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Entendendo a bricolagem de Certau
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A bricolagem e os caminhantes da rua McPherson.
Carlos Alberto Matalinares Salas
Revisando o conceito de “Bricolagem” segundo Michel de Certeau.
Vinda do termo francês bricolage, que entre suas acepções temos: trabalho manual feito
de improviso e usando diversos materiais, processo de especialização dos hábitos,
técnica improvisada adaptada às circunstancias, é usada por Certeau como um fazer,
como uma ação: “supõe que a maneira dos povos indígenas os usuários “façam uma
bricolagem” com e na economia cultural dominante, usando inúmeras e infinitesimais
metamorfoses da lei, segundo seus interesses próprios e suas próprias regras”1. A este
conceito chega depois de analisar o possível equivoco dos colonizadores espanhóis nos
povos indígenas da America do Sul. Como se sabe, a imposição da religião cristã nos
povos ameríndios submetidos era prioridade da coroa espanhola. Mas essa imposição,
de costumes e rituais cristãs, chocava contra costumes e credos ancestrais. Para não
perder suas raízes, os povos colonizados, reinterpretavam as leis impostas, fazendo uma
mestiçagem, dando a impressão ao espanhol de que suas leis eram obedecidas, mas no
fundo eram os próprios costumes indígenas que prevaleciam. Essa bricolagem dos
povos andinos era sua forma de não perder a identidade frente a uma imposição de uma
força maior.
Entendemos então, que a ideia de Certeau sobre “fazer uma bricolagem” é a maneira
como se explicam certas condutas dos chamados por ele mesmo de “usuários”, os quais,
ante imposições dos dominantes, sejam econômicos, culturais, políticos, etc., assumem
posturas e ações, reinterpretando ou esticando as regras impostas a fim de adaptá-las a
seus interesses e/ou suas próprias regras.
Nos setores excluídos, como a população de rua, as pessoas que reciclam no lixo, os
dependentes químicos, são visíveis as formas como eles atuam frente às imposições da
1 Certeau 1998, p. 40.
sociedade, moldurando as regras e recriando-as de acordo com suas necessidades. No
texto “De lixo e bricolagem” de Ivete Walty2 ressalta em referência ao morador de rua:
O morador de rua reinventa o seu cotidiano, buscando uma forma de vencer obstáculos, lidando com as cenas imprevistas armadas por essa aventura. Se por um lado, de uma forma dura, é obrigado a encontrar alternativas que lhe permitam sobreviver, por outro, demonstra criatividade em meio a esse cenário, que, marcado pela “falta”, o instiga.
É lógico que o instinto de sobrevivência do ser humano o empurra a ser criativo na
adversidade. Ante uma sociedade que o exclui, que fecha seus olhos a essa “realidade”,
eles se mostram como uma manifestação da “desnecessidade”. Cita Walty no texto,
referindo-se a construção das “casas de rua” que: “desde o homem que deita sobre um
banco de praça e se cobre com um papelão (...)até o velho que constrói seu barraco em
plena rua Espírito Santo, (...) o que se observa é o bricoleur, usando o material de que
dispõe, na construção da sua casa e sua identidade”.
Mas esse tipo de bricolagem é mais palpável, mais possível de verificar e estudar. O que
passa quando o sujeito não esta definido socialmente, quer dizer, não esta dentro dessas
estatísticas sociológicas que o delimitam dentro de um grupo subjugado, em suma, um
chamado “sujeito comum” se é possível conceituá-lo assim, como serão percebíveis
suas bricolagens frente à ação ou inação do Estado, a sociedade, ou qualquer outro
grupo que lhe imponha condutas?
Neste ponto me assumo como sujeito de estudo. Sou estrangeiro, falante nativo do
espanhol, moro em Belo Horizonte, na região da Pampulha há mais de sete anos, sou
autônomo laboralmente, casado e pai. É lógico que em todo esse tempo assumi muitas
condutas que não são próprias da minha cultura, não obedeci outras tantas e fiz uma
bricolagem de muitas outras. Por exemplo, a língua é uma clara imposição lógica de
sobrevivência. Minha necessidade de aprender português estava ligada diretamente a
minha permanência no Brasil, mas o sotaque não é imposição. Claramente muitas
pessoas só de me escutarem falar me distinguem como estrangeiro, e isso é algo que não
pretendo modificar. Primeiro, pela dificuldade de aprender o sotaque mineiro, e segundo
para manter minha condição de estrangeiro.
2 Walty, 2004, p. 63.
Sucumbi, mas tardiamente, a essa imposição de ter um carro para virar motorista.
Quando expressava meu desinteresse frente a dirigir ou comprar um veículo, era
geralmente visto de forma desaprovadora, como não encaixando dentro dos padrões da
classe motorista brasileira. Essa desaprovação inicial virava uma especie de
“comiseração” depois de ouvir meu sotaque, e tal vez, achar que minas necessidades
não são as mesmas necessidades de todo brasileiro, por isso, então, todo bem.
Também o fato de falar só espanhol em casa, já foi quase matéria de excomunhão numa
escola onde pretendia matricular a minha filha. Contra todas as recomendações de
linguistas sobre a facilidade dos infantes de aprender uma língua estrangeira como
segunda língua materna quando é exposta desde a infância, a diretora desse centro deu
um sermão sobre a importância da “língua pátria” na educação e que não estavam em
disposição de arrumar “conflitos” linguísticos em infantes.
Como se vê dos exemplos, algumas imposições da sociedade podem ser muito sutis, e
não geram punição por descumpri-las. Ser mal-visto ou pouco entendido podem ser
consequências e não punições.
O bairro da rua McPherson.
Moro no bairro indaiá, perto da UFMG, num condomínio que dá para a rua Boa
Ventura, e atendendo a uma das definições de Certeau que diz que o bairro é uma parte
da cidade que atravessa um limite entre o espaço público e privado que resulta de um
caminhar, os limites de “meu” bairro chegam até a UFMG, o aeroporto da Pampulha, e
a rua Izabel Bueno desde o bairro Jaraguá até Dona Clara. Extensão bastante ampla
porque gosto de caminhar. O bairro tem três supermercados, bancos, lojas de todos os
tipos, o Pampulha Mall com seu cinema, restaurantes, bares, três hotéis, o clube
Jaraguá, a vila Santa Rosa, o parque ecológico Brejinho (próximo piscinão da
prefeitura), calçadas em péssimo estado, mangueiras em quase todas as ruas, cavalos
soltos e poucos (pouquíssimos) parques mal cuidados. Já escutei de algumas pessoas
dizerem que a região há 50 anos só tinha uma rua de terra e muitas chácaras e fazendas.
Ao parecer o cimento ganhou ao verde, e dessas chácaras e fazendas só ficaram as
lembranças de muitos vizinhos idosos e uma que outra árvore enorme. Se poderia dizer
que o bairro é de pessoas idosas e de estudantes por sua proximidade com a Federal.
Com a explosão de crédito hipotecário dos anos 2009 e 2010, as casas e apartamentos
da região se revalorizaram absurdamente, chegando novas construtoras e elevando a
altura dos prédios, com suas ofertas de vendas e aluguel. Então algo a mais para
apreciar no bairro, em todos os quarteirões, são os letreiros de ofertas de vendas e
aluguel. Pela quantidade de ofertas poder-se-ia pensar que a região é pouco povoada,
mas nas horas de maior tráfico das principais ruas tiram qualquer dúvida da multidão
que mora por aqui.
A intenção de ser um flanêur da região se dificulta por duas coisas que já mencionei: as
calçadas pessimamente conservadas e a escassez de parques como espaços públicos de
convivência. Como os moradores substituem essas carências? Para os mais antigos esta
o clube Jaraguá ao final da rua Izabel Bueno. Para os não antigos, é preciso pegar o
carro e se dirigir até a igreja cristã mais próxima (Santo Antonio da Pampulha ou Santa
Catarina de Laboure) que anexo tem espaços amplos e melhor cuidados.
Por isso um anseio da população era a revitalização do parque ecológico Brejinho,
próximo dos bairros Indaiá, Liberdade e da UFMG. Foi proposto dentro do orçamento
participativo da prefeitura, reconhecido pelo projeto Manuelzão como parte da
microbacia do córrego São Francisco, e parecia que veria a luz como projeto de lazer
para a copa do mundo, mas só ficou em projeto. Uma reclamação antiga da
administradora do estacionamento do aeroporto da Pampulha sobre inundações em dias
de chuva fez que o projeto recriativo necessário virasse um programa de escoamento
das águas residuais de chuva. Curiosamente, o que não foi investido em todos esses
anos para a conservação do parque ecológico, nos três últimos meses já foi retirada toda
a mata nativa e iniciada a construção do piscinão. Alguns vizinhos associados em uma
espécie de “amigos do parque ecológico” já tomaram providencias e paralisaram a
construção, com programação de audiência pública na prefeitura e diversas passeatas
pela região. Mas o parque ecológico não existe mais, a mata foi destruída totalmente e
acho que a nascente também. Então a briga será pelo espaço deixado e não pela
preservação.
Se essa promessa de espaço de lazer e esporte não foi cumprida, para a população
amante das caminhadas e corridas, só ficou tomar as ruas. Aimee Semple McPherson é
o nome de uma rua de seis quarteirões, contigua ao extinto parque, que de manha cedo e
de tarde entrada a noite, vira espaço de esportes. Muitas pessoas fazem caminhadas,
corridas, levam cachorros e “literalmente” tomam a rua (já falei das calçadas ruins) que
por sorte e por não conduzir a nenhum lugar é pouco transitada por carros. Já fiz
caminhada ali alguma vez, mas o cheiro do córrego que transpassa pela metade da rua,
me fez correr do lugar para não voltar.
É possível considerar uma bricolagem a atitude dos caminhantes da rua MacPherson?
Ante a imposição antiga de aqueles que lotearam as fazendas e chácaras, e do poder
político de não permitir a construção de um lugar apropriado para a prática de esporte,
os moradores tomaram as ruas e transformam o asfalto naquilo que precisam para
satisfazer sua necessidade de espaço e socialização.
Ao igual que o morador de rua que transforma o espaço público em lar, construindo sua
casa com aquilo que outros rejeitam, o caminhante da rua McPherson, vestido como
qualquer esportista, toma o espaço de transito veicular e o transforma em seu lugar de
prazer e diversão.
Referencia Bibliográfica
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Artes de fazer. Petrópolis: Editora
Vozes, 1998.
WALTY, Ivete. De lixo a bricolagem. Em: Revista Alceu. v.5, n.9 jul/dez. 2004. Rio de
Janeiro: PUC – Rio em: http://revistaalceu.com.puc-rio.br/media/alceu_n9_walty.pdf
(acesso em 02/09/14).