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GERUZA DE SOUZA GRAEBIN
ENTRE A CRUZ E A ESPADA TRADUCcedilAtildeO E COMENTAacuteRIO DO MARTIacuteRIO DO SOLDADO MARINO
Monografia apresentada agrave disciplina Orientaccedilatildeo monograacutefica II como requisito parcial agrave conclusatildeo do Curso de Letras Portuguecircs e Grego Setor de Ciecircncias Humanas Letras e Artes da Universidade Federal do Paranaacute
Orientador Prof Dr Pedro Ipiranga Juacutenior
Curitiba 2008
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Agradeccedilo
A todos os meus professores de Grego Sandra Meurer Werner Wiese Estevan Kirschnner
Alessandro Rolim de Moura e Jorge Piqueacute
Ao meu orientador Pedro Ipiranga Juacutenior por aparecer na hora certa e aceitar essa
complicada orientaccedilatildeo
Ao meu esposo Joatildeo Vocecirc eacute o verdadeiro maacutertir da histoacuteria
A Jesus que tudo fez por mim
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ldquoἀλλὰ ἅτινα ἧν μοι κέρδη ταῦτα ἥγημαι διὰ τὸν Χριστὸν ζημίανrdquo
Προς Φιλιππησιοις 37
4
SUMAacuteRIO
RESUMO 5
INTRODUCcedilAtildeO 6
1 GEcircNERO LITERAacuteRIO 9
11 LITERATURA CRISTAtilde E LITERATURA PAGAtilde 9
12 AS CARACTERIacuteSTICAS LITERAacuteRIAS FORMAIS 14
2 CONTEXTO SOacuteCIO-HISTOacuteRICO 18
3 TEXTO GREGO 23
4 TRADUCcedilAtildeO 25
5 COMENTAacuteRIOS 27
51 OS PERSONAGENS 27
52 ESTRUTURA 28
53 TEMPO E ESPACcedilO 29
54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS 30
CONCLUSAtildeO 38
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 40
ANEXOS 43
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005) 43
TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000) 45
5
RESUMO
Este trabalho aborda as origens e caracteriacutesticas do gecircnero literaacuterio denominado biacuteos hagiograacutefico amplamente utilizado pelo Cristianismo nos seacuteculos II a IV dC Verifica-se que esse gecircnero geralmente escrito em forma de relatos de martiacuterios servia a vaacuterios propoacutesitos (i) para divulgar a feacute (ii) para o ensino dos fieacuteis e (iii) para oferecer aos cristatildeos uma literatura proacutepria substituindo assim a literatura e arte pagatildes
Aleacutem disso este trabalho tem o propoacutesito de traduzir e analisar um texto escrito em grego koineacute ldquoO martiacuterio do soldado Marinordquo que relata a trajetoacuteria de um cristatildeo acusado e morto por sua feacute em meados do seacuteculo III dC A anaacutelise deu prioridade ao estudo dos elementos linguumliacutesticos - tais como os itens lexicais e os tempos verbais Tais elementos correlacionados agraves informaccedilotildees do contexto soacutecio-histoacuterico indicaram que o impasse pessoal vivido por Marino refletiu um embate muito maior e de dimensotildees sociais profundas a disputa pelo poder entre Igreja e Estado Romano Verificamos que o autor contrapotildee esses dois poderes de maneira intencional destacando o ponto de vista cristatildeo
Palavras-chave gecircnero biacuteos hagiograacutefico literatura cristatilde Impeacuterio Romano grego koineacute
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INTRODUCcedilAtildeO
A intenccedilatildeo deste trabalho eacute resgatar um gecircnero literaacuterio ao qual se tem dado pouca
atenccedilatildeo no Brasil a saber os relatos de martiacuterios cristatildeos Muitos desses martiacuterios ocorridos
entre os seacuteculos II e IV dC foram registrados em liacutengua grega ou latina e ainda carecem de
um estudo mais pormenorizado que identifique tanto as caracteriacutesticas literaacuterias quanto as
linguumliacutesticas
Nesta pesquisa destacar-se-aacute o relato grego de um soldado chamado Marino que apoacutes
ter sido acusado de natildeo observar as leis romanas perdeu o direito de se tornar centuriatildeo e foi
decapitado
Aleacutem de estabelecer uma traduccedilatildeo da liacutengua grega para a portuguesa tem-se como
objetivo definir neste trabalho a qual gecircnero literaacuterio o relato de martiacuterio do soldado Marino
pertence Para tanto seratildeo utilizados os trabalhos jaacute realizados na aacuterea da hagiografia e da
martirologia e tambeacutem os paracircmetros da literatura claacutessica
Tendo como pressuposto que os relatos de martiacuterio ndash martyria ndash formam um conjunto
literaacuterio especiacutefico e que natildeo haacute literatura neutra procurar-se-aacute avaliar o impacto causado por
esses textos na sociedade romana da eacutepoca e como eles lidam com as diferenccedilas morais e
religiosas entre cristatildeos e natildeo cristatildeos
Conforme nos eacute informado pelos relatos histoacutericos o Cristianismo permaneceu uma
religio ilicita ateacute o reinado de Constantino no seacuteculo IV Durante os seacuteculos anteriores a
situaccedilatildeo dos cristatildeos era relativamente fraacutegil do ponto de vista poliacutetico Ora eram acusados
pelo povo ora protegidos pelas leis Todo esse quadro de instabilidade certamente se refletia
na literatura e alcanccedilava de alguma maneira os leitores Assim por vezes os cristatildeos
recorriam agraves ideacuteias filosoacuteficas para se protegerem dos ataques externos por vezes aos
princiacutepios cristatildeos para se manterem unidos e confiantes diante de uma possiacutevel perseguiccedilatildeo
individual ou em massa Por essa razatildeo seratildeo discutidas a partir do texto selecionado as
funccedilotildees assumidas por esse tipo de literatura e as estrateacutegias utilizadas pelo autor para
cumprir tais funccedilotildees Para tanto seratildeo focalizados o contexto soacutecio-histoacuterico em que a morte
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de Marino se deu e os elementos linguumliacutesticos agrave disposiccedilatildeo no texto para a realizaccedilatildeo dessa
anaacutelise
O estudo da literatura cristatilde mostra-se portanto fundamental para o entendimento do
pensamento e da cultura natildeo soacute introduzida pela comunidade cristatilde mas tambeacutem da sociedade
romana como um todo Afinal a propagaccedilatildeo do Cristianismo se deu - com perseguiccedilatildeo ou
sem perseguiccedilatildeo - durante o periacuteodo do Impeacuterio romano e por meio das liacutenguas de cultura da
eacutepoca primeiramente o grego e depois tambeacutem o latim Natildeo haacute portanto como analisar a
literatura e a liacutengua utilizadas por essa comunidade sem levar em conta ao mesmo tempo as
ideologias filosofias costumes e sistemas sociais poliacuteticos e econocircmicos que norteavam o
Impeacuterio romano
Por fim eacute importante ressaltar que a anaacutelise individualizada desses textos contribui
para o aprofundamento das metodologias e escolhas utilizadas pelos autores muitas vezes
anocircnimos Esse tipo de anaacutelise permite uma melhor compreensatildeo do uso da liacutengua nessa
eacutepoca Permite tambeacutem a comparaccedilatildeo entre os textos e auxilia na verificaccedilatildeo de questotildees
como Ateacute que ponto os relatos de diversos maacutertires produzidos por autores distintos e em
lugares diferentes podem ser correlacionados Havia uma linguagem proacutepria dos cristatildeos
Quais os itens lexicais mais utilizados O valor semacircntico desses itens era o mesmo para
cristatildeos e natildeo cristatildeos
O texto grego utilizado neste trabalho foi o publicado por Musurillo (2000) Para a
traduccedilatildeo foram consultados os seguintes dicionaacuterios
BAIILY A Dictionnaire Grec-Franccedilais Paris Hachette 1950
GINGRICH Wilburg amp DANKER Frederick Leacutexico do Novo Testamento Grego-
Portuguecircs Traduccedilatildeo Juacutelio PT Zabatiero Satildeo Paulo Vida Nova 1993
LAMPE Geoffrey WH A Patristic greek lexicon Oxford Clarenton Press 2000
LIDDELL H SCOTT R Greek-English Lexicon Abridged Simon Wallenberg
Press 2007
SOPHOCLES EA Greek lexicon of the Roman and Byzantine Periods from BC 146
to AD 1100 ndash part one New York Charles Scribnerrsquos Sons 1900
8
Em anexo encontram-se duas outras traduccedilotildees para o relato de martiacuterio de Marino a
de Musurillo (2000) para a liacutengua inglesa e a de Fischer (2005) para a liacutengua portuguesa
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1 GEcircNERO LITERAacuteRIO
O objetivo deste capiacutetulo eacute classificar e compreender o gecircnero literaacuterio no qual os
relatos de martiacuterio estatildeo inseridos
A primeira observaccedilatildeo que precisa ser feita a respeito dos relatos de martiacuterio eacute que a
leitura empreendida neste trabalho tem como pressuposto o ponto de vista literaacuterio Ou seja
natildeo se tem a intenccedilatildeo de discutir a veracidade dos fatos histoacutericos relatados ou de se fazer um
estudo criacutetico no sentido de discernir o que eacute histoacuteria do que eacute ficccedilatildeo Ateacute mesmo porque
conforme escreve Musurillo (2000 liv) a linha entre histoacuteria e ficccedilatildeo nesse tipo de texto eacute
muito tecircnue
A classificaccedilatildeo do gecircnero ao qual pertencem os relatos de martiacuterio pode ser feita por
duas vias distintas Pela primeira partimos dos mais variados tipos de textos de diferentes
eacutepocas com o intuito de por meio da comparaccedilatildeo entre as caracteriacutesticas formais enquadraacute-
los a um determinado gecircnero Pela segunda contrastamos textos de cunho cristatildeo - escritos
por autores nomeadamente cristatildeos com o objetivo de divulgar a sua feacute ndash aos de cunho natildeo-
cristatildeo Essas duas vias satildeo levadas em consideraccedilatildeo neste capiacutetulo comeccedilando pela segunda
a comparaccedilatildeo entre a literatura cristatilde e a natildeo-cristatilde
11 LITERATURA CRISTAtilde E LITERATURA PAGAtilde
A contraposiccedilatildeo entre literatura cristatilde e natildeo-cristatilde eacute um ponto fundamental para a
questatildeo do gecircnero natildeo soacute dos relatos de martiacuterio mas tambeacutem para todos os outros tipos de
textos escritos durante os primeiros seacuteculos da era cristatilde Isso porque durante os seacuteculos II a
IV dC o Cristianismo busca sua afirmaccedilatildeo como religiatildeo e filosofia utilizando-se em
grande medida da escrita
Alesso (2006 24) explica que eacute a partir do seacuteculo II que o Cristianismo se organiza
para enfrentar problemas internos como ldquoas acusaccedilotildees de heresia lutas pelo poder perigos de
cisma e controveacutersias teoloacutegicasrdquo A organizaccedilatildeo tambeacutem se fez necessaacuteria para enfrentar os
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ataques externos o que resultou na apresentaccedilatildeo das ideacuteias cristatildes de modo filosoacutefico em
textos bem elaborados e com caracteriacutesticas semelhantes aos da cultura da eacutepoca
Los discursos de los obispos y letrados defensores del cristianismo no podiacutean ser espontaacuteneos ni livianos cuando se trataba de responder a las criacuteticas y a la difamacioacuten de enemigos tan ilustrados como ellos No bastaba la elocuencia entusiasta habiacutea que ordenar las ideas en lo molde de recursos avalados por el prestigio de siglos en los geacuteneros discursivos que los doctos habiacutean aprendido e internalizado desde su maacutes tierna formacioacuten heleniacutestica
Assim depreende-se que a literatura cristatilde destes primeiros seacuteculos visava atender
duas necessidades principais o ensino para manter a coesatildeo do puacuteblico interno e a apologia
que procurava defender a feacute diante do puacuteblico externo
Os escritos apologeacuteticos dialogavam de maneira direta com a filosofia grega e eram
escritos geralmente por bispos que viviam em grandes centros urbanos como Justino o
maacutertir Oriacutegenes Teoacutefilo e Tertuliano Por essa razatildeo tais discussotildees permaneciam muitas
vezes entre a elite natildeo chegando ao puacuteblico em geral (cf Alesso 2006 31) Desde muito
cedo portanto surge uma divisatildeo natural de destinataacuterios na literatura cristatilde enquanto alguns
textos eram escritos e dirigidos a leitores cultos outros textos tinham como puacuteblico-alvo o
povo
Para Alesso (2006 29-30) essa divisatildeo eacute claramente percebida quando do surgimento
do gecircnero biacuteos ldquoEl geacutenero biacuteos que tendriacutea entonces en principio como destinatario a un
lector cultivado se cumple tambieacuten en un subgeacutenero de corte popular las vidas ejemplaresrdquo
Eacute o gecircnero biacuteos que estabelece de fato em meados do seacuteculo IV a hagiografia - a biografia
que relata a vida de um santo - como um modelo literaacuterio a ser seguido pelos escritores
cristatildeos especialmente pelo movimento monaacutestico Segundo Moreschini amp Norelli (2000
511) a hagiografia foi com o tempo aproximando-se cada vez mais da biografia pagatilde Para
eles a relaccedilatildeo entre cristianismo e paganismo ldquoocorreu com todas as demais formas literaacuterias
cristatildesrdquo porque ldquopraticadas por pessoas que tiveram em comum com os pagatildeos os mestres as
escolas e as leiturasrdquo Tal fato reforccedila ainda mais a divisatildeo entre leitores que tinham acesso agrave
educaccedilatildeo formal daqueles que natildeo a tinham
As pessoas destituiacutedas de uma introduccedilatildeo agraves teorias filosoacuteficas e teoloacutegicas eram
atendidas em grande parte pelas leituras de relatos de martiacuterios ao que Alesso chama de ldquolas
vidas ejemplaresrdquo Os relatos eram lidos durante as celebraccedilotildees cristatildes tornando-se parte da
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liturgia do culto Eram lembrados tambeacutem pela comunidade local por ocasiatildeo do aniversaacuterio
do maacutertir quando o povo se reunia em torno do tuacutemulo ou fazia peregrinaccedilotildees ateacute ele (cf
Musurillo 2000 lvi Moreschini amp Norelli 2000 297)
Os relatos de martiacuterios (acta passiones e martyria) no entanto formam entre si um
gecircnero especiacutefico Aleacutem disso conteacutem elementos que antecedem e prenunciam a formaccedilatildeo da
hagiografia Satildeo denominados por Moreschini amp Norelli (2000 511) de ldquohagiografia
primitivardquo O costume de narrar a prisatildeo o sofrimento e a morte de um cristatildeo explicam esses
autores apareceu ldquoquase contemporaneamente em lugares diferentes da cristandade em
formas diversas e com ascendecircncias e caracteriacutesticas ideoloacutegicas variadas o gecircnero literaacuterio
como tal se constitui progressivamente pelo desenvolvimento e pelas reciacuteprocas relaccedilotildees dos
textosrdquo
O modelo de narrativa dos maacutertires cristatildeos remonta na verdade aos relatos
encontrados na Biacuteblia como o martiacuterio de Estevatildeo (Atos dos Apoacutestolos 7) de Tiago (At 12)
e aos sofrimentos de Paulo (At 14) O modelo central poreacutem eacute o proacuteprio Jesus cuja vida eacute
narrada pelos Evangelhos Note-se que a ecircnfase dos Evangelhos natildeo eacute narrar todos os
acontecimentos biograacuteficos mas destacar os sofrimentos de Cristo desde seu nascimento
como por exemplo a perseguiccedilatildeo de Herodes ateacute sua crucificaccedilatildeo
Ainda que os relatos cristatildeos tenham tido como modelo textos pagatildeos tema discutido
por Delehaye (1966) Berger (1998) e Uytfanghe (1993) foi o Cristianismo que disseminou e
divulgou esse tipo de literatura Delehaye (1966 113-125) assinala que haacute vaacuterias diferenccedilas
entre os relatos dos maacutertires pagatildeos Alexandrinos e os relatos dos maacutertires cristatildeos Uma
delas se encontra na motivaccedilatildeo para o martiacuterio ldquoIci nous voyons des hommes qui meurent
pour leurs convictions et agrave qui il suffirait drsquoun mot ou drsquoun geste pour reconqueacuterir la liberteacute
Lagrave on nous presente les chefs drsquoune faction politique qui deacutefendent au prix de leur vie leur
programme et leurs actes et qui perdent la partierdquo (1966 124) E para Uytfanghe (1993 174)
caracteriacutesticas como humildade amor e perdatildeo natildeo satildeo encontradas em maacutertires pagatildeos
como Soacutecrates e Secircneca Jaacute nos cristatildeos elas estatildeo presentes de maneira radical
De uma forma geral os autores concordam que a formaccedilatildeo de um gecircnero a partir dos
relatos de martiacuterio e sua posterior propagaccedilatildeo pelos cristatildeos natildeo tinham uma intenccedilatildeo uacutenica
pelo contraacuterio vecirc-se nesses textos uma intenccedilatildeo multifacetada Para Musurillo (2000 liv-
12
lvii) os relatos de martiacuterio exerciam pelo menos trecircs funccedilotildees a primeira era a funccedilatildeo
histoacuterica jaacute que tanto os Evangelhos como os Atos dos Apoacutestolos e os martyria baseavam-se
em fatos histoacutericos A segunda era a apologeacutetica isto eacute a afirmaccedilatildeo da feacute cristatilde diante do
mundo E por uacuteltimo a funccedilatildeo de ensino Uytfanghe (1993 173-175) observa que por meio
desses relatos os cristatildeos eram encorajados a permanecerem firmes nas suas crenccedilas e a
cultivarem uma vida santa e asceacutetica O maacutertir se tornava assim um modelo a ser seguido E
o cristatildeo ndash literalmente o seguidor de Cristo - dava continuidade aos ensinos e agrave vida de
Jesus o qual afirmou ldquoLembrem-se das palavras que eu lhes disse Nenhum escravo eacute maior
do que o seu senhor Se me perseguiram tambeacutem perseguiratildeo vocecircsrdquo (Evang Joatildeo 1520)
Aleacutem desses trecircs aspectos a formaccedilatildeo de um corpus literaacuterio cristatildeo era de grande
interesse para a Igreja na medida em que oferecia ao puacuteblico cristatildeo a cada dia maior uma
nova opccedilatildeo cultural Conforme o registro que possuiacutemos no escrito Os Espetaacuteculos do bispo
Tertuliano de Cartago os cristatildeos eram aconselhados a natildeo frequumlentarem os teatros e os
circos nem assistirem aos combates de gladiadores ldquoMas eles percebem que algueacutem se fez
cristatildeo sobretudo pelo fato de evitar os espetaacuteculosrdquo (De spect 243)
Tertuliano posicionou-se fortemente contra a participaccedilatildeo dos cristatildeos nos espetaacuteculos
promovidos pelos teatros circos e arenas porque aleacutem de possuiacuterem uma ligaccedilatildeo com algum
deus grego ou romano - e portanto promoverem a idolatria - evidenciavam a incoerecircncia da
sociedade romana ldquosoacute ali [no teatro] tem curso e aplauso o que em qualquer outra parte se
reprovardquo (De spect 171) Assim argumenta ldquoConvencidos ficamos que por nenhum lado
nos fica bem laacute ir noacutes que por duas vezes renunciamos aos iacutedolosrdquo (De spect 13 1) Para
Tertuliano o homem eacute imagem e semelhanccedila de Deus e por essa razatildeo natildeo deveria
corromper sua alma e corpo
O certo eacute que natildeo nos foram dados os olhos para os entregar agrave concupiscecircncia nem a liacutengua para a maledicecircncia nem os ouvidos para sorvedouro de murmuraccedilotildees nem o paladar para poccedilo de gula o ventre para dar seguimento agrave mesma gula os oacutergatildeos genitais para excessos de impureza as matildeos para estrangular o proacuteximo os peacutes para vagabundear natildeo se nos infundiu a alma ateacute as entretelas do corpo para vir a ser um recesso de ciladas e de embustes e de iniquumlidades (De spect 210)
Os prazeres cultivados pela sociedade romana deveriam portanto ser abandonados e
substituiacutedos Para Tertuliano o cristatildeo natildeo tinha necessidade de espetaacuteculos pois desfrutava
dos prazeres (voluptates) proacuteprios agrave sua feacute Seus argumentos satildeo os seguintes
13
Que melhor alegria que a que promana da reconciliaccedilatildeo com Deus Pai Nosso Senhor do conhecimento da verdade de reconhecer os erros do perdatildeo de tantos pecados da passada vida Que maior prazer que o asco do proacuteprio prazer que a consciecircncia pura que a vida sem ambiccedilotildees e o destemor da morte Pisar aos peacutes os deuses dos gentios expelir os democircnios curar doentes informar-te da verdade revelada viver para Deus aiacute estatildeo as alegrias satildeo esses os espetaacuteculos santos dos cristatildeos os espetaacuteculos perpeacutetuos por que se natildeo paga nada (De spect 29 1-3)
O bispo continua a explanaccedilatildeo de suas ideacuteias afirmando que os cristatildeos natildeo possuem o
teatro mas tecircm boa literatura natildeo possuem os combates de gladiadores mas tecircm as lutas pela
feacute e pela castidade natildeo possuem o sangue das arenas mas tecircm o sangue de Cristo ldquoSe o
palavreado cecircnico eacute divertido natildeo temos falta de boas letras temos versos a rodos e
pensamentos bem cunhados nada se diga de cacircnticos e vozes do melhor metal em vez de
faacutebulas temos verdades em vez de embustes a lisura mais declaradardquo (De spect 294)
A defesa e a valorizaccedilatildeo de uma literatura proacutepria aos cristatildeos eacute um elemento
extremamente importante para a propagaccedilatildeo dos relatos de martiacuterio porque conforme visto
acima esse tipo de texto entrou em circulaccedilatildeo como um substituto agraves encenaccedilotildees teatrais
Assim os martyria ajudaram a constituir um corpus literaacuterio cristatildeo que se tornou um
instrumento de poder para a Igreja
Como observa Fox (1996 130) os maacutertires compartilhavam juntamente com os
bispos e visionaacuteriosprofetas um lugar privilegiado na comunidade ldquoAmong Christians
before Constantine power was attribute of three particular groups it was achieved by
visionaires it was ascribed to martyrs and confessors it was vested above all in bishops
Literacy assisted the exercise of power by all threerdquo Os integrantes desses trecircs grupos natildeo
apenas eram admirados mas tidos como autoridades Os bispos por exemplo eram
considerados por Inaacutecio de Antioquia como ldquoos representantes de Deus na Igrejardquo
(Guignebert 1956 137) Por isso os escritos ou discursos proferidos por esses trecircs grupos
eram recebidos na maioria das vezes como proacutepria palavra de Deus fator que atribuiacutea um
poder ainda maior aos textos Para Fox (1996 129) ldquothis combination of sacred text and an
increasingly standardised pattern of authority make the early Church a unique subject for
studies of literacy and powerrdquo
Como um gecircnero da literatura cristatilde os relatos de martiacuterio tambeacutem serviram para a
manutenccedilatildeo e a transmissatildeo da ideologia cristatilde nos primeiros seacuteculos do Cristianismo
conforme escreve Alesso (2006 34-35)
14
Los geacuteneros en todas sus formas y subformas son el suporte estructural para la transmisioacuten de un ideario y lo fueron de modo especial en el trasvase de los contenidos que provenientes de la antiguumledad se imbricaron en el cristianismo de los Padres Aunque su relacioacuten com la criacutetica sociohistoacuterica es marginal los geacuteneros son indudables portadores de significacioacuten cuando interesan a la evolucioacuten de paraacutemetros poliacutetico culturales que intervinieran en la construccioacuten del edificio ideoloacutegico de la teologiacutea cristiana
O fortalecimento da literatura cristatilde foi enfim um fator essencial para a difusatildeo do
Cristianismo porque ajudou a organizaacute-lo como instituiccedilatildeo Por meio da literatura o
Cristianismo conseguiu alcanccedilar pessoas de todos os lugares e de todas as classes sociais
inclusive as pertencentes agrave elite que conforme Daniel-Rops (1988 305) sentiam o decliacutenio
do Impeacuterio que chegava ateacute mesmo ao acircmbito literaacuterio e artiacutestico
12 AS CARACTERIacuteSTICAS LITERAacuteRIAS FORMAIS
Quanto agraves caracteriacutesticas formais que podem ser levadas em conta para a classificaccedilatildeo
do gecircnero os relatos de martiacuterio mesclam traccedilos tanto do gecircnero biograacutefico quanto do
discurso hagiograacutefico
Os relatos de martiacuterio natildeo podem ser classificados categoricamente como biacuteoi pois
natildeo chegam a constituir uma biografia de fato Tambeacutem natildeo podem ser classificados como
hagiografia em sentido exclusivo porque como afirma Delehaye (apud Uytfanghe 1993
146) esta eacute muito abrangente inclui ldquotodo documento escrito inspirado pelo culto dos santos
e destinado a promovecirc-lordquo Assim o que se verifica eacute um entrecruzamento de gecircneros Isso
ocorre porque os gecircneros satildeo como afirma Alesso (2006 29) sistemas abertos ldquolas
invariantes coexisten con las variables y no podemos condenarlos y condenarnos a una
esquematizacioacuten extrema porque perderiacuteamos de vista uno de los objetivos primordiales la
finalidad del contenidordquo Por essa razatildeo adotamos neste trabalho a definiccedilatildeo biacuteos
hagiograacutefico introduzida por Ipiranga Juacutenior (2006 9)
Segundo Momigliano (1971 25) os gregos jaacute possuiacuteam o haacutebito de redigir biografias
no seacuteculo V aC mas foi no periacuteodo heleniacutestico que ele se intensificou e o gecircnero recebeu um
nome especiacutefico ldquobien qui nous conaissions lrsquoexistence de biographies et peut-ecirctre
drsquoautobiographies degraves le cinquiegraveme siegravecle avant JC crsquoest seulement agrave lrsquoeacutepoque helleacutenistique
15
que la biographie devient une notion precise et acquiert un nom en propre Ce nome est lsquobiosrsquo
ndash et non lsquobiographiarsquordquo
Para Bakhtin (2003 138) entretanto a biografia como romance surgiu apenas no fim
da Idade Meacutedia Durante os seacuteculos II-IV dC ainda era uma forma literaacuteria em formaccedilatildeo
Mesmo tendo em mente a distacircncia cronoloacutegica entre os martyria e o romance biograacutefico ao
qual Bakhtin se refere eacute possiacutevel perceber semelhanccedilas entre os dois
A primeira delas eacute a presenccedila do heroacutei com valores do tipo bravura honradez
magnanimidade e generosidade (cf Bakhtin 2003 142 147) Ao abrir matildeo de posiccedilotildees
poliacuteticas e religiosas ao enfrentar perigos sofrimentos torturas e feras sem renunciar agrave feacute o
maacutertir eacute visto como um heroacutei pela comunidade cristatilde Ele ldquotorna-se uma espeacutecie de ponto
focal da vida da comunidade que o circunda de veneraccedilatildeo considerando-o jaacute em contato com
Deus capaz de profetizar e de pronunciar-se com uma autoridade especial tambeacutem sobre
questotildees eclesiaacutesticasrdquo (Moreschini amp Norelli 2000 297) Morrer por sua feacute eacute o ato supremo
de glorificaccedilatildeo para os primeiros cristatildeos E eacute por meio dessa glorificaccedilatildeo de acordo com as
palavras de Bakhtin (2003 143) que o heroacutei consegue alcanccedilar a consciecircncia de uma
determinada sociedade incutindo assim novos valores
A aspiraccedilatildeo agrave gloacuteria organiza a vida do heroacutei ingecircnuo a gloacuteria organiza tambeacutem a narraccedilatildeo da sua vida sua glorificaccedilatildeo Aspirar agrave gloacuteria eacute tomar consciecircncia de si na sociedade culta e histoacuterica dos homens (ou na naccedilatildeo) eacute afirmar e construir sua vida na possiacutevel consciecircncia dessa sociedade humana eacute crescer natildeo em si nem para si mas nos outros ou para os outros eacute ocupar um lugar no mundo imediato dos contemporacircneos e descendentes
A segunda semelhanccedila detectada entre os gecircneros biograacutefico e biacuteos hagiograacutefico eacute a
relaccedilatildeo de empatia que se estabelece entre autor-personagem Segundo Bakhtin (2003 150)
autor e personagem compartilham obrigatoriamente os mesmos valores ldquona biografia o
autor natildeo soacute combina com a personagem na feacute nas convicccedilotildees e no amor mas tambeacutem em
sua criaccedilatildeo artiacutestica (sincreacutetica) tomando como guia os mesmos valores que a personagem
em sua vida esteacuteticardquo Embora o autor do martiacuterio do soldado Marino natildeo seja explicitado eacute
possiacutevel inferir pelo texto que o interesse de registrar o fato tenha partido natildeo de algueacutem que
simplesmente compartilhava com ele a situaccedilatildeo de soldado do exeacutercito romano mas sim de
algueacutem que dividia os mesmos valores cristatildeos
16
Quanto agrave modalidade do romance a relaccedilatildeo entre os gecircneros biacuteos hagiograacutefico e
biograacutefico tambeacutem eacute possiacutevel Bakhtin (2003 205) identifica quatro modelos de romance
ldquosegundo o princiacutepio de construccedilatildeo da imagem da personagem central o romance de viagens
o romance de provaccedilatildeo da personagem o romance biograacutefico (autobiograacutefico) o romance de
educaccedilatildeordquo Ora por ser um gecircnero hiacutebrido a personagem principal do biacuteos hagiograacutefico
mescla caracteriacutesticas tanto do romance de provaccedilatildeo quanto do romance biograacutefico
Para Bakhtin (2003 207) o romance de provaccedilatildeo divide-se em duas modalidades ldquoA
primeira modalidade eacute representada pelo romance grego (A Etioacutepica Leucipo e Cleitofon
etc) A segunda modalidade eacute representada pelas hagiografias do iniacutecio do cristianismo
(particularmente dos maacutertires)rdquo O objetivo das provaccedilotildees neste tipo de romance eacute mudar a
opiniatildeo e os valores do heroacutei Como nos relatos de martiacuterio os cristatildeos natildeo renunciam a sua
feacute natildeo haacute mutabilidade Logo o maacutertir aproxima-se do conceito de heroacutei da provaccedilatildeo ele ldquoeacute
acabado e predeterminado as experimentaccedilotildees (sofrimentos seduccedilotildees duacutevidas) natildeo se
tornam para ele uma experiecircncia formadora nem a modificam e nessa imutabilidade da
personagem estaacute toda questatildeordquo (Bakhtin 2003 209)
Aleacutem disso no romance de provaccedilatildeo o personagem eacute o centro Natildeo importam os
costumes ou lugares exoacuteticos como no romance de viagens O personagem natildeo eacute modificado
de forma determinante pelo mundo nem o modifica
Entre o heroacutei e o mundo natildeo existe interaccedilatildeo autecircntica o mundo natildeo eacute capaz de mudar o heroacutei ele apenas o experimenta e o heroacutei natildeo influencia o mundo natildeo lhe muda a face ao passar pela provaccedilatildeo ao afastar seus inimigos etc o heroacutei deixa no mundo tudo nos seus lugares natildeo modifica a face social do mundo natildeo o reconstroacutei e aliaacutes nem tem essa pretensatildeo (Bakhtin 2003 212)
Eacute exatamente esta a situaccedilatildeo observada no texto em anaacutelise A crise pela qual passa o
personagem Marino natildeo eacute capaz de alterar suas convicccedilotildees nem de mudar o curso normal dos
acontecimentos agrave parte de sua vida o exeacutercito continuaraacute existindo uma outra pessoa tomaraacute
o seu lugar e tudo continuaraacute funcionando sob os mesmos princiacutepios
Quanto ao romance biograacutefico Bakhtin (2003 213) considera que assim como o
romance de provaccedilatildeo ele ldquoeacute preparado ainda em solo antigo nas biografias antigas
autobiografias e confissotildees do periacuteodo inicial do cristianismo (terminando em Agostinho)rdquo
O gecircnero biacuteos hagiograacutefico estabelece contatos com esse tipo de romance por meio do
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enredo Como o romance biograacutefico tem como elemento principal a narraccedilatildeo da trajetoacuteria
vital de um determinado personagem ou seja tem como base justamente aqueles ldquoelementos
existentes antes do iniacutecio ou depois do teacutermino do romance de provaccedilatildeordquo (Ibid) engloba
necessariamente o relato da morte fato fundamental para o surgimento de um maacutertir na
concepccedilatildeo cristatilde
No romance biograacutefico a relaccedilatildeo da personagem com o mundo ganha um enfoque
diferente daquele verificado no romance de viagens ou no de provaccedilatildeo Bakhtin (2003 215)
verifica que ldquoPersonagens secundaacuterias paiacuteses cidades objetos etc integram o romance
biograacutefico por vias substanciais e ganham uma relaccedilatildeo igualmente substancial com o todo
vital da personagem centralrdquo Paradoxalmente o relato do soldado Marino apresenta tambeacutem
esse aspecto Embora ele permanecesse inabalaacutevel em sua decisatildeo de natildeo negar a feacute cristatilde
antes de o juiz lhe conceder um tempo para refletir eacute no encontro com o bispo Teotecno e
principalmente apoacutes o confronto com um objeto de grande valor ndash as Escrituras ndash que
Marino segue resoluto para o tribunal
Bakhtin tambeacutem escreve sobre o gecircnero hagiograacutefico embora com mais cautela Para
o autor (2003 169-70) ldquoa hagiografia se realiza diretamente no mundo do divinordquo Por se
tratar de um plano diferenciado em que ldquoa atitude reverente do autor natildeo deixa espaccedilo agrave
iniciativa individualrdquo (2003 170) Bakhtin prefere manter a mesma distacircncia Assim limita-
se em dizer que a hagiografia ldquorecorre a formas tradicionalmente sagradasrdquo (Ibid)
No aspecto formal os relatos de martiacuterio possuem de fato vaacuterias semelhanccedilas e um
fundamento em comum que satildeo os processos verbais No entanto ainda natildeo existe entre os
seacuteculos II e IV dC essa preocupaccedilatildeo ou esse rigor com a forma com a exclusatildeo de todo
elemento que possa remeter agrave individualidade
deve-se excluir tudo o que eacute tiacutepico de uma dada eacutepoca de uma dada nacionalidade () de uma dada condiccedilatildeo social de uma dada idade todo o concreto de uma imagem de uma vida todas as minuacutecias desta as indicaccedilotildees precisas do tempo e do espaccedilo na accedilatildeo ndash tudo o que reforccedila a determinidade no ser de um dado indiviacuteduo e assim lhe diminui a autoridade (Bakhtin 2003 170)
Vecirc-se portanto a partir dessa breve anaacutelise que o gecircnero biacuteos hagiograacutefico mescla
caracteriacutesticas tanto do gecircnero biograacutefico ndash seja biacuteos ou romance biograacutefico - quanto da
hagiografia constituindo assim um gecircnero agrave parte
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2 CONTEXTO SOacuteCIO-HISTOacuteRICO
O relato do martiacuterio de Marino se tornou conhecido por meio da obra Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio bispo de Cesareacuteia no iniacutecio do seacuteculo IV Para Puech (1930 173)
ldquoEusegravebe est un meacutediocre theacuteologien et un meacutediocre eacutecrivain () mais il nous a rendu comme
historien et comme chronographe des services inestimablesrdquo De fato dificilmente teriacuteamos
acesso a esse texto se natildeo fosse o trabalho de Euseacutebio De acordo com a cronologia do bispo
a morte de Marino eacute situada entre os anos 260-261 dC Para o tradutor Musurillo (2000
xxxvi) essa data eacute bastante provaacutevel O comentaacuterio no relato de que todas as igrejas
desfrutavam de um periacuteodo de paz eacute o principal fator que leva a essa conclusatildeo No ano de
260 dC eacute promulgado o edito de Galieno o qual ldquoautoriza os liacutederes da Igreja a presidir
livremente as celebraccedilotildees religiosasrdquo (Silva 2006 250)
No entanto mesmo com as medidas favoraacuteveis por parte dos governantes o
cristianismo permanecia uma religio ilicita e portanto os cristatildeos ainda estavam sujeitos a
julgamento caso fossem delatados Foi o que aconteceu com o soldado Marino Uma vez
acusado de ser cristatildeo e de natildeo prestar culto ao imperador foi levado ao tribunal Eacute muito
provaacutevel que Marino tivesse vaacuterios colegas cristatildeos no exeacutercito que natildeo foram executados
porque ningueacutem aparecera para acusaacute-los A situaccedilatildeo dos cristatildeos era realmente
imprevisiacutevel Daniel-Rops (1988 346) comenta que no seacuteculo III essa constante mudanccedila de
humor por parte do Impeacuterio criou uma situaccedilatildeo sem precedentes ldquoComo um anciatildeo doente
que ora dormita inconsciente ou vagamente inquieto ignorando as impaciecircncias que o
rodeiam ora se irrita e ainda se mostra terriacutevel da mesma forma o Impeacuterio muda a todo o
momento de atitude Eacute isto o que daacute agraves perseguiccedilotildees do seacuteculo III um caraacuteter tatildeo diferente das
precedentesrdquo
Assim Marino foi o escolhido naquele momento de paz temporaacuteria Eles tinham
conhecimento da lei que estava em vigor desde a eacutepoca do imperador Trajano (110-111 dC)
quando este determinara ao governador Pliacutenio que os cristatildeos natildeo deveriam ser
sistematicamente perseguidos nem deveriam ser aceitas denuacutencias anocircnimas contra eles
(Gonzaacutelez 1995 64) A recomendaccedilatildeo dada a Pliacutenio havia sido adotada em todo o Impeacuterio
Uma vez acusados entretanto deveriam ser julgados Geralmente os cristatildeos eram levados
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ao tribunal em decorrecircncia de disputas locais como escrevem Danieacutelou amp Marrou (1966
105)
Conveacutem frisar que natildeo haacute proscriccedilatildeo de cristatildeos pelo poder central quer dizer natildeo haacute perseguiccedilatildeo total Em segundo lugar verificam-se ataques locais movidos pelo povo e depois submetidos agrave apreciaccedilatildeo do magistrado romano () Em terceiro lugar o motivo da perseguiccedilatildeo natildeo se liga a crimes determinados mas unicamente ao lsquonomersquo cristatildeo O levantamento feito por Pliacutenio levara mesmo agrave conclusatildeo de que eram inocentes os cristatildeos
Guignebert (1956 169-70) tambeacutem assinala que apesar de todas as acusaccedilotildees
nenhum crime recaiacutea sobre os cristatildeos
Varias acusaciones de derecho comuacuten se poniacutean en juego al mismo tiempo para agobiar a los fieles religioacuten iliacutecita sociedad secreta lesa majestad negativa de obediencia si se trataba de soldados ignavia es decir negligencia en el cumplimiento de los deberes de la vida puacuteblica y privada y hasta magia Por lo demaacutes estas acusaciones cuando se aplicaban a los cristianos presentaban la singularidad de que se desistia inmediatamente de ellas si el inculpado consentiacutea en decir que renunciaba a su feacute lo que permite suponer que en suma era la religioacuten cristiana solamente lo que se perseguia
Ainda assim os cristatildeos precisavam ser castigados porque ao insistirem na afirmaccedilatildeo
ldquoSou cristatildeordquo rebelavam-se contra os princiacutepios do Impeacuterio especialmente o do culto ao
imperador
Este delito tinha de ser castigado em primeiro lugar porque de outro modo diminuiria a autoridade desses tribunais e em segundo lugar porque ao negarem a adorar o imperador os cristatildeos estavam adotando uma atitude que nesse tempo se interpretava como rebeliatildeo contra a autoridade imperial Com efeito o culto ao imperador era um dos viacutenculos que uniam o Impeacuterio e negar-se em puacuteblico a render esse culto equivalia a romper esse viacutenculo (Gonzaacutelez 1995 66)
Novamente percebe-se o caraacuteter imprevisiacutevel da vida cristatilde Os autores reconhecem
que de uma maneira geral as comunidades cristatildes procuravam levar uma vida exemplar e
submissa agraves leis do Impeacuterio ldquoAs instruccedilotildees de civismo dadas pelos Apoacutestolos continuam a
ser observadas e os cristatildeos mostram-se na sua grande maioria cidadatildeos fieacuteis e devotados ao
bem puacuteblicordquo (Daniel-Rops 1988 345) Poreacutem quando levados a julgamento puacuteblico natildeo
aceitavam prestar culto a outro senhor aleacutem de Cristo
No tocante ao serviccedilo militar as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio nem sempre eram
tatildeo simples Na opiniatildeo de Guignebert (1956 166) isso se dava porque as obrigaccedilotildees
militares geralmente tinham uma forte ligaccedilatildeo com as praacuteticas religiosas pagatildes
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El servicio militar les resultaba odioso porque suponiacutea obligaciones idolaacutetricas y porque execraban la guerra su participacioacuten en el servicio civil les pareciacutea supeacuterflua sobre todo se rehusaban obstinadamente a tomar parte en ninguna de las manifestaciones de lealtad que el gobierno imperial reclamaba porque todas revestiacutean caraacutecter religioso
Do mesmo modo Daniel-Rops (1988 345) relata
casos de objeccedilatildeo de consciecircncia ao serviccedilo militar como acontece com um jovem soldado que exclama ldquoNatildeo me eacute permitido trazer ao pescoccedilo o signum (espeacutecie de placa de identidade usada no exeacutercito romano) porque fui marcado com o sinal de Cristordquo ou com um outro soldado que se recusou a colocar sobre a cabeccedila a coroa ritual dos sacrifiacutecios em honra do imperador Satildeo casos ainda excepcionais mas sintomaacuteticos a oposiccedilatildeo profunda entre Roma e a Igreja tende a passar do plano religioso para o plano ciacutevico e poliacutetico
A intervenccedilatildeo do plano religioso sobre o poliacutetico e vice-versa foi consequumlecircncia da
busca por parte dos romanos de um sistema seguro no qual pudessem se apoiar Com a
decadecircncia poliacutetica econocircmica e moral o nuacutemero de seitas e religiotildees se multiplicava
formando um quadro extremamente pluralista (cf Daniel-Rops 1988 307) Eacute no seacuteculo III
que a dinastia dos Severos se impotildee e juntamente com ela vecircm as tradiccedilotildees religiosas
orientais
El advenimiento con los Severos de principes africanos y sirios la dominacioacuten de mujeres penetradas de la piedade miacutestica de Oriente favorecieron su raacutepido desarollo y el siglo III conocioacute todas sus formas desde las maacutes groseras estrechamente emparentadas com la supersticioacuten pura hasta las maacutes refinadas modeladas pelas reflexiones de la filosofia que desde entonces tenderiacutea hacia lo divino (Guignebert 1956 119)
Neste panorama soacutecio-poliacutetico o cristianismo foi a religiatildeo abraccedilada por muitos
cidadatildeos natildeo soacute ldquotecelotildees pisoeiros e sapateirosrdquo mas tambeacutem ldquoadvogados como Satildeo
Gregoacuterio Taumaturgo ou Satildeo Cipriano de Cartago mulheres da sociedade como Santa
Perpeacutetua grandes burgueses da proviacutencia e lsquoclariacutessimosrsquo de famiacutelias senatoriaisrdquo (Daniel-
Rops 1988 317) Para Guignebert (1956 121) o contato da elite com o cristianismo se deu
essencialmente por meio dos escravos e da filosofia
a traveacutes de los esclavos llegoacute a las mujeres libres sus amas y accidentalmente atrajo la atencioacuten de algunos hombres instruiacutedos que buscaban la verdad divina Gracias a las primeras se insinuoacute en las classes altas gracias a los segundos tomoacute contacto con la filosofia en el curso del siglo II y las consecuencias de este encuentro fueron incalculables
Eacute importante relembrar que a filosofia pressupunha a escrita e tinha um forte viacutenculo
com a literatura Mesmo o cristianismo no seacuteculo III jaacute possuiacutea um consideraacutevel nuacutemero de
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textos apologeacuteticos que dialogavam diretamente com a filosofia grega e possibilitavam para
a elite o acesso agraves ideacuteias cristatildes (cf Alesso 2006 31)
O relato do martiacuterio do soldado Marino surge portanto nesse contexto soacutecio-histoacuterico
como um texto de grande relevacircncia para o cristianismo Primeiro porque o personagem
principal eacute um soldado Integrava o grupo social de maior prestiacutegio nessa eacutepoca Como dizia
Septiacutemio Severo aos seus filhos ldquoEnriquecei o soldado e zombai do restordquo (Daniel-Rops
1988 299) E como no seacuteculo III as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio tomam uma nova
configuraccedilatildeo o contraste entre essas duas instituiccedilotildees eacute um assunto central O embate deixa
de ser apenas religioso e passa a ser tambeacutem poliacutetico - fato que vai se confirmar no seacuteculo
IV
Em segundo lugar a posiccedilatildeo social do maacutertir levanta outra questatildeo Marino como
membro da elite poderia facilmente ter comprado o libellus ndash documento que comprovava o
sacrifiacutecio aos deuses romanos ndash e assim conseguir sua liberdade (cf Silva 2006 248)
Daniel-Rops (1988 367) detalha que os ricos eram mais propensos a comprar falsos
documentos e a desistir ldquoConforme os testemunhos que temos parece que eram sobretudo os
ricos os bem instalados aqueles a quem a vida tinha concedido todo o conforto e que natildeo
estavam dispostos a sacrificaacute-lordquo que renunciavam agrave feacute
Aleacutem de abrir matildeo de sua posiccedilatildeo social e dos privileacutegios que iria obter como
centuriatildeo Marino natildeo se deixou dominar pelo medo a principal razatildeo da apostasia segundo
Daniel-Rops (1988 367) Eacute importante lembrar que a perseguiccedilatildeo sob Deacutecio instaurada em
249 dC ainda era bastante recente Numa tentativa de restaurar a gloacuteria do Impeacuterio Deacutecio
havia promulgado uma lei que obrigava todos os suacuteditos a retomarem o culto aos deuses
romanos Para ele ldquose todos os suacuteditos do Impeacuterio voltassem a adorar os deuses
possivelmente os deuses voltariam a favorecer o Impeacuteriordquo (Gonzaacutelez 1995 138) O culto era
um elemento essencial para os romanos Era por meio dele que expressavam sua
religiosidade como escreve Arnauld (2001 15) ldquoLa lsquopietasrsquo (pieacuteteacute) eacutetait la caracteacuteristique
principale de la religiositeacute romaine () Cette lsquopietasrsquo srsquoexprimait en une observance stricte
des lois rituelles Religion signifiait culterdquo
O descumprimento da lei por parte dos cristatildeos provocou uma perseguiccedilatildeo que teve
como consequumlecircncia um grande nuacutemero de apostasias fato que chegou a causar divergecircncia de
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opiniatildeo entre os bispos Num novo periacuteodo de relativa paz era portanto de suma importacircncia
para a Igreja insistir que os cristatildeos permanecessem firmes em suas convicccedilotildees Como
observa Daniel-Rops (1988 367) ldquoesses periacuteodos de interrupccedilatildeo nas perseguiccedilotildees natildeo
ajudavam em nada a coragem dos fieacuteis durante os tempos de calma a mola distendia-se e
quando subitamente era preciso voltar a entrar em luta muitos se sentiam faltos de energiardquo
Assim o testemunho de Marino evidencia o conflito existente entre a Igreja e o
Impeacuterio e conclama de maneira didaacutetica a que os cristatildeos tenham a mesma disposiccedilatildeo
mesmo diante da possibilidade da apostasia e dos terrores de um novo periacuteodo de perseguiccedilatildeo
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3 TEXTO GREGO
Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου Μαρίνου
Κατὰ τούτους εἰρήνης ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης ἐν Καισαρείᾳ τῆς
Παλαιστίνης Μαρῖνος τῶν ἐν στρατείαις ἀξιώμασι τετιμημένων γένει τε
καὶ πλοὕτῳ περιφανὴς ἀνήρ διὰ τὴν Χριστοῦ μαρτυρίαν τὴν κεφαλὴν
ἀποτέμνεται τοιᾶσδε ἕνεκεν αἰτίας
2 τιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας φασίν
ἑκατοντάρχους γίνεσθαι Τόπου σχολάζοντος ἐπὶ τοῦτο προκοπῆς τὸν
Μαρῖνον ἡ τοῦ βαθμοῦ τάξις ἐκάλει ἤδη τε μέλλοντα τῆς τιμῆς ἔχεσθαι
Παρελθὼν ἄλλος πρὸ τοῦ βήματος μὴ ἐξεῖναι μὲν ἐκείνῳ τῆς Ῥωμαίων
μετέχειν ἀξίας κατὰ τοὺς παλαιοὺς νόμους Χριστιανῷ γε ὄντι καὶ τοῖς
βασιλεῦσι μὴ θύοντι κατηγόρει αὐτῷ δὲ ἐπιβάλλειν τὸν κλῆρον
3 ἐφ᾿ ᾧ κινηθέντα τὸν δικαστὴν (Ἀχαιὸς οὕτος ἧν) πρῶτον μὲν ἐρέσθαι
ποίας ὁ Μαρῖνος εἴη γνώμης ὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν ἐπιμόνως
ἑώρα τριῶν ὡρῶν ἐπιδοῦναι αὐτῷ εἰς ἐπίσκεψιν διάστημα
4 ἐκτὸς δῆτα γενόμενον αὐτὸν τοῦ δικαστηρίου Θεότεκνος ὁ τῇδε
ἐπίσκοπος ἀφέλκει προσελθὼν δι᾿ ὁμιλίας καὶ τῆς χειρὸς λαβὼν ἐπὶ τὴν
ἐκκλησίαν προάγει εἴσω τε πρὸς αὐτῷ στήσας τῷ ἁγιάσματι μικρόν τι
παραναστείλας αὐτοῦ τῆς χλαμύδος καὶ τὸ προσηρτημένον αὐτῷ ξίφος
ἐπιδείξας ἅμα τε ἀντιπαρατίθησι προσαγαγὼν αὐτῷ τὴν τῶν θείων
εὐαγγελίων γραψήν κελεύσας τῶν δυοῖν ἑλέσθαι τὸ κατὰ γνώμην ὡς δ᾿
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ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν
ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς
αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης
5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ
δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ
δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν
ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται
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4 TRADUCcedilAtildeO
O martiacuterio do Santo Marino
1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares
em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido
honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por
todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu
testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte
2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a
conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a
ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo
Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e
declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e
portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos
romanos Assim o cargo cairia para si
3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou
primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele
insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs
horas para refletir
4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era
bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela
matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando
um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo
tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos
exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem
hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas
ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno
ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo
5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para
o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se
apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute
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imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre
o seu fim
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5 COMENTAacuteRIOS
51 OS PERSONAGENS
Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em
um ponto da estrutura
Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola
Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal
familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute
exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um
homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos
movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do
texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave
autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado
guerreiro
O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo
dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo
para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A
denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma
preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega
Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o
exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees
do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio
militar portanto tinha um significado muito grande
Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas
informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou
compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem
disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo
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Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na
quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado
provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era
seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para
conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial
para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve
como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)
O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para
anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo
de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos
outros personagens no texto
52 ESTRUTURA
O texto pode ser subdividido em 5 partes
(i) Marino o soldado cristatildeo
A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no
espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo
A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de
captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a
expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo
(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo
A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio
narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo
apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal
(iii) Marino e o juiz a confissatildeo
A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente
que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir
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(iv) Marino e o bispo a decisatildeo
Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de
Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem
palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a
espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe
a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras
(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo
Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo
Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte
53 TEMPO E ESPACcedilO
O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto
para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης
ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor
Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e
a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII
12)
A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que
Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em
todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto
o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se
deram de maneira muito raacutepida
Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia
na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no
entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes
contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o
Cristianismo
30
O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno
poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por
Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo
tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito
cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera
propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz
que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os
sofrimentos corporais
Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte
54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS
O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de
diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um
detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga
essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de
martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)
Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte
A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da
distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no
entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor
31
A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra
no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios
desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica
Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com
Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma
narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute
portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a
noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007
8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente
engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo
No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no
uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo
εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por
ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento
por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann
2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que
eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega
amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e
decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo
do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio
ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento
emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado
comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como
afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva
de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a
forte presenccedila do aspecto emotivo
A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para
enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou
ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops
(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma
32
medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te
apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo
Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila
Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte
pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o
caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o
representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute
o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar
Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel
seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os
espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo
Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na
hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops
(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo
obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo
O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino
se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua
decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo
que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar
O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma
meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior
sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O
adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez
Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num
texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e
ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς
πίστεως τὴν προθυμίαν
Assim temos
33
Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)
darrdarrdarrdarr
Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo
darrdarrdarrdarr
Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo
O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas
uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado
pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν
ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente
detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita
conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui
coerecircncia ao texto
Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)
destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura
feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que
todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou
seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica
fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e
estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha
havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois
poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo
34
sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser
adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um
antagonismo fundamentalrdquo
O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de
Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo
substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo
ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos
esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no
texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino
Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos
durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e
por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que
a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino
Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη
ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto
o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων
o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος
o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις
o substantivo εἰρήνη
o substantivo μαρτυρία
Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e
formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado
35
A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes
por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)
honra romana (τιμή)
vide (κλῆμα)
centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)
reconhecimento passageiro e
terreno (ἀξιώμασι
τετιμημένων )
honra cristatilde (τιμή)
paz (εἰρήνη)
maacutertir (μάρτυρ)
reconhecimento eterno e divino
(τελειοῦται)
O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria
honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o
argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado
explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos
versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω
ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o
objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας
φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo
Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o
ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ
τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela
feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)
36
Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha
pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento
terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo
ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na
comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o
cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)
Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito
mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp
Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo
por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute
essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto
O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por
exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer
voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do
termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que
ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to
the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις
Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de
um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados
Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor
menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A
acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os
personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado
numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo
de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute
em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz
37
como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da
acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade
interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se
constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio
por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os
imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao
registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o
mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)
A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das
intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que
como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos
entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo
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CONCLUSAtildeO
O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e
produtivo sob vaacuterios aspectos
Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual
gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A
percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a
ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os
primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma
instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na
literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um
pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os
cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo
- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura
No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do
texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico
durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e
consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa
ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias
da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna
centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o
posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos
fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento
A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se
compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao
bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se
mostrar complacente
39
Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os
cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de
sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem
como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como
um substituto aos espetaacuteculos romanos
Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave
plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos
Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o
que deu origem ao culto dos santos
Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda
precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos
possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados
ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται
presente no texto traduzido e em outros relatos
Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais
utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e
posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma
melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande
auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo
cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade
proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses
novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde
40
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43
ANEXOS
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)
[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1
1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em
Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um
tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua
linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte
2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles
que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o
escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a
honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo
as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que
era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a
ele
3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a
Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que
era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse
4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e
afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma
vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o
manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e
contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as
duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a
direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -
manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que
escolheste Vai em pazrdquo
1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu
este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer
casos como o de Marino [nota do Editor]
44
5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de
novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado
Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua
feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado
45
TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)
During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in
Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and
was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It
came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour
and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and
according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he
was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and
attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and
should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to
the ancient laws but that instead the post should fall to himself
It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he
first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed
that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had
Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside
in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed
Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword
attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it
before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out
his right hand and took the divine writings
lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him
may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo
No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the
tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and
showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to
execution and so found his fulfilment
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Agradeccedilo
A todos os meus professores de Grego Sandra Meurer Werner Wiese Estevan Kirschnner
Alessandro Rolim de Moura e Jorge Piqueacute
Ao meu orientador Pedro Ipiranga Juacutenior por aparecer na hora certa e aceitar essa
complicada orientaccedilatildeo
Ao meu esposo Joatildeo Vocecirc eacute o verdadeiro maacutertir da histoacuteria
A Jesus que tudo fez por mim
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ldquoἀλλὰ ἅτινα ἧν μοι κέρδη ταῦτα ἥγημαι διὰ τὸν Χριστὸν ζημίανrdquo
Προς Φιλιππησιοις 37
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SUMAacuteRIO
RESUMO 5
INTRODUCcedilAtildeO 6
1 GEcircNERO LITERAacuteRIO 9
11 LITERATURA CRISTAtilde E LITERATURA PAGAtilde 9
12 AS CARACTERIacuteSTICAS LITERAacuteRIAS FORMAIS 14
2 CONTEXTO SOacuteCIO-HISTOacuteRICO 18
3 TEXTO GREGO 23
4 TRADUCcedilAtildeO 25
5 COMENTAacuteRIOS 27
51 OS PERSONAGENS 27
52 ESTRUTURA 28
53 TEMPO E ESPACcedilO 29
54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS 30
CONCLUSAtildeO 38
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 40
ANEXOS 43
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005) 43
TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000) 45
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RESUMO
Este trabalho aborda as origens e caracteriacutesticas do gecircnero literaacuterio denominado biacuteos hagiograacutefico amplamente utilizado pelo Cristianismo nos seacuteculos II a IV dC Verifica-se que esse gecircnero geralmente escrito em forma de relatos de martiacuterios servia a vaacuterios propoacutesitos (i) para divulgar a feacute (ii) para o ensino dos fieacuteis e (iii) para oferecer aos cristatildeos uma literatura proacutepria substituindo assim a literatura e arte pagatildes
Aleacutem disso este trabalho tem o propoacutesito de traduzir e analisar um texto escrito em grego koineacute ldquoO martiacuterio do soldado Marinordquo que relata a trajetoacuteria de um cristatildeo acusado e morto por sua feacute em meados do seacuteculo III dC A anaacutelise deu prioridade ao estudo dos elementos linguumliacutesticos - tais como os itens lexicais e os tempos verbais Tais elementos correlacionados agraves informaccedilotildees do contexto soacutecio-histoacuterico indicaram que o impasse pessoal vivido por Marino refletiu um embate muito maior e de dimensotildees sociais profundas a disputa pelo poder entre Igreja e Estado Romano Verificamos que o autor contrapotildee esses dois poderes de maneira intencional destacando o ponto de vista cristatildeo
Palavras-chave gecircnero biacuteos hagiograacutefico literatura cristatilde Impeacuterio Romano grego koineacute
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INTRODUCcedilAtildeO
A intenccedilatildeo deste trabalho eacute resgatar um gecircnero literaacuterio ao qual se tem dado pouca
atenccedilatildeo no Brasil a saber os relatos de martiacuterios cristatildeos Muitos desses martiacuterios ocorridos
entre os seacuteculos II e IV dC foram registrados em liacutengua grega ou latina e ainda carecem de
um estudo mais pormenorizado que identifique tanto as caracteriacutesticas literaacuterias quanto as
linguumliacutesticas
Nesta pesquisa destacar-se-aacute o relato grego de um soldado chamado Marino que apoacutes
ter sido acusado de natildeo observar as leis romanas perdeu o direito de se tornar centuriatildeo e foi
decapitado
Aleacutem de estabelecer uma traduccedilatildeo da liacutengua grega para a portuguesa tem-se como
objetivo definir neste trabalho a qual gecircnero literaacuterio o relato de martiacuterio do soldado Marino
pertence Para tanto seratildeo utilizados os trabalhos jaacute realizados na aacuterea da hagiografia e da
martirologia e tambeacutem os paracircmetros da literatura claacutessica
Tendo como pressuposto que os relatos de martiacuterio ndash martyria ndash formam um conjunto
literaacuterio especiacutefico e que natildeo haacute literatura neutra procurar-se-aacute avaliar o impacto causado por
esses textos na sociedade romana da eacutepoca e como eles lidam com as diferenccedilas morais e
religiosas entre cristatildeos e natildeo cristatildeos
Conforme nos eacute informado pelos relatos histoacutericos o Cristianismo permaneceu uma
religio ilicita ateacute o reinado de Constantino no seacuteculo IV Durante os seacuteculos anteriores a
situaccedilatildeo dos cristatildeos era relativamente fraacutegil do ponto de vista poliacutetico Ora eram acusados
pelo povo ora protegidos pelas leis Todo esse quadro de instabilidade certamente se refletia
na literatura e alcanccedilava de alguma maneira os leitores Assim por vezes os cristatildeos
recorriam agraves ideacuteias filosoacuteficas para se protegerem dos ataques externos por vezes aos
princiacutepios cristatildeos para se manterem unidos e confiantes diante de uma possiacutevel perseguiccedilatildeo
individual ou em massa Por essa razatildeo seratildeo discutidas a partir do texto selecionado as
funccedilotildees assumidas por esse tipo de literatura e as estrateacutegias utilizadas pelo autor para
cumprir tais funccedilotildees Para tanto seratildeo focalizados o contexto soacutecio-histoacuterico em que a morte
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de Marino se deu e os elementos linguumliacutesticos agrave disposiccedilatildeo no texto para a realizaccedilatildeo dessa
anaacutelise
O estudo da literatura cristatilde mostra-se portanto fundamental para o entendimento do
pensamento e da cultura natildeo soacute introduzida pela comunidade cristatilde mas tambeacutem da sociedade
romana como um todo Afinal a propagaccedilatildeo do Cristianismo se deu - com perseguiccedilatildeo ou
sem perseguiccedilatildeo - durante o periacuteodo do Impeacuterio romano e por meio das liacutenguas de cultura da
eacutepoca primeiramente o grego e depois tambeacutem o latim Natildeo haacute portanto como analisar a
literatura e a liacutengua utilizadas por essa comunidade sem levar em conta ao mesmo tempo as
ideologias filosofias costumes e sistemas sociais poliacuteticos e econocircmicos que norteavam o
Impeacuterio romano
Por fim eacute importante ressaltar que a anaacutelise individualizada desses textos contribui
para o aprofundamento das metodologias e escolhas utilizadas pelos autores muitas vezes
anocircnimos Esse tipo de anaacutelise permite uma melhor compreensatildeo do uso da liacutengua nessa
eacutepoca Permite tambeacutem a comparaccedilatildeo entre os textos e auxilia na verificaccedilatildeo de questotildees
como Ateacute que ponto os relatos de diversos maacutertires produzidos por autores distintos e em
lugares diferentes podem ser correlacionados Havia uma linguagem proacutepria dos cristatildeos
Quais os itens lexicais mais utilizados O valor semacircntico desses itens era o mesmo para
cristatildeos e natildeo cristatildeos
O texto grego utilizado neste trabalho foi o publicado por Musurillo (2000) Para a
traduccedilatildeo foram consultados os seguintes dicionaacuterios
BAIILY A Dictionnaire Grec-Franccedilais Paris Hachette 1950
GINGRICH Wilburg amp DANKER Frederick Leacutexico do Novo Testamento Grego-
Portuguecircs Traduccedilatildeo Juacutelio PT Zabatiero Satildeo Paulo Vida Nova 1993
LAMPE Geoffrey WH A Patristic greek lexicon Oxford Clarenton Press 2000
LIDDELL H SCOTT R Greek-English Lexicon Abridged Simon Wallenberg
Press 2007
SOPHOCLES EA Greek lexicon of the Roman and Byzantine Periods from BC 146
to AD 1100 ndash part one New York Charles Scribnerrsquos Sons 1900
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Em anexo encontram-se duas outras traduccedilotildees para o relato de martiacuterio de Marino a
de Musurillo (2000) para a liacutengua inglesa e a de Fischer (2005) para a liacutengua portuguesa
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1 GEcircNERO LITERAacuteRIO
O objetivo deste capiacutetulo eacute classificar e compreender o gecircnero literaacuterio no qual os
relatos de martiacuterio estatildeo inseridos
A primeira observaccedilatildeo que precisa ser feita a respeito dos relatos de martiacuterio eacute que a
leitura empreendida neste trabalho tem como pressuposto o ponto de vista literaacuterio Ou seja
natildeo se tem a intenccedilatildeo de discutir a veracidade dos fatos histoacutericos relatados ou de se fazer um
estudo criacutetico no sentido de discernir o que eacute histoacuteria do que eacute ficccedilatildeo Ateacute mesmo porque
conforme escreve Musurillo (2000 liv) a linha entre histoacuteria e ficccedilatildeo nesse tipo de texto eacute
muito tecircnue
A classificaccedilatildeo do gecircnero ao qual pertencem os relatos de martiacuterio pode ser feita por
duas vias distintas Pela primeira partimos dos mais variados tipos de textos de diferentes
eacutepocas com o intuito de por meio da comparaccedilatildeo entre as caracteriacutesticas formais enquadraacute-
los a um determinado gecircnero Pela segunda contrastamos textos de cunho cristatildeo - escritos
por autores nomeadamente cristatildeos com o objetivo de divulgar a sua feacute ndash aos de cunho natildeo-
cristatildeo Essas duas vias satildeo levadas em consideraccedilatildeo neste capiacutetulo comeccedilando pela segunda
a comparaccedilatildeo entre a literatura cristatilde e a natildeo-cristatilde
11 LITERATURA CRISTAtilde E LITERATURA PAGAtilde
A contraposiccedilatildeo entre literatura cristatilde e natildeo-cristatilde eacute um ponto fundamental para a
questatildeo do gecircnero natildeo soacute dos relatos de martiacuterio mas tambeacutem para todos os outros tipos de
textos escritos durante os primeiros seacuteculos da era cristatilde Isso porque durante os seacuteculos II a
IV dC o Cristianismo busca sua afirmaccedilatildeo como religiatildeo e filosofia utilizando-se em
grande medida da escrita
Alesso (2006 24) explica que eacute a partir do seacuteculo II que o Cristianismo se organiza
para enfrentar problemas internos como ldquoas acusaccedilotildees de heresia lutas pelo poder perigos de
cisma e controveacutersias teoloacutegicasrdquo A organizaccedilatildeo tambeacutem se fez necessaacuteria para enfrentar os
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ataques externos o que resultou na apresentaccedilatildeo das ideacuteias cristatildes de modo filosoacutefico em
textos bem elaborados e com caracteriacutesticas semelhantes aos da cultura da eacutepoca
Los discursos de los obispos y letrados defensores del cristianismo no podiacutean ser espontaacuteneos ni livianos cuando se trataba de responder a las criacuteticas y a la difamacioacuten de enemigos tan ilustrados como ellos No bastaba la elocuencia entusiasta habiacutea que ordenar las ideas en lo molde de recursos avalados por el prestigio de siglos en los geacuteneros discursivos que los doctos habiacutean aprendido e internalizado desde su maacutes tierna formacioacuten heleniacutestica
Assim depreende-se que a literatura cristatilde destes primeiros seacuteculos visava atender
duas necessidades principais o ensino para manter a coesatildeo do puacuteblico interno e a apologia
que procurava defender a feacute diante do puacuteblico externo
Os escritos apologeacuteticos dialogavam de maneira direta com a filosofia grega e eram
escritos geralmente por bispos que viviam em grandes centros urbanos como Justino o
maacutertir Oriacutegenes Teoacutefilo e Tertuliano Por essa razatildeo tais discussotildees permaneciam muitas
vezes entre a elite natildeo chegando ao puacuteblico em geral (cf Alesso 2006 31) Desde muito
cedo portanto surge uma divisatildeo natural de destinataacuterios na literatura cristatilde enquanto alguns
textos eram escritos e dirigidos a leitores cultos outros textos tinham como puacuteblico-alvo o
povo
Para Alesso (2006 29-30) essa divisatildeo eacute claramente percebida quando do surgimento
do gecircnero biacuteos ldquoEl geacutenero biacuteos que tendriacutea entonces en principio como destinatario a un
lector cultivado se cumple tambieacuten en un subgeacutenero de corte popular las vidas ejemplaresrdquo
Eacute o gecircnero biacuteos que estabelece de fato em meados do seacuteculo IV a hagiografia - a biografia
que relata a vida de um santo - como um modelo literaacuterio a ser seguido pelos escritores
cristatildeos especialmente pelo movimento monaacutestico Segundo Moreschini amp Norelli (2000
511) a hagiografia foi com o tempo aproximando-se cada vez mais da biografia pagatilde Para
eles a relaccedilatildeo entre cristianismo e paganismo ldquoocorreu com todas as demais formas literaacuterias
cristatildesrdquo porque ldquopraticadas por pessoas que tiveram em comum com os pagatildeos os mestres as
escolas e as leiturasrdquo Tal fato reforccedila ainda mais a divisatildeo entre leitores que tinham acesso agrave
educaccedilatildeo formal daqueles que natildeo a tinham
As pessoas destituiacutedas de uma introduccedilatildeo agraves teorias filosoacuteficas e teoloacutegicas eram
atendidas em grande parte pelas leituras de relatos de martiacuterios ao que Alesso chama de ldquolas
vidas ejemplaresrdquo Os relatos eram lidos durante as celebraccedilotildees cristatildes tornando-se parte da
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liturgia do culto Eram lembrados tambeacutem pela comunidade local por ocasiatildeo do aniversaacuterio
do maacutertir quando o povo se reunia em torno do tuacutemulo ou fazia peregrinaccedilotildees ateacute ele (cf
Musurillo 2000 lvi Moreschini amp Norelli 2000 297)
Os relatos de martiacuterios (acta passiones e martyria) no entanto formam entre si um
gecircnero especiacutefico Aleacutem disso conteacutem elementos que antecedem e prenunciam a formaccedilatildeo da
hagiografia Satildeo denominados por Moreschini amp Norelli (2000 511) de ldquohagiografia
primitivardquo O costume de narrar a prisatildeo o sofrimento e a morte de um cristatildeo explicam esses
autores apareceu ldquoquase contemporaneamente em lugares diferentes da cristandade em
formas diversas e com ascendecircncias e caracteriacutesticas ideoloacutegicas variadas o gecircnero literaacuterio
como tal se constitui progressivamente pelo desenvolvimento e pelas reciacuteprocas relaccedilotildees dos
textosrdquo
O modelo de narrativa dos maacutertires cristatildeos remonta na verdade aos relatos
encontrados na Biacuteblia como o martiacuterio de Estevatildeo (Atos dos Apoacutestolos 7) de Tiago (At 12)
e aos sofrimentos de Paulo (At 14) O modelo central poreacutem eacute o proacuteprio Jesus cuja vida eacute
narrada pelos Evangelhos Note-se que a ecircnfase dos Evangelhos natildeo eacute narrar todos os
acontecimentos biograacuteficos mas destacar os sofrimentos de Cristo desde seu nascimento
como por exemplo a perseguiccedilatildeo de Herodes ateacute sua crucificaccedilatildeo
Ainda que os relatos cristatildeos tenham tido como modelo textos pagatildeos tema discutido
por Delehaye (1966) Berger (1998) e Uytfanghe (1993) foi o Cristianismo que disseminou e
divulgou esse tipo de literatura Delehaye (1966 113-125) assinala que haacute vaacuterias diferenccedilas
entre os relatos dos maacutertires pagatildeos Alexandrinos e os relatos dos maacutertires cristatildeos Uma
delas se encontra na motivaccedilatildeo para o martiacuterio ldquoIci nous voyons des hommes qui meurent
pour leurs convictions et agrave qui il suffirait drsquoun mot ou drsquoun geste pour reconqueacuterir la liberteacute
Lagrave on nous presente les chefs drsquoune faction politique qui deacutefendent au prix de leur vie leur
programme et leurs actes et qui perdent la partierdquo (1966 124) E para Uytfanghe (1993 174)
caracteriacutesticas como humildade amor e perdatildeo natildeo satildeo encontradas em maacutertires pagatildeos
como Soacutecrates e Secircneca Jaacute nos cristatildeos elas estatildeo presentes de maneira radical
De uma forma geral os autores concordam que a formaccedilatildeo de um gecircnero a partir dos
relatos de martiacuterio e sua posterior propagaccedilatildeo pelos cristatildeos natildeo tinham uma intenccedilatildeo uacutenica
pelo contraacuterio vecirc-se nesses textos uma intenccedilatildeo multifacetada Para Musurillo (2000 liv-
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lvii) os relatos de martiacuterio exerciam pelo menos trecircs funccedilotildees a primeira era a funccedilatildeo
histoacuterica jaacute que tanto os Evangelhos como os Atos dos Apoacutestolos e os martyria baseavam-se
em fatos histoacutericos A segunda era a apologeacutetica isto eacute a afirmaccedilatildeo da feacute cristatilde diante do
mundo E por uacuteltimo a funccedilatildeo de ensino Uytfanghe (1993 173-175) observa que por meio
desses relatos os cristatildeos eram encorajados a permanecerem firmes nas suas crenccedilas e a
cultivarem uma vida santa e asceacutetica O maacutertir se tornava assim um modelo a ser seguido E
o cristatildeo ndash literalmente o seguidor de Cristo - dava continuidade aos ensinos e agrave vida de
Jesus o qual afirmou ldquoLembrem-se das palavras que eu lhes disse Nenhum escravo eacute maior
do que o seu senhor Se me perseguiram tambeacutem perseguiratildeo vocecircsrdquo (Evang Joatildeo 1520)
Aleacutem desses trecircs aspectos a formaccedilatildeo de um corpus literaacuterio cristatildeo era de grande
interesse para a Igreja na medida em que oferecia ao puacuteblico cristatildeo a cada dia maior uma
nova opccedilatildeo cultural Conforme o registro que possuiacutemos no escrito Os Espetaacuteculos do bispo
Tertuliano de Cartago os cristatildeos eram aconselhados a natildeo frequumlentarem os teatros e os
circos nem assistirem aos combates de gladiadores ldquoMas eles percebem que algueacutem se fez
cristatildeo sobretudo pelo fato de evitar os espetaacuteculosrdquo (De spect 243)
Tertuliano posicionou-se fortemente contra a participaccedilatildeo dos cristatildeos nos espetaacuteculos
promovidos pelos teatros circos e arenas porque aleacutem de possuiacuterem uma ligaccedilatildeo com algum
deus grego ou romano - e portanto promoverem a idolatria - evidenciavam a incoerecircncia da
sociedade romana ldquosoacute ali [no teatro] tem curso e aplauso o que em qualquer outra parte se
reprovardquo (De spect 171) Assim argumenta ldquoConvencidos ficamos que por nenhum lado
nos fica bem laacute ir noacutes que por duas vezes renunciamos aos iacutedolosrdquo (De spect 13 1) Para
Tertuliano o homem eacute imagem e semelhanccedila de Deus e por essa razatildeo natildeo deveria
corromper sua alma e corpo
O certo eacute que natildeo nos foram dados os olhos para os entregar agrave concupiscecircncia nem a liacutengua para a maledicecircncia nem os ouvidos para sorvedouro de murmuraccedilotildees nem o paladar para poccedilo de gula o ventre para dar seguimento agrave mesma gula os oacutergatildeos genitais para excessos de impureza as matildeos para estrangular o proacuteximo os peacutes para vagabundear natildeo se nos infundiu a alma ateacute as entretelas do corpo para vir a ser um recesso de ciladas e de embustes e de iniquumlidades (De spect 210)
Os prazeres cultivados pela sociedade romana deveriam portanto ser abandonados e
substituiacutedos Para Tertuliano o cristatildeo natildeo tinha necessidade de espetaacuteculos pois desfrutava
dos prazeres (voluptates) proacuteprios agrave sua feacute Seus argumentos satildeo os seguintes
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Que melhor alegria que a que promana da reconciliaccedilatildeo com Deus Pai Nosso Senhor do conhecimento da verdade de reconhecer os erros do perdatildeo de tantos pecados da passada vida Que maior prazer que o asco do proacuteprio prazer que a consciecircncia pura que a vida sem ambiccedilotildees e o destemor da morte Pisar aos peacutes os deuses dos gentios expelir os democircnios curar doentes informar-te da verdade revelada viver para Deus aiacute estatildeo as alegrias satildeo esses os espetaacuteculos santos dos cristatildeos os espetaacuteculos perpeacutetuos por que se natildeo paga nada (De spect 29 1-3)
O bispo continua a explanaccedilatildeo de suas ideacuteias afirmando que os cristatildeos natildeo possuem o
teatro mas tecircm boa literatura natildeo possuem os combates de gladiadores mas tecircm as lutas pela
feacute e pela castidade natildeo possuem o sangue das arenas mas tecircm o sangue de Cristo ldquoSe o
palavreado cecircnico eacute divertido natildeo temos falta de boas letras temos versos a rodos e
pensamentos bem cunhados nada se diga de cacircnticos e vozes do melhor metal em vez de
faacutebulas temos verdades em vez de embustes a lisura mais declaradardquo (De spect 294)
A defesa e a valorizaccedilatildeo de uma literatura proacutepria aos cristatildeos eacute um elemento
extremamente importante para a propagaccedilatildeo dos relatos de martiacuterio porque conforme visto
acima esse tipo de texto entrou em circulaccedilatildeo como um substituto agraves encenaccedilotildees teatrais
Assim os martyria ajudaram a constituir um corpus literaacuterio cristatildeo que se tornou um
instrumento de poder para a Igreja
Como observa Fox (1996 130) os maacutertires compartilhavam juntamente com os
bispos e visionaacuteriosprofetas um lugar privilegiado na comunidade ldquoAmong Christians
before Constantine power was attribute of three particular groups it was achieved by
visionaires it was ascribed to martyrs and confessors it was vested above all in bishops
Literacy assisted the exercise of power by all threerdquo Os integrantes desses trecircs grupos natildeo
apenas eram admirados mas tidos como autoridades Os bispos por exemplo eram
considerados por Inaacutecio de Antioquia como ldquoos representantes de Deus na Igrejardquo
(Guignebert 1956 137) Por isso os escritos ou discursos proferidos por esses trecircs grupos
eram recebidos na maioria das vezes como proacutepria palavra de Deus fator que atribuiacutea um
poder ainda maior aos textos Para Fox (1996 129) ldquothis combination of sacred text and an
increasingly standardised pattern of authority make the early Church a unique subject for
studies of literacy and powerrdquo
Como um gecircnero da literatura cristatilde os relatos de martiacuterio tambeacutem serviram para a
manutenccedilatildeo e a transmissatildeo da ideologia cristatilde nos primeiros seacuteculos do Cristianismo
conforme escreve Alesso (2006 34-35)
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Los geacuteneros en todas sus formas y subformas son el suporte estructural para la transmisioacuten de un ideario y lo fueron de modo especial en el trasvase de los contenidos que provenientes de la antiguumledad se imbricaron en el cristianismo de los Padres Aunque su relacioacuten com la criacutetica sociohistoacuterica es marginal los geacuteneros son indudables portadores de significacioacuten cuando interesan a la evolucioacuten de paraacutemetros poliacutetico culturales que intervinieran en la construccioacuten del edificio ideoloacutegico de la teologiacutea cristiana
O fortalecimento da literatura cristatilde foi enfim um fator essencial para a difusatildeo do
Cristianismo porque ajudou a organizaacute-lo como instituiccedilatildeo Por meio da literatura o
Cristianismo conseguiu alcanccedilar pessoas de todos os lugares e de todas as classes sociais
inclusive as pertencentes agrave elite que conforme Daniel-Rops (1988 305) sentiam o decliacutenio
do Impeacuterio que chegava ateacute mesmo ao acircmbito literaacuterio e artiacutestico
12 AS CARACTERIacuteSTICAS LITERAacuteRIAS FORMAIS
Quanto agraves caracteriacutesticas formais que podem ser levadas em conta para a classificaccedilatildeo
do gecircnero os relatos de martiacuterio mesclam traccedilos tanto do gecircnero biograacutefico quanto do
discurso hagiograacutefico
Os relatos de martiacuterio natildeo podem ser classificados categoricamente como biacuteoi pois
natildeo chegam a constituir uma biografia de fato Tambeacutem natildeo podem ser classificados como
hagiografia em sentido exclusivo porque como afirma Delehaye (apud Uytfanghe 1993
146) esta eacute muito abrangente inclui ldquotodo documento escrito inspirado pelo culto dos santos
e destinado a promovecirc-lordquo Assim o que se verifica eacute um entrecruzamento de gecircneros Isso
ocorre porque os gecircneros satildeo como afirma Alesso (2006 29) sistemas abertos ldquolas
invariantes coexisten con las variables y no podemos condenarlos y condenarnos a una
esquematizacioacuten extrema porque perderiacuteamos de vista uno de los objetivos primordiales la
finalidad del contenidordquo Por essa razatildeo adotamos neste trabalho a definiccedilatildeo biacuteos
hagiograacutefico introduzida por Ipiranga Juacutenior (2006 9)
Segundo Momigliano (1971 25) os gregos jaacute possuiacuteam o haacutebito de redigir biografias
no seacuteculo V aC mas foi no periacuteodo heleniacutestico que ele se intensificou e o gecircnero recebeu um
nome especiacutefico ldquobien qui nous conaissions lrsquoexistence de biographies et peut-ecirctre
drsquoautobiographies degraves le cinquiegraveme siegravecle avant JC crsquoest seulement agrave lrsquoeacutepoque helleacutenistique
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que la biographie devient une notion precise et acquiert un nom en propre Ce nome est lsquobiosrsquo
ndash et non lsquobiographiarsquordquo
Para Bakhtin (2003 138) entretanto a biografia como romance surgiu apenas no fim
da Idade Meacutedia Durante os seacuteculos II-IV dC ainda era uma forma literaacuteria em formaccedilatildeo
Mesmo tendo em mente a distacircncia cronoloacutegica entre os martyria e o romance biograacutefico ao
qual Bakhtin se refere eacute possiacutevel perceber semelhanccedilas entre os dois
A primeira delas eacute a presenccedila do heroacutei com valores do tipo bravura honradez
magnanimidade e generosidade (cf Bakhtin 2003 142 147) Ao abrir matildeo de posiccedilotildees
poliacuteticas e religiosas ao enfrentar perigos sofrimentos torturas e feras sem renunciar agrave feacute o
maacutertir eacute visto como um heroacutei pela comunidade cristatilde Ele ldquotorna-se uma espeacutecie de ponto
focal da vida da comunidade que o circunda de veneraccedilatildeo considerando-o jaacute em contato com
Deus capaz de profetizar e de pronunciar-se com uma autoridade especial tambeacutem sobre
questotildees eclesiaacutesticasrdquo (Moreschini amp Norelli 2000 297) Morrer por sua feacute eacute o ato supremo
de glorificaccedilatildeo para os primeiros cristatildeos E eacute por meio dessa glorificaccedilatildeo de acordo com as
palavras de Bakhtin (2003 143) que o heroacutei consegue alcanccedilar a consciecircncia de uma
determinada sociedade incutindo assim novos valores
A aspiraccedilatildeo agrave gloacuteria organiza a vida do heroacutei ingecircnuo a gloacuteria organiza tambeacutem a narraccedilatildeo da sua vida sua glorificaccedilatildeo Aspirar agrave gloacuteria eacute tomar consciecircncia de si na sociedade culta e histoacuterica dos homens (ou na naccedilatildeo) eacute afirmar e construir sua vida na possiacutevel consciecircncia dessa sociedade humana eacute crescer natildeo em si nem para si mas nos outros ou para os outros eacute ocupar um lugar no mundo imediato dos contemporacircneos e descendentes
A segunda semelhanccedila detectada entre os gecircneros biograacutefico e biacuteos hagiograacutefico eacute a
relaccedilatildeo de empatia que se estabelece entre autor-personagem Segundo Bakhtin (2003 150)
autor e personagem compartilham obrigatoriamente os mesmos valores ldquona biografia o
autor natildeo soacute combina com a personagem na feacute nas convicccedilotildees e no amor mas tambeacutem em
sua criaccedilatildeo artiacutestica (sincreacutetica) tomando como guia os mesmos valores que a personagem
em sua vida esteacuteticardquo Embora o autor do martiacuterio do soldado Marino natildeo seja explicitado eacute
possiacutevel inferir pelo texto que o interesse de registrar o fato tenha partido natildeo de algueacutem que
simplesmente compartilhava com ele a situaccedilatildeo de soldado do exeacutercito romano mas sim de
algueacutem que dividia os mesmos valores cristatildeos
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Quanto agrave modalidade do romance a relaccedilatildeo entre os gecircneros biacuteos hagiograacutefico e
biograacutefico tambeacutem eacute possiacutevel Bakhtin (2003 205) identifica quatro modelos de romance
ldquosegundo o princiacutepio de construccedilatildeo da imagem da personagem central o romance de viagens
o romance de provaccedilatildeo da personagem o romance biograacutefico (autobiograacutefico) o romance de
educaccedilatildeordquo Ora por ser um gecircnero hiacutebrido a personagem principal do biacuteos hagiograacutefico
mescla caracteriacutesticas tanto do romance de provaccedilatildeo quanto do romance biograacutefico
Para Bakhtin (2003 207) o romance de provaccedilatildeo divide-se em duas modalidades ldquoA
primeira modalidade eacute representada pelo romance grego (A Etioacutepica Leucipo e Cleitofon
etc) A segunda modalidade eacute representada pelas hagiografias do iniacutecio do cristianismo
(particularmente dos maacutertires)rdquo O objetivo das provaccedilotildees neste tipo de romance eacute mudar a
opiniatildeo e os valores do heroacutei Como nos relatos de martiacuterio os cristatildeos natildeo renunciam a sua
feacute natildeo haacute mutabilidade Logo o maacutertir aproxima-se do conceito de heroacutei da provaccedilatildeo ele ldquoeacute
acabado e predeterminado as experimentaccedilotildees (sofrimentos seduccedilotildees duacutevidas) natildeo se
tornam para ele uma experiecircncia formadora nem a modificam e nessa imutabilidade da
personagem estaacute toda questatildeordquo (Bakhtin 2003 209)
Aleacutem disso no romance de provaccedilatildeo o personagem eacute o centro Natildeo importam os
costumes ou lugares exoacuteticos como no romance de viagens O personagem natildeo eacute modificado
de forma determinante pelo mundo nem o modifica
Entre o heroacutei e o mundo natildeo existe interaccedilatildeo autecircntica o mundo natildeo eacute capaz de mudar o heroacutei ele apenas o experimenta e o heroacutei natildeo influencia o mundo natildeo lhe muda a face ao passar pela provaccedilatildeo ao afastar seus inimigos etc o heroacutei deixa no mundo tudo nos seus lugares natildeo modifica a face social do mundo natildeo o reconstroacutei e aliaacutes nem tem essa pretensatildeo (Bakhtin 2003 212)
Eacute exatamente esta a situaccedilatildeo observada no texto em anaacutelise A crise pela qual passa o
personagem Marino natildeo eacute capaz de alterar suas convicccedilotildees nem de mudar o curso normal dos
acontecimentos agrave parte de sua vida o exeacutercito continuaraacute existindo uma outra pessoa tomaraacute
o seu lugar e tudo continuaraacute funcionando sob os mesmos princiacutepios
Quanto ao romance biograacutefico Bakhtin (2003 213) considera que assim como o
romance de provaccedilatildeo ele ldquoeacute preparado ainda em solo antigo nas biografias antigas
autobiografias e confissotildees do periacuteodo inicial do cristianismo (terminando em Agostinho)rdquo
O gecircnero biacuteos hagiograacutefico estabelece contatos com esse tipo de romance por meio do
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enredo Como o romance biograacutefico tem como elemento principal a narraccedilatildeo da trajetoacuteria
vital de um determinado personagem ou seja tem como base justamente aqueles ldquoelementos
existentes antes do iniacutecio ou depois do teacutermino do romance de provaccedilatildeordquo (Ibid) engloba
necessariamente o relato da morte fato fundamental para o surgimento de um maacutertir na
concepccedilatildeo cristatilde
No romance biograacutefico a relaccedilatildeo da personagem com o mundo ganha um enfoque
diferente daquele verificado no romance de viagens ou no de provaccedilatildeo Bakhtin (2003 215)
verifica que ldquoPersonagens secundaacuterias paiacuteses cidades objetos etc integram o romance
biograacutefico por vias substanciais e ganham uma relaccedilatildeo igualmente substancial com o todo
vital da personagem centralrdquo Paradoxalmente o relato do soldado Marino apresenta tambeacutem
esse aspecto Embora ele permanecesse inabalaacutevel em sua decisatildeo de natildeo negar a feacute cristatilde
antes de o juiz lhe conceder um tempo para refletir eacute no encontro com o bispo Teotecno e
principalmente apoacutes o confronto com um objeto de grande valor ndash as Escrituras ndash que
Marino segue resoluto para o tribunal
Bakhtin tambeacutem escreve sobre o gecircnero hagiograacutefico embora com mais cautela Para
o autor (2003 169-70) ldquoa hagiografia se realiza diretamente no mundo do divinordquo Por se
tratar de um plano diferenciado em que ldquoa atitude reverente do autor natildeo deixa espaccedilo agrave
iniciativa individualrdquo (2003 170) Bakhtin prefere manter a mesma distacircncia Assim limita-
se em dizer que a hagiografia ldquorecorre a formas tradicionalmente sagradasrdquo (Ibid)
No aspecto formal os relatos de martiacuterio possuem de fato vaacuterias semelhanccedilas e um
fundamento em comum que satildeo os processos verbais No entanto ainda natildeo existe entre os
seacuteculos II e IV dC essa preocupaccedilatildeo ou esse rigor com a forma com a exclusatildeo de todo
elemento que possa remeter agrave individualidade
deve-se excluir tudo o que eacute tiacutepico de uma dada eacutepoca de uma dada nacionalidade () de uma dada condiccedilatildeo social de uma dada idade todo o concreto de uma imagem de uma vida todas as minuacutecias desta as indicaccedilotildees precisas do tempo e do espaccedilo na accedilatildeo ndash tudo o que reforccedila a determinidade no ser de um dado indiviacuteduo e assim lhe diminui a autoridade (Bakhtin 2003 170)
Vecirc-se portanto a partir dessa breve anaacutelise que o gecircnero biacuteos hagiograacutefico mescla
caracteriacutesticas tanto do gecircnero biograacutefico ndash seja biacuteos ou romance biograacutefico - quanto da
hagiografia constituindo assim um gecircnero agrave parte
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2 CONTEXTO SOacuteCIO-HISTOacuteRICO
O relato do martiacuterio de Marino se tornou conhecido por meio da obra Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio bispo de Cesareacuteia no iniacutecio do seacuteculo IV Para Puech (1930 173)
ldquoEusegravebe est un meacutediocre theacuteologien et un meacutediocre eacutecrivain () mais il nous a rendu comme
historien et comme chronographe des services inestimablesrdquo De fato dificilmente teriacuteamos
acesso a esse texto se natildeo fosse o trabalho de Euseacutebio De acordo com a cronologia do bispo
a morte de Marino eacute situada entre os anos 260-261 dC Para o tradutor Musurillo (2000
xxxvi) essa data eacute bastante provaacutevel O comentaacuterio no relato de que todas as igrejas
desfrutavam de um periacuteodo de paz eacute o principal fator que leva a essa conclusatildeo No ano de
260 dC eacute promulgado o edito de Galieno o qual ldquoautoriza os liacutederes da Igreja a presidir
livremente as celebraccedilotildees religiosasrdquo (Silva 2006 250)
No entanto mesmo com as medidas favoraacuteveis por parte dos governantes o
cristianismo permanecia uma religio ilicita e portanto os cristatildeos ainda estavam sujeitos a
julgamento caso fossem delatados Foi o que aconteceu com o soldado Marino Uma vez
acusado de ser cristatildeo e de natildeo prestar culto ao imperador foi levado ao tribunal Eacute muito
provaacutevel que Marino tivesse vaacuterios colegas cristatildeos no exeacutercito que natildeo foram executados
porque ningueacutem aparecera para acusaacute-los A situaccedilatildeo dos cristatildeos era realmente
imprevisiacutevel Daniel-Rops (1988 346) comenta que no seacuteculo III essa constante mudanccedila de
humor por parte do Impeacuterio criou uma situaccedilatildeo sem precedentes ldquoComo um anciatildeo doente
que ora dormita inconsciente ou vagamente inquieto ignorando as impaciecircncias que o
rodeiam ora se irrita e ainda se mostra terriacutevel da mesma forma o Impeacuterio muda a todo o
momento de atitude Eacute isto o que daacute agraves perseguiccedilotildees do seacuteculo III um caraacuteter tatildeo diferente das
precedentesrdquo
Assim Marino foi o escolhido naquele momento de paz temporaacuteria Eles tinham
conhecimento da lei que estava em vigor desde a eacutepoca do imperador Trajano (110-111 dC)
quando este determinara ao governador Pliacutenio que os cristatildeos natildeo deveriam ser
sistematicamente perseguidos nem deveriam ser aceitas denuacutencias anocircnimas contra eles
(Gonzaacutelez 1995 64) A recomendaccedilatildeo dada a Pliacutenio havia sido adotada em todo o Impeacuterio
Uma vez acusados entretanto deveriam ser julgados Geralmente os cristatildeos eram levados
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ao tribunal em decorrecircncia de disputas locais como escrevem Danieacutelou amp Marrou (1966
105)
Conveacutem frisar que natildeo haacute proscriccedilatildeo de cristatildeos pelo poder central quer dizer natildeo haacute perseguiccedilatildeo total Em segundo lugar verificam-se ataques locais movidos pelo povo e depois submetidos agrave apreciaccedilatildeo do magistrado romano () Em terceiro lugar o motivo da perseguiccedilatildeo natildeo se liga a crimes determinados mas unicamente ao lsquonomersquo cristatildeo O levantamento feito por Pliacutenio levara mesmo agrave conclusatildeo de que eram inocentes os cristatildeos
Guignebert (1956 169-70) tambeacutem assinala que apesar de todas as acusaccedilotildees
nenhum crime recaiacutea sobre os cristatildeos
Varias acusaciones de derecho comuacuten se poniacutean en juego al mismo tiempo para agobiar a los fieles religioacuten iliacutecita sociedad secreta lesa majestad negativa de obediencia si se trataba de soldados ignavia es decir negligencia en el cumplimiento de los deberes de la vida puacuteblica y privada y hasta magia Por lo demaacutes estas acusaciones cuando se aplicaban a los cristianos presentaban la singularidad de que se desistia inmediatamente de ellas si el inculpado consentiacutea en decir que renunciaba a su feacute lo que permite suponer que en suma era la religioacuten cristiana solamente lo que se perseguia
Ainda assim os cristatildeos precisavam ser castigados porque ao insistirem na afirmaccedilatildeo
ldquoSou cristatildeordquo rebelavam-se contra os princiacutepios do Impeacuterio especialmente o do culto ao
imperador
Este delito tinha de ser castigado em primeiro lugar porque de outro modo diminuiria a autoridade desses tribunais e em segundo lugar porque ao negarem a adorar o imperador os cristatildeos estavam adotando uma atitude que nesse tempo se interpretava como rebeliatildeo contra a autoridade imperial Com efeito o culto ao imperador era um dos viacutenculos que uniam o Impeacuterio e negar-se em puacuteblico a render esse culto equivalia a romper esse viacutenculo (Gonzaacutelez 1995 66)
Novamente percebe-se o caraacuteter imprevisiacutevel da vida cristatilde Os autores reconhecem
que de uma maneira geral as comunidades cristatildes procuravam levar uma vida exemplar e
submissa agraves leis do Impeacuterio ldquoAs instruccedilotildees de civismo dadas pelos Apoacutestolos continuam a
ser observadas e os cristatildeos mostram-se na sua grande maioria cidadatildeos fieacuteis e devotados ao
bem puacuteblicordquo (Daniel-Rops 1988 345) Poreacutem quando levados a julgamento puacuteblico natildeo
aceitavam prestar culto a outro senhor aleacutem de Cristo
No tocante ao serviccedilo militar as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio nem sempre eram
tatildeo simples Na opiniatildeo de Guignebert (1956 166) isso se dava porque as obrigaccedilotildees
militares geralmente tinham uma forte ligaccedilatildeo com as praacuteticas religiosas pagatildes
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El servicio militar les resultaba odioso porque suponiacutea obligaciones idolaacutetricas y porque execraban la guerra su participacioacuten en el servicio civil les pareciacutea supeacuterflua sobre todo se rehusaban obstinadamente a tomar parte en ninguna de las manifestaciones de lealtad que el gobierno imperial reclamaba porque todas revestiacutean caraacutecter religioso
Do mesmo modo Daniel-Rops (1988 345) relata
casos de objeccedilatildeo de consciecircncia ao serviccedilo militar como acontece com um jovem soldado que exclama ldquoNatildeo me eacute permitido trazer ao pescoccedilo o signum (espeacutecie de placa de identidade usada no exeacutercito romano) porque fui marcado com o sinal de Cristordquo ou com um outro soldado que se recusou a colocar sobre a cabeccedila a coroa ritual dos sacrifiacutecios em honra do imperador Satildeo casos ainda excepcionais mas sintomaacuteticos a oposiccedilatildeo profunda entre Roma e a Igreja tende a passar do plano religioso para o plano ciacutevico e poliacutetico
A intervenccedilatildeo do plano religioso sobre o poliacutetico e vice-versa foi consequumlecircncia da
busca por parte dos romanos de um sistema seguro no qual pudessem se apoiar Com a
decadecircncia poliacutetica econocircmica e moral o nuacutemero de seitas e religiotildees se multiplicava
formando um quadro extremamente pluralista (cf Daniel-Rops 1988 307) Eacute no seacuteculo III
que a dinastia dos Severos se impotildee e juntamente com ela vecircm as tradiccedilotildees religiosas
orientais
El advenimiento con los Severos de principes africanos y sirios la dominacioacuten de mujeres penetradas de la piedade miacutestica de Oriente favorecieron su raacutepido desarollo y el siglo III conocioacute todas sus formas desde las maacutes groseras estrechamente emparentadas com la supersticioacuten pura hasta las maacutes refinadas modeladas pelas reflexiones de la filosofia que desde entonces tenderiacutea hacia lo divino (Guignebert 1956 119)
Neste panorama soacutecio-poliacutetico o cristianismo foi a religiatildeo abraccedilada por muitos
cidadatildeos natildeo soacute ldquotecelotildees pisoeiros e sapateirosrdquo mas tambeacutem ldquoadvogados como Satildeo
Gregoacuterio Taumaturgo ou Satildeo Cipriano de Cartago mulheres da sociedade como Santa
Perpeacutetua grandes burgueses da proviacutencia e lsquoclariacutessimosrsquo de famiacutelias senatoriaisrdquo (Daniel-
Rops 1988 317) Para Guignebert (1956 121) o contato da elite com o cristianismo se deu
essencialmente por meio dos escravos e da filosofia
a traveacutes de los esclavos llegoacute a las mujeres libres sus amas y accidentalmente atrajo la atencioacuten de algunos hombres instruiacutedos que buscaban la verdad divina Gracias a las primeras se insinuoacute en las classes altas gracias a los segundos tomoacute contacto con la filosofia en el curso del siglo II y las consecuencias de este encuentro fueron incalculables
Eacute importante relembrar que a filosofia pressupunha a escrita e tinha um forte viacutenculo
com a literatura Mesmo o cristianismo no seacuteculo III jaacute possuiacutea um consideraacutevel nuacutemero de
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textos apologeacuteticos que dialogavam diretamente com a filosofia grega e possibilitavam para
a elite o acesso agraves ideacuteias cristatildes (cf Alesso 2006 31)
O relato do martiacuterio do soldado Marino surge portanto nesse contexto soacutecio-histoacuterico
como um texto de grande relevacircncia para o cristianismo Primeiro porque o personagem
principal eacute um soldado Integrava o grupo social de maior prestiacutegio nessa eacutepoca Como dizia
Septiacutemio Severo aos seus filhos ldquoEnriquecei o soldado e zombai do restordquo (Daniel-Rops
1988 299) E como no seacuteculo III as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio tomam uma nova
configuraccedilatildeo o contraste entre essas duas instituiccedilotildees eacute um assunto central O embate deixa
de ser apenas religioso e passa a ser tambeacutem poliacutetico - fato que vai se confirmar no seacuteculo
IV
Em segundo lugar a posiccedilatildeo social do maacutertir levanta outra questatildeo Marino como
membro da elite poderia facilmente ter comprado o libellus ndash documento que comprovava o
sacrifiacutecio aos deuses romanos ndash e assim conseguir sua liberdade (cf Silva 2006 248)
Daniel-Rops (1988 367) detalha que os ricos eram mais propensos a comprar falsos
documentos e a desistir ldquoConforme os testemunhos que temos parece que eram sobretudo os
ricos os bem instalados aqueles a quem a vida tinha concedido todo o conforto e que natildeo
estavam dispostos a sacrificaacute-lordquo que renunciavam agrave feacute
Aleacutem de abrir matildeo de sua posiccedilatildeo social e dos privileacutegios que iria obter como
centuriatildeo Marino natildeo se deixou dominar pelo medo a principal razatildeo da apostasia segundo
Daniel-Rops (1988 367) Eacute importante lembrar que a perseguiccedilatildeo sob Deacutecio instaurada em
249 dC ainda era bastante recente Numa tentativa de restaurar a gloacuteria do Impeacuterio Deacutecio
havia promulgado uma lei que obrigava todos os suacuteditos a retomarem o culto aos deuses
romanos Para ele ldquose todos os suacuteditos do Impeacuterio voltassem a adorar os deuses
possivelmente os deuses voltariam a favorecer o Impeacuteriordquo (Gonzaacutelez 1995 138) O culto era
um elemento essencial para os romanos Era por meio dele que expressavam sua
religiosidade como escreve Arnauld (2001 15) ldquoLa lsquopietasrsquo (pieacuteteacute) eacutetait la caracteacuteristique
principale de la religiositeacute romaine () Cette lsquopietasrsquo srsquoexprimait en une observance stricte
des lois rituelles Religion signifiait culterdquo
O descumprimento da lei por parte dos cristatildeos provocou uma perseguiccedilatildeo que teve
como consequumlecircncia um grande nuacutemero de apostasias fato que chegou a causar divergecircncia de
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opiniatildeo entre os bispos Num novo periacuteodo de relativa paz era portanto de suma importacircncia
para a Igreja insistir que os cristatildeos permanecessem firmes em suas convicccedilotildees Como
observa Daniel-Rops (1988 367) ldquoesses periacuteodos de interrupccedilatildeo nas perseguiccedilotildees natildeo
ajudavam em nada a coragem dos fieacuteis durante os tempos de calma a mola distendia-se e
quando subitamente era preciso voltar a entrar em luta muitos se sentiam faltos de energiardquo
Assim o testemunho de Marino evidencia o conflito existente entre a Igreja e o
Impeacuterio e conclama de maneira didaacutetica a que os cristatildeos tenham a mesma disposiccedilatildeo
mesmo diante da possibilidade da apostasia e dos terrores de um novo periacuteodo de perseguiccedilatildeo
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3 TEXTO GREGO
Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου Μαρίνου
Κατὰ τούτους εἰρήνης ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης ἐν Καισαρείᾳ τῆς
Παλαιστίνης Μαρῖνος τῶν ἐν στρατείαις ἀξιώμασι τετιμημένων γένει τε
καὶ πλοὕτῳ περιφανὴς ἀνήρ διὰ τὴν Χριστοῦ μαρτυρίαν τὴν κεφαλὴν
ἀποτέμνεται τοιᾶσδε ἕνεκεν αἰτίας
2 τιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας φασίν
ἑκατοντάρχους γίνεσθαι Τόπου σχολάζοντος ἐπὶ τοῦτο προκοπῆς τὸν
Μαρῖνον ἡ τοῦ βαθμοῦ τάξις ἐκάλει ἤδη τε μέλλοντα τῆς τιμῆς ἔχεσθαι
Παρελθὼν ἄλλος πρὸ τοῦ βήματος μὴ ἐξεῖναι μὲν ἐκείνῳ τῆς Ῥωμαίων
μετέχειν ἀξίας κατὰ τοὺς παλαιοὺς νόμους Χριστιανῷ γε ὄντι καὶ τοῖς
βασιλεῦσι μὴ θύοντι κατηγόρει αὐτῷ δὲ ἐπιβάλλειν τὸν κλῆρον
3 ἐφ᾿ ᾧ κινηθέντα τὸν δικαστὴν (Ἀχαιὸς οὕτος ἧν) πρῶτον μὲν ἐρέσθαι
ποίας ὁ Μαρῖνος εἴη γνώμης ὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν ἐπιμόνως
ἑώρα τριῶν ὡρῶν ἐπιδοῦναι αὐτῷ εἰς ἐπίσκεψιν διάστημα
4 ἐκτὸς δῆτα γενόμενον αὐτὸν τοῦ δικαστηρίου Θεότεκνος ὁ τῇδε
ἐπίσκοπος ἀφέλκει προσελθὼν δι᾿ ὁμιλίας καὶ τῆς χειρὸς λαβὼν ἐπὶ τὴν
ἐκκλησίαν προάγει εἴσω τε πρὸς αὐτῷ στήσας τῷ ἁγιάσματι μικρόν τι
παραναστείλας αὐτοῦ τῆς χλαμύδος καὶ τὸ προσηρτημένον αὐτῷ ξίφος
ἐπιδείξας ἅμα τε ἀντιπαρατίθησι προσαγαγὼν αὐτῷ τὴν τῶν θείων
εὐαγγελίων γραψήν κελεύσας τῶν δυοῖν ἑλέσθαι τὸ κατὰ γνώμην ὡς δ᾿
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ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν
ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς
αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης
5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ
δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ
δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν
ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται
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4 TRADUCcedilAtildeO
O martiacuterio do Santo Marino
1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares
em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido
honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por
todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu
testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte
2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a
conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a
ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo
Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e
declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e
portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos
romanos Assim o cargo cairia para si
3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou
primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele
insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs
horas para refletir
4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era
bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela
matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando
um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo
tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos
exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem
hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas
ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno
ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo
5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para
o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se
apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute
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imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre
o seu fim
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5 COMENTAacuteRIOS
51 OS PERSONAGENS
Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em
um ponto da estrutura
Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola
Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal
familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute
exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um
homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos
movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do
texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave
autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado
guerreiro
O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo
dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo
para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A
denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma
preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega
Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o
exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees
do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio
militar portanto tinha um significado muito grande
Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas
informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou
compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem
disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo
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Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na
quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado
provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era
seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para
conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial
para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve
como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)
O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para
anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo
de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos
outros personagens no texto
52 ESTRUTURA
O texto pode ser subdividido em 5 partes
(i) Marino o soldado cristatildeo
A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no
espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo
A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de
captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a
expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo
(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo
A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio
narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo
apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal
(iii) Marino e o juiz a confissatildeo
A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente
que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir
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(iv) Marino e o bispo a decisatildeo
Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de
Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem
palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a
espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe
a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras
(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo
Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo
Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte
53 TEMPO E ESPACcedilO
O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto
para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης
ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor
Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e
a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII
12)
A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que
Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em
todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto
o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se
deram de maneira muito raacutepida
Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia
na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no
entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes
contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o
Cristianismo
30
O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno
poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por
Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo
tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito
cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera
propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz
que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os
sofrimentos corporais
Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte
54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS
O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de
diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um
detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga
essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de
martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)
Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte
A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da
distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no
entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor
31
A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra
no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios
desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica
Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com
Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma
narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute
portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a
noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007
8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente
engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo
No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no
uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo
εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por
ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento
por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann
2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que
eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega
amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e
decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo
do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio
ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento
emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado
comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como
afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva
de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a
forte presenccedila do aspecto emotivo
A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para
enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou
ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops
(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma
32
medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te
apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo
Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila
Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte
pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o
caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o
representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute
o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar
Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel
seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os
espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo
Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na
hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops
(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo
obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo
O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino
se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua
decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo
que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar
O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma
meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior
sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O
adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez
Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num
texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e
ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς
πίστεως τὴν προθυμίαν
Assim temos
33
Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)
darrdarrdarrdarr
Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo
darrdarrdarrdarr
Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo
O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas
uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado
pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν
ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente
detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita
conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui
coerecircncia ao texto
Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)
destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura
feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que
todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou
seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica
fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e
estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha
havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois
poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo
34
sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser
adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um
antagonismo fundamentalrdquo
O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de
Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo
substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo
ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos
esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no
texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino
Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos
durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e
por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que
a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino
Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη
ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto
o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων
o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος
o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις
o substantivo εἰρήνη
o substantivo μαρτυρία
Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e
formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado
35
A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes
por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)
honra romana (τιμή)
vide (κλῆμα)
centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)
reconhecimento passageiro e
terreno (ἀξιώμασι
τετιμημένων )
honra cristatilde (τιμή)
paz (εἰρήνη)
maacutertir (μάρτυρ)
reconhecimento eterno e divino
(τελειοῦται)
O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria
honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o
argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado
explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos
versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω
ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o
objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας
φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo
Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o
ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ
τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela
feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)
36
Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha
pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento
terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo
ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na
comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o
cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)
Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito
mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp
Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo
por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute
essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto
O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por
exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer
voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do
termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que
ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to
the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις
Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de
um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados
Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor
menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A
acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os
personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado
numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo
de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute
em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz
37
como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da
acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade
interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se
constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio
por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os
imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao
registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o
mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)
A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das
intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que
como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos
entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo
38
CONCLUSAtildeO
O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e
produtivo sob vaacuterios aspectos
Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual
gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A
percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a
ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os
primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma
instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na
literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um
pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os
cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo
- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura
No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do
texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico
durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e
consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa
ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias
da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna
centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o
posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos
fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento
A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se
compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao
bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se
mostrar complacente
39
Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os
cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de
sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem
como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como
um substituto aos espetaacuteculos romanos
Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave
plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos
Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o
que deu origem ao culto dos santos
Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda
precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos
possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados
ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται
presente no texto traduzido e em outros relatos
Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais
utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e
posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma
melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande
auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo
cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade
proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses
novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde
40
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43
ANEXOS
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)
[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1
1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em
Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um
tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua
linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte
2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles
que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o
escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a
honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo
as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que
era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a
ele
3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a
Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que
era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse
4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e
afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma
vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o
manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e
contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as
duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a
direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -
manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que
escolheste Vai em pazrdquo
1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu
este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer
casos como o de Marino [nota do Editor]
44
5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de
novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado
Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua
feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado
45
TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)
During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in
Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and
was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It
came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour
and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and
according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he
was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and
attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and
should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to
the ancient laws but that instead the post should fall to himself
It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he
first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed
that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had
Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside
in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed
Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword
attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it
before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out
his right hand and took the divine writings
lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him
may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo
No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the
tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and
showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to
execution and so found his fulfilment
3
ldquoἀλλὰ ἅτινα ἧν μοι κέρδη ταῦτα ἥγημαι διὰ τὸν Χριστὸν ζημίανrdquo
Προς Φιλιππησιοις 37
4
SUMAacuteRIO
RESUMO 5
INTRODUCcedilAtildeO 6
1 GEcircNERO LITERAacuteRIO 9
11 LITERATURA CRISTAtilde E LITERATURA PAGAtilde 9
12 AS CARACTERIacuteSTICAS LITERAacuteRIAS FORMAIS 14
2 CONTEXTO SOacuteCIO-HISTOacuteRICO 18
3 TEXTO GREGO 23
4 TRADUCcedilAtildeO 25
5 COMENTAacuteRIOS 27
51 OS PERSONAGENS 27
52 ESTRUTURA 28
53 TEMPO E ESPACcedilO 29
54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS 30
CONCLUSAtildeO 38
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 40
ANEXOS 43
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005) 43
TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000) 45
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RESUMO
Este trabalho aborda as origens e caracteriacutesticas do gecircnero literaacuterio denominado biacuteos hagiograacutefico amplamente utilizado pelo Cristianismo nos seacuteculos II a IV dC Verifica-se que esse gecircnero geralmente escrito em forma de relatos de martiacuterios servia a vaacuterios propoacutesitos (i) para divulgar a feacute (ii) para o ensino dos fieacuteis e (iii) para oferecer aos cristatildeos uma literatura proacutepria substituindo assim a literatura e arte pagatildes
Aleacutem disso este trabalho tem o propoacutesito de traduzir e analisar um texto escrito em grego koineacute ldquoO martiacuterio do soldado Marinordquo que relata a trajetoacuteria de um cristatildeo acusado e morto por sua feacute em meados do seacuteculo III dC A anaacutelise deu prioridade ao estudo dos elementos linguumliacutesticos - tais como os itens lexicais e os tempos verbais Tais elementos correlacionados agraves informaccedilotildees do contexto soacutecio-histoacuterico indicaram que o impasse pessoal vivido por Marino refletiu um embate muito maior e de dimensotildees sociais profundas a disputa pelo poder entre Igreja e Estado Romano Verificamos que o autor contrapotildee esses dois poderes de maneira intencional destacando o ponto de vista cristatildeo
Palavras-chave gecircnero biacuteos hagiograacutefico literatura cristatilde Impeacuterio Romano grego koineacute
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INTRODUCcedilAtildeO
A intenccedilatildeo deste trabalho eacute resgatar um gecircnero literaacuterio ao qual se tem dado pouca
atenccedilatildeo no Brasil a saber os relatos de martiacuterios cristatildeos Muitos desses martiacuterios ocorridos
entre os seacuteculos II e IV dC foram registrados em liacutengua grega ou latina e ainda carecem de
um estudo mais pormenorizado que identifique tanto as caracteriacutesticas literaacuterias quanto as
linguumliacutesticas
Nesta pesquisa destacar-se-aacute o relato grego de um soldado chamado Marino que apoacutes
ter sido acusado de natildeo observar as leis romanas perdeu o direito de se tornar centuriatildeo e foi
decapitado
Aleacutem de estabelecer uma traduccedilatildeo da liacutengua grega para a portuguesa tem-se como
objetivo definir neste trabalho a qual gecircnero literaacuterio o relato de martiacuterio do soldado Marino
pertence Para tanto seratildeo utilizados os trabalhos jaacute realizados na aacuterea da hagiografia e da
martirologia e tambeacutem os paracircmetros da literatura claacutessica
Tendo como pressuposto que os relatos de martiacuterio ndash martyria ndash formam um conjunto
literaacuterio especiacutefico e que natildeo haacute literatura neutra procurar-se-aacute avaliar o impacto causado por
esses textos na sociedade romana da eacutepoca e como eles lidam com as diferenccedilas morais e
religiosas entre cristatildeos e natildeo cristatildeos
Conforme nos eacute informado pelos relatos histoacutericos o Cristianismo permaneceu uma
religio ilicita ateacute o reinado de Constantino no seacuteculo IV Durante os seacuteculos anteriores a
situaccedilatildeo dos cristatildeos era relativamente fraacutegil do ponto de vista poliacutetico Ora eram acusados
pelo povo ora protegidos pelas leis Todo esse quadro de instabilidade certamente se refletia
na literatura e alcanccedilava de alguma maneira os leitores Assim por vezes os cristatildeos
recorriam agraves ideacuteias filosoacuteficas para se protegerem dos ataques externos por vezes aos
princiacutepios cristatildeos para se manterem unidos e confiantes diante de uma possiacutevel perseguiccedilatildeo
individual ou em massa Por essa razatildeo seratildeo discutidas a partir do texto selecionado as
funccedilotildees assumidas por esse tipo de literatura e as estrateacutegias utilizadas pelo autor para
cumprir tais funccedilotildees Para tanto seratildeo focalizados o contexto soacutecio-histoacuterico em que a morte
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de Marino se deu e os elementos linguumliacutesticos agrave disposiccedilatildeo no texto para a realizaccedilatildeo dessa
anaacutelise
O estudo da literatura cristatilde mostra-se portanto fundamental para o entendimento do
pensamento e da cultura natildeo soacute introduzida pela comunidade cristatilde mas tambeacutem da sociedade
romana como um todo Afinal a propagaccedilatildeo do Cristianismo se deu - com perseguiccedilatildeo ou
sem perseguiccedilatildeo - durante o periacuteodo do Impeacuterio romano e por meio das liacutenguas de cultura da
eacutepoca primeiramente o grego e depois tambeacutem o latim Natildeo haacute portanto como analisar a
literatura e a liacutengua utilizadas por essa comunidade sem levar em conta ao mesmo tempo as
ideologias filosofias costumes e sistemas sociais poliacuteticos e econocircmicos que norteavam o
Impeacuterio romano
Por fim eacute importante ressaltar que a anaacutelise individualizada desses textos contribui
para o aprofundamento das metodologias e escolhas utilizadas pelos autores muitas vezes
anocircnimos Esse tipo de anaacutelise permite uma melhor compreensatildeo do uso da liacutengua nessa
eacutepoca Permite tambeacutem a comparaccedilatildeo entre os textos e auxilia na verificaccedilatildeo de questotildees
como Ateacute que ponto os relatos de diversos maacutertires produzidos por autores distintos e em
lugares diferentes podem ser correlacionados Havia uma linguagem proacutepria dos cristatildeos
Quais os itens lexicais mais utilizados O valor semacircntico desses itens era o mesmo para
cristatildeos e natildeo cristatildeos
O texto grego utilizado neste trabalho foi o publicado por Musurillo (2000) Para a
traduccedilatildeo foram consultados os seguintes dicionaacuterios
BAIILY A Dictionnaire Grec-Franccedilais Paris Hachette 1950
GINGRICH Wilburg amp DANKER Frederick Leacutexico do Novo Testamento Grego-
Portuguecircs Traduccedilatildeo Juacutelio PT Zabatiero Satildeo Paulo Vida Nova 1993
LAMPE Geoffrey WH A Patristic greek lexicon Oxford Clarenton Press 2000
LIDDELL H SCOTT R Greek-English Lexicon Abridged Simon Wallenberg
Press 2007
SOPHOCLES EA Greek lexicon of the Roman and Byzantine Periods from BC 146
to AD 1100 ndash part one New York Charles Scribnerrsquos Sons 1900
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Em anexo encontram-se duas outras traduccedilotildees para o relato de martiacuterio de Marino a
de Musurillo (2000) para a liacutengua inglesa e a de Fischer (2005) para a liacutengua portuguesa
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1 GEcircNERO LITERAacuteRIO
O objetivo deste capiacutetulo eacute classificar e compreender o gecircnero literaacuterio no qual os
relatos de martiacuterio estatildeo inseridos
A primeira observaccedilatildeo que precisa ser feita a respeito dos relatos de martiacuterio eacute que a
leitura empreendida neste trabalho tem como pressuposto o ponto de vista literaacuterio Ou seja
natildeo se tem a intenccedilatildeo de discutir a veracidade dos fatos histoacutericos relatados ou de se fazer um
estudo criacutetico no sentido de discernir o que eacute histoacuteria do que eacute ficccedilatildeo Ateacute mesmo porque
conforme escreve Musurillo (2000 liv) a linha entre histoacuteria e ficccedilatildeo nesse tipo de texto eacute
muito tecircnue
A classificaccedilatildeo do gecircnero ao qual pertencem os relatos de martiacuterio pode ser feita por
duas vias distintas Pela primeira partimos dos mais variados tipos de textos de diferentes
eacutepocas com o intuito de por meio da comparaccedilatildeo entre as caracteriacutesticas formais enquadraacute-
los a um determinado gecircnero Pela segunda contrastamos textos de cunho cristatildeo - escritos
por autores nomeadamente cristatildeos com o objetivo de divulgar a sua feacute ndash aos de cunho natildeo-
cristatildeo Essas duas vias satildeo levadas em consideraccedilatildeo neste capiacutetulo comeccedilando pela segunda
a comparaccedilatildeo entre a literatura cristatilde e a natildeo-cristatilde
11 LITERATURA CRISTAtilde E LITERATURA PAGAtilde
A contraposiccedilatildeo entre literatura cristatilde e natildeo-cristatilde eacute um ponto fundamental para a
questatildeo do gecircnero natildeo soacute dos relatos de martiacuterio mas tambeacutem para todos os outros tipos de
textos escritos durante os primeiros seacuteculos da era cristatilde Isso porque durante os seacuteculos II a
IV dC o Cristianismo busca sua afirmaccedilatildeo como religiatildeo e filosofia utilizando-se em
grande medida da escrita
Alesso (2006 24) explica que eacute a partir do seacuteculo II que o Cristianismo se organiza
para enfrentar problemas internos como ldquoas acusaccedilotildees de heresia lutas pelo poder perigos de
cisma e controveacutersias teoloacutegicasrdquo A organizaccedilatildeo tambeacutem se fez necessaacuteria para enfrentar os
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ataques externos o que resultou na apresentaccedilatildeo das ideacuteias cristatildes de modo filosoacutefico em
textos bem elaborados e com caracteriacutesticas semelhantes aos da cultura da eacutepoca
Los discursos de los obispos y letrados defensores del cristianismo no podiacutean ser espontaacuteneos ni livianos cuando se trataba de responder a las criacuteticas y a la difamacioacuten de enemigos tan ilustrados como ellos No bastaba la elocuencia entusiasta habiacutea que ordenar las ideas en lo molde de recursos avalados por el prestigio de siglos en los geacuteneros discursivos que los doctos habiacutean aprendido e internalizado desde su maacutes tierna formacioacuten heleniacutestica
Assim depreende-se que a literatura cristatilde destes primeiros seacuteculos visava atender
duas necessidades principais o ensino para manter a coesatildeo do puacuteblico interno e a apologia
que procurava defender a feacute diante do puacuteblico externo
Os escritos apologeacuteticos dialogavam de maneira direta com a filosofia grega e eram
escritos geralmente por bispos que viviam em grandes centros urbanos como Justino o
maacutertir Oriacutegenes Teoacutefilo e Tertuliano Por essa razatildeo tais discussotildees permaneciam muitas
vezes entre a elite natildeo chegando ao puacuteblico em geral (cf Alesso 2006 31) Desde muito
cedo portanto surge uma divisatildeo natural de destinataacuterios na literatura cristatilde enquanto alguns
textos eram escritos e dirigidos a leitores cultos outros textos tinham como puacuteblico-alvo o
povo
Para Alesso (2006 29-30) essa divisatildeo eacute claramente percebida quando do surgimento
do gecircnero biacuteos ldquoEl geacutenero biacuteos que tendriacutea entonces en principio como destinatario a un
lector cultivado se cumple tambieacuten en un subgeacutenero de corte popular las vidas ejemplaresrdquo
Eacute o gecircnero biacuteos que estabelece de fato em meados do seacuteculo IV a hagiografia - a biografia
que relata a vida de um santo - como um modelo literaacuterio a ser seguido pelos escritores
cristatildeos especialmente pelo movimento monaacutestico Segundo Moreschini amp Norelli (2000
511) a hagiografia foi com o tempo aproximando-se cada vez mais da biografia pagatilde Para
eles a relaccedilatildeo entre cristianismo e paganismo ldquoocorreu com todas as demais formas literaacuterias
cristatildesrdquo porque ldquopraticadas por pessoas que tiveram em comum com os pagatildeos os mestres as
escolas e as leiturasrdquo Tal fato reforccedila ainda mais a divisatildeo entre leitores que tinham acesso agrave
educaccedilatildeo formal daqueles que natildeo a tinham
As pessoas destituiacutedas de uma introduccedilatildeo agraves teorias filosoacuteficas e teoloacutegicas eram
atendidas em grande parte pelas leituras de relatos de martiacuterios ao que Alesso chama de ldquolas
vidas ejemplaresrdquo Os relatos eram lidos durante as celebraccedilotildees cristatildes tornando-se parte da
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liturgia do culto Eram lembrados tambeacutem pela comunidade local por ocasiatildeo do aniversaacuterio
do maacutertir quando o povo se reunia em torno do tuacutemulo ou fazia peregrinaccedilotildees ateacute ele (cf
Musurillo 2000 lvi Moreschini amp Norelli 2000 297)
Os relatos de martiacuterios (acta passiones e martyria) no entanto formam entre si um
gecircnero especiacutefico Aleacutem disso conteacutem elementos que antecedem e prenunciam a formaccedilatildeo da
hagiografia Satildeo denominados por Moreschini amp Norelli (2000 511) de ldquohagiografia
primitivardquo O costume de narrar a prisatildeo o sofrimento e a morte de um cristatildeo explicam esses
autores apareceu ldquoquase contemporaneamente em lugares diferentes da cristandade em
formas diversas e com ascendecircncias e caracteriacutesticas ideoloacutegicas variadas o gecircnero literaacuterio
como tal se constitui progressivamente pelo desenvolvimento e pelas reciacuteprocas relaccedilotildees dos
textosrdquo
O modelo de narrativa dos maacutertires cristatildeos remonta na verdade aos relatos
encontrados na Biacuteblia como o martiacuterio de Estevatildeo (Atos dos Apoacutestolos 7) de Tiago (At 12)
e aos sofrimentos de Paulo (At 14) O modelo central poreacutem eacute o proacuteprio Jesus cuja vida eacute
narrada pelos Evangelhos Note-se que a ecircnfase dos Evangelhos natildeo eacute narrar todos os
acontecimentos biograacuteficos mas destacar os sofrimentos de Cristo desde seu nascimento
como por exemplo a perseguiccedilatildeo de Herodes ateacute sua crucificaccedilatildeo
Ainda que os relatos cristatildeos tenham tido como modelo textos pagatildeos tema discutido
por Delehaye (1966) Berger (1998) e Uytfanghe (1993) foi o Cristianismo que disseminou e
divulgou esse tipo de literatura Delehaye (1966 113-125) assinala que haacute vaacuterias diferenccedilas
entre os relatos dos maacutertires pagatildeos Alexandrinos e os relatos dos maacutertires cristatildeos Uma
delas se encontra na motivaccedilatildeo para o martiacuterio ldquoIci nous voyons des hommes qui meurent
pour leurs convictions et agrave qui il suffirait drsquoun mot ou drsquoun geste pour reconqueacuterir la liberteacute
Lagrave on nous presente les chefs drsquoune faction politique qui deacutefendent au prix de leur vie leur
programme et leurs actes et qui perdent la partierdquo (1966 124) E para Uytfanghe (1993 174)
caracteriacutesticas como humildade amor e perdatildeo natildeo satildeo encontradas em maacutertires pagatildeos
como Soacutecrates e Secircneca Jaacute nos cristatildeos elas estatildeo presentes de maneira radical
De uma forma geral os autores concordam que a formaccedilatildeo de um gecircnero a partir dos
relatos de martiacuterio e sua posterior propagaccedilatildeo pelos cristatildeos natildeo tinham uma intenccedilatildeo uacutenica
pelo contraacuterio vecirc-se nesses textos uma intenccedilatildeo multifacetada Para Musurillo (2000 liv-
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lvii) os relatos de martiacuterio exerciam pelo menos trecircs funccedilotildees a primeira era a funccedilatildeo
histoacuterica jaacute que tanto os Evangelhos como os Atos dos Apoacutestolos e os martyria baseavam-se
em fatos histoacutericos A segunda era a apologeacutetica isto eacute a afirmaccedilatildeo da feacute cristatilde diante do
mundo E por uacuteltimo a funccedilatildeo de ensino Uytfanghe (1993 173-175) observa que por meio
desses relatos os cristatildeos eram encorajados a permanecerem firmes nas suas crenccedilas e a
cultivarem uma vida santa e asceacutetica O maacutertir se tornava assim um modelo a ser seguido E
o cristatildeo ndash literalmente o seguidor de Cristo - dava continuidade aos ensinos e agrave vida de
Jesus o qual afirmou ldquoLembrem-se das palavras que eu lhes disse Nenhum escravo eacute maior
do que o seu senhor Se me perseguiram tambeacutem perseguiratildeo vocecircsrdquo (Evang Joatildeo 1520)
Aleacutem desses trecircs aspectos a formaccedilatildeo de um corpus literaacuterio cristatildeo era de grande
interesse para a Igreja na medida em que oferecia ao puacuteblico cristatildeo a cada dia maior uma
nova opccedilatildeo cultural Conforme o registro que possuiacutemos no escrito Os Espetaacuteculos do bispo
Tertuliano de Cartago os cristatildeos eram aconselhados a natildeo frequumlentarem os teatros e os
circos nem assistirem aos combates de gladiadores ldquoMas eles percebem que algueacutem se fez
cristatildeo sobretudo pelo fato de evitar os espetaacuteculosrdquo (De spect 243)
Tertuliano posicionou-se fortemente contra a participaccedilatildeo dos cristatildeos nos espetaacuteculos
promovidos pelos teatros circos e arenas porque aleacutem de possuiacuterem uma ligaccedilatildeo com algum
deus grego ou romano - e portanto promoverem a idolatria - evidenciavam a incoerecircncia da
sociedade romana ldquosoacute ali [no teatro] tem curso e aplauso o que em qualquer outra parte se
reprovardquo (De spect 171) Assim argumenta ldquoConvencidos ficamos que por nenhum lado
nos fica bem laacute ir noacutes que por duas vezes renunciamos aos iacutedolosrdquo (De spect 13 1) Para
Tertuliano o homem eacute imagem e semelhanccedila de Deus e por essa razatildeo natildeo deveria
corromper sua alma e corpo
O certo eacute que natildeo nos foram dados os olhos para os entregar agrave concupiscecircncia nem a liacutengua para a maledicecircncia nem os ouvidos para sorvedouro de murmuraccedilotildees nem o paladar para poccedilo de gula o ventre para dar seguimento agrave mesma gula os oacutergatildeos genitais para excessos de impureza as matildeos para estrangular o proacuteximo os peacutes para vagabundear natildeo se nos infundiu a alma ateacute as entretelas do corpo para vir a ser um recesso de ciladas e de embustes e de iniquumlidades (De spect 210)
Os prazeres cultivados pela sociedade romana deveriam portanto ser abandonados e
substituiacutedos Para Tertuliano o cristatildeo natildeo tinha necessidade de espetaacuteculos pois desfrutava
dos prazeres (voluptates) proacuteprios agrave sua feacute Seus argumentos satildeo os seguintes
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Que melhor alegria que a que promana da reconciliaccedilatildeo com Deus Pai Nosso Senhor do conhecimento da verdade de reconhecer os erros do perdatildeo de tantos pecados da passada vida Que maior prazer que o asco do proacuteprio prazer que a consciecircncia pura que a vida sem ambiccedilotildees e o destemor da morte Pisar aos peacutes os deuses dos gentios expelir os democircnios curar doentes informar-te da verdade revelada viver para Deus aiacute estatildeo as alegrias satildeo esses os espetaacuteculos santos dos cristatildeos os espetaacuteculos perpeacutetuos por que se natildeo paga nada (De spect 29 1-3)
O bispo continua a explanaccedilatildeo de suas ideacuteias afirmando que os cristatildeos natildeo possuem o
teatro mas tecircm boa literatura natildeo possuem os combates de gladiadores mas tecircm as lutas pela
feacute e pela castidade natildeo possuem o sangue das arenas mas tecircm o sangue de Cristo ldquoSe o
palavreado cecircnico eacute divertido natildeo temos falta de boas letras temos versos a rodos e
pensamentos bem cunhados nada se diga de cacircnticos e vozes do melhor metal em vez de
faacutebulas temos verdades em vez de embustes a lisura mais declaradardquo (De spect 294)
A defesa e a valorizaccedilatildeo de uma literatura proacutepria aos cristatildeos eacute um elemento
extremamente importante para a propagaccedilatildeo dos relatos de martiacuterio porque conforme visto
acima esse tipo de texto entrou em circulaccedilatildeo como um substituto agraves encenaccedilotildees teatrais
Assim os martyria ajudaram a constituir um corpus literaacuterio cristatildeo que se tornou um
instrumento de poder para a Igreja
Como observa Fox (1996 130) os maacutertires compartilhavam juntamente com os
bispos e visionaacuteriosprofetas um lugar privilegiado na comunidade ldquoAmong Christians
before Constantine power was attribute of three particular groups it was achieved by
visionaires it was ascribed to martyrs and confessors it was vested above all in bishops
Literacy assisted the exercise of power by all threerdquo Os integrantes desses trecircs grupos natildeo
apenas eram admirados mas tidos como autoridades Os bispos por exemplo eram
considerados por Inaacutecio de Antioquia como ldquoos representantes de Deus na Igrejardquo
(Guignebert 1956 137) Por isso os escritos ou discursos proferidos por esses trecircs grupos
eram recebidos na maioria das vezes como proacutepria palavra de Deus fator que atribuiacutea um
poder ainda maior aos textos Para Fox (1996 129) ldquothis combination of sacred text and an
increasingly standardised pattern of authority make the early Church a unique subject for
studies of literacy and powerrdquo
Como um gecircnero da literatura cristatilde os relatos de martiacuterio tambeacutem serviram para a
manutenccedilatildeo e a transmissatildeo da ideologia cristatilde nos primeiros seacuteculos do Cristianismo
conforme escreve Alesso (2006 34-35)
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Los geacuteneros en todas sus formas y subformas son el suporte estructural para la transmisioacuten de un ideario y lo fueron de modo especial en el trasvase de los contenidos que provenientes de la antiguumledad se imbricaron en el cristianismo de los Padres Aunque su relacioacuten com la criacutetica sociohistoacuterica es marginal los geacuteneros son indudables portadores de significacioacuten cuando interesan a la evolucioacuten de paraacutemetros poliacutetico culturales que intervinieran en la construccioacuten del edificio ideoloacutegico de la teologiacutea cristiana
O fortalecimento da literatura cristatilde foi enfim um fator essencial para a difusatildeo do
Cristianismo porque ajudou a organizaacute-lo como instituiccedilatildeo Por meio da literatura o
Cristianismo conseguiu alcanccedilar pessoas de todos os lugares e de todas as classes sociais
inclusive as pertencentes agrave elite que conforme Daniel-Rops (1988 305) sentiam o decliacutenio
do Impeacuterio que chegava ateacute mesmo ao acircmbito literaacuterio e artiacutestico
12 AS CARACTERIacuteSTICAS LITERAacuteRIAS FORMAIS
Quanto agraves caracteriacutesticas formais que podem ser levadas em conta para a classificaccedilatildeo
do gecircnero os relatos de martiacuterio mesclam traccedilos tanto do gecircnero biograacutefico quanto do
discurso hagiograacutefico
Os relatos de martiacuterio natildeo podem ser classificados categoricamente como biacuteoi pois
natildeo chegam a constituir uma biografia de fato Tambeacutem natildeo podem ser classificados como
hagiografia em sentido exclusivo porque como afirma Delehaye (apud Uytfanghe 1993
146) esta eacute muito abrangente inclui ldquotodo documento escrito inspirado pelo culto dos santos
e destinado a promovecirc-lordquo Assim o que se verifica eacute um entrecruzamento de gecircneros Isso
ocorre porque os gecircneros satildeo como afirma Alesso (2006 29) sistemas abertos ldquolas
invariantes coexisten con las variables y no podemos condenarlos y condenarnos a una
esquematizacioacuten extrema porque perderiacuteamos de vista uno de los objetivos primordiales la
finalidad del contenidordquo Por essa razatildeo adotamos neste trabalho a definiccedilatildeo biacuteos
hagiograacutefico introduzida por Ipiranga Juacutenior (2006 9)
Segundo Momigliano (1971 25) os gregos jaacute possuiacuteam o haacutebito de redigir biografias
no seacuteculo V aC mas foi no periacuteodo heleniacutestico que ele se intensificou e o gecircnero recebeu um
nome especiacutefico ldquobien qui nous conaissions lrsquoexistence de biographies et peut-ecirctre
drsquoautobiographies degraves le cinquiegraveme siegravecle avant JC crsquoest seulement agrave lrsquoeacutepoque helleacutenistique
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que la biographie devient une notion precise et acquiert un nom en propre Ce nome est lsquobiosrsquo
ndash et non lsquobiographiarsquordquo
Para Bakhtin (2003 138) entretanto a biografia como romance surgiu apenas no fim
da Idade Meacutedia Durante os seacuteculos II-IV dC ainda era uma forma literaacuteria em formaccedilatildeo
Mesmo tendo em mente a distacircncia cronoloacutegica entre os martyria e o romance biograacutefico ao
qual Bakhtin se refere eacute possiacutevel perceber semelhanccedilas entre os dois
A primeira delas eacute a presenccedila do heroacutei com valores do tipo bravura honradez
magnanimidade e generosidade (cf Bakhtin 2003 142 147) Ao abrir matildeo de posiccedilotildees
poliacuteticas e religiosas ao enfrentar perigos sofrimentos torturas e feras sem renunciar agrave feacute o
maacutertir eacute visto como um heroacutei pela comunidade cristatilde Ele ldquotorna-se uma espeacutecie de ponto
focal da vida da comunidade que o circunda de veneraccedilatildeo considerando-o jaacute em contato com
Deus capaz de profetizar e de pronunciar-se com uma autoridade especial tambeacutem sobre
questotildees eclesiaacutesticasrdquo (Moreschini amp Norelli 2000 297) Morrer por sua feacute eacute o ato supremo
de glorificaccedilatildeo para os primeiros cristatildeos E eacute por meio dessa glorificaccedilatildeo de acordo com as
palavras de Bakhtin (2003 143) que o heroacutei consegue alcanccedilar a consciecircncia de uma
determinada sociedade incutindo assim novos valores
A aspiraccedilatildeo agrave gloacuteria organiza a vida do heroacutei ingecircnuo a gloacuteria organiza tambeacutem a narraccedilatildeo da sua vida sua glorificaccedilatildeo Aspirar agrave gloacuteria eacute tomar consciecircncia de si na sociedade culta e histoacuterica dos homens (ou na naccedilatildeo) eacute afirmar e construir sua vida na possiacutevel consciecircncia dessa sociedade humana eacute crescer natildeo em si nem para si mas nos outros ou para os outros eacute ocupar um lugar no mundo imediato dos contemporacircneos e descendentes
A segunda semelhanccedila detectada entre os gecircneros biograacutefico e biacuteos hagiograacutefico eacute a
relaccedilatildeo de empatia que se estabelece entre autor-personagem Segundo Bakhtin (2003 150)
autor e personagem compartilham obrigatoriamente os mesmos valores ldquona biografia o
autor natildeo soacute combina com a personagem na feacute nas convicccedilotildees e no amor mas tambeacutem em
sua criaccedilatildeo artiacutestica (sincreacutetica) tomando como guia os mesmos valores que a personagem
em sua vida esteacuteticardquo Embora o autor do martiacuterio do soldado Marino natildeo seja explicitado eacute
possiacutevel inferir pelo texto que o interesse de registrar o fato tenha partido natildeo de algueacutem que
simplesmente compartilhava com ele a situaccedilatildeo de soldado do exeacutercito romano mas sim de
algueacutem que dividia os mesmos valores cristatildeos
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Quanto agrave modalidade do romance a relaccedilatildeo entre os gecircneros biacuteos hagiograacutefico e
biograacutefico tambeacutem eacute possiacutevel Bakhtin (2003 205) identifica quatro modelos de romance
ldquosegundo o princiacutepio de construccedilatildeo da imagem da personagem central o romance de viagens
o romance de provaccedilatildeo da personagem o romance biograacutefico (autobiograacutefico) o romance de
educaccedilatildeordquo Ora por ser um gecircnero hiacutebrido a personagem principal do biacuteos hagiograacutefico
mescla caracteriacutesticas tanto do romance de provaccedilatildeo quanto do romance biograacutefico
Para Bakhtin (2003 207) o romance de provaccedilatildeo divide-se em duas modalidades ldquoA
primeira modalidade eacute representada pelo romance grego (A Etioacutepica Leucipo e Cleitofon
etc) A segunda modalidade eacute representada pelas hagiografias do iniacutecio do cristianismo
(particularmente dos maacutertires)rdquo O objetivo das provaccedilotildees neste tipo de romance eacute mudar a
opiniatildeo e os valores do heroacutei Como nos relatos de martiacuterio os cristatildeos natildeo renunciam a sua
feacute natildeo haacute mutabilidade Logo o maacutertir aproxima-se do conceito de heroacutei da provaccedilatildeo ele ldquoeacute
acabado e predeterminado as experimentaccedilotildees (sofrimentos seduccedilotildees duacutevidas) natildeo se
tornam para ele uma experiecircncia formadora nem a modificam e nessa imutabilidade da
personagem estaacute toda questatildeordquo (Bakhtin 2003 209)
Aleacutem disso no romance de provaccedilatildeo o personagem eacute o centro Natildeo importam os
costumes ou lugares exoacuteticos como no romance de viagens O personagem natildeo eacute modificado
de forma determinante pelo mundo nem o modifica
Entre o heroacutei e o mundo natildeo existe interaccedilatildeo autecircntica o mundo natildeo eacute capaz de mudar o heroacutei ele apenas o experimenta e o heroacutei natildeo influencia o mundo natildeo lhe muda a face ao passar pela provaccedilatildeo ao afastar seus inimigos etc o heroacutei deixa no mundo tudo nos seus lugares natildeo modifica a face social do mundo natildeo o reconstroacutei e aliaacutes nem tem essa pretensatildeo (Bakhtin 2003 212)
Eacute exatamente esta a situaccedilatildeo observada no texto em anaacutelise A crise pela qual passa o
personagem Marino natildeo eacute capaz de alterar suas convicccedilotildees nem de mudar o curso normal dos
acontecimentos agrave parte de sua vida o exeacutercito continuaraacute existindo uma outra pessoa tomaraacute
o seu lugar e tudo continuaraacute funcionando sob os mesmos princiacutepios
Quanto ao romance biograacutefico Bakhtin (2003 213) considera que assim como o
romance de provaccedilatildeo ele ldquoeacute preparado ainda em solo antigo nas biografias antigas
autobiografias e confissotildees do periacuteodo inicial do cristianismo (terminando em Agostinho)rdquo
O gecircnero biacuteos hagiograacutefico estabelece contatos com esse tipo de romance por meio do
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enredo Como o romance biograacutefico tem como elemento principal a narraccedilatildeo da trajetoacuteria
vital de um determinado personagem ou seja tem como base justamente aqueles ldquoelementos
existentes antes do iniacutecio ou depois do teacutermino do romance de provaccedilatildeordquo (Ibid) engloba
necessariamente o relato da morte fato fundamental para o surgimento de um maacutertir na
concepccedilatildeo cristatilde
No romance biograacutefico a relaccedilatildeo da personagem com o mundo ganha um enfoque
diferente daquele verificado no romance de viagens ou no de provaccedilatildeo Bakhtin (2003 215)
verifica que ldquoPersonagens secundaacuterias paiacuteses cidades objetos etc integram o romance
biograacutefico por vias substanciais e ganham uma relaccedilatildeo igualmente substancial com o todo
vital da personagem centralrdquo Paradoxalmente o relato do soldado Marino apresenta tambeacutem
esse aspecto Embora ele permanecesse inabalaacutevel em sua decisatildeo de natildeo negar a feacute cristatilde
antes de o juiz lhe conceder um tempo para refletir eacute no encontro com o bispo Teotecno e
principalmente apoacutes o confronto com um objeto de grande valor ndash as Escrituras ndash que
Marino segue resoluto para o tribunal
Bakhtin tambeacutem escreve sobre o gecircnero hagiograacutefico embora com mais cautela Para
o autor (2003 169-70) ldquoa hagiografia se realiza diretamente no mundo do divinordquo Por se
tratar de um plano diferenciado em que ldquoa atitude reverente do autor natildeo deixa espaccedilo agrave
iniciativa individualrdquo (2003 170) Bakhtin prefere manter a mesma distacircncia Assim limita-
se em dizer que a hagiografia ldquorecorre a formas tradicionalmente sagradasrdquo (Ibid)
No aspecto formal os relatos de martiacuterio possuem de fato vaacuterias semelhanccedilas e um
fundamento em comum que satildeo os processos verbais No entanto ainda natildeo existe entre os
seacuteculos II e IV dC essa preocupaccedilatildeo ou esse rigor com a forma com a exclusatildeo de todo
elemento que possa remeter agrave individualidade
deve-se excluir tudo o que eacute tiacutepico de uma dada eacutepoca de uma dada nacionalidade () de uma dada condiccedilatildeo social de uma dada idade todo o concreto de uma imagem de uma vida todas as minuacutecias desta as indicaccedilotildees precisas do tempo e do espaccedilo na accedilatildeo ndash tudo o que reforccedila a determinidade no ser de um dado indiviacuteduo e assim lhe diminui a autoridade (Bakhtin 2003 170)
Vecirc-se portanto a partir dessa breve anaacutelise que o gecircnero biacuteos hagiograacutefico mescla
caracteriacutesticas tanto do gecircnero biograacutefico ndash seja biacuteos ou romance biograacutefico - quanto da
hagiografia constituindo assim um gecircnero agrave parte
18
2 CONTEXTO SOacuteCIO-HISTOacuteRICO
O relato do martiacuterio de Marino se tornou conhecido por meio da obra Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio bispo de Cesareacuteia no iniacutecio do seacuteculo IV Para Puech (1930 173)
ldquoEusegravebe est un meacutediocre theacuteologien et un meacutediocre eacutecrivain () mais il nous a rendu comme
historien et comme chronographe des services inestimablesrdquo De fato dificilmente teriacuteamos
acesso a esse texto se natildeo fosse o trabalho de Euseacutebio De acordo com a cronologia do bispo
a morte de Marino eacute situada entre os anos 260-261 dC Para o tradutor Musurillo (2000
xxxvi) essa data eacute bastante provaacutevel O comentaacuterio no relato de que todas as igrejas
desfrutavam de um periacuteodo de paz eacute o principal fator que leva a essa conclusatildeo No ano de
260 dC eacute promulgado o edito de Galieno o qual ldquoautoriza os liacutederes da Igreja a presidir
livremente as celebraccedilotildees religiosasrdquo (Silva 2006 250)
No entanto mesmo com as medidas favoraacuteveis por parte dos governantes o
cristianismo permanecia uma religio ilicita e portanto os cristatildeos ainda estavam sujeitos a
julgamento caso fossem delatados Foi o que aconteceu com o soldado Marino Uma vez
acusado de ser cristatildeo e de natildeo prestar culto ao imperador foi levado ao tribunal Eacute muito
provaacutevel que Marino tivesse vaacuterios colegas cristatildeos no exeacutercito que natildeo foram executados
porque ningueacutem aparecera para acusaacute-los A situaccedilatildeo dos cristatildeos era realmente
imprevisiacutevel Daniel-Rops (1988 346) comenta que no seacuteculo III essa constante mudanccedila de
humor por parte do Impeacuterio criou uma situaccedilatildeo sem precedentes ldquoComo um anciatildeo doente
que ora dormita inconsciente ou vagamente inquieto ignorando as impaciecircncias que o
rodeiam ora se irrita e ainda se mostra terriacutevel da mesma forma o Impeacuterio muda a todo o
momento de atitude Eacute isto o que daacute agraves perseguiccedilotildees do seacuteculo III um caraacuteter tatildeo diferente das
precedentesrdquo
Assim Marino foi o escolhido naquele momento de paz temporaacuteria Eles tinham
conhecimento da lei que estava em vigor desde a eacutepoca do imperador Trajano (110-111 dC)
quando este determinara ao governador Pliacutenio que os cristatildeos natildeo deveriam ser
sistematicamente perseguidos nem deveriam ser aceitas denuacutencias anocircnimas contra eles
(Gonzaacutelez 1995 64) A recomendaccedilatildeo dada a Pliacutenio havia sido adotada em todo o Impeacuterio
Uma vez acusados entretanto deveriam ser julgados Geralmente os cristatildeos eram levados
19
ao tribunal em decorrecircncia de disputas locais como escrevem Danieacutelou amp Marrou (1966
105)
Conveacutem frisar que natildeo haacute proscriccedilatildeo de cristatildeos pelo poder central quer dizer natildeo haacute perseguiccedilatildeo total Em segundo lugar verificam-se ataques locais movidos pelo povo e depois submetidos agrave apreciaccedilatildeo do magistrado romano () Em terceiro lugar o motivo da perseguiccedilatildeo natildeo se liga a crimes determinados mas unicamente ao lsquonomersquo cristatildeo O levantamento feito por Pliacutenio levara mesmo agrave conclusatildeo de que eram inocentes os cristatildeos
Guignebert (1956 169-70) tambeacutem assinala que apesar de todas as acusaccedilotildees
nenhum crime recaiacutea sobre os cristatildeos
Varias acusaciones de derecho comuacuten se poniacutean en juego al mismo tiempo para agobiar a los fieles religioacuten iliacutecita sociedad secreta lesa majestad negativa de obediencia si se trataba de soldados ignavia es decir negligencia en el cumplimiento de los deberes de la vida puacuteblica y privada y hasta magia Por lo demaacutes estas acusaciones cuando se aplicaban a los cristianos presentaban la singularidad de que se desistia inmediatamente de ellas si el inculpado consentiacutea en decir que renunciaba a su feacute lo que permite suponer que en suma era la religioacuten cristiana solamente lo que se perseguia
Ainda assim os cristatildeos precisavam ser castigados porque ao insistirem na afirmaccedilatildeo
ldquoSou cristatildeordquo rebelavam-se contra os princiacutepios do Impeacuterio especialmente o do culto ao
imperador
Este delito tinha de ser castigado em primeiro lugar porque de outro modo diminuiria a autoridade desses tribunais e em segundo lugar porque ao negarem a adorar o imperador os cristatildeos estavam adotando uma atitude que nesse tempo se interpretava como rebeliatildeo contra a autoridade imperial Com efeito o culto ao imperador era um dos viacutenculos que uniam o Impeacuterio e negar-se em puacuteblico a render esse culto equivalia a romper esse viacutenculo (Gonzaacutelez 1995 66)
Novamente percebe-se o caraacuteter imprevisiacutevel da vida cristatilde Os autores reconhecem
que de uma maneira geral as comunidades cristatildes procuravam levar uma vida exemplar e
submissa agraves leis do Impeacuterio ldquoAs instruccedilotildees de civismo dadas pelos Apoacutestolos continuam a
ser observadas e os cristatildeos mostram-se na sua grande maioria cidadatildeos fieacuteis e devotados ao
bem puacuteblicordquo (Daniel-Rops 1988 345) Poreacutem quando levados a julgamento puacuteblico natildeo
aceitavam prestar culto a outro senhor aleacutem de Cristo
No tocante ao serviccedilo militar as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio nem sempre eram
tatildeo simples Na opiniatildeo de Guignebert (1956 166) isso se dava porque as obrigaccedilotildees
militares geralmente tinham uma forte ligaccedilatildeo com as praacuteticas religiosas pagatildes
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El servicio militar les resultaba odioso porque suponiacutea obligaciones idolaacutetricas y porque execraban la guerra su participacioacuten en el servicio civil les pareciacutea supeacuterflua sobre todo se rehusaban obstinadamente a tomar parte en ninguna de las manifestaciones de lealtad que el gobierno imperial reclamaba porque todas revestiacutean caraacutecter religioso
Do mesmo modo Daniel-Rops (1988 345) relata
casos de objeccedilatildeo de consciecircncia ao serviccedilo militar como acontece com um jovem soldado que exclama ldquoNatildeo me eacute permitido trazer ao pescoccedilo o signum (espeacutecie de placa de identidade usada no exeacutercito romano) porque fui marcado com o sinal de Cristordquo ou com um outro soldado que se recusou a colocar sobre a cabeccedila a coroa ritual dos sacrifiacutecios em honra do imperador Satildeo casos ainda excepcionais mas sintomaacuteticos a oposiccedilatildeo profunda entre Roma e a Igreja tende a passar do plano religioso para o plano ciacutevico e poliacutetico
A intervenccedilatildeo do plano religioso sobre o poliacutetico e vice-versa foi consequumlecircncia da
busca por parte dos romanos de um sistema seguro no qual pudessem se apoiar Com a
decadecircncia poliacutetica econocircmica e moral o nuacutemero de seitas e religiotildees se multiplicava
formando um quadro extremamente pluralista (cf Daniel-Rops 1988 307) Eacute no seacuteculo III
que a dinastia dos Severos se impotildee e juntamente com ela vecircm as tradiccedilotildees religiosas
orientais
El advenimiento con los Severos de principes africanos y sirios la dominacioacuten de mujeres penetradas de la piedade miacutestica de Oriente favorecieron su raacutepido desarollo y el siglo III conocioacute todas sus formas desde las maacutes groseras estrechamente emparentadas com la supersticioacuten pura hasta las maacutes refinadas modeladas pelas reflexiones de la filosofia que desde entonces tenderiacutea hacia lo divino (Guignebert 1956 119)
Neste panorama soacutecio-poliacutetico o cristianismo foi a religiatildeo abraccedilada por muitos
cidadatildeos natildeo soacute ldquotecelotildees pisoeiros e sapateirosrdquo mas tambeacutem ldquoadvogados como Satildeo
Gregoacuterio Taumaturgo ou Satildeo Cipriano de Cartago mulheres da sociedade como Santa
Perpeacutetua grandes burgueses da proviacutencia e lsquoclariacutessimosrsquo de famiacutelias senatoriaisrdquo (Daniel-
Rops 1988 317) Para Guignebert (1956 121) o contato da elite com o cristianismo se deu
essencialmente por meio dos escravos e da filosofia
a traveacutes de los esclavos llegoacute a las mujeres libres sus amas y accidentalmente atrajo la atencioacuten de algunos hombres instruiacutedos que buscaban la verdad divina Gracias a las primeras se insinuoacute en las classes altas gracias a los segundos tomoacute contacto con la filosofia en el curso del siglo II y las consecuencias de este encuentro fueron incalculables
Eacute importante relembrar que a filosofia pressupunha a escrita e tinha um forte viacutenculo
com a literatura Mesmo o cristianismo no seacuteculo III jaacute possuiacutea um consideraacutevel nuacutemero de
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textos apologeacuteticos que dialogavam diretamente com a filosofia grega e possibilitavam para
a elite o acesso agraves ideacuteias cristatildes (cf Alesso 2006 31)
O relato do martiacuterio do soldado Marino surge portanto nesse contexto soacutecio-histoacuterico
como um texto de grande relevacircncia para o cristianismo Primeiro porque o personagem
principal eacute um soldado Integrava o grupo social de maior prestiacutegio nessa eacutepoca Como dizia
Septiacutemio Severo aos seus filhos ldquoEnriquecei o soldado e zombai do restordquo (Daniel-Rops
1988 299) E como no seacuteculo III as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio tomam uma nova
configuraccedilatildeo o contraste entre essas duas instituiccedilotildees eacute um assunto central O embate deixa
de ser apenas religioso e passa a ser tambeacutem poliacutetico - fato que vai se confirmar no seacuteculo
IV
Em segundo lugar a posiccedilatildeo social do maacutertir levanta outra questatildeo Marino como
membro da elite poderia facilmente ter comprado o libellus ndash documento que comprovava o
sacrifiacutecio aos deuses romanos ndash e assim conseguir sua liberdade (cf Silva 2006 248)
Daniel-Rops (1988 367) detalha que os ricos eram mais propensos a comprar falsos
documentos e a desistir ldquoConforme os testemunhos que temos parece que eram sobretudo os
ricos os bem instalados aqueles a quem a vida tinha concedido todo o conforto e que natildeo
estavam dispostos a sacrificaacute-lordquo que renunciavam agrave feacute
Aleacutem de abrir matildeo de sua posiccedilatildeo social e dos privileacutegios que iria obter como
centuriatildeo Marino natildeo se deixou dominar pelo medo a principal razatildeo da apostasia segundo
Daniel-Rops (1988 367) Eacute importante lembrar que a perseguiccedilatildeo sob Deacutecio instaurada em
249 dC ainda era bastante recente Numa tentativa de restaurar a gloacuteria do Impeacuterio Deacutecio
havia promulgado uma lei que obrigava todos os suacuteditos a retomarem o culto aos deuses
romanos Para ele ldquose todos os suacuteditos do Impeacuterio voltassem a adorar os deuses
possivelmente os deuses voltariam a favorecer o Impeacuteriordquo (Gonzaacutelez 1995 138) O culto era
um elemento essencial para os romanos Era por meio dele que expressavam sua
religiosidade como escreve Arnauld (2001 15) ldquoLa lsquopietasrsquo (pieacuteteacute) eacutetait la caracteacuteristique
principale de la religiositeacute romaine () Cette lsquopietasrsquo srsquoexprimait en une observance stricte
des lois rituelles Religion signifiait culterdquo
O descumprimento da lei por parte dos cristatildeos provocou uma perseguiccedilatildeo que teve
como consequumlecircncia um grande nuacutemero de apostasias fato que chegou a causar divergecircncia de
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opiniatildeo entre os bispos Num novo periacuteodo de relativa paz era portanto de suma importacircncia
para a Igreja insistir que os cristatildeos permanecessem firmes em suas convicccedilotildees Como
observa Daniel-Rops (1988 367) ldquoesses periacuteodos de interrupccedilatildeo nas perseguiccedilotildees natildeo
ajudavam em nada a coragem dos fieacuteis durante os tempos de calma a mola distendia-se e
quando subitamente era preciso voltar a entrar em luta muitos se sentiam faltos de energiardquo
Assim o testemunho de Marino evidencia o conflito existente entre a Igreja e o
Impeacuterio e conclama de maneira didaacutetica a que os cristatildeos tenham a mesma disposiccedilatildeo
mesmo diante da possibilidade da apostasia e dos terrores de um novo periacuteodo de perseguiccedilatildeo
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3 TEXTO GREGO
Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου Μαρίνου
Κατὰ τούτους εἰρήνης ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης ἐν Καισαρείᾳ τῆς
Παλαιστίνης Μαρῖνος τῶν ἐν στρατείαις ἀξιώμασι τετιμημένων γένει τε
καὶ πλοὕτῳ περιφανὴς ἀνήρ διὰ τὴν Χριστοῦ μαρτυρίαν τὴν κεφαλὴν
ἀποτέμνεται τοιᾶσδε ἕνεκεν αἰτίας
2 τιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας φασίν
ἑκατοντάρχους γίνεσθαι Τόπου σχολάζοντος ἐπὶ τοῦτο προκοπῆς τὸν
Μαρῖνον ἡ τοῦ βαθμοῦ τάξις ἐκάλει ἤδη τε μέλλοντα τῆς τιμῆς ἔχεσθαι
Παρελθὼν ἄλλος πρὸ τοῦ βήματος μὴ ἐξεῖναι μὲν ἐκείνῳ τῆς Ῥωμαίων
μετέχειν ἀξίας κατὰ τοὺς παλαιοὺς νόμους Χριστιανῷ γε ὄντι καὶ τοῖς
βασιλεῦσι μὴ θύοντι κατηγόρει αὐτῷ δὲ ἐπιβάλλειν τὸν κλῆρον
3 ἐφ᾿ ᾧ κινηθέντα τὸν δικαστὴν (Ἀχαιὸς οὕτος ἧν) πρῶτον μὲν ἐρέσθαι
ποίας ὁ Μαρῖνος εἴη γνώμης ὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν ἐπιμόνως
ἑώρα τριῶν ὡρῶν ἐπιδοῦναι αὐτῷ εἰς ἐπίσκεψιν διάστημα
4 ἐκτὸς δῆτα γενόμενον αὐτὸν τοῦ δικαστηρίου Θεότεκνος ὁ τῇδε
ἐπίσκοπος ἀφέλκει προσελθὼν δι᾿ ὁμιλίας καὶ τῆς χειρὸς λαβὼν ἐπὶ τὴν
ἐκκλησίαν προάγει εἴσω τε πρὸς αὐτῷ στήσας τῷ ἁγιάσματι μικρόν τι
παραναστείλας αὐτοῦ τῆς χλαμύδος καὶ τὸ προσηρτημένον αὐτῷ ξίφος
ἐπιδείξας ἅμα τε ἀντιπαρατίθησι προσαγαγὼν αὐτῷ τὴν τῶν θείων
εὐαγγελίων γραψήν κελεύσας τῶν δυοῖν ἑλέσθαι τὸ κατὰ γνώμην ὡς δ᾿
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ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν
ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς
αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης
5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ
δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ
δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν
ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται
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4 TRADUCcedilAtildeO
O martiacuterio do Santo Marino
1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares
em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido
honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por
todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu
testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte
2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a
conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a
ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo
Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e
declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e
portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos
romanos Assim o cargo cairia para si
3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou
primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele
insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs
horas para refletir
4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era
bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela
matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando
um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo
tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos
exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem
hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas
ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno
ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo
5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para
o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se
apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute
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imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre
o seu fim
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5 COMENTAacuteRIOS
51 OS PERSONAGENS
Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em
um ponto da estrutura
Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola
Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal
familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute
exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um
homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos
movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do
texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave
autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado
guerreiro
O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo
dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo
para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A
denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma
preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega
Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o
exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees
do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio
militar portanto tinha um significado muito grande
Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas
informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou
compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem
disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo
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Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na
quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado
provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era
seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para
conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial
para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve
como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)
O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para
anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo
de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos
outros personagens no texto
52 ESTRUTURA
O texto pode ser subdividido em 5 partes
(i) Marino o soldado cristatildeo
A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no
espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo
A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de
captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a
expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo
(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo
A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio
narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo
apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal
(iii) Marino e o juiz a confissatildeo
A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente
que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir
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(iv) Marino e o bispo a decisatildeo
Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de
Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem
palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a
espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe
a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras
(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo
Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo
Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte
53 TEMPO E ESPACcedilO
O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto
para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης
ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor
Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e
a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII
12)
A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que
Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em
todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto
o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se
deram de maneira muito raacutepida
Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia
na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no
entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes
contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o
Cristianismo
30
O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno
poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por
Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo
tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito
cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera
propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz
que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os
sofrimentos corporais
Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte
54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS
O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de
diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um
detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga
essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de
martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)
Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte
A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da
distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no
entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor
31
A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra
no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios
desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica
Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com
Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma
narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute
portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a
noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007
8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente
engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo
No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no
uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo
εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por
ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento
por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann
2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que
eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega
amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e
decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo
do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio
ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento
emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado
comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como
afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva
de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a
forte presenccedila do aspecto emotivo
A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para
enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou
ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops
(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma
32
medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te
apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo
Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila
Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte
pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o
caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o
representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute
o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar
Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel
seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os
espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo
Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na
hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops
(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo
obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo
O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino
se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua
decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo
que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar
O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma
meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior
sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O
adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez
Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num
texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e
ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς
πίστεως τὴν προθυμίαν
Assim temos
33
Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)
darrdarrdarrdarr
Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo
darrdarrdarrdarr
Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo
O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas
uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado
pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν
ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente
detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita
conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui
coerecircncia ao texto
Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)
destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura
feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que
todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou
seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica
fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e
estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha
havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois
poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo
34
sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser
adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um
antagonismo fundamentalrdquo
O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de
Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo
substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo
ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos
esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no
texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino
Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos
durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e
por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que
a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino
Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη
ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto
o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων
o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος
o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις
o substantivo εἰρήνη
o substantivo μαρτυρία
Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e
formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado
35
A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes
por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)
honra romana (τιμή)
vide (κλῆμα)
centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)
reconhecimento passageiro e
terreno (ἀξιώμασι
τετιμημένων )
honra cristatilde (τιμή)
paz (εἰρήνη)
maacutertir (μάρτυρ)
reconhecimento eterno e divino
(τελειοῦται)
O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria
honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o
argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado
explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos
versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω
ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o
objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας
φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo
Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o
ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ
τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela
feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)
36
Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha
pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento
terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo
ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na
comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o
cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)
Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito
mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp
Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo
por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute
essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto
O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por
exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer
voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do
termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que
ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to
the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις
Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de
um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados
Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor
menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A
acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os
personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado
numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo
de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute
em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz
37
como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da
acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade
interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se
constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio
por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os
imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao
registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o
mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)
A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das
intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que
como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos
entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo
38
CONCLUSAtildeO
O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e
produtivo sob vaacuterios aspectos
Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual
gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A
percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a
ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os
primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma
instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na
literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um
pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os
cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo
- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura
No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do
texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico
durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e
consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa
ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias
da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna
centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o
posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos
fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento
A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se
compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao
bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se
mostrar complacente
39
Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os
cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de
sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem
como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como
um substituto aos espetaacuteculos romanos
Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave
plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos
Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o
que deu origem ao culto dos santos
Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda
precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos
possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados
ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται
presente no texto traduzido e em outros relatos
Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais
utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e
posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma
melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande
auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo
cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade
proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses
novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde
40
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43
ANEXOS
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)
[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1
1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em
Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um
tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua
linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte
2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles
que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o
escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a
honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo
as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que
era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a
ele
3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a
Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que
era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse
4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e
afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma
vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o
manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e
contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as
duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a
direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -
manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que
escolheste Vai em pazrdquo
1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu
este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer
casos como o de Marino [nota do Editor]
44
5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de
novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado
Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua
feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado
45
TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)
During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in
Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and
was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It
came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour
and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and
according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he
was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and
attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and
should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to
the ancient laws but that instead the post should fall to himself
It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he
first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed
that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had
Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside
in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed
Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword
attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it
before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out
his right hand and took the divine writings
lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him
may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo
No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the
tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and
showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to
execution and so found his fulfilment
4
SUMAacuteRIO
RESUMO 5
INTRODUCcedilAtildeO 6
1 GEcircNERO LITERAacuteRIO 9
11 LITERATURA CRISTAtilde E LITERATURA PAGAtilde 9
12 AS CARACTERIacuteSTICAS LITERAacuteRIAS FORMAIS 14
2 CONTEXTO SOacuteCIO-HISTOacuteRICO 18
3 TEXTO GREGO 23
4 TRADUCcedilAtildeO 25
5 COMENTAacuteRIOS 27
51 OS PERSONAGENS 27
52 ESTRUTURA 28
53 TEMPO E ESPACcedilO 29
54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS 30
CONCLUSAtildeO 38
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS 40
ANEXOS 43
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005) 43
TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000) 45
5
RESUMO
Este trabalho aborda as origens e caracteriacutesticas do gecircnero literaacuterio denominado biacuteos hagiograacutefico amplamente utilizado pelo Cristianismo nos seacuteculos II a IV dC Verifica-se que esse gecircnero geralmente escrito em forma de relatos de martiacuterios servia a vaacuterios propoacutesitos (i) para divulgar a feacute (ii) para o ensino dos fieacuteis e (iii) para oferecer aos cristatildeos uma literatura proacutepria substituindo assim a literatura e arte pagatildes
Aleacutem disso este trabalho tem o propoacutesito de traduzir e analisar um texto escrito em grego koineacute ldquoO martiacuterio do soldado Marinordquo que relata a trajetoacuteria de um cristatildeo acusado e morto por sua feacute em meados do seacuteculo III dC A anaacutelise deu prioridade ao estudo dos elementos linguumliacutesticos - tais como os itens lexicais e os tempos verbais Tais elementos correlacionados agraves informaccedilotildees do contexto soacutecio-histoacuterico indicaram que o impasse pessoal vivido por Marino refletiu um embate muito maior e de dimensotildees sociais profundas a disputa pelo poder entre Igreja e Estado Romano Verificamos que o autor contrapotildee esses dois poderes de maneira intencional destacando o ponto de vista cristatildeo
Palavras-chave gecircnero biacuteos hagiograacutefico literatura cristatilde Impeacuterio Romano grego koineacute
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INTRODUCcedilAtildeO
A intenccedilatildeo deste trabalho eacute resgatar um gecircnero literaacuterio ao qual se tem dado pouca
atenccedilatildeo no Brasil a saber os relatos de martiacuterios cristatildeos Muitos desses martiacuterios ocorridos
entre os seacuteculos II e IV dC foram registrados em liacutengua grega ou latina e ainda carecem de
um estudo mais pormenorizado que identifique tanto as caracteriacutesticas literaacuterias quanto as
linguumliacutesticas
Nesta pesquisa destacar-se-aacute o relato grego de um soldado chamado Marino que apoacutes
ter sido acusado de natildeo observar as leis romanas perdeu o direito de se tornar centuriatildeo e foi
decapitado
Aleacutem de estabelecer uma traduccedilatildeo da liacutengua grega para a portuguesa tem-se como
objetivo definir neste trabalho a qual gecircnero literaacuterio o relato de martiacuterio do soldado Marino
pertence Para tanto seratildeo utilizados os trabalhos jaacute realizados na aacuterea da hagiografia e da
martirologia e tambeacutem os paracircmetros da literatura claacutessica
Tendo como pressuposto que os relatos de martiacuterio ndash martyria ndash formam um conjunto
literaacuterio especiacutefico e que natildeo haacute literatura neutra procurar-se-aacute avaliar o impacto causado por
esses textos na sociedade romana da eacutepoca e como eles lidam com as diferenccedilas morais e
religiosas entre cristatildeos e natildeo cristatildeos
Conforme nos eacute informado pelos relatos histoacutericos o Cristianismo permaneceu uma
religio ilicita ateacute o reinado de Constantino no seacuteculo IV Durante os seacuteculos anteriores a
situaccedilatildeo dos cristatildeos era relativamente fraacutegil do ponto de vista poliacutetico Ora eram acusados
pelo povo ora protegidos pelas leis Todo esse quadro de instabilidade certamente se refletia
na literatura e alcanccedilava de alguma maneira os leitores Assim por vezes os cristatildeos
recorriam agraves ideacuteias filosoacuteficas para se protegerem dos ataques externos por vezes aos
princiacutepios cristatildeos para se manterem unidos e confiantes diante de uma possiacutevel perseguiccedilatildeo
individual ou em massa Por essa razatildeo seratildeo discutidas a partir do texto selecionado as
funccedilotildees assumidas por esse tipo de literatura e as estrateacutegias utilizadas pelo autor para
cumprir tais funccedilotildees Para tanto seratildeo focalizados o contexto soacutecio-histoacuterico em que a morte
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de Marino se deu e os elementos linguumliacutesticos agrave disposiccedilatildeo no texto para a realizaccedilatildeo dessa
anaacutelise
O estudo da literatura cristatilde mostra-se portanto fundamental para o entendimento do
pensamento e da cultura natildeo soacute introduzida pela comunidade cristatilde mas tambeacutem da sociedade
romana como um todo Afinal a propagaccedilatildeo do Cristianismo se deu - com perseguiccedilatildeo ou
sem perseguiccedilatildeo - durante o periacuteodo do Impeacuterio romano e por meio das liacutenguas de cultura da
eacutepoca primeiramente o grego e depois tambeacutem o latim Natildeo haacute portanto como analisar a
literatura e a liacutengua utilizadas por essa comunidade sem levar em conta ao mesmo tempo as
ideologias filosofias costumes e sistemas sociais poliacuteticos e econocircmicos que norteavam o
Impeacuterio romano
Por fim eacute importante ressaltar que a anaacutelise individualizada desses textos contribui
para o aprofundamento das metodologias e escolhas utilizadas pelos autores muitas vezes
anocircnimos Esse tipo de anaacutelise permite uma melhor compreensatildeo do uso da liacutengua nessa
eacutepoca Permite tambeacutem a comparaccedilatildeo entre os textos e auxilia na verificaccedilatildeo de questotildees
como Ateacute que ponto os relatos de diversos maacutertires produzidos por autores distintos e em
lugares diferentes podem ser correlacionados Havia uma linguagem proacutepria dos cristatildeos
Quais os itens lexicais mais utilizados O valor semacircntico desses itens era o mesmo para
cristatildeos e natildeo cristatildeos
O texto grego utilizado neste trabalho foi o publicado por Musurillo (2000) Para a
traduccedilatildeo foram consultados os seguintes dicionaacuterios
BAIILY A Dictionnaire Grec-Franccedilais Paris Hachette 1950
GINGRICH Wilburg amp DANKER Frederick Leacutexico do Novo Testamento Grego-
Portuguecircs Traduccedilatildeo Juacutelio PT Zabatiero Satildeo Paulo Vida Nova 1993
LAMPE Geoffrey WH A Patristic greek lexicon Oxford Clarenton Press 2000
LIDDELL H SCOTT R Greek-English Lexicon Abridged Simon Wallenberg
Press 2007
SOPHOCLES EA Greek lexicon of the Roman and Byzantine Periods from BC 146
to AD 1100 ndash part one New York Charles Scribnerrsquos Sons 1900
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Em anexo encontram-se duas outras traduccedilotildees para o relato de martiacuterio de Marino a
de Musurillo (2000) para a liacutengua inglesa e a de Fischer (2005) para a liacutengua portuguesa
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1 GEcircNERO LITERAacuteRIO
O objetivo deste capiacutetulo eacute classificar e compreender o gecircnero literaacuterio no qual os
relatos de martiacuterio estatildeo inseridos
A primeira observaccedilatildeo que precisa ser feita a respeito dos relatos de martiacuterio eacute que a
leitura empreendida neste trabalho tem como pressuposto o ponto de vista literaacuterio Ou seja
natildeo se tem a intenccedilatildeo de discutir a veracidade dos fatos histoacutericos relatados ou de se fazer um
estudo criacutetico no sentido de discernir o que eacute histoacuteria do que eacute ficccedilatildeo Ateacute mesmo porque
conforme escreve Musurillo (2000 liv) a linha entre histoacuteria e ficccedilatildeo nesse tipo de texto eacute
muito tecircnue
A classificaccedilatildeo do gecircnero ao qual pertencem os relatos de martiacuterio pode ser feita por
duas vias distintas Pela primeira partimos dos mais variados tipos de textos de diferentes
eacutepocas com o intuito de por meio da comparaccedilatildeo entre as caracteriacutesticas formais enquadraacute-
los a um determinado gecircnero Pela segunda contrastamos textos de cunho cristatildeo - escritos
por autores nomeadamente cristatildeos com o objetivo de divulgar a sua feacute ndash aos de cunho natildeo-
cristatildeo Essas duas vias satildeo levadas em consideraccedilatildeo neste capiacutetulo comeccedilando pela segunda
a comparaccedilatildeo entre a literatura cristatilde e a natildeo-cristatilde
11 LITERATURA CRISTAtilde E LITERATURA PAGAtilde
A contraposiccedilatildeo entre literatura cristatilde e natildeo-cristatilde eacute um ponto fundamental para a
questatildeo do gecircnero natildeo soacute dos relatos de martiacuterio mas tambeacutem para todos os outros tipos de
textos escritos durante os primeiros seacuteculos da era cristatilde Isso porque durante os seacuteculos II a
IV dC o Cristianismo busca sua afirmaccedilatildeo como religiatildeo e filosofia utilizando-se em
grande medida da escrita
Alesso (2006 24) explica que eacute a partir do seacuteculo II que o Cristianismo se organiza
para enfrentar problemas internos como ldquoas acusaccedilotildees de heresia lutas pelo poder perigos de
cisma e controveacutersias teoloacutegicasrdquo A organizaccedilatildeo tambeacutem se fez necessaacuteria para enfrentar os
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ataques externos o que resultou na apresentaccedilatildeo das ideacuteias cristatildes de modo filosoacutefico em
textos bem elaborados e com caracteriacutesticas semelhantes aos da cultura da eacutepoca
Los discursos de los obispos y letrados defensores del cristianismo no podiacutean ser espontaacuteneos ni livianos cuando se trataba de responder a las criacuteticas y a la difamacioacuten de enemigos tan ilustrados como ellos No bastaba la elocuencia entusiasta habiacutea que ordenar las ideas en lo molde de recursos avalados por el prestigio de siglos en los geacuteneros discursivos que los doctos habiacutean aprendido e internalizado desde su maacutes tierna formacioacuten heleniacutestica
Assim depreende-se que a literatura cristatilde destes primeiros seacuteculos visava atender
duas necessidades principais o ensino para manter a coesatildeo do puacuteblico interno e a apologia
que procurava defender a feacute diante do puacuteblico externo
Os escritos apologeacuteticos dialogavam de maneira direta com a filosofia grega e eram
escritos geralmente por bispos que viviam em grandes centros urbanos como Justino o
maacutertir Oriacutegenes Teoacutefilo e Tertuliano Por essa razatildeo tais discussotildees permaneciam muitas
vezes entre a elite natildeo chegando ao puacuteblico em geral (cf Alesso 2006 31) Desde muito
cedo portanto surge uma divisatildeo natural de destinataacuterios na literatura cristatilde enquanto alguns
textos eram escritos e dirigidos a leitores cultos outros textos tinham como puacuteblico-alvo o
povo
Para Alesso (2006 29-30) essa divisatildeo eacute claramente percebida quando do surgimento
do gecircnero biacuteos ldquoEl geacutenero biacuteos que tendriacutea entonces en principio como destinatario a un
lector cultivado se cumple tambieacuten en un subgeacutenero de corte popular las vidas ejemplaresrdquo
Eacute o gecircnero biacuteos que estabelece de fato em meados do seacuteculo IV a hagiografia - a biografia
que relata a vida de um santo - como um modelo literaacuterio a ser seguido pelos escritores
cristatildeos especialmente pelo movimento monaacutestico Segundo Moreschini amp Norelli (2000
511) a hagiografia foi com o tempo aproximando-se cada vez mais da biografia pagatilde Para
eles a relaccedilatildeo entre cristianismo e paganismo ldquoocorreu com todas as demais formas literaacuterias
cristatildesrdquo porque ldquopraticadas por pessoas que tiveram em comum com os pagatildeos os mestres as
escolas e as leiturasrdquo Tal fato reforccedila ainda mais a divisatildeo entre leitores que tinham acesso agrave
educaccedilatildeo formal daqueles que natildeo a tinham
As pessoas destituiacutedas de uma introduccedilatildeo agraves teorias filosoacuteficas e teoloacutegicas eram
atendidas em grande parte pelas leituras de relatos de martiacuterios ao que Alesso chama de ldquolas
vidas ejemplaresrdquo Os relatos eram lidos durante as celebraccedilotildees cristatildes tornando-se parte da
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liturgia do culto Eram lembrados tambeacutem pela comunidade local por ocasiatildeo do aniversaacuterio
do maacutertir quando o povo se reunia em torno do tuacutemulo ou fazia peregrinaccedilotildees ateacute ele (cf
Musurillo 2000 lvi Moreschini amp Norelli 2000 297)
Os relatos de martiacuterios (acta passiones e martyria) no entanto formam entre si um
gecircnero especiacutefico Aleacutem disso conteacutem elementos que antecedem e prenunciam a formaccedilatildeo da
hagiografia Satildeo denominados por Moreschini amp Norelli (2000 511) de ldquohagiografia
primitivardquo O costume de narrar a prisatildeo o sofrimento e a morte de um cristatildeo explicam esses
autores apareceu ldquoquase contemporaneamente em lugares diferentes da cristandade em
formas diversas e com ascendecircncias e caracteriacutesticas ideoloacutegicas variadas o gecircnero literaacuterio
como tal se constitui progressivamente pelo desenvolvimento e pelas reciacuteprocas relaccedilotildees dos
textosrdquo
O modelo de narrativa dos maacutertires cristatildeos remonta na verdade aos relatos
encontrados na Biacuteblia como o martiacuterio de Estevatildeo (Atos dos Apoacutestolos 7) de Tiago (At 12)
e aos sofrimentos de Paulo (At 14) O modelo central poreacutem eacute o proacuteprio Jesus cuja vida eacute
narrada pelos Evangelhos Note-se que a ecircnfase dos Evangelhos natildeo eacute narrar todos os
acontecimentos biograacuteficos mas destacar os sofrimentos de Cristo desde seu nascimento
como por exemplo a perseguiccedilatildeo de Herodes ateacute sua crucificaccedilatildeo
Ainda que os relatos cristatildeos tenham tido como modelo textos pagatildeos tema discutido
por Delehaye (1966) Berger (1998) e Uytfanghe (1993) foi o Cristianismo que disseminou e
divulgou esse tipo de literatura Delehaye (1966 113-125) assinala que haacute vaacuterias diferenccedilas
entre os relatos dos maacutertires pagatildeos Alexandrinos e os relatos dos maacutertires cristatildeos Uma
delas se encontra na motivaccedilatildeo para o martiacuterio ldquoIci nous voyons des hommes qui meurent
pour leurs convictions et agrave qui il suffirait drsquoun mot ou drsquoun geste pour reconqueacuterir la liberteacute
Lagrave on nous presente les chefs drsquoune faction politique qui deacutefendent au prix de leur vie leur
programme et leurs actes et qui perdent la partierdquo (1966 124) E para Uytfanghe (1993 174)
caracteriacutesticas como humildade amor e perdatildeo natildeo satildeo encontradas em maacutertires pagatildeos
como Soacutecrates e Secircneca Jaacute nos cristatildeos elas estatildeo presentes de maneira radical
De uma forma geral os autores concordam que a formaccedilatildeo de um gecircnero a partir dos
relatos de martiacuterio e sua posterior propagaccedilatildeo pelos cristatildeos natildeo tinham uma intenccedilatildeo uacutenica
pelo contraacuterio vecirc-se nesses textos uma intenccedilatildeo multifacetada Para Musurillo (2000 liv-
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lvii) os relatos de martiacuterio exerciam pelo menos trecircs funccedilotildees a primeira era a funccedilatildeo
histoacuterica jaacute que tanto os Evangelhos como os Atos dos Apoacutestolos e os martyria baseavam-se
em fatos histoacutericos A segunda era a apologeacutetica isto eacute a afirmaccedilatildeo da feacute cristatilde diante do
mundo E por uacuteltimo a funccedilatildeo de ensino Uytfanghe (1993 173-175) observa que por meio
desses relatos os cristatildeos eram encorajados a permanecerem firmes nas suas crenccedilas e a
cultivarem uma vida santa e asceacutetica O maacutertir se tornava assim um modelo a ser seguido E
o cristatildeo ndash literalmente o seguidor de Cristo - dava continuidade aos ensinos e agrave vida de
Jesus o qual afirmou ldquoLembrem-se das palavras que eu lhes disse Nenhum escravo eacute maior
do que o seu senhor Se me perseguiram tambeacutem perseguiratildeo vocecircsrdquo (Evang Joatildeo 1520)
Aleacutem desses trecircs aspectos a formaccedilatildeo de um corpus literaacuterio cristatildeo era de grande
interesse para a Igreja na medida em que oferecia ao puacuteblico cristatildeo a cada dia maior uma
nova opccedilatildeo cultural Conforme o registro que possuiacutemos no escrito Os Espetaacuteculos do bispo
Tertuliano de Cartago os cristatildeos eram aconselhados a natildeo frequumlentarem os teatros e os
circos nem assistirem aos combates de gladiadores ldquoMas eles percebem que algueacutem se fez
cristatildeo sobretudo pelo fato de evitar os espetaacuteculosrdquo (De spect 243)
Tertuliano posicionou-se fortemente contra a participaccedilatildeo dos cristatildeos nos espetaacuteculos
promovidos pelos teatros circos e arenas porque aleacutem de possuiacuterem uma ligaccedilatildeo com algum
deus grego ou romano - e portanto promoverem a idolatria - evidenciavam a incoerecircncia da
sociedade romana ldquosoacute ali [no teatro] tem curso e aplauso o que em qualquer outra parte se
reprovardquo (De spect 171) Assim argumenta ldquoConvencidos ficamos que por nenhum lado
nos fica bem laacute ir noacutes que por duas vezes renunciamos aos iacutedolosrdquo (De spect 13 1) Para
Tertuliano o homem eacute imagem e semelhanccedila de Deus e por essa razatildeo natildeo deveria
corromper sua alma e corpo
O certo eacute que natildeo nos foram dados os olhos para os entregar agrave concupiscecircncia nem a liacutengua para a maledicecircncia nem os ouvidos para sorvedouro de murmuraccedilotildees nem o paladar para poccedilo de gula o ventre para dar seguimento agrave mesma gula os oacutergatildeos genitais para excessos de impureza as matildeos para estrangular o proacuteximo os peacutes para vagabundear natildeo se nos infundiu a alma ateacute as entretelas do corpo para vir a ser um recesso de ciladas e de embustes e de iniquumlidades (De spect 210)
Os prazeres cultivados pela sociedade romana deveriam portanto ser abandonados e
substituiacutedos Para Tertuliano o cristatildeo natildeo tinha necessidade de espetaacuteculos pois desfrutava
dos prazeres (voluptates) proacuteprios agrave sua feacute Seus argumentos satildeo os seguintes
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Que melhor alegria que a que promana da reconciliaccedilatildeo com Deus Pai Nosso Senhor do conhecimento da verdade de reconhecer os erros do perdatildeo de tantos pecados da passada vida Que maior prazer que o asco do proacuteprio prazer que a consciecircncia pura que a vida sem ambiccedilotildees e o destemor da morte Pisar aos peacutes os deuses dos gentios expelir os democircnios curar doentes informar-te da verdade revelada viver para Deus aiacute estatildeo as alegrias satildeo esses os espetaacuteculos santos dos cristatildeos os espetaacuteculos perpeacutetuos por que se natildeo paga nada (De spect 29 1-3)
O bispo continua a explanaccedilatildeo de suas ideacuteias afirmando que os cristatildeos natildeo possuem o
teatro mas tecircm boa literatura natildeo possuem os combates de gladiadores mas tecircm as lutas pela
feacute e pela castidade natildeo possuem o sangue das arenas mas tecircm o sangue de Cristo ldquoSe o
palavreado cecircnico eacute divertido natildeo temos falta de boas letras temos versos a rodos e
pensamentos bem cunhados nada se diga de cacircnticos e vozes do melhor metal em vez de
faacutebulas temos verdades em vez de embustes a lisura mais declaradardquo (De spect 294)
A defesa e a valorizaccedilatildeo de uma literatura proacutepria aos cristatildeos eacute um elemento
extremamente importante para a propagaccedilatildeo dos relatos de martiacuterio porque conforme visto
acima esse tipo de texto entrou em circulaccedilatildeo como um substituto agraves encenaccedilotildees teatrais
Assim os martyria ajudaram a constituir um corpus literaacuterio cristatildeo que se tornou um
instrumento de poder para a Igreja
Como observa Fox (1996 130) os maacutertires compartilhavam juntamente com os
bispos e visionaacuteriosprofetas um lugar privilegiado na comunidade ldquoAmong Christians
before Constantine power was attribute of three particular groups it was achieved by
visionaires it was ascribed to martyrs and confessors it was vested above all in bishops
Literacy assisted the exercise of power by all threerdquo Os integrantes desses trecircs grupos natildeo
apenas eram admirados mas tidos como autoridades Os bispos por exemplo eram
considerados por Inaacutecio de Antioquia como ldquoos representantes de Deus na Igrejardquo
(Guignebert 1956 137) Por isso os escritos ou discursos proferidos por esses trecircs grupos
eram recebidos na maioria das vezes como proacutepria palavra de Deus fator que atribuiacutea um
poder ainda maior aos textos Para Fox (1996 129) ldquothis combination of sacred text and an
increasingly standardised pattern of authority make the early Church a unique subject for
studies of literacy and powerrdquo
Como um gecircnero da literatura cristatilde os relatos de martiacuterio tambeacutem serviram para a
manutenccedilatildeo e a transmissatildeo da ideologia cristatilde nos primeiros seacuteculos do Cristianismo
conforme escreve Alesso (2006 34-35)
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Los geacuteneros en todas sus formas y subformas son el suporte estructural para la transmisioacuten de un ideario y lo fueron de modo especial en el trasvase de los contenidos que provenientes de la antiguumledad se imbricaron en el cristianismo de los Padres Aunque su relacioacuten com la criacutetica sociohistoacuterica es marginal los geacuteneros son indudables portadores de significacioacuten cuando interesan a la evolucioacuten de paraacutemetros poliacutetico culturales que intervinieran en la construccioacuten del edificio ideoloacutegico de la teologiacutea cristiana
O fortalecimento da literatura cristatilde foi enfim um fator essencial para a difusatildeo do
Cristianismo porque ajudou a organizaacute-lo como instituiccedilatildeo Por meio da literatura o
Cristianismo conseguiu alcanccedilar pessoas de todos os lugares e de todas as classes sociais
inclusive as pertencentes agrave elite que conforme Daniel-Rops (1988 305) sentiam o decliacutenio
do Impeacuterio que chegava ateacute mesmo ao acircmbito literaacuterio e artiacutestico
12 AS CARACTERIacuteSTICAS LITERAacuteRIAS FORMAIS
Quanto agraves caracteriacutesticas formais que podem ser levadas em conta para a classificaccedilatildeo
do gecircnero os relatos de martiacuterio mesclam traccedilos tanto do gecircnero biograacutefico quanto do
discurso hagiograacutefico
Os relatos de martiacuterio natildeo podem ser classificados categoricamente como biacuteoi pois
natildeo chegam a constituir uma biografia de fato Tambeacutem natildeo podem ser classificados como
hagiografia em sentido exclusivo porque como afirma Delehaye (apud Uytfanghe 1993
146) esta eacute muito abrangente inclui ldquotodo documento escrito inspirado pelo culto dos santos
e destinado a promovecirc-lordquo Assim o que se verifica eacute um entrecruzamento de gecircneros Isso
ocorre porque os gecircneros satildeo como afirma Alesso (2006 29) sistemas abertos ldquolas
invariantes coexisten con las variables y no podemos condenarlos y condenarnos a una
esquematizacioacuten extrema porque perderiacuteamos de vista uno de los objetivos primordiales la
finalidad del contenidordquo Por essa razatildeo adotamos neste trabalho a definiccedilatildeo biacuteos
hagiograacutefico introduzida por Ipiranga Juacutenior (2006 9)
Segundo Momigliano (1971 25) os gregos jaacute possuiacuteam o haacutebito de redigir biografias
no seacuteculo V aC mas foi no periacuteodo heleniacutestico que ele se intensificou e o gecircnero recebeu um
nome especiacutefico ldquobien qui nous conaissions lrsquoexistence de biographies et peut-ecirctre
drsquoautobiographies degraves le cinquiegraveme siegravecle avant JC crsquoest seulement agrave lrsquoeacutepoque helleacutenistique
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que la biographie devient une notion precise et acquiert un nom en propre Ce nome est lsquobiosrsquo
ndash et non lsquobiographiarsquordquo
Para Bakhtin (2003 138) entretanto a biografia como romance surgiu apenas no fim
da Idade Meacutedia Durante os seacuteculos II-IV dC ainda era uma forma literaacuteria em formaccedilatildeo
Mesmo tendo em mente a distacircncia cronoloacutegica entre os martyria e o romance biograacutefico ao
qual Bakhtin se refere eacute possiacutevel perceber semelhanccedilas entre os dois
A primeira delas eacute a presenccedila do heroacutei com valores do tipo bravura honradez
magnanimidade e generosidade (cf Bakhtin 2003 142 147) Ao abrir matildeo de posiccedilotildees
poliacuteticas e religiosas ao enfrentar perigos sofrimentos torturas e feras sem renunciar agrave feacute o
maacutertir eacute visto como um heroacutei pela comunidade cristatilde Ele ldquotorna-se uma espeacutecie de ponto
focal da vida da comunidade que o circunda de veneraccedilatildeo considerando-o jaacute em contato com
Deus capaz de profetizar e de pronunciar-se com uma autoridade especial tambeacutem sobre
questotildees eclesiaacutesticasrdquo (Moreschini amp Norelli 2000 297) Morrer por sua feacute eacute o ato supremo
de glorificaccedilatildeo para os primeiros cristatildeos E eacute por meio dessa glorificaccedilatildeo de acordo com as
palavras de Bakhtin (2003 143) que o heroacutei consegue alcanccedilar a consciecircncia de uma
determinada sociedade incutindo assim novos valores
A aspiraccedilatildeo agrave gloacuteria organiza a vida do heroacutei ingecircnuo a gloacuteria organiza tambeacutem a narraccedilatildeo da sua vida sua glorificaccedilatildeo Aspirar agrave gloacuteria eacute tomar consciecircncia de si na sociedade culta e histoacuterica dos homens (ou na naccedilatildeo) eacute afirmar e construir sua vida na possiacutevel consciecircncia dessa sociedade humana eacute crescer natildeo em si nem para si mas nos outros ou para os outros eacute ocupar um lugar no mundo imediato dos contemporacircneos e descendentes
A segunda semelhanccedila detectada entre os gecircneros biograacutefico e biacuteos hagiograacutefico eacute a
relaccedilatildeo de empatia que se estabelece entre autor-personagem Segundo Bakhtin (2003 150)
autor e personagem compartilham obrigatoriamente os mesmos valores ldquona biografia o
autor natildeo soacute combina com a personagem na feacute nas convicccedilotildees e no amor mas tambeacutem em
sua criaccedilatildeo artiacutestica (sincreacutetica) tomando como guia os mesmos valores que a personagem
em sua vida esteacuteticardquo Embora o autor do martiacuterio do soldado Marino natildeo seja explicitado eacute
possiacutevel inferir pelo texto que o interesse de registrar o fato tenha partido natildeo de algueacutem que
simplesmente compartilhava com ele a situaccedilatildeo de soldado do exeacutercito romano mas sim de
algueacutem que dividia os mesmos valores cristatildeos
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Quanto agrave modalidade do romance a relaccedilatildeo entre os gecircneros biacuteos hagiograacutefico e
biograacutefico tambeacutem eacute possiacutevel Bakhtin (2003 205) identifica quatro modelos de romance
ldquosegundo o princiacutepio de construccedilatildeo da imagem da personagem central o romance de viagens
o romance de provaccedilatildeo da personagem o romance biograacutefico (autobiograacutefico) o romance de
educaccedilatildeordquo Ora por ser um gecircnero hiacutebrido a personagem principal do biacuteos hagiograacutefico
mescla caracteriacutesticas tanto do romance de provaccedilatildeo quanto do romance biograacutefico
Para Bakhtin (2003 207) o romance de provaccedilatildeo divide-se em duas modalidades ldquoA
primeira modalidade eacute representada pelo romance grego (A Etioacutepica Leucipo e Cleitofon
etc) A segunda modalidade eacute representada pelas hagiografias do iniacutecio do cristianismo
(particularmente dos maacutertires)rdquo O objetivo das provaccedilotildees neste tipo de romance eacute mudar a
opiniatildeo e os valores do heroacutei Como nos relatos de martiacuterio os cristatildeos natildeo renunciam a sua
feacute natildeo haacute mutabilidade Logo o maacutertir aproxima-se do conceito de heroacutei da provaccedilatildeo ele ldquoeacute
acabado e predeterminado as experimentaccedilotildees (sofrimentos seduccedilotildees duacutevidas) natildeo se
tornam para ele uma experiecircncia formadora nem a modificam e nessa imutabilidade da
personagem estaacute toda questatildeordquo (Bakhtin 2003 209)
Aleacutem disso no romance de provaccedilatildeo o personagem eacute o centro Natildeo importam os
costumes ou lugares exoacuteticos como no romance de viagens O personagem natildeo eacute modificado
de forma determinante pelo mundo nem o modifica
Entre o heroacutei e o mundo natildeo existe interaccedilatildeo autecircntica o mundo natildeo eacute capaz de mudar o heroacutei ele apenas o experimenta e o heroacutei natildeo influencia o mundo natildeo lhe muda a face ao passar pela provaccedilatildeo ao afastar seus inimigos etc o heroacutei deixa no mundo tudo nos seus lugares natildeo modifica a face social do mundo natildeo o reconstroacutei e aliaacutes nem tem essa pretensatildeo (Bakhtin 2003 212)
Eacute exatamente esta a situaccedilatildeo observada no texto em anaacutelise A crise pela qual passa o
personagem Marino natildeo eacute capaz de alterar suas convicccedilotildees nem de mudar o curso normal dos
acontecimentos agrave parte de sua vida o exeacutercito continuaraacute existindo uma outra pessoa tomaraacute
o seu lugar e tudo continuaraacute funcionando sob os mesmos princiacutepios
Quanto ao romance biograacutefico Bakhtin (2003 213) considera que assim como o
romance de provaccedilatildeo ele ldquoeacute preparado ainda em solo antigo nas biografias antigas
autobiografias e confissotildees do periacuteodo inicial do cristianismo (terminando em Agostinho)rdquo
O gecircnero biacuteos hagiograacutefico estabelece contatos com esse tipo de romance por meio do
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enredo Como o romance biograacutefico tem como elemento principal a narraccedilatildeo da trajetoacuteria
vital de um determinado personagem ou seja tem como base justamente aqueles ldquoelementos
existentes antes do iniacutecio ou depois do teacutermino do romance de provaccedilatildeordquo (Ibid) engloba
necessariamente o relato da morte fato fundamental para o surgimento de um maacutertir na
concepccedilatildeo cristatilde
No romance biograacutefico a relaccedilatildeo da personagem com o mundo ganha um enfoque
diferente daquele verificado no romance de viagens ou no de provaccedilatildeo Bakhtin (2003 215)
verifica que ldquoPersonagens secundaacuterias paiacuteses cidades objetos etc integram o romance
biograacutefico por vias substanciais e ganham uma relaccedilatildeo igualmente substancial com o todo
vital da personagem centralrdquo Paradoxalmente o relato do soldado Marino apresenta tambeacutem
esse aspecto Embora ele permanecesse inabalaacutevel em sua decisatildeo de natildeo negar a feacute cristatilde
antes de o juiz lhe conceder um tempo para refletir eacute no encontro com o bispo Teotecno e
principalmente apoacutes o confronto com um objeto de grande valor ndash as Escrituras ndash que
Marino segue resoluto para o tribunal
Bakhtin tambeacutem escreve sobre o gecircnero hagiograacutefico embora com mais cautela Para
o autor (2003 169-70) ldquoa hagiografia se realiza diretamente no mundo do divinordquo Por se
tratar de um plano diferenciado em que ldquoa atitude reverente do autor natildeo deixa espaccedilo agrave
iniciativa individualrdquo (2003 170) Bakhtin prefere manter a mesma distacircncia Assim limita-
se em dizer que a hagiografia ldquorecorre a formas tradicionalmente sagradasrdquo (Ibid)
No aspecto formal os relatos de martiacuterio possuem de fato vaacuterias semelhanccedilas e um
fundamento em comum que satildeo os processos verbais No entanto ainda natildeo existe entre os
seacuteculos II e IV dC essa preocupaccedilatildeo ou esse rigor com a forma com a exclusatildeo de todo
elemento que possa remeter agrave individualidade
deve-se excluir tudo o que eacute tiacutepico de uma dada eacutepoca de uma dada nacionalidade () de uma dada condiccedilatildeo social de uma dada idade todo o concreto de uma imagem de uma vida todas as minuacutecias desta as indicaccedilotildees precisas do tempo e do espaccedilo na accedilatildeo ndash tudo o que reforccedila a determinidade no ser de um dado indiviacuteduo e assim lhe diminui a autoridade (Bakhtin 2003 170)
Vecirc-se portanto a partir dessa breve anaacutelise que o gecircnero biacuteos hagiograacutefico mescla
caracteriacutesticas tanto do gecircnero biograacutefico ndash seja biacuteos ou romance biograacutefico - quanto da
hagiografia constituindo assim um gecircnero agrave parte
18
2 CONTEXTO SOacuteCIO-HISTOacuteRICO
O relato do martiacuterio de Marino se tornou conhecido por meio da obra Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio bispo de Cesareacuteia no iniacutecio do seacuteculo IV Para Puech (1930 173)
ldquoEusegravebe est un meacutediocre theacuteologien et un meacutediocre eacutecrivain () mais il nous a rendu comme
historien et comme chronographe des services inestimablesrdquo De fato dificilmente teriacuteamos
acesso a esse texto se natildeo fosse o trabalho de Euseacutebio De acordo com a cronologia do bispo
a morte de Marino eacute situada entre os anos 260-261 dC Para o tradutor Musurillo (2000
xxxvi) essa data eacute bastante provaacutevel O comentaacuterio no relato de que todas as igrejas
desfrutavam de um periacuteodo de paz eacute o principal fator que leva a essa conclusatildeo No ano de
260 dC eacute promulgado o edito de Galieno o qual ldquoautoriza os liacutederes da Igreja a presidir
livremente as celebraccedilotildees religiosasrdquo (Silva 2006 250)
No entanto mesmo com as medidas favoraacuteveis por parte dos governantes o
cristianismo permanecia uma religio ilicita e portanto os cristatildeos ainda estavam sujeitos a
julgamento caso fossem delatados Foi o que aconteceu com o soldado Marino Uma vez
acusado de ser cristatildeo e de natildeo prestar culto ao imperador foi levado ao tribunal Eacute muito
provaacutevel que Marino tivesse vaacuterios colegas cristatildeos no exeacutercito que natildeo foram executados
porque ningueacutem aparecera para acusaacute-los A situaccedilatildeo dos cristatildeos era realmente
imprevisiacutevel Daniel-Rops (1988 346) comenta que no seacuteculo III essa constante mudanccedila de
humor por parte do Impeacuterio criou uma situaccedilatildeo sem precedentes ldquoComo um anciatildeo doente
que ora dormita inconsciente ou vagamente inquieto ignorando as impaciecircncias que o
rodeiam ora se irrita e ainda se mostra terriacutevel da mesma forma o Impeacuterio muda a todo o
momento de atitude Eacute isto o que daacute agraves perseguiccedilotildees do seacuteculo III um caraacuteter tatildeo diferente das
precedentesrdquo
Assim Marino foi o escolhido naquele momento de paz temporaacuteria Eles tinham
conhecimento da lei que estava em vigor desde a eacutepoca do imperador Trajano (110-111 dC)
quando este determinara ao governador Pliacutenio que os cristatildeos natildeo deveriam ser
sistematicamente perseguidos nem deveriam ser aceitas denuacutencias anocircnimas contra eles
(Gonzaacutelez 1995 64) A recomendaccedilatildeo dada a Pliacutenio havia sido adotada em todo o Impeacuterio
Uma vez acusados entretanto deveriam ser julgados Geralmente os cristatildeos eram levados
19
ao tribunal em decorrecircncia de disputas locais como escrevem Danieacutelou amp Marrou (1966
105)
Conveacutem frisar que natildeo haacute proscriccedilatildeo de cristatildeos pelo poder central quer dizer natildeo haacute perseguiccedilatildeo total Em segundo lugar verificam-se ataques locais movidos pelo povo e depois submetidos agrave apreciaccedilatildeo do magistrado romano () Em terceiro lugar o motivo da perseguiccedilatildeo natildeo se liga a crimes determinados mas unicamente ao lsquonomersquo cristatildeo O levantamento feito por Pliacutenio levara mesmo agrave conclusatildeo de que eram inocentes os cristatildeos
Guignebert (1956 169-70) tambeacutem assinala que apesar de todas as acusaccedilotildees
nenhum crime recaiacutea sobre os cristatildeos
Varias acusaciones de derecho comuacuten se poniacutean en juego al mismo tiempo para agobiar a los fieles religioacuten iliacutecita sociedad secreta lesa majestad negativa de obediencia si se trataba de soldados ignavia es decir negligencia en el cumplimiento de los deberes de la vida puacuteblica y privada y hasta magia Por lo demaacutes estas acusaciones cuando se aplicaban a los cristianos presentaban la singularidad de que se desistia inmediatamente de ellas si el inculpado consentiacutea en decir que renunciaba a su feacute lo que permite suponer que en suma era la religioacuten cristiana solamente lo que se perseguia
Ainda assim os cristatildeos precisavam ser castigados porque ao insistirem na afirmaccedilatildeo
ldquoSou cristatildeordquo rebelavam-se contra os princiacutepios do Impeacuterio especialmente o do culto ao
imperador
Este delito tinha de ser castigado em primeiro lugar porque de outro modo diminuiria a autoridade desses tribunais e em segundo lugar porque ao negarem a adorar o imperador os cristatildeos estavam adotando uma atitude que nesse tempo se interpretava como rebeliatildeo contra a autoridade imperial Com efeito o culto ao imperador era um dos viacutenculos que uniam o Impeacuterio e negar-se em puacuteblico a render esse culto equivalia a romper esse viacutenculo (Gonzaacutelez 1995 66)
Novamente percebe-se o caraacuteter imprevisiacutevel da vida cristatilde Os autores reconhecem
que de uma maneira geral as comunidades cristatildes procuravam levar uma vida exemplar e
submissa agraves leis do Impeacuterio ldquoAs instruccedilotildees de civismo dadas pelos Apoacutestolos continuam a
ser observadas e os cristatildeos mostram-se na sua grande maioria cidadatildeos fieacuteis e devotados ao
bem puacuteblicordquo (Daniel-Rops 1988 345) Poreacutem quando levados a julgamento puacuteblico natildeo
aceitavam prestar culto a outro senhor aleacutem de Cristo
No tocante ao serviccedilo militar as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio nem sempre eram
tatildeo simples Na opiniatildeo de Guignebert (1956 166) isso se dava porque as obrigaccedilotildees
militares geralmente tinham uma forte ligaccedilatildeo com as praacuteticas religiosas pagatildes
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El servicio militar les resultaba odioso porque suponiacutea obligaciones idolaacutetricas y porque execraban la guerra su participacioacuten en el servicio civil les pareciacutea supeacuterflua sobre todo se rehusaban obstinadamente a tomar parte en ninguna de las manifestaciones de lealtad que el gobierno imperial reclamaba porque todas revestiacutean caraacutecter religioso
Do mesmo modo Daniel-Rops (1988 345) relata
casos de objeccedilatildeo de consciecircncia ao serviccedilo militar como acontece com um jovem soldado que exclama ldquoNatildeo me eacute permitido trazer ao pescoccedilo o signum (espeacutecie de placa de identidade usada no exeacutercito romano) porque fui marcado com o sinal de Cristordquo ou com um outro soldado que se recusou a colocar sobre a cabeccedila a coroa ritual dos sacrifiacutecios em honra do imperador Satildeo casos ainda excepcionais mas sintomaacuteticos a oposiccedilatildeo profunda entre Roma e a Igreja tende a passar do plano religioso para o plano ciacutevico e poliacutetico
A intervenccedilatildeo do plano religioso sobre o poliacutetico e vice-versa foi consequumlecircncia da
busca por parte dos romanos de um sistema seguro no qual pudessem se apoiar Com a
decadecircncia poliacutetica econocircmica e moral o nuacutemero de seitas e religiotildees se multiplicava
formando um quadro extremamente pluralista (cf Daniel-Rops 1988 307) Eacute no seacuteculo III
que a dinastia dos Severos se impotildee e juntamente com ela vecircm as tradiccedilotildees religiosas
orientais
El advenimiento con los Severos de principes africanos y sirios la dominacioacuten de mujeres penetradas de la piedade miacutestica de Oriente favorecieron su raacutepido desarollo y el siglo III conocioacute todas sus formas desde las maacutes groseras estrechamente emparentadas com la supersticioacuten pura hasta las maacutes refinadas modeladas pelas reflexiones de la filosofia que desde entonces tenderiacutea hacia lo divino (Guignebert 1956 119)
Neste panorama soacutecio-poliacutetico o cristianismo foi a religiatildeo abraccedilada por muitos
cidadatildeos natildeo soacute ldquotecelotildees pisoeiros e sapateirosrdquo mas tambeacutem ldquoadvogados como Satildeo
Gregoacuterio Taumaturgo ou Satildeo Cipriano de Cartago mulheres da sociedade como Santa
Perpeacutetua grandes burgueses da proviacutencia e lsquoclariacutessimosrsquo de famiacutelias senatoriaisrdquo (Daniel-
Rops 1988 317) Para Guignebert (1956 121) o contato da elite com o cristianismo se deu
essencialmente por meio dos escravos e da filosofia
a traveacutes de los esclavos llegoacute a las mujeres libres sus amas y accidentalmente atrajo la atencioacuten de algunos hombres instruiacutedos que buscaban la verdad divina Gracias a las primeras se insinuoacute en las classes altas gracias a los segundos tomoacute contacto con la filosofia en el curso del siglo II y las consecuencias de este encuentro fueron incalculables
Eacute importante relembrar que a filosofia pressupunha a escrita e tinha um forte viacutenculo
com a literatura Mesmo o cristianismo no seacuteculo III jaacute possuiacutea um consideraacutevel nuacutemero de
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textos apologeacuteticos que dialogavam diretamente com a filosofia grega e possibilitavam para
a elite o acesso agraves ideacuteias cristatildes (cf Alesso 2006 31)
O relato do martiacuterio do soldado Marino surge portanto nesse contexto soacutecio-histoacuterico
como um texto de grande relevacircncia para o cristianismo Primeiro porque o personagem
principal eacute um soldado Integrava o grupo social de maior prestiacutegio nessa eacutepoca Como dizia
Septiacutemio Severo aos seus filhos ldquoEnriquecei o soldado e zombai do restordquo (Daniel-Rops
1988 299) E como no seacuteculo III as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio tomam uma nova
configuraccedilatildeo o contraste entre essas duas instituiccedilotildees eacute um assunto central O embate deixa
de ser apenas religioso e passa a ser tambeacutem poliacutetico - fato que vai se confirmar no seacuteculo
IV
Em segundo lugar a posiccedilatildeo social do maacutertir levanta outra questatildeo Marino como
membro da elite poderia facilmente ter comprado o libellus ndash documento que comprovava o
sacrifiacutecio aos deuses romanos ndash e assim conseguir sua liberdade (cf Silva 2006 248)
Daniel-Rops (1988 367) detalha que os ricos eram mais propensos a comprar falsos
documentos e a desistir ldquoConforme os testemunhos que temos parece que eram sobretudo os
ricos os bem instalados aqueles a quem a vida tinha concedido todo o conforto e que natildeo
estavam dispostos a sacrificaacute-lordquo que renunciavam agrave feacute
Aleacutem de abrir matildeo de sua posiccedilatildeo social e dos privileacutegios que iria obter como
centuriatildeo Marino natildeo se deixou dominar pelo medo a principal razatildeo da apostasia segundo
Daniel-Rops (1988 367) Eacute importante lembrar que a perseguiccedilatildeo sob Deacutecio instaurada em
249 dC ainda era bastante recente Numa tentativa de restaurar a gloacuteria do Impeacuterio Deacutecio
havia promulgado uma lei que obrigava todos os suacuteditos a retomarem o culto aos deuses
romanos Para ele ldquose todos os suacuteditos do Impeacuterio voltassem a adorar os deuses
possivelmente os deuses voltariam a favorecer o Impeacuteriordquo (Gonzaacutelez 1995 138) O culto era
um elemento essencial para os romanos Era por meio dele que expressavam sua
religiosidade como escreve Arnauld (2001 15) ldquoLa lsquopietasrsquo (pieacuteteacute) eacutetait la caracteacuteristique
principale de la religiositeacute romaine () Cette lsquopietasrsquo srsquoexprimait en une observance stricte
des lois rituelles Religion signifiait culterdquo
O descumprimento da lei por parte dos cristatildeos provocou uma perseguiccedilatildeo que teve
como consequumlecircncia um grande nuacutemero de apostasias fato que chegou a causar divergecircncia de
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opiniatildeo entre os bispos Num novo periacuteodo de relativa paz era portanto de suma importacircncia
para a Igreja insistir que os cristatildeos permanecessem firmes em suas convicccedilotildees Como
observa Daniel-Rops (1988 367) ldquoesses periacuteodos de interrupccedilatildeo nas perseguiccedilotildees natildeo
ajudavam em nada a coragem dos fieacuteis durante os tempos de calma a mola distendia-se e
quando subitamente era preciso voltar a entrar em luta muitos se sentiam faltos de energiardquo
Assim o testemunho de Marino evidencia o conflito existente entre a Igreja e o
Impeacuterio e conclama de maneira didaacutetica a que os cristatildeos tenham a mesma disposiccedilatildeo
mesmo diante da possibilidade da apostasia e dos terrores de um novo periacuteodo de perseguiccedilatildeo
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3 TEXTO GREGO
Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου Μαρίνου
Κατὰ τούτους εἰρήνης ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης ἐν Καισαρείᾳ τῆς
Παλαιστίνης Μαρῖνος τῶν ἐν στρατείαις ἀξιώμασι τετιμημένων γένει τε
καὶ πλοὕτῳ περιφανὴς ἀνήρ διὰ τὴν Χριστοῦ μαρτυρίαν τὴν κεφαλὴν
ἀποτέμνεται τοιᾶσδε ἕνεκεν αἰτίας
2 τιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας φασίν
ἑκατοντάρχους γίνεσθαι Τόπου σχολάζοντος ἐπὶ τοῦτο προκοπῆς τὸν
Μαρῖνον ἡ τοῦ βαθμοῦ τάξις ἐκάλει ἤδη τε μέλλοντα τῆς τιμῆς ἔχεσθαι
Παρελθὼν ἄλλος πρὸ τοῦ βήματος μὴ ἐξεῖναι μὲν ἐκείνῳ τῆς Ῥωμαίων
μετέχειν ἀξίας κατὰ τοὺς παλαιοὺς νόμους Χριστιανῷ γε ὄντι καὶ τοῖς
βασιλεῦσι μὴ θύοντι κατηγόρει αὐτῷ δὲ ἐπιβάλλειν τὸν κλῆρον
3 ἐφ᾿ ᾧ κινηθέντα τὸν δικαστὴν (Ἀχαιὸς οὕτος ἧν) πρῶτον μὲν ἐρέσθαι
ποίας ὁ Μαρῖνος εἴη γνώμης ὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν ἐπιμόνως
ἑώρα τριῶν ὡρῶν ἐπιδοῦναι αὐτῷ εἰς ἐπίσκεψιν διάστημα
4 ἐκτὸς δῆτα γενόμενον αὐτὸν τοῦ δικαστηρίου Θεότεκνος ὁ τῇδε
ἐπίσκοπος ἀφέλκει προσελθὼν δι᾿ ὁμιλίας καὶ τῆς χειρὸς λαβὼν ἐπὶ τὴν
ἐκκλησίαν προάγει εἴσω τε πρὸς αὐτῷ στήσας τῷ ἁγιάσματι μικρόν τι
παραναστείλας αὐτοῦ τῆς χλαμύδος καὶ τὸ προσηρτημένον αὐτῷ ξίφος
ἐπιδείξας ἅμα τε ἀντιπαρατίθησι προσαγαγὼν αὐτῷ τὴν τῶν θείων
εὐαγγελίων γραψήν κελεύσας τῶν δυοῖν ἑλέσθαι τὸ κατὰ γνώμην ὡς δ᾿
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ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν
ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς
αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης
5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ
δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ
δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν
ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται
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4 TRADUCcedilAtildeO
O martiacuterio do Santo Marino
1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares
em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido
honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por
todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu
testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte
2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a
conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a
ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo
Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e
declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e
portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos
romanos Assim o cargo cairia para si
3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou
primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele
insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs
horas para refletir
4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era
bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela
matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando
um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo
tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos
exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem
hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas
ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno
ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo
5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para
o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se
apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute
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imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre
o seu fim
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5 COMENTAacuteRIOS
51 OS PERSONAGENS
Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em
um ponto da estrutura
Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola
Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal
familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute
exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um
homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos
movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do
texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave
autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado
guerreiro
O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo
dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo
para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A
denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma
preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega
Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o
exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees
do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio
militar portanto tinha um significado muito grande
Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas
informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou
compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem
disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo
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Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na
quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado
provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era
seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para
conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial
para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve
como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)
O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para
anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo
de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos
outros personagens no texto
52 ESTRUTURA
O texto pode ser subdividido em 5 partes
(i) Marino o soldado cristatildeo
A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no
espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo
A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de
captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a
expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo
(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo
A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio
narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo
apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal
(iii) Marino e o juiz a confissatildeo
A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente
que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir
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(iv) Marino e o bispo a decisatildeo
Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de
Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem
palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a
espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe
a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras
(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo
Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo
Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte
53 TEMPO E ESPACcedilO
O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto
para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης
ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor
Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e
a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII
12)
A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que
Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em
todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto
o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se
deram de maneira muito raacutepida
Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia
na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no
entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes
contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o
Cristianismo
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O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno
poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por
Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo
tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito
cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera
propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz
que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os
sofrimentos corporais
Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte
54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS
O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de
diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um
detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga
essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de
martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)
Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte
A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da
distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no
entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor
31
A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra
no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios
desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica
Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com
Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma
narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute
portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a
noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007
8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente
engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo
No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no
uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo
εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por
ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento
por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann
2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que
eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega
amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e
decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo
do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio
ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento
emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado
comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como
afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva
de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a
forte presenccedila do aspecto emotivo
A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para
enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou
ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops
(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma
32
medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te
apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo
Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila
Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte
pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o
caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o
representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute
o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar
Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel
seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os
espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo
Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na
hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops
(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo
obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo
O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino
se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua
decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo
que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar
O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma
meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior
sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O
adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez
Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num
texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e
ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς
πίστεως τὴν προθυμίαν
Assim temos
33
Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)
darrdarrdarrdarr
Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo
darrdarrdarrdarr
Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo
O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas
uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado
pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν
ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente
detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita
conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui
coerecircncia ao texto
Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)
destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura
feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que
todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou
seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica
fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e
estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha
havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois
poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo
34
sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser
adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um
antagonismo fundamentalrdquo
O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de
Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo
substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo
ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos
esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no
texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino
Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos
durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e
por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que
a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino
Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη
ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto
o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων
o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος
o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις
o substantivo εἰρήνη
o substantivo μαρτυρία
Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e
formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado
35
A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes
por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)
honra romana (τιμή)
vide (κλῆμα)
centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)
reconhecimento passageiro e
terreno (ἀξιώμασι
τετιμημένων )
honra cristatilde (τιμή)
paz (εἰρήνη)
maacutertir (μάρτυρ)
reconhecimento eterno e divino
(τελειοῦται)
O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria
honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o
argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado
explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos
versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω
ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o
objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας
φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo
Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o
ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ
τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela
feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)
36
Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha
pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento
terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo
ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na
comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o
cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)
Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito
mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp
Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo
por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute
essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto
O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por
exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer
voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do
termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que
ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to
the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις
Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de
um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados
Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor
menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A
acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os
personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado
numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo
de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute
em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz
37
como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da
acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade
interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se
constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio
por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os
imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao
registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o
mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)
A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das
intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que
como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos
entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo
38
CONCLUSAtildeO
O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e
produtivo sob vaacuterios aspectos
Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual
gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A
percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a
ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os
primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma
instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na
literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um
pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os
cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo
- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura
No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do
texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico
durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e
consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa
ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias
da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna
centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o
posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos
fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento
A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se
compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao
bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se
mostrar complacente
39
Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os
cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de
sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem
como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como
um substituto aos espetaacuteculos romanos
Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave
plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos
Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o
que deu origem ao culto dos santos
Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda
precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos
possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados
ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται
presente no texto traduzido e em outros relatos
Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais
utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e
posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma
melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande
auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo
cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade
proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses
novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde
40
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43
ANEXOS
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)
[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1
1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em
Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um
tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua
linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte
2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles
que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o
escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a
honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo
as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que
era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a
ele
3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a
Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que
era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse
4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e
afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma
vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o
manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e
contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as
duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a
direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -
manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que
escolheste Vai em pazrdquo
1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu
este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer
casos como o de Marino [nota do Editor]
44
5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de
novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado
Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua
feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado
45
TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)
During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in
Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and
was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It
came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour
and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and
according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he
was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and
attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and
should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to
the ancient laws but that instead the post should fall to himself
It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he
first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed
that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had
Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside
in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed
Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword
attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it
before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out
his right hand and took the divine writings
lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him
may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo
No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the
tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and
showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to
execution and so found his fulfilment
5
RESUMO
Este trabalho aborda as origens e caracteriacutesticas do gecircnero literaacuterio denominado biacuteos hagiograacutefico amplamente utilizado pelo Cristianismo nos seacuteculos II a IV dC Verifica-se que esse gecircnero geralmente escrito em forma de relatos de martiacuterios servia a vaacuterios propoacutesitos (i) para divulgar a feacute (ii) para o ensino dos fieacuteis e (iii) para oferecer aos cristatildeos uma literatura proacutepria substituindo assim a literatura e arte pagatildes
Aleacutem disso este trabalho tem o propoacutesito de traduzir e analisar um texto escrito em grego koineacute ldquoO martiacuterio do soldado Marinordquo que relata a trajetoacuteria de um cristatildeo acusado e morto por sua feacute em meados do seacuteculo III dC A anaacutelise deu prioridade ao estudo dos elementos linguumliacutesticos - tais como os itens lexicais e os tempos verbais Tais elementos correlacionados agraves informaccedilotildees do contexto soacutecio-histoacuterico indicaram que o impasse pessoal vivido por Marino refletiu um embate muito maior e de dimensotildees sociais profundas a disputa pelo poder entre Igreja e Estado Romano Verificamos que o autor contrapotildee esses dois poderes de maneira intencional destacando o ponto de vista cristatildeo
Palavras-chave gecircnero biacuteos hagiograacutefico literatura cristatilde Impeacuterio Romano grego koineacute
6
INTRODUCcedilAtildeO
A intenccedilatildeo deste trabalho eacute resgatar um gecircnero literaacuterio ao qual se tem dado pouca
atenccedilatildeo no Brasil a saber os relatos de martiacuterios cristatildeos Muitos desses martiacuterios ocorridos
entre os seacuteculos II e IV dC foram registrados em liacutengua grega ou latina e ainda carecem de
um estudo mais pormenorizado que identifique tanto as caracteriacutesticas literaacuterias quanto as
linguumliacutesticas
Nesta pesquisa destacar-se-aacute o relato grego de um soldado chamado Marino que apoacutes
ter sido acusado de natildeo observar as leis romanas perdeu o direito de se tornar centuriatildeo e foi
decapitado
Aleacutem de estabelecer uma traduccedilatildeo da liacutengua grega para a portuguesa tem-se como
objetivo definir neste trabalho a qual gecircnero literaacuterio o relato de martiacuterio do soldado Marino
pertence Para tanto seratildeo utilizados os trabalhos jaacute realizados na aacuterea da hagiografia e da
martirologia e tambeacutem os paracircmetros da literatura claacutessica
Tendo como pressuposto que os relatos de martiacuterio ndash martyria ndash formam um conjunto
literaacuterio especiacutefico e que natildeo haacute literatura neutra procurar-se-aacute avaliar o impacto causado por
esses textos na sociedade romana da eacutepoca e como eles lidam com as diferenccedilas morais e
religiosas entre cristatildeos e natildeo cristatildeos
Conforme nos eacute informado pelos relatos histoacutericos o Cristianismo permaneceu uma
religio ilicita ateacute o reinado de Constantino no seacuteculo IV Durante os seacuteculos anteriores a
situaccedilatildeo dos cristatildeos era relativamente fraacutegil do ponto de vista poliacutetico Ora eram acusados
pelo povo ora protegidos pelas leis Todo esse quadro de instabilidade certamente se refletia
na literatura e alcanccedilava de alguma maneira os leitores Assim por vezes os cristatildeos
recorriam agraves ideacuteias filosoacuteficas para se protegerem dos ataques externos por vezes aos
princiacutepios cristatildeos para se manterem unidos e confiantes diante de uma possiacutevel perseguiccedilatildeo
individual ou em massa Por essa razatildeo seratildeo discutidas a partir do texto selecionado as
funccedilotildees assumidas por esse tipo de literatura e as estrateacutegias utilizadas pelo autor para
cumprir tais funccedilotildees Para tanto seratildeo focalizados o contexto soacutecio-histoacuterico em que a morte
7
de Marino se deu e os elementos linguumliacutesticos agrave disposiccedilatildeo no texto para a realizaccedilatildeo dessa
anaacutelise
O estudo da literatura cristatilde mostra-se portanto fundamental para o entendimento do
pensamento e da cultura natildeo soacute introduzida pela comunidade cristatilde mas tambeacutem da sociedade
romana como um todo Afinal a propagaccedilatildeo do Cristianismo se deu - com perseguiccedilatildeo ou
sem perseguiccedilatildeo - durante o periacuteodo do Impeacuterio romano e por meio das liacutenguas de cultura da
eacutepoca primeiramente o grego e depois tambeacutem o latim Natildeo haacute portanto como analisar a
literatura e a liacutengua utilizadas por essa comunidade sem levar em conta ao mesmo tempo as
ideologias filosofias costumes e sistemas sociais poliacuteticos e econocircmicos que norteavam o
Impeacuterio romano
Por fim eacute importante ressaltar que a anaacutelise individualizada desses textos contribui
para o aprofundamento das metodologias e escolhas utilizadas pelos autores muitas vezes
anocircnimos Esse tipo de anaacutelise permite uma melhor compreensatildeo do uso da liacutengua nessa
eacutepoca Permite tambeacutem a comparaccedilatildeo entre os textos e auxilia na verificaccedilatildeo de questotildees
como Ateacute que ponto os relatos de diversos maacutertires produzidos por autores distintos e em
lugares diferentes podem ser correlacionados Havia uma linguagem proacutepria dos cristatildeos
Quais os itens lexicais mais utilizados O valor semacircntico desses itens era o mesmo para
cristatildeos e natildeo cristatildeos
O texto grego utilizado neste trabalho foi o publicado por Musurillo (2000) Para a
traduccedilatildeo foram consultados os seguintes dicionaacuterios
BAIILY A Dictionnaire Grec-Franccedilais Paris Hachette 1950
GINGRICH Wilburg amp DANKER Frederick Leacutexico do Novo Testamento Grego-
Portuguecircs Traduccedilatildeo Juacutelio PT Zabatiero Satildeo Paulo Vida Nova 1993
LAMPE Geoffrey WH A Patristic greek lexicon Oxford Clarenton Press 2000
LIDDELL H SCOTT R Greek-English Lexicon Abridged Simon Wallenberg
Press 2007
SOPHOCLES EA Greek lexicon of the Roman and Byzantine Periods from BC 146
to AD 1100 ndash part one New York Charles Scribnerrsquos Sons 1900
8
Em anexo encontram-se duas outras traduccedilotildees para o relato de martiacuterio de Marino a
de Musurillo (2000) para a liacutengua inglesa e a de Fischer (2005) para a liacutengua portuguesa
9
1 GEcircNERO LITERAacuteRIO
O objetivo deste capiacutetulo eacute classificar e compreender o gecircnero literaacuterio no qual os
relatos de martiacuterio estatildeo inseridos
A primeira observaccedilatildeo que precisa ser feita a respeito dos relatos de martiacuterio eacute que a
leitura empreendida neste trabalho tem como pressuposto o ponto de vista literaacuterio Ou seja
natildeo se tem a intenccedilatildeo de discutir a veracidade dos fatos histoacutericos relatados ou de se fazer um
estudo criacutetico no sentido de discernir o que eacute histoacuteria do que eacute ficccedilatildeo Ateacute mesmo porque
conforme escreve Musurillo (2000 liv) a linha entre histoacuteria e ficccedilatildeo nesse tipo de texto eacute
muito tecircnue
A classificaccedilatildeo do gecircnero ao qual pertencem os relatos de martiacuterio pode ser feita por
duas vias distintas Pela primeira partimos dos mais variados tipos de textos de diferentes
eacutepocas com o intuito de por meio da comparaccedilatildeo entre as caracteriacutesticas formais enquadraacute-
los a um determinado gecircnero Pela segunda contrastamos textos de cunho cristatildeo - escritos
por autores nomeadamente cristatildeos com o objetivo de divulgar a sua feacute ndash aos de cunho natildeo-
cristatildeo Essas duas vias satildeo levadas em consideraccedilatildeo neste capiacutetulo comeccedilando pela segunda
a comparaccedilatildeo entre a literatura cristatilde e a natildeo-cristatilde
11 LITERATURA CRISTAtilde E LITERATURA PAGAtilde
A contraposiccedilatildeo entre literatura cristatilde e natildeo-cristatilde eacute um ponto fundamental para a
questatildeo do gecircnero natildeo soacute dos relatos de martiacuterio mas tambeacutem para todos os outros tipos de
textos escritos durante os primeiros seacuteculos da era cristatilde Isso porque durante os seacuteculos II a
IV dC o Cristianismo busca sua afirmaccedilatildeo como religiatildeo e filosofia utilizando-se em
grande medida da escrita
Alesso (2006 24) explica que eacute a partir do seacuteculo II que o Cristianismo se organiza
para enfrentar problemas internos como ldquoas acusaccedilotildees de heresia lutas pelo poder perigos de
cisma e controveacutersias teoloacutegicasrdquo A organizaccedilatildeo tambeacutem se fez necessaacuteria para enfrentar os
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ataques externos o que resultou na apresentaccedilatildeo das ideacuteias cristatildes de modo filosoacutefico em
textos bem elaborados e com caracteriacutesticas semelhantes aos da cultura da eacutepoca
Los discursos de los obispos y letrados defensores del cristianismo no podiacutean ser espontaacuteneos ni livianos cuando se trataba de responder a las criacuteticas y a la difamacioacuten de enemigos tan ilustrados como ellos No bastaba la elocuencia entusiasta habiacutea que ordenar las ideas en lo molde de recursos avalados por el prestigio de siglos en los geacuteneros discursivos que los doctos habiacutean aprendido e internalizado desde su maacutes tierna formacioacuten heleniacutestica
Assim depreende-se que a literatura cristatilde destes primeiros seacuteculos visava atender
duas necessidades principais o ensino para manter a coesatildeo do puacuteblico interno e a apologia
que procurava defender a feacute diante do puacuteblico externo
Os escritos apologeacuteticos dialogavam de maneira direta com a filosofia grega e eram
escritos geralmente por bispos que viviam em grandes centros urbanos como Justino o
maacutertir Oriacutegenes Teoacutefilo e Tertuliano Por essa razatildeo tais discussotildees permaneciam muitas
vezes entre a elite natildeo chegando ao puacuteblico em geral (cf Alesso 2006 31) Desde muito
cedo portanto surge uma divisatildeo natural de destinataacuterios na literatura cristatilde enquanto alguns
textos eram escritos e dirigidos a leitores cultos outros textos tinham como puacuteblico-alvo o
povo
Para Alesso (2006 29-30) essa divisatildeo eacute claramente percebida quando do surgimento
do gecircnero biacuteos ldquoEl geacutenero biacuteos que tendriacutea entonces en principio como destinatario a un
lector cultivado se cumple tambieacuten en un subgeacutenero de corte popular las vidas ejemplaresrdquo
Eacute o gecircnero biacuteos que estabelece de fato em meados do seacuteculo IV a hagiografia - a biografia
que relata a vida de um santo - como um modelo literaacuterio a ser seguido pelos escritores
cristatildeos especialmente pelo movimento monaacutestico Segundo Moreschini amp Norelli (2000
511) a hagiografia foi com o tempo aproximando-se cada vez mais da biografia pagatilde Para
eles a relaccedilatildeo entre cristianismo e paganismo ldquoocorreu com todas as demais formas literaacuterias
cristatildesrdquo porque ldquopraticadas por pessoas que tiveram em comum com os pagatildeos os mestres as
escolas e as leiturasrdquo Tal fato reforccedila ainda mais a divisatildeo entre leitores que tinham acesso agrave
educaccedilatildeo formal daqueles que natildeo a tinham
As pessoas destituiacutedas de uma introduccedilatildeo agraves teorias filosoacuteficas e teoloacutegicas eram
atendidas em grande parte pelas leituras de relatos de martiacuterios ao que Alesso chama de ldquolas
vidas ejemplaresrdquo Os relatos eram lidos durante as celebraccedilotildees cristatildes tornando-se parte da
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liturgia do culto Eram lembrados tambeacutem pela comunidade local por ocasiatildeo do aniversaacuterio
do maacutertir quando o povo se reunia em torno do tuacutemulo ou fazia peregrinaccedilotildees ateacute ele (cf
Musurillo 2000 lvi Moreschini amp Norelli 2000 297)
Os relatos de martiacuterios (acta passiones e martyria) no entanto formam entre si um
gecircnero especiacutefico Aleacutem disso conteacutem elementos que antecedem e prenunciam a formaccedilatildeo da
hagiografia Satildeo denominados por Moreschini amp Norelli (2000 511) de ldquohagiografia
primitivardquo O costume de narrar a prisatildeo o sofrimento e a morte de um cristatildeo explicam esses
autores apareceu ldquoquase contemporaneamente em lugares diferentes da cristandade em
formas diversas e com ascendecircncias e caracteriacutesticas ideoloacutegicas variadas o gecircnero literaacuterio
como tal se constitui progressivamente pelo desenvolvimento e pelas reciacuteprocas relaccedilotildees dos
textosrdquo
O modelo de narrativa dos maacutertires cristatildeos remonta na verdade aos relatos
encontrados na Biacuteblia como o martiacuterio de Estevatildeo (Atos dos Apoacutestolos 7) de Tiago (At 12)
e aos sofrimentos de Paulo (At 14) O modelo central poreacutem eacute o proacuteprio Jesus cuja vida eacute
narrada pelos Evangelhos Note-se que a ecircnfase dos Evangelhos natildeo eacute narrar todos os
acontecimentos biograacuteficos mas destacar os sofrimentos de Cristo desde seu nascimento
como por exemplo a perseguiccedilatildeo de Herodes ateacute sua crucificaccedilatildeo
Ainda que os relatos cristatildeos tenham tido como modelo textos pagatildeos tema discutido
por Delehaye (1966) Berger (1998) e Uytfanghe (1993) foi o Cristianismo que disseminou e
divulgou esse tipo de literatura Delehaye (1966 113-125) assinala que haacute vaacuterias diferenccedilas
entre os relatos dos maacutertires pagatildeos Alexandrinos e os relatos dos maacutertires cristatildeos Uma
delas se encontra na motivaccedilatildeo para o martiacuterio ldquoIci nous voyons des hommes qui meurent
pour leurs convictions et agrave qui il suffirait drsquoun mot ou drsquoun geste pour reconqueacuterir la liberteacute
Lagrave on nous presente les chefs drsquoune faction politique qui deacutefendent au prix de leur vie leur
programme et leurs actes et qui perdent la partierdquo (1966 124) E para Uytfanghe (1993 174)
caracteriacutesticas como humildade amor e perdatildeo natildeo satildeo encontradas em maacutertires pagatildeos
como Soacutecrates e Secircneca Jaacute nos cristatildeos elas estatildeo presentes de maneira radical
De uma forma geral os autores concordam que a formaccedilatildeo de um gecircnero a partir dos
relatos de martiacuterio e sua posterior propagaccedilatildeo pelos cristatildeos natildeo tinham uma intenccedilatildeo uacutenica
pelo contraacuterio vecirc-se nesses textos uma intenccedilatildeo multifacetada Para Musurillo (2000 liv-
12
lvii) os relatos de martiacuterio exerciam pelo menos trecircs funccedilotildees a primeira era a funccedilatildeo
histoacuterica jaacute que tanto os Evangelhos como os Atos dos Apoacutestolos e os martyria baseavam-se
em fatos histoacutericos A segunda era a apologeacutetica isto eacute a afirmaccedilatildeo da feacute cristatilde diante do
mundo E por uacuteltimo a funccedilatildeo de ensino Uytfanghe (1993 173-175) observa que por meio
desses relatos os cristatildeos eram encorajados a permanecerem firmes nas suas crenccedilas e a
cultivarem uma vida santa e asceacutetica O maacutertir se tornava assim um modelo a ser seguido E
o cristatildeo ndash literalmente o seguidor de Cristo - dava continuidade aos ensinos e agrave vida de
Jesus o qual afirmou ldquoLembrem-se das palavras que eu lhes disse Nenhum escravo eacute maior
do que o seu senhor Se me perseguiram tambeacutem perseguiratildeo vocecircsrdquo (Evang Joatildeo 1520)
Aleacutem desses trecircs aspectos a formaccedilatildeo de um corpus literaacuterio cristatildeo era de grande
interesse para a Igreja na medida em que oferecia ao puacuteblico cristatildeo a cada dia maior uma
nova opccedilatildeo cultural Conforme o registro que possuiacutemos no escrito Os Espetaacuteculos do bispo
Tertuliano de Cartago os cristatildeos eram aconselhados a natildeo frequumlentarem os teatros e os
circos nem assistirem aos combates de gladiadores ldquoMas eles percebem que algueacutem se fez
cristatildeo sobretudo pelo fato de evitar os espetaacuteculosrdquo (De spect 243)
Tertuliano posicionou-se fortemente contra a participaccedilatildeo dos cristatildeos nos espetaacuteculos
promovidos pelos teatros circos e arenas porque aleacutem de possuiacuterem uma ligaccedilatildeo com algum
deus grego ou romano - e portanto promoverem a idolatria - evidenciavam a incoerecircncia da
sociedade romana ldquosoacute ali [no teatro] tem curso e aplauso o que em qualquer outra parte se
reprovardquo (De spect 171) Assim argumenta ldquoConvencidos ficamos que por nenhum lado
nos fica bem laacute ir noacutes que por duas vezes renunciamos aos iacutedolosrdquo (De spect 13 1) Para
Tertuliano o homem eacute imagem e semelhanccedila de Deus e por essa razatildeo natildeo deveria
corromper sua alma e corpo
O certo eacute que natildeo nos foram dados os olhos para os entregar agrave concupiscecircncia nem a liacutengua para a maledicecircncia nem os ouvidos para sorvedouro de murmuraccedilotildees nem o paladar para poccedilo de gula o ventre para dar seguimento agrave mesma gula os oacutergatildeos genitais para excessos de impureza as matildeos para estrangular o proacuteximo os peacutes para vagabundear natildeo se nos infundiu a alma ateacute as entretelas do corpo para vir a ser um recesso de ciladas e de embustes e de iniquumlidades (De spect 210)
Os prazeres cultivados pela sociedade romana deveriam portanto ser abandonados e
substituiacutedos Para Tertuliano o cristatildeo natildeo tinha necessidade de espetaacuteculos pois desfrutava
dos prazeres (voluptates) proacuteprios agrave sua feacute Seus argumentos satildeo os seguintes
13
Que melhor alegria que a que promana da reconciliaccedilatildeo com Deus Pai Nosso Senhor do conhecimento da verdade de reconhecer os erros do perdatildeo de tantos pecados da passada vida Que maior prazer que o asco do proacuteprio prazer que a consciecircncia pura que a vida sem ambiccedilotildees e o destemor da morte Pisar aos peacutes os deuses dos gentios expelir os democircnios curar doentes informar-te da verdade revelada viver para Deus aiacute estatildeo as alegrias satildeo esses os espetaacuteculos santos dos cristatildeos os espetaacuteculos perpeacutetuos por que se natildeo paga nada (De spect 29 1-3)
O bispo continua a explanaccedilatildeo de suas ideacuteias afirmando que os cristatildeos natildeo possuem o
teatro mas tecircm boa literatura natildeo possuem os combates de gladiadores mas tecircm as lutas pela
feacute e pela castidade natildeo possuem o sangue das arenas mas tecircm o sangue de Cristo ldquoSe o
palavreado cecircnico eacute divertido natildeo temos falta de boas letras temos versos a rodos e
pensamentos bem cunhados nada se diga de cacircnticos e vozes do melhor metal em vez de
faacutebulas temos verdades em vez de embustes a lisura mais declaradardquo (De spect 294)
A defesa e a valorizaccedilatildeo de uma literatura proacutepria aos cristatildeos eacute um elemento
extremamente importante para a propagaccedilatildeo dos relatos de martiacuterio porque conforme visto
acima esse tipo de texto entrou em circulaccedilatildeo como um substituto agraves encenaccedilotildees teatrais
Assim os martyria ajudaram a constituir um corpus literaacuterio cristatildeo que se tornou um
instrumento de poder para a Igreja
Como observa Fox (1996 130) os maacutertires compartilhavam juntamente com os
bispos e visionaacuteriosprofetas um lugar privilegiado na comunidade ldquoAmong Christians
before Constantine power was attribute of three particular groups it was achieved by
visionaires it was ascribed to martyrs and confessors it was vested above all in bishops
Literacy assisted the exercise of power by all threerdquo Os integrantes desses trecircs grupos natildeo
apenas eram admirados mas tidos como autoridades Os bispos por exemplo eram
considerados por Inaacutecio de Antioquia como ldquoos representantes de Deus na Igrejardquo
(Guignebert 1956 137) Por isso os escritos ou discursos proferidos por esses trecircs grupos
eram recebidos na maioria das vezes como proacutepria palavra de Deus fator que atribuiacutea um
poder ainda maior aos textos Para Fox (1996 129) ldquothis combination of sacred text and an
increasingly standardised pattern of authority make the early Church a unique subject for
studies of literacy and powerrdquo
Como um gecircnero da literatura cristatilde os relatos de martiacuterio tambeacutem serviram para a
manutenccedilatildeo e a transmissatildeo da ideologia cristatilde nos primeiros seacuteculos do Cristianismo
conforme escreve Alesso (2006 34-35)
14
Los geacuteneros en todas sus formas y subformas son el suporte estructural para la transmisioacuten de un ideario y lo fueron de modo especial en el trasvase de los contenidos que provenientes de la antiguumledad se imbricaron en el cristianismo de los Padres Aunque su relacioacuten com la criacutetica sociohistoacuterica es marginal los geacuteneros son indudables portadores de significacioacuten cuando interesan a la evolucioacuten de paraacutemetros poliacutetico culturales que intervinieran en la construccioacuten del edificio ideoloacutegico de la teologiacutea cristiana
O fortalecimento da literatura cristatilde foi enfim um fator essencial para a difusatildeo do
Cristianismo porque ajudou a organizaacute-lo como instituiccedilatildeo Por meio da literatura o
Cristianismo conseguiu alcanccedilar pessoas de todos os lugares e de todas as classes sociais
inclusive as pertencentes agrave elite que conforme Daniel-Rops (1988 305) sentiam o decliacutenio
do Impeacuterio que chegava ateacute mesmo ao acircmbito literaacuterio e artiacutestico
12 AS CARACTERIacuteSTICAS LITERAacuteRIAS FORMAIS
Quanto agraves caracteriacutesticas formais que podem ser levadas em conta para a classificaccedilatildeo
do gecircnero os relatos de martiacuterio mesclam traccedilos tanto do gecircnero biograacutefico quanto do
discurso hagiograacutefico
Os relatos de martiacuterio natildeo podem ser classificados categoricamente como biacuteoi pois
natildeo chegam a constituir uma biografia de fato Tambeacutem natildeo podem ser classificados como
hagiografia em sentido exclusivo porque como afirma Delehaye (apud Uytfanghe 1993
146) esta eacute muito abrangente inclui ldquotodo documento escrito inspirado pelo culto dos santos
e destinado a promovecirc-lordquo Assim o que se verifica eacute um entrecruzamento de gecircneros Isso
ocorre porque os gecircneros satildeo como afirma Alesso (2006 29) sistemas abertos ldquolas
invariantes coexisten con las variables y no podemos condenarlos y condenarnos a una
esquematizacioacuten extrema porque perderiacuteamos de vista uno de los objetivos primordiales la
finalidad del contenidordquo Por essa razatildeo adotamos neste trabalho a definiccedilatildeo biacuteos
hagiograacutefico introduzida por Ipiranga Juacutenior (2006 9)
Segundo Momigliano (1971 25) os gregos jaacute possuiacuteam o haacutebito de redigir biografias
no seacuteculo V aC mas foi no periacuteodo heleniacutestico que ele se intensificou e o gecircnero recebeu um
nome especiacutefico ldquobien qui nous conaissions lrsquoexistence de biographies et peut-ecirctre
drsquoautobiographies degraves le cinquiegraveme siegravecle avant JC crsquoest seulement agrave lrsquoeacutepoque helleacutenistique
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que la biographie devient une notion precise et acquiert un nom en propre Ce nome est lsquobiosrsquo
ndash et non lsquobiographiarsquordquo
Para Bakhtin (2003 138) entretanto a biografia como romance surgiu apenas no fim
da Idade Meacutedia Durante os seacuteculos II-IV dC ainda era uma forma literaacuteria em formaccedilatildeo
Mesmo tendo em mente a distacircncia cronoloacutegica entre os martyria e o romance biograacutefico ao
qual Bakhtin se refere eacute possiacutevel perceber semelhanccedilas entre os dois
A primeira delas eacute a presenccedila do heroacutei com valores do tipo bravura honradez
magnanimidade e generosidade (cf Bakhtin 2003 142 147) Ao abrir matildeo de posiccedilotildees
poliacuteticas e religiosas ao enfrentar perigos sofrimentos torturas e feras sem renunciar agrave feacute o
maacutertir eacute visto como um heroacutei pela comunidade cristatilde Ele ldquotorna-se uma espeacutecie de ponto
focal da vida da comunidade que o circunda de veneraccedilatildeo considerando-o jaacute em contato com
Deus capaz de profetizar e de pronunciar-se com uma autoridade especial tambeacutem sobre
questotildees eclesiaacutesticasrdquo (Moreschini amp Norelli 2000 297) Morrer por sua feacute eacute o ato supremo
de glorificaccedilatildeo para os primeiros cristatildeos E eacute por meio dessa glorificaccedilatildeo de acordo com as
palavras de Bakhtin (2003 143) que o heroacutei consegue alcanccedilar a consciecircncia de uma
determinada sociedade incutindo assim novos valores
A aspiraccedilatildeo agrave gloacuteria organiza a vida do heroacutei ingecircnuo a gloacuteria organiza tambeacutem a narraccedilatildeo da sua vida sua glorificaccedilatildeo Aspirar agrave gloacuteria eacute tomar consciecircncia de si na sociedade culta e histoacuterica dos homens (ou na naccedilatildeo) eacute afirmar e construir sua vida na possiacutevel consciecircncia dessa sociedade humana eacute crescer natildeo em si nem para si mas nos outros ou para os outros eacute ocupar um lugar no mundo imediato dos contemporacircneos e descendentes
A segunda semelhanccedila detectada entre os gecircneros biograacutefico e biacuteos hagiograacutefico eacute a
relaccedilatildeo de empatia que se estabelece entre autor-personagem Segundo Bakhtin (2003 150)
autor e personagem compartilham obrigatoriamente os mesmos valores ldquona biografia o
autor natildeo soacute combina com a personagem na feacute nas convicccedilotildees e no amor mas tambeacutem em
sua criaccedilatildeo artiacutestica (sincreacutetica) tomando como guia os mesmos valores que a personagem
em sua vida esteacuteticardquo Embora o autor do martiacuterio do soldado Marino natildeo seja explicitado eacute
possiacutevel inferir pelo texto que o interesse de registrar o fato tenha partido natildeo de algueacutem que
simplesmente compartilhava com ele a situaccedilatildeo de soldado do exeacutercito romano mas sim de
algueacutem que dividia os mesmos valores cristatildeos
16
Quanto agrave modalidade do romance a relaccedilatildeo entre os gecircneros biacuteos hagiograacutefico e
biograacutefico tambeacutem eacute possiacutevel Bakhtin (2003 205) identifica quatro modelos de romance
ldquosegundo o princiacutepio de construccedilatildeo da imagem da personagem central o romance de viagens
o romance de provaccedilatildeo da personagem o romance biograacutefico (autobiograacutefico) o romance de
educaccedilatildeordquo Ora por ser um gecircnero hiacutebrido a personagem principal do biacuteos hagiograacutefico
mescla caracteriacutesticas tanto do romance de provaccedilatildeo quanto do romance biograacutefico
Para Bakhtin (2003 207) o romance de provaccedilatildeo divide-se em duas modalidades ldquoA
primeira modalidade eacute representada pelo romance grego (A Etioacutepica Leucipo e Cleitofon
etc) A segunda modalidade eacute representada pelas hagiografias do iniacutecio do cristianismo
(particularmente dos maacutertires)rdquo O objetivo das provaccedilotildees neste tipo de romance eacute mudar a
opiniatildeo e os valores do heroacutei Como nos relatos de martiacuterio os cristatildeos natildeo renunciam a sua
feacute natildeo haacute mutabilidade Logo o maacutertir aproxima-se do conceito de heroacutei da provaccedilatildeo ele ldquoeacute
acabado e predeterminado as experimentaccedilotildees (sofrimentos seduccedilotildees duacutevidas) natildeo se
tornam para ele uma experiecircncia formadora nem a modificam e nessa imutabilidade da
personagem estaacute toda questatildeordquo (Bakhtin 2003 209)
Aleacutem disso no romance de provaccedilatildeo o personagem eacute o centro Natildeo importam os
costumes ou lugares exoacuteticos como no romance de viagens O personagem natildeo eacute modificado
de forma determinante pelo mundo nem o modifica
Entre o heroacutei e o mundo natildeo existe interaccedilatildeo autecircntica o mundo natildeo eacute capaz de mudar o heroacutei ele apenas o experimenta e o heroacutei natildeo influencia o mundo natildeo lhe muda a face ao passar pela provaccedilatildeo ao afastar seus inimigos etc o heroacutei deixa no mundo tudo nos seus lugares natildeo modifica a face social do mundo natildeo o reconstroacutei e aliaacutes nem tem essa pretensatildeo (Bakhtin 2003 212)
Eacute exatamente esta a situaccedilatildeo observada no texto em anaacutelise A crise pela qual passa o
personagem Marino natildeo eacute capaz de alterar suas convicccedilotildees nem de mudar o curso normal dos
acontecimentos agrave parte de sua vida o exeacutercito continuaraacute existindo uma outra pessoa tomaraacute
o seu lugar e tudo continuaraacute funcionando sob os mesmos princiacutepios
Quanto ao romance biograacutefico Bakhtin (2003 213) considera que assim como o
romance de provaccedilatildeo ele ldquoeacute preparado ainda em solo antigo nas biografias antigas
autobiografias e confissotildees do periacuteodo inicial do cristianismo (terminando em Agostinho)rdquo
O gecircnero biacuteos hagiograacutefico estabelece contatos com esse tipo de romance por meio do
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enredo Como o romance biograacutefico tem como elemento principal a narraccedilatildeo da trajetoacuteria
vital de um determinado personagem ou seja tem como base justamente aqueles ldquoelementos
existentes antes do iniacutecio ou depois do teacutermino do romance de provaccedilatildeordquo (Ibid) engloba
necessariamente o relato da morte fato fundamental para o surgimento de um maacutertir na
concepccedilatildeo cristatilde
No romance biograacutefico a relaccedilatildeo da personagem com o mundo ganha um enfoque
diferente daquele verificado no romance de viagens ou no de provaccedilatildeo Bakhtin (2003 215)
verifica que ldquoPersonagens secundaacuterias paiacuteses cidades objetos etc integram o romance
biograacutefico por vias substanciais e ganham uma relaccedilatildeo igualmente substancial com o todo
vital da personagem centralrdquo Paradoxalmente o relato do soldado Marino apresenta tambeacutem
esse aspecto Embora ele permanecesse inabalaacutevel em sua decisatildeo de natildeo negar a feacute cristatilde
antes de o juiz lhe conceder um tempo para refletir eacute no encontro com o bispo Teotecno e
principalmente apoacutes o confronto com um objeto de grande valor ndash as Escrituras ndash que
Marino segue resoluto para o tribunal
Bakhtin tambeacutem escreve sobre o gecircnero hagiograacutefico embora com mais cautela Para
o autor (2003 169-70) ldquoa hagiografia se realiza diretamente no mundo do divinordquo Por se
tratar de um plano diferenciado em que ldquoa atitude reverente do autor natildeo deixa espaccedilo agrave
iniciativa individualrdquo (2003 170) Bakhtin prefere manter a mesma distacircncia Assim limita-
se em dizer que a hagiografia ldquorecorre a formas tradicionalmente sagradasrdquo (Ibid)
No aspecto formal os relatos de martiacuterio possuem de fato vaacuterias semelhanccedilas e um
fundamento em comum que satildeo os processos verbais No entanto ainda natildeo existe entre os
seacuteculos II e IV dC essa preocupaccedilatildeo ou esse rigor com a forma com a exclusatildeo de todo
elemento que possa remeter agrave individualidade
deve-se excluir tudo o que eacute tiacutepico de uma dada eacutepoca de uma dada nacionalidade () de uma dada condiccedilatildeo social de uma dada idade todo o concreto de uma imagem de uma vida todas as minuacutecias desta as indicaccedilotildees precisas do tempo e do espaccedilo na accedilatildeo ndash tudo o que reforccedila a determinidade no ser de um dado indiviacuteduo e assim lhe diminui a autoridade (Bakhtin 2003 170)
Vecirc-se portanto a partir dessa breve anaacutelise que o gecircnero biacuteos hagiograacutefico mescla
caracteriacutesticas tanto do gecircnero biograacutefico ndash seja biacuteos ou romance biograacutefico - quanto da
hagiografia constituindo assim um gecircnero agrave parte
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2 CONTEXTO SOacuteCIO-HISTOacuteRICO
O relato do martiacuterio de Marino se tornou conhecido por meio da obra Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio bispo de Cesareacuteia no iniacutecio do seacuteculo IV Para Puech (1930 173)
ldquoEusegravebe est un meacutediocre theacuteologien et un meacutediocre eacutecrivain () mais il nous a rendu comme
historien et comme chronographe des services inestimablesrdquo De fato dificilmente teriacuteamos
acesso a esse texto se natildeo fosse o trabalho de Euseacutebio De acordo com a cronologia do bispo
a morte de Marino eacute situada entre os anos 260-261 dC Para o tradutor Musurillo (2000
xxxvi) essa data eacute bastante provaacutevel O comentaacuterio no relato de que todas as igrejas
desfrutavam de um periacuteodo de paz eacute o principal fator que leva a essa conclusatildeo No ano de
260 dC eacute promulgado o edito de Galieno o qual ldquoautoriza os liacutederes da Igreja a presidir
livremente as celebraccedilotildees religiosasrdquo (Silva 2006 250)
No entanto mesmo com as medidas favoraacuteveis por parte dos governantes o
cristianismo permanecia uma religio ilicita e portanto os cristatildeos ainda estavam sujeitos a
julgamento caso fossem delatados Foi o que aconteceu com o soldado Marino Uma vez
acusado de ser cristatildeo e de natildeo prestar culto ao imperador foi levado ao tribunal Eacute muito
provaacutevel que Marino tivesse vaacuterios colegas cristatildeos no exeacutercito que natildeo foram executados
porque ningueacutem aparecera para acusaacute-los A situaccedilatildeo dos cristatildeos era realmente
imprevisiacutevel Daniel-Rops (1988 346) comenta que no seacuteculo III essa constante mudanccedila de
humor por parte do Impeacuterio criou uma situaccedilatildeo sem precedentes ldquoComo um anciatildeo doente
que ora dormita inconsciente ou vagamente inquieto ignorando as impaciecircncias que o
rodeiam ora se irrita e ainda se mostra terriacutevel da mesma forma o Impeacuterio muda a todo o
momento de atitude Eacute isto o que daacute agraves perseguiccedilotildees do seacuteculo III um caraacuteter tatildeo diferente das
precedentesrdquo
Assim Marino foi o escolhido naquele momento de paz temporaacuteria Eles tinham
conhecimento da lei que estava em vigor desde a eacutepoca do imperador Trajano (110-111 dC)
quando este determinara ao governador Pliacutenio que os cristatildeos natildeo deveriam ser
sistematicamente perseguidos nem deveriam ser aceitas denuacutencias anocircnimas contra eles
(Gonzaacutelez 1995 64) A recomendaccedilatildeo dada a Pliacutenio havia sido adotada em todo o Impeacuterio
Uma vez acusados entretanto deveriam ser julgados Geralmente os cristatildeos eram levados
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ao tribunal em decorrecircncia de disputas locais como escrevem Danieacutelou amp Marrou (1966
105)
Conveacutem frisar que natildeo haacute proscriccedilatildeo de cristatildeos pelo poder central quer dizer natildeo haacute perseguiccedilatildeo total Em segundo lugar verificam-se ataques locais movidos pelo povo e depois submetidos agrave apreciaccedilatildeo do magistrado romano () Em terceiro lugar o motivo da perseguiccedilatildeo natildeo se liga a crimes determinados mas unicamente ao lsquonomersquo cristatildeo O levantamento feito por Pliacutenio levara mesmo agrave conclusatildeo de que eram inocentes os cristatildeos
Guignebert (1956 169-70) tambeacutem assinala que apesar de todas as acusaccedilotildees
nenhum crime recaiacutea sobre os cristatildeos
Varias acusaciones de derecho comuacuten se poniacutean en juego al mismo tiempo para agobiar a los fieles religioacuten iliacutecita sociedad secreta lesa majestad negativa de obediencia si se trataba de soldados ignavia es decir negligencia en el cumplimiento de los deberes de la vida puacuteblica y privada y hasta magia Por lo demaacutes estas acusaciones cuando se aplicaban a los cristianos presentaban la singularidad de que se desistia inmediatamente de ellas si el inculpado consentiacutea en decir que renunciaba a su feacute lo que permite suponer que en suma era la religioacuten cristiana solamente lo que se perseguia
Ainda assim os cristatildeos precisavam ser castigados porque ao insistirem na afirmaccedilatildeo
ldquoSou cristatildeordquo rebelavam-se contra os princiacutepios do Impeacuterio especialmente o do culto ao
imperador
Este delito tinha de ser castigado em primeiro lugar porque de outro modo diminuiria a autoridade desses tribunais e em segundo lugar porque ao negarem a adorar o imperador os cristatildeos estavam adotando uma atitude que nesse tempo se interpretava como rebeliatildeo contra a autoridade imperial Com efeito o culto ao imperador era um dos viacutenculos que uniam o Impeacuterio e negar-se em puacuteblico a render esse culto equivalia a romper esse viacutenculo (Gonzaacutelez 1995 66)
Novamente percebe-se o caraacuteter imprevisiacutevel da vida cristatilde Os autores reconhecem
que de uma maneira geral as comunidades cristatildes procuravam levar uma vida exemplar e
submissa agraves leis do Impeacuterio ldquoAs instruccedilotildees de civismo dadas pelos Apoacutestolos continuam a
ser observadas e os cristatildeos mostram-se na sua grande maioria cidadatildeos fieacuteis e devotados ao
bem puacuteblicordquo (Daniel-Rops 1988 345) Poreacutem quando levados a julgamento puacuteblico natildeo
aceitavam prestar culto a outro senhor aleacutem de Cristo
No tocante ao serviccedilo militar as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio nem sempre eram
tatildeo simples Na opiniatildeo de Guignebert (1956 166) isso se dava porque as obrigaccedilotildees
militares geralmente tinham uma forte ligaccedilatildeo com as praacuteticas religiosas pagatildes
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El servicio militar les resultaba odioso porque suponiacutea obligaciones idolaacutetricas y porque execraban la guerra su participacioacuten en el servicio civil les pareciacutea supeacuterflua sobre todo se rehusaban obstinadamente a tomar parte en ninguna de las manifestaciones de lealtad que el gobierno imperial reclamaba porque todas revestiacutean caraacutecter religioso
Do mesmo modo Daniel-Rops (1988 345) relata
casos de objeccedilatildeo de consciecircncia ao serviccedilo militar como acontece com um jovem soldado que exclama ldquoNatildeo me eacute permitido trazer ao pescoccedilo o signum (espeacutecie de placa de identidade usada no exeacutercito romano) porque fui marcado com o sinal de Cristordquo ou com um outro soldado que se recusou a colocar sobre a cabeccedila a coroa ritual dos sacrifiacutecios em honra do imperador Satildeo casos ainda excepcionais mas sintomaacuteticos a oposiccedilatildeo profunda entre Roma e a Igreja tende a passar do plano religioso para o plano ciacutevico e poliacutetico
A intervenccedilatildeo do plano religioso sobre o poliacutetico e vice-versa foi consequumlecircncia da
busca por parte dos romanos de um sistema seguro no qual pudessem se apoiar Com a
decadecircncia poliacutetica econocircmica e moral o nuacutemero de seitas e religiotildees se multiplicava
formando um quadro extremamente pluralista (cf Daniel-Rops 1988 307) Eacute no seacuteculo III
que a dinastia dos Severos se impotildee e juntamente com ela vecircm as tradiccedilotildees religiosas
orientais
El advenimiento con los Severos de principes africanos y sirios la dominacioacuten de mujeres penetradas de la piedade miacutestica de Oriente favorecieron su raacutepido desarollo y el siglo III conocioacute todas sus formas desde las maacutes groseras estrechamente emparentadas com la supersticioacuten pura hasta las maacutes refinadas modeladas pelas reflexiones de la filosofia que desde entonces tenderiacutea hacia lo divino (Guignebert 1956 119)
Neste panorama soacutecio-poliacutetico o cristianismo foi a religiatildeo abraccedilada por muitos
cidadatildeos natildeo soacute ldquotecelotildees pisoeiros e sapateirosrdquo mas tambeacutem ldquoadvogados como Satildeo
Gregoacuterio Taumaturgo ou Satildeo Cipriano de Cartago mulheres da sociedade como Santa
Perpeacutetua grandes burgueses da proviacutencia e lsquoclariacutessimosrsquo de famiacutelias senatoriaisrdquo (Daniel-
Rops 1988 317) Para Guignebert (1956 121) o contato da elite com o cristianismo se deu
essencialmente por meio dos escravos e da filosofia
a traveacutes de los esclavos llegoacute a las mujeres libres sus amas y accidentalmente atrajo la atencioacuten de algunos hombres instruiacutedos que buscaban la verdad divina Gracias a las primeras se insinuoacute en las classes altas gracias a los segundos tomoacute contacto con la filosofia en el curso del siglo II y las consecuencias de este encuentro fueron incalculables
Eacute importante relembrar que a filosofia pressupunha a escrita e tinha um forte viacutenculo
com a literatura Mesmo o cristianismo no seacuteculo III jaacute possuiacutea um consideraacutevel nuacutemero de
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textos apologeacuteticos que dialogavam diretamente com a filosofia grega e possibilitavam para
a elite o acesso agraves ideacuteias cristatildes (cf Alesso 2006 31)
O relato do martiacuterio do soldado Marino surge portanto nesse contexto soacutecio-histoacuterico
como um texto de grande relevacircncia para o cristianismo Primeiro porque o personagem
principal eacute um soldado Integrava o grupo social de maior prestiacutegio nessa eacutepoca Como dizia
Septiacutemio Severo aos seus filhos ldquoEnriquecei o soldado e zombai do restordquo (Daniel-Rops
1988 299) E como no seacuteculo III as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio tomam uma nova
configuraccedilatildeo o contraste entre essas duas instituiccedilotildees eacute um assunto central O embate deixa
de ser apenas religioso e passa a ser tambeacutem poliacutetico - fato que vai se confirmar no seacuteculo
IV
Em segundo lugar a posiccedilatildeo social do maacutertir levanta outra questatildeo Marino como
membro da elite poderia facilmente ter comprado o libellus ndash documento que comprovava o
sacrifiacutecio aos deuses romanos ndash e assim conseguir sua liberdade (cf Silva 2006 248)
Daniel-Rops (1988 367) detalha que os ricos eram mais propensos a comprar falsos
documentos e a desistir ldquoConforme os testemunhos que temos parece que eram sobretudo os
ricos os bem instalados aqueles a quem a vida tinha concedido todo o conforto e que natildeo
estavam dispostos a sacrificaacute-lordquo que renunciavam agrave feacute
Aleacutem de abrir matildeo de sua posiccedilatildeo social e dos privileacutegios que iria obter como
centuriatildeo Marino natildeo se deixou dominar pelo medo a principal razatildeo da apostasia segundo
Daniel-Rops (1988 367) Eacute importante lembrar que a perseguiccedilatildeo sob Deacutecio instaurada em
249 dC ainda era bastante recente Numa tentativa de restaurar a gloacuteria do Impeacuterio Deacutecio
havia promulgado uma lei que obrigava todos os suacuteditos a retomarem o culto aos deuses
romanos Para ele ldquose todos os suacuteditos do Impeacuterio voltassem a adorar os deuses
possivelmente os deuses voltariam a favorecer o Impeacuteriordquo (Gonzaacutelez 1995 138) O culto era
um elemento essencial para os romanos Era por meio dele que expressavam sua
religiosidade como escreve Arnauld (2001 15) ldquoLa lsquopietasrsquo (pieacuteteacute) eacutetait la caracteacuteristique
principale de la religiositeacute romaine () Cette lsquopietasrsquo srsquoexprimait en une observance stricte
des lois rituelles Religion signifiait culterdquo
O descumprimento da lei por parte dos cristatildeos provocou uma perseguiccedilatildeo que teve
como consequumlecircncia um grande nuacutemero de apostasias fato que chegou a causar divergecircncia de
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opiniatildeo entre os bispos Num novo periacuteodo de relativa paz era portanto de suma importacircncia
para a Igreja insistir que os cristatildeos permanecessem firmes em suas convicccedilotildees Como
observa Daniel-Rops (1988 367) ldquoesses periacuteodos de interrupccedilatildeo nas perseguiccedilotildees natildeo
ajudavam em nada a coragem dos fieacuteis durante os tempos de calma a mola distendia-se e
quando subitamente era preciso voltar a entrar em luta muitos se sentiam faltos de energiardquo
Assim o testemunho de Marino evidencia o conflito existente entre a Igreja e o
Impeacuterio e conclama de maneira didaacutetica a que os cristatildeos tenham a mesma disposiccedilatildeo
mesmo diante da possibilidade da apostasia e dos terrores de um novo periacuteodo de perseguiccedilatildeo
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3 TEXTO GREGO
Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου Μαρίνου
Κατὰ τούτους εἰρήνης ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης ἐν Καισαρείᾳ τῆς
Παλαιστίνης Μαρῖνος τῶν ἐν στρατείαις ἀξιώμασι τετιμημένων γένει τε
καὶ πλοὕτῳ περιφανὴς ἀνήρ διὰ τὴν Χριστοῦ μαρτυρίαν τὴν κεφαλὴν
ἀποτέμνεται τοιᾶσδε ἕνεκεν αἰτίας
2 τιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας φασίν
ἑκατοντάρχους γίνεσθαι Τόπου σχολάζοντος ἐπὶ τοῦτο προκοπῆς τὸν
Μαρῖνον ἡ τοῦ βαθμοῦ τάξις ἐκάλει ἤδη τε μέλλοντα τῆς τιμῆς ἔχεσθαι
Παρελθὼν ἄλλος πρὸ τοῦ βήματος μὴ ἐξεῖναι μὲν ἐκείνῳ τῆς Ῥωμαίων
μετέχειν ἀξίας κατὰ τοὺς παλαιοὺς νόμους Χριστιανῷ γε ὄντι καὶ τοῖς
βασιλεῦσι μὴ θύοντι κατηγόρει αὐτῷ δὲ ἐπιβάλλειν τὸν κλῆρον
3 ἐφ᾿ ᾧ κινηθέντα τὸν δικαστὴν (Ἀχαιὸς οὕτος ἧν) πρῶτον μὲν ἐρέσθαι
ποίας ὁ Μαρῖνος εἴη γνώμης ὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν ἐπιμόνως
ἑώρα τριῶν ὡρῶν ἐπιδοῦναι αὐτῷ εἰς ἐπίσκεψιν διάστημα
4 ἐκτὸς δῆτα γενόμενον αὐτὸν τοῦ δικαστηρίου Θεότεκνος ὁ τῇδε
ἐπίσκοπος ἀφέλκει προσελθὼν δι᾿ ὁμιλίας καὶ τῆς χειρὸς λαβὼν ἐπὶ τὴν
ἐκκλησίαν προάγει εἴσω τε πρὸς αὐτῷ στήσας τῷ ἁγιάσματι μικρόν τι
παραναστείλας αὐτοῦ τῆς χλαμύδος καὶ τὸ προσηρτημένον αὐτῷ ξίφος
ἐπιδείξας ἅμα τε ἀντιπαρατίθησι προσαγαγὼν αὐτῷ τὴν τῶν θείων
εὐαγγελίων γραψήν κελεύσας τῶν δυοῖν ἑλέσθαι τὸ κατὰ γνώμην ὡς δ᾿
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ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν
ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς
αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης
5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ
δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ
δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν
ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται
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4 TRADUCcedilAtildeO
O martiacuterio do Santo Marino
1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares
em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido
honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por
todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu
testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte
2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a
conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a
ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo
Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e
declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e
portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos
romanos Assim o cargo cairia para si
3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou
primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele
insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs
horas para refletir
4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era
bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela
matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando
um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo
tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos
exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem
hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas
ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno
ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo
5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para
o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se
apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute
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imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre
o seu fim
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5 COMENTAacuteRIOS
51 OS PERSONAGENS
Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em
um ponto da estrutura
Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola
Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal
familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute
exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um
homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos
movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do
texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave
autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado
guerreiro
O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo
dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo
para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A
denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma
preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega
Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o
exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees
do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio
militar portanto tinha um significado muito grande
Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas
informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou
compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem
disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo
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Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na
quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado
provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era
seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para
conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial
para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve
como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)
O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para
anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo
de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos
outros personagens no texto
52 ESTRUTURA
O texto pode ser subdividido em 5 partes
(i) Marino o soldado cristatildeo
A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no
espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo
A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de
captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a
expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo
(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo
A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio
narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo
apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal
(iii) Marino e o juiz a confissatildeo
A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente
que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir
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(iv) Marino e o bispo a decisatildeo
Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de
Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem
palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a
espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe
a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras
(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo
Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo
Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte
53 TEMPO E ESPACcedilO
O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto
para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης
ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor
Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e
a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII
12)
A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que
Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em
todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto
o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se
deram de maneira muito raacutepida
Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia
na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no
entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes
contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o
Cristianismo
30
O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno
poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por
Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo
tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito
cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera
propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz
que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os
sofrimentos corporais
Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte
54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS
O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de
diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um
detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga
essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de
martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)
Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte
A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da
distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no
entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor
31
A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra
no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios
desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica
Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com
Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma
narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute
portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a
noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007
8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente
engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo
No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no
uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo
εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por
ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento
por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann
2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que
eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega
amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e
decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo
do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio
ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento
emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado
comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como
afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva
de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a
forte presenccedila do aspecto emotivo
A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para
enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou
ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops
(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma
32
medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te
apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo
Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila
Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte
pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o
caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o
representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute
o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar
Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel
seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os
espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo
Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na
hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops
(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo
obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo
O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino
se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua
decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo
que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar
O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma
meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior
sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O
adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez
Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num
texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e
ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς
πίστεως τὴν προθυμίαν
Assim temos
33
Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)
darrdarrdarrdarr
Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo
darrdarrdarrdarr
Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo
O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas
uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado
pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν
ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente
detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita
conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui
coerecircncia ao texto
Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)
destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura
feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que
todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou
seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica
fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e
estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha
havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois
poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo
34
sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser
adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um
antagonismo fundamentalrdquo
O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de
Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo
substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo
ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos
esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no
texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino
Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos
durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e
por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que
a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino
Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη
ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto
o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων
o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος
o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις
o substantivo εἰρήνη
o substantivo μαρτυρία
Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e
formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado
35
A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes
por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)
honra romana (τιμή)
vide (κλῆμα)
centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)
reconhecimento passageiro e
terreno (ἀξιώμασι
τετιμημένων )
honra cristatilde (τιμή)
paz (εἰρήνη)
maacutertir (μάρτυρ)
reconhecimento eterno e divino
(τελειοῦται)
O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria
honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o
argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado
explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos
versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω
ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o
objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας
φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo
Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o
ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ
τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela
feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)
36
Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha
pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento
terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo
ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na
comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o
cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)
Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito
mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp
Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo
por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute
essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto
O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por
exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer
voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do
termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que
ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to
the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις
Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de
um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados
Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor
menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A
acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os
personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado
numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo
de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute
em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz
37
como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da
acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade
interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se
constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio
por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os
imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao
registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o
mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)
A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das
intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que
como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos
entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo
38
CONCLUSAtildeO
O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e
produtivo sob vaacuterios aspectos
Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual
gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A
percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a
ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os
primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma
instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na
literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um
pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os
cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo
- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura
No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do
texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico
durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e
consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa
ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias
da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna
centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o
posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos
fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento
A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se
compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao
bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se
mostrar complacente
39
Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os
cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de
sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem
como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como
um substituto aos espetaacuteculos romanos
Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave
plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos
Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o
que deu origem ao culto dos santos
Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda
precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos
possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados
ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται
presente no texto traduzido e em outros relatos
Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais
utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e
posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma
melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande
auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo
cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade
proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses
novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde
40
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43
ANEXOS
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)
[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1
1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em
Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um
tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua
linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte
2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles
que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o
escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a
honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo
as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que
era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a
ele
3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a
Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que
era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse
4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e
afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma
vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o
manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e
contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as
duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a
direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -
manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que
escolheste Vai em pazrdquo
1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu
este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer
casos como o de Marino [nota do Editor]
44
5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de
novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado
Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua
feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado
45
TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)
During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in
Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and
was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It
came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour
and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and
according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he
was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and
attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and
should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to
the ancient laws but that instead the post should fall to himself
It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he
first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed
that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had
Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside
in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed
Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword
attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it
before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out
his right hand and took the divine writings
lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him
may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo
No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the
tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and
showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to
execution and so found his fulfilment
6
INTRODUCcedilAtildeO
A intenccedilatildeo deste trabalho eacute resgatar um gecircnero literaacuterio ao qual se tem dado pouca
atenccedilatildeo no Brasil a saber os relatos de martiacuterios cristatildeos Muitos desses martiacuterios ocorridos
entre os seacuteculos II e IV dC foram registrados em liacutengua grega ou latina e ainda carecem de
um estudo mais pormenorizado que identifique tanto as caracteriacutesticas literaacuterias quanto as
linguumliacutesticas
Nesta pesquisa destacar-se-aacute o relato grego de um soldado chamado Marino que apoacutes
ter sido acusado de natildeo observar as leis romanas perdeu o direito de se tornar centuriatildeo e foi
decapitado
Aleacutem de estabelecer uma traduccedilatildeo da liacutengua grega para a portuguesa tem-se como
objetivo definir neste trabalho a qual gecircnero literaacuterio o relato de martiacuterio do soldado Marino
pertence Para tanto seratildeo utilizados os trabalhos jaacute realizados na aacuterea da hagiografia e da
martirologia e tambeacutem os paracircmetros da literatura claacutessica
Tendo como pressuposto que os relatos de martiacuterio ndash martyria ndash formam um conjunto
literaacuterio especiacutefico e que natildeo haacute literatura neutra procurar-se-aacute avaliar o impacto causado por
esses textos na sociedade romana da eacutepoca e como eles lidam com as diferenccedilas morais e
religiosas entre cristatildeos e natildeo cristatildeos
Conforme nos eacute informado pelos relatos histoacutericos o Cristianismo permaneceu uma
religio ilicita ateacute o reinado de Constantino no seacuteculo IV Durante os seacuteculos anteriores a
situaccedilatildeo dos cristatildeos era relativamente fraacutegil do ponto de vista poliacutetico Ora eram acusados
pelo povo ora protegidos pelas leis Todo esse quadro de instabilidade certamente se refletia
na literatura e alcanccedilava de alguma maneira os leitores Assim por vezes os cristatildeos
recorriam agraves ideacuteias filosoacuteficas para se protegerem dos ataques externos por vezes aos
princiacutepios cristatildeos para se manterem unidos e confiantes diante de uma possiacutevel perseguiccedilatildeo
individual ou em massa Por essa razatildeo seratildeo discutidas a partir do texto selecionado as
funccedilotildees assumidas por esse tipo de literatura e as estrateacutegias utilizadas pelo autor para
cumprir tais funccedilotildees Para tanto seratildeo focalizados o contexto soacutecio-histoacuterico em que a morte
7
de Marino se deu e os elementos linguumliacutesticos agrave disposiccedilatildeo no texto para a realizaccedilatildeo dessa
anaacutelise
O estudo da literatura cristatilde mostra-se portanto fundamental para o entendimento do
pensamento e da cultura natildeo soacute introduzida pela comunidade cristatilde mas tambeacutem da sociedade
romana como um todo Afinal a propagaccedilatildeo do Cristianismo se deu - com perseguiccedilatildeo ou
sem perseguiccedilatildeo - durante o periacuteodo do Impeacuterio romano e por meio das liacutenguas de cultura da
eacutepoca primeiramente o grego e depois tambeacutem o latim Natildeo haacute portanto como analisar a
literatura e a liacutengua utilizadas por essa comunidade sem levar em conta ao mesmo tempo as
ideologias filosofias costumes e sistemas sociais poliacuteticos e econocircmicos que norteavam o
Impeacuterio romano
Por fim eacute importante ressaltar que a anaacutelise individualizada desses textos contribui
para o aprofundamento das metodologias e escolhas utilizadas pelos autores muitas vezes
anocircnimos Esse tipo de anaacutelise permite uma melhor compreensatildeo do uso da liacutengua nessa
eacutepoca Permite tambeacutem a comparaccedilatildeo entre os textos e auxilia na verificaccedilatildeo de questotildees
como Ateacute que ponto os relatos de diversos maacutertires produzidos por autores distintos e em
lugares diferentes podem ser correlacionados Havia uma linguagem proacutepria dos cristatildeos
Quais os itens lexicais mais utilizados O valor semacircntico desses itens era o mesmo para
cristatildeos e natildeo cristatildeos
O texto grego utilizado neste trabalho foi o publicado por Musurillo (2000) Para a
traduccedilatildeo foram consultados os seguintes dicionaacuterios
BAIILY A Dictionnaire Grec-Franccedilais Paris Hachette 1950
GINGRICH Wilburg amp DANKER Frederick Leacutexico do Novo Testamento Grego-
Portuguecircs Traduccedilatildeo Juacutelio PT Zabatiero Satildeo Paulo Vida Nova 1993
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to AD 1100 ndash part one New York Charles Scribnerrsquos Sons 1900
8
Em anexo encontram-se duas outras traduccedilotildees para o relato de martiacuterio de Marino a
de Musurillo (2000) para a liacutengua inglesa e a de Fischer (2005) para a liacutengua portuguesa
9
1 GEcircNERO LITERAacuteRIO
O objetivo deste capiacutetulo eacute classificar e compreender o gecircnero literaacuterio no qual os
relatos de martiacuterio estatildeo inseridos
A primeira observaccedilatildeo que precisa ser feita a respeito dos relatos de martiacuterio eacute que a
leitura empreendida neste trabalho tem como pressuposto o ponto de vista literaacuterio Ou seja
natildeo se tem a intenccedilatildeo de discutir a veracidade dos fatos histoacutericos relatados ou de se fazer um
estudo criacutetico no sentido de discernir o que eacute histoacuteria do que eacute ficccedilatildeo Ateacute mesmo porque
conforme escreve Musurillo (2000 liv) a linha entre histoacuteria e ficccedilatildeo nesse tipo de texto eacute
muito tecircnue
A classificaccedilatildeo do gecircnero ao qual pertencem os relatos de martiacuterio pode ser feita por
duas vias distintas Pela primeira partimos dos mais variados tipos de textos de diferentes
eacutepocas com o intuito de por meio da comparaccedilatildeo entre as caracteriacutesticas formais enquadraacute-
los a um determinado gecircnero Pela segunda contrastamos textos de cunho cristatildeo - escritos
por autores nomeadamente cristatildeos com o objetivo de divulgar a sua feacute ndash aos de cunho natildeo-
cristatildeo Essas duas vias satildeo levadas em consideraccedilatildeo neste capiacutetulo comeccedilando pela segunda
a comparaccedilatildeo entre a literatura cristatilde e a natildeo-cristatilde
11 LITERATURA CRISTAtilde E LITERATURA PAGAtilde
A contraposiccedilatildeo entre literatura cristatilde e natildeo-cristatilde eacute um ponto fundamental para a
questatildeo do gecircnero natildeo soacute dos relatos de martiacuterio mas tambeacutem para todos os outros tipos de
textos escritos durante os primeiros seacuteculos da era cristatilde Isso porque durante os seacuteculos II a
IV dC o Cristianismo busca sua afirmaccedilatildeo como religiatildeo e filosofia utilizando-se em
grande medida da escrita
Alesso (2006 24) explica que eacute a partir do seacuteculo II que o Cristianismo se organiza
para enfrentar problemas internos como ldquoas acusaccedilotildees de heresia lutas pelo poder perigos de
cisma e controveacutersias teoloacutegicasrdquo A organizaccedilatildeo tambeacutem se fez necessaacuteria para enfrentar os
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ataques externos o que resultou na apresentaccedilatildeo das ideacuteias cristatildes de modo filosoacutefico em
textos bem elaborados e com caracteriacutesticas semelhantes aos da cultura da eacutepoca
Los discursos de los obispos y letrados defensores del cristianismo no podiacutean ser espontaacuteneos ni livianos cuando se trataba de responder a las criacuteticas y a la difamacioacuten de enemigos tan ilustrados como ellos No bastaba la elocuencia entusiasta habiacutea que ordenar las ideas en lo molde de recursos avalados por el prestigio de siglos en los geacuteneros discursivos que los doctos habiacutean aprendido e internalizado desde su maacutes tierna formacioacuten heleniacutestica
Assim depreende-se que a literatura cristatilde destes primeiros seacuteculos visava atender
duas necessidades principais o ensino para manter a coesatildeo do puacuteblico interno e a apologia
que procurava defender a feacute diante do puacuteblico externo
Os escritos apologeacuteticos dialogavam de maneira direta com a filosofia grega e eram
escritos geralmente por bispos que viviam em grandes centros urbanos como Justino o
maacutertir Oriacutegenes Teoacutefilo e Tertuliano Por essa razatildeo tais discussotildees permaneciam muitas
vezes entre a elite natildeo chegando ao puacuteblico em geral (cf Alesso 2006 31) Desde muito
cedo portanto surge uma divisatildeo natural de destinataacuterios na literatura cristatilde enquanto alguns
textos eram escritos e dirigidos a leitores cultos outros textos tinham como puacuteblico-alvo o
povo
Para Alesso (2006 29-30) essa divisatildeo eacute claramente percebida quando do surgimento
do gecircnero biacuteos ldquoEl geacutenero biacuteos que tendriacutea entonces en principio como destinatario a un
lector cultivado se cumple tambieacuten en un subgeacutenero de corte popular las vidas ejemplaresrdquo
Eacute o gecircnero biacuteos que estabelece de fato em meados do seacuteculo IV a hagiografia - a biografia
que relata a vida de um santo - como um modelo literaacuterio a ser seguido pelos escritores
cristatildeos especialmente pelo movimento monaacutestico Segundo Moreschini amp Norelli (2000
511) a hagiografia foi com o tempo aproximando-se cada vez mais da biografia pagatilde Para
eles a relaccedilatildeo entre cristianismo e paganismo ldquoocorreu com todas as demais formas literaacuterias
cristatildesrdquo porque ldquopraticadas por pessoas que tiveram em comum com os pagatildeos os mestres as
escolas e as leiturasrdquo Tal fato reforccedila ainda mais a divisatildeo entre leitores que tinham acesso agrave
educaccedilatildeo formal daqueles que natildeo a tinham
As pessoas destituiacutedas de uma introduccedilatildeo agraves teorias filosoacuteficas e teoloacutegicas eram
atendidas em grande parte pelas leituras de relatos de martiacuterios ao que Alesso chama de ldquolas
vidas ejemplaresrdquo Os relatos eram lidos durante as celebraccedilotildees cristatildes tornando-se parte da
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liturgia do culto Eram lembrados tambeacutem pela comunidade local por ocasiatildeo do aniversaacuterio
do maacutertir quando o povo se reunia em torno do tuacutemulo ou fazia peregrinaccedilotildees ateacute ele (cf
Musurillo 2000 lvi Moreschini amp Norelli 2000 297)
Os relatos de martiacuterios (acta passiones e martyria) no entanto formam entre si um
gecircnero especiacutefico Aleacutem disso conteacutem elementos que antecedem e prenunciam a formaccedilatildeo da
hagiografia Satildeo denominados por Moreschini amp Norelli (2000 511) de ldquohagiografia
primitivardquo O costume de narrar a prisatildeo o sofrimento e a morte de um cristatildeo explicam esses
autores apareceu ldquoquase contemporaneamente em lugares diferentes da cristandade em
formas diversas e com ascendecircncias e caracteriacutesticas ideoloacutegicas variadas o gecircnero literaacuterio
como tal se constitui progressivamente pelo desenvolvimento e pelas reciacuteprocas relaccedilotildees dos
textosrdquo
O modelo de narrativa dos maacutertires cristatildeos remonta na verdade aos relatos
encontrados na Biacuteblia como o martiacuterio de Estevatildeo (Atos dos Apoacutestolos 7) de Tiago (At 12)
e aos sofrimentos de Paulo (At 14) O modelo central poreacutem eacute o proacuteprio Jesus cuja vida eacute
narrada pelos Evangelhos Note-se que a ecircnfase dos Evangelhos natildeo eacute narrar todos os
acontecimentos biograacuteficos mas destacar os sofrimentos de Cristo desde seu nascimento
como por exemplo a perseguiccedilatildeo de Herodes ateacute sua crucificaccedilatildeo
Ainda que os relatos cristatildeos tenham tido como modelo textos pagatildeos tema discutido
por Delehaye (1966) Berger (1998) e Uytfanghe (1993) foi o Cristianismo que disseminou e
divulgou esse tipo de literatura Delehaye (1966 113-125) assinala que haacute vaacuterias diferenccedilas
entre os relatos dos maacutertires pagatildeos Alexandrinos e os relatos dos maacutertires cristatildeos Uma
delas se encontra na motivaccedilatildeo para o martiacuterio ldquoIci nous voyons des hommes qui meurent
pour leurs convictions et agrave qui il suffirait drsquoun mot ou drsquoun geste pour reconqueacuterir la liberteacute
Lagrave on nous presente les chefs drsquoune faction politique qui deacutefendent au prix de leur vie leur
programme et leurs actes et qui perdent la partierdquo (1966 124) E para Uytfanghe (1993 174)
caracteriacutesticas como humildade amor e perdatildeo natildeo satildeo encontradas em maacutertires pagatildeos
como Soacutecrates e Secircneca Jaacute nos cristatildeos elas estatildeo presentes de maneira radical
De uma forma geral os autores concordam que a formaccedilatildeo de um gecircnero a partir dos
relatos de martiacuterio e sua posterior propagaccedilatildeo pelos cristatildeos natildeo tinham uma intenccedilatildeo uacutenica
pelo contraacuterio vecirc-se nesses textos uma intenccedilatildeo multifacetada Para Musurillo (2000 liv-
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lvii) os relatos de martiacuterio exerciam pelo menos trecircs funccedilotildees a primeira era a funccedilatildeo
histoacuterica jaacute que tanto os Evangelhos como os Atos dos Apoacutestolos e os martyria baseavam-se
em fatos histoacutericos A segunda era a apologeacutetica isto eacute a afirmaccedilatildeo da feacute cristatilde diante do
mundo E por uacuteltimo a funccedilatildeo de ensino Uytfanghe (1993 173-175) observa que por meio
desses relatos os cristatildeos eram encorajados a permanecerem firmes nas suas crenccedilas e a
cultivarem uma vida santa e asceacutetica O maacutertir se tornava assim um modelo a ser seguido E
o cristatildeo ndash literalmente o seguidor de Cristo - dava continuidade aos ensinos e agrave vida de
Jesus o qual afirmou ldquoLembrem-se das palavras que eu lhes disse Nenhum escravo eacute maior
do que o seu senhor Se me perseguiram tambeacutem perseguiratildeo vocecircsrdquo (Evang Joatildeo 1520)
Aleacutem desses trecircs aspectos a formaccedilatildeo de um corpus literaacuterio cristatildeo era de grande
interesse para a Igreja na medida em que oferecia ao puacuteblico cristatildeo a cada dia maior uma
nova opccedilatildeo cultural Conforme o registro que possuiacutemos no escrito Os Espetaacuteculos do bispo
Tertuliano de Cartago os cristatildeos eram aconselhados a natildeo frequumlentarem os teatros e os
circos nem assistirem aos combates de gladiadores ldquoMas eles percebem que algueacutem se fez
cristatildeo sobretudo pelo fato de evitar os espetaacuteculosrdquo (De spect 243)
Tertuliano posicionou-se fortemente contra a participaccedilatildeo dos cristatildeos nos espetaacuteculos
promovidos pelos teatros circos e arenas porque aleacutem de possuiacuterem uma ligaccedilatildeo com algum
deus grego ou romano - e portanto promoverem a idolatria - evidenciavam a incoerecircncia da
sociedade romana ldquosoacute ali [no teatro] tem curso e aplauso o que em qualquer outra parte se
reprovardquo (De spect 171) Assim argumenta ldquoConvencidos ficamos que por nenhum lado
nos fica bem laacute ir noacutes que por duas vezes renunciamos aos iacutedolosrdquo (De spect 13 1) Para
Tertuliano o homem eacute imagem e semelhanccedila de Deus e por essa razatildeo natildeo deveria
corromper sua alma e corpo
O certo eacute que natildeo nos foram dados os olhos para os entregar agrave concupiscecircncia nem a liacutengua para a maledicecircncia nem os ouvidos para sorvedouro de murmuraccedilotildees nem o paladar para poccedilo de gula o ventre para dar seguimento agrave mesma gula os oacutergatildeos genitais para excessos de impureza as matildeos para estrangular o proacuteximo os peacutes para vagabundear natildeo se nos infundiu a alma ateacute as entretelas do corpo para vir a ser um recesso de ciladas e de embustes e de iniquumlidades (De spect 210)
Os prazeres cultivados pela sociedade romana deveriam portanto ser abandonados e
substituiacutedos Para Tertuliano o cristatildeo natildeo tinha necessidade de espetaacuteculos pois desfrutava
dos prazeres (voluptates) proacuteprios agrave sua feacute Seus argumentos satildeo os seguintes
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Que melhor alegria que a que promana da reconciliaccedilatildeo com Deus Pai Nosso Senhor do conhecimento da verdade de reconhecer os erros do perdatildeo de tantos pecados da passada vida Que maior prazer que o asco do proacuteprio prazer que a consciecircncia pura que a vida sem ambiccedilotildees e o destemor da morte Pisar aos peacutes os deuses dos gentios expelir os democircnios curar doentes informar-te da verdade revelada viver para Deus aiacute estatildeo as alegrias satildeo esses os espetaacuteculos santos dos cristatildeos os espetaacuteculos perpeacutetuos por que se natildeo paga nada (De spect 29 1-3)
O bispo continua a explanaccedilatildeo de suas ideacuteias afirmando que os cristatildeos natildeo possuem o
teatro mas tecircm boa literatura natildeo possuem os combates de gladiadores mas tecircm as lutas pela
feacute e pela castidade natildeo possuem o sangue das arenas mas tecircm o sangue de Cristo ldquoSe o
palavreado cecircnico eacute divertido natildeo temos falta de boas letras temos versos a rodos e
pensamentos bem cunhados nada se diga de cacircnticos e vozes do melhor metal em vez de
faacutebulas temos verdades em vez de embustes a lisura mais declaradardquo (De spect 294)
A defesa e a valorizaccedilatildeo de uma literatura proacutepria aos cristatildeos eacute um elemento
extremamente importante para a propagaccedilatildeo dos relatos de martiacuterio porque conforme visto
acima esse tipo de texto entrou em circulaccedilatildeo como um substituto agraves encenaccedilotildees teatrais
Assim os martyria ajudaram a constituir um corpus literaacuterio cristatildeo que se tornou um
instrumento de poder para a Igreja
Como observa Fox (1996 130) os maacutertires compartilhavam juntamente com os
bispos e visionaacuteriosprofetas um lugar privilegiado na comunidade ldquoAmong Christians
before Constantine power was attribute of three particular groups it was achieved by
visionaires it was ascribed to martyrs and confessors it was vested above all in bishops
Literacy assisted the exercise of power by all threerdquo Os integrantes desses trecircs grupos natildeo
apenas eram admirados mas tidos como autoridades Os bispos por exemplo eram
considerados por Inaacutecio de Antioquia como ldquoos representantes de Deus na Igrejardquo
(Guignebert 1956 137) Por isso os escritos ou discursos proferidos por esses trecircs grupos
eram recebidos na maioria das vezes como proacutepria palavra de Deus fator que atribuiacutea um
poder ainda maior aos textos Para Fox (1996 129) ldquothis combination of sacred text and an
increasingly standardised pattern of authority make the early Church a unique subject for
studies of literacy and powerrdquo
Como um gecircnero da literatura cristatilde os relatos de martiacuterio tambeacutem serviram para a
manutenccedilatildeo e a transmissatildeo da ideologia cristatilde nos primeiros seacuteculos do Cristianismo
conforme escreve Alesso (2006 34-35)
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Los geacuteneros en todas sus formas y subformas son el suporte estructural para la transmisioacuten de un ideario y lo fueron de modo especial en el trasvase de los contenidos que provenientes de la antiguumledad se imbricaron en el cristianismo de los Padres Aunque su relacioacuten com la criacutetica sociohistoacuterica es marginal los geacuteneros son indudables portadores de significacioacuten cuando interesan a la evolucioacuten de paraacutemetros poliacutetico culturales que intervinieran en la construccioacuten del edificio ideoloacutegico de la teologiacutea cristiana
O fortalecimento da literatura cristatilde foi enfim um fator essencial para a difusatildeo do
Cristianismo porque ajudou a organizaacute-lo como instituiccedilatildeo Por meio da literatura o
Cristianismo conseguiu alcanccedilar pessoas de todos os lugares e de todas as classes sociais
inclusive as pertencentes agrave elite que conforme Daniel-Rops (1988 305) sentiam o decliacutenio
do Impeacuterio que chegava ateacute mesmo ao acircmbito literaacuterio e artiacutestico
12 AS CARACTERIacuteSTICAS LITERAacuteRIAS FORMAIS
Quanto agraves caracteriacutesticas formais que podem ser levadas em conta para a classificaccedilatildeo
do gecircnero os relatos de martiacuterio mesclam traccedilos tanto do gecircnero biograacutefico quanto do
discurso hagiograacutefico
Os relatos de martiacuterio natildeo podem ser classificados categoricamente como biacuteoi pois
natildeo chegam a constituir uma biografia de fato Tambeacutem natildeo podem ser classificados como
hagiografia em sentido exclusivo porque como afirma Delehaye (apud Uytfanghe 1993
146) esta eacute muito abrangente inclui ldquotodo documento escrito inspirado pelo culto dos santos
e destinado a promovecirc-lordquo Assim o que se verifica eacute um entrecruzamento de gecircneros Isso
ocorre porque os gecircneros satildeo como afirma Alesso (2006 29) sistemas abertos ldquolas
invariantes coexisten con las variables y no podemos condenarlos y condenarnos a una
esquematizacioacuten extrema porque perderiacuteamos de vista uno de los objetivos primordiales la
finalidad del contenidordquo Por essa razatildeo adotamos neste trabalho a definiccedilatildeo biacuteos
hagiograacutefico introduzida por Ipiranga Juacutenior (2006 9)
Segundo Momigliano (1971 25) os gregos jaacute possuiacuteam o haacutebito de redigir biografias
no seacuteculo V aC mas foi no periacuteodo heleniacutestico que ele se intensificou e o gecircnero recebeu um
nome especiacutefico ldquobien qui nous conaissions lrsquoexistence de biographies et peut-ecirctre
drsquoautobiographies degraves le cinquiegraveme siegravecle avant JC crsquoest seulement agrave lrsquoeacutepoque helleacutenistique
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que la biographie devient une notion precise et acquiert un nom en propre Ce nome est lsquobiosrsquo
ndash et non lsquobiographiarsquordquo
Para Bakhtin (2003 138) entretanto a biografia como romance surgiu apenas no fim
da Idade Meacutedia Durante os seacuteculos II-IV dC ainda era uma forma literaacuteria em formaccedilatildeo
Mesmo tendo em mente a distacircncia cronoloacutegica entre os martyria e o romance biograacutefico ao
qual Bakhtin se refere eacute possiacutevel perceber semelhanccedilas entre os dois
A primeira delas eacute a presenccedila do heroacutei com valores do tipo bravura honradez
magnanimidade e generosidade (cf Bakhtin 2003 142 147) Ao abrir matildeo de posiccedilotildees
poliacuteticas e religiosas ao enfrentar perigos sofrimentos torturas e feras sem renunciar agrave feacute o
maacutertir eacute visto como um heroacutei pela comunidade cristatilde Ele ldquotorna-se uma espeacutecie de ponto
focal da vida da comunidade que o circunda de veneraccedilatildeo considerando-o jaacute em contato com
Deus capaz de profetizar e de pronunciar-se com uma autoridade especial tambeacutem sobre
questotildees eclesiaacutesticasrdquo (Moreschini amp Norelli 2000 297) Morrer por sua feacute eacute o ato supremo
de glorificaccedilatildeo para os primeiros cristatildeos E eacute por meio dessa glorificaccedilatildeo de acordo com as
palavras de Bakhtin (2003 143) que o heroacutei consegue alcanccedilar a consciecircncia de uma
determinada sociedade incutindo assim novos valores
A aspiraccedilatildeo agrave gloacuteria organiza a vida do heroacutei ingecircnuo a gloacuteria organiza tambeacutem a narraccedilatildeo da sua vida sua glorificaccedilatildeo Aspirar agrave gloacuteria eacute tomar consciecircncia de si na sociedade culta e histoacuterica dos homens (ou na naccedilatildeo) eacute afirmar e construir sua vida na possiacutevel consciecircncia dessa sociedade humana eacute crescer natildeo em si nem para si mas nos outros ou para os outros eacute ocupar um lugar no mundo imediato dos contemporacircneos e descendentes
A segunda semelhanccedila detectada entre os gecircneros biograacutefico e biacuteos hagiograacutefico eacute a
relaccedilatildeo de empatia que se estabelece entre autor-personagem Segundo Bakhtin (2003 150)
autor e personagem compartilham obrigatoriamente os mesmos valores ldquona biografia o
autor natildeo soacute combina com a personagem na feacute nas convicccedilotildees e no amor mas tambeacutem em
sua criaccedilatildeo artiacutestica (sincreacutetica) tomando como guia os mesmos valores que a personagem
em sua vida esteacuteticardquo Embora o autor do martiacuterio do soldado Marino natildeo seja explicitado eacute
possiacutevel inferir pelo texto que o interesse de registrar o fato tenha partido natildeo de algueacutem que
simplesmente compartilhava com ele a situaccedilatildeo de soldado do exeacutercito romano mas sim de
algueacutem que dividia os mesmos valores cristatildeos
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Quanto agrave modalidade do romance a relaccedilatildeo entre os gecircneros biacuteos hagiograacutefico e
biograacutefico tambeacutem eacute possiacutevel Bakhtin (2003 205) identifica quatro modelos de romance
ldquosegundo o princiacutepio de construccedilatildeo da imagem da personagem central o romance de viagens
o romance de provaccedilatildeo da personagem o romance biograacutefico (autobiograacutefico) o romance de
educaccedilatildeordquo Ora por ser um gecircnero hiacutebrido a personagem principal do biacuteos hagiograacutefico
mescla caracteriacutesticas tanto do romance de provaccedilatildeo quanto do romance biograacutefico
Para Bakhtin (2003 207) o romance de provaccedilatildeo divide-se em duas modalidades ldquoA
primeira modalidade eacute representada pelo romance grego (A Etioacutepica Leucipo e Cleitofon
etc) A segunda modalidade eacute representada pelas hagiografias do iniacutecio do cristianismo
(particularmente dos maacutertires)rdquo O objetivo das provaccedilotildees neste tipo de romance eacute mudar a
opiniatildeo e os valores do heroacutei Como nos relatos de martiacuterio os cristatildeos natildeo renunciam a sua
feacute natildeo haacute mutabilidade Logo o maacutertir aproxima-se do conceito de heroacutei da provaccedilatildeo ele ldquoeacute
acabado e predeterminado as experimentaccedilotildees (sofrimentos seduccedilotildees duacutevidas) natildeo se
tornam para ele uma experiecircncia formadora nem a modificam e nessa imutabilidade da
personagem estaacute toda questatildeordquo (Bakhtin 2003 209)
Aleacutem disso no romance de provaccedilatildeo o personagem eacute o centro Natildeo importam os
costumes ou lugares exoacuteticos como no romance de viagens O personagem natildeo eacute modificado
de forma determinante pelo mundo nem o modifica
Entre o heroacutei e o mundo natildeo existe interaccedilatildeo autecircntica o mundo natildeo eacute capaz de mudar o heroacutei ele apenas o experimenta e o heroacutei natildeo influencia o mundo natildeo lhe muda a face ao passar pela provaccedilatildeo ao afastar seus inimigos etc o heroacutei deixa no mundo tudo nos seus lugares natildeo modifica a face social do mundo natildeo o reconstroacutei e aliaacutes nem tem essa pretensatildeo (Bakhtin 2003 212)
Eacute exatamente esta a situaccedilatildeo observada no texto em anaacutelise A crise pela qual passa o
personagem Marino natildeo eacute capaz de alterar suas convicccedilotildees nem de mudar o curso normal dos
acontecimentos agrave parte de sua vida o exeacutercito continuaraacute existindo uma outra pessoa tomaraacute
o seu lugar e tudo continuaraacute funcionando sob os mesmos princiacutepios
Quanto ao romance biograacutefico Bakhtin (2003 213) considera que assim como o
romance de provaccedilatildeo ele ldquoeacute preparado ainda em solo antigo nas biografias antigas
autobiografias e confissotildees do periacuteodo inicial do cristianismo (terminando em Agostinho)rdquo
O gecircnero biacuteos hagiograacutefico estabelece contatos com esse tipo de romance por meio do
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enredo Como o romance biograacutefico tem como elemento principal a narraccedilatildeo da trajetoacuteria
vital de um determinado personagem ou seja tem como base justamente aqueles ldquoelementos
existentes antes do iniacutecio ou depois do teacutermino do romance de provaccedilatildeordquo (Ibid) engloba
necessariamente o relato da morte fato fundamental para o surgimento de um maacutertir na
concepccedilatildeo cristatilde
No romance biograacutefico a relaccedilatildeo da personagem com o mundo ganha um enfoque
diferente daquele verificado no romance de viagens ou no de provaccedilatildeo Bakhtin (2003 215)
verifica que ldquoPersonagens secundaacuterias paiacuteses cidades objetos etc integram o romance
biograacutefico por vias substanciais e ganham uma relaccedilatildeo igualmente substancial com o todo
vital da personagem centralrdquo Paradoxalmente o relato do soldado Marino apresenta tambeacutem
esse aspecto Embora ele permanecesse inabalaacutevel em sua decisatildeo de natildeo negar a feacute cristatilde
antes de o juiz lhe conceder um tempo para refletir eacute no encontro com o bispo Teotecno e
principalmente apoacutes o confronto com um objeto de grande valor ndash as Escrituras ndash que
Marino segue resoluto para o tribunal
Bakhtin tambeacutem escreve sobre o gecircnero hagiograacutefico embora com mais cautela Para
o autor (2003 169-70) ldquoa hagiografia se realiza diretamente no mundo do divinordquo Por se
tratar de um plano diferenciado em que ldquoa atitude reverente do autor natildeo deixa espaccedilo agrave
iniciativa individualrdquo (2003 170) Bakhtin prefere manter a mesma distacircncia Assim limita-
se em dizer que a hagiografia ldquorecorre a formas tradicionalmente sagradasrdquo (Ibid)
No aspecto formal os relatos de martiacuterio possuem de fato vaacuterias semelhanccedilas e um
fundamento em comum que satildeo os processos verbais No entanto ainda natildeo existe entre os
seacuteculos II e IV dC essa preocupaccedilatildeo ou esse rigor com a forma com a exclusatildeo de todo
elemento que possa remeter agrave individualidade
deve-se excluir tudo o que eacute tiacutepico de uma dada eacutepoca de uma dada nacionalidade () de uma dada condiccedilatildeo social de uma dada idade todo o concreto de uma imagem de uma vida todas as minuacutecias desta as indicaccedilotildees precisas do tempo e do espaccedilo na accedilatildeo ndash tudo o que reforccedila a determinidade no ser de um dado indiviacuteduo e assim lhe diminui a autoridade (Bakhtin 2003 170)
Vecirc-se portanto a partir dessa breve anaacutelise que o gecircnero biacuteos hagiograacutefico mescla
caracteriacutesticas tanto do gecircnero biograacutefico ndash seja biacuteos ou romance biograacutefico - quanto da
hagiografia constituindo assim um gecircnero agrave parte
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2 CONTEXTO SOacuteCIO-HISTOacuteRICO
O relato do martiacuterio de Marino se tornou conhecido por meio da obra Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio bispo de Cesareacuteia no iniacutecio do seacuteculo IV Para Puech (1930 173)
ldquoEusegravebe est un meacutediocre theacuteologien et un meacutediocre eacutecrivain () mais il nous a rendu comme
historien et comme chronographe des services inestimablesrdquo De fato dificilmente teriacuteamos
acesso a esse texto se natildeo fosse o trabalho de Euseacutebio De acordo com a cronologia do bispo
a morte de Marino eacute situada entre os anos 260-261 dC Para o tradutor Musurillo (2000
xxxvi) essa data eacute bastante provaacutevel O comentaacuterio no relato de que todas as igrejas
desfrutavam de um periacuteodo de paz eacute o principal fator que leva a essa conclusatildeo No ano de
260 dC eacute promulgado o edito de Galieno o qual ldquoautoriza os liacutederes da Igreja a presidir
livremente as celebraccedilotildees religiosasrdquo (Silva 2006 250)
No entanto mesmo com as medidas favoraacuteveis por parte dos governantes o
cristianismo permanecia uma religio ilicita e portanto os cristatildeos ainda estavam sujeitos a
julgamento caso fossem delatados Foi o que aconteceu com o soldado Marino Uma vez
acusado de ser cristatildeo e de natildeo prestar culto ao imperador foi levado ao tribunal Eacute muito
provaacutevel que Marino tivesse vaacuterios colegas cristatildeos no exeacutercito que natildeo foram executados
porque ningueacutem aparecera para acusaacute-los A situaccedilatildeo dos cristatildeos era realmente
imprevisiacutevel Daniel-Rops (1988 346) comenta que no seacuteculo III essa constante mudanccedila de
humor por parte do Impeacuterio criou uma situaccedilatildeo sem precedentes ldquoComo um anciatildeo doente
que ora dormita inconsciente ou vagamente inquieto ignorando as impaciecircncias que o
rodeiam ora se irrita e ainda se mostra terriacutevel da mesma forma o Impeacuterio muda a todo o
momento de atitude Eacute isto o que daacute agraves perseguiccedilotildees do seacuteculo III um caraacuteter tatildeo diferente das
precedentesrdquo
Assim Marino foi o escolhido naquele momento de paz temporaacuteria Eles tinham
conhecimento da lei que estava em vigor desde a eacutepoca do imperador Trajano (110-111 dC)
quando este determinara ao governador Pliacutenio que os cristatildeos natildeo deveriam ser
sistematicamente perseguidos nem deveriam ser aceitas denuacutencias anocircnimas contra eles
(Gonzaacutelez 1995 64) A recomendaccedilatildeo dada a Pliacutenio havia sido adotada em todo o Impeacuterio
Uma vez acusados entretanto deveriam ser julgados Geralmente os cristatildeos eram levados
19
ao tribunal em decorrecircncia de disputas locais como escrevem Danieacutelou amp Marrou (1966
105)
Conveacutem frisar que natildeo haacute proscriccedilatildeo de cristatildeos pelo poder central quer dizer natildeo haacute perseguiccedilatildeo total Em segundo lugar verificam-se ataques locais movidos pelo povo e depois submetidos agrave apreciaccedilatildeo do magistrado romano () Em terceiro lugar o motivo da perseguiccedilatildeo natildeo se liga a crimes determinados mas unicamente ao lsquonomersquo cristatildeo O levantamento feito por Pliacutenio levara mesmo agrave conclusatildeo de que eram inocentes os cristatildeos
Guignebert (1956 169-70) tambeacutem assinala que apesar de todas as acusaccedilotildees
nenhum crime recaiacutea sobre os cristatildeos
Varias acusaciones de derecho comuacuten se poniacutean en juego al mismo tiempo para agobiar a los fieles religioacuten iliacutecita sociedad secreta lesa majestad negativa de obediencia si se trataba de soldados ignavia es decir negligencia en el cumplimiento de los deberes de la vida puacuteblica y privada y hasta magia Por lo demaacutes estas acusaciones cuando se aplicaban a los cristianos presentaban la singularidad de que se desistia inmediatamente de ellas si el inculpado consentiacutea en decir que renunciaba a su feacute lo que permite suponer que en suma era la religioacuten cristiana solamente lo que se perseguia
Ainda assim os cristatildeos precisavam ser castigados porque ao insistirem na afirmaccedilatildeo
ldquoSou cristatildeordquo rebelavam-se contra os princiacutepios do Impeacuterio especialmente o do culto ao
imperador
Este delito tinha de ser castigado em primeiro lugar porque de outro modo diminuiria a autoridade desses tribunais e em segundo lugar porque ao negarem a adorar o imperador os cristatildeos estavam adotando uma atitude que nesse tempo se interpretava como rebeliatildeo contra a autoridade imperial Com efeito o culto ao imperador era um dos viacutenculos que uniam o Impeacuterio e negar-se em puacuteblico a render esse culto equivalia a romper esse viacutenculo (Gonzaacutelez 1995 66)
Novamente percebe-se o caraacuteter imprevisiacutevel da vida cristatilde Os autores reconhecem
que de uma maneira geral as comunidades cristatildes procuravam levar uma vida exemplar e
submissa agraves leis do Impeacuterio ldquoAs instruccedilotildees de civismo dadas pelos Apoacutestolos continuam a
ser observadas e os cristatildeos mostram-se na sua grande maioria cidadatildeos fieacuteis e devotados ao
bem puacuteblicordquo (Daniel-Rops 1988 345) Poreacutem quando levados a julgamento puacuteblico natildeo
aceitavam prestar culto a outro senhor aleacutem de Cristo
No tocante ao serviccedilo militar as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio nem sempre eram
tatildeo simples Na opiniatildeo de Guignebert (1956 166) isso se dava porque as obrigaccedilotildees
militares geralmente tinham uma forte ligaccedilatildeo com as praacuteticas religiosas pagatildes
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El servicio militar les resultaba odioso porque suponiacutea obligaciones idolaacutetricas y porque execraban la guerra su participacioacuten en el servicio civil les pareciacutea supeacuterflua sobre todo se rehusaban obstinadamente a tomar parte en ninguna de las manifestaciones de lealtad que el gobierno imperial reclamaba porque todas revestiacutean caraacutecter religioso
Do mesmo modo Daniel-Rops (1988 345) relata
casos de objeccedilatildeo de consciecircncia ao serviccedilo militar como acontece com um jovem soldado que exclama ldquoNatildeo me eacute permitido trazer ao pescoccedilo o signum (espeacutecie de placa de identidade usada no exeacutercito romano) porque fui marcado com o sinal de Cristordquo ou com um outro soldado que se recusou a colocar sobre a cabeccedila a coroa ritual dos sacrifiacutecios em honra do imperador Satildeo casos ainda excepcionais mas sintomaacuteticos a oposiccedilatildeo profunda entre Roma e a Igreja tende a passar do plano religioso para o plano ciacutevico e poliacutetico
A intervenccedilatildeo do plano religioso sobre o poliacutetico e vice-versa foi consequumlecircncia da
busca por parte dos romanos de um sistema seguro no qual pudessem se apoiar Com a
decadecircncia poliacutetica econocircmica e moral o nuacutemero de seitas e religiotildees se multiplicava
formando um quadro extremamente pluralista (cf Daniel-Rops 1988 307) Eacute no seacuteculo III
que a dinastia dos Severos se impotildee e juntamente com ela vecircm as tradiccedilotildees religiosas
orientais
El advenimiento con los Severos de principes africanos y sirios la dominacioacuten de mujeres penetradas de la piedade miacutestica de Oriente favorecieron su raacutepido desarollo y el siglo III conocioacute todas sus formas desde las maacutes groseras estrechamente emparentadas com la supersticioacuten pura hasta las maacutes refinadas modeladas pelas reflexiones de la filosofia que desde entonces tenderiacutea hacia lo divino (Guignebert 1956 119)
Neste panorama soacutecio-poliacutetico o cristianismo foi a religiatildeo abraccedilada por muitos
cidadatildeos natildeo soacute ldquotecelotildees pisoeiros e sapateirosrdquo mas tambeacutem ldquoadvogados como Satildeo
Gregoacuterio Taumaturgo ou Satildeo Cipriano de Cartago mulheres da sociedade como Santa
Perpeacutetua grandes burgueses da proviacutencia e lsquoclariacutessimosrsquo de famiacutelias senatoriaisrdquo (Daniel-
Rops 1988 317) Para Guignebert (1956 121) o contato da elite com o cristianismo se deu
essencialmente por meio dos escravos e da filosofia
a traveacutes de los esclavos llegoacute a las mujeres libres sus amas y accidentalmente atrajo la atencioacuten de algunos hombres instruiacutedos que buscaban la verdad divina Gracias a las primeras se insinuoacute en las classes altas gracias a los segundos tomoacute contacto con la filosofia en el curso del siglo II y las consecuencias de este encuentro fueron incalculables
Eacute importante relembrar que a filosofia pressupunha a escrita e tinha um forte viacutenculo
com a literatura Mesmo o cristianismo no seacuteculo III jaacute possuiacutea um consideraacutevel nuacutemero de
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textos apologeacuteticos que dialogavam diretamente com a filosofia grega e possibilitavam para
a elite o acesso agraves ideacuteias cristatildes (cf Alesso 2006 31)
O relato do martiacuterio do soldado Marino surge portanto nesse contexto soacutecio-histoacuterico
como um texto de grande relevacircncia para o cristianismo Primeiro porque o personagem
principal eacute um soldado Integrava o grupo social de maior prestiacutegio nessa eacutepoca Como dizia
Septiacutemio Severo aos seus filhos ldquoEnriquecei o soldado e zombai do restordquo (Daniel-Rops
1988 299) E como no seacuteculo III as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio tomam uma nova
configuraccedilatildeo o contraste entre essas duas instituiccedilotildees eacute um assunto central O embate deixa
de ser apenas religioso e passa a ser tambeacutem poliacutetico - fato que vai se confirmar no seacuteculo
IV
Em segundo lugar a posiccedilatildeo social do maacutertir levanta outra questatildeo Marino como
membro da elite poderia facilmente ter comprado o libellus ndash documento que comprovava o
sacrifiacutecio aos deuses romanos ndash e assim conseguir sua liberdade (cf Silva 2006 248)
Daniel-Rops (1988 367) detalha que os ricos eram mais propensos a comprar falsos
documentos e a desistir ldquoConforme os testemunhos que temos parece que eram sobretudo os
ricos os bem instalados aqueles a quem a vida tinha concedido todo o conforto e que natildeo
estavam dispostos a sacrificaacute-lordquo que renunciavam agrave feacute
Aleacutem de abrir matildeo de sua posiccedilatildeo social e dos privileacutegios que iria obter como
centuriatildeo Marino natildeo se deixou dominar pelo medo a principal razatildeo da apostasia segundo
Daniel-Rops (1988 367) Eacute importante lembrar que a perseguiccedilatildeo sob Deacutecio instaurada em
249 dC ainda era bastante recente Numa tentativa de restaurar a gloacuteria do Impeacuterio Deacutecio
havia promulgado uma lei que obrigava todos os suacuteditos a retomarem o culto aos deuses
romanos Para ele ldquose todos os suacuteditos do Impeacuterio voltassem a adorar os deuses
possivelmente os deuses voltariam a favorecer o Impeacuteriordquo (Gonzaacutelez 1995 138) O culto era
um elemento essencial para os romanos Era por meio dele que expressavam sua
religiosidade como escreve Arnauld (2001 15) ldquoLa lsquopietasrsquo (pieacuteteacute) eacutetait la caracteacuteristique
principale de la religiositeacute romaine () Cette lsquopietasrsquo srsquoexprimait en une observance stricte
des lois rituelles Religion signifiait culterdquo
O descumprimento da lei por parte dos cristatildeos provocou uma perseguiccedilatildeo que teve
como consequumlecircncia um grande nuacutemero de apostasias fato que chegou a causar divergecircncia de
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opiniatildeo entre os bispos Num novo periacuteodo de relativa paz era portanto de suma importacircncia
para a Igreja insistir que os cristatildeos permanecessem firmes em suas convicccedilotildees Como
observa Daniel-Rops (1988 367) ldquoesses periacuteodos de interrupccedilatildeo nas perseguiccedilotildees natildeo
ajudavam em nada a coragem dos fieacuteis durante os tempos de calma a mola distendia-se e
quando subitamente era preciso voltar a entrar em luta muitos se sentiam faltos de energiardquo
Assim o testemunho de Marino evidencia o conflito existente entre a Igreja e o
Impeacuterio e conclama de maneira didaacutetica a que os cristatildeos tenham a mesma disposiccedilatildeo
mesmo diante da possibilidade da apostasia e dos terrores de um novo periacuteodo de perseguiccedilatildeo
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3 TEXTO GREGO
Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου Μαρίνου
Κατὰ τούτους εἰρήνης ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης ἐν Καισαρείᾳ τῆς
Παλαιστίνης Μαρῖνος τῶν ἐν στρατείαις ἀξιώμασι τετιμημένων γένει τε
καὶ πλοὕτῳ περιφανὴς ἀνήρ διὰ τὴν Χριστοῦ μαρτυρίαν τὴν κεφαλὴν
ἀποτέμνεται τοιᾶσδε ἕνεκεν αἰτίας
2 τιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας φασίν
ἑκατοντάρχους γίνεσθαι Τόπου σχολάζοντος ἐπὶ τοῦτο προκοπῆς τὸν
Μαρῖνον ἡ τοῦ βαθμοῦ τάξις ἐκάλει ἤδη τε μέλλοντα τῆς τιμῆς ἔχεσθαι
Παρελθὼν ἄλλος πρὸ τοῦ βήματος μὴ ἐξεῖναι μὲν ἐκείνῳ τῆς Ῥωμαίων
μετέχειν ἀξίας κατὰ τοὺς παλαιοὺς νόμους Χριστιανῷ γε ὄντι καὶ τοῖς
βασιλεῦσι μὴ θύοντι κατηγόρει αὐτῷ δὲ ἐπιβάλλειν τὸν κλῆρον
3 ἐφ᾿ ᾧ κινηθέντα τὸν δικαστὴν (Ἀχαιὸς οὕτος ἧν) πρῶτον μὲν ἐρέσθαι
ποίας ὁ Μαρῖνος εἴη γνώμης ὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν ἐπιμόνως
ἑώρα τριῶν ὡρῶν ἐπιδοῦναι αὐτῷ εἰς ἐπίσκεψιν διάστημα
4 ἐκτὸς δῆτα γενόμενον αὐτὸν τοῦ δικαστηρίου Θεότεκνος ὁ τῇδε
ἐπίσκοπος ἀφέλκει προσελθὼν δι᾿ ὁμιλίας καὶ τῆς χειρὸς λαβὼν ἐπὶ τὴν
ἐκκλησίαν προάγει εἴσω τε πρὸς αὐτῷ στήσας τῷ ἁγιάσματι μικρόν τι
παραναστείλας αὐτοῦ τῆς χλαμύδος καὶ τὸ προσηρτημένον αὐτῷ ξίφος
ἐπιδείξας ἅμα τε ἀντιπαρατίθησι προσαγαγὼν αὐτῷ τὴν τῶν θείων
εὐαγγελίων γραψήν κελεύσας τῶν δυοῖν ἑλέσθαι τὸ κατὰ γνώμην ὡς δ᾿
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ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν
ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς
αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης
5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ
δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ
δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν
ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται
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4 TRADUCcedilAtildeO
O martiacuterio do Santo Marino
1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares
em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido
honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por
todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu
testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte
2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a
conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a
ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo
Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e
declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e
portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos
romanos Assim o cargo cairia para si
3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou
primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele
insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs
horas para refletir
4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era
bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela
matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando
um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo
tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos
exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem
hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas
ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno
ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo
5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para
o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se
apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute
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imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre
o seu fim
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5 COMENTAacuteRIOS
51 OS PERSONAGENS
Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em
um ponto da estrutura
Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola
Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal
familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute
exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um
homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos
movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do
texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave
autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado
guerreiro
O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo
dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo
para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A
denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma
preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega
Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o
exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees
do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio
militar portanto tinha um significado muito grande
Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas
informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou
compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem
disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo
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Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na
quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado
provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era
seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para
conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial
para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve
como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)
O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para
anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo
de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos
outros personagens no texto
52 ESTRUTURA
O texto pode ser subdividido em 5 partes
(i) Marino o soldado cristatildeo
A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no
espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo
A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de
captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a
expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo
(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo
A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio
narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo
apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal
(iii) Marino e o juiz a confissatildeo
A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente
que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir
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(iv) Marino e o bispo a decisatildeo
Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de
Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem
palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a
espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe
a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras
(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo
Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo
Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte
53 TEMPO E ESPACcedilO
O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto
para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης
ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor
Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e
a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII
12)
A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que
Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em
todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto
o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se
deram de maneira muito raacutepida
Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia
na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no
entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes
contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o
Cristianismo
30
O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno
poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por
Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo
tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito
cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera
propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz
que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os
sofrimentos corporais
Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte
54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS
O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de
diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um
detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga
essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de
martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)
Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte
A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da
distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no
entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor
31
A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra
no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios
desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica
Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com
Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma
narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute
portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a
noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007
8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente
engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo
No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no
uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo
εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por
ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento
por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann
2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que
eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega
amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e
decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo
do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio
ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento
emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado
comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como
afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva
de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a
forte presenccedila do aspecto emotivo
A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para
enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou
ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops
(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma
32
medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te
apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo
Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila
Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte
pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o
caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o
representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute
o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar
Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel
seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os
espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo
Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na
hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops
(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo
obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo
O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino
se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua
decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo
que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar
O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma
meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior
sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O
adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez
Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num
texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e
ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς
πίστεως τὴν προθυμίαν
Assim temos
33
Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)
darrdarrdarrdarr
Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo
darrdarrdarrdarr
Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo
O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas
uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado
pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν
ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente
detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita
conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui
coerecircncia ao texto
Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)
destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura
feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que
todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou
seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica
fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e
estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha
havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois
poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo
34
sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser
adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um
antagonismo fundamentalrdquo
O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de
Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo
substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo
ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos
esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no
texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino
Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos
durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e
por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que
a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino
Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη
ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto
o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων
o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος
o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις
o substantivo εἰρήνη
o substantivo μαρτυρία
Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e
formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado
35
A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes
por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)
honra romana (τιμή)
vide (κλῆμα)
centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)
reconhecimento passageiro e
terreno (ἀξιώμασι
τετιμημένων )
honra cristatilde (τιμή)
paz (εἰρήνη)
maacutertir (μάρτυρ)
reconhecimento eterno e divino
(τελειοῦται)
O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria
honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o
argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado
explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos
versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω
ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o
objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας
φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo
Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o
ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ
τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela
feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)
36
Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha
pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento
terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo
ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na
comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o
cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)
Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito
mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp
Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo
por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute
essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto
O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por
exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer
voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do
termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que
ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to
the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις
Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de
um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados
Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor
menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A
acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os
personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado
numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo
de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute
em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz
37
como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da
acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade
interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se
constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio
por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os
imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao
registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o
mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)
A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das
intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que
como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos
entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo
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CONCLUSAtildeO
O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e
produtivo sob vaacuterios aspectos
Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual
gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A
percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a
ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os
primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma
instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na
literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um
pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os
cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo
- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura
No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do
texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico
durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e
consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa
ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias
da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna
centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o
posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos
fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento
A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se
compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao
bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se
mostrar complacente
39
Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os
cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de
sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem
como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como
um substituto aos espetaacuteculos romanos
Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave
plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos
Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o
que deu origem ao culto dos santos
Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda
precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos
possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados
ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται
presente no texto traduzido e em outros relatos
Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais
utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e
posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma
melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande
auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo
cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade
proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses
novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde
40
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43
ANEXOS
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)
[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1
1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em
Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um
tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua
linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte
2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles
que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o
escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a
honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo
as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que
era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a
ele
3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a
Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que
era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse
4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e
afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma
vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o
manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e
contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as
duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a
direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -
manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que
escolheste Vai em pazrdquo
1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu
este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer
casos como o de Marino [nota do Editor]
44
5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de
novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado
Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua
feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado
45
TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)
During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in
Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and
was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It
came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour
and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and
according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he
was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and
attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and
should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to
the ancient laws but that instead the post should fall to himself
It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he
first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed
that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had
Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside
in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed
Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword
attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it
before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out
his right hand and took the divine writings
lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him
may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo
No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the
tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and
showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to
execution and so found his fulfilment
7
de Marino se deu e os elementos linguumliacutesticos agrave disposiccedilatildeo no texto para a realizaccedilatildeo dessa
anaacutelise
O estudo da literatura cristatilde mostra-se portanto fundamental para o entendimento do
pensamento e da cultura natildeo soacute introduzida pela comunidade cristatilde mas tambeacutem da sociedade
romana como um todo Afinal a propagaccedilatildeo do Cristianismo se deu - com perseguiccedilatildeo ou
sem perseguiccedilatildeo - durante o periacuteodo do Impeacuterio romano e por meio das liacutenguas de cultura da
eacutepoca primeiramente o grego e depois tambeacutem o latim Natildeo haacute portanto como analisar a
literatura e a liacutengua utilizadas por essa comunidade sem levar em conta ao mesmo tempo as
ideologias filosofias costumes e sistemas sociais poliacuteticos e econocircmicos que norteavam o
Impeacuterio romano
Por fim eacute importante ressaltar que a anaacutelise individualizada desses textos contribui
para o aprofundamento das metodologias e escolhas utilizadas pelos autores muitas vezes
anocircnimos Esse tipo de anaacutelise permite uma melhor compreensatildeo do uso da liacutengua nessa
eacutepoca Permite tambeacutem a comparaccedilatildeo entre os textos e auxilia na verificaccedilatildeo de questotildees
como Ateacute que ponto os relatos de diversos maacutertires produzidos por autores distintos e em
lugares diferentes podem ser correlacionados Havia uma linguagem proacutepria dos cristatildeos
Quais os itens lexicais mais utilizados O valor semacircntico desses itens era o mesmo para
cristatildeos e natildeo cristatildeos
O texto grego utilizado neste trabalho foi o publicado por Musurillo (2000) Para a
traduccedilatildeo foram consultados os seguintes dicionaacuterios
BAIILY A Dictionnaire Grec-Franccedilais Paris Hachette 1950
GINGRICH Wilburg amp DANKER Frederick Leacutexico do Novo Testamento Grego-
Portuguecircs Traduccedilatildeo Juacutelio PT Zabatiero Satildeo Paulo Vida Nova 1993
LAMPE Geoffrey WH A Patristic greek lexicon Oxford Clarenton Press 2000
LIDDELL H SCOTT R Greek-English Lexicon Abridged Simon Wallenberg
Press 2007
SOPHOCLES EA Greek lexicon of the Roman and Byzantine Periods from BC 146
to AD 1100 ndash part one New York Charles Scribnerrsquos Sons 1900
8
Em anexo encontram-se duas outras traduccedilotildees para o relato de martiacuterio de Marino a
de Musurillo (2000) para a liacutengua inglesa e a de Fischer (2005) para a liacutengua portuguesa
9
1 GEcircNERO LITERAacuteRIO
O objetivo deste capiacutetulo eacute classificar e compreender o gecircnero literaacuterio no qual os
relatos de martiacuterio estatildeo inseridos
A primeira observaccedilatildeo que precisa ser feita a respeito dos relatos de martiacuterio eacute que a
leitura empreendida neste trabalho tem como pressuposto o ponto de vista literaacuterio Ou seja
natildeo se tem a intenccedilatildeo de discutir a veracidade dos fatos histoacutericos relatados ou de se fazer um
estudo criacutetico no sentido de discernir o que eacute histoacuteria do que eacute ficccedilatildeo Ateacute mesmo porque
conforme escreve Musurillo (2000 liv) a linha entre histoacuteria e ficccedilatildeo nesse tipo de texto eacute
muito tecircnue
A classificaccedilatildeo do gecircnero ao qual pertencem os relatos de martiacuterio pode ser feita por
duas vias distintas Pela primeira partimos dos mais variados tipos de textos de diferentes
eacutepocas com o intuito de por meio da comparaccedilatildeo entre as caracteriacutesticas formais enquadraacute-
los a um determinado gecircnero Pela segunda contrastamos textos de cunho cristatildeo - escritos
por autores nomeadamente cristatildeos com o objetivo de divulgar a sua feacute ndash aos de cunho natildeo-
cristatildeo Essas duas vias satildeo levadas em consideraccedilatildeo neste capiacutetulo comeccedilando pela segunda
a comparaccedilatildeo entre a literatura cristatilde e a natildeo-cristatilde
11 LITERATURA CRISTAtilde E LITERATURA PAGAtilde
A contraposiccedilatildeo entre literatura cristatilde e natildeo-cristatilde eacute um ponto fundamental para a
questatildeo do gecircnero natildeo soacute dos relatos de martiacuterio mas tambeacutem para todos os outros tipos de
textos escritos durante os primeiros seacuteculos da era cristatilde Isso porque durante os seacuteculos II a
IV dC o Cristianismo busca sua afirmaccedilatildeo como religiatildeo e filosofia utilizando-se em
grande medida da escrita
Alesso (2006 24) explica que eacute a partir do seacuteculo II que o Cristianismo se organiza
para enfrentar problemas internos como ldquoas acusaccedilotildees de heresia lutas pelo poder perigos de
cisma e controveacutersias teoloacutegicasrdquo A organizaccedilatildeo tambeacutem se fez necessaacuteria para enfrentar os
10
ataques externos o que resultou na apresentaccedilatildeo das ideacuteias cristatildes de modo filosoacutefico em
textos bem elaborados e com caracteriacutesticas semelhantes aos da cultura da eacutepoca
Los discursos de los obispos y letrados defensores del cristianismo no podiacutean ser espontaacuteneos ni livianos cuando se trataba de responder a las criacuteticas y a la difamacioacuten de enemigos tan ilustrados como ellos No bastaba la elocuencia entusiasta habiacutea que ordenar las ideas en lo molde de recursos avalados por el prestigio de siglos en los geacuteneros discursivos que los doctos habiacutean aprendido e internalizado desde su maacutes tierna formacioacuten heleniacutestica
Assim depreende-se que a literatura cristatilde destes primeiros seacuteculos visava atender
duas necessidades principais o ensino para manter a coesatildeo do puacuteblico interno e a apologia
que procurava defender a feacute diante do puacuteblico externo
Os escritos apologeacuteticos dialogavam de maneira direta com a filosofia grega e eram
escritos geralmente por bispos que viviam em grandes centros urbanos como Justino o
maacutertir Oriacutegenes Teoacutefilo e Tertuliano Por essa razatildeo tais discussotildees permaneciam muitas
vezes entre a elite natildeo chegando ao puacuteblico em geral (cf Alesso 2006 31) Desde muito
cedo portanto surge uma divisatildeo natural de destinataacuterios na literatura cristatilde enquanto alguns
textos eram escritos e dirigidos a leitores cultos outros textos tinham como puacuteblico-alvo o
povo
Para Alesso (2006 29-30) essa divisatildeo eacute claramente percebida quando do surgimento
do gecircnero biacuteos ldquoEl geacutenero biacuteos que tendriacutea entonces en principio como destinatario a un
lector cultivado se cumple tambieacuten en un subgeacutenero de corte popular las vidas ejemplaresrdquo
Eacute o gecircnero biacuteos que estabelece de fato em meados do seacuteculo IV a hagiografia - a biografia
que relata a vida de um santo - como um modelo literaacuterio a ser seguido pelos escritores
cristatildeos especialmente pelo movimento monaacutestico Segundo Moreschini amp Norelli (2000
511) a hagiografia foi com o tempo aproximando-se cada vez mais da biografia pagatilde Para
eles a relaccedilatildeo entre cristianismo e paganismo ldquoocorreu com todas as demais formas literaacuterias
cristatildesrdquo porque ldquopraticadas por pessoas que tiveram em comum com os pagatildeos os mestres as
escolas e as leiturasrdquo Tal fato reforccedila ainda mais a divisatildeo entre leitores que tinham acesso agrave
educaccedilatildeo formal daqueles que natildeo a tinham
As pessoas destituiacutedas de uma introduccedilatildeo agraves teorias filosoacuteficas e teoloacutegicas eram
atendidas em grande parte pelas leituras de relatos de martiacuterios ao que Alesso chama de ldquolas
vidas ejemplaresrdquo Os relatos eram lidos durante as celebraccedilotildees cristatildes tornando-se parte da
11
liturgia do culto Eram lembrados tambeacutem pela comunidade local por ocasiatildeo do aniversaacuterio
do maacutertir quando o povo se reunia em torno do tuacutemulo ou fazia peregrinaccedilotildees ateacute ele (cf
Musurillo 2000 lvi Moreschini amp Norelli 2000 297)
Os relatos de martiacuterios (acta passiones e martyria) no entanto formam entre si um
gecircnero especiacutefico Aleacutem disso conteacutem elementos que antecedem e prenunciam a formaccedilatildeo da
hagiografia Satildeo denominados por Moreschini amp Norelli (2000 511) de ldquohagiografia
primitivardquo O costume de narrar a prisatildeo o sofrimento e a morte de um cristatildeo explicam esses
autores apareceu ldquoquase contemporaneamente em lugares diferentes da cristandade em
formas diversas e com ascendecircncias e caracteriacutesticas ideoloacutegicas variadas o gecircnero literaacuterio
como tal se constitui progressivamente pelo desenvolvimento e pelas reciacuteprocas relaccedilotildees dos
textosrdquo
O modelo de narrativa dos maacutertires cristatildeos remonta na verdade aos relatos
encontrados na Biacuteblia como o martiacuterio de Estevatildeo (Atos dos Apoacutestolos 7) de Tiago (At 12)
e aos sofrimentos de Paulo (At 14) O modelo central poreacutem eacute o proacuteprio Jesus cuja vida eacute
narrada pelos Evangelhos Note-se que a ecircnfase dos Evangelhos natildeo eacute narrar todos os
acontecimentos biograacuteficos mas destacar os sofrimentos de Cristo desde seu nascimento
como por exemplo a perseguiccedilatildeo de Herodes ateacute sua crucificaccedilatildeo
Ainda que os relatos cristatildeos tenham tido como modelo textos pagatildeos tema discutido
por Delehaye (1966) Berger (1998) e Uytfanghe (1993) foi o Cristianismo que disseminou e
divulgou esse tipo de literatura Delehaye (1966 113-125) assinala que haacute vaacuterias diferenccedilas
entre os relatos dos maacutertires pagatildeos Alexandrinos e os relatos dos maacutertires cristatildeos Uma
delas se encontra na motivaccedilatildeo para o martiacuterio ldquoIci nous voyons des hommes qui meurent
pour leurs convictions et agrave qui il suffirait drsquoun mot ou drsquoun geste pour reconqueacuterir la liberteacute
Lagrave on nous presente les chefs drsquoune faction politique qui deacutefendent au prix de leur vie leur
programme et leurs actes et qui perdent la partierdquo (1966 124) E para Uytfanghe (1993 174)
caracteriacutesticas como humildade amor e perdatildeo natildeo satildeo encontradas em maacutertires pagatildeos
como Soacutecrates e Secircneca Jaacute nos cristatildeos elas estatildeo presentes de maneira radical
De uma forma geral os autores concordam que a formaccedilatildeo de um gecircnero a partir dos
relatos de martiacuterio e sua posterior propagaccedilatildeo pelos cristatildeos natildeo tinham uma intenccedilatildeo uacutenica
pelo contraacuterio vecirc-se nesses textos uma intenccedilatildeo multifacetada Para Musurillo (2000 liv-
12
lvii) os relatos de martiacuterio exerciam pelo menos trecircs funccedilotildees a primeira era a funccedilatildeo
histoacuterica jaacute que tanto os Evangelhos como os Atos dos Apoacutestolos e os martyria baseavam-se
em fatos histoacutericos A segunda era a apologeacutetica isto eacute a afirmaccedilatildeo da feacute cristatilde diante do
mundo E por uacuteltimo a funccedilatildeo de ensino Uytfanghe (1993 173-175) observa que por meio
desses relatos os cristatildeos eram encorajados a permanecerem firmes nas suas crenccedilas e a
cultivarem uma vida santa e asceacutetica O maacutertir se tornava assim um modelo a ser seguido E
o cristatildeo ndash literalmente o seguidor de Cristo - dava continuidade aos ensinos e agrave vida de
Jesus o qual afirmou ldquoLembrem-se das palavras que eu lhes disse Nenhum escravo eacute maior
do que o seu senhor Se me perseguiram tambeacutem perseguiratildeo vocecircsrdquo (Evang Joatildeo 1520)
Aleacutem desses trecircs aspectos a formaccedilatildeo de um corpus literaacuterio cristatildeo era de grande
interesse para a Igreja na medida em que oferecia ao puacuteblico cristatildeo a cada dia maior uma
nova opccedilatildeo cultural Conforme o registro que possuiacutemos no escrito Os Espetaacuteculos do bispo
Tertuliano de Cartago os cristatildeos eram aconselhados a natildeo frequumlentarem os teatros e os
circos nem assistirem aos combates de gladiadores ldquoMas eles percebem que algueacutem se fez
cristatildeo sobretudo pelo fato de evitar os espetaacuteculosrdquo (De spect 243)
Tertuliano posicionou-se fortemente contra a participaccedilatildeo dos cristatildeos nos espetaacuteculos
promovidos pelos teatros circos e arenas porque aleacutem de possuiacuterem uma ligaccedilatildeo com algum
deus grego ou romano - e portanto promoverem a idolatria - evidenciavam a incoerecircncia da
sociedade romana ldquosoacute ali [no teatro] tem curso e aplauso o que em qualquer outra parte se
reprovardquo (De spect 171) Assim argumenta ldquoConvencidos ficamos que por nenhum lado
nos fica bem laacute ir noacutes que por duas vezes renunciamos aos iacutedolosrdquo (De spect 13 1) Para
Tertuliano o homem eacute imagem e semelhanccedila de Deus e por essa razatildeo natildeo deveria
corromper sua alma e corpo
O certo eacute que natildeo nos foram dados os olhos para os entregar agrave concupiscecircncia nem a liacutengua para a maledicecircncia nem os ouvidos para sorvedouro de murmuraccedilotildees nem o paladar para poccedilo de gula o ventre para dar seguimento agrave mesma gula os oacutergatildeos genitais para excessos de impureza as matildeos para estrangular o proacuteximo os peacutes para vagabundear natildeo se nos infundiu a alma ateacute as entretelas do corpo para vir a ser um recesso de ciladas e de embustes e de iniquumlidades (De spect 210)
Os prazeres cultivados pela sociedade romana deveriam portanto ser abandonados e
substituiacutedos Para Tertuliano o cristatildeo natildeo tinha necessidade de espetaacuteculos pois desfrutava
dos prazeres (voluptates) proacuteprios agrave sua feacute Seus argumentos satildeo os seguintes
13
Que melhor alegria que a que promana da reconciliaccedilatildeo com Deus Pai Nosso Senhor do conhecimento da verdade de reconhecer os erros do perdatildeo de tantos pecados da passada vida Que maior prazer que o asco do proacuteprio prazer que a consciecircncia pura que a vida sem ambiccedilotildees e o destemor da morte Pisar aos peacutes os deuses dos gentios expelir os democircnios curar doentes informar-te da verdade revelada viver para Deus aiacute estatildeo as alegrias satildeo esses os espetaacuteculos santos dos cristatildeos os espetaacuteculos perpeacutetuos por que se natildeo paga nada (De spect 29 1-3)
O bispo continua a explanaccedilatildeo de suas ideacuteias afirmando que os cristatildeos natildeo possuem o
teatro mas tecircm boa literatura natildeo possuem os combates de gladiadores mas tecircm as lutas pela
feacute e pela castidade natildeo possuem o sangue das arenas mas tecircm o sangue de Cristo ldquoSe o
palavreado cecircnico eacute divertido natildeo temos falta de boas letras temos versos a rodos e
pensamentos bem cunhados nada se diga de cacircnticos e vozes do melhor metal em vez de
faacutebulas temos verdades em vez de embustes a lisura mais declaradardquo (De spect 294)
A defesa e a valorizaccedilatildeo de uma literatura proacutepria aos cristatildeos eacute um elemento
extremamente importante para a propagaccedilatildeo dos relatos de martiacuterio porque conforme visto
acima esse tipo de texto entrou em circulaccedilatildeo como um substituto agraves encenaccedilotildees teatrais
Assim os martyria ajudaram a constituir um corpus literaacuterio cristatildeo que se tornou um
instrumento de poder para a Igreja
Como observa Fox (1996 130) os maacutertires compartilhavam juntamente com os
bispos e visionaacuteriosprofetas um lugar privilegiado na comunidade ldquoAmong Christians
before Constantine power was attribute of three particular groups it was achieved by
visionaires it was ascribed to martyrs and confessors it was vested above all in bishops
Literacy assisted the exercise of power by all threerdquo Os integrantes desses trecircs grupos natildeo
apenas eram admirados mas tidos como autoridades Os bispos por exemplo eram
considerados por Inaacutecio de Antioquia como ldquoos representantes de Deus na Igrejardquo
(Guignebert 1956 137) Por isso os escritos ou discursos proferidos por esses trecircs grupos
eram recebidos na maioria das vezes como proacutepria palavra de Deus fator que atribuiacutea um
poder ainda maior aos textos Para Fox (1996 129) ldquothis combination of sacred text and an
increasingly standardised pattern of authority make the early Church a unique subject for
studies of literacy and powerrdquo
Como um gecircnero da literatura cristatilde os relatos de martiacuterio tambeacutem serviram para a
manutenccedilatildeo e a transmissatildeo da ideologia cristatilde nos primeiros seacuteculos do Cristianismo
conforme escreve Alesso (2006 34-35)
14
Los geacuteneros en todas sus formas y subformas son el suporte estructural para la transmisioacuten de un ideario y lo fueron de modo especial en el trasvase de los contenidos que provenientes de la antiguumledad se imbricaron en el cristianismo de los Padres Aunque su relacioacuten com la criacutetica sociohistoacuterica es marginal los geacuteneros son indudables portadores de significacioacuten cuando interesan a la evolucioacuten de paraacutemetros poliacutetico culturales que intervinieran en la construccioacuten del edificio ideoloacutegico de la teologiacutea cristiana
O fortalecimento da literatura cristatilde foi enfim um fator essencial para a difusatildeo do
Cristianismo porque ajudou a organizaacute-lo como instituiccedilatildeo Por meio da literatura o
Cristianismo conseguiu alcanccedilar pessoas de todos os lugares e de todas as classes sociais
inclusive as pertencentes agrave elite que conforme Daniel-Rops (1988 305) sentiam o decliacutenio
do Impeacuterio que chegava ateacute mesmo ao acircmbito literaacuterio e artiacutestico
12 AS CARACTERIacuteSTICAS LITERAacuteRIAS FORMAIS
Quanto agraves caracteriacutesticas formais que podem ser levadas em conta para a classificaccedilatildeo
do gecircnero os relatos de martiacuterio mesclam traccedilos tanto do gecircnero biograacutefico quanto do
discurso hagiograacutefico
Os relatos de martiacuterio natildeo podem ser classificados categoricamente como biacuteoi pois
natildeo chegam a constituir uma biografia de fato Tambeacutem natildeo podem ser classificados como
hagiografia em sentido exclusivo porque como afirma Delehaye (apud Uytfanghe 1993
146) esta eacute muito abrangente inclui ldquotodo documento escrito inspirado pelo culto dos santos
e destinado a promovecirc-lordquo Assim o que se verifica eacute um entrecruzamento de gecircneros Isso
ocorre porque os gecircneros satildeo como afirma Alesso (2006 29) sistemas abertos ldquolas
invariantes coexisten con las variables y no podemos condenarlos y condenarnos a una
esquematizacioacuten extrema porque perderiacuteamos de vista uno de los objetivos primordiales la
finalidad del contenidordquo Por essa razatildeo adotamos neste trabalho a definiccedilatildeo biacuteos
hagiograacutefico introduzida por Ipiranga Juacutenior (2006 9)
Segundo Momigliano (1971 25) os gregos jaacute possuiacuteam o haacutebito de redigir biografias
no seacuteculo V aC mas foi no periacuteodo heleniacutestico que ele se intensificou e o gecircnero recebeu um
nome especiacutefico ldquobien qui nous conaissions lrsquoexistence de biographies et peut-ecirctre
drsquoautobiographies degraves le cinquiegraveme siegravecle avant JC crsquoest seulement agrave lrsquoeacutepoque helleacutenistique
15
que la biographie devient une notion precise et acquiert un nom en propre Ce nome est lsquobiosrsquo
ndash et non lsquobiographiarsquordquo
Para Bakhtin (2003 138) entretanto a biografia como romance surgiu apenas no fim
da Idade Meacutedia Durante os seacuteculos II-IV dC ainda era uma forma literaacuteria em formaccedilatildeo
Mesmo tendo em mente a distacircncia cronoloacutegica entre os martyria e o romance biograacutefico ao
qual Bakhtin se refere eacute possiacutevel perceber semelhanccedilas entre os dois
A primeira delas eacute a presenccedila do heroacutei com valores do tipo bravura honradez
magnanimidade e generosidade (cf Bakhtin 2003 142 147) Ao abrir matildeo de posiccedilotildees
poliacuteticas e religiosas ao enfrentar perigos sofrimentos torturas e feras sem renunciar agrave feacute o
maacutertir eacute visto como um heroacutei pela comunidade cristatilde Ele ldquotorna-se uma espeacutecie de ponto
focal da vida da comunidade que o circunda de veneraccedilatildeo considerando-o jaacute em contato com
Deus capaz de profetizar e de pronunciar-se com uma autoridade especial tambeacutem sobre
questotildees eclesiaacutesticasrdquo (Moreschini amp Norelli 2000 297) Morrer por sua feacute eacute o ato supremo
de glorificaccedilatildeo para os primeiros cristatildeos E eacute por meio dessa glorificaccedilatildeo de acordo com as
palavras de Bakhtin (2003 143) que o heroacutei consegue alcanccedilar a consciecircncia de uma
determinada sociedade incutindo assim novos valores
A aspiraccedilatildeo agrave gloacuteria organiza a vida do heroacutei ingecircnuo a gloacuteria organiza tambeacutem a narraccedilatildeo da sua vida sua glorificaccedilatildeo Aspirar agrave gloacuteria eacute tomar consciecircncia de si na sociedade culta e histoacuterica dos homens (ou na naccedilatildeo) eacute afirmar e construir sua vida na possiacutevel consciecircncia dessa sociedade humana eacute crescer natildeo em si nem para si mas nos outros ou para os outros eacute ocupar um lugar no mundo imediato dos contemporacircneos e descendentes
A segunda semelhanccedila detectada entre os gecircneros biograacutefico e biacuteos hagiograacutefico eacute a
relaccedilatildeo de empatia que se estabelece entre autor-personagem Segundo Bakhtin (2003 150)
autor e personagem compartilham obrigatoriamente os mesmos valores ldquona biografia o
autor natildeo soacute combina com a personagem na feacute nas convicccedilotildees e no amor mas tambeacutem em
sua criaccedilatildeo artiacutestica (sincreacutetica) tomando como guia os mesmos valores que a personagem
em sua vida esteacuteticardquo Embora o autor do martiacuterio do soldado Marino natildeo seja explicitado eacute
possiacutevel inferir pelo texto que o interesse de registrar o fato tenha partido natildeo de algueacutem que
simplesmente compartilhava com ele a situaccedilatildeo de soldado do exeacutercito romano mas sim de
algueacutem que dividia os mesmos valores cristatildeos
16
Quanto agrave modalidade do romance a relaccedilatildeo entre os gecircneros biacuteos hagiograacutefico e
biograacutefico tambeacutem eacute possiacutevel Bakhtin (2003 205) identifica quatro modelos de romance
ldquosegundo o princiacutepio de construccedilatildeo da imagem da personagem central o romance de viagens
o romance de provaccedilatildeo da personagem o romance biograacutefico (autobiograacutefico) o romance de
educaccedilatildeordquo Ora por ser um gecircnero hiacutebrido a personagem principal do biacuteos hagiograacutefico
mescla caracteriacutesticas tanto do romance de provaccedilatildeo quanto do romance biograacutefico
Para Bakhtin (2003 207) o romance de provaccedilatildeo divide-se em duas modalidades ldquoA
primeira modalidade eacute representada pelo romance grego (A Etioacutepica Leucipo e Cleitofon
etc) A segunda modalidade eacute representada pelas hagiografias do iniacutecio do cristianismo
(particularmente dos maacutertires)rdquo O objetivo das provaccedilotildees neste tipo de romance eacute mudar a
opiniatildeo e os valores do heroacutei Como nos relatos de martiacuterio os cristatildeos natildeo renunciam a sua
feacute natildeo haacute mutabilidade Logo o maacutertir aproxima-se do conceito de heroacutei da provaccedilatildeo ele ldquoeacute
acabado e predeterminado as experimentaccedilotildees (sofrimentos seduccedilotildees duacutevidas) natildeo se
tornam para ele uma experiecircncia formadora nem a modificam e nessa imutabilidade da
personagem estaacute toda questatildeordquo (Bakhtin 2003 209)
Aleacutem disso no romance de provaccedilatildeo o personagem eacute o centro Natildeo importam os
costumes ou lugares exoacuteticos como no romance de viagens O personagem natildeo eacute modificado
de forma determinante pelo mundo nem o modifica
Entre o heroacutei e o mundo natildeo existe interaccedilatildeo autecircntica o mundo natildeo eacute capaz de mudar o heroacutei ele apenas o experimenta e o heroacutei natildeo influencia o mundo natildeo lhe muda a face ao passar pela provaccedilatildeo ao afastar seus inimigos etc o heroacutei deixa no mundo tudo nos seus lugares natildeo modifica a face social do mundo natildeo o reconstroacutei e aliaacutes nem tem essa pretensatildeo (Bakhtin 2003 212)
Eacute exatamente esta a situaccedilatildeo observada no texto em anaacutelise A crise pela qual passa o
personagem Marino natildeo eacute capaz de alterar suas convicccedilotildees nem de mudar o curso normal dos
acontecimentos agrave parte de sua vida o exeacutercito continuaraacute existindo uma outra pessoa tomaraacute
o seu lugar e tudo continuaraacute funcionando sob os mesmos princiacutepios
Quanto ao romance biograacutefico Bakhtin (2003 213) considera que assim como o
romance de provaccedilatildeo ele ldquoeacute preparado ainda em solo antigo nas biografias antigas
autobiografias e confissotildees do periacuteodo inicial do cristianismo (terminando em Agostinho)rdquo
O gecircnero biacuteos hagiograacutefico estabelece contatos com esse tipo de romance por meio do
17
enredo Como o romance biograacutefico tem como elemento principal a narraccedilatildeo da trajetoacuteria
vital de um determinado personagem ou seja tem como base justamente aqueles ldquoelementos
existentes antes do iniacutecio ou depois do teacutermino do romance de provaccedilatildeordquo (Ibid) engloba
necessariamente o relato da morte fato fundamental para o surgimento de um maacutertir na
concepccedilatildeo cristatilde
No romance biograacutefico a relaccedilatildeo da personagem com o mundo ganha um enfoque
diferente daquele verificado no romance de viagens ou no de provaccedilatildeo Bakhtin (2003 215)
verifica que ldquoPersonagens secundaacuterias paiacuteses cidades objetos etc integram o romance
biograacutefico por vias substanciais e ganham uma relaccedilatildeo igualmente substancial com o todo
vital da personagem centralrdquo Paradoxalmente o relato do soldado Marino apresenta tambeacutem
esse aspecto Embora ele permanecesse inabalaacutevel em sua decisatildeo de natildeo negar a feacute cristatilde
antes de o juiz lhe conceder um tempo para refletir eacute no encontro com o bispo Teotecno e
principalmente apoacutes o confronto com um objeto de grande valor ndash as Escrituras ndash que
Marino segue resoluto para o tribunal
Bakhtin tambeacutem escreve sobre o gecircnero hagiograacutefico embora com mais cautela Para
o autor (2003 169-70) ldquoa hagiografia se realiza diretamente no mundo do divinordquo Por se
tratar de um plano diferenciado em que ldquoa atitude reverente do autor natildeo deixa espaccedilo agrave
iniciativa individualrdquo (2003 170) Bakhtin prefere manter a mesma distacircncia Assim limita-
se em dizer que a hagiografia ldquorecorre a formas tradicionalmente sagradasrdquo (Ibid)
No aspecto formal os relatos de martiacuterio possuem de fato vaacuterias semelhanccedilas e um
fundamento em comum que satildeo os processos verbais No entanto ainda natildeo existe entre os
seacuteculos II e IV dC essa preocupaccedilatildeo ou esse rigor com a forma com a exclusatildeo de todo
elemento que possa remeter agrave individualidade
deve-se excluir tudo o que eacute tiacutepico de uma dada eacutepoca de uma dada nacionalidade () de uma dada condiccedilatildeo social de uma dada idade todo o concreto de uma imagem de uma vida todas as minuacutecias desta as indicaccedilotildees precisas do tempo e do espaccedilo na accedilatildeo ndash tudo o que reforccedila a determinidade no ser de um dado indiviacuteduo e assim lhe diminui a autoridade (Bakhtin 2003 170)
Vecirc-se portanto a partir dessa breve anaacutelise que o gecircnero biacuteos hagiograacutefico mescla
caracteriacutesticas tanto do gecircnero biograacutefico ndash seja biacuteos ou romance biograacutefico - quanto da
hagiografia constituindo assim um gecircnero agrave parte
18
2 CONTEXTO SOacuteCIO-HISTOacuteRICO
O relato do martiacuterio de Marino se tornou conhecido por meio da obra Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio bispo de Cesareacuteia no iniacutecio do seacuteculo IV Para Puech (1930 173)
ldquoEusegravebe est un meacutediocre theacuteologien et un meacutediocre eacutecrivain () mais il nous a rendu comme
historien et comme chronographe des services inestimablesrdquo De fato dificilmente teriacuteamos
acesso a esse texto se natildeo fosse o trabalho de Euseacutebio De acordo com a cronologia do bispo
a morte de Marino eacute situada entre os anos 260-261 dC Para o tradutor Musurillo (2000
xxxvi) essa data eacute bastante provaacutevel O comentaacuterio no relato de que todas as igrejas
desfrutavam de um periacuteodo de paz eacute o principal fator que leva a essa conclusatildeo No ano de
260 dC eacute promulgado o edito de Galieno o qual ldquoautoriza os liacutederes da Igreja a presidir
livremente as celebraccedilotildees religiosasrdquo (Silva 2006 250)
No entanto mesmo com as medidas favoraacuteveis por parte dos governantes o
cristianismo permanecia uma religio ilicita e portanto os cristatildeos ainda estavam sujeitos a
julgamento caso fossem delatados Foi o que aconteceu com o soldado Marino Uma vez
acusado de ser cristatildeo e de natildeo prestar culto ao imperador foi levado ao tribunal Eacute muito
provaacutevel que Marino tivesse vaacuterios colegas cristatildeos no exeacutercito que natildeo foram executados
porque ningueacutem aparecera para acusaacute-los A situaccedilatildeo dos cristatildeos era realmente
imprevisiacutevel Daniel-Rops (1988 346) comenta que no seacuteculo III essa constante mudanccedila de
humor por parte do Impeacuterio criou uma situaccedilatildeo sem precedentes ldquoComo um anciatildeo doente
que ora dormita inconsciente ou vagamente inquieto ignorando as impaciecircncias que o
rodeiam ora se irrita e ainda se mostra terriacutevel da mesma forma o Impeacuterio muda a todo o
momento de atitude Eacute isto o que daacute agraves perseguiccedilotildees do seacuteculo III um caraacuteter tatildeo diferente das
precedentesrdquo
Assim Marino foi o escolhido naquele momento de paz temporaacuteria Eles tinham
conhecimento da lei que estava em vigor desde a eacutepoca do imperador Trajano (110-111 dC)
quando este determinara ao governador Pliacutenio que os cristatildeos natildeo deveriam ser
sistematicamente perseguidos nem deveriam ser aceitas denuacutencias anocircnimas contra eles
(Gonzaacutelez 1995 64) A recomendaccedilatildeo dada a Pliacutenio havia sido adotada em todo o Impeacuterio
Uma vez acusados entretanto deveriam ser julgados Geralmente os cristatildeos eram levados
19
ao tribunal em decorrecircncia de disputas locais como escrevem Danieacutelou amp Marrou (1966
105)
Conveacutem frisar que natildeo haacute proscriccedilatildeo de cristatildeos pelo poder central quer dizer natildeo haacute perseguiccedilatildeo total Em segundo lugar verificam-se ataques locais movidos pelo povo e depois submetidos agrave apreciaccedilatildeo do magistrado romano () Em terceiro lugar o motivo da perseguiccedilatildeo natildeo se liga a crimes determinados mas unicamente ao lsquonomersquo cristatildeo O levantamento feito por Pliacutenio levara mesmo agrave conclusatildeo de que eram inocentes os cristatildeos
Guignebert (1956 169-70) tambeacutem assinala que apesar de todas as acusaccedilotildees
nenhum crime recaiacutea sobre os cristatildeos
Varias acusaciones de derecho comuacuten se poniacutean en juego al mismo tiempo para agobiar a los fieles religioacuten iliacutecita sociedad secreta lesa majestad negativa de obediencia si se trataba de soldados ignavia es decir negligencia en el cumplimiento de los deberes de la vida puacuteblica y privada y hasta magia Por lo demaacutes estas acusaciones cuando se aplicaban a los cristianos presentaban la singularidad de que se desistia inmediatamente de ellas si el inculpado consentiacutea en decir que renunciaba a su feacute lo que permite suponer que en suma era la religioacuten cristiana solamente lo que se perseguia
Ainda assim os cristatildeos precisavam ser castigados porque ao insistirem na afirmaccedilatildeo
ldquoSou cristatildeordquo rebelavam-se contra os princiacutepios do Impeacuterio especialmente o do culto ao
imperador
Este delito tinha de ser castigado em primeiro lugar porque de outro modo diminuiria a autoridade desses tribunais e em segundo lugar porque ao negarem a adorar o imperador os cristatildeos estavam adotando uma atitude que nesse tempo se interpretava como rebeliatildeo contra a autoridade imperial Com efeito o culto ao imperador era um dos viacutenculos que uniam o Impeacuterio e negar-se em puacuteblico a render esse culto equivalia a romper esse viacutenculo (Gonzaacutelez 1995 66)
Novamente percebe-se o caraacuteter imprevisiacutevel da vida cristatilde Os autores reconhecem
que de uma maneira geral as comunidades cristatildes procuravam levar uma vida exemplar e
submissa agraves leis do Impeacuterio ldquoAs instruccedilotildees de civismo dadas pelos Apoacutestolos continuam a
ser observadas e os cristatildeos mostram-se na sua grande maioria cidadatildeos fieacuteis e devotados ao
bem puacuteblicordquo (Daniel-Rops 1988 345) Poreacutem quando levados a julgamento puacuteblico natildeo
aceitavam prestar culto a outro senhor aleacutem de Cristo
No tocante ao serviccedilo militar as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio nem sempre eram
tatildeo simples Na opiniatildeo de Guignebert (1956 166) isso se dava porque as obrigaccedilotildees
militares geralmente tinham uma forte ligaccedilatildeo com as praacuteticas religiosas pagatildes
20
El servicio militar les resultaba odioso porque suponiacutea obligaciones idolaacutetricas y porque execraban la guerra su participacioacuten en el servicio civil les pareciacutea supeacuterflua sobre todo se rehusaban obstinadamente a tomar parte en ninguna de las manifestaciones de lealtad que el gobierno imperial reclamaba porque todas revestiacutean caraacutecter religioso
Do mesmo modo Daniel-Rops (1988 345) relata
casos de objeccedilatildeo de consciecircncia ao serviccedilo militar como acontece com um jovem soldado que exclama ldquoNatildeo me eacute permitido trazer ao pescoccedilo o signum (espeacutecie de placa de identidade usada no exeacutercito romano) porque fui marcado com o sinal de Cristordquo ou com um outro soldado que se recusou a colocar sobre a cabeccedila a coroa ritual dos sacrifiacutecios em honra do imperador Satildeo casos ainda excepcionais mas sintomaacuteticos a oposiccedilatildeo profunda entre Roma e a Igreja tende a passar do plano religioso para o plano ciacutevico e poliacutetico
A intervenccedilatildeo do plano religioso sobre o poliacutetico e vice-versa foi consequumlecircncia da
busca por parte dos romanos de um sistema seguro no qual pudessem se apoiar Com a
decadecircncia poliacutetica econocircmica e moral o nuacutemero de seitas e religiotildees se multiplicava
formando um quadro extremamente pluralista (cf Daniel-Rops 1988 307) Eacute no seacuteculo III
que a dinastia dos Severos se impotildee e juntamente com ela vecircm as tradiccedilotildees religiosas
orientais
El advenimiento con los Severos de principes africanos y sirios la dominacioacuten de mujeres penetradas de la piedade miacutestica de Oriente favorecieron su raacutepido desarollo y el siglo III conocioacute todas sus formas desde las maacutes groseras estrechamente emparentadas com la supersticioacuten pura hasta las maacutes refinadas modeladas pelas reflexiones de la filosofia que desde entonces tenderiacutea hacia lo divino (Guignebert 1956 119)
Neste panorama soacutecio-poliacutetico o cristianismo foi a religiatildeo abraccedilada por muitos
cidadatildeos natildeo soacute ldquotecelotildees pisoeiros e sapateirosrdquo mas tambeacutem ldquoadvogados como Satildeo
Gregoacuterio Taumaturgo ou Satildeo Cipriano de Cartago mulheres da sociedade como Santa
Perpeacutetua grandes burgueses da proviacutencia e lsquoclariacutessimosrsquo de famiacutelias senatoriaisrdquo (Daniel-
Rops 1988 317) Para Guignebert (1956 121) o contato da elite com o cristianismo se deu
essencialmente por meio dos escravos e da filosofia
a traveacutes de los esclavos llegoacute a las mujeres libres sus amas y accidentalmente atrajo la atencioacuten de algunos hombres instruiacutedos que buscaban la verdad divina Gracias a las primeras se insinuoacute en las classes altas gracias a los segundos tomoacute contacto con la filosofia en el curso del siglo II y las consecuencias de este encuentro fueron incalculables
Eacute importante relembrar que a filosofia pressupunha a escrita e tinha um forte viacutenculo
com a literatura Mesmo o cristianismo no seacuteculo III jaacute possuiacutea um consideraacutevel nuacutemero de
21
textos apologeacuteticos que dialogavam diretamente com a filosofia grega e possibilitavam para
a elite o acesso agraves ideacuteias cristatildes (cf Alesso 2006 31)
O relato do martiacuterio do soldado Marino surge portanto nesse contexto soacutecio-histoacuterico
como um texto de grande relevacircncia para o cristianismo Primeiro porque o personagem
principal eacute um soldado Integrava o grupo social de maior prestiacutegio nessa eacutepoca Como dizia
Septiacutemio Severo aos seus filhos ldquoEnriquecei o soldado e zombai do restordquo (Daniel-Rops
1988 299) E como no seacuteculo III as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio tomam uma nova
configuraccedilatildeo o contraste entre essas duas instituiccedilotildees eacute um assunto central O embate deixa
de ser apenas religioso e passa a ser tambeacutem poliacutetico - fato que vai se confirmar no seacuteculo
IV
Em segundo lugar a posiccedilatildeo social do maacutertir levanta outra questatildeo Marino como
membro da elite poderia facilmente ter comprado o libellus ndash documento que comprovava o
sacrifiacutecio aos deuses romanos ndash e assim conseguir sua liberdade (cf Silva 2006 248)
Daniel-Rops (1988 367) detalha que os ricos eram mais propensos a comprar falsos
documentos e a desistir ldquoConforme os testemunhos que temos parece que eram sobretudo os
ricos os bem instalados aqueles a quem a vida tinha concedido todo o conforto e que natildeo
estavam dispostos a sacrificaacute-lordquo que renunciavam agrave feacute
Aleacutem de abrir matildeo de sua posiccedilatildeo social e dos privileacutegios que iria obter como
centuriatildeo Marino natildeo se deixou dominar pelo medo a principal razatildeo da apostasia segundo
Daniel-Rops (1988 367) Eacute importante lembrar que a perseguiccedilatildeo sob Deacutecio instaurada em
249 dC ainda era bastante recente Numa tentativa de restaurar a gloacuteria do Impeacuterio Deacutecio
havia promulgado uma lei que obrigava todos os suacuteditos a retomarem o culto aos deuses
romanos Para ele ldquose todos os suacuteditos do Impeacuterio voltassem a adorar os deuses
possivelmente os deuses voltariam a favorecer o Impeacuteriordquo (Gonzaacutelez 1995 138) O culto era
um elemento essencial para os romanos Era por meio dele que expressavam sua
religiosidade como escreve Arnauld (2001 15) ldquoLa lsquopietasrsquo (pieacuteteacute) eacutetait la caracteacuteristique
principale de la religiositeacute romaine () Cette lsquopietasrsquo srsquoexprimait en une observance stricte
des lois rituelles Religion signifiait culterdquo
O descumprimento da lei por parte dos cristatildeos provocou uma perseguiccedilatildeo que teve
como consequumlecircncia um grande nuacutemero de apostasias fato que chegou a causar divergecircncia de
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opiniatildeo entre os bispos Num novo periacuteodo de relativa paz era portanto de suma importacircncia
para a Igreja insistir que os cristatildeos permanecessem firmes em suas convicccedilotildees Como
observa Daniel-Rops (1988 367) ldquoesses periacuteodos de interrupccedilatildeo nas perseguiccedilotildees natildeo
ajudavam em nada a coragem dos fieacuteis durante os tempos de calma a mola distendia-se e
quando subitamente era preciso voltar a entrar em luta muitos se sentiam faltos de energiardquo
Assim o testemunho de Marino evidencia o conflito existente entre a Igreja e o
Impeacuterio e conclama de maneira didaacutetica a que os cristatildeos tenham a mesma disposiccedilatildeo
mesmo diante da possibilidade da apostasia e dos terrores de um novo periacuteodo de perseguiccedilatildeo
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3 TEXTO GREGO
Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου Μαρίνου
Κατὰ τούτους εἰρήνης ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης ἐν Καισαρείᾳ τῆς
Παλαιστίνης Μαρῖνος τῶν ἐν στρατείαις ἀξιώμασι τετιμημένων γένει τε
καὶ πλοὕτῳ περιφανὴς ἀνήρ διὰ τὴν Χριστοῦ μαρτυρίαν τὴν κεφαλὴν
ἀποτέμνεται τοιᾶσδε ἕνεκεν αἰτίας
2 τιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας φασίν
ἑκατοντάρχους γίνεσθαι Τόπου σχολάζοντος ἐπὶ τοῦτο προκοπῆς τὸν
Μαρῖνον ἡ τοῦ βαθμοῦ τάξις ἐκάλει ἤδη τε μέλλοντα τῆς τιμῆς ἔχεσθαι
Παρελθὼν ἄλλος πρὸ τοῦ βήματος μὴ ἐξεῖναι μὲν ἐκείνῳ τῆς Ῥωμαίων
μετέχειν ἀξίας κατὰ τοὺς παλαιοὺς νόμους Χριστιανῷ γε ὄντι καὶ τοῖς
βασιλεῦσι μὴ θύοντι κατηγόρει αὐτῷ δὲ ἐπιβάλλειν τὸν κλῆρον
3 ἐφ᾿ ᾧ κινηθέντα τὸν δικαστὴν (Ἀχαιὸς οὕτος ἧν) πρῶτον μὲν ἐρέσθαι
ποίας ὁ Μαρῖνος εἴη γνώμης ὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν ἐπιμόνως
ἑώρα τριῶν ὡρῶν ἐπιδοῦναι αὐτῷ εἰς ἐπίσκεψιν διάστημα
4 ἐκτὸς δῆτα γενόμενον αὐτὸν τοῦ δικαστηρίου Θεότεκνος ὁ τῇδε
ἐπίσκοπος ἀφέλκει προσελθὼν δι᾿ ὁμιλίας καὶ τῆς χειρὸς λαβὼν ἐπὶ τὴν
ἐκκλησίαν προάγει εἴσω τε πρὸς αὐτῷ στήσας τῷ ἁγιάσματι μικρόν τι
παραναστείλας αὐτοῦ τῆς χλαμύδος καὶ τὸ προσηρτημένον αὐτῷ ξίφος
ἐπιδείξας ἅμα τε ἀντιπαρατίθησι προσαγαγὼν αὐτῷ τὴν τῶν θείων
εὐαγγελίων γραψήν κελεύσας τῶν δυοῖν ἑλέσθαι τὸ κατὰ γνώμην ὡς δ᾿
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ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν
ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς
αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης
5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ
δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ
δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν
ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται
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4 TRADUCcedilAtildeO
O martiacuterio do Santo Marino
1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares
em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido
honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por
todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu
testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte
2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a
conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a
ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo
Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e
declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e
portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos
romanos Assim o cargo cairia para si
3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou
primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele
insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs
horas para refletir
4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era
bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela
matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando
um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo
tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos
exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem
hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas
ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno
ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo
5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para
o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se
apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute
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imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre
o seu fim
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5 COMENTAacuteRIOS
51 OS PERSONAGENS
Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em
um ponto da estrutura
Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola
Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal
familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute
exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um
homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos
movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do
texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave
autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado
guerreiro
O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo
dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo
para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A
denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma
preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega
Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o
exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees
do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio
militar portanto tinha um significado muito grande
Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas
informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou
compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem
disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo
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Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na
quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado
provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era
seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para
conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial
para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve
como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)
O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para
anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo
de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos
outros personagens no texto
52 ESTRUTURA
O texto pode ser subdividido em 5 partes
(i) Marino o soldado cristatildeo
A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no
espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo
A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de
captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a
expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo
(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo
A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio
narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo
apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal
(iii) Marino e o juiz a confissatildeo
A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente
que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir
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(iv) Marino e o bispo a decisatildeo
Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de
Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem
palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a
espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe
a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras
(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo
Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo
Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte
53 TEMPO E ESPACcedilO
O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto
para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης
ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor
Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e
a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII
12)
A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que
Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em
todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto
o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se
deram de maneira muito raacutepida
Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia
na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no
entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes
contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o
Cristianismo
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O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno
poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por
Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo
tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito
cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera
propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz
que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os
sofrimentos corporais
Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte
54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS
O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de
diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um
detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga
essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de
martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)
Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte
A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da
distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no
entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor
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A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra
no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios
desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica
Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com
Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma
narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute
portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a
noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007
8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente
engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo
No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no
uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo
εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por
ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento
por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann
2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que
eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega
amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e
decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo
do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio
ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento
emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado
comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como
afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva
de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a
forte presenccedila do aspecto emotivo
A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para
enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou
ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops
(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma
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medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te
apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo
Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila
Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte
pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o
caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o
representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute
o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar
Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel
seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os
espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo
Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na
hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops
(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo
obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo
O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino
se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua
decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo
que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar
O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma
meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior
sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O
adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez
Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num
texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e
ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς
πίστεως τὴν προθυμίαν
Assim temos
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Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)
darrdarrdarrdarr
Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo
darrdarrdarrdarr
Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo
O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas
uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado
pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν
ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente
detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita
conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui
coerecircncia ao texto
Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)
destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura
feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que
todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou
seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica
fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e
estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha
havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois
poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo
34
sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser
adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um
antagonismo fundamentalrdquo
O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de
Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo
substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo
ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos
esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no
texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino
Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos
durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e
por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que
a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino
Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη
ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto
o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων
o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος
o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις
o substantivo εἰρήνη
o substantivo μαρτυρία
Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e
formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado
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A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes
por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)
honra romana (τιμή)
vide (κλῆμα)
centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)
reconhecimento passageiro e
terreno (ἀξιώμασι
τετιμημένων )
honra cristatilde (τιμή)
paz (εἰρήνη)
maacutertir (μάρτυρ)
reconhecimento eterno e divino
(τελειοῦται)
O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria
honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o
argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado
explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos
versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω
ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o
objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας
φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo
Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o
ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ
τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela
feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)
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Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha
pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento
terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo
ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na
comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o
cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)
Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito
mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp
Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo
por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute
essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto
O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por
exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer
voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do
termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que
ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to
the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις
Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de
um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados
Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor
menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A
acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os
personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado
numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo
de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute
em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz
37
como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da
acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade
interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se
constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio
por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os
imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao
registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o
mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)
A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das
intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que
como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos
entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo
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CONCLUSAtildeO
O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e
produtivo sob vaacuterios aspectos
Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual
gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A
percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a
ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os
primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma
instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na
literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um
pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os
cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo
- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura
No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do
texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico
durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e
consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa
ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias
da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna
centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o
posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos
fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento
A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se
compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao
bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se
mostrar complacente
39
Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os
cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de
sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem
como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como
um substituto aos espetaacuteculos romanos
Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave
plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos
Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o
que deu origem ao culto dos santos
Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda
precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos
possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados
ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται
presente no texto traduzido e em outros relatos
Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais
utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e
posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma
melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande
auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo
cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade
proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses
novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde
40
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ANEXOS
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)
[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1
1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em
Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um
tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua
linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte
2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles
que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o
escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a
honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo
as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que
era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a
ele
3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a
Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que
era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse
4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e
afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma
vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o
manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e
contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as
duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a
direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -
manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que
escolheste Vai em pazrdquo
1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu
este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer
casos como o de Marino [nota do Editor]
44
5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de
novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado
Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua
feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado
45
TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)
During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in
Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and
was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It
came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour
and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and
according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he
was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and
attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and
should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to
the ancient laws but that instead the post should fall to himself
It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he
first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed
that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had
Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside
in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed
Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword
attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it
before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out
his right hand and took the divine writings
lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him
may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo
No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the
tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and
showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to
execution and so found his fulfilment
8
Em anexo encontram-se duas outras traduccedilotildees para o relato de martiacuterio de Marino a
de Musurillo (2000) para a liacutengua inglesa e a de Fischer (2005) para a liacutengua portuguesa
9
1 GEcircNERO LITERAacuteRIO
O objetivo deste capiacutetulo eacute classificar e compreender o gecircnero literaacuterio no qual os
relatos de martiacuterio estatildeo inseridos
A primeira observaccedilatildeo que precisa ser feita a respeito dos relatos de martiacuterio eacute que a
leitura empreendida neste trabalho tem como pressuposto o ponto de vista literaacuterio Ou seja
natildeo se tem a intenccedilatildeo de discutir a veracidade dos fatos histoacutericos relatados ou de se fazer um
estudo criacutetico no sentido de discernir o que eacute histoacuteria do que eacute ficccedilatildeo Ateacute mesmo porque
conforme escreve Musurillo (2000 liv) a linha entre histoacuteria e ficccedilatildeo nesse tipo de texto eacute
muito tecircnue
A classificaccedilatildeo do gecircnero ao qual pertencem os relatos de martiacuterio pode ser feita por
duas vias distintas Pela primeira partimos dos mais variados tipos de textos de diferentes
eacutepocas com o intuito de por meio da comparaccedilatildeo entre as caracteriacutesticas formais enquadraacute-
los a um determinado gecircnero Pela segunda contrastamos textos de cunho cristatildeo - escritos
por autores nomeadamente cristatildeos com o objetivo de divulgar a sua feacute ndash aos de cunho natildeo-
cristatildeo Essas duas vias satildeo levadas em consideraccedilatildeo neste capiacutetulo comeccedilando pela segunda
a comparaccedilatildeo entre a literatura cristatilde e a natildeo-cristatilde
11 LITERATURA CRISTAtilde E LITERATURA PAGAtilde
A contraposiccedilatildeo entre literatura cristatilde e natildeo-cristatilde eacute um ponto fundamental para a
questatildeo do gecircnero natildeo soacute dos relatos de martiacuterio mas tambeacutem para todos os outros tipos de
textos escritos durante os primeiros seacuteculos da era cristatilde Isso porque durante os seacuteculos II a
IV dC o Cristianismo busca sua afirmaccedilatildeo como religiatildeo e filosofia utilizando-se em
grande medida da escrita
Alesso (2006 24) explica que eacute a partir do seacuteculo II que o Cristianismo se organiza
para enfrentar problemas internos como ldquoas acusaccedilotildees de heresia lutas pelo poder perigos de
cisma e controveacutersias teoloacutegicasrdquo A organizaccedilatildeo tambeacutem se fez necessaacuteria para enfrentar os
10
ataques externos o que resultou na apresentaccedilatildeo das ideacuteias cristatildes de modo filosoacutefico em
textos bem elaborados e com caracteriacutesticas semelhantes aos da cultura da eacutepoca
Los discursos de los obispos y letrados defensores del cristianismo no podiacutean ser espontaacuteneos ni livianos cuando se trataba de responder a las criacuteticas y a la difamacioacuten de enemigos tan ilustrados como ellos No bastaba la elocuencia entusiasta habiacutea que ordenar las ideas en lo molde de recursos avalados por el prestigio de siglos en los geacuteneros discursivos que los doctos habiacutean aprendido e internalizado desde su maacutes tierna formacioacuten heleniacutestica
Assim depreende-se que a literatura cristatilde destes primeiros seacuteculos visava atender
duas necessidades principais o ensino para manter a coesatildeo do puacuteblico interno e a apologia
que procurava defender a feacute diante do puacuteblico externo
Os escritos apologeacuteticos dialogavam de maneira direta com a filosofia grega e eram
escritos geralmente por bispos que viviam em grandes centros urbanos como Justino o
maacutertir Oriacutegenes Teoacutefilo e Tertuliano Por essa razatildeo tais discussotildees permaneciam muitas
vezes entre a elite natildeo chegando ao puacuteblico em geral (cf Alesso 2006 31) Desde muito
cedo portanto surge uma divisatildeo natural de destinataacuterios na literatura cristatilde enquanto alguns
textos eram escritos e dirigidos a leitores cultos outros textos tinham como puacuteblico-alvo o
povo
Para Alesso (2006 29-30) essa divisatildeo eacute claramente percebida quando do surgimento
do gecircnero biacuteos ldquoEl geacutenero biacuteos que tendriacutea entonces en principio como destinatario a un
lector cultivado se cumple tambieacuten en un subgeacutenero de corte popular las vidas ejemplaresrdquo
Eacute o gecircnero biacuteos que estabelece de fato em meados do seacuteculo IV a hagiografia - a biografia
que relata a vida de um santo - como um modelo literaacuterio a ser seguido pelos escritores
cristatildeos especialmente pelo movimento monaacutestico Segundo Moreschini amp Norelli (2000
511) a hagiografia foi com o tempo aproximando-se cada vez mais da biografia pagatilde Para
eles a relaccedilatildeo entre cristianismo e paganismo ldquoocorreu com todas as demais formas literaacuterias
cristatildesrdquo porque ldquopraticadas por pessoas que tiveram em comum com os pagatildeos os mestres as
escolas e as leiturasrdquo Tal fato reforccedila ainda mais a divisatildeo entre leitores que tinham acesso agrave
educaccedilatildeo formal daqueles que natildeo a tinham
As pessoas destituiacutedas de uma introduccedilatildeo agraves teorias filosoacuteficas e teoloacutegicas eram
atendidas em grande parte pelas leituras de relatos de martiacuterios ao que Alesso chama de ldquolas
vidas ejemplaresrdquo Os relatos eram lidos durante as celebraccedilotildees cristatildes tornando-se parte da
11
liturgia do culto Eram lembrados tambeacutem pela comunidade local por ocasiatildeo do aniversaacuterio
do maacutertir quando o povo se reunia em torno do tuacutemulo ou fazia peregrinaccedilotildees ateacute ele (cf
Musurillo 2000 lvi Moreschini amp Norelli 2000 297)
Os relatos de martiacuterios (acta passiones e martyria) no entanto formam entre si um
gecircnero especiacutefico Aleacutem disso conteacutem elementos que antecedem e prenunciam a formaccedilatildeo da
hagiografia Satildeo denominados por Moreschini amp Norelli (2000 511) de ldquohagiografia
primitivardquo O costume de narrar a prisatildeo o sofrimento e a morte de um cristatildeo explicam esses
autores apareceu ldquoquase contemporaneamente em lugares diferentes da cristandade em
formas diversas e com ascendecircncias e caracteriacutesticas ideoloacutegicas variadas o gecircnero literaacuterio
como tal se constitui progressivamente pelo desenvolvimento e pelas reciacuteprocas relaccedilotildees dos
textosrdquo
O modelo de narrativa dos maacutertires cristatildeos remonta na verdade aos relatos
encontrados na Biacuteblia como o martiacuterio de Estevatildeo (Atos dos Apoacutestolos 7) de Tiago (At 12)
e aos sofrimentos de Paulo (At 14) O modelo central poreacutem eacute o proacuteprio Jesus cuja vida eacute
narrada pelos Evangelhos Note-se que a ecircnfase dos Evangelhos natildeo eacute narrar todos os
acontecimentos biograacuteficos mas destacar os sofrimentos de Cristo desde seu nascimento
como por exemplo a perseguiccedilatildeo de Herodes ateacute sua crucificaccedilatildeo
Ainda que os relatos cristatildeos tenham tido como modelo textos pagatildeos tema discutido
por Delehaye (1966) Berger (1998) e Uytfanghe (1993) foi o Cristianismo que disseminou e
divulgou esse tipo de literatura Delehaye (1966 113-125) assinala que haacute vaacuterias diferenccedilas
entre os relatos dos maacutertires pagatildeos Alexandrinos e os relatos dos maacutertires cristatildeos Uma
delas se encontra na motivaccedilatildeo para o martiacuterio ldquoIci nous voyons des hommes qui meurent
pour leurs convictions et agrave qui il suffirait drsquoun mot ou drsquoun geste pour reconqueacuterir la liberteacute
Lagrave on nous presente les chefs drsquoune faction politique qui deacutefendent au prix de leur vie leur
programme et leurs actes et qui perdent la partierdquo (1966 124) E para Uytfanghe (1993 174)
caracteriacutesticas como humildade amor e perdatildeo natildeo satildeo encontradas em maacutertires pagatildeos
como Soacutecrates e Secircneca Jaacute nos cristatildeos elas estatildeo presentes de maneira radical
De uma forma geral os autores concordam que a formaccedilatildeo de um gecircnero a partir dos
relatos de martiacuterio e sua posterior propagaccedilatildeo pelos cristatildeos natildeo tinham uma intenccedilatildeo uacutenica
pelo contraacuterio vecirc-se nesses textos uma intenccedilatildeo multifacetada Para Musurillo (2000 liv-
12
lvii) os relatos de martiacuterio exerciam pelo menos trecircs funccedilotildees a primeira era a funccedilatildeo
histoacuterica jaacute que tanto os Evangelhos como os Atos dos Apoacutestolos e os martyria baseavam-se
em fatos histoacutericos A segunda era a apologeacutetica isto eacute a afirmaccedilatildeo da feacute cristatilde diante do
mundo E por uacuteltimo a funccedilatildeo de ensino Uytfanghe (1993 173-175) observa que por meio
desses relatos os cristatildeos eram encorajados a permanecerem firmes nas suas crenccedilas e a
cultivarem uma vida santa e asceacutetica O maacutertir se tornava assim um modelo a ser seguido E
o cristatildeo ndash literalmente o seguidor de Cristo - dava continuidade aos ensinos e agrave vida de
Jesus o qual afirmou ldquoLembrem-se das palavras que eu lhes disse Nenhum escravo eacute maior
do que o seu senhor Se me perseguiram tambeacutem perseguiratildeo vocecircsrdquo (Evang Joatildeo 1520)
Aleacutem desses trecircs aspectos a formaccedilatildeo de um corpus literaacuterio cristatildeo era de grande
interesse para a Igreja na medida em que oferecia ao puacuteblico cristatildeo a cada dia maior uma
nova opccedilatildeo cultural Conforme o registro que possuiacutemos no escrito Os Espetaacuteculos do bispo
Tertuliano de Cartago os cristatildeos eram aconselhados a natildeo frequumlentarem os teatros e os
circos nem assistirem aos combates de gladiadores ldquoMas eles percebem que algueacutem se fez
cristatildeo sobretudo pelo fato de evitar os espetaacuteculosrdquo (De spect 243)
Tertuliano posicionou-se fortemente contra a participaccedilatildeo dos cristatildeos nos espetaacuteculos
promovidos pelos teatros circos e arenas porque aleacutem de possuiacuterem uma ligaccedilatildeo com algum
deus grego ou romano - e portanto promoverem a idolatria - evidenciavam a incoerecircncia da
sociedade romana ldquosoacute ali [no teatro] tem curso e aplauso o que em qualquer outra parte se
reprovardquo (De spect 171) Assim argumenta ldquoConvencidos ficamos que por nenhum lado
nos fica bem laacute ir noacutes que por duas vezes renunciamos aos iacutedolosrdquo (De spect 13 1) Para
Tertuliano o homem eacute imagem e semelhanccedila de Deus e por essa razatildeo natildeo deveria
corromper sua alma e corpo
O certo eacute que natildeo nos foram dados os olhos para os entregar agrave concupiscecircncia nem a liacutengua para a maledicecircncia nem os ouvidos para sorvedouro de murmuraccedilotildees nem o paladar para poccedilo de gula o ventre para dar seguimento agrave mesma gula os oacutergatildeos genitais para excessos de impureza as matildeos para estrangular o proacuteximo os peacutes para vagabundear natildeo se nos infundiu a alma ateacute as entretelas do corpo para vir a ser um recesso de ciladas e de embustes e de iniquumlidades (De spect 210)
Os prazeres cultivados pela sociedade romana deveriam portanto ser abandonados e
substituiacutedos Para Tertuliano o cristatildeo natildeo tinha necessidade de espetaacuteculos pois desfrutava
dos prazeres (voluptates) proacuteprios agrave sua feacute Seus argumentos satildeo os seguintes
13
Que melhor alegria que a que promana da reconciliaccedilatildeo com Deus Pai Nosso Senhor do conhecimento da verdade de reconhecer os erros do perdatildeo de tantos pecados da passada vida Que maior prazer que o asco do proacuteprio prazer que a consciecircncia pura que a vida sem ambiccedilotildees e o destemor da morte Pisar aos peacutes os deuses dos gentios expelir os democircnios curar doentes informar-te da verdade revelada viver para Deus aiacute estatildeo as alegrias satildeo esses os espetaacuteculos santos dos cristatildeos os espetaacuteculos perpeacutetuos por que se natildeo paga nada (De spect 29 1-3)
O bispo continua a explanaccedilatildeo de suas ideacuteias afirmando que os cristatildeos natildeo possuem o
teatro mas tecircm boa literatura natildeo possuem os combates de gladiadores mas tecircm as lutas pela
feacute e pela castidade natildeo possuem o sangue das arenas mas tecircm o sangue de Cristo ldquoSe o
palavreado cecircnico eacute divertido natildeo temos falta de boas letras temos versos a rodos e
pensamentos bem cunhados nada se diga de cacircnticos e vozes do melhor metal em vez de
faacutebulas temos verdades em vez de embustes a lisura mais declaradardquo (De spect 294)
A defesa e a valorizaccedilatildeo de uma literatura proacutepria aos cristatildeos eacute um elemento
extremamente importante para a propagaccedilatildeo dos relatos de martiacuterio porque conforme visto
acima esse tipo de texto entrou em circulaccedilatildeo como um substituto agraves encenaccedilotildees teatrais
Assim os martyria ajudaram a constituir um corpus literaacuterio cristatildeo que se tornou um
instrumento de poder para a Igreja
Como observa Fox (1996 130) os maacutertires compartilhavam juntamente com os
bispos e visionaacuteriosprofetas um lugar privilegiado na comunidade ldquoAmong Christians
before Constantine power was attribute of three particular groups it was achieved by
visionaires it was ascribed to martyrs and confessors it was vested above all in bishops
Literacy assisted the exercise of power by all threerdquo Os integrantes desses trecircs grupos natildeo
apenas eram admirados mas tidos como autoridades Os bispos por exemplo eram
considerados por Inaacutecio de Antioquia como ldquoos representantes de Deus na Igrejardquo
(Guignebert 1956 137) Por isso os escritos ou discursos proferidos por esses trecircs grupos
eram recebidos na maioria das vezes como proacutepria palavra de Deus fator que atribuiacutea um
poder ainda maior aos textos Para Fox (1996 129) ldquothis combination of sacred text and an
increasingly standardised pattern of authority make the early Church a unique subject for
studies of literacy and powerrdquo
Como um gecircnero da literatura cristatilde os relatos de martiacuterio tambeacutem serviram para a
manutenccedilatildeo e a transmissatildeo da ideologia cristatilde nos primeiros seacuteculos do Cristianismo
conforme escreve Alesso (2006 34-35)
14
Los geacuteneros en todas sus formas y subformas son el suporte estructural para la transmisioacuten de un ideario y lo fueron de modo especial en el trasvase de los contenidos que provenientes de la antiguumledad se imbricaron en el cristianismo de los Padres Aunque su relacioacuten com la criacutetica sociohistoacuterica es marginal los geacuteneros son indudables portadores de significacioacuten cuando interesan a la evolucioacuten de paraacutemetros poliacutetico culturales que intervinieran en la construccioacuten del edificio ideoloacutegico de la teologiacutea cristiana
O fortalecimento da literatura cristatilde foi enfim um fator essencial para a difusatildeo do
Cristianismo porque ajudou a organizaacute-lo como instituiccedilatildeo Por meio da literatura o
Cristianismo conseguiu alcanccedilar pessoas de todos os lugares e de todas as classes sociais
inclusive as pertencentes agrave elite que conforme Daniel-Rops (1988 305) sentiam o decliacutenio
do Impeacuterio que chegava ateacute mesmo ao acircmbito literaacuterio e artiacutestico
12 AS CARACTERIacuteSTICAS LITERAacuteRIAS FORMAIS
Quanto agraves caracteriacutesticas formais que podem ser levadas em conta para a classificaccedilatildeo
do gecircnero os relatos de martiacuterio mesclam traccedilos tanto do gecircnero biograacutefico quanto do
discurso hagiograacutefico
Os relatos de martiacuterio natildeo podem ser classificados categoricamente como biacuteoi pois
natildeo chegam a constituir uma biografia de fato Tambeacutem natildeo podem ser classificados como
hagiografia em sentido exclusivo porque como afirma Delehaye (apud Uytfanghe 1993
146) esta eacute muito abrangente inclui ldquotodo documento escrito inspirado pelo culto dos santos
e destinado a promovecirc-lordquo Assim o que se verifica eacute um entrecruzamento de gecircneros Isso
ocorre porque os gecircneros satildeo como afirma Alesso (2006 29) sistemas abertos ldquolas
invariantes coexisten con las variables y no podemos condenarlos y condenarnos a una
esquematizacioacuten extrema porque perderiacuteamos de vista uno de los objetivos primordiales la
finalidad del contenidordquo Por essa razatildeo adotamos neste trabalho a definiccedilatildeo biacuteos
hagiograacutefico introduzida por Ipiranga Juacutenior (2006 9)
Segundo Momigliano (1971 25) os gregos jaacute possuiacuteam o haacutebito de redigir biografias
no seacuteculo V aC mas foi no periacuteodo heleniacutestico que ele se intensificou e o gecircnero recebeu um
nome especiacutefico ldquobien qui nous conaissions lrsquoexistence de biographies et peut-ecirctre
drsquoautobiographies degraves le cinquiegraveme siegravecle avant JC crsquoest seulement agrave lrsquoeacutepoque helleacutenistique
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que la biographie devient une notion precise et acquiert un nom en propre Ce nome est lsquobiosrsquo
ndash et non lsquobiographiarsquordquo
Para Bakhtin (2003 138) entretanto a biografia como romance surgiu apenas no fim
da Idade Meacutedia Durante os seacuteculos II-IV dC ainda era uma forma literaacuteria em formaccedilatildeo
Mesmo tendo em mente a distacircncia cronoloacutegica entre os martyria e o romance biograacutefico ao
qual Bakhtin se refere eacute possiacutevel perceber semelhanccedilas entre os dois
A primeira delas eacute a presenccedila do heroacutei com valores do tipo bravura honradez
magnanimidade e generosidade (cf Bakhtin 2003 142 147) Ao abrir matildeo de posiccedilotildees
poliacuteticas e religiosas ao enfrentar perigos sofrimentos torturas e feras sem renunciar agrave feacute o
maacutertir eacute visto como um heroacutei pela comunidade cristatilde Ele ldquotorna-se uma espeacutecie de ponto
focal da vida da comunidade que o circunda de veneraccedilatildeo considerando-o jaacute em contato com
Deus capaz de profetizar e de pronunciar-se com uma autoridade especial tambeacutem sobre
questotildees eclesiaacutesticasrdquo (Moreschini amp Norelli 2000 297) Morrer por sua feacute eacute o ato supremo
de glorificaccedilatildeo para os primeiros cristatildeos E eacute por meio dessa glorificaccedilatildeo de acordo com as
palavras de Bakhtin (2003 143) que o heroacutei consegue alcanccedilar a consciecircncia de uma
determinada sociedade incutindo assim novos valores
A aspiraccedilatildeo agrave gloacuteria organiza a vida do heroacutei ingecircnuo a gloacuteria organiza tambeacutem a narraccedilatildeo da sua vida sua glorificaccedilatildeo Aspirar agrave gloacuteria eacute tomar consciecircncia de si na sociedade culta e histoacuterica dos homens (ou na naccedilatildeo) eacute afirmar e construir sua vida na possiacutevel consciecircncia dessa sociedade humana eacute crescer natildeo em si nem para si mas nos outros ou para os outros eacute ocupar um lugar no mundo imediato dos contemporacircneos e descendentes
A segunda semelhanccedila detectada entre os gecircneros biograacutefico e biacuteos hagiograacutefico eacute a
relaccedilatildeo de empatia que se estabelece entre autor-personagem Segundo Bakhtin (2003 150)
autor e personagem compartilham obrigatoriamente os mesmos valores ldquona biografia o
autor natildeo soacute combina com a personagem na feacute nas convicccedilotildees e no amor mas tambeacutem em
sua criaccedilatildeo artiacutestica (sincreacutetica) tomando como guia os mesmos valores que a personagem
em sua vida esteacuteticardquo Embora o autor do martiacuterio do soldado Marino natildeo seja explicitado eacute
possiacutevel inferir pelo texto que o interesse de registrar o fato tenha partido natildeo de algueacutem que
simplesmente compartilhava com ele a situaccedilatildeo de soldado do exeacutercito romano mas sim de
algueacutem que dividia os mesmos valores cristatildeos
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Quanto agrave modalidade do romance a relaccedilatildeo entre os gecircneros biacuteos hagiograacutefico e
biograacutefico tambeacutem eacute possiacutevel Bakhtin (2003 205) identifica quatro modelos de romance
ldquosegundo o princiacutepio de construccedilatildeo da imagem da personagem central o romance de viagens
o romance de provaccedilatildeo da personagem o romance biograacutefico (autobiograacutefico) o romance de
educaccedilatildeordquo Ora por ser um gecircnero hiacutebrido a personagem principal do biacuteos hagiograacutefico
mescla caracteriacutesticas tanto do romance de provaccedilatildeo quanto do romance biograacutefico
Para Bakhtin (2003 207) o romance de provaccedilatildeo divide-se em duas modalidades ldquoA
primeira modalidade eacute representada pelo romance grego (A Etioacutepica Leucipo e Cleitofon
etc) A segunda modalidade eacute representada pelas hagiografias do iniacutecio do cristianismo
(particularmente dos maacutertires)rdquo O objetivo das provaccedilotildees neste tipo de romance eacute mudar a
opiniatildeo e os valores do heroacutei Como nos relatos de martiacuterio os cristatildeos natildeo renunciam a sua
feacute natildeo haacute mutabilidade Logo o maacutertir aproxima-se do conceito de heroacutei da provaccedilatildeo ele ldquoeacute
acabado e predeterminado as experimentaccedilotildees (sofrimentos seduccedilotildees duacutevidas) natildeo se
tornam para ele uma experiecircncia formadora nem a modificam e nessa imutabilidade da
personagem estaacute toda questatildeordquo (Bakhtin 2003 209)
Aleacutem disso no romance de provaccedilatildeo o personagem eacute o centro Natildeo importam os
costumes ou lugares exoacuteticos como no romance de viagens O personagem natildeo eacute modificado
de forma determinante pelo mundo nem o modifica
Entre o heroacutei e o mundo natildeo existe interaccedilatildeo autecircntica o mundo natildeo eacute capaz de mudar o heroacutei ele apenas o experimenta e o heroacutei natildeo influencia o mundo natildeo lhe muda a face ao passar pela provaccedilatildeo ao afastar seus inimigos etc o heroacutei deixa no mundo tudo nos seus lugares natildeo modifica a face social do mundo natildeo o reconstroacutei e aliaacutes nem tem essa pretensatildeo (Bakhtin 2003 212)
Eacute exatamente esta a situaccedilatildeo observada no texto em anaacutelise A crise pela qual passa o
personagem Marino natildeo eacute capaz de alterar suas convicccedilotildees nem de mudar o curso normal dos
acontecimentos agrave parte de sua vida o exeacutercito continuaraacute existindo uma outra pessoa tomaraacute
o seu lugar e tudo continuaraacute funcionando sob os mesmos princiacutepios
Quanto ao romance biograacutefico Bakhtin (2003 213) considera que assim como o
romance de provaccedilatildeo ele ldquoeacute preparado ainda em solo antigo nas biografias antigas
autobiografias e confissotildees do periacuteodo inicial do cristianismo (terminando em Agostinho)rdquo
O gecircnero biacuteos hagiograacutefico estabelece contatos com esse tipo de romance por meio do
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enredo Como o romance biograacutefico tem como elemento principal a narraccedilatildeo da trajetoacuteria
vital de um determinado personagem ou seja tem como base justamente aqueles ldquoelementos
existentes antes do iniacutecio ou depois do teacutermino do romance de provaccedilatildeordquo (Ibid) engloba
necessariamente o relato da morte fato fundamental para o surgimento de um maacutertir na
concepccedilatildeo cristatilde
No romance biograacutefico a relaccedilatildeo da personagem com o mundo ganha um enfoque
diferente daquele verificado no romance de viagens ou no de provaccedilatildeo Bakhtin (2003 215)
verifica que ldquoPersonagens secundaacuterias paiacuteses cidades objetos etc integram o romance
biograacutefico por vias substanciais e ganham uma relaccedilatildeo igualmente substancial com o todo
vital da personagem centralrdquo Paradoxalmente o relato do soldado Marino apresenta tambeacutem
esse aspecto Embora ele permanecesse inabalaacutevel em sua decisatildeo de natildeo negar a feacute cristatilde
antes de o juiz lhe conceder um tempo para refletir eacute no encontro com o bispo Teotecno e
principalmente apoacutes o confronto com um objeto de grande valor ndash as Escrituras ndash que
Marino segue resoluto para o tribunal
Bakhtin tambeacutem escreve sobre o gecircnero hagiograacutefico embora com mais cautela Para
o autor (2003 169-70) ldquoa hagiografia se realiza diretamente no mundo do divinordquo Por se
tratar de um plano diferenciado em que ldquoa atitude reverente do autor natildeo deixa espaccedilo agrave
iniciativa individualrdquo (2003 170) Bakhtin prefere manter a mesma distacircncia Assim limita-
se em dizer que a hagiografia ldquorecorre a formas tradicionalmente sagradasrdquo (Ibid)
No aspecto formal os relatos de martiacuterio possuem de fato vaacuterias semelhanccedilas e um
fundamento em comum que satildeo os processos verbais No entanto ainda natildeo existe entre os
seacuteculos II e IV dC essa preocupaccedilatildeo ou esse rigor com a forma com a exclusatildeo de todo
elemento que possa remeter agrave individualidade
deve-se excluir tudo o que eacute tiacutepico de uma dada eacutepoca de uma dada nacionalidade () de uma dada condiccedilatildeo social de uma dada idade todo o concreto de uma imagem de uma vida todas as minuacutecias desta as indicaccedilotildees precisas do tempo e do espaccedilo na accedilatildeo ndash tudo o que reforccedila a determinidade no ser de um dado indiviacuteduo e assim lhe diminui a autoridade (Bakhtin 2003 170)
Vecirc-se portanto a partir dessa breve anaacutelise que o gecircnero biacuteos hagiograacutefico mescla
caracteriacutesticas tanto do gecircnero biograacutefico ndash seja biacuteos ou romance biograacutefico - quanto da
hagiografia constituindo assim um gecircnero agrave parte
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2 CONTEXTO SOacuteCIO-HISTOacuteRICO
O relato do martiacuterio de Marino se tornou conhecido por meio da obra Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio bispo de Cesareacuteia no iniacutecio do seacuteculo IV Para Puech (1930 173)
ldquoEusegravebe est un meacutediocre theacuteologien et un meacutediocre eacutecrivain () mais il nous a rendu comme
historien et comme chronographe des services inestimablesrdquo De fato dificilmente teriacuteamos
acesso a esse texto se natildeo fosse o trabalho de Euseacutebio De acordo com a cronologia do bispo
a morte de Marino eacute situada entre os anos 260-261 dC Para o tradutor Musurillo (2000
xxxvi) essa data eacute bastante provaacutevel O comentaacuterio no relato de que todas as igrejas
desfrutavam de um periacuteodo de paz eacute o principal fator que leva a essa conclusatildeo No ano de
260 dC eacute promulgado o edito de Galieno o qual ldquoautoriza os liacutederes da Igreja a presidir
livremente as celebraccedilotildees religiosasrdquo (Silva 2006 250)
No entanto mesmo com as medidas favoraacuteveis por parte dos governantes o
cristianismo permanecia uma religio ilicita e portanto os cristatildeos ainda estavam sujeitos a
julgamento caso fossem delatados Foi o que aconteceu com o soldado Marino Uma vez
acusado de ser cristatildeo e de natildeo prestar culto ao imperador foi levado ao tribunal Eacute muito
provaacutevel que Marino tivesse vaacuterios colegas cristatildeos no exeacutercito que natildeo foram executados
porque ningueacutem aparecera para acusaacute-los A situaccedilatildeo dos cristatildeos era realmente
imprevisiacutevel Daniel-Rops (1988 346) comenta que no seacuteculo III essa constante mudanccedila de
humor por parte do Impeacuterio criou uma situaccedilatildeo sem precedentes ldquoComo um anciatildeo doente
que ora dormita inconsciente ou vagamente inquieto ignorando as impaciecircncias que o
rodeiam ora se irrita e ainda se mostra terriacutevel da mesma forma o Impeacuterio muda a todo o
momento de atitude Eacute isto o que daacute agraves perseguiccedilotildees do seacuteculo III um caraacuteter tatildeo diferente das
precedentesrdquo
Assim Marino foi o escolhido naquele momento de paz temporaacuteria Eles tinham
conhecimento da lei que estava em vigor desde a eacutepoca do imperador Trajano (110-111 dC)
quando este determinara ao governador Pliacutenio que os cristatildeos natildeo deveriam ser
sistematicamente perseguidos nem deveriam ser aceitas denuacutencias anocircnimas contra eles
(Gonzaacutelez 1995 64) A recomendaccedilatildeo dada a Pliacutenio havia sido adotada em todo o Impeacuterio
Uma vez acusados entretanto deveriam ser julgados Geralmente os cristatildeos eram levados
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ao tribunal em decorrecircncia de disputas locais como escrevem Danieacutelou amp Marrou (1966
105)
Conveacutem frisar que natildeo haacute proscriccedilatildeo de cristatildeos pelo poder central quer dizer natildeo haacute perseguiccedilatildeo total Em segundo lugar verificam-se ataques locais movidos pelo povo e depois submetidos agrave apreciaccedilatildeo do magistrado romano () Em terceiro lugar o motivo da perseguiccedilatildeo natildeo se liga a crimes determinados mas unicamente ao lsquonomersquo cristatildeo O levantamento feito por Pliacutenio levara mesmo agrave conclusatildeo de que eram inocentes os cristatildeos
Guignebert (1956 169-70) tambeacutem assinala que apesar de todas as acusaccedilotildees
nenhum crime recaiacutea sobre os cristatildeos
Varias acusaciones de derecho comuacuten se poniacutean en juego al mismo tiempo para agobiar a los fieles religioacuten iliacutecita sociedad secreta lesa majestad negativa de obediencia si se trataba de soldados ignavia es decir negligencia en el cumplimiento de los deberes de la vida puacuteblica y privada y hasta magia Por lo demaacutes estas acusaciones cuando se aplicaban a los cristianos presentaban la singularidad de que se desistia inmediatamente de ellas si el inculpado consentiacutea en decir que renunciaba a su feacute lo que permite suponer que en suma era la religioacuten cristiana solamente lo que se perseguia
Ainda assim os cristatildeos precisavam ser castigados porque ao insistirem na afirmaccedilatildeo
ldquoSou cristatildeordquo rebelavam-se contra os princiacutepios do Impeacuterio especialmente o do culto ao
imperador
Este delito tinha de ser castigado em primeiro lugar porque de outro modo diminuiria a autoridade desses tribunais e em segundo lugar porque ao negarem a adorar o imperador os cristatildeos estavam adotando uma atitude que nesse tempo se interpretava como rebeliatildeo contra a autoridade imperial Com efeito o culto ao imperador era um dos viacutenculos que uniam o Impeacuterio e negar-se em puacuteblico a render esse culto equivalia a romper esse viacutenculo (Gonzaacutelez 1995 66)
Novamente percebe-se o caraacuteter imprevisiacutevel da vida cristatilde Os autores reconhecem
que de uma maneira geral as comunidades cristatildes procuravam levar uma vida exemplar e
submissa agraves leis do Impeacuterio ldquoAs instruccedilotildees de civismo dadas pelos Apoacutestolos continuam a
ser observadas e os cristatildeos mostram-se na sua grande maioria cidadatildeos fieacuteis e devotados ao
bem puacuteblicordquo (Daniel-Rops 1988 345) Poreacutem quando levados a julgamento puacuteblico natildeo
aceitavam prestar culto a outro senhor aleacutem de Cristo
No tocante ao serviccedilo militar as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio nem sempre eram
tatildeo simples Na opiniatildeo de Guignebert (1956 166) isso se dava porque as obrigaccedilotildees
militares geralmente tinham uma forte ligaccedilatildeo com as praacuteticas religiosas pagatildes
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El servicio militar les resultaba odioso porque suponiacutea obligaciones idolaacutetricas y porque execraban la guerra su participacioacuten en el servicio civil les pareciacutea supeacuterflua sobre todo se rehusaban obstinadamente a tomar parte en ninguna de las manifestaciones de lealtad que el gobierno imperial reclamaba porque todas revestiacutean caraacutecter religioso
Do mesmo modo Daniel-Rops (1988 345) relata
casos de objeccedilatildeo de consciecircncia ao serviccedilo militar como acontece com um jovem soldado que exclama ldquoNatildeo me eacute permitido trazer ao pescoccedilo o signum (espeacutecie de placa de identidade usada no exeacutercito romano) porque fui marcado com o sinal de Cristordquo ou com um outro soldado que se recusou a colocar sobre a cabeccedila a coroa ritual dos sacrifiacutecios em honra do imperador Satildeo casos ainda excepcionais mas sintomaacuteticos a oposiccedilatildeo profunda entre Roma e a Igreja tende a passar do plano religioso para o plano ciacutevico e poliacutetico
A intervenccedilatildeo do plano religioso sobre o poliacutetico e vice-versa foi consequumlecircncia da
busca por parte dos romanos de um sistema seguro no qual pudessem se apoiar Com a
decadecircncia poliacutetica econocircmica e moral o nuacutemero de seitas e religiotildees se multiplicava
formando um quadro extremamente pluralista (cf Daniel-Rops 1988 307) Eacute no seacuteculo III
que a dinastia dos Severos se impotildee e juntamente com ela vecircm as tradiccedilotildees religiosas
orientais
El advenimiento con los Severos de principes africanos y sirios la dominacioacuten de mujeres penetradas de la piedade miacutestica de Oriente favorecieron su raacutepido desarollo y el siglo III conocioacute todas sus formas desde las maacutes groseras estrechamente emparentadas com la supersticioacuten pura hasta las maacutes refinadas modeladas pelas reflexiones de la filosofia que desde entonces tenderiacutea hacia lo divino (Guignebert 1956 119)
Neste panorama soacutecio-poliacutetico o cristianismo foi a religiatildeo abraccedilada por muitos
cidadatildeos natildeo soacute ldquotecelotildees pisoeiros e sapateirosrdquo mas tambeacutem ldquoadvogados como Satildeo
Gregoacuterio Taumaturgo ou Satildeo Cipriano de Cartago mulheres da sociedade como Santa
Perpeacutetua grandes burgueses da proviacutencia e lsquoclariacutessimosrsquo de famiacutelias senatoriaisrdquo (Daniel-
Rops 1988 317) Para Guignebert (1956 121) o contato da elite com o cristianismo se deu
essencialmente por meio dos escravos e da filosofia
a traveacutes de los esclavos llegoacute a las mujeres libres sus amas y accidentalmente atrajo la atencioacuten de algunos hombres instruiacutedos que buscaban la verdad divina Gracias a las primeras se insinuoacute en las classes altas gracias a los segundos tomoacute contacto con la filosofia en el curso del siglo II y las consecuencias de este encuentro fueron incalculables
Eacute importante relembrar que a filosofia pressupunha a escrita e tinha um forte viacutenculo
com a literatura Mesmo o cristianismo no seacuteculo III jaacute possuiacutea um consideraacutevel nuacutemero de
21
textos apologeacuteticos que dialogavam diretamente com a filosofia grega e possibilitavam para
a elite o acesso agraves ideacuteias cristatildes (cf Alesso 2006 31)
O relato do martiacuterio do soldado Marino surge portanto nesse contexto soacutecio-histoacuterico
como um texto de grande relevacircncia para o cristianismo Primeiro porque o personagem
principal eacute um soldado Integrava o grupo social de maior prestiacutegio nessa eacutepoca Como dizia
Septiacutemio Severo aos seus filhos ldquoEnriquecei o soldado e zombai do restordquo (Daniel-Rops
1988 299) E como no seacuteculo III as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio tomam uma nova
configuraccedilatildeo o contraste entre essas duas instituiccedilotildees eacute um assunto central O embate deixa
de ser apenas religioso e passa a ser tambeacutem poliacutetico - fato que vai se confirmar no seacuteculo
IV
Em segundo lugar a posiccedilatildeo social do maacutertir levanta outra questatildeo Marino como
membro da elite poderia facilmente ter comprado o libellus ndash documento que comprovava o
sacrifiacutecio aos deuses romanos ndash e assim conseguir sua liberdade (cf Silva 2006 248)
Daniel-Rops (1988 367) detalha que os ricos eram mais propensos a comprar falsos
documentos e a desistir ldquoConforme os testemunhos que temos parece que eram sobretudo os
ricos os bem instalados aqueles a quem a vida tinha concedido todo o conforto e que natildeo
estavam dispostos a sacrificaacute-lordquo que renunciavam agrave feacute
Aleacutem de abrir matildeo de sua posiccedilatildeo social e dos privileacutegios que iria obter como
centuriatildeo Marino natildeo se deixou dominar pelo medo a principal razatildeo da apostasia segundo
Daniel-Rops (1988 367) Eacute importante lembrar que a perseguiccedilatildeo sob Deacutecio instaurada em
249 dC ainda era bastante recente Numa tentativa de restaurar a gloacuteria do Impeacuterio Deacutecio
havia promulgado uma lei que obrigava todos os suacuteditos a retomarem o culto aos deuses
romanos Para ele ldquose todos os suacuteditos do Impeacuterio voltassem a adorar os deuses
possivelmente os deuses voltariam a favorecer o Impeacuteriordquo (Gonzaacutelez 1995 138) O culto era
um elemento essencial para os romanos Era por meio dele que expressavam sua
religiosidade como escreve Arnauld (2001 15) ldquoLa lsquopietasrsquo (pieacuteteacute) eacutetait la caracteacuteristique
principale de la religiositeacute romaine () Cette lsquopietasrsquo srsquoexprimait en une observance stricte
des lois rituelles Religion signifiait culterdquo
O descumprimento da lei por parte dos cristatildeos provocou uma perseguiccedilatildeo que teve
como consequumlecircncia um grande nuacutemero de apostasias fato que chegou a causar divergecircncia de
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opiniatildeo entre os bispos Num novo periacuteodo de relativa paz era portanto de suma importacircncia
para a Igreja insistir que os cristatildeos permanecessem firmes em suas convicccedilotildees Como
observa Daniel-Rops (1988 367) ldquoesses periacuteodos de interrupccedilatildeo nas perseguiccedilotildees natildeo
ajudavam em nada a coragem dos fieacuteis durante os tempos de calma a mola distendia-se e
quando subitamente era preciso voltar a entrar em luta muitos se sentiam faltos de energiardquo
Assim o testemunho de Marino evidencia o conflito existente entre a Igreja e o
Impeacuterio e conclama de maneira didaacutetica a que os cristatildeos tenham a mesma disposiccedilatildeo
mesmo diante da possibilidade da apostasia e dos terrores de um novo periacuteodo de perseguiccedilatildeo
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3 TEXTO GREGO
Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου Μαρίνου
Κατὰ τούτους εἰρήνης ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης ἐν Καισαρείᾳ τῆς
Παλαιστίνης Μαρῖνος τῶν ἐν στρατείαις ἀξιώμασι τετιμημένων γένει τε
καὶ πλοὕτῳ περιφανὴς ἀνήρ διὰ τὴν Χριστοῦ μαρτυρίαν τὴν κεφαλὴν
ἀποτέμνεται τοιᾶσδε ἕνεκεν αἰτίας
2 τιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας φασίν
ἑκατοντάρχους γίνεσθαι Τόπου σχολάζοντος ἐπὶ τοῦτο προκοπῆς τὸν
Μαρῖνον ἡ τοῦ βαθμοῦ τάξις ἐκάλει ἤδη τε μέλλοντα τῆς τιμῆς ἔχεσθαι
Παρελθὼν ἄλλος πρὸ τοῦ βήματος μὴ ἐξεῖναι μὲν ἐκείνῳ τῆς Ῥωμαίων
μετέχειν ἀξίας κατὰ τοὺς παλαιοὺς νόμους Χριστιανῷ γε ὄντι καὶ τοῖς
βασιλεῦσι μὴ θύοντι κατηγόρει αὐτῷ δὲ ἐπιβάλλειν τὸν κλῆρον
3 ἐφ᾿ ᾧ κινηθέντα τὸν δικαστὴν (Ἀχαιὸς οὕτος ἧν) πρῶτον μὲν ἐρέσθαι
ποίας ὁ Μαρῖνος εἴη γνώμης ὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν ἐπιμόνως
ἑώρα τριῶν ὡρῶν ἐπιδοῦναι αὐτῷ εἰς ἐπίσκεψιν διάστημα
4 ἐκτὸς δῆτα γενόμενον αὐτὸν τοῦ δικαστηρίου Θεότεκνος ὁ τῇδε
ἐπίσκοπος ἀφέλκει προσελθὼν δι᾿ ὁμιλίας καὶ τῆς χειρὸς λαβὼν ἐπὶ τὴν
ἐκκλησίαν προάγει εἴσω τε πρὸς αὐτῷ στήσας τῷ ἁγιάσματι μικρόν τι
παραναστείλας αὐτοῦ τῆς χλαμύδος καὶ τὸ προσηρτημένον αὐτῷ ξίφος
ἐπιδείξας ἅμα τε ἀντιπαρατίθησι προσαγαγὼν αὐτῷ τὴν τῶν θείων
εὐαγγελίων γραψήν κελεύσας τῶν δυοῖν ἑλέσθαι τὸ κατὰ γνώμην ὡς δ᾿
24
ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν
ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς
αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης
5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ
δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ
δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν
ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται
25
4 TRADUCcedilAtildeO
O martiacuterio do Santo Marino
1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares
em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido
honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por
todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu
testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte
2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a
conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a
ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo
Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e
declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e
portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos
romanos Assim o cargo cairia para si
3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou
primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele
insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs
horas para refletir
4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era
bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela
matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando
um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo
tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos
exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem
hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas
ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno
ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo
5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para
o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se
apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute
26
imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre
o seu fim
27
5 COMENTAacuteRIOS
51 OS PERSONAGENS
Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em
um ponto da estrutura
Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola
Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal
familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute
exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um
homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos
movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do
texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave
autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado
guerreiro
O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo
dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo
para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A
denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma
preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega
Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o
exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees
do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio
militar portanto tinha um significado muito grande
Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas
informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou
compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem
disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo
28
Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na
quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado
provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era
seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para
conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial
para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve
como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)
O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para
anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo
de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos
outros personagens no texto
52 ESTRUTURA
O texto pode ser subdividido em 5 partes
(i) Marino o soldado cristatildeo
A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no
espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo
A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de
captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a
expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo
(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo
A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio
narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo
apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal
(iii) Marino e o juiz a confissatildeo
A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente
que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir
29
(iv) Marino e o bispo a decisatildeo
Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de
Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem
palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a
espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe
a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras
(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo
Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo
Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte
53 TEMPO E ESPACcedilO
O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto
para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης
ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor
Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e
a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII
12)
A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que
Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em
todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto
o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se
deram de maneira muito raacutepida
Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia
na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no
entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes
contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o
Cristianismo
30
O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno
poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por
Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo
tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito
cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera
propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz
que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os
sofrimentos corporais
Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte
54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS
O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de
diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um
detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga
essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de
martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)
Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte
A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da
distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no
entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor
31
A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra
no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios
desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica
Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com
Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma
narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute
portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a
noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007
8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente
engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo
No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no
uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo
εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por
ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento
por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann
2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que
eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega
amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e
decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo
do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio
ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento
emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado
comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como
afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva
de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a
forte presenccedila do aspecto emotivo
A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para
enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou
ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops
(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma
32
medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te
apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo
Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila
Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte
pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o
caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o
representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute
o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar
Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel
seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os
espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo
Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na
hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops
(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo
obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo
O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino
se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua
decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo
que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar
O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma
meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior
sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O
adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez
Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num
texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e
ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς
πίστεως τὴν προθυμίαν
Assim temos
33
Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)
darrdarrdarrdarr
Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo
darrdarrdarrdarr
Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo
O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas
uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado
pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν
ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente
detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita
conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui
coerecircncia ao texto
Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)
destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura
feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que
todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou
seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica
fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e
estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha
havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois
poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo
34
sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser
adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um
antagonismo fundamentalrdquo
O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de
Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo
substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo
ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos
esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no
texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino
Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos
durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e
por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que
a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino
Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη
ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto
o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων
o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος
o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις
o substantivo εἰρήνη
o substantivo μαρτυρία
Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e
formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado
35
A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes
por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)
honra romana (τιμή)
vide (κλῆμα)
centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)
reconhecimento passageiro e
terreno (ἀξιώμασι
τετιμημένων )
honra cristatilde (τιμή)
paz (εἰρήνη)
maacutertir (μάρτυρ)
reconhecimento eterno e divino
(τελειοῦται)
O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria
honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o
argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado
explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos
versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω
ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o
objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας
φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo
Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o
ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ
τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela
feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)
36
Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha
pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento
terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo
ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na
comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o
cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)
Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito
mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp
Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo
por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute
essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto
O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por
exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer
voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do
termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que
ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to
the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις
Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de
um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados
Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor
menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A
acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os
personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado
numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo
de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute
em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz
37
como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da
acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade
interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se
constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio
por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os
imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao
registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o
mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)
A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das
intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que
como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos
entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo
38
CONCLUSAtildeO
O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e
produtivo sob vaacuterios aspectos
Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual
gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A
percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a
ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os
primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma
instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na
literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um
pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os
cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo
- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura
No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do
texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico
durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e
consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa
ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias
da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna
centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o
posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos
fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento
A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se
compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao
bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se
mostrar complacente
39
Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os
cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de
sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem
como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como
um substituto aos espetaacuteculos romanos
Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave
plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos
Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o
que deu origem ao culto dos santos
Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda
precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos
possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados
ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται
presente no texto traduzido e em outros relatos
Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais
utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e
posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma
melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande
auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo
cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade
proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses
novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde
40
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ANEXOS
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)
[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1
1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em
Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um
tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua
linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte
2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles
que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o
escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a
honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo
as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que
era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a
ele
3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a
Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que
era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse
4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e
afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma
vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o
manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e
contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as
duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a
direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -
manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que
escolheste Vai em pazrdquo
1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu
este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer
casos como o de Marino [nota do Editor]
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5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de
novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado
Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua
feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado
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TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)
During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in
Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and
was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It
came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour
and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and
according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he
was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and
attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and
should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to
the ancient laws but that instead the post should fall to himself
It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he
first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed
that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had
Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside
in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed
Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword
attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it
before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out
his right hand and took the divine writings
lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him
may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo
No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the
tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and
showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to
execution and so found his fulfilment
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1 GEcircNERO LITERAacuteRIO
O objetivo deste capiacutetulo eacute classificar e compreender o gecircnero literaacuterio no qual os
relatos de martiacuterio estatildeo inseridos
A primeira observaccedilatildeo que precisa ser feita a respeito dos relatos de martiacuterio eacute que a
leitura empreendida neste trabalho tem como pressuposto o ponto de vista literaacuterio Ou seja
natildeo se tem a intenccedilatildeo de discutir a veracidade dos fatos histoacutericos relatados ou de se fazer um
estudo criacutetico no sentido de discernir o que eacute histoacuteria do que eacute ficccedilatildeo Ateacute mesmo porque
conforme escreve Musurillo (2000 liv) a linha entre histoacuteria e ficccedilatildeo nesse tipo de texto eacute
muito tecircnue
A classificaccedilatildeo do gecircnero ao qual pertencem os relatos de martiacuterio pode ser feita por
duas vias distintas Pela primeira partimos dos mais variados tipos de textos de diferentes
eacutepocas com o intuito de por meio da comparaccedilatildeo entre as caracteriacutesticas formais enquadraacute-
los a um determinado gecircnero Pela segunda contrastamos textos de cunho cristatildeo - escritos
por autores nomeadamente cristatildeos com o objetivo de divulgar a sua feacute ndash aos de cunho natildeo-
cristatildeo Essas duas vias satildeo levadas em consideraccedilatildeo neste capiacutetulo comeccedilando pela segunda
a comparaccedilatildeo entre a literatura cristatilde e a natildeo-cristatilde
11 LITERATURA CRISTAtilde E LITERATURA PAGAtilde
A contraposiccedilatildeo entre literatura cristatilde e natildeo-cristatilde eacute um ponto fundamental para a
questatildeo do gecircnero natildeo soacute dos relatos de martiacuterio mas tambeacutem para todos os outros tipos de
textos escritos durante os primeiros seacuteculos da era cristatilde Isso porque durante os seacuteculos II a
IV dC o Cristianismo busca sua afirmaccedilatildeo como religiatildeo e filosofia utilizando-se em
grande medida da escrita
Alesso (2006 24) explica que eacute a partir do seacuteculo II que o Cristianismo se organiza
para enfrentar problemas internos como ldquoas acusaccedilotildees de heresia lutas pelo poder perigos de
cisma e controveacutersias teoloacutegicasrdquo A organizaccedilatildeo tambeacutem se fez necessaacuteria para enfrentar os
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ataques externos o que resultou na apresentaccedilatildeo das ideacuteias cristatildes de modo filosoacutefico em
textos bem elaborados e com caracteriacutesticas semelhantes aos da cultura da eacutepoca
Los discursos de los obispos y letrados defensores del cristianismo no podiacutean ser espontaacuteneos ni livianos cuando se trataba de responder a las criacuteticas y a la difamacioacuten de enemigos tan ilustrados como ellos No bastaba la elocuencia entusiasta habiacutea que ordenar las ideas en lo molde de recursos avalados por el prestigio de siglos en los geacuteneros discursivos que los doctos habiacutean aprendido e internalizado desde su maacutes tierna formacioacuten heleniacutestica
Assim depreende-se que a literatura cristatilde destes primeiros seacuteculos visava atender
duas necessidades principais o ensino para manter a coesatildeo do puacuteblico interno e a apologia
que procurava defender a feacute diante do puacuteblico externo
Os escritos apologeacuteticos dialogavam de maneira direta com a filosofia grega e eram
escritos geralmente por bispos que viviam em grandes centros urbanos como Justino o
maacutertir Oriacutegenes Teoacutefilo e Tertuliano Por essa razatildeo tais discussotildees permaneciam muitas
vezes entre a elite natildeo chegando ao puacuteblico em geral (cf Alesso 2006 31) Desde muito
cedo portanto surge uma divisatildeo natural de destinataacuterios na literatura cristatilde enquanto alguns
textos eram escritos e dirigidos a leitores cultos outros textos tinham como puacuteblico-alvo o
povo
Para Alesso (2006 29-30) essa divisatildeo eacute claramente percebida quando do surgimento
do gecircnero biacuteos ldquoEl geacutenero biacuteos que tendriacutea entonces en principio como destinatario a un
lector cultivado se cumple tambieacuten en un subgeacutenero de corte popular las vidas ejemplaresrdquo
Eacute o gecircnero biacuteos que estabelece de fato em meados do seacuteculo IV a hagiografia - a biografia
que relata a vida de um santo - como um modelo literaacuterio a ser seguido pelos escritores
cristatildeos especialmente pelo movimento monaacutestico Segundo Moreschini amp Norelli (2000
511) a hagiografia foi com o tempo aproximando-se cada vez mais da biografia pagatilde Para
eles a relaccedilatildeo entre cristianismo e paganismo ldquoocorreu com todas as demais formas literaacuterias
cristatildesrdquo porque ldquopraticadas por pessoas que tiveram em comum com os pagatildeos os mestres as
escolas e as leiturasrdquo Tal fato reforccedila ainda mais a divisatildeo entre leitores que tinham acesso agrave
educaccedilatildeo formal daqueles que natildeo a tinham
As pessoas destituiacutedas de uma introduccedilatildeo agraves teorias filosoacuteficas e teoloacutegicas eram
atendidas em grande parte pelas leituras de relatos de martiacuterios ao que Alesso chama de ldquolas
vidas ejemplaresrdquo Os relatos eram lidos durante as celebraccedilotildees cristatildes tornando-se parte da
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liturgia do culto Eram lembrados tambeacutem pela comunidade local por ocasiatildeo do aniversaacuterio
do maacutertir quando o povo se reunia em torno do tuacutemulo ou fazia peregrinaccedilotildees ateacute ele (cf
Musurillo 2000 lvi Moreschini amp Norelli 2000 297)
Os relatos de martiacuterios (acta passiones e martyria) no entanto formam entre si um
gecircnero especiacutefico Aleacutem disso conteacutem elementos que antecedem e prenunciam a formaccedilatildeo da
hagiografia Satildeo denominados por Moreschini amp Norelli (2000 511) de ldquohagiografia
primitivardquo O costume de narrar a prisatildeo o sofrimento e a morte de um cristatildeo explicam esses
autores apareceu ldquoquase contemporaneamente em lugares diferentes da cristandade em
formas diversas e com ascendecircncias e caracteriacutesticas ideoloacutegicas variadas o gecircnero literaacuterio
como tal se constitui progressivamente pelo desenvolvimento e pelas reciacuteprocas relaccedilotildees dos
textosrdquo
O modelo de narrativa dos maacutertires cristatildeos remonta na verdade aos relatos
encontrados na Biacuteblia como o martiacuterio de Estevatildeo (Atos dos Apoacutestolos 7) de Tiago (At 12)
e aos sofrimentos de Paulo (At 14) O modelo central poreacutem eacute o proacuteprio Jesus cuja vida eacute
narrada pelos Evangelhos Note-se que a ecircnfase dos Evangelhos natildeo eacute narrar todos os
acontecimentos biograacuteficos mas destacar os sofrimentos de Cristo desde seu nascimento
como por exemplo a perseguiccedilatildeo de Herodes ateacute sua crucificaccedilatildeo
Ainda que os relatos cristatildeos tenham tido como modelo textos pagatildeos tema discutido
por Delehaye (1966) Berger (1998) e Uytfanghe (1993) foi o Cristianismo que disseminou e
divulgou esse tipo de literatura Delehaye (1966 113-125) assinala que haacute vaacuterias diferenccedilas
entre os relatos dos maacutertires pagatildeos Alexandrinos e os relatos dos maacutertires cristatildeos Uma
delas se encontra na motivaccedilatildeo para o martiacuterio ldquoIci nous voyons des hommes qui meurent
pour leurs convictions et agrave qui il suffirait drsquoun mot ou drsquoun geste pour reconqueacuterir la liberteacute
Lagrave on nous presente les chefs drsquoune faction politique qui deacutefendent au prix de leur vie leur
programme et leurs actes et qui perdent la partierdquo (1966 124) E para Uytfanghe (1993 174)
caracteriacutesticas como humildade amor e perdatildeo natildeo satildeo encontradas em maacutertires pagatildeos
como Soacutecrates e Secircneca Jaacute nos cristatildeos elas estatildeo presentes de maneira radical
De uma forma geral os autores concordam que a formaccedilatildeo de um gecircnero a partir dos
relatos de martiacuterio e sua posterior propagaccedilatildeo pelos cristatildeos natildeo tinham uma intenccedilatildeo uacutenica
pelo contraacuterio vecirc-se nesses textos uma intenccedilatildeo multifacetada Para Musurillo (2000 liv-
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lvii) os relatos de martiacuterio exerciam pelo menos trecircs funccedilotildees a primeira era a funccedilatildeo
histoacuterica jaacute que tanto os Evangelhos como os Atos dos Apoacutestolos e os martyria baseavam-se
em fatos histoacutericos A segunda era a apologeacutetica isto eacute a afirmaccedilatildeo da feacute cristatilde diante do
mundo E por uacuteltimo a funccedilatildeo de ensino Uytfanghe (1993 173-175) observa que por meio
desses relatos os cristatildeos eram encorajados a permanecerem firmes nas suas crenccedilas e a
cultivarem uma vida santa e asceacutetica O maacutertir se tornava assim um modelo a ser seguido E
o cristatildeo ndash literalmente o seguidor de Cristo - dava continuidade aos ensinos e agrave vida de
Jesus o qual afirmou ldquoLembrem-se das palavras que eu lhes disse Nenhum escravo eacute maior
do que o seu senhor Se me perseguiram tambeacutem perseguiratildeo vocecircsrdquo (Evang Joatildeo 1520)
Aleacutem desses trecircs aspectos a formaccedilatildeo de um corpus literaacuterio cristatildeo era de grande
interesse para a Igreja na medida em que oferecia ao puacuteblico cristatildeo a cada dia maior uma
nova opccedilatildeo cultural Conforme o registro que possuiacutemos no escrito Os Espetaacuteculos do bispo
Tertuliano de Cartago os cristatildeos eram aconselhados a natildeo frequumlentarem os teatros e os
circos nem assistirem aos combates de gladiadores ldquoMas eles percebem que algueacutem se fez
cristatildeo sobretudo pelo fato de evitar os espetaacuteculosrdquo (De spect 243)
Tertuliano posicionou-se fortemente contra a participaccedilatildeo dos cristatildeos nos espetaacuteculos
promovidos pelos teatros circos e arenas porque aleacutem de possuiacuterem uma ligaccedilatildeo com algum
deus grego ou romano - e portanto promoverem a idolatria - evidenciavam a incoerecircncia da
sociedade romana ldquosoacute ali [no teatro] tem curso e aplauso o que em qualquer outra parte se
reprovardquo (De spect 171) Assim argumenta ldquoConvencidos ficamos que por nenhum lado
nos fica bem laacute ir noacutes que por duas vezes renunciamos aos iacutedolosrdquo (De spect 13 1) Para
Tertuliano o homem eacute imagem e semelhanccedila de Deus e por essa razatildeo natildeo deveria
corromper sua alma e corpo
O certo eacute que natildeo nos foram dados os olhos para os entregar agrave concupiscecircncia nem a liacutengua para a maledicecircncia nem os ouvidos para sorvedouro de murmuraccedilotildees nem o paladar para poccedilo de gula o ventre para dar seguimento agrave mesma gula os oacutergatildeos genitais para excessos de impureza as matildeos para estrangular o proacuteximo os peacutes para vagabundear natildeo se nos infundiu a alma ateacute as entretelas do corpo para vir a ser um recesso de ciladas e de embustes e de iniquumlidades (De spect 210)
Os prazeres cultivados pela sociedade romana deveriam portanto ser abandonados e
substituiacutedos Para Tertuliano o cristatildeo natildeo tinha necessidade de espetaacuteculos pois desfrutava
dos prazeres (voluptates) proacuteprios agrave sua feacute Seus argumentos satildeo os seguintes
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Que melhor alegria que a que promana da reconciliaccedilatildeo com Deus Pai Nosso Senhor do conhecimento da verdade de reconhecer os erros do perdatildeo de tantos pecados da passada vida Que maior prazer que o asco do proacuteprio prazer que a consciecircncia pura que a vida sem ambiccedilotildees e o destemor da morte Pisar aos peacutes os deuses dos gentios expelir os democircnios curar doentes informar-te da verdade revelada viver para Deus aiacute estatildeo as alegrias satildeo esses os espetaacuteculos santos dos cristatildeos os espetaacuteculos perpeacutetuos por que se natildeo paga nada (De spect 29 1-3)
O bispo continua a explanaccedilatildeo de suas ideacuteias afirmando que os cristatildeos natildeo possuem o
teatro mas tecircm boa literatura natildeo possuem os combates de gladiadores mas tecircm as lutas pela
feacute e pela castidade natildeo possuem o sangue das arenas mas tecircm o sangue de Cristo ldquoSe o
palavreado cecircnico eacute divertido natildeo temos falta de boas letras temos versos a rodos e
pensamentos bem cunhados nada se diga de cacircnticos e vozes do melhor metal em vez de
faacutebulas temos verdades em vez de embustes a lisura mais declaradardquo (De spect 294)
A defesa e a valorizaccedilatildeo de uma literatura proacutepria aos cristatildeos eacute um elemento
extremamente importante para a propagaccedilatildeo dos relatos de martiacuterio porque conforme visto
acima esse tipo de texto entrou em circulaccedilatildeo como um substituto agraves encenaccedilotildees teatrais
Assim os martyria ajudaram a constituir um corpus literaacuterio cristatildeo que se tornou um
instrumento de poder para a Igreja
Como observa Fox (1996 130) os maacutertires compartilhavam juntamente com os
bispos e visionaacuteriosprofetas um lugar privilegiado na comunidade ldquoAmong Christians
before Constantine power was attribute of three particular groups it was achieved by
visionaires it was ascribed to martyrs and confessors it was vested above all in bishops
Literacy assisted the exercise of power by all threerdquo Os integrantes desses trecircs grupos natildeo
apenas eram admirados mas tidos como autoridades Os bispos por exemplo eram
considerados por Inaacutecio de Antioquia como ldquoos representantes de Deus na Igrejardquo
(Guignebert 1956 137) Por isso os escritos ou discursos proferidos por esses trecircs grupos
eram recebidos na maioria das vezes como proacutepria palavra de Deus fator que atribuiacutea um
poder ainda maior aos textos Para Fox (1996 129) ldquothis combination of sacred text and an
increasingly standardised pattern of authority make the early Church a unique subject for
studies of literacy and powerrdquo
Como um gecircnero da literatura cristatilde os relatos de martiacuterio tambeacutem serviram para a
manutenccedilatildeo e a transmissatildeo da ideologia cristatilde nos primeiros seacuteculos do Cristianismo
conforme escreve Alesso (2006 34-35)
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Los geacuteneros en todas sus formas y subformas son el suporte estructural para la transmisioacuten de un ideario y lo fueron de modo especial en el trasvase de los contenidos que provenientes de la antiguumledad se imbricaron en el cristianismo de los Padres Aunque su relacioacuten com la criacutetica sociohistoacuterica es marginal los geacuteneros son indudables portadores de significacioacuten cuando interesan a la evolucioacuten de paraacutemetros poliacutetico culturales que intervinieran en la construccioacuten del edificio ideoloacutegico de la teologiacutea cristiana
O fortalecimento da literatura cristatilde foi enfim um fator essencial para a difusatildeo do
Cristianismo porque ajudou a organizaacute-lo como instituiccedilatildeo Por meio da literatura o
Cristianismo conseguiu alcanccedilar pessoas de todos os lugares e de todas as classes sociais
inclusive as pertencentes agrave elite que conforme Daniel-Rops (1988 305) sentiam o decliacutenio
do Impeacuterio que chegava ateacute mesmo ao acircmbito literaacuterio e artiacutestico
12 AS CARACTERIacuteSTICAS LITERAacuteRIAS FORMAIS
Quanto agraves caracteriacutesticas formais que podem ser levadas em conta para a classificaccedilatildeo
do gecircnero os relatos de martiacuterio mesclam traccedilos tanto do gecircnero biograacutefico quanto do
discurso hagiograacutefico
Os relatos de martiacuterio natildeo podem ser classificados categoricamente como biacuteoi pois
natildeo chegam a constituir uma biografia de fato Tambeacutem natildeo podem ser classificados como
hagiografia em sentido exclusivo porque como afirma Delehaye (apud Uytfanghe 1993
146) esta eacute muito abrangente inclui ldquotodo documento escrito inspirado pelo culto dos santos
e destinado a promovecirc-lordquo Assim o que se verifica eacute um entrecruzamento de gecircneros Isso
ocorre porque os gecircneros satildeo como afirma Alesso (2006 29) sistemas abertos ldquolas
invariantes coexisten con las variables y no podemos condenarlos y condenarnos a una
esquematizacioacuten extrema porque perderiacuteamos de vista uno de los objetivos primordiales la
finalidad del contenidordquo Por essa razatildeo adotamos neste trabalho a definiccedilatildeo biacuteos
hagiograacutefico introduzida por Ipiranga Juacutenior (2006 9)
Segundo Momigliano (1971 25) os gregos jaacute possuiacuteam o haacutebito de redigir biografias
no seacuteculo V aC mas foi no periacuteodo heleniacutestico que ele se intensificou e o gecircnero recebeu um
nome especiacutefico ldquobien qui nous conaissions lrsquoexistence de biographies et peut-ecirctre
drsquoautobiographies degraves le cinquiegraveme siegravecle avant JC crsquoest seulement agrave lrsquoeacutepoque helleacutenistique
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que la biographie devient une notion precise et acquiert un nom en propre Ce nome est lsquobiosrsquo
ndash et non lsquobiographiarsquordquo
Para Bakhtin (2003 138) entretanto a biografia como romance surgiu apenas no fim
da Idade Meacutedia Durante os seacuteculos II-IV dC ainda era uma forma literaacuteria em formaccedilatildeo
Mesmo tendo em mente a distacircncia cronoloacutegica entre os martyria e o romance biograacutefico ao
qual Bakhtin se refere eacute possiacutevel perceber semelhanccedilas entre os dois
A primeira delas eacute a presenccedila do heroacutei com valores do tipo bravura honradez
magnanimidade e generosidade (cf Bakhtin 2003 142 147) Ao abrir matildeo de posiccedilotildees
poliacuteticas e religiosas ao enfrentar perigos sofrimentos torturas e feras sem renunciar agrave feacute o
maacutertir eacute visto como um heroacutei pela comunidade cristatilde Ele ldquotorna-se uma espeacutecie de ponto
focal da vida da comunidade que o circunda de veneraccedilatildeo considerando-o jaacute em contato com
Deus capaz de profetizar e de pronunciar-se com uma autoridade especial tambeacutem sobre
questotildees eclesiaacutesticasrdquo (Moreschini amp Norelli 2000 297) Morrer por sua feacute eacute o ato supremo
de glorificaccedilatildeo para os primeiros cristatildeos E eacute por meio dessa glorificaccedilatildeo de acordo com as
palavras de Bakhtin (2003 143) que o heroacutei consegue alcanccedilar a consciecircncia de uma
determinada sociedade incutindo assim novos valores
A aspiraccedilatildeo agrave gloacuteria organiza a vida do heroacutei ingecircnuo a gloacuteria organiza tambeacutem a narraccedilatildeo da sua vida sua glorificaccedilatildeo Aspirar agrave gloacuteria eacute tomar consciecircncia de si na sociedade culta e histoacuterica dos homens (ou na naccedilatildeo) eacute afirmar e construir sua vida na possiacutevel consciecircncia dessa sociedade humana eacute crescer natildeo em si nem para si mas nos outros ou para os outros eacute ocupar um lugar no mundo imediato dos contemporacircneos e descendentes
A segunda semelhanccedila detectada entre os gecircneros biograacutefico e biacuteos hagiograacutefico eacute a
relaccedilatildeo de empatia que se estabelece entre autor-personagem Segundo Bakhtin (2003 150)
autor e personagem compartilham obrigatoriamente os mesmos valores ldquona biografia o
autor natildeo soacute combina com a personagem na feacute nas convicccedilotildees e no amor mas tambeacutem em
sua criaccedilatildeo artiacutestica (sincreacutetica) tomando como guia os mesmos valores que a personagem
em sua vida esteacuteticardquo Embora o autor do martiacuterio do soldado Marino natildeo seja explicitado eacute
possiacutevel inferir pelo texto que o interesse de registrar o fato tenha partido natildeo de algueacutem que
simplesmente compartilhava com ele a situaccedilatildeo de soldado do exeacutercito romano mas sim de
algueacutem que dividia os mesmos valores cristatildeos
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Quanto agrave modalidade do romance a relaccedilatildeo entre os gecircneros biacuteos hagiograacutefico e
biograacutefico tambeacutem eacute possiacutevel Bakhtin (2003 205) identifica quatro modelos de romance
ldquosegundo o princiacutepio de construccedilatildeo da imagem da personagem central o romance de viagens
o romance de provaccedilatildeo da personagem o romance biograacutefico (autobiograacutefico) o romance de
educaccedilatildeordquo Ora por ser um gecircnero hiacutebrido a personagem principal do biacuteos hagiograacutefico
mescla caracteriacutesticas tanto do romance de provaccedilatildeo quanto do romance biograacutefico
Para Bakhtin (2003 207) o romance de provaccedilatildeo divide-se em duas modalidades ldquoA
primeira modalidade eacute representada pelo romance grego (A Etioacutepica Leucipo e Cleitofon
etc) A segunda modalidade eacute representada pelas hagiografias do iniacutecio do cristianismo
(particularmente dos maacutertires)rdquo O objetivo das provaccedilotildees neste tipo de romance eacute mudar a
opiniatildeo e os valores do heroacutei Como nos relatos de martiacuterio os cristatildeos natildeo renunciam a sua
feacute natildeo haacute mutabilidade Logo o maacutertir aproxima-se do conceito de heroacutei da provaccedilatildeo ele ldquoeacute
acabado e predeterminado as experimentaccedilotildees (sofrimentos seduccedilotildees duacutevidas) natildeo se
tornam para ele uma experiecircncia formadora nem a modificam e nessa imutabilidade da
personagem estaacute toda questatildeordquo (Bakhtin 2003 209)
Aleacutem disso no romance de provaccedilatildeo o personagem eacute o centro Natildeo importam os
costumes ou lugares exoacuteticos como no romance de viagens O personagem natildeo eacute modificado
de forma determinante pelo mundo nem o modifica
Entre o heroacutei e o mundo natildeo existe interaccedilatildeo autecircntica o mundo natildeo eacute capaz de mudar o heroacutei ele apenas o experimenta e o heroacutei natildeo influencia o mundo natildeo lhe muda a face ao passar pela provaccedilatildeo ao afastar seus inimigos etc o heroacutei deixa no mundo tudo nos seus lugares natildeo modifica a face social do mundo natildeo o reconstroacutei e aliaacutes nem tem essa pretensatildeo (Bakhtin 2003 212)
Eacute exatamente esta a situaccedilatildeo observada no texto em anaacutelise A crise pela qual passa o
personagem Marino natildeo eacute capaz de alterar suas convicccedilotildees nem de mudar o curso normal dos
acontecimentos agrave parte de sua vida o exeacutercito continuaraacute existindo uma outra pessoa tomaraacute
o seu lugar e tudo continuaraacute funcionando sob os mesmos princiacutepios
Quanto ao romance biograacutefico Bakhtin (2003 213) considera que assim como o
romance de provaccedilatildeo ele ldquoeacute preparado ainda em solo antigo nas biografias antigas
autobiografias e confissotildees do periacuteodo inicial do cristianismo (terminando em Agostinho)rdquo
O gecircnero biacuteos hagiograacutefico estabelece contatos com esse tipo de romance por meio do
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enredo Como o romance biograacutefico tem como elemento principal a narraccedilatildeo da trajetoacuteria
vital de um determinado personagem ou seja tem como base justamente aqueles ldquoelementos
existentes antes do iniacutecio ou depois do teacutermino do romance de provaccedilatildeordquo (Ibid) engloba
necessariamente o relato da morte fato fundamental para o surgimento de um maacutertir na
concepccedilatildeo cristatilde
No romance biograacutefico a relaccedilatildeo da personagem com o mundo ganha um enfoque
diferente daquele verificado no romance de viagens ou no de provaccedilatildeo Bakhtin (2003 215)
verifica que ldquoPersonagens secundaacuterias paiacuteses cidades objetos etc integram o romance
biograacutefico por vias substanciais e ganham uma relaccedilatildeo igualmente substancial com o todo
vital da personagem centralrdquo Paradoxalmente o relato do soldado Marino apresenta tambeacutem
esse aspecto Embora ele permanecesse inabalaacutevel em sua decisatildeo de natildeo negar a feacute cristatilde
antes de o juiz lhe conceder um tempo para refletir eacute no encontro com o bispo Teotecno e
principalmente apoacutes o confronto com um objeto de grande valor ndash as Escrituras ndash que
Marino segue resoluto para o tribunal
Bakhtin tambeacutem escreve sobre o gecircnero hagiograacutefico embora com mais cautela Para
o autor (2003 169-70) ldquoa hagiografia se realiza diretamente no mundo do divinordquo Por se
tratar de um plano diferenciado em que ldquoa atitude reverente do autor natildeo deixa espaccedilo agrave
iniciativa individualrdquo (2003 170) Bakhtin prefere manter a mesma distacircncia Assim limita-
se em dizer que a hagiografia ldquorecorre a formas tradicionalmente sagradasrdquo (Ibid)
No aspecto formal os relatos de martiacuterio possuem de fato vaacuterias semelhanccedilas e um
fundamento em comum que satildeo os processos verbais No entanto ainda natildeo existe entre os
seacuteculos II e IV dC essa preocupaccedilatildeo ou esse rigor com a forma com a exclusatildeo de todo
elemento que possa remeter agrave individualidade
deve-se excluir tudo o que eacute tiacutepico de uma dada eacutepoca de uma dada nacionalidade () de uma dada condiccedilatildeo social de uma dada idade todo o concreto de uma imagem de uma vida todas as minuacutecias desta as indicaccedilotildees precisas do tempo e do espaccedilo na accedilatildeo ndash tudo o que reforccedila a determinidade no ser de um dado indiviacuteduo e assim lhe diminui a autoridade (Bakhtin 2003 170)
Vecirc-se portanto a partir dessa breve anaacutelise que o gecircnero biacuteos hagiograacutefico mescla
caracteriacutesticas tanto do gecircnero biograacutefico ndash seja biacuteos ou romance biograacutefico - quanto da
hagiografia constituindo assim um gecircnero agrave parte
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2 CONTEXTO SOacuteCIO-HISTOacuteRICO
O relato do martiacuterio de Marino se tornou conhecido por meio da obra Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio bispo de Cesareacuteia no iniacutecio do seacuteculo IV Para Puech (1930 173)
ldquoEusegravebe est un meacutediocre theacuteologien et un meacutediocre eacutecrivain () mais il nous a rendu comme
historien et comme chronographe des services inestimablesrdquo De fato dificilmente teriacuteamos
acesso a esse texto se natildeo fosse o trabalho de Euseacutebio De acordo com a cronologia do bispo
a morte de Marino eacute situada entre os anos 260-261 dC Para o tradutor Musurillo (2000
xxxvi) essa data eacute bastante provaacutevel O comentaacuterio no relato de que todas as igrejas
desfrutavam de um periacuteodo de paz eacute o principal fator que leva a essa conclusatildeo No ano de
260 dC eacute promulgado o edito de Galieno o qual ldquoautoriza os liacutederes da Igreja a presidir
livremente as celebraccedilotildees religiosasrdquo (Silva 2006 250)
No entanto mesmo com as medidas favoraacuteveis por parte dos governantes o
cristianismo permanecia uma religio ilicita e portanto os cristatildeos ainda estavam sujeitos a
julgamento caso fossem delatados Foi o que aconteceu com o soldado Marino Uma vez
acusado de ser cristatildeo e de natildeo prestar culto ao imperador foi levado ao tribunal Eacute muito
provaacutevel que Marino tivesse vaacuterios colegas cristatildeos no exeacutercito que natildeo foram executados
porque ningueacutem aparecera para acusaacute-los A situaccedilatildeo dos cristatildeos era realmente
imprevisiacutevel Daniel-Rops (1988 346) comenta que no seacuteculo III essa constante mudanccedila de
humor por parte do Impeacuterio criou uma situaccedilatildeo sem precedentes ldquoComo um anciatildeo doente
que ora dormita inconsciente ou vagamente inquieto ignorando as impaciecircncias que o
rodeiam ora se irrita e ainda se mostra terriacutevel da mesma forma o Impeacuterio muda a todo o
momento de atitude Eacute isto o que daacute agraves perseguiccedilotildees do seacuteculo III um caraacuteter tatildeo diferente das
precedentesrdquo
Assim Marino foi o escolhido naquele momento de paz temporaacuteria Eles tinham
conhecimento da lei que estava em vigor desde a eacutepoca do imperador Trajano (110-111 dC)
quando este determinara ao governador Pliacutenio que os cristatildeos natildeo deveriam ser
sistematicamente perseguidos nem deveriam ser aceitas denuacutencias anocircnimas contra eles
(Gonzaacutelez 1995 64) A recomendaccedilatildeo dada a Pliacutenio havia sido adotada em todo o Impeacuterio
Uma vez acusados entretanto deveriam ser julgados Geralmente os cristatildeos eram levados
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ao tribunal em decorrecircncia de disputas locais como escrevem Danieacutelou amp Marrou (1966
105)
Conveacutem frisar que natildeo haacute proscriccedilatildeo de cristatildeos pelo poder central quer dizer natildeo haacute perseguiccedilatildeo total Em segundo lugar verificam-se ataques locais movidos pelo povo e depois submetidos agrave apreciaccedilatildeo do magistrado romano () Em terceiro lugar o motivo da perseguiccedilatildeo natildeo se liga a crimes determinados mas unicamente ao lsquonomersquo cristatildeo O levantamento feito por Pliacutenio levara mesmo agrave conclusatildeo de que eram inocentes os cristatildeos
Guignebert (1956 169-70) tambeacutem assinala que apesar de todas as acusaccedilotildees
nenhum crime recaiacutea sobre os cristatildeos
Varias acusaciones de derecho comuacuten se poniacutean en juego al mismo tiempo para agobiar a los fieles religioacuten iliacutecita sociedad secreta lesa majestad negativa de obediencia si se trataba de soldados ignavia es decir negligencia en el cumplimiento de los deberes de la vida puacuteblica y privada y hasta magia Por lo demaacutes estas acusaciones cuando se aplicaban a los cristianos presentaban la singularidad de que se desistia inmediatamente de ellas si el inculpado consentiacutea en decir que renunciaba a su feacute lo que permite suponer que en suma era la religioacuten cristiana solamente lo que se perseguia
Ainda assim os cristatildeos precisavam ser castigados porque ao insistirem na afirmaccedilatildeo
ldquoSou cristatildeordquo rebelavam-se contra os princiacutepios do Impeacuterio especialmente o do culto ao
imperador
Este delito tinha de ser castigado em primeiro lugar porque de outro modo diminuiria a autoridade desses tribunais e em segundo lugar porque ao negarem a adorar o imperador os cristatildeos estavam adotando uma atitude que nesse tempo se interpretava como rebeliatildeo contra a autoridade imperial Com efeito o culto ao imperador era um dos viacutenculos que uniam o Impeacuterio e negar-se em puacuteblico a render esse culto equivalia a romper esse viacutenculo (Gonzaacutelez 1995 66)
Novamente percebe-se o caraacuteter imprevisiacutevel da vida cristatilde Os autores reconhecem
que de uma maneira geral as comunidades cristatildes procuravam levar uma vida exemplar e
submissa agraves leis do Impeacuterio ldquoAs instruccedilotildees de civismo dadas pelos Apoacutestolos continuam a
ser observadas e os cristatildeos mostram-se na sua grande maioria cidadatildeos fieacuteis e devotados ao
bem puacuteblicordquo (Daniel-Rops 1988 345) Poreacutem quando levados a julgamento puacuteblico natildeo
aceitavam prestar culto a outro senhor aleacutem de Cristo
No tocante ao serviccedilo militar as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio nem sempre eram
tatildeo simples Na opiniatildeo de Guignebert (1956 166) isso se dava porque as obrigaccedilotildees
militares geralmente tinham uma forte ligaccedilatildeo com as praacuteticas religiosas pagatildes
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El servicio militar les resultaba odioso porque suponiacutea obligaciones idolaacutetricas y porque execraban la guerra su participacioacuten en el servicio civil les pareciacutea supeacuterflua sobre todo se rehusaban obstinadamente a tomar parte en ninguna de las manifestaciones de lealtad que el gobierno imperial reclamaba porque todas revestiacutean caraacutecter religioso
Do mesmo modo Daniel-Rops (1988 345) relata
casos de objeccedilatildeo de consciecircncia ao serviccedilo militar como acontece com um jovem soldado que exclama ldquoNatildeo me eacute permitido trazer ao pescoccedilo o signum (espeacutecie de placa de identidade usada no exeacutercito romano) porque fui marcado com o sinal de Cristordquo ou com um outro soldado que se recusou a colocar sobre a cabeccedila a coroa ritual dos sacrifiacutecios em honra do imperador Satildeo casos ainda excepcionais mas sintomaacuteticos a oposiccedilatildeo profunda entre Roma e a Igreja tende a passar do plano religioso para o plano ciacutevico e poliacutetico
A intervenccedilatildeo do plano religioso sobre o poliacutetico e vice-versa foi consequumlecircncia da
busca por parte dos romanos de um sistema seguro no qual pudessem se apoiar Com a
decadecircncia poliacutetica econocircmica e moral o nuacutemero de seitas e religiotildees se multiplicava
formando um quadro extremamente pluralista (cf Daniel-Rops 1988 307) Eacute no seacuteculo III
que a dinastia dos Severos se impotildee e juntamente com ela vecircm as tradiccedilotildees religiosas
orientais
El advenimiento con los Severos de principes africanos y sirios la dominacioacuten de mujeres penetradas de la piedade miacutestica de Oriente favorecieron su raacutepido desarollo y el siglo III conocioacute todas sus formas desde las maacutes groseras estrechamente emparentadas com la supersticioacuten pura hasta las maacutes refinadas modeladas pelas reflexiones de la filosofia que desde entonces tenderiacutea hacia lo divino (Guignebert 1956 119)
Neste panorama soacutecio-poliacutetico o cristianismo foi a religiatildeo abraccedilada por muitos
cidadatildeos natildeo soacute ldquotecelotildees pisoeiros e sapateirosrdquo mas tambeacutem ldquoadvogados como Satildeo
Gregoacuterio Taumaturgo ou Satildeo Cipriano de Cartago mulheres da sociedade como Santa
Perpeacutetua grandes burgueses da proviacutencia e lsquoclariacutessimosrsquo de famiacutelias senatoriaisrdquo (Daniel-
Rops 1988 317) Para Guignebert (1956 121) o contato da elite com o cristianismo se deu
essencialmente por meio dos escravos e da filosofia
a traveacutes de los esclavos llegoacute a las mujeres libres sus amas y accidentalmente atrajo la atencioacuten de algunos hombres instruiacutedos que buscaban la verdad divina Gracias a las primeras se insinuoacute en las classes altas gracias a los segundos tomoacute contacto con la filosofia en el curso del siglo II y las consecuencias de este encuentro fueron incalculables
Eacute importante relembrar que a filosofia pressupunha a escrita e tinha um forte viacutenculo
com a literatura Mesmo o cristianismo no seacuteculo III jaacute possuiacutea um consideraacutevel nuacutemero de
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textos apologeacuteticos que dialogavam diretamente com a filosofia grega e possibilitavam para
a elite o acesso agraves ideacuteias cristatildes (cf Alesso 2006 31)
O relato do martiacuterio do soldado Marino surge portanto nesse contexto soacutecio-histoacuterico
como um texto de grande relevacircncia para o cristianismo Primeiro porque o personagem
principal eacute um soldado Integrava o grupo social de maior prestiacutegio nessa eacutepoca Como dizia
Septiacutemio Severo aos seus filhos ldquoEnriquecei o soldado e zombai do restordquo (Daniel-Rops
1988 299) E como no seacuteculo III as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio tomam uma nova
configuraccedilatildeo o contraste entre essas duas instituiccedilotildees eacute um assunto central O embate deixa
de ser apenas religioso e passa a ser tambeacutem poliacutetico - fato que vai se confirmar no seacuteculo
IV
Em segundo lugar a posiccedilatildeo social do maacutertir levanta outra questatildeo Marino como
membro da elite poderia facilmente ter comprado o libellus ndash documento que comprovava o
sacrifiacutecio aos deuses romanos ndash e assim conseguir sua liberdade (cf Silva 2006 248)
Daniel-Rops (1988 367) detalha que os ricos eram mais propensos a comprar falsos
documentos e a desistir ldquoConforme os testemunhos que temos parece que eram sobretudo os
ricos os bem instalados aqueles a quem a vida tinha concedido todo o conforto e que natildeo
estavam dispostos a sacrificaacute-lordquo que renunciavam agrave feacute
Aleacutem de abrir matildeo de sua posiccedilatildeo social e dos privileacutegios que iria obter como
centuriatildeo Marino natildeo se deixou dominar pelo medo a principal razatildeo da apostasia segundo
Daniel-Rops (1988 367) Eacute importante lembrar que a perseguiccedilatildeo sob Deacutecio instaurada em
249 dC ainda era bastante recente Numa tentativa de restaurar a gloacuteria do Impeacuterio Deacutecio
havia promulgado uma lei que obrigava todos os suacuteditos a retomarem o culto aos deuses
romanos Para ele ldquose todos os suacuteditos do Impeacuterio voltassem a adorar os deuses
possivelmente os deuses voltariam a favorecer o Impeacuteriordquo (Gonzaacutelez 1995 138) O culto era
um elemento essencial para os romanos Era por meio dele que expressavam sua
religiosidade como escreve Arnauld (2001 15) ldquoLa lsquopietasrsquo (pieacuteteacute) eacutetait la caracteacuteristique
principale de la religiositeacute romaine () Cette lsquopietasrsquo srsquoexprimait en une observance stricte
des lois rituelles Religion signifiait culterdquo
O descumprimento da lei por parte dos cristatildeos provocou uma perseguiccedilatildeo que teve
como consequumlecircncia um grande nuacutemero de apostasias fato que chegou a causar divergecircncia de
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opiniatildeo entre os bispos Num novo periacuteodo de relativa paz era portanto de suma importacircncia
para a Igreja insistir que os cristatildeos permanecessem firmes em suas convicccedilotildees Como
observa Daniel-Rops (1988 367) ldquoesses periacuteodos de interrupccedilatildeo nas perseguiccedilotildees natildeo
ajudavam em nada a coragem dos fieacuteis durante os tempos de calma a mola distendia-se e
quando subitamente era preciso voltar a entrar em luta muitos se sentiam faltos de energiardquo
Assim o testemunho de Marino evidencia o conflito existente entre a Igreja e o
Impeacuterio e conclama de maneira didaacutetica a que os cristatildeos tenham a mesma disposiccedilatildeo
mesmo diante da possibilidade da apostasia e dos terrores de um novo periacuteodo de perseguiccedilatildeo
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3 TEXTO GREGO
Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου Μαρίνου
Κατὰ τούτους εἰρήνης ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης ἐν Καισαρείᾳ τῆς
Παλαιστίνης Μαρῖνος τῶν ἐν στρατείαις ἀξιώμασι τετιμημένων γένει τε
καὶ πλοὕτῳ περιφανὴς ἀνήρ διὰ τὴν Χριστοῦ μαρτυρίαν τὴν κεφαλὴν
ἀποτέμνεται τοιᾶσδε ἕνεκεν αἰτίας
2 τιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας φασίν
ἑκατοντάρχους γίνεσθαι Τόπου σχολάζοντος ἐπὶ τοῦτο προκοπῆς τὸν
Μαρῖνον ἡ τοῦ βαθμοῦ τάξις ἐκάλει ἤδη τε μέλλοντα τῆς τιμῆς ἔχεσθαι
Παρελθὼν ἄλλος πρὸ τοῦ βήματος μὴ ἐξεῖναι μὲν ἐκείνῳ τῆς Ῥωμαίων
μετέχειν ἀξίας κατὰ τοὺς παλαιοὺς νόμους Χριστιανῷ γε ὄντι καὶ τοῖς
βασιλεῦσι μὴ θύοντι κατηγόρει αὐτῷ δὲ ἐπιβάλλειν τὸν κλῆρον
3 ἐφ᾿ ᾧ κινηθέντα τὸν δικαστὴν (Ἀχαιὸς οὕτος ἧν) πρῶτον μὲν ἐρέσθαι
ποίας ὁ Μαρῖνος εἴη γνώμης ὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν ἐπιμόνως
ἑώρα τριῶν ὡρῶν ἐπιδοῦναι αὐτῷ εἰς ἐπίσκεψιν διάστημα
4 ἐκτὸς δῆτα γενόμενον αὐτὸν τοῦ δικαστηρίου Θεότεκνος ὁ τῇδε
ἐπίσκοπος ἀφέλκει προσελθὼν δι᾿ ὁμιλίας καὶ τῆς χειρὸς λαβὼν ἐπὶ τὴν
ἐκκλησίαν προάγει εἴσω τε πρὸς αὐτῷ στήσας τῷ ἁγιάσματι μικρόν τι
παραναστείλας αὐτοῦ τῆς χλαμύδος καὶ τὸ προσηρτημένον αὐτῷ ξίφος
ἐπιδείξας ἅμα τε ἀντιπαρατίθησι προσαγαγὼν αὐτῷ τὴν τῶν θείων
εὐαγγελίων γραψήν κελεύσας τῶν δυοῖν ἑλέσθαι τὸ κατὰ γνώμην ὡς δ᾿
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ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν
ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς
αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης
5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ
δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ
δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν
ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται
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4 TRADUCcedilAtildeO
O martiacuterio do Santo Marino
1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares
em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido
honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por
todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu
testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte
2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a
conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a
ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo
Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e
declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e
portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos
romanos Assim o cargo cairia para si
3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou
primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele
insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs
horas para refletir
4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era
bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela
matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando
um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo
tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos
exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem
hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas
ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno
ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo
5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para
o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se
apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute
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imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre
o seu fim
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5 COMENTAacuteRIOS
51 OS PERSONAGENS
Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em
um ponto da estrutura
Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola
Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal
familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute
exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um
homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos
movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do
texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave
autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado
guerreiro
O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo
dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo
para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A
denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma
preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega
Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o
exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees
do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio
militar portanto tinha um significado muito grande
Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas
informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou
compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem
disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo
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Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na
quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado
provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era
seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para
conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial
para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve
como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)
O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para
anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo
de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos
outros personagens no texto
52 ESTRUTURA
O texto pode ser subdividido em 5 partes
(i) Marino o soldado cristatildeo
A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no
espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo
A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de
captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a
expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo
(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo
A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio
narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo
apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal
(iii) Marino e o juiz a confissatildeo
A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente
que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir
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(iv) Marino e o bispo a decisatildeo
Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de
Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem
palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a
espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe
a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras
(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo
Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo
Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte
53 TEMPO E ESPACcedilO
O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto
para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης
ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor
Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e
a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII
12)
A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que
Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em
todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto
o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se
deram de maneira muito raacutepida
Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia
na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no
entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes
contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o
Cristianismo
30
O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno
poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por
Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo
tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito
cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera
propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz
que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os
sofrimentos corporais
Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte
54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS
O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de
diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um
detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga
essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de
martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)
Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte
A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da
distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no
entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor
31
A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra
no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios
desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica
Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com
Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma
narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute
portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a
noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007
8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente
engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo
No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no
uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo
εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por
ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento
por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann
2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que
eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega
amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e
decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo
do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio
ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento
emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado
comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como
afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva
de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a
forte presenccedila do aspecto emotivo
A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para
enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou
ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops
(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma
32
medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te
apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo
Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila
Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte
pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o
caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o
representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute
o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar
Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel
seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os
espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo
Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na
hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops
(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo
obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo
O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino
se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua
decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo
que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar
O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma
meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior
sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O
adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez
Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num
texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e
ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς
πίστεως τὴν προθυμίαν
Assim temos
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Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)
darrdarrdarrdarr
Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo
darrdarrdarrdarr
Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo
O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas
uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado
pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν
ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente
detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita
conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui
coerecircncia ao texto
Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)
destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura
feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que
todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou
seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica
fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e
estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha
havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois
poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo
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sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser
adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um
antagonismo fundamentalrdquo
O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de
Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo
substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo
ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos
esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no
texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino
Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos
durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e
por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que
a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino
Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη
ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto
o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων
o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος
o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις
o substantivo εἰρήνη
o substantivo μαρτυρία
Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e
formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado
35
A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes
por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)
honra romana (τιμή)
vide (κλῆμα)
centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)
reconhecimento passageiro e
terreno (ἀξιώμασι
τετιμημένων )
honra cristatilde (τιμή)
paz (εἰρήνη)
maacutertir (μάρτυρ)
reconhecimento eterno e divino
(τελειοῦται)
O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria
honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o
argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado
explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos
versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω
ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o
objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας
φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo
Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o
ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ
τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela
feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)
36
Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha
pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento
terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo
ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na
comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o
cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)
Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito
mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp
Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo
por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute
essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto
O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por
exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer
voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do
termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que
ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to
the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις
Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de
um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados
Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor
menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A
acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os
personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado
numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo
de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute
em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz
37
como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da
acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade
interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se
constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio
por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os
imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao
registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o
mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)
A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das
intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que
como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos
entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo
38
CONCLUSAtildeO
O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e
produtivo sob vaacuterios aspectos
Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual
gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A
percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a
ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os
primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma
instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na
literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um
pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os
cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo
- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura
No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do
texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico
durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e
consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa
ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias
da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna
centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o
posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos
fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento
A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se
compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao
bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se
mostrar complacente
39
Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os
cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de
sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem
como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como
um substituto aos espetaacuteculos romanos
Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave
plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos
Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o
que deu origem ao culto dos santos
Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda
precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos
possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados
ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται
presente no texto traduzido e em outros relatos
Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais
utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e
posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma
melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande
auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo
cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade
proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses
novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde
40
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43
ANEXOS
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)
[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1
1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em
Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um
tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua
linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte
2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles
que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o
escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a
honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo
as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que
era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a
ele
3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a
Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que
era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse
4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e
afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma
vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o
manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e
contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as
duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a
direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -
manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que
escolheste Vai em pazrdquo
1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu
este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer
casos como o de Marino [nota do Editor]
44
5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de
novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado
Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua
feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado
45
TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)
During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in
Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and
was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It
came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour
and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and
according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he
was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and
attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and
should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to
the ancient laws but that instead the post should fall to himself
It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he
first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed
that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had
Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside
in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed
Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword
attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it
before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out
his right hand and took the divine writings
lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him
may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo
No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the
tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and
showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to
execution and so found his fulfilment
10
ataques externos o que resultou na apresentaccedilatildeo das ideacuteias cristatildes de modo filosoacutefico em
textos bem elaborados e com caracteriacutesticas semelhantes aos da cultura da eacutepoca
Los discursos de los obispos y letrados defensores del cristianismo no podiacutean ser espontaacuteneos ni livianos cuando se trataba de responder a las criacuteticas y a la difamacioacuten de enemigos tan ilustrados como ellos No bastaba la elocuencia entusiasta habiacutea que ordenar las ideas en lo molde de recursos avalados por el prestigio de siglos en los geacuteneros discursivos que los doctos habiacutean aprendido e internalizado desde su maacutes tierna formacioacuten heleniacutestica
Assim depreende-se que a literatura cristatilde destes primeiros seacuteculos visava atender
duas necessidades principais o ensino para manter a coesatildeo do puacuteblico interno e a apologia
que procurava defender a feacute diante do puacuteblico externo
Os escritos apologeacuteticos dialogavam de maneira direta com a filosofia grega e eram
escritos geralmente por bispos que viviam em grandes centros urbanos como Justino o
maacutertir Oriacutegenes Teoacutefilo e Tertuliano Por essa razatildeo tais discussotildees permaneciam muitas
vezes entre a elite natildeo chegando ao puacuteblico em geral (cf Alesso 2006 31) Desde muito
cedo portanto surge uma divisatildeo natural de destinataacuterios na literatura cristatilde enquanto alguns
textos eram escritos e dirigidos a leitores cultos outros textos tinham como puacuteblico-alvo o
povo
Para Alesso (2006 29-30) essa divisatildeo eacute claramente percebida quando do surgimento
do gecircnero biacuteos ldquoEl geacutenero biacuteos que tendriacutea entonces en principio como destinatario a un
lector cultivado se cumple tambieacuten en un subgeacutenero de corte popular las vidas ejemplaresrdquo
Eacute o gecircnero biacuteos que estabelece de fato em meados do seacuteculo IV a hagiografia - a biografia
que relata a vida de um santo - como um modelo literaacuterio a ser seguido pelos escritores
cristatildeos especialmente pelo movimento monaacutestico Segundo Moreschini amp Norelli (2000
511) a hagiografia foi com o tempo aproximando-se cada vez mais da biografia pagatilde Para
eles a relaccedilatildeo entre cristianismo e paganismo ldquoocorreu com todas as demais formas literaacuterias
cristatildesrdquo porque ldquopraticadas por pessoas que tiveram em comum com os pagatildeos os mestres as
escolas e as leiturasrdquo Tal fato reforccedila ainda mais a divisatildeo entre leitores que tinham acesso agrave
educaccedilatildeo formal daqueles que natildeo a tinham
As pessoas destituiacutedas de uma introduccedilatildeo agraves teorias filosoacuteficas e teoloacutegicas eram
atendidas em grande parte pelas leituras de relatos de martiacuterios ao que Alesso chama de ldquolas
vidas ejemplaresrdquo Os relatos eram lidos durante as celebraccedilotildees cristatildes tornando-se parte da
11
liturgia do culto Eram lembrados tambeacutem pela comunidade local por ocasiatildeo do aniversaacuterio
do maacutertir quando o povo se reunia em torno do tuacutemulo ou fazia peregrinaccedilotildees ateacute ele (cf
Musurillo 2000 lvi Moreschini amp Norelli 2000 297)
Os relatos de martiacuterios (acta passiones e martyria) no entanto formam entre si um
gecircnero especiacutefico Aleacutem disso conteacutem elementos que antecedem e prenunciam a formaccedilatildeo da
hagiografia Satildeo denominados por Moreschini amp Norelli (2000 511) de ldquohagiografia
primitivardquo O costume de narrar a prisatildeo o sofrimento e a morte de um cristatildeo explicam esses
autores apareceu ldquoquase contemporaneamente em lugares diferentes da cristandade em
formas diversas e com ascendecircncias e caracteriacutesticas ideoloacutegicas variadas o gecircnero literaacuterio
como tal se constitui progressivamente pelo desenvolvimento e pelas reciacuteprocas relaccedilotildees dos
textosrdquo
O modelo de narrativa dos maacutertires cristatildeos remonta na verdade aos relatos
encontrados na Biacuteblia como o martiacuterio de Estevatildeo (Atos dos Apoacutestolos 7) de Tiago (At 12)
e aos sofrimentos de Paulo (At 14) O modelo central poreacutem eacute o proacuteprio Jesus cuja vida eacute
narrada pelos Evangelhos Note-se que a ecircnfase dos Evangelhos natildeo eacute narrar todos os
acontecimentos biograacuteficos mas destacar os sofrimentos de Cristo desde seu nascimento
como por exemplo a perseguiccedilatildeo de Herodes ateacute sua crucificaccedilatildeo
Ainda que os relatos cristatildeos tenham tido como modelo textos pagatildeos tema discutido
por Delehaye (1966) Berger (1998) e Uytfanghe (1993) foi o Cristianismo que disseminou e
divulgou esse tipo de literatura Delehaye (1966 113-125) assinala que haacute vaacuterias diferenccedilas
entre os relatos dos maacutertires pagatildeos Alexandrinos e os relatos dos maacutertires cristatildeos Uma
delas se encontra na motivaccedilatildeo para o martiacuterio ldquoIci nous voyons des hommes qui meurent
pour leurs convictions et agrave qui il suffirait drsquoun mot ou drsquoun geste pour reconqueacuterir la liberteacute
Lagrave on nous presente les chefs drsquoune faction politique qui deacutefendent au prix de leur vie leur
programme et leurs actes et qui perdent la partierdquo (1966 124) E para Uytfanghe (1993 174)
caracteriacutesticas como humildade amor e perdatildeo natildeo satildeo encontradas em maacutertires pagatildeos
como Soacutecrates e Secircneca Jaacute nos cristatildeos elas estatildeo presentes de maneira radical
De uma forma geral os autores concordam que a formaccedilatildeo de um gecircnero a partir dos
relatos de martiacuterio e sua posterior propagaccedilatildeo pelos cristatildeos natildeo tinham uma intenccedilatildeo uacutenica
pelo contraacuterio vecirc-se nesses textos uma intenccedilatildeo multifacetada Para Musurillo (2000 liv-
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lvii) os relatos de martiacuterio exerciam pelo menos trecircs funccedilotildees a primeira era a funccedilatildeo
histoacuterica jaacute que tanto os Evangelhos como os Atos dos Apoacutestolos e os martyria baseavam-se
em fatos histoacutericos A segunda era a apologeacutetica isto eacute a afirmaccedilatildeo da feacute cristatilde diante do
mundo E por uacuteltimo a funccedilatildeo de ensino Uytfanghe (1993 173-175) observa que por meio
desses relatos os cristatildeos eram encorajados a permanecerem firmes nas suas crenccedilas e a
cultivarem uma vida santa e asceacutetica O maacutertir se tornava assim um modelo a ser seguido E
o cristatildeo ndash literalmente o seguidor de Cristo - dava continuidade aos ensinos e agrave vida de
Jesus o qual afirmou ldquoLembrem-se das palavras que eu lhes disse Nenhum escravo eacute maior
do que o seu senhor Se me perseguiram tambeacutem perseguiratildeo vocecircsrdquo (Evang Joatildeo 1520)
Aleacutem desses trecircs aspectos a formaccedilatildeo de um corpus literaacuterio cristatildeo era de grande
interesse para a Igreja na medida em que oferecia ao puacuteblico cristatildeo a cada dia maior uma
nova opccedilatildeo cultural Conforme o registro que possuiacutemos no escrito Os Espetaacuteculos do bispo
Tertuliano de Cartago os cristatildeos eram aconselhados a natildeo frequumlentarem os teatros e os
circos nem assistirem aos combates de gladiadores ldquoMas eles percebem que algueacutem se fez
cristatildeo sobretudo pelo fato de evitar os espetaacuteculosrdquo (De spect 243)
Tertuliano posicionou-se fortemente contra a participaccedilatildeo dos cristatildeos nos espetaacuteculos
promovidos pelos teatros circos e arenas porque aleacutem de possuiacuterem uma ligaccedilatildeo com algum
deus grego ou romano - e portanto promoverem a idolatria - evidenciavam a incoerecircncia da
sociedade romana ldquosoacute ali [no teatro] tem curso e aplauso o que em qualquer outra parte se
reprovardquo (De spect 171) Assim argumenta ldquoConvencidos ficamos que por nenhum lado
nos fica bem laacute ir noacutes que por duas vezes renunciamos aos iacutedolosrdquo (De spect 13 1) Para
Tertuliano o homem eacute imagem e semelhanccedila de Deus e por essa razatildeo natildeo deveria
corromper sua alma e corpo
O certo eacute que natildeo nos foram dados os olhos para os entregar agrave concupiscecircncia nem a liacutengua para a maledicecircncia nem os ouvidos para sorvedouro de murmuraccedilotildees nem o paladar para poccedilo de gula o ventre para dar seguimento agrave mesma gula os oacutergatildeos genitais para excessos de impureza as matildeos para estrangular o proacuteximo os peacutes para vagabundear natildeo se nos infundiu a alma ateacute as entretelas do corpo para vir a ser um recesso de ciladas e de embustes e de iniquumlidades (De spect 210)
Os prazeres cultivados pela sociedade romana deveriam portanto ser abandonados e
substituiacutedos Para Tertuliano o cristatildeo natildeo tinha necessidade de espetaacuteculos pois desfrutava
dos prazeres (voluptates) proacuteprios agrave sua feacute Seus argumentos satildeo os seguintes
13
Que melhor alegria que a que promana da reconciliaccedilatildeo com Deus Pai Nosso Senhor do conhecimento da verdade de reconhecer os erros do perdatildeo de tantos pecados da passada vida Que maior prazer que o asco do proacuteprio prazer que a consciecircncia pura que a vida sem ambiccedilotildees e o destemor da morte Pisar aos peacutes os deuses dos gentios expelir os democircnios curar doentes informar-te da verdade revelada viver para Deus aiacute estatildeo as alegrias satildeo esses os espetaacuteculos santos dos cristatildeos os espetaacuteculos perpeacutetuos por que se natildeo paga nada (De spect 29 1-3)
O bispo continua a explanaccedilatildeo de suas ideacuteias afirmando que os cristatildeos natildeo possuem o
teatro mas tecircm boa literatura natildeo possuem os combates de gladiadores mas tecircm as lutas pela
feacute e pela castidade natildeo possuem o sangue das arenas mas tecircm o sangue de Cristo ldquoSe o
palavreado cecircnico eacute divertido natildeo temos falta de boas letras temos versos a rodos e
pensamentos bem cunhados nada se diga de cacircnticos e vozes do melhor metal em vez de
faacutebulas temos verdades em vez de embustes a lisura mais declaradardquo (De spect 294)
A defesa e a valorizaccedilatildeo de uma literatura proacutepria aos cristatildeos eacute um elemento
extremamente importante para a propagaccedilatildeo dos relatos de martiacuterio porque conforme visto
acima esse tipo de texto entrou em circulaccedilatildeo como um substituto agraves encenaccedilotildees teatrais
Assim os martyria ajudaram a constituir um corpus literaacuterio cristatildeo que se tornou um
instrumento de poder para a Igreja
Como observa Fox (1996 130) os maacutertires compartilhavam juntamente com os
bispos e visionaacuteriosprofetas um lugar privilegiado na comunidade ldquoAmong Christians
before Constantine power was attribute of three particular groups it was achieved by
visionaires it was ascribed to martyrs and confessors it was vested above all in bishops
Literacy assisted the exercise of power by all threerdquo Os integrantes desses trecircs grupos natildeo
apenas eram admirados mas tidos como autoridades Os bispos por exemplo eram
considerados por Inaacutecio de Antioquia como ldquoos representantes de Deus na Igrejardquo
(Guignebert 1956 137) Por isso os escritos ou discursos proferidos por esses trecircs grupos
eram recebidos na maioria das vezes como proacutepria palavra de Deus fator que atribuiacutea um
poder ainda maior aos textos Para Fox (1996 129) ldquothis combination of sacred text and an
increasingly standardised pattern of authority make the early Church a unique subject for
studies of literacy and powerrdquo
Como um gecircnero da literatura cristatilde os relatos de martiacuterio tambeacutem serviram para a
manutenccedilatildeo e a transmissatildeo da ideologia cristatilde nos primeiros seacuteculos do Cristianismo
conforme escreve Alesso (2006 34-35)
14
Los geacuteneros en todas sus formas y subformas son el suporte estructural para la transmisioacuten de un ideario y lo fueron de modo especial en el trasvase de los contenidos que provenientes de la antiguumledad se imbricaron en el cristianismo de los Padres Aunque su relacioacuten com la criacutetica sociohistoacuterica es marginal los geacuteneros son indudables portadores de significacioacuten cuando interesan a la evolucioacuten de paraacutemetros poliacutetico culturales que intervinieran en la construccioacuten del edificio ideoloacutegico de la teologiacutea cristiana
O fortalecimento da literatura cristatilde foi enfim um fator essencial para a difusatildeo do
Cristianismo porque ajudou a organizaacute-lo como instituiccedilatildeo Por meio da literatura o
Cristianismo conseguiu alcanccedilar pessoas de todos os lugares e de todas as classes sociais
inclusive as pertencentes agrave elite que conforme Daniel-Rops (1988 305) sentiam o decliacutenio
do Impeacuterio que chegava ateacute mesmo ao acircmbito literaacuterio e artiacutestico
12 AS CARACTERIacuteSTICAS LITERAacuteRIAS FORMAIS
Quanto agraves caracteriacutesticas formais que podem ser levadas em conta para a classificaccedilatildeo
do gecircnero os relatos de martiacuterio mesclam traccedilos tanto do gecircnero biograacutefico quanto do
discurso hagiograacutefico
Os relatos de martiacuterio natildeo podem ser classificados categoricamente como biacuteoi pois
natildeo chegam a constituir uma biografia de fato Tambeacutem natildeo podem ser classificados como
hagiografia em sentido exclusivo porque como afirma Delehaye (apud Uytfanghe 1993
146) esta eacute muito abrangente inclui ldquotodo documento escrito inspirado pelo culto dos santos
e destinado a promovecirc-lordquo Assim o que se verifica eacute um entrecruzamento de gecircneros Isso
ocorre porque os gecircneros satildeo como afirma Alesso (2006 29) sistemas abertos ldquolas
invariantes coexisten con las variables y no podemos condenarlos y condenarnos a una
esquematizacioacuten extrema porque perderiacuteamos de vista uno de los objetivos primordiales la
finalidad del contenidordquo Por essa razatildeo adotamos neste trabalho a definiccedilatildeo biacuteos
hagiograacutefico introduzida por Ipiranga Juacutenior (2006 9)
Segundo Momigliano (1971 25) os gregos jaacute possuiacuteam o haacutebito de redigir biografias
no seacuteculo V aC mas foi no periacuteodo heleniacutestico que ele se intensificou e o gecircnero recebeu um
nome especiacutefico ldquobien qui nous conaissions lrsquoexistence de biographies et peut-ecirctre
drsquoautobiographies degraves le cinquiegraveme siegravecle avant JC crsquoest seulement agrave lrsquoeacutepoque helleacutenistique
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que la biographie devient une notion precise et acquiert un nom en propre Ce nome est lsquobiosrsquo
ndash et non lsquobiographiarsquordquo
Para Bakhtin (2003 138) entretanto a biografia como romance surgiu apenas no fim
da Idade Meacutedia Durante os seacuteculos II-IV dC ainda era uma forma literaacuteria em formaccedilatildeo
Mesmo tendo em mente a distacircncia cronoloacutegica entre os martyria e o romance biograacutefico ao
qual Bakhtin se refere eacute possiacutevel perceber semelhanccedilas entre os dois
A primeira delas eacute a presenccedila do heroacutei com valores do tipo bravura honradez
magnanimidade e generosidade (cf Bakhtin 2003 142 147) Ao abrir matildeo de posiccedilotildees
poliacuteticas e religiosas ao enfrentar perigos sofrimentos torturas e feras sem renunciar agrave feacute o
maacutertir eacute visto como um heroacutei pela comunidade cristatilde Ele ldquotorna-se uma espeacutecie de ponto
focal da vida da comunidade que o circunda de veneraccedilatildeo considerando-o jaacute em contato com
Deus capaz de profetizar e de pronunciar-se com uma autoridade especial tambeacutem sobre
questotildees eclesiaacutesticasrdquo (Moreschini amp Norelli 2000 297) Morrer por sua feacute eacute o ato supremo
de glorificaccedilatildeo para os primeiros cristatildeos E eacute por meio dessa glorificaccedilatildeo de acordo com as
palavras de Bakhtin (2003 143) que o heroacutei consegue alcanccedilar a consciecircncia de uma
determinada sociedade incutindo assim novos valores
A aspiraccedilatildeo agrave gloacuteria organiza a vida do heroacutei ingecircnuo a gloacuteria organiza tambeacutem a narraccedilatildeo da sua vida sua glorificaccedilatildeo Aspirar agrave gloacuteria eacute tomar consciecircncia de si na sociedade culta e histoacuterica dos homens (ou na naccedilatildeo) eacute afirmar e construir sua vida na possiacutevel consciecircncia dessa sociedade humana eacute crescer natildeo em si nem para si mas nos outros ou para os outros eacute ocupar um lugar no mundo imediato dos contemporacircneos e descendentes
A segunda semelhanccedila detectada entre os gecircneros biograacutefico e biacuteos hagiograacutefico eacute a
relaccedilatildeo de empatia que se estabelece entre autor-personagem Segundo Bakhtin (2003 150)
autor e personagem compartilham obrigatoriamente os mesmos valores ldquona biografia o
autor natildeo soacute combina com a personagem na feacute nas convicccedilotildees e no amor mas tambeacutem em
sua criaccedilatildeo artiacutestica (sincreacutetica) tomando como guia os mesmos valores que a personagem
em sua vida esteacuteticardquo Embora o autor do martiacuterio do soldado Marino natildeo seja explicitado eacute
possiacutevel inferir pelo texto que o interesse de registrar o fato tenha partido natildeo de algueacutem que
simplesmente compartilhava com ele a situaccedilatildeo de soldado do exeacutercito romano mas sim de
algueacutem que dividia os mesmos valores cristatildeos
16
Quanto agrave modalidade do romance a relaccedilatildeo entre os gecircneros biacuteos hagiograacutefico e
biograacutefico tambeacutem eacute possiacutevel Bakhtin (2003 205) identifica quatro modelos de romance
ldquosegundo o princiacutepio de construccedilatildeo da imagem da personagem central o romance de viagens
o romance de provaccedilatildeo da personagem o romance biograacutefico (autobiograacutefico) o romance de
educaccedilatildeordquo Ora por ser um gecircnero hiacutebrido a personagem principal do biacuteos hagiograacutefico
mescla caracteriacutesticas tanto do romance de provaccedilatildeo quanto do romance biograacutefico
Para Bakhtin (2003 207) o romance de provaccedilatildeo divide-se em duas modalidades ldquoA
primeira modalidade eacute representada pelo romance grego (A Etioacutepica Leucipo e Cleitofon
etc) A segunda modalidade eacute representada pelas hagiografias do iniacutecio do cristianismo
(particularmente dos maacutertires)rdquo O objetivo das provaccedilotildees neste tipo de romance eacute mudar a
opiniatildeo e os valores do heroacutei Como nos relatos de martiacuterio os cristatildeos natildeo renunciam a sua
feacute natildeo haacute mutabilidade Logo o maacutertir aproxima-se do conceito de heroacutei da provaccedilatildeo ele ldquoeacute
acabado e predeterminado as experimentaccedilotildees (sofrimentos seduccedilotildees duacutevidas) natildeo se
tornam para ele uma experiecircncia formadora nem a modificam e nessa imutabilidade da
personagem estaacute toda questatildeordquo (Bakhtin 2003 209)
Aleacutem disso no romance de provaccedilatildeo o personagem eacute o centro Natildeo importam os
costumes ou lugares exoacuteticos como no romance de viagens O personagem natildeo eacute modificado
de forma determinante pelo mundo nem o modifica
Entre o heroacutei e o mundo natildeo existe interaccedilatildeo autecircntica o mundo natildeo eacute capaz de mudar o heroacutei ele apenas o experimenta e o heroacutei natildeo influencia o mundo natildeo lhe muda a face ao passar pela provaccedilatildeo ao afastar seus inimigos etc o heroacutei deixa no mundo tudo nos seus lugares natildeo modifica a face social do mundo natildeo o reconstroacutei e aliaacutes nem tem essa pretensatildeo (Bakhtin 2003 212)
Eacute exatamente esta a situaccedilatildeo observada no texto em anaacutelise A crise pela qual passa o
personagem Marino natildeo eacute capaz de alterar suas convicccedilotildees nem de mudar o curso normal dos
acontecimentos agrave parte de sua vida o exeacutercito continuaraacute existindo uma outra pessoa tomaraacute
o seu lugar e tudo continuaraacute funcionando sob os mesmos princiacutepios
Quanto ao romance biograacutefico Bakhtin (2003 213) considera que assim como o
romance de provaccedilatildeo ele ldquoeacute preparado ainda em solo antigo nas biografias antigas
autobiografias e confissotildees do periacuteodo inicial do cristianismo (terminando em Agostinho)rdquo
O gecircnero biacuteos hagiograacutefico estabelece contatos com esse tipo de romance por meio do
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enredo Como o romance biograacutefico tem como elemento principal a narraccedilatildeo da trajetoacuteria
vital de um determinado personagem ou seja tem como base justamente aqueles ldquoelementos
existentes antes do iniacutecio ou depois do teacutermino do romance de provaccedilatildeordquo (Ibid) engloba
necessariamente o relato da morte fato fundamental para o surgimento de um maacutertir na
concepccedilatildeo cristatilde
No romance biograacutefico a relaccedilatildeo da personagem com o mundo ganha um enfoque
diferente daquele verificado no romance de viagens ou no de provaccedilatildeo Bakhtin (2003 215)
verifica que ldquoPersonagens secundaacuterias paiacuteses cidades objetos etc integram o romance
biograacutefico por vias substanciais e ganham uma relaccedilatildeo igualmente substancial com o todo
vital da personagem centralrdquo Paradoxalmente o relato do soldado Marino apresenta tambeacutem
esse aspecto Embora ele permanecesse inabalaacutevel em sua decisatildeo de natildeo negar a feacute cristatilde
antes de o juiz lhe conceder um tempo para refletir eacute no encontro com o bispo Teotecno e
principalmente apoacutes o confronto com um objeto de grande valor ndash as Escrituras ndash que
Marino segue resoluto para o tribunal
Bakhtin tambeacutem escreve sobre o gecircnero hagiograacutefico embora com mais cautela Para
o autor (2003 169-70) ldquoa hagiografia se realiza diretamente no mundo do divinordquo Por se
tratar de um plano diferenciado em que ldquoa atitude reverente do autor natildeo deixa espaccedilo agrave
iniciativa individualrdquo (2003 170) Bakhtin prefere manter a mesma distacircncia Assim limita-
se em dizer que a hagiografia ldquorecorre a formas tradicionalmente sagradasrdquo (Ibid)
No aspecto formal os relatos de martiacuterio possuem de fato vaacuterias semelhanccedilas e um
fundamento em comum que satildeo os processos verbais No entanto ainda natildeo existe entre os
seacuteculos II e IV dC essa preocupaccedilatildeo ou esse rigor com a forma com a exclusatildeo de todo
elemento que possa remeter agrave individualidade
deve-se excluir tudo o que eacute tiacutepico de uma dada eacutepoca de uma dada nacionalidade () de uma dada condiccedilatildeo social de uma dada idade todo o concreto de uma imagem de uma vida todas as minuacutecias desta as indicaccedilotildees precisas do tempo e do espaccedilo na accedilatildeo ndash tudo o que reforccedila a determinidade no ser de um dado indiviacuteduo e assim lhe diminui a autoridade (Bakhtin 2003 170)
Vecirc-se portanto a partir dessa breve anaacutelise que o gecircnero biacuteos hagiograacutefico mescla
caracteriacutesticas tanto do gecircnero biograacutefico ndash seja biacuteos ou romance biograacutefico - quanto da
hagiografia constituindo assim um gecircnero agrave parte
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2 CONTEXTO SOacuteCIO-HISTOacuteRICO
O relato do martiacuterio de Marino se tornou conhecido por meio da obra Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio bispo de Cesareacuteia no iniacutecio do seacuteculo IV Para Puech (1930 173)
ldquoEusegravebe est un meacutediocre theacuteologien et un meacutediocre eacutecrivain () mais il nous a rendu comme
historien et comme chronographe des services inestimablesrdquo De fato dificilmente teriacuteamos
acesso a esse texto se natildeo fosse o trabalho de Euseacutebio De acordo com a cronologia do bispo
a morte de Marino eacute situada entre os anos 260-261 dC Para o tradutor Musurillo (2000
xxxvi) essa data eacute bastante provaacutevel O comentaacuterio no relato de que todas as igrejas
desfrutavam de um periacuteodo de paz eacute o principal fator que leva a essa conclusatildeo No ano de
260 dC eacute promulgado o edito de Galieno o qual ldquoautoriza os liacutederes da Igreja a presidir
livremente as celebraccedilotildees religiosasrdquo (Silva 2006 250)
No entanto mesmo com as medidas favoraacuteveis por parte dos governantes o
cristianismo permanecia uma religio ilicita e portanto os cristatildeos ainda estavam sujeitos a
julgamento caso fossem delatados Foi o que aconteceu com o soldado Marino Uma vez
acusado de ser cristatildeo e de natildeo prestar culto ao imperador foi levado ao tribunal Eacute muito
provaacutevel que Marino tivesse vaacuterios colegas cristatildeos no exeacutercito que natildeo foram executados
porque ningueacutem aparecera para acusaacute-los A situaccedilatildeo dos cristatildeos era realmente
imprevisiacutevel Daniel-Rops (1988 346) comenta que no seacuteculo III essa constante mudanccedila de
humor por parte do Impeacuterio criou uma situaccedilatildeo sem precedentes ldquoComo um anciatildeo doente
que ora dormita inconsciente ou vagamente inquieto ignorando as impaciecircncias que o
rodeiam ora se irrita e ainda se mostra terriacutevel da mesma forma o Impeacuterio muda a todo o
momento de atitude Eacute isto o que daacute agraves perseguiccedilotildees do seacuteculo III um caraacuteter tatildeo diferente das
precedentesrdquo
Assim Marino foi o escolhido naquele momento de paz temporaacuteria Eles tinham
conhecimento da lei que estava em vigor desde a eacutepoca do imperador Trajano (110-111 dC)
quando este determinara ao governador Pliacutenio que os cristatildeos natildeo deveriam ser
sistematicamente perseguidos nem deveriam ser aceitas denuacutencias anocircnimas contra eles
(Gonzaacutelez 1995 64) A recomendaccedilatildeo dada a Pliacutenio havia sido adotada em todo o Impeacuterio
Uma vez acusados entretanto deveriam ser julgados Geralmente os cristatildeos eram levados
19
ao tribunal em decorrecircncia de disputas locais como escrevem Danieacutelou amp Marrou (1966
105)
Conveacutem frisar que natildeo haacute proscriccedilatildeo de cristatildeos pelo poder central quer dizer natildeo haacute perseguiccedilatildeo total Em segundo lugar verificam-se ataques locais movidos pelo povo e depois submetidos agrave apreciaccedilatildeo do magistrado romano () Em terceiro lugar o motivo da perseguiccedilatildeo natildeo se liga a crimes determinados mas unicamente ao lsquonomersquo cristatildeo O levantamento feito por Pliacutenio levara mesmo agrave conclusatildeo de que eram inocentes os cristatildeos
Guignebert (1956 169-70) tambeacutem assinala que apesar de todas as acusaccedilotildees
nenhum crime recaiacutea sobre os cristatildeos
Varias acusaciones de derecho comuacuten se poniacutean en juego al mismo tiempo para agobiar a los fieles religioacuten iliacutecita sociedad secreta lesa majestad negativa de obediencia si se trataba de soldados ignavia es decir negligencia en el cumplimiento de los deberes de la vida puacuteblica y privada y hasta magia Por lo demaacutes estas acusaciones cuando se aplicaban a los cristianos presentaban la singularidad de que se desistia inmediatamente de ellas si el inculpado consentiacutea en decir que renunciaba a su feacute lo que permite suponer que en suma era la religioacuten cristiana solamente lo que se perseguia
Ainda assim os cristatildeos precisavam ser castigados porque ao insistirem na afirmaccedilatildeo
ldquoSou cristatildeordquo rebelavam-se contra os princiacutepios do Impeacuterio especialmente o do culto ao
imperador
Este delito tinha de ser castigado em primeiro lugar porque de outro modo diminuiria a autoridade desses tribunais e em segundo lugar porque ao negarem a adorar o imperador os cristatildeos estavam adotando uma atitude que nesse tempo se interpretava como rebeliatildeo contra a autoridade imperial Com efeito o culto ao imperador era um dos viacutenculos que uniam o Impeacuterio e negar-se em puacuteblico a render esse culto equivalia a romper esse viacutenculo (Gonzaacutelez 1995 66)
Novamente percebe-se o caraacuteter imprevisiacutevel da vida cristatilde Os autores reconhecem
que de uma maneira geral as comunidades cristatildes procuravam levar uma vida exemplar e
submissa agraves leis do Impeacuterio ldquoAs instruccedilotildees de civismo dadas pelos Apoacutestolos continuam a
ser observadas e os cristatildeos mostram-se na sua grande maioria cidadatildeos fieacuteis e devotados ao
bem puacuteblicordquo (Daniel-Rops 1988 345) Poreacutem quando levados a julgamento puacuteblico natildeo
aceitavam prestar culto a outro senhor aleacutem de Cristo
No tocante ao serviccedilo militar as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio nem sempre eram
tatildeo simples Na opiniatildeo de Guignebert (1956 166) isso se dava porque as obrigaccedilotildees
militares geralmente tinham uma forte ligaccedilatildeo com as praacuteticas religiosas pagatildes
20
El servicio militar les resultaba odioso porque suponiacutea obligaciones idolaacutetricas y porque execraban la guerra su participacioacuten en el servicio civil les pareciacutea supeacuterflua sobre todo se rehusaban obstinadamente a tomar parte en ninguna de las manifestaciones de lealtad que el gobierno imperial reclamaba porque todas revestiacutean caraacutecter religioso
Do mesmo modo Daniel-Rops (1988 345) relata
casos de objeccedilatildeo de consciecircncia ao serviccedilo militar como acontece com um jovem soldado que exclama ldquoNatildeo me eacute permitido trazer ao pescoccedilo o signum (espeacutecie de placa de identidade usada no exeacutercito romano) porque fui marcado com o sinal de Cristordquo ou com um outro soldado que se recusou a colocar sobre a cabeccedila a coroa ritual dos sacrifiacutecios em honra do imperador Satildeo casos ainda excepcionais mas sintomaacuteticos a oposiccedilatildeo profunda entre Roma e a Igreja tende a passar do plano religioso para o plano ciacutevico e poliacutetico
A intervenccedilatildeo do plano religioso sobre o poliacutetico e vice-versa foi consequumlecircncia da
busca por parte dos romanos de um sistema seguro no qual pudessem se apoiar Com a
decadecircncia poliacutetica econocircmica e moral o nuacutemero de seitas e religiotildees se multiplicava
formando um quadro extremamente pluralista (cf Daniel-Rops 1988 307) Eacute no seacuteculo III
que a dinastia dos Severos se impotildee e juntamente com ela vecircm as tradiccedilotildees religiosas
orientais
El advenimiento con los Severos de principes africanos y sirios la dominacioacuten de mujeres penetradas de la piedade miacutestica de Oriente favorecieron su raacutepido desarollo y el siglo III conocioacute todas sus formas desde las maacutes groseras estrechamente emparentadas com la supersticioacuten pura hasta las maacutes refinadas modeladas pelas reflexiones de la filosofia que desde entonces tenderiacutea hacia lo divino (Guignebert 1956 119)
Neste panorama soacutecio-poliacutetico o cristianismo foi a religiatildeo abraccedilada por muitos
cidadatildeos natildeo soacute ldquotecelotildees pisoeiros e sapateirosrdquo mas tambeacutem ldquoadvogados como Satildeo
Gregoacuterio Taumaturgo ou Satildeo Cipriano de Cartago mulheres da sociedade como Santa
Perpeacutetua grandes burgueses da proviacutencia e lsquoclariacutessimosrsquo de famiacutelias senatoriaisrdquo (Daniel-
Rops 1988 317) Para Guignebert (1956 121) o contato da elite com o cristianismo se deu
essencialmente por meio dos escravos e da filosofia
a traveacutes de los esclavos llegoacute a las mujeres libres sus amas y accidentalmente atrajo la atencioacuten de algunos hombres instruiacutedos que buscaban la verdad divina Gracias a las primeras se insinuoacute en las classes altas gracias a los segundos tomoacute contacto con la filosofia en el curso del siglo II y las consecuencias de este encuentro fueron incalculables
Eacute importante relembrar que a filosofia pressupunha a escrita e tinha um forte viacutenculo
com a literatura Mesmo o cristianismo no seacuteculo III jaacute possuiacutea um consideraacutevel nuacutemero de
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textos apologeacuteticos que dialogavam diretamente com a filosofia grega e possibilitavam para
a elite o acesso agraves ideacuteias cristatildes (cf Alesso 2006 31)
O relato do martiacuterio do soldado Marino surge portanto nesse contexto soacutecio-histoacuterico
como um texto de grande relevacircncia para o cristianismo Primeiro porque o personagem
principal eacute um soldado Integrava o grupo social de maior prestiacutegio nessa eacutepoca Como dizia
Septiacutemio Severo aos seus filhos ldquoEnriquecei o soldado e zombai do restordquo (Daniel-Rops
1988 299) E como no seacuteculo III as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio tomam uma nova
configuraccedilatildeo o contraste entre essas duas instituiccedilotildees eacute um assunto central O embate deixa
de ser apenas religioso e passa a ser tambeacutem poliacutetico - fato que vai se confirmar no seacuteculo
IV
Em segundo lugar a posiccedilatildeo social do maacutertir levanta outra questatildeo Marino como
membro da elite poderia facilmente ter comprado o libellus ndash documento que comprovava o
sacrifiacutecio aos deuses romanos ndash e assim conseguir sua liberdade (cf Silva 2006 248)
Daniel-Rops (1988 367) detalha que os ricos eram mais propensos a comprar falsos
documentos e a desistir ldquoConforme os testemunhos que temos parece que eram sobretudo os
ricos os bem instalados aqueles a quem a vida tinha concedido todo o conforto e que natildeo
estavam dispostos a sacrificaacute-lordquo que renunciavam agrave feacute
Aleacutem de abrir matildeo de sua posiccedilatildeo social e dos privileacutegios que iria obter como
centuriatildeo Marino natildeo se deixou dominar pelo medo a principal razatildeo da apostasia segundo
Daniel-Rops (1988 367) Eacute importante lembrar que a perseguiccedilatildeo sob Deacutecio instaurada em
249 dC ainda era bastante recente Numa tentativa de restaurar a gloacuteria do Impeacuterio Deacutecio
havia promulgado uma lei que obrigava todos os suacuteditos a retomarem o culto aos deuses
romanos Para ele ldquose todos os suacuteditos do Impeacuterio voltassem a adorar os deuses
possivelmente os deuses voltariam a favorecer o Impeacuteriordquo (Gonzaacutelez 1995 138) O culto era
um elemento essencial para os romanos Era por meio dele que expressavam sua
religiosidade como escreve Arnauld (2001 15) ldquoLa lsquopietasrsquo (pieacuteteacute) eacutetait la caracteacuteristique
principale de la religiositeacute romaine () Cette lsquopietasrsquo srsquoexprimait en une observance stricte
des lois rituelles Religion signifiait culterdquo
O descumprimento da lei por parte dos cristatildeos provocou uma perseguiccedilatildeo que teve
como consequumlecircncia um grande nuacutemero de apostasias fato que chegou a causar divergecircncia de
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opiniatildeo entre os bispos Num novo periacuteodo de relativa paz era portanto de suma importacircncia
para a Igreja insistir que os cristatildeos permanecessem firmes em suas convicccedilotildees Como
observa Daniel-Rops (1988 367) ldquoesses periacuteodos de interrupccedilatildeo nas perseguiccedilotildees natildeo
ajudavam em nada a coragem dos fieacuteis durante os tempos de calma a mola distendia-se e
quando subitamente era preciso voltar a entrar em luta muitos se sentiam faltos de energiardquo
Assim o testemunho de Marino evidencia o conflito existente entre a Igreja e o
Impeacuterio e conclama de maneira didaacutetica a que os cristatildeos tenham a mesma disposiccedilatildeo
mesmo diante da possibilidade da apostasia e dos terrores de um novo periacuteodo de perseguiccedilatildeo
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3 TEXTO GREGO
Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου Μαρίνου
Κατὰ τούτους εἰρήνης ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης ἐν Καισαρείᾳ τῆς
Παλαιστίνης Μαρῖνος τῶν ἐν στρατείαις ἀξιώμασι τετιμημένων γένει τε
καὶ πλοὕτῳ περιφανὴς ἀνήρ διὰ τὴν Χριστοῦ μαρτυρίαν τὴν κεφαλὴν
ἀποτέμνεται τοιᾶσδε ἕνεκεν αἰτίας
2 τιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας φασίν
ἑκατοντάρχους γίνεσθαι Τόπου σχολάζοντος ἐπὶ τοῦτο προκοπῆς τὸν
Μαρῖνον ἡ τοῦ βαθμοῦ τάξις ἐκάλει ἤδη τε μέλλοντα τῆς τιμῆς ἔχεσθαι
Παρελθὼν ἄλλος πρὸ τοῦ βήματος μὴ ἐξεῖναι μὲν ἐκείνῳ τῆς Ῥωμαίων
μετέχειν ἀξίας κατὰ τοὺς παλαιοὺς νόμους Χριστιανῷ γε ὄντι καὶ τοῖς
βασιλεῦσι μὴ θύοντι κατηγόρει αὐτῷ δὲ ἐπιβάλλειν τὸν κλῆρον
3 ἐφ᾿ ᾧ κινηθέντα τὸν δικαστὴν (Ἀχαιὸς οὕτος ἧν) πρῶτον μὲν ἐρέσθαι
ποίας ὁ Μαρῖνος εἴη γνώμης ὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν ἐπιμόνως
ἑώρα τριῶν ὡρῶν ἐπιδοῦναι αὐτῷ εἰς ἐπίσκεψιν διάστημα
4 ἐκτὸς δῆτα γενόμενον αὐτὸν τοῦ δικαστηρίου Θεότεκνος ὁ τῇδε
ἐπίσκοπος ἀφέλκει προσελθὼν δι᾿ ὁμιλίας καὶ τῆς χειρὸς λαβὼν ἐπὶ τὴν
ἐκκλησίαν προάγει εἴσω τε πρὸς αὐτῷ στήσας τῷ ἁγιάσματι μικρόν τι
παραναστείλας αὐτοῦ τῆς χλαμύδος καὶ τὸ προσηρτημένον αὐτῷ ξίφος
ἐπιδείξας ἅμα τε ἀντιπαρατίθησι προσαγαγὼν αὐτῷ τὴν τῶν θείων
εὐαγγελίων γραψήν κελεύσας τῶν δυοῖν ἑλέσθαι τὸ κατὰ γνώμην ὡς δ᾿
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ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν
ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς
αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης
5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ
δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ
δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν
ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται
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4 TRADUCcedilAtildeO
O martiacuterio do Santo Marino
1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares
em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido
honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por
todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu
testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte
2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a
conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a
ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo
Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e
declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e
portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos
romanos Assim o cargo cairia para si
3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou
primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele
insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs
horas para refletir
4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era
bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela
matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando
um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo
tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos
exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem
hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas
ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno
ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo
5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para
o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se
apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute
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imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre
o seu fim
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5 COMENTAacuteRIOS
51 OS PERSONAGENS
Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em
um ponto da estrutura
Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola
Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal
familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute
exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um
homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos
movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do
texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave
autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado
guerreiro
O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo
dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo
para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A
denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma
preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega
Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o
exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees
do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio
militar portanto tinha um significado muito grande
Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas
informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou
compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem
disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo
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Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na
quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado
provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era
seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para
conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial
para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve
como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)
O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para
anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo
de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos
outros personagens no texto
52 ESTRUTURA
O texto pode ser subdividido em 5 partes
(i) Marino o soldado cristatildeo
A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no
espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo
A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de
captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a
expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo
(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo
A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio
narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo
apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal
(iii) Marino e o juiz a confissatildeo
A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente
que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir
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(iv) Marino e o bispo a decisatildeo
Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de
Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem
palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a
espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe
a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras
(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo
Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo
Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte
53 TEMPO E ESPACcedilO
O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto
para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης
ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor
Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e
a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII
12)
A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que
Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em
todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto
o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se
deram de maneira muito raacutepida
Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia
na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no
entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes
contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o
Cristianismo
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O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno
poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por
Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo
tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito
cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera
propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz
que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os
sofrimentos corporais
Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte
54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS
O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de
diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um
detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga
essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de
martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)
Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte
A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da
distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no
entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor
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A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra
no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios
desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica
Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com
Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma
narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute
portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a
noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007
8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente
engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo
No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no
uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo
εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por
ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento
por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann
2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que
eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega
amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e
decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo
do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio
ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento
emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado
comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como
afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva
de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a
forte presenccedila do aspecto emotivo
A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para
enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou
ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops
(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma
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medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te
apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo
Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila
Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte
pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o
caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o
representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute
o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar
Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel
seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os
espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo
Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na
hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops
(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo
obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo
O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino
se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua
decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo
que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar
O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma
meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior
sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O
adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez
Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num
texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e
ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς
πίστεως τὴν προθυμίαν
Assim temos
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Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)
darrdarrdarrdarr
Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo
darrdarrdarrdarr
Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo
O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas
uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado
pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν
ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente
detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita
conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui
coerecircncia ao texto
Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)
destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura
feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que
todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou
seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica
fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e
estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha
havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois
poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo
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sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser
adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um
antagonismo fundamentalrdquo
O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de
Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo
substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo
ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos
esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no
texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino
Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos
durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e
por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que
a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino
Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη
ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto
o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων
o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος
o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις
o substantivo εἰρήνη
o substantivo μαρτυρία
Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e
formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado
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A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes
por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)
honra romana (τιμή)
vide (κλῆμα)
centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)
reconhecimento passageiro e
terreno (ἀξιώμασι
τετιμημένων )
honra cristatilde (τιμή)
paz (εἰρήνη)
maacutertir (μάρτυρ)
reconhecimento eterno e divino
(τελειοῦται)
O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria
honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o
argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado
explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos
versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω
ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o
objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας
φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo
Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o
ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ
τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela
feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)
36
Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha
pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento
terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo
ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na
comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o
cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)
Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito
mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp
Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo
por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute
essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto
O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por
exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer
voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do
termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que
ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to
the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις
Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de
um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados
Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor
menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A
acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os
personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado
numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo
de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute
em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz
37
como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da
acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade
interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se
constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio
por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os
imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao
registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o
mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)
A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das
intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que
como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos
entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo
38
CONCLUSAtildeO
O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e
produtivo sob vaacuterios aspectos
Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual
gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A
percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a
ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os
primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma
instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na
literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um
pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os
cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo
- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura
No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do
texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico
durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e
consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa
ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias
da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna
centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o
posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos
fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento
A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se
compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao
bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se
mostrar complacente
39
Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os
cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de
sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem
como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como
um substituto aos espetaacuteculos romanos
Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave
plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos
Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o
que deu origem ao culto dos santos
Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda
precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos
possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados
ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται
presente no texto traduzido e em outros relatos
Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais
utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e
posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma
melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande
auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo
cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade
proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses
novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde
40
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43
ANEXOS
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)
[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1
1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em
Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um
tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua
linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte
2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles
que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o
escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a
honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo
as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que
era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a
ele
3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a
Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que
era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse
4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e
afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma
vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o
manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e
contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as
duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a
direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -
manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que
escolheste Vai em pazrdquo
1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu
este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer
casos como o de Marino [nota do Editor]
44
5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de
novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado
Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua
feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado
45
TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)
During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in
Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and
was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It
came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour
and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and
according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he
was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and
attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and
should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to
the ancient laws but that instead the post should fall to himself
It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he
first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed
that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had
Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside
in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed
Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword
attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it
before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out
his right hand and took the divine writings
lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him
may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo
No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the
tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and
showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to
execution and so found his fulfilment
11
liturgia do culto Eram lembrados tambeacutem pela comunidade local por ocasiatildeo do aniversaacuterio
do maacutertir quando o povo se reunia em torno do tuacutemulo ou fazia peregrinaccedilotildees ateacute ele (cf
Musurillo 2000 lvi Moreschini amp Norelli 2000 297)
Os relatos de martiacuterios (acta passiones e martyria) no entanto formam entre si um
gecircnero especiacutefico Aleacutem disso conteacutem elementos que antecedem e prenunciam a formaccedilatildeo da
hagiografia Satildeo denominados por Moreschini amp Norelli (2000 511) de ldquohagiografia
primitivardquo O costume de narrar a prisatildeo o sofrimento e a morte de um cristatildeo explicam esses
autores apareceu ldquoquase contemporaneamente em lugares diferentes da cristandade em
formas diversas e com ascendecircncias e caracteriacutesticas ideoloacutegicas variadas o gecircnero literaacuterio
como tal se constitui progressivamente pelo desenvolvimento e pelas reciacuteprocas relaccedilotildees dos
textosrdquo
O modelo de narrativa dos maacutertires cristatildeos remonta na verdade aos relatos
encontrados na Biacuteblia como o martiacuterio de Estevatildeo (Atos dos Apoacutestolos 7) de Tiago (At 12)
e aos sofrimentos de Paulo (At 14) O modelo central poreacutem eacute o proacuteprio Jesus cuja vida eacute
narrada pelos Evangelhos Note-se que a ecircnfase dos Evangelhos natildeo eacute narrar todos os
acontecimentos biograacuteficos mas destacar os sofrimentos de Cristo desde seu nascimento
como por exemplo a perseguiccedilatildeo de Herodes ateacute sua crucificaccedilatildeo
Ainda que os relatos cristatildeos tenham tido como modelo textos pagatildeos tema discutido
por Delehaye (1966) Berger (1998) e Uytfanghe (1993) foi o Cristianismo que disseminou e
divulgou esse tipo de literatura Delehaye (1966 113-125) assinala que haacute vaacuterias diferenccedilas
entre os relatos dos maacutertires pagatildeos Alexandrinos e os relatos dos maacutertires cristatildeos Uma
delas se encontra na motivaccedilatildeo para o martiacuterio ldquoIci nous voyons des hommes qui meurent
pour leurs convictions et agrave qui il suffirait drsquoun mot ou drsquoun geste pour reconqueacuterir la liberteacute
Lagrave on nous presente les chefs drsquoune faction politique qui deacutefendent au prix de leur vie leur
programme et leurs actes et qui perdent la partierdquo (1966 124) E para Uytfanghe (1993 174)
caracteriacutesticas como humildade amor e perdatildeo natildeo satildeo encontradas em maacutertires pagatildeos
como Soacutecrates e Secircneca Jaacute nos cristatildeos elas estatildeo presentes de maneira radical
De uma forma geral os autores concordam que a formaccedilatildeo de um gecircnero a partir dos
relatos de martiacuterio e sua posterior propagaccedilatildeo pelos cristatildeos natildeo tinham uma intenccedilatildeo uacutenica
pelo contraacuterio vecirc-se nesses textos uma intenccedilatildeo multifacetada Para Musurillo (2000 liv-
12
lvii) os relatos de martiacuterio exerciam pelo menos trecircs funccedilotildees a primeira era a funccedilatildeo
histoacuterica jaacute que tanto os Evangelhos como os Atos dos Apoacutestolos e os martyria baseavam-se
em fatos histoacutericos A segunda era a apologeacutetica isto eacute a afirmaccedilatildeo da feacute cristatilde diante do
mundo E por uacuteltimo a funccedilatildeo de ensino Uytfanghe (1993 173-175) observa que por meio
desses relatos os cristatildeos eram encorajados a permanecerem firmes nas suas crenccedilas e a
cultivarem uma vida santa e asceacutetica O maacutertir se tornava assim um modelo a ser seguido E
o cristatildeo ndash literalmente o seguidor de Cristo - dava continuidade aos ensinos e agrave vida de
Jesus o qual afirmou ldquoLembrem-se das palavras que eu lhes disse Nenhum escravo eacute maior
do que o seu senhor Se me perseguiram tambeacutem perseguiratildeo vocecircsrdquo (Evang Joatildeo 1520)
Aleacutem desses trecircs aspectos a formaccedilatildeo de um corpus literaacuterio cristatildeo era de grande
interesse para a Igreja na medida em que oferecia ao puacuteblico cristatildeo a cada dia maior uma
nova opccedilatildeo cultural Conforme o registro que possuiacutemos no escrito Os Espetaacuteculos do bispo
Tertuliano de Cartago os cristatildeos eram aconselhados a natildeo frequumlentarem os teatros e os
circos nem assistirem aos combates de gladiadores ldquoMas eles percebem que algueacutem se fez
cristatildeo sobretudo pelo fato de evitar os espetaacuteculosrdquo (De spect 243)
Tertuliano posicionou-se fortemente contra a participaccedilatildeo dos cristatildeos nos espetaacuteculos
promovidos pelos teatros circos e arenas porque aleacutem de possuiacuterem uma ligaccedilatildeo com algum
deus grego ou romano - e portanto promoverem a idolatria - evidenciavam a incoerecircncia da
sociedade romana ldquosoacute ali [no teatro] tem curso e aplauso o que em qualquer outra parte se
reprovardquo (De spect 171) Assim argumenta ldquoConvencidos ficamos que por nenhum lado
nos fica bem laacute ir noacutes que por duas vezes renunciamos aos iacutedolosrdquo (De spect 13 1) Para
Tertuliano o homem eacute imagem e semelhanccedila de Deus e por essa razatildeo natildeo deveria
corromper sua alma e corpo
O certo eacute que natildeo nos foram dados os olhos para os entregar agrave concupiscecircncia nem a liacutengua para a maledicecircncia nem os ouvidos para sorvedouro de murmuraccedilotildees nem o paladar para poccedilo de gula o ventre para dar seguimento agrave mesma gula os oacutergatildeos genitais para excessos de impureza as matildeos para estrangular o proacuteximo os peacutes para vagabundear natildeo se nos infundiu a alma ateacute as entretelas do corpo para vir a ser um recesso de ciladas e de embustes e de iniquumlidades (De spect 210)
Os prazeres cultivados pela sociedade romana deveriam portanto ser abandonados e
substituiacutedos Para Tertuliano o cristatildeo natildeo tinha necessidade de espetaacuteculos pois desfrutava
dos prazeres (voluptates) proacuteprios agrave sua feacute Seus argumentos satildeo os seguintes
13
Que melhor alegria que a que promana da reconciliaccedilatildeo com Deus Pai Nosso Senhor do conhecimento da verdade de reconhecer os erros do perdatildeo de tantos pecados da passada vida Que maior prazer que o asco do proacuteprio prazer que a consciecircncia pura que a vida sem ambiccedilotildees e o destemor da morte Pisar aos peacutes os deuses dos gentios expelir os democircnios curar doentes informar-te da verdade revelada viver para Deus aiacute estatildeo as alegrias satildeo esses os espetaacuteculos santos dos cristatildeos os espetaacuteculos perpeacutetuos por que se natildeo paga nada (De spect 29 1-3)
O bispo continua a explanaccedilatildeo de suas ideacuteias afirmando que os cristatildeos natildeo possuem o
teatro mas tecircm boa literatura natildeo possuem os combates de gladiadores mas tecircm as lutas pela
feacute e pela castidade natildeo possuem o sangue das arenas mas tecircm o sangue de Cristo ldquoSe o
palavreado cecircnico eacute divertido natildeo temos falta de boas letras temos versos a rodos e
pensamentos bem cunhados nada se diga de cacircnticos e vozes do melhor metal em vez de
faacutebulas temos verdades em vez de embustes a lisura mais declaradardquo (De spect 294)
A defesa e a valorizaccedilatildeo de uma literatura proacutepria aos cristatildeos eacute um elemento
extremamente importante para a propagaccedilatildeo dos relatos de martiacuterio porque conforme visto
acima esse tipo de texto entrou em circulaccedilatildeo como um substituto agraves encenaccedilotildees teatrais
Assim os martyria ajudaram a constituir um corpus literaacuterio cristatildeo que se tornou um
instrumento de poder para a Igreja
Como observa Fox (1996 130) os maacutertires compartilhavam juntamente com os
bispos e visionaacuteriosprofetas um lugar privilegiado na comunidade ldquoAmong Christians
before Constantine power was attribute of three particular groups it was achieved by
visionaires it was ascribed to martyrs and confessors it was vested above all in bishops
Literacy assisted the exercise of power by all threerdquo Os integrantes desses trecircs grupos natildeo
apenas eram admirados mas tidos como autoridades Os bispos por exemplo eram
considerados por Inaacutecio de Antioquia como ldquoos representantes de Deus na Igrejardquo
(Guignebert 1956 137) Por isso os escritos ou discursos proferidos por esses trecircs grupos
eram recebidos na maioria das vezes como proacutepria palavra de Deus fator que atribuiacutea um
poder ainda maior aos textos Para Fox (1996 129) ldquothis combination of sacred text and an
increasingly standardised pattern of authority make the early Church a unique subject for
studies of literacy and powerrdquo
Como um gecircnero da literatura cristatilde os relatos de martiacuterio tambeacutem serviram para a
manutenccedilatildeo e a transmissatildeo da ideologia cristatilde nos primeiros seacuteculos do Cristianismo
conforme escreve Alesso (2006 34-35)
14
Los geacuteneros en todas sus formas y subformas son el suporte estructural para la transmisioacuten de un ideario y lo fueron de modo especial en el trasvase de los contenidos que provenientes de la antiguumledad se imbricaron en el cristianismo de los Padres Aunque su relacioacuten com la criacutetica sociohistoacuterica es marginal los geacuteneros son indudables portadores de significacioacuten cuando interesan a la evolucioacuten de paraacutemetros poliacutetico culturales que intervinieran en la construccioacuten del edificio ideoloacutegico de la teologiacutea cristiana
O fortalecimento da literatura cristatilde foi enfim um fator essencial para a difusatildeo do
Cristianismo porque ajudou a organizaacute-lo como instituiccedilatildeo Por meio da literatura o
Cristianismo conseguiu alcanccedilar pessoas de todos os lugares e de todas as classes sociais
inclusive as pertencentes agrave elite que conforme Daniel-Rops (1988 305) sentiam o decliacutenio
do Impeacuterio que chegava ateacute mesmo ao acircmbito literaacuterio e artiacutestico
12 AS CARACTERIacuteSTICAS LITERAacuteRIAS FORMAIS
Quanto agraves caracteriacutesticas formais que podem ser levadas em conta para a classificaccedilatildeo
do gecircnero os relatos de martiacuterio mesclam traccedilos tanto do gecircnero biograacutefico quanto do
discurso hagiograacutefico
Os relatos de martiacuterio natildeo podem ser classificados categoricamente como biacuteoi pois
natildeo chegam a constituir uma biografia de fato Tambeacutem natildeo podem ser classificados como
hagiografia em sentido exclusivo porque como afirma Delehaye (apud Uytfanghe 1993
146) esta eacute muito abrangente inclui ldquotodo documento escrito inspirado pelo culto dos santos
e destinado a promovecirc-lordquo Assim o que se verifica eacute um entrecruzamento de gecircneros Isso
ocorre porque os gecircneros satildeo como afirma Alesso (2006 29) sistemas abertos ldquolas
invariantes coexisten con las variables y no podemos condenarlos y condenarnos a una
esquematizacioacuten extrema porque perderiacuteamos de vista uno de los objetivos primordiales la
finalidad del contenidordquo Por essa razatildeo adotamos neste trabalho a definiccedilatildeo biacuteos
hagiograacutefico introduzida por Ipiranga Juacutenior (2006 9)
Segundo Momigliano (1971 25) os gregos jaacute possuiacuteam o haacutebito de redigir biografias
no seacuteculo V aC mas foi no periacuteodo heleniacutestico que ele se intensificou e o gecircnero recebeu um
nome especiacutefico ldquobien qui nous conaissions lrsquoexistence de biographies et peut-ecirctre
drsquoautobiographies degraves le cinquiegraveme siegravecle avant JC crsquoest seulement agrave lrsquoeacutepoque helleacutenistique
15
que la biographie devient une notion precise et acquiert un nom en propre Ce nome est lsquobiosrsquo
ndash et non lsquobiographiarsquordquo
Para Bakhtin (2003 138) entretanto a biografia como romance surgiu apenas no fim
da Idade Meacutedia Durante os seacuteculos II-IV dC ainda era uma forma literaacuteria em formaccedilatildeo
Mesmo tendo em mente a distacircncia cronoloacutegica entre os martyria e o romance biograacutefico ao
qual Bakhtin se refere eacute possiacutevel perceber semelhanccedilas entre os dois
A primeira delas eacute a presenccedila do heroacutei com valores do tipo bravura honradez
magnanimidade e generosidade (cf Bakhtin 2003 142 147) Ao abrir matildeo de posiccedilotildees
poliacuteticas e religiosas ao enfrentar perigos sofrimentos torturas e feras sem renunciar agrave feacute o
maacutertir eacute visto como um heroacutei pela comunidade cristatilde Ele ldquotorna-se uma espeacutecie de ponto
focal da vida da comunidade que o circunda de veneraccedilatildeo considerando-o jaacute em contato com
Deus capaz de profetizar e de pronunciar-se com uma autoridade especial tambeacutem sobre
questotildees eclesiaacutesticasrdquo (Moreschini amp Norelli 2000 297) Morrer por sua feacute eacute o ato supremo
de glorificaccedilatildeo para os primeiros cristatildeos E eacute por meio dessa glorificaccedilatildeo de acordo com as
palavras de Bakhtin (2003 143) que o heroacutei consegue alcanccedilar a consciecircncia de uma
determinada sociedade incutindo assim novos valores
A aspiraccedilatildeo agrave gloacuteria organiza a vida do heroacutei ingecircnuo a gloacuteria organiza tambeacutem a narraccedilatildeo da sua vida sua glorificaccedilatildeo Aspirar agrave gloacuteria eacute tomar consciecircncia de si na sociedade culta e histoacuterica dos homens (ou na naccedilatildeo) eacute afirmar e construir sua vida na possiacutevel consciecircncia dessa sociedade humana eacute crescer natildeo em si nem para si mas nos outros ou para os outros eacute ocupar um lugar no mundo imediato dos contemporacircneos e descendentes
A segunda semelhanccedila detectada entre os gecircneros biograacutefico e biacuteos hagiograacutefico eacute a
relaccedilatildeo de empatia que se estabelece entre autor-personagem Segundo Bakhtin (2003 150)
autor e personagem compartilham obrigatoriamente os mesmos valores ldquona biografia o
autor natildeo soacute combina com a personagem na feacute nas convicccedilotildees e no amor mas tambeacutem em
sua criaccedilatildeo artiacutestica (sincreacutetica) tomando como guia os mesmos valores que a personagem
em sua vida esteacuteticardquo Embora o autor do martiacuterio do soldado Marino natildeo seja explicitado eacute
possiacutevel inferir pelo texto que o interesse de registrar o fato tenha partido natildeo de algueacutem que
simplesmente compartilhava com ele a situaccedilatildeo de soldado do exeacutercito romano mas sim de
algueacutem que dividia os mesmos valores cristatildeos
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Quanto agrave modalidade do romance a relaccedilatildeo entre os gecircneros biacuteos hagiograacutefico e
biograacutefico tambeacutem eacute possiacutevel Bakhtin (2003 205) identifica quatro modelos de romance
ldquosegundo o princiacutepio de construccedilatildeo da imagem da personagem central o romance de viagens
o romance de provaccedilatildeo da personagem o romance biograacutefico (autobiograacutefico) o romance de
educaccedilatildeordquo Ora por ser um gecircnero hiacutebrido a personagem principal do biacuteos hagiograacutefico
mescla caracteriacutesticas tanto do romance de provaccedilatildeo quanto do romance biograacutefico
Para Bakhtin (2003 207) o romance de provaccedilatildeo divide-se em duas modalidades ldquoA
primeira modalidade eacute representada pelo romance grego (A Etioacutepica Leucipo e Cleitofon
etc) A segunda modalidade eacute representada pelas hagiografias do iniacutecio do cristianismo
(particularmente dos maacutertires)rdquo O objetivo das provaccedilotildees neste tipo de romance eacute mudar a
opiniatildeo e os valores do heroacutei Como nos relatos de martiacuterio os cristatildeos natildeo renunciam a sua
feacute natildeo haacute mutabilidade Logo o maacutertir aproxima-se do conceito de heroacutei da provaccedilatildeo ele ldquoeacute
acabado e predeterminado as experimentaccedilotildees (sofrimentos seduccedilotildees duacutevidas) natildeo se
tornam para ele uma experiecircncia formadora nem a modificam e nessa imutabilidade da
personagem estaacute toda questatildeordquo (Bakhtin 2003 209)
Aleacutem disso no romance de provaccedilatildeo o personagem eacute o centro Natildeo importam os
costumes ou lugares exoacuteticos como no romance de viagens O personagem natildeo eacute modificado
de forma determinante pelo mundo nem o modifica
Entre o heroacutei e o mundo natildeo existe interaccedilatildeo autecircntica o mundo natildeo eacute capaz de mudar o heroacutei ele apenas o experimenta e o heroacutei natildeo influencia o mundo natildeo lhe muda a face ao passar pela provaccedilatildeo ao afastar seus inimigos etc o heroacutei deixa no mundo tudo nos seus lugares natildeo modifica a face social do mundo natildeo o reconstroacutei e aliaacutes nem tem essa pretensatildeo (Bakhtin 2003 212)
Eacute exatamente esta a situaccedilatildeo observada no texto em anaacutelise A crise pela qual passa o
personagem Marino natildeo eacute capaz de alterar suas convicccedilotildees nem de mudar o curso normal dos
acontecimentos agrave parte de sua vida o exeacutercito continuaraacute existindo uma outra pessoa tomaraacute
o seu lugar e tudo continuaraacute funcionando sob os mesmos princiacutepios
Quanto ao romance biograacutefico Bakhtin (2003 213) considera que assim como o
romance de provaccedilatildeo ele ldquoeacute preparado ainda em solo antigo nas biografias antigas
autobiografias e confissotildees do periacuteodo inicial do cristianismo (terminando em Agostinho)rdquo
O gecircnero biacuteos hagiograacutefico estabelece contatos com esse tipo de romance por meio do
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enredo Como o romance biograacutefico tem como elemento principal a narraccedilatildeo da trajetoacuteria
vital de um determinado personagem ou seja tem como base justamente aqueles ldquoelementos
existentes antes do iniacutecio ou depois do teacutermino do romance de provaccedilatildeordquo (Ibid) engloba
necessariamente o relato da morte fato fundamental para o surgimento de um maacutertir na
concepccedilatildeo cristatilde
No romance biograacutefico a relaccedilatildeo da personagem com o mundo ganha um enfoque
diferente daquele verificado no romance de viagens ou no de provaccedilatildeo Bakhtin (2003 215)
verifica que ldquoPersonagens secundaacuterias paiacuteses cidades objetos etc integram o romance
biograacutefico por vias substanciais e ganham uma relaccedilatildeo igualmente substancial com o todo
vital da personagem centralrdquo Paradoxalmente o relato do soldado Marino apresenta tambeacutem
esse aspecto Embora ele permanecesse inabalaacutevel em sua decisatildeo de natildeo negar a feacute cristatilde
antes de o juiz lhe conceder um tempo para refletir eacute no encontro com o bispo Teotecno e
principalmente apoacutes o confronto com um objeto de grande valor ndash as Escrituras ndash que
Marino segue resoluto para o tribunal
Bakhtin tambeacutem escreve sobre o gecircnero hagiograacutefico embora com mais cautela Para
o autor (2003 169-70) ldquoa hagiografia se realiza diretamente no mundo do divinordquo Por se
tratar de um plano diferenciado em que ldquoa atitude reverente do autor natildeo deixa espaccedilo agrave
iniciativa individualrdquo (2003 170) Bakhtin prefere manter a mesma distacircncia Assim limita-
se em dizer que a hagiografia ldquorecorre a formas tradicionalmente sagradasrdquo (Ibid)
No aspecto formal os relatos de martiacuterio possuem de fato vaacuterias semelhanccedilas e um
fundamento em comum que satildeo os processos verbais No entanto ainda natildeo existe entre os
seacuteculos II e IV dC essa preocupaccedilatildeo ou esse rigor com a forma com a exclusatildeo de todo
elemento que possa remeter agrave individualidade
deve-se excluir tudo o que eacute tiacutepico de uma dada eacutepoca de uma dada nacionalidade () de uma dada condiccedilatildeo social de uma dada idade todo o concreto de uma imagem de uma vida todas as minuacutecias desta as indicaccedilotildees precisas do tempo e do espaccedilo na accedilatildeo ndash tudo o que reforccedila a determinidade no ser de um dado indiviacuteduo e assim lhe diminui a autoridade (Bakhtin 2003 170)
Vecirc-se portanto a partir dessa breve anaacutelise que o gecircnero biacuteos hagiograacutefico mescla
caracteriacutesticas tanto do gecircnero biograacutefico ndash seja biacuteos ou romance biograacutefico - quanto da
hagiografia constituindo assim um gecircnero agrave parte
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2 CONTEXTO SOacuteCIO-HISTOacuteRICO
O relato do martiacuterio de Marino se tornou conhecido por meio da obra Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio bispo de Cesareacuteia no iniacutecio do seacuteculo IV Para Puech (1930 173)
ldquoEusegravebe est un meacutediocre theacuteologien et un meacutediocre eacutecrivain () mais il nous a rendu comme
historien et comme chronographe des services inestimablesrdquo De fato dificilmente teriacuteamos
acesso a esse texto se natildeo fosse o trabalho de Euseacutebio De acordo com a cronologia do bispo
a morte de Marino eacute situada entre os anos 260-261 dC Para o tradutor Musurillo (2000
xxxvi) essa data eacute bastante provaacutevel O comentaacuterio no relato de que todas as igrejas
desfrutavam de um periacuteodo de paz eacute o principal fator que leva a essa conclusatildeo No ano de
260 dC eacute promulgado o edito de Galieno o qual ldquoautoriza os liacutederes da Igreja a presidir
livremente as celebraccedilotildees religiosasrdquo (Silva 2006 250)
No entanto mesmo com as medidas favoraacuteveis por parte dos governantes o
cristianismo permanecia uma religio ilicita e portanto os cristatildeos ainda estavam sujeitos a
julgamento caso fossem delatados Foi o que aconteceu com o soldado Marino Uma vez
acusado de ser cristatildeo e de natildeo prestar culto ao imperador foi levado ao tribunal Eacute muito
provaacutevel que Marino tivesse vaacuterios colegas cristatildeos no exeacutercito que natildeo foram executados
porque ningueacutem aparecera para acusaacute-los A situaccedilatildeo dos cristatildeos era realmente
imprevisiacutevel Daniel-Rops (1988 346) comenta que no seacuteculo III essa constante mudanccedila de
humor por parte do Impeacuterio criou uma situaccedilatildeo sem precedentes ldquoComo um anciatildeo doente
que ora dormita inconsciente ou vagamente inquieto ignorando as impaciecircncias que o
rodeiam ora se irrita e ainda se mostra terriacutevel da mesma forma o Impeacuterio muda a todo o
momento de atitude Eacute isto o que daacute agraves perseguiccedilotildees do seacuteculo III um caraacuteter tatildeo diferente das
precedentesrdquo
Assim Marino foi o escolhido naquele momento de paz temporaacuteria Eles tinham
conhecimento da lei que estava em vigor desde a eacutepoca do imperador Trajano (110-111 dC)
quando este determinara ao governador Pliacutenio que os cristatildeos natildeo deveriam ser
sistematicamente perseguidos nem deveriam ser aceitas denuacutencias anocircnimas contra eles
(Gonzaacutelez 1995 64) A recomendaccedilatildeo dada a Pliacutenio havia sido adotada em todo o Impeacuterio
Uma vez acusados entretanto deveriam ser julgados Geralmente os cristatildeos eram levados
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ao tribunal em decorrecircncia de disputas locais como escrevem Danieacutelou amp Marrou (1966
105)
Conveacutem frisar que natildeo haacute proscriccedilatildeo de cristatildeos pelo poder central quer dizer natildeo haacute perseguiccedilatildeo total Em segundo lugar verificam-se ataques locais movidos pelo povo e depois submetidos agrave apreciaccedilatildeo do magistrado romano () Em terceiro lugar o motivo da perseguiccedilatildeo natildeo se liga a crimes determinados mas unicamente ao lsquonomersquo cristatildeo O levantamento feito por Pliacutenio levara mesmo agrave conclusatildeo de que eram inocentes os cristatildeos
Guignebert (1956 169-70) tambeacutem assinala que apesar de todas as acusaccedilotildees
nenhum crime recaiacutea sobre os cristatildeos
Varias acusaciones de derecho comuacuten se poniacutean en juego al mismo tiempo para agobiar a los fieles religioacuten iliacutecita sociedad secreta lesa majestad negativa de obediencia si se trataba de soldados ignavia es decir negligencia en el cumplimiento de los deberes de la vida puacuteblica y privada y hasta magia Por lo demaacutes estas acusaciones cuando se aplicaban a los cristianos presentaban la singularidad de que se desistia inmediatamente de ellas si el inculpado consentiacutea en decir que renunciaba a su feacute lo que permite suponer que en suma era la religioacuten cristiana solamente lo que se perseguia
Ainda assim os cristatildeos precisavam ser castigados porque ao insistirem na afirmaccedilatildeo
ldquoSou cristatildeordquo rebelavam-se contra os princiacutepios do Impeacuterio especialmente o do culto ao
imperador
Este delito tinha de ser castigado em primeiro lugar porque de outro modo diminuiria a autoridade desses tribunais e em segundo lugar porque ao negarem a adorar o imperador os cristatildeos estavam adotando uma atitude que nesse tempo se interpretava como rebeliatildeo contra a autoridade imperial Com efeito o culto ao imperador era um dos viacutenculos que uniam o Impeacuterio e negar-se em puacuteblico a render esse culto equivalia a romper esse viacutenculo (Gonzaacutelez 1995 66)
Novamente percebe-se o caraacuteter imprevisiacutevel da vida cristatilde Os autores reconhecem
que de uma maneira geral as comunidades cristatildes procuravam levar uma vida exemplar e
submissa agraves leis do Impeacuterio ldquoAs instruccedilotildees de civismo dadas pelos Apoacutestolos continuam a
ser observadas e os cristatildeos mostram-se na sua grande maioria cidadatildeos fieacuteis e devotados ao
bem puacuteblicordquo (Daniel-Rops 1988 345) Poreacutem quando levados a julgamento puacuteblico natildeo
aceitavam prestar culto a outro senhor aleacutem de Cristo
No tocante ao serviccedilo militar as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio nem sempre eram
tatildeo simples Na opiniatildeo de Guignebert (1956 166) isso se dava porque as obrigaccedilotildees
militares geralmente tinham uma forte ligaccedilatildeo com as praacuteticas religiosas pagatildes
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El servicio militar les resultaba odioso porque suponiacutea obligaciones idolaacutetricas y porque execraban la guerra su participacioacuten en el servicio civil les pareciacutea supeacuterflua sobre todo se rehusaban obstinadamente a tomar parte en ninguna de las manifestaciones de lealtad que el gobierno imperial reclamaba porque todas revestiacutean caraacutecter religioso
Do mesmo modo Daniel-Rops (1988 345) relata
casos de objeccedilatildeo de consciecircncia ao serviccedilo militar como acontece com um jovem soldado que exclama ldquoNatildeo me eacute permitido trazer ao pescoccedilo o signum (espeacutecie de placa de identidade usada no exeacutercito romano) porque fui marcado com o sinal de Cristordquo ou com um outro soldado que se recusou a colocar sobre a cabeccedila a coroa ritual dos sacrifiacutecios em honra do imperador Satildeo casos ainda excepcionais mas sintomaacuteticos a oposiccedilatildeo profunda entre Roma e a Igreja tende a passar do plano religioso para o plano ciacutevico e poliacutetico
A intervenccedilatildeo do plano religioso sobre o poliacutetico e vice-versa foi consequumlecircncia da
busca por parte dos romanos de um sistema seguro no qual pudessem se apoiar Com a
decadecircncia poliacutetica econocircmica e moral o nuacutemero de seitas e religiotildees se multiplicava
formando um quadro extremamente pluralista (cf Daniel-Rops 1988 307) Eacute no seacuteculo III
que a dinastia dos Severos se impotildee e juntamente com ela vecircm as tradiccedilotildees religiosas
orientais
El advenimiento con los Severos de principes africanos y sirios la dominacioacuten de mujeres penetradas de la piedade miacutestica de Oriente favorecieron su raacutepido desarollo y el siglo III conocioacute todas sus formas desde las maacutes groseras estrechamente emparentadas com la supersticioacuten pura hasta las maacutes refinadas modeladas pelas reflexiones de la filosofia que desde entonces tenderiacutea hacia lo divino (Guignebert 1956 119)
Neste panorama soacutecio-poliacutetico o cristianismo foi a religiatildeo abraccedilada por muitos
cidadatildeos natildeo soacute ldquotecelotildees pisoeiros e sapateirosrdquo mas tambeacutem ldquoadvogados como Satildeo
Gregoacuterio Taumaturgo ou Satildeo Cipriano de Cartago mulheres da sociedade como Santa
Perpeacutetua grandes burgueses da proviacutencia e lsquoclariacutessimosrsquo de famiacutelias senatoriaisrdquo (Daniel-
Rops 1988 317) Para Guignebert (1956 121) o contato da elite com o cristianismo se deu
essencialmente por meio dos escravos e da filosofia
a traveacutes de los esclavos llegoacute a las mujeres libres sus amas y accidentalmente atrajo la atencioacuten de algunos hombres instruiacutedos que buscaban la verdad divina Gracias a las primeras se insinuoacute en las classes altas gracias a los segundos tomoacute contacto con la filosofia en el curso del siglo II y las consecuencias de este encuentro fueron incalculables
Eacute importante relembrar que a filosofia pressupunha a escrita e tinha um forte viacutenculo
com a literatura Mesmo o cristianismo no seacuteculo III jaacute possuiacutea um consideraacutevel nuacutemero de
21
textos apologeacuteticos que dialogavam diretamente com a filosofia grega e possibilitavam para
a elite o acesso agraves ideacuteias cristatildes (cf Alesso 2006 31)
O relato do martiacuterio do soldado Marino surge portanto nesse contexto soacutecio-histoacuterico
como um texto de grande relevacircncia para o cristianismo Primeiro porque o personagem
principal eacute um soldado Integrava o grupo social de maior prestiacutegio nessa eacutepoca Como dizia
Septiacutemio Severo aos seus filhos ldquoEnriquecei o soldado e zombai do restordquo (Daniel-Rops
1988 299) E como no seacuteculo III as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio tomam uma nova
configuraccedilatildeo o contraste entre essas duas instituiccedilotildees eacute um assunto central O embate deixa
de ser apenas religioso e passa a ser tambeacutem poliacutetico - fato que vai se confirmar no seacuteculo
IV
Em segundo lugar a posiccedilatildeo social do maacutertir levanta outra questatildeo Marino como
membro da elite poderia facilmente ter comprado o libellus ndash documento que comprovava o
sacrifiacutecio aos deuses romanos ndash e assim conseguir sua liberdade (cf Silva 2006 248)
Daniel-Rops (1988 367) detalha que os ricos eram mais propensos a comprar falsos
documentos e a desistir ldquoConforme os testemunhos que temos parece que eram sobretudo os
ricos os bem instalados aqueles a quem a vida tinha concedido todo o conforto e que natildeo
estavam dispostos a sacrificaacute-lordquo que renunciavam agrave feacute
Aleacutem de abrir matildeo de sua posiccedilatildeo social e dos privileacutegios que iria obter como
centuriatildeo Marino natildeo se deixou dominar pelo medo a principal razatildeo da apostasia segundo
Daniel-Rops (1988 367) Eacute importante lembrar que a perseguiccedilatildeo sob Deacutecio instaurada em
249 dC ainda era bastante recente Numa tentativa de restaurar a gloacuteria do Impeacuterio Deacutecio
havia promulgado uma lei que obrigava todos os suacuteditos a retomarem o culto aos deuses
romanos Para ele ldquose todos os suacuteditos do Impeacuterio voltassem a adorar os deuses
possivelmente os deuses voltariam a favorecer o Impeacuteriordquo (Gonzaacutelez 1995 138) O culto era
um elemento essencial para os romanos Era por meio dele que expressavam sua
religiosidade como escreve Arnauld (2001 15) ldquoLa lsquopietasrsquo (pieacuteteacute) eacutetait la caracteacuteristique
principale de la religiositeacute romaine () Cette lsquopietasrsquo srsquoexprimait en une observance stricte
des lois rituelles Religion signifiait culterdquo
O descumprimento da lei por parte dos cristatildeos provocou uma perseguiccedilatildeo que teve
como consequumlecircncia um grande nuacutemero de apostasias fato que chegou a causar divergecircncia de
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opiniatildeo entre os bispos Num novo periacuteodo de relativa paz era portanto de suma importacircncia
para a Igreja insistir que os cristatildeos permanecessem firmes em suas convicccedilotildees Como
observa Daniel-Rops (1988 367) ldquoesses periacuteodos de interrupccedilatildeo nas perseguiccedilotildees natildeo
ajudavam em nada a coragem dos fieacuteis durante os tempos de calma a mola distendia-se e
quando subitamente era preciso voltar a entrar em luta muitos se sentiam faltos de energiardquo
Assim o testemunho de Marino evidencia o conflito existente entre a Igreja e o
Impeacuterio e conclama de maneira didaacutetica a que os cristatildeos tenham a mesma disposiccedilatildeo
mesmo diante da possibilidade da apostasia e dos terrores de um novo periacuteodo de perseguiccedilatildeo
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3 TEXTO GREGO
Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου Μαρίνου
Κατὰ τούτους εἰρήνης ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης ἐν Καισαρείᾳ τῆς
Παλαιστίνης Μαρῖνος τῶν ἐν στρατείαις ἀξιώμασι τετιμημένων γένει τε
καὶ πλοὕτῳ περιφανὴς ἀνήρ διὰ τὴν Χριστοῦ μαρτυρίαν τὴν κεφαλὴν
ἀποτέμνεται τοιᾶσδε ἕνεκεν αἰτίας
2 τιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας φασίν
ἑκατοντάρχους γίνεσθαι Τόπου σχολάζοντος ἐπὶ τοῦτο προκοπῆς τὸν
Μαρῖνον ἡ τοῦ βαθμοῦ τάξις ἐκάλει ἤδη τε μέλλοντα τῆς τιμῆς ἔχεσθαι
Παρελθὼν ἄλλος πρὸ τοῦ βήματος μὴ ἐξεῖναι μὲν ἐκείνῳ τῆς Ῥωμαίων
μετέχειν ἀξίας κατὰ τοὺς παλαιοὺς νόμους Χριστιανῷ γε ὄντι καὶ τοῖς
βασιλεῦσι μὴ θύοντι κατηγόρει αὐτῷ δὲ ἐπιβάλλειν τὸν κλῆρον
3 ἐφ᾿ ᾧ κινηθέντα τὸν δικαστὴν (Ἀχαιὸς οὕτος ἧν) πρῶτον μὲν ἐρέσθαι
ποίας ὁ Μαρῖνος εἴη γνώμης ὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν ἐπιμόνως
ἑώρα τριῶν ὡρῶν ἐπιδοῦναι αὐτῷ εἰς ἐπίσκεψιν διάστημα
4 ἐκτὸς δῆτα γενόμενον αὐτὸν τοῦ δικαστηρίου Θεότεκνος ὁ τῇδε
ἐπίσκοπος ἀφέλκει προσελθὼν δι᾿ ὁμιλίας καὶ τῆς χειρὸς λαβὼν ἐπὶ τὴν
ἐκκλησίαν προάγει εἴσω τε πρὸς αὐτῷ στήσας τῷ ἁγιάσματι μικρόν τι
παραναστείλας αὐτοῦ τῆς χλαμύδος καὶ τὸ προσηρτημένον αὐτῷ ξίφος
ἐπιδείξας ἅμα τε ἀντιπαρατίθησι προσαγαγὼν αὐτῷ τὴν τῶν θείων
εὐαγγελίων γραψήν κελεύσας τῶν δυοῖν ἑλέσθαι τὸ κατὰ γνώμην ὡς δ᾿
24
ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν
ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς
αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης
5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ
δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ
δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν
ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται
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4 TRADUCcedilAtildeO
O martiacuterio do Santo Marino
1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares
em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido
honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por
todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu
testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte
2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a
conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a
ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo
Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e
declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e
portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos
romanos Assim o cargo cairia para si
3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou
primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele
insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs
horas para refletir
4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era
bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela
matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando
um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo
tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos
exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem
hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas
ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno
ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo
5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para
o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se
apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute
26
imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre
o seu fim
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5 COMENTAacuteRIOS
51 OS PERSONAGENS
Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em
um ponto da estrutura
Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola
Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal
familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute
exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um
homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos
movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do
texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave
autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado
guerreiro
O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo
dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo
para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A
denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma
preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega
Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o
exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees
do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio
militar portanto tinha um significado muito grande
Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas
informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou
compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem
disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo
28
Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na
quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado
provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era
seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para
conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial
para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve
como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)
O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para
anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo
de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos
outros personagens no texto
52 ESTRUTURA
O texto pode ser subdividido em 5 partes
(i) Marino o soldado cristatildeo
A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no
espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo
A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de
captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a
expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo
(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo
A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio
narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo
apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal
(iii) Marino e o juiz a confissatildeo
A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente
que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir
29
(iv) Marino e o bispo a decisatildeo
Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de
Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem
palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a
espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe
a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras
(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo
Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo
Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte
53 TEMPO E ESPACcedilO
O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto
para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης
ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor
Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e
a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII
12)
A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que
Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em
todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto
o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se
deram de maneira muito raacutepida
Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia
na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no
entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes
contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o
Cristianismo
30
O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno
poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por
Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo
tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito
cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera
propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz
que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os
sofrimentos corporais
Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte
54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS
O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de
diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um
detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga
essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de
martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)
Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte
A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da
distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no
entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor
31
A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra
no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios
desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica
Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com
Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma
narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute
portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a
noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007
8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente
engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo
No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no
uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo
εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por
ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento
por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann
2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que
eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega
amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e
decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo
do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio
ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento
emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado
comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como
afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva
de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a
forte presenccedila do aspecto emotivo
A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para
enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou
ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops
(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma
32
medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te
apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo
Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila
Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte
pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o
caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o
representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute
o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar
Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel
seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os
espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo
Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na
hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops
(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo
obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo
O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino
se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua
decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo
que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar
O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma
meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior
sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O
adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez
Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num
texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e
ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς
πίστεως τὴν προθυμίαν
Assim temos
33
Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)
darrdarrdarrdarr
Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo
darrdarrdarrdarr
Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo
O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas
uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado
pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν
ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente
detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita
conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui
coerecircncia ao texto
Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)
destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura
feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que
todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou
seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica
fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e
estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha
havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois
poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo
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sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser
adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um
antagonismo fundamentalrdquo
O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de
Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo
substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo
ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos
esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no
texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino
Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos
durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e
por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que
a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino
Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη
ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto
o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων
o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος
o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις
o substantivo εἰρήνη
o substantivo μαρτυρία
Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e
formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado
35
A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes
por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)
honra romana (τιμή)
vide (κλῆμα)
centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)
reconhecimento passageiro e
terreno (ἀξιώμασι
τετιμημένων )
honra cristatilde (τιμή)
paz (εἰρήνη)
maacutertir (μάρτυρ)
reconhecimento eterno e divino
(τελειοῦται)
O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria
honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o
argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado
explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos
versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω
ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o
objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας
φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo
Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o
ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ
τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela
feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)
36
Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha
pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento
terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo
ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na
comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o
cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)
Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito
mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp
Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo
por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute
essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto
O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por
exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer
voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do
termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que
ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to
the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις
Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de
um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados
Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor
menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A
acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os
personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado
numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo
de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute
em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz
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como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da
acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade
interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se
constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio
por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os
imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao
registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o
mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)
A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das
intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que
como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos
entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo
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CONCLUSAtildeO
O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e
produtivo sob vaacuterios aspectos
Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual
gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A
percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a
ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os
primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma
instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na
literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um
pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os
cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo
- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura
No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do
texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico
durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e
consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa
ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias
da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna
centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o
posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos
fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento
A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se
compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao
bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se
mostrar complacente
39
Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os
cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de
sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem
como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como
um substituto aos espetaacuteculos romanos
Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave
plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos
Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o
que deu origem ao culto dos santos
Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda
precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos
possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados
ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται
presente no texto traduzido e em outros relatos
Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais
utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e
posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma
melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande
auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo
cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade
proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses
novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde
40
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SILVA Gilvan Ventura da A relaccedilatildeo EstadoIgreja no Impeacuterio Romano (seacuteculos III e IV) In SILVA Gilvan MENDES Norma (Org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica poliacutetica e cultural Vitoacuteria EDUFES 2006 p 241-266
SOPHOCLES EA Greek lexicon of the Roman and Byzantine Periods from BC 146 to AD 1100 ndash part one New York Charles Scribnerrsquos Sons 1900
TERTULIANO Os Espectaacuteculos (De spectaculis) Traduccedilatildeo Joatildeo Maia Lisboa Satildeo Paulo Verbo 1974
UYTFANGHE Marc Van LrsquoHagiografie un ldquogenrerdquo chreacutetien ou antique tardif In Analecta Bollandiana (Revue Critique drsquoHagiografie) Bruxelles Societeacute des Bollandistes 1993 (Tome 111)
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ANEXOS
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)
[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1
1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em
Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um
tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua
linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte
2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles
que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o
escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a
honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo
as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que
era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a
ele
3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a
Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que
era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse
4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e
afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma
vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o
manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e
contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as
duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a
direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -
manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que
escolheste Vai em pazrdquo
1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu
este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer
casos como o de Marino [nota do Editor]
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5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de
novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado
Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua
feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado
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TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)
During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in
Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and
was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It
came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour
and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and
according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he
was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and
attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and
should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to
the ancient laws but that instead the post should fall to himself
It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he
first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed
that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had
Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside
in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed
Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword
attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it
before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out
his right hand and took the divine writings
lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him
may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo
No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the
tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and
showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to
execution and so found his fulfilment
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lvii) os relatos de martiacuterio exerciam pelo menos trecircs funccedilotildees a primeira era a funccedilatildeo
histoacuterica jaacute que tanto os Evangelhos como os Atos dos Apoacutestolos e os martyria baseavam-se
em fatos histoacutericos A segunda era a apologeacutetica isto eacute a afirmaccedilatildeo da feacute cristatilde diante do
mundo E por uacuteltimo a funccedilatildeo de ensino Uytfanghe (1993 173-175) observa que por meio
desses relatos os cristatildeos eram encorajados a permanecerem firmes nas suas crenccedilas e a
cultivarem uma vida santa e asceacutetica O maacutertir se tornava assim um modelo a ser seguido E
o cristatildeo ndash literalmente o seguidor de Cristo - dava continuidade aos ensinos e agrave vida de
Jesus o qual afirmou ldquoLembrem-se das palavras que eu lhes disse Nenhum escravo eacute maior
do que o seu senhor Se me perseguiram tambeacutem perseguiratildeo vocecircsrdquo (Evang Joatildeo 1520)
Aleacutem desses trecircs aspectos a formaccedilatildeo de um corpus literaacuterio cristatildeo era de grande
interesse para a Igreja na medida em que oferecia ao puacuteblico cristatildeo a cada dia maior uma
nova opccedilatildeo cultural Conforme o registro que possuiacutemos no escrito Os Espetaacuteculos do bispo
Tertuliano de Cartago os cristatildeos eram aconselhados a natildeo frequumlentarem os teatros e os
circos nem assistirem aos combates de gladiadores ldquoMas eles percebem que algueacutem se fez
cristatildeo sobretudo pelo fato de evitar os espetaacuteculosrdquo (De spect 243)
Tertuliano posicionou-se fortemente contra a participaccedilatildeo dos cristatildeos nos espetaacuteculos
promovidos pelos teatros circos e arenas porque aleacutem de possuiacuterem uma ligaccedilatildeo com algum
deus grego ou romano - e portanto promoverem a idolatria - evidenciavam a incoerecircncia da
sociedade romana ldquosoacute ali [no teatro] tem curso e aplauso o que em qualquer outra parte se
reprovardquo (De spect 171) Assim argumenta ldquoConvencidos ficamos que por nenhum lado
nos fica bem laacute ir noacutes que por duas vezes renunciamos aos iacutedolosrdquo (De spect 13 1) Para
Tertuliano o homem eacute imagem e semelhanccedila de Deus e por essa razatildeo natildeo deveria
corromper sua alma e corpo
O certo eacute que natildeo nos foram dados os olhos para os entregar agrave concupiscecircncia nem a liacutengua para a maledicecircncia nem os ouvidos para sorvedouro de murmuraccedilotildees nem o paladar para poccedilo de gula o ventre para dar seguimento agrave mesma gula os oacutergatildeos genitais para excessos de impureza as matildeos para estrangular o proacuteximo os peacutes para vagabundear natildeo se nos infundiu a alma ateacute as entretelas do corpo para vir a ser um recesso de ciladas e de embustes e de iniquumlidades (De spect 210)
Os prazeres cultivados pela sociedade romana deveriam portanto ser abandonados e
substituiacutedos Para Tertuliano o cristatildeo natildeo tinha necessidade de espetaacuteculos pois desfrutava
dos prazeres (voluptates) proacuteprios agrave sua feacute Seus argumentos satildeo os seguintes
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Que melhor alegria que a que promana da reconciliaccedilatildeo com Deus Pai Nosso Senhor do conhecimento da verdade de reconhecer os erros do perdatildeo de tantos pecados da passada vida Que maior prazer que o asco do proacuteprio prazer que a consciecircncia pura que a vida sem ambiccedilotildees e o destemor da morte Pisar aos peacutes os deuses dos gentios expelir os democircnios curar doentes informar-te da verdade revelada viver para Deus aiacute estatildeo as alegrias satildeo esses os espetaacuteculos santos dos cristatildeos os espetaacuteculos perpeacutetuos por que se natildeo paga nada (De spect 29 1-3)
O bispo continua a explanaccedilatildeo de suas ideacuteias afirmando que os cristatildeos natildeo possuem o
teatro mas tecircm boa literatura natildeo possuem os combates de gladiadores mas tecircm as lutas pela
feacute e pela castidade natildeo possuem o sangue das arenas mas tecircm o sangue de Cristo ldquoSe o
palavreado cecircnico eacute divertido natildeo temos falta de boas letras temos versos a rodos e
pensamentos bem cunhados nada se diga de cacircnticos e vozes do melhor metal em vez de
faacutebulas temos verdades em vez de embustes a lisura mais declaradardquo (De spect 294)
A defesa e a valorizaccedilatildeo de uma literatura proacutepria aos cristatildeos eacute um elemento
extremamente importante para a propagaccedilatildeo dos relatos de martiacuterio porque conforme visto
acima esse tipo de texto entrou em circulaccedilatildeo como um substituto agraves encenaccedilotildees teatrais
Assim os martyria ajudaram a constituir um corpus literaacuterio cristatildeo que se tornou um
instrumento de poder para a Igreja
Como observa Fox (1996 130) os maacutertires compartilhavam juntamente com os
bispos e visionaacuteriosprofetas um lugar privilegiado na comunidade ldquoAmong Christians
before Constantine power was attribute of three particular groups it was achieved by
visionaires it was ascribed to martyrs and confessors it was vested above all in bishops
Literacy assisted the exercise of power by all threerdquo Os integrantes desses trecircs grupos natildeo
apenas eram admirados mas tidos como autoridades Os bispos por exemplo eram
considerados por Inaacutecio de Antioquia como ldquoos representantes de Deus na Igrejardquo
(Guignebert 1956 137) Por isso os escritos ou discursos proferidos por esses trecircs grupos
eram recebidos na maioria das vezes como proacutepria palavra de Deus fator que atribuiacutea um
poder ainda maior aos textos Para Fox (1996 129) ldquothis combination of sacred text and an
increasingly standardised pattern of authority make the early Church a unique subject for
studies of literacy and powerrdquo
Como um gecircnero da literatura cristatilde os relatos de martiacuterio tambeacutem serviram para a
manutenccedilatildeo e a transmissatildeo da ideologia cristatilde nos primeiros seacuteculos do Cristianismo
conforme escreve Alesso (2006 34-35)
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Los geacuteneros en todas sus formas y subformas son el suporte estructural para la transmisioacuten de un ideario y lo fueron de modo especial en el trasvase de los contenidos que provenientes de la antiguumledad se imbricaron en el cristianismo de los Padres Aunque su relacioacuten com la criacutetica sociohistoacuterica es marginal los geacuteneros son indudables portadores de significacioacuten cuando interesan a la evolucioacuten de paraacutemetros poliacutetico culturales que intervinieran en la construccioacuten del edificio ideoloacutegico de la teologiacutea cristiana
O fortalecimento da literatura cristatilde foi enfim um fator essencial para a difusatildeo do
Cristianismo porque ajudou a organizaacute-lo como instituiccedilatildeo Por meio da literatura o
Cristianismo conseguiu alcanccedilar pessoas de todos os lugares e de todas as classes sociais
inclusive as pertencentes agrave elite que conforme Daniel-Rops (1988 305) sentiam o decliacutenio
do Impeacuterio que chegava ateacute mesmo ao acircmbito literaacuterio e artiacutestico
12 AS CARACTERIacuteSTICAS LITERAacuteRIAS FORMAIS
Quanto agraves caracteriacutesticas formais que podem ser levadas em conta para a classificaccedilatildeo
do gecircnero os relatos de martiacuterio mesclam traccedilos tanto do gecircnero biograacutefico quanto do
discurso hagiograacutefico
Os relatos de martiacuterio natildeo podem ser classificados categoricamente como biacuteoi pois
natildeo chegam a constituir uma biografia de fato Tambeacutem natildeo podem ser classificados como
hagiografia em sentido exclusivo porque como afirma Delehaye (apud Uytfanghe 1993
146) esta eacute muito abrangente inclui ldquotodo documento escrito inspirado pelo culto dos santos
e destinado a promovecirc-lordquo Assim o que se verifica eacute um entrecruzamento de gecircneros Isso
ocorre porque os gecircneros satildeo como afirma Alesso (2006 29) sistemas abertos ldquolas
invariantes coexisten con las variables y no podemos condenarlos y condenarnos a una
esquematizacioacuten extrema porque perderiacuteamos de vista uno de los objetivos primordiales la
finalidad del contenidordquo Por essa razatildeo adotamos neste trabalho a definiccedilatildeo biacuteos
hagiograacutefico introduzida por Ipiranga Juacutenior (2006 9)
Segundo Momigliano (1971 25) os gregos jaacute possuiacuteam o haacutebito de redigir biografias
no seacuteculo V aC mas foi no periacuteodo heleniacutestico que ele se intensificou e o gecircnero recebeu um
nome especiacutefico ldquobien qui nous conaissions lrsquoexistence de biographies et peut-ecirctre
drsquoautobiographies degraves le cinquiegraveme siegravecle avant JC crsquoest seulement agrave lrsquoeacutepoque helleacutenistique
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que la biographie devient une notion precise et acquiert un nom en propre Ce nome est lsquobiosrsquo
ndash et non lsquobiographiarsquordquo
Para Bakhtin (2003 138) entretanto a biografia como romance surgiu apenas no fim
da Idade Meacutedia Durante os seacuteculos II-IV dC ainda era uma forma literaacuteria em formaccedilatildeo
Mesmo tendo em mente a distacircncia cronoloacutegica entre os martyria e o romance biograacutefico ao
qual Bakhtin se refere eacute possiacutevel perceber semelhanccedilas entre os dois
A primeira delas eacute a presenccedila do heroacutei com valores do tipo bravura honradez
magnanimidade e generosidade (cf Bakhtin 2003 142 147) Ao abrir matildeo de posiccedilotildees
poliacuteticas e religiosas ao enfrentar perigos sofrimentos torturas e feras sem renunciar agrave feacute o
maacutertir eacute visto como um heroacutei pela comunidade cristatilde Ele ldquotorna-se uma espeacutecie de ponto
focal da vida da comunidade que o circunda de veneraccedilatildeo considerando-o jaacute em contato com
Deus capaz de profetizar e de pronunciar-se com uma autoridade especial tambeacutem sobre
questotildees eclesiaacutesticasrdquo (Moreschini amp Norelli 2000 297) Morrer por sua feacute eacute o ato supremo
de glorificaccedilatildeo para os primeiros cristatildeos E eacute por meio dessa glorificaccedilatildeo de acordo com as
palavras de Bakhtin (2003 143) que o heroacutei consegue alcanccedilar a consciecircncia de uma
determinada sociedade incutindo assim novos valores
A aspiraccedilatildeo agrave gloacuteria organiza a vida do heroacutei ingecircnuo a gloacuteria organiza tambeacutem a narraccedilatildeo da sua vida sua glorificaccedilatildeo Aspirar agrave gloacuteria eacute tomar consciecircncia de si na sociedade culta e histoacuterica dos homens (ou na naccedilatildeo) eacute afirmar e construir sua vida na possiacutevel consciecircncia dessa sociedade humana eacute crescer natildeo em si nem para si mas nos outros ou para os outros eacute ocupar um lugar no mundo imediato dos contemporacircneos e descendentes
A segunda semelhanccedila detectada entre os gecircneros biograacutefico e biacuteos hagiograacutefico eacute a
relaccedilatildeo de empatia que se estabelece entre autor-personagem Segundo Bakhtin (2003 150)
autor e personagem compartilham obrigatoriamente os mesmos valores ldquona biografia o
autor natildeo soacute combina com a personagem na feacute nas convicccedilotildees e no amor mas tambeacutem em
sua criaccedilatildeo artiacutestica (sincreacutetica) tomando como guia os mesmos valores que a personagem
em sua vida esteacuteticardquo Embora o autor do martiacuterio do soldado Marino natildeo seja explicitado eacute
possiacutevel inferir pelo texto que o interesse de registrar o fato tenha partido natildeo de algueacutem que
simplesmente compartilhava com ele a situaccedilatildeo de soldado do exeacutercito romano mas sim de
algueacutem que dividia os mesmos valores cristatildeos
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Quanto agrave modalidade do romance a relaccedilatildeo entre os gecircneros biacuteos hagiograacutefico e
biograacutefico tambeacutem eacute possiacutevel Bakhtin (2003 205) identifica quatro modelos de romance
ldquosegundo o princiacutepio de construccedilatildeo da imagem da personagem central o romance de viagens
o romance de provaccedilatildeo da personagem o romance biograacutefico (autobiograacutefico) o romance de
educaccedilatildeordquo Ora por ser um gecircnero hiacutebrido a personagem principal do biacuteos hagiograacutefico
mescla caracteriacutesticas tanto do romance de provaccedilatildeo quanto do romance biograacutefico
Para Bakhtin (2003 207) o romance de provaccedilatildeo divide-se em duas modalidades ldquoA
primeira modalidade eacute representada pelo romance grego (A Etioacutepica Leucipo e Cleitofon
etc) A segunda modalidade eacute representada pelas hagiografias do iniacutecio do cristianismo
(particularmente dos maacutertires)rdquo O objetivo das provaccedilotildees neste tipo de romance eacute mudar a
opiniatildeo e os valores do heroacutei Como nos relatos de martiacuterio os cristatildeos natildeo renunciam a sua
feacute natildeo haacute mutabilidade Logo o maacutertir aproxima-se do conceito de heroacutei da provaccedilatildeo ele ldquoeacute
acabado e predeterminado as experimentaccedilotildees (sofrimentos seduccedilotildees duacutevidas) natildeo se
tornam para ele uma experiecircncia formadora nem a modificam e nessa imutabilidade da
personagem estaacute toda questatildeordquo (Bakhtin 2003 209)
Aleacutem disso no romance de provaccedilatildeo o personagem eacute o centro Natildeo importam os
costumes ou lugares exoacuteticos como no romance de viagens O personagem natildeo eacute modificado
de forma determinante pelo mundo nem o modifica
Entre o heroacutei e o mundo natildeo existe interaccedilatildeo autecircntica o mundo natildeo eacute capaz de mudar o heroacutei ele apenas o experimenta e o heroacutei natildeo influencia o mundo natildeo lhe muda a face ao passar pela provaccedilatildeo ao afastar seus inimigos etc o heroacutei deixa no mundo tudo nos seus lugares natildeo modifica a face social do mundo natildeo o reconstroacutei e aliaacutes nem tem essa pretensatildeo (Bakhtin 2003 212)
Eacute exatamente esta a situaccedilatildeo observada no texto em anaacutelise A crise pela qual passa o
personagem Marino natildeo eacute capaz de alterar suas convicccedilotildees nem de mudar o curso normal dos
acontecimentos agrave parte de sua vida o exeacutercito continuaraacute existindo uma outra pessoa tomaraacute
o seu lugar e tudo continuaraacute funcionando sob os mesmos princiacutepios
Quanto ao romance biograacutefico Bakhtin (2003 213) considera que assim como o
romance de provaccedilatildeo ele ldquoeacute preparado ainda em solo antigo nas biografias antigas
autobiografias e confissotildees do periacuteodo inicial do cristianismo (terminando em Agostinho)rdquo
O gecircnero biacuteos hagiograacutefico estabelece contatos com esse tipo de romance por meio do
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enredo Como o romance biograacutefico tem como elemento principal a narraccedilatildeo da trajetoacuteria
vital de um determinado personagem ou seja tem como base justamente aqueles ldquoelementos
existentes antes do iniacutecio ou depois do teacutermino do romance de provaccedilatildeordquo (Ibid) engloba
necessariamente o relato da morte fato fundamental para o surgimento de um maacutertir na
concepccedilatildeo cristatilde
No romance biograacutefico a relaccedilatildeo da personagem com o mundo ganha um enfoque
diferente daquele verificado no romance de viagens ou no de provaccedilatildeo Bakhtin (2003 215)
verifica que ldquoPersonagens secundaacuterias paiacuteses cidades objetos etc integram o romance
biograacutefico por vias substanciais e ganham uma relaccedilatildeo igualmente substancial com o todo
vital da personagem centralrdquo Paradoxalmente o relato do soldado Marino apresenta tambeacutem
esse aspecto Embora ele permanecesse inabalaacutevel em sua decisatildeo de natildeo negar a feacute cristatilde
antes de o juiz lhe conceder um tempo para refletir eacute no encontro com o bispo Teotecno e
principalmente apoacutes o confronto com um objeto de grande valor ndash as Escrituras ndash que
Marino segue resoluto para o tribunal
Bakhtin tambeacutem escreve sobre o gecircnero hagiograacutefico embora com mais cautela Para
o autor (2003 169-70) ldquoa hagiografia se realiza diretamente no mundo do divinordquo Por se
tratar de um plano diferenciado em que ldquoa atitude reverente do autor natildeo deixa espaccedilo agrave
iniciativa individualrdquo (2003 170) Bakhtin prefere manter a mesma distacircncia Assim limita-
se em dizer que a hagiografia ldquorecorre a formas tradicionalmente sagradasrdquo (Ibid)
No aspecto formal os relatos de martiacuterio possuem de fato vaacuterias semelhanccedilas e um
fundamento em comum que satildeo os processos verbais No entanto ainda natildeo existe entre os
seacuteculos II e IV dC essa preocupaccedilatildeo ou esse rigor com a forma com a exclusatildeo de todo
elemento que possa remeter agrave individualidade
deve-se excluir tudo o que eacute tiacutepico de uma dada eacutepoca de uma dada nacionalidade () de uma dada condiccedilatildeo social de uma dada idade todo o concreto de uma imagem de uma vida todas as minuacutecias desta as indicaccedilotildees precisas do tempo e do espaccedilo na accedilatildeo ndash tudo o que reforccedila a determinidade no ser de um dado indiviacuteduo e assim lhe diminui a autoridade (Bakhtin 2003 170)
Vecirc-se portanto a partir dessa breve anaacutelise que o gecircnero biacuteos hagiograacutefico mescla
caracteriacutesticas tanto do gecircnero biograacutefico ndash seja biacuteos ou romance biograacutefico - quanto da
hagiografia constituindo assim um gecircnero agrave parte
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2 CONTEXTO SOacuteCIO-HISTOacuteRICO
O relato do martiacuterio de Marino se tornou conhecido por meio da obra Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio bispo de Cesareacuteia no iniacutecio do seacuteculo IV Para Puech (1930 173)
ldquoEusegravebe est un meacutediocre theacuteologien et un meacutediocre eacutecrivain () mais il nous a rendu comme
historien et comme chronographe des services inestimablesrdquo De fato dificilmente teriacuteamos
acesso a esse texto se natildeo fosse o trabalho de Euseacutebio De acordo com a cronologia do bispo
a morte de Marino eacute situada entre os anos 260-261 dC Para o tradutor Musurillo (2000
xxxvi) essa data eacute bastante provaacutevel O comentaacuterio no relato de que todas as igrejas
desfrutavam de um periacuteodo de paz eacute o principal fator que leva a essa conclusatildeo No ano de
260 dC eacute promulgado o edito de Galieno o qual ldquoautoriza os liacutederes da Igreja a presidir
livremente as celebraccedilotildees religiosasrdquo (Silva 2006 250)
No entanto mesmo com as medidas favoraacuteveis por parte dos governantes o
cristianismo permanecia uma religio ilicita e portanto os cristatildeos ainda estavam sujeitos a
julgamento caso fossem delatados Foi o que aconteceu com o soldado Marino Uma vez
acusado de ser cristatildeo e de natildeo prestar culto ao imperador foi levado ao tribunal Eacute muito
provaacutevel que Marino tivesse vaacuterios colegas cristatildeos no exeacutercito que natildeo foram executados
porque ningueacutem aparecera para acusaacute-los A situaccedilatildeo dos cristatildeos era realmente
imprevisiacutevel Daniel-Rops (1988 346) comenta que no seacuteculo III essa constante mudanccedila de
humor por parte do Impeacuterio criou uma situaccedilatildeo sem precedentes ldquoComo um anciatildeo doente
que ora dormita inconsciente ou vagamente inquieto ignorando as impaciecircncias que o
rodeiam ora se irrita e ainda se mostra terriacutevel da mesma forma o Impeacuterio muda a todo o
momento de atitude Eacute isto o que daacute agraves perseguiccedilotildees do seacuteculo III um caraacuteter tatildeo diferente das
precedentesrdquo
Assim Marino foi o escolhido naquele momento de paz temporaacuteria Eles tinham
conhecimento da lei que estava em vigor desde a eacutepoca do imperador Trajano (110-111 dC)
quando este determinara ao governador Pliacutenio que os cristatildeos natildeo deveriam ser
sistematicamente perseguidos nem deveriam ser aceitas denuacutencias anocircnimas contra eles
(Gonzaacutelez 1995 64) A recomendaccedilatildeo dada a Pliacutenio havia sido adotada em todo o Impeacuterio
Uma vez acusados entretanto deveriam ser julgados Geralmente os cristatildeos eram levados
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ao tribunal em decorrecircncia de disputas locais como escrevem Danieacutelou amp Marrou (1966
105)
Conveacutem frisar que natildeo haacute proscriccedilatildeo de cristatildeos pelo poder central quer dizer natildeo haacute perseguiccedilatildeo total Em segundo lugar verificam-se ataques locais movidos pelo povo e depois submetidos agrave apreciaccedilatildeo do magistrado romano () Em terceiro lugar o motivo da perseguiccedilatildeo natildeo se liga a crimes determinados mas unicamente ao lsquonomersquo cristatildeo O levantamento feito por Pliacutenio levara mesmo agrave conclusatildeo de que eram inocentes os cristatildeos
Guignebert (1956 169-70) tambeacutem assinala que apesar de todas as acusaccedilotildees
nenhum crime recaiacutea sobre os cristatildeos
Varias acusaciones de derecho comuacuten se poniacutean en juego al mismo tiempo para agobiar a los fieles religioacuten iliacutecita sociedad secreta lesa majestad negativa de obediencia si se trataba de soldados ignavia es decir negligencia en el cumplimiento de los deberes de la vida puacuteblica y privada y hasta magia Por lo demaacutes estas acusaciones cuando se aplicaban a los cristianos presentaban la singularidad de que se desistia inmediatamente de ellas si el inculpado consentiacutea en decir que renunciaba a su feacute lo que permite suponer que en suma era la religioacuten cristiana solamente lo que se perseguia
Ainda assim os cristatildeos precisavam ser castigados porque ao insistirem na afirmaccedilatildeo
ldquoSou cristatildeordquo rebelavam-se contra os princiacutepios do Impeacuterio especialmente o do culto ao
imperador
Este delito tinha de ser castigado em primeiro lugar porque de outro modo diminuiria a autoridade desses tribunais e em segundo lugar porque ao negarem a adorar o imperador os cristatildeos estavam adotando uma atitude que nesse tempo se interpretava como rebeliatildeo contra a autoridade imperial Com efeito o culto ao imperador era um dos viacutenculos que uniam o Impeacuterio e negar-se em puacuteblico a render esse culto equivalia a romper esse viacutenculo (Gonzaacutelez 1995 66)
Novamente percebe-se o caraacuteter imprevisiacutevel da vida cristatilde Os autores reconhecem
que de uma maneira geral as comunidades cristatildes procuravam levar uma vida exemplar e
submissa agraves leis do Impeacuterio ldquoAs instruccedilotildees de civismo dadas pelos Apoacutestolos continuam a
ser observadas e os cristatildeos mostram-se na sua grande maioria cidadatildeos fieacuteis e devotados ao
bem puacuteblicordquo (Daniel-Rops 1988 345) Poreacutem quando levados a julgamento puacuteblico natildeo
aceitavam prestar culto a outro senhor aleacutem de Cristo
No tocante ao serviccedilo militar as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio nem sempre eram
tatildeo simples Na opiniatildeo de Guignebert (1956 166) isso se dava porque as obrigaccedilotildees
militares geralmente tinham uma forte ligaccedilatildeo com as praacuteticas religiosas pagatildes
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El servicio militar les resultaba odioso porque suponiacutea obligaciones idolaacutetricas y porque execraban la guerra su participacioacuten en el servicio civil les pareciacutea supeacuterflua sobre todo se rehusaban obstinadamente a tomar parte en ninguna de las manifestaciones de lealtad que el gobierno imperial reclamaba porque todas revestiacutean caraacutecter religioso
Do mesmo modo Daniel-Rops (1988 345) relata
casos de objeccedilatildeo de consciecircncia ao serviccedilo militar como acontece com um jovem soldado que exclama ldquoNatildeo me eacute permitido trazer ao pescoccedilo o signum (espeacutecie de placa de identidade usada no exeacutercito romano) porque fui marcado com o sinal de Cristordquo ou com um outro soldado que se recusou a colocar sobre a cabeccedila a coroa ritual dos sacrifiacutecios em honra do imperador Satildeo casos ainda excepcionais mas sintomaacuteticos a oposiccedilatildeo profunda entre Roma e a Igreja tende a passar do plano religioso para o plano ciacutevico e poliacutetico
A intervenccedilatildeo do plano religioso sobre o poliacutetico e vice-versa foi consequumlecircncia da
busca por parte dos romanos de um sistema seguro no qual pudessem se apoiar Com a
decadecircncia poliacutetica econocircmica e moral o nuacutemero de seitas e religiotildees se multiplicava
formando um quadro extremamente pluralista (cf Daniel-Rops 1988 307) Eacute no seacuteculo III
que a dinastia dos Severos se impotildee e juntamente com ela vecircm as tradiccedilotildees religiosas
orientais
El advenimiento con los Severos de principes africanos y sirios la dominacioacuten de mujeres penetradas de la piedade miacutestica de Oriente favorecieron su raacutepido desarollo y el siglo III conocioacute todas sus formas desde las maacutes groseras estrechamente emparentadas com la supersticioacuten pura hasta las maacutes refinadas modeladas pelas reflexiones de la filosofia que desde entonces tenderiacutea hacia lo divino (Guignebert 1956 119)
Neste panorama soacutecio-poliacutetico o cristianismo foi a religiatildeo abraccedilada por muitos
cidadatildeos natildeo soacute ldquotecelotildees pisoeiros e sapateirosrdquo mas tambeacutem ldquoadvogados como Satildeo
Gregoacuterio Taumaturgo ou Satildeo Cipriano de Cartago mulheres da sociedade como Santa
Perpeacutetua grandes burgueses da proviacutencia e lsquoclariacutessimosrsquo de famiacutelias senatoriaisrdquo (Daniel-
Rops 1988 317) Para Guignebert (1956 121) o contato da elite com o cristianismo se deu
essencialmente por meio dos escravos e da filosofia
a traveacutes de los esclavos llegoacute a las mujeres libres sus amas y accidentalmente atrajo la atencioacuten de algunos hombres instruiacutedos que buscaban la verdad divina Gracias a las primeras se insinuoacute en las classes altas gracias a los segundos tomoacute contacto con la filosofia en el curso del siglo II y las consecuencias de este encuentro fueron incalculables
Eacute importante relembrar que a filosofia pressupunha a escrita e tinha um forte viacutenculo
com a literatura Mesmo o cristianismo no seacuteculo III jaacute possuiacutea um consideraacutevel nuacutemero de
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textos apologeacuteticos que dialogavam diretamente com a filosofia grega e possibilitavam para
a elite o acesso agraves ideacuteias cristatildes (cf Alesso 2006 31)
O relato do martiacuterio do soldado Marino surge portanto nesse contexto soacutecio-histoacuterico
como um texto de grande relevacircncia para o cristianismo Primeiro porque o personagem
principal eacute um soldado Integrava o grupo social de maior prestiacutegio nessa eacutepoca Como dizia
Septiacutemio Severo aos seus filhos ldquoEnriquecei o soldado e zombai do restordquo (Daniel-Rops
1988 299) E como no seacuteculo III as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio tomam uma nova
configuraccedilatildeo o contraste entre essas duas instituiccedilotildees eacute um assunto central O embate deixa
de ser apenas religioso e passa a ser tambeacutem poliacutetico - fato que vai se confirmar no seacuteculo
IV
Em segundo lugar a posiccedilatildeo social do maacutertir levanta outra questatildeo Marino como
membro da elite poderia facilmente ter comprado o libellus ndash documento que comprovava o
sacrifiacutecio aos deuses romanos ndash e assim conseguir sua liberdade (cf Silva 2006 248)
Daniel-Rops (1988 367) detalha que os ricos eram mais propensos a comprar falsos
documentos e a desistir ldquoConforme os testemunhos que temos parece que eram sobretudo os
ricos os bem instalados aqueles a quem a vida tinha concedido todo o conforto e que natildeo
estavam dispostos a sacrificaacute-lordquo que renunciavam agrave feacute
Aleacutem de abrir matildeo de sua posiccedilatildeo social e dos privileacutegios que iria obter como
centuriatildeo Marino natildeo se deixou dominar pelo medo a principal razatildeo da apostasia segundo
Daniel-Rops (1988 367) Eacute importante lembrar que a perseguiccedilatildeo sob Deacutecio instaurada em
249 dC ainda era bastante recente Numa tentativa de restaurar a gloacuteria do Impeacuterio Deacutecio
havia promulgado uma lei que obrigava todos os suacuteditos a retomarem o culto aos deuses
romanos Para ele ldquose todos os suacuteditos do Impeacuterio voltassem a adorar os deuses
possivelmente os deuses voltariam a favorecer o Impeacuteriordquo (Gonzaacutelez 1995 138) O culto era
um elemento essencial para os romanos Era por meio dele que expressavam sua
religiosidade como escreve Arnauld (2001 15) ldquoLa lsquopietasrsquo (pieacuteteacute) eacutetait la caracteacuteristique
principale de la religiositeacute romaine () Cette lsquopietasrsquo srsquoexprimait en une observance stricte
des lois rituelles Religion signifiait culterdquo
O descumprimento da lei por parte dos cristatildeos provocou uma perseguiccedilatildeo que teve
como consequumlecircncia um grande nuacutemero de apostasias fato que chegou a causar divergecircncia de
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opiniatildeo entre os bispos Num novo periacuteodo de relativa paz era portanto de suma importacircncia
para a Igreja insistir que os cristatildeos permanecessem firmes em suas convicccedilotildees Como
observa Daniel-Rops (1988 367) ldquoesses periacuteodos de interrupccedilatildeo nas perseguiccedilotildees natildeo
ajudavam em nada a coragem dos fieacuteis durante os tempos de calma a mola distendia-se e
quando subitamente era preciso voltar a entrar em luta muitos se sentiam faltos de energiardquo
Assim o testemunho de Marino evidencia o conflito existente entre a Igreja e o
Impeacuterio e conclama de maneira didaacutetica a que os cristatildeos tenham a mesma disposiccedilatildeo
mesmo diante da possibilidade da apostasia e dos terrores de um novo periacuteodo de perseguiccedilatildeo
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3 TEXTO GREGO
Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου Μαρίνου
Κατὰ τούτους εἰρήνης ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης ἐν Καισαρείᾳ τῆς
Παλαιστίνης Μαρῖνος τῶν ἐν στρατείαις ἀξιώμασι τετιμημένων γένει τε
καὶ πλοὕτῳ περιφανὴς ἀνήρ διὰ τὴν Χριστοῦ μαρτυρίαν τὴν κεφαλὴν
ἀποτέμνεται τοιᾶσδε ἕνεκεν αἰτίας
2 τιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας φασίν
ἑκατοντάρχους γίνεσθαι Τόπου σχολάζοντος ἐπὶ τοῦτο προκοπῆς τὸν
Μαρῖνον ἡ τοῦ βαθμοῦ τάξις ἐκάλει ἤδη τε μέλλοντα τῆς τιμῆς ἔχεσθαι
Παρελθὼν ἄλλος πρὸ τοῦ βήματος μὴ ἐξεῖναι μὲν ἐκείνῳ τῆς Ῥωμαίων
μετέχειν ἀξίας κατὰ τοὺς παλαιοὺς νόμους Χριστιανῷ γε ὄντι καὶ τοῖς
βασιλεῦσι μὴ θύοντι κατηγόρει αὐτῷ δὲ ἐπιβάλλειν τὸν κλῆρον
3 ἐφ᾿ ᾧ κινηθέντα τὸν δικαστὴν (Ἀχαιὸς οὕτος ἧν) πρῶτον μὲν ἐρέσθαι
ποίας ὁ Μαρῖνος εἴη γνώμης ὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν ἐπιμόνως
ἑώρα τριῶν ὡρῶν ἐπιδοῦναι αὐτῷ εἰς ἐπίσκεψιν διάστημα
4 ἐκτὸς δῆτα γενόμενον αὐτὸν τοῦ δικαστηρίου Θεότεκνος ὁ τῇδε
ἐπίσκοπος ἀφέλκει προσελθὼν δι᾿ ὁμιλίας καὶ τῆς χειρὸς λαβὼν ἐπὶ τὴν
ἐκκλησίαν προάγει εἴσω τε πρὸς αὐτῷ στήσας τῷ ἁγιάσματι μικρόν τι
παραναστείλας αὐτοῦ τῆς χλαμύδος καὶ τὸ προσηρτημένον αὐτῷ ξίφος
ἐπιδείξας ἅμα τε ἀντιπαρατίθησι προσαγαγὼν αὐτῷ τὴν τῶν θείων
εὐαγγελίων γραψήν κελεύσας τῶν δυοῖν ἑλέσθαι τὸ κατὰ γνώμην ὡς δ᾿
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ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν
ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς
αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης
5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ
δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ
δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν
ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται
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4 TRADUCcedilAtildeO
O martiacuterio do Santo Marino
1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares
em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido
honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por
todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu
testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte
2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a
conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a
ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo
Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e
declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e
portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos
romanos Assim o cargo cairia para si
3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou
primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele
insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs
horas para refletir
4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era
bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela
matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando
um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo
tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos
exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem
hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas
ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno
ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo
5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para
o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se
apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute
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imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre
o seu fim
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5 COMENTAacuteRIOS
51 OS PERSONAGENS
Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em
um ponto da estrutura
Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola
Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal
familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute
exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um
homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos
movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do
texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave
autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado
guerreiro
O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo
dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo
para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A
denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma
preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega
Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o
exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees
do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio
militar portanto tinha um significado muito grande
Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas
informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou
compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem
disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo
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Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na
quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado
provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era
seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para
conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial
para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve
como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)
O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para
anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo
de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos
outros personagens no texto
52 ESTRUTURA
O texto pode ser subdividido em 5 partes
(i) Marino o soldado cristatildeo
A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no
espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo
A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de
captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a
expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo
(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo
A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio
narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo
apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal
(iii) Marino e o juiz a confissatildeo
A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente
que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir
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(iv) Marino e o bispo a decisatildeo
Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de
Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem
palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a
espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe
a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras
(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo
Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo
Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte
53 TEMPO E ESPACcedilO
O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto
para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης
ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor
Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e
a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII
12)
A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que
Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em
todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto
o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se
deram de maneira muito raacutepida
Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia
na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no
entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes
contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o
Cristianismo
30
O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno
poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por
Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo
tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito
cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera
propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz
que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os
sofrimentos corporais
Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte
54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS
O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de
diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um
detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga
essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de
martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)
Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte
A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da
distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no
entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor
31
A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra
no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios
desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica
Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com
Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma
narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute
portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a
noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007
8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente
engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo
No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no
uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo
εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por
ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento
por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann
2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que
eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega
amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e
decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo
do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio
ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento
emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado
comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como
afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva
de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a
forte presenccedila do aspecto emotivo
A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para
enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou
ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops
(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma
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medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te
apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo
Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila
Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte
pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o
caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o
representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute
o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar
Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel
seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os
espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo
Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na
hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops
(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo
obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo
O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino
se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua
decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo
que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar
O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma
meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior
sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O
adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez
Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num
texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e
ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς
πίστεως τὴν προθυμίαν
Assim temos
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Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)
darrdarrdarrdarr
Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo
darrdarrdarrdarr
Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo
O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas
uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado
pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν
ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente
detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita
conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui
coerecircncia ao texto
Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)
destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura
feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que
todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou
seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica
fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e
estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha
havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois
poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo
34
sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser
adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um
antagonismo fundamentalrdquo
O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de
Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo
substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo
ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos
esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no
texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino
Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos
durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e
por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que
a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino
Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη
ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto
o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων
o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος
o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις
o substantivo εἰρήνη
o substantivo μαρτυρία
Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e
formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado
35
A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes
por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)
honra romana (τιμή)
vide (κλῆμα)
centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)
reconhecimento passageiro e
terreno (ἀξιώμασι
τετιμημένων )
honra cristatilde (τιμή)
paz (εἰρήνη)
maacutertir (μάρτυρ)
reconhecimento eterno e divino
(τελειοῦται)
O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria
honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o
argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado
explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos
versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω
ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o
objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας
φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo
Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o
ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ
τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela
feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)
36
Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha
pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento
terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo
ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na
comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o
cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)
Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito
mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp
Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo
por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute
essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto
O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por
exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer
voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do
termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que
ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to
the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις
Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de
um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados
Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor
menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A
acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os
personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado
numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo
de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute
em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz
37
como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da
acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade
interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se
constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio
por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os
imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao
registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o
mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)
A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das
intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que
como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos
entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo
38
CONCLUSAtildeO
O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e
produtivo sob vaacuterios aspectos
Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual
gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A
percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a
ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os
primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma
instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na
literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um
pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os
cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo
- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura
No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do
texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico
durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e
consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa
ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias
da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna
centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o
posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos
fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento
A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se
compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao
bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se
mostrar complacente
39
Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os
cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de
sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem
como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como
um substituto aos espetaacuteculos romanos
Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave
plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos
Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o
que deu origem ao culto dos santos
Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda
precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos
possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados
ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται
presente no texto traduzido e em outros relatos
Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais
utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e
posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma
melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande
auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo
cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade
proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses
novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde
40
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43
ANEXOS
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)
[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1
1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em
Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um
tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua
linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte
2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles
que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o
escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a
honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo
as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que
era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a
ele
3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a
Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que
era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse
4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e
afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma
vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o
manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e
contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as
duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a
direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -
manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que
escolheste Vai em pazrdquo
1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu
este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer
casos como o de Marino [nota do Editor]
44
5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de
novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado
Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua
feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado
45
TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)
During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in
Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and
was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It
came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour
and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and
according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he
was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and
attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and
should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to
the ancient laws but that instead the post should fall to himself
It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he
first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed
that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had
Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside
in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed
Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword
attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it
before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out
his right hand and took the divine writings
lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him
may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo
No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the
tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and
showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to
execution and so found his fulfilment
13
Que melhor alegria que a que promana da reconciliaccedilatildeo com Deus Pai Nosso Senhor do conhecimento da verdade de reconhecer os erros do perdatildeo de tantos pecados da passada vida Que maior prazer que o asco do proacuteprio prazer que a consciecircncia pura que a vida sem ambiccedilotildees e o destemor da morte Pisar aos peacutes os deuses dos gentios expelir os democircnios curar doentes informar-te da verdade revelada viver para Deus aiacute estatildeo as alegrias satildeo esses os espetaacuteculos santos dos cristatildeos os espetaacuteculos perpeacutetuos por que se natildeo paga nada (De spect 29 1-3)
O bispo continua a explanaccedilatildeo de suas ideacuteias afirmando que os cristatildeos natildeo possuem o
teatro mas tecircm boa literatura natildeo possuem os combates de gladiadores mas tecircm as lutas pela
feacute e pela castidade natildeo possuem o sangue das arenas mas tecircm o sangue de Cristo ldquoSe o
palavreado cecircnico eacute divertido natildeo temos falta de boas letras temos versos a rodos e
pensamentos bem cunhados nada se diga de cacircnticos e vozes do melhor metal em vez de
faacutebulas temos verdades em vez de embustes a lisura mais declaradardquo (De spect 294)
A defesa e a valorizaccedilatildeo de uma literatura proacutepria aos cristatildeos eacute um elemento
extremamente importante para a propagaccedilatildeo dos relatos de martiacuterio porque conforme visto
acima esse tipo de texto entrou em circulaccedilatildeo como um substituto agraves encenaccedilotildees teatrais
Assim os martyria ajudaram a constituir um corpus literaacuterio cristatildeo que se tornou um
instrumento de poder para a Igreja
Como observa Fox (1996 130) os maacutertires compartilhavam juntamente com os
bispos e visionaacuteriosprofetas um lugar privilegiado na comunidade ldquoAmong Christians
before Constantine power was attribute of three particular groups it was achieved by
visionaires it was ascribed to martyrs and confessors it was vested above all in bishops
Literacy assisted the exercise of power by all threerdquo Os integrantes desses trecircs grupos natildeo
apenas eram admirados mas tidos como autoridades Os bispos por exemplo eram
considerados por Inaacutecio de Antioquia como ldquoos representantes de Deus na Igrejardquo
(Guignebert 1956 137) Por isso os escritos ou discursos proferidos por esses trecircs grupos
eram recebidos na maioria das vezes como proacutepria palavra de Deus fator que atribuiacutea um
poder ainda maior aos textos Para Fox (1996 129) ldquothis combination of sacred text and an
increasingly standardised pattern of authority make the early Church a unique subject for
studies of literacy and powerrdquo
Como um gecircnero da literatura cristatilde os relatos de martiacuterio tambeacutem serviram para a
manutenccedilatildeo e a transmissatildeo da ideologia cristatilde nos primeiros seacuteculos do Cristianismo
conforme escreve Alesso (2006 34-35)
14
Los geacuteneros en todas sus formas y subformas son el suporte estructural para la transmisioacuten de un ideario y lo fueron de modo especial en el trasvase de los contenidos que provenientes de la antiguumledad se imbricaron en el cristianismo de los Padres Aunque su relacioacuten com la criacutetica sociohistoacuterica es marginal los geacuteneros son indudables portadores de significacioacuten cuando interesan a la evolucioacuten de paraacutemetros poliacutetico culturales que intervinieran en la construccioacuten del edificio ideoloacutegico de la teologiacutea cristiana
O fortalecimento da literatura cristatilde foi enfim um fator essencial para a difusatildeo do
Cristianismo porque ajudou a organizaacute-lo como instituiccedilatildeo Por meio da literatura o
Cristianismo conseguiu alcanccedilar pessoas de todos os lugares e de todas as classes sociais
inclusive as pertencentes agrave elite que conforme Daniel-Rops (1988 305) sentiam o decliacutenio
do Impeacuterio que chegava ateacute mesmo ao acircmbito literaacuterio e artiacutestico
12 AS CARACTERIacuteSTICAS LITERAacuteRIAS FORMAIS
Quanto agraves caracteriacutesticas formais que podem ser levadas em conta para a classificaccedilatildeo
do gecircnero os relatos de martiacuterio mesclam traccedilos tanto do gecircnero biograacutefico quanto do
discurso hagiograacutefico
Os relatos de martiacuterio natildeo podem ser classificados categoricamente como biacuteoi pois
natildeo chegam a constituir uma biografia de fato Tambeacutem natildeo podem ser classificados como
hagiografia em sentido exclusivo porque como afirma Delehaye (apud Uytfanghe 1993
146) esta eacute muito abrangente inclui ldquotodo documento escrito inspirado pelo culto dos santos
e destinado a promovecirc-lordquo Assim o que se verifica eacute um entrecruzamento de gecircneros Isso
ocorre porque os gecircneros satildeo como afirma Alesso (2006 29) sistemas abertos ldquolas
invariantes coexisten con las variables y no podemos condenarlos y condenarnos a una
esquematizacioacuten extrema porque perderiacuteamos de vista uno de los objetivos primordiales la
finalidad del contenidordquo Por essa razatildeo adotamos neste trabalho a definiccedilatildeo biacuteos
hagiograacutefico introduzida por Ipiranga Juacutenior (2006 9)
Segundo Momigliano (1971 25) os gregos jaacute possuiacuteam o haacutebito de redigir biografias
no seacuteculo V aC mas foi no periacuteodo heleniacutestico que ele se intensificou e o gecircnero recebeu um
nome especiacutefico ldquobien qui nous conaissions lrsquoexistence de biographies et peut-ecirctre
drsquoautobiographies degraves le cinquiegraveme siegravecle avant JC crsquoest seulement agrave lrsquoeacutepoque helleacutenistique
15
que la biographie devient une notion precise et acquiert un nom en propre Ce nome est lsquobiosrsquo
ndash et non lsquobiographiarsquordquo
Para Bakhtin (2003 138) entretanto a biografia como romance surgiu apenas no fim
da Idade Meacutedia Durante os seacuteculos II-IV dC ainda era uma forma literaacuteria em formaccedilatildeo
Mesmo tendo em mente a distacircncia cronoloacutegica entre os martyria e o romance biograacutefico ao
qual Bakhtin se refere eacute possiacutevel perceber semelhanccedilas entre os dois
A primeira delas eacute a presenccedila do heroacutei com valores do tipo bravura honradez
magnanimidade e generosidade (cf Bakhtin 2003 142 147) Ao abrir matildeo de posiccedilotildees
poliacuteticas e religiosas ao enfrentar perigos sofrimentos torturas e feras sem renunciar agrave feacute o
maacutertir eacute visto como um heroacutei pela comunidade cristatilde Ele ldquotorna-se uma espeacutecie de ponto
focal da vida da comunidade que o circunda de veneraccedilatildeo considerando-o jaacute em contato com
Deus capaz de profetizar e de pronunciar-se com uma autoridade especial tambeacutem sobre
questotildees eclesiaacutesticasrdquo (Moreschini amp Norelli 2000 297) Morrer por sua feacute eacute o ato supremo
de glorificaccedilatildeo para os primeiros cristatildeos E eacute por meio dessa glorificaccedilatildeo de acordo com as
palavras de Bakhtin (2003 143) que o heroacutei consegue alcanccedilar a consciecircncia de uma
determinada sociedade incutindo assim novos valores
A aspiraccedilatildeo agrave gloacuteria organiza a vida do heroacutei ingecircnuo a gloacuteria organiza tambeacutem a narraccedilatildeo da sua vida sua glorificaccedilatildeo Aspirar agrave gloacuteria eacute tomar consciecircncia de si na sociedade culta e histoacuterica dos homens (ou na naccedilatildeo) eacute afirmar e construir sua vida na possiacutevel consciecircncia dessa sociedade humana eacute crescer natildeo em si nem para si mas nos outros ou para os outros eacute ocupar um lugar no mundo imediato dos contemporacircneos e descendentes
A segunda semelhanccedila detectada entre os gecircneros biograacutefico e biacuteos hagiograacutefico eacute a
relaccedilatildeo de empatia que se estabelece entre autor-personagem Segundo Bakhtin (2003 150)
autor e personagem compartilham obrigatoriamente os mesmos valores ldquona biografia o
autor natildeo soacute combina com a personagem na feacute nas convicccedilotildees e no amor mas tambeacutem em
sua criaccedilatildeo artiacutestica (sincreacutetica) tomando como guia os mesmos valores que a personagem
em sua vida esteacuteticardquo Embora o autor do martiacuterio do soldado Marino natildeo seja explicitado eacute
possiacutevel inferir pelo texto que o interesse de registrar o fato tenha partido natildeo de algueacutem que
simplesmente compartilhava com ele a situaccedilatildeo de soldado do exeacutercito romano mas sim de
algueacutem que dividia os mesmos valores cristatildeos
16
Quanto agrave modalidade do romance a relaccedilatildeo entre os gecircneros biacuteos hagiograacutefico e
biograacutefico tambeacutem eacute possiacutevel Bakhtin (2003 205) identifica quatro modelos de romance
ldquosegundo o princiacutepio de construccedilatildeo da imagem da personagem central o romance de viagens
o romance de provaccedilatildeo da personagem o romance biograacutefico (autobiograacutefico) o romance de
educaccedilatildeordquo Ora por ser um gecircnero hiacutebrido a personagem principal do biacuteos hagiograacutefico
mescla caracteriacutesticas tanto do romance de provaccedilatildeo quanto do romance biograacutefico
Para Bakhtin (2003 207) o romance de provaccedilatildeo divide-se em duas modalidades ldquoA
primeira modalidade eacute representada pelo romance grego (A Etioacutepica Leucipo e Cleitofon
etc) A segunda modalidade eacute representada pelas hagiografias do iniacutecio do cristianismo
(particularmente dos maacutertires)rdquo O objetivo das provaccedilotildees neste tipo de romance eacute mudar a
opiniatildeo e os valores do heroacutei Como nos relatos de martiacuterio os cristatildeos natildeo renunciam a sua
feacute natildeo haacute mutabilidade Logo o maacutertir aproxima-se do conceito de heroacutei da provaccedilatildeo ele ldquoeacute
acabado e predeterminado as experimentaccedilotildees (sofrimentos seduccedilotildees duacutevidas) natildeo se
tornam para ele uma experiecircncia formadora nem a modificam e nessa imutabilidade da
personagem estaacute toda questatildeordquo (Bakhtin 2003 209)
Aleacutem disso no romance de provaccedilatildeo o personagem eacute o centro Natildeo importam os
costumes ou lugares exoacuteticos como no romance de viagens O personagem natildeo eacute modificado
de forma determinante pelo mundo nem o modifica
Entre o heroacutei e o mundo natildeo existe interaccedilatildeo autecircntica o mundo natildeo eacute capaz de mudar o heroacutei ele apenas o experimenta e o heroacutei natildeo influencia o mundo natildeo lhe muda a face ao passar pela provaccedilatildeo ao afastar seus inimigos etc o heroacutei deixa no mundo tudo nos seus lugares natildeo modifica a face social do mundo natildeo o reconstroacutei e aliaacutes nem tem essa pretensatildeo (Bakhtin 2003 212)
Eacute exatamente esta a situaccedilatildeo observada no texto em anaacutelise A crise pela qual passa o
personagem Marino natildeo eacute capaz de alterar suas convicccedilotildees nem de mudar o curso normal dos
acontecimentos agrave parte de sua vida o exeacutercito continuaraacute existindo uma outra pessoa tomaraacute
o seu lugar e tudo continuaraacute funcionando sob os mesmos princiacutepios
Quanto ao romance biograacutefico Bakhtin (2003 213) considera que assim como o
romance de provaccedilatildeo ele ldquoeacute preparado ainda em solo antigo nas biografias antigas
autobiografias e confissotildees do periacuteodo inicial do cristianismo (terminando em Agostinho)rdquo
O gecircnero biacuteos hagiograacutefico estabelece contatos com esse tipo de romance por meio do
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enredo Como o romance biograacutefico tem como elemento principal a narraccedilatildeo da trajetoacuteria
vital de um determinado personagem ou seja tem como base justamente aqueles ldquoelementos
existentes antes do iniacutecio ou depois do teacutermino do romance de provaccedilatildeordquo (Ibid) engloba
necessariamente o relato da morte fato fundamental para o surgimento de um maacutertir na
concepccedilatildeo cristatilde
No romance biograacutefico a relaccedilatildeo da personagem com o mundo ganha um enfoque
diferente daquele verificado no romance de viagens ou no de provaccedilatildeo Bakhtin (2003 215)
verifica que ldquoPersonagens secundaacuterias paiacuteses cidades objetos etc integram o romance
biograacutefico por vias substanciais e ganham uma relaccedilatildeo igualmente substancial com o todo
vital da personagem centralrdquo Paradoxalmente o relato do soldado Marino apresenta tambeacutem
esse aspecto Embora ele permanecesse inabalaacutevel em sua decisatildeo de natildeo negar a feacute cristatilde
antes de o juiz lhe conceder um tempo para refletir eacute no encontro com o bispo Teotecno e
principalmente apoacutes o confronto com um objeto de grande valor ndash as Escrituras ndash que
Marino segue resoluto para o tribunal
Bakhtin tambeacutem escreve sobre o gecircnero hagiograacutefico embora com mais cautela Para
o autor (2003 169-70) ldquoa hagiografia se realiza diretamente no mundo do divinordquo Por se
tratar de um plano diferenciado em que ldquoa atitude reverente do autor natildeo deixa espaccedilo agrave
iniciativa individualrdquo (2003 170) Bakhtin prefere manter a mesma distacircncia Assim limita-
se em dizer que a hagiografia ldquorecorre a formas tradicionalmente sagradasrdquo (Ibid)
No aspecto formal os relatos de martiacuterio possuem de fato vaacuterias semelhanccedilas e um
fundamento em comum que satildeo os processos verbais No entanto ainda natildeo existe entre os
seacuteculos II e IV dC essa preocupaccedilatildeo ou esse rigor com a forma com a exclusatildeo de todo
elemento que possa remeter agrave individualidade
deve-se excluir tudo o que eacute tiacutepico de uma dada eacutepoca de uma dada nacionalidade () de uma dada condiccedilatildeo social de uma dada idade todo o concreto de uma imagem de uma vida todas as minuacutecias desta as indicaccedilotildees precisas do tempo e do espaccedilo na accedilatildeo ndash tudo o que reforccedila a determinidade no ser de um dado indiviacuteduo e assim lhe diminui a autoridade (Bakhtin 2003 170)
Vecirc-se portanto a partir dessa breve anaacutelise que o gecircnero biacuteos hagiograacutefico mescla
caracteriacutesticas tanto do gecircnero biograacutefico ndash seja biacuteos ou romance biograacutefico - quanto da
hagiografia constituindo assim um gecircnero agrave parte
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2 CONTEXTO SOacuteCIO-HISTOacuteRICO
O relato do martiacuterio de Marino se tornou conhecido por meio da obra Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio bispo de Cesareacuteia no iniacutecio do seacuteculo IV Para Puech (1930 173)
ldquoEusegravebe est un meacutediocre theacuteologien et un meacutediocre eacutecrivain () mais il nous a rendu comme
historien et comme chronographe des services inestimablesrdquo De fato dificilmente teriacuteamos
acesso a esse texto se natildeo fosse o trabalho de Euseacutebio De acordo com a cronologia do bispo
a morte de Marino eacute situada entre os anos 260-261 dC Para o tradutor Musurillo (2000
xxxvi) essa data eacute bastante provaacutevel O comentaacuterio no relato de que todas as igrejas
desfrutavam de um periacuteodo de paz eacute o principal fator que leva a essa conclusatildeo No ano de
260 dC eacute promulgado o edito de Galieno o qual ldquoautoriza os liacutederes da Igreja a presidir
livremente as celebraccedilotildees religiosasrdquo (Silva 2006 250)
No entanto mesmo com as medidas favoraacuteveis por parte dos governantes o
cristianismo permanecia uma religio ilicita e portanto os cristatildeos ainda estavam sujeitos a
julgamento caso fossem delatados Foi o que aconteceu com o soldado Marino Uma vez
acusado de ser cristatildeo e de natildeo prestar culto ao imperador foi levado ao tribunal Eacute muito
provaacutevel que Marino tivesse vaacuterios colegas cristatildeos no exeacutercito que natildeo foram executados
porque ningueacutem aparecera para acusaacute-los A situaccedilatildeo dos cristatildeos era realmente
imprevisiacutevel Daniel-Rops (1988 346) comenta que no seacuteculo III essa constante mudanccedila de
humor por parte do Impeacuterio criou uma situaccedilatildeo sem precedentes ldquoComo um anciatildeo doente
que ora dormita inconsciente ou vagamente inquieto ignorando as impaciecircncias que o
rodeiam ora se irrita e ainda se mostra terriacutevel da mesma forma o Impeacuterio muda a todo o
momento de atitude Eacute isto o que daacute agraves perseguiccedilotildees do seacuteculo III um caraacuteter tatildeo diferente das
precedentesrdquo
Assim Marino foi o escolhido naquele momento de paz temporaacuteria Eles tinham
conhecimento da lei que estava em vigor desde a eacutepoca do imperador Trajano (110-111 dC)
quando este determinara ao governador Pliacutenio que os cristatildeos natildeo deveriam ser
sistematicamente perseguidos nem deveriam ser aceitas denuacutencias anocircnimas contra eles
(Gonzaacutelez 1995 64) A recomendaccedilatildeo dada a Pliacutenio havia sido adotada em todo o Impeacuterio
Uma vez acusados entretanto deveriam ser julgados Geralmente os cristatildeos eram levados
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ao tribunal em decorrecircncia de disputas locais como escrevem Danieacutelou amp Marrou (1966
105)
Conveacutem frisar que natildeo haacute proscriccedilatildeo de cristatildeos pelo poder central quer dizer natildeo haacute perseguiccedilatildeo total Em segundo lugar verificam-se ataques locais movidos pelo povo e depois submetidos agrave apreciaccedilatildeo do magistrado romano () Em terceiro lugar o motivo da perseguiccedilatildeo natildeo se liga a crimes determinados mas unicamente ao lsquonomersquo cristatildeo O levantamento feito por Pliacutenio levara mesmo agrave conclusatildeo de que eram inocentes os cristatildeos
Guignebert (1956 169-70) tambeacutem assinala que apesar de todas as acusaccedilotildees
nenhum crime recaiacutea sobre os cristatildeos
Varias acusaciones de derecho comuacuten se poniacutean en juego al mismo tiempo para agobiar a los fieles religioacuten iliacutecita sociedad secreta lesa majestad negativa de obediencia si se trataba de soldados ignavia es decir negligencia en el cumplimiento de los deberes de la vida puacuteblica y privada y hasta magia Por lo demaacutes estas acusaciones cuando se aplicaban a los cristianos presentaban la singularidad de que se desistia inmediatamente de ellas si el inculpado consentiacutea en decir que renunciaba a su feacute lo que permite suponer que en suma era la religioacuten cristiana solamente lo que se perseguia
Ainda assim os cristatildeos precisavam ser castigados porque ao insistirem na afirmaccedilatildeo
ldquoSou cristatildeordquo rebelavam-se contra os princiacutepios do Impeacuterio especialmente o do culto ao
imperador
Este delito tinha de ser castigado em primeiro lugar porque de outro modo diminuiria a autoridade desses tribunais e em segundo lugar porque ao negarem a adorar o imperador os cristatildeos estavam adotando uma atitude que nesse tempo se interpretava como rebeliatildeo contra a autoridade imperial Com efeito o culto ao imperador era um dos viacutenculos que uniam o Impeacuterio e negar-se em puacuteblico a render esse culto equivalia a romper esse viacutenculo (Gonzaacutelez 1995 66)
Novamente percebe-se o caraacuteter imprevisiacutevel da vida cristatilde Os autores reconhecem
que de uma maneira geral as comunidades cristatildes procuravam levar uma vida exemplar e
submissa agraves leis do Impeacuterio ldquoAs instruccedilotildees de civismo dadas pelos Apoacutestolos continuam a
ser observadas e os cristatildeos mostram-se na sua grande maioria cidadatildeos fieacuteis e devotados ao
bem puacuteblicordquo (Daniel-Rops 1988 345) Poreacutem quando levados a julgamento puacuteblico natildeo
aceitavam prestar culto a outro senhor aleacutem de Cristo
No tocante ao serviccedilo militar as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio nem sempre eram
tatildeo simples Na opiniatildeo de Guignebert (1956 166) isso se dava porque as obrigaccedilotildees
militares geralmente tinham uma forte ligaccedilatildeo com as praacuteticas religiosas pagatildes
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El servicio militar les resultaba odioso porque suponiacutea obligaciones idolaacutetricas y porque execraban la guerra su participacioacuten en el servicio civil les pareciacutea supeacuterflua sobre todo se rehusaban obstinadamente a tomar parte en ninguna de las manifestaciones de lealtad que el gobierno imperial reclamaba porque todas revestiacutean caraacutecter religioso
Do mesmo modo Daniel-Rops (1988 345) relata
casos de objeccedilatildeo de consciecircncia ao serviccedilo militar como acontece com um jovem soldado que exclama ldquoNatildeo me eacute permitido trazer ao pescoccedilo o signum (espeacutecie de placa de identidade usada no exeacutercito romano) porque fui marcado com o sinal de Cristordquo ou com um outro soldado que se recusou a colocar sobre a cabeccedila a coroa ritual dos sacrifiacutecios em honra do imperador Satildeo casos ainda excepcionais mas sintomaacuteticos a oposiccedilatildeo profunda entre Roma e a Igreja tende a passar do plano religioso para o plano ciacutevico e poliacutetico
A intervenccedilatildeo do plano religioso sobre o poliacutetico e vice-versa foi consequumlecircncia da
busca por parte dos romanos de um sistema seguro no qual pudessem se apoiar Com a
decadecircncia poliacutetica econocircmica e moral o nuacutemero de seitas e religiotildees se multiplicava
formando um quadro extremamente pluralista (cf Daniel-Rops 1988 307) Eacute no seacuteculo III
que a dinastia dos Severos se impotildee e juntamente com ela vecircm as tradiccedilotildees religiosas
orientais
El advenimiento con los Severos de principes africanos y sirios la dominacioacuten de mujeres penetradas de la piedade miacutestica de Oriente favorecieron su raacutepido desarollo y el siglo III conocioacute todas sus formas desde las maacutes groseras estrechamente emparentadas com la supersticioacuten pura hasta las maacutes refinadas modeladas pelas reflexiones de la filosofia que desde entonces tenderiacutea hacia lo divino (Guignebert 1956 119)
Neste panorama soacutecio-poliacutetico o cristianismo foi a religiatildeo abraccedilada por muitos
cidadatildeos natildeo soacute ldquotecelotildees pisoeiros e sapateirosrdquo mas tambeacutem ldquoadvogados como Satildeo
Gregoacuterio Taumaturgo ou Satildeo Cipriano de Cartago mulheres da sociedade como Santa
Perpeacutetua grandes burgueses da proviacutencia e lsquoclariacutessimosrsquo de famiacutelias senatoriaisrdquo (Daniel-
Rops 1988 317) Para Guignebert (1956 121) o contato da elite com o cristianismo se deu
essencialmente por meio dos escravos e da filosofia
a traveacutes de los esclavos llegoacute a las mujeres libres sus amas y accidentalmente atrajo la atencioacuten de algunos hombres instruiacutedos que buscaban la verdad divina Gracias a las primeras se insinuoacute en las classes altas gracias a los segundos tomoacute contacto con la filosofia en el curso del siglo II y las consecuencias de este encuentro fueron incalculables
Eacute importante relembrar que a filosofia pressupunha a escrita e tinha um forte viacutenculo
com a literatura Mesmo o cristianismo no seacuteculo III jaacute possuiacutea um consideraacutevel nuacutemero de
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textos apologeacuteticos que dialogavam diretamente com a filosofia grega e possibilitavam para
a elite o acesso agraves ideacuteias cristatildes (cf Alesso 2006 31)
O relato do martiacuterio do soldado Marino surge portanto nesse contexto soacutecio-histoacuterico
como um texto de grande relevacircncia para o cristianismo Primeiro porque o personagem
principal eacute um soldado Integrava o grupo social de maior prestiacutegio nessa eacutepoca Como dizia
Septiacutemio Severo aos seus filhos ldquoEnriquecei o soldado e zombai do restordquo (Daniel-Rops
1988 299) E como no seacuteculo III as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio tomam uma nova
configuraccedilatildeo o contraste entre essas duas instituiccedilotildees eacute um assunto central O embate deixa
de ser apenas religioso e passa a ser tambeacutem poliacutetico - fato que vai se confirmar no seacuteculo
IV
Em segundo lugar a posiccedilatildeo social do maacutertir levanta outra questatildeo Marino como
membro da elite poderia facilmente ter comprado o libellus ndash documento que comprovava o
sacrifiacutecio aos deuses romanos ndash e assim conseguir sua liberdade (cf Silva 2006 248)
Daniel-Rops (1988 367) detalha que os ricos eram mais propensos a comprar falsos
documentos e a desistir ldquoConforme os testemunhos que temos parece que eram sobretudo os
ricos os bem instalados aqueles a quem a vida tinha concedido todo o conforto e que natildeo
estavam dispostos a sacrificaacute-lordquo que renunciavam agrave feacute
Aleacutem de abrir matildeo de sua posiccedilatildeo social e dos privileacutegios que iria obter como
centuriatildeo Marino natildeo se deixou dominar pelo medo a principal razatildeo da apostasia segundo
Daniel-Rops (1988 367) Eacute importante lembrar que a perseguiccedilatildeo sob Deacutecio instaurada em
249 dC ainda era bastante recente Numa tentativa de restaurar a gloacuteria do Impeacuterio Deacutecio
havia promulgado uma lei que obrigava todos os suacuteditos a retomarem o culto aos deuses
romanos Para ele ldquose todos os suacuteditos do Impeacuterio voltassem a adorar os deuses
possivelmente os deuses voltariam a favorecer o Impeacuteriordquo (Gonzaacutelez 1995 138) O culto era
um elemento essencial para os romanos Era por meio dele que expressavam sua
religiosidade como escreve Arnauld (2001 15) ldquoLa lsquopietasrsquo (pieacuteteacute) eacutetait la caracteacuteristique
principale de la religiositeacute romaine () Cette lsquopietasrsquo srsquoexprimait en une observance stricte
des lois rituelles Religion signifiait culterdquo
O descumprimento da lei por parte dos cristatildeos provocou uma perseguiccedilatildeo que teve
como consequumlecircncia um grande nuacutemero de apostasias fato que chegou a causar divergecircncia de
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opiniatildeo entre os bispos Num novo periacuteodo de relativa paz era portanto de suma importacircncia
para a Igreja insistir que os cristatildeos permanecessem firmes em suas convicccedilotildees Como
observa Daniel-Rops (1988 367) ldquoesses periacuteodos de interrupccedilatildeo nas perseguiccedilotildees natildeo
ajudavam em nada a coragem dos fieacuteis durante os tempos de calma a mola distendia-se e
quando subitamente era preciso voltar a entrar em luta muitos se sentiam faltos de energiardquo
Assim o testemunho de Marino evidencia o conflito existente entre a Igreja e o
Impeacuterio e conclama de maneira didaacutetica a que os cristatildeos tenham a mesma disposiccedilatildeo
mesmo diante da possibilidade da apostasia e dos terrores de um novo periacuteodo de perseguiccedilatildeo
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3 TEXTO GREGO
Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου Μαρίνου
Κατὰ τούτους εἰρήνης ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης ἐν Καισαρείᾳ τῆς
Παλαιστίνης Μαρῖνος τῶν ἐν στρατείαις ἀξιώμασι τετιμημένων γένει τε
καὶ πλοὕτῳ περιφανὴς ἀνήρ διὰ τὴν Χριστοῦ μαρτυρίαν τὴν κεφαλὴν
ἀποτέμνεται τοιᾶσδε ἕνεκεν αἰτίας
2 τιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας φασίν
ἑκατοντάρχους γίνεσθαι Τόπου σχολάζοντος ἐπὶ τοῦτο προκοπῆς τὸν
Μαρῖνον ἡ τοῦ βαθμοῦ τάξις ἐκάλει ἤδη τε μέλλοντα τῆς τιμῆς ἔχεσθαι
Παρελθὼν ἄλλος πρὸ τοῦ βήματος μὴ ἐξεῖναι μὲν ἐκείνῳ τῆς Ῥωμαίων
μετέχειν ἀξίας κατὰ τοὺς παλαιοὺς νόμους Χριστιανῷ γε ὄντι καὶ τοῖς
βασιλεῦσι μὴ θύοντι κατηγόρει αὐτῷ δὲ ἐπιβάλλειν τὸν κλῆρον
3 ἐφ᾿ ᾧ κινηθέντα τὸν δικαστὴν (Ἀχαιὸς οὕτος ἧν) πρῶτον μὲν ἐρέσθαι
ποίας ὁ Μαρῖνος εἴη γνώμης ὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν ἐπιμόνως
ἑώρα τριῶν ὡρῶν ἐπιδοῦναι αὐτῷ εἰς ἐπίσκεψιν διάστημα
4 ἐκτὸς δῆτα γενόμενον αὐτὸν τοῦ δικαστηρίου Θεότεκνος ὁ τῇδε
ἐπίσκοπος ἀφέλκει προσελθὼν δι᾿ ὁμιλίας καὶ τῆς χειρὸς λαβὼν ἐπὶ τὴν
ἐκκλησίαν προάγει εἴσω τε πρὸς αὐτῷ στήσας τῷ ἁγιάσματι μικρόν τι
παραναστείλας αὐτοῦ τῆς χλαμύδος καὶ τὸ προσηρτημένον αὐτῷ ξίφος
ἐπιδείξας ἅμα τε ἀντιπαρατίθησι προσαγαγὼν αὐτῷ τὴν τῶν θείων
εὐαγγελίων γραψήν κελεύσας τῶν δυοῖν ἑλέσθαι τὸ κατὰ γνώμην ὡς δ᾿
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ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν
ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς
αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης
5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ
δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ
δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν
ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται
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4 TRADUCcedilAtildeO
O martiacuterio do Santo Marino
1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares
em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido
honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por
todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu
testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte
2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a
conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a
ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo
Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e
declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e
portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos
romanos Assim o cargo cairia para si
3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou
primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele
insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs
horas para refletir
4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era
bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela
matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando
um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo
tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos
exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem
hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas
ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno
ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo
5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para
o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se
apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute
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imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre
o seu fim
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5 COMENTAacuteRIOS
51 OS PERSONAGENS
Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em
um ponto da estrutura
Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola
Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal
familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute
exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um
homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos
movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do
texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave
autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado
guerreiro
O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo
dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo
para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A
denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma
preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega
Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o
exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees
do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio
militar portanto tinha um significado muito grande
Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas
informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou
compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem
disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo
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Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na
quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado
provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era
seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para
conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial
para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve
como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)
O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para
anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo
de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos
outros personagens no texto
52 ESTRUTURA
O texto pode ser subdividido em 5 partes
(i) Marino o soldado cristatildeo
A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no
espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo
A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de
captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a
expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo
(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo
A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio
narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo
apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal
(iii) Marino e o juiz a confissatildeo
A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente
que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir
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(iv) Marino e o bispo a decisatildeo
Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de
Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem
palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a
espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe
a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras
(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo
Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo
Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte
53 TEMPO E ESPACcedilO
O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto
para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης
ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor
Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e
a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII
12)
A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que
Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em
todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto
o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se
deram de maneira muito raacutepida
Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia
na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no
entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes
contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o
Cristianismo
30
O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno
poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por
Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo
tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito
cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera
propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz
que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os
sofrimentos corporais
Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte
54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS
O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de
diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um
detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga
essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de
martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)
Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte
A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da
distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no
entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor
31
A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra
no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios
desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica
Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com
Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma
narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute
portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a
noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007
8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente
engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo
No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no
uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo
εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por
ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento
por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann
2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que
eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega
amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e
decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo
do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio
ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento
emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado
comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como
afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva
de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a
forte presenccedila do aspecto emotivo
A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para
enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou
ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops
(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma
32
medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te
apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo
Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila
Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte
pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o
caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o
representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute
o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar
Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel
seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os
espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo
Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na
hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops
(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo
obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo
O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino
se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua
decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo
que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar
O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma
meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior
sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O
adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez
Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num
texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e
ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς
πίστεως τὴν προθυμίαν
Assim temos
33
Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)
darrdarrdarrdarr
Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo
darrdarrdarrdarr
Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo
O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas
uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado
pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν
ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente
detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita
conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui
coerecircncia ao texto
Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)
destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura
feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que
todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou
seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica
fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e
estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha
havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois
poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo
34
sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser
adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um
antagonismo fundamentalrdquo
O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de
Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo
substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo
ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos
esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no
texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino
Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos
durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e
por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que
a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino
Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη
ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto
o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων
o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος
o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις
o substantivo εἰρήνη
o substantivo μαρτυρία
Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e
formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado
35
A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes
por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)
honra romana (τιμή)
vide (κλῆμα)
centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)
reconhecimento passageiro e
terreno (ἀξιώμασι
τετιμημένων )
honra cristatilde (τιμή)
paz (εἰρήνη)
maacutertir (μάρτυρ)
reconhecimento eterno e divino
(τελειοῦται)
O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria
honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o
argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado
explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos
versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω
ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o
objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας
φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo
Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o
ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ
τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela
feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)
36
Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha
pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento
terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo
ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na
comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o
cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)
Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito
mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp
Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo
por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute
essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto
O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por
exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer
voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do
termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que
ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to
the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις
Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de
um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados
Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor
menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A
acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os
personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado
numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo
de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute
em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz
37
como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da
acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade
interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se
constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio
por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os
imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao
registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o
mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)
A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das
intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que
como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos
entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo
38
CONCLUSAtildeO
O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e
produtivo sob vaacuterios aspectos
Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual
gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A
percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a
ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os
primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma
instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na
literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um
pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os
cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo
- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura
No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do
texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico
durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e
consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa
ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias
da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna
centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o
posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos
fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento
A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se
compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao
bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se
mostrar complacente
39
Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os
cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de
sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem
como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como
um substituto aos espetaacuteculos romanos
Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave
plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos
Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o
que deu origem ao culto dos santos
Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda
precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos
possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados
ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται
presente no texto traduzido e em outros relatos
Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais
utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e
posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma
melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande
auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo
cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade
proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses
novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde
40
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43
ANEXOS
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)
[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1
1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em
Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um
tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua
linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte
2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles
que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o
escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a
honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo
as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que
era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a
ele
3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a
Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que
era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse
4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e
afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma
vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o
manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e
contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as
duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a
direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -
manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que
escolheste Vai em pazrdquo
1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu
este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer
casos como o de Marino [nota do Editor]
44
5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de
novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado
Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua
feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado
45
TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)
During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in
Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and
was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It
came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour
and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and
according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he
was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and
attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and
should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to
the ancient laws but that instead the post should fall to himself
It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he
first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed
that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had
Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside
in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed
Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword
attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it
before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out
his right hand and took the divine writings
lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him
may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo
No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the
tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and
showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to
execution and so found his fulfilment
14
Los geacuteneros en todas sus formas y subformas son el suporte estructural para la transmisioacuten de un ideario y lo fueron de modo especial en el trasvase de los contenidos que provenientes de la antiguumledad se imbricaron en el cristianismo de los Padres Aunque su relacioacuten com la criacutetica sociohistoacuterica es marginal los geacuteneros son indudables portadores de significacioacuten cuando interesan a la evolucioacuten de paraacutemetros poliacutetico culturales que intervinieran en la construccioacuten del edificio ideoloacutegico de la teologiacutea cristiana
O fortalecimento da literatura cristatilde foi enfim um fator essencial para a difusatildeo do
Cristianismo porque ajudou a organizaacute-lo como instituiccedilatildeo Por meio da literatura o
Cristianismo conseguiu alcanccedilar pessoas de todos os lugares e de todas as classes sociais
inclusive as pertencentes agrave elite que conforme Daniel-Rops (1988 305) sentiam o decliacutenio
do Impeacuterio que chegava ateacute mesmo ao acircmbito literaacuterio e artiacutestico
12 AS CARACTERIacuteSTICAS LITERAacuteRIAS FORMAIS
Quanto agraves caracteriacutesticas formais que podem ser levadas em conta para a classificaccedilatildeo
do gecircnero os relatos de martiacuterio mesclam traccedilos tanto do gecircnero biograacutefico quanto do
discurso hagiograacutefico
Os relatos de martiacuterio natildeo podem ser classificados categoricamente como biacuteoi pois
natildeo chegam a constituir uma biografia de fato Tambeacutem natildeo podem ser classificados como
hagiografia em sentido exclusivo porque como afirma Delehaye (apud Uytfanghe 1993
146) esta eacute muito abrangente inclui ldquotodo documento escrito inspirado pelo culto dos santos
e destinado a promovecirc-lordquo Assim o que se verifica eacute um entrecruzamento de gecircneros Isso
ocorre porque os gecircneros satildeo como afirma Alesso (2006 29) sistemas abertos ldquolas
invariantes coexisten con las variables y no podemos condenarlos y condenarnos a una
esquematizacioacuten extrema porque perderiacuteamos de vista uno de los objetivos primordiales la
finalidad del contenidordquo Por essa razatildeo adotamos neste trabalho a definiccedilatildeo biacuteos
hagiograacutefico introduzida por Ipiranga Juacutenior (2006 9)
Segundo Momigliano (1971 25) os gregos jaacute possuiacuteam o haacutebito de redigir biografias
no seacuteculo V aC mas foi no periacuteodo heleniacutestico que ele se intensificou e o gecircnero recebeu um
nome especiacutefico ldquobien qui nous conaissions lrsquoexistence de biographies et peut-ecirctre
drsquoautobiographies degraves le cinquiegraveme siegravecle avant JC crsquoest seulement agrave lrsquoeacutepoque helleacutenistique
15
que la biographie devient une notion precise et acquiert un nom en propre Ce nome est lsquobiosrsquo
ndash et non lsquobiographiarsquordquo
Para Bakhtin (2003 138) entretanto a biografia como romance surgiu apenas no fim
da Idade Meacutedia Durante os seacuteculos II-IV dC ainda era uma forma literaacuteria em formaccedilatildeo
Mesmo tendo em mente a distacircncia cronoloacutegica entre os martyria e o romance biograacutefico ao
qual Bakhtin se refere eacute possiacutevel perceber semelhanccedilas entre os dois
A primeira delas eacute a presenccedila do heroacutei com valores do tipo bravura honradez
magnanimidade e generosidade (cf Bakhtin 2003 142 147) Ao abrir matildeo de posiccedilotildees
poliacuteticas e religiosas ao enfrentar perigos sofrimentos torturas e feras sem renunciar agrave feacute o
maacutertir eacute visto como um heroacutei pela comunidade cristatilde Ele ldquotorna-se uma espeacutecie de ponto
focal da vida da comunidade que o circunda de veneraccedilatildeo considerando-o jaacute em contato com
Deus capaz de profetizar e de pronunciar-se com uma autoridade especial tambeacutem sobre
questotildees eclesiaacutesticasrdquo (Moreschini amp Norelli 2000 297) Morrer por sua feacute eacute o ato supremo
de glorificaccedilatildeo para os primeiros cristatildeos E eacute por meio dessa glorificaccedilatildeo de acordo com as
palavras de Bakhtin (2003 143) que o heroacutei consegue alcanccedilar a consciecircncia de uma
determinada sociedade incutindo assim novos valores
A aspiraccedilatildeo agrave gloacuteria organiza a vida do heroacutei ingecircnuo a gloacuteria organiza tambeacutem a narraccedilatildeo da sua vida sua glorificaccedilatildeo Aspirar agrave gloacuteria eacute tomar consciecircncia de si na sociedade culta e histoacuterica dos homens (ou na naccedilatildeo) eacute afirmar e construir sua vida na possiacutevel consciecircncia dessa sociedade humana eacute crescer natildeo em si nem para si mas nos outros ou para os outros eacute ocupar um lugar no mundo imediato dos contemporacircneos e descendentes
A segunda semelhanccedila detectada entre os gecircneros biograacutefico e biacuteos hagiograacutefico eacute a
relaccedilatildeo de empatia que se estabelece entre autor-personagem Segundo Bakhtin (2003 150)
autor e personagem compartilham obrigatoriamente os mesmos valores ldquona biografia o
autor natildeo soacute combina com a personagem na feacute nas convicccedilotildees e no amor mas tambeacutem em
sua criaccedilatildeo artiacutestica (sincreacutetica) tomando como guia os mesmos valores que a personagem
em sua vida esteacuteticardquo Embora o autor do martiacuterio do soldado Marino natildeo seja explicitado eacute
possiacutevel inferir pelo texto que o interesse de registrar o fato tenha partido natildeo de algueacutem que
simplesmente compartilhava com ele a situaccedilatildeo de soldado do exeacutercito romano mas sim de
algueacutem que dividia os mesmos valores cristatildeos
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Quanto agrave modalidade do romance a relaccedilatildeo entre os gecircneros biacuteos hagiograacutefico e
biograacutefico tambeacutem eacute possiacutevel Bakhtin (2003 205) identifica quatro modelos de romance
ldquosegundo o princiacutepio de construccedilatildeo da imagem da personagem central o romance de viagens
o romance de provaccedilatildeo da personagem o romance biograacutefico (autobiograacutefico) o romance de
educaccedilatildeordquo Ora por ser um gecircnero hiacutebrido a personagem principal do biacuteos hagiograacutefico
mescla caracteriacutesticas tanto do romance de provaccedilatildeo quanto do romance biograacutefico
Para Bakhtin (2003 207) o romance de provaccedilatildeo divide-se em duas modalidades ldquoA
primeira modalidade eacute representada pelo romance grego (A Etioacutepica Leucipo e Cleitofon
etc) A segunda modalidade eacute representada pelas hagiografias do iniacutecio do cristianismo
(particularmente dos maacutertires)rdquo O objetivo das provaccedilotildees neste tipo de romance eacute mudar a
opiniatildeo e os valores do heroacutei Como nos relatos de martiacuterio os cristatildeos natildeo renunciam a sua
feacute natildeo haacute mutabilidade Logo o maacutertir aproxima-se do conceito de heroacutei da provaccedilatildeo ele ldquoeacute
acabado e predeterminado as experimentaccedilotildees (sofrimentos seduccedilotildees duacutevidas) natildeo se
tornam para ele uma experiecircncia formadora nem a modificam e nessa imutabilidade da
personagem estaacute toda questatildeordquo (Bakhtin 2003 209)
Aleacutem disso no romance de provaccedilatildeo o personagem eacute o centro Natildeo importam os
costumes ou lugares exoacuteticos como no romance de viagens O personagem natildeo eacute modificado
de forma determinante pelo mundo nem o modifica
Entre o heroacutei e o mundo natildeo existe interaccedilatildeo autecircntica o mundo natildeo eacute capaz de mudar o heroacutei ele apenas o experimenta e o heroacutei natildeo influencia o mundo natildeo lhe muda a face ao passar pela provaccedilatildeo ao afastar seus inimigos etc o heroacutei deixa no mundo tudo nos seus lugares natildeo modifica a face social do mundo natildeo o reconstroacutei e aliaacutes nem tem essa pretensatildeo (Bakhtin 2003 212)
Eacute exatamente esta a situaccedilatildeo observada no texto em anaacutelise A crise pela qual passa o
personagem Marino natildeo eacute capaz de alterar suas convicccedilotildees nem de mudar o curso normal dos
acontecimentos agrave parte de sua vida o exeacutercito continuaraacute existindo uma outra pessoa tomaraacute
o seu lugar e tudo continuaraacute funcionando sob os mesmos princiacutepios
Quanto ao romance biograacutefico Bakhtin (2003 213) considera que assim como o
romance de provaccedilatildeo ele ldquoeacute preparado ainda em solo antigo nas biografias antigas
autobiografias e confissotildees do periacuteodo inicial do cristianismo (terminando em Agostinho)rdquo
O gecircnero biacuteos hagiograacutefico estabelece contatos com esse tipo de romance por meio do
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enredo Como o romance biograacutefico tem como elemento principal a narraccedilatildeo da trajetoacuteria
vital de um determinado personagem ou seja tem como base justamente aqueles ldquoelementos
existentes antes do iniacutecio ou depois do teacutermino do romance de provaccedilatildeordquo (Ibid) engloba
necessariamente o relato da morte fato fundamental para o surgimento de um maacutertir na
concepccedilatildeo cristatilde
No romance biograacutefico a relaccedilatildeo da personagem com o mundo ganha um enfoque
diferente daquele verificado no romance de viagens ou no de provaccedilatildeo Bakhtin (2003 215)
verifica que ldquoPersonagens secundaacuterias paiacuteses cidades objetos etc integram o romance
biograacutefico por vias substanciais e ganham uma relaccedilatildeo igualmente substancial com o todo
vital da personagem centralrdquo Paradoxalmente o relato do soldado Marino apresenta tambeacutem
esse aspecto Embora ele permanecesse inabalaacutevel em sua decisatildeo de natildeo negar a feacute cristatilde
antes de o juiz lhe conceder um tempo para refletir eacute no encontro com o bispo Teotecno e
principalmente apoacutes o confronto com um objeto de grande valor ndash as Escrituras ndash que
Marino segue resoluto para o tribunal
Bakhtin tambeacutem escreve sobre o gecircnero hagiograacutefico embora com mais cautela Para
o autor (2003 169-70) ldquoa hagiografia se realiza diretamente no mundo do divinordquo Por se
tratar de um plano diferenciado em que ldquoa atitude reverente do autor natildeo deixa espaccedilo agrave
iniciativa individualrdquo (2003 170) Bakhtin prefere manter a mesma distacircncia Assim limita-
se em dizer que a hagiografia ldquorecorre a formas tradicionalmente sagradasrdquo (Ibid)
No aspecto formal os relatos de martiacuterio possuem de fato vaacuterias semelhanccedilas e um
fundamento em comum que satildeo os processos verbais No entanto ainda natildeo existe entre os
seacuteculos II e IV dC essa preocupaccedilatildeo ou esse rigor com a forma com a exclusatildeo de todo
elemento que possa remeter agrave individualidade
deve-se excluir tudo o que eacute tiacutepico de uma dada eacutepoca de uma dada nacionalidade () de uma dada condiccedilatildeo social de uma dada idade todo o concreto de uma imagem de uma vida todas as minuacutecias desta as indicaccedilotildees precisas do tempo e do espaccedilo na accedilatildeo ndash tudo o que reforccedila a determinidade no ser de um dado indiviacuteduo e assim lhe diminui a autoridade (Bakhtin 2003 170)
Vecirc-se portanto a partir dessa breve anaacutelise que o gecircnero biacuteos hagiograacutefico mescla
caracteriacutesticas tanto do gecircnero biograacutefico ndash seja biacuteos ou romance biograacutefico - quanto da
hagiografia constituindo assim um gecircnero agrave parte
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2 CONTEXTO SOacuteCIO-HISTOacuteRICO
O relato do martiacuterio de Marino se tornou conhecido por meio da obra Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio bispo de Cesareacuteia no iniacutecio do seacuteculo IV Para Puech (1930 173)
ldquoEusegravebe est un meacutediocre theacuteologien et un meacutediocre eacutecrivain () mais il nous a rendu comme
historien et comme chronographe des services inestimablesrdquo De fato dificilmente teriacuteamos
acesso a esse texto se natildeo fosse o trabalho de Euseacutebio De acordo com a cronologia do bispo
a morte de Marino eacute situada entre os anos 260-261 dC Para o tradutor Musurillo (2000
xxxvi) essa data eacute bastante provaacutevel O comentaacuterio no relato de que todas as igrejas
desfrutavam de um periacuteodo de paz eacute o principal fator que leva a essa conclusatildeo No ano de
260 dC eacute promulgado o edito de Galieno o qual ldquoautoriza os liacutederes da Igreja a presidir
livremente as celebraccedilotildees religiosasrdquo (Silva 2006 250)
No entanto mesmo com as medidas favoraacuteveis por parte dos governantes o
cristianismo permanecia uma religio ilicita e portanto os cristatildeos ainda estavam sujeitos a
julgamento caso fossem delatados Foi o que aconteceu com o soldado Marino Uma vez
acusado de ser cristatildeo e de natildeo prestar culto ao imperador foi levado ao tribunal Eacute muito
provaacutevel que Marino tivesse vaacuterios colegas cristatildeos no exeacutercito que natildeo foram executados
porque ningueacutem aparecera para acusaacute-los A situaccedilatildeo dos cristatildeos era realmente
imprevisiacutevel Daniel-Rops (1988 346) comenta que no seacuteculo III essa constante mudanccedila de
humor por parte do Impeacuterio criou uma situaccedilatildeo sem precedentes ldquoComo um anciatildeo doente
que ora dormita inconsciente ou vagamente inquieto ignorando as impaciecircncias que o
rodeiam ora se irrita e ainda se mostra terriacutevel da mesma forma o Impeacuterio muda a todo o
momento de atitude Eacute isto o que daacute agraves perseguiccedilotildees do seacuteculo III um caraacuteter tatildeo diferente das
precedentesrdquo
Assim Marino foi o escolhido naquele momento de paz temporaacuteria Eles tinham
conhecimento da lei que estava em vigor desde a eacutepoca do imperador Trajano (110-111 dC)
quando este determinara ao governador Pliacutenio que os cristatildeos natildeo deveriam ser
sistematicamente perseguidos nem deveriam ser aceitas denuacutencias anocircnimas contra eles
(Gonzaacutelez 1995 64) A recomendaccedilatildeo dada a Pliacutenio havia sido adotada em todo o Impeacuterio
Uma vez acusados entretanto deveriam ser julgados Geralmente os cristatildeos eram levados
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ao tribunal em decorrecircncia de disputas locais como escrevem Danieacutelou amp Marrou (1966
105)
Conveacutem frisar que natildeo haacute proscriccedilatildeo de cristatildeos pelo poder central quer dizer natildeo haacute perseguiccedilatildeo total Em segundo lugar verificam-se ataques locais movidos pelo povo e depois submetidos agrave apreciaccedilatildeo do magistrado romano () Em terceiro lugar o motivo da perseguiccedilatildeo natildeo se liga a crimes determinados mas unicamente ao lsquonomersquo cristatildeo O levantamento feito por Pliacutenio levara mesmo agrave conclusatildeo de que eram inocentes os cristatildeos
Guignebert (1956 169-70) tambeacutem assinala que apesar de todas as acusaccedilotildees
nenhum crime recaiacutea sobre os cristatildeos
Varias acusaciones de derecho comuacuten se poniacutean en juego al mismo tiempo para agobiar a los fieles religioacuten iliacutecita sociedad secreta lesa majestad negativa de obediencia si se trataba de soldados ignavia es decir negligencia en el cumplimiento de los deberes de la vida puacuteblica y privada y hasta magia Por lo demaacutes estas acusaciones cuando se aplicaban a los cristianos presentaban la singularidad de que se desistia inmediatamente de ellas si el inculpado consentiacutea en decir que renunciaba a su feacute lo que permite suponer que en suma era la religioacuten cristiana solamente lo que se perseguia
Ainda assim os cristatildeos precisavam ser castigados porque ao insistirem na afirmaccedilatildeo
ldquoSou cristatildeordquo rebelavam-se contra os princiacutepios do Impeacuterio especialmente o do culto ao
imperador
Este delito tinha de ser castigado em primeiro lugar porque de outro modo diminuiria a autoridade desses tribunais e em segundo lugar porque ao negarem a adorar o imperador os cristatildeos estavam adotando uma atitude que nesse tempo se interpretava como rebeliatildeo contra a autoridade imperial Com efeito o culto ao imperador era um dos viacutenculos que uniam o Impeacuterio e negar-se em puacuteblico a render esse culto equivalia a romper esse viacutenculo (Gonzaacutelez 1995 66)
Novamente percebe-se o caraacuteter imprevisiacutevel da vida cristatilde Os autores reconhecem
que de uma maneira geral as comunidades cristatildes procuravam levar uma vida exemplar e
submissa agraves leis do Impeacuterio ldquoAs instruccedilotildees de civismo dadas pelos Apoacutestolos continuam a
ser observadas e os cristatildeos mostram-se na sua grande maioria cidadatildeos fieacuteis e devotados ao
bem puacuteblicordquo (Daniel-Rops 1988 345) Poreacutem quando levados a julgamento puacuteblico natildeo
aceitavam prestar culto a outro senhor aleacutem de Cristo
No tocante ao serviccedilo militar as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio nem sempre eram
tatildeo simples Na opiniatildeo de Guignebert (1956 166) isso se dava porque as obrigaccedilotildees
militares geralmente tinham uma forte ligaccedilatildeo com as praacuteticas religiosas pagatildes
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El servicio militar les resultaba odioso porque suponiacutea obligaciones idolaacutetricas y porque execraban la guerra su participacioacuten en el servicio civil les pareciacutea supeacuterflua sobre todo se rehusaban obstinadamente a tomar parte en ninguna de las manifestaciones de lealtad que el gobierno imperial reclamaba porque todas revestiacutean caraacutecter religioso
Do mesmo modo Daniel-Rops (1988 345) relata
casos de objeccedilatildeo de consciecircncia ao serviccedilo militar como acontece com um jovem soldado que exclama ldquoNatildeo me eacute permitido trazer ao pescoccedilo o signum (espeacutecie de placa de identidade usada no exeacutercito romano) porque fui marcado com o sinal de Cristordquo ou com um outro soldado que se recusou a colocar sobre a cabeccedila a coroa ritual dos sacrifiacutecios em honra do imperador Satildeo casos ainda excepcionais mas sintomaacuteticos a oposiccedilatildeo profunda entre Roma e a Igreja tende a passar do plano religioso para o plano ciacutevico e poliacutetico
A intervenccedilatildeo do plano religioso sobre o poliacutetico e vice-versa foi consequumlecircncia da
busca por parte dos romanos de um sistema seguro no qual pudessem se apoiar Com a
decadecircncia poliacutetica econocircmica e moral o nuacutemero de seitas e religiotildees se multiplicava
formando um quadro extremamente pluralista (cf Daniel-Rops 1988 307) Eacute no seacuteculo III
que a dinastia dos Severos se impotildee e juntamente com ela vecircm as tradiccedilotildees religiosas
orientais
El advenimiento con los Severos de principes africanos y sirios la dominacioacuten de mujeres penetradas de la piedade miacutestica de Oriente favorecieron su raacutepido desarollo y el siglo III conocioacute todas sus formas desde las maacutes groseras estrechamente emparentadas com la supersticioacuten pura hasta las maacutes refinadas modeladas pelas reflexiones de la filosofia que desde entonces tenderiacutea hacia lo divino (Guignebert 1956 119)
Neste panorama soacutecio-poliacutetico o cristianismo foi a religiatildeo abraccedilada por muitos
cidadatildeos natildeo soacute ldquotecelotildees pisoeiros e sapateirosrdquo mas tambeacutem ldquoadvogados como Satildeo
Gregoacuterio Taumaturgo ou Satildeo Cipriano de Cartago mulheres da sociedade como Santa
Perpeacutetua grandes burgueses da proviacutencia e lsquoclariacutessimosrsquo de famiacutelias senatoriaisrdquo (Daniel-
Rops 1988 317) Para Guignebert (1956 121) o contato da elite com o cristianismo se deu
essencialmente por meio dos escravos e da filosofia
a traveacutes de los esclavos llegoacute a las mujeres libres sus amas y accidentalmente atrajo la atencioacuten de algunos hombres instruiacutedos que buscaban la verdad divina Gracias a las primeras se insinuoacute en las classes altas gracias a los segundos tomoacute contacto con la filosofia en el curso del siglo II y las consecuencias de este encuentro fueron incalculables
Eacute importante relembrar que a filosofia pressupunha a escrita e tinha um forte viacutenculo
com a literatura Mesmo o cristianismo no seacuteculo III jaacute possuiacutea um consideraacutevel nuacutemero de
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textos apologeacuteticos que dialogavam diretamente com a filosofia grega e possibilitavam para
a elite o acesso agraves ideacuteias cristatildes (cf Alesso 2006 31)
O relato do martiacuterio do soldado Marino surge portanto nesse contexto soacutecio-histoacuterico
como um texto de grande relevacircncia para o cristianismo Primeiro porque o personagem
principal eacute um soldado Integrava o grupo social de maior prestiacutegio nessa eacutepoca Como dizia
Septiacutemio Severo aos seus filhos ldquoEnriquecei o soldado e zombai do restordquo (Daniel-Rops
1988 299) E como no seacuteculo III as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio tomam uma nova
configuraccedilatildeo o contraste entre essas duas instituiccedilotildees eacute um assunto central O embate deixa
de ser apenas religioso e passa a ser tambeacutem poliacutetico - fato que vai se confirmar no seacuteculo
IV
Em segundo lugar a posiccedilatildeo social do maacutertir levanta outra questatildeo Marino como
membro da elite poderia facilmente ter comprado o libellus ndash documento que comprovava o
sacrifiacutecio aos deuses romanos ndash e assim conseguir sua liberdade (cf Silva 2006 248)
Daniel-Rops (1988 367) detalha que os ricos eram mais propensos a comprar falsos
documentos e a desistir ldquoConforme os testemunhos que temos parece que eram sobretudo os
ricos os bem instalados aqueles a quem a vida tinha concedido todo o conforto e que natildeo
estavam dispostos a sacrificaacute-lordquo que renunciavam agrave feacute
Aleacutem de abrir matildeo de sua posiccedilatildeo social e dos privileacutegios que iria obter como
centuriatildeo Marino natildeo se deixou dominar pelo medo a principal razatildeo da apostasia segundo
Daniel-Rops (1988 367) Eacute importante lembrar que a perseguiccedilatildeo sob Deacutecio instaurada em
249 dC ainda era bastante recente Numa tentativa de restaurar a gloacuteria do Impeacuterio Deacutecio
havia promulgado uma lei que obrigava todos os suacuteditos a retomarem o culto aos deuses
romanos Para ele ldquose todos os suacuteditos do Impeacuterio voltassem a adorar os deuses
possivelmente os deuses voltariam a favorecer o Impeacuteriordquo (Gonzaacutelez 1995 138) O culto era
um elemento essencial para os romanos Era por meio dele que expressavam sua
religiosidade como escreve Arnauld (2001 15) ldquoLa lsquopietasrsquo (pieacuteteacute) eacutetait la caracteacuteristique
principale de la religiositeacute romaine () Cette lsquopietasrsquo srsquoexprimait en une observance stricte
des lois rituelles Religion signifiait culterdquo
O descumprimento da lei por parte dos cristatildeos provocou uma perseguiccedilatildeo que teve
como consequumlecircncia um grande nuacutemero de apostasias fato que chegou a causar divergecircncia de
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opiniatildeo entre os bispos Num novo periacuteodo de relativa paz era portanto de suma importacircncia
para a Igreja insistir que os cristatildeos permanecessem firmes em suas convicccedilotildees Como
observa Daniel-Rops (1988 367) ldquoesses periacuteodos de interrupccedilatildeo nas perseguiccedilotildees natildeo
ajudavam em nada a coragem dos fieacuteis durante os tempos de calma a mola distendia-se e
quando subitamente era preciso voltar a entrar em luta muitos se sentiam faltos de energiardquo
Assim o testemunho de Marino evidencia o conflito existente entre a Igreja e o
Impeacuterio e conclama de maneira didaacutetica a que os cristatildeos tenham a mesma disposiccedilatildeo
mesmo diante da possibilidade da apostasia e dos terrores de um novo periacuteodo de perseguiccedilatildeo
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3 TEXTO GREGO
Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου Μαρίνου
Κατὰ τούτους εἰρήνης ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης ἐν Καισαρείᾳ τῆς
Παλαιστίνης Μαρῖνος τῶν ἐν στρατείαις ἀξιώμασι τετιμημένων γένει τε
καὶ πλοὕτῳ περιφανὴς ἀνήρ διὰ τὴν Χριστοῦ μαρτυρίαν τὴν κεφαλὴν
ἀποτέμνεται τοιᾶσδε ἕνεκεν αἰτίας
2 τιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας φασίν
ἑκατοντάρχους γίνεσθαι Τόπου σχολάζοντος ἐπὶ τοῦτο προκοπῆς τὸν
Μαρῖνον ἡ τοῦ βαθμοῦ τάξις ἐκάλει ἤδη τε μέλλοντα τῆς τιμῆς ἔχεσθαι
Παρελθὼν ἄλλος πρὸ τοῦ βήματος μὴ ἐξεῖναι μὲν ἐκείνῳ τῆς Ῥωμαίων
μετέχειν ἀξίας κατὰ τοὺς παλαιοὺς νόμους Χριστιανῷ γε ὄντι καὶ τοῖς
βασιλεῦσι μὴ θύοντι κατηγόρει αὐτῷ δὲ ἐπιβάλλειν τὸν κλῆρον
3 ἐφ᾿ ᾧ κινηθέντα τὸν δικαστὴν (Ἀχαιὸς οὕτος ἧν) πρῶτον μὲν ἐρέσθαι
ποίας ὁ Μαρῖνος εἴη γνώμης ὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν ἐπιμόνως
ἑώρα τριῶν ὡρῶν ἐπιδοῦναι αὐτῷ εἰς ἐπίσκεψιν διάστημα
4 ἐκτὸς δῆτα γενόμενον αὐτὸν τοῦ δικαστηρίου Θεότεκνος ὁ τῇδε
ἐπίσκοπος ἀφέλκει προσελθὼν δι᾿ ὁμιλίας καὶ τῆς χειρὸς λαβὼν ἐπὶ τὴν
ἐκκλησίαν προάγει εἴσω τε πρὸς αὐτῷ στήσας τῷ ἁγιάσματι μικρόν τι
παραναστείλας αὐτοῦ τῆς χλαμύδος καὶ τὸ προσηρτημένον αὐτῷ ξίφος
ἐπιδείξας ἅμα τε ἀντιπαρατίθησι προσαγαγὼν αὐτῷ τὴν τῶν θείων
εὐαγγελίων γραψήν κελεύσας τῶν δυοῖν ἑλέσθαι τὸ κατὰ γνώμην ὡς δ᾿
24
ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν
ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς
αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης
5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ
δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ
δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν
ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται
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4 TRADUCcedilAtildeO
O martiacuterio do Santo Marino
1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares
em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido
honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por
todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu
testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte
2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a
conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a
ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo
Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e
declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e
portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos
romanos Assim o cargo cairia para si
3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou
primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele
insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs
horas para refletir
4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era
bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela
matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando
um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo
tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos
exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem
hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas
ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno
ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo
5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para
o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se
apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute
26
imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre
o seu fim
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5 COMENTAacuteRIOS
51 OS PERSONAGENS
Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em
um ponto da estrutura
Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola
Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal
familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute
exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um
homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos
movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do
texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave
autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado
guerreiro
O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo
dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo
para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A
denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma
preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega
Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o
exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees
do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio
militar portanto tinha um significado muito grande
Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas
informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou
compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem
disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo
28
Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na
quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado
provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era
seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para
conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial
para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve
como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)
O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para
anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo
de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos
outros personagens no texto
52 ESTRUTURA
O texto pode ser subdividido em 5 partes
(i) Marino o soldado cristatildeo
A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no
espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo
A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de
captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a
expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo
(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo
A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio
narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo
apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal
(iii) Marino e o juiz a confissatildeo
A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente
que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir
29
(iv) Marino e o bispo a decisatildeo
Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de
Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem
palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a
espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe
a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras
(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo
Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo
Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte
53 TEMPO E ESPACcedilO
O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto
para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης
ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor
Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e
a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII
12)
A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que
Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em
todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto
o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se
deram de maneira muito raacutepida
Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia
na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no
entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes
contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o
Cristianismo
30
O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno
poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por
Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo
tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito
cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera
propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz
que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os
sofrimentos corporais
Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte
54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS
O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de
diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um
detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga
essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de
martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)
Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte
A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da
distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no
entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor
31
A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra
no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios
desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica
Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com
Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma
narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute
portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a
noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007
8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente
engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo
No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no
uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo
εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por
ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento
por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann
2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que
eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega
amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e
decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo
do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio
ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento
emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado
comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como
afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva
de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a
forte presenccedila do aspecto emotivo
A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para
enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou
ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops
(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma
32
medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te
apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo
Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila
Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte
pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o
caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o
representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute
o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar
Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel
seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os
espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo
Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na
hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops
(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo
obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo
O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino
se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua
decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo
que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar
O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma
meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior
sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O
adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez
Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num
texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e
ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς
πίστεως τὴν προθυμίαν
Assim temos
33
Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)
darrdarrdarrdarr
Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo
darrdarrdarrdarr
Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo
O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas
uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado
pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν
ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente
detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita
conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui
coerecircncia ao texto
Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)
destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura
feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que
todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou
seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica
fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e
estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha
havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois
poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo
34
sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser
adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um
antagonismo fundamentalrdquo
O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de
Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo
substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo
ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos
esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no
texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino
Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos
durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e
por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que
a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino
Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη
ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto
o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων
o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος
o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις
o substantivo εἰρήνη
o substantivo μαρτυρία
Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e
formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado
35
A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes
por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)
honra romana (τιμή)
vide (κλῆμα)
centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)
reconhecimento passageiro e
terreno (ἀξιώμασι
τετιμημένων )
honra cristatilde (τιμή)
paz (εἰρήνη)
maacutertir (μάρτυρ)
reconhecimento eterno e divino
(τελειοῦται)
O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria
honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o
argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado
explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos
versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω
ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o
objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας
φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo
Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o
ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ
τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela
feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)
36
Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha
pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento
terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo
ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na
comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o
cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)
Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito
mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp
Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo
por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute
essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto
O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por
exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer
voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do
termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que
ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to
the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις
Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de
um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados
Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor
menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A
acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os
personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado
numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo
de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute
em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz
37
como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da
acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade
interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se
constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio
por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os
imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao
registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o
mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)
A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das
intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que
como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos
entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo
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CONCLUSAtildeO
O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e
produtivo sob vaacuterios aspectos
Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual
gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A
percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a
ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os
primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma
instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na
literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um
pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os
cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo
- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura
No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do
texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico
durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e
consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa
ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias
da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna
centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o
posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos
fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento
A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se
compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao
bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se
mostrar complacente
39
Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os
cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de
sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem
como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como
um substituto aos espetaacuteculos romanos
Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave
plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos
Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o
que deu origem ao culto dos santos
Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda
precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos
possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados
ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται
presente no texto traduzido e em outros relatos
Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais
utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e
posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma
melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande
auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo
cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade
proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses
novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde
40
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ANEXOS
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)
[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1
1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em
Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um
tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua
linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte
2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles
que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o
escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a
honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo
as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que
era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a
ele
3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a
Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que
era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse
4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e
afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma
vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o
manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e
contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as
duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a
direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -
manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que
escolheste Vai em pazrdquo
1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu
este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer
casos como o de Marino [nota do Editor]
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5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de
novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado
Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua
feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado
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TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)
During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in
Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and
was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It
came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour
and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and
according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he
was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and
attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and
should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to
the ancient laws but that instead the post should fall to himself
It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he
first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed
that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had
Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside
in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed
Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword
attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it
before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out
his right hand and took the divine writings
lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him
may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo
No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the
tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and
showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to
execution and so found his fulfilment
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que la biographie devient une notion precise et acquiert un nom en propre Ce nome est lsquobiosrsquo
ndash et non lsquobiographiarsquordquo
Para Bakhtin (2003 138) entretanto a biografia como romance surgiu apenas no fim
da Idade Meacutedia Durante os seacuteculos II-IV dC ainda era uma forma literaacuteria em formaccedilatildeo
Mesmo tendo em mente a distacircncia cronoloacutegica entre os martyria e o romance biograacutefico ao
qual Bakhtin se refere eacute possiacutevel perceber semelhanccedilas entre os dois
A primeira delas eacute a presenccedila do heroacutei com valores do tipo bravura honradez
magnanimidade e generosidade (cf Bakhtin 2003 142 147) Ao abrir matildeo de posiccedilotildees
poliacuteticas e religiosas ao enfrentar perigos sofrimentos torturas e feras sem renunciar agrave feacute o
maacutertir eacute visto como um heroacutei pela comunidade cristatilde Ele ldquotorna-se uma espeacutecie de ponto
focal da vida da comunidade que o circunda de veneraccedilatildeo considerando-o jaacute em contato com
Deus capaz de profetizar e de pronunciar-se com uma autoridade especial tambeacutem sobre
questotildees eclesiaacutesticasrdquo (Moreschini amp Norelli 2000 297) Morrer por sua feacute eacute o ato supremo
de glorificaccedilatildeo para os primeiros cristatildeos E eacute por meio dessa glorificaccedilatildeo de acordo com as
palavras de Bakhtin (2003 143) que o heroacutei consegue alcanccedilar a consciecircncia de uma
determinada sociedade incutindo assim novos valores
A aspiraccedilatildeo agrave gloacuteria organiza a vida do heroacutei ingecircnuo a gloacuteria organiza tambeacutem a narraccedilatildeo da sua vida sua glorificaccedilatildeo Aspirar agrave gloacuteria eacute tomar consciecircncia de si na sociedade culta e histoacuterica dos homens (ou na naccedilatildeo) eacute afirmar e construir sua vida na possiacutevel consciecircncia dessa sociedade humana eacute crescer natildeo em si nem para si mas nos outros ou para os outros eacute ocupar um lugar no mundo imediato dos contemporacircneos e descendentes
A segunda semelhanccedila detectada entre os gecircneros biograacutefico e biacuteos hagiograacutefico eacute a
relaccedilatildeo de empatia que se estabelece entre autor-personagem Segundo Bakhtin (2003 150)
autor e personagem compartilham obrigatoriamente os mesmos valores ldquona biografia o
autor natildeo soacute combina com a personagem na feacute nas convicccedilotildees e no amor mas tambeacutem em
sua criaccedilatildeo artiacutestica (sincreacutetica) tomando como guia os mesmos valores que a personagem
em sua vida esteacuteticardquo Embora o autor do martiacuterio do soldado Marino natildeo seja explicitado eacute
possiacutevel inferir pelo texto que o interesse de registrar o fato tenha partido natildeo de algueacutem que
simplesmente compartilhava com ele a situaccedilatildeo de soldado do exeacutercito romano mas sim de
algueacutem que dividia os mesmos valores cristatildeos
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Quanto agrave modalidade do romance a relaccedilatildeo entre os gecircneros biacuteos hagiograacutefico e
biograacutefico tambeacutem eacute possiacutevel Bakhtin (2003 205) identifica quatro modelos de romance
ldquosegundo o princiacutepio de construccedilatildeo da imagem da personagem central o romance de viagens
o romance de provaccedilatildeo da personagem o romance biograacutefico (autobiograacutefico) o romance de
educaccedilatildeordquo Ora por ser um gecircnero hiacutebrido a personagem principal do biacuteos hagiograacutefico
mescla caracteriacutesticas tanto do romance de provaccedilatildeo quanto do romance biograacutefico
Para Bakhtin (2003 207) o romance de provaccedilatildeo divide-se em duas modalidades ldquoA
primeira modalidade eacute representada pelo romance grego (A Etioacutepica Leucipo e Cleitofon
etc) A segunda modalidade eacute representada pelas hagiografias do iniacutecio do cristianismo
(particularmente dos maacutertires)rdquo O objetivo das provaccedilotildees neste tipo de romance eacute mudar a
opiniatildeo e os valores do heroacutei Como nos relatos de martiacuterio os cristatildeos natildeo renunciam a sua
feacute natildeo haacute mutabilidade Logo o maacutertir aproxima-se do conceito de heroacutei da provaccedilatildeo ele ldquoeacute
acabado e predeterminado as experimentaccedilotildees (sofrimentos seduccedilotildees duacutevidas) natildeo se
tornam para ele uma experiecircncia formadora nem a modificam e nessa imutabilidade da
personagem estaacute toda questatildeordquo (Bakhtin 2003 209)
Aleacutem disso no romance de provaccedilatildeo o personagem eacute o centro Natildeo importam os
costumes ou lugares exoacuteticos como no romance de viagens O personagem natildeo eacute modificado
de forma determinante pelo mundo nem o modifica
Entre o heroacutei e o mundo natildeo existe interaccedilatildeo autecircntica o mundo natildeo eacute capaz de mudar o heroacutei ele apenas o experimenta e o heroacutei natildeo influencia o mundo natildeo lhe muda a face ao passar pela provaccedilatildeo ao afastar seus inimigos etc o heroacutei deixa no mundo tudo nos seus lugares natildeo modifica a face social do mundo natildeo o reconstroacutei e aliaacutes nem tem essa pretensatildeo (Bakhtin 2003 212)
Eacute exatamente esta a situaccedilatildeo observada no texto em anaacutelise A crise pela qual passa o
personagem Marino natildeo eacute capaz de alterar suas convicccedilotildees nem de mudar o curso normal dos
acontecimentos agrave parte de sua vida o exeacutercito continuaraacute existindo uma outra pessoa tomaraacute
o seu lugar e tudo continuaraacute funcionando sob os mesmos princiacutepios
Quanto ao romance biograacutefico Bakhtin (2003 213) considera que assim como o
romance de provaccedilatildeo ele ldquoeacute preparado ainda em solo antigo nas biografias antigas
autobiografias e confissotildees do periacuteodo inicial do cristianismo (terminando em Agostinho)rdquo
O gecircnero biacuteos hagiograacutefico estabelece contatos com esse tipo de romance por meio do
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enredo Como o romance biograacutefico tem como elemento principal a narraccedilatildeo da trajetoacuteria
vital de um determinado personagem ou seja tem como base justamente aqueles ldquoelementos
existentes antes do iniacutecio ou depois do teacutermino do romance de provaccedilatildeordquo (Ibid) engloba
necessariamente o relato da morte fato fundamental para o surgimento de um maacutertir na
concepccedilatildeo cristatilde
No romance biograacutefico a relaccedilatildeo da personagem com o mundo ganha um enfoque
diferente daquele verificado no romance de viagens ou no de provaccedilatildeo Bakhtin (2003 215)
verifica que ldquoPersonagens secundaacuterias paiacuteses cidades objetos etc integram o romance
biograacutefico por vias substanciais e ganham uma relaccedilatildeo igualmente substancial com o todo
vital da personagem centralrdquo Paradoxalmente o relato do soldado Marino apresenta tambeacutem
esse aspecto Embora ele permanecesse inabalaacutevel em sua decisatildeo de natildeo negar a feacute cristatilde
antes de o juiz lhe conceder um tempo para refletir eacute no encontro com o bispo Teotecno e
principalmente apoacutes o confronto com um objeto de grande valor ndash as Escrituras ndash que
Marino segue resoluto para o tribunal
Bakhtin tambeacutem escreve sobre o gecircnero hagiograacutefico embora com mais cautela Para
o autor (2003 169-70) ldquoa hagiografia se realiza diretamente no mundo do divinordquo Por se
tratar de um plano diferenciado em que ldquoa atitude reverente do autor natildeo deixa espaccedilo agrave
iniciativa individualrdquo (2003 170) Bakhtin prefere manter a mesma distacircncia Assim limita-
se em dizer que a hagiografia ldquorecorre a formas tradicionalmente sagradasrdquo (Ibid)
No aspecto formal os relatos de martiacuterio possuem de fato vaacuterias semelhanccedilas e um
fundamento em comum que satildeo os processos verbais No entanto ainda natildeo existe entre os
seacuteculos II e IV dC essa preocupaccedilatildeo ou esse rigor com a forma com a exclusatildeo de todo
elemento que possa remeter agrave individualidade
deve-se excluir tudo o que eacute tiacutepico de uma dada eacutepoca de uma dada nacionalidade () de uma dada condiccedilatildeo social de uma dada idade todo o concreto de uma imagem de uma vida todas as minuacutecias desta as indicaccedilotildees precisas do tempo e do espaccedilo na accedilatildeo ndash tudo o que reforccedila a determinidade no ser de um dado indiviacuteduo e assim lhe diminui a autoridade (Bakhtin 2003 170)
Vecirc-se portanto a partir dessa breve anaacutelise que o gecircnero biacuteos hagiograacutefico mescla
caracteriacutesticas tanto do gecircnero biograacutefico ndash seja biacuteos ou romance biograacutefico - quanto da
hagiografia constituindo assim um gecircnero agrave parte
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2 CONTEXTO SOacuteCIO-HISTOacuteRICO
O relato do martiacuterio de Marino se tornou conhecido por meio da obra Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio bispo de Cesareacuteia no iniacutecio do seacuteculo IV Para Puech (1930 173)
ldquoEusegravebe est un meacutediocre theacuteologien et un meacutediocre eacutecrivain () mais il nous a rendu comme
historien et comme chronographe des services inestimablesrdquo De fato dificilmente teriacuteamos
acesso a esse texto se natildeo fosse o trabalho de Euseacutebio De acordo com a cronologia do bispo
a morte de Marino eacute situada entre os anos 260-261 dC Para o tradutor Musurillo (2000
xxxvi) essa data eacute bastante provaacutevel O comentaacuterio no relato de que todas as igrejas
desfrutavam de um periacuteodo de paz eacute o principal fator que leva a essa conclusatildeo No ano de
260 dC eacute promulgado o edito de Galieno o qual ldquoautoriza os liacutederes da Igreja a presidir
livremente as celebraccedilotildees religiosasrdquo (Silva 2006 250)
No entanto mesmo com as medidas favoraacuteveis por parte dos governantes o
cristianismo permanecia uma religio ilicita e portanto os cristatildeos ainda estavam sujeitos a
julgamento caso fossem delatados Foi o que aconteceu com o soldado Marino Uma vez
acusado de ser cristatildeo e de natildeo prestar culto ao imperador foi levado ao tribunal Eacute muito
provaacutevel que Marino tivesse vaacuterios colegas cristatildeos no exeacutercito que natildeo foram executados
porque ningueacutem aparecera para acusaacute-los A situaccedilatildeo dos cristatildeos era realmente
imprevisiacutevel Daniel-Rops (1988 346) comenta que no seacuteculo III essa constante mudanccedila de
humor por parte do Impeacuterio criou uma situaccedilatildeo sem precedentes ldquoComo um anciatildeo doente
que ora dormita inconsciente ou vagamente inquieto ignorando as impaciecircncias que o
rodeiam ora se irrita e ainda se mostra terriacutevel da mesma forma o Impeacuterio muda a todo o
momento de atitude Eacute isto o que daacute agraves perseguiccedilotildees do seacuteculo III um caraacuteter tatildeo diferente das
precedentesrdquo
Assim Marino foi o escolhido naquele momento de paz temporaacuteria Eles tinham
conhecimento da lei que estava em vigor desde a eacutepoca do imperador Trajano (110-111 dC)
quando este determinara ao governador Pliacutenio que os cristatildeos natildeo deveriam ser
sistematicamente perseguidos nem deveriam ser aceitas denuacutencias anocircnimas contra eles
(Gonzaacutelez 1995 64) A recomendaccedilatildeo dada a Pliacutenio havia sido adotada em todo o Impeacuterio
Uma vez acusados entretanto deveriam ser julgados Geralmente os cristatildeos eram levados
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ao tribunal em decorrecircncia de disputas locais como escrevem Danieacutelou amp Marrou (1966
105)
Conveacutem frisar que natildeo haacute proscriccedilatildeo de cristatildeos pelo poder central quer dizer natildeo haacute perseguiccedilatildeo total Em segundo lugar verificam-se ataques locais movidos pelo povo e depois submetidos agrave apreciaccedilatildeo do magistrado romano () Em terceiro lugar o motivo da perseguiccedilatildeo natildeo se liga a crimes determinados mas unicamente ao lsquonomersquo cristatildeo O levantamento feito por Pliacutenio levara mesmo agrave conclusatildeo de que eram inocentes os cristatildeos
Guignebert (1956 169-70) tambeacutem assinala que apesar de todas as acusaccedilotildees
nenhum crime recaiacutea sobre os cristatildeos
Varias acusaciones de derecho comuacuten se poniacutean en juego al mismo tiempo para agobiar a los fieles religioacuten iliacutecita sociedad secreta lesa majestad negativa de obediencia si se trataba de soldados ignavia es decir negligencia en el cumplimiento de los deberes de la vida puacuteblica y privada y hasta magia Por lo demaacutes estas acusaciones cuando se aplicaban a los cristianos presentaban la singularidad de que se desistia inmediatamente de ellas si el inculpado consentiacutea en decir que renunciaba a su feacute lo que permite suponer que en suma era la religioacuten cristiana solamente lo que se perseguia
Ainda assim os cristatildeos precisavam ser castigados porque ao insistirem na afirmaccedilatildeo
ldquoSou cristatildeordquo rebelavam-se contra os princiacutepios do Impeacuterio especialmente o do culto ao
imperador
Este delito tinha de ser castigado em primeiro lugar porque de outro modo diminuiria a autoridade desses tribunais e em segundo lugar porque ao negarem a adorar o imperador os cristatildeos estavam adotando uma atitude que nesse tempo se interpretava como rebeliatildeo contra a autoridade imperial Com efeito o culto ao imperador era um dos viacutenculos que uniam o Impeacuterio e negar-se em puacuteblico a render esse culto equivalia a romper esse viacutenculo (Gonzaacutelez 1995 66)
Novamente percebe-se o caraacuteter imprevisiacutevel da vida cristatilde Os autores reconhecem
que de uma maneira geral as comunidades cristatildes procuravam levar uma vida exemplar e
submissa agraves leis do Impeacuterio ldquoAs instruccedilotildees de civismo dadas pelos Apoacutestolos continuam a
ser observadas e os cristatildeos mostram-se na sua grande maioria cidadatildeos fieacuteis e devotados ao
bem puacuteblicordquo (Daniel-Rops 1988 345) Poreacutem quando levados a julgamento puacuteblico natildeo
aceitavam prestar culto a outro senhor aleacutem de Cristo
No tocante ao serviccedilo militar as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio nem sempre eram
tatildeo simples Na opiniatildeo de Guignebert (1956 166) isso se dava porque as obrigaccedilotildees
militares geralmente tinham uma forte ligaccedilatildeo com as praacuteticas religiosas pagatildes
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El servicio militar les resultaba odioso porque suponiacutea obligaciones idolaacutetricas y porque execraban la guerra su participacioacuten en el servicio civil les pareciacutea supeacuterflua sobre todo se rehusaban obstinadamente a tomar parte en ninguna de las manifestaciones de lealtad que el gobierno imperial reclamaba porque todas revestiacutean caraacutecter religioso
Do mesmo modo Daniel-Rops (1988 345) relata
casos de objeccedilatildeo de consciecircncia ao serviccedilo militar como acontece com um jovem soldado que exclama ldquoNatildeo me eacute permitido trazer ao pescoccedilo o signum (espeacutecie de placa de identidade usada no exeacutercito romano) porque fui marcado com o sinal de Cristordquo ou com um outro soldado que se recusou a colocar sobre a cabeccedila a coroa ritual dos sacrifiacutecios em honra do imperador Satildeo casos ainda excepcionais mas sintomaacuteticos a oposiccedilatildeo profunda entre Roma e a Igreja tende a passar do plano religioso para o plano ciacutevico e poliacutetico
A intervenccedilatildeo do plano religioso sobre o poliacutetico e vice-versa foi consequumlecircncia da
busca por parte dos romanos de um sistema seguro no qual pudessem se apoiar Com a
decadecircncia poliacutetica econocircmica e moral o nuacutemero de seitas e religiotildees se multiplicava
formando um quadro extremamente pluralista (cf Daniel-Rops 1988 307) Eacute no seacuteculo III
que a dinastia dos Severos se impotildee e juntamente com ela vecircm as tradiccedilotildees religiosas
orientais
El advenimiento con los Severos de principes africanos y sirios la dominacioacuten de mujeres penetradas de la piedade miacutestica de Oriente favorecieron su raacutepido desarollo y el siglo III conocioacute todas sus formas desde las maacutes groseras estrechamente emparentadas com la supersticioacuten pura hasta las maacutes refinadas modeladas pelas reflexiones de la filosofia que desde entonces tenderiacutea hacia lo divino (Guignebert 1956 119)
Neste panorama soacutecio-poliacutetico o cristianismo foi a religiatildeo abraccedilada por muitos
cidadatildeos natildeo soacute ldquotecelotildees pisoeiros e sapateirosrdquo mas tambeacutem ldquoadvogados como Satildeo
Gregoacuterio Taumaturgo ou Satildeo Cipriano de Cartago mulheres da sociedade como Santa
Perpeacutetua grandes burgueses da proviacutencia e lsquoclariacutessimosrsquo de famiacutelias senatoriaisrdquo (Daniel-
Rops 1988 317) Para Guignebert (1956 121) o contato da elite com o cristianismo se deu
essencialmente por meio dos escravos e da filosofia
a traveacutes de los esclavos llegoacute a las mujeres libres sus amas y accidentalmente atrajo la atencioacuten de algunos hombres instruiacutedos que buscaban la verdad divina Gracias a las primeras se insinuoacute en las classes altas gracias a los segundos tomoacute contacto con la filosofia en el curso del siglo II y las consecuencias de este encuentro fueron incalculables
Eacute importante relembrar que a filosofia pressupunha a escrita e tinha um forte viacutenculo
com a literatura Mesmo o cristianismo no seacuteculo III jaacute possuiacutea um consideraacutevel nuacutemero de
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textos apologeacuteticos que dialogavam diretamente com a filosofia grega e possibilitavam para
a elite o acesso agraves ideacuteias cristatildes (cf Alesso 2006 31)
O relato do martiacuterio do soldado Marino surge portanto nesse contexto soacutecio-histoacuterico
como um texto de grande relevacircncia para o cristianismo Primeiro porque o personagem
principal eacute um soldado Integrava o grupo social de maior prestiacutegio nessa eacutepoca Como dizia
Septiacutemio Severo aos seus filhos ldquoEnriquecei o soldado e zombai do restordquo (Daniel-Rops
1988 299) E como no seacuteculo III as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio tomam uma nova
configuraccedilatildeo o contraste entre essas duas instituiccedilotildees eacute um assunto central O embate deixa
de ser apenas religioso e passa a ser tambeacutem poliacutetico - fato que vai se confirmar no seacuteculo
IV
Em segundo lugar a posiccedilatildeo social do maacutertir levanta outra questatildeo Marino como
membro da elite poderia facilmente ter comprado o libellus ndash documento que comprovava o
sacrifiacutecio aos deuses romanos ndash e assim conseguir sua liberdade (cf Silva 2006 248)
Daniel-Rops (1988 367) detalha que os ricos eram mais propensos a comprar falsos
documentos e a desistir ldquoConforme os testemunhos que temos parece que eram sobretudo os
ricos os bem instalados aqueles a quem a vida tinha concedido todo o conforto e que natildeo
estavam dispostos a sacrificaacute-lordquo que renunciavam agrave feacute
Aleacutem de abrir matildeo de sua posiccedilatildeo social e dos privileacutegios que iria obter como
centuriatildeo Marino natildeo se deixou dominar pelo medo a principal razatildeo da apostasia segundo
Daniel-Rops (1988 367) Eacute importante lembrar que a perseguiccedilatildeo sob Deacutecio instaurada em
249 dC ainda era bastante recente Numa tentativa de restaurar a gloacuteria do Impeacuterio Deacutecio
havia promulgado uma lei que obrigava todos os suacuteditos a retomarem o culto aos deuses
romanos Para ele ldquose todos os suacuteditos do Impeacuterio voltassem a adorar os deuses
possivelmente os deuses voltariam a favorecer o Impeacuteriordquo (Gonzaacutelez 1995 138) O culto era
um elemento essencial para os romanos Era por meio dele que expressavam sua
religiosidade como escreve Arnauld (2001 15) ldquoLa lsquopietasrsquo (pieacuteteacute) eacutetait la caracteacuteristique
principale de la religiositeacute romaine () Cette lsquopietasrsquo srsquoexprimait en une observance stricte
des lois rituelles Religion signifiait culterdquo
O descumprimento da lei por parte dos cristatildeos provocou uma perseguiccedilatildeo que teve
como consequumlecircncia um grande nuacutemero de apostasias fato que chegou a causar divergecircncia de
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opiniatildeo entre os bispos Num novo periacuteodo de relativa paz era portanto de suma importacircncia
para a Igreja insistir que os cristatildeos permanecessem firmes em suas convicccedilotildees Como
observa Daniel-Rops (1988 367) ldquoesses periacuteodos de interrupccedilatildeo nas perseguiccedilotildees natildeo
ajudavam em nada a coragem dos fieacuteis durante os tempos de calma a mola distendia-se e
quando subitamente era preciso voltar a entrar em luta muitos se sentiam faltos de energiardquo
Assim o testemunho de Marino evidencia o conflito existente entre a Igreja e o
Impeacuterio e conclama de maneira didaacutetica a que os cristatildeos tenham a mesma disposiccedilatildeo
mesmo diante da possibilidade da apostasia e dos terrores de um novo periacuteodo de perseguiccedilatildeo
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3 TEXTO GREGO
Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου Μαρίνου
Κατὰ τούτους εἰρήνης ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης ἐν Καισαρείᾳ τῆς
Παλαιστίνης Μαρῖνος τῶν ἐν στρατείαις ἀξιώμασι τετιμημένων γένει τε
καὶ πλοὕτῳ περιφανὴς ἀνήρ διὰ τὴν Χριστοῦ μαρτυρίαν τὴν κεφαλὴν
ἀποτέμνεται τοιᾶσδε ἕνεκεν αἰτίας
2 τιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας φασίν
ἑκατοντάρχους γίνεσθαι Τόπου σχολάζοντος ἐπὶ τοῦτο προκοπῆς τὸν
Μαρῖνον ἡ τοῦ βαθμοῦ τάξις ἐκάλει ἤδη τε μέλλοντα τῆς τιμῆς ἔχεσθαι
Παρελθὼν ἄλλος πρὸ τοῦ βήματος μὴ ἐξεῖναι μὲν ἐκείνῳ τῆς Ῥωμαίων
μετέχειν ἀξίας κατὰ τοὺς παλαιοὺς νόμους Χριστιανῷ γε ὄντι καὶ τοῖς
βασιλεῦσι μὴ θύοντι κατηγόρει αὐτῷ δὲ ἐπιβάλλειν τὸν κλῆρον
3 ἐφ᾿ ᾧ κινηθέντα τὸν δικαστὴν (Ἀχαιὸς οὕτος ἧν) πρῶτον μὲν ἐρέσθαι
ποίας ὁ Μαρῖνος εἴη γνώμης ὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν ἐπιμόνως
ἑώρα τριῶν ὡρῶν ἐπιδοῦναι αὐτῷ εἰς ἐπίσκεψιν διάστημα
4 ἐκτὸς δῆτα γενόμενον αὐτὸν τοῦ δικαστηρίου Θεότεκνος ὁ τῇδε
ἐπίσκοπος ἀφέλκει προσελθὼν δι᾿ ὁμιλίας καὶ τῆς χειρὸς λαβὼν ἐπὶ τὴν
ἐκκλησίαν προάγει εἴσω τε πρὸς αὐτῷ στήσας τῷ ἁγιάσματι μικρόν τι
παραναστείλας αὐτοῦ τῆς χλαμύδος καὶ τὸ προσηρτημένον αὐτῷ ξίφος
ἐπιδείξας ἅμα τε ἀντιπαρατίθησι προσαγαγὼν αὐτῷ τὴν τῶν θείων
εὐαγγελίων γραψήν κελεύσας τῶν δυοῖν ἑλέσθαι τὸ κατὰ γνώμην ὡς δ᾿
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ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν
ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς
αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης
5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ
δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ
δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν
ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται
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4 TRADUCcedilAtildeO
O martiacuterio do Santo Marino
1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares
em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido
honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por
todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu
testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte
2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a
conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a
ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo
Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e
declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e
portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos
romanos Assim o cargo cairia para si
3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou
primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele
insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs
horas para refletir
4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era
bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela
matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando
um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo
tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos
exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem
hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas
ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno
ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo
5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para
o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se
apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute
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imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre
o seu fim
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5 COMENTAacuteRIOS
51 OS PERSONAGENS
Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em
um ponto da estrutura
Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola
Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal
familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute
exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um
homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos
movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do
texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave
autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado
guerreiro
O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo
dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo
para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A
denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma
preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega
Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o
exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees
do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio
militar portanto tinha um significado muito grande
Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas
informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou
compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem
disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo
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Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na
quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado
provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era
seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para
conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial
para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve
como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)
O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para
anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo
de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos
outros personagens no texto
52 ESTRUTURA
O texto pode ser subdividido em 5 partes
(i) Marino o soldado cristatildeo
A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no
espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo
A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de
captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a
expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo
(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo
A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio
narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo
apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal
(iii) Marino e o juiz a confissatildeo
A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente
que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir
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(iv) Marino e o bispo a decisatildeo
Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de
Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem
palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a
espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe
a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras
(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo
Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo
Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte
53 TEMPO E ESPACcedilO
O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto
para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης
ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor
Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e
a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII
12)
A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que
Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em
todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto
o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se
deram de maneira muito raacutepida
Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia
na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no
entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes
contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o
Cristianismo
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O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno
poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por
Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo
tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito
cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera
propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz
que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os
sofrimentos corporais
Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte
54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS
O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de
diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um
detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga
essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de
martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)
Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte
A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da
distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no
entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor
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A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra
no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios
desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica
Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com
Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma
narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute
portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a
noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007
8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente
engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo
No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no
uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo
εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por
ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento
por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann
2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que
eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega
amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e
decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo
do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio
ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento
emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado
comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como
afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva
de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a
forte presenccedila do aspecto emotivo
A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para
enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou
ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops
(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma
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medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te
apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo
Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila
Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte
pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o
caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o
representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute
o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar
Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel
seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os
espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo
Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na
hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops
(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo
obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo
O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino
se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua
decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo
que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar
O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma
meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior
sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O
adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez
Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num
texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e
ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς
πίστεως τὴν προθυμίαν
Assim temos
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Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)
darrdarrdarrdarr
Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo
darrdarrdarrdarr
Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo
O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas
uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado
pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν
ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente
detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita
conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui
coerecircncia ao texto
Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)
destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura
feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que
todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou
seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica
fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e
estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha
havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois
poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo
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sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser
adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um
antagonismo fundamentalrdquo
O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de
Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo
substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo
ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos
esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no
texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino
Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos
durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e
por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que
a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino
Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη
ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto
o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων
o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος
o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις
o substantivo εἰρήνη
o substantivo μαρτυρία
Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e
formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado
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A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes
por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)
honra romana (τιμή)
vide (κλῆμα)
centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)
reconhecimento passageiro e
terreno (ἀξιώμασι
τετιμημένων )
honra cristatilde (τιμή)
paz (εἰρήνη)
maacutertir (μάρτυρ)
reconhecimento eterno e divino
(τελειοῦται)
O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria
honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o
argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado
explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos
versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω
ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o
objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας
φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo
Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o
ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ
τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela
feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)
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Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha
pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento
terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo
ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na
comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o
cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)
Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito
mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp
Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo
por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute
essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto
O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por
exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer
voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do
termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que
ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to
the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις
Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de
um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados
Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor
menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A
acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os
personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado
numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo
de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute
em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz
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como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da
acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade
interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se
constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio
por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os
imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao
registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o
mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)
A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das
intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que
como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos
entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo
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CONCLUSAtildeO
O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e
produtivo sob vaacuterios aspectos
Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual
gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A
percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a
ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os
primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma
instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na
literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um
pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os
cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo
- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura
No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do
texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico
durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e
consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa
ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias
da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna
centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o
posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos
fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento
A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se
compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao
bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se
mostrar complacente
39
Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os
cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de
sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem
como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como
um substituto aos espetaacuteculos romanos
Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave
plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos
Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o
que deu origem ao culto dos santos
Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda
precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos
possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados
ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται
presente no texto traduzido e em outros relatos
Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais
utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e
posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma
melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande
auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo
cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade
proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses
novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde
40
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ANEXOS
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)
[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1
1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em
Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um
tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua
linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte
2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles
que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o
escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a
honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo
as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que
era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a
ele
3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a
Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que
era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse
4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e
afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma
vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o
manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e
contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as
duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a
direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -
manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que
escolheste Vai em pazrdquo
1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu
este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer
casos como o de Marino [nota do Editor]
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5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de
novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado
Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua
feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado
45
TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)
During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in
Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and
was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It
came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour
and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and
according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he
was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and
attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and
should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to
the ancient laws but that instead the post should fall to himself
It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he
first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed
that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had
Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside
in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed
Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword
attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it
before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out
his right hand and took the divine writings
lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him
may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo
No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the
tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and
showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to
execution and so found his fulfilment
16
Quanto agrave modalidade do romance a relaccedilatildeo entre os gecircneros biacuteos hagiograacutefico e
biograacutefico tambeacutem eacute possiacutevel Bakhtin (2003 205) identifica quatro modelos de romance
ldquosegundo o princiacutepio de construccedilatildeo da imagem da personagem central o romance de viagens
o romance de provaccedilatildeo da personagem o romance biograacutefico (autobiograacutefico) o romance de
educaccedilatildeordquo Ora por ser um gecircnero hiacutebrido a personagem principal do biacuteos hagiograacutefico
mescla caracteriacutesticas tanto do romance de provaccedilatildeo quanto do romance biograacutefico
Para Bakhtin (2003 207) o romance de provaccedilatildeo divide-se em duas modalidades ldquoA
primeira modalidade eacute representada pelo romance grego (A Etioacutepica Leucipo e Cleitofon
etc) A segunda modalidade eacute representada pelas hagiografias do iniacutecio do cristianismo
(particularmente dos maacutertires)rdquo O objetivo das provaccedilotildees neste tipo de romance eacute mudar a
opiniatildeo e os valores do heroacutei Como nos relatos de martiacuterio os cristatildeos natildeo renunciam a sua
feacute natildeo haacute mutabilidade Logo o maacutertir aproxima-se do conceito de heroacutei da provaccedilatildeo ele ldquoeacute
acabado e predeterminado as experimentaccedilotildees (sofrimentos seduccedilotildees duacutevidas) natildeo se
tornam para ele uma experiecircncia formadora nem a modificam e nessa imutabilidade da
personagem estaacute toda questatildeordquo (Bakhtin 2003 209)
Aleacutem disso no romance de provaccedilatildeo o personagem eacute o centro Natildeo importam os
costumes ou lugares exoacuteticos como no romance de viagens O personagem natildeo eacute modificado
de forma determinante pelo mundo nem o modifica
Entre o heroacutei e o mundo natildeo existe interaccedilatildeo autecircntica o mundo natildeo eacute capaz de mudar o heroacutei ele apenas o experimenta e o heroacutei natildeo influencia o mundo natildeo lhe muda a face ao passar pela provaccedilatildeo ao afastar seus inimigos etc o heroacutei deixa no mundo tudo nos seus lugares natildeo modifica a face social do mundo natildeo o reconstroacutei e aliaacutes nem tem essa pretensatildeo (Bakhtin 2003 212)
Eacute exatamente esta a situaccedilatildeo observada no texto em anaacutelise A crise pela qual passa o
personagem Marino natildeo eacute capaz de alterar suas convicccedilotildees nem de mudar o curso normal dos
acontecimentos agrave parte de sua vida o exeacutercito continuaraacute existindo uma outra pessoa tomaraacute
o seu lugar e tudo continuaraacute funcionando sob os mesmos princiacutepios
Quanto ao romance biograacutefico Bakhtin (2003 213) considera que assim como o
romance de provaccedilatildeo ele ldquoeacute preparado ainda em solo antigo nas biografias antigas
autobiografias e confissotildees do periacuteodo inicial do cristianismo (terminando em Agostinho)rdquo
O gecircnero biacuteos hagiograacutefico estabelece contatos com esse tipo de romance por meio do
17
enredo Como o romance biograacutefico tem como elemento principal a narraccedilatildeo da trajetoacuteria
vital de um determinado personagem ou seja tem como base justamente aqueles ldquoelementos
existentes antes do iniacutecio ou depois do teacutermino do romance de provaccedilatildeordquo (Ibid) engloba
necessariamente o relato da morte fato fundamental para o surgimento de um maacutertir na
concepccedilatildeo cristatilde
No romance biograacutefico a relaccedilatildeo da personagem com o mundo ganha um enfoque
diferente daquele verificado no romance de viagens ou no de provaccedilatildeo Bakhtin (2003 215)
verifica que ldquoPersonagens secundaacuterias paiacuteses cidades objetos etc integram o romance
biograacutefico por vias substanciais e ganham uma relaccedilatildeo igualmente substancial com o todo
vital da personagem centralrdquo Paradoxalmente o relato do soldado Marino apresenta tambeacutem
esse aspecto Embora ele permanecesse inabalaacutevel em sua decisatildeo de natildeo negar a feacute cristatilde
antes de o juiz lhe conceder um tempo para refletir eacute no encontro com o bispo Teotecno e
principalmente apoacutes o confronto com um objeto de grande valor ndash as Escrituras ndash que
Marino segue resoluto para o tribunal
Bakhtin tambeacutem escreve sobre o gecircnero hagiograacutefico embora com mais cautela Para
o autor (2003 169-70) ldquoa hagiografia se realiza diretamente no mundo do divinordquo Por se
tratar de um plano diferenciado em que ldquoa atitude reverente do autor natildeo deixa espaccedilo agrave
iniciativa individualrdquo (2003 170) Bakhtin prefere manter a mesma distacircncia Assim limita-
se em dizer que a hagiografia ldquorecorre a formas tradicionalmente sagradasrdquo (Ibid)
No aspecto formal os relatos de martiacuterio possuem de fato vaacuterias semelhanccedilas e um
fundamento em comum que satildeo os processos verbais No entanto ainda natildeo existe entre os
seacuteculos II e IV dC essa preocupaccedilatildeo ou esse rigor com a forma com a exclusatildeo de todo
elemento que possa remeter agrave individualidade
deve-se excluir tudo o que eacute tiacutepico de uma dada eacutepoca de uma dada nacionalidade () de uma dada condiccedilatildeo social de uma dada idade todo o concreto de uma imagem de uma vida todas as minuacutecias desta as indicaccedilotildees precisas do tempo e do espaccedilo na accedilatildeo ndash tudo o que reforccedila a determinidade no ser de um dado indiviacuteduo e assim lhe diminui a autoridade (Bakhtin 2003 170)
Vecirc-se portanto a partir dessa breve anaacutelise que o gecircnero biacuteos hagiograacutefico mescla
caracteriacutesticas tanto do gecircnero biograacutefico ndash seja biacuteos ou romance biograacutefico - quanto da
hagiografia constituindo assim um gecircnero agrave parte
18
2 CONTEXTO SOacuteCIO-HISTOacuteRICO
O relato do martiacuterio de Marino se tornou conhecido por meio da obra Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio bispo de Cesareacuteia no iniacutecio do seacuteculo IV Para Puech (1930 173)
ldquoEusegravebe est un meacutediocre theacuteologien et un meacutediocre eacutecrivain () mais il nous a rendu comme
historien et comme chronographe des services inestimablesrdquo De fato dificilmente teriacuteamos
acesso a esse texto se natildeo fosse o trabalho de Euseacutebio De acordo com a cronologia do bispo
a morte de Marino eacute situada entre os anos 260-261 dC Para o tradutor Musurillo (2000
xxxvi) essa data eacute bastante provaacutevel O comentaacuterio no relato de que todas as igrejas
desfrutavam de um periacuteodo de paz eacute o principal fator que leva a essa conclusatildeo No ano de
260 dC eacute promulgado o edito de Galieno o qual ldquoautoriza os liacutederes da Igreja a presidir
livremente as celebraccedilotildees religiosasrdquo (Silva 2006 250)
No entanto mesmo com as medidas favoraacuteveis por parte dos governantes o
cristianismo permanecia uma religio ilicita e portanto os cristatildeos ainda estavam sujeitos a
julgamento caso fossem delatados Foi o que aconteceu com o soldado Marino Uma vez
acusado de ser cristatildeo e de natildeo prestar culto ao imperador foi levado ao tribunal Eacute muito
provaacutevel que Marino tivesse vaacuterios colegas cristatildeos no exeacutercito que natildeo foram executados
porque ningueacutem aparecera para acusaacute-los A situaccedilatildeo dos cristatildeos era realmente
imprevisiacutevel Daniel-Rops (1988 346) comenta que no seacuteculo III essa constante mudanccedila de
humor por parte do Impeacuterio criou uma situaccedilatildeo sem precedentes ldquoComo um anciatildeo doente
que ora dormita inconsciente ou vagamente inquieto ignorando as impaciecircncias que o
rodeiam ora se irrita e ainda se mostra terriacutevel da mesma forma o Impeacuterio muda a todo o
momento de atitude Eacute isto o que daacute agraves perseguiccedilotildees do seacuteculo III um caraacuteter tatildeo diferente das
precedentesrdquo
Assim Marino foi o escolhido naquele momento de paz temporaacuteria Eles tinham
conhecimento da lei que estava em vigor desde a eacutepoca do imperador Trajano (110-111 dC)
quando este determinara ao governador Pliacutenio que os cristatildeos natildeo deveriam ser
sistematicamente perseguidos nem deveriam ser aceitas denuacutencias anocircnimas contra eles
(Gonzaacutelez 1995 64) A recomendaccedilatildeo dada a Pliacutenio havia sido adotada em todo o Impeacuterio
Uma vez acusados entretanto deveriam ser julgados Geralmente os cristatildeos eram levados
19
ao tribunal em decorrecircncia de disputas locais como escrevem Danieacutelou amp Marrou (1966
105)
Conveacutem frisar que natildeo haacute proscriccedilatildeo de cristatildeos pelo poder central quer dizer natildeo haacute perseguiccedilatildeo total Em segundo lugar verificam-se ataques locais movidos pelo povo e depois submetidos agrave apreciaccedilatildeo do magistrado romano () Em terceiro lugar o motivo da perseguiccedilatildeo natildeo se liga a crimes determinados mas unicamente ao lsquonomersquo cristatildeo O levantamento feito por Pliacutenio levara mesmo agrave conclusatildeo de que eram inocentes os cristatildeos
Guignebert (1956 169-70) tambeacutem assinala que apesar de todas as acusaccedilotildees
nenhum crime recaiacutea sobre os cristatildeos
Varias acusaciones de derecho comuacuten se poniacutean en juego al mismo tiempo para agobiar a los fieles religioacuten iliacutecita sociedad secreta lesa majestad negativa de obediencia si se trataba de soldados ignavia es decir negligencia en el cumplimiento de los deberes de la vida puacuteblica y privada y hasta magia Por lo demaacutes estas acusaciones cuando se aplicaban a los cristianos presentaban la singularidad de que se desistia inmediatamente de ellas si el inculpado consentiacutea en decir que renunciaba a su feacute lo que permite suponer que en suma era la religioacuten cristiana solamente lo que se perseguia
Ainda assim os cristatildeos precisavam ser castigados porque ao insistirem na afirmaccedilatildeo
ldquoSou cristatildeordquo rebelavam-se contra os princiacutepios do Impeacuterio especialmente o do culto ao
imperador
Este delito tinha de ser castigado em primeiro lugar porque de outro modo diminuiria a autoridade desses tribunais e em segundo lugar porque ao negarem a adorar o imperador os cristatildeos estavam adotando uma atitude que nesse tempo se interpretava como rebeliatildeo contra a autoridade imperial Com efeito o culto ao imperador era um dos viacutenculos que uniam o Impeacuterio e negar-se em puacuteblico a render esse culto equivalia a romper esse viacutenculo (Gonzaacutelez 1995 66)
Novamente percebe-se o caraacuteter imprevisiacutevel da vida cristatilde Os autores reconhecem
que de uma maneira geral as comunidades cristatildes procuravam levar uma vida exemplar e
submissa agraves leis do Impeacuterio ldquoAs instruccedilotildees de civismo dadas pelos Apoacutestolos continuam a
ser observadas e os cristatildeos mostram-se na sua grande maioria cidadatildeos fieacuteis e devotados ao
bem puacuteblicordquo (Daniel-Rops 1988 345) Poreacutem quando levados a julgamento puacuteblico natildeo
aceitavam prestar culto a outro senhor aleacutem de Cristo
No tocante ao serviccedilo militar as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio nem sempre eram
tatildeo simples Na opiniatildeo de Guignebert (1956 166) isso se dava porque as obrigaccedilotildees
militares geralmente tinham uma forte ligaccedilatildeo com as praacuteticas religiosas pagatildes
20
El servicio militar les resultaba odioso porque suponiacutea obligaciones idolaacutetricas y porque execraban la guerra su participacioacuten en el servicio civil les pareciacutea supeacuterflua sobre todo se rehusaban obstinadamente a tomar parte en ninguna de las manifestaciones de lealtad que el gobierno imperial reclamaba porque todas revestiacutean caraacutecter religioso
Do mesmo modo Daniel-Rops (1988 345) relata
casos de objeccedilatildeo de consciecircncia ao serviccedilo militar como acontece com um jovem soldado que exclama ldquoNatildeo me eacute permitido trazer ao pescoccedilo o signum (espeacutecie de placa de identidade usada no exeacutercito romano) porque fui marcado com o sinal de Cristordquo ou com um outro soldado que se recusou a colocar sobre a cabeccedila a coroa ritual dos sacrifiacutecios em honra do imperador Satildeo casos ainda excepcionais mas sintomaacuteticos a oposiccedilatildeo profunda entre Roma e a Igreja tende a passar do plano religioso para o plano ciacutevico e poliacutetico
A intervenccedilatildeo do plano religioso sobre o poliacutetico e vice-versa foi consequumlecircncia da
busca por parte dos romanos de um sistema seguro no qual pudessem se apoiar Com a
decadecircncia poliacutetica econocircmica e moral o nuacutemero de seitas e religiotildees se multiplicava
formando um quadro extremamente pluralista (cf Daniel-Rops 1988 307) Eacute no seacuteculo III
que a dinastia dos Severos se impotildee e juntamente com ela vecircm as tradiccedilotildees religiosas
orientais
El advenimiento con los Severos de principes africanos y sirios la dominacioacuten de mujeres penetradas de la piedade miacutestica de Oriente favorecieron su raacutepido desarollo y el siglo III conocioacute todas sus formas desde las maacutes groseras estrechamente emparentadas com la supersticioacuten pura hasta las maacutes refinadas modeladas pelas reflexiones de la filosofia que desde entonces tenderiacutea hacia lo divino (Guignebert 1956 119)
Neste panorama soacutecio-poliacutetico o cristianismo foi a religiatildeo abraccedilada por muitos
cidadatildeos natildeo soacute ldquotecelotildees pisoeiros e sapateirosrdquo mas tambeacutem ldquoadvogados como Satildeo
Gregoacuterio Taumaturgo ou Satildeo Cipriano de Cartago mulheres da sociedade como Santa
Perpeacutetua grandes burgueses da proviacutencia e lsquoclariacutessimosrsquo de famiacutelias senatoriaisrdquo (Daniel-
Rops 1988 317) Para Guignebert (1956 121) o contato da elite com o cristianismo se deu
essencialmente por meio dos escravos e da filosofia
a traveacutes de los esclavos llegoacute a las mujeres libres sus amas y accidentalmente atrajo la atencioacuten de algunos hombres instruiacutedos que buscaban la verdad divina Gracias a las primeras se insinuoacute en las classes altas gracias a los segundos tomoacute contacto con la filosofia en el curso del siglo II y las consecuencias de este encuentro fueron incalculables
Eacute importante relembrar que a filosofia pressupunha a escrita e tinha um forte viacutenculo
com a literatura Mesmo o cristianismo no seacuteculo III jaacute possuiacutea um consideraacutevel nuacutemero de
21
textos apologeacuteticos que dialogavam diretamente com a filosofia grega e possibilitavam para
a elite o acesso agraves ideacuteias cristatildes (cf Alesso 2006 31)
O relato do martiacuterio do soldado Marino surge portanto nesse contexto soacutecio-histoacuterico
como um texto de grande relevacircncia para o cristianismo Primeiro porque o personagem
principal eacute um soldado Integrava o grupo social de maior prestiacutegio nessa eacutepoca Como dizia
Septiacutemio Severo aos seus filhos ldquoEnriquecei o soldado e zombai do restordquo (Daniel-Rops
1988 299) E como no seacuteculo III as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio tomam uma nova
configuraccedilatildeo o contraste entre essas duas instituiccedilotildees eacute um assunto central O embate deixa
de ser apenas religioso e passa a ser tambeacutem poliacutetico - fato que vai se confirmar no seacuteculo
IV
Em segundo lugar a posiccedilatildeo social do maacutertir levanta outra questatildeo Marino como
membro da elite poderia facilmente ter comprado o libellus ndash documento que comprovava o
sacrifiacutecio aos deuses romanos ndash e assim conseguir sua liberdade (cf Silva 2006 248)
Daniel-Rops (1988 367) detalha que os ricos eram mais propensos a comprar falsos
documentos e a desistir ldquoConforme os testemunhos que temos parece que eram sobretudo os
ricos os bem instalados aqueles a quem a vida tinha concedido todo o conforto e que natildeo
estavam dispostos a sacrificaacute-lordquo que renunciavam agrave feacute
Aleacutem de abrir matildeo de sua posiccedilatildeo social e dos privileacutegios que iria obter como
centuriatildeo Marino natildeo se deixou dominar pelo medo a principal razatildeo da apostasia segundo
Daniel-Rops (1988 367) Eacute importante lembrar que a perseguiccedilatildeo sob Deacutecio instaurada em
249 dC ainda era bastante recente Numa tentativa de restaurar a gloacuteria do Impeacuterio Deacutecio
havia promulgado uma lei que obrigava todos os suacuteditos a retomarem o culto aos deuses
romanos Para ele ldquose todos os suacuteditos do Impeacuterio voltassem a adorar os deuses
possivelmente os deuses voltariam a favorecer o Impeacuteriordquo (Gonzaacutelez 1995 138) O culto era
um elemento essencial para os romanos Era por meio dele que expressavam sua
religiosidade como escreve Arnauld (2001 15) ldquoLa lsquopietasrsquo (pieacuteteacute) eacutetait la caracteacuteristique
principale de la religiositeacute romaine () Cette lsquopietasrsquo srsquoexprimait en une observance stricte
des lois rituelles Religion signifiait culterdquo
O descumprimento da lei por parte dos cristatildeos provocou uma perseguiccedilatildeo que teve
como consequumlecircncia um grande nuacutemero de apostasias fato que chegou a causar divergecircncia de
22
opiniatildeo entre os bispos Num novo periacuteodo de relativa paz era portanto de suma importacircncia
para a Igreja insistir que os cristatildeos permanecessem firmes em suas convicccedilotildees Como
observa Daniel-Rops (1988 367) ldquoesses periacuteodos de interrupccedilatildeo nas perseguiccedilotildees natildeo
ajudavam em nada a coragem dos fieacuteis durante os tempos de calma a mola distendia-se e
quando subitamente era preciso voltar a entrar em luta muitos se sentiam faltos de energiardquo
Assim o testemunho de Marino evidencia o conflito existente entre a Igreja e o
Impeacuterio e conclama de maneira didaacutetica a que os cristatildeos tenham a mesma disposiccedilatildeo
mesmo diante da possibilidade da apostasia e dos terrores de um novo periacuteodo de perseguiccedilatildeo
23
3 TEXTO GREGO
Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου Μαρίνου
Κατὰ τούτους εἰρήνης ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης ἐν Καισαρείᾳ τῆς
Παλαιστίνης Μαρῖνος τῶν ἐν στρατείαις ἀξιώμασι τετιμημένων γένει τε
καὶ πλοὕτῳ περιφανὴς ἀνήρ διὰ τὴν Χριστοῦ μαρτυρίαν τὴν κεφαλὴν
ἀποτέμνεται τοιᾶσδε ἕνεκεν αἰτίας
2 τιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας φασίν
ἑκατοντάρχους γίνεσθαι Τόπου σχολάζοντος ἐπὶ τοῦτο προκοπῆς τὸν
Μαρῖνον ἡ τοῦ βαθμοῦ τάξις ἐκάλει ἤδη τε μέλλοντα τῆς τιμῆς ἔχεσθαι
Παρελθὼν ἄλλος πρὸ τοῦ βήματος μὴ ἐξεῖναι μὲν ἐκείνῳ τῆς Ῥωμαίων
μετέχειν ἀξίας κατὰ τοὺς παλαιοὺς νόμους Χριστιανῷ γε ὄντι καὶ τοῖς
βασιλεῦσι μὴ θύοντι κατηγόρει αὐτῷ δὲ ἐπιβάλλειν τὸν κλῆρον
3 ἐφ᾿ ᾧ κινηθέντα τὸν δικαστὴν (Ἀχαιὸς οὕτος ἧν) πρῶτον μὲν ἐρέσθαι
ποίας ὁ Μαρῖνος εἴη γνώμης ὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν ἐπιμόνως
ἑώρα τριῶν ὡρῶν ἐπιδοῦναι αὐτῷ εἰς ἐπίσκεψιν διάστημα
4 ἐκτὸς δῆτα γενόμενον αὐτὸν τοῦ δικαστηρίου Θεότεκνος ὁ τῇδε
ἐπίσκοπος ἀφέλκει προσελθὼν δι᾿ ὁμιλίας καὶ τῆς χειρὸς λαβὼν ἐπὶ τὴν
ἐκκλησίαν προάγει εἴσω τε πρὸς αὐτῷ στήσας τῷ ἁγιάσματι μικρόν τι
παραναστείλας αὐτοῦ τῆς χλαμύδος καὶ τὸ προσηρτημένον αὐτῷ ξίφος
ἐπιδείξας ἅμα τε ἀντιπαρατίθησι προσαγαγὼν αὐτῷ τὴν τῶν θείων
εὐαγγελίων γραψήν κελεύσας τῶν δυοῖν ἑλέσθαι τὸ κατὰ γνώμην ὡς δ᾿
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ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν
ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς
αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης
5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ
δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ
δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν
ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται
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4 TRADUCcedilAtildeO
O martiacuterio do Santo Marino
1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares
em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido
honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por
todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu
testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte
2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a
conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a
ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo
Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e
declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e
portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos
romanos Assim o cargo cairia para si
3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou
primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele
insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs
horas para refletir
4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era
bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela
matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando
um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo
tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos
exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem
hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas
ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno
ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo
5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para
o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se
apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute
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imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre
o seu fim
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5 COMENTAacuteRIOS
51 OS PERSONAGENS
Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em
um ponto da estrutura
Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola
Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal
familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute
exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um
homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos
movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do
texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave
autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado
guerreiro
O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo
dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo
para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A
denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma
preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega
Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o
exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees
do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio
militar portanto tinha um significado muito grande
Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas
informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou
compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem
disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo
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Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na
quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado
provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era
seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para
conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial
para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve
como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)
O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para
anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo
de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos
outros personagens no texto
52 ESTRUTURA
O texto pode ser subdividido em 5 partes
(i) Marino o soldado cristatildeo
A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no
espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo
A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de
captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a
expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo
(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo
A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio
narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo
apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal
(iii) Marino e o juiz a confissatildeo
A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente
que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir
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(iv) Marino e o bispo a decisatildeo
Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de
Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem
palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a
espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe
a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras
(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo
Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo
Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte
53 TEMPO E ESPACcedilO
O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto
para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης
ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor
Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e
a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII
12)
A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que
Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em
todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto
o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se
deram de maneira muito raacutepida
Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia
na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no
entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes
contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o
Cristianismo
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O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno
poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por
Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo
tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito
cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera
propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz
que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os
sofrimentos corporais
Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte
54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS
O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de
diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um
detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga
essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de
martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)
Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte
A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da
distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no
entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor
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A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra
no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios
desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica
Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com
Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma
narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute
portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a
noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007
8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente
engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo
No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no
uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo
εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por
ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento
por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann
2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que
eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega
amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e
decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo
do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio
ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento
emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado
comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como
afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva
de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a
forte presenccedila do aspecto emotivo
A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para
enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou
ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops
(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma
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medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te
apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo
Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila
Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte
pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o
caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o
representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute
o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar
Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel
seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os
espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo
Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na
hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops
(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo
obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo
O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino
se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua
decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo
que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar
O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma
meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior
sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O
adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez
Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num
texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e
ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς
πίστεως τὴν προθυμίαν
Assim temos
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Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)
darrdarrdarrdarr
Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo
darrdarrdarrdarr
Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo
O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas
uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado
pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν
ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente
detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita
conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui
coerecircncia ao texto
Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)
destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura
feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que
todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou
seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica
fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e
estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha
havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois
poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo
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sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser
adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um
antagonismo fundamentalrdquo
O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de
Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo
substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo
ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos
esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no
texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino
Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos
durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e
por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que
a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino
Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη
ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto
o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων
o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος
o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις
o substantivo εἰρήνη
o substantivo μαρτυρία
Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e
formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado
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A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes
por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)
honra romana (τιμή)
vide (κλῆμα)
centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)
reconhecimento passageiro e
terreno (ἀξιώμασι
τετιμημένων )
honra cristatilde (τιμή)
paz (εἰρήνη)
maacutertir (μάρτυρ)
reconhecimento eterno e divino
(τελειοῦται)
O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria
honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o
argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado
explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos
versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω
ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o
objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας
φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo
Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o
ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ
τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela
feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)
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Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha
pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento
terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo
ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na
comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o
cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)
Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito
mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp
Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo
por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute
essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto
O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por
exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer
voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do
termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que
ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to
the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις
Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de
um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados
Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor
menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A
acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os
personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado
numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo
de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute
em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz
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como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da
acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade
interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se
constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio
por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os
imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao
registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o
mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)
A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das
intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que
como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos
entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo
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CONCLUSAtildeO
O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e
produtivo sob vaacuterios aspectos
Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual
gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A
percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a
ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os
primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma
instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na
literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um
pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os
cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo
- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura
No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do
texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico
durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e
consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa
ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias
da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna
centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o
posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos
fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento
A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se
compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao
bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se
mostrar complacente
39
Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os
cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de
sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem
como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como
um substituto aos espetaacuteculos romanos
Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave
plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos
Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o
que deu origem ao culto dos santos
Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda
precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos
possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados
ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται
presente no texto traduzido e em outros relatos
Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais
utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e
posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma
melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande
auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo
cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade
proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses
novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde
40
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43
ANEXOS
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)
[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1
1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em
Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um
tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua
linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte
2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles
que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o
escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a
honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo
as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que
era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a
ele
3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a
Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que
era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse
4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e
afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma
vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o
manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e
contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as
duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a
direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -
manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que
escolheste Vai em pazrdquo
1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu
este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer
casos como o de Marino [nota do Editor]
44
5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de
novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado
Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua
feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado
45
TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)
During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in
Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and
was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It
came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour
and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and
according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he
was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and
attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and
should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to
the ancient laws but that instead the post should fall to himself
It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he
first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed
that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had
Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside
in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed
Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword
attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it
before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out
his right hand and took the divine writings
lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him
may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo
No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the
tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and
showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to
execution and so found his fulfilment
17
enredo Como o romance biograacutefico tem como elemento principal a narraccedilatildeo da trajetoacuteria
vital de um determinado personagem ou seja tem como base justamente aqueles ldquoelementos
existentes antes do iniacutecio ou depois do teacutermino do romance de provaccedilatildeordquo (Ibid) engloba
necessariamente o relato da morte fato fundamental para o surgimento de um maacutertir na
concepccedilatildeo cristatilde
No romance biograacutefico a relaccedilatildeo da personagem com o mundo ganha um enfoque
diferente daquele verificado no romance de viagens ou no de provaccedilatildeo Bakhtin (2003 215)
verifica que ldquoPersonagens secundaacuterias paiacuteses cidades objetos etc integram o romance
biograacutefico por vias substanciais e ganham uma relaccedilatildeo igualmente substancial com o todo
vital da personagem centralrdquo Paradoxalmente o relato do soldado Marino apresenta tambeacutem
esse aspecto Embora ele permanecesse inabalaacutevel em sua decisatildeo de natildeo negar a feacute cristatilde
antes de o juiz lhe conceder um tempo para refletir eacute no encontro com o bispo Teotecno e
principalmente apoacutes o confronto com um objeto de grande valor ndash as Escrituras ndash que
Marino segue resoluto para o tribunal
Bakhtin tambeacutem escreve sobre o gecircnero hagiograacutefico embora com mais cautela Para
o autor (2003 169-70) ldquoa hagiografia se realiza diretamente no mundo do divinordquo Por se
tratar de um plano diferenciado em que ldquoa atitude reverente do autor natildeo deixa espaccedilo agrave
iniciativa individualrdquo (2003 170) Bakhtin prefere manter a mesma distacircncia Assim limita-
se em dizer que a hagiografia ldquorecorre a formas tradicionalmente sagradasrdquo (Ibid)
No aspecto formal os relatos de martiacuterio possuem de fato vaacuterias semelhanccedilas e um
fundamento em comum que satildeo os processos verbais No entanto ainda natildeo existe entre os
seacuteculos II e IV dC essa preocupaccedilatildeo ou esse rigor com a forma com a exclusatildeo de todo
elemento que possa remeter agrave individualidade
deve-se excluir tudo o que eacute tiacutepico de uma dada eacutepoca de uma dada nacionalidade () de uma dada condiccedilatildeo social de uma dada idade todo o concreto de uma imagem de uma vida todas as minuacutecias desta as indicaccedilotildees precisas do tempo e do espaccedilo na accedilatildeo ndash tudo o que reforccedila a determinidade no ser de um dado indiviacuteduo e assim lhe diminui a autoridade (Bakhtin 2003 170)
Vecirc-se portanto a partir dessa breve anaacutelise que o gecircnero biacuteos hagiograacutefico mescla
caracteriacutesticas tanto do gecircnero biograacutefico ndash seja biacuteos ou romance biograacutefico - quanto da
hagiografia constituindo assim um gecircnero agrave parte
18
2 CONTEXTO SOacuteCIO-HISTOacuteRICO
O relato do martiacuterio de Marino se tornou conhecido por meio da obra Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio bispo de Cesareacuteia no iniacutecio do seacuteculo IV Para Puech (1930 173)
ldquoEusegravebe est un meacutediocre theacuteologien et un meacutediocre eacutecrivain () mais il nous a rendu comme
historien et comme chronographe des services inestimablesrdquo De fato dificilmente teriacuteamos
acesso a esse texto se natildeo fosse o trabalho de Euseacutebio De acordo com a cronologia do bispo
a morte de Marino eacute situada entre os anos 260-261 dC Para o tradutor Musurillo (2000
xxxvi) essa data eacute bastante provaacutevel O comentaacuterio no relato de que todas as igrejas
desfrutavam de um periacuteodo de paz eacute o principal fator que leva a essa conclusatildeo No ano de
260 dC eacute promulgado o edito de Galieno o qual ldquoautoriza os liacutederes da Igreja a presidir
livremente as celebraccedilotildees religiosasrdquo (Silva 2006 250)
No entanto mesmo com as medidas favoraacuteveis por parte dos governantes o
cristianismo permanecia uma religio ilicita e portanto os cristatildeos ainda estavam sujeitos a
julgamento caso fossem delatados Foi o que aconteceu com o soldado Marino Uma vez
acusado de ser cristatildeo e de natildeo prestar culto ao imperador foi levado ao tribunal Eacute muito
provaacutevel que Marino tivesse vaacuterios colegas cristatildeos no exeacutercito que natildeo foram executados
porque ningueacutem aparecera para acusaacute-los A situaccedilatildeo dos cristatildeos era realmente
imprevisiacutevel Daniel-Rops (1988 346) comenta que no seacuteculo III essa constante mudanccedila de
humor por parte do Impeacuterio criou uma situaccedilatildeo sem precedentes ldquoComo um anciatildeo doente
que ora dormita inconsciente ou vagamente inquieto ignorando as impaciecircncias que o
rodeiam ora se irrita e ainda se mostra terriacutevel da mesma forma o Impeacuterio muda a todo o
momento de atitude Eacute isto o que daacute agraves perseguiccedilotildees do seacuteculo III um caraacuteter tatildeo diferente das
precedentesrdquo
Assim Marino foi o escolhido naquele momento de paz temporaacuteria Eles tinham
conhecimento da lei que estava em vigor desde a eacutepoca do imperador Trajano (110-111 dC)
quando este determinara ao governador Pliacutenio que os cristatildeos natildeo deveriam ser
sistematicamente perseguidos nem deveriam ser aceitas denuacutencias anocircnimas contra eles
(Gonzaacutelez 1995 64) A recomendaccedilatildeo dada a Pliacutenio havia sido adotada em todo o Impeacuterio
Uma vez acusados entretanto deveriam ser julgados Geralmente os cristatildeos eram levados
19
ao tribunal em decorrecircncia de disputas locais como escrevem Danieacutelou amp Marrou (1966
105)
Conveacutem frisar que natildeo haacute proscriccedilatildeo de cristatildeos pelo poder central quer dizer natildeo haacute perseguiccedilatildeo total Em segundo lugar verificam-se ataques locais movidos pelo povo e depois submetidos agrave apreciaccedilatildeo do magistrado romano () Em terceiro lugar o motivo da perseguiccedilatildeo natildeo se liga a crimes determinados mas unicamente ao lsquonomersquo cristatildeo O levantamento feito por Pliacutenio levara mesmo agrave conclusatildeo de que eram inocentes os cristatildeos
Guignebert (1956 169-70) tambeacutem assinala que apesar de todas as acusaccedilotildees
nenhum crime recaiacutea sobre os cristatildeos
Varias acusaciones de derecho comuacuten se poniacutean en juego al mismo tiempo para agobiar a los fieles religioacuten iliacutecita sociedad secreta lesa majestad negativa de obediencia si se trataba de soldados ignavia es decir negligencia en el cumplimiento de los deberes de la vida puacuteblica y privada y hasta magia Por lo demaacutes estas acusaciones cuando se aplicaban a los cristianos presentaban la singularidad de que se desistia inmediatamente de ellas si el inculpado consentiacutea en decir que renunciaba a su feacute lo que permite suponer que en suma era la religioacuten cristiana solamente lo que se perseguia
Ainda assim os cristatildeos precisavam ser castigados porque ao insistirem na afirmaccedilatildeo
ldquoSou cristatildeordquo rebelavam-se contra os princiacutepios do Impeacuterio especialmente o do culto ao
imperador
Este delito tinha de ser castigado em primeiro lugar porque de outro modo diminuiria a autoridade desses tribunais e em segundo lugar porque ao negarem a adorar o imperador os cristatildeos estavam adotando uma atitude que nesse tempo se interpretava como rebeliatildeo contra a autoridade imperial Com efeito o culto ao imperador era um dos viacutenculos que uniam o Impeacuterio e negar-se em puacuteblico a render esse culto equivalia a romper esse viacutenculo (Gonzaacutelez 1995 66)
Novamente percebe-se o caraacuteter imprevisiacutevel da vida cristatilde Os autores reconhecem
que de uma maneira geral as comunidades cristatildes procuravam levar uma vida exemplar e
submissa agraves leis do Impeacuterio ldquoAs instruccedilotildees de civismo dadas pelos Apoacutestolos continuam a
ser observadas e os cristatildeos mostram-se na sua grande maioria cidadatildeos fieacuteis e devotados ao
bem puacuteblicordquo (Daniel-Rops 1988 345) Poreacutem quando levados a julgamento puacuteblico natildeo
aceitavam prestar culto a outro senhor aleacutem de Cristo
No tocante ao serviccedilo militar as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio nem sempre eram
tatildeo simples Na opiniatildeo de Guignebert (1956 166) isso se dava porque as obrigaccedilotildees
militares geralmente tinham uma forte ligaccedilatildeo com as praacuteticas religiosas pagatildes
20
El servicio militar les resultaba odioso porque suponiacutea obligaciones idolaacutetricas y porque execraban la guerra su participacioacuten en el servicio civil les pareciacutea supeacuterflua sobre todo se rehusaban obstinadamente a tomar parte en ninguna de las manifestaciones de lealtad que el gobierno imperial reclamaba porque todas revestiacutean caraacutecter religioso
Do mesmo modo Daniel-Rops (1988 345) relata
casos de objeccedilatildeo de consciecircncia ao serviccedilo militar como acontece com um jovem soldado que exclama ldquoNatildeo me eacute permitido trazer ao pescoccedilo o signum (espeacutecie de placa de identidade usada no exeacutercito romano) porque fui marcado com o sinal de Cristordquo ou com um outro soldado que se recusou a colocar sobre a cabeccedila a coroa ritual dos sacrifiacutecios em honra do imperador Satildeo casos ainda excepcionais mas sintomaacuteticos a oposiccedilatildeo profunda entre Roma e a Igreja tende a passar do plano religioso para o plano ciacutevico e poliacutetico
A intervenccedilatildeo do plano religioso sobre o poliacutetico e vice-versa foi consequumlecircncia da
busca por parte dos romanos de um sistema seguro no qual pudessem se apoiar Com a
decadecircncia poliacutetica econocircmica e moral o nuacutemero de seitas e religiotildees se multiplicava
formando um quadro extremamente pluralista (cf Daniel-Rops 1988 307) Eacute no seacuteculo III
que a dinastia dos Severos se impotildee e juntamente com ela vecircm as tradiccedilotildees religiosas
orientais
El advenimiento con los Severos de principes africanos y sirios la dominacioacuten de mujeres penetradas de la piedade miacutestica de Oriente favorecieron su raacutepido desarollo y el siglo III conocioacute todas sus formas desde las maacutes groseras estrechamente emparentadas com la supersticioacuten pura hasta las maacutes refinadas modeladas pelas reflexiones de la filosofia que desde entonces tenderiacutea hacia lo divino (Guignebert 1956 119)
Neste panorama soacutecio-poliacutetico o cristianismo foi a religiatildeo abraccedilada por muitos
cidadatildeos natildeo soacute ldquotecelotildees pisoeiros e sapateirosrdquo mas tambeacutem ldquoadvogados como Satildeo
Gregoacuterio Taumaturgo ou Satildeo Cipriano de Cartago mulheres da sociedade como Santa
Perpeacutetua grandes burgueses da proviacutencia e lsquoclariacutessimosrsquo de famiacutelias senatoriaisrdquo (Daniel-
Rops 1988 317) Para Guignebert (1956 121) o contato da elite com o cristianismo se deu
essencialmente por meio dos escravos e da filosofia
a traveacutes de los esclavos llegoacute a las mujeres libres sus amas y accidentalmente atrajo la atencioacuten de algunos hombres instruiacutedos que buscaban la verdad divina Gracias a las primeras se insinuoacute en las classes altas gracias a los segundos tomoacute contacto con la filosofia en el curso del siglo II y las consecuencias de este encuentro fueron incalculables
Eacute importante relembrar que a filosofia pressupunha a escrita e tinha um forte viacutenculo
com a literatura Mesmo o cristianismo no seacuteculo III jaacute possuiacutea um consideraacutevel nuacutemero de
21
textos apologeacuteticos que dialogavam diretamente com a filosofia grega e possibilitavam para
a elite o acesso agraves ideacuteias cristatildes (cf Alesso 2006 31)
O relato do martiacuterio do soldado Marino surge portanto nesse contexto soacutecio-histoacuterico
como um texto de grande relevacircncia para o cristianismo Primeiro porque o personagem
principal eacute um soldado Integrava o grupo social de maior prestiacutegio nessa eacutepoca Como dizia
Septiacutemio Severo aos seus filhos ldquoEnriquecei o soldado e zombai do restordquo (Daniel-Rops
1988 299) E como no seacuteculo III as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio tomam uma nova
configuraccedilatildeo o contraste entre essas duas instituiccedilotildees eacute um assunto central O embate deixa
de ser apenas religioso e passa a ser tambeacutem poliacutetico - fato que vai se confirmar no seacuteculo
IV
Em segundo lugar a posiccedilatildeo social do maacutertir levanta outra questatildeo Marino como
membro da elite poderia facilmente ter comprado o libellus ndash documento que comprovava o
sacrifiacutecio aos deuses romanos ndash e assim conseguir sua liberdade (cf Silva 2006 248)
Daniel-Rops (1988 367) detalha que os ricos eram mais propensos a comprar falsos
documentos e a desistir ldquoConforme os testemunhos que temos parece que eram sobretudo os
ricos os bem instalados aqueles a quem a vida tinha concedido todo o conforto e que natildeo
estavam dispostos a sacrificaacute-lordquo que renunciavam agrave feacute
Aleacutem de abrir matildeo de sua posiccedilatildeo social e dos privileacutegios que iria obter como
centuriatildeo Marino natildeo se deixou dominar pelo medo a principal razatildeo da apostasia segundo
Daniel-Rops (1988 367) Eacute importante lembrar que a perseguiccedilatildeo sob Deacutecio instaurada em
249 dC ainda era bastante recente Numa tentativa de restaurar a gloacuteria do Impeacuterio Deacutecio
havia promulgado uma lei que obrigava todos os suacuteditos a retomarem o culto aos deuses
romanos Para ele ldquose todos os suacuteditos do Impeacuterio voltassem a adorar os deuses
possivelmente os deuses voltariam a favorecer o Impeacuteriordquo (Gonzaacutelez 1995 138) O culto era
um elemento essencial para os romanos Era por meio dele que expressavam sua
religiosidade como escreve Arnauld (2001 15) ldquoLa lsquopietasrsquo (pieacuteteacute) eacutetait la caracteacuteristique
principale de la religiositeacute romaine () Cette lsquopietasrsquo srsquoexprimait en une observance stricte
des lois rituelles Religion signifiait culterdquo
O descumprimento da lei por parte dos cristatildeos provocou uma perseguiccedilatildeo que teve
como consequumlecircncia um grande nuacutemero de apostasias fato que chegou a causar divergecircncia de
22
opiniatildeo entre os bispos Num novo periacuteodo de relativa paz era portanto de suma importacircncia
para a Igreja insistir que os cristatildeos permanecessem firmes em suas convicccedilotildees Como
observa Daniel-Rops (1988 367) ldquoesses periacuteodos de interrupccedilatildeo nas perseguiccedilotildees natildeo
ajudavam em nada a coragem dos fieacuteis durante os tempos de calma a mola distendia-se e
quando subitamente era preciso voltar a entrar em luta muitos se sentiam faltos de energiardquo
Assim o testemunho de Marino evidencia o conflito existente entre a Igreja e o
Impeacuterio e conclama de maneira didaacutetica a que os cristatildeos tenham a mesma disposiccedilatildeo
mesmo diante da possibilidade da apostasia e dos terrores de um novo periacuteodo de perseguiccedilatildeo
23
3 TEXTO GREGO
Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου Μαρίνου
Κατὰ τούτους εἰρήνης ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης ἐν Καισαρείᾳ τῆς
Παλαιστίνης Μαρῖνος τῶν ἐν στρατείαις ἀξιώμασι τετιμημένων γένει τε
καὶ πλοὕτῳ περιφανὴς ἀνήρ διὰ τὴν Χριστοῦ μαρτυρίαν τὴν κεφαλὴν
ἀποτέμνεται τοιᾶσδε ἕνεκεν αἰτίας
2 τιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας φασίν
ἑκατοντάρχους γίνεσθαι Τόπου σχολάζοντος ἐπὶ τοῦτο προκοπῆς τὸν
Μαρῖνον ἡ τοῦ βαθμοῦ τάξις ἐκάλει ἤδη τε μέλλοντα τῆς τιμῆς ἔχεσθαι
Παρελθὼν ἄλλος πρὸ τοῦ βήματος μὴ ἐξεῖναι μὲν ἐκείνῳ τῆς Ῥωμαίων
μετέχειν ἀξίας κατὰ τοὺς παλαιοὺς νόμους Χριστιανῷ γε ὄντι καὶ τοῖς
βασιλεῦσι μὴ θύοντι κατηγόρει αὐτῷ δὲ ἐπιβάλλειν τὸν κλῆρον
3 ἐφ᾿ ᾧ κινηθέντα τὸν δικαστὴν (Ἀχαιὸς οὕτος ἧν) πρῶτον μὲν ἐρέσθαι
ποίας ὁ Μαρῖνος εἴη γνώμης ὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν ἐπιμόνως
ἑώρα τριῶν ὡρῶν ἐπιδοῦναι αὐτῷ εἰς ἐπίσκεψιν διάστημα
4 ἐκτὸς δῆτα γενόμενον αὐτὸν τοῦ δικαστηρίου Θεότεκνος ὁ τῇδε
ἐπίσκοπος ἀφέλκει προσελθὼν δι᾿ ὁμιλίας καὶ τῆς χειρὸς λαβὼν ἐπὶ τὴν
ἐκκλησίαν προάγει εἴσω τε πρὸς αὐτῷ στήσας τῷ ἁγιάσματι μικρόν τι
παραναστείλας αὐτοῦ τῆς χλαμύδος καὶ τὸ προσηρτημένον αὐτῷ ξίφος
ἐπιδείξας ἅμα τε ἀντιπαρατίθησι προσαγαγὼν αὐτῷ τὴν τῶν θείων
εὐαγγελίων γραψήν κελεύσας τῶν δυοῖν ἑλέσθαι τὸ κατὰ γνώμην ὡς δ᾿
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ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν
ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς
αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης
5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ
δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ
δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν
ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται
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4 TRADUCcedilAtildeO
O martiacuterio do Santo Marino
1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares
em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido
honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por
todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu
testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte
2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a
conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a
ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo
Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e
declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e
portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos
romanos Assim o cargo cairia para si
3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou
primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele
insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs
horas para refletir
4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era
bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela
matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando
um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo
tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos
exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem
hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas
ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno
ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo
5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para
o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se
apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute
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imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre
o seu fim
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5 COMENTAacuteRIOS
51 OS PERSONAGENS
Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em
um ponto da estrutura
Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola
Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal
familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute
exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um
homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos
movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do
texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave
autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado
guerreiro
O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo
dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo
para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A
denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma
preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega
Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o
exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees
do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio
militar portanto tinha um significado muito grande
Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas
informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou
compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem
disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo
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Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na
quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado
provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era
seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para
conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial
para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve
como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)
O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para
anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo
de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos
outros personagens no texto
52 ESTRUTURA
O texto pode ser subdividido em 5 partes
(i) Marino o soldado cristatildeo
A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no
espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo
A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de
captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a
expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo
(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo
A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio
narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo
apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal
(iii) Marino e o juiz a confissatildeo
A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente
que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir
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(iv) Marino e o bispo a decisatildeo
Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de
Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem
palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a
espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe
a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras
(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo
Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo
Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte
53 TEMPO E ESPACcedilO
O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto
para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης
ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor
Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e
a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII
12)
A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que
Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em
todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto
o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se
deram de maneira muito raacutepida
Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia
na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no
entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes
contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o
Cristianismo
30
O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno
poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por
Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo
tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito
cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera
propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz
que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os
sofrimentos corporais
Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte
54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS
O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de
diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um
detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga
essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de
martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)
Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte
A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da
distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no
entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor
31
A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra
no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios
desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica
Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com
Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma
narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute
portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a
noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007
8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente
engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo
No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no
uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo
εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por
ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento
por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann
2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que
eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega
amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e
decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo
do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio
ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento
emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado
comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como
afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva
de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a
forte presenccedila do aspecto emotivo
A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para
enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou
ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops
(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma
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medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te
apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo
Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila
Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte
pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o
caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o
representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute
o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar
Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel
seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os
espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo
Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na
hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops
(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo
obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo
O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino
se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua
decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo
que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar
O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma
meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior
sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O
adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez
Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num
texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e
ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς
πίστεως τὴν προθυμίαν
Assim temos
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Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)
darrdarrdarrdarr
Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo
darrdarrdarrdarr
Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo
O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas
uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado
pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν
ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente
detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita
conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui
coerecircncia ao texto
Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)
destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura
feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que
todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou
seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica
fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e
estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha
havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois
poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo
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sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser
adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um
antagonismo fundamentalrdquo
O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de
Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo
substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo
ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos
esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no
texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino
Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos
durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e
por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que
a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino
Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη
ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto
o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων
o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος
o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις
o substantivo εἰρήνη
o substantivo μαρτυρία
Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e
formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado
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A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes
por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)
honra romana (τιμή)
vide (κλῆμα)
centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)
reconhecimento passageiro e
terreno (ἀξιώμασι
τετιμημένων )
honra cristatilde (τιμή)
paz (εἰρήνη)
maacutertir (μάρτυρ)
reconhecimento eterno e divino
(τελειοῦται)
O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria
honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o
argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado
explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos
versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω
ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o
objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας
φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo
Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o
ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ
τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela
feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)
36
Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha
pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento
terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo
ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na
comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o
cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)
Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito
mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp
Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo
por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute
essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto
O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por
exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer
voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do
termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que
ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to
the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις
Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de
um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados
Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor
menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A
acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os
personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado
numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo
de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute
em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz
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como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da
acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade
interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se
constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio
por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os
imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao
registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o
mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)
A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das
intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que
como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos
entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo
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CONCLUSAtildeO
O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e
produtivo sob vaacuterios aspectos
Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual
gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A
percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a
ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os
primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma
instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na
literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um
pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os
cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo
- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura
No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do
texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico
durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e
consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa
ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias
da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna
centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o
posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos
fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento
A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se
compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao
bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se
mostrar complacente
39
Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os
cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de
sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem
como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como
um substituto aos espetaacuteculos romanos
Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave
plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos
Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o
que deu origem ao culto dos santos
Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda
precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos
possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados
ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται
presente no texto traduzido e em outros relatos
Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais
utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e
posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma
melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande
auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo
cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade
proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses
novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde
40
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43
ANEXOS
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)
[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1
1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em
Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um
tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua
linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte
2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles
que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o
escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a
honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo
as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que
era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a
ele
3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a
Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que
era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse
4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e
afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma
vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o
manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e
contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as
duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a
direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -
manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que
escolheste Vai em pazrdquo
1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu
este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer
casos como o de Marino [nota do Editor]
44
5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de
novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado
Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua
feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado
45
TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)
During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in
Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and
was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It
came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour
and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and
according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he
was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and
attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and
should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to
the ancient laws but that instead the post should fall to himself
It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he
first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed
that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had
Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside
in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed
Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword
attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it
before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out
his right hand and took the divine writings
lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him
may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo
No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the
tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and
showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to
execution and so found his fulfilment
18
2 CONTEXTO SOacuteCIO-HISTOacuteRICO
O relato do martiacuterio de Marino se tornou conhecido por meio da obra Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio bispo de Cesareacuteia no iniacutecio do seacuteculo IV Para Puech (1930 173)
ldquoEusegravebe est un meacutediocre theacuteologien et un meacutediocre eacutecrivain () mais il nous a rendu comme
historien et comme chronographe des services inestimablesrdquo De fato dificilmente teriacuteamos
acesso a esse texto se natildeo fosse o trabalho de Euseacutebio De acordo com a cronologia do bispo
a morte de Marino eacute situada entre os anos 260-261 dC Para o tradutor Musurillo (2000
xxxvi) essa data eacute bastante provaacutevel O comentaacuterio no relato de que todas as igrejas
desfrutavam de um periacuteodo de paz eacute o principal fator que leva a essa conclusatildeo No ano de
260 dC eacute promulgado o edito de Galieno o qual ldquoautoriza os liacutederes da Igreja a presidir
livremente as celebraccedilotildees religiosasrdquo (Silva 2006 250)
No entanto mesmo com as medidas favoraacuteveis por parte dos governantes o
cristianismo permanecia uma religio ilicita e portanto os cristatildeos ainda estavam sujeitos a
julgamento caso fossem delatados Foi o que aconteceu com o soldado Marino Uma vez
acusado de ser cristatildeo e de natildeo prestar culto ao imperador foi levado ao tribunal Eacute muito
provaacutevel que Marino tivesse vaacuterios colegas cristatildeos no exeacutercito que natildeo foram executados
porque ningueacutem aparecera para acusaacute-los A situaccedilatildeo dos cristatildeos era realmente
imprevisiacutevel Daniel-Rops (1988 346) comenta que no seacuteculo III essa constante mudanccedila de
humor por parte do Impeacuterio criou uma situaccedilatildeo sem precedentes ldquoComo um anciatildeo doente
que ora dormita inconsciente ou vagamente inquieto ignorando as impaciecircncias que o
rodeiam ora se irrita e ainda se mostra terriacutevel da mesma forma o Impeacuterio muda a todo o
momento de atitude Eacute isto o que daacute agraves perseguiccedilotildees do seacuteculo III um caraacuteter tatildeo diferente das
precedentesrdquo
Assim Marino foi o escolhido naquele momento de paz temporaacuteria Eles tinham
conhecimento da lei que estava em vigor desde a eacutepoca do imperador Trajano (110-111 dC)
quando este determinara ao governador Pliacutenio que os cristatildeos natildeo deveriam ser
sistematicamente perseguidos nem deveriam ser aceitas denuacutencias anocircnimas contra eles
(Gonzaacutelez 1995 64) A recomendaccedilatildeo dada a Pliacutenio havia sido adotada em todo o Impeacuterio
Uma vez acusados entretanto deveriam ser julgados Geralmente os cristatildeos eram levados
19
ao tribunal em decorrecircncia de disputas locais como escrevem Danieacutelou amp Marrou (1966
105)
Conveacutem frisar que natildeo haacute proscriccedilatildeo de cristatildeos pelo poder central quer dizer natildeo haacute perseguiccedilatildeo total Em segundo lugar verificam-se ataques locais movidos pelo povo e depois submetidos agrave apreciaccedilatildeo do magistrado romano () Em terceiro lugar o motivo da perseguiccedilatildeo natildeo se liga a crimes determinados mas unicamente ao lsquonomersquo cristatildeo O levantamento feito por Pliacutenio levara mesmo agrave conclusatildeo de que eram inocentes os cristatildeos
Guignebert (1956 169-70) tambeacutem assinala que apesar de todas as acusaccedilotildees
nenhum crime recaiacutea sobre os cristatildeos
Varias acusaciones de derecho comuacuten se poniacutean en juego al mismo tiempo para agobiar a los fieles religioacuten iliacutecita sociedad secreta lesa majestad negativa de obediencia si se trataba de soldados ignavia es decir negligencia en el cumplimiento de los deberes de la vida puacuteblica y privada y hasta magia Por lo demaacutes estas acusaciones cuando se aplicaban a los cristianos presentaban la singularidad de que se desistia inmediatamente de ellas si el inculpado consentiacutea en decir que renunciaba a su feacute lo que permite suponer que en suma era la religioacuten cristiana solamente lo que se perseguia
Ainda assim os cristatildeos precisavam ser castigados porque ao insistirem na afirmaccedilatildeo
ldquoSou cristatildeordquo rebelavam-se contra os princiacutepios do Impeacuterio especialmente o do culto ao
imperador
Este delito tinha de ser castigado em primeiro lugar porque de outro modo diminuiria a autoridade desses tribunais e em segundo lugar porque ao negarem a adorar o imperador os cristatildeos estavam adotando uma atitude que nesse tempo se interpretava como rebeliatildeo contra a autoridade imperial Com efeito o culto ao imperador era um dos viacutenculos que uniam o Impeacuterio e negar-se em puacuteblico a render esse culto equivalia a romper esse viacutenculo (Gonzaacutelez 1995 66)
Novamente percebe-se o caraacuteter imprevisiacutevel da vida cristatilde Os autores reconhecem
que de uma maneira geral as comunidades cristatildes procuravam levar uma vida exemplar e
submissa agraves leis do Impeacuterio ldquoAs instruccedilotildees de civismo dadas pelos Apoacutestolos continuam a
ser observadas e os cristatildeos mostram-se na sua grande maioria cidadatildeos fieacuteis e devotados ao
bem puacuteblicordquo (Daniel-Rops 1988 345) Poreacutem quando levados a julgamento puacuteblico natildeo
aceitavam prestar culto a outro senhor aleacutem de Cristo
No tocante ao serviccedilo militar as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio nem sempre eram
tatildeo simples Na opiniatildeo de Guignebert (1956 166) isso se dava porque as obrigaccedilotildees
militares geralmente tinham uma forte ligaccedilatildeo com as praacuteticas religiosas pagatildes
20
El servicio militar les resultaba odioso porque suponiacutea obligaciones idolaacutetricas y porque execraban la guerra su participacioacuten en el servicio civil les pareciacutea supeacuterflua sobre todo se rehusaban obstinadamente a tomar parte en ninguna de las manifestaciones de lealtad que el gobierno imperial reclamaba porque todas revestiacutean caraacutecter religioso
Do mesmo modo Daniel-Rops (1988 345) relata
casos de objeccedilatildeo de consciecircncia ao serviccedilo militar como acontece com um jovem soldado que exclama ldquoNatildeo me eacute permitido trazer ao pescoccedilo o signum (espeacutecie de placa de identidade usada no exeacutercito romano) porque fui marcado com o sinal de Cristordquo ou com um outro soldado que se recusou a colocar sobre a cabeccedila a coroa ritual dos sacrifiacutecios em honra do imperador Satildeo casos ainda excepcionais mas sintomaacuteticos a oposiccedilatildeo profunda entre Roma e a Igreja tende a passar do plano religioso para o plano ciacutevico e poliacutetico
A intervenccedilatildeo do plano religioso sobre o poliacutetico e vice-versa foi consequumlecircncia da
busca por parte dos romanos de um sistema seguro no qual pudessem se apoiar Com a
decadecircncia poliacutetica econocircmica e moral o nuacutemero de seitas e religiotildees se multiplicava
formando um quadro extremamente pluralista (cf Daniel-Rops 1988 307) Eacute no seacuteculo III
que a dinastia dos Severos se impotildee e juntamente com ela vecircm as tradiccedilotildees religiosas
orientais
El advenimiento con los Severos de principes africanos y sirios la dominacioacuten de mujeres penetradas de la piedade miacutestica de Oriente favorecieron su raacutepido desarollo y el siglo III conocioacute todas sus formas desde las maacutes groseras estrechamente emparentadas com la supersticioacuten pura hasta las maacutes refinadas modeladas pelas reflexiones de la filosofia que desde entonces tenderiacutea hacia lo divino (Guignebert 1956 119)
Neste panorama soacutecio-poliacutetico o cristianismo foi a religiatildeo abraccedilada por muitos
cidadatildeos natildeo soacute ldquotecelotildees pisoeiros e sapateirosrdquo mas tambeacutem ldquoadvogados como Satildeo
Gregoacuterio Taumaturgo ou Satildeo Cipriano de Cartago mulheres da sociedade como Santa
Perpeacutetua grandes burgueses da proviacutencia e lsquoclariacutessimosrsquo de famiacutelias senatoriaisrdquo (Daniel-
Rops 1988 317) Para Guignebert (1956 121) o contato da elite com o cristianismo se deu
essencialmente por meio dos escravos e da filosofia
a traveacutes de los esclavos llegoacute a las mujeres libres sus amas y accidentalmente atrajo la atencioacuten de algunos hombres instruiacutedos que buscaban la verdad divina Gracias a las primeras se insinuoacute en las classes altas gracias a los segundos tomoacute contacto con la filosofia en el curso del siglo II y las consecuencias de este encuentro fueron incalculables
Eacute importante relembrar que a filosofia pressupunha a escrita e tinha um forte viacutenculo
com a literatura Mesmo o cristianismo no seacuteculo III jaacute possuiacutea um consideraacutevel nuacutemero de
21
textos apologeacuteticos que dialogavam diretamente com a filosofia grega e possibilitavam para
a elite o acesso agraves ideacuteias cristatildes (cf Alesso 2006 31)
O relato do martiacuterio do soldado Marino surge portanto nesse contexto soacutecio-histoacuterico
como um texto de grande relevacircncia para o cristianismo Primeiro porque o personagem
principal eacute um soldado Integrava o grupo social de maior prestiacutegio nessa eacutepoca Como dizia
Septiacutemio Severo aos seus filhos ldquoEnriquecei o soldado e zombai do restordquo (Daniel-Rops
1988 299) E como no seacuteculo III as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio tomam uma nova
configuraccedilatildeo o contraste entre essas duas instituiccedilotildees eacute um assunto central O embate deixa
de ser apenas religioso e passa a ser tambeacutem poliacutetico - fato que vai se confirmar no seacuteculo
IV
Em segundo lugar a posiccedilatildeo social do maacutertir levanta outra questatildeo Marino como
membro da elite poderia facilmente ter comprado o libellus ndash documento que comprovava o
sacrifiacutecio aos deuses romanos ndash e assim conseguir sua liberdade (cf Silva 2006 248)
Daniel-Rops (1988 367) detalha que os ricos eram mais propensos a comprar falsos
documentos e a desistir ldquoConforme os testemunhos que temos parece que eram sobretudo os
ricos os bem instalados aqueles a quem a vida tinha concedido todo o conforto e que natildeo
estavam dispostos a sacrificaacute-lordquo que renunciavam agrave feacute
Aleacutem de abrir matildeo de sua posiccedilatildeo social e dos privileacutegios que iria obter como
centuriatildeo Marino natildeo se deixou dominar pelo medo a principal razatildeo da apostasia segundo
Daniel-Rops (1988 367) Eacute importante lembrar que a perseguiccedilatildeo sob Deacutecio instaurada em
249 dC ainda era bastante recente Numa tentativa de restaurar a gloacuteria do Impeacuterio Deacutecio
havia promulgado uma lei que obrigava todos os suacuteditos a retomarem o culto aos deuses
romanos Para ele ldquose todos os suacuteditos do Impeacuterio voltassem a adorar os deuses
possivelmente os deuses voltariam a favorecer o Impeacuteriordquo (Gonzaacutelez 1995 138) O culto era
um elemento essencial para os romanos Era por meio dele que expressavam sua
religiosidade como escreve Arnauld (2001 15) ldquoLa lsquopietasrsquo (pieacuteteacute) eacutetait la caracteacuteristique
principale de la religiositeacute romaine () Cette lsquopietasrsquo srsquoexprimait en une observance stricte
des lois rituelles Religion signifiait culterdquo
O descumprimento da lei por parte dos cristatildeos provocou uma perseguiccedilatildeo que teve
como consequumlecircncia um grande nuacutemero de apostasias fato que chegou a causar divergecircncia de
22
opiniatildeo entre os bispos Num novo periacuteodo de relativa paz era portanto de suma importacircncia
para a Igreja insistir que os cristatildeos permanecessem firmes em suas convicccedilotildees Como
observa Daniel-Rops (1988 367) ldquoesses periacuteodos de interrupccedilatildeo nas perseguiccedilotildees natildeo
ajudavam em nada a coragem dos fieacuteis durante os tempos de calma a mola distendia-se e
quando subitamente era preciso voltar a entrar em luta muitos se sentiam faltos de energiardquo
Assim o testemunho de Marino evidencia o conflito existente entre a Igreja e o
Impeacuterio e conclama de maneira didaacutetica a que os cristatildeos tenham a mesma disposiccedilatildeo
mesmo diante da possibilidade da apostasia e dos terrores de um novo periacuteodo de perseguiccedilatildeo
23
3 TEXTO GREGO
Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου Μαρίνου
Κατὰ τούτους εἰρήνης ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης ἐν Καισαρείᾳ τῆς
Παλαιστίνης Μαρῖνος τῶν ἐν στρατείαις ἀξιώμασι τετιμημένων γένει τε
καὶ πλοὕτῳ περιφανὴς ἀνήρ διὰ τὴν Χριστοῦ μαρτυρίαν τὴν κεφαλὴν
ἀποτέμνεται τοιᾶσδε ἕνεκεν αἰτίας
2 τιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας φασίν
ἑκατοντάρχους γίνεσθαι Τόπου σχολάζοντος ἐπὶ τοῦτο προκοπῆς τὸν
Μαρῖνον ἡ τοῦ βαθμοῦ τάξις ἐκάλει ἤδη τε μέλλοντα τῆς τιμῆς ἔχεσθαι
Παρελθὼν ἄλλος πρὸ τοῦ βήματος μὴ ἐξεῖναι μὲν ἐκείνῳ τῆς Ῥωμαίων
μετέχειν ἀξίας κατὰ τοὺς παλαιοὺς νόμους Χριστιανῷ γε ὄντι καὶ τοῖς
βασιλεῦσι μὴ θύοντι κατηγόρει αὐτῷ δὲ ἐπιβάλλειν τὸν κλῆρον
3 ἐφ᾿ ᾧ κινηθέντα τὸν δικαστὴν (Ἀχαιὸς οὕτος ἧν) πρῶτον μὲν ἐρέσθαι
ποίας ὁ Μαρῖνος εἴη γνώμης ὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν ἐπιμόνως
ἑώρα τριῶν ὡρῶν ἐπιδοῦναι αὐτῷ εἰς ἐπίσκεψιν διάστημα
4 ἐκτὸς δῆτα γενόμενον αὐτὸν τοῦ δικαστηρίου Θεότεκνος ὁ τῇδε
ἐπίσκοπος ἀφέλκει προσελθὼν δι᾿ ὁμιλίας καὶ τῆς χειρὸς λαβὼν ἐπὶ τὴν
ἐκκλησίαν προάγει εἴσω τε πρὸς αὐτῷ στήσας τῷ ἁγιάσματι μικρόν τι
παραναστείλας αὐτοῦ τῆς χλαμύδος καὶ τὸ προσηρτημένον αὐτῷ ξίφος
ἐπιδείξας ἅμα τε ἀντιπαρατίθησι προσαγαγὼν αὐτῷ τὴν τῶν θείων
εὐαγγελίων γραψήν κελεύσας τῶν δυοῖν ἑλέσθαι τὸ κατὰ γνώμην ὡς δ᾿
24
ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν
ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς
αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης
5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ
δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ
δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν
ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται
25
4 TRADUCcedilAtildeO
O martiacuterio do Santo Marino
1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares
em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido
honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por
todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu
testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte
2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a
conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a
ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo
Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e
declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e
portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos
romanos Assim o cargo cairia para si
3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou
primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele
insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs
horas para refletir
4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era
bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela
matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando
um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo
tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos
exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem
hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas
ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno
ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo
5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para
o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se
apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute
26
imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre
o seu fim
27
5 COMENTAacuteRIOS
51 OS PERSONAGENS
Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em
um ponto da estrutura
Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola
Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal
familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute
exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um
homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos
movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do
texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave
autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado
guerreiro
O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo
dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo
para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A
denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma
preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega
Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o
exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees
do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio
militar portanto tinha um significado muito grande
Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas
informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou
compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem
disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo
28
Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na
quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado
provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era
seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para
conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial
para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve
como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)
O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para
anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo
de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos
outros personagens no texto
52 ESTRUTURA
O texto pode ser subdividido em 5 partes
(i) Marino o soldado cristatildeo
A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no
espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo
A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de
captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a
expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo
(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo
A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio
narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo
apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal
(iii) Marino e o juiz a confissatildeo
A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente
que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir
29
(iv) Marino e o bispo a decisatildeo
Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de
Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem
palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a
espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe
a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras
(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo
Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo
Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte
53 TEMPO E ESPACcedilO
O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto
para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης
ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor
Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e
a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII
12)
A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que
Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em
todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto
o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se
deram de maneira muito raacutepida
Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia
na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no
entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes
contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o
Cristianismo
30
O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno
poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por
Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo
tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito
cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera
propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz
que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os
sofrimentos corporais
Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte
54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS
O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de
diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um
detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga
essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de
martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)
Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte
A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da
distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no
entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor
31
A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra
no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios
desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica
Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com
Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma
narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute
portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a
noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007
8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente
engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo
No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no
uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo
εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por
ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento
por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann
2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que
eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega
amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e
decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo
do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio
ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento
emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado
comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como
afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva
de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a
forte presenccedila do aspecto emotivo
A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para
enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou
ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops
(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma
32
medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te
apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo
Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila
Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte
pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o
caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o
representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute
o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar
Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel
seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os
espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo
Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na
hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops
(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo
obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo
O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino
se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua
decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo
que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar
O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma
meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior
sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O
adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez
Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num
texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e
ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς
πίστεως τὴν προθυμίαν
Assim temos
33
Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)
darrdarrdarrdarr
Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo
darrdarrdarrdarr
Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo
O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas
uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado
pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν
ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente
detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita
conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui
coerecircncia ao texto
Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)
destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura
feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que
todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou
seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica
fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e
estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha
havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois
poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo
34
sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser
adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um
antagonismo fundamentalrdquo
O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de
Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo
substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo
ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos
esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no
texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino
Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos
durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e
por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que
a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino
Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη
ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto
o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων
o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος
o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις
o substantivo εἰρήνη
o substantivo μαρτυρία
Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e
formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado
35
A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes
por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)
honra romana (τιμή)
vide (κλῆμα)
centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)
reconhecimento passageiro e
terreno (ἀξιώμασι
τετιμημένων )
honra cristatilde (τιμή)
paz (εἰρήνη)
maacutertir (μάρτυρ)
reconhecimento eterno e divino
(τελειοῦται)
O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria
honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o
argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado
explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos
versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω
ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o
objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας
φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo
Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o
ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ
τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela
feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)
36
Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha
pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento
terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo
ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na
comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o
cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)
Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito
mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp
Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo
por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute
essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto
O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por
exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer
voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do
termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que
ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to
the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις
Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de
um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados
Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor
menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A
acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os
personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado
numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo
de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute
em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz
37
como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da
acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade
interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se
constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio
por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os
imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao
registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o
mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)
A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das
intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que
como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos
entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo
38
CONCLUSAtildeO
O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e
produtivo sob vaacuterios aspectos
Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual
gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A
percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a
ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os
primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma
instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na
literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um
pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os
cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo
- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura
No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do
texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico
durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e
consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa
ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias
da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna
centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o
posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos
fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento
A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se
compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao
bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se
mostrar complacente
39
Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os
cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de
sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem
como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como
um substituto aos espetaacuteculos romanos
Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave
plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos
Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o
que deu origem ao culto dos santos
Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda
precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos
possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados
ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται
presente no texto traduzido e em outros relatos
Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais
utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e
posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma
melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande
auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo
cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade
proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses
novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde
40
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43
ANEXOS
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)
[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1
1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em
Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um
tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua
linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte
2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles
que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o
escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a
honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo
as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que
era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a
ele
3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a
Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que
era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse
4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e
afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma
vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o
manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e
contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as
duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a
direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -
manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que
escolheste Vai em pazrdquo
1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu
este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer
casos como o de Marino [nota do Editor]
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5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de
novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado
Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua
feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado
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TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)
During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in
Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and
was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It
came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour
and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and
according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he
was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and
attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and
should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to
the ancient laws but that instead the post should fall to himself
It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he
first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed
that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had
Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside
in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed
Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword
attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it
before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out
his right hand and took the divine writings
lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him
may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo
No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the
tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and
showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to
execution and so found his fulfilment
19
ao tribunal em decorrecircncia de disputas locais como escrevem Danieacutelou amp Marrou (1966
105)
Conveacutem frisar que natildeo haacute proscriccedilatildeo de cristatildeos pelo poder central quer dizer natildeo haacute perseguiccedilatildeo total Em segundo lugar verificam-se ataques locais movidos pelo povo e depois submetidos agrave apreciaccedilatildeo do magistrado romano () Em terceiro lugar o motivo da perseguiccedilatildeo natildeo se liga a crimes determinados mas unicamente ao lsquonomersquo cristatildeo O levantamento feito por Pliacutenio levara mesmo agrave conclusatildeo de que eram inocentes os cristatildeos
Guignebert (1956 169-70) tambeacutem assinala que apesar de todas as acusaccedilotildees
nenhum crime recaiacutea sobre os cristatildeos
Varias acusaciones de derecho comuacuten se poniacutean en juego al mismo tiempo para agobiar a los fieles religioacuten iliacutecita sociedad secreta lesa majestad negativa de obediencia si se trataba de soldados ignavia es decir negligencia en el cumplimiento de los deberes de la vida puacuteblica y privada y hasta magia Por lo demaacutes estas acusaciones cuando se aplicaban a los cristianos presentaban la singularidad de que se desistia inmediatamente de ellas si el inculpado consentiacutea en decir que renunciaba a su feacute lo que permite suponer que en suma era la religioacuten cristiana solamente lo que se perseguia
Ainda assim os cristatildeos precisavam ser castigados porque ao insistirem na afirmaccedilatildeo
ldquoSou cristatildeordquo rebelavam-se contra os princiacutepios do Impeacuterio especialmente o do culto ao
imperador
Este delito tinha de ser castigado em primeiro lugar porque de outro modo diminuiria a autoridade desses tribunais e em segundo lugar porque ao negarem a adorar o imperador os cristatildeos estavam adotando uma atitude que nesse tempo se interpretava como rebeliatildeo contra a autoridade imperial Com efeito o culto ao imperador era um dos viacutenculos que uniam o Impeacuterio e negar-se em puacuteblico a render esse culto equivalia a romper esse viacutenculo (Gonzaacutelez 1995 66)
Novamente percebe-se o caraacuteter imprevisiacutevel da vida cristatilde Os autores reconhecem
que de uma maneira geral as comunidades cristatildes procuravam levar uma vida exemplar e
submissa agraves leis do Impeacuterio ldquoAs instruccedilotildees de civismo dadas pelos Apoacutestolos continuam a
ser observadas e os cristatildeos mostram-se na sua grande maioria cidadatildeos fieacuteis e devotados ao
bem puacuteblicordquo (Daniel-Rops 1988 345) Poreacutem quando levados a julgamento puacuteblico natildeo
aceitavam prestar culto a outro senhor aleacutem de Cristo
No tocante ao serviccedilo militar as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio nem sempre eram
tatildeo simples Na opiniatildeo de Guignebert (1956 166) isso se dava porque as obrigaccedilotildees
militares geralmente tinham uma forte ligaccedilatildeo com as praacuteticas religiosas pagatildes
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El servicio militar les resultaba odioso porque suponiacutea obligaciones idolaacutetricas y porque execraban la guerra su participacioacuten en el servicio civil les pareciacutea supeacuterflua sobre todo se rehusaban obstinadamente a tomar parte en ninguna de las manifestaciones de lealtad que el gobierno imperial reclamaba porque todas revestiacutean caraacutecter religioso
Do mesmo modo Daniel-Rops (1988 345) relata
casos de objeccedilatildeo de consciecircncia ao serviccedilo militar como acontece com um jovem soldado que exclama ldquoNatildeo me eacute permitido trazer ao pescoccedilo o signum (espeacutecie de placa de identidade usada no exeacutercito romano) porque fui marcado com o sinal de Cristordquo ou com um outro soldado que se recusou a colocar sobre a cabeccedila a coroa ritual dos sacrifiacutecios em honra do imperador Satildeo casos ainda excepcionais mas sintomaacuteticos a oposiccedilatildeo profunda entre Roma e a Igreja tende a passar do plano religioso para o plano ciacutevico e poliacutetico
A intervenccedilatildeo do plano religioso sobre o poliacutetico e vice-versa foi consequumlecircncia da
busca por parte dos romanos de um sistema seguro no qual pudessem se apoiar Com a
decadecircncia poliacutetica econocircmica e moral o nuacutemero de seitas e religiotildees se multiplicava
formando um quadro extremamente pluralista (cf Daniel-Rops 1988 307) Eacute no seacuteculo III
que a dinastia dos Severos se impotildee e juntamente com ela vecircm as tradiccedilotildees religiosas
orientais
El advenimiento con los Severos de principes africanos y sirios la dominacioacuten de mujeres penetradas de la piedade miacutestica de Oriente favorecieron su raacutepido desarollo y el siglo III conocioacute todas sus formas desde las maacutes groseras estrechamente emparentadas com la supersticioacuten pura hasta las maacutes refinadas modeladas pelas reflexiones de la filosofia que desde entonces tenderiacutea hacia lo divino (Guignebert 1956 119)
Neste panorama soacutecio-poliacutetico o cristianismo foi a religiatildeo abraccedilada por muitos
cidadatildeos natildeo soacute ldquotecelotildees pisoeiros e sapateirosrdquo mas tambeacutem ldquoadvogados como Satildeo
Gregoacuterio Taumaturgo ou Satildeo Cipriano de Cartago mulheres da sociedade como Santa
Perpeacutetua grandes burgueses da proviacutencia e lsquoclariacutessimosrsquo de famiacutelias senatoriaisrdquo (Daniel-
Rops 1988 317) Para Guignebert (1956 121) o contato da elite com o cristianismo se deu
essencialmente por meio dos escravos e da filosofia
a traveacutes de los esclavos llegoacute a las mujeres libres sus amas y accidentalmente atrajo la atencioacuten de algunos hombres instruiacutedos que buscaban la verdad divina Gracias a las primeras se insinuoacute en las classes altas gracias a los segundos tomoacute contacto con la filosofia en el curso del siglo II y las consecuencias de este encuentro fueron incalculables
Eacute importante relembrar que a filosofia pressupunha a escrita e tinha um forte viacutenculo
com a literatura Mesmo o cristianismo no seacuteculo III jaacute possuiacutea um consideraacutevel nuacutemero de
21
textos apologeacuteticos que dialogavam diretamente com a filosofia grega e possibilitavam para
a elite o acesso agraves ideacuteias cristatildes (cf Alesso 2006 31)
O relato do martiacuterio do soldado Marino surge portanto nesse contexto soacutecio-histoacuterico
como um texto de grande relevacircncia para o cristianismo Primeiro porque o personagem
principal eacute um soldado Integrava o grupo social de maior prestiacutegio nessa eacutepoca Como dizia
Septiacutemio Severo aos seus filhos ldquoEnriquecei o soldado e zombai do restordquo (Daniel-Rops
1988 299) E como no seacuteculo III as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio tomam uma nova
configuraccedilatildeo o contraste entre essas duas instituiccedilotildees eacute um assunto central O embate deixa
de ser apenas religioso e passa a ser tambeacutem poliacutetico - fato que vai se confirmar no seacuteculo
IV
Em segundo lugar a posiccedilatildeo social do maacutertir levanta outra questatildeo Marino como
membro da elite poderia facilmente ter comprado o libellus ndash documento que comprovava o
sacrifiacutecio aos deuses romanos ndash e assim conseguir sua liberdade (cf Silva 2006 248)
Daniel-Rops (1988 367) detalha que os ricos eram mais propensos a comprar falsos
documentos e a desistir ldquoConforme os testemunhos que temos parece que eram sobretudo os
ricos os bem instalados aqueles a quem a vida tinha concedido todo o conforto e que natildeo
estavam dispostos a sacrificaacute-lordquo que renunciavam agrave feacute
Aleacutem de abrir matildeo de sua posiccedilatildeo social e dos privileacutegios que iria obter como
centuriatildeo Marino natildeo se deixou dominar pelo medo a principal razatildeo da apostasia segundo
Daniel-Rops (1988 367) Eacute importante lembrar que a perseguiccedilatildeo sob Deacutecio instaurada em
249 dC ainda era bastante recente Numa tentativa de restaurar a gloacuteria do Impeacuterio Deacutecio
havia promulgado uma lei que obrigava todos os suacuteditos a retomarem o culto aos deuses
romanos Para ele ldquose todos os suacuteditos do Impeacuterio voltassem a adorar os deuses
possivelmente os deuses voltariam a favorecer o Impeacuteriordquo (Gonzaacutelez 1995 138) O culto era
um elemento essencial para os romanos Era por meio dele que expressavam sua
religiosidade como escreve Arnauld (2001 15) ldquoLa lsquopietasrsquo (pieacuteteacute) eacutetait la caracteacuteristique
principale de la religiositeacute romaine () Cette lsquopietasrsquo srsquoexprimait en une observance stricte
des lois rituelles Religion signifiait culterdquo
O descumprimento da lei por parte dos cristatildeos provocou uma perseguiccedilatildeo que teve
como consequumlecircncia um grande nuacutemero de apostasias fato que chegou a causar divergecircncia de
22
opiniatildeo entre os bispos Num novo periacuteodo de relativa paz era portanto de suma importacircncia
para a Igreja insistir que os cristatildeos permanecessem firmes em suas convicccedilotildees Como
observa Daniel-Rops (1988 367) ldquoesses periacuteodos de interrupccedilatildeo nas perseguiccedilotildees natildeo
ajudavam em nada a coragem dos fieacuteis durante os tempos de calma a mola distendia-se e
quando subitamente era preciso voltar a entrar em luta muitos se sentiam faltos de energiardquo
Assim o testemunho de Marino evidencia o conflito existente entre a Igreja e o
Impeacuterio e conclama de maneira didaacutetica a que os cristatildeos tenham a mesma disposiccedilatildeo
mesmo diante da possibilidade da apostasia e dos terrores de um novo periacuteodo de perseguiccedilatildeo
23
3 TEXTO GREGO
Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου Μαρίνου
Κατὰ τούτους εἰρήνης ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης ἐν Καισαρείᾳ τῆς
Παλαιστίνης Μαρῖνος τῶν ἐν στρατείαις ἀξιώμασι τετιμημένων γένει τε
καὶ πλοὕτῳ περιφανὴς ἀνήρ διὰ τὴν Χριστοῦ μαρτυρίαν τὴν κεφαλὴν
ἀποτέμνεται τοιᾶσδε ἕνεκεν αἰτίας
2 τιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας φασίν
ἑκατοντάρχους γίνεσθαι Τόπου σχολάζοντος ἐπὶ τοῦτο προκοπῆς τὸν
Μαρῖνον ἡ τοῦ βαθμοῦ τάξις ἐκάλει ἤδη τε μέλλοντα τῆς τιμῆς ἔχεσθαι
Παρελθὼν ἄλλος πρὸ τοῦ βήματος μὴ ἐξεῖναι μὲν ἐκείνῳ τῆς Ῥωμαίων
μετέχειν ἀξίας κατὰ τοὺς παλαιοὺς νόμους Χριστιανῷ γε ὄντι καὶ τοῖς
βασιλεῦσι μὴ θύοντι κατηγόρει αὐτῷ δὲ ἐπιβάλλειν τὸν κλῆρον
3 ἐφ᾿ ᾧ κινηθέντα τὸν δικαστὴν (Ἀχαιὸς οὕτος ἧν) πρῶτον μὲν ἐρέσθαι
ποίας ὁ Μαρῖνος εἴη γνώμης ὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν ἐπιμόνως
ἑώρα τριῶν ὡρῶν ἐπιδοῦναι αὐτῷ εἰς ἐπίσκεψιν διάστημα
4 ἐκτὸς δῆτα γενόμενον αὐτὸν τοῦ δικαστηρίου Θεότεκνος ὁ τῇδε
ἐπίσκοπος ἀφέλκει προσελθὼν δι᾿ ὁμιλίας καὶ τῆς χειρὸς λαβὼν ἐπὶ τὴν
ἐκκλησίαν προάγει εἴσω τε πρὸς αὐτῷ στήσας τῷ ἁγιάσματι μικρόν τι
παραναστείλας αὐτοῦ τῆς χλαμύδος καὶ τὸ προσηρτημένον αὐτῷ ξίφος
ἐπιδείξας ἅμα τε ἀντιπαρατίθησι προσαγαγὼν αὐτῷ τὴν τῶν θείων
εὐαγγελίων γραψήν κελεύσας τῶν δυοῖν ἑλέσθαι τὸ κατὰ γνώμην ὡς δ᾿
24
ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν
ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς
αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης
5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ
δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ
δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν
ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται
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4 TRADUCcedilAtildeO
O martiacuterio do Santo Marino
1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares
em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido
honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por
todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu
testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte
2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a
conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a
ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo
Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e
declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e
portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos
romanos Assim o cargo cairia para si
3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou
primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele
insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs
horas para refletir
4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era
bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela
matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando
um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo
tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos
exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem
hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas
ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno
ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo
5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para
o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se
apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute
26
imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre
o seu fim
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5 COMENTAacuteRIOS
51 OS PERSONAGENS
Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em
um ponto da estrutura
Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola
Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal
familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute
exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um
homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos
movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do
texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave
autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado
guerreiro
O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo
dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo
para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A
denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma
preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega
Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o
exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees
do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio
militar portanto tinha um significado muito grande
Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas
informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou
compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem
disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo
28
Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na
quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado
provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era
seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para
conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial
para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve
como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)
O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para
anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo
de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos
outros personagens no texto
52 ESTRUTURA
O texto pode ser subdividido em 5 partes
(i) Marino o soldado cristatildeo
A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no
espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo
A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de
captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a
expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo
(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo
A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio
narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo
apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal
(iii) Marino e o juiz a confissatildeo
A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente
que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir
29
(iv) Marino e o bispo a decisatildeo
Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de
Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem
palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a
espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe
a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras
(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo
Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo
Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte
53 TEMPO E ESPACcedilO
O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto
para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης
ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor
Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e
a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII
12)
A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que
Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em
todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto
o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se
deram de maneira muito raacutepida
Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia
na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no
entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes
contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o
Cristianismo
30
O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno
poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por
Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo
tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito
cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera
propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz
que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os
sofrimentos corporais
Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte
54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS
O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de
diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um
detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga
essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de
martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)
Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte
A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da
distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no
entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor
31
A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra
no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios
desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica
Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com
Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma
narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute
portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a
noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007
8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente
engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo
No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no
uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo
εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por
ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento
por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann
2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que
eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega
amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e
decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo
do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio
ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento
emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado
comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como
afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva
de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a
forte presenccedila do aspecto emotivo
A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para
enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou
ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops
(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma
32
medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te
apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo
Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila
Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte
pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o
caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o
representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute
o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar
Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel
seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os
espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo
Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na
hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops
(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo
obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo
O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino
se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua
decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo
que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar
O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma
meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior
sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O
adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez
Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num
texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e
ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς
πίστεως τὴν προθυμίαν
Assim temos
33
Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)
darrdarrdarrdarr
Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo
darrdarrdarrdarr
Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo
O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas
uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado
pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν
ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente
detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita
conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui
coerecircncia ao texto
Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)
destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura
feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que
todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou
seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica
fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e
estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha
havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois
poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo
34
sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser
adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um
antagonismo fundamentalrdquo
O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de
Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo
substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo
ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos
esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no
texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino
Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos
durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e
por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que
a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino
Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη
ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto
o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων
o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος
o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις
o substantivo εἰρήνη
o substantivo μαρτυρία
Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e
formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado
35
A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes
por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)
honra romana (τιμή)
vide (κλῆμα)
centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)
reconhecimento passageiro e
terreno (ἀξιώμασι
τετιμημένων )
honra cristatilde (τιμή)
paz (εἰρήνη)
maacutertir (μάρτυρ)
reconhecimento eterno e divino
(τελειοῦται)
O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria
honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o
argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado
explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos
versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω
ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o
objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας
φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo
Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o
ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ
τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela
feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)
36
Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha
pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento
terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo
ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na
comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o
cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)
Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito
mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp
Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo
por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute
essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto
O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por
exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer
voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do
termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que
ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to
the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις
Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de
um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados
Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor
menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A
acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os
personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado
numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo
de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute
em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz
37
como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da
acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade
interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se
constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio
por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os
imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao
registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o
mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)
A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das
intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que
como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos
entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo
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CONCLUSAtildeO
O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e
produtivo sob vaacuterios aspectos
Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual
gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A
percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a
ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os
primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma
instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na
literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um
pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os
cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo
- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura
No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do
texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico
durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e
consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa
ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias
da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna
centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o
posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos
fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento
A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se
compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao
bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se
mostrar complacente
39
Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os
cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de
sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem
como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como
um substituto aos espetaacuteculos romanos
Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave
plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos
Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o
que deu origem ao culto dos santos
Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda
precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos
possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados
ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται
presente no texto traduzido e em outros relatos
Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais
utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e
posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma
melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande
auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo
cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade
proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses
novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde
40
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43
ANEXOS
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)
[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1
1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em
Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um
tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua
linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte
2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles
que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o
escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a
honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo
as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que
era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a
ele
3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a
Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que
era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse
4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e
afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma
vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o
manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e
contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as
duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a
direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -
manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que
escolheste Vai em pazrdquo
1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu
este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer
casos como o de Marino [nota do Editor]
44
5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de
novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado
Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua
feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado
45
TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)
During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in
Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and
was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It
came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour
and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and
according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he
was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and
attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and
should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to
the ancient laws but that instead the post should fall to himself
It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he
first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed
that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had
Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside
in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed
Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword
attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it
before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out
his right hand and took the divine writings
lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him
may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo
No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the
tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and
showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to
execution and so found his fulfilment
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El servicio militar les resultaba odioso porque suponiacutea obligaciones idolaacutetricas y porque execraban la guerra su participacioacuten en el servicio civil les pareciacutea supeacuterflua sobre todo se rehusaban obstinadamente a tomar parte en ninguna de las manifestaciones de lealtad que el gobierno imperial reclamaba porque todas revestiacutean caraacutecter religioso
Do mesmo modo Daniel-Rops (1988 345) relata
casos de objeccedilatildeo de consciecircncia ao serviccedilo militar como acontece com um jovem soldado que exclama ldquoNatildeo me eacute permitido trazer ao pescoccedilo o signum (espeacutecie de placa de identidade usada no exeacutercito romano) porque fui marcado com o sinal de Cristordquo ou com um outro soldado que se recusou a colocar sobre a cabeccedila a coroa ritual dos sacrifiacutecios em honra do imperador Satildeo casos ainda excepcionais mas sintomaacuteticos a oposiccedilatildeo profunda entre Roma e a Igreja tende a passar do plano religioso para o plano ciacutevico e poliacutetico
A intervenccedilatildeo do plano religioso sobre o poliacutetico e vice-versa foi consequumlecircncia da
busca por parte dos romanos de um sistema seguro no qual pudessem se apoiar Com a
decadecircncia poliacutetica econocircmica e moral o nuacutemero de seitas e religiotildees se multiplicava
formando um quadro extremamente pluralista (cf Daniel-Rops 1988 307) Eacute no seacuteculo III
que a dinastia dos Severos se impotildee e juntamente com ela vecircm as tradiccedilotildees religiosas
orientais
El advenimiento con los Severos de principes africanos y sirios la dominacioacuten de mujeres penetradas de la piedade miacutestica de Oriente favorecieron su raacutepido desarollo y el siglo III conocioacute todas sus formas desde las maacutes groseras estrechamente emparentadas com la supersticioacuten pura hasta las maacutes refinadas modeladas pelas reflexiones de la filosofia que desde entonces tenderiacutea hacia lo divino (Guignebert 1956 119)
Neste panorama soacutecio-poliacutetico o cristianismo foi a religiatildeo abraccedilada por muitos
cidadatildeos natildeo soacute ldquotecelotildees pisoeiros e sapateirosrdquo mas tambeacutem ldquoadvogados como Satildeo
Gregoacuterio Taumaturgo ou Satildeo Cipriano de Cartago mulheres da sociedade como Santa
Perpeacutetua grandes burgueses da proviacutencia e lsquoclariacutessimosrsquo de famiacutelias senatoriaisrdquo (Daniel-
Rops 1988 317) Para Guignebert (1956 121) o contato da elite com o cristianismo se deu
essencialmente por meio dos escravos e da filosofia
a traveacutes de los esclavos llegoacute a las mujeres libres sus amas y accidentalmente atrajo la atencioacuten de algunos hombres instruiacutedos que buscaban la verdad divina Gracias a las primeras se insinuoacute en las classes altas gracias a los segundos tomoacute contacto con la filosofia en el curso del siglo II y las consecuencias de este encuentro fueron incalculables
Eacute importante relembrar que a filosofia pressupunha a escrita e tinha um forte viacutenculo
com a literatura Mesmo o cristianismo no seacuteculo III jaacute possuiacutea um consideraacutevel nuacutemero de
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textos apologeacuteticos que dialogavam diretamente com a filosofia grega e possibilitavam para
a elite o acesso agraves ideacuteias cristatildes (cf Alesso 2006 31)
O relato do martiacuterio do soldado Marino surge portanto nesse contexto soacutecio-histoacuterico
como um texto de grande relevacircncia para o cristianismo Primeiro porque o personagem
principal eacute um soldado Integrava o grupo social de maior prestiacutegio nessa eacutepoca Como dizia
Septiacutemio Severo aos seus filhos ldquoEnriquecei o soldado e zombai do restordquo (Daniel-Rops
1988 299) E como no seacuteculo III as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio tomam uma nova
configuraccedilatildeo o contraste entre essas duas instituiccedilotildees eacute um assunto central O embate deixa
de ser apenas religioso e passa a ser tambeacutem poliacutetico - fato que vai se confirmar no seacuteculo
IV
Em segundo lugar a posiccedilatildeo social do maacutertir levanta outra questatildeo Marino como
membro da elite poderia facilmente ter comprado o libellus ndash documento que comprovava o
sacrifiacutecio aos deuses romanos ndash e assim conseguir sua liberdade (cf Silva 2006 248)
Daniel-Rops (1988 367) detalha que os ricos eram mais propensos a comprar falsos
documentos e a desistir ldquoConforme os testemunhos que temos parece que eram sobretudo os
ricos os bem instalados aqueles a quem a vida tinha concedido todo o conforto e que natildeo
estavam dispostos a sacrificaacute-lordquo que renunciavam agrave feacute
Aleacutem de abrir matildeo de sua posiccedilatildeo social e dos privileacutegios que iria obter como
centuriatildeo Marino natildeo se deixou dominar pelo medo a principal razatildeo da apostasia segundo
Daniel-Rops (1988 367) Eacute importante lembrar que a perseguiccedilatildeo sob Deacutecio instaurada em
249 dC ainda era bastante recente Numa tentativa de restaurar a gloacuteria do Impeacuterio Deacutecio
havia promulgado uma lei que obrigava todos os suacuteditos a retomarem o culto aos deuses
romanos Para ele ldquose todos os suacuteditos do Impeacuterio voltassem a adorar os deuses
possivelmente os deuses voltariam a favorecer o Impeacuteriordquo (Gonzaacutelez 1995 138) O culto era
um elemento essencial para os romanos Era por meio dele que expressavam sua
religiosidade como escreve Arnauld (2001 15) ldquoLa lsquopietasrsquo (pieacuteteacute) eacutetait la caracteacuteristique
principale de la religiositeacute romaine () Cette lsquopietasrsquo srsquoexprimait en une observance stricte
des lois rituelles Religion signifiait culterdquo
O descumprimento da lei por parte dos cristatildeos provocou uma perseguiccedilatildeo que teve
como consequumlecircncia um grande nuacutemero de apostasias fato que chegou a causar divergecircncia de
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opiniatildeo entre os bispos Num novo periacuteodo de relativa paz era portanto de suma importacircncia
para a Igreja insistir que os cristatildeos permanecessem firmes em suas convicccedilotildees Como
observa Daniel-Rops (1988 367) ldquoesses periacuteodos de interrupccedilatildeo nas perseguiccedilotildees natildeo
ajudavam em nada a coragem dos fieacuteis durante os tempos de calma a mola distendia-se e
quando subitamente era preciso voltar a entrar em luta muitos se sentiam faltos de energiardquo
Assim o testemunho de Marino evidencia o conflito existente entre a Igreja e o
Impeacuterio e conclama de maneira didaacutetica a que os cristatildeos tenham a mesma disposiccedilatildeo
mesmo diante da possibilidade da apostasia e dos terrores de um novo periacuteodo de perseguiccedilatildeo
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3 TEXTO GREGO
Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου Μαρίνου
Κατὰ τούτους εἰρήνης ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης ἐν Καισαρείᾳ τῆς
Παλαιστίνης Μαρῖνος τῶν ἐν στρατείαις ἀξιώμασι τετιμημένων γένει τε
καὶ πλοὕτῳ περιφανὴς ἀνήρ διὰ τὴν Χριστοῦ μαρτυρίαν τὴν κεφαλὴν
ἀποτέμνεται τοιᾶσδε ἕνεκεν αἰτίας
2 τιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας φασίν
ἑκατοντάρχους γίνεσθαι Τόπου σχολάζοντος ἐπὶ τοῦτο προκοπῆς τὸν
Μαρῖνον ἡ τοῦ βαθμοῦ τάξις ἐκάλει ἤδη τε μέλλοντα τῆς τιμῆς ἔχεσθαι
Παρελθὼν ἄλλος πρὸ τοῦ βήματος μὴ ἐξεῖναι μὲν ἐκείνῳ τῆς Ῥωμαίων
μετέχειν ἀξίας κατὰ τοὺς παλαιοὺς νόμους Χριστιανῷ γε ὄντι καὶ τοῖς
βασιλεῦσι μὴ θύοντι κατηγόρει αὐτῷ δὲ ἐπιβάλλειν τὸν κλῆρον
3 ἐφ᾿ ᾧ κινηθέντα τὸν δικαστὴν (Ἀχαιὸς οὕτος ἧν) πρῶτον μὲν ἐρέσθαι
ποίας ὁ Μαρῖνος εἴη γνώμης ὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν ἐπιμόνως
ἑώρα τριῶν ὡρῶν ἐπιδοῦναι αὐτῷ εἰς ἐπίσκεψιν διάστημα
4 ἐκτὸς δῆτα γενόμενον αὐτὸν τοῦ δικαστηρίου Θεότεκνος ὁ τῇδε
ἐπίσκοπος ἀφέλκει προσελθὼν δι᾿ ὁμιλίας καὶ τῆς χειρὸς λαβὼν ἐπὶ τὴν
ἐκκλησίαν προάγει εἴσω τε πρὸς αὐτῷ στήσας τῷ ἁγιάσματι μικρόν τι
παραναστείλας αὐτοῦ τῆς χλαμύδος καὶ τὸ προσηρτημένον αὐτῷ ξίφος
ἐπιδείξας ἅμα τε ἀντιπαρατίθησι προσαγαγὼν αὐτῷ τὴν τῶν θείων
εὐαγγελίων γραψήν κελεύσας τῶν δυοῖν ἑλέσθαι τὸ κατὰ γνώμην ὡς δ᾿
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ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν
ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς
αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης
5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ
δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ
δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν
ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται
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4 TRADUCcedilAtildeO
O martiacuterio do Santo Marino
1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares
em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido
honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por
todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu
testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte
2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a
conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a
ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo
Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e
declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e
portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos
romanos Assim o cargo cairia para si
3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou
primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele
insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs
horas para refletir
4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era
bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela
matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando
um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo
tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos
exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem
hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas
ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno
ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo
5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para
o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se
apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute
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imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre
o seu fim
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5 COMENTAacuteRIOS
51 OS PERSONAGENS
Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em
um ponto da estrutura
Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola
Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal
familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute
exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um
homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos
movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do
texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave
autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado
guerreiro
O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo
dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo
para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A
denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma
preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega
Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o
exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees
do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio
militar portanto tinha um significado muito grande
Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas
informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou
compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem
disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo
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Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na
quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado
provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era
seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para
conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial
para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve
como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)
O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para
anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo
de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos
outros personagens no texto
52 ESTRUTURA
O texto pode ser subdividido em 5 partes
(i) Marino o soldado cristatildeo
A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no
espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo
A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de
captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a
expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo
(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo
A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio
narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo
apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal
(iii) Marino e o juiz a confissatildeo
A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente
que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir
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(iv) Marino e o bispo a decisatildeo
Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de
Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem
palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a
espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe
a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras
(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo
Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo
Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte
53 TEMPO E ESPACcedilO
O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto
para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης
ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor
Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e
a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII
12)
A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que
Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em
todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto
o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se
deram de maneira muito raacutepida
Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia
na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no
entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes
contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o
Cristianismo
30
O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno
poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por
Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo
tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito
cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera
propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz
que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os
sofrimentos corporais
Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte
54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS
O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de
diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um
detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga
essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de
martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)
Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte
A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da
distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no
entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor
31
A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra
no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios
desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica
Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com
Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma
narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute
portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a
noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007
8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente
engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo
No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no
uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo
εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por
ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento
por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann
2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que
eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega
amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e
decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo
do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio
ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento
emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado
comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como
afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva
de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a
forte presenccedila do aspecto emotivo
A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para
enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou
ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops
(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma
32
medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te
apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo
Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila
Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte
pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o
caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o
representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute
o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar
Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel
seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os
espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo
Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na
hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops
(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo
obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo
O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino
se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua
decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo
que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar
O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma
meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior
sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O
adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez
Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num
texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e
ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς
πίστεως τὴν προθυμίαν
Assim temos
33
Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)
darrdarrdarrdarr
Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo
darrdarrdarrdarr
Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo
O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas
uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado
pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν
ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente
detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita
conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui
coerecircncia ao texto
Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)
destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura
feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que
todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou
seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica
fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e
estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha
havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois
poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo
34
sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser
adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um
antagonismo fundamentalrdquo
O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de
Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo
substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo
ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos
esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no
texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino
Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos
durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e
por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que
a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino
Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη
ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto
o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων
o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος
o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις
o substantivo εἰρήνη
o substantivo μαρτυρία
Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e
formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado
35
A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes
por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)
honra romana (τιμή)
vide (κλῆμα)
centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)
reconhecimento passageiro e
terreno (ἀξιώμασι
τετιμημένων )
honra cristatilde (τιμή)
paz (εἰρήνη)
maacutertir (μάρτυρ)
reconhecimento eterno e divino
(τελειοῦται)
O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria
honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o
argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado
explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos
versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω
ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o
objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας
φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo
Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o
ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ
τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela
feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)
36
Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha
pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento
terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo
ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na
comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o
cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)
Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito
mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp
Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo
por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute
essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto
O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por
exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer
voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do
termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que
ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to
the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις
Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de
um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados
Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor
menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A
acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os
personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado
numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo
de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute
em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz
37
como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da
acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade
interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se
constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio
por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os
imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao
registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o
mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)
A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das
intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que
como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos
entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo
38
CONCLUSAtildeO
O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e
produtivo sob vaacuterios aspectos
Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual
gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A
percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a
ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os
primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma
instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na
literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um
pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os
cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo
- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura
No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do
texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico
durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e
consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa
ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias
da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna
centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o
posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos
fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento
A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se
compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao
bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se
mostrar complacente
39
Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os
cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de
sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem
como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como
um substituto aos espetaacuteculos romanos
Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave
plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos
Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o
que deu origem ao culto dos santos
Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda
precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos
possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados
ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται
presente no texto traduzido e em outros relatos
Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais
utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e
posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma
melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande
auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo
cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade
proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses
novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde
40
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43
ANEXOS
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)
[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1
1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em
Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um
tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua
linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte
2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles
que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o
escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a
honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo
as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que
era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a
ele
3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a
Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que
era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse
4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e
afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma
vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o
manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e
contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as
duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a
direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -
manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que
escolheste Vai em pazrdquo
1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu
este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer
casos como o de Marino [nota do Editor]
44
5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de
novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado
Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua
feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado
45
TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)
During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in
Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and
was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It
came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour
and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and
according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he
was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and
attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and
should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to
the ancient laws but that instead the post should fall to himself
It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he
first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed
that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had
Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside
in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed
Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword
attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it
before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out
his right hand and took the divine writings
lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him
may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo
No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the
tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and
showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to
execution and so found his fulfilment
21
textos apologeacuteticos que dialogavam diretamente com a filosofia grega e possibilitavam para
a elite o acesso agraves ideacuteias cristatildes (cf Alesso 2006 31)
O relato do martiacuterio do soldado Marino surge portanto nesse contexto soacutecio-histoacuterico
como um texto de grande relevacircncia para o cristianismo Primeiro porque o personagem
principal eacute um soldado Integrava o grupo social de maior prestiacutegio nessa eacutepoca Como dizia
Septiacutemio Severo aos seus filhos ldquoEnriquecei o soldado e zombai do restordquo (Daniel-Rops
1988 299) E como no seacuteculo III as relaccedilotildees entre a Igreja e o Impeacuterio tomam uma nova
configuraccedilatildeo o contraste entre essas duas instituiccedilotildees eacute um assunto central O embate deixa
de ser apenas religioso e passa a ser tambeacutem poliacutetico - fato que vai se confirmar no seacuteculo
IV
Em segundo lugar a posiccedilatildeo social do maacutertir levanta outra questatildeo Marino como
membro da elite poderia facilmente ter comprado o libellus ndash documento que comprovava o
sacrifiacutecio aos deuses romanos ndash e assim conseguir sua liberdade (cf Silva 2006 248)
Daniel-Rops (1988 367) detalha que os ricos eram mais propensos a comprar falsos
documentos e a desistir ldquoConforme os testemunhos que temos parece que eram sobretudo os
ricos os bem instalados aqueles a quem a vida tinha concedido todo o conforto e que natildeo
estavam dispostos a sacrificaacute-lordquo que renunciavam agrave feacute
Aleacutem de abrir matildeo de sua posiccedilatildeo social e dos privileacutegios que iria obter como
centuriatildeo Marino natildeo se deixou dominar pelo medo a principal razatildeo da apostasia segundo
Daniel-Rops (1988 367) Eacute importante lembrar que a perseguiccedilatildeo sob Deacutecio instaurada em
249 dC ainda era bastante recente Numa tentativa de restaurar a gloacuteria do Impeacuterio Deacutecio
havia promulgado uma lei que obrigava todos os suacuteditos a retomarem o culto aos deuses
romanos Para ele ldquose todos os suacuteditos do Impeacuterio voltassem a adorar os deuses
possivelmente os deuses voltariam a favorecer o Impeacuteriordquo (Gonzaacutelez 1995 138) O culto era
um elemento essencial para os romanos Era por meio dele que expressavam sua
religiosidade como escreve Arnauld (2001 15) ldquoLa lsquopietasrsquo (pieacuteteacute) eacutetait la caracteacuteristique
principale de la religiositeacute romaine () Cette lsquopietasrsquo srsquoexprimait en une observance stricte
des lois rituelles Religion signifiait culterdquo
O descumprimento da lei por parte dos cristatildeos provocou uma perseguiccedilatildeo que teve
como consequumlecircncia um grande nuacutemero de apostasias fato que chegou a causar divergecircncia de
22
opiniatildeo entre os bispos Num novo periacuteodo de relativa paz era portanto de suma importacircncia
para a Igreja insistir que os cristatildeos permanecessem firmes em suas convicccedilotildees Como
observa Daniel-Rops (1988 367) ldquoesses periacuteodos de interrupccedilatildeo nas perseguiccedilotildees natildeo
ajudavam em nada a coragem dos fieacuteis durante os tempos de calma a mola distendia-se e
quando subitamente era preciso voltar a entrar em luta muitos se sentiam faltos de energiardquo
Assim o testemunho de Marino evidencia o conflito existente entre a Igreja e o
Impeacuterio e conclama de maneira didaacutetica a que os cristatildeos tenham a mesma disposiccedilatildeo
mesmo diante da possibilidade da apostasia e dos terrores de um novo periacuteodo de perseguiccedilatildeo
23
3 TEXTO GREGO
Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου Μαρίνου
Κατὰ τούτους εἰρήνης ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης ἐν Καισαρείᾳ τῆς
Παλαιστίνης Μαρῖνος τῶν ἐν στρατείαις ἀξιώμασι τετιμημένων γένει τε
καὶ πλοὕτῳ περιφανὴς ἀνήρ διὰ τὴν Χριστοῦ μαρτυρίαν τὴν κεφαλὴν
ἀποτέμνεται τοιᾶσδε ἕνεκεν αἰτίας
2 τιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας φασίν
ἑκατοντάρχους γίνεσθαι Τόπου σχολάζοντος ἐπὶ τοῦτο προκοπῆς τὸν
Μαρῖνον ἡ τοῦ βαθμοῦ τάξις ἐκάλει ἤδη τε μέλλοντα τῆς τιμῆς ἔχεσθαι
Παρελθὼν ἄλλος πρὸ τοῦ βήματος μὴ ἐξεῖναι μὲν ἐκείνῳ τῆς Ῥωμαίων
μετέχειν ἀξίας κατὰ τοὺς παλαιοὺς νόμους Χριστιανῷ γε ὄντι καὶ τοῖς
βασιλεῦσι μὴ θύοντι κατηγόρει αὐτῷ δὲ ἐπιβάλλειν τὸν κλῆρον
3 ἐφ᾿ ᾧ κινηθέντα τὸν δικαστὴν (Ἀχαιὸς οὕτος ἧν) πρῶτον μὲν ἐρέσθαι
ποίας ὁ Μαρῖνος εἴη γνώμης ὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν ἐπιμόνως
ἑώρα τριῶν ὡρῶν ἐπιδοῦναι αὐτῷ εἰς ἐπίσκεψιν διάστημα
4 ἐκτὸς δῆτα γενόμενον αὐτὸν τοῦ δικαστηρίου Θεότεκνος ὁ τῇδε
ἐπίσκοπος ἀφέλκει προσελθὼν δι᾿ ὁμιλίας καὶ τῆς χειρὸς λαβὼν ἐπὶ τὴν
ἐκκλησίαν προάγει εἴσω τε πρὸς αὐτῷ στήσας τῷ ἁγιάσματι μικρόν τι
παραναστείλας αὐτοῦ τῆς χλαμύδος καὶ τὸ προσηρτημένον αὐτῷ ξίφος
ἐπιδείξας ἅμα τε ἀντιπαρατίθησι προσαγαγὼν αὐτῷ τὴν τῶν θείων
εὐαγγελίων γραψήν κελεύσας τῶν δυοῖν ἑλέσθαι τὸ κατὰ γνώμην ὡς δ᾿
24
ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν
ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς
αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης
5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ
δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ
δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν
ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται
25
4 TRADUCcedilAtildeO
O martiacuterio do Santo Marino
1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares
em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido
honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por
todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu
testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte
2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a
conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a
ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo
Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e
declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e
portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos
romanos Assim o cargo cairia para si
3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou
primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele
insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs
horas para refletir
4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era
bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela
matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando
um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo
tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos
exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem
hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas
ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno
ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo
5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para
o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se
apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute
26
imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre
o seu fim
27
5 COMENTAacuteRIOS
51 OS PERSONAGENS
Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em
um ponto da estrutura
Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola
Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal
familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute
exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um
homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos
movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do
texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave
autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado
guerreiro
O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo
dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo
para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A
denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma
preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega
Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o
exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees
do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio
militar portanto tinha um significado muito grande
Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas
informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou
compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem
disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo
28
Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na
quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado
provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era
seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para
conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial
para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve
como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)
O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para
anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo
de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos
outros personagens no texto
52 ESTRUTURA
O texto pode ser subdividido em 5 partes
(i) Marino o soldado cristatildeo
A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no
espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo
A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de
captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a
expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo
(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo
A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio
narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo
apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal
(iii) Marino e o juiz a confissatildeo
A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente
que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir
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(iv) Marino e o bispo a decisatildeo
Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de
Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem
palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a
espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe
a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras
(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo
Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo
Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte
53 TEMPO E ESPACcedilO
O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto
para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης
ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor
Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e
a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII
12)
A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que
Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em
todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto
o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se
deram de maneira muito raacutepida
Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia
na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no
entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes
contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o
Cristianismo
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O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno
poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por
Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo
tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito
cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera
propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz
que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os
sofrimentos corporais
Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte
54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS
O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de
diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um
detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga
essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de
martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)
Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte
A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da
distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no
entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor
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A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra
no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios
desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica
Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com
Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma
narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute
portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a
noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007
8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente
engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo
No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no
uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo
εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por
ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento
por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann
2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que
eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega
amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e
decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo
do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio
ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento
emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado
comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como
afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva
de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a
forte presenccedila do aspecto emotivo
A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para
enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou
ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops
(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma
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medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te
apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo
Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila
Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte
pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o
caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o
representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute
o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar
Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel
seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os
espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo
Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na
hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops
(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo
obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo
O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino
se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua
decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo
que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar
O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma
meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior
sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O
adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez
Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num
texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e
ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς
πίστεως τὴν προθυμίαν
Assim temos
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Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)
darrdarrdarrdarr
Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo
darrdarrdarrdarr
Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo
O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas
uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado
pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν
ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente
detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita
conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui
coerecircncia ao texto
Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)
destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura
feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que
todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou
seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica
fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e
estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha
havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois
poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo
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sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser
adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um
antagonismo fundamentalrdquo
O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de
Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo
substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo
ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos
esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no
texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino
Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos
durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e
por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que
a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino
Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη
ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto
o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων
o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος
o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις
o substantivo εἰρήνη
o substantivo μαρτυρία
Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e
formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado
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A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes
por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)
honra romana (τιμή)
vide (κλῆμα)
centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)
reconhecimento passageiro e
terreno (ἀξιώμασι
τετιμημένων )
honra cristatilde (τιμή)
paz (εἰρήνη)
maacutertir (μάρτυρ)
reconhecimento eterno e divino
(τελειοῦται)
O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria
honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o
argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado
explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos
versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω
ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o
objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας
φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo
Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o
ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ
τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela
feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)
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Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha
pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento
terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo
ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na
comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o
cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)
Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito
mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp
Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo
por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute
essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto
O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por
exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer
voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do
termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que
ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to
the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις
Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de
um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados
Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor
menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A
acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os
personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado
numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo
de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute
em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz
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como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da
acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade
interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se
constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio
por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os
imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao
registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o
mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)
A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das
intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que
como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos
entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo
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CONCLUSAtildeO
O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e
produtivo sob vaacuterios aspectos
Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual
gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A
percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a
ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os
primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma
instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na
literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um
pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os
cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo
- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura
No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do
texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico
durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e
consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa
ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias
da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna
centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o
posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos
fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento
A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se
compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao
bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se
mostrar complacente
39
Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os
cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de
sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem
como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como
um substituto aos espetaacuteculos romanos
Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave
plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos
Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o
que deu origem ao culto dos santos
Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda
precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos
possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados
ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται
presente no texto traduzido e em outros relatos
Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais
utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e
posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma
melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande
auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo
cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade
proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses
novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde
40
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ANEXOS
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)
[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1
1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em
Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um
tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua
linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte
2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles
que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o
escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a
honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo
as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que
era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a
ele
3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a
Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que
era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse
4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e
afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma
vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o
manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e
contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as
duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a
direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -
manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que
escolheste Vai em pazrdquo
1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu
este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer
casos como o de Marino [nota do Editor]
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5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de
novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado
Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua
feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado
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TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)
During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in
Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and
was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It
came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour
and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and
according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he
was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and
attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and
should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to
the ancient laws but that instead the post should fall to himself
It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he
first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed
that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had
Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside
in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed
Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword
attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it
before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out
his right hand and took the divine writings
lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him
may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo
No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the
tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and
showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to
execution and so found his fulfilment
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opiniatildeo entre os bispos Num novo periacuteodo de relativa paz era portanto de suma importacircncia
para a Igreja insistir que os cristatildeos permanecessem firmes em suas convicccedilotildees Como
observa Daniel-Rops (1988 367) ldquoesses periacuteodos de interrupccedilatildeo nas perseguiccedilotildees natildeo
ajudavam em nada a coragem dos fieacuteis durante os tempos de calma a mola distendia-se e
quando subitamente era preciso voltar a entrar em luta muitos se sentiam faltos de energiardquo
Assim o testemunho de Marino evidencia o conflito existente entre a Igreja e o
Impeacuterio e conclama de maneira didaacutetica a que os cristatildeos tenham a mesma disposiccedilatildeo
mesmo diante da possibilidade da apostasia e dos terrores de um novo periacuteodo de perseguiccedilatildeo
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3 TEXTO GREGO
Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου Μαρίνου
Κατὰ τούτους εἰρήνης ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης ἐν Καισαρείᾳ τῆς
Παλαιστίνης Μαρῖνος τῶν ἐν στρατείαις ἀξιώμασι τετιμημένων γένει τε
καὶ πλοὕτῳ περιφανὴς ἀνήρ διὰ τὴν Χριστοῦ μαρτυρίαν τὴν κεφαλὴν
ἀποτέμνεται τοιᾶσδε ἕνεκεν αἰτίας
2 τιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας φασίν
ἑκατοντάρχους γίνεσθαι Τόπου σχολάζοντος ἐπὶ τοῦτο προκοπῆς τὸν
Μαρῖνον ἡ τοῦ βαθμοῦ τάξις ἐκάλει ἤδη τε μέλλοντα τῆς τιμῆς ἔχεσθαι
Παρελθὼν ἄλλος πρὸ τοῦ βήματος μὴ ἐξεῖναι μὲν ἐκείνῳ τῆς Ῥωμαίων
μετέχειν ἀξίας κατὰ τοὺς παλαιοὺς νόμους Χριστιανῷ γε ὄντι καὶ τοῖς
βασιλεῦσι μὴ θύοντι κατηγόρει αὐτῷ δὲ ἐπιβάλλειν τὸν κλῆρον
3 ἐφ᾿ ᾧ κινηθέντα τὸν δικαστὴν (Ἀχαιὸς οὕτος ἧν) πρῶτον μὲν ἐρέσθαι
ποίας ὁ Μαρῖνος εἴη γνώμης ὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν ἐπιμόνως
ἑώρα τριῶν ὡρῶν ἐπιδοῦναι αὐτῷ εἰς ἐπίσκεψιν διάστημα
4 ἐκτὸς δῆτα γενόμενον αὐτὸν τοῦ δικαστηρίου Θεότεκνος ὁ τῇδε
ἐπίσκοπος ἀφέλκει προσελθὼν δι᾿ ὁμιλίας καὶ τῆς χειρὸς λαβὼν ἐπὶ τὴν
ἐκκλησίαν προάγει εἴσω τε πρὸς αὐτῷ στήσας τῷ ἁγιάσματι μικρόν τι
παραναστείλας αὐτοῦ τῆς χλαμύδος καὶ τὸ προσηρτημένον αὐτῷ ξίφος
ἐπιδείξας ἅμα τε ἀντιπαρατίθησι προσαγαγὼν αὐτῷ τὴν τῶν θείων
εὐαγγελίων γραψήν κελεύσας τῶν δυοῖν ἑλέσθαι τὸ κατὰ γνώμην ὡς δ᾿
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ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν
ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς
αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης
5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ
δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ
δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν
ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται
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4 TRADUCcedilAtildeO
O martiacuterio do Santo Marino
1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares
em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido
honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por
todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu
testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte
2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a
conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a
ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo
Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e
declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e
portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos
romanos Assim o cargo cairia para si
3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou
primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele
insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs
horas para refletir
4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era
bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela
matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando
um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo
tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos
exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem
hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas
ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno
ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo
5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para
o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se
apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute
26
imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre
o seu fim
27
5 COMENTAacuteRIOS
51 OS PERSONAGENS
Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em
um ponto da estrutura
Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola
Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal
familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute
exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um
homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos
movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do
texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave
autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado
guerreiro
O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo
dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo
para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A
denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma
preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega
Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o
exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees
do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio
militar portanto tinha um significado muito grande
Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas
informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou
compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem
disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo
28
Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na
quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado
provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era
seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para
conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial
para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve
como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)
O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para
anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo
de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos
outros personagens no texto
52 ESTRUTURA
O texto pode ser subdividido em 5 partes
(i) Marino o soldado cristatildeo
A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no
espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo
A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de
captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a
expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo
(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo
A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio
narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo
apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal
(iii) Marino e o juiz a confissatildeo
A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente
que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir
29
(iv) Marino e o bispo a decisatildeo
Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de
Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem
palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a
espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe
a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras
(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo
Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo
Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte
53 TEMPO E ESPACcedilO
O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto
para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης
ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor
Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e
a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII
12)
A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que
Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em
todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto
o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se
deram de maneira muito raacutepida
Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia
na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no
entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes
contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o
Cristianismo
30
O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno
poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por
Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo
tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito
cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera
propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz
que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os
sofrimentos corporais
Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte
54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS
O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de
diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um
detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga
essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de
martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)
Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte
A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da
distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no
entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor
31
A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra
no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios
desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica
Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com
Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma
narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute
portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a
noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007
8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente
engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo
No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no
uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo
εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por
ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento
por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann
2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que
eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega
amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e
decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo
do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio
ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento
emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado
comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como
afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva
de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a
forte presenccedila do aspecto emotivo
A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para
enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou
ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops
(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma
32
medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te
apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo
Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila
Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte
pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o
caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o
representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute
o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar
Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel
seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os
espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo
Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na
hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops
(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo
obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo
O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino
se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua
decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo
que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar
O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma
meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior
sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O
adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez
Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num
texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e
ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς
πίστεως τὴν προθυμίαν
Assim temos
33
Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)
darrdarrdarrdarr
Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo
darrdarrdarrdarr
Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo
O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas
uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado
pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν
ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente
detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita
conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui
coerecircncia ao texto
Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)
destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura
feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que
todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou
seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica
fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e
estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha
havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois
poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo
34
sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser
adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um
antagonismo fundamentalrdquo
O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de
Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo
substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo
ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos
esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no
texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino
Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos
durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e
por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que
a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino
Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη
ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto
o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων
o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος
o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις
o substantivo εἰρήνη
o substantivo μαρτυρία
Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e
formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado
35
A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes
por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)
honra romana (τιμή)
vide (κλῆμα)
centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)
reconhecimento passageiro e
terreno (ἀξιώμασι
τετιμημένων )
honra cristatilde (τιμή)
paz (εἰρήνη)
maacutertir (μάρτυρ)
reconhecimento eterno e divino
(τελειοῦται)
O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria
honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o
argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado
explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos
versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω
ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o
objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας
φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo
Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o
ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ
τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela
feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)
36
Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha
pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento
terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo
ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na
comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o
cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)
Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito
mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp
Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo
por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute
essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto
O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por
exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer
voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do
termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que
ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to
the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις
Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de
um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados
Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor
menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A
acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os
personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado
numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo
de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute
em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz
37
como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da
acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade
interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se
constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio
por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os
imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao
registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o
mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)
A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das
intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que
como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos
entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo
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CONCLUSAtildeO
O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e
produtivo sob vaacuterios aspectos
Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual
gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A
percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a
ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os
primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma
instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na
literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um
pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os
cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo
- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura
No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do
texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico
durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e
consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa
ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias
da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna
centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o
posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos
fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento
A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se
compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao
bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se
mostrar complacente
39
Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os
cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de
sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem
como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como
um substituto aos espetaacuteculos romanos
Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave
plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos
Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o
que deu origem ao culto dos santos
Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda
precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos
possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados
ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται
presente no texto traduzido e em outros relatos
Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais
utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e
posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma
melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande
auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo
cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade
proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses
novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde
40
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43
ANEXOS
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)
[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1
1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em
Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um
tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua
linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte
2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles
que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o
escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a
honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo
as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que
era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a
ele
3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a
Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que
era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse
4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e
afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma
vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o
manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e
contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as
duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a
direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -
manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que
escolheste Vai em pazrdquo
1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu
este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer
casos como o de Marino [nota do Editor]
44
5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de
novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado
Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua
feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado
45
TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)
During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in
Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and
was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It
came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour
and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and
according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he
was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and
attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and
should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to
the ancient laws but that instead the post should fall to himself
It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he
first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed
that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had
Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside
in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed
Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword
attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it
before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out
his right hand and took the divine writings
lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him
may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo
No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the
tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and
showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to
execution and so found his fulfilment
23
3 TEXTO GREGO
Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου Μαρίνου
Κατὰ τούτους εἰρήνης ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης ἐν Καισαρείᾳ τῆς
Παλαιστίνης Μαρῖνος τῶν ἐν στρατείαις ἀξιώμασι τετιμημένων γένει τε
καὶ πλοὕτῳ περιφανὴς ἀνήρ διὰ τὴν Χριστοῦ μαρτυρίαν τὴν κεφαλὴν
ἀποτέμνεται τοιᾶσδε ἕνεκεν αἰτίας
2 τιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας φασίν
ἑκατοντάρχους γίνεσθαι Τόπου σχολάζοντος ἐπὶ τοῦτο προκοπῆς τὸν
Μαρῖνον ἡ τοῦ βαθμοῦ τάξις ἐκάλει ἤδη τε μέλλοντα τῆς τιμῆς ἔχεσθαι
Παρελθὼν ἄλλος πρὸ τοῦ βήματος μὴ ἐξεῖναι μὲν ἐκείνῳ τῆς Ῥωμαίων
μετέχειν ἀξίας κατὰ τοὺς παλαιοὺς νόμους Χριστιανῷ γε ὄντι καὶ τοῖς
βασιλεῦσι μὴ θύοντι κατηγόρει αὐτῷ δὲ ἐπιβάλλειν τὸν κλῆρον
3 ἐφ᾿ ᾧ κινηθέντα τὸν δικαστὴν (Ἀχαιὸς οὕτος ἧν) πρῶτον μὲν ἐρέσθαι
ποίας ὁ Μαρῖνος εἴη γνώμης ὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν ἐπιμόνως
ἑώρα τριῶν ὡρῶν ἐπιδοῦναι αὐτῷ εἰς ἐπίσκεψιν διάστημα
4 ἐκτὸς δῆτα γενόμενον αὐτὸν τοῦ δικαστηρίου Θεότεκνος ὁ τῇδε
ἐπίσκοπος ἀφέλκει προσελθὼν δι᾿ ὁμιλίας καὶ τῆς χειρὸς λαβὼν ἐπὶ τὴν
ἐκκλησίαν προάγει εἴσω τε πρὸς αὐτῷ στήσας τῷ ἁγιάσματι μικρόν τι
παραναστείλας αὐτοῦ τῆς χλαμύδος καὶ τὸ προσηρτημένον αὐτῷ ξίφος
ἐπιδείξας ἅμα τε ἀντιπαρατίθησι προσαγαγὼν αὐτῷ τὴν τῶν θείων
εὐαγγελίων γραψήν κελεύσας τῶν δυοῖν ἑλέσθαι τὸ κατὰ γνώμην ὡς δ᾿
24
ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν
ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς
αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης
5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ
δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ
δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν
ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται
25
4 TRADUCcedilAtildeO
O martiacuterio do Santo Marino
1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares
em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido
honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por
todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu
testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte
2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a
conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a
ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo
Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e
declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e
portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos
romanos Assim o cargo cairia para si
3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou
primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele
insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs
horas para refletir
4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era
bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela
matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando
um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo
tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos
exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem
hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas
ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno
ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo
5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para
o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se
apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute
26
imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre
o seu fim
27
5 COMENTAacuteRIOS
51 OS PERSONAGENS
Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em
um ponto da estrutura
Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola
Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal
familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute
exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um
homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos
movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do
texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave
autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado
guerreiro
O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo
dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo
para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A
denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma
preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega
Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o
exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees
do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio
militar portanto tinha um significado muito grande
Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas
informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou
compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem
disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo
28
Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na
quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado
provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era
seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para
conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial
para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve
como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)
O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para
anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo
de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos
outros personagens no texto
52 ESTRUTURA
O texto pode ser subdividido em 5 partes
(i) Marino o soldado cristatildeo
A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no
espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo
A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de
captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a
expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo
(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo
A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio
narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo
apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal
(iii) Marino e o juiz a confissatildeo
A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente
que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir
29
(iv) Marino e o bispo a decisatildeo
Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de
Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem
palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a
espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe
a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras
(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo
Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo
Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte
53 TEMPO E ESPACcedilO
O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto
para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης
ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor
Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e
a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII
12)
A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que
Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em
todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto
o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se
deram de maneira muito raacutepida
Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia
na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no
entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes
contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o
Cristianismo
30
O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno
poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por
Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo
tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito
cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera
propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz
que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os
sofrimentos corporais
Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte
54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS
O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de
diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um
detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga
essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de
martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)
Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte
A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da
distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no
entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor
31
A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra
no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios
desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica
Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com
Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma
narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute
portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a
noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007
8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente
engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo
No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no
uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo
εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por
ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento
por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann
2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que
eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega
amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e
decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo
do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio
ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento
emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado
comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como
afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva
de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a
forte presenccedila do aspecto emotivo
A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para
enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou
ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops
(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma
32
medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te
apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo
Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila
Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte
pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o
caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o
representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute
o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar
Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel
seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os
espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo
Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na
hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops
(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo
obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo
O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino
se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua
decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo
que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar
O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma
meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior
sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O
adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez
Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num
texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e
ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς
πίστεως τὴν προθυμίαν
Assim temos
33
Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)
darrdarrdarrdarr
Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo
darrdarrdarrdarr
Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo
O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas
uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado
pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν
ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente
detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita
conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui
coerecircncia ao texto
Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)
destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura
feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que
todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou
seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica
fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e
estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha
havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois
poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo
34
sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser
adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um
antagonismo fundamentalrdquo
O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de
Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo
substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo
ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos
esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no
texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino
Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos
durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e
por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que
a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino
Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη
ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto
o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων
o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος
o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις
o substantivo εἰρήνη
o substantivo μαρτυρία
Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e
formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado
35
A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes
por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)
honra romana (τιμή)
vide (κλῆμα)
centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)
reconhecimento passageiro e
terreno (ἀξιώμασι
τετιμημένων )
honra cristatilde (τιμή)
paz (εἰρήνη)
maacutertir (μάρτυρ)
reconhecimento eterno e divino
(τελειοῦται)
O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria
honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o
argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado
explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos
versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω
ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o
objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας
φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo
Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o
ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ
τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela
feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)
36
Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha
pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento
terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo
ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na
comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o
cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)
Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito
mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp
Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo
por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute
essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto
O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por
exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer
voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do
termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que
ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to
the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις
Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de
um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados
Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor
menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A
acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os
personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado
numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo
de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute
em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz
37
como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da
acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade
interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se
constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio
por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os
imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao
registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o
mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)
A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das
intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que
como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos
entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo
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CONCLUSAtildeO
O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e
produtivo sob vaacuterios aspectos
Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual
gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A
percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a
ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os
primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma
instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na
literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um
pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os
cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo
- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura
No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do
texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico
durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e
consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa
ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias
da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna
centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o
posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos
fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento
A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se
compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao
bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se
mostrar complacente
39
Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os
cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de
sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem
como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como
um substituto aos espetaacuteculos romanos
Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave
plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos
Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o
que deu origem ao culto dos santos
Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda
precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos
possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados
ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται
presente no texto traduzido e em outros relatos
Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais
utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e
posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma
melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande
auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo
cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade
proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses
novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde
40
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ANEXOS
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)
[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1
1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em
Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um
tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua
linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte
2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles
que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o
escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a
honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo
as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que
era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a
ele
3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a
Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que
era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse
4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e
afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma
vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o
manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e
contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as
duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a
direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -
manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que
escolheste Vai em pazrdquo
1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu
este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer
casos como o de Marino [nota do Editor]
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5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de
novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado
Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua
feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado
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TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)
During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in
Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and
was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It
came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour
and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and
according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he
was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and
attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and
should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to
the ancient laws but that instead the post should fall to himself
It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he
first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed
that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had
Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside
in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed
Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword
attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it
before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out
his right hand and took the divine writings
lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him
may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo
No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the
tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and
showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to
execution and so found his fulfilment
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ἀμελλητὶ τὴν δεξιὰν προτείνας ἐδέξατο τὴν θείαν γραφήν Ἔχου τοίνυν
ἔχου φησὶ πρὸς αὐτὸν ὁ Θεότεκνος τοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς
αὐτοῦ δυναμούμενος καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης
5 εὐθὺς ἐκεῖθεν ἐπανελθόντα αὐτὸν κῆρυξ ἐβόα καλῶν πρὸ τοῦ
δικαστηρίου καὶ γὰρ ἤδη τὰ τῆς προθεσμίας τοῦ χρόνου πεπλήρωτο καὶ
δὴ παραστὰς τῷ δικαστῇ καὶ μείζονα τῆς πίστεως τὴν προθυμίαν
ἐπιδείξας εὐθὺς ὡς εἶχεν ἀπαχθεὶς τὴν ἐπὶ θανάτῳ τελειοῦται
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4 TRADUCcedilAtildeO
O martiacuterio do Santo Marino
1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares
em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido
honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por
todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu
testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte
2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a
conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a
ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo
Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e
declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e
portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos
romanos Assim o cargo cairia para si
3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou
primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele
insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs
horas para refletir
4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era
bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela
matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando
um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo
tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos
exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem
hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas
ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno
ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo
5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para
o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se
apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute
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imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre
o seu fim
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5 COMENTAacuteRIOS
51 OS PERSONAGENS
Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em
um ponto da estrutura
Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola
Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal
familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute
exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um
homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos
movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do
texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave
autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado
guerreiro
O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo
dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo
para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A
denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma
preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega
Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o
exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees
do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio
militar portanto tinha um significado muito grande
Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas
informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou
compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem
disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo
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Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na
quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado
provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era
seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para
conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial
para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve
como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)
O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para
anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo
de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos
outros personagens no texto
52 ESTRUTURA
O texto pode ser subdividido em 5 partes
(i) Marino o soldado cristatildeo
A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no
espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo
A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de
captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a
expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo
(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo
A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio
narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo
apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal
(iii) Marino e o juiz a confissatildeo
A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente
que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir
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(iv) Marino e o bispo a decisatildeo
Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de
Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem
palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a
espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe
a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras
(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo
Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo
Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte
53 TEMPO E ESPACcedilO
O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto
para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης
ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor
Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e
a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII
12)
A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que
Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em
todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto
o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se
deram de maneira muito raacutepida
Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia
na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no
entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes
contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o
Cristianismo
30
O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno
poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por
Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo
tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito
cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera
propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz
que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os
sofrimentos corporais
Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte
54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS
O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de
diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um
detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga
essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de
martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)
Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte
A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da
distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no
entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor
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A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra
no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios
desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica
Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com
Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma
narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute
portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a
noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007
8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente
engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo
No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no
uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo
εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por
ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento
por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann
2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que
eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega
amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e
decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo
do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio
ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento
emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado
comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como
afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva
de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a
forte presenccedila do aspecto emotivo
A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para
enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou
ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops
(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma
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medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te
apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo
Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila
Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte
pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o
caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o
representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute
o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar
Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel
seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os
espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo
Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na
hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops
(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo
obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo
O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino
se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua
decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo
que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar
O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma
meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior
sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O
adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez
Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num
texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e
ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς
πίστεως τὴν προθυμίαν
Assim temos
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Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)
darrdarrdarrdarr
Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo
darrdarrdarrdarr
Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo
O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas
uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado
pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν
ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente
detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita
conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui
coerecircncia ao texto
Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)
destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura
feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que
todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou
seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica
fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e
estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha
havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois
poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo
34
sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser
adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um
antagonismo fundamentalrdquo
O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de
Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo
substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo
ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos
esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no
texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino
Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos
durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e
por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que
a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino
Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη
ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto
o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων
o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος
o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις
o substantivo εἰρήνη
o substantivo μαρτυρία
Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e
formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado
35
A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes
por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)
honra romana (τιμή)
vide (κλῆμα)
centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)
reconhecimento passageiro e
terreno (ἀξιώμασι
τετιμημένων )
honra cristatilde (τιμή)
paz (εἰρήνη)
maacutertir (μάρτυρ)
reconhecimento eterno e divino
(τελειοῦται)
O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria
honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o
argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado
explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos
versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω
ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o
objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας
φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo
Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o
ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ
τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela
feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)
36
Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha
pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento
terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo
ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na
comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o
cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)
Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito
mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp
Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo
por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute
essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto
O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por
exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer
voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do
termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que
ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to
the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις
Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de
um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados
Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor
menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A
acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os
personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado
numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo
de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute
em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz
37
como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da
acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade
interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se
constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio
por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os
imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao
registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o
mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)
A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das
intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que
como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos
entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo
38
CONCLUSAtildeO
O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e
produtivo sob vaacuterios aspectos
Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual
gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A
percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a
ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os
primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma
instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na
literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um
pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os
cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo
- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura
No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do
texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico
durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e
consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa
ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias
da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna
centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o
posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos
fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento
A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se
compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao
bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se
mostrar complacente
39
Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os
cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de
sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem
como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como
um substituto aos espetaacuteculos romanos
Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave
plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos
Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o
que deu origem ao culto dos santos
Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda
precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos
possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados
ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται
presente no texto traduzido e em outros relatos
Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais
utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e
posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma
melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande
auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo
cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade
proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses
novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde
40
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43
ANEXOS
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)
[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1
1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em
Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um
tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua
linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte
2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles
que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o
escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a
honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo
as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que
era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a
ele
3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a
Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que
era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse
4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e
afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma
vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o
manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e
contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as
duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a
direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -
manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que
escolheste Vai em pazrdquo
1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu
este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer
casos como o de Marino [nota do Editor]
44
5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de
novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado
Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua
feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado
45
TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)
During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in
Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and
was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It
came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour
and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and
according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he
was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and
attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and
should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to
the ancient laws but that instead the post should fall to himself
It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he
first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed
that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had
Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside
in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed
Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword
attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it
before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out
his right hand and took the divine writings
lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him
may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo
No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the
tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and
showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to
execution and so found his fulfilment
25
4 TRADUCcedilAtildeO
O martiacuterio do Santo Marino
1 Apesar de haver durante esse periacuteodo paz nas igrejas de todos os lugares
em Cesareacuteia da Palestina um homem chamado Marino que havia sido
honrado com postos na expediccedilatildeo militar e era um homem reconhecido por
todos por sua linhagem e riquezas tem a cabeccedila decapitada por seu
testemunho a favor de Cristo A causa foi a seguinte
2 Haacute entre os romanos uma honra a vide Dizem que aqueles que a
conseguiam tornavam-se centuriotildees Quando uma vaga foi desocupada a
ordem de sucessatildeo desta posiccedilatildeo chamava Marino para esta promoccedilatildeo
Estando jaacute a ponto de receber a honra veio outro diante do tribunal e
declarou que porque era aquele cristatildeo natildeo sacrificava aos imperadores e
portanto de acordo com as antigas leis natildeo poderia participar da honra dos
romanos Assim o cargo cairia para si
3 O juiz (que era Aqueu) tendo ficado comovido com a situaccedilatildeo perguntou
primeiro qual seria a decisatildeo de Marino Quando viu que ele
insistentemente confessava que era cristatildeo deu-lhe um intervalo de trecircs
horas para refletir
4 Aconteceu que estando ele fora do lugar de julgamento Teotecno que era
bispo do lugar afastou-o para conversar Aproximando-se e tomando-o pela
matildeo o leva para a igreja Laacute dentro coloca-o diante do altar Levantando
um pouco o seu manto mostra-lhe a espada que estaacute presa a ele ao mesmo
tempo apresenta-lhe em oposiccedilatildeo a escritura dos evangelhos divinos
exortando-lhe que escolhesse um dos dois de acordo com sua opiniatildeo Sem
hesitar Marino estendeu a matildeo direita e apontou para as Escrituras divinas
ldquoApegue-serdquo entatildeo ldquoapegue-se firmemente a Deusrdquo diz para ele Teotecno
ldquoe que vocecirc obtenha fortalecido por Ele o que escolheu Vaacute em pazrdquo
5 Vindo de laacute Marino imediatamente o mensageiro gritou convocando-o para
o julgamento pois o tempo fixado jaacute tinha se completado Tendo se
apresentado ao juiz portanto e demonstrando ainda mais disposiccedilatildeo pela feacute
26
imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre
o seu fim
27
5 COMENTAacuteRIOS
51 OS PERSONAGENS
Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em
um ponto da estrutura
Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola
Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal
familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute
exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um
homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos
movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do
texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave
autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado
guerreiro
O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo
dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo
para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A
denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma
preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega
Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o
exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees
do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio
militar portanto tinha um significado muito grande
Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas
informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou
compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem
disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo
28
Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na
quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado
provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era
seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para
conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial
para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve
como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)
O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para
anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo
de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos
outros personagens no texto
52 ESTRUTURA
O texto pode ser subdividido em 5 partes
(i) Marino o soldado cristatildeo
A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no
espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo
A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de
captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a
expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo
(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo
A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio
narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo
apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal
(iii) Marino e o juiz a confissatildeo
A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente
que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir
29
(iv) Marino e o bispo a decisatildeo
Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de
Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem
palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a
espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe
a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras
(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo
Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo
Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte
53 TEMPO E ESPACcedilO
O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto
para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης
ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor
Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e
a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII
12)
A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que
Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em
todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto
o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se
deram de maneira muito raacutepida
Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia
na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no
entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes
contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o
Cristianismo
30
O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno
poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por
Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo
tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito
cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera
propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz
que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os
sofrimentos corporais
Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte
54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS
O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de
diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um
detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga
essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de
martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)
Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte
A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da
distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no
entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor
31
A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra
no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios
desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica
Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com
Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma
narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute
portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a
noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007
8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente
engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo
No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no
uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo
εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por
ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento
por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann
2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que
eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega
amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e
decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo
do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio
ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento
emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado
comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como
afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva
de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a
forte presenccedila do aspecto emotivo
A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para
enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou
ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops
(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma
32
medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te
apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo
Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila
Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte
pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o
caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o
representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute
o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar
Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel
seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os
espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo
Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na
hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops
(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo
obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo
O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino
se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua
decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo
que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar
O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma
meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior
sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O
adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez
Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num
texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e
ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς
πίστεως τὴν προθυμίαν
Assim temos
33
Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)
darrdarrdarrdarr
Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo
darrdarrdarrdarr
Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo
O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas
uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado
pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν
ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente
detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita
conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui
coerecircncia ao texto
Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)
destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura
feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que
todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou
seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica
fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e
estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha
havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois
poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo
34
sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser
adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um
antagonismo fundamentalrdquo
O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de
Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo
substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo
ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos
esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no
texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino
Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos
durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e
por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que
a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino
Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη
ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto
o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων
o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος
o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις
o substantivo εἰρήνη
o substantivo μαρτυρία
Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e
formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado
35
A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes
por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)
honra romana (τιμή)
vide (κλῆμα)
centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)
reconhecimento passageiro e
terreno (ἀξιώμασι
τετιμημένων )
honra cristatilde (τιμή)
paz (εἰρήνη)
maacutertir (μάρτυρ)
reconhecimento eterno e divino
(τελειοῦται)
O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria
honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o
argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado
explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos
versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω
ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o
objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας
φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo
Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o
ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ
τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela
feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)
36
Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha
pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento
terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo
ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na
comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o
cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)
Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito
mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp
Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo
por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute
essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto
O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por
exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer
voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do
termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que
ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to
the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις
Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de
um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados
Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor
menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A
acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os
personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado
numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo
de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute
em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz
37
como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da
acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade
interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se
constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio
por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os
imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao
registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o
mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)
A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das
intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que
como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos
entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo
38
CONCLUSAtildeO
O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e
produtivo sob vaacuterios aspectos
Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual
gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A
percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a
ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os
primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma
instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na
literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um
pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os
cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo
- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura
No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do
texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico
durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e
consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa
ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias
da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna
centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o
posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos
fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento
A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se
compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao
bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se
mostrar complacente
39
Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os
cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de
sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem
como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como
um substituto aos espetaacuteculos romanos
Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave
plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos
Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o
que deu origem ao culto dos santos
Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda
precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos
possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados
ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται
presente no texto traduzido e em outros relatos
Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais
utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e
posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma
melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande
auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo
cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade
proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses
novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde
40
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43
ANEXOS
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)
[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1
1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em
Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um
tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua
linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte
2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles
que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o
escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a
honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo
as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que
era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a
ele
3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a
Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que
era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse
4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e
afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma
vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o
manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e
contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as
duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a
direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -
manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que
escolheste Vai em pazrdquo
1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu
este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer
casos como o de Marino [nota do Editor]
44
5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de
novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado
Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua
feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado
45
TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)
During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in
Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and
was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It
came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour
and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and
according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he
was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and
attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and
should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to
the ancient laws but that instead the post should fall to himself
It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he
first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed
that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had
Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside
in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed
Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword
attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it
before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out
his right hand and took the divine writings
lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him
may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo
No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the
tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and
showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to
execution and so found his fulfilment
26
imediatamente como estava foi levado para o caminho da morte e cumpre
o seu fim
27
5 COMENTAacuteRIOS
51 OS PERSONAGENS
Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em
um ponto da estrutura
Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola
Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal
familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute
exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um
homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos
movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do
texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave
autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado
guerreiro
O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo
dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo
para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A
denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma
preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega
Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o
exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees
do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio
militar portanto tinha um significado muito grande
Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas
informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou
compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem
disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo
28
Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na
quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado
provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era
seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para
conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial
para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve
como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)
O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para
anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo
de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos
outros personagens no texto
52 ESTRUTURA
O texto pode ser subdividido em 5 partes
(i) Marino o soldado cristatildeo
A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no
espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo
A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de
captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a
expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo
(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo
A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio
narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo
apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal
(iii) Marino e o juiz a confissatildeo
A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente
que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir
29
(iv) Marino e o bispo a decisatildeo
Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de
Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem
palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a
espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe
a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras
(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo
Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo
Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte
53 TEMPO E ESPACcedilO
O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto
para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης
ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor
Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e
a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII
12)
A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que
Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em
todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto
o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se
deram de maneira muito raacutepida
Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia
na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no
entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes
contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o
Cristianismo
30
O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno
poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por
Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo
tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito
cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera
propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz
que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os
sofrimentos corporais
Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte
54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS
O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de
diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um
detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga
essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de
martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)
Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte
A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da
distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no
entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor
31
A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra
no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios
desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica
Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com
Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma
narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute
portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a
noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007
8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente
engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo
No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no
uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo
εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por
ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento
por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann
2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que
eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega
amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e
decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo
do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio
ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento
emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado
comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como
afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva
de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a
forte presenccedila do aspecto emotivo
A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para
enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou
ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops
(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma
32
medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te
apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo
Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila
Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte
pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o
caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o
representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute
o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar
Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel
seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os
espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo
Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na
hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops
(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo
obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo
O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino
se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua
decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo
que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar
O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma
meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior
sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O
adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez
Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num
texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e
ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς
πίστεως τὴν προθυμίαν
Assim temos
33
Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)
darrdarrdarrdarr
Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo
darrdarrdarrdarr
Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo
O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas
uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado
pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν
ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente
detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita
conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui
coerecircncia ao texto
Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)
destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura
feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que
todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou
seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica
fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e
estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha
havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois
poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo
34
sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser
adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um
antagonismo fundamentalrdquo
O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de
Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo
substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo
ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos
esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no
texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino
Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos
durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e
por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que
a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino
Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη
ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto
o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων
o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος
o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις
o substantivo εἰρήνη
o substantivo μαρτυρία
Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e
formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado
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A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes
por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)
honra romana (τιμή)
vide (κλῆμα)
centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)
reconhecimento passageiro e
terreno (ἀξιώμασι
τετιμημένων )
honra cristatilde (τιμή)
paz (εἰρήνη)
maacutertir (μάρτυρ)
reconhecimento eterno e divino
(τελειοῦται)
O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria
honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o
argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado
explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos
versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω
ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o
objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας
φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo
Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o
ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ
τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela
feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)
36
Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha
pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento
terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo
ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na
comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o
cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)
Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito
mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp
Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo
por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute
essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto
O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por
exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer
voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do
termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que
ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to
the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις
Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de
um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados
Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor
menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A
acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os
personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado
numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo
de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute
em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz
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como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da
acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade
interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se
constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio
por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os
imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao
registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o
mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)
A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das
intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que
como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos
entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo
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CONCLUSAtildeO
O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e
produtivo sob vaacuterios aspectos
Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual
gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A
percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a
ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os
primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma
instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na
literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um
pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os
cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo
- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura
No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do
texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico
durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e
consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa
ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias
da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna
centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o
posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos
fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento
A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se
compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao
bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se
mostrar complacente
39
Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os
cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de
sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem
como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como
um substituto aos espetaacuteculos romanos
Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave
plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos
Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o
que deu origem ao culto dos santos
Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda
precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos
possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados
ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται
presente no texto traduzido e em outros relatos
Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais
utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e
posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma
melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande
auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo
cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade
proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses
novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde
40
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ANEXOS
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)
[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1
1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em
Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um
tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua
linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte
2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles
que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o
escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a
honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo
as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que
era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a
ele
3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a
Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que
era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse
4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e
afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma
vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o
manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e
contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as
duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a
direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -
manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que
escolheste Vai em pazrdquo
1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu
este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer
casos como o de Marino [nota do Editor]
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5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de
novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado
Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua
feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado
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TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)
During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in
Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and
was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It
came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour
and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and
according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he
was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and
attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and
should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to
the ancient laws but that instead the post should fall to himself
It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he
first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed
that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had
Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside
in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed
Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword
attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it
before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out
his right hand and took the divine writings
lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him
may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo
No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the
tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and
showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to
execution and so found his fulfilment
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5 COMENTAacuteRIOS
51 OS PERSONAGENS
Haacute basicamente 5 personagens no relato sendo que cada um deles eacute apresentado em
um ponto da estrutura
Marino ndash eacute o personagem principal em torno de quem toda a histoacuteria se desenrola
Aparece logo no iniacutecio do texto e o autor faz questatildeo de apontar aspectos de sua vida pessoal
familiar e social que fornecem ao leitor uma ideacuteia do seu caraacuteter Como soldado Marino eacute
exemplar jaacute que mereceu ser honrado Diante da sociedade era reconhecido como um
homem de famiacutelia rica e influente Aleacutem disso havia optado por seguir o cristianismo um dos
movimentos religiosos que se destacavam no seacuteculo III do Impeacuterio romano No decorrer do
texto eacute retratado como um homem paciacutefico submisso tanto agrave autoridade do Estado quanto agrave
autoridade eclesiaacutestica caracteriacutestica que em certa medida se contrapotildee agrave funccedilatildeo de soldado
guerreiro
O outro soldado ndash entra em cena na segunda parte do relato Poucas informaccedilotildees satildeo
dadas ao leitor a respeito deste soldado Eacute o uacutenico adversaacuterio de Marino Acusa-o de inaptidatildeo
para assumir o cargo de centuriatildeo pois sendo cristatildeo participa de uma religio ilicita A
denuacutencia entretanto eacute impulsionada mais pelos interesses proacuteprios do que por uma
preocupaccedilatildeo com o Estado jaacute que o adversaacuterio de Marino almeja a promoccedilatildeo dada ao colega
Como observa Daniel-Rops (1988 298) o Impeacuterio jaacute se encontrava em crise no seacuteculo III e o
exeacutercito representava entatildeo o segmento com a maior possibilidade de interferir nas decisotildees
do Estado ldquoSatildeo os exeacutercitos que vatildeo fazer e desfazer imperadoresrdquo A ascensatildeo no meio
militar portanto tinha um significado muito grande
Aqueu ndash como juiz eacute a autoridade que representa o Estado romano Poucas
informaccedilotildees nos satildeo dadas aleacutem do seu nome O autor registra apenas que Aqueu ficou
compadecido de Marino e daacute a ele uma oportunidade de desistir da ideacuteia de ser cristatildeo Aleacutem
disso escolhe a condenaccedilatildeo mais ldquoleverdquo a decapitaccedilatildeo
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Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na
quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado
provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era
seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para
conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial
para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve
como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)
O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para
anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo
de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos
outros personagens no texto
52 ESTRUTURA
O texto pode ser subdividido em 5 partes
(i) Marino o soldado cristatildeo
A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no
espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo
A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de
captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a
expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo
(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo
A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio
narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo
apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal
(iii) Marino e o juiz a confissatildeo
A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente
que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir
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(iv) Marino e o bispo a decisatildeo
Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de
Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem
palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a
espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe
a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras
(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo
Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo
Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte
53 TEMPO E ESPACcedilO
O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto
para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης
ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor
Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e
a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII
12)
A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que
Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em
todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto
o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se
deram de maneira muito raacutepida
Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia
na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no
entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes
contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o
Cristianismo
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O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno
poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por
Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo
tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito
cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera
propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz
que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os
sofrimentos corporais
Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte
54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS
O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de
diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um
detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga
essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de
martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)
Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte
A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da
distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no
entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor
31
A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra
no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios
desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica
Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com
Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma
narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute
portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a
noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007
8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente
engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo
No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no
uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo
εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por
ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento
por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann
2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que
eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega
amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e
decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo
do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio
ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento
emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado
comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como
afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva
de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a
forte presenccedila do aspecto emotivo
A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para
enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou
ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops
(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma
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medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te
apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo
Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila
Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte
pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o
caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o
representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute
o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar
Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel
seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os
espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo
Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na
hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops
(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo
obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo
O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino
se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua
decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo
que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar
O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma
meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior
sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O
adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez
Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num
texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e
ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς
πίστεως τὴν προθυμίαν
Assim temos
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Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)
darrdarrdarrdarr
Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo
darrdarrdarrdarr
Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo
O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas
uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado
pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν
ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente
detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita
conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui
coerecircncia ao texto
Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)
destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura
feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que
todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou
seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica
fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e
estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha
havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois
poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo
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sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser
adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um
antagonismo fundamentalrdquo
O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de
Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo
substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo
ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos
esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no
texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino
Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos
durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e
por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que
a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino
Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη
ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto
o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων
o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος
o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις
o substantivo εἰρήνη
o substantivo μαρτυρία
Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e
formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado
35
A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes
por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)
honra romana (τιμή)
vide (κλῆμα)
centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)
reconhecimento passageiro e
terreno (ἀξιώμασι
τετιμημένων )
honra cristatilde (τιμή)
paz (εἰρήνη)
maacutertir (μάρτυρ)
reconhecimento eterno e divino
(τελειοῦται)
O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria
honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o
argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado
explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos
versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω
ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o
objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας
φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo
Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o
ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ
τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela
feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)
36
Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha
pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento
terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo
ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na
comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o
cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)
Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito
mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp
Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo
por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute
essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto
O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por
exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer
voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do
termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que
ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to
the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις
Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de
um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados
Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor
menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A
acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os
personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado
numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo
de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute
em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz
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como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da
acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade
interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se
constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio
por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os
imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao
registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o
mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)
A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das
intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que
como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos
entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo
38
CONCLUSAtildeO
O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e
produtivo sob vaacuterios aspectos
Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual
gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A
percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a
ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os
primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma
instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na
literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um
pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os
cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo
- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura
No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do
texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico
durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e
consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa
ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias
da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna
centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o
posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos
fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento
A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se
compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao
bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se
mostrar complacente
39
Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os
cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de
sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem
como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como
um substituto aos espetaacuteculos romanos
Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave
plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos
Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o
que deu origem ao culto dos santos
Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda
precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos
possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados
ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται
presente no texto traduzido e em outros relatos
Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais
utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e
posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma
melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande
auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo
cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade
proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses
novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde
40
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43
ANEXOS
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)
[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1
1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em
Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um
tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua
linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte
2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles
que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o
escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a
honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo
as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que
era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a
ele
3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a
Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que
era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse
4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e
afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma
vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o
manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e
contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as
duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a
direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -
manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que
escolheste Vai em pazrdquo
1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu
este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer
casos como o de Marino [nota do Editor]
44
5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de
novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado
Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua
feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado
45
TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)
During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in
Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and
was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It
came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour
and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and
according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he
was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and
attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and
should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to
the ancient laws but that instead the post should fall to himself
It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he
first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed
that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had
Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside
in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed
Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword
attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it
before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out
his right hand and took the divine writings
lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him
may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo
No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the
tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and
showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to
execution and so found his fulfilment
28
Teotecno ndash como bispo eacute a autoridade que representa a Igreja Eacute apresentado na
quarta parte como um pastor que se preocupa com os cristatildeos Como Marino eacute um soldado
provavelmente se encontrava em uma viagem e portanto natildeo necessariamente Teotecno era
seu pastor (cf Musurillo 2000 241) Mesmo assim ele vai atraacutes de Marino e o procura para
conversar embora poucas sejam as palavras relatadas no texto Eacute um personagem essencial
para o fechamento do enredo jaacute que obriga Marino a tomar uma decisatildeo Euseacutebio o descreve
como seu contemporacircneo e pertencente agrave escola de Oriacutegenes (Hist Eclesiaacutestica VIII 14)
O mensageiro ndash eacute o personagem anocircnimo que entra em cena na uacuteltima parte para
anunciar o fim do tempo concedido a Marino Eacute a esse personagem que se faz a uacutenica menccedilatildeo
de fala nesta parte de um grito aliaacutes O grito do mensageiro contrasta com o silecircncio dos
outros personagens no texto
52 ESTRUTURA
O texto pode ser subdividido em 5 partes
(i) Marino o soldado cristatildeo
A primeira parte trata da introduccedilatildeo ao tema exposto ambienta o leitor no tempo e no
espaccedilo e apresenta o personagem principal Marino o bom soldado o bom cidadatildeo o cristatildeo
A introduccedilatildeo aleacutem de destacar de antematildeo a condenaccedilatildeo de Marino tem o claro objetivo de
captar a atenccedilatildeo do leitor ao anunciar o relato detalhado dos acontecimentos com a
expressatildeo ldquoa causa foi a seguinterdquo
(ii) Marino e o outro a acusaccedilatildeo
A segunda parte expotildee a situaccedilatildeo desencadeadora do desequiliacutebrio do episoacutedio
narrado A acusaccedilatildeo de um outro soldado - cujo nome natildeo eacute explicitado pelo autor - natildeo
apenas impede Marino de receber a vide de centuriatildeo romano como o leva ao tribunal
(iii) Marino e o juiz a confissatildeo
A terceira parte relata o encontro do reacuteu com o juiz Marino confessa insistentemente
que eacute cristatildeo O juiz compadecido lhe concede trecircs horas para refletir
29
(iv) Marino e o bispo a decisatildeo
Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de
Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem
palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a
espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe
a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras
(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo
Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo
Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte
53 TEMPO E ESPACcedilO
O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto
para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης
ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor
Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e
a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII
12)
A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que
Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em
todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto
o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se
deram de maneira muito raacutepida
Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia
na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no
entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes
contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o
Cristianismo
30
O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno
poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por
Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo
tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito
cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera
propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz
que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os
sofrimentos corporais
Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte
54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS
O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de
diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um
detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga
essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de
martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)
Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte
A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da
distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no
entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor
31
A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra
no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios
desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica
Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com
Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma
narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute
portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a
noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007
8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente
engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo
No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no
uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo
εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por
ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento
por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann
2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que
eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega
amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e
decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo
do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio
ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento
emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado
comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como
afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva
de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a
forte presenccedila do aspecto emotivo
A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para
enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou
ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops
(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma
32
medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te
apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo
Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila
Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte
pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o
caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o
representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute
o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar
Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel
seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os
espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo
Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na
hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops
(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo
obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo
O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino
se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua
decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo
que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar
O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma
meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior
sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O
adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez
Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num
texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e
ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς
πίστεως τὴν προθυμίαν
Assim temos
33
Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)
darrdarrdarrdarr
Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo
darrdarrdarrdarr
Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo
O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas
uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado
pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν
ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente
detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita
conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui
coerecircncia ao texto
Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)
destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura
feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que
todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou
seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica
fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e
estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha
havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois
poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo
34
sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser
adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um
antagonismo fundamentalrdquo
O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de
Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo
substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo
ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos
esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no
texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino
Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos
durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e
por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que
a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino
Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη
ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto
o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων
o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος
o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις
o substantivo εἰρήνη
o substantivo μαρτυρία
Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e
formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado
35
A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes
por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)
honra romana (τιμή)
vide (κλῆμα)
centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)
reconhecimento passageiro e
terreno (ἀξιώμασι
τετιμημένων )
honra cristatilde (τιμή)
paz (εἰρήνη)
maacutertir (μάρτυρ)
reconhecimento eterno e divino
(τελειοῦται)
O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria
honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o
argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado
explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos
versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω
ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o
objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας
φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo
Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o
ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ
τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela
feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)
36
Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha
pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento
terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo
ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na
comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o
cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)
Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito
mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp
Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo
por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute
essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto
O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por
exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer
voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do
termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que
ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to
the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις
Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de
um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados
Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor
menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A
acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os
personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado
numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo
de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute
em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz
37
como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da
acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade
interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se
constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio
por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os
imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao
registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o
mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)
A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das
intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que
como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos
entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo
38
CONCLUSAtildeO
O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e
produtivo sob vaacuterios aspectos
Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual
gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A
percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a
ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os
primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma
instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na
literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um
pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os
cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo
- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura
No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do
texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico
durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e
consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa
ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias
da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna
centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o
posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos
fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento
A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se
compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao
bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se
mostrar complacente
39
Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os
cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de
sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem
como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como
um substituto aos espetaacuteculos romanos
Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave
plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos
Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o
que deu origem ao culto dos santos
Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda
precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos
possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados
ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται
presente no texto traduzido e em outros relatos
Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais
utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e
posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma
melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande
auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo
cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade
proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses
novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde
40
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43
ANEXOS
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)
[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1
1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em
Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um
tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua
linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte
2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles
que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o
escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a
honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo
as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que
era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a
ele
3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a
Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que
era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse
4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e
afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma
vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o
manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e
contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as
duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a
direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -
manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que
escolheste Vai em pazrdquo
1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu
este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer
casos como o de Marino [nota do Editor]
44
5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de
novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado
Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua
feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado
45
TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)
During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in
Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and
was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It
came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour
and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and
according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he
was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and
attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and
should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to
the ancient laws but that instead the post should fall to himself
It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he
first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed
that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had
Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside
in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed
Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword
attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it
before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out
his right hand and took the divine writings
lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him
may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo
No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the
tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and
showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to
execution and so found his fulfilment
29
(iv) Marino e o bispo a decisatildeo
Na quarta parte a mais longa de todas Teotecno bispo de Cesareacuteia vai ao socorro de
Marino O conduz para dentro da igreja e o exorta a tomar uma decisatildeo Numa conversa sem
palavras Teotecno coloca diante de Marino as suas duas opccedilotildees e o exorta a escolher entre a
espada (honra humana e passageira) e os Evangelhos (honra divina e eterna) Marino escolhe
a feacute Teotecno entatildeo o abenccediloa e lhe diz palavras encorajadoras
(v) Marino e a morte a realizaccedilatildeoglorificaccedilatildeo
Na uacuteltima parte o mensageiro anuncia o fim do tempo estipulado para a reflexatildeo
Marino volta para o tribunal e apoacutes manifestar sua decisatildeo para o juiz eacute levado para a morte
53 TEMPO E ESPACcedilO
O autor faz duas referecircncias ao tempo A primeira se encontra logo no iniacutecio do texto
para situar o leitor no tempo histoacuterico dos acontecimentos Κατὰ τούτους εἰρήνης
ἁπανταχοῦ τῶν ἐκκλησιῶν οὒσης Essa citaccedilatildeo tomada isoladamente natildeo ajuda o leitor
Eacute entendida somente se lida no contexto de onde o relato foi extraiacutedo isto eacute da Histoacuteria
Eclesiaacutestica de Euseacutebio Ali o autor faz referecircncia a Sixto como bispo de Roma (VIII 13) e
a Galieno como imperador o qual havia promulgado um edito favoraacutevel aos cristatildeos (VIII
12)
A outra referecircncia ao tempo eacute cronoloacutegica as trecircs horas dadas por Aqueu para que
Marino tomasse sua decisatildeo ou seja o periacuteodo em que o soldado passa fora do tribunal Em
todo o restante do relato natildeo haacute por parte do autor a preocupaccedilatildeo com o tempo No entanto
o uso de adveacuterbios como ἤδη e εὐθὺς causam a impressatildeo de que os acontecimentos se
deram de maneira muito raacutepida
Quanto ao espaccedilo vaacuterias satildeo as referecircncias dadas A primeira eacute a cidade de Cesareacuteia
na Palestina uma regiatildeo habitada em grande parte por judeus Mais especificamente no
entanto a histoacuteria se daacute em dois lugares no tribunal e na igreja Esses dois ambientes
contrapotildeem os poderes enfatizados a todo tempo no relato que satildeo o Estado romano e o
Cristianismo
30
O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno
poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por
Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo
tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito
cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera
propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz
que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os
sofrimentos corporais
Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte
54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS
O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de
diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um
detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga
essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de
martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)
Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte
A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da
distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no
entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor
31
A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra
no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios
desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica
Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com
Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma
narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute
portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a
noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007
8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente
engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo
No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no
uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo
εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por
ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento
por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann
2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que
eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega
amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e
decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo
do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio
ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento
emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado
comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como
afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva
de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a
forte presenccedila do aspecto emotivo
A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para
enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou
ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops
(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma
32
medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te
apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo
Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila
Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte
pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o
caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o
representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute
o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar
Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel
seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os
espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo
Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na
hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops
(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo
obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo
O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino
se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua
decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo
que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar
O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma
meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior
sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O
adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez
Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num
texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e
ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς
πίστεως τὴν προθυμίαν
Assim temos
33
Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)
darrdarrdarrdarr
Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo
darrdarrdarrdarr
Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo
O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas
uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado
pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν
ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente
detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita
conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui
coerecircncia ao texto
Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)
destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura
feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que
todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou
seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica
fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e
estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha
havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois
poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo
34
sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser
adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um
antagonismo fundamentalrdquo
O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de
Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo
substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo
ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos
esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no
texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino
Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos
durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e
por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que
a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino
Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη
ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto
o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων
o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος
o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις
o substantivo εἰρήνη
o substantivo μαρτυρία
Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e
formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado
35
A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes
por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)
honra romana (τιμή)
vide (κλῆμα)
centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)
reconhecimento passageiro e
terreno (ἀξιώμασι
τετιμημένων )
honra cristatilde (τιμή)
paz (εἰρήνη)
maacutertir (μάρτυρ)
reconhecimento eterno e divino
(τελειοῦται)
O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria
honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o
argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado
explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos
versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω
ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o
objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας
φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo
Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o
ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ
τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela
feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)
36
Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha
pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento
terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo
ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na
comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o
cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)
Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito
mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp
Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo
por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute
essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto
O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por
exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer
voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do
termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que
ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to
the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις
Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de
um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados
Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor
menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A
acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os
personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado
numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo
de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute
em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz
37
como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da
acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade
interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se
constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio
por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os
imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao
registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o
mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)
A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das
intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que
como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos
entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo
38
CONCLUSAtildeO
O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e
produtivo sob vaacuterios aspectos
Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual
gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A
percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a
ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os
primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma
instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na
literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um
pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os
cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo
- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura
No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do
texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico
durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e
consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa
ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias
da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna
centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o
posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos
fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento
A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se
compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao
bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se
mostrar complacente
39
Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os
cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de
sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem
como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como
um substituto aos espetaacuteculos romanos
Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave
plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos
Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o
que deu origem ao culto dos santos
Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda
precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos
possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados
ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται
presente no texto traduzido e em outros relatos
Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais
utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e
posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma
melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande
auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo
cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade
proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses
novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde
40
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43
ANEXOS
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)
[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1
1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em
Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um
tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua
linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte
2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles
que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o
escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a
honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo
as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que
era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a
ele
3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a
Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que
era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse
4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e
afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma
vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o
manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e
contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as
duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a
direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -
manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que
escolheste Vai em pazrdquo
1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu
este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer
casos como o de Marino [nota do Editor]
44
5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de
novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado
Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua
feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado
45
TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)
During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in
Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and
was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It
came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour
and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and
according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he
was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and
attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and
should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to
the ancient laws but that instead the post should fall to himself
It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he
first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed
that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had
Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside
in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed
Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword
attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it
before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out
his right hand and took the divine writings
lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him
may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo
No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the
tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and
showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to
execution and so found his fulfilment
30
O encontro de Marino com o bispo dentro da igreja eacute crucial no relato Teotecno
poderia ter conversado com ele em outro lugar O autor detalha que Marino eacute colocado por
Teotecno diante do altar lugar que representa a presenccedila de Deus Eacute dentro do templo
tambeacutem que se encontram os papiros dos Evangelhos O ambiente da igreja lugar que muito
cedo na histoacuteria do cristianismo se torna essencial para os cristatildeos cria uma atmosfera
propiacutecia para a decisatildeo de Marino Como escreve Brown (1990 68) era em tempos de paz
que os cristatildeos eram capacitados internamente pela presenccedila de Deus a suportarem os
sofrimentos corporais
Era de vital importacircncia para os fieacuteis que um corpo capaz de ser portador do Espiacuterito de Deus nas assembleacuteias cristatildes em tempos de paz fosse tambeacutem capacitado atraveacutes de Cristo e de Seu Espiacuterito a suportar a devastadora possessatildeo negativa associada a tormentos de destino dos maacutertires Somente a profunda permanecircncia em Cristo e Seu Espiacuterito dentro deles poderia permitir a homens e mulheres resistir agrave invasatildeo de suas almas e corpos pela dor irresistiacutevel da tortura pelo oprimente medo da morte
54 ELEMENTOS LINGUumlIacuteSTICOS
O relato do maacutertir Marino se destaca por ser um texto curto e objetivo A presenccedila de
diaacutelogos eacute praticamente nula fato que o diferencia dos outros relatos Tambeacutem natildeo haacute um
detalhamento dos acontecimentos O autor prefere apenas fazer referecircncia ao que julga
essencial chegando assim ao maacuteximo da discriccedilatildeo caracteriacutestica comum aos relatos de
martiacuterio segundo Daniel-Rops (1988 354)
Ao passo que o cinema e a imprensa atuais sublinham com uma complacecircncia muitas vezes moacuterbida o realismo e o horror os cristatildeos descrevem as suas torturas com uma impressionante discriccedilatildeo () Nas narrativas dos martiroloacutegios mesmo quando se mencionam pormenores mais circunstanciais sobre os supliacutecios infligidos dos fieacuteis nunca os narradores insistem sobre as suas reaccedilotildees fiacutesicas sobre o que experimentavam nas torturas ao contraacuterio eacute numa linguagem severa e quase que friamente estereotipada que nos mostram os maacutertires dominando o sofrimento e enfrentando a morte
A objetividade e a falta de diaacutelogos do texto de Marino leva-nos agrave observaccedilatildeo da
distribuiccedilatildeo das classes de palavras a fim de identificar algumas pistas que nos auxiliem no
entendimento do enredo e das intenccedilotildees do autor
31
A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra
no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios
desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica
Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com
Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma
narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute
portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a
noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007
8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente
engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo
No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no
uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo
εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por
ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento
por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann
2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que
eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega
amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e
decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo
do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio
ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento
emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado
comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como
afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva
de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a
forte presenccedila do aspecto emotivo
A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para
enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou
ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops
(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma
32
medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te
apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo
Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila
Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte
pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o
caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o
representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute
o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar
Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel
seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os
espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo
Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na
hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops
(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo
obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo
O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino
se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua
decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo
que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar
O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma
meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior
sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O
adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez
Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num
texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e
ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς
πίστεως τὴν προθυμίαν
Assim temos
33
Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)
darrdarrdarrdarr
Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo
darrdarrdarrdarr
Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo
O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas
uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado
pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν
ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente
detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita
conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui
coerecircncia ao texto
Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)
destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura
feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que
todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou
seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica
fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e
estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha
havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois
poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo
34
sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser
adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um
antagonismo fundamentalrdquo
O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de
Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo
substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo
ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos
esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no
texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino
Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos
durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e
por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que
a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino
Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη
ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto
o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων
o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος
o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις
o substantivo εἰρήνη
o substantivo μαρτυρία
Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e
formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado
35
A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes
por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)
honra romana (τιμή)
vide (κλῆμα)
centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)
reconhecimento passageiro e
terreno (ἀξιώμασι
τετιμημένων )
honra cristatilde (τιμή)
paz (εἰρήνη)
maacutertir (μάρτυρ)
reconhecimento eterno e divino
(τελειοῦται)
O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria
honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o
argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado
explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos
versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω
ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o
objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας
φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo
Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o
ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ
τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela
feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)
36
Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha
pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento
terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo
ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na
comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o
cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)
Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito
mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp
Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo
por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute
essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto
O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por
exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer
voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do
termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que
ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to
the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις
Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de
um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados
Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor
menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A
acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os
personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado
numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo
de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute
em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz
37
como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da
acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade
interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se
constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio
por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os
imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao
registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o
mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)
A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das
intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que
como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos
entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo
38
CONCLUSAtildeO
O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e
produtivo sob vaacuterios aspectos
Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual
gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A
percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a
ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os
primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma
instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na
literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um
pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os
cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo
- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura
No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do
texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico
durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e
consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa
ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias
da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna
centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o
posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos
fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento
A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se
compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao
bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se
mostrar complacente
39
Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os
cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de
sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem
como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como
um substituto aos espetaacuteculos romanos
Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave
plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos
Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o
que deu origem ao culto dos santos
Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda
precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos
possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados
ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται
presente no texto traduzido e em outros relatos
Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais
utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e
posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma
melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande
auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo
cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade
proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses
novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde
40
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43
ANEXOS
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)
[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1
1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em
Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um
tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua
linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte
2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles
que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o
escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a
honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo
as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que
era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a
ele
3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a
Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que
era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse
4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e
afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma
vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o
manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e
contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as
duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a
direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -
manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que
escolheste Vai em pazrdquo
1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu
este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer
casos como o de Marino [nota do Editor]
44
5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de
novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado
Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua
feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado
45
TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)
During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in
Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and
was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It
came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour
and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and
according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he
was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and
attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and
should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to
the ancient laws but that instead the post should fall to himself
It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he
first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed
that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had
Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside
in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed
Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword
attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it
before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out
his right hand and took the divine writings
lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him
may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo
No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the
tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and
showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to
execution and so found his fulfilment
31
A accedilatildeo eacute marcada por poucos verbos principais Grande parte dos verbos se encontra
no particiacutepio ou no infinitivo O texto eacute rico em substantivos e o uso de alguns adveacuterbios
desempenha uma funccedilatildeo extremamente enfaacutetica
Pode-se dizer que ateacute o momento da decisatildeo de Marino tomada na ldquoconversardquo com
Teotecno a maioria dos verbos principais estatildeo no presente do indicativo Isso propicia uma
narrativa com mais accedilatildeo e exige um maior envolvimento por parte do ouvinteleitor Eacute
portanto o uso do tempo presente que substitui a funccedilatildeo do diaacutelogo atribuindo ao texto a
noccedilatildeo de teatralidade tiacutepica desse tipo de literatura como menciona Ipiranga Juacutenior (2007
8) ldquoo drama do maacutertir () se torna um teatro efetivo em que todos estatildeo vivencialmente
engajados personagens escritores leitores e ouvintesrdquo
No verso 3 em que o texto narra o encontro do soldado com o juiz haacute uma quebra no
uso do verbo presente Eacute nesse momento que aparece na fala indireta de Aqueu o optativo
εἴη O aparecimento de um verbo no optativo eacute interessante por vaacuterios motivos Primeiro por
ter sido substituiacutedo no grego koineacute em grande parte pelo subjuntivo No Novo Testamento
por exemplo haacute apenas 67 ocorrecircncias de verbos no modo optativo (Rega amp Bergmann
2004 279) Aleacutem disso quando usado em oraccedilotildees subordinadas em perguntas indiretas que
eacute o caso do texto estudado ldquoexpressa uma condiccedilatildeo tida como altamente improvaacutevelrdquo (Rega
amp Bergmann 2004 280) De fato o juiz concede a Marino a possibilidade de refletir e
decidir talvez quem sabe pela apostasia Mas essa escolha eacute remota uma vez que a opiniatildeo
do reacuteu fica clara logo em seguida quando da sua confissatildeo enfatizada pelo adveacuterbio
ἐπιμόνως O uso do optativo poreacutem ressalta ainda outra questatildeo que eacute o envolvimento
emocional do juiz - e por conseguinte do ouvinteleitor Pelo fato de Aqueu ter ficado
comovido - κινηθέντα - eacute que surge a possibilidade de um intervalo para refletir Como
afirma Ruck (1998 225) a principal funccedilatildeo do modo optativo eacute ldquoa expressatildeo direta e emotiva
de uma esperanccedila desejo ou precerdquo Ou seja a escolha pelo optativo reflete mais uma vez a
forte presenccedila do aspecto emotivo
A atitude de Aqueu eacute curiosa porque como juiz tinha autoridade suficiente para
enviar Marino para a prisatildeo preventiva ou decidir por uma pena de morte mais cruel ou
ainda enviaacute-lo para o trabalho nas minas A escolha pela decapitaccedilatildeo eacute segundo Daniel-Rops
(1988 366) um sinal de humanidade ldquoa decapitaccedilatildeo pura e simples era considerada uma
32
medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te
apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo
Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila
Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte
pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o
caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o
representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute
o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar
Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel
seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os
espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo
Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na
hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops
(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo
obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo
O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino
se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua
decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo
que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar
O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma
meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior
sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O
adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez
Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num
texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e
ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς
πίστεως τὴν προθυμίαν
Assim temos
33
Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)
darrdarrdarrdarr
Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo
darrdarrdarrdarr
Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo
O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas
uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado
pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν
ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente
detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita
conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui
coerecircncia ao texto
Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)
destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura
feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que
todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou
seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica
fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e
estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha
havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois
poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo
34
sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser
adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um
antagonismo fundamentalrdquo
O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de
Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo
substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo
ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos
esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no
texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino
Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos
durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e
por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que
a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino
Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη
ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto
o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων
o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος
o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις
o substantivo εἰρήνη
o substantivo μαρτυρία
Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e
formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado
35
A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes
por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)
honra romana (τιμή)
vide (κλῆμα)
centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)
reconhecimento passageiro e
terreno (ἀξιώμασι
τετιμημένων )
honra cristatilde (τιμή)
paz (εἰρήνη)
maacutertir (μάρτυρ)
reconhecimento eterno e divino
(τελειοῦται)
O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria
honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o
argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado
explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos
versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω
ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o
objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας
φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo
Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o
ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ
τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela
feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)
36
Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha
pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento
terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo
ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na
comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o
cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)
Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito
mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp
Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo
por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute
essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto
O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por
exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer
voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do
termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que
ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to
the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις
Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de
um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados
Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor
menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A
acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os
personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado
numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo
de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute
em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz
37
como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da
acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade
interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se
constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio
por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os
imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao
registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o
mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)
A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das
intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que
como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos
entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo
38
CONCLUSAtildeO
O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e
produtivo sob vaacuterios aspectos
Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual
gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A
percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a
ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os
primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma
instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na
literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um
pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os
cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo
- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura
No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do
texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico
durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e
consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa
ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias
da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna
centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o
posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos
fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento
A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se
compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao
bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se
mostrar complacente
39
Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os
cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de
sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem
como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como
um substituto aos espetaacuteculos romanos
Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave
plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos
Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o
que deu origem ao culto dos santos
Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda
precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos
possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados
ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται
presente no texto traduzido e em outros relatos
Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais
utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e
posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma
melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande
auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo
cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade
proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses
novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde
40
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43
ANEXOS
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)
[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1
1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em
Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um
tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua
linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte
2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles
que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o
escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a
honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo
as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que
era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a
ele
3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a
Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que
era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse
4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e
afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma
vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o
manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e
contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as
duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a
direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -
manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que
escolheste Vai em pazrdquo
1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu
este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer
casos como o de Marino [nota do Editor]
44
5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de
novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado
Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua
feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado
45
TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)
During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in
Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and
was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It
came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour
and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and
according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he
was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and
attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and
should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to
the ancient laws but that instead the post should fall to himself
It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he
first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed
that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had
Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside
in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed
Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword
attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it
before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out
his right hand and took the divine writings
lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him
may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo
No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the
tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and
showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to
execution and so found his fulfilment
32
medida de clemecircncia lsquoSerei humano ndash dizia agraves vezes o magistrado de Roma ndash condeno-te
apenas a que te cortem a cabeccedilarsquordquo
Os cristatildeos reconheciam os diversos niacuteveis de sofrimento que vinham com a sentenccedila
Sabiam tambeacutem que a decapitaccedilatildeo era a mais branda Ora a informaccedilatildeo do tipo de morte
pela qual Marino passou logo na introduccedilatildeo associada ao compadecimento do juiz reforccedila o
caraacuteter exemplar do maacutertir Aleacutem disso relativiza ou enfraquece a autoridade de Aqueu o
representante dos interesses do Estado no texto Para Daniel-Rops (1988 342) o seacuteculo III eacute
o periacuteodo em que as relaccedilotildees entre os dois grandes poderes da eacutepoca comeccedilam a se estreitar
Na opiniatildeo dele ldquopassou o tempo em que o cristianismo se apresentava como uma miseraacutevel
seita de inocentes fanaacuteticos que por simples capricho se podia enviar agrave arena para divertir os
espectadores do circo Haacute muitos indiacutecios de que a Igreja eacute agora levada em consideraccedilatildeordquo
Tendo em mente que a morte de Marino se deu em torno de 260 dC eacute plausiacutevel pensar na
hipoacutetese de uma influecircncia cristatilde sobre o Impeacuterio ou pelo menos como escreve Daniel-Rops
(1988 344) ldquoque a propaganda altamente moral e profundamente humana do cristianismo
obriga a sociedade romana a uma espeacutecie de exame de consciecircnciardquo
O verso 4 volta a apresentar verbos no tempo presente do indicativo quando Marino
se encontra com o bispo Teotecno Um novo corte eacute dado assim que o soldado toma a sua
decisatildeo quando o aoristo ἐδέξατο eacute utilizado indicando uma accedilatildeo pontual Essa decisatildeo
que eacute o ponto central do texto eacute enfatizada com o adveacuterbio ἀμελλητὶ - sem hesitar
O presente do indicativo soacute seraacute retomado no final do texto com o uso da forma
meacutedia-passiva τελειοῦται Eacute neste uacuteltimo verso que a quantidade de adveacuterbios eacute maior
sendo eles os grandes responsaacuteveis tanto pela noccedilatildeo de accedilatildeo quanto pela de tempo presente O
adveacuterbio εὐθὺς ndash imediatamente ndash eacute usado duas vezes e ἤδη ndash jaacute - uma vez
Outro item que se destaca no uacuteltimo verso eacute o adjetivo comparativo μείζονα Num
texto com poucos adjetivos ele chama a atenccedilatildeo Juntamente com os adveacuterbios ἐπιμόνως e
ἀμελλητὶ forma uma gradaccedilatildeo na disposiccedilatildeoprontidatildeo de Marino para morrer pela feacute τῆς
πίστεως τὴν προθυμίαν
Assim temos
33
Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)
darrdarrdarrdarr
Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo
darrdarrdarrdarr
Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo
O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas
uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado
pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν
ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente
detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita
conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui
coerecircncia ao texto
Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)
destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura
feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que
todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou
seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica
fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e
estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha
havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois
poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo
34
sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser
adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um
antagonismo fundamentalrdquo
O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de
Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo
substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo
ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos
esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no
texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino
Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos
durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e
por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que
a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino
Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη
ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto
o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων
o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος
o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις
o substantivo εἰρήνη
o substantivo μαρτυρία
Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e
formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado
35
A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes
por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)
honra romana (τιμή)
vide (κλῆμα)
centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)
reconhecimento passageiro e
terreno (ἀξιώμασι
τετιμημένων )
honra cristatilde (τιμή)
paz (εἰρήνη)
maacutertir (μάρτυρ)
reconhecimento eterno e divino
(τελειοῦται)
O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria
honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o
argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado
explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos
versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω
ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o
objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας
φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo
Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o
ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ
τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela
feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)
36
Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha
pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento
terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo
ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na
comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o
cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)
Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito
mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp
Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo
por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute
essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto
O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por
exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer
voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do
termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que
ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to
the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις
Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de
um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados
Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor
menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A
acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os
personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado
numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo
de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute
em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz
37
como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da
acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade
interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se
constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio
por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os
imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao
registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o
mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)
A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das
intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que
como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos
entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo
38
CONCLUSAtildeO
O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e
produtivo sob vaacuterios aspectos
Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual
gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A
percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a
ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os
primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma
instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na
literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um
pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os
cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo
- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura
No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do
texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico
durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e
consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa
ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias
da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna
centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o
posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos
fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento
A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se
compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao
bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se
mostrar complacente
39
Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os
cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de
sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem
como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como
um substituto aos espetaacuteculos romanos
Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave
plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos
Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o
que deu origem ao culto dos santos
Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda
precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos
possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados
ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται
presente no texto traduzido e em outros relatos
Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais
utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e
posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma
melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande
auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo
cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade
proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses
novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde
40
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41
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43
ANEXOS
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)
[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1
1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em
Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um
tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua
linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte
2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles
que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o
escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a
honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo
as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que
era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a
ele
3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a
Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que
era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse
4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e
afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma
vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o
manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e
contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as
duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a
direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -
manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que
escolheste Vai em pazrdquo
1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu
este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer
casos como o de Marino [nota do Editor]
44
5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de
novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado
Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua
feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado
45
TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)
During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in
Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and
was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It
came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour
and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and
according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he
was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and
attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and
should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to
the ancient laws but that instead the post should fall to himself
It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he
first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed
that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had
Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside
in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed
Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword
attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it
before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out
his right hand and took the divine writings
lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him
may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo
No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the
tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and
showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to
execution and so found his fulfilment
33
Marino confessa insistentemente que eacute cristatildeo (ἐπιμόνως)
darrdarrdarrdarr
Marino decide sem hesitar (ἀμελλητὶ) permanecer (ἐπιμένω) em sua decisatildeo de ser cristatildeo
darrdarrdarrdarr
Marino demonstra ainda maior (μείζονα) disposiccedilatildeo para morrer pela sua feacute permanecendo em sua decisatildeo
O personagem principal eacute apresentado como um homem de poucas palavras Apenas
uma vez o texto faz citaccedilatildeo indireta a uma fala de Marino no momento em que eacute questionado
pelo juiz e confessa com insistecircncia que eacute cristatildeo ldquoὡς δ᾿ ὁμολογοῦντα Χριστιανὸν
ἐπιμόνωςrdquo Assim o interrogatoacuterio e os momentos anteriores agrave morte geralmente
detalhados em outros relatos satildeo condensados neste A nosso ver essa escolha eacute feita
conscientemente pelo autor e eacute um fator que juntamente com a seleccedilatildeo lexical atribui
coerecircncia ao texto
Os relatos de martiacuterio estavam baseados nas atas dos processos Delehaye (1966 129)
destaca que no periacuteodo imperial a elaboraccedilatildeo da ata por um escrivatildeo e a posterior leitura
feita pelo magistrado eram obrigatoacuterias Aleacutem disso os processos eram afixados para que
todos pudessem ler e segundo Delehaye (Ibid) o acesso a eles era relativamente faacutecil Ou
seja a exclusatildeo dos diaacutelogos pelo autor do relato de Marino evidencia uma intenccedilatildeo A uacutenica
fala de todo o texto natildeo pertence a Marino ou a Aqueu ou ao inimigo Pertence ao bispo e
estaacute situada fora do local de julgamento isto eacute a voz pertence agrave Igreja Assim embora tenha
havido uma aproximaccedilatildeo entre o Estado e a Igreja o texto deixa bem claro que satildeo dois
poderes concorrentes como observa Daniel-Rops (1988 344) ldquoHaacute portanto em certo
34
sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser
adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um
antagonismo fundamentalrdquo
O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de
Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo
substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo
ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos
esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no
texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino
Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos
durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e
por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que
a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino
Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη
ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto
o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων
o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος
o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις
o substantivo εἰρήνη
o substantivo μαρτυρία
Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e
formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado
35
A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes
por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)
honra romana (τιμή)
vide (κλῆμα)
centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)
reconhecimento passageiro e
terreno (ἀξιώμασι
τετιμημένων )
honra cristatilde (τιμή)
paz (εἰρήνη)
maacutertir (μάρτυρ)
reconhecimento eterno e divino
(τελειοῦται)
O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria
honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o
argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado
explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos
versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω
ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o
objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας
φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo
Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o
ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ
τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela
feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)
36
Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha
pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento
terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo
ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na
comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o
cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)
Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito
mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp
Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo
por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute
essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto
O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por
exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer
voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do
termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que
ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to
the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις
Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de
um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados
Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor
menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A
acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os
personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado
numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo
de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute
em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz
37
como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da
acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade
interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se
constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio
por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os
imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao
registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o
mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)
A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das
intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que
como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos
entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo
38
CONCLUSAtildeO
O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e
produtivo sob vaacuterios aspectos
Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual
gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A
percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a
ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os
primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma
instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na
literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um
pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os
cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo
- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura
No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do
texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico
durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e
consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa
ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias
da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna
centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o
posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos
fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento
A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se
compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao
bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se
mostrar complacente
39
Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os
cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de
sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem
como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como
um substituto aos espetaacuteculos romanos
Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave
plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos
Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o
que deu origem ao culto dos santos
Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda
precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos
possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados
ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται
presente no texto traduzido e em outros relatos
Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais
utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e
posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma
melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande
auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo
cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade
proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses
novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde
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REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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43
ANEXOS
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)
[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1
1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em
Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um
tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua
linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte
2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles
que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o
escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a
honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo
as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que
era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a
ele
3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a
Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que
era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse
4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e
afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma
vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o
manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e
contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as
duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a
direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -
manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que
escolheste Vai em pazrdquo
1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu
este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer
casos como o de Marino [nota do Editor]
44
5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de
novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado
Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua
feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado
45
TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)
During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in
Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and
was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It
came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour
and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and
according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he
was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and
attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and
should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to
the ancient laws but that instead the post should fall to himself
It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he
first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed
that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had
Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside
in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed
Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword
attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it
before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out
his right hand and took the divine writings
lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him
may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo
No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the
tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and
showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to
execution and so found his fulfilment
34
sentido uma indiscutiacutevel aproximaccedilatildeo entre os dois adversaacuterios no entanto continuam a ser
adversaacuterios e nenhuma influecircncia nenhuma atraccedilatildeo reciacuteproca prevaleceraacute contra um
antagonismo fundamentalrdquo
O aspecto central deste relato natildeo estaacute no julgamento ou no diaacutelogo mas na decisatildeo de
Marino Todo o texto eacute voltado para esse momento O tom de decisatildeo eacute construiacutedo pelo
substantivo γνώμη (decisatildeo intenccedilatildeo opiniatildeo) duas vezes utilizado pelo substantivo
ἐπίσκεψις (reflexatildeo inspeccedilatildeo auto-anaacutelise) e pelo verbo αἰρέω (escolher preferir) Todos
esses itens lexicais apontam para uma decisatildeo extremamente racional Aleacutem disso natildeo haacute no
texto referecircncia alguma agraves emoccedilotildees de Marino
Levando em consideraccedilatildeo esse aspecto faz sentido o uso tatildeo restrito de diaacutelogos
durante a ὁμιλία (conversa) Pressupotildee-se que uma boa decisatildeo exige uma boa reflexatildeo e
por conseguinte uma boa reflexatildeo exige concentraccedilatildeo e silecircncio Eacute interessante observar que
a uacutenica fala de todo o texto aparece somente apoacutes a decisatildeo de Marino
Aleacutem dos itens que se referem especificamente agrave decisatildeo de Marino como γνώμη
ἐπίσκεψις e αἰρέω destacam-se no texto
o substantivo τιμή e o verbo derivado τιμέω - τετιμημένων
o substantivo ἀξιώμα derivado de ἄξιος
o verbo τυγχάνω nas formas τυχόντας e τύχοις
o substantivo εἰρήνη
o substantivo μαρτυρία
Todos esses itens estatildeo tambeacutem intrinsecamente ligados ao tema da decisatildeo e
formam um paralelismo que pode ser assim esquematizado
35
A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes
por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)
honra romana (τιμή)
vide (κλῆμα)
centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)
reconhecimento passageiro e
terreno (ἀξιώμασι
τετιμημένων )
honra cristatilde (τιμή)
paz (εἰρήνη)
maacutertir (μάρτυρ)
reconhecimento eterno e divino
(τελειοῦται)
O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria
honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o
argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado
explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos
versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω
ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o
objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας
φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo
Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o
ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ
τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela
feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)
36
Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha
pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento
terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo
ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na
comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o
cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)
Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito
mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp
Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo
por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute
essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto
O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por
exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer
voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do
termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que
ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to
the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις
Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de
um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados
Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor
menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A
acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os
personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado
numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo
de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute
em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz
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como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da
acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade
interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se
constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio
por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os
imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao
registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o
mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)
A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das
intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que
como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos
entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo
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CONCLUSAtildeO
O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e
produtivo sob vaacuterios aspectos
Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual
gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A
percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a
ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os
primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma
instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na
literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um
pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os
cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo
- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura
No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do
texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico
durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e
consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa
ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias
da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna
centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o
posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos
fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento
A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se
compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao
bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se
mostrar complacente
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Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os
cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de
sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem
como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como
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Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda
precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos
possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados
ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται
presente no texto traduzido e em outros relatos
Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais
utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e
posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma
melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande
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IPIRANGA JUacuteNIOR Pedro Biografia e romance na Antiguumlidade fronteiras entrecruzamentos e hibridismos Projeto de pesquisa Curitiba Universidade Federal do Paranaacute 2006 ineacutedito
__________________ O outro como em si mesmo martiacuterio e cristianismo Conferecircncia proferida na Universidade Federal do Cearaacute 2007
LAMPE Geoffrey WH A Patristic greek lexicon Oxford Clarenton Press 2000
LIDDELL H SCOTT R Greek-English Lexicon Abridged Simon Wallenberg Press 2007
MEREDITH Anthony Ascetism ndash Christian and Greek In Journal of Theological Studies NS vXXVII pt2 Oxford 1976 p313-332
MOMIGLIANO Arnaldo Les origines de la biographie en Gregravece ancienne Traduit de lrsquoanglais par Estelle Oudot Strasbourg Circe 1971
_________________ Os limites da helenizaccedilatildeo a interaccedilatildeo cultural das civilizaccedilotildees grega romana ceacuteltica judaica e persa Traduccedilatildeo Claudia Martinelli Gama Rio de Janeiro Jorge Zahar 1991
MORESCHINI Claacuteudio amp NORELLI Enrico Histoacuteria da literatura cristatilde antiga grega e latina Vol 1 ndash de Paulo agrave Era Constantiniana Traduccedilatildeo Marcos Bagno Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2000
MOULTON James Hope New lights on Biblical Greek The Biblical World Vol19 no 3 mar1902 pp190-196
MUSURILLO Herbert Acts of the Christian Martyrs (vII) Oxford Oxford University Press 2000
PUECH Aimeacute Histoire de la litteacuterature grecque chreacutetienne tome III Paris Les Belles Lettres 1930
REGA Lourenccedilo BERGMANN Johannes Noccedilotildees do grego biacuteblico gramaacutetica fundamental Satildeo Paulo Vida Nova 2004
42
RUCK Carl A P Grego antigo uma nova abordagem Traduccedilatildeo Jorge F Piqueacute 1998 mimeo
SILVA Gilvan Ventura da A relaccedilatildeo EstadoIgreja no Impeacuterio Romano (seacuteculos III e IV) In SILVA Gilvan MENDES Norma (Org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica poliacutetica e cultural Vitoacuteria EDUFES 2006 p 241-266
SOPHOCLES EA Greek lexicon of the Roman and Byzantine Periods from BC 146 to AD 1100 ndash part one New York Charles Scribnerrsquos Sons 1900
TERTULIANO Os Espectaacuteculos (De spectaculis) Traduccedilatildeo Joatildeo Maia Lisboa Satildeo Paulo Verbo 1974
UYTFANGHE Marc Van LrsquoHagiografie un ldquogenrerdquo chreacutetien ou antique tardif In Analecta Bollandiana (Revue Critique drsquoHagiografie) Bruxelles Societeacute des Bollandistes 1993 (Tome 111)
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ANEXOS
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)
[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1
1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em
Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um
tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua
linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte
2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles
que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o
escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a
honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo
as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que
era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a
ele
3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a
Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que
era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse
4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e
afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma
vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o
manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e
contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as
duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a
direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -
manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que
escolheste Vai em pazrdquo
1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu
este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer
casos como o de Marino [nota do Editor]
44
5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de
novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado
Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua
feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado
45
TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)
During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in
Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and
was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It
came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour
and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and
according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he
was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and
attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and
should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to
the ancient laws but that instead the post should fall to himself
It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he
first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed
that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had
Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside
in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed
Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword
attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it
before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out
his right hand and took the divine writings
lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him
may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo
No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the
tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and
showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to
execution and so found his fulfilment
35
A escolha (αἰρέω) de Marino eacute uma decisatildeo (γνώμη) entre dois poderes
por meio da qual obteacutem (τυγχάνω)
honra romana (τιμή)
vide (κλῆμα)
centuriatildeo (ἑκατοντάρχους)
reconhecimento passageiro e
terreno (ἀξιώμασι
τετιμημένων )
honra cristatilde (τιμή)
paz (εἰρήνη)
maacutertir (μάρτυρ)
reconhecimento eterno e divino
(τελειοῦται)
O esquema acima demonstra que em qualquer um dos lados ou escolhas Marino seria
honrado E eacute aiacute que repousa a dificuldade da decisatildeo a tensatildeo do texto bem como o
argumento construiacutedo pelo autor a favor do lado cristatildeo Embora o termo τιμή seja usado
explicitamente apenas quando o autor estaacute se referindo agrave vide ou agraves honras romanas nos
versos 1 e 2 ele estaacute impliacutecito na fala do bispo Teotecno pela repeticcedilatildeo do verbo τυγχάνω
ldquoτοῦ θεοῦ καὶ τύχοις ὧν ἕιλου πρὸς αὐτοῦ δυναμούμενοςrdquo No verso 2 a τιμή eacute o
objeto de τυγχάνω ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Ῥωμαίοις τὸ κλῆμα οὗ τοὺς τυχόντας
φασίν ἑκατοντάρχους γίνεσθαιrdquo
Ora a mesma sentenccedila pode ser escrita (ou subentendida) tendo como referecircncia o
ponto de vista cristatildeo ldquoτιμή τίς ἐστι παρὰ Χριστιανίοις τῆς πίστεως ὁ θανάτος οὗ
τοὺς τυχόντας φασίν μαρτὺρας γίνεσθαιrdquo (Entre os cristatildeos haacute uma honra a morte pela
feacute Aqueles que a alcanccedilam dizem tornam-se maacutertires)
36
Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha
pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento
terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo
ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na
comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o
cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)
Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito
mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp
Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo
por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute
essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto
O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por
exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer
voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do
termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que
ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to
the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις
Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de
um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados
Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor
menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A
acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os
personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado
numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo
de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute
em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz
37
como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da
acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade
interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se
constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio
por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os
imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao
registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o
mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)
A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das
intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que
como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos
entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo
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CONCLUSAtildeO
O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e
produtivo sob vaacuterios aspectos
Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual
gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A
percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a
ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os
primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma
instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na
literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um
pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os
cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo
- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura
No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do
texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico
durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e
consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa
ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias
da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna
centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o
posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos
fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento
A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se
compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao
bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se
mostrar complacente
39
Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os
cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de
sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem
como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como
um substituto aos espetaacuteculos romanos
Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave
plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos
Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o
que deu origem ao culto dos santos
Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda
precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos
possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados
ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται
presente no texto traduzido e em outros relatos
Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais
utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e
posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma
melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande
auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo
cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade
proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses
novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde
40
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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41
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__________________ O outro como em si mesmo martiacuterio e cristianismo Conferecircncia proferida na Universidade Federal do Cearaacute 2007
LAMPE Geoffrey WH A Patristic greek lexicon Oxford Clarenton Press 2000
LIDDELL H SCOTT R Greek-English Lexicon Abridged Simon Wallenberg Press 2007
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MOMIGLIANO Arnaldo Les origines de la biographie en Gregravece ancienne Traduit de lrsquoanglais par Estelle Oudot Strasbourg Circe 1971
_________________ Os limites da helenizaccedilatildeo a interaccedilatildeo cultural das civilizaccedilotildees grega romana ceacuteltica judaica e persa Traduccedilatildeo Claudia Martinelli Gama Rio de Janeiro Jorge Zahar 1991
MORESCHINI Claacuteudio amp NORELLI Enrico Histoacuteria da literatura cristatilde antiga grega e latina Vol 1 ndash de Paulo agrave Era Constantiniana Traduccedilatildeo Marcos Bagno Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2000
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MUSURILLO Herbert Acts of the Christian Martyrs (vII) Oxford Oxford University Press 2000
PUECH Aimeacute Histoire de la litteacuterature grecque chreacutetienne tome III Paris Les Belles Lettres 1930
REGA Lourenccedilo BERGMANN Johannes Noccedilotildees do grego biacuteblico gramaacutetica fundamental Satildeo Paulo Vida Nova 2004
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RUCK Carl A P Grego antigo uma nova abordagem Traduccedilatildeo Jorge F Piqueacute 1998 mimeo
SILVA Gilvan Ventura da A relaccedilatildeo EstadoIgreja no Impeacuterio Romano (seacuteculos III e IV) In SILVA Gilvan MENDES Norma (Org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica poliacutetica e cultural Vitoacuteria EDUFES 2006 p 241-266
SOPHOCLES EA Greek lexicon of the Roman and Byzantine Periods from BC 146 to AD 1100 ndash part one New York Charles Scribnerrsquos Sons 1900
TERTULIANO Os Espectaacuteculos (De spectaculis) Traduccedilatildeo Joatildeo Maia Lisboa Satildeo Paulo Verbo 1974
UYTFANGHE Marc Van LrsquoHagiografie un ldquogenrerdquo chreacutetien ou antique tardif In Analecta Bollandiana (Revue Critique drsquoHagiografie) Bruxelles Societeacute des Bollandistes 1993 (Tome 111)
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ANEXOS
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)
[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1
1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em
Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um
tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua
linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte
2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles
que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o
escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a
honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo
as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que
era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a
ele
3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a
Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que
era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse
4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e
afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma
vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o
manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e
contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as
duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a
direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -
manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que
escolheste Vai em pazrdquo
1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu
este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer
casos como o de Marino [nota do Editor]
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5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de
novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado
Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua
feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado
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TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)
During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in
Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and
was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It
came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour
and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and
according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he
was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and
attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and
should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to
the ancient laws but that instead the post should fall to himself
It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he
first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed
that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had
Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside
in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed
Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword
attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it
before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out
his right hand and took the divine writings
lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him
may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo
No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the
tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and
showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to
execution and so found his fulfilment
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Assim a τιμή alcanccedilada na escolha pela morte eacute maior do que a alcanccedilada na escolha
pela vida Se vivesse Marino se tornaria centuriatildeo e receberia poder e reconhecimento
terreno Mas ao morrer ele se torna maacutertir e passa a desfrutar os privileacutegios dessa posiccedilatildeo
ldquoNo pensamento grego timeacute eacute o reconhecimento apropriado que um homem desfruta na
comunidade por causa do seu ofiacutecio posiccedilatildeo riquezas etc e depois eacute a proacutepria posiccedilatildeo o
cargo com sua dignidade e seus privileacutegiosrdquo (Aalen 2000 903)
Tornar-se maacutertir eacute tambeacutem alcanccedilar a perfeiccedilatildeo Um bem moral e espiritual muito
mais valioso do que a vide romana O bispo Clemente de Alexandria (apud Danieacutelou amp
Marrou 1966 141) escreveu o seguinte ldquoChamamos o martiacuterio de perfeiccedilatildeo (teleioteacutes) natildeo
por ser o final (telos) da vida do homem mas porque manifesta a perfeiccedilatildeo da caridaderdquo Eacute
essa ideacuteia de perfeiccedilatildeo que estaacute contida no verbo τελειοῦται utilizado no texto
O uso do verbo τελειοῦν eacute verificado em outros relatos de martiacuterio como por
exemplo no de Agatonice uma mulher da cidade de Peacutergamo que aparece para morrer
voluntariamente no martiacuterio de dois outros cristatildeos Carpo e Papilo Apoacutes analisarem o uso do
termo neste e em outros relatos Boeft amp Broemmer (1982 387) concluem que
ἐτελειώθη by no means can be considered to be a mere ornamental addition without any special meaning It rather seems that the author wants to emphasize that Agathonicersquos behaviour was not a rash suicidal act highly condemnable because of the Churchacutes rejection of self-sought martyrdom but that in fact Agathonicersquos death meant the fulfiment of her life therefore she ought to be regarded as a martyr in the fullest sense of that title she belongs to
the circle of lsquoofficialrsquo martyrs σὺν τοῖς ἁγίοις
Assim a repeticcedilatildeo de termos e expressotildees em diferentes relatos indica a formaccedilatildeo de
um linguajar proacuteprio aos cristatildeos em que antigos itens assumem novos significados
Outro item importante a destacar eacute o substantivo εἰρήνη No iniacutecio do texto o autor
menciona que as igrejas se encontravam em todos os lugares numa situaccedilatildeo de paz A
acusaccedilatildeo que sobreveacutem a Marino no entanto transforma imediatamente essa situaccedilatildeo Os
personagens aparecem preocupados ndash especialmente Aqueu e Teotecno E Marino eacute colocado
numa condiccedilatildeo de tensatildeo A repeticcedilatildeo do substantivo no final da fala do bispo tem a intenccedilatildeo
de restabelecer a paz poreacutem num sentido diferente Ao dizer καὶ βάδιζε μετ᾿ εἰρήνης (vaacute
em paz) Teotecno estaacute se referindo agrave paz interior de espiacuterito e natildeo necessariamente agrave paz
37
como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da
acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade
interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se
constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio
por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os
imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao
registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o
mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)
A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das
intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que
como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos
entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo
38
CONCLUSAtildeO
O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e
produtivo sob vaacuterios aspectos
Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual
gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A
percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a
ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os
primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma
instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na
literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um
pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os
cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo
- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura
No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do
texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico
durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e
consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa
ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias
da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna
centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o
posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos
fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento
A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se
compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao
bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se
mostrar complacente
39
Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os
cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de
sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem
como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como
um substituto aos espetaacuteculos romanos
Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave
plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos
Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o
que deu origem ao culto dos santos
Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda
precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos
possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados
ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται
presente no texto traduzido e em outros relatos
Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais
utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e
posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma
melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande
auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo
cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade
proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses
novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde
40
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
AALEN S τιμή In COENEN Lothar BROWN Colin (Orgs) Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento v1 Traduccedilatildeo Gordon Chown Satildeo Paulo Vida Nova 2000
ALESSO Marta Los geacuteneros literarios en el primer cristianismo Circe de Claacutesicos y Modernos [online] 2005-2006 no10 p19-36 ISSN 1851-1724 Disponiacutevel em http ltwwwscieloorgarscielophpscript=sci_arttextamppid=S1851-17242006000100003amplng=ptampnrm=isogt Consultado em 03 Junho 2008
ARNAULD Dominique Histoire du christianisme in Afrique - les sept premier siegravecles Paris Eacuteditions Karthala 2001
BAIILY A Dictionnaire Grec-Franccedilais Paris Hachette 1950
BAKHTIN Mikhail Esteacutetica da criaccedilatildeo verbal Traduccedilatildeo Paulo Bezerra 4aed Satildeo Paulo Martins Fontes 2003
BERGER Klaus As formas literaacuterias do Novo Testamento Traduccedilatildeo Fredericus Antonius Stein Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1998
BIacuteBLIA SAGRADA Nova Versatildeo Internacional Traduzido pela comissatildeo de traduccedilatildeo da Sociedade Biacuteblica Internacional Satildeo Paulo Editora Vida 2001
BOEFT Jan den BREMMER Jan Notiunculae Martyrologicae II Vigiliae Christianae vol36 no4 dez 1982 pp383-402 httpwwwjstororgpss1582845 Acesso 11062008
BROWN Peter Corpo e sociedade o homem a mulher e a renuacutencia sexual no iniacutecio do cristianismo Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1990
DANIEacuteLOU Jean amp MARROU Henri Nova Histoacuteria da Igreja dos primoacuterdios a Satildeo Gregoacuterio Magno Traduccedilatildeo Dom Frei Paulo Evaristo Arns Petroacutepolis Vozes 1966
DANIEL-ROPS A igreja dos apoacutestolos e dos maacutertires Traduccedilatildeo Emeacuterico da Gama Satildeo Paulo Quadrante 1988
DELEHAYE Hippolyte Les passions des martyrs et les genres litteacuteraires 2aed rev et corr Bruxelles Societeacute des Bollandistes 1966
EUSEacuteBIO DE CESAREacuteIA Histoacuteria Eclesiaacutestica Traduccedilatildeo Wolfgang Fisher Satildeo Paulo Fonte Editorial 2005
41
FOX Robin Lane Literacy and power in early Christianity In BOWMAN Alan WOOLF Greg (Ed) Literacy and power in the ancient world Oxford Cambridge University Press 1996
GINGRICH Wilburg amp DANKER Frederick Leacutexico do Novo Testamento Grego-Portuguecircs Traduccedilatildeo Juacutelio PT Zabatiero Satildeo Paulo Vida Nova 1993
GONZAacuteLEZ Justo L E ateacute aos confins da Terra uma histoacuteria ilustrada do Cristianismo Vol 1 ndash A era dos maacutertires Traduccedilatildeo Key Yuasa Satildeo Paulo Vida Nova 1995
GUIGNEBERT Charles El Cristianismo antiguo Traduccedilatildeo Nelida Orfila Reynal Mexico Fondo de Cultura Econocircmica 1956
IPIRANGA JUacuteNIOR Pedro Biografia e romance na Antiguumlidade fronteiras entrecruzamentos e hibridismos Projeto de pesquisa Curitiba Universidade Federal do Paranaacute 2006 ineacutedito
__________________ O outro como em si mesmo martiacuterio e cristianismo Conferecircncia proferida na Universidade Federal do Cearaacute 2007
LAMPE Geoffrey WH A Patristic greek lexicon Oxford Clarenton Press 2000
LIDDELL H SCOTT R Greek-English Lexicon Abridged Simon Wallenberg Press 2007
MEREDITH Anthony Ascetism ndash Christian and Greek In Journal of Theological Studies NS vXXVII pt2 Oxford 1976 p313-332
MOMIGLIANO Arnaldo Les origines de la biographie en Gregravece ancienne Traduit de lrsquoanglais par Estelle Oudot Strasbourg Circe 1971
_________________ Os limites da helenizaccedilatildeo a interaccedilatildeo cultural das civilizaccedilotildees grega romana ceacuteltica judaica e persa Traduccedilatildeo Claudia Martinelli Gama Rio de Janeiro Jorge Zahar 1991
MORESCHINI Claacuteudio amp NORELLI Enrico Histoacuteria da literatura cristatilde antiga grega e latina Vol 1 ndash de Paulo agrave Era Constantiniana Traduccedilatildeo Marcos Bagno Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2000
MOULTON James Hope New lights on Biblical Greek The Biblical World Vol19 no 3 mar1902 pp190-196
MUSURILLO Herbert Acts of the Christian Martyrs (vII) Oxford Oxford University Press 2000
PUECH Aimeacute Histoire de la litteacuterature grecque chreacutetienne tome III Paris Les Belles Lettres 1930
REGA Lourenccedilo BERGMANN Johannes Noccedilotildees do grego biacuteblico gramaacutetica fundamental Satildeo Paulo Vida Nova 2004
42
RUCK Carl A P Grego antigo uma nova abordagem Traduccedilatildeo Jorge F Piqueacute 1998 mimeo
SILVA Gilvan Ventura da A relaccedilatildeo EstadoIgreja no Impeacuterio Romano (seacuteculos III e IV) In SILVA Gilvan MENDES Norma (Org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica poliacutetica e cultural Vitoacuteria EDUFES 2006 p 241-266
SOPHOCLES EA Greek lexicon of the Roman and Byzantine Periods from BC 146 to AD 1100 ndash part one New York Charles Scribnerrsquos Sons 1900
TERTULIANO Os Espectaacuteculos (De spectaculis) Traduccedilatildeo Joatildeo Maia Lisboa Satildeo Paulo Verbo 1974
UYTFANGHE Marc Van LrsquoHagiografie un ldquogenrerdquo chreacutetien ou antique tardif In Analecta Bollandiana (Revue Critique drsquoHagiografie) Bruxelles Societeacute des Bollandistes 1993 (Tome 111)
43
ANEXOS
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)
[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1
1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em
Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um
tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua
linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte
2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles
que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o
escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a
honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo
as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que
era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a
ele
3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a
Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que
era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse
4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e
afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma
vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o
manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e
contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as
duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a
direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -
manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que
escolheste Vai em pazrdquo
1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu
este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer
casos como o de Marino [nota do Editor]
44
5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de
novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado
Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua
feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado
45
TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)
During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in
Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and
was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It
came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour
and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and
according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he
was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and
attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and
should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to
the ancient laws but that instead the post should fall to himself
It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he
first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed
that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had
Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside
in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed
Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword
attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it
before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out
his right hand and took the divine writings
lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him
may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo
No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the
tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and
showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to
execution and so found his fulfilment
37
como o antocircnimo de guerra e perseguiccedilatildeo Ou seja essa paz natildeo significa a retirada da
acusaccedilatildeo por parte do soldado inimigo ou a absolviccedilatildeo de Marino mas sim a capacidade
interior de suportar com serenidade as condiccedilotildees externas adversas Assim novamente se
constroacutei uma oposiccedilatildeo entre o Impeacuterio e a Igreja Porque uma eacute a paz concedida pelo Impeacuterio
por meio de leis e editos Outra eacute a paz experimentada apenas pelos cristatildeos na qual os
imperadores natildeo tecircm participaccedilatildeo alguma Eacute a essa paz que o evangelista Joatildeo se refere ao
registrar as palavras de Jesus ldquoDeixo-lhes a paz a minha paz lhes dou Natildeo a dou como o
mundo a daacute Natildeo se perturbe o seu coraccedilatildeo nem tenham medordquo (Evang de Joatildeo 1427)
A observaccedilatildeo dos elementos linguumliacutesticos permite perceber portanto aleacutem das
intenccedilotildees existentes por traacutes das escolhas feitas pelo autor a riqueza desse breve relato que
como literatura transmite de maneira simples e objetiva uma poderosa mensagem ldquoCristatildeos
entre o Estado e a Igreja sejam quais forem as condiccedilotildees fiquem sempre com a Igrejardquo
38
CONCLUSAtildeO
O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e
produtivo sob vaacuterios aspectos
Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual
gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A
percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a
ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os
primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma
instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na
literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um
pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os
cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo
- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura
No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do
texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico
durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e
consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa
ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias
da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna
centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o
posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos
fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento
A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se
compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao
bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se
mostrar complacente
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Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os
cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de
sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem
como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como
um substituto aos espetaacuteculos romanos
Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave
plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos
Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o
que deu origem ao culto dos santos
Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda
precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos
possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados
ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται
presente no texto traduzido e em outros relatos
Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais
utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e
posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma
melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande
auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo
cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade
proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses
novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde
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REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
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BOEFT Jan den BREMMER Jan Notiunculae Martyrologicae II Vigiliae Christianae vol36 no4 dez 1982 pp383-402 httpwwwjstororgpss1582845 Acesso 11062008
BROWN Peter Corpo e sociedade o homem a mulher e a renuacutencia sexual no iniacutecio do cristianismo Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1990
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DANIEL-ROPS A igreja dos apoacutestolos e dos maacutertires Traduccedilatildeo Emeacuterico da Gama Satildeo Paulo Quadrante 1988
DELEHAYE Hippolyte Les passions des martyrs et les genres litteacuteraires 2aed rev et corr Bruxelles Societeacute des Bollandistes 1966
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41
FOX Robin Lane Literacy and power in early Christianity In BOWMAN Alan WOOLF Greg (Ed) Literacy and power in the ancient world Oxford Cambridge University Press 1996
GINGRICH Wilburg amp DANKER Frederick Leacutexico do Novo Testamento Grego-Portuguecircs Traduccedilatildeo Juacutelio PT Zabatiero Satildeo Paulo Vida Nova 1993
GONZAacuteLEZ Justo L E ateacute aos confins da Terra uma histoacuteria ilustrada do Cristianismo Vol 1 ndash A era dos maacutertires Traduccedilatildeo Key Yuasa Satildeo Paulo Vida Nova 1995
GUIGNEBERT Charles El Cristianismo antiguo Traduccedilatildeo Nelida Orfila Reynal Mexico Fondo de Cultura Econocircmica 1956
IPIRANGA JUacuteNIOR Pedro Biografia e romance na Antiguumlidade fronteiras entrecruzamentos e hibridismos Projeto de pesquisa Curitiba Universidade Federal do Paranaacute 2006 ineacutedito
__________________ O outro como em si mesmo martiacuterio e cristianismo Conferecircncia proferida na Universidade Federal do Cearaacute 2007
LAMPE Geoffrey WH A Patristic greek lexicon Oxford Clarenton Press 2000
LIDDELL H SCOTT R Greek-English Lexicon Abridged Simon Wallenberg Press 2007
MEREDITH Anthony Ascetism ndash Christian and Greek In Journal of Theological Studies NS vXXVII pt2 Oxford 1976 p313-332
MOMIGLIANO Arnaldo Les origines de la biographie en Gregravece ancienne Traduit de lrsquoanglais par Estelle Oudot Strasbourg Circe 1971
_________________ Os limites da helenizaccedilatildeo a interaccedilatildeo cultural das civilizaccedilotildees grega romana ceacuteltica judaica e persa Traduccedilatildeo Claudia Martinelli Gama Rio de Janeiro Jorge Zahar 1991
MORESCHINI Claacuteudio amp NORELLI Enrico Histoacuteria da literatura cristatilde antiga grega e latina Vol 1 ndash de Paulo agrave Era Constantiniana Traduccedilatildeo Marcos Bagno Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2000
MOULTON James Hope New lights on Biblical Greek The Biblical World Vol19 no 3 mar1902 pp190-196
MUSURILLO Herbert Acts of the Christian Martyrs (vII) Oxford Oxford University Press 2000
PUECH Aimeacute Histoire de la litteacuterature grecque chreacutetienne tome III Paris Les Belles Lettres 1930
REGA Lourenccedilo BERGMANN Johannes Noccedilotildees do grego biacuteblico gramaacutetica fundamental Satildeo Paulo Vida Nova 2004
42
RUCK Carl A P Grego antigo uma nova abordagem Traduccedilatildeo Jorge F Piqueacute 1998 mimeo
SILVA Gilvan Ventura da A relaccedilatildeo EstadoIgreja no Impeacuterio Romano (seacuteculos III e IV) In SILVA Gilvan MENDES Norma (Org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica poliacutetica e cultural Vitoacuteria EDUFES 2006 p 241-266
SOPHOCLES EA Greek lexicon of the Roman and Byzantine Periods from BC 146 to AD 1100 ndash part one New York Charles Scribnerrsquos Sons 1900
TERTULIANO Os Espectaacuteculos (De spectaculis) Traduccedilatildeo Joatildeo Maia Lisboa Satildeo Paulo Verbo 1974
UYTFANGHE Marc Van LrsquoHagiografie un ldquogenrerdquo chreacutetien ou antique tardif In Analecta Bollandiana (Revue Critique drsquoHagiografie) Bruxelles Societeacute des Bollandistes 1993 (Tome 111)
43
ANEXOS
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)
[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1
1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em
Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um
tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua
linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte
2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles
que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o
escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a
honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo
as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que
era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a
ele
3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a
Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que
era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse
4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e
afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma
vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o
manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e
contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as
duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a
direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -
manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que
escolheste Vai em pazrdquo
1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu
este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer
casos como o de Marino [nota do Editor]
44
5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de
novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado
Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua
feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado
45
TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)
During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in
Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and
was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It
came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour
and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and
according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he
was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and
attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and
should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to
the ancient laws but that instead the post should fall to himself
It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he
first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed
that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had
Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside
in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed
Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword
attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it
before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out
his right hand and took the divine writings
lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him
may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo
No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the
tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and
showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to
execution and so found his fulfilment
38
CONCLUSAtildeO
O estudo do relato de martiacuterio do soldado Marino se mostrou bastante relevante e
produtivo sob vaacuterios aspectos
Primeiramente porque foi possiacutevel definir e compreender com maior clareza a qual
gecircnero literaacuterio este relato juntamente com os vaacuterios outros relatos de martiacuterio pertence A
percepccedilatildeo de que esses relatos podem ser enquadrados em um determinado gecircnero reforccedila a
ideacuteia de que a literatura cristatilde conseguiu crescer e formar um corpus proacuteprio durante os
primeiros seacuteculos da Era cristatilde ajudando assim a afirmar o Cristianismo como uma
instituiccedilatildeo organizada Apesar de a interferecircncia de elementos natildeo cristatildeos ser evidente na
literatura cristatilde como um todo ela consegue apresentar seus primeiros passos rumo a um
pensamento autocircnomo Tanto as dificuldades externas quanto as internas obrigaram os
cristatildeos a refletirem sobre suas crenccedilas e praacuteticas Muitas dessas reflexotildees ndash expliacutecitas ou natildeo
- chegaram ateacute noacutes por meio da literatura
No relato aqui analisado por exemplo foi possiacutevel verificar como pano de fundo do
texto a reflexatildeo acerca da tensatildeo entre as duas instituiccedilotildees concorrentes ao poder poliacutetico
durante o seacuteculo III a Igreja e o Estado A anaacutelise dos elementos linguumliacutesticos e
consequumlentemente das escolhas feitas pelo autor foram essenciais para a apreensatildeo dessa
ideacuteia O paralelismo formado pelos itens lexicais opotildee de maneira evidente as consequumlecircncias
da escolha de Marino se por um lado ele obteacutem a τιμή oferecida pelo Estado se torna
centuriatildeo por outro lado se obteacutem a τιμή oferecida por Cristo se torna maacutertir No texto o
posicionamento cristatildeo eacute enfaacutetico a τιμή cristatilde eacute superior e deve ser sempre a escolha dos
fieacuteis no caso de perseguiccedilatildeo ou julgamento
A superioridade da Igreja sobre o Estado romano eacute detectada tambeacutem quando se
compara o comportamento dos representantes dessas instituiccedilotildees No texto a voz eacute dada ao
bispo e natildeo a outro personagem Jaacute Aqueu o juiz tem sua autoridade relativizada por se
mostrar complacente
39
Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os
cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de
sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem
como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como
um substituto aos espetaacuteculos romanos
Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave
plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos
Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o
que deu origem ao culto dos santos
Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda
precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos
possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados
ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται
presente no texto traduzido e em outros relatos
Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais
utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e
posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma
melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande
auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo
cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade
proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses
novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde
40
REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS
AALEN S τιμή In COENEN Lothar BROWN Colin (Orgs) Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Novo Testamento v1 Traduccedilatildeo Gordon Chown Satildeo Paulo Vida Nova 2000
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43
ANEXOS
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)
[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1
1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em
Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um
tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua
linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte
2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles
que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o
escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a
honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo
as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que
era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a
ele
3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a
Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que
era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse
4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e
afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma
vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o
manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e
contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as
duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a
direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -
manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que
escolheste Vai em pazrdquo
1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu
este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer
casos como o de Marino [nota do Editor]
44
5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de
novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado
Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua
feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado
45
TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)
During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in
Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and
was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It
came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour
and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and
according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he
was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and
attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and
should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to
the ancient laws but that instead the post should fall to himself
It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he
first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed
that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had
Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside
in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed
Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword
attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it
before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out
his right hand and took the divine writings
lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him
may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo
No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the
tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and
showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to
execution and so found his fulfilment
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Percebe-se portanto a formaccedilatildeo de uma literatura com objetivos bem delineados Os
cristatildeos se utilizam de meacutetodos e formas literaacuterias natildeo cristatildes proacuteprias agrave eacutepoca bem como de
sua liacutengua e passam a empregaacute-los para alcanccedilar os objetivos propostos Os martyria surgem
como uma forma de ensino de defesa da feacute de propagaccedilatildeo dos ideais cristatildeos e ainda como
um substituto aos espetaacuteculos romanos
Sem duacutevida foi por meio da literatura que o Cristianismo chegou agrave elite bem como agrave
plebe Quem possuiacutea acesso agrave educaccedilatildeo formal e agraves teorias filosoacuteficas poderia ler os textos
Jaacute os analfabetos ouviam e recontavam os relatos especialmente em datas comemorativas o
que deu origem ao culto dos santos
Por fim a anaacutelise do relato do santo Marino levanta outras questotildees que ainda
precisam ser esclarecidas O surgimento de uma literatura proacutepria demonstra que os cristatildeos
possuiacuteam tambeacutem um linguajar proacuteprio em que itens lexicais recebiam novos significados
ou tinham seus significados ampliados como pocircde ser visto pelo uso do verbo τελειοῦται
presente no texto traduzido e em outros relatos
Assim a realizaccedilatildeo primeiramente de um mapeamento dos itens lexicais mais
utilizados e os sentidos que eles assumem dentro do corpus de relatos de martiacuterios e
posteriormente a comparaccedilatildeo com os usos e sentidos fora da literatura cristatilde permitiraacute uma
melhor compreensatildeo do grego koineacute Um trabalho desse tipo certamente seraacute de grande
auxiacutelio para a verificaccedilatildeo das relaccedilotildees entre a liacutengua utilizada pelos cristatildeos e pelos natildeo
cristatildeos no sentido de perceber ateacute que ponto os cristatildeos desenvolveram uma variedade
proacutepria como eles se apropriavam de termos religiosos e filosoacuteficos e por outro lado se esses
novos sentidos introduzidos pelos cristatildeos alcanccedilavam a literatura natildeo cristatilde
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_________________ Os limites da helenizaccedilatildeo a interaccedilatildeo cultural das civilizaccedilotildees grega romana ceacuteltica judaica e persa Traduccedilatildeo Claudia Martinelli Gama Rio de Janeiro Jorge Zahar 1991
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REGA Lourenccedilo BERGMANN Johannes Noccedilotildees do grego biacuteblico gramaacutetica fundamental Satildeo Paulo Vida Nova 2004
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RUCK Carl A P Grego antigo uma nova abordagem Traduccedilatildeo Jorge F Piqueacute 1998 mimeo
SILVA Gilvan Ventura da A relaccedilatildeo EstadoIgreja no Impeacuterio Romano (seacuteculos III e IV) In SILVA Gilvan MENDES Norma (Org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica poliacutetica e cultural Vitoacuteria EDUFES 2006 p 241-266
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43
ANEXOS
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)
[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1
1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em
Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um
tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua
linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte
2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles
que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o
escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a
honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo
as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que
era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a
ele
3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a
Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que
era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse
4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e
afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma
vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o
manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e
contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as
duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a
direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -
manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que
escolheste Vai em pazrdquo
1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu
este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer
casos como o de Marino [nota do Editor]
44
5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de
novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado
Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua
feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado
45
TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)
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Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and
was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It
came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour
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according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he
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attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and
should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to
the ancient laws but that instead the post should fall to himself
It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he
first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed
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Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside
in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed
Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword
attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it
before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out
his right hand and took the divine writings
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ARNAULD Dominique Histoire du christianisme in Afrique - les sept premier siegravecles Paris Eacuteditions Karthala 2001
BAIILY A Dictionnaire Grec-Franccedilais Paris Hachette 1950
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BIacuteBLIA SAGRADA Nova Versatildeo Internacional Traduzido pela comissatildeo de traduccedilatildeo da Sociedade Biacuteblica Internacional Satildeo Paulo Editora Vida 2001
BOEFT Jan den BREMMER Jan Notiunculae Martyrologicae II Vigiliae Christianae vol36 no4 dez 1982 pp383-402 httpwwwjstororgpss1582845 Acesso 11062008
BROWN Peter Corpo e sociedade o homem a mulher e a renuacutencia sexual no iniacutecio do cristianismo Rio de Janeiro Jorge Zahar Editor 1990
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DELEHAYE Hippolyte Les passions des martyrs et les genres litteacuteraires 2aed rev et corr Bruxelles Societeacute des Bollandistes 1966
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FOX Robin Lane Literacy and power in early Christianity In BOWMAN Alan WOOLF Greg (Ed) Literacy and power in the ancient world Oxford Cambridge University Press 1996
GINGRICH Wilburg amp DANKER Frederick Leacutexico do Novo Testamento Grego-Portuguecircs Traduccedilatildeo Juacutelio PT Zabatiero Satildeo Paulo Vida Nova 1993
GONZAacuteLEZ Justo L E ateacute aos confins da Terra uma histoacuteria ilustrada do Cristianismo Vol 1 ndash A era dos maacutertires Traduccedilatildeo Key Yuasa Satildeo Paulo Vida Nova 1995
GUIGNEBERT Charles El Cristianismo antiguo Traduccedilatildeo Nelida Orfila Reynal Mexico Fondo de Cultura Econocircmica 1956
IPIRANGA JUacuteNIOR Pedro Biografia e romance na Antiguumlidade fronteiras entrecruzamentos e hibridismos Projeto de pesquisa Curitiba Universidade Federal do Paranaacute 2006 ineacutedito
__________________ O outro como em si mesmo martiacuterio e cristianismo Conferecircncia proferida na Universidade Federal do Cearaacute 2007
LAMPE Geoffrey WH A Patristic greek lexicon Oxford Clarenton Press 2000
LIDDELL H SCOTT R Greek-English Lexicon Abridged Simon Wallenberg Press 2007
MEREDITH Anthony Ascetism ndash Christian and Greek In Journal of Theological Studies NS vXXVII pt2 Oxford 1976 p313-332
MOMIGLIANO Arnaldo Les origines de la biographie en Gregravece ancienne Traduit de lrsquoanglais par Estelle Oudot Strasbourg Circe 1971
_________________ Os limites da helenizaccedilatildeo a interaccedilatildeo cultural das civilizaccedilotildees grega romana ceacuteltica judaica e persa Traduccedilatildeo Claudia Martinelli Gama Rio de Janeiro Jorge Zahar 1991
MORESCHINI Claacuteudio amp NORELLI Enrico Histoacuteria da literatura cristatilde antiga grega e latina Vol 1 ndash de Paulo agrave Era Constantiniana Traduccedilatildeo Marcos Bagno Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2000
MOULTON James Hope New lights on Biblical Greek The Biblical World Vol19 no 3 mar1902 pp190-196
MUSURILLO Herbert Acts of the Christian Martyrs (vII) Oxford Oxford University Press 2000
PUECH Aimeacute Histoire de la litteacuterature grecque chreacutetienne tome III Paris Les Belles Lettres 1930
REGA Lourenccedilo BERGMANN Johannes Noccedilotildees do grego biacuteblico gramaacutetica fundamental Satildeo Paulo Vida Nova 2004
42
RUCK Carl A P Grego antigo uma nova abordagem Traduccedilatildeo Jorge F Piqueacute 1998 mimeo
SILVA Gilvan Ventura da A relaccedilatildeo EstadoIgreja no Impeacuterio Romano (seacuteculos III e IV) In SILVA Gilvan MENDES Norma (Org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica poliacutetica e cultural Vitoacuteria EDUFES 2006 p 241-266
SOPHOCLES EA Greek lexicon of the Roman and Byzantine Periods from BC 146 to AD 1100 ndash part one New York Charles Scribnerrsquos Sons 1900
TERTULIANO Os Espectaacuteculos (De spectaculis) Traduccedilatildeo Joatildeo Maia Lisboa Satildeo Paulo Verbo 1974
UYTFANGHE Marc Van LrsquoHagiografie un ldquogenrerdquo chreacutetien ou antique tardif In Analecta Bollandiana (Revue Critique drsquoHagiografie) Bruxelles Societeacute des Bollandistes 1993 (Tome 111)
43
ANEXOS
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)
[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1
1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em
Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um
tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua
linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte
2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles
que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o
escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a
honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo
as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que
era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a
ele
3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a
Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que
era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse
4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e
afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma
vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o
manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e
contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as
duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a
direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -
manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que
escolheste Vai em pazrdquo
1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu
este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer
casos como o de Marino [nota do Editor]
44
5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de
novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado
Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua
feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado
45
TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)
During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in
Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and
was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It
came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour
and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and
according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he
was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and
attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and
should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to
the ancient laws but that instead the post should fall to himself
It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he
first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed
that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had
Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside
in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed
Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword
attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it
before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out
his right hand and took the divine writings
lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him
may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo
No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the
tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and
showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to
execution and so found his fulfilment
41
FOX Robin Lane Literacy and power in early Christianity In BOWMAN Alan WOOLF Greg (Ed) Literacy and power in the ancient world Oxford Cambridge University Press 1996
GINGRICH Wilburg amp DANKER Frederick Leacutexico do Novo Testamento Grego-Portuguecircs Traduccedilatildeo Juacutelio PT Zabatiero Satildeo Paulo Vida Nova 1993
GONZAacuteLEZ Justo L E ateacute aos confins da Terra uma histoacuteria ilustrada do Cristianismo Vol 1 ndash A era dos maacutertires Traduccedilatildeo Key Yuasa Satildeo Paulo Vida Nova 1995
GUIGNEBERT Charles El Cristianismo antiguo Traduccedilatildeo Nelida Orfila Reynal Mexico Fondo de Cultura Econocircmica 1956
IPIRANGA JUacuteNIOR Pedro Biografia e romance na Antiguumlidade fronteiras entrecruzamentos e hibridismos Projeto de pesquisa Curitiba Universidade Federal do Paranaacute 2006 ineacutedito
__________________ O outro como em si mesmo martiacuterio e cristianismo Conferecircncia proferida na Universidade Federal do Cearaacute 2007
LAMPE Geoffrey WH A Patristic greek lexicon Oxford Clarenton Press 2000
LIDDELL H SCOTT R Greek-English Lexicon Abridged Simon Wallenberg Press 2007
MEREDITH Anthony Ascetism ndash Christian and Greek In Journal of Theological Studies NS vXXVII pt2 Oxford 1976 p313-332
MOMIGLIANO Arnaldo Les origines de la biographie en Gregravece ancienne Traduit de lrsquoanglais par Estelle Oudot Strasbourg Circe 1971
_________________ Os limites da helenizaccedilatildeo a interaccedilatildeo cultural das civilizaccedilotildees grega romana ceacuteltica judaica e persa Traduccedilatildeo Claudia Martinelli Gama Rio de Janeiro Jorge Zahar 1991
MORESCHINI Claacuteudio amp NORELLI Enrico Histoacuteria da literatura cristatilde antiga grega e latina Vol 1 ndash de Paulo agrave Era Constantiniana Traduccedilatildeo Marcos Bagno Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 2000
MOULTON James Hope New lights on Biblical Greek The Biblical World Vol19 no 3 mar1902 pp190-196
MUSURILLO Herbert Acts of the Christian Martyrs (vII) Oxford Oxford University Press 2000
PUECH Aimeacute Histoire de la litteacuterature grecque chreacutetienne tome III Paris Les Belles Lettres 1930
REGA Lourenccedilo BERGMANN Johannes Noccedilotildees do grego biacuteblico gramaacutetica fundamental Satildeo Paulo Vida Nova 2004
42
RUCK Carl A P Grego antigo uma nova abordagem Traduccedilatildeo Jorge F Piqueacute 1998 mimeo
SILVA Gilvan Ventura da A relaccedilatildeo EstadoIgreja no Impeacuterio Romano (seacuteculos III e IV) In SILVA Gilvan MENDES Norma (Org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica poliacutetica e cultural Vitoacuteria EDUFES 2006 p 241-266
SOPHOCLES EA Greek lexicon of the Roman and Byzantine Periods from BC 146 to AD 1100 ndash part one New York Charles Scribnerrsquos Sons 1900
TERTULIANO Os Espectaacuteculos (De spectaculis) Traduccedilatildeo Joatildeo Maia Lisboa Satildeo Paulo Verbo 1974
UYTFANGHE Marc Van LrsquoHagiografie un ldquogenrerdquo chreacutetien ou antique tardif In Analecta Bollandiana (Revue Critique drsquoHagiografie) Bruxelles Societeacute des Bollandistes 1993 (Tome 111)
43
ANEXOS
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)
[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1
1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em
Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um
tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua
linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte
2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles
que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o
escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a
honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo
as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que
era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a
ele
3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a
Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que
era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse
4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e
afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma
vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o
manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e
contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as
duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a
direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -
manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que
escolheste Vai em pazrdquo
1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu
este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer
casos como o de Marino [nota do Editor]
44
5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de
novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado
Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua
feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado
45
TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)
During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in
Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and
was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It
came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour
and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and
according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he
was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and
attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and
should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to
the ancient laws but that instead the post should fall to himself
It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he
first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed
that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had
Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside
in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed
Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword
attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it
before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out
his right hand and took the divine writings
lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him
may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo
No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the
tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and
showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to
execution and so found his fulfilment
42
RUCK Carl A P Grego antigo uma nova abordagem Traduccedilatildeo Jorge F Piqueacute 1998 mimeo
SILVA Gilvan Ventura da A relaccedilatildeo EstadoIgreja no Impeacuterio Romano (seacuteculos III e IV) In SILVA Gilvan MENDES Norma (Org) Repensando o Impeacuterio Romano perspectiva socioeconocircmica poliacutetica e cultural Vitoacuteria EDUFES 2006 p 241-266
SOPHOCLES EA Greek lexicon of the Roman and Byzantine Periods from BC 146 to AD 1100 ndash part one New York Charles Scribnerrsquos Sons 1900
TERTULIANO Os Espectaacuteculos (De spectaculis) Traduccedilatildeo Joatildeo Maia Lisboa Satildeo Paulo Verbo 1974
UYTFANGHE Marc Van LrsquoHagiografie un ldquogenrerdquo chreacutetien ou antique tardif In Analecta Bollandiana (Revue Critique drsquoHagiografie) Bruxelles Societeacute des Bollandistes 1993 (Tome 111)
43
ANEXOS
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)
[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1
1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em
Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um
tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua
linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte
2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles
que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o
escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a
honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo
as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que
era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a
ele
3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a
Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que
era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse
4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e
afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma
vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o
manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e
contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as
duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a
direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -
manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que
escolheste Vai em pazrdquo
1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu
este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer
casos como o de Marino [nota do Editor]
44
5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de
novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado
Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua
feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado
45
TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)
During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in
Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and
was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It
came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour
and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and
according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he
was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and
attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and
should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to
the ancient laws but that instead the post should fall to himself
It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he
first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed
that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had
Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside
in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed
Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword
attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it
before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out
his right hand and took the divine writings
lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him
may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo
No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the
tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and
showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to
execution and so found his fulfilment
43
ANEXOS
TRADUCcedilAtildeO PARA O PORTUGUEcircS DE WOLFGANG FISCHER (2005)
[De como em Cesareacuteia morreu maacutertir Marino]1
1 Por estes anos apesar de que em todas as partes as igrejas tinham paz em
Cesareacuteia da Palestina foi decapitado por ter dado testemunho de Cristo um
tal Marino que pertencia aos altos cargos do exeacutercito e se distinguia por sua
linhagem e suas riquezas A causa foi a seguinte
2 Entre os romanos haacute uma insiacutegnia de honra a vide2 e dizem que aqueles
que a alcanccedilam convertem-se em centuriotildees Havendo uma vaga liberada o
escalatildeo designava Marino para esta promoccedilatildeo Jaacute estava a ponto de receber a
honra quando se apresentou outro diante do tribunal afirmando que segundo
as antigas leis Marino natildeo podia tomar parte nas dignidades romanas jaacute que
era cristatildeo e natildeo sacrificava aos imperadores3 e que o cargo correspondia a
ele
3 Ante isto o juiz (que era Aqueo) sentiu-se turbado e comeccedilou a perguntar a
Marino o que pensava mas quando viu que este insistia em confessar que
era cristatildeo concedeu-lhe o prazo de trecircs horas para que refletisse
4 Achando-se fora do tribunal acercou-se dele Teotecno bispo do lugar e
afastou-o para conversar e tomando-o pela matildeo conduziu-o agrave igreja uma
vez dentro colocou-o ante o proacuteprio santuaacuterio e levantando-lhe um pouco o
manto mostrou sua espada que pendia ao mesmo tempo que apresentava e
contrapunha a Escritura dos divinos Evangelhos mandando que entre as
duas coisas escolhesse a que preferia Mas ele sem vacilar estendeu a
direita e tomou a divina Escritura ldquoManteacutem-te pois ndash disse-lhe Teotecno -
manteacutem-te aferrado a Deus e oxalaacute alcances fortalecido por Ele o que
escolheste Vai em pazrdquo
1 Texto de Euseacutebio de Cesareacuteia Histoacuteria Eclesiaacutestica Livro VII 15 2 Era o bastatildeo de mando do centuriatildeo chamado vitis por metoniacutemia o proacuteprio grau de centuriatildeo recebeu
este nome [nota do Editor] 3 O edito de Galieno natildeo reconhecia o cristianismo como ldquoreligio licitardquo podendo portanto ocorrer
casos como o de Marino [nota do Editor]
44
5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de
novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado
Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua
feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado
45
TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)
During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in
Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and
was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It
came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour
and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and
according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he
was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and
attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and
should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to
the ancient laws but that instead the post should fall to himself
It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he
first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed
that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had
Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside
in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed
Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword
attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it
before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out
his right hand and took the divine writings
lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him
may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo
No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the
tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and
showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to
execution and so found his fulfilment
44
5 Saiu imediatamente dali Um pregoeiro lanccedilava jaacute seu grito chamando-o de
novo ante o tribunal De fato havia-se cumprido o prazo previamente fixado
Apresentou-se entatildeo o juiz e mostrando um entusiasmo ainda maior por sua
feacute em seguida tal como estava foi conduzido ao supliacutecio e foi executado
45
TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)
During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in
Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and
was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It
came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour
and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and
according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he
was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and
attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and
should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to
the ancient laws but that instead the post should fall to himself
It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he
first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed
that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had
Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside
in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed
Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword
attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it
before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out
his right hand and took the divine writings
lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him
may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo
No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the
tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and
showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to
execution and so found his fulfilment
45
TRADUCcedilAtildeO PARA O INGLEcircS DE HERBERT MUSURILLO (2000)
During their time the churches everywhere enjoyed peace Yet at Caesarea in
Palestine a man named Marinus who had been honoured with many posts in the army and
was known for his wealth and his good family was beheaded for his witness to Christ It
came about in the following way Among the Romans the vine branch is a mark of honour
and those that obtain it they believe become centurions An army post fell vacant and
according to the order of promotion it was Marinus who was entitled to fill it But when he
was on the point of receiving the office another man came up before the magistrate and
attacked Marinus saying that as a Christian Marinus would not sacrifice to the emperors and
should therefore not be allowed to share in honours that belonged to the Romans according to
the ancient laws but that instead the post should fall to himself
It is said that the magistrate (whose name was Achaeus) was moved by this and he
first asked Marinus what views he held And then when he saw that he persistently confessed
that he was a Christian he granted him a stay of three hours to reconsider No sooner had
Marinus left the court than Teotecnus the bishop of Caesarea approached and drew him aside
in conversation taking him by the hand he led him to the church Once inside he placed
Marinus right front of the altar and drawing aside Marinusrsquo cloack pointed to the sword
attached to his side At the same time he brought a copy of the divine Gospels and he set it
before Marinus asking him to choose which he preferred Without hesitation Marinus put out
his right hand and took the divine writings
lsquoSo thenrsquo said Theotecnus lsquohold fast hold fast to God and given strength by him
may you obtain what you have chosen Now go in peacersquo
No sooner had Marinus returned than a herald cried out to summon him before the
tribunal for the allotted time was now over Marinus presented himself before the judge and
showed even greater loyalty to the faith and immediately just as he was he was led off to
execution and so found his fulfilment