The Bigamist

Ida Lupino era atriz razoavelmente famosa em sua poca, estrelando em sua prolfica carreira quase 60 filmes, com outro tanto de aparies na televiso. Porm, ela no fez apenas isso, ou melhor, fez muito mais que isso. Lupino tambm produziu, escreveu, dirigiu e atuou em filmes prprios; era uma mulher pioneira, a nica diretora em Hollywood na sua poca. E os temas que tratava no eram fceis: estupro, gravidez fora do casamento, doenas sem cura, sem falar de um punhado de belos noirs que a fizeram um pouco menos desconhecida. Porque, afinal, incompreensvel como uma artista deste calibre pode ter sua obra praticamente esquecida atualmente, mesmo em circuitos cinfilos. Se h algum que merece um segundo olhar, certamente Ida Lupino.

Dentro da filmografia de Lupino, uma obra se destaca: O Bigamista, de 1953. Com um tema que suscita polmica at hoje, o caminho mais fcil e natural para o filme era a vulgarizao da situao para uma possvel moralizao final da histria, seguindo os padres comportamentais da poca. Porm, Ida Lupino conseguiu construir um filme extremamente sensvel, belo, comovente, delicado em retratar o complicado tringulo amoroso e lento em julgar em termos maquinestas as aes dos personagens.

Harry e Eve tm um casamento feliz, e agora desejam adotar uma criana para coroar o relacionamento. Para tal, precisaro ter suas vidas investigadas pelo Sr. Jordan, o agente da adoo. Ao seguir Harry em So Francisco, onde este sempre viaja a trabalho, Jordan descobre que ele mantm uma segunda famlia em segredo, sendo casado com Phyllis e com ela tendo um filho. A partir da, Harry comea a explicar sua histria ao Sr. Jordan, contando todas as coincidncias da vida que lhe fizeram se encontrar na sua situao atual.

Harry sempre se mantivera fiel a Eve. At que, numa viagem de trabalho, se sentiu solitrio e decidiu entrar num nibus turstico; l conheceu Phyllis, por quem se sentiu imediatamente atrado, e se encontraram no restaurante onde ela trabalhava. Sentindo-se culpado, tenta contar a verdade a Eve, mas no consegue, e acaba iniciando um relacionamento com Phyllis algum tempo depois. Foi assim mantendo a vida dupla, se equilibrando na corda bamba; quando decidia sair da situao, as circunstncias do momento o faziam adiar a ideia, seja com a gravidez de Phyllis, seja com a morte do pai de Eve. E dessa maneira, quase sem querer, se viu envolvido por tantos pequenos acontecimentos que agora construam um cenrio de escndalo iminente, amando duas mulheres e a elas (i)legalmente ligado, e em vias de ser denunciado pelo agente de adoo.

A beleza do filme est na maneira que Lupino constri cada situao. Estamos lidando com a histria de um homem numa prtica no s judicialmente proibida como socialmente condenada. Mas, a cada desenlace do roteiro, percebe-se que Harry no faz nada de maneira deliberada para prejudicar e/ou ferir as pessoas que ama. O seu encontro com Phyllis no foi o resultado de uma busca proposital por um casinho, e sim o resultado das circunstncias do momento; ele se sentia sozinho, ela estava ao seu lado, e assim as coisas convergiram para uma possibilidade de envolvimento romntico. Ida Lupino desloca moralmente a ao de seu filme do terreno da promiscuidade (ou, em bom portugus, da safadeza) para gerar reflexo sobre o lugar que o acaso e a escolha tem na vida das pessoas. Porque, pra bem ou pra mal, essas coisas acontecem, justamente pela imprevisibilidade da vida.

E interessante a maneira como Harry descrito pelo juiz em seu julgamento, aps se entregar polcia. Ele visto como um homem que amava ambas as mulheres, e que era decente apesar disso. Ida Lupino no faz de Eve a esposa dedicada e de Phyllis a amante destruidora de lares; muito menos faz da primeira a mulher ftil e insensvel ao marido e a ltima a garota pronta a dar a ele tudo que no encontrava em casa. Ambas so mulheres completas, sem funes especficas para suprir as necessidades do macho em disputa. Ele as ama por quem elas so e por inteiro, to importantes que se faziam necessrias. O amor que Harry dedicava a suas mulheres deixa, portanto, de ser imoral em sua essncia; e o problema, ainda utilizando a fala do juiz, vai para a questo da moralidade do comportamento. Quando um homem, mesmo com as melhores intenes, viola as leis morais de nossa sociedade no precisamos das leis criadas pelo homem para puni-lo, diz ele. O amor pode ser purssimo, mas a forma em que ele se apresenta no s molda o aceitvel como tambm transforma os padres no qual ele deve ser julgado. Ele no pode s ser bom, como tambm deve parecer bom, seno no correto.

No h, nesse filme, um personagem sequer que seja estereotipado. Por mais que se tora para que Harry escolha uma ou outra mulher no final do filme, impossvel negar os mritos da outra opo, j que a fora dos personagens construda nos prprios caminhos que percorrem no filme, e como eles se cruzam e se afetam mutuamente, no na oposio direta ao outro. Tudo isso culpa de Ida Lupino, com sua sensibilidade magistral, quase que se recusando a tomar partido, tratando carinhosa e humanamente cada personagem retratado. Como atriz, tambm no decepciona; imprime a emoo e a vulnerabilidade necessrias ao personagem, e junto com Edmond O'Brien e Joan Fontaine, forma um tringulo amoroso crvel, que convida o espectador empatia e solidariedade com o destino deles. Ida Lupino, assim, revela suas qualidades atravs de uma obra lindamente executada, colocando em pauta questes que so tabu at hoje, sem apelar para sadas fceis ou simplificadoras. Imperdvel!