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FACULDADES INTEGRADAS METROPOLITANAS DE CAMPINAS CURSO DE DIREITO Thiago Adan Bonatti O USO RITUALÍSTICO DE SUBSTÂNCIAS PSICOTRÓPICAS: aspectos sócio- jurídicos.

Thiago TCC Final

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FACULDADES INTEGRADAS METROPOLITANAS DE CAMPINAS CURSO DE DIREITO

Thiago Adan Bonatti

O USO RITUALÍSTICO DE SUBSTÂNCIAS PSICOTRÓPICAS: aspectos sócio-jurídicos.

Campinas 2011

Page 2: Thiago TCC Final

FACULDADES INTEGRADAS METROPOLITANAS DE CAMPINASCURSO DE DIREITO

Thiago Adan Bonatti

O USO RITUALÍSTICO DE SUBSTÂNCIAS PSICOTRÓPICAS: aspectos sócio-jurídicos.

Monografia apresentada às Faculdades Integradas Metropolitanas de Campinas (Metrocamp) como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Alexandre Magalhães Seixas

Campinas 2011

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FACULDADES INTEGRADAS METROPOLITANAS DE CAMPINASCURSO DE DIREITO

Thiago Adan Bonatti

O USO RITUALÍSTICO DE SUBSTÂNCIAS PSICOTRÓPICAS: aspectos sócio-jurídicos.

Monografia apresentada às Faculdades Integradas Metropolitanas de Campinas (Metrocamp) como requisito parcial para obtenção do título de Bacharel em Direito.

Aprovado em: ___/___/___

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________________________Prof.

_______________________________________________________________Prof.

Page 4: Thiago TCC Final

Dedico este trabalho:Aos meus pais, Nícia e Ivanil;

Aos meus irmãos, Daniel e Flávio;À minha amiga e parceira, Elise.

Page 5: Thiago TCC Final

Meus sinceros agradecimentos...

...à minha família, pela ajuda e apoio prestados;

...ao professor Alexandre Magalhães Seixas, pelo seu

conhecimento e disposição em me ajudar;

...aos meus colegas, pelas ajudas e pelas amizades;

...agradeço por fim a todos que de alguma forma colaboraram

para a realização deste estudo.

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Dizer que um crente é mais feliz do que um cético é como dizer que um bêbado é mais feliz que um sóbrio.

George Bernard Shaw

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RESUMO

As práticas religiosas que fazem uso de substâncias capazes de alterar o estado da mente datam de milênios. Com a repressão, por parte do Estado, às substâncias psicotrópicas para o uso recreativo, passou a existir um problema jurídico-social, com repercussões na vida de muitos praticantes de cultos religiosos, cuja prática foi embaraçada pelas ações do Estado. Este trabalho aborda o uso de substâncias psicotrópicas em rituais religiosos no Brasil, utilizando-se de material doutrinário para compreender quais os motivos históricos que levaram a sociedade brasileira a aceitar, ou não, determinadas práticas religiosas que fazem uso de substâncias psicotrópicas. Analisa a relação hierárquica entre as garantias constitucionais referentes às práticas religiosas e as normas infraconstitucionais que cerceiam o livre exercício de cultos religiosos. Utiliza como base de estudo a relação jurídica advinda da liberação do uso da ayahuasca em rituais religiosos no Brasil. Além disso, faz uma breve análise sociológica sobre o que define religião e o que garante que uma prática seja religiosa.

PALAVRAS-CHAVE:

Liberdade religiosa. Ayahuasca. Substâncias psicotrópicas.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 9

2 HISTÓRIA DO USO RITUALÍSTICO DE SUBSTÂNCIAS PSICOTRÓPICAS 10

2.1 Breve história mundial 10

2.2 Breve história no Brasil 14

3 SUBSTÂNCIAS PSICOTRÓPICAS 16

3.1 Definição e categorias 16

3.2 Ayahuasca: definição, composição e efeitos 17

4 PRÁTICAS RELIGIOSAS X CONSTITUIÇÃO FEDERAL E NORMAS INFRACONSTITUCIONAIS

21

4.1 Definição de práticas religiosas 21

4.2 Constituição Federal e normas infraconstitucionais 23

4.3 Liberdade religiosa 26

5 GARANTIA DO USO DA AYAHUASCA 30

6 CONCLUSÃO 35

7 REFERÊNCIAS 37

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9

1 INTRODUÇÃO

A cada ano, surgem no Brasil novos problemas em relação à questão da livre

prática de cultos religiosos, da proteção aos locais de culto e das suas liturgias. Com

relação às liturgias, celebrações religiosas pré-definidas que envolvem substâncias

capazes de alterar o estado da mente, esses problemas surgem de forma pública e se

confundem com o consumo dessas substâncias para fins recreativos.

Ao analisar essa questão depara-se com problemas de ordem etimológica, pois a

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 não definiu de forma clara o

que é religião, tampouco o que são práticas religiosas. Entretanto, definiu para esses

termos, em seu artigo 5°, inciso VI, as garantias que permitem o seu livre exercício.

Este trabalho analisa os motivos pelos quais algumas religiões têm sua prática

religiosa restringida aplicando-se normas infraconstitucionais, tais como a Lei n°

11.343/06 (Lei dos Tóxicos), sendo que algumas outras práticas religiosas que usam

substâncias com princípios ativos tiveram suas atividades asseguradas.

A análise histórica da restrição ao uso de substâncias capazes de alterar o

estado da mente, classificadas como substâncias psicotrópicas, também é abordada.

Ao analisar o caso da liberação do uso da ayahuasca, nos rituais religiosos do

Santo Daime, estudam-se as razões pelas quais foi autorizado o consumo; como se dá

esse consumo; como se produz a ayahuasca; quais os efeitos dessa liberação e como

isso poderia ser aplicado aos demais casos de uso de substâncias psicotrópicas em

outras práticas religiosas.

Por fim, busca-se analisar se as restrições ao uso de substâncias psicotrópicas

são de caráter sociológico, médico ou jurídico, e, ainda, se estas restrições tiveram

iniciativa no próprio Brasil ou, de alguma forma foram incorporadas pelo direito

brasileiro por influência externa.

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10

2 HISTÓRIA DO USO RITUALÍSTICO DE SUBSTÂNCIAS PSICOTRÓPICAS

Neste capítulo é abordado, de forma sintética, a história, no mundo e no Brasil,

do uso de substâncias psicotrópicas para fins ritualísticos.

São analisados casos de substâncias psicotrópicas que foram autorizadas ou

restringidas nas práticas religiosas.

É analisada a história, no Brasil, da liberação da substância psicotrópica

ayahuasca para uso ritualístico..

2.1 Breve história mundial

A análise do uso de substâncias psicoativas de forma ritualística é feita de forma

breve e somente sobre as substâncias mais difundidas, pois uma abordagem exaustiva

do tema seria extensa demais para o que se propõe neste trabalho.

O uso ritualístico de substâncias psicotrópicas remonta às próprias religiões. Ao

analisar o surgimento das religiões, observa-se que em torno de 5000 a.C. os sumérios

deixaram registrado um ideograma no qual o ópio constava como representante da

alegria e do regozijo.1 A tradução do nome dado por eles à papoula pode ser traduzido

como “flor do prazer”.

O vestígio mais antigo do ópio no ocidente é de 4200 a.C., encontrado na gruta

funerária de Albuñol, perto de Granada, na Espanha.2

Hipócrates atribuiu propriedades medicinais à papoula, assim como Aristóteles;

eles indicavam-na como calmante e sonífero, além de reconhecer-lhe propriedades

mágicas e religiosas.

A história mais recente do ópio se deu a partir do descobrimento, efetuado pelos

portugueses, das novas rotas comerciais abertas a partir da Índia, mas foram os

ingleses que se apropriaram do comércio do ópio em nível mundial, após garantirem o

controle na principal região produtora de ópio na Índia.

1 ANGEL, P., Richard, D., e Valleur, M. Toxicomanias. Lisboa, 2002.2 SNEADER, Walter, Drug Discovery: A History, 2005. p. 23.

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11

O déficit comercial da East India Company fez com que a produção de ópio na

Índia fosse escoada para a China, sendo incentivado pelo consumo religioso da

substância.

O monopólio anglo-indiano de produção do ópio a partir de 1775 fez com que a

China fosse inundada pela produção excessiva dos derivados da papoula e mesmo

com a interdição do consumo, em 1800, este não cessou. Mesmo o apelo do Imperador

Lin-Tso-siu à Rainha Victória para que a Inglaterra terminasse com o contrabando, não

foi capaz de evitar as chamadas “guerras do ópio”. 3 A Câmara dos Comuns rejeitou o

apelo, pois não quis abandonar uma fonte de rendimentos tão importante como era o

monopólio do ópio da Companhia das Índias.

Em 1839 a China optou pela proibição total do ópio e pela destruição das

mercadorias contrabandeadas. Assim, apreendeu em Cantão cerca de vinte mil caixas

de ópio, equivalentes a 1400 toneladas, lançando-as ao mar.

A retaliação da frota inglesa foi imediata e a sanção à China foi imposta por meio

do Tratado de Nanquim: uma indenização aos contrabandistas, a abertura de cinco

portos ao comércio internacional, e a concessão de Hong-Kong.

Em 1859 a China recebeu outra sanção, após apreender a fragata Arrow, sendo

a punição desta vez aplicada não somente pelos ingleses, mas também pelos

franceses, os quais impuseram, por meio do Tratado de Tien-Tsin, a legalização do

comércio de ópio para fins medicinais.

A China encontrou-se em estado de calamidade, em função do ópio, que atingiu

um número estimado de usuários de 40 milhões, para uma população de cerca de 430

milhões, e decretou, em 1906, a proibição da cultura e do consumo da papoula.

A cannabis sativa, cujos primeiros registros a identificam como originária das

estepes na Ásia Central, região atual do Cazaquistão, teve suas primeiras anotações de

uso como “planta sagrada” feitas pelos chineses por volta de 4000 a.C..

O Imperador chinês Chen-nong a reconheceu como detentora de propriedades

psicoativas, designando-a como sedativo para o tratamento de alienação mental em

sua farmacopéia.

3 CABALLERO, Francis, 1989, Droit de la Drogue, Dalloz, p. 37 e segs.

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12

Os poderes do cânhamo foram reconhecidos e elogiados num dos quatro livros

sagrados dos indo-arianos, em 1300 a.C., e ainda um papiro egípcio do século XVI a.C.

cita a planta como droga sagrada dos faraós.4

O cânhamo surgiu com intensidade na Europa nos séculos I e II, quando os

romanos passaram a utilizá-lo para os cordames de seus navios.

Para o hinduísmo, a cannabis é tida como erva sagrada, sendo o expediente de

mediação com os deuses, tornando-se indissociável da meditação da casta sacerdotal

dos brâmanes.

Para o budismo, a erva é tida como caminho para a iluminação, sendo que o

próprio Buda, durante as sete etapas do percurso de sua iluminação, viveu apenas com

um grão de cânhamo por dia.

Mesmo o islamismo, cuja doutrina proíbe o uso de entorpecentes da mente e do

corpo, utilizou o cânhamo a partir do século VII, dando-lhe o nome de haxixe, “erva”, em

árabe, regalia dada aos guerreiros antes e após os combates. Esses combatentes eram

chamados de haschischans, origem da palavra assassino.

A cannabis começa a ser difundida na África em meados do século XII, advinda

do Egito, onde seu uso atinge todas as classes sociais. Chega ao sul da África no fim

do século XV sob o nome de dagga.

Também atinge o continente americano por meio dos escravos de Angola

trazidos para o Brasil; contudo, é na Jamaica que sua cultura é difundida pelos ingleses

para a obtenção de fibras e recebe ali o nome de ganja, sendo que daquele local parte

para a região norte das Américas, chegando ao México e recebendo o nome de

marijuana.5

Na América do Norte é levada do México para os EUA pelos trabalhadores

rurais, que a utilizam de forma recreativa e ritualística. É por este motivo que começa a

ser restringida e tem sua primeira limitação decretada pelo governo americano em

1937.

A planta da coca (Erythroxylum coca) é uma das mais antigas utilizadas

ritualisticamente, desde 5000 a.C., sendo de uso não só ritualístico, mas social e laboral

nos países andinos, especialmente na Bolívia e no Peru.

4 GANZENMÜLLER, C. Drogas, sustancias psicotrópicas y estupefacientes, Barcelona, 1997, p. 175 SNEADER, Walter, Drug Discovery: A History, 2005 p. 51.

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O fervor religioso do clero espanhol, no inicio da colonização, no século XVI,

tentou erradicar o consumo da planta. Entretanto, o valor econômico que ela

representava inibiu este movimento do clero, sendo que a própria Coroa Espanhola

cobrou tributos sobre a coca, assim como a Igreja arrecadou dízimos de sua produção.

Em 1860 Niemen isolou o alcalóide cocaína, extraído da folha da coca, e difundiu

o seu uso para as mais remotas regiões do planeta, descaracterizando o uso religioso

dessa planta.6

Alguns países da América Latina que têm como tradicional o uso da coca

solicitaram da Organização Mundial de Saúde (OMS) um parecer sobre o uso da planta

após a Convenção Única sobre os Estupefacientes de 1961 ter proibido seu uso. Após

dois anos de deliberação do grupo formado para o estudo, composto por 40 cientistas

de todo o mundo, concluiu-se que o uso da coca não provocava na saúde física ou

mental danos dignos de sua proibição.

A Igreja Nativo Americana utiliza de forma sacramental o peyote, um cacto

originário da América do Norte, utilizado pelos huichol e outras tribos indígenas. Seu

uso foi documentado entre os astecas a cerca de 400 anos. A religião surgiu como

fenômeno organizado em meados de 1880, em Oklahoma, pelas tribos dos comanches

e kiowas, tendo seu fundador, Quanah Parker, um chefe da tribo Comanche, utilizado-a

para curar ferimentos e doenças graves.

Em 1911, o Congresso americano tentou proibir o uso do peyote, falhando nesta

tarefa por coibir a liberdade religiosa das tribos nativas da América do Norte.

Nas mais diversas correntes do cristianismo, o uso da bebida alcoólica, mais

precisamente do vinho, é sacramental. O vinho é o sangue de Cristo.

Sob esta égide, o sangue de Cristo deve ser utilizado de forma ritualística. O

vinho é um psicoativo, assim como todas as bebidas alcoólicas. Somente com a

chegada do protestantismo na América do Norte – e com a difusão da ideia de que o

consumo de bebidas alcoólicas era um pecado – foi que começaram as manifestações

para a proibição desse consumo.

Os Estados Unidos da América, em 1919, por meio da emenda constitucional 18,

proibiram o consumo, a produção e o transporte de bebidas alcoólicas, sendo que a

6 SNEADER, Walter, Drug Discovery: A History, 2005 p. 63

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crescente marginalização destas bebidas aumentou o poder do crime organizado e foi a

primeira tentativa frustrada de coibir uma substância. Tanto o foi que, em 1933, por

meio de outra emenda constitucional, a de número 21, revogou aquela de número 18 e

liberou novamente o consumo de bebidas alcoólicas. Essa foi a única emenda

constitucional dos EUA a ter sido revogada até hoje.

2.2 Breve história no Brasil

No início de 1930, surgiu no Brasil os primeiros sincretismos religiosos,

misturando o cristianismo com as tradições caboclas e xamânicas da bebida

sacramental ayahuasca.7

Existem três correntes doutrinárias que fazem uso da ayahuasca no Brasil: o

Santo Daime, a Barquinha e a União do Vegetal.

O Santo Daime foi a primeira das correntes que fez uso da ayahuasca no

território nacional, sendo fundada por Raimundo Irineu Serra, no Acre. Em seguida

surgiu a corrente da Barquinha, em 1945, também no Acre, fundada por Daniel Pereira

de Mattos. Finalmente surgiu, em 1961, a terceira corrente, a União do Vegetal,

fundada por José Gabriel da Costa.8

Em 1980 a Escola Paulista de Medicina classificou a ayahuasca como bebida

entorpecente e nociva, fazendo com que o Ministério da Saúde a considerasse

proscrita. Em 1986 e 1992, pareceres da própria Escola de Medicina foram favoráveis à

retirada da Ayahuasca da lista de substâncias proibidas, por não encontrarem indícios

de prejuízo à saúde, física ou mental.

A bebida possui, em sua essência o DMT, N, N-dimetil-triptamina, considerado o

psicotrópico natural mais forte conhecido pelo homem.

É uma bebida composta por um cipó e por uma folha de um arbusto, sendo um

chá, pois passa por um processo de fermentação. Na língua quíchua, ayahuasca

significa “vinho da alma”.9

7 MIKOSZ, José E., Substâncias Psicoativas e Religião, 2006, p. 10.8 GOULART, Sandra, Contrastes e Continuidades em uma Tradição Amazônica: as religiões da Ayahuasca. Tese de Doutorado pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP. 9 MIKOSZ, José E., Substâncias Psicoativas e Religião, 2006, p.11.

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A ayahuasca causa efeitos psicomiméticos, ou seja, causa efeitos que imitam

surtos psicóticos. Isto significa que os efeitos causados geram “alucinações”, visões

distorcidas da realidade. São visualizações descritas como semelhantes às causadas

pelo LSD10, porém não há qualquer indício de que o uso possa causar psicoses, pânico

ou paranóias, salvo quando estes já tiverem sido anteriormente manifestados pela

pessoa que ingerir a ayahuasca.

O alcalóide DMT é uma substância endógena, isto é, também produzida dentro

do corpo humano, secretado pela glândula pineal. Todo organismo vivo secreta DMT,

sendo este alcalóide atualmente muito estudado, em razão do controle de distúrbios

mentais.

O uso ritualístico de substâncias psicotrópicas no Brasil está intimamente ligado

às culturas indígenas, sendo que o uso de rapés, um pó advindo de plantas, é muito

difundido entre as mais diversas tribos do Brasil.

Existe também o uso de substâncias psicotrópicas, encontradas em plantas

nativas do Brasil, que não foram ainda definidas como ritualísticas.; entretanto, seu

consumo é difundido e as práticas a ela aderentes não sofrem qualquer tipo de objeção.

Exemplos disso são a Salvia Divinorum, que é fumada, mascada, ou ainda tem extraído

seu princípio ativo, que é usado de forma sublingual; e a Argyreia nervosa, conhecida

como Trepadeira-Elefante, que tem em suas sementes um alcalóide, LSA, princípio

ativo que age no corpo humano tal como o LSD.

Pode-se inferir portanto, que o uso ritualístico de substâncias psicotrópicas está

intimamente ligado à vontade humana de descobrir novas experiências, sem,

necessariamente observar as restrições legais ao seu uso.

10 MIKOSZ, José E., Substâncias Psicoativas e Religião, 2006, p.11.

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3 SUBSTÂNCIAS PSICOTRÓPICAS E A AYAHUASCA

Neste capítulo são abordadas as substâncias psicotrópicas, suas definições e

categorias, assim como definição, composição e efeitos da bebida sacramental

Ayahuasca.

3.1 Substâncias Psicotrópicas: definição e categorias

Ao analisar as definições do que constitui uma substância psicotrópica, depara-

se com uma inexatidão de termos jurídicos e médicos.

Para uma distinção dos termos analisa-se não somente os critérios jurídico e

médico, mas a conotação que os vocábulos adquiriram ao longo dos tempos.

A Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961, primeira convenção para o

controle e combate ao tráfico de substâncias ilícitas, definiu em seus termos o

entorpecente, sendo este “toda substância natural ou sintética que figure nas listas I e

II”11.

Já a Convenção de Viena de 1971 foi designada como sendo Convenção sobre

Substancias Psicotrópicas12, utilizando para o efeito do decreto que promulgou a

convenção supracitada a definição de substancia psicotrópica como sendo “qualquer

substancia, natural ou sintética, ou qualquer material natural relacionado nas listas I,II,III

ou IV”13.

Ainda a Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias

Psicotrópicas de 1988 traz os dois termos empregados anteriormente, sem, contudo

modificar as acepções anteriormente.

Apesar dessas convenções internacionais terem citado a definição de

entorpecente e de substancia psicotrópica como sendo a das substancias inseridas nas

listas que as acompanham, não as definiram sob a égide médica ou farmacológica.

11 DECRETO Nº 54.216, DE 27 DE AGOSTO DE 1964.12 DECRETO Nº 79.388, DE 14 DE MARÇO DE 197713 DECRETO Nº 79.388, DE 14 DE MARÇO DE 1977

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Para tanto, utiliza-se as definições do pesquisador francês Chaloult, que definiu e

dividiu em subgrupos as chamadas drogas toxicomanógenas, assim como as definições

da Organização Mundial de Saúde (OMS).

A definição adotada para efeito deste trabalho é a de que substancia psicotrópica

é “aquela que age no Sistema Nervoso Central produzindo alterações de

comportamento, humor e cognição, possuindo grande propriedade reforçadora sendo,

portanto, passíveis de auto-administração”.14

Desta forma, para Chaloult, psicotrópicos são aqueles que agem diretamente

sobre o Sistema Nervoso Central (SNC), sendo divididos em três grupos, os

estimulantes do SNC, os perturbadores do SNC e os depressores do SNC.

Para Elisaldo Carlini, em DROGAS PSICOTRÓPICAS - o que são e como agem,

têm-se as definições dos grupos de psicotrópicos como:

Drogas Depressoras: como o próprio nome indica, diminuem a atividade do SNC, ou seja, esse sistema passa a funcionar mais lentamente. Como conseqüência, aparecem os sintomas e os sinais dessa diminuição: sonolência, lentificação psicomotora etc. Algumas dessas substâncias são úteis como medicamentos em casos nos quais o SNC da pessoa está funcionando "muito acima do normal", como por exemplo, em epilepsias, insônias, excesso de ansiedade etc. Entre os meninos em situação de rua, as drogas depressoras mais consumidas são: álcool, inalantes e benzodiazepínicos.Drogas Estimulantes: são aquelas que estimulam atividade do SNC, fazendo com que o estado de vigília fique aumentado (portanto, diminui o sono), haja "nervosismo", aumento da atividade motora etc. Em doses mais elevadas chegam a produzir sintomas perturbadores do SNC, tais como delírios e alucinações. A droga estimulante mais usada por meninos em situação de rua é a cocaína e seus derivados, como cloridrato, crack, merla, pasta etc.Drogas Perturbadoras: nesse grande grupo temos as drogas que produzem uma mudança qualitativa no funcionamento do SNC. Assim, alterações mentais que não fazem parte da normalidade como, por exemplo, delírios, ilusões e alucinações, são produzidos por essas drogas. Por essa razão, são chamadas de psicoticomiméticas, ou seja, drogas que mimetizam psicoses. Entre meninos em situação de rua, as drogas perturbadoras mais usadas são: maconha e alguns medicamentos anticolinérgicos, dentre os quais o triexifenidil (Artane) é o mais consumido.

3.2 Ayahuasca: definição, composição e efeitos

14 OMS. 1981.

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A Ayahuasca é uma bebida enteógena, sendo causadora de um estado alterado

da consciência pela ingestão desta bebida. Este termo surgiu em 1973, tendo sido

proposto por Gordon Wasson.15

A Ayahuasca consiste na infusão do cipó banisteriopsis caapi e das folhas da

planta Psycotria vindis. Tinha seu uso restrito aos povos indígenas, entretanto, passou

a ser utilizado pelas civilizações e vilarejos da Amazônia Ocidental.

No início do século XX surgiram no Brasil religiões não-indígenas que utilizavam

a Ayahuasca. Estas religiões fizeram a mescla do uso da Ayahuasca com sincretismos

do cristianismo, espiritismo kardecista e religiões afro-brasileiras.

A Ayahuasca é utilizada por cerca de 72 tribos distintas da Amazônia, dentre as

quais se destacam os Kaxinawá, Yaminawa e Sharanawa.16

Para as culturas indígenas, no estado normal de percepção só é possível ver os

corpos e suas utilidades, contudo, nos estados alterados de consciência é que se

conhecem os espíritos que habitam as plantas e os animais.17

A composição do chá da Ayahuasca é elucidada no texto de Maria Costa,

Ayahuasca: uma abordagem toxicológica do uso ritualístico, sendo:

O cipó Banisteriopsis caapi é da família Malpighiaceae, nativa da Amazônia e dos Andes. Possui em sua composição alcalóides β-carbolinas inibidoras da MAO, sendo que os de maior concentração são: harmina, harmalina, tetra-hidro-harmalina. A concentração desses alcalóides varia de 0,05% a 1,95% (McKenna et al., 1998). A Psycotria viridis, planta da família Rubiaceae, possui em sua composição o alcalóide derivado indólico N, N-dimetiltriptamina (DMT) em concentração de 0,1% a 0,66% que age sobre os receptores da serotonina (McKenna et al., 1998).18

O dimetiltriptamina, ou DMT, é um potente alucinógeno quando usado via

parenteral na dosagem de 25 mg.19 Sua ação estimula os receptores da serotonina,

responsável pela sensação de prazer. Seus efeitos aparecem de 30 a 45 minutos após

a ingestão e podem durar por aproximadamente quatro horas.20

15 SNEADER, Walter, Drug Discovery: A History, 2005 p.11316 COSTA, Maria C, Ayahuasca: uma abordagem toxicológica do uso ritualístico, 2005 p. 2.17 COSTA, Maria C, Ayahuasca: uma abordagem toxicológica do uso ritualístico, 2005 p. 2.18 COSTA, Maria C, Ayahuasca: uma abordagem toxicológica do uso ritualístico, 2005 p. 4.19 COSTA, Maria C, Ayahuasca: uma abordagem toxicológica do uso ritualístico, 2005 p. 5.20 COSTA, Maria C, Ayahuasca: uma abordagem toxicológica do uso ritualístico, 2005 p. 5.

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As β-carbolinas também tem propriedades alucinógenas, e contribuem para a

atividade da Ayahuasca.21 Estas são inibidoras da MAO, inibindo a desaminação

intestinal do DMT, possibilitando a chegada deste aos receptores no cérebro. Além

disso, aumentam os níveis da serotonina, possibilitando um aumento na quantidade de

DMT que chega ao cérebro.22

A ação da Ayahuasca se deve à interação entre o DMT e as β-carbolinas,

presentes nas plantas, que potencializam as propriedades psicotrópicas do chá.

Os efeitos subjetivos do uso da Ayahuasca são visão de imagens com os olhos

fechados, delírios parecidos com sonhos e sensação de vigilância e estimulação.23

A Ayahuasca pode promover ilusões visuais, auditivas, olfativas e dos demais

sentidos, alterando a percepção, cognição, volição e afetividade.

A maioria dos psicotrópicos que atuam sobre os receptores de seratonina levam

ao fenômeno da tolerância, necessitando de doses cada vez maiores para a obtenção

dos mesmos efeitos. Entretanto, o DMT é uma exceção a esta característica, sendo que

não leva ao desenvolvimento de tolerância.24

Em relação ao estado alterado da mente, o estudo de Maria Costa, Ayahuasca:

uma abordagem toxicológica do uso ritualístico,faz as devidas distinções que se

aplicam ao caso da Ayahuasca, em sendo:

Os chamados estados alterados de consciência podem ser classificados em três conjuntos: embotamento ou entorpecimento, que se caracteriza pela diminuição ou perda da amplitude ou claridade da vivência, comum em quadros confusionais relacionados a processos tóxicos orgânicos, como a uremia; o estreitamento compreende, particularmente, a redução da amplitude fenomênica do campo da consciência, e que se apresenta em situações como sonambulismo, possessão, transes mediúnicos e estados de êxtase religioso; e o terceiro grupo, a obnubilação ou turvação, em que estão presentes entorpecimento importante, alteração do juízo de realidade e ideações anormais, com variações importantes dependendo da etiopatogenia do quadro, tais como delirium tremens, estados crepusculares epiléticos e amência.Dentro deste modelo teórico descrito acima, pode-se caracterizar o estado de consciência induzido pela Ayahuasca, em contexto religioso, como um estreitamento da consciência. Tal alteração pode ser chamada de onírica, por guardar semelhanças com os sonhos. Em contexto

21 COSTA, Maria C, Ayahuasca: uma abordagem toxicológica do uso ritualístico, 2005 p. 5.22 COSTA, Maria C, Ayahuasca: uma abordagem toxicológica do uso ritualístico, 2005 p. 5.23 COSTA, Maria C, Ayahuasca: uma abordagem toxicológica do uso ritualístico, 2005 p. 5.24 COSTA, Maria C, Ayahuasca: uma abordagem toxicológica do uso ritualístico, 2005 p. 5.

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toxicológico, o estado de consciência pode ser classificado como turvação com alteração do juízo de realidade, onde está presente entorpecimento importante.Existem trabalhos que propõem quatro características encontradas nos estados alterados de consciência: (1) Inefabilidade: algo que não pode ser explicado com palavras em nenhum relato adequado do seu conteúdo. A sensação necessita ser experimentada diretamente, não pode ser comunicada ou transferida a outros; (2) Qualidade noética: semelhantes a estados de sentimento, estados de conhecimento, estados de visão interior dirigida a profundezas da verdade não indagadas pelo raciocínio. São revelações, cheias de significado e importância; (3) Transitoriedade: não podem ser mantidos por muito tempo; (4) Passividade: sensação de que a própria vontade está adormecida e de que está sendo agarrado por uma força superior

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4 PRÁTICAS RELIGIOSAS X CONSTITUIÇÃO FEDERAL E NORMAS INFRACONSTITUCIONAIS

Neste capítulo é abordada a relação existente entre as práticas religiosas e o

direito positivo no Brasil. São analisados os conceitos de prática religiosa, com suas

diversas acepções sociológicas e jurídicas. É analisada a relação entre a Constituição

Federal e as normas infraconstitucionais, assim como os Tratados Internacionais, no

que tangem o direito à liberdade religiosa. Por fim é analisada a legalidade das práticas

religiosas que fazem uso de substâncias psicotrópicas.

4.1 Definição de práticas religiosas

Na analise do que é prática religiosa, faz-se necessário definir religião, e, para

tanto, utiliza-se a definição do Dicionário Michaelis:

religiãosf (lat religione) 1 Serviço ou culto a Deus, ou a uma divindade qualquer, expresso por meio de ritos, preces e observância do que se considera mandamento divino. 2 Sentimento consciente de dependência ou submissão que liga a criatura humana ao Criador. 3 Culto externo ou interno prestado à divindade. 4 Crença ou doutrina religiosa; sistema dogmático e moral. 5 Veneração às coisas sagradas; crença, devoção, fé, piedade. 6 Prática dos preceitos divinos ou revelados. 7 Temor de Deus. 8 Tudo que é considerado obrigação moral ou dever sagrado e indeclinável. 9 Ordem ou congregação religiosa. 10 Ordem de cavalaria. 11 Caráter sagrado ou virtude especial que se atribui a alguém ou a alguma coisa e pelo qual se lhe presta reverência. 12 Conjunto de ritos e cerimônias, sacrificais ou não, ordenados para a manifestação do culto à divindade; cerimonial litúrgico. 13 Filos Reconhecimento prático de nossa dependência de Deus. 14 Filos Instituição social com crenças e ritos. 15 Filos Respeito a uma regra. 16 Sociol Instituição social criada em torno da idéia de um ou vários seres sobrenaturais e de sua relação com os homens. 17 Mística ou ascese. R. do caboclo, Reg (Rio de Janeiro): prática feiticista negra a que se misturam entidades da mística ameríndia. R. do Estado: a professada oficialmente por um Estado sem que, com isso, seja proibida ou impedida a prática das outras. R. natural: a que se baseia somente nas inspirações do coração e da razão, sem dogmas revelados; a religião dos povos primitivos. R. naturalista: veneração ou adoração religiosa da natureza nos animais, nos astros etc.; panteísmo. R. reformada: o mesmo que igreja reformada. R. revelada: a que, como o cristianismo, se baseia numa revelação divina

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22

conservada pelas Escrituras Sagradas e pela tradição. Ciência das religiões: estudo das religiões como fenômeno humano universal; pode-se considerar seu aspecto histórico (história das religiões), psíquico (psicologia da religião) e social (sociologia da religião). Filosofia da religião: tratado das questões relativas à sua essência e verdade.

Em relação ao verbete citado, não há uma definição concisa do que é religião.

Recorre-se portanto, à definição de religião sob o ponto de vista etimológico, para

assim definir sob o ponto de vista jurídico.

Etimologicamente a palavra da língua portuguesa religião deriva da palavra de

origem latina religionem. Já a palavra religionem não tem sua etimologia de forma clara,

surgindo uma série de possíveis origens.

Historicamente surgiram diversas etimologias para a palavra religionem. O termo

relegere aparece na obra de Cícero, De natura deorum, do século IV a.C25, como

característica das pessoas religiosas de reler as escrituras sagradas.

O termo religere aparece no livro A Cidade de Deus de Agostinho de Hipona, no

século IV d.C., sendo este termo reeleger. Era por meio da religião que os homens

reelegiam a Deus, do qual tinham se separado.26

O termo religare vem do latim e significa religação com o divino. É um conjunto

de crenças sobre as causas, natureza e finalidade da vida e do universo, especialmente

quando considerada como a criação de um agente sobrenatural, ou a relação dos seres

humanos ao que eles consideram como santo, sagrado, espiritual ou divino. Muitas

religiões têm narrativas, símbolos, tradições e histórias sagradas que se destinam a dar

sentido à vida. Elas tendem a derivar em moralidade, ética, leis religiosas ou em um

estilo de vida preferido de suas idéias sobre o cosmos e a natureza humana.27 As

definições etimológicas não são apropriadas para definir, de forma precisa, o termo

religião.

Na visão de Konvitz, o que para um homem é religião, para outro pode ser

considerado como uma superstição primitiva, imoralidade, ou até mesmo crime, não

podendo assim existir uma definição legal do que venha a ser religião.28

25 HUME, David, The Natural History of Religion, 1995, p. 31.26 HUME, David, The Natural History of Religion, 1995, p. 31.27 http://pt.wikipedia.org/wiki/Religi%C3%A3o#cite_note-0, acessado em 21/07/2011 às 18:33.28 KONVITZ, Milton R. Fundamental liberties of a free people: religion, speech, press, assembly, 2. ed. New York: Cornell University Press, 1962. p. 49.

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23

Por não haver a possibilidade jurídica de definição do conceito de religião, busca-

se na filosofia conceitos que possam contribuir com o tema, e, para tanto, tem-se, por

Carlos Lopes de Mattos, que religião é a “crença na dependência em relação a um ser

superior que influi no nosso ser – ou ainda – a instituição social de uma comunidade

unida pela crença e pelos ritos”.29

Há ainda o entendimento de Régis Jolivet no qual a religião pode ser entendida

em dois sentidos, subjetivo e objetivo.

O sentido subjetivo de religião compreende que esta seja uma questão interior

de adoração, confiança e de amor que o homem presta a uma entidade, a um ser

superior. Já o sentido objetivo é a exteriorização do conjunto de atos pelos quais se

expressa e manifesta a religião.

4.2 Constituição Federal e normas infraconstitucionais

A Constituição Federal de 1988 traz em seu preâmbulo:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.(grifos do autor)

Em seu artigo 5º, inciso VI, traz que “é inviolável a liberdade de consciência e de

crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma

da lei, a proteção aos locais de culto e às suas liturgias;”, já o inciso VII rege que “é

assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis

e militares de internação coletiva;”. Ainda há o inciso VIII, in verbis “ninguém será

privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política,

salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a

cumprir prestação alternativa, fixada em lei;”.

29 MATTOS, Carlos Lopes de. Vocábulo filosófico. São Paulo: Leia, 1957.

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24

Estes são direitos e garantias fundamentais elencados pelo constituinte para o

livre exercício dos cultos religiosos e suas liturgias, entendendo-se que quaisquer

restrições à estas praticas configuram cerceamento de direitos do cidadão.

Há ainda o resguardo da Constituição Federal para com o impedimento dos

entes federativos em embaraçar o funcionamento dos estabelecimentos de cultos

religiosos, vide artigo 19, inciso I, sendo “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito

Federal e aos Municípios:

I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o

funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência

ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;”.

Existem também garantias de ordem tributária para o livre funcionamento dos

templos de qualquer culto, de acordo com o artigo 150, inciso VI, alínea “b”. com a

seguinte redação: “Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é

vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (...)VI - instituir

impostos sobre: (...)b) templos de qualquer culto;”.

Consta da Constituição Federal garantia que “Serão fixados conteúdos mínimos

para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito

aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais. § 1º - O ensino religioso, de

matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de

ensino fundamental.”.

Por fim há de salientar que é garantido ao casamento religioso o status quo do

casamento civil, vide artigo 226, §2º, em que se tem “O casamento religioso tem efeito

civil, nos termos da lei.”.

Vistos estes excertos da Constituição Federal nota-se que já em seu preâmbulo

esta reconhece a liberdade como pressuposto da sociedade, não somente assegurando

a liberdade de crença, mas fazendo com que o Estado garanta e proteja as

manifestações culturais populares. As garantias das práticas religiosas estariam

salvaguardadas de quaisquer restrições. Entretanto, surge um problema em relação

aos Tratados Internacionais.

Os Tratados Internacionais, após analise do teor pela Câmara dos Deputados e

pelo Senado Federal e sua subseqüente aprovação por meio de um Decreto

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25

Legislativo, autorizam o Presidente a ratificar o mesmo. Para Sérgio Mourão30, para que

os tratados internacionais tenham vigência, faz-se necessária a promulgação e

publicação de um decreto do Presidente que, via de regra, é acompanhado do texto

ratificado.

Este é o caso do Decreto n.º 79.388 de 1977, que promulgou a Convenção sobre

Substâncias Psicotrópicas, sendo aprovado pelo Congresso Nacional pelo Decreto

Legislativo n.º 90 de 1972, referente à Convenção que se deu em Viena em 1971.

Este Decreto ratificou a mencionada Convenção que discutiu, dentre outros

temas, a proibição do cultivo e do uso das substâncias relacionadas nas listas

complementares à Convenção.

Ocorre que na lista de substâncias na relação I encontra-se o DMT, um dos

principais princípios ativos da Ayahuasca, restringindo assim a liberdade religiosa plena

no Brasil, ferindo assim garantia fundamental prevista na Constituição Federal, o que,

via de regra, não deveria ser recepcionada pelo direito interno. Entretanto, a

Constituição Federal é de 1988 e o referido decreto é de 1977, assim, com o advento

da Constituição em 1988 este Tratado perderia seus efeitos no que não fosse

recepcionado pela nova Constituição. Este, porém, não foi o acontecimento que se

sucedeu. Este Tratado, por ter sido recepcionado pelo Decreto de 1977 integra o

ordenamento jurídico brasileiro, entretanto o Brasil fez ressalvas no que tange o direito

às praticas religiosas.

É deste desencadeamento que surge o SISNAD - Sistema Nacional de Políticas

Públicas sobre Drogas, e por esta razão é criada uma política nacional de combate às

drogas, atribuição do CONAD – Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas, advindo

assim a lei n.º 11.343 de 2006, que rege de forma infraconstitucional os limites do uso

de substâncias psicotrópicas.

Ocorre que na lei supracitada não há a descrição das substancias que devam ser

controladas e que são tidas como drogas. Esta referencia se dá por meio de uma

portaria da Agencia Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, subordinada ao

Ministério da Saúde.

30 Sérgio Mourão Correia Lima. Tratados internacionais no Brasil e integração. São Paulo: Ed. LTR, 1998. p. 33

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26

A mais recente portaria é a de número 344, de 1998, que estabelece quais as

substancias permitidas para uso no Brasil e quais tem seu uso proscrito. Utiliza das

suas atribuições e leva em consideração, dentre outras, a Convenção sobre

Substâncias Psicotrópicas, de 1971, regulado pelo Decreto n.º 79.388/77.

O DMT é substância de uso proscrito no Brasil, segundo portaria n.º 344 da

ANVISA. Decisão que conflita com o disposto na Constituição Federal no que tange ao

uso pela pratica religiosa de substancia, pois a garantia do uso é constitucional e sua

restrição é infraconstitucional.

4.3 Liberdade religiosa

A liberdade religiosa é garantia fundamental prevista na Constituição Federal que

prevê o Brasil como um Estado laico, ou seja, deve existir uma divisão tão quanto

possível entre o Estado e as religiões, sejam elas quais forem.

O fato do Brasil ser um Estado laico não implica em que não haja diretrizes para

conduzir as políticas publicas e a legislação acerca do tema. Somente implica em que

não haja religião oficial e, portanto, a escolha de uma religião ou abster-se de religião é

escolha individual e o Estado não pode interferir na mesma, seja ajudando determinada

religião, seja prejudicando outras.

O Estado tem o dever de proteger o pluralismo religioso dentro de seu território,

tem que criar condições para o livre exercício dos atos religiosos, zelar pela garantia

constitucional da liberdade religiosa, mantendo-se sempre à margem do fato religioso

em si, sem incorporá-lo.

Não existe como separar o direito à liberdade de religião do direito às outras

liberdades, pois estão intrinsecamente relacionadas.

Existem três tipos de liberdade de religião31, sendo:

- Liberdade de crença: liberdade de escolha de religião, liberdade de aderir a qualquer

grupo religioso ou de não aderir a nenhuma religião, assim compreendida como

liberdade de escolha, sem, contudo, embaraçar o livre exercício alheio;

31 SCHERKERKEWITZ, Iso Chaitz. O DIREITO DE RELIGIÃO NO BRASIL. In http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/revistaspge/revista2/artigo5.htm acessado em 03/08/2011 às 13:42.

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27

- Liberdade de culto: liberdade de praticar os atos próprios das manifestações

exteriores em casa ou em publico;

- Liberdade de organização religiosa: liberdade de estabelecer-se no território e de

manter relações entre a organização e outras entidades.

Para gozar da proteção do Estado e ter as suas garantias respeitadas a prática

religiosa deve ter como fim o enaltecimento do individuo, a busca do seu

aperfeiçoamento ou ainda a pratica benevolente da filantropia. Sem nenhum destes

critérios, não se pode ter um evento considerado como prática religiosa, pois a religião

é para os indivíduos e para a busca da paz social.

Desta forma, é notória a obrigação do Estado em proteger não somente os

grupos religiosos, mas também os grupos de não-religiosos. Liberdade de religião, para

estes fins, é a possibilidade de se ter religião, ou não, e se havendo uma, a que bem

determinar o individuo, pois só a este a religião se presta e não ao Estado.

Historicamente a liberdade religiosa encontra seus fundamentos na Bill of Rights

inglesa, dando a liberdade religiosa para os protestantes, proibindo, contudo, a

liberdade para os católicos.

A forma derradeira de liberdade religiosa para todos os indivíduos surgiu com a

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, na qual, em seu artigo 10º,

assegurava o direito da opinião religiosa.

Em 1971 os Estados Unidos da América publicam a Bill of Rights americana, que

estabelece em seu artigo 1º o que se segue:

Artigo 1° - O Congresso não legislará no sentido de estabelecer uma religião, ou proibindo o livre exercício dos cultos; ou cerceando a liberdade de palavra, ou de imprensa, ou o direito do povo de se reunir pacificamente, e de dirigir ao Governo petições para a reparação de seus agravos.

O artigo 12º da Convenção Americana sobre os Direitos Humanos rege sobre a

liberdade religiosa, in verbis:

Liberdade de consciência e de religião1. Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência e de religião. Esse direito implica a liberdade de conservar sua religião ou suas

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28

crenças, ou de mudar de religião ou de crenças, bem como a liberdade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em público como em privado.2. Ninguém pode ser submetido a medidas restritivas que possam limitar sua liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças.3. A liberdade de manifestar a própria religião e as próprias crenças está sujeita apenas às limitações previstas em lei e que se façam necessárias para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos e as liberdades das demais pessoas.4. Os pais e, quando for o caso, os tutores, têm direito a que seus filhos e pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.

A liberdade religiosa no Brasil foi introduzida após a proclamação da República,

por meio do Decreto 119-A de 1890, de autoria de Ruy Barbosa32, e se tornou norma

constitucional de 1891, definindo à época o Brasil em um Estado laico.

A garantia fundamental da liberdade religiosa está consagrada ainda no Código

Penal, mais precisamente em seu artigo 208, o qual estabelece:

Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso:Pena - detenção, de um mês a um ano, ou multa.

Admitem-se sim debates e criticas a respeito da religião em seu aspecto

teológico, cientifico ou jurídico, entretanto não se admite ultrajes às pessoas religiosas

ou aos seus sincretismos.

Uma discussão que se apresenta é a definição de limites para a prática religiosa,

e, se estes limites não impeçam a liturgia garantida constitucionalmente. Para tanto,

utilizam-se dois exemplos que demonstram a dualidade entre duas garantias e a

dificuldade jurídica em determinar a extensão dessas garantias.

A Imolação é a pratica religiosa que consiste em matar um animal como forma de

sacrifício a um ente superior. É parte integrante de algumas religiões como exemplo o

Candomblé. Faz parte de seus sincretismos. Todavia, os direitos que possuem os

animais prevêem estes de serem mortos de forma cruel, o que é entendimento de

alguns grupos em relação à imolação.

32 AMARAL, Sérgio Tibiriçá, Liberdade religiosa, 2006.

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29

Se o fato de matar um animal para o consumo é garantido para a subsistência

das pessoas, não haveria qualquer tipo de restrição ao matar o animal para o

sincretismo religioso, mesmo porque a imolação prevê uma morte com o mínimo de dor

para o animal.

Ainda, ao analisar os limites da liberdade religiosa encontra-se a questão da

poluição sonora causada por alguns templos religiosos. O CONAMA estabelece o limite

de 40 a 50 decibéis para templos e cultos. O direito de vizinhança estabelece que o uso

da propriedade não possa ser extrapolado e que a poluição sonora configura em ofensa

ao sossego. Novamente há um conflito jurídico em que ambos os lados possuem

direitos, cabendo a analise minuciosa dos fatos para poder equilibrar a relação.

Conclui-se que a liberdade religiosa é uma garantia fundamental, não podendo

ser negada a nenhum individuo. Caso o conflito que surja entre o direito de livre culto e

outra esfera do direito sobrepujar as garantias ao livre exercício de pratica religiosa,

existirá um cerceamento de uma garantia fundamental, e não se respeitando as

garantias fundamentais, não se respeitam os princípios balizadores do direito brasileiro.

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30

5 GARANTIA DO USO DA AYAHUASCA

A Constituição Federal prevê a liberdade como valor supremo em seu

preâmbulo, assim como dá garantia a este direito fundamental em seu artigo 5°, incisos

VI, VII e VIII. Além disso, a Constituição é clara ao afirmar em seu artigo 19°, inciso I,

que não deve haver embaraçamento às praticas religiosas. É importante ressaltar que

não há unanimidade na sociedade brasileira relativa à liberdade de práticas religiosas.33

Baseado nessas assertivas, o Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas -

CONAD, órgão normativo do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas –

SISNAD, promulgou a resolução n.º 5, de 2004, que “dispõe sobre o uso religioso e

sobre a pesquisa da Ayahuasca”34

Esta resolução considerou o parecer da Câmara de Assessoramento Técnico-

Científico que reconheceu a legitimidade jurídica do uso religioso da Ayahuasca,

considerou também que a decisão da Administração Pública foi proferida com base em

análise multidisciplinar, considerou ainda o direito constitucional ao livre exercício do

culto e por fim decidiu pela implementação de estudo e pesquisa sobre o uso

terapêutico da Ayahuasca, instituindo o GRUPO MULTIDISCIPLINAR DE TRABALHO –

GMT para o levantamento e acompanhamento do uso religioso da Ayahuasca.

O GMT foi oficialmente instalado pelo Ministro-Chefe do Gabinete de Segurança

Institucional da Presidência da Republica e Presidente do Conselho Nacional

33 A repercussão da garantia do uso ritualístico da Ayahuasca, nos meios de comunicação, fez com que surgissem posições contrárias à liberdade religiosa plena, tendo sido publicado na Revista VEJA de 31 de janeiro de 2010, na página 41:“LIBERADO oficialmente pelo governo brasileiro o consumo do santo daime, o chá lisérgico que faz a cabeça do pessoal da nova era com a promessa de abrir a seus seguidores as portas do autoconhecimento. O daime causa alucinações pesadíssimas, provocadas pela dimetiltriptamina, substância presente no cipó da ayauasca, planta que serve de base ao daime e é venerada por seus entuasiastas. O governo diz que autorizou o pessoal a ficar viajandão para respeitar a liberdade religiosa. Cabe a pergunta: se alguém criasse uma religião batizada, digamos, Santo Pirlimpimpim, baseada em aspirações mágicas da cocaína, o Planalto também oficializaria o consumo?”34 RESOLUÇÃO N° 5 CONAD, DE 04 DE NOVEMBRO DE 2004.

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31

Antidrogas, Jorge Armando Felix e teve como objetivo a elaboração de documento que

demonstrasse a deontologia35 do uso da Ayahuasca.36

O GMT foi composto por seis estudiosos, indicados pelo CONAD, das áreas que atenderam, dentre outros, os seguintes aspectos: antropológico (representado pelo Dr. Edward John Baptista das Neves MacRae), farmacológico/bioquímico (Dr. Isac Germano Karniol), social (Drª Roberta Salazar Uchoa), psiquiátrico (Dr. Dartiu Xavier da Silveira Filho) e jurídico (Drª Ester Kosovski) e seis membros, convidados pelo CONAD, representantes dos grupos religiosos que fazem uso da Ayahuasca, eleitos em Seminário realizado em Rio Branco nos dias 9 e 10 de março de 2006, a saber: Linha do Padrinho Sebastião Mota de Melo: Alex Polari de Alverga; Linha do Mestre Raimundo Irineu Serra: Jair Araújo Facundes e Cosmo Lima de Souza; Linha do Mestre José Gabriel da Costa: Edson Lodi Campos Soares; Linha Independente (Outras Linhas): Luis Antônio Orlando Pereira e Wilson Roberto Gonzaga da Costa. Considerando que a linha do Mestre Daniel Pereira de Matos, popularmente conhecida como linha da Barquinha, decidiu não participar do GMT, conforme carta endereçada ao CONAD, foi realizada durante o seminário eleição entre os suplentes já eleitos das linhas presentes para o preenchimento da vaga em aberto. Nesta ocasião foi eleito mais um representante da linha do Mestre Raimundo Irineu Serra.37

A instituição do GMT demonstra o cumprimento do dever constitucional do

Estado de garantir as manifestações populares e indígenas, assim como garantir o

direito de liberdade religiosa.38

Como tarefa atribuída ao GMT, foi elaborado o Cadastro Nacional das Entidades

Usuárias da Ayahuasca – CNEA, que foi questionado em sua finalidade, pois não

poderia servir como instrumento de controle estatal sobre o direito constitucional à

liberdade de crença. Concluiu-se pela vedação do uso do Cadastro na invasão ao

direito individual à intimidade, vida privada e imagem dos usuários.39 Por fim, foi

elaborado um formulário, resultando em mais de uma centena de entidades

cadastradas.40

35 Michaelis: deontologiasf (gr déon, ontos+logo2+ia1) 1 Parte da Filosofia que trata dos princípios, fundamentos e sistemas de moral; estudo dos deveres. 2 Nome dado por J. Bentham (1748-1832) à sua moral. 3 Estudo dos deveres especiais de uma situação determinada; diceologia: "A deontologia do médico" (A. Cuvillier).36 Relatório Final – GMT – Ayahuasca, 2006. p. 237 Relatório Final – GMT – Ayahuasca, 2006. p. 238 Relatório Final – GMT – Ayahuasca, 2006. p. 339 Relatório Final – GMT – Ayahuasca, 2006. p. 540 Relatório Final – GMT – Ayahuasca, 2006. p. 5

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32

O GMT destacou e consolidou as práticas que representavam o uso religioso

adequado e responsável da Ayahuasca, priorizando, dentre outros temas a definição do

uso ritual.41

Na parte que considera o uso religioso da Ayahuasca, o relatório dispõe:

22. Ao longo de décadas o uso ritualístico da Ayahuasca – bebida extraída da decocção do cipó Banisteriopsis caapi (jagube, mariri etc.) e da folha Psychotria viridis (chacrona, rainha etc.) – tem sido reconhecido pela sociedade brasileira como prática religiosa legítima, de sorte que são mais do que atuais as conclusões de relatórios e pareceres decorrentes de estudos multidisciplinares determinados pelo antigo CONFEN, desde 1985, que constatavam que “há muitas décadas o uso da Ayahuasca vem sendo feito, sem que tenha redundado em qualquer prejuízo social conhecido”.23. A correta identificação do que é uso religioso, segundo os conceitos e práticas ditadas, a partir das próprias entidades que fazem uso da Ayahuasca, permitirá assegurar a proteção da liberdade de crença prevista na Constituição Federal. Considerando a ocorrência de registros de uso não religioso da Ayahuasca, sua identificação possibilitará prevenir práticas que não se amoldam à proteção constitucional.24. Trata-se, pois, de ratificar a legitimidade do uso religioso da Ayahuasca como rica e ancestral manifestação cultural que, exatamente pela relevância de seu valor histórico, antropológico e social, é credora da proteção do Estado, nos termos do art. 2o, “caput”, da Lei 11.343/066 e do art. 215, §1º, da CF. Devem-se evitar práticas que possam pôr em risco a legitimidade do uso religioso tradicionalmente reconhecido e protegido pelo Estado brasileiro, incluindo-se aí o uso da Ayahuasca associado a substâncias psicoativas ilícitas ou fora do ambiente ritualístico.42

Após estas deliberações o GMT concluiu que: o CONAD acolheu parecer da

Câmara de Assessoramento Técnico-Científico reconhecendo a legitimidade do uso

religioso da Ayahuasca43; foram discutidos os usos inadequados da Ayahuasca

associado ao uso de substâncias psicoativas ilícitas e o uso fora dos rituais ou

quaisquer outros usos que possam colocar em risco a saúde física e mental dos

indivíduos44; a liberdade de consciência e de crença é direito inviolável e que cabe ao

Estado a proteção aos locais de culto e suas liturgias45; o International Narcotics Control

41 Relatório Final – GMT – Ayahuasca, 2006. p. 642 Relatório Final – GMT – Ayahuasca, 2006. p. 643 Relatório Final – GMT – Ayahuasca, 2006. p. 1244 Relatório Final – GMT – Ayahuasca, 2006. p. 1245 Relatório Final – GMT – Ayahuasca, 2006. p. 12

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33

Board – INCB, da ONU, decidiu que a Ayahuasca ou as espécies que a compõem não

são objeto de controle internacional46; e que

o uso ritualístico religioso da Ayahuasca, há muito reconhecido como prática legitima, constitui-se manifestação cultural indissociável da identidade das populações tradicionais da Amazônia e de parte da população urbana do País, cabendo ao Estado não só garantir o pleno exercício desse direito à manifestação cultural, mas também protegê-la por quaisquer meios de acautelamento e prevenção, nos termos do art. 2o, “caput”, Lei 11.343/06 e art. 215, caput e § 1º c/c art. 216, caput e §§ 1º e 4º da Constituição Federal.47

Desta forma o GMT aprovou os princípios deontológicos a seguir:

1. O chá Ayahuasca é o produto da decocção do cipó Banisteriopsis caapi e da folha Psychotria viridis e seu uso é restrito a rituais religiosos, em locais autorizados pelas respectivas direções das entidades usuárias, vedado o seu uso associado a substâncias psicoativas ilícitas;2. Todo o processo de produção, armazenamento, distribuição e consumo da Ayahuasca integra o uso religioso da bebida, sendo vedada a comercialização e ou a percepção de qualquer vantagem, em espécie ou in natura, a título de pagamento, quer seja pela produção, quer seja pelo consumo, ressalvando-se as contribuições destinadas à manutenção e ao regular funcionamento de cada entidade, de acordo com sua tradição ou disposições estatutárias;3. O uso responsável da Ayahuasca pressupõe que a extração das espécies vegetais sagradas integre o ritual religioso. Cada entidade constituída deverá buscar a auto-sustentabilidade em prazo razoável, desenvolvendo seu próprio cultivo, capaz de atender suas necessidades e evitar a depredação das espécies florestais nativas. A extração das espécies vegetais da floresta nativa deverá observar as normas ambientais;4. As entidades devem evitar o oferecimento de pacotes turísticos associados à propaganda dos efeitos da Ayahuasca, ressalvando os intercâmbios legítimos dos membros das entidades religiosas com suas comunidades de referência;5. Ressalvado o direito constitucional à informação, recomenda-se que as entidades evitem a propaganda da Ayahuasca, devendo em suas manifestações públicas orientar-se sempre pela discrição e moderação no uso e na difusão de suas propriedades;6. A prática do curandeirismo é proibida pela legislação brasileira. As propriedades curativas e medicinais da Ayahuasca – que as entidades conhecem e atestam – requerem uso responsável e devem ser compreendidas do ponto de vista espiritual, evitando-se toda e qualquer

46 Relatório Final – GMT – Ayahuasca, 2006. p. 1247 Relatório Final – GMT – Ayahuasca, 2006. p. 12

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34

propaganda que possa induzir a opinião pública e as autoridades a equívocos;7. Recomenda-se aos grupos que fazem uso religioso da Ayahuasca que se constituam em organizações jurídicas, sob a condução de pessoas responsáveis com experiência no reconhecimento e cultivo das espécies vegetais sagradas, na preparação e uso da Ayahuasca e na condução dos ritos;8. Compete a cada entidade religiosa exercer rigoroso controle sobre o sistema de ingresso de novos adeptos, devendo proceder entrevista dos interessados na ingestão da Ayahuasca, a fim de evitar que ela seja ministrada a pessoas com histórico de transtornos mentais, bem como a pessoas sob efeito de bebidas alcoólicas ou outras substâncias psicoativas;9. Recomenda-se ainda manter ficha cadastral com dados do participante e informá-lo sobre os princípios do ritual, horários, normas, incluindo a necessidade de permanência no local até o término do ritual e dos efeitos da Ayahuasca.10. Observados os princípios deontológicos aqui definidos, cabe a cada entidade e a seus membros indistintamente, no relacionamento institucional, religioso ou social que venham a manter umas com as outras, em qualquer instância, zelar pela ética e pelo respeito mútuo.48

O GMT ainda propôs em relação à efetividade dos princípios deontológicos o que

se segue:

a. Sugere-se ao CONAD que estude a possibilidade de fixar mecanismos de controle quanto ao uso descontextualizado e não ritualístico da Ayahuasca, tendo como paradigma os princípios deontológicos ora fixados, com efetiva participação de representantes das entidades religiosas.b. Solicita-se ao CONAD apoio institucional para a criação de instituiçãorepresentativa das entidades religiosas que se forme por livre adesão, para o exercício do controle social no cumprimento dos princípios deontológicos aqui tratados.c. Sugere-se ainda, caso os princípios deontológicos aqui definidos sejam acatados, que disto seja dada ampla publicidade, preferencialmente com a realização de um segundo seminário organizado pelo próprio CONAD auxiliado pelo Grupo Multidisciplinar de Trabalho, do qual devem participar todas as entidades, sem prejuízo do encaminhamento formal do ato a todos os órgãos dos Ministérios Públicos e da Magistratura Federal e Estaduais, Polícia Federal e Secretarias de Segurança Pública dos Estados.49

O GMT publicou em 2006 o Relatório Final sobre a Ayahuasca. Após a

conclusão do GMT, o CONAD publicou resolução n.º 1, de 2010, que dispôs sobre a

obrigatoriedade da observância pelos órgãos da Administração Pública das decisões do

48 Relatório Final – GMT – Ayahuasca, 2006. p. 1349 Relatório Final – GMT – Ayahuasca, 2006. p. 15

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CONAD em relação às normas e procedimentos compatíveis com o uso religioso da

Ayahuasca.50

50 RESOLUÇÃO Nº 01 - CONAD, DE 25 DE JANEIRO DE 2010.

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6 CONCLUSÃO

Considerando as premissas e o tratamento das questões apresentadas neste

trabalho, pode-se afirmar que as definições de prática religiosa e religião somente

podem ser feitas por meios filosóficos e sociológicos, impossibilitando assim a utilização

da acepção puramente jurídica do que configura as práticas religiosas e a própria

religião.

A Constituição Federal assegura o direito à liberdade, em todas as suas

modalidades, sendo vedada às normas infraconstitucionais a proibição ou

embaraçamento desta liberdade, em especial à liberdade religiosa, em qualquer forma

ou de qualquer grau. A liberdade religiosa tem seus fundamentos garantidos nos

Tratados e Convenções internacionais, assim como na Constituição Federal, em seus

artigos 5º, incisos VI, VII e VIII, assim como na legislação infraconstitucional que

disciplina o tema.

A história mundial do uso ritualístico de substâncias psicotrópicas registrou

percalços jurídico-econõmicos que urgiram o direito, dos Estados, de legitimar, ou não,

o uso dessas substâncias. Neste processo, os Estados que optaram por não legitimar o

uso dessas substancias o fizeram por meio de restrições ás liberdades individuais, em

especial à liberdade religiosa. No Brasil, é recente a regulamentação do uso ritualístico

de substâncias psicotrópicas, persistindo ainda religiões que fazem uso de substâncias

proscritas pela legislação vigente.

As definições das substâncias psicotrópicas não são claras, incorrendo em

problemas jurídicos por falta de definição legal para esses termos. As definições

médicas são, muitas vezes, ambíguas, necessitando de uma padronização dos termos,

para efeitos legais.

A definição, a composição e os efeitos da Ayahuasca têm sido estudados por

grupos multidisciplinares, e, nos seus pareceres não foram constatados distúrbios

físicos e mentais que justificassem a proibição do uso ritualístico da Ayahuasca. Como

resultado do Trabalho Final do Grupo Multidisciplinar de Trabalho, subordinado ao

Conselho Nacional sobre Drogas – CONAD, o uso ritualístico da Ayahuasca foi

garantido por meio da resolução n.º 1, de 2010.

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Por razões similares às que possibilitaram a garantia das práticas religiosas que

fazem uso da Ayahuasca, a única substancia psicotrópica regulamentada em uso

ritualístico, poder-se-ia pleitear junto ao Supremo Tribunal Federal a equiparação desta

garantia a outras práticas religiosas que fazem uso de substancias psicotrópicas.

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