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felipepaiva
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O debate em torno do fim do mundo, ou das narrativas que o criavam, tornar-se-
ia uma constante que com o advento da crítica pós-moderna habita as mais diversas
escolas intelectuais bem como uma multiplicidade de saberes. A filosofia, sociologia ou
antropologia parecem continuamente apontar um término de um período e de maneira
casuística deliberar os seus processos para a transição a um novo mundo por vir – quem
sabe talvez a tão sonhada modernidade para citarmos o projeto e sonho ideológico do
humanismo de Bruno Latour. É de suma importância apreendermos como esse
diagnóstico social engendra as diversas práxis humanas como, no nosso caso, a prática
literária, na medida em que ela também pode propor novos mundos possíveis. Assim, o
trabalho literário longe de ser apenas fruto histórico de uma realidade empírica, se
desprende exatamente desta para propor alternativas possíveis. De acordo com Slavoj
Zizek, estamos num período de luto do fim dos tempos na qual as soluções ideológias
sociais fantasmaticamente constituídas não mais estruturam os processos de
individuação, sendo, portanto, necessário a reinvenção de nossos processos de
subjetivação. Duas respostas para isso podem ser retomadas: fingir que nada acontece
para continuarmos o mesmo, isto é, uma resposta puramente melancólica ou
reconfiguramos nossa ordem simbólica, reesignificando o discurso, como propõe Judith
Butler (2006). Dentro desse panorama, a literatura nos oferecerá justamente essas
alternativas, a da narrativa melancólica na qual a sua estrutura é reificada e nenhum ato
real é passível de transformação da mesma (bastando a resignação em torno do fim da
comunidade, da família ou do “mundo interior” de determinado personagem) ou
antiteticamente nas propostas de saídas – estruturais e conteudísticas – inventivas (seja
por confronto com a alteridade ou na própria perda da referência de si).
É exatamente esta perspectiva que apreendemos a leitura das obras Por
enquanto... Outra estação (2014), Obsceno: amor e perda (2002) e Dez (quase) amores
(2009). Consideramos esses projetos literários inequivocamente endereçados aos
mesmos problemas, nos ensinando sobre o espírito de nosso tempo, tal seja: a conexão
entre a narrativa e leitor a partir de uma espécie de afeto melancólico. Aqui, a referência
a feições estruturalistas e pós-estruturalistas bem como da teoria Queer seriam em certa
medida elucidadoras. Esses panoramas teóricos-metodológicos podem muito bem
elucidar os aspectos estéticos e narrativos dos romances objetivando demarcar os
aspectos diferenciais, os distintos dialogismos que perpassam os textos, delimitando
seus lugares, suas interfaces e em que aspectos nos ensinam sobre as diversas
propriedades entre estrutura e contexto que subjazem os discursos que constroem seus
objetos narrativos. Nossa hipótese é que existe uma relação assimétrica, isto é, de
inversão entre as composições e posições ocupadas pelas personagens que podem ser
apreendidas através da aplicação do sistema de referência apresentada e desenvolvida
por Lévi-Strauss em o Cru e o Cozido (2012), consistindo num conjunto de relações,
esquemas e regras que são em seu começo tomadas como incompreensíveis, ou até
mesmo antitéticas, mas que no decorrer do conjunto da narrativa que compõem os
termos (personagens) e suas relações (as funções que lhe são atribuídas no contexto da
trama) sua significância é estabelecida numa temporalidade, logo é notório que as
mesmas estão enlaçadas e, por conseguinte, seus respectivos personagens, numa
constante dialética permutativa entre amor, desejo, ódio e gozo. Nossa referência a esses
termos deve ser advertida quanto aos seus distintos usos significantes, na medida em
que, suas significações devem ser buscadas nas diferentes redes signícas em que cada
texto remete. Nesse sentido, optaremos por considerar Obsceno: amor e perda (2002)
como condensador de uma tradição Melancólica da vida subjetiva, Dez (quase) amores
(2009) como seu inverso cínico e Por enquanto... Outra estação (2014) a saída
desconstrucionista aos impasses narrativos, estruturais e subjetivos encontrados em seus
parceiros, tal seja a dimensão depressiva entre um passado não superado ou a do
otimismo metonímico desinteressado. Queremos afirmar que para Pádua o verdadeiro
impasse se mostra na própria linguagem enquanto falta de sentido e na temporalidade
vazia que aponta. Entretanto, nesse cenário que em um primeiro momento parece
desencantador, diversas passagens sejam elas verossímeis ou inverossímeis que rodeiam
os demais personagens protagonizam mudanças reais na narrativa. Seja pela descoberta
de segredos passados, a uma tensão erótica subsequente ou a morte repentina. Ao
contrário de Obsceno: amor e perda (2002) não existe um traço de depressão que
perpassa esse texto. Aqui, na narrativa Marilene Felinto, não estamos de forma alguma
diante de simples um romance que discorre sobre o sentimento da perda do objeto
amoroso, mas em presença de uma metanarrativa psicanalítica prosificada, ou seja, a
transformação em prosa do texto freudiano Luto e Melancolia (1915). Observem como
o título do romance está no mesmo paradigma linguístico ou metonimicamente
articulados com o de Freud. As relações são tão estruturais que por mais que a autora
partilhe a sua obra em dois capítulos, Abandono e posteriormente Obsceno, contada
em primeira pessoa pela protagonista Eu (definirmos a tática narrativa de monólogo
interior), não se consegue delimitar aonde começa um e termina outro, qual deles é
causa e qual deles é efeito, compartilhando as próprias dificuldades teóricas em
definirmos o que é luto e melancolia em psicanálise (problema teórico ou problema
humano, eis a questão!?). Eu chega mesmo a retumbar seu amor não pelo objeto em si,
mas pela própria perda e sua impossibilidade de superá-la.
Já em Dez (quase) amores (2009) temos não a subversão, mas uma inversão
homeopática de Obsceno: amor e perda (2002). A demonstração pode ser explicada ao
leitor aplicando o quadrado semiótico de Greimas:
Amor (S1) --------------------------- Perda (S2)
[obsceno] [abandono]
Quase Amor (-S1) -------------------- Quase perda (-S2)
Eu e Maria Ana são personagens simetricamente opostas e as narrativas
obedecem a essa racionalidade de inversão. Não mais dois capítulos distintamente
nomeados, mas uma serialização (quase amor 1, 2, 3 e assim por diante) que se
coordena com a série de narrativas no qual a repetição de desencontros amorosos é
encenada num tom descontraído, sem grandes conflitos ou querelas existenciais. Tal
como Eu que se encontra em estado suspensivo e vegetativo, desconsolada diante da
perda, Maria Ana, de forma paralela, parece sofrer do mesmo estado de anomia, mas
sem sabe-lo, os constantes relacionamentos não trazem mudança alguma a personagem.
Fernando Pessoa em Livro do Desassossego (1993) demonstra perfeitamente a inversão
estrutural que as duas ocupam em suas respectivas narrativas: “sofri sempre mais com a
consciência de estar sofrendo que com o sofrimento de que tinha consciência”.
Poderíamos ainda recorrer a autores já ultrapassados no campo da filosofia e sociologia,
mas que nos ajudariam a tecer algumas considerações sobre as relações entre forma e
conteúdo. Primeiramente Lyotard em A condição pós-moderna (1970) ilustra a
decadência das narrativas de cunho universalistas, assim, as amplas epopeias que
contariam as grandes histórias de amor, os encontros arrebatadores que transformariam
vidas e civilizações seriam substituídas por micronarrativas com seus pequenos
encontros, alguns marcados por uma estrutura erotomaníaca, sem promessa de final
feliz ou irradiante, sem sinalizar para longas e sinuosas fábulas e seus percalços,
enfatizando rápidas relações que não formam uma conclusão necessária e edificante,
destarte, é assim que termina os dois romances supracitados. O correlato desse
diagnóstico para a comédia é Bauman no qual a vida amorosa adquire uma
temporalidade demarcada por momentos fugazes, um encurtamento da narrativa e sua
conseguinte fragmentação.
Voltemos à Por enquanto... Outra estação (2014) e façamos a seguinte
pergunta: o que destoa quando em comparação com os demais? Reside exatamente na
estratégia no qual transformações na forma narrativa (do narrador onipresente ao tom
intimista confessional) no enredo estão articuladas as rupturas pelos quais os
personagens sofrem, concomitantemente proporcionadas por trocas metafóricas
posicionais e não na tática reificadas e imutáveis. Tempo e narrativa permanecem
descentrados na qual a exploração vertical dos personagens em seus pensamentos e
desejos são radiografados. Não há um personagem principal, estamos convidados nesse
espaço vazio a tomar parte, a recortar um ponto de vista, uma perspectiva, aquilo que o
crítico de arte Hal Foster (2014) chama de paralaxe, isto é, o objeto muda de acordo
com a posição do observador, no nosso caso do leitor, o que por si só já elenca a
diferença abismal entre a forma narrativa de Obsceno: amor e perda (2002) e Dez
(quase) amores (2009) que partilham a centralidade determinista da realidade
compartilhada por personagens protagonistas. Dalton, o “herói” de Por enquanto...
Outra estação (2014), é um personagem que possui uma arquiestrutura que a cada vez
que o encontramos nos deparamos com a sua culpa e solidão inerentes, mas que a cada
trecho narrativo é passível de uma mutação. Encarregado de tomar conta de seu velho
pai já em estado de saúde deplorável, remetendo-nos ao que Giorgio Agamben em O
que resta de Auschwitz (2008) chamou de Muçulmano, ou seja, aqueles sujeitos que são
incapazes de provocar uma identificação por parte da alteridade justamente por estar
despojado das características que teologicamente (e historicamente) definem um
humano: autonomia, autenticidade e identidade, colocando-o numa vida cotidiana e
rotineira nos quais os únicos rituais são os cuidados prestados a sua família e assistir
filmes que lhe agradam, ele não possui grandes amigos ou grandes romances, o que fica
evidenciado quando Pádua descreve a limpeza das fezes produzidas pelo pai. Aqui
devemos ponderar sobre o bom uso dos excrementos no romance quando comparados
com Ulysses de James Joyce: no último a elevação da escatologia a dimensão do
sublime, no primeiro, a degradação da vida em atos compulsivos.
Diante mão justifica-se o limite que a interpretação do texto colide e exige, na
medida em que tomaremos a posição de Dalton e o seu laço com o velho. Temos o
conflituoso laço entre filho e pai que desenrola-se em segredos esquecidos e denegados.
Um mosaico surrealista de anagramas significantes compõe seu início trazendo uma
espécie de não lugar no qual o leitor deverá construir para significar sua experiência. É
na sutileza do desvelamento da verdade condensada nos desejos (dimensão praticamente
escandida nos outros romances) da figura paterna que circulam as descontinuidades
estruturais do texto que marcam a transformação por que passa Dalton, de uma reclusão
a experiência de indeterminação no qual sua própria identidade é transmutada (refiro-
me aqui ao encontro com o sexo – sou homem ou mulher, com a finitude – estou vivo
ou morto, com a vivência em outra cultura). Dentre os três romances esse é o único no
qual circula o erotismo, pois é aqui que a construção fantasmática se articula e se
atualiza com a sexualidade, é no processo de morte/perda/luto do pai que Dalton
finalmente reage, assumindo sua posição na dialética e no uso dos prazeres. Os
Personagens de Padua retratam um desenraizamento (tanto faz Paris ou Campina
Grande), desabrigados da humanidade. Sem casa, perdidos em um vazio sem sentido.
Cada jogo e prosa reforçam e aprofundam esse diagnóstico sombrio da condição do ser
humano. Haveria ainda vários pontos a serem comentados como a profunda influência
joyceana do catolicismo como ética transgressora por excelência, a inspiração do
fantasma do pai de Hamlet na sombra que acompanha Dalton, a redução becketiana do
personagem a uma parte...
Por fim, resta-nos pontuar como os diversos romances exploram os processos
melancólicos que envolvem a perda (seria um sintoma condescendente da literatura
brasileira?), oferecendo diversas formas de solução narrativa, seja reafirmando o
posicionamento centralizador da cena ou apostando em sua decomposição e
transformação. Se adotamos a postura de Fredric Jameson (1981) no qual a literatura é
o articulador de contradições sociais fruto de seu período histórico ela também esboça
possíveis respostas. Se a melancolia é o tema universal que cortam as obras, Por
enquanto... Outra estação (2014) é a única que apresenta uma saída, basta o leitor
acreditar ou não.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICA
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998
DERRIDA, Jacques. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 2007.
FELINTO, Marilene. Obsceno e Abandono: Amor e perda. Rio de Janeiro: Record, 2002.
FREUD, Sigmund. Luto e melancolia, 1917 [1915]. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
JAMESON, Fredric. “A interpretação: a literatura como ato socialmente simbólico”. In: O inconsciente político: a narrativa como ato socialmente simbólico. São Paulo: Editora Ática, 1992.
JOYCE, James. Ulisses. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
LÈVI-STRAUSS, Claude. O cru e o cozido. São Paulo: CosacNaify, 2004.
LYOTARD, Jean Françoise. A condição pós-Moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011.
PADUA, Antonio de. Por enquanto... Outra estação. São Paulo: Scortecci, 2014.
PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. Lisboa: Ática: 1982.
TAJES, Claudia. Dez (quase) amores. Rio de Janeiro: LPM, 2009.