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Os Contos são carregados de materiais simbólicos ...
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REMOVA SUAS PEDRAS.
SÓ SE CURA QUEM PROCURA.
Rio de Janeiro
2011
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CLÍNICA POMAR
PROPOSTA DE ORIENTAÇÃO MULTIDIMENSIONAL ARTE REALIDADE
FORMAÇÃO CLÍNICA EM ARTETERAPIA
TURMA 78
ANGELLA MORGADO
ELIZABETH ALMEIDA DE SOUZA JACOB
ERICA DOS SANTOS VEIGA CUNHA
GLAUCE R. DE ARAUJO SOARES ARAUJO
LAURA BAPTISTA DO AMARAL
MARCIA REGINA CORREIA GARCIA
MARILÉIA SANTIAGO
PROFESSORES
ANGELA PHILIPPINI DENISE NAGEM MÁRCIA TAVARES ROMNEY OLIVEIRA
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Contos de fada são mais do que a verdade.
Não porque eles nos dizem que dragões
existem, mas porque eles nos dizem que dragões
podem ser derrotados.
Neil Gaiman
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SUMÁRIO
I - JUSTIFICATIVA..........................................................................................05 II – APRESENTAÇÃO.......................................................................................06 III – A ARTETERAPIA E OS CONTOS DE FADAS.............................................07 IV – ARTETERAPIA?........................................................................................09 V - O USO TERAPÊUTICO DOS CONTOS DE FADAS NO PROCESSO DO DESENVOLVIMENTO HUMANO................................................................11 VI – A ESCOLHA DO CONTO..........................................................................13 VII – O CONTO – A DONZELA MALVINA..........................................................15 VIII – O CONTO - A DONZELA MALVINA EM VERSÃO CORDEL......................22 IX – PRINCIPAIS MITEMAS PRESENTES NO CONTO.......................................27 X – NARRATIVAS CRIATIVAS..........................................................................29 XI – CONCLUSÃO...........................................................................................31 XII – CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................35 XIII - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..........................................................36
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I – JUSTIFICATIVA
No ano de dois mil e dez um grupo de dez mulheres ingressaram na
turma setenta e oito da POMAR - Proposta de Orientação Multidimensional Arte
Realidade.
No transcorrer do ano o grupo ficou reduzido a sete, número este que
tem como simbologia ser o número da vida, a união e a totalidade perfeita.
Um dos módulos do curso se baseia nos contos de fadas, onde cada
elemento do grupo tem de apresentar um conto, sinalizando os conteúdos
simbólicos no contexto da Arteterapia. Deliciamo-nos com vários contos,
enveredando neste mundo do faz de conta. Enfim, surgiu ela "A Donzela
Malvina".
A escolha ecoou dentro de cada uma de nós, de nós TODAS.
Descobrimos o desvelamento do feminino, o desejo de conquistar a liberdade, a
aspiração da jovem menina que se torna uma bela mulher num rito iniciático,
buscando sua transcendência. O conto nos leva a um mergulho profundo em
nosso interior, dando coragem a enfrentar a sombra e de cavar com as próprias
mãos o caminho a ser trilhado em busca da jornada heróica.
Com certeza e determinação que depois de removermos as pedras e
acharmos nossa cura, estaremos prontas para montar o conto que
consideramos bastante apropriado para o trabalho da oficina, dado o rítmo e
compasso apresentado numa produção artística pela colega Angella Morgado
em uma versão cordel que é suave, leve e alegre, o que certamente agradará a
todas e todos participantes.
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II – APRESENTAÇÃO
Em mil novecentos e antes
Antes de entrar na POMAR
Procurávamos alguma coisa
Entender, compreender e conquistar
Nas nossas torres encerradas
No escuro sem nada enxergar
Não tínhamos nada, nem uma faquinha
Não sabíamos como cavar
Até chegarmos a POMAR
Na POMAR aprendemos a usar
Uma faquinha, o lápis de cor, o pincel
E então começamos a plasmar
Do inconsciente para o papel
Os conteúdos a trabalhar
Nós ainda estamos a caminho
Malvina já chegou lá
Fez sua jornada heróica
E deixou um caminho a trilhar.
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III - A ARTETERAPIA E OS CONTOS DE FADAS...
Cada trabalho com Arteterapia é sempre um novo desafio, buscar
recursos, sensibilizações, e, neste momento do nosso curso de formação o
conto-tema para a oficina é o mais importante desafio. Os contos de fadas
apresentam recursos que podem nos ajudar a compreender a complexidade da
alma humana, pois tratam de questões existenciais com as quais convivemos
no nosso dia a dia. Possibilitam-nos o autoconhecimento e o conhecimento de
cada indivíduo. Apresentam-nos situações semelhantes às que vivemos, e junto
com elas, trazem as soluções encontradas pelos seus personagens.
Os contos são carregados de materiais simbólicos; ao trabalharmos com
eles e entrarmos em contato com os diferentes conteúdos simbólicos, estamos
criando possibilidades de novas atitudes frente às nossas dificuldades. Desta
forma o conto de fadas não é somente uma informação útil sobre o mundo
exterior, mas sobre os processos interiores que ocorrem em todos os seres
humanos. Pessoas de todas as idades também se encantam com os contos de
fadas. Por trazer temas universais é que observamos sua permanência entre
nós através dos séculos, bem como a razão do fascínio que o simples ato de
sentar-se junto aos outros para ouvir uma história ainda consegue despertar,
mesmo frente a um mundo cheio de brinquedos e maravilhas tecnológicas.
Acreditamos, portanto, que as mensagens inseridas nos contos de fadas
vão ao encontro dos anseios das diferentes faixas etárias e trabalham com os
dilemas da humanidade. Desta forma, independente da idade, os contos de
fadas podem nos trazer mensagens muito importantes, além de nos possibilitar
vislumbrar novos caminhos. Os arquétipos presentes no inconsciente coletivo
são universais, idênticos em todos nós. Entre os principais arquétipos estão os
conceitos de nascimento, morte, sol, lua, fogo, poder e mãe. E estes temas são
encontrados em muitos contos de fadas. Quando os arquétipos se manifestam,
já não são mais eles que são percebidos e sim suas representações, ou imagens
arquetípicas.
Os contos de fadas giram em torno do Símbolo do Self; ainda podemos
encontrar em muitos contos temas que evocam os conceitos dos Arquétipos da
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Sombra, Animus e Anima. Sendo assim, estes contos são importantes na
medida em que ativam o mundo do inconsciente, o qual não temos acesso de
maneira direta, e trazem através das produções a visualização destes conteúdos
internos.
Não se trata de acreditar nos feitos heróicos e nos encantamentos que as
histórias descrevem. Essas coisas não são verdades objetivas, mas, sim, são
verdades subjetivas narradas na linguagem dos símbolos. Histórias e mitos não
passarão através do crivo das exigências racionais, evidentemente. Contudo,
isso não impede que atinjam outras faixas para além do consciente.
Obscuramente será pressentido que ali se espelham acontecimentos em
desdobramento no seu próprio e mais profundo íntimo. São essas ressonâncias
que fazem o eterno fascínio dos contos de fada.
O conto é a arte da palavra que se expressa na relação com o outro.
E... assim, foram felizes para sempre...
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IV – ARTETERAPIA?
O momento atual necessita de um conceito de ser humano mais
integrador, que inclua seus aspectos intelectuais, emocionais, afetivos e
racionais dentro de uma visão totalizadora e igualitária de mundo. A alma se
constitui não somente pela mente, mas pelo corpo inteiro; nesse sentido, é
importante libertar as energias expressivas e criativas esquecidas ou
adormecidas, que foram aprisionadas pelos excessos da ciência racional e da
tecnologia.
O psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, discípulo de Freud, que, mais
tarde, se afastou da Psicanálise Freudiana, desenvolveu uma compreensão que
traz essa visão integradora de ser humano. Jung acreditava que o sentido da
vida era a individuação, termo que desenvolveu para se referir ao impulso à
totalidade. Isso acontece através da integração e harmonização de todos os
aspectos do ser, incluindo aspectos sombrios e obscuros da personalidade.
Para Jung, a arte é uma forma de expressão do universo simbólico do ser
humano. Através das expressões criativas, a visão de mundo de cada um tem a
possibilidade de ser representada materialmente – plasmada pela obra de arte –
e explorada. Ao representar de modo consciente as imagens criadas numa
produção artística, a pessoa estabelece uma nova relação com sua imaginação.
É possível se questionar sobre o sentido atribuído à obra, é possível dialogar
com o inconsciente tendo a produção artística com ponte.
Através da expressão artística, a pessoa atua no mundo de maneira
transformadora, criando novas formas através do contato com materiais
plásticos, através das performances corporais, da música, da dança, dentre
outros meios de expressão. Através da arte também, a pessoa pode assumir
seus atos como próprios ao se posicionar diante da criação formalizada.
A expressão artística, portanto, oferece ao indivíduo a oportunidade de
desenvolver e organizar suas habilidades, sendo um elemento facilitador de
acesso ao seu mundo imaginário e simbólico, permitindo o desenvolvimento de
potencialidades latentes, bem como o autoconhecimento. Uma imagem
projetada ou um movimento corporal refletem a maneira pessoal de cada um
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relacionar-se com o outro, posicionar-se e estar no mundo, bem como seus
valores e sentimentos.
A arte acessa o imaginário simbólico. A percepção das imagens ou
formas pelo autor da obra pode, através da mediação de um terapeuta, trazer
consciência ou clareza a um acontecimento ou processo interno não
identificado ou percebido anteriormente. A Arteterapia tem, assim, sua
fundamentação: possibilitar, através do fazer artístico acompanhado por um
terapeuta, a compreensão e integração de aspectos da personalidade. Neste
sentido, o papel do arteterapeuta, enquanto facilitador do processo terapêutico
é o de estimular o indivíduo a criar até a finalização de sua obra, observando,
neste percurso, suas atividades, comportamento, suas reações e expressões
orais, durante a execução do trabalho.
Em termos técnicos, enfim, no processo de Arteterapia, a criação
artística tem a finalidade de trazer à luz um conteúdo inconsciente para ser
confrontado e integrado à consciência. Este processo possibilita a comunicação
e discussão de representações (fantasias, sentimentos, sensações, sonhos,
visões de mundo), através da expressão artística, oferecendo, assim, um lugar
para que o indivíduo possa liberar energias psíquicas e expressar, em um
momento posterior, através de palavras o que antes não tinha nome, identidade
e lugar ou espaço para manifestar-se.
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V - O USO TERAPÊUTICO DOS CONTOS DE FADAS NO PROCESSO DO
DESENVOLVIMENTO HUMANO
Carl Gustav Jung deixou margem para estudiosos da psicologia analítica
verem, no conto de fadas, a possibilidade de trabalhar questões relativas à
existencialidade humana, que estão no plano do inconsciente — enquanto
imagens arquetípicas —, levando o ser humano a entrar em contato com o seu
processo de individuação, encorajando-o para a vida, criando sempre novas
possibilidades que dariam continuidade ao fluxo da existência. Na realidade,
Jung se aprofunda de forma detalhada no estudo dos contos de fadas,
motivado, obviamente, pelo seu interesse acerca da questão do simbolismo
universal e arquetípico como influenciador da história individual das pessoas.
Jung, na verdade, trabalhou na decodificação dos contos infantis para melhor
diagnosticar e entender as doenças psicológicas, acreditando que os contos de
fadas representavam as etapas do processo de individuação: a realização, pelo
ego, das potencialidades de si mesmo. Segundo ele, os contos de fadas nada
mais seriam do que a versão contemporânea da transmutação alquímica, em
que a matéria bruta seria transformada em algo de maior valor.
Essas narrativas, assim como os mitos e rituais iniciáticos, são para
Jung (1964) os tesouros da humanidade utilizados para atravessar momentos
de crise. São experiências iniciáticas disfarçadas, a fim de poderem escapar da
censura de uma época antimítica. São as expressões mais transparentes dos
arquétipos do inconsciente coletivo. De acordo com o teórico, o inconsciente
coletivo seria um reservatório de imagens latentes, em geral chamadas de
imagens primordiais. O homem herdaria essas imagens do passado ancestral,
passado esse que inclui todos os antecedentes humanos, bem como os
antecedentes pré-humanos ou animais. Essas imagens nada mais seriam que
predisposições, no lidar e no responder ao mundo tal como os antepassados.
Por sua vez, os conteúdos do inconsciente coletivo, chamados de
arquétipos, estimulam um padrão pré-formado de comportamento pessoal, que
o indivíduo seguirá desde o dia do seu nascimento. São de natureza universal, o
que justifica a crença defendida por Jung de que todos os homens herdariam as
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mesmas imagens arquetípicas básicas. Sendo assim, por exemplo, cada criança
herdaria um arquétipo materno. Essa imagem pré-formada da mãe aplica-se
futuramente a uma imagem definida pela aparência e pelo comportamento da
verdadeira mãe e pelas relações que a criança travaria com ela.
Em suas reflexões, Jung procurou mostrar o quanto é necessário para
um psicanalista um conhecimento sólido e profundo da questão dos arquétipos
e da mitologia, para poder compreender e utilizar os contos de fadas e sua
simbologia universal enquanto material clínico. Segundo ele, a presença de
animais na quase maioria dos contos parece sugerir a natureza primitiva e
instintiva do homem. Concordando com Freud, afirma que, para poder
rememorar o seu lado perverso, o homem lança mão da figura de animais, às
vezes demoníacos, como cobras, dragões, leões, lobos...
Essa relação parece esclarecer a teoria dos discípulos de Jung, na qual
acredita-se que os contos de fadas, por retratarem imagens arquetípicas
universais, por serem presentes no inconsciente coletivo do ser humano e
originados, possivelmente, nos sonhos das pessoas, seriam um modelo
encorajador para a vida, criando sempre novas possibilidades que dariam
continuidade ao fluxo humano da existência.
Para vários estudiosos da psicologia analítica, cada conto de fadas
representa um drama no qual os personagens arquetípicos — que povoam o
inconsciente — movimentam o psiquismo, estabelecendo a ponte entre o
consciente e o inconsciente, obtendo, a partir desse momento, efeitos catárticos
e projetivos.
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VI - ESCOLHA DO CONTO – “A DONZELA MALVINA”
Considerações individuais do grupo sobre a escolha do conto.
ANGELLA – O conto A donzela Malvina apresenta todos os elementos
necessários para uma oficina: um enredo cativante, envolvente e com lísis, o que
é terapeuticamente muito importante.
ELIZABETH – Escolhi este conto porque nele encontro trechos que se inserem
com a minha própria jornada na vida. O pai autoritário, o aprisionamento, a
solidão, a saída, o cavar. A pessoa que atua num terreno inóspito, a faxineira – o
cozinheiro.
ERICA – Gostei do conto da Donzela Malvina devido à busca da liberdade.
GLAUCE – A escolha foi unânime. E para mim o grande marco foi o desvelamento
do feminino, como conteúdo simbólico que me tocou de forma profunda. O desejo
de conquistar a liberdade. A aspiração da jovem menina que se torna uma bela
mulher e neste seu rito de passagem iniciático, a conduz para o conhecimento e
desenvolvimento da sua transcendência.
LAURA – Quando era criança, li a coleção dos Contos dos Irmãos Grimm.
Algumas histórias de princesas, príncipes, torres e amores proibidos
permaneceram vivas na minha memória. Voltei a esses livros para buscar o
melhor conto para apresentar ao grupo. Já não me lembrava do conto da Donzela
Malvina que escolhi logo que li. Trouxe esse conto até o grupo porque se trata de
uma história cuja personagem principal é uma heroína que não espera que um
príncipe venha tirá-la da torre onde foi aprisionada. Ela mesma cava a sua saída
e vai em busca da sua vida. Vive um período de sete anos de reclusão e
escuridão, mas quando percebe que salvar a sua vida depende só dela e da sua
aia fiel, enche-se de coragem e enfrenta o desafio até encontrar a luz outra vez. É
uma história que além do amor, mostra a força, a obstinação, a coragem e a fé da
heroína. É uma historia feminina, ideal para ser contada por sete mulheres.
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MARCIA – Escolhi este conto porque a questão do autoconhecimento se coloca de
forma rica, com elementos muito fortes, um mergulho profundo no interior de si
mesma, a coragem de enfrentar a sombra e de cavar com as próprias mãos o
caminho a ser trilhado na sua jornada do autoconhecimento. As duas cavam e
trilham juntas até o encontro com o masculino.
MARILÉIA – A história conseguiu reunir as questões psíquicas que norteiam o
grupo de sete mulheres que constitui a turma 78. Primeiro a busca da jornada
heróica. As protagonistas são do gênero feminino e em busca da libertação da
figura masculina. A quebra do elo do mundo interno em busca da identidade
(Individuação), que gera a tão sonhada libertação.
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VII - O CONTO: A DONZELA MALVINA
Era, uma vez, um rei que tinha um único filho a quem muito queria. Um
dia, este príncipe pediu em casamento a filha de outro rei muito poderoso,
chamada, comumente, a donzela Malvina, cuja beleza era extraordinária. Mas o
pai da princesa, que desejava dá-la em casamento a um outro príncipe, recusou
esse pedido. Os dois jovens, porém, amavam-se muito e não queria ser assim
separados; então a donzela Malvina disse ao pai:
- Não quero e nem poderia casar-me com nenhum outro homem, pois amo
este príncipe.
Diante desta atitude, o rei enfureceu-se e mandou construir uma torre
escura, na qual nunca penetrava o mais leve raio de sol ou de luar. Assim que
ficou pronta, disse à filha:
- Ficarás presa nesta torre durante sete anos, findo os quais, quero ver se
está ou não destruída a tua obstinação.
Mandou levar para a torre alimentos e bebidas suficientes para sete anos.
A princesa e sua aia foram para lá conduzidas e, em seguida, muraram a porta,
deixando-as assim isoladas do céu e da terra.
As pobres criaturas passavam o tempo no meio da escuridão, sem nunca
saber quando clareava o dia ou quando caía a noite.
O príncipe, desconsolado, continuava perambulando em volta da torre,
sempre chamando a noiva pelo seu nome; mas nenhum som exterior conseguia
penetrar através daqueles muros espessos. Portanto, que mais podia fazer se não
chorar e lastimar-se?
Enquanto isso ia passando o tempo. Por fim, vendo que as provisões já
estavam bem reduzidas, as duas infelizes compreenderam que o sete anos de
segregação estavam para findar. E julgaram que a hora de sua libertação já
houvesse soado; mas, por mais que apurassem o ouvido, não distinguiam
nenhum ruído de martelos ou de pedras a deslocarem-se do muro; parecia
mesmo que o pai as havia completamente esquecido.
Notando que só lhes restava alimentação para uns dias apenas e
prevendo um fim horrível, a donzela Malvina disse à sua companheira:
- Façamos uma suprema tentativa, procuremos com toda a coragem fazer
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uma abertura na parede!
Resolvido isto, munidas da faca de cortar pão, puseram-se a escavar e a
furar o cimento; quando uma estava cansada a outra substituía-a e assim
trabalhavam o tempo todo. Após longo e penoso trabalho, conseguiram remover
uma pedra, depois outra e mais outra, até que, dentro de três dias, viram
penetrar naquelas trevas horrendas o primeiro e consolador raio de sol.
Trabalharam com mais ardor, até que a abertura ficou bastante grande e elas
puderam olhar para fora.
O céu estava de um azul límpido e maravilhoso, a brisa fresca acariciou-
lhe suavemente as faces, mas, onde seus olhos pousavam, só viam desolação. O
castelo do rei, seu pai, era um montão de ruínas, a cidade toda e as aldeias, até
onde seus olhos podiam alcançar, estavam arrasadas, os campos todos
queimados: não se via alma viva, tudo estava destruído e morto.
Alargaram mais a abertura, obtendo o tamanho suficiente para poderem
sair; a camareira saiu em primeiro lugar, seguindo-a logo após a donzela
Malvina. Mas para onde ir? O exército inimigo tinha devastado todo o reino,
expulsando o rei e massacrado os habitantes, e elas não viam onde encontrar
refúgio.
Então encaminharam-se as duas em busca de outro país. Todavia, por
todas as terras em que passavam não conseguiam encontrar abrigo ou alguma
alma generosa que lhes dessem um pedaço de pão. Tão grande era a fome, que
tiveram de alimentar-se com um punhado de urtigas encontradas à margem da
estrada.
Andaram, andaram, andaram, por fim chegaram a um reino desconhecido
e lá procuraram empregar-se como criadas, mas eram repelidas de todas as
portas e não encontraram compaixão na alma daquela gente.
Finalmente, chegaram à capital do reino e dirigiram-se ao paço real. Aí,
também foram convidadas a seguir o caminho, mas o cozinheiro vendo-as tão
abatidas, compadeceu-se delas e disse que podiam empregar-se como faxineiras
e lavadeiras, sob suas ordens.
Aconteceu que o filho do rei, em cujo palácio estavam empregadas, era
justamente o antigo noivo da donzela Malvina. Querendo que se casasse, o pai
tinha-lhe arranjado uma noiva, tão feia de coração como de rosto. O dia do
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casamento já estava marcado e a noiva já havia chegado; mas, por causa da sua
feiura, não ousava apresentar-se em público e permanecia fechada no quarto. A
donzela Malvina fora encarregada de servi-la e levar-lhe a comida.
Ao chegar o dia em que o príncipe devia conduzir à igreja a noiva, ela
sentiu-se tão envergonhada de aparecer e tão receosa de ser escarnecida pelo
povo, que disse à donzela Malvina:
- Ouve aqui, cai-te do céu uma sorte inesperada; eu torci o pé e estou
impossibilitada de me por a caminho para a igreja; tens portanto que vestir meu
traje nupcial e substituir-me; honra maior do que esta não podias esperar!
Mas a donzela Malvina recusou a proposta, dizendo:
- Não quero honras que não me pertencem.
A outra ofereceu-lhe uma grande quantia em ouro; tudo foi completamente
inútil, não conseguia convencê-la. Por fim enraiveceu-se e disse-lhe asperamente:
- Se não me obedeceres, arriscarás a vida; pois basta que eu diga uma só
palavra para que tenhas a cabeça decepada.
Diante disto, a moça teve que obedecer, vestiu os trajes suntuosos e
adornou-se com as jóias da noiva.
E quando se apresentou na sala do trono, os convidados ficaram
extasiados ante sua grande beleza; e o rei disse ao filho:
- Aqui está a noiva que escolhi para ti; conduze-a ao altar.
Estupefato, o noivo matutava: “É estranho, parece-se tanto com a minha
donzela Malvina que até parece ser ela em pessoa; infelizmente, porém, há tantos
anos foi encerrada na torre que talvez já tenha morrido.” Ofereceu a mão à noiva
e conduziu-a à igreja. Mas, pelo caminho encontraram à margem da estrada, um
pé de urtiga e então a moça disse:
- Urtiga,
minha urtiga, coitadinha,
que fazes aqui tão sozinha?
Certa vez por aqui passei,
morta de fome, e te devorei!
- Que estás dizendo? – perguntou-lhe o príncipe.
- Oh! Nada! – respondeu ela – estava apenas lembrando a donzela
Malvina.
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O príncipe ficou admirado que ela a conhecesse, mas não disse nada.
Quando chegaram ao pé da escadaria diante da igreja, ela disse:
- Ó degrauzinho, não vás te quebrar,
a verdadeira noiva não vês passar!
- Que disseste? – tornou a perguntar o noivo.
- Nada! - respondeu ela – estava só pensando na donzela Malvina.
- Tu conheces a donzela Malvina?
- Não, não! Como poderia conhecê-la? Apenas tenho ouvido falar nela.
Quando chegaram à porta da igreja, ela disse mais uma vez:
- Ó porta da igreja, não vás desabar!
A verdadeira noiva não vês passar.
- Mas que estás a dizer, - perguntou o noivo.
- Oh, estava apenas lembrando a donzela Malvina.
Antes de penetrar na igreja, o príncipe tirou do bolso um magnífico e
precioso colar, colocou-o no pescoço da noiva e apertou bem o fecho; em seguida,
dirigiram-se ao altar onde o padre uniu suas mãos e deu-lhes a benção,
tornando-os marido e mulher.
O príncipe e a noiva voltaram para casa, mas, durante todo o caminho, ela
não abriu a boca para dizer uma palavra. Chegando ao castelo real, ela correu
para o quarto da outra noiva e despiu as roupas nupciais. Depois tornou a vestir
suas pobres roupas cinzentas, mas conservou no pescoço o colar que recebera do
noivo.
Á noite, a noiva devia ser conduzida ao quarto nupcial, mas tratou de
cobrir o rosto com um véu a fim de que o noivo não lhe visse a feiura e não
descobrisse o embuste. Assim que os criados se retiraram, o príncipe perguntou-
lhe:
- Conta-me agora o que disseste ao pé da urtiga que encontramos à
margem da estrada.
- Qual urtiga? – perguntou ela; - eu não tenho o hábito de falar com
urtigas!
- Se não o fizeste, então não és tu a verdadeira noiva! – disse o príncipe;
mas ela tentou sair da embrulhada, dizendo:
- Com a minha criada preciso ir ter,
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para que faça minha memória reviver!
Dirigiu-se ao quarto da donzela Malvina e perguntou-lhe asperamente:
- Ó criatura, que foi que disseste ao pé da urtiga?
- Disse-lhe simplesmente isto:
- Urtiga,
minha urtiga, coitadinha,
que fazes aqui tão sozinha?
Certa vez por aqui passei,
morta de fome, e te devorei!
A noiva voltou correndo para o quarto nupcial e disse ao príncipe:
- Agora lembro-me do que disse ao pé da urtiga! – E repetiu textualmente
as palavras que acabara de ouvir.
- E ao pisar aos degraus da igreja, o que disseste?
- Que degraus? – disse ela admirada; - eu não costumo falar com degraus!
- Se é assim, então não és tu a verdadeira noiva, - repetiu ele desconfiado.
- Mas ela fez o mesmo que fizera antes.
- Com a minha criada preciso ir ter,
para que faça minha memória reviver!
Saiu correndo, foi ao quarto da criada e perguntou com brutalidade.
- Que é que disseste ao pisar os degraus da igreja?
- Eu disse apenas isto:
- Ó degrauzinho, não vás te quebrar,
a verdadeira noiva não vês passar!
- Ainda terás que pagar com a vida! – gritou-lhe a noiva, mas foi correndo
para o quarto e disse ao príncipe:
- Só agora me lembro o que disse ao pisar os degraus da igreja! – e repetiu
as palavras ouvidas.
- Está bem, mas diga-me agora que foi que disseste ao transpor o umbral
da igreja?
- Que umbral? Eu Jamais falei com um umbral!
- Não? Então não és tu a verdadeira noiva!
Ela voltou a perguntar a donzela Malvina:
- Conte-me já, que foi que disseste no umbral da igreja?
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- Disse só isto:
- Ó porta da igreja, não vás desabar!
A verdadeira noiva não vês passar.
Ordenarei que te cortem a cabeça! Esbravejou a noiva possessa de raiva.
Mas, saiu correndo, e foi ter com o noivo, ao qual disse:
- Lembro-me agora o que disse à porta da igreja! – repetiu as palavras da
outra.
- E, dize-me, onde está o colar que coloquei em teu pescoço e que prendi
com minhas próprias mãos, ao entrarmos na igreja?
- Que colar? Nunca me deste colar nenhum.
- Não te lembras então do que eu te coloquei no pescoço? Se ignoras isto é
porque não és a verdadeira noiva!
- Assim dizendo, arrancou-lhe o véu do rosto e, ao dar com aquela
monstruosa feiúra, pulou para trás espantado, perguntou horrorizado:
- Como vieste aqui? Quem és tu?
- Eu sou a tua verdadeira noiva. Com medo que o povo me escarnecesse
ao passar pelas ruas mandei a criada vestir minhas roupas e seguir para a igreja
em meu lugar.
- E onde está agora essa moça? – perguntou o príncipe; - quero vê-la! Vá
buscá-la e traze-a à minha presença.
A noiva encaminhou-se depressa, mas disse aos criados que aquela
faxineira era uma embusteira, que a levassem, portanto ao fundo do quintal e lhe
decepassem a cabeça.
Os criados apoderaram-se da pobre moça e tentavam arrastá-la para o
local do martírio, mas ela pôs-se a gritar com todas as forças e a pedir socorro. O
príncipe ouviu aqueles gritos, e saiu correndo do quarto e mandou que a
soltassem imediatamente. Quando trouxeram luzes e ele pode ver o colar de
pérolas que lhe colocara ao pescoço na porta da igreja, exclamou radiante:
- A tu que és minha verdadeira noiva! A mesma que foi comigo à igreja.
Vem comigo, vamos para os nossos aposentos.
Assim que ficaram a sós, ele lhe disse:
- Quando íamos para a igreja, ouvi-te mencionar a donzela Malvina, que foi
minha noiva; se isto fosse possível, acreditaria tê-la agora na minha presença, tal
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a semelhança que tens com ela.
- Pois sou eu mesma a donzela Malvina; a mesma que por teu amor
passou sete anos presa na torre escura. Passei muita fome e sede e durante
bastante tempo vivi na mais negra miséria, hoje, porém, o sol volta a brilhar para
mim. Na igreja nós é que fomos unidos em matrimônio, portanto sou eu a tua
verdadeira esposa.
Então abraçavam-se e beijaram-se, com a maior alegria, e foram
imensamente felizes pelo resto da vida.
Ao passo que a perversa noiva feia foi decapitada.
A torre onde permanecera a donzela Malvina conservou-se sólida durante
muitos anos e quando as crianças iam brincar perto dela, costumavam cantar:
- Din, don dan,
Na torre quem está?
Está uma princesa
que ninguém pode ver
e o muro romper,
nem a pedra furar.
Joãozinho de paletó xadrezinho,
Corre, vem me pegar!
22
VIII - A DONZELA MALVINA - (VERSÃO CORDEL)
Autora: Angella Morgado
Era uma vez um rei Que apenas um filho tinha E esse filho foi falar Com o pai da donzela Malvina Foi pedi-la em casamento Pois a beleza da dama Cativou seu coração Mas, para sua tristeza O pai da donzela Malvina Lhe deu um sonoro NÃO. “O que farei agora? Com outro não posso casar, Pois amo o príncipe Haroldo, E nada vai nos separar!” “Ah, vai sim” Disse o pai de Malvina “Numa torre escura vais ficar Isolada sete anos Sem ver sol e nem luar. Essa ideia vai passar!” Foram levadas para a torre Malvina e sua aia fiel Tinham água e comida Mas não viam mais o céu Que dia é hoje? Não sei Faz frio lá fora? Não sei Tá chovendo agora? Não sei Haroldo me chama, eu sei... E assim foi passando o tempo E quando a água era pouquinha E pouquinho era o pão As duas logo pensaram “Chegou a libertação!” Mas não chegava ninguém Mas ninguém aparecia “Meu pai se esqueceu de nós? Não, isso seu pai não faria”
“Aia fiel, não vamos esperar. Toma, com essa faquinha de pão Muita vontade no coração, Muita força em nossa mão, A saída vamos cavar!” Vamos cavar na parede Na parede vamos cavar Se eu paro, você continua Eu continuo se você parar E, com muita vontade no coração, Com muita força em nossa mão, A saída vamos achar!” E depois de muito tempo E de muito tempo depois Fizeram um buraquinho, Primeiro um, depois dois E passados 3 dias, Que felicidade, que alegria, Pelo buraco da parede Um rainho de sol se mexia! Trabalharam com mais afinco E com mais dedicação Até aquele buraquinho Virar bem um buracão Para passar a faquinha, Para passar um dedinho Para passar uma mão! E pelo buraco da parede Entra um vento bem fresquinho E toda a treva da torre Escorre pelo buraquinho O buraco vai aumentando Cada dia um pouquinho, Todo dia, e devagar Malvina e sua aia fiel Podem então se libertar, Olhando lá fora, entretanto, Viram só desolação, Tudo deserto, tudo vazio E nenhuma habitação “Pra onde foi todo mundo?
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Onde todo mundo está?” O campo todo arrasado, O reino de meu pai devastado, E Haroldo, onde estará? Bem, minha aia fiel, Aqui não podemos ficar Vamos achar vida nova Em algum outro lugar” As duas então caminharam Caminharam até cansar Num reino estranho chegaram E queriam trabalhar “Fora daqui vocês duas, Fora, caminho da rua Aqui não queremos vocês Fora, caminho da rua Fora daqui de uma vez!” A fome era tão grande E tão grande a fadiga Que pra não morrer à mingua Comeram um punhado de urtiga Foram embora então Malvina e sua aia fiel Deixando pra trás essa gente Tão malvada, tão cruel Até que chegarem num reino Tão cansadas, abatidas Mas um cozinheiro amigo Lhes deu trabalho e guarida Malvina era faxineira Lavava roupa com sabão Sua alma de princesa Guardava no coração “Aia fiel, me diga que reino é esse.” “Senhora, que reino é esse eu não sei!” Trabalhavam e nem sabiam Que Haroldo era filho do rei Mas o rei arranjou uma noiva Pro Haroldo se casar Mas ela, que era tão feia Não quis o seu rosto mostrar O dia já estava marcado
A noiva já havia chegado E Malvina a encarregada De levar-lhe no quarto a comida Mal sabia a pobrezinha Que de novo no seu peito Se abriria a ferida Finalmente chega o dia Do famoso casamento E a noiva, em pensamento: “Não posso ir, quem diria Não posso ir, que agonia Todos vão descobrir Minha feiúra sem fim. Escuta, criada chinfrim, Veste agora o meu vestido E com o meu noivo querido Entra na igreja por mim.” “Não quero honra que não é minha.” Diz Malvina, coitadinha “Toma ouro!” “Quero não!” “Toma seda !” “Também não!” Pensa quietinho Malvina: “Aquilo que é meu de direito Virá bem na minha mão!” “Você me obedeça, criada chinfrim Ou mando cortar teu pescoço Já estás que é pele e osso Vai de um só golpe, assim!” A moça não teve saída Vestiu o traje da noiva E de jóias se cobriu E era a noiva mais linda Que aquele reino já viu O noivo ficou gelado O corpo paralisado Pro túnel do tempo levado Estupefato ele ficou “Essa criada tão linda Parece demais a Malvina Que na torre se fechou” Recuperado do susto
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Levou a noiva na igreja E então pelo caminho Ela para, ali pertinho, E disse sem demora Escuta, pezinho de urtiga O que vou te dizer agora: “Minha urtiga, coitadinha, Que fazes aqui tão sozinha? Certa vez aqui passei Morta de fome, te devorei” “O que você está dizendo, Minha princesa divina?” “Nada, só estava lembrando A saudosa donzela Malvina.” O príncipe se admirou Por ela conhecer Malvina Mas nada ele diria E quando chegaram, ela pára ao pé da escadaria “Oh, degrau, degrauzinho Por favor, não vás te quebrar Mas a verdadeira noiva Hoje tu não vês passar” “O que você está dizendo, Minha princesa divina?” “Nada, só estava lembrando A saudosa donzela Malvina.” “Você conhece Malvina?” “Não, apenas ouço falar nela Como poderia conhecer aquela pobre donzela?” E quando chegaram à porta da igreja mais uma vez ela disse: “Oh, porta, portinha Por favor, não desabe Quem é a verdadeira noiva? Isso só você sabe.” “O que você está dizendo, Minha princesa divina?” “Nada, só estava lembrando A saudosa donzela Malvina.” E antes de entrar na igreja
Antes de subir ao altar Haroldo coloca na moça Um valioso e belo colar O padre os abençoa Os anjos dizem amém E, voltando pro castelo Malvina volta em silêncio Não diz palavra a ninguém Corre então para o quarto Onde a roupa ela trocou Troca os sapatos, tira os adornos, Mas o colar não tirou À noite, a noiva deveria Ser conduzida pro quarto. Sendo esposa de direito Seria esposa de fato “Com um véu cubro meu rosto Na noite de lua-de-mel Pra não lhe causar um desgosto Cubo meu rosto com um véu Não me importa o que me custe Pra esconder minha feiúra Pra encobrir meu embuste.” “Agora que estamos a sós Diz-me aqui, esposa amada O que disseste ao pé da urtiga Que encontramos na estrada? Eu falei com uma urtiga? Que história engraçada! Eu falei com uma urtiga? Devia estar tonta, abestada Pra falar com uma urtiga Bem na beira da estrada Isso não é brincadeira, Se isso tu não fizeste, Não és noiva verdadeira E pra sair da embrulhada Diz a noiva aparvalhada “Com minha criada preciso ir ter Pra minha memória reviver!” Vai ao quarto de Malvina E pergunta com aspereza “O que disseste ao pé da urtiga
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Que impressionou a realeza?” “Minha urtiga, coitadinha, Que fazes aqui tão sozinha? Certa vez aqui passei Morta de fome, te devorei” A noiva volta correndo Sem tropeçar nem cair E repete para o príncipe O que acabara de ouvir “Agora que estamos a sós Diz-me aqui, neste momento O que disseste ao pisar os degraus da igreja, no casamento?” Eu falei com um degrau? Que história engraçada! Eu falei com um degrau? Devia estar tonta, abestada Para falar com um degrau Devia estar passando mal.” “Isso não é brincadeira, Se isso tu não fizeste, Não és noiva verdadeira.” E pra sair da embrulhada Diz a noiva aparvalhada “Com minha criada preciso ir ter Pra minha memória reviver!” Volta ao quarto de Malvina E pergunta com brutalidade “O que disseste ao pisar os degraus Da casa da santidade?” “Oh, degrau, degrauzinho Por favor, não vás te quebrar Mas a verdadeira noiva Hoje tu não vês passar.” A noiva volta correndo Sem tropeçar nem cair E repete para o príncipe O que acabara de ouvir “Ainda estamos a sós Diz-me aqui, afinal O que disseste ao transpor
Da igreja o umbral?” “Eu falei com um umbral? Que história engraçada! Eu falei com um umbral? Devia estar tonta, abestada Para falar com um umbral Devia estar passando mal” “Isso não é brincadeira, Se isso tu não fizeste, Não és noiva verdadeira” Volta ao quarto de Malvina Pergunta mais uma vez , a terceira O que disseste passando o portal Da casa da padroeira?” “Oh, porta, portinha Por favor, não desabe Quem é noiva verdadeira? Isso só você sabe.” A noiva volta correndo Sem tropeçar nem cair E repete para o príncipe O que acabara de ouvir “Agora, só entre nós dois” Diz o noivo, belo moço “Onde está aquele colar Que te coloquei no pescoço?” “Tu me deste um colar? Que história engraçada! Tu me deste um colar? Devia estar tonta, abestada Veja você, no meu pescoço Não há colar, não há nada!” “Isso não é brincadeira, Se isso tu não fizeste, Não és noiva verdadeira” E dizendo essas palavras O noivo arrancou o véu Que cobria o seu rosto Deixando o seu rosto ao léu Mostrando toda a feiúra
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Que cabe embaixo do céu O noivo, já tonteado, pula pra trás, espantado e pergunta horrorizado “Como entraste no castelo? E quem és, estranha figura Como pode tanta feiúra Caber numa só criatura?” “Sou sua noiva verdadeira Por grande vergonha e medo Fiz com que uma bela criada Passasse por mim em segredo” “Aonde está essa moça agora? Traga-a já à minha presença Quero vê-la sem demora!” A noiva logo saiu Para a criada buscar Mas no meio do caminho A criada quer matar Chama os criados, que pegam a moça sem compaixão Querem apertar o pescoço do colar da redenção Ela grita, ela berra Gritando, pede socorro “Meu príncipe, me salve Se eles me matam, eu morro!” O príncipe ouviu seus gritos Sai correndo pra salvar Manda soltar a donzela Que então volta a respirar “Tu és a verdadeira noiva Posso ver pelo colar Vamos, imediatamente Quero contigo casar!” “Não precisa, não precisa Pois casados já estamos
Quero apenas te dizer Príncipe Haroldo, eu te amo! Sou a donzela Malvina Vivi na mais negra miséria Numa miséria sem fim Mas hoje o sol da alegria Volta a brilhar para mim Por nós passei sete anos Na torre escura e sombria Mas sempre tive a certeza De que a felicidade viria.” E assim Haroldo e Malvina Com muito amor se abraçaram E num longo e terno beijo Seu grande amor confirmaram Por todos foi logo esquecida A noiva impostora e malvada Mandada de volta ao país Onde foi nascida e criada Haroldo diz à Malvina: “Quero-te perto de mim! Vamos viver hoje e sempre A felicidade sem fim!”
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IX – PRINCIPAIS MITEMAS PRESENTES NO CONTO
Mitema é a partícula essencial de um mito, um elemento irredutível e imutável, algo
que sempre se encontra dividido com outros. O mito como um arranjamento de
símbolos e arquétipos se apresenta através de mitemas - discurso este relativo ao
ser, onde está investida uma crença que propõe realidades instaurativas. Quando um
mito diretivo manifesta-se através da redundância, é identificado como mitemas. Os
mitemas constitutivos da narrativa mítica repetem-se e por isso mesmo tornam-se
cada vez mais significativos. Um mitema pode ser um motivo, um tema, um objeto,
um cenário mítico, um emblema, uma situação dramática, etc. Portanto, o mito vai se
definindo a partir da organização de símbolos e de um quorum de mitemas, pois o
mitema é um "átomo mítico" de natureza estrutural.
(Fonte: Dicionário de Símbolos, Jean Chevalier – 1998)
Mitemas identificados e destacados por ordem alfabética:
CAVAR – No conto, cavar é persistir, é buscar, é se conhecer e se enfrentar; com
muita vontade no coração, apesar do aspecto masculino interno da alma ainda
incipiente e claudicante, mas na certeza de que a luz será alcançada.
COLAR DE PÉROLAS – Elemento essencial no conto, pois representa o casamento,
a união dos opostos, a interação de animus e anima, o sinal externo de um
compromisso interno. O conto começa com esse desejo de união e é o mote que será
desenvolvido, trabalhado ao longo de todo o conto.
FAQUINHA DE PÃO – É o instrumento de que Malvina dispõe para cavar, para
buscar, para crescer. Representa o masculino, também por sua forma fálica, mas
ainda é uma faquinha pequenina, um masculino frágil e ainda incapaz de unir-se
ao feminino; mas é uma faquinha de pão, de alimento, de nutrição.
Tem chance de desenvolver!
FEMININO – É o protagonista na história. Ele busca seu oposto complementar – o
masculino - para que o aspecto de inteireza psíquica possa então se manifestar.
Através da conjunção dos opostos.
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NOIVA FEIA – Representada por uma persona, é a identidade ou aspecto da
sombra negativa da Donzela Malvina. Na segunda metade do conto, acontece um
diálogo entre Malvina e sua sombra (essa noiva feia). Notamos uma conexão entre
elas, que “costuram” conceitos, trazendo à luz as coisas “desarrumadas” que
Malvina quer entender e ordenar, para depois então poder integrar à sua alma.
REI, FILHO DO REI E PAI DE MALVINA – O conto apresenta 03 facetas do
masculino: o rei, o filho do rei e o pai de Malvina, que se apresentam logo no início
do conto. E o filho vai falar com o pai de Malvina, vai pedi-la em casamento (vai
propor a união do oposto complementar). Com a negativa do pai, Malvina
empreende sua própria jornada em busca desse oposto complementar; e então,
outras 03 facetas, agora do feminino, se apresentam: a própria Malvina, sua aia e a
noiva feia.
SUBIR O DEGRAU – Representa elevar a consciência. Quando Malvina sobe o
degrau e entra na igreja, ela está se unindo ao seu oposto complementar, casando
(neste caso literalmente) com ele.
TORRE – Lugar atemporal. Simboliza o aprisionamento do feminino, uma tentativa
de mantê-la longe de tudo e de todos. A relação da natureza externa com o
alinhamento do tempo. Período de incubação e isolamento. No tarot, a carta 16 é a
torre, que representa grandes transformações, onde o feminino fica fechado e
incubado para surgir mais fortalecido.
URTIGA – Planta medicinal, representada pela fome que contribui para a
transformação.
UMBRAL – Simboliza a passagem, o limiar.
VER O SOL – Representa alcançar a consciência solar, deixar resplandecer o lado
masculino, deixá-lo pronto e maduro para integrar-se ao feminino, na direção da
inteireza psíquica. Lembremos que enquanto isolada na torre, Malvina não vê sol
nem lua, ela entre obrigatoriamente num estado psíquico de incubação atemporal.
O sol também é um ícone do contato com a natureza externa. É resgatar esse
contato com a natureza externa, com a vida.
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X - NARRATIVAS CRIATIVAS
São inspirações que cada um de nós tivemos através do conto "A Donzela
Malvina", onde nós esboçamos os nossos pensamentos, emoções e sentimentos.
TEMA:
Remova suas pedras.
Só se cura quem procura.
De dentro da torres Há trevas sem fim Não sei se por fora ou por dentro de mim Cavei a saída Caíram as pedras Na entrada da luz Que expulsa as trevas A luz curadora A força solar Que invade e liberta Que aquece o pensar Mostra a saída Mostra a direção De um período de espera E de incubação Buscar o meu faltante E ele eu encontrei Não porque como metade Mas porque assim me inteirei Angella Morgado
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Escolha o seu caminho e siga, Seja perseverante, resoluto. Muitos “não” irão escutar...
Mas confie, continue sua jornada, Retire pedras, remova obstáculos,
E se determine, Pois este é o seu lugar.
Alimente-o com esperanças. Nutra-o com amor,
Acolha-o com respeito e gratidão Pois, a jornada é dura, é só E terás esta única provisão
Quando a sofreguidão chegar. Insista, invista, não desista,
Confie em si mesmo. Afinal você é um guerreiro, Que se fere se esgueira, Para reaprender a lutar. Um guerreiro, um andarilho.
Que se lança rumo ao desconhecido, Desbravando matas, desertos Se empenhando em se achar. E nesta busca interminável,
Portas se fecham, outras se abrem. Mas jamais olhe para trás. Os “nãos” que recebeu, São fracos, são toscos,
São pequeninos grãos de areia, Que quiçá, foram pedras Que você teve de retirar,
Para adentrar ao umbral ornado de flores, Aonde somente grandes amores Sonham em se reencontrar... O que justifica tua veste,
Seu compromisso, seu andar, que agora, forte, reto, destemido, Repleto de verdade e de luz, Sois todo reinante, rico
No lugar Que sempre esteve a te esperar.
Elizabeth Almeida de Souza Jacob
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Tire uma de cada vez Não tenha pressa! Não desista, siga em frente Tire mais uma, mais uma só Isso não vai lhe cansar Siga o seu caminho e Continue as pedras tirar Procure uma saída Escolha uma direção Continue sua busca Só depende de você Não desista da procura E isso só depende de você Laura Baptista do Amaral Remover as pedras do caminho É movimentar meu eu Procurando e circulando o movimento gerado pela gestação Em busca da cura Semeando e plantando a libertação. Mariléia Santiago
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Removendo pedras De um caminho sombrio Propus-me a desafiar
O que me fazia sentir frio
Com a faca afiada Cavei determinada A buscar a luz do sol
Para sentir em meu rosto A brisa do vento
E iniciar meu movimento
E neste momento De pura alegria Sigo em frente O meu caminho
Cavei pedras
Transformei minhas prisões Senti alívio
Com minhas novas decisões
Caminhei Trilhei
Recomecei Juntando as pedras
Recriando novos caminhos
E nesta nova empreitada Encontrei o que buscava A liberdade tão desejada
A liberdade infinita Pois só se cura Quem procura.
Glauce R. de Araujo Soares Araujo
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XI - CONCLUSÃO
São inúmeras as histórias de mulheres que se redescobrem e se
reencontram após percorrerem longas jornadas de dor, alheias de suas
potencialidades e repletas de limitações. Libertar-se deste casulo e despertar
para a vida e a beleza que ela traz consigo é uma tarefa muito possível, tarefa
esta que pede como condição para se realizar uma boa dose de coragem, uma
pitada de boa vontade, um pouquinho de humildade para admitirmos que
precisamos uns dos outros e uma boa porção de fé.
Esta é uma receita simples de poucos e complexos ingredientes,
concordamos. E é certo que não são ingredientes que se encontram em
qualquer prateleira, mas é fato que eles estão bem mais próximos e acessíveis
do que imaginamos e, o que é melhor, não dependem de dinheiro, tão pouco da
disponibilidade de terceiros, todos esses elementos podem ser encontrados com
abundância dentro de nós mesmos. E é nesta perspectiva de amorosidade e
cura, com vistas ao resgate do feminino que habita cada mulher, que
partilhamos a trajetória de uma donzela guerreira...
Em geral, nos contos, aparece à protagonista, que é uma jovem mulher,
uma donzela prestes a ser “descoberta” pelo olhar/desejo masculino. A moça
em questão é, quase sempre, cheia de potencialidades das quais ela mesma não
tem consciência. É o encontro com o outro – com o Masculino – que a faz
perceber o seu valor como mulher. Em todos esses contos a beleza, a sedução,
a paixão e o encantamento são o mote da história. As princesas dos contos de
fadas não são moças belas e prendadas por um simples capricho de uma
cultura machista, como querem muitos detratores da fantasia. Dotadas de
encanto anormal, sobre humano, as princesas dos Contos de Fada são a
personificação de uma parte essencial do poder feminino presente nas imagens
arquetípicas das deusas do amor. Tais deusas são ligadas à vaidade, ao cuidado
do próprio corpo e à exacerbação dos sentidos. Em última instância, elas falam
de auto-estima e amor próprio, falam de amar a si mesmas antes de servir de
veículo para a alegria e o êxtase do outro.
Clarissa Pinkola Estés (2005, p.17) afirma que “o conto de fadas pode
contribuir para o aprendizado da vida e para o desenvolvimento da percepção
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em assuntos de pequena ou de grande monta. O aprendizado e a percepção são
responsáveis pela aquisição de uma consciência de significação.”
A personagem feminina nem sempre é focalizada como a doce, bela e
ingênua heroína, pronta a satisfazer os desejos masculinos, do pai ou do
marido. Há um reverso que a apresenta também transgressora aos desígnios
alheios. Os contos dos irmãos Grimm perspectivam as figuras femininas de
diferentes formas, permitindo diferentes olhares e leituras.
Marion Woodman (2003, p. 34) afirma: “As mulheres não são as únicas
guardiãs do feminino. Tanto homens como mulheres estão buscando aquela
parte que nos foi expurgada... O feminino não se interessa em estar no topo,
dedica-se a perambular... quando estamos no controle de tudo, exercemos uma
masculinidade movida a poder...”.
A análise obtida e as reflexões nos remetem à conclusão que o lidar com
a fantasia nos contos de fadas é um recurso fundamental no processo do
desenvolvimento humano porque favorece a comunicação via imagens
simbólicas com as dimensões mais profundas da psique. Por meio dos contos
de fadas, adentramos magicamente à penumbra misteriosa do nosso
inconsciente, condição básica para se conhecer o significado profundo de nossa
vida. Finalmente, cabe apontar que esta oficina nos permitiu constatar que a
força criadora e a sabedoria são profundamente presentes nos contos de fadas e
seu conteúdo arquetípico nos ajudou a encontrar o caminho para a realização
de nossa própria humanidade.
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XII- CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os contos de fada apresentam questões arquetípicas, que possibilitam à
identificação projetiva, quando cada um de nós preenche com suas vivências e
experiências de vida, as questões dos personagens.
O conto a “Donzela Malvina”, escolhido pelo grupo, proporcionou a todas
nós, identificar as nossas torres, onde nos sentimos aprisionadas e o que nos
paralisa, além disso, é um ato contínuo, há a disponibilidade de entrar nas
torres, sentir o aprisionamento e a própria escuridão.
Após identificar, o passo seguinte é levar a saída, pois só se cura quem
procura. Retirar as pedras banhar-se na luz do sol e iluminar a escuridão. Isso
o conto da “Donzela Malvina” proporciona a todas nós.
A própria elaboração da oficina também deu a todas nós o ensejo de lidar
com questões próprias e as questões dos outros; um verdadeiro ensaio no lidar
uma com as outras, tivemos que aprender a escutar, considerar, ter paciência,
escrever, encenar, escolher os materiais plásticos mais adequados para a
oficina confeccionar cenário, definir o que nos mobiliza e poderá mobilizar o
outro, o que queremos e o que o outro enxerga na energia dinâmica do conto
em questão.
Estas são apenas considerações parciais e não finais, pois estamos em
plena vivência do processo de tornarmos futuras Arteterapeutas em pleno
amadurecimento.
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XIII - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CHEVALIER, Jean - Dicionário dos Símbolos – Rio de Janeiro. Ed. José
Olympio, 1998.
ESTÉS, Clarissa Pinkola. Conto Dos Irmãos Grimm. Rio de Janeiro. Ed. Rocco,
2005.
FRANZ, Marie - Louise Von. A Interpretação Dos Contos De Fadas. São Paulo.
Ed. Paulinas, 1980.
JUNG, Carl. G. O Homem E Seus Símbolos. Rio de Janeiro: Ed. Nova fronteira,
1964.
________________ Estudos Sobre Psicologia Analítica. São Paulo. Ed. Cultrix,
1988.
MATOS, Gislayne Avelar. A Palavra do Contador De Histórias. São Paulo. Ed.
Martins Fontes, 2005.
PHILIPPINI, Ângela. Linguagens E Materiais Expressivos Em Arteterapia: Uso,
Indicações E Propriedades. Ed. WAK, 2009.
SILVEIRA, Nise Da. O Mundo Das Imagens, São Paulo. Ed. Ática, 2001.
WOODMAN, Marion. A Feminilidade Consciente. São Paulo. Ed. Paulus, 2003.