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1 TRABALHO ESCRAVO RURAL NO BRASIL CONTEMPORÂNEO: considerações iniciais sobre o estudo das normas, instrumentos jurídicos, atuação estatal e realidade social brasileira Arthur Ramos do Nascimento 1 Saulo de Oliveira Pinto Coelho 2 Resumo: O artigo apresentado é resultado de uma pesquisa que está sendo desenvolvida, que resultará em uma dissertação a ser apresentada ao programa de mestrado da Universidade Federal de Goiás, visando identificar os fatores que contribuem para a perpetuação do trabalho escravo rural no Brasil contemporâneo, em especial nas regiões da zona de expansão agrícola (presente no Centro-Oeste do país). A pesquisa trabalha com a análise das normas e metas internacionais (OIT), perpassando pela realidade normativa, jurisprudencial e social brasileiras. O procedimento metodológico utilizado é o dialético que possibilita uma análise específica do assunto. O tema foi escolhido baseado em critérios de relevância (tanto fática quanto jurídica) e da sua oportunidade e contemporaneidade. Essa pesquisa (de caráter explicativo) busca beneficiar a sociedade, a comunidade acadêmica e a ciência jurídica, vez que o trabalho em andamento demonstra a permanência da triste realidade do trabalho escravo no meio rural brasileiro e procura realizar um diagnóstico das insuficiências do tratamento jurídico dado à questão no país. Palavras-chave: trabalho escravo rural contemporâneo; Direito Agrário; princípios constitucionais. Introdução O presente texto apresenta os resultados iniciais de pesquisa em andamento que resultará em uma dissertação a ser apresentada ao programa de mestrado em Direito Agrário, tendo como objetivo identificar as características do trabalho escravo contemporâneo sob uma ótica jurídica, analisando quais os fatores jurídicos que contribuem para a perpetuação dessa forma degradante de exploração de mão de obra: estaria o problema na falta de normas de proteção? Ou seria o caso de não haver eficácia nessas normas? Há falta de ações do Poder Público ou essas ações não são suficientes? Como se posiciona a comunidade internacional nesse sentido? Como fatores socioeconômicos ou ainda culturais influenciam no fomento desse problema? Todas essas questões estão sendo analisadas na pesquisa. 1 Mestrando em Direito Agrário na Universidade Federal de Goiás e advogado. E-mail: [email protected] 2 Orientador e coautor da pesquisa. Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás (UFG).

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TRABALHO ESCRAVO RURAL NO BRASIL CONTEMPORÂNEO: considerações iniciais sobre o estudo das normas, instrumentos jurídicos,

atuação estatal e realidade social brasileira

Arthur Ramos do Nascimento1 Saulo de Oliveira Pinto Coelho2

Resumo: O artigo apresentado é resultado de uma pesquisa que está sendo desenvolvida, que resultará em uma dissertação a ser apresentada ao programa de mestrado da Universidade Federal de Goiás, visando identificar os fatores que contribuem para a perpetuação do trabalho escravo rural no Brasil contemporâneo, em especial nas regiões da zona de expansão agrícola (presente no Centro-Oeste do país). A pesquisa trabalha com a análise das normas e metas internacionais (OIT), perpassando pela realidade normativa, jurisprudencial e social brasileiras. O procedimento metodológico utilizado é o dialético que possibilita uma análise específica do assunto. O tema foi escolhido baseado em critérios de relevância (tanto fática quanto jurídica) e da sua oportunidade e contemporaneidade. Essa pesquisa (de caráter explicativo) busca beneficiar a sociedade, a comunidade acadêmica e a ciência jurídica, vez que o trabalho em andamento demonstra a permanência da triste realidade do trabalho escravo no meio rural brasileiro e procura realizar um diagnóstico das insuficiências do tratamento jurídico dado à questão no país.

Palavras-chave: trabalho escravo rural contemporâneo; Direito Agrário; princípios constitucionais.

Introdução

O presente texto apresenta os resultados iniciais de pesquisa em andamento que resultará

em uma dissertação a ser apresentada ao programa de mestrado em Direito Agrário, tendo como

objetivo identificar as características do trabalho escravo contemporâneo sob uma ótica jurídica,

analisando quais os fatores jurídicos que contribuem para a perpetuação dessa forma degradante

de exploração de mão de obra: estaria o problema na falta de normas de proteção? Ou seria o

caso de não haver eficácia nessas normas? Há falta de ações do Poder Público ou essas ações não

são suficientes? Como se posiciona a comunidade internacional nesse sentido? Como fatores

socioeconômicos ou ainda culturais influenciam no fomento desse problema? Todas essas

questões estão sendo analisadas na pesquisa.

1Mestrando em Direito Agrário na Universidade Federal de Goiás e advogado. E-mail: [email protected] 2Orientador e coautor da pesquisa. Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás (UFG).

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O trabalho escravo “oficialmente” encontrou seu fim no sistema legal brasileiro com a

promulgação da Lei Áurea em 1888. Tornou-se lugar comum, desde então, para o homem médio

que a escravidão se constitui como um modo (espécie) de trabalho já superado e que somente

relegado à um período histórico sem remanescentes contemporâneos. A pesquisa desenvolvida

demonstra a sua existência atual, em especial nas regiões rurais, e busca estudar sob o ponto de

vista jurídica (analisando as legislações trabalhistas e a Constituição Federal Brasileira, à luz das

diretrizes delineadas pela OIT analisando a realidade normativa, jurisprudencial e social

nacionais. De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), trabalho escravo é

“aquele de caráter degradante, realizado sob ameaça ou coerção e que envolve o cerceamento e

liberdade”. Na escravidão contemporânea se tem total controle sobre o trabalhador, tratando-o

como uma “propriedade”, e para tanto se utilizam diversas formas de violência. Trata-se de uma

realidade preocupante e concreta que precisa ser analisada e combatida porque agride a honra do

trabalhador, humilha, denigre, priva-o de sua elementar liberdade mantendo-o em condições

degradantes de exploração de trabalho. Uma das formas de violência presentes é o confinamento

dos trabalhadores submetidos à trabalhos forçados, impondo-lhes situações análogas às de

escravo, mas que incluem castigos físicos, torturas, ameaças e agressões físicas, morais e

psicológica, chegando ao homicídio, em alguns casos. Trata-se, como se percebe, de uma

questão importante por se inserir numa esfera interdisciplinar, visto ser um ponto de encontro do

Direito Agrário, Direito Trabalhista e Direito Constitucional, Direitos Humanos e Sociais.

Observa-se que o texto constitucional pátrio, em seu Art.1º, III, diz que a “dignidade da pessoa

humana” é um dos fundamentos da República, completando, em seu Art.3º que esta tem como

objetivos fundamentais “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, também “garantir o

desenvolvimento nacional”, “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades

sociais e regionais”, além de “promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo,

cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Sabemos que a Organização

Internacional do Trabalho apresenta diretrizes para combater essa forma de violência aos direitos

humanos, mas ainda sim ela continua a existir e essa pesquisa se propõe a analisar as normas, a

jurisprudência e a realidade social pátria e observar se as metas propostas pela OIT estão sendo

alcançadas ou não, e entender onde está(ão) a(s) falha(s) dos esforços jurídico-políticos

brasileiros de erradicação do trabalho escravo.

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O trabalho escravo contemporâneo, a despeito do que acredita a grande massa

populacional, é uma realidade e precisa ser ativa e constantemente combatido. A atual forma de

exploração escrava da mão de obra humana ganhou novos contornos, mas, igualmente à antiga

modalidade adotada no Brasil em séculos passados, se reveste como grave ofensa à lei penal, aos

direitos trabalhistas, civis e direitos humanos que gravitam entorno da dignidade da pessoa.

O trabalho escravo urbano é significativamente menor se comparado ao do meio rural.

Ainda sobre essa modalidade urbana cumpre dizer que as Delegacias Regionais do Trabalho,

bem como a Polícia Federal e o Ministério Público do Trabalho (além do Ministério Público

Federal) já atuam com certo êxito. Por isso, nosso enfoque é o trabalho escravo rural, na busca de

um diagnóstico crítico-avaliativo de dos esforços brasileiros para sua erradicação.

Como funciona o trabalho escravo contemporâneo?

Há uma grande preocupação entre os juristas e, em especial, entre os doutrinadores que se

dedicam a pesquisar essa situação quanto à correta forma de se identificar o trabalho escravo,

quais seriam as suas características principais para diferenciá-las de outras possibilidades de

exploração menos gravosas. Analisando num contexto global, levando em consideração o

posicionamento de órgãos internacionais e publicações chanceladas pela OIT, temos que no

mundo as várias modalidades de trabalho forçado têm em comum, geralmente, a presença de

duas características: o uso da coação e a negação da liberdade. Há que se constar que no sistema

nacional, o trabalho escravo surge da privação de liberdade somada ao trabalho degradante. Em

razão de dívidas resultantes de fraude o trabalhador acaba com seus documentos retidos, sendo

levado a um local ermo geograficamente impossibilitando qualquer possibilidade de retorno para

sua região ou mesmo fica impossibilitado de sair da propriedade em razão de segurança armada.

O termo utilizado pelos juristas brasileiros para este tipo de recrutamento que usa da

coerção e fraude em áreas remotas é trabalho escravo. Assim situações abrangidas por este termo

pertencem ao âmbito das convenções sobre trabalho forçado da OIT. Persiste, dessa forma,

situações que mantém o trabalhador sem possibilidade de se desligar de seus patrões, sendo

impedido sob a alegação de sua condição de devedor e que somente poderá sair quando a tiver

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saldado por completo. Não raro, os que reclamam das condições e/ou se aventuram a fugir são

vítimas de surras. No limite, podem perder a vida.

Esses trabalhadores são grandemente usados para realizar a produção de carvão

(indústrias siderúrgicas), desmatamento para formação de pastos através da derrubada ilegal de

matas nativas, há o uso da força de trabalho na preparação do solo no plantio, diversas outras

atividades agropecuárias, como o corte da cana de açúcar, contratam mão de obra utilizando os

contratadores de empreitada, os chamados "gatos". Esses “gatos” atuam aliciando trabalhadores,

agindo como fachada ou “testas de ferro” para que os fazendeiros não sejam responsabilizados

pelo crime.

O recrutamento ocorre em regiões distantes do local onde será efetivamente prestado o

serviço, podendo ocorrer também em pensões (essas localizadas mais próximas do local). Há, na

primeira abordagem, o uso de técnicas sedutoras de aliciamento, oferecendo boas oportunidades

de trabalho: serviço em fazendas, com garantia de salário, de alojamento e comida. Para seduzir

o trabalhador, oferecem "adiantamentos" para a família e transporte “gratuito” até o local do

trabalho.

Os trabalhadores são transportados em péssimas condições por meio de ônibus sem

conservação, caminhões improvisados (paus-de-arara) sem qualquer respeito às normas de

segurança. No local de trabalho constatam uma situação diversa da prometida. São informados,

de início, que já existe uma dívida em aberto que engloba o “adiantamento”, o “transporte”, a

“hospedagem” (quando é o caso) e gastos de alimentação feitos no decorrer da viagem. Nesse

momento os trabalhadores tomam conhecimento da existência de um "caderno" onde constam as

dívidas e que ficará de posse do gato. O trabalhador percebe que o ônus das ferramentas de

trabalho e equipamentos de proteção individual (equipamentos de segurança), quando existem,

serão anotados no mencionado caderno de dívidas, bem como botas, luvas, chapéus e roupas.

Somam-se ainda despesas de alojamento e alimentação (ambos precários). Cumpre dizer que

todos os valores anotados sempre estão absurdamente superiores aos praticados no comércio.

Uma vez que as fazendas se encontram distantes das cidades, o que o impossibilita ter outra

fonte de mercadorias, o trabalhador se torna refém desses preços.

Como se já não fosse suficiente a pressão sofrida, somada com as dívidas e com a ameaça

física, agrava-se a situação do trabalhador por inexistir qualquer respeito às normas trabalhistas

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no quesito de salubridade, de conforto e de segurança. As piores condições ainda se verificam

nas situações em que se promove a derrubada da mata nativa (o que se faz em regiões afastadas

das zonas urbanas) onde alojamentos precários e improvisados “promovem” o “abrigo” desses

trabalhadores. Mas é importante frisar que não há maiores privilégios para outras áreas de

exploração da mão de obra escrava. Há narrativas/depoimentos em que trabalhadores são

mantidos cativos durante a noite em verdadeiras senzalas, trancafiados, até que o dia amanheça.

Seria inocente crer que eles (os trabalhadores) recebem algum tipo de cuidado médico

adequado, acompanhamento sanitário ou mesmo respeito às normas de segurança. Quando um

trabalhador fica doente, além de não obter cuidados médicos necessários, acaba por aumentar

ainda mais a sua dívida junto aos patrões.

Não há saneamento básico, e até mesmo a alimentação é inadequada não cumprindo com

as necessidades nutricionais mínimas exigidas para uma pessoa adulta. Muitos trabalhadores

morrem não por doenças, mas por desnutrição.

Como se posiciona a comunidade internacional?

Analisando o posicionamento da comunidade internacional, verificamos que há uma

preocupação mundial com esse problema. Por exemplo, trata do tema a Organização

Internacional do Trabalho (OIT) nas convenções número 29, de 1930, e 105, de 1957 - ambas

ratificadas pelo Brasil. A Convenção 29 versa sobre Trabalho Forçado dispondo sobre a

eliminação de todas as formas de trabalho obrigatório ou forçado, excetuando somente casos

especiais como o serviço militar, trabalho obrigatório em situações de emergência (tais como

guerras, catástrofes naturais), trabalho penitenciário supervisionado de forma adequada, entre

outras ocorrências. A Convenção 105 discorre sobre a Abolição do Trabalho Forçado tratando da

proibição do seu uso (nas modalidades forçada ou obrigatória) como forma de coerção ou de

educação política. Essa convenção ainda versa, entre outras coisas, sobre a vedação do uso do

trabalho como castigo político, punição por participação em greve; e como medida de

discriminação.

Órgãos internacionais tem que movimentado no sentido de buscar o fim da escravidão e

de práticas análogas à escravidão como um princípio reconhecido. Um dado importante a se

observar que dentre todas as convenções da OIT as duas supra mencionadas são as que mais

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foram ratificadas pelos países membros, o que nos leva a concluir que o trabalho escravo

contemporâneo é uma preocupação em alto nível internacional.

Não podemos esquecer que existe a Declaração de Princípios e Direitos Fundamentais do

Trabalho e seu Seguimento, datado de 1998 e que deve ser observado por toda a comunidade

internacional. Soma-se também a informação que diversos acordos e convenções internacionais

tratam da escravidão contemporânea: por exemplo, a convenção internacional de 1926 e a de

1956, que proíbem a servidão por dívida, (em vigor no Brasil desde 1966). Essas convenções

estão incorporadas à legislação nacional.

E no Brasil o que tem sido feito?

Pelos dados coletados sabemos que a Comissão Pastoral da Terra tem denunciado

fazendeiros pela exploração de mão-de-obra em condições de trabalho análogas ás de escravo

durante a segunda metade do Séc.XX, mas somente no ano de 1995 o Brasil reconheceu

internacionalmente a existência desse problema e, novamente, somente por pressões da CPT e

por forte pressão internacional, em 2003 o Estado Brasileiro assinou um acordo reconhecendo

sua responsabilidade internacional pela violação de direitos humanos praticados por particulares

(um ponto importante nesse sentido foi o caso José Pereira, reduzido à condição de escravo numa

fazenda em Xinguara – PA).

Assim governo brasileiro, no ano de 1995, na pessoa do Presidente da República em um

pronunciamento, assumiu a existência do trabalho escravo no Brasil. Nesse mesmo ano criou-se

criadas estruturas governamentais para o combate do problema, merecendo destaque o Grupo

Executivo para o Combate ao Trabalho Escravo (Gertraf) e o Grupo Especial de Fiscalização

Móvel. Recentemente o governo brasileiro lançou o Plano Nacional para a Erradicação do

Trabalho Escravo e criou a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae).

O Brasil reconheceu em março de 2004 perante a Organização das Nações Unidas que

cerca de 25 mil pessoas se encontravam reduzidas à condição análoga à de escravos no país – e

esse é um índice considerado otimista. Há que se reconhecer que são números alarmantes.

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Em quase 15 anos de atuação (período compreendido de 1995 à agosto de 2009) dos

grupos móveis de fiscalização do TEM (Ministério do Trabalho e Emprego) aproximadamente

35 mil trabalhadores foram libertados.

A análise dos fatos nos mostra que no Brasil os envolvidos no tráfico de trabalhadores (e

os escraviza) não são proprietários desinformados, escondidos em propriedades atrasadas e

arcaicas. São grandes fazendeiros latifundiários, usuários de alta tecnologia, com sua produção

voltada tanto para o grande mercado consumidor interno quanto para o mercado internacional,

em muitas das fazendas autuadas há pistas de pouso de aviões e o gado recebe tratamento

superior ao dispensado aos trabalhadores.

Contamos atualmente com tentativas de se punir todos os envolvidos, mas que se

mostram insatisfatórias. Por exemplo, a legislação brasileira estabelece a responsabilidade do

empresário por todas as relações trabalhistas (entre outras) de seu negócio, mas são raros os

punidos. A Constituição da República Federativa do Brasil, do ano de 1988, condicionou o

direito de propriedade rural ao cumprimento de sua função social, responsabilizando assim o

proprietário por tudo o que ocorrer em seus domínios.

Cumpre citar que tendo como base essa premissa, um dado de ordem processual: em

2004 (e pela primeira vez) foi decretada a desapropriação de uma fazenda para fins de reforma

agrária por não cumprir sua função social-trabalhista e degradar o meio ambiente.

A sanção penal tem sido insuficiente. Menos de 10% dos envolvidos em trabalho escravo

no sul-sudeste do Pará, entre 1996 e 2003, foram denunciados por esse crime, de acordo com a

Comissão Pastoral da Terra. A questão penal é outro fator que tem levado ao fomento do crime.

Se julgado, há vários dispositivos que permitem abrandar a eventual execução da pena. Ela pode

ser convertida em distribuição de cestas básicas ou prestação de serviços à comunidade, por

exemplo.

Material e Método

O procedimento metodológico utilizado é o dialético que possibilita uma análise

específica do assunto. Esse método foi escolhido por representar uma interpretação dinâmica e

totalizante da realidade, além de analisar que os fatos não podem ser considerados fora de um

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contexto social, político, econômico, jurídico etc. A metodologia utilizada na pesquisa trabalha

acaba, por isso, sendo interdisciplinar, buscando sempre um maior aprofundamento e

compreensão do fenômeno. Toda a metodologia adotada tem como foco principal alcançar um

maior contato com a realidade da questão, oferecendo ao universo jurídico maior proximidade

com a complexidade das questões práticas e fáticas. Pretende-se utilizar revisão bibliográfica,

pesquisa de campo, análise de contratos, legislações pertinentes, levantamento de dados,

observação, estatísticas, análise e interpretação das informações coletadas etc..

A proposta é comparar o projeto da OIT para erradicação do trabalho escravo com os

esforços brasileiros, tanto no campo da produção normativa, quanto no campo da aplicação e

eficácia dos modelos jurídicos construídos.

Christiani Marques citando colocações feitas por Jorge Antônio Ramos Vieira esclarece

que:

o trabalho escravo ou forçado moderno é a exploração violenta da pessoa humana, cativada por dívidas contraídas pela necessidade de sobrevivência e forçada a trabalhar, pelo aliciamento feito por pessoas que lucram com o fornecimento e a utilização de sua força de trabalho em propriedades rurais (na maioria das vezes, além de muito afastadas, estão localizadas na região norte do Brasil, onde a fuga é difícil, perigosa e arriscada (MARQUES, 2007, p.32).

Igualmente válida é a colocação de Carlos Henrique Bezerra Leite (2005) que esclarece

que todos os conceitos sobre trabalho escravo têm indubitavelmente três pontos em comum (em

especial no que tange às modalidades de coação), acentuando que

O fator determinante para caracterizar trabalho análogo ao de escravo é o cerceamento da liberdade. O trabalhador fica sem condições de sair do local onde está sendo explorado, sofrendo, a rigor, três tipos de coação: a) coação econômica – dívida contraída com o transporte para fazenda e compra de alimento. O empregado tenta saldar a dívida, mas não consegue devido aos elevados valores cobrados; b) coação moral/psicológica – ameaças físicas, e até de morte, por parte do responsável pela fazenda e constante presença de capataz, armado, em meio aos trabalhadores; c) coação física – agressão aos trabalhadores como forma de intimidação (BEZERRA LEITE, 2005, p.146-173).

A questão a ser analisada merece do Direito e do Poder público uma atenção especial que

transcenda a leviana imagem de ofensa na esfera individual, visto que o Trabalho Escravo

ofende, devido à sua gravidade a honra e a dignidade de toda a comunidade, de toda a sociedade

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humana. Não raro diversos autores tem apontado a existência do Trabalho Escravo como

desrespeito às normas constitucionais, pois, no sentido de combater essa afronta a dignidade

humana, orienta-se a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 ao proibir o

trabalho forçado, dispondo que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano

ou degradante” (art. 5º, III); ao assegurar a liberdade de exercício “de qualquer trabalho, ofício

ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer” (art. 5º, XIII) e ao

proibir a adoção de pena de trabalhos forçados (art. 5º, XLVII). Nesse sentido se posiciona

Gabriela Neves Delgado relembrando que a CRFB/88 contribuiu para realçar o valor da

dignidade no trabalho, sobretudo ao:

incorporar modalidade sofisticada e bem sucedida de organização socioeconômica, privilegiando, no plano teórico, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, fundada na dignidade do ser humano e no primado do trabalho e do emprego, subordinando a livre iniciativa (que também é reconhecida e valorizada) à sua função social (DELGADO, 2006, p.15).

A observação dessa questão deve ser feita no sentido de que não se pode fazer um debate

isolado, ou inerte, é preciso observar em um contexto macro. Nesse sentido SANDRA LIA

SIMÓN, citada também pela professora Gabriela Delgado3 ensina que essa luta

não poderia ser empreendida de forma isolada, principalmente considerando os interesses divergentes que busca conciliar, exigindo uma articulação com os demais agentes políticos e da sociedade civil, que persigam objetivos do mesmo porte. [...] atuar conjuntamente com os demais agentes sociais, políticos e da sociedade civil, trabalhar em rede, dando coordenação às ações, compartilhadas entre as diversas Procuradorias, já localizadas em praticamente todas as capitais do país (SIMÓN, p.375).

O neoescravagismo precisa ser analisado, como se percebe e são poucos os autores que

assumem uma posição ativa para essa investigação. Como bem coloca Carlos Maximiliano a

reflexão que se propõe é de salutar importância visto que uma constante renovação de análise e

pensamento do é uma necessidade: "Não se pode o Direito isolar-se do ambiente social em que

vigora, deixar de atender às outras manifestações da vida social e econômica; e esta não há de

corresponder imutavelmente às regras formuladas pelos legisladores" (MAXIMILIANO, 2005,

p. 129).

3 http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/bh/gabriela_neves_delgado.pdf, p. 2999.

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Dessa forma, é reiterada a importância do presente estudo em andamento dada a

relevância jurídica, econômica e social para o Direito Agrário e o desenvolvimento do

agronegócio e da própria nação. A coleta de informações está sendo realizada através de revisão

bibliográfica, mas será enriquecida com análise que casos concretos (via processos judiciais), a

aplicação de questionários. Para a análise dos dados coletados adotaremos a técnica de analise de

conteúdo, a qual permite encontrar respostas para as questões formuladas e confirmar ou não os

pressupostos estabelecidos anteriormente.

Resultados

Até o momento, não há resultados conclusivos, mas já foi possível constatar que se trata

de um problema complexo, que engloba desde a aparente falta de interesse de agir por parte do

poder público (tendo-se em conta que um número considerável de envolvidos tem “contatos” no

governo), uma legislação insuficiente, uma fiscalização ainda precária e fatores de cunho

econômicos e sociais, que fomentam a existência do trabalho escravo contemporâneo no meio

rural. As leis existentes não têm sido suficientes para solucionar a questão e por força da

impunidade reinante os casos de reincidência tem se mostrado grande. A aplicação de multas ou

mesmo o corte do crédito rural não tem se mostrado eficazes para inibir a prática visto que usar

trabalho escravo tem se mostrado lucrativo por baratear os custos de mão de obra. E ainda, pelo

fato de que os infratores, quando identificados, pagam os direitos trabalhistas sonegados e,

quando muito, as multas.

De igual forma a sanção penal tem se mostrado insuficiente, partindo-se da informação

(divulgada pela CPT) que menos de dez por cento dos envolvidos (entre o período de 1996 e

2003, no sul do Pará) chegaram a ser denunciados. Desse percentual baixo uma parcela ainda

menor sofre qualquer punição. Muitos dispositivos legais possibilitam abrandar a execução da

pena (quando ocorre uma condenação). A “lista suja” publicada pelo governo federal tem

mostrado pouco resultado. Como se observa existem diversas ações governamentais para

combater o uso do trabalho escravo (além das aqui mencionadas), mas na prática observamos

muita ineficiência.

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Assim sendo, verifica-se que os esforços brasileiros, que ainda não podem ser chamados

de um Programa Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (este, ainda inexistente), possui

falhas tanto no plano regulação jurídica, quanto no plano da eficácia jurídica e social dessa

regulação. Verifica-se que é preciso reformular a legislação brasileira a este respeito. Porém,

somente novas leis não resolveram o problema, haja visto que tanto as estruturas de fiscalização,

quanto as estruturas de conscientização da sociedade precisam melhorar em muito no que tange

ao trabalho escravo.

Discussão

Questiona-se como o trabalho escravo no Brasil contemporâneo pode refletir no palco das

relações de trabalho no campo em especial na Região Centro-Oeste. E isso abre outros

questionamentos importantes: O que fomenta essa modalidade obsoleta de trabalho? Qual as

prováveis raízes que originam essa prática em pleno século XXI? Como essa prática fere

cabalmente a Constituição da República Federativa do Brasil, princípios e leis brasileiras? E a

função social da terra? O que a Constituição da República disciplina nesse sentido? Que

princípios estão sendo feridos? Como pessoas aparentemente livres se prestam à esse tipo de

doentia relação de trabalho? É a miséria a única causa do trabalho escravo? Como o Poder

Público tem agido no sentido de tolher essa prática? Há punições satisfatórias ou a impunidade é,

também nesse caso, um incentivo à exploração do trabalho escravo? Quais os mitos e verdades

da chamada “escravidão branca” ou “contemporânea”? E sobre o “truck system”? Que medidas

já foram (ou podem ser) tomadas para solucionar essa questão?

A despeito das regiões nordeste e norte serem as mais mencionadas nessas estatísticas, o

Centro-Oeste tem se mostrado (de modo preocupante) como um verdadeiro celeiro para o regime

neo-escravocrata. O Direito Agrário, como ponto de encontro do Direito Trabalhista e a questão

social do homem do campo, como explanado na problemática, não pode quedar-se inerte. Há que

se diferenciar também o trabalho escravo do trabalho degradante, demonstrando também que

ambos são ofensas à Lei e à Função Social da Terra.

O regime neo-escravagista ofende frontalmente a dignidade da pessoa humana a ela

subjugada, pois cercear-lhe a liberdade, a honra, a moral submetendo-o a uma condição sub-

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humana com a coação física, moral e psicológica. A Constituição da República é posta de lado

(quando não totalmente esquecida) nessa situação. Direitos trabalhistas são ignorados, direitos da

esfera privada individual são violados. A propriedade que comporta tal situação, nesses termos,

se afasta da sua função social. Os pilares constitucionais da democracia e o próprio conceito de

função social são negados quando o trabalho escravo existe.

Conclusão

Diante do exposto, podemos inferir, portanto, que se mostra particularmente salutar

analisar a questão do Trabalho escravo contemporâneo sob a ótica do Direito Agrário (com

respaldo no Direito Constitucional e Social) quando percebemos que é cada vez mais crescente a

sua presença no meio rural configurando-se como um problema que transcende os limites

nacionais. Noticia-se que desde 1995 o Brasil assumiu publicamente este problema e iniciou

medidas para erradicar a situação de exploração do trabalho escravo. Cumpre observar e

questionar o que já foi conseguido e porque (depois de passado mais de uma década) a situação

no Brasil continua ainda alarmante em especial na região Centro-Oeste.

A análise em questão é um problema que envolve ofensa aos direitos humanos, questões

da esfera trabalhista, criminal, previdenciário, civil, constitucional. O confisco de terra, quando a

lei para tanto for aprovada, não resolverá per se o problema do trabalho escravo. Uma solução

envolve também a geração de emprego, melhores condições de vida para a sociedade como um

todo, facilitar a condição de crédito agrícola, atuação/educação preventiva em cidades foco de

“exportação” de trabalhadores, além de penas mais duras e fiscalização mais efetiva.

O trabalho escravo no Brasil do 3º Milênio merece uma nova análise jurídica uma vez

que sua roupagem não mais corresponde aos antigos (clássicos) conceitos de escravatura e, dessa

forma, fornecer um estudo digno dessa área pouco desenvolvida em análises jurídicas

convencionais. Tem-se por foco realizar (e possibilitar) uma releitura do uso da força de trabalho

escravo, buscando uma nova perspectiva, uma nova compreensão dessa questão para o

desenvolvimento do agronegócio, da economia, da dignidade da pessoa humana e da própria

função social da propriedade. Não menos importante é o objetivo de se atualizar os referenciais

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teóricos do Direito e do Direito Agrário e Trabalhista sob a ótica do Direito Constitucional e dos

Direitos Fundamentais.

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XXI. Disponível em: <http://www.oitbrasil.org.br/download/sakamoto_final.pdf> Arquivo

capturado em 17 de março de 2009.

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Abstract: the article presented is the result of research that is being developed which will result in a dissertation to be presented to the master's program at the Universidade Federal de Goiás, to identify the factors that contribute to the perpetuation of slavery in rural contemporary Brazil, especially in regions of the expansion zone (present in the Midwest of the country). The research works on the analysis of international norms and goals (ILO), permeated by the normative reality, judicial and social Brazilian. The approach used is the dialectical analysis provides a specific subject. The theme was chosen based on criteria of relevance (both factual and legal) and its relevance and contemporaneity. This study (explanatory character) seeks to benefit society, the academic community and legal science, since the work in progress demonstrates its contemporary existence in rural areas. Key words: contemporary rural slave labor, Agricultural Law, Constitutional Principles.