gente que não sabe o que é.joão josé: Você não sabe quem é?!vicente: Não. Acho que não.joão josé: Você é um homem. É o meu filho!vicente: Não se trata disto!joão josé: Se aceitasse meus conselhos, não se sentia assim. É preciso caçar, andar a cavalo...vicente: (Irrita-se) O senhor não compreende...joão josé: ... em vez de ficar grudado em livro!vicente: ... eu digo uma coisa, o senhor entende outra!joão josé: Por que vive pensando o que não deve, meu filho?vicente: Pensando em quê?joão josé: Vaqueiro me contou o que anda dizendo a ele.vicente: Ele não passa, mesmo, de um cão de caça.joão josé: É o companheiro que você não quer ser.vicente: Não posso ver esse coitado... sem sentir vergonha do que fizeram dele. Passou a vida farejando, correndo, cercando caça a pé.joão josé: Devia sentir vergonha de outras coisas.vicente: (Retesa-se) Do quê, papai?joão josé: (Preocupado) Por que não se abre comigo, filho?vicente: Não escondo nada. Pelo menos não escondo o que o senhor pensa.joão josé: Quero saber quem é você!vicente: Também estou querendo saber quem sou!joão josé: O que quer da vida!vicente: Também não sei. (Irritado, João José entra onde está Vicente (5 anos.)joão josé: Que é que você amoita aí?vicente: (5 anos) Quer ver?

(O garoto entra rápido debaixo da cama e joga para fora, pastas, estojos, cadernos, livros, etc.)

vicente: é a minha escrivaninha.joão josé: Que livros são estes?vicente: Não sei. Peguei p'ra mim.joão josé: Seus primos estão aí.vicente: Não quero ver ninguém.joão josé: Vá brincar! Saia deste quarto!vicente: Não quero, papai.

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joão josé: Tem hora p'ra tudo. Lá fora está um dia bonito e você socado debaixo da cama!vicente: Gosto é dos meus livros.joão josé: (Puxa Vicente) Eu é que sei do que você deve gostar.vicente: Também sei, papai.joão josé: Vá ver seus primos! Ande! Não quero encontrar mais você aqui.

(João José se aproxima de Vicente (23 anos).)

vicente: (23 anos) Não mexa em meus livros.joão josé: A escrivaninha é minha. Lugar dos meus borradores. Tire essa porcariada daqui.vicente: Borradores! Os eternos intocáveis!joão josé: Gosto deles assim. Vou fazer a escrita.vicente: Escrita de caças abatidas, nascimento de cachorros e etc. A outra não sai nunca.joão josé: Por que não faz? Você não é o administrador?vicente: Só para constar.joão josé: O que quer dizer?vicente: Sem dinheiro e máquinas nada é possível.joão josé: Comprar máquinas, como?vicente: Existem Bancos que financiam a compra de tratores.joão josé: Nunca dê um passo maior do que as pernas.vicente: Por isto mesmo não chegamos a lugar algum.joão josé: Quando chegar a sua vez de dono, faça as besteiras que quiser.vicente: Garanto que não farei tantas.joão josé: Como? Lendo romances no terraço da fazenda?vicente: Uma coisa não impede a outra.joão josé: Pondo asnices na cabeça dos empregados?vicente: Eles ganham uma miséria mesmo. Não me admira, se um dia cometerem uma loucura!joão josé: É o que eu posso pagarvicente: Nem por isto deixa de ser uma miséria.joão josé: Já vi que espécie de fazendeiro vai ser. Se é que vai!vicente: Cada um faz o que tem capacidade. O que resta desta fazenda, mostra bem o que o senhor foi.joão josé: Deixa acabar! Deixar terra p'ra quem? Fazenda exige gente disposta, com os pés na terra.vicente: (Sorri, amargurado, ao ver que o pai descreveu o que ele próprio não é)joão josé: Você vive com o pensamento no mundo da lua!vicente: P'ra dar certo, era preciso ter o pensamento no mundo dos bichos?joão josé: (Explode) No mundo dos homens, mesmo... seu burro!vicente: Nós vamos devagar, papai! Não temos pressa. Mas, nós chegamos lá. Usando um palavreado seu: nós vamos desamoitar esta caça. E então... soltaremos toda a cachorrada... e no entardecer, quando não nos restar senão a noite, voltaremos com ela, já de olhos vidrados, pendente da garupa suada do nosso ódio.joão josé: (Confuso) De que é que está falando?!vicente: De caças amoitadas, nada mais. Amoitadas dentro de nós, nas moitas dos olhares, dos gestos e dos silêncios. Caças ferozes que não atacam, mas cercam e isolam... até que suas presas morram de incompreensão e solidão!joão josé: Com você não adianta conversar. Não entendo você. (Chegando diante da cama) Onde estão os livros?vicente: (5 anos) Já guardei na minha gruta, papai.joão josé: (Corrige) Amoitador!vicente: Prefiro gruta mesmo, papai.joão josé: E eu, amoitador. É amoitador!vicente: (Olha para a cama, firme em seu propósito de não mudar)

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joão josé: (Entrando onde está Vicente (15 anos) Não viu minha cartucheira?vicente: (75 anos) Não.joão josé: Será que você não tem outra coisa p'ra fazer?vicente: Não.joão josé: Vá agarrar em orelha de boi! Você passa o dia inteiro pendurado em orelha de livro!vicente: São as orelhas de que eu gosto.joão josé: Vamos caçar! Anda!vicente: Não quero.joão josé: Você precisa caçar, Vicente! Todos os parentes caçam.vicente: Que tenho com eles?joão josé: Eu tenho!vicente: Então, cace o senhor.joão josé: Não vê, seu burro, o que podem pensar de você?vicente: A opinião deles não me interessa.joão josé: Interessa a mim. Já estão falando de você!vicente: Deixe falar.joão josé: Estou cansado de brigar por sua causa!vicente: Não brigue!joão josé: (Descontrolado) Hoje, você vai... nem que seja de arrasto!vicente: Eu vou. Mas, vou torcer pela caça. Sou pelos mais fracos.joão josé: Porque é um fraco também.vicente: Isto depende de conceito de fraqueza.joão josé: Língua afiada você tem. Própria das mulheres!vicente: E dos homens também. Daqueles que têm alguma coisa na cabeça.joão josé: Só espero que tenha um filho igual a você mesmo... e que faça perguntas sobre a lua. Sobre isto você saberá responder.vicente: Saberei mesmo. Lua quebrada é minguante, quando não se planta nada. É assim que temos vivido. Minguante é também decadência. Decadência! Compreende, papai?joão josé: Fique em casa, costurando com sua avó! (Sai)vicente: (Ferido) Eu sabia que o senhor ia chegar aí!joão josé: (Aproximando-se do garoto) Tire tudo daí!vicente: (5 anos) Tia Isolina me deu.joão josé: Sua tia é uma solteirona que não sabe nada.vicente: Não tiro, não, papai.joão josé: Como?!vicente: Os livros são meus!joão josé: (Grita) Tire tudo, já disse! (Sai)

(O garoto, assustado, atira-se debaixo da cama. Vicente (23 anos) vira-se, subitamente, pondo-se de pé, quando João José entra onde ele está.)

joão josé: É de se ficar louco! Em cada lugar que entro, encontro você grudado numa porcaria de livro. Vi isto a vida inteira!vicente: (23 anos) E ainda não desistiu de implicar?joão josé: Você vem à fazenda só pra ler?vicente: E o senhor? Só p'ra caçar? E viva a minguante!joão josé: Língua afiada você sempre teve.vicente: Própria das mulheres. Já ouvi isto.joão josé: E vou dizer quantas vezes for preciso.vicente: O senhor não consegue mais me aferir.joão josé: Ferir? Seria até uma covardia.vicente: O senhor começou quando eu tinha apenas cinco anos.joão josé: E vou continuar. Até você aprender!

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vicente: E assim, chegaremos diante da sepultura!joão josé: (Saindo) Chegaremos!vicente: (15 anos) Não há lugar para meus livros nesta casa.joão josé: (Saindo) A casa é minha.vicente: (5 anos) Posso pôr na escrivaninha, papai?joão josé: Está cheia de chumbo. (Sai)vicente: (23 anos) Não sei como não falou ainda em minhas prendas domésticas!joão josé: O que pretende ser na vida?vicente: (23 anos) Nada! Continuo em minguante!joão josé: (Saindo) Estou bem arranjado.vicente: (15 anos) Eu quis estudar sociologia, o senhor não deixou.joão josé: (Saindo) Isto é profissão de mulher.vicente: (5 anos) Quando eu aprender a ler, o senhor me dá os livros?joão josé: (Saindo) Por que não estudou agronomia?vicente: (23 anos) Porque não gosto.joão josé: Já sei do que você gosta!

(Os VIGENTES fazem movimentos circulares no palco. João José parece cercado, acuado.)

vicente: (23 anos) Com o senhor não adianta conversar.vicente: (15 anos) O senhor não entende!vicente: (5 anos) O senhor me devolve, papai?joão josé: (Ao de 23 anos) Por mais que olhe em você não vejo nada meu.vicente: (43 anos. Corre, prevendo o que vai acontecer)joão josé: (Violento) Nem parece filho meu!vicente: (23 anos) Nem você, parece meu pai!joão josé: (Ao de 15 anos) O que é que está fazendo?!vicente: (15 anos) Corra! Salve-se!joão josé: Você está louco?!vicente: (23 anos) Fuja dos cachorros!joão josé: Não me envergonhe diante dos companheiros!vicente: (15 anos) Seja livre! Corra!joão josé: (Fora de si) Não faça isto!vicente: (5 anos) Eu chamo de amoitador.vicente: (15 anos) Sou pelos mais fracos, já disse.vicente: (23 anos) Salvei a caça!vicente: (5 anos) Deixe-me com meus livros, papai! (Agarra-se às pernas de João José)joão josé: (Rasga o livro) Você matou o cachorro!vicente: (43 anos) Assim, terminou minha primeira caçada!

(Todos se afastam, enquanto o garoto, soluçando, se ajoelha, ajuntando os pedaços do livro. João José também se ajoelha, sofrendo pelo cachorro morto. Etelvina e Isolina entram correndo e seguram Vicente (23 anos) e João José. Vicente (5 anos) e Vicente (15 anos) desaparecem. MARIA SURGE NO FUNDO DO PALCO.)

etelvina: Por que esta raiva entre vocês? Há dez anos que não fazem outra coisa, senão brigar!joão josé: É lá na fazenda que é lugar dele, Etelvina. Mas, não! Ele quer é passar a vida sem fazer nada. Só cuidando de coisas que ninguém entende.vicente: (23 anos) Que só o senhor não entende.joão josé: Sabe de uma coisa, meu filho? Tenho pena de você. Nesta idade e ainda não sabe o que vai fazer da vida. Vai ser mocinho de esquina a vida inteira... namorando a lua!vicente: Para aceitar o que nos rodeia, prefiro mesmo ser lunático, fugir para um mundo impossível. Pelo menos esse será meu. Que fazendeiro o senhor foi? Fazendeiro de um mundo

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sem divisas!etelvina: Não briguem, pelo amor de Deus!vicente: Desde pequeno, tia, ele me atormenta.joão josé: Você não foi tormento menor.etelvina: João José! Em nome de mamãe...vicente: Vou embora. Nada mais me prende aqui.joão josé: Vá! Vá ser esquisito pela vida a fora.etelvina: João José! Por favor...vicente: Senti-me a vida inteira como se estivesse preso debaixo de uma cama.joão josé: Porque sempre foi molengão. Se não fosse assim não desmanchava seu noivado. Casava e ia ser homem responsável. Decente! Mas, é isto que você quer: não ter responsabilidade nunca.vicente: (Solta-se de Isolina) Casar e ficar em suas mãos, cheio de filhos... sem nenhuma defesa?maria: (Vai se afastando) Eu espero, Vicente...vicente: É isto que o senhor quer?maria: (Sumindo) Eu espero! Eu espero, Vicente...!joão josé: Quero que seja homem com profissão de gente.vicente: O senhor tem feito tudo para que eu me sinta culpado, por não pensar como o senhor, por não ter sido o que esperava que eu fosse. Quer que eu carregue essa culpa por toda a vida, como um traidor. É uma maneira de destruir o que sou. Mas, não vai conseguir. O senhor me abandonou a vida inteira só porque não era caçador, uma cópia sua! Agora quer que eu carregue sua terra como o único bem que a vida pode dar? Pois saiba que ha muitos! Tudo aqui passou a ser insuportável, quando compreendi que havia outros bens que podiam ser conquistados. E compreendendo, fui levado a uma exasperação que o senhor nunca pode entender. A terra e a vida que o senhor quer me impingir, só serviriam para me prender à minha angústia, e não me deixariam jamais sair dela!joão josé: Sabe de uma coisa, meu filho? Você não passa de um vencido.isolina: Não diga isto, João José!vicente: Vencido é o senhor que só caçou na vida.etelvina: Meu Deus! Socorra-nos!

(Impotentes diante do pior que se anuncia, Etelvina e Isolina se afastam, enquanto João José e Vicente se aproximam, como que atraídos pelo mesmo perigo. Sente-se que eles precisam ir até o fim. São como cães ao sentir o cheiro da caça longamente rastejada.)

joão josé: É verdade. Não fiz outra coisa. Mas, ninguém fez melhor do que eu. Nunca voltei sem minhas caças. E você? Que é que fez na vida? Quem é você? O que quer? Nada! Nem caçar!vicente: Não sei me divertir com a morte, nem mesmo com a de um animal. Isto é que é ser homem?joão josé: É! É isto mesmo!vicente: E foi por isto que me humilhou a vida inteira? Então, ser homem é se divertir enquanto a mulher morre?joão josé: Tivemos a mesma culpa. Eu pela ausência e você pela presença.vicente: Mas, foi seu nome que ela gritou na agonia!joão josé: Agonia que você trouxe... p'ra ela e p'ra mim!vicente: Foi você quem me desejou!joão josé: Não como você veio, nem como você é!vicente: Sou como me fez, e vim como você quis: sozinho. Sozinhos vivemos... e sozinha ela morreu!joão josé: Ela morreu, enquanto eu colecionava presentes p'ra você. Cada dia que amanhecia, era como se fosse caçar o mais bonito. Era o que eu podia dar de melhor a um filho. Mas, não a um filho como você.

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vicente: Foi lá, na Santa Casa, que ela caiu! Foi a sua indiferença... nossa pior cachorra...!

(João José, possesso, dá uma bofetada em Vicente jogando-o ao chão.)

joão josé: Levante-se! Defenda-se! Seja homem! (Agarra Vicente) Venha sentir o peso dos braços de um homem! Faça sentir os seus também! Não me torne um covarde! (Sacode Vicente) Ataque como um homem! Se quer ferir um homem... fira como homem!

(Sem defesa, Vicente olha João José com expressão morta, terrível.)

vicente: Pela primeira vez... estou em seus braços... mas não como um filho. Nunca os senti em meus ombros, nem suas mãos em minha cabeça. Olhe bem em meus olhos, papai! Olhe! Estou com eles vidrados!joão josé: (Vira o rosto incomodado)vicente: (Com determinação vital) Eu vou vencer, está ouvindo? Eu vou vencer. Volto aqui para ajustarmos cortas. Aí... eu poderei lhe bater como um homem. Sabe como? Provando a você que sou alguém. Alguém que não tem nada seu. Que vence apesar de ser seu filho.joão josé: Então, vá e volte logo! Mas, volte como um homem! Estarei à sua espera.vicente: Eu vou vencer. Está ouvindo? Não quero nada seu. Nem seu nome!

(Vicente se volta, com resolução, e sai. Vaqueiro surge ao fundo e, preocupado, se aproxima, observando João José. Vicente (43 anos), presa de grande remorso, senta-se na cama, João José, inteiramente ataviado para a caçada, parece ainda mais imponente. Ele anda paru o meio do palco como se fosse um magnífico cervo. Olha à sua volta, soberano. Percebemos, porém, que seus olhos estão cheios de lágrimas. Subitamente envelhecido, abate-se no chão, olhando fixamente para frente.)

vaqueiro: (Temeroso e condoído) Chamou, compadre?joão josé: (Disfarça, voltando a si) Não.vaqueiro: Por que está gritando assim?joão josé: (Evocativo) Estava ouvindo... um toque antigo!vaqueiro: Ouvi sua voz, compadre.joão josé: É o telegrama. Vicente voltou p'ra casa, compadre.vaqueiro: Louvado seja Deus!joão josé: Meu filho ficou famoso, Vaqueiro!vaqueiro: Verdade, compadre?joão josé: Não se lembra da notícia do jornal? Sobre aquela viagem no estrangeiro? (Grita) Era até convidado do governo, Vaqueiro! Não se lembra?vaqueiro: Calma, compadre! Eu sei.joão josé: Tinha até uma fotografia... recebendo não sei que prêmio!vaqueiro: Na fotografia, era o mesmo que ver padrinhoBernadino. Seu pai era muito alegre! (Repara em João José) Que foi?joão josé: (Sorri) Era cada roda de carro!vaqueiro: O quê?joão josé: Os discos de Vicente! Uma mulherada que só sabia gritar! Nunca vi ninguém gostar tanto de um livro! Passava o dia inteiro pendurado na orelha deles!vaqueiro: Diz que essa gente de teatro é também muito alegre, não é, compadre? Vi muitos no circo.joão josé: Mas, Vicente não é artista, não! É escritor! Nãosabe o que é escritor, Vaqueiro?!vaqueiro: Pensei que escritor fosse artista, compadre!joão josé: Pois não é. (Violento) E não venha me falar em gente de circo!vaqueiro: É diferente?joão josé: Claro que é! Ninguém precisa pintar a cara p'ra escrever!

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vaqueiro: (Pausa) Nós vamos se embora, compadre?joão josé: Isolina telegrafou chamando. Uma verdadeira carta! (Pausa) Eu achava que ele ia sofrer, sendo daquele jeito. Eu queria ajudar!vaqueiro: É por isto que anda falando sozinho, compadre?joão josé: Eu?!vaqueiro: Como um louco, compadre! Desde que viu a fotografia no jornal!joão josé: Não falo sozinho coisa nenhuma!vaqueiro: Está certo, compadre. Está certo.joão josé: (Pausa) Cada um tem uma inclinação. Diz até que meu pai tocava flauta! É verdade, Vaqueiro?vaqueiro: É! Toda tardinha!joão josé: Então! E era um dos antigos! Meu filho também podia gostar do que quisesse. A gente ser atrasado, é uma infelicidade, compadre. Não sabe das coisas.vaqueiro: Padrinho Bernardino foi um homem muito bom. Manso como um cordeiro. Não podia ver ninguém sofrer!joão josé: Ele saberia responder por que...! Em que lua estamos?vaqueiro: Quarto crescente.joão josé: Vaqueiro! Você sabe por que a lua fica quebrada?vaqueiro: (Pausa longa. Vaqueiro examina a lua sem achar uma resposta) Está aí uma coisa que nunca tive ciência, compadre!joão josé: (Irritado) Também. você não sabe nada!vaqueiro: Desculpe, compadre!

(Vaqueiro sai. João José arruma-se como se acabasse de tomar uma resolução. Quando João José se arruma, Etelvina, Jesuína e Isolina entram correndo no palco, procurando Vicente em todos os cantos. Há grande alegria em suas vozes.)

etelvina: Vicente!isolina: Vicente!jesuína: Vicente!etelvina: João José chegou!isolina: Seu pai está aqui!jesuína: Vicente!etelvina: Venha ver seu pai!isolina: Corra, Vicente!

(Vicente levanta-se e vira-se para João José. Os dois se olham intensamente.)

joão josé: Como vai o grande homem?vicente: Bem. E o senhor?joão josé: Já na hora de pega. (Pausa, em que os dois seexaminam. Com esforço) Eu não sabia. Eu... eu não podia compreender, meu filho!

(Penalizado, Vicente vai se aproximando, como que atraído. Um amor profundo brota do fundo de seu ser e estampa-se em seu rosto.)

joão josé: Agora... eu compreendo. (Sorriso doloroso) Eu só fui caçador... acho que o último! Nunca sofri caçando, filho. Era o que desejava p'ra você. Eu...! Eu queria...! Trouxe uns presentes pra você. Quer?vicente: (Com os olhos marejados) Quero, sim.joão josé: Vaqueiro! Vaqueiro! Traga tudo p'ra cá! O laço é de couro de anta, filho! Eu mesmo fiz! Couros e a mais bela coleção de cabeças de cervo que já se viu! Uma lembrança...!vicente: O que o senhor quis dizer com "já na hora do pega"?joão josé: Eu vim p'ra morrer, meu filho. Agora, eu posso! (Grita, disfarçando a emoção)

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Vaqueiro! Anda, homem!

(Vaqueiro, com sorriso luminoso, entra com diversos couros nos ombros, segurando um laço e uma magnífica cabeça de cervo. Satisfeito, João José olha Vicente com expressão de orgulho profundo. Pouco a pouco, uma imensa solidão estampa-se no rosto de Vicente e de João José. Apesar de tão próximos, continuam distantes na sua incomunicabilidade. Desaparece a cena, lentamente, enquanto vão aparecendo as três irmãs, vestidas de luto fechado. Estáticas, elas parecem suspensas no espaço, como figuras de um quadro onde os contornos não estão bem definidos. Pacheco entra e segura o novelo de Jesuína.)

isolina: (Voz descolorida) Não se salvou ninguém!pacheco: Ninguém! Ira divina!jesuína: Por quê?pacheco: As jóias, a riqueza e o orgulho que haviam dentro do navio, pesavam mais do que ele. Tinha que ir ao fundo!isolina: Disseram que nem Deus afundaria o Titanic!pacheco: Soberbia!jesuína: Presunções!pacheco: Destinos funestos!jesuína: Riqueza só traz infelicidade; e a vaidade e a beleza, castigo de Deus! Que vale a beleza, não é, senhor Pacheco? Aparências!isolina: A humanidade é muito sofredora... dizia papai!pacheco: E nasce com escrita já feita!

(As vozes se transformam em murmúrio. Vicente (43 anos), também de luto, surge em primeiro plano, carregando a mala. Para, olha as tias, como se relutasse partir. Quando Vicente pára, volta o apito do trem que se distancia. Pouco a pouco o som do apito do trem se confunde ao de uma flauta. Vicente (5 anos) passa em primeiro plano, admirando a lua. Voltam por um momento os "slides" coloridos das luas.)

vicente: (43 anos, sorri, olhando o garoto) Um rio de flores e de luas! O garoto sai. Uma luz, fria, em tons amarelados, faz do quadro das tias, como se fosse uma fotografia antiga. Com expressão de libertação, Vicente se volta, anda com resolução, desaparecendo. Apaga-se, lentamente, a imagem das irmãs. OUVIMOS O SOM DA FLAUTA QUE SE ELEVA.

FIM

VELÓRIO À BRASILEIRA - AZIZ BAJUR

VELÓRIO À BRASILEIRAde Aziz BajurTIPO - TRAGICOMÉDIADistribuído pelo site: http://www.oficinadeteatro.com/Para uso comercial, entre em contato com o autor ou detentor dos direitos autorais.

CENÁRIO

Sala classe média baixa, (caixão no centro; dois círios). (A peça começa em black-out, em cena Zélia, Guiberto, Abigail, pouco a pouco a luz vai acendendo).

ATO ÚNICO

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ZÉLIA – (chora) – Era um bom homem...

GUIBERTO – Um espírito elevado...

ABIGAIL – Ainda ontem eu o vi quando ia para o trabalho. Estava tão bem disposto.

GUIBERTO – É o que eu digo sempre, ninguém sabe o dia de amanhã.

ZÉLIA – (soluça forte) – Era um marido exemplar...

ABIGAIL – É... a morte não manda recado.

(A luz vai acendendo aos poucos, estão sentados em volta do caixão, Zélia à cabeceira).

GUIBERTO – (acudindo Zélia que chora mais forte) – Não fique assim Da. Zélia, Deus sabe o que faz, seja forte!

ZÉLIA – (chorando) – Onde vou encontrar forças, seu Guiberto? Agora estou sozinha...

GUIBERTO – Sozinha não. Deus está com a senhora!

ZÉLIA – Ele me abandonou.

ABIGAIL – Não diga isso, Zélia, é pecado.

GUIBERTO – Deus não abandona ninguém, ele sabe o que faz. Escreve certo por linhas tortas.

ABIGAIL – Isso mesmo, Zélia o Guiba tem razão. Vai ver que foi melhor assim.

ZÉLIA – Mas melhor como? Eu amava meu marido (p/ Abigail) – Ou você não acredita?

ABIGAIL – Acredito sim. Eu sempre disse para o Guiba: Guiba, casal apaixonado ta aí.

GUIBERTO – E eu dizia: - Biga, essa união foi abençoada por Deus, dizia ou não dizia, Biga?

ABIGAIL – Dizia sim, meu bem.

ZÉLIA – (chorando) – Se era uma união abençoada, porque ele foi morrer?

GUIBERTO – Estranhos são os desígnios divinos... Seu marido já havido cumprido sua missão na terra. Seu carma estava acabado.

ZÉLIA – Seu o quê?

GUIBERTO – Carma é o que a gente tem que passar nesta vida, é o pagamento que fazemos pelos pecados da outra encarnação.

ABIGAIL – O Guiba é espírita, ele sabe tudo sobre espiritismo.

GUIBERTO – Sou médium também. Qualquer dia vou levá-la ao nosso centro.

ABIGAIL – Quem sabe o espírito do Abreu possa baixar, aí você poderá conversar com ele.

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ZÉLIA – (p/ Abreu) – Abreu... Abreuzinho, eu não vou agüentar viver sem você.

ABIGAIL – Agora mais que nunca a Senhora precisa ser forte.

GUIBERTO – Não se desespere, lembre que Deus não abandona suas ovelhas. A senhora precisa ler o Evangelho segundo o Espiritismo.

(campainha toca)

ABIGAIL – Deixe que eu abro. (Vai até a porta, entra Eunice, traz um buquê de flores nas mãos)

ABIGAIL – Meus pêsames.

GUIBERTO – (Aproximando) – Meus pêsames.

EUNICE – Obrigada. (Vai até o caixão) Abreu, meu irmãozinho. (Vê Zélia, coloca as flores no caixão) Zélia, como aconteceu isso? Que tragédia!

ZÉLIA – (Abraçada a Eunice, as duas choram) O Abreu foi embora, nos deixou sozinhas.

GUIBERTO – Seja forte, Da. Eunice. (p/ Abigail) – Traga uma cadeira para ela.

EUNICE – (sentando) – Mas como aconteceu?

ZÉLIA – (soluçando) – Hoje o Abreu levantou passando mal, disse que nem ia trabalhar... Eu pensei que fosse fígado, fiz até um chá de boldo... Nem quis almoçar... Comeu só umas bolachinhas... À tarde disse que estava se sentindo melhor e que ia fazer a barba, entrou no banheiro, eu estava vendo televisão quando ouvi um barulho, corri para o banheiro e lá estava ele caído, sem mexer um dedo, comecei a gritar, pouco depois o Sr. Guiberto e Da. Abigail chegaram...

GUIBERTO – (cortando) – Deviam ser 3 horas...

ABIGAIL – (cortando) – Eram duas horas, Guiba, eu tenho certeza porque estava começando a novela que está passando no “Vale a pena ver de novo”, Zélia também está assistindo a novela, não tava começando, Zélia?

ZÉLIA – (aérea) – É... eu acho que sim...

GUIBERTO – Pois então que seja... Eu estava na minha oficina consertando uma geladeira quando ouvi o grito de Da. Zélia, tive uma intuição, acho que foi meu guia quem me avisou, chamei a Biga e viemos para cá correndo, quando chegamos, ele já estava desencarnado.

ABIGAIL – E só de cuecas.

GUIBERTO – (repreendendo) – Essas particularidades não interessam, Biga.

ABIGAIL – Desculpe.

GUIBERTO – Da. Zélia estava feito louca, nós que telefonamos para o médico (tira um papel do bolso) aqui está o que ele cobrou para vir até aqui.

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EUNICE – (olhando) – 5 mil cruzeiros?

ABIGAIL – É um roubo, você não acha?

ZÉLIA – (p/ Guiberto) - Sr. Guiberto, depois eu acerto com o senhor.

GUIBERTO – Tem tempo Da. Zélia, tem tempo. (p/ Eunice) Mas como eu ia dizendo o doutor chegou, deu uma olhada no Abreu e foi categórico: infarte.

ZÉLIA – Eu não queria acreditar. (chora)

ABIGAIL – Aí o Guiberto providenciou tudo, porque a Zélia, coitada, não tinha condições nem de pensar.

EUNICE – (p/ Guiberto) – Nós agradecemos ao senhor. Eu não pude vir mais cedo porque estava trabalhando... quando recebi o telefonema do senhor quis vir correndo mas o meu chefe não deixou. Imaginem o que ele teve a coragem de dizer na minha cara.

ABIGAIL – O que foi?

EUNICE – Com a maior frieza ele me disse; Ta morto, não tá? Então pode esperar.

ABIGAIL – Que absurdo... isso é uma falta de consideração... uma desumanidade.

GUIBERTO – Não se preocupe minha filha... existe a lei do retorno.

ZÉLIA – (triste) – Ainda ontem ele me falou que achava que ia ser promovido... ia passar a chefe de turma... depois de 12 anos de serviço público essa ia ser sua 2ª promoção.

EUNICE – Por falar nisso vocês telefonaram para a repartição?

GUIBERTO – Eu telefonei.

EUNICE – E como eles receberam a notícia?

GUIBERTO – Nem quiseram acreditar. O Abreu devia ser muito querido.

EUNICE – E não veio ninguém de lá ainda?

GUIBERTO – Por enquanto não. Mas disseram que virão mais tarde.

(silêncio... todos sentam)

EUNICE – (p/ Guiberto) – Em que cemitério vai ser?

GUIBERTO – No da Vila Formosa, às 10 horas da manhã, mas não se preocupe já está tudo providenciado.

ABIGAIL – É isso mesmo Eunice, não precisa se preocupar... aqui no bairro ninguém entende mais de velório do que o Guiba.

EUNICE – Seria bom se colocássemos uma notinha no jornal... ele tinha tantos amigos...

GUIBERTO – Eu já tinha pensado nisso e telefonei para um... fica caríssimo.

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ABIGAIL – Nesta hora eles aproveitam para meter a faca.

EUNICE – Bem, se fica tão caro deixa pra lá.

GUIBERTO – Eu fui ao boteco do Mane e pedi a ele para avisar a todos os amigos do Abreu que forem lá.

ABIGAIL – (p/ Zélia) – E a Maria da quitanda me prometeu que vai avisar todo o mundo.

(Zélia chora)

EUNICE – Não fique assim Zélia... você vai acabar doente... aposto que ainda nem comeu.

ABIGAIL – Não comeu nadinha Eunice... eu insisti com ela, mas não adiantou.

EUNICE – Assim é pior Zélia, você precisa se alimentar.

ABIGAIL – É isso mesmo... Eunice tem razão... já imaginou se ficar doente... agora não tem mais o Abreu para cuidar de você não... está sozinha. (Zélia chora forte)

GUIBERTO – Biga!!!

ABIGAIL – Desculpa Zélia, eu não vou falar mais nada.

EUNICE – Você ainda é moça... é bonita... vai encontrar outro homem.

ZÉLIA – Nunca ouviu... nunca! Seu irmão foi o último homem que encostou a mão em mim... e o único.

GUIBERTO – A gente nunca sabe Da. Zélia... nada como um dia atrás do outro... nunca diga; Desta água não beberei...

ZÉLIA – Pois eu digo, não levantarei a cabeça para homem nenhum... a minha vida terminou hoje.

ABIGAIL – Zélia mulher não pode ficar sozinha não... ainda mais viúva como você... homem não respeita viúva não. (Zélia chora forte)

EUNICE – Coitada, ela está sofrendo muito...

GUIBERTO – É... eles se amavam de verdade... eram almas gêmeas.

ABIGAIL – Pareciam dois pombinhos...

EUNICE – Eu sei como é, quando o amor é grande a separação é muito dolorosa.

ABIGAIL – (animada) – Igualzinho na novela “O Céu Uniu Dois Corações”, você está assistindo Eunice?

EUNICE – (ríspida) – Não, eu não tenho tempo para ver televisão.

ABIGAIL – Pois então eu vou lhe contar: o capítulo de ontem terminou quando o médico ia dizer para Dolores o que ela tinha... eu acho que ela está com câncer, já a Maria da

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Quintanda acha que ela está grávida, eu apostei com a Maria 200,00 e se a Dolores estiver mesmo com câncer eu ganho a aposta.

GUIBERTO – Biga!!!

EUNICE – E o que isso tem a ver com a morte do Abreu?

ABIGAIL – É que... se a Dolores morrer, o Renato vai ficar sozinho e ele a ama muito, igualzinho o amor de Zélia pelo Abreu.

GUIBERTO – Biga!!!

ABIGAIL – (p/ Guiberto) – Eu prometo não falar mais nada. (voltam a sentar. Silêncio, Zélia suspira)

EUNICE – Desculpe a indiscrição Zélia... mas o Abreu tinha seguro de vida?

ZÉLIA – Não sei... mas acho que não... ele nunca me disse nada.

EUNICE – (sem querer) – Que pena, hein...?

GUIBERTO – Eu sinto muito.

(silêncio)

ZÉLIA – Quem diria... ele foi embora... não flor da existência... foi colhido.

EUNICE – É sempre assim... os bons morrem primeiro.

GUIBERTO – Ninguém morre minha filha... só desencarna... lembre que ele continua vivo no plano espiritual.

ZÉLIA – Era um santo marido.

EUNICE – Uma criatura nobre.

GUIBERTO – Um espírito elevado.

(campainha)

EUNICE – Pode deixar que eu vou ver quem é. (vai até a porta, abre, entra Teteo, uma coroa de flores nas mãos) Boa noite.

TETEO – (entregando a coroa, cara de triste) – Meus pêsames.

EUNICE – (soluça) – Obrigada.

TETEO – Meu nome é Teotônio Azevedo mas estou acostumado a ser chamado de Teteo... sou colega de repartição do defunto... bem... quero dizer... do seu marido.

EUNICE – Meu marido?

TETEO – É. (aponta o caixão) O falecido aí, o Abreu.

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EUNICE – Desculpe mas o Abreu não era meu marido.

TETEO – (encabulado) – Não? Que fora, hein...? Desculpe pelos pêsames.

EUNICE – Abreu era meu irmão.

TETEO – (mais animado) – Ah, pra irmão pêsames vale também. Então meus pêsames outra vez.

EUNICE – Obrigada... (sem saber o que falar) O senhor é muito gentil.

TETEO – O que é isso... não faço mais que a minha obrigação.

EUNICE – (já em pequeno flerte) – O senhor não quer entrar?

TETEO – (sorridente) – Claro que sim. (olhando) A viúva quem é?

EUNICE – (aponta Zélia, que soluça na cabeceira do caixão) – É aquela... minha cunhada.

TETEO – Então, com licença. (toma a coroa das mãos de Eunice, se encaminha para Zélia) (toma pose de orador, estendendo a coroa para Zélia e em tom de discurso) Eu, Teotônio Azevedo, Teteo para os amigos (ri p/ Eunice) fui sorteado pelos colegas da repartição do nosso mui querido, amado e adorado Abreu... Abreu... (p/ Eunice, que está perto) Como era mesmo o nome todo dele ?

EUNICE – Abreu Vilela de Souza.

TETEO – (tom de discurso) – Do nosso mui querido, amado e idolatrado Abreu Vilela para ser o representante do “Serviço Público Municipal – Departamento de Água e Esgotos da Cidade de São Paulo nesta solenidade... (não acha a palavra) nesta solenidade macabra... (para si) não, não é...

EUNICE – (cúmplice) – Fúnebre.

TETEO – (feliz) – Nesta solenidade fúnebre. Em meu nome e em nome de todos que militam nas águas e esgotos da cidade passo neste exato momento para as mãos da senhora esta singela e feliz homenagem (entrega a coroa de flores a Zélia) Receba do fundo da nossa alma os pêsames Da. Sueli.

ZÉLIA – (recebe a coroa soluçando) – Obrigada... eu estou comovida... só que meu nome não é Sueli.

TETEO – (irritado com ele mesmo) – Errei outra vez. (toma a coroa das mãos de Zélia, olha em volta, vê Abigail em frente à TV, vai até ela) Minha senhora aceite as nossas homenagens e...

ABIGAIL – (que estava distraída, leva um susto)

ABIGAIL – (cortando) – Mas o que é isso? Quem é esse homem?

GUIBERTO – (que se aproximou) – Desculpe meu senhor mas essa aí é minha mulher.

TETEO – (chateado) – Mas afinal quem é a viúva desse velório?

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EUNICE – (aponta Zélia) – É ela... eu já havia dito para o senhor.

ZÉLIA – A viúva sou eu, senhor. Só houve uma pequena confusão, o meu nome é Zélia Vilela de Souza e não Sueli.

TETEO – A senhora tem certeza?

ZÉLIA – Claro... sou eu a viúva do falecido... quero dizer que sou casada com o falecido há 12 anos.

TETEO – (encabulado) – Desculpe dona mas eu acho que fiz alguma confusão. (vai até o caixão, olha) É ele mesmo. (p/ Zélia) A senhora não tem o apelido de Sueli?

ZÉLIA – Não, nunca ninguém me chamou por este nome. (intrigada)

TETEO – E a senhora é casada no civil e no religioso?

ZÉLIA – Claro que sim. Eu sou uma mulher honesta... casei de véu e grinalda. (p/ Eunice) Não foi, Eunice?

EUNICE – Foi sim... eu fui testemunha.

TETEO – (p/ Eunice) – Na senhora eu acredito.

ZÉLIA – Quer dizer que o senhor está duvidando de mim?

TETEO – Não, não... eu acredito na senhora também mas é que... (olha novamente para dentro do caixão) Eu seria capaz de jurar que o nome da viúva era Sueli.

ABIGAIL – (um pouco maliciosa) – E por que o senhor achava que o nome da Zélia era Sueli?

TETEO – É que... (de repente começando a entender) é que o Abreu... isso é... eu enganei, foi só isso.

ABIGAIL – (p/ Guiberto) (baixo) – Enganou nada... tem alguma coisa por trás disso.

ZÉLIA – (que ouviu Abigail, nervosa) – Se o senhor está escondendo alguma coisa diga logo.

TETEO – (que já recuperou um pouco o sangue frio) – Não estou escondendo nada não, esqueçam, olha não está mais aqui quem falou.

ZÉLIA – Por acaso o senhor estava querendo insinuar que havia uma tal de Sueli na vida de meu marido?

TETEO – Que é isso? Que absurdo, nem pense tal coisa, o Abreu era fiel à senhora.

EUNICE – Meu irmão sempre foi um homem honesto, não era um mulherengo qualquer não.

TETEO – Eu acredito na senhorita, eu acredito, juro.

GUIBERTO – Ele e Da. Zélia viviam como dois pombinhos... formavam um casal exemplar.

TETEO – (apavorado) – Eu posso até imaginar.

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ZÉLIA – Eu fui a única mulher na vida dele... ele casou comigo virgem... e eu também era virgem.

TETEO – Por favor desculpem-me outra vez... esqueçam o que eu falei, estes enganos acontecem... eu fiz confusão porque afinal ele falava tanto em Sueli que (percebe o que está dizendo) isso é ele não falava em Sueli não (rápido) nunca falou em Sueli nenhuma.

ZÉLIA – Que vergonha... o senhor entra em um velório com a única intenção de sujar a memória de um homem bom... um marido exemplar.

EUNICE – Uma alma nobre.

GUIBERTO – Um espírito elevado.

ABIGAIL – (querendo falar alguma coisa e não encontrando as palavras) – Um... um... um santo.

TETEO – (encabuladíssimo) – Mas eu já pedi desculpas... eu não sabia que a Sueli...

ZÉLIA – (cortando) – Ele ainda tem coragem de repetir este nome. Se o Abreu estivesse vivo ele o colocaria no olho da rua.

TETEO – Pois então não precisam se incomodar, eu me retiro e mais uma vez desculpem o vexame.

(telefone toca – Eunice vai atender – Teteo vai saindo)

ZÉLIA – (vai até Teteo que já está perto da porta) – E leve esta coroa daqui, não precisamos dela não. (entrega a coroa)

EUNICE – (telefone) – Sim... é do velório sim... com quem? Teteo?

TETEO – (que já estava saindo para) (p/ Zélia) – Deve ser da repartição, só eles sabiam que eu vinha aqui... a senhora me dá licença de atender?

ZÉLIA – (com má vontade) – Está bem, mas rápido hein. (vai para junto do caixão)

EUNICE – (que foi p/ perto do caixão) – É um tal de Orlando que quer falar com ele. (todos prestam atenção na conversa)

TETÈO – (telefone) – Pé-de-mesa, eu dei um fora... imagina que a Sueli (percebe que estão ouvindo, para eles) é... é um outro colega de repartição, o Pé-de-mesa, isto é, Orlando... ele ta mandando sentimentos.

ZÉLIA – (séria) – Agradeça por mim.

TETEO – (telefone) – Ela agradece o sentimento que você mandou... eu disse que mandou... (tentando falar baixo) foi chato, passei um vexame (tempo) o quê? Cartão da Loto? O que a gente jogou? Eu acho que tô com o rascunho aqui no bolso. (vai pegar, olha para os outros, p/ Zélia) Dá licença viu dona... dona viúva, é só mais um instantinho. (p/ telefone, com o papel na mão) Tá aqui sim, confere com o seu... 37, é, é isso... 83 (olha) ta aqui também... 42... (olha) tá também. (vai ficando eufórico os outros se aproximam) 28... (quase gritando) ta aqui e o último é 07... (grita) É... (perde as forças, vai cair, o telefone cai de sua mão)

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GUIBERTO – (segurando-o) – Biga, pegue uma cadeira, o rapaz está passando mal. (p/ Zélia) Da. Zélia, por favor... o rapaz está precisando de um copo de água.

ZÉLIA – (com má vontade) – Está bem, eu vou buscar (entra na cozinha)

EUNICE – (vai até o telefone) – Alô... alô... olha o seu amigo ta passando mal... teve um troço aqui... (tempo) você fizeram o que? (assustada para os outros) Eles acertaram na quina. (telefone) Alô... o quê? O senhor já vai falar com ele, parece que já está melhor.

GUIBERTO – (neste ínterim fez massagens e deu passes em Teteo)

ABIGAIL – (quando soube da quina correu para a cozinha gritando por Zélia, está voltando com Zélia a que traz um copo d’água) – Eles fizeram a quina Zélia... vão ficar ricos.

ZÉLIA – (entregando a água pra Guiberto) (p/ Eunice) – É verdade que eles acertaram na quina?

EUNICE – É sim... o amigo dele falou que eles acertaram.

GUIBERTO – (joga a água aos pingos em Teteo e o obriga a beber o resto) – Vamos meu filho, beba.

(estendendo o telefone para Teteo)

TETEO – (acordando e lembrando, dá um pulo, abraça Zélia, que está mais perto) – Dona viúva a quina... nós ganhamos na quina.

ZÉLIA (se afastando) – Menos confiança.

GUIBERTO – Respeite a dor de uma viúva.

EUNICE – (telefone na mão) – Seu amigo quer falar com você.

TETEO – (telefone, todos escutam curiosos) – Pé-de-mesa... é, eu tive um troço... você tem certeza? Pela televisão, você conferiu? O quê? Cartão... ele não está com você?... (tempo) Com o Abreu? (surpresa de todos) Tá bem... eu vou perguntar a viúva... (tempo) você vem para cá... eu espero. (desliga)

ZÉLIA – (interessada) – O que tem o meu marido a ver com isso?

TETEO – Dona viúva...

ZÉLIA – (cortando) – Zélia é o meu nome.

TETEO – (aflito) – Pois é Dona Zélia, eu, o Pé-de-mesa e o Abreu fizemos uma vaquinha e jogamos na Loto. (p/ todos, apatetados) E acertamos. E desde que o Abreu morreu o dinheiro é da senhora.

ABIGAIL – (não se contendo) – Viva... que sorte Zélia.

GUIBERTO – Biga!!!

ABIGAIL – (mais séria) – Desculpe. (p/ Zélia)

Page 86: Textos Diversos - Arrabal Beckett Pinter Ionesco

GUIBERTO – Está vendo minha filha como Deus não esquece de suas ovelhas.

ZÉLIA – (quase alegre) É verdade, o senhor tinha razão... obrigada.

EUNICE – (abraçando Zélia) – Estou feliz por você Zélia... obrigada.

ZÉLIA – Muito obrigada Eunice, você é um anjo.

TETEO – (p/ Zélia) – Da. Zélia... agora que nós ficamos ricos juntos eu queria lhe dar os parabéns.

ZÉLIA – (alegre) – Esqueça o que passou, os amigos de meu marido são meus amigos e meus parabéns ao senhor também.

ABIGAIL – (p/ Zélia) – Zélia meus parabéns e muitas felicidades.

ZÉLIA – Obrigada Abigail, há, têm uma coisa, quando receber meu dinheiro faço questão de dá uma boa parte para você e seu Guiberto. Afinal vocês me ajudaram muito.

GUIBERTO – Ora não seja por isso Da. Zélia, não fizemos mais que a nossa obrigação. Não é mesmo Biga?

ABIGAIL – É sim... mas eu queria tanto ter uma T.V. a cores.

ZÉLIA – Não se preocupe Abigail, eu faço questão de dar uma parte do dinheiro para vocês. (p/ Eunice) E você também Eunice, eu não vou esquecer de você.

EUNICE – (abraçando Zélia) – Você é tão boa, meu irmão ganhou na sorte grande ao casar com você.

TETEO – E ganho na quina ao... (não diz)

GUIBERTO – (p/ Teteo) – Eu estava esquecendo de cumprimentá-lo – Parabéns ao senhor também.

TETEO – Muito obrigado e como o senhor também vai receber uma parte do dinheiro faço questão de retribuir – Meus parabéns.

ABIGAIL – (p/ Teteo) – Meus parabéns senhor Teteo e muitos anos de vida.

ABIGAIL – (p/ Teteo) – Meus parabéns senhor Teteo e muitos anos de vida.

(todos dão parabéns, uns aos outros, por fim ficam Eunice e Teteo)

TETEO – E à senhora eu desejo saúde, paz e amor.

(todos dão parabéns, uns aos outros, por fim ficam Eunice e Teteo)

EUNICE – Parabéns ao senhor, muitas felicidades e muito prazer em conhecê-lo.

TETEO – Agradeço emocionado e transmito o meu amor... mas por favor não me chame de senhor, me chame de Teteo.

ABIGAIL – (cortando) – Que apelido simpático... o senhor é casado?

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TETEO – (p/ Eunice, indiretamente) – Solterinho... estou procurando minha alma gêmea.

EUNICE – (encabulada) – Eu também.

ABIGAIL – Eunice também está procurando uma alma gêmea.

EUNICE – Que é isso Abigail... o Teteo agora é rico, ele vai casar com a moça da sociedade.

GUIBERTO. Olha seu Teteo, moça boa taí.

ABIGAIL – Muito prendada.

ZÉLIA – Eunice dará uma ótima esposa.

ABIGAIL – (sem querer) – E é virgem.

EUNICE – (escandalizada) – O que é isso Abigail. Quem lhe disse isso?

ABIGAIL – (sem graça) – Foi o Guiba quem me contou.

ZÉLIA – (assustada p/ Guiberto) – O senhor?

GUIBERTO – (encabulado) – Bem... é que outro dia quando eu fui ao boteco do Mané (rápido) para comprar umas velas, tinha uns rapazes lá e sem querer eu ouvi a conversa deles.

EUNICE – E o que eles estavam dizendo?

GUIBERTO – Comentavam que ninguém havia conseguido nada com a senhora... ah, disseram também que a senhorita é a última virgem do bairro.

EUNICE – (se traindo) – O Nestor estava lá?

GUIBERTO – (pensado) – Eu acho que não... por quê?

EUNICE – (despistando) – Por nada não... por nada.

TETEO – Bem, pelo que o senhor aí está dizendo eu só posso felicitá-la mais uma vez e desta vez é por sua virgindade.

EUNICE – Ora, não seja por isso.

ABIGAIL – Eu invejo a sua força de vontade, eu não agüentaria espe...

GUIBERTO – (corta rápido) – Biga!!!

TETEO – Com toda esta festa nós estamos esquecendo o principal.

ZÉLIA – (lembrando e correndo para perto do caixão) – O velório.

TETEO – Não, Da. Zélia o cartão.

EUNICE – (que foi para perto do caixão) – Que cartão?

Page 88: Textos Diversos - Arrabal Beckett Pinter Ionesco

TETEO – O cartão da quina... ele ficou com Abreu.

ZÉLIA – Com Abreu?

TETEO – É, esta semana foi o Abreu quem guardou o cartão.

ZÉLIA – Ele não me mostrou cartão nenhum.

TETEO – Deve estar guardado em algum lugar.

(todos se interessam)

EUNICE – Talvez esteja na roupa que ele estava usando quando morreu.

ABIGAIL – Ele não morreu de roupa... só estava de cuecas e destas bem pequeninas.

GUIBERTO – (repreendendo) – Biga!!!

ABIGAIL – Mas eu estou falando a verdade... não estou Zélia?

ZÉLIA – É verdade... (p/ Teteo) Ele estava no banheiro.

TETEO – Foi a senhora quem o vestiu?

ZÉLIA – Foi sim, eu e Da. Abigail.

GUIBERTO – Biga, você viu o desencarnado sem roupas?

ABIGAIL – Não Guiba... ele continua com a mesma cueca que usava quando morreu.

TETEO – E onde está a roupa que ele vestiu por último?

ZÉLIA – Eu acho que está no quarto, em cima da cadeira.

TETEO – Pois é nela que deve estar o cartão.

ZÉLIA – Eu vou buscá-la e o senhor poderá procurar a vontade.

GUIBERTO – (p/ Teteo) – O senhor tem idéia de quanto é o prêmio?

TETEO – Quanto não, mais sei que é muito dinheiro... milhões.

ABIGAIL – Só quero ver a cara da Maria da Quitanda quando eu contar para ela... ontem mesmo ela disse que o Abreu era um pé-rapado. (p/ Eunice) Que só comprava fiado e que demorava pra pagar.

ZÉLIA – (que entra neste momento trazendo camisa, calça, blusão) (com raiva) – Então é D. Maria anda falando da gente, não é?

ABIGAIL – (sem graça) – Desculpe Zélia, saiu sem querer.

ZÉLIA – (nervosa coloca a roupa em cima de Abreu) – Pois fique sabendo que eu nunca mais ponho os pés naquela quitanda... fofoqueira duma figa.

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GUIBERTO – Não fique nervosa Da. Zélia, ela tinha era inveja da felicidade de vocês.

ABIGAIL – É isso mesmo que o Guiba disse Zélia, depois que o marido dela fugiu com a Cotinha ela não podia ver um casal feliz que metia a língua.

EUNICE – Não dê confiança pra essa gentinha Zélia.

ZÉLIA – Ela só vende coisa estragada... ontem mesmo eu comprei meio quilo de tomate e tava tudo podre, não deu nem pra fazer molho.

(neste ínterim Teteo e depois Eunice revistavam as roupas que Zélia trouxe)

ABIGAIL – (p/ Teteo) – E então Sr. Teteo...

ZÉLIA – Achou o cartão?

TETEO – (revistando a calça) – Até agora nada.

EUNICE – (com a camisa na mão, tira do bolso uma carta) – Olhe Teteo tem um envelope aqui.

TETEO – (pegando) – Me dá aqui, deixa eu ver. (lê a carta) É do Mappin... último aviso de cobrança.

ZÉLIA – (envergonhada, tomando a carta das mãos dele) – Nós íamos pagar... (p/ todos) só estávamos esperando o Abreu receber o ordenado dele.

ABIGAIL – Não precisa ficar com vergonha não Zélia, nós também recebemos uma igualzinha não foi Guiba?

GUIBERTO – A nossa não era último aviso não. (p/ todos) Era só um lembrete.

TETEO – (p/ Zélia) – E a carteira dele, onde está?

ZÉLIA – (pensando) – Ah, já sei, deve estar perto da cama... eu vou buscar. (sai)

TETEO – (p/ Eunice) (que está dobrando a roupa) – A senhorita mora sozinha?

EUNICE – Pode me chamar por você... eu não moro sozinha não, tenho duas colegas. A Zélia me convidou para morar aqui mas, você compreende, queria um cantinho só para mim.

TETEO – Eu compreendo sim, claro.

ABIGAIL – O apartamento que ela mora é uma gracinha, o senhor precisava de ver... eu já fui lá duas vezes. (p/ Eunice) Convida o moço para ir lá Eunice.

TETEO – E eu aceito o convite com muito prazer.

EUNICE – Está bem, mais tarde eu dou o endereço... não é longe daqui não.

ZÉLIA – (entra com uma mochila e uma carteira) – Olha os papéis, ele guardava nesta mochila e a carteira é esta aqui. (passa p/ Teteo)

TETEO – (põe a mochila em cima de Abreu) – Primeiro vamos ver a carteira. (vai tirando os

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documentos e colocando em cima de Abreu) R.G.... CIC... retrato da viúva (aponta Zélia) está aí.

EUNICE – (pegando a foto) – Você está bem aqui Zélia... não conhecia esta foto sua.

ZÉLIA – Depois eu lhe dou uma como recordação.

ABIGAIL – (pegando a foto) – Está ótimo... nem parece com você Zélia... não é Guiba?

(mostra a foto para Guiberto)

GUIBERTO – (olhando) – Como não parece Biga... é igualzinho a ela. (p/ todos) Da. Zélia sempre foi muito simpática.

ZÉLIA – Obrigada, o senhor é muito gentil

EUNICE – (querendo ser simpática) – É sim, é gentilíssimo.

TETEO – (que continuou tirando coisas da carteira e colocando em cima de Abreu) – Depósito de caderneta de poupança de 600,00.

ABIGAIL – Eu não sabia que você tinha dinheiro na caderneta de poupança Zélia.

ZÉLIA – É só uns trocadinhos para uma emergência. (p/ Guiberto) Depois a gente acerta aquela despesa do médico viu Sr. Guiberto.

GUIBERTO – Ora Da. Zélia o que é isso... não se preocupe, não tem pressa.

TETEO – (continuando) – 3 passes de integração ônibus-metrô. (Abigail pega) 258,00 e umas moedinhas. (procura) E é só, aqui dentro não tem mais nada. (devolve a carteira para Zélia) Agora vamos olhar dentro da mochila... tem que estar aqui dentro. (abre a mochila em cima de Abreu) (vai ficando agitado na medida em que tira as coisas de dentro da mochila, depois de um determinado momento joga as coisas no chão) Contrato de aluguel... contas da Eletropaulo... prestação de telefone...

ABIGAIL – (pegando o carnê de telefone) – Falta muito para pagar ainda hein Zélia... (p/ Guiberto) Ta vendo Guiba eles fizeram de 36 meses a gente podia fazer assim também.

TETEO – (continuando) – Cartões de natal. (vai jogando no chão)

ABIGAIL – (tomando da mão dele) – Espere aí deixa eu ver. (olhando) Que lindo. (olha tudo) esse aqui é bonito ainda. (p/ Eunice) Você já viu Eunice?

EUNICE – (interessada na mochila) – Já vi sim Da. Abigail. (Abigail continua olhando)

TETEO – Holerite de pagamento... 24.231,40... olha só, ele ganhava mais do que eu e nunca me disse nada... uma agenda de endereços. (já está jogando as coisas no chão) O que é isso? (fica encabulado vai colocar dentro da mochila)

EUNICE – O que é isso?

TETEO – (sem graça) – É só um baralho.

ABIGAIL – Deixa eu ver. (tenta tomar das mãos de Teteo)

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TETEO – Eu acho que a senhora não deve.

ABIGAIL – Quê que tem. (puxa) (olhando) – É só um baralho (olha do outro lado) Nossa, que indecência. (olhando outras cartas) Olha só essa. (mostra p/ Eunice) Olha Eunice ela tá...

GUIBERTO – (corta rápido) – Biga!!! Devolva este baralho.

ABIGAIL – (entregando a Zélia) – Você já tinha visto Zélia?

ZÉLIA – Eu acho que não.

ABIGAIL – Então não olhe não porque é uma indecência da marca maior.

ZÉLIA – (que já estava olhando, envergonhada joga o baralho no chão, ele esparrama) – Isto não pertencia ao meu marido.

ABIGAIL – Mas tava na mochila dele.

TETEO – (que continuou tirando coisas de dentro da mochila, ajudado por Eunice) Flâmula do Corinthians... bandeirinha do Corinthians... escudo do Corinthians... recorde de jornal dos jogos do Corinthians... pôster do.

ABIGAIL (cortando) – Corinthians.

TETEO – Não, do Roberto Carlos.

ZÉLIA – (tomando) – É meu. (p/ Eunice) Ele escondeu de mim porque estava com ciúmes.

TETEO – (olhando dentro da mochila) – Não tem mais nada aqui dentro. (vira a mochila, cai um batom em cima de Abreu) Um batom... deve ser da senhora. (entrega para Zélia)

ZÉLIA – (olhando) – Meu não é. (p/ Eunice) Por acaso é seu Eunice?

EUNICE – (olhando) – Não é não.

ABIGAIL – Então deve ser da Sueli.

GUIBERTO – (rápido) – Biga!!!

TETEO – (nervoso joga a mochila para um canto e começa a andar de um lado para o outro) Mas este cartão tem que estar em algum lugar. (p/ Zélia) Da. Zélia a senhora tem certeza que ele não guardava suas coisas em outro lugar?

ZÉLIA – Tenho certeza sim.

EUNICE – (preocupada) – Vai ver que está no bolso de outra roupa.

TETEO – É isso mesmo... deve estar numa outra roupa, temos de revistar tudo. (p/ Zélia) Onde fica o quarto?

ZÉLIA – É lá no fundo mas não fica bem o senhor ir invadindo assim o nosso quarto, afinal o Abreu morreu há poucas horas e...

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GUIBERTO – Eu concordo com Da. Zélia... um quarto é um lugar de muita intimidade e não deve ser invadido assim.

ZÉLIA – Além do mais de repente pode chegar alguém e se ficar sabendo que estou sozinha com o senhor num quarto pensará maldades.

ABIGAIL – É isso mesmo Zélia, a Maria da Quitanda ficou de dar um pulinho aqui mais tarde. Já pensou se ela chegar logo na hora que vocês estiverem dentro do quarto? Amanhã o bairro inteiro estará comentando.

TETEO – (nervoso) – Mas será que vocês não compreendem? Nós temos que achar este cartão de qualquer maneira... sem cartão não tem dinheiro.

EUNICE – Já sei o que podemos fazer Zélia, vamos trazer as roupas do Abreu pra cá. Assim todo mundo ajuda a procurar.

ZÉLIA – Será que fica bem? Não será um desrespeito à memória do Abreu?

GUIBERTO – Não se preocupe com isso minha filha, ele agora é um espírito e os espíritos não prestam atenção e não se ofendem com estas coisas.

ZÉLIA – Bem... se é assim eu vou buscar as roupas. (p/ Eunice) Você me ajuda Eunice.

EUNICE – Claro.

ABIGAIL – Eu também vou ajudar.

GUIBERTO – Você vai ficar aqui me ajudando a velar o desencarnado.

ABIGAIL – (com má vontade) – Está bem.

(saem Eunice e Zélia)

TETEO – (p/ Guiberto) – O senhor acha mesmo que o espírito dele está aqui agora?

GUIBERTO – Acho sim. Ele desencarnou de repente e quando é assim o espírito demora para se afastar do corpo, vai saindo pouco a pouco.

ABIGAIL – Guiberto quer dizer que um pedaço dele pode estar fora e o outro continua dentro.

GUIBERTO – É mais ou menos assim.

ABIGAIL – (mexendo nas flores dentro do caixão) – Estas flores que Eunice trouxe estão murchas... custam mais barato... é flor passada.

GUIBERTO – O Abreu era um ótimo vizinho... quando a geladeira dele quebrou fui eu quem consertou.

ABIGAIL – Foi sim e ficou novinha o senhor precisava de ver... parecia que tava saindo da loja naquela hora. (p/ Guiberto) Depois você dá o endereço pra ele Guiba. (p/ Teteo) Quando o senhor tiver alguma coisa para consertar já sabe onde levar. E tem mais, o Guiba é muito honesto e cobra muito barato. Eu vivo brigando com ele por causa disso, mas não adianta. Por isso que a gente é tão pobre.

Page 93: Textos Diversos - Arrabal Beckett Pinter Ionesco

TETEO – Quando precisar de consertar alguma coisa eu procurarei o senhor.

ABIGAIL – Mas que bobagem eu até tinha esquecido, agora o senhor é um homem rico, não vai precisar de mandar consertar nada, estragou? Joga fora e compra outra, né? (neste momento entram Zélia e Eunice, trazem um monte de roupa nas mãos, não sabem onde colocar, deixam no chão, cada um pega uma peça.)

ZÉLIA – Essa é toda a roupa dele.

(todos procuram, vão jogando as roupas para todos os lados, por fim fica Teteo com uma cueca nas mãos)

TETEO – Nada também. (joga para trás, vai cair em cima do caixão) A senhora tem certeza que ele não tinha mais nada?

ZÉLIA – A roupa dele está toda aí. (p/ Eunice) Não está Eunice?

EUNICE – Está sim, trouxemos tudo que tinha no quarto.

ABIGAIL – (p/ Guiberto) – Ele tinha mais roupas que você Guiba.

TETEO – (arrasado, perto do caixão) – Danou tudo. (acende um cigarro na vela, p/ Abreu) Que sacanagem Abreu.

ZÉLIA – Não fale assim com meu marido... ele era um homem direito.

EUNICE – Vai ver que este cartão está na nossa cara e nós não estamos vendo.

ABIGAIL – Se fosse uma cobra já teria mordido.

TETEO – (olha para todos os lados e volta a olhar para Abreu – tempo, de repente grita) – Já sei.

ZÉLIA – Onde?

TETEO – No único lugar onde ainda não procuramos... na nossa cara...

EUNICE – (olhando para Abreu) – Mas onde?

TETEO – No terno que ele está usando... foi o único lugar onde nós não procuramos.

ZÉLIA – (desanimando) – Não, é impossível... este é o terno do casamento dele só usou uma vez... o senhor pode até ver que está apertado para ele.

ABIGAIL – (reparando) – Ta apertado mesmo... o defunto era maior.

GUIBERTO – (forte) – Biga!!!

TETEO – Quem sabe ele guardou aí para dar sorte, vamos revistá-lo.

ZÉLIA – (p/ Guiberto) – O senhor não acha que é profanação revistar um morto?

GUIBERTO – Eu já disse minha filha, um espírito não se incomoda com estas coisas.

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EUNICE – Deve estar aqui Zélia.

ZÉLIA – Bem... se o espírito não importa vamos ver. (todos avançam) Mas, com muito respeito, por favor.

(com muito cuidado começam a revistar Abreu, pouco a pouco vão ficando animados, sentam o corpo, jogam as flores para todos os lados)

ABIGAIL – (levantando uma das pernas de Abreu) – Olha Guiba sapato novinho. (p/ Zélia) Que número ele usava Zélia?

ZÉLIA – (segurando a cabeça de Abreu) – 38

ABIGAIL – Que pena Guiba, não serve pra você. (coloca a perna no lugar) (procuram mais um pouco, por fim deixam o corpo cair pesadamente)

TETEO – (nervoso) – Não é possível. (p/ todos) Alguém procurou no bolso de trás da calça? (todos negam)

ZÉLIA (alarmada) – No bolso de trás não.

TETEO (desconfiado) – Por que não?

ZÉLIA – É que... por nada. (envergonhada vai para um canto)

TETEO – Me ajudem a virar o defunto... isso é o Abreu.

(ajudam, o caixão quase cai)

TETEO – (revistando) – Tem alguma coisa dentro do bolso.

ABIGAIL – (não se contendo, grita) – É o cartão... viva.

GUIBERTO – Biga, respeito o velório.

EUNICE – (p/ Teteo) – É o cartão?

TETEO – (com uma calcinha rasgada nas mãos) – O que é isso?

ZÉLIA – (que se aproximou nas últimas falas) – Me dá isso aqui, é minha. (toma a calcinha)

ABIGAIL – Guiba olha; é uma calcinha.

GUIBERTO – Eu sei que é uma calcinha.

TETEO – Mas o que estava a calcinha da senhora fazendo no bolso do Abreu?

ZÉLIA (envergonhada) – É que... eu queria que ele levasse uma lembrança da nossa lua de mel.

ABIGAIL – (tentando ver a calcinha) – Mas a calcinha ficou desse jeito Zélia?

ZÉLIA – É que... o Abreu era muito impetuoso e... bem... ele gostava de umas coisas esquisitas.

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ABIGAIL – A minha não ficou assim não.

GUIBERTO – Biga!!!

TETEO – (cheirando as mãos) – Ta com cheiro de naftalina e incenso.

ZÉLIA – (encabulada) – Foi uma simpatia que eu aprendi. (volta e colocar a calcinha no bolso do Abreu) Me ajudem aqui. (todos ajudam) (ficam um tempo em volta do caixão, suspiram desanimados, só Teteo anda agitado de um lado para o outro, pisa nas roupas que estão no chão)

EUNICE – (olhando) – Cuidado Teteo, você vai rasgar esta malha. (pega a malha) Olha, está novinha (coloca na frente do corpo) dá direitinha para mim.

ZÉLIA – Se quiser pode ficar com ela como lembrança do Abreu, Eunice.

EUNICE – Obrigada Zélia... toda vez que vesti-la eu vou lembrar do Abreu. (Abigail neste ínterim examinava as roupas no chão, acha uma calça)

ABIGAIL – Olha só que calça boa (coloca na frente de Guiberto) eu acho que é seu número Guiba. (p/ Zélia) Eu posso levar de lembrança Zélia?

ZÉLIA – Pode sim Abigail.

(Abigail feliz dobra a calça e coloca num canto)

TETEO – (agitado) – Onde foi parar este maldito cartão?

GUIBERTO – Não fique assim meu filho... se for da vontade de Deus você vai encontrá-lo.

TETEO – Deus já mostrou sua vontade nos fazendo ganhar, agora ele só precisa é nos dar uma mãozinha para achar o cartão.

GUIBERTO – Pois tenha paciência meu filho... paciência e fé.

ZÉLIA – (cabeceira do caixão) – Ah Abreu eu não consigo me conformar.

EUNICE (abraça Zélia) – Tenha força Zélia.

TETEO – (agitado) – Tem que estar em algum lugar... tem que estar.

GUIBERTO – Tenha esperança, lembre que Deus sabe o que faz.

GUIBERTO – É isso mesmo Zélia, a esperança é a última que morre... você vai ver só, de repente o cartão aparece.

ZÉLIA – (p/ Abreu) – Porque você faz isso comigo Abreu? Por quê?

EUNICE – A vida é assim mesmo Zélia... é um vôo de pássaro.

ABIGAIL – Eu acho que é uma chuva de verão.

GUIBERTO – Uma encarnação não é mais que o queimar de uma vela.

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TETEO – Desisto. (indo para perto do caixão) Essa não Abreu... e agora como é que a gente fica? Pé-de-mesa vai ficar furioso. (p/ os outros) Vocês vão ver quando ele chegar.

ZÉLIA – (chorando) – (p/ Abreu) – Como é que a gente fica Abreu?

ABIGAIL – Se ele tivesse deixado para morrer amanhã seria ótimo.

GUIBERTO – Biga, não diga uma coisa desta.

ABIGAIL – Por quê não? Assim ele teria tempo para dizer a Zélia onde está o cartão e ela ficaria rica.

TETEO – (possesso) – Este cara enfiou o cartão em algum lugar. (p/ Zélia) Da. Zélia a senhora tem certeza que não pode estar em nenhum outro lugar? Será que eu não posso dar uma olhadinha lá dentro?

ZÉLIA – Não adianta procurar lá dentro Sr. Teteo, meu marido era um homem ordeiro, suas coisas ficavam sempre nos mesmos lugares.

TETEO – (desesperado) – - Pobre é uma merda mesmo... nem bem comecei a sentir o gostinho de ser rico vem o Abreu e dá uma cagada dessas.

GUIBERTO – Respeite o ambiente senhor, isto aqui é um velório.

TETEO – (dramático) – - É sim... é o meu velório.

EUNICE – Acalme-se, por favor... afinal o mundo não acabou.

TETEO – (dramático) – Pra mim acabou... pra mim acabou.

ABIGAIL – Eu acho melhor o senhor tomar um calmante senão vai acabar tendo um enfarte,(aponta Abreu) igualzinho o dele.

GUIBERTO – (forte) – Biga!!!

(campainha – porta)

TETEO – Deve ser o Pé... agora sim é que este velório vai esquentar, o Pé é fogo... quando ficar sabendo que o cartão sumiu vai fazer um carnaval aqui dentro.

ZÉLIA – (apavorada) – - Ai meu Deus do céu.

EUNICE - (p/ Teteo) – - Esse seu amigo não tem o direito de desrespeitar o velório.

ABIGAIL – Quando a Maria da Quitanda souber...

GUIBERTO – Fique tranqüila Da. Zélia, eu não deixarei esse senhor...

TETEO – Pé-de-mesa é o apelido dele.

GUIBERTO – Eu não deixarei que ele crie confusão nesta última homenagem ao desencarnado, vou abrir a porta e eu mesmo conversarei com ele.

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TETEO – Pode deixar... eu converso com ele. (vai até a porta e abre)

PÉ – (entra eufórico, meio bêbado, garrafa de pinga na mão, junto com a garrafa umas flores já mortas e despetaladas, abraça Teteo com força, alegre, alto) - Fala Teteo, o dono do ouro.

TETEO – (desgrudando do braço) – Pé, escute, eu preciso contar uma coisa.

PÉ – (expansivo, alegre, dança em volta de Teteo jogando as flores na cabeça dele) Não vem com conversa mole não xará, nós agora somos ricos, estamos com a erva toda, nadando no tutu... acabou o esgoto e que se foda o departamento... de hoje em diante sou boy, sou de classe... gente fina... mulher eu sou vou querer filé e cabacinho.

TETEO – (cortando) – Mas Pé...

PÉ – (dando a garrafa para Teteo beber, obriga) – Bebe aqui, não vem com caretice, vamos festejar. (agarra Teteo na marra e dança com ele, canta) Corinthians... Corinthians sua glória é lutar...

TETEO – (dá um safanão e se livra) – Pé preste atenção, eu, eu preciso falar do cartão.

PÉ – (que deu uma bicada na garrafa, cospe longe a pinga) – É mesmo, cadê ele, me mostre o danadinho... eu quero lamber ele todinho... beijar cada furinho.

TETEO – Pé, o Abreu...

PÉ – (leva um susto, lembrando) – O Abreu, é mesmo... eu tinha esquecido dele (olha para trás pela 1º vez, estão todos encostados num canto - p/ Teteo) Que vexame que eu dei. (tenta se recompor, entrega a garrafa para Teteo, apanha as flores no chão vai até o caixão, quase cai, olha Abreu) Abreu... Abreuzinho... corintiano do peito meus pêsames... olha cara eu vou sentir sua falta hein... (olha para os outros) Oi, nós dois era unha e carne. (p/ Abreu) Você precisava ser forte cara, essa porra dessa vida é assim mesmo, ninguém sabe que hora que vai virar presunto. (p/ os outros) nós dois era assim (mímica com dedos) unha e carne.

TETEO – Você já disse isso.

PÉ – E repito pra quem quiser ouvir; o Abreu era meu chegado do peito, unha e carne. (p/ Teteo) Era ou não era Teteo? Eu choro a morte dele como choraria se fosse eu que tivesse morrido.

TETEO – Eles já sabem que você era amigo do Abreu, Pé.

PÉ – (apontando para eles) – Quem aí que é a mulher do meu maninho querido? (todos apontam Zélia)

ZÉLIA – Sou eu.

PÉ – (vai até ela cambaleando) – Minha prezada mulher do Abreu é homem pra mim e eu quero dar um abraço na distinta mas sem sacanagem é um abraço de condescêndecias.

GUIBERTO – Condolências.

PÉ – É isso aí, o senhor sabe das coisas. (abraça Zélia que quase cai, tenta ser o mais digno possível, é ridículo) (afasta um pouco e entrega as flores) Sinto muito prazer e muita infelicidade em conhecê-la nesta hora, D. Sueli.

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TETEO – (apavorado) – Não fale isso Pé.

ABIGAIL – Agora é tarde, ele já falou.

PÉ – (sem entender) – O quê? Eu falei algum palavrão?

ABIGAIL – (perto) – Falou sim senhor, Sueli era a outra da vida dele.

GUIBERTO – Biga!!!

PÉ – (perplexo) – Num to entendendo nada.

ZÉLIA – Meu senhor meu nome é Zélia.

PÉ – Mas então a viúva é outra... (olhando para Eunice) Você é que é Sueli?

TETEO – (puxando Pé para um canto, p/ os outros) – Com licença (fica cochichando com Pé que de vez enquanto mexe com a cabeça como se estivesse entendendo)

ABIGAIL – iiii Zélia o senhor Teteo tá contando os podres do seu marido.

GUIBERTO – Biga!!!

ZÉLIA – Meu marido não tinha podres D. Abigail.

ABIGAIL – (justificando) – Mode de falar Zélia, não importa não.

GUIBERTO – A carne é fraca Biga.

EUNICE – É isto mesmo Sr. Guiberto (p/ os dois que estão longe) E quem não tiver pecados que atire a primeira pedra.

PÉ – (p/ Teteo) – Pode deixar comigo xará, agora eu entendi tudo. (vai para perto do caixão) Desculpe o vexame, não ta mais aqui quem falou, eu se fosse a senhora mandava a Sueli pra puta que a pariu (p/ Abreu) – Que papelão hein cara... com um pedaço de mulher dessa em casa (pega Zélia que se desprende) e você ia atrás de uma vagabunda qualquer, que vergonha cara. (Zélia chora forte) Da. Zélia não chora não, esse cara aí não prestava e nem merece lágrimas (p/ os outros) por isso é que eu nunca fui com a cara dele. (p/ Zélia) A senhora devia ta feliz por ele ter morrido.

GUIBERTO – Não fale assim senhor Pé, nós todos temos nossos defeitos... ninguém é perfeito.

EUNICE – E fique sabendo que meu irmão era um marido exemplar nunca deixou faltar nada nesta casa... ele pode ter tido um deslize... uma aventurazinha, mas isso é natural.

PÉ – A distinta aí é irmã dele?

EUNICE – Era irmã e com muito orgulho.

PÉ – Qual é a graça?

EUNICE – Eunice Vilela de Souza.

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PÉ – Pois então esquece tudo o que eu disse, não ta mais aqui quem falou... seu irmão era barra-limpa, cara legal paca. (p/ Zélia que chora) Pode chorar Da. Zélia, chora mais que ele merece.

ABIGAIL – Ele falava muito nessa tal de Sueli?

(meio de lado p/ Pé)

PÉ – (alto) – Se falava... contava cada foda, não é Teteo?

GUIBERTO – Senhor Pé faça favor de respeitar o ambiente, nós não estamos num boteco qualquer.

PÉ – (lembrando) – Foi bom falar em boteco. (p/ Teteo) Teteo a Dorinha Gonô e Mirtes Galinha estão no boteco ali da esquina nos esperando.

TETEO – (embaraçado) – Para quê?

PÉ – Ora pra quê... pra comemorar a quina xará... essa noite é nossa (olha Abreu) Pena que o Abreu não pode ir (p/ Zélia) Pode chorar tranqüila Da. Zélia e amanhã quando a gente receber o tutu a parte que era do Abreu nós vamos dar para a senhora, nós somos honestos, não é Teteo?

TETEO – É isso mesmo Pé... só que tem uma coisa que você ainda não sabe.

PÉ – E o que é? Desembuxa logo.

TETEO – (agarra Pé e leva para um canto) – Pé güenta firme aí, mas o cartão sumiu.

PÉ – (rindo) – Não brinca não cara, mostre ele mostra, deixa eu passar a mão nos buraquinhos. Cadê essa gostosura. (tenta enfiar a mão no bolso de Teteo)

TETEO – (agarrando Pé pelos ombros) – Tô falando a verdade Pé, não consegui achar o cartão, olha aí no chão a roupa dele toda espalhada, revistamos tudo, não tava em lugar nenhum.

PÉ – (um pouco sério) – Isso não é hora de brincadeira não, vê se respeita o ambiente. (olha para Guiberto) Não é isso mesmo meu chapa?

GUIBERTO – É isso sim.

TETEO – Pé eu juro que não to brincando, pode perguntar a qualquer um deles.

PÉ – (como se tivesse levado um choque, olha para as roupas espalhadas no chão, olha para cada um, todos estão tristes, arregala os olhos a bebedeira passa, vai para perto do caixão, p/ Zélia) Da. Sueli com todo o respeito que eu tinha pelo finado jura que isso que o Teteo disse não é verdade.

ZÉLIA – (soluçando) – É verdade sim... nós procuramos em todos os lugares, ele não está em lugar nenhum.

PÉ – (p/ Eunice – implorando) – Maninha, onde é que ele ta, fala pra mim, fala.

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EUNICE – Eu não sei não senhor... nem moro aqui.

PÉ – (p/ Guiberto) – O senhor que respeita o ambiente não vai mentir não é?

GUIBERTO – Eu nunca minto meu senhor e nada sei desse tal cartão.

PÉ – (p/ Abigail) – (desesperado, mãos postas) – Minha tia fala pra mim fala, onde ele está?

ABIGAIL – Eu não sei moço... até ajudei a procurar.

PÉ – (afasta de Abigail, fica olhando para Teteo imóvel, de repente dá um grito, está furioso) – Fui traído. (todos se encolhem num canto, vai para eles) Cambada de salafrários, vigaristas... então é essa que é a de vocês, não é? Tão a fim de me passar a perna... mas vocês não sabem com quem estão mexendo, vai lá no bairro do Limão e pergunta pra qualquer um quem é Pé-de-mesa... num sô trouxa não, tão é a fim de me tirar da jogada.

TETEO – (tentando contê-lo) – Não é nada disso Pé.

PÉ – (empurrando Teteo) – Não vem não xará, eu te manjo... você também é da gang. (Zélia soluça forte) (p/ Zélia) Essa aí é que deve ter bolado a coisa toda... olha aí dona eu sô malandro velho e o que é meu ninguém passa a mão não.

ZÉLIA – (com medo) – Mas eu já disso pro senhor que não sei onde está este maldito cartão.

PÉ – Sua cara não me engana... Bem fez o Abreu em procurar mulher fora de casa... Sueli sim é que é mulher de verdade... não é a toa que o defunto não tirava ela da boca, tava embeiçadão... contava cada foda...

GUIBERTO – (forte) – Chega, isso já é de mais e se o senhor continuar desrespeitando o ambiente eu vou ser obrigado a telefonar para a polícia.

PÉ – Falo... é isso mesmo... mas quem vai telefonar sou eu... tenho um amigão na 5ª, o Palhares, meu chegado do peito... vou contar pra ele o que aconteceu e ele vai mandar prender todo mundo... (aponta Abreu) Até o presunto aqui.

ABIGAIL – (choramingando) Ai meu Deus do céu...

TETEO – (p/ Pé – calmo) – Pé, escuta... eles tão falando verdade, eu também... o cartão não está com ninguém daqui... o Abreu deve ter deixado em outro lugar.

PÉ – Não vem com conversa mole não... se você ta achando que minha grana vai dançar ta por fora... Palhares vai dar um jeito nessa cambada (vai para o telefone)

EUNICE – (p/ Zélia) – Isso é um absurdo Zélia... vai ser um escândalo.

ZÉLIA – E o que posso fazer?

ABIGAIL – Vão prender até o caixão.

PÉ – (telefone – já discou) – Alô, é da 5ª? Queria falar com o Palhares... eu espero...

ABIGAIL – (grita) – Já sei.

TETEO – (p/ Abigail) – Onde? Pé, ela sabe onde está.

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PÉ – (p/ Abigail) – Sabe? (telefone) Alô... dona... pode deixar... não, depois eu falo com ele.

ZÉLIA – (p/ Abigail) – Diga logo Abigail, onde ele está.

PÉ – (chegando) – Eu sabia que vocês estavam querendo me engrupir. (p/ Abigail) Então tia cadê ele?

ABIGAIL – (apavorada) – Onde ele está eu não sei não.

PÉ – (furioso) – O que? (vai avançar para ela, ela corre e se esconde atrás da TV)

ABIGAIL – Espere um pouco seu Pé-de-mesa... eu não sei onde ele está mas sei de uma maneira para descobrir.

PÉ – E que maneira é está? Conta logo.

ABIGAIL – (aponta Guiberto) – Meu marido ali é médium e ele pode fazer descer o espírito do Abreu e aí ele conta onde guardou o cartão.

ZÉLIA – (p/ Guiberto) – Isso é possível seu Guiberto?

PÉ – O senhor é macumbeiro mesmo?

GUIBERTO – Macumbeiro não... eu sou umbandista.

EUNICE – (p/ Guiberto) – Será que dá pra fazer o Abreu descer?

GUIBERTO – Eu não sei... ele desencarnou há muito pouco tempo, talvez ainda esteja em estado de choque... e não tenha consciência do desencarne.

ABIGAIL – Faz uma forcinha Guiba.

PÉ – (p/ Guiberto) – Então meu chapa... ou desce o finado aí ou então vai descer o Palhares. (todos insistem com Guiberto)

GUIBERTO – Está bem... eu vou tentar... vamos fazer uma corrente... Da. Zélia, apague as luzes. (Zélia apaga, a cena fica iluminada pelas velas) – Agora todo mundo concentrado... vamos fazer uma meia volta em torno do caixão. (Abigail está numa ponta e Pé na outra) Biga você pega numa das mãos dele (aponta Abreu) (p/ Pé) e o senhor pega na outra.

ABIGAIL – Eu não... eu morro de medo.

EUNICE – Vamos trocar de lugar Da. Abigail, eu pego (trocam de lugar)

GUIBERTO – Vamos formar a corrente, todos concentrem no desencarnado e por favor (p/ Pé) respeitem o trabalho.

PÉ – Pode deixar meu chapa... eu acredito nessas coisas.

GUIBERTO – Abreu... Abreu... se seu espírito estiver presente, por favor dê um sinal qualquer. (tempo) Alguém sentiu alguma coisa?

TODOS – Não.

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GUIBERTO – Vamos outra vez... concentrem mais. Abreu... Abreu... se seu espírito estiver presente por favor se manifeste.

ABIGAIL – Ai, tem alguém passando a mão em mim.

PÉ – Êpa, puxaram o meu saco...

ZÉLIA – Que é isso... pára... não... ui... (cruza as pernas) (p/ Guiberto) Ele está aqui sim seu Guiberto.

GUIBERTO – Abreu, você precisa nos dizer onde guardou o cartão premiado... (tempo) parece que ele não quer dizer.

ZÉLIA – Diga meu amor.

EUNICE – Fale maninho.

TETEO – Pela nossa amizade.

PÉ – Olha mano, o tutu é nosso... sua mulher vai receber a parte que era sua... fala logo e vê se não fica fazendo cu doce não.

GUIBERTO – Esperem, ele está me transmitindo uma mensagem (silêncio, de vez enquanto Guiberto diz)... Sei... sei...

PÉ – (nervoso) – Sabe o quê? Diga... ele ta contando?

GUIBERTO – (como se estivesse saindo de um transe) – Ele tem umas exigências pra fazer.

PÉ – Mas ele contou?

GUIBERTO – Não, diz que só conta depois que vocês prometerem cumprir o que ele está pedindo.

PÉ – Mesmo em espírito esse cara é foda.

ZÉLIA – O que ele pediu?

GUIBERTO – Primeiro ele quer um túmulo todo de mármore e quer também um caixão de ª classe ele acha este aqui, com o perdão da palavra, uma grande merda, quer também uma bandeira do Corinthians em cima do caixão.

PÉ – A bandeira pode deixar por minha conta.

ZÉLIA – As outras coisas eu prometo, de manhã eu mando comprar o caixão mais caro que tiver e mando fazer um túmulo que vai deixar muita gente morrendo de inveja.

ABIGAIL – Principalmente a Maria da Quitanda, não é Zélia?

TETEO – Pronto Sr. Guiberto, o que ele pediu ta prometido, agora fala pra ele dizer logo.

GUIBERTO – Espere, tem mais dois pedidos: um para o Sr. Teteo e o outro para o Sr. Pé.

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TETEO (assustado) – O que ele quer me pedir?

GUIBERTO Ele mandou o senhor casar com a Eunice... que ele disse que ta encalhada.

EUNICE – (revoltada) – Eu não estou encalhada não e se não casei até hoje foi porque não quis. (p/ Guiberto) Admiro muito o Sr. falar uma coisa dessa.

GUIBERTO – (se defendendo) – Mas não sou eu, quem disse foi o seu irmão... eu não tenho nada com isso.

ABIGAIL – Não importa Eunice, Teteo agora vai ficar rico.

EUNICE – Eu até posso aceitar o pedido dele... mas vai ser um casamento por amor, não por interesse.

GUIBERTO – E o senhor Teteo aceita a senhorita Eunice como esposa até que a morte os separe?

TETEO – (pensando) – Se não aceitar ele não fala onde está o cartão?

GUIBERTO – É isso mesmo... então aceita?

TETEO – É... não tem outro jeito... eu aceito. Pensando bem eu gostei dela logo que vi.

ABIGAIL – (radiosa) – Parabéns Eunice, felicidades...

GUIBERTO – Biga!!!

ZÉLIA – Estou feliz por você Eunice.

PÉ – (p/ Teteo) – Que fria hein Teteo...Um a zero pro Abreu.

GUIBERTO – E agora só falta o senhor Pé-de-mesa.

PÉ – (assustado) – (p/ Abreu) Me livra dessa hein Abreu... Não vou casar não. Vê o que você está pedindo.

GUIBERTO – Acalme-se... ele não quer que o senhor case não, acha que o senhor seria um péssimo marido.

PÉ – Então o que ele quer de mim, pô.

GUIBERTO – (concentra) – Ele está dizendo que, por ter o senhor desrespeitado o ambiente, o ter chamado de presunto, ter avacalhado com a memória dele e ter feito muita sacanagem com ele em vida vai ter que usar roupa preta um ano inteirinho. Até a cueca tem que ser preta.

PÉ – (furioso) – Essa não Abreu, tá dando uma de gostoso pra cima de mim? Nem pra minha mãe... que é mãe... eu não visto preto.

GUIBERTO – Ele está esperando a resposta seu Pé.

PÉ – Depois ele fala em sacanagem você tão vendo... quer sacanagem maior que essa? (pensa) Meu chapa (p/ Guiberto) Pergunta pra ele se não pode ser só três meses?

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GUIBERTO – (concentra) – Não ele disse que é castigo, tem que ser um ano inteirinho.

PÉ – (p/ Abreu) – Livra minha barra... vou ficar parecendo urubu... olha nem um nem outro, 6 meses, ta legal?

GUIBERTO – (concentra) – Ou um ano ou ele não fala.

ABIGAIL – Quê que tem senhor Pé... roupa preta é chique.

TETEO – Aceite logo Pé antes que ele resolva ir embora.

PÉ – Espírito de porco... (pensa) Tá bem eu topo... mas fala pra ele dizer logo onde ta o bendito cartão.

GUIBERTO – (concentra) – Última recomendação, ele mandou dizer que se alguém não cumprir o que prometeu ele volta pra assombrar a vida da pessoa.

PÉ – Que cara chato... a gente vai cumprir sim...

ZÉLIA – Fique em paz Abreu... eu vou fazer tudo direitinho.

TETEO – Eu tenho palavra, não precisa ameaçar não.

GUIBERTO – (concentra) – Ele vai dizer, (suspense) (neste momento a parte de cima do manequim que está no caixão levanta e Guiberto grita) Sueli.

(todos correm assustados, ficam nos cantos)

PÉ – (p/ Teteo) – – Mas é claro... só podia estar com ela.

ZÉLIA – (aproximando do caixão, aos poucos) – (p/ Abreu) (possessa) Seu cachorro, você ainda tem coragem de pronunciar o nome desta vaca em casa... eu te mato. (pega Abreu pelo paletó) Repete o nome desta piranha se você for homem, repete vamos. (todos se aproximam e seguram Zélia)

EUNICE – Que é isso Zélia... perdoa ele.

GUIBERTO – Águas passadas não movem moinhos Da. Zélia... e o desencarnado precisa do perdão da senhora para ter paz... se não vai virar um espírito errante.

PÉ – Não brinca não. (p/ Zélia) Olha Da. Zélia o chegado aí falou na Sueli para a gente poder pegar o cartão e receber a erva... a senhora vai ganhar o dinheiro.

ZÉLIA – (p/ Eunice – já mais calma) – por que será que ele me trocou por outra Eunice? Eu sempre fui uma esposa exemplar... só não fui mãe por que Deus não quis.

ABIGAIL – Será que a Sueli teve filho dele?

GUIBERTO – Biga!!!

TETEO – (p/ Pé) – Pé, agora a gente precisa é de encontrar essa tal de Sueli. Será que alguém lá da repartição sabe onde ela mora? Amanhã a...

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PÉ – (corta) – A gente não pode esperar até amanhã Teteo... temos que pegar este cartão hoje... amanhã pode ser tarde.

TETEO – Por que não pode esperar até amanhã?

PÉ – Se a Sueli ficar sabendo que o cartão está premiado não vai querer entregar não, vai é sumir da vista da gente.

TETEO – Mas aí a gente pode ir atrás dela.

PÉ – Quê isso Teteo, o cartão não tem nome nenhum... ela pode dar a procuração para um banco receber o tutu e se mandar, aí a gente não vai ficar nem conhecendo essa tal de Sueli...

TETEO – A gente podia ter perguntado pro Abreu ponde que ela está.

PÉ – E ele ia fazer mais daquelas exigências bestas para dizer... não, temos é que descobrir sozinhos.

TETEO – Mas como?

PÉ – (pensa) – Pêra aí, eu tenho uma idéia. (p/ Zélia) Dona onde está a agenda de endereços do pré... do amigo aí?

ABIGAIL – (eufórica) – Eu vi essa agenda... ela ta no meio dessas coisas aí. (mostra as roupas no chão)

PÉ – Vamos procurar. (todos ajudam – Pé encontra uma carta do baralho) Olha só o meu baralho de sacanagem tava com ele, por isso é que sumiu.

ABIGAIL – Uma indecência esse baralho.

PÉ – Então a senhora tinha dado uma olhadinha, não é?

ABIGAIL – Olhei, mas foi sem querer... vocês eram imorais mesmo hein...

GUIBERTO – Biga!!!

EUNICE – (acha a agenda) – Olha, eu acho que é esta aqui.

PÉ – (pegando) – É agora ou nunca... Santo Abreuzinho dá uma força aqui... (procurando) F... N... R... S... Silvia...

ABIGAIL – Ele tinha mais uma.

EUNICE – Não senhora... Silvia era minha mãe... já é falecida.

ABIGAIL – Ah, então meus pêsames.

PÉ – (feliz) – Ta aqui... Sueli... só pode ser a mesma... e tem telefone.

TETEO – (animado) – Deixa que eu telefono para ela.

PÉ – E o que você vai dizer?

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TETEO – Vou conversar... sondar... pra ver se ela já sabe sobre a quina.

PÉ – Aí ela pode desconfiar... o negócio tem que ser feito de outra maneira. (pensa) Temos que achar uma maneira de pegarmos o cartão sem ela saber. (vai até o caixão) (p/ Abreu) Que puta mão de obra você deixou amizade... acho que só tomando um trago para aclarar as idéias. (vai até a garrafa) Alguém vai nessa? (bebe)

ABIGAIL – (p/ Zélia em volta do caixão) – Eu aceito um cafezinho Zélia.

GUIBERTO – Biga!!!

ZÉLIA – Daqui a pouco eu vou fazer D. Abigail.

(todos estão em volta do caixão menos Pé que está perto do telefone pensando)

TETEO – (p/ Eunice) – O que você acha que a gente pode fazer?

EUNICE – Eu não sei (sem querer) meu bem.

ABIGAIL – Você viu Guiba ela já o está chamando de meu bem... que gracinha... formam um casal lindo.

ZÉLIA – (p/ Abreu) – O que é a vida...

EUNICE – (encabulada, despistando) – Um vôo de pássaros...

GUIBERTO – Um apagar de vela...

(silencia – todos pensam)

EUNICE – Era tão bom...

ZÉLIA – Um marido exemplar...

EUNICE – Um santo homem...

TETEO – (para ele mesmo) – Puta mancada (todos se assustam) Desculpe (p/ Abreu) Cara bom.

GUIBERTO – Um espírito elevado.

PÉ – (dando um grito) – Já sei.

(todos correm para perto dele)

TETEO – Fala logo.

PÉ – Vamos telefonar para a Sueli e convidá-la para vir aqui.

ZÉLIA – (revoltada) – Ah não, isso não. Na minha casa essa piranha não entra.

TETEO – Lembre do dinheiro Da. Zélia.

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EUNICE – É isso mesmo, você tem que passar por cima.

PÉ – E sacudir a poeira.

GUIBERTO – Fique tranqüila Da. Zélia sua casa não será maculada... uma andorinha só não faz verão.

ZÉLIA – Está bem eu aceito.

PÉ – Ótimo... e é você mesma que vai telefonar para ela.

ZÉLIA – Eu??

PÉ – É tem que ser você senão ela não vem.

ZÉLIA – Mas o que eu vou dizer?

PÉ – Eu já bolei tudo, você vai dizer o seguinte: o Abreu teve um acidente e está muito mal, já foi até desenganado pelo médico... tem poucas horas de vida... ah, diga também que ele contou tudo para você, do grande amor que sente por ela... etc... e que você perdoa os dois... que você compreende o amor deles, e que a última vontade do Abreu é vê-la mais uma vez e que só assim ele morrerá feliz e que ela deve vir o mais rápido possível.

ZÉLIA – (p/ Guiberto) – O senhor acha que isto está certo? Não é um desrespeito?

GUIBERTO – Quem sou eu para julgar, minha filha... Pensando bem, se o desencarnado contou onde está o cartão é porque deseja que a senhora receba o dinheiro.

EUNICE – (insistindo) – É isso mesmo Zélia, além do mais o dinheiro pertence ao Teteo também.

TETEO – (p/ Eunice) – Não é meu, é nosso.

PÉ – O papai aqui também é dono do tutu, não esqueçam.

ZÉLIA – Está bem (vai até o telefone) (disca) Alô... é da residência da Sueli?... É ela quem está falando?... como? Glorinha?... ah, sei...sei... ela demora? Não? Ainda bem... é sim, é muito importante... será que a senhorita poderia dar um recado para ela?... ótimo...Diga que o Abreu..ah, conhece?...É...é ele mesmo...3 vezes por semana (raiva) olha diga que ele sofreu um acidente... é isto mesmo... está muito mal... o médico já desenganou... sim eu sei que Sueli o ama ele também a ama e é por isso que eu estou telefonando...ele está moribundo e quer se despedir dela... Eu? Eu sou a esposa dele...alô...alô... senhorita não precisa ficar assustada não, ele me contou tudo e eu o perdoei... que isso... que isso... eu não sou uma santa não, só sou compreensível, de qualquer forma obrigada... será que a Sueli tem o endereço? Anote aí: Rua Falcão 427... é no Jabaquara... não de metrô não, demora muito, fala para ela tomar um táxi... Abreu diz o nome dela sem parar... obrigada, foi um prazer... boa-noite. (desliga)

EUNICE – Quem é ela?

ZÉLIA – (com raiva) – Uma tal de Glorinha, é colega de apartamento de Sueli e conhecia o (aponta o caixão) distinto aí... só nesta semana ele foi lá três vezes, ela saía para deixá-los mais à vontade. (vai para perto do caixão) Comigo era só uma vez por mês... que raiva.

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ABIGAIL – Você ainda tinha sorte... eu até já perdi a conta.

GUIBERTO – (cortando) – Biga este assunto só interessa a nós dois.

PÉ – (p/ Zélia) – Então ela mordeu a isca?

ZÉLIA – Eu acho que sim... ela disse que Sueli tinha saído um instantinho e que logo que chegasse ela daria o recado.

TETEO – E agora o que vamos fazer?

PÉ – Agora vamos esperar com calma.

GUIBERTO – Podíamos aproveitar a oportunidade para velar o desencarnado.

PÉ – Está bem, vamos lá... é só esta noite mesmo.

(todos rodeiam o caixão)

EUNICE – Era um bom homem...

TETEO – (perto de Eunice) – Um amigo pra toda hora...

ZÉLIA – Um marido exemplar...

PÉ – Corintiano barra limpa...

GUIBERTO – Um espírito elevado... (todos olham para Abigail que está distraída) Biga é sua vez... diga alguma coisa.

ABIGAIL – Eu aceito um cafezinho.

GUIBERTO – O que é isso Biga... ou você vela o desencarnado ou não fica aqui perto.

ZÉLIA – Não tem importância não Sr. Guiberto. (p/ todos) Eu vou fazer um cafezinho para nós.

(vai sair, Abigail vai atrás dela até um canto)

ABIGAIL – Desculpe viu Zélia mas pra falar a verdade eu nunca soube velar desencarnado.

ZÉLIA – Eu entendo Abigail.

ABIGAIL – Eu queria te pedir outra coisa.

ZÉLIA – Pois então peça.

ABIGAIL – Será que eu podia ligar a televisão só mais um pouquinho? Tá na hora da “Semana Um” tá passando “Os Corruptos” e eu estou assistindo.

ZÉLIA – Fique à vontade. (sai cozinha)

PÉ – (que havia se afastado do grupo e está com a garrafa de pinga na mão, vai para perto de Abigail, frente TV). É filme de sacanagem?

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ABIGAIL – Acho que não... é sobre um homem, desses figurões, que roubava o dinheiro do povo e colocava na conta dele... o capítulo de ontem terminou quando ele estava estreando uma estátua dele mesmo e que ele mesmo mandou fazer para ele, aí o povo começou a vaiar e os bandidos que acompanhavam o figurão começam a bater no povo e a jogar bombas.

PÉ – (olhando) – Ah, isso já é repetido, vi muitas vezes... mas é um sarro, vou ver de novo (pega uma cadeira e senta na frente da TV)

EUNICE – (perto do caixão p/ Teteo) – Teteo será que você podia me ajudar a pegar estas coisas que estão no chão... é para deixar a casa em ordem... vai chegar visitas e não fica bem.

TETEO – Pois não, com muito prazer... meu bem... (p/ Guiberto) Com licença... (p/ Abreu) eu não demoro.

GUIBERTO – Se precisarem de mim...

EUNICE – É melhor o senhor ficar aí para não deixar o Abreu sozinho... fica velando ele.

PÉ – Olha só que porretada que ele deu na cabeça do moleque.

ABIGAIL – É mesmo... quê que o moleque fez?

PÉ – Vaiou o figurão.

ABIGAIL – Vem para cá Guiba, traz uma cadeira... o filme ta ótimo.

GUIBERTO – (compenetrado) – Não, eu estou bem aqui.

ABIGAIL – Desmancha prazer. (volta ver TV)

(Eunice e Teteo na medida em que apanham as roupas flertam, levam as roupas p/ um canto e dobram)

EUNICE – Com licença Teteo, eu vou lá dentro ver se a Zélia está precisando de mim.

TETEO – (meloso) – Não demore hein...

(Eunice sai – cozinha e Teteo vai para perto da televisão)

PÉ – (p/ Teteo) – Eles estão metendo o cacete.

ABIGAIL – (curiosa) – Metendo o quê?

PÉ – O cacete... é aquilo lá que eles estão segurando (mostra TV)

ABIGAIL – Nossa, deve doer um bocado. (p/ Guiberto) Guiba eles estão metendo o cacete.

TETEO – Pé, me diga uma coisa, quando a Sueli chegar como é que nós vamos fazer para pegar o cartão.

PÉ – Pode deixar por minha conta... se é piranha o papai aqui sabe controlar.

TETEO – Mas como você vai fazer?

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PÉ – É muito simples, o cartão deve estar dentro da bolsa... vai chegar uma hora que ela vai precisar fazer xixi, aí a gente pega o cartão.

TETEO – E se ela não quiser fazer xixi?

PÉ – Aí eu vou ser obrigado a dar uma de trombadinha.

TETEO – E se o cartão não estiver na bolsa?

PÉ – Aí nós vamos obrigar a piranha a fazer um strip-tease.

ABIGAIL (assustada) – A Sueli vai ter que ficar nua?

PÉ – Vai sim, e se não ficar por bem vai ficar na marra... mas ela deve ser dessas que gostam de ficar pelada só pra tesar a gente, por isso que Abreu aí parou na dela.

GUIBERTO – (que escutou o fim do diálogo) – Mais uma vez devo lembrar aos senhores (p/ Abigail) e a senhora que isto aqui é um velório.

PÉ – Falando em velório eu me lembrei da Dorinha Gonô e da Mirtes Galinha, elas já devem estar putas da vida de nos esperar.

ABIGAIL – Isso aí que o senhor disse elas já são.

TETEO – Eu não vou... não posso deixar Eunice sozinha.

(entram Eunice e Zélia – que traz uma bandeja, xícara) (serve o café. Eunice serve Teteo)

ZÉLIA – (enquanto serve o café) – Será que esta tal de Sueli ainda vai demorar muito? Quando penso nela tenho vontade de matá-la.

PÉ – Não vai dar mancada Zélia lembra que a nossa fortuna está nas mãos dela.

EUNICE – Falando nisso, o que nós vamos ter que fazer?

PÉ – Não vão ter que fazer nada... só tratá-la bem e mostrar onde fica o banheiro quando ela quiser ir, o resto pode deixar por minha conta.

(campainha)

EUNICE – É ela.

ZÉLIA – Só pode ser.

TETEO – Veio rápido hein.

ABIGAIL – É porque ela o amava de verdade.

GUIBERTO – Biga !!!

ZÉLIA – só quero ver a cara que esta vigarista vai ficar quando ver o Abreu morto.

PÉ – É agora ou nunca... ou saio da merda de uma vez ou vou ter que me aposentar atolado

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num esgoto.

ABIGAIL – será que ela vai desmaiar ao ver o Abreu morto?

PÉ – Tomara. Aí facilita tudo. (campainha) Ela ta nervosa...eu vou abrir, se desmaiar eu seguro a danada.

(vai até a porta – suspense)

EDGARD – (porta encoberto) – Boa noite.

PÉ – (surpreso) – Boa noite (p/ os outros) Não é ela.

EDGARD – É aqui a residência do Sr. Abreu Vilela?

PÉ – É aqui sim... o senhor era amigo dele?

EDGARD – Era? O que aconteceu?

PÉ – (abre passagem deixando Edgard ver o caixão) O senhor não sabia que ele morreu?

EDGARD – (susto) – Morreu? (vai até o caixão – digno – contido) Abreu... (emocionado)

GUIBERTO – O senhor o conhecia há muito tempo?

EDGARD – (ainda emocionado) – Conhecia sim. (p/ os outros) Éramos muito amigos.

GUIBERTO – (mostrando Zélia) – E a Da. Zélia, o senhor já conhecia?

EDGARD – Não. (ressabiado)

GUIBERTO – Ela é viúva do desencarnado.

EDGARD – (encabulado) – Meus sentimentos... e prazer em conhecê-la.

GUIBERTO – (mostrando Eunice) – Esta é a irmã

EDGARD – Meus pêsames e prazer.

ABIGAIL – (adiantando) – (aponta Guiberto) Eu sou a mulher dele, Muito prazer senhor...senhor...

EDGARD – É um prazer senhora, meu nome é Edgard Carvalho

GUIBERTO – (aponta Teteo e Pé que estão num canto) – Os dois eram colegas de repartição

TETEO – (conversando com Pé) – Mas quem é esse cara?

PÉ – Sei lá... mas ele pode estragar tudo...

EDGARD – (p/ Zélia) – Mas como aconteceu?

ZÉLIA – Infarte – (surpresa em Edgard, percebe que ele não está entendendo)

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EDGARD – Infarte??????

ABIGAIL – É, foi tiro e queda.

EDGARD – Mas, se não estou enganado a Glorinha disse que ele havia sofrido um acidente.

(surpresa em todos – Pé se aproxima)

PÉ – O que o senhor disse?

EDGARD – A Glorinha recebeu um telefonema pedindo que eu viesse aqui imediatamente e...

ZÉLIA – (corta) – Desculpe, mas deve estar havendo algum engano...nós estávamos esperando uma moça chamada Sueli.

EDGARD – (compreendo – encabulado) – Então...a senhora não sabia...o Abreu não contou?

ZÉLIA – Não sabia o que?

EDGARD – Sueli era só um nome que ele usava pra poder telefonar para mim e contar aos outros os nossos sentimentos... sem que percebessem que eu sou um homem.

ABIGAIL – (escandalizada) – Sueli é viado!

GUIBERTO – Biga!!!

EDGARD – (nervoso) – Eu pensei que a senhora já soubesse de tudo... a Glorinha disse que a senhora havia compreendido os meus sentimentos e que perdoou o Abreu, disse também que eu deveria vir aqui pois ele não parava de me chamar.

PÉ – (p/ Abreu) – Essa não! Você era foda hein xará! (p/ Teteo) E pensar que na repartição nunca ninguém desconfiou de nada... e o que ele contava...

EUNICE – (p/ Abreu) – Abreu isso não é verdade, não pode ser verdade.

TETEO – Não fique assim Eunice, pode ser pior.

ABIGAIL – (p/ Zélia) – (que está arrasada, de cabeça baixa) Olha Zélia, o mundo ta assim de homem como ele...a Maria da Quitanda me falou que até o Antonio da padaria também é.

ABIGAIL – (aproximando) – Olha Sr. Edgard desculpa viu... é que eu sou uma mulher ignorante, não entendo dessas coisas

PÉ – Ta vendo...ela não é entendida. Olha, ninguém aqui tem nada com sua transa com o Abreu não, vocês curtiam numa boa não é? Pois então, o resto que se dane.

(neste momento voltam da cozinha Zélia e EUNICE – Zélia ao ver Edgard quer voltar Eunice não deixa)

EUNICE – Vai lá Zélia, vai lá e conversa com ele.

EDGARD – (ao ver Zélia também tenta sair – Pé não deixa) Me deixa ir embora.

PÉ – Você não sai daqui antes de fazer as pazes com Zélia.

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TETEO – (perto) – Vai lá e fala alguma coisa para ela.

EDGARD – Eu não... eu fui o ofendido portanto ela que terá que dar o primeiro passo.

ABIGAIL – Não esqueça que você roubou o marido dela.

EDGARD – (p/ Pé) – Ta vendo, elas não compreendem, não perdoam...eu quero sair.

(Pé de vez em quando tenta colocar a mão no bolso de Edgard, não consegue)

PÉ – (p/ Abigail) – Por que a senhora não vai ficar perto do cartão...quero dizer perto do caixão. (Abigail faz um muxoxo e vai para perto do caixão)

TETEO – (que foi para perto de Eunice) (p/ Zélia) Dna. Zélia eu quero que a senhora dê o primeiro passo, o Ed diz que foi ofendido.

ZÉLIA – E eu não fui ofendida? Não esqueça que ele ou ela sei lá, foi amante do meu marido...ele que venha até aqui se quiser. (teteo vai p/ Pé)

TETEO – Ela acha que ele que deve ir lá.

PÉ – Eu já sei o que fazer...fique aqui com ele (vai para o centro de cena) (alto) (p/ Zélia) Da. Zélia...(p/ Edgard) Edgard... vocês dois gostavam da mesma pessoa (aponta Abreu) são viúvas da mesma pessoa, o distinto que está ali...agora o distinto já não é deste mundo, portanto é bobagem brigar...vocês devem é trocar um abraço cordial e bem forte, só assim mostrarão que estão unidos pelo mesmo sentimento de amor....e de dor...

ABIGAIL – (não se contendo) – Muito bem. (p/ Guiberto) Falou melhor que você Guiba.

EUNICE – Zélia vai lá e dá um abraço nele. Lembre do cartão

TETEO – (p/ Edgard) – Abraça a Da. Zélia, vai.(todos rodeiam os dois enquanto Pé enfia a mão no bolso direito do paletó de Edgard, tira um lenço, algumas moedas e papéis que passa para Teteo que estava de lado, Teteo vai para um canto, examina o que foi tirado e faz sinal de negativo para Pé, neste momento Edgard já estava se afastando de ZÉLIA – Pé o empurra outra vez para os braços dela)

ZÉLIA – (nervosa) – Eu não posso permitir mais estas gracinhas...meu marido era homem e muito homem. (desesperada p/ todos) – Vocês mesmos viram como ficou a calcinha da lua de mel.

PÉ – Eu não vi calcinha nenhuma. Você viu a calcinha dela Teteo?

TETEO – Depois eu lhe conto.

PÉ – Olha. Zélia vai ver que depois do casamento o Abreu cansou de papai mamãe...quis variar entende?

GUIBERTO – (forte) – Vamos respeitar o velório.

ZÉLIA – (arrasada – p/ Edgard) – E o senhor faça o favor de se retirar... eu não vou permitir que um...um...uma bicha qualquer entre em minha casa e negue a machisse do meu marido...Ele não era nada disso não... (p/ todos) não dormia com homens!

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ABIGAIL – A Glorinha disse que era três vezes por semana.

ZÉLIA – (possessa) – Alguma vez vocês viram o Abreu desmunhecar?

Abigail - O Antonio da padaria também não desmunheca não (aponta Edgard) e ele também não.

ZÉLIA – (furiosa) – Por Favor, retire-se

EDGARD – (embaraçado) – Mas...mas...

ZÉLIA – Rua...rua...

EDGARD – (digno) – Sinto muito minha presença ter causado tanto embaraço, e a senhora que fique sossegada, eu me retiro...não fico num lugar onde não sou bem aceito. (olha Abreu) Adeus Abreuzinho...

(Edgard vai saindo – Zélia passa mal, Eunice acode)

EDGARD – (da porta olha para todos e para o caixão) – Boa noite.

ZÉLIA – (levanta possessa, pega a coroa de flores e joga em Edgard gritando) Rua!! Rua!!

EDGARD – (que se esquivou da coroa, dá um passo para frente, encara Zélia) Fique ai velando seu corpo, mas lembre que era de mim que ele gostava.

(sai)

ZÉLIA – (enlouquecida) – Fechem este caixão...eu não quero vê-lo mais.

EUNICE – (seguindo Zélia) – Vamos lá dentro tomar um copo de água com açúcar... eu também estou precisando.

PÉ – que estava num canto – (lembra) Epa... e o cartão?

TETEO – (nervoso) – É mesmo e agora?

PÉ – Ele precisa voltar.

ZÉLIA – (que estava saindo com Eunice) – Aqui ele não entra mais.

PÉ – (nervoso) – Olha aqui...e nós? Vamos dançar? Só porque o Abreuzinho gostava de umas transas diferentes eu vou ter que me aposentar na merda?

TETEO – Desculpe Da. Zélia mas minha parte eu quero todinha

PÉ – Se você quer terminar a vida como uma viúva pé-de-chinelo o problema é seu, eu to noutra...este cara vai voltar aqui...a gente precisa de saber onde está o cartão.

GUIBERTO – Desculpe minha interferência mas eu acho minha filha que você não deve deixar a ira e o orgulho dominarem seu coração.

EUNICE – Afinal ele já morreu mesmo Zélia, não adianta ficar remoendo...você tem é que

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perdoá-lo.

PÉ – Então Zélia...resolva logo...antes que ele suma

ZÉLIA – Eu não sei...a presença dele desrespeita minha casa.

PÉ – Quê isso... a grana leva tudo...com dinheiro no bolso, respeito se compra.

ABIGAIL – Nem a Maria da Quitanda vai ter coragem de fazer fofocas.

PÉ – Faço ele voltar?

ZÉLIA – (pensa) – Está bem...

TETEO – Mas Pé, ele é orgulhoso e se não quiser voltar?

PÉ – Isso deixa por minha conta, eu sei dobrar uma bicha...(p/ todos) Mas olhe lá hein, quando ela chegar e a gente achar o cartão temos que tratá-la bem, com todo respeito.

ZÉLIA – Está bem, eu prometo.

TODOS – Tá certo.

PÉ – Rezem por mim... lá vou eu. (sai)

EUNICE – (p/ Zélia) – Vamos Zélia... vamos lá dentro tomar um pouco de água com açúcar. (saem)

GUIBERTO – (p/ Biga) – Biga veja lá hein... não vá ofender o rapaz.

ABIGAIL – Pode deixar Guiba... (pensa) Só uma coisa estou em dúvidas... a gente deve chamá-lo de Sueli ou Edgard ?

GUIBERTO – Edgard... ele é um homem, não esqueça disso.

TETEO – (brincando) – Só que está aposentado.

ABIGAIL – Pra dizer a verdade, eu nunca consegui entender esses caras... tem um na televisão que é um pão mas ele não dá confiança pra mulher nenhuma... porque será hein?

GUIBERTO – Faz parte do carma deles.

(neste momento ouve-se de fora a voz de Pé e Edgard)

EDGARD – Eu não vou entrar não... fui enxotado daí.

PÉ – Eu já disse, ela ta nervosa. Ela que me pediu para ir atrás de você... faça uma forcinha. (puxa Edgard para dentro da cena)

EDGARD – Eu estou com vergonha... me deixe ir embora.

PÉ – (na frente dele) – Não. Só depois que você conversar com a Zélia... você vai ver, ela está arrependida.

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TETEO – (que se aproxima) – É verdade, ela ficou chateada depois que o senhor saiu.

PÉ – Mais um abraço, agora para selar uma grande amizade entre vocês dois.

(eles se abraçam. Teteo entrega o que tinha nas mãos e Pé enfia novamente no bolso de Edgard. Imediatamente, vai até o bolso esquerdo de Edgard e tira uma carteira, passa para Abigail que está mais perto)

ABIGAIL – (olhando a carteira) – O que é isto?

TETEO – (toma a carteira de Abigail e olha rapidamente o que tem dentro. Desanimado, faz um sinal negativo p/ Pé. Neste ínterim, Edgard já está afastado de Zélia. Teteo está olhando de costas p/ ele).

ABIGAIL – (que estava perto de teto) – Então, achou?

EDGARD – (que naturalmente olhou para as mãos de Teto) – Esta carteira é minha.

TETEO – (encabulado) – É? Pois é, eu estava dizendo para Dona Abigail que eu achei a carteira aqui (aponta o chão). Deve ter caído do bolso do senhor.

EDGARD – (desconfiado) – Obrigado. (vai para perto do caixão)

ABIGAIL – (cruza a cena e vai para onde está Zélia e Eunice) – Não estava na carteira.

EUNICE – E agora? (vão para perto do caixão)

EDGARD – (triste) – Quem diria...

PÉ – (nervoso) – É isso mesmo, quem diria (pensa). Zélia, por que você não serve um cafezinho para o Edgard? (pisca o olho – ela entende)

ZÉLIA – Está bem, eu vou buscar. (sai)

GUIBERTO – Agora que a paz voltou a reinar, podíamos velar um pouco o desencarnado.

(percebe-se em todos, com exceção de Guiberto e Edgard, que as frases ao ditas mecanicamente. Estão preocupados com o cartão)

ABIGAIL – ele era um homem bom.

TETEO – Um amigo do peito.

GUIBERTO – Um espírito elevado.

PÉ – Um puta cara legal.

EUNICE – Um anjo de irmão.

EDGARD – Um companheiro exemplar.

(Pé faz um sinal para Teteo e vão os dois para um canto, despistados)

TETEO – E agora?

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PÉ – Só pode estar no bolso de dentro do paletó.

EUNICE – (p/ Edgard) – O senhor já o conhecia há muito tempo?

EDGARD – Há quase três anos.

ABIGAIL – E desde que o senhor o conheceu, vocês...

GUIBERTO – Biga!!!

TETEO – Mas como vamos fazer pra procurar no bolso de dentro?

PÉ – Só tem um jeito: ele vai ter que tirar o paletó.

TETEO – Mas e se ele não quiser tirar?

EDGARD – Eu sei que deve ser difícil para os senhores entenderem o meu relacionamento com ele.

ABIGAIL – (prosa) – Eu entendo... faz parte do carma de vocês.

EDGARD – A senhora é espírita?

ABIGAIL – Eu não... mas meu marido aqui é... espírita doente... não sai do centro, e vai em tudo quanto é velório para velar o desencarnado.

GUIBERTO – Faz parte da minha missão, Biga.

ABIGAIL – O pior é que eu tenho que ir também... e eu morro de medo.

PÉ – (p/ Teteo) – Eu já sei o que fazer.

TETEO – O que é?

PÉ – Deixa por minha conta. Segura a barra aí. (entra na cozinha. Teteo vai para perto do caixão)

EDGARD – (p/ Teteo) – Onde está seu amigo?

TETEO – Acho que foi ao banheiro.

(entram Zélia e Pé)

PÉ – (p/ Zélia, tomando a bandeja que ela traz) – Pode deixar que eu sirvo. (serve um por um. O último é Edgard. Finge que escorrega, deixando a xícara com o café cair no paletó dele) Oh, desculpe.. eu tropecei e...

EDGARD – (se limpando) – Não se preocupe, estas coisas acontecem.

TETEO – (entendendo a jogada) – Por favor, tire o paletó que a Dona Zélia dá uma limpadinha para o senhor.

EDGARD – (limpando com o lenço) – Não precisa... obrigado.

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EUNICE – (percebendo) – Não custa nada, a gente passa um paninho com água quente e não fica nenhuma mancha.

PÉ – (já tirando o paletó de Edgard) – Vamos... se não eu vou ficar chateado. Eu fui culpado.

EDGARD – Bem... se vocês fazem questão... (tira o paletó e vai entregar a Zélia. Pé pega.)

PÉ – (p/ Zélia) – Vamos, eu ajudo a senhora. (entram na cozinha)

(voltam a olhar o caixão)

EDGARD – (olhando para Abreu) – Eu ainda não entendi uma coisa.

TETEO – (receoso) – O quê?

EDGARD – O recado que a Glorinha me deu foi que o Abreu estava vivo e havia sofrido um acidente, e não parava de chamar por mim.

ABIGAIL – Pela Sueli.

EDGARD – Eu já expliquei isso... mas, como estava dizendo ao chegar aqui, você me disseram que o Abreu morreu de infarte e que isso aconteceu à tarde.

TETEO – (procurando uma desculpa) – Bem... é que... nós não queríamos dar essa notícia por telefone... ficamos sem saber como contar que ele já havia morrido.

EUNICE – É isso mesmo... sabíamos que o senhor... ou melhor, que a Sueli, ia ter um choque.

EDGARD – E como foi que ele contou que gostava de mim... isso é, da Sueli.

TETEO – Antes de morrer ele ainda teve tempo de falar sobre você... e deu o seu telefone.

EDGARD – Mas... se tudo isso aconteceu à tarde, porque só telefonaram para mim à noite?

TETEO – (sem saber o que dizer) – Bem,...isso foi por que... é...

EUNICE – (salvando a situação) – Minha cunhada não queria telefonar. Só depois que eu cheguei, à noite, foi que consegui convencê-la.

ABIGAIL – É isso mesmo, seu Edgard, eu cansei de falar com ela pra telefonar, mas ela tava com ciúmes... não foi Guiba?

GUIBERTO – (constrangido) Foi sim... Dona Zélia tinha muito ciúme do desencarnado.

(entram Zélia e Pé – estão arrasados)

ZÉLIA – (mau-humor) – Aqui está o paletó.

EDGARD – (olhando) – A mancha não saiu.

ZÉLIA – (sem querer) – Hiii, eu esqueci de limpar.

EDGARD – o quê?

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ZÉLIA – (consertando) – Quero dizer... eu não consegui limpar... estou muito nervosa... e o café está muito forte.

EDGARD – Não tem importância... eu mando para o tintureiro.

(todos estão concentrados em Zélia, fazem mímicas, piscam o olho)

PÉ – (p/ Teteo – canto do palco) – (nervoso) – Nada, não tinha porra nenhuma no bolso.

TETEO – Essa não, e agora?

EUNICE – (p/ ZÉLIA – tentando saber) – Então Zélia, tudo bem?

ZÉLIA – Tudo mal.

ABIGAIL – Não estava lá dentro ?

ZÉLIA – Não achei nada.

EDGARD – Não estou entendendo.

ZÉLIA – Não é nada não... eu estava pretendendo fazer uns sanduíches, mas não achei o patê.

PÉ – Só tem mais uma chance. Este cartão tem que estar no apartamento dele.

TETEO – Pé... e se ele já ta sabendo da quina? Quem sabe se não é ele quem está nos passando a perna?

PÉ – Não sabe não... ele não estaria com aquela cara se soubesse (Edgard triste – olham)

TETEO – Olha, eu acho que é melhor a gente abrir o jogo, aí ele entra na bolada e pronto.

PÉ – Você é otário mesmo hein? Cara: se a bicha ficar sabendo que está com um cartão premiado, some do mapa e a gente dança.

EUNICE – (p/ Zélia) – Onde será que foi parar o patê?

Edgard - Se as senhoras estão com fome, podemos telefonar para alguma pizzaria, e...

ZÉLIA – (cortando) – Esqueça... eu... perdi a fome. (p/Eunice) Eu desisto.

ABIGAIL – (intenção) – Pois eu não... estou morrendo de fome... (p/ Edgard) Velório me dá uma fome...

PÉ – (que ouviu o fim da conversa) – Eu também estou com fome... o Teteo também está, não está Teteo?

TETEO – (não entendendo) – Estou o que?

PÉ – Com fome. (p/ Zélia) – Ele está sim... olha, porque as senhoras não vão lá pra dentro providenciar alguma coisa pra gente comer?

EDGARD – Dona Zélia disse que queria fazer uns sanduíches mas não achou o patê.

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PÉ – Não achou o quê?

ZÉLIA – (fazendo mímica atrás de Edgard) – O patê...

PÉ – Pois então faça sanduíche de qualquer outra coisa... tem presunto?

ZÉLIA – Não...

PÉ – Mortadela... queijo... lingüiça...

ZÉLIA – Não... não tem nada disso.

EDGARD – Eu estava dizendo que a gente podia telefonar para uma pizzaria.

PÉ – Nem pense nisso... para entregar em casa eles cobram o olho da cara.

EDGARD – Podemos fazer uma coisa... eu posso sair e comprar algumas coisas e trago para vocês.

PÉ – Nem pense nisso. (empurra Zélia) Vai Zélia, prepare qualquer coisa para nós, afinal estamos dando a maior força aqui no velório.

ZÉLIA – (não entendendo) – Mas... mas... (Pé faz mímicas p/ Zélia que não entende) Está bem, você me ajuda Eunice?

EUNICE – Ajudo sim.

PÉ – (p/ Abigail) – Por que a senhora não vai ajudar também?

GUIBERTO – (entendendo) – Vai Biga. (saem Zélia, Eunice e Abigail)

PÉ – (p/ Guiberto) – E o senhor ?

GUIBERTO – Eu vou ficar aqui velando o desencarnado.

EDGARD – Talvez eu possa ajudar.

PÉ – Nem pensa nisso. Você vai ficar aqui.

EDGARD – (não entendendo) Por quê?

PÉ – Por nada... bem... é que eu gostaria de ter com quem conversar e simpatizei com você... (puxa Edgard para um lado) olha eu não tenho preconceito nenhum... prá dizer a verdade, eu também já tive um casinho com um entendido.

EDGARD – (se interessando) – É mesmo... e por que terminaram ?

PÉ – É uma longa história. (mostra duas cadeiras no canto) Antes eu vou pegar a pinga.(Edgard senta enquanto Pé vai pegar a garrafa e faz um sinal para Teteo sair. Sai Teteo. Pé senta perto de Edgard) como eu estava contando pra você, foi caso muito bacana... (estende a garrafa) Quer dar uma bicada?

EDGARD – Não, não fica bem... afinal de contas eu estou despedindo do meu...

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PÉ – (simpático) – Pode dizer, não tenha medo... eu entendo. Bebe um pouco, vamos. (Edgard bebe)

PÉ – Isso... agora sim... eu acho que nós vamos ser bons amigos... (tempo) (aponta o caixão) Você gostava muito dele?

EDGARD – Eu já disse, a gente... se curtia numa boa.

PÉ – Você sabe que eu até chego a sentir inveja dele...É bacana um caso assim.

EDGARD – Mas você disse que já teve um e acabou.

PÉ – Mas ele não era como você. Era um cara... sabe como é... desmunhecado... escandaloso. Você não, você é gente fina. (passa a garrafa) Toma aqui, bebe mais um pouquinho.

EDGARD – (bebe) – Você vai acompanhar o enterro?

PÉ – Claro que sim... eu era chapa chegado dele... (cara de triste) só que eu estou com um galho.

EDGARD – O que é?

PÉ – Já perdi o último ônibus e se eu ficar aqui acordado a noite toda, amanhã, na hora do enterro, não vou agüentar ficar de olho aberto. Não agüento ficar sem dormir uma noite.

EDGARD – (pensando) – Você podia pedir à Dona Zélia para descansar um pouco no quarto dela.

PÉ – Isso não, pega mal... o falecido ainda ta aí, fresquinho no cartão... quero dizer... no caixão, e depois a Dona Zélia pode querer descansar um pouco... (passa a garrafa) tome mais um gole. (Edgard bebe) E você, vai acompanhar o enterro?

EDGARD – Sem dúvida... só que ainda não sei que horas vai ser.

PÉ – O Teteo estava me dizendo que vai sair daqui às horas da manhã para o cemitério do Araçá. (bebe um pouco e oferece para Edgard)

EDGARD – (aceitando – bebe) – Para mim chega. Eu sou muito fraco para bebidas.

PÉ – Você vai ficar a noite toda aqui?

EDGARD – Não, daqui a pouco tenho que ir embora. Preciso descansar para amanhã.

PÉ – (fingindo) – Será que eu podia pedir um favor? Não quero abusar...

EDGARD – Peça.

PÉ – Terá algum galho eu dormir no seu apartamento esta noite?

EDGARD – (pensa) – Não sei... Afinal eu acabei de conhecê-lo e...

PÉ – (cortando) – Para mim seria uma puta força legal... assim... nós podemos descansar e amanhã viremos juntos para o enterro do nosso prezado aí (aponta o caixão)

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EDGARD – Mas e os outros... o que eles vão pensar? Aquela mulher, a tal de Abigail, ela é muito maliciosa.

PÉ – (tentando convencer) – E você deve alguma coisa pra eles?

EDGARD – Não é por mim... é pelo Abreu... em respeito a ele.

PÉ – (carinhoso) – Ora boneca, o Abreu tá morto... bola pra frente. (acaricia a perna de Edgard) Então vamos?

EDGARD – (pensa) – Está bem, vamos... ninguém tem nada com a minha vida.

PÉ – É assim que se fala. Olha, eu vou lá dentro chamar as mulheres pra você poder despedir. Vou dizer que você ficou com dor de cabeça e precisa ir embora e que eu vou aproveitar sua companhia, ta legal?

EDGARD – Está bem... eu espero. (Pé sai) (Edgard vai para perto do caixão)

GUIBERTO – (que ficou todo tempo na cabeceira do caixão) – Se o senhor estiver interessado no endereço do centro que freqüento, posso dar.

EDGARD – Amanhã eu pegarei com o senhor, agora eu preciso ir.

GUIBERTO – Já? É cedo...

EDGARD – Eu preciso descansar... O senhor Pé... quero dizer Orlando, vai me acompanhar.

GUIBERTO – (entendendo) – Ah, sei... sei...

(entram todos. Pé já conversou com elas)

ZÉLIA – Que pena que o senhor não possa ficar mais um pouco.

EDGARD – Eu preciso ir, mas estarei aqui amanhã sem falta. (dando a mão à Zélia) Boa noite... foi um prazer conhecê-la... e meus pêsames novamente.

ZÉLIA – Igualmente.

EDGARD – (p/ Eunice) – Boa noite e até amanhã.

EUNICE – Até amanhã. Tive muito prazer em conhecê-lo.

EDGARD – (p/ Abigail, mais formal) – Passe bem minha senhora.

ABIGAIL – Pelo seu jeito... o senhor parece tão homem que ninguém diz que o senhor...

GUIBERTO – Biga!!!

EDGARD – (p/ Guiberto) – Até amanhã Sr. Guiberto. (p/ Teteo) Foi um prazer conhecê-lo.

TETEO – O prazer foi todo meu e, precisando... estamos aí.

PÉ – (p/ todos) – Gente boa, até amanhã.

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(Edgard vai mais uma vez até o caixão)

PÉ – (sem que ele veja, p/ todos) – Guenta firme aí no velório que eu telefono. (P/ Edgard) Vamos Edi.

(saem – tempo – Abigail vai até a porta, olha para fora, volta)

ABIGAIL – Já foram.

ZÉLIA – Como é que vai acabar essa estória?

GUIBERTO – O que ele falou pra vocês?

TETEO – O negócio é o seguinte. Pé disse que vai para o apartamento dele e vai fazer uma revista completa lá dentro.

GUIBERTO – Mas se o rapaz não deixar? Afinal, lá é casa dele.

EUNICE – E para ele revistar o apartamento, vai ter que contar tudo.

TETEO – Ele vai tentar encontrar o cartão sem a bicha perceber, mas se ela desconfiar, ele vai obrigá-la a entregar na marra.

EUNICE – Ah, meu Deus, eu fico tão nervosa com estas coisas.

TETEO – (carinhoso) – Não fique assim, eu vou ficar aqui com você.

ZÉLIA – O que podemos fazer enquanto ele não telefona?

GUIBERTO – Velar o desencarnado, rezar e esperar.

ABIGAIL – E comer... vamos buscar os sanduíches, Zélia? (saem Zélia e Abigail)

TETEO – Esta é uma boa... estou com o estômago roncando. (p/ Eunice) Você está com fome?

EUNICE – Um pouco... mas eu comeria alguma coisa.

TETEO – (p/ as duas cadeiras no canto) – Então vamos sentar ali.

EUNICE – Vamos. (sentam)

(Guiberto vai para a cabeceira do caixão – entram Zélia e Abigail trazendo uma bandeja com sanduíches)

ABIGAIL – (tom de piquenique) – Comida pra todo mundo.

ZÉLIA – Desculpe, mas eu só tinha um pouquinho de maionese... mas acho que dá para enganar a fome.

(estão servindo enquanto a luz vai caindo aos poucos e fica um momento em black-out. Passagem de tempo. Ao subir, lentamente, os personagens estão todos dormindo. Guiberto dorme de pé)

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(campainha do telefone toca)

TETEO – (acorda sobressaltado – grita) – É ele. (todos acordam assustados)

ABIGAIL – (sonolenta) – Ele quem?

TETEO – O telefone... é o Pé. (corre para o telefone, todos acompanham)

TETEO – (aflito) – Alô... é o Pé... hein... quem? (desânimo) sei... sei... está bem... (desliga)

EUNICE – Quem era?

TETEO – É a Telesp experimentando um novo cabo... pediu desculpa pelo transtorno... disse que está trabalhando para o bem estar da população.

ABIGAIL – Mas a esta hora?

ZÉLIA – Que horas são?

TETEO – (olha para o relógio, leva um susto) – Êpa... já são quase 4 horas... o Pé já devia ter telefonado.

ABIGAIL – (maliciosa) – Vai ver que ele atrasou fazendo outras coisas com a Sueli.

EUNICE – Mas até agora?

TETEO – Não é possível. Eles saíram daqui à meia-noite.

GUIBERTO – Quem sabe se a gente telefonasse para lá...

EUNICE – Isso podia estragar os planos do senhor Pé.

TETEO – Nessa hora a bicha já deve estar por dentro de tudo, vamos telefonar sim. (vai ao telefone)

ZÉLIA – (procurando na agenda) – Aqui está o número.

TETEO – (disca)... (tempo) – Ninguém atende... (tempo) – Ninguém atende... (tempo)... Alô... alô... quem está falando?... Glorinha... estava dormindo... desculpa viu, aqui é do velório do Abreu. Olha eu queria falar com o Pé... isto é, com o Orlando... ele foi pra aí com o Edgard isto é, com a Sueli, chama ele prá mim... (tempo – vai ficando branco na medida em que ouve o que Glorinha fala, de vez em quando diz...) sim... sim... (todos estão nervosíssimos)

ZÉLIA – O que foi, fala...

EUNICE – O que aconteceu?

ABIGAIL – Cadê o cartão?

GUIBERTO – Ele não achou?

TETEO – (deixa o telefone cair das mãos, está boquiaberto) – O Pé...

ZÉLIA – (pela primeira vez histérica) – Diga... onde está o seu amigo?... Fala anda, eu quero o

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meu dinheiro.

TETEO – Ela contou que eles chegaram lá e se trancaram no quarto, ficaram uma hora dentro do quarto... depois saíram felizes e carregando duas malas com as coisas da bicha... disseram para a Glorinha que iam viajar pra comemorar uma coisas... que ela não sabe o que é.

ZÉLIA – (possessa) – Eu sei... vão gastar o meu dinheiro.

TETEO – (acordando) – (com ódio) – Vou ter que passar o resto da minha vida num esgoto. Vou morrer atolado na merda.

GUIBERTO – (indo p/ a cabeceira do caixão) – E eu que pensei que ele (mostra Abreu) estava me ajudando, rezei para seu espírito ter paz a noite inteira.

EUNICE – (indo p/ o caixão) – Ô Abreu, porque você fez isso comigo? Agora ele não vai precisar cumprir o que prometeu, não vai querer casar comigo.

ABIGAIL – (indo p/ o caixão) – É por isso que eu não gosto de bicha... se eles não sujam na entrada, na saída é certo.

TETEO – (chegando perto do caixão) – Cara, eu te trouxe até coroa de flores, fiz discurso, prometi casar com sua irmã e no fim você apronta dessas... pega o meu dinheiro e dá pra uma bicha qualquer.

EUNICE – (p/ Teteo) – Pior foi seu amigo. Nós depositamos a maior confiança nele, ele disse que era honesto e nós, que somos uns bobos, acreditamos.

TETEO – (defendendo) – Amigo não, senhorita... colega de repartição... aliás, ex-colega... lá ele não volta nunca mais.

ZÉLIA – (p/ Abreu e pensando em Pe) – Ele conseguiu enganar a todos nós... todos nós... Abreu eu nunca pensei... eu nunca pensei que você era...

(tempo, todos suspiram... estão tristes – começam a sonhar)

EUNICE – (sonhadora) – O que será que eles vão fazer com o dinheiro?

ABIGAIL – Vão passear... conhecer o mundo todo.

TETEO – O Pé vai fazer cada farra... (triste) que puta inveja...

GUIBERTO – (sonhador) – Vão viver como gente fina... gente de classe.

ZÉLIA – (sonhadora) – Vão conhecer Paris... eu sempre sonhei com Paris.

(a luz vai caindo pouco a pouco, eles continuam falando até o black-out final, as últimas falas encavaladas, cada um voltou para o seu mundo, não há mais comunicação entre eles)

EUNICE – Eu só queria ter um apartamento meu, usar roupas boas e não ter que trabalhar nunca mais.

ABIGAIL – Eu queria viajar de avião... pelo menos uma vez na vida eu queria viajar de avião...

GUIBERTO – Eu gostaria de ser respeitado, poder entrar em qualquer lugar e ser respeitado.

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TETEO – Eu queria tanta coisa... (suspira) tanta coisa...

ZÉLIA – Uma vida decente, sem dívidas...

ABIGAIL – Uma televisão a cores...

EUNICE – Casar... ter filhos...

TETEO – Andar limpo o dia todo, nunca mias entrar num esgoto.

ZÉLIA – (suspira fundo)

FIM

NOITE - HAROLD PINTER

NOITE TEATRO DO ABSURDO de Harold PinterDistribuído pelo site http://www.oficinadeteatro.com/Para uso comercial, entre em contato com o autor ou detentor dos direitos autorais.

HOMEMESTOU FALANDO DAQUELA VEZ NO RIO.

MULHERQUE VEZ?

HOMEMA PRIMEIRA VEZ. NA PONTE. O COMEÇO, NA PONTE.

MULHERNÃO CONSIGO ME LEMBRAR.

HOMEMNA PONTE. NÓS PARAMOS E OLHAMOS PRO RIO. ERA NOITE. TINHA LUZES NA MARGEM. A GENTE ESTAVA SOZINHO. EU PUS MINHA MÃO NA TUA CINTURA. VOCÊ SE LEMBRA? PUS MINHA MÃO POR BAIXO DE TEU CASACO.

MULHERERA INVERNO?

HOMEMCLARO QUE ERA INVERNO. FOI QUANDO A GENTE SE ENCONTROU. FOI NOSSO PRIMEIRO PASSEIO. DESTE PASSEIO VOCÊ SE LEMBRA.

MULHEREU ME LEMBRO DO PASSEIO. EU ME LEMBRO DO PASSEIO COM VOCÊ.

HOMEMA PRIMEIRA VEZ? NOSSO PRIMEIRO PASSEIO?

MULHER

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SIM, É CLARO. EU ME LEMBRO DELE. (PAUSA) NÓS CAMINHAMOS PELO CAMPO. NÓS ATRAVESSAMOS ALGUMAS CERCAS, NÓS CHEGAMOS NUM CANTO E FICAMOS JUNTO DE UMA CERCA.

HOMEMNÃO. FOI NA PONTE QUE NÓS PARAMOS.

(PAUSA)

MULHERENTÃO FOI OUTRA PESSOA.

HOMEMQUE BESTEIRA.

MULHERFOI OUTRA MULHER.

HOMEMFAZ MUITO TEMPO. VOCÊ SE ESQUECEU. (PAUSA) EU ME LEMBRO DA LUZ SOBRE A ÁGUA.

MULHERVOCÊ ESTAVA JUNTO DA CERCA E SEGUROU MEU ROSTO COM SUAS MÃOS. VOCÊ FOI MUITO GENTIL. MUITO ATENCIOSO. VOCÊ ME ACARICIOU. SEUS OLHOS PROCURARAM MEU ROSTO. EU ESTAVA QUERENDO SABER QUEM ERA VOCÊ. EU ESTAVA QUERENDO SABER O QUE VOCÊ IA FAZER.

HOMEMA GENTE SE ENCONTROU NUMA FESTA. VOCÊ NÃO CONCORDA COM ISTO?

MULHERQUE É QUE FOI ISSO?

HOMEMISSO O QUE?

MULHEREU PENSEI TER OUVIDO UMA CRIANÇA CHORANDO.

HOMEMNÃO TEM BARULHO NENHUM.

MULHEREU PENSEI TER OUVIDO UMA CRIANÇA CHORANDO, ACORDANDO.

HOMEMA CASA ESTÁ EM SILÊNCIO. (PAUSA) É MUITO TARDE. AINDA ESTAMOS SENTADOS AQUI. A GENTE JÁ DEVIA ESTAR NA CAMA. TENHO QUE ACORDAR CEDO AMANHÃ. TENHO MUITAS COISAS PARA FAZER. POR QUE VOCÊ QUER DISCUTIR?

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MULHEREU NÃO QUERO DISCUTIR. EU NÃO ESTOU DISCUTINDO. EU QUERO É IR PARA A CAMA.TAMBÉM TENHO COISAS PARA FAZER. TENHO QUE ACORDAR CEDO AMANHÃ.

(PAUSA)

HOMEMA FESTA FOI NA CASA DE JOHN. VOCÊ CONHECIA ELE. EU SÓ CONHECIA ELE DE VISTA. EU CONHECIA MESMO É A MULHER DELE. FOI LÁ QUE EU ENCONTREI VOCÊ. VOCÊ ESTAVA EM PÉ JUNTO A JANELA. EU SORRI PRA VOCÊ E PARA MINHA SURPRESA VOCÊ TAMBÉM SORRIU PARA MIM. VOCÊ GOSTOU DE MIM. EU FIQUEI ADMIRADO. VOCÊ ME ACHOU ATRAENTE. MAIS TARDE VOCÊ ME DISSE ISTO. VOCÊ GOSTOU DOS MEUS OLHOS.

MULHERE VOCÊ GOSTOU DOS MEUS. (PAUSA) VOCÊ PEGOU MINHA MÃO. ME PERGUNTOU QUEM ERA E O QUE FAZIA. E SE EU ESTAVA PERCEBENDO QUE VOCÊ ESTAVA SEGURANDO MINHA MÃO, QUE SEUS DEDOS ESTAVAM APERTANDO OS MEUS E QUE SEUS DEDOS ESTAVAM ENTRE OS MEUS.

HOMEMNÃO. A GENTE PAROU NA PONTE. EU ESTAVA ATRÁS DE VOCÊ. E EU PUS MINHA MÃO POR BAIXO DO TEU CASACO. NA TUA CINTURA. VOCÊ SENTIU MINHA MÃO EM VOCÊ.

(PAUSA)

MULHERNÓS TINHAMOS ESTADO NUMA FESTA. NA CASA DE JOHN. VOCÊ JÁ CONHECIA A MULHER DELE. ELA TE OLHOU COM MUITO INTERESSE.DANDO A ENTENDER QUE TE QUERIA. ELA PARECIA GOSTAR MUITO DE VOCÊ. EU NÃO TE CONHECIA. NUNCA TINHA TE VISTO. A CASA DELES ERA MARAVILHOSA. NA MARGEM DO RIO. EU FUI APANHAR MEU CASACO E VOCÊ FICOU ME ESPERANDO. VOCÊ SE OFERECEU PARA ACOMPANHAR. EU ACHEI MUITO SIMPÁTICO, MUITO GENTIL, MUITO EDUCADO, MUITO ATENCIOSO. EU PUS MEU CASACO E OLHEI PRA JANELA, EU SABIA QUE VOCÊ ESTAVA ME ESPERANDO. EU OLHEI PRO JARDIM ATÉ O RIO E VI AS LUZES SOBRE A ÁGUA. ENTÃO EU FUI ATÉ VOCÊ E NÓS PASSEAMOS PELO CAMPO, ATRAVESSAMOS ALGUMAS CERCAS. DEVIA SER UMA ESPÉCIE DE PARQUE. DEPOIS PEGAMOS O TEU CARRO. E DEMOS ALGUMAS VOLTAS.

(PAUSA)

HOMEMEU TOQUEI TEUS SEIOS.

MULHERONDE?

HOMEMNA PONTE. EU SEGUREI TEUS SEIOS.

MULHERTEM CERTEZA?

HOMEM

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EU ESTAVA ATRÁS DE VOCÊ.

MULHEREU FIQUEI ME PERGUNTANDO SE VOCÊ IA FAZER, SE VOCÊ QUERIA MESMO, SE VOCÊ IA FAZER.

HOMEMSIM.

MULHEREU FIQUEI ME PERGUNTANDO COMO VOCÊ IA FAZER ISTO, SE VOCÊ TINHA VONTADE SUFICIENTE.

HOMEMEU PUS MINHA MÃO POR DEBAIXO DA TUA BLUSA. SOLTEI TEU SOUTIEN. E APERTEI TEUS SEIOS.

MULHERTALVEZ UMA OUTRA NOITE. OU UMA OUTRA MULHER.

HOMEMVOCÊ NÃO SE LEMBRA DE MEUS DEDOS NO TEU CORPO?

MULHERELES ESTAVAM NAS TUAS MÃOS? MEUS SEIOS? NAS TUAS MÃOS?

HOMEMVOCÊ NÃO SE LEMBRA DAS MINHAS MÃOS NO TEU CORPO?

(PAUSA)

MULHERVOCÊ ESTAVA ATRÁS DE MIM?

HOMEMSIM.

MULHERMAS EU ESTAVA ENCOSTADA NA CERCA. EU SENTI A CERCA NAS MINHAS COSTAS. VOCÊ ESTAVA DE FRENTE PRA MIM. EU ESTAVA OLHANDO OS TEUS OLHOS. MINHA BLUSA ESTAVA FECHADA. ESTAVA FRIO.

HOMEMEU DESABOTOEI TUA BLUSA.

MULHERERA MUITO TARDE. ESTAVA MEIO FRIO.

HOMEME DEPOIS A GENTE DEIXOU A PONTE. E FOMOS ANDANDO PELA MARGEM E CHEGAMOS NUM MONTE DE LIXO.

MULHERE VOCÊ ME POSSUIU, E VOCÊ DISSE QUE ESTAVA APAIXONADO POR MIM, E VOCÊ

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DISSE QUE IA TOMAR CONTA DE MIM PARA SEMPRE, E VOCÊ DISSE QUE MINHA VOZ, MEUS OLHOS, MINHAS COXAS, MEUS SEIOS ERAM MARAVILHOSOS E QUE VOCÊ IA ME ADORAR SEMPRE.

HOMEMSIM. EU DISSE.

MULHERE VOCÊ VAI ME ADORAR SEMPRE.

HOMEMSIM. EU VOU.

MULHERE ENTÃO NÓS TIVEMOS FILHOS E ESTAMOS SENTADOS AQUI, CONVERSANDO E VOCÊ SE LEMBROU DE MULHERES NAS PONTES E NAS MARGENS E NOS MONTES DE LIXO.

HOMEME VOCÊ SE LEMBROU DE SUA BUNDA NA CERCA E HOMENS SEGURANDO SUAS MÃOS E HOMENS OLHANDO NOS SEUS OLHOS.

MULHERE FALANDO PRA MIM SUAVEMENTE.

HOMEME TUA VOZ SUAVE. FALANDO PRA ELES SUAVEMENTE. NA NOITE.

MULHERE ELES DIZIAM: EU VOU TE ADORAR SEMPRE.

HOMEMDIZENDO: EU VOU TE ADORAR SEMPRE.

FIM