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Tradução
RAFAEL ARAGON GUERRA
R I O D E J A N E I R O • S Ã O PA U L OE D I T O R A R E C O R D
2010
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Agradecimentos
S ou grato aos bibliotecários da Biblioteca Bothwell, Biblioteca
Britânica, Biblioteca da Cidade de Edimburgo, Biblioteca Nacional
da Escócia e Biblioteca dos Advogados pela gentileza e eficiência de
seus préstimos como leitores. Agradeço, em particular, a Alistair Johnson
e Jane Condie, da Biblioteca dos Advogados. Agradeço a Bill Campbell,
Graeme Blaikie, Neil Graham, Claire Rose e a todos na Mainstream
Publishing, especialmente a Kevin O’Brien, meu editor, e a Lee Fullarton
pelo projeto de capa verdadeiramente impecável; à reverenda Dra.
Jean Gallagher, a Denny e Dunipace pelas informações sobre as coli-
nas de Dunipace; a Dra. Margaret McKay, da escola Scottish Studies,
pela ajuda com os contatos para conseguir um dos direitos autorais;
ao professor John e a Sra. Winifred MacQueen pela permissão de ci-
tar sua tradução de Vita Merlimi Silvestris; à Penguin Book pela per-
missão de citar The History of the Kings of Britain; a Victoria Nickerson,
de UWP, por fazer o melhor possível com relação a Vita Merlimi;
agradecimentos especiais a Cynthia Whiddon Greene, do Novo Mé-
xico, Estados Unidos, pela permissão de citar sua maravilhosa tradu-
ção de Life of Kentigern, de Jocelyn. Recomendo esse trabalho a qualquer
interessado nos acontecimentos da Escócia do século VI. Ele pode ser
facilmente acessado pela internet. Agradeço a Gavin Parsons, de Sabhal
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EM BUSCA DE MERLIM
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Mor Ostaig, pela ajuda com as pronúncias em gaélico (no entanto,
todo o mau uso do gaélico, na verdade, todos os erros, interpretações
equivocadas e enganos são, tão somente, de minha responsabilidade);
a Mark “Stan” Stanton, agente literário, pelo companheirismo, genti-
leza e generosidade.
Sou grato aos funcionários e clientes do Camphill Vaults, em
Bothwell, os quais, habilmente, falavam ou não comigo quando me
sentava em um canto para reformular as páginas deste livro. Por manter
a confiança em mim, agradeço a David e Jayne Ardrey, Taylor R. Brown,
David Forbes, Harold Joseph, Euan MacDonald, Hugh S. Neilson e
Alex e Jeanette Palmer. A Michael e Mary Gallagher, pelo apoio e en-
corajamento constantes, minha profunda gratidão. Também sou agra-
decido ao reverendo Alan J. Hamilton, Bearsden, que, apesar de não
ter inspirado nenhuma parte deste livro, sempre me inspirou, e ao
major Lawrie Hope, do Exército da Salvação, por concordar e discor-
dar de mim. Agradecimentos especiais a Harry e Sheila Paul por seu
apoio e amizade inabaláveis. Acima de tudo, sou muito grato por Kay,
Claudia e Eliot serem meus filhos e pela paciência com o pai, às vezes
distraído, mas sempre amoroso.
* * *
Em memória dos amigos Iain MacDougall e Jimmy Googan, de Coatbridge.
Adam Ardrey
Julho de 2007
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Sumário
Introdução 13
CAPÍTULO 1 A lenda 23
CAPÍTULO 2 Os filhos de Morken 29
CAPÍTULO 3 Os anglos 43
CAPÍTULO 4 Sinais e presságios 55
CAPÍTULO 5 O antigo modo de vida dos druidas 71
CAPÍTULO 6 Merlim e Languoreth 81
CAPÍTULO 7 Os magos e os bardos 89
CAPÍTULO 8 A terra dos anglos 101
CAPÍTULO 9 A colina da Morte 119
CAPÍTULO 10 O assassinato de Telleyr 125
CAPÍTULO 11 Morken, o Chefe 131
CAPÍTULO 12 Cathen, o druida 137
CAPÍTULO 13 Uther Pendragon, filho do deus celestial 153
CAPÍTULO 14 A Batalha de Arderydd 163
CAPÍTULO 15 Os anos de vida selvagem 175
CAPÍTULO 16 A retomada da batalha 191
CAPÍTULO 17 O anel 203
CAPÍTULO 18 O exército dos cervos 217
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EM BUSCA DE MERLIM
12
CAPÍTULO 19 Roma 227
CAPÍTULO 20 O crepúsculo dos druidas 237
CAPÍTULO 21 O tormento de Galloway 245
CAPÍTULO 22 O louco 251
CAPÍTULO 23 Ardery Street 257
CAPÍTULO 24 Stonehenge 267
CAPÍTULO 25 “Rhydderch está morrendo” 273
CAPÍTULO 26 O coração sombrio 285
CAPÍTULO 27 Dumpelder 297
CAPÍTULO 28 O túmulo 305
CAPÍTULO 29 A rainha de Mordred 319
CAPÍTULO 30 Le Morte de Merlim 331
Linha de tempo 343
Notas e referências 347
Referências bibliográficas 361
Índice 365
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13
Introdução
U ma das maiores fábulas já contadas nos cânones ocidentais é a
de Artur, o líder inigualável, Merlim, o sábio arquetípico, e
Camelot, a qual se poderia dizer que rivaliza com Jerusalém enquan-
to paradigma. Eu conhecia a lenda por meio de livros e filmes, nos
quais a versão popular, envolvendo cavaleiros cristãos medievais, era
representada, mas acreditava que Artur, Merlim e Camelot fossem
basicamente figuras fictícias sem raízes reais na história.
Isso até uma sexta-feira no ano 2000. Planejando um fim de semana
nas Terras Altas da Escócia com meu filho, então com 9 anos, para
visitar o lugar de onde nossa família emigrou para a Irlanda (provavel-
mente no século XVII), fui da Biblioteca dos Advogados em Edimburgo,
onde trabalho, à vizinha Biblioteca Nacional da Escócia, para descobrir
um pouco mais sobre nosso nome de família, Ardrey. Em um livro do
século XVIII, baseado em fontes do período entre os séculos VI e IX,
encontrei evidências que ligavam nosso destino e sobrenome aos de Artur,
o lendário herói, e dava provas de que ele havia sido Arthur Mac Aedan,
líder guerreiro escoto (nascido em 559; morto em 596).
Eu tinha conhecimento de Arthur Mac Aedan desde julho de 1989,
quando ouvi falar sobre ele em The Figure of Arthur, de Richard Barber.
O autor considerava Arthur Mac Aedan, entre outros candidatos, como
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EM BUSCA DE MERLIM
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um possível “Arthur”, antes de concluir: “sem alguma... descoberta...
Arthur... sempre nos iludirá.”1 Naquela biblioteca, estava confiante
de que segurava em minhas mãos exatamente tal descoberta.
Passei os três anos seguintes pesquisando o assunto e descobri que
não apenas meus achados corroboravam meu impulso original com
relação à existência real de Arthur e sua identidade, mas também leva-
vam inevitavelmente a descobertas sobre Merlim. A essa altura, já ti-
nha material mais do que necessário para um livro. Como Merlim é a
figura mais antiga na história e por isso, evidentemente, mais fácil de
se compelir o suficiente para lhe garantir um livro próprio, resolvi es-
crever sobre ele primeiro. O lado da história de Arthur, incluindo essa
primeira evidência que me iniciou na pesquisa, ficará para depois.
Apesar de separados da comprovação de Arthur, os indícios de
Merlim também estavam relacionados ao meu sobrenome. O regis-
tro mais antigo do sul da Grã-Bretanha do nome Merlim está no ver-
bete dos Annales Cambriae (Anais de Gales), do ano de 573, em que
se lê: “A Batalha de Arderydd entre os filhos de Eliffer e Gwenddoleu,
filho de Ceidio; batalha em que Gwenddoleu esmoreceu; Merlim fi-
cou louco.”2
Ardrey é uma forma modernizada de Arderydd. Também é quase
idêntico ao nome do lugar onde Merlim viveu os últimos vinte anos
de sua longa existência, Ardery. Dizer isso, porém, não significa ale-
gar, nem por um segundo, que há alguma espécie de misteriosa cone-
xão de linhas de parentesco entre o nome de minha família, Arthur e
Merlim. Não conheço nenhuma. Mesmo se houvesse, não acredito
no conceito de famílias inerentemente especiais (uma vez que se co-
mece a acreditar nisso, estamos a um curto passo para acreditar na
monarquia). Meu avô, que também se chamava Adam, foi o primeiro
de meus ascendentes Ardrey a ler e escrever, e, embora pense ser pos-
sível que um segredo seja passado oralmente por uma família ao lon-
go de 1.500 anos, isso é bem improvável. Com certeza, ninguém me
disse nada. Há uma coincidência de nomes. O meu sobrenome pos-
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INTRODUÇÃO
sui conexões com Arthur e Merlim, o que me despertou o interesse
inicial e levou a escrever este livro. Isso é tudo.
Considerei as primeiras fontes relevantes sobre Arthur e Merlim
e descobri que elas somente apresentam uma narrativa coerente se os
fatos descritos ocorreram ao sul da Escócia no final do século VI e
início do VII. A única história contemporânea do século VI, De Excidio
et Conquestu Britanniae (Sobre as ruínas e conquistas da Bretanha),
escrita por um monge chamado Gildas, “certamente não depois de
540, considerando-se cinco anos para mais ou para menos”, eu des-
cobriria que havia sido feita mais de cinquenta anos depois do que
em geral se pensava, segundo a abordagem tradicional.3 Só então elas
poderiam fazer sentido.
Conforme cada item das provas se encaixava, o papel que Merlim
desempenhou não na lenda, mas na história, ficava cada vez mais
claro, e entendi por que se convencionou sustentar que ele surgiu no
sul da Grã-Bretanha. Logo após sua morte, os anglos derrotaram um
exército britânico em Chester (ou Carlisle), dividindo os britões do
norte de seus primos do sul e do oeste, e uma geração depois, em 638,
tomaram Edimburgo. Muitos bretões do norte emigraram rumo ao
sul como refugiados para o que é hoje a Escócia meridional, levando
consigo suas histórias de uma era de ouro vitoriosa, quando tinham
vencido os anglos capitaneados por Merlim e o prodígio marcial que
era o líder guerreiro Arthur. No sul da Grã-Bretanha era fácil mudar
os nomes e substituir as localidades do sul pelas originais do norte
nas fábulas contadas sobre Merlim. Essas fábulas também foram ela-
boradas para se adequar às exigências dos regimes políticos e religio-
sos prevalecentes e adaptadas para se ajustar ao público do sul. Com
o advento da palavra impressa no século XV, particularmente com o
trabalho de Thomas Malory, essas histórias foram se consolidando
em suas formas modernas.
Descobri que a prova que localizava Merlim no final do século VI
e início do VII no sul da Escócia teve consequências imprevisíveis
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EM BUSCA DE MERLIM
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para outras figuras históricas, principalmente para os líderes guer-
reiros Ambrosius Aurelianus (Emrys) e seu sucessor Gwenddolau. Eles
são tradicionalmente situados ora no País de Gales, ora no sudoeste
da Inglaterra, ora na Bretanha, geralmente em meados do século V.
Descobri que eles poderiam ser encontrados no que agora é o sul da
Escócia, na metade do século VI, um século depois do que normal-
mente se supunha.
Se eu estiver certo, parece que, por 1.500 anos, aqueles com poder
para tanto apresentaram uma história que, literalmente, condizia com
seus livros, não se importando em divergir das provas, e que as fábu-
las de Arthur e Merlim, as quais constituem o mito de fundação bri-
tânico, são quase inteiramente parte de um proselitismo baseado em
vários preconceitos. Se eu estiver certo, a história britânica para o
período do final do século V ao início do VII aguarda ser reescrita. A
abordagem convencional nos faria acreditar em um cânone de Camelot,
destacando-se aristocratas cristãos, anglo-saxões, vivendo no sul da
Grã-Bretanha, quando nem Arthur nem Merlim eram cristãos (ao
contrário, eles representavam a última grande esperança do antigo
costume celta, antes de os cristãos assumirem o comando); nem eram
anglo-saxões (de fato, eles fizeram seus nomes na luta contra os anglos).
A vida pela qual brigavam era marcadamente mais igualitária do que
qualquer outra coisa que apareceria na Europa por mais de um milê-
nio — e um anátema para as autoridades.
Durante minha pesquisa, identifiquei os elementos sobrenaturais
introduzidos, quase que invariavelmente, nas primeiras fontes histó-
ricas. Não havia mais magia no século VI do que temos hoje. Assim,
os milagres que tantos escritores atribuíram aos santos, eu leio como
uma invenção óbvia, apesar de isso não significar que essas fontes
sejam inúteis. O rio Clyde não destruiu suas margens e levou os grãos
do pai de Merlim rio acima até os armazéns de Mungo, mas, ao
fazer uma leitura justa dessa história, fica claro que Mungo roubou
os cereais do pai de Merlim.
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INTRODUÇÃO
Também costumo tratar referências românticas com suspeita por-
que os escritores medievais, tal como a indústria cinematográfica atual
— e pelas mesmas razões — tendem a inserir personagens românti-
cos estereotipados em suas obras. As alterações feitas através dos sé-
culos para promover a parceria predominante entre a Igreja e o Estado
a fim de estabelecer a cena no extremo sul, embora extensas, não fo-
ram realizadas com eficácia suficiente para obscurecer por completo
a verdade. Uma vez que as passagens românticas, assim como os mi-
lagres, são postas em perspectiva e vistas pelo que são, ou seja, equi-
valentes da Idade Média aos efeitos especiais, muito do que resta são
provas que tangem a verdade.
Novamente, como a indústria cinematográfica atual, os escrito-
res da Idade Média tendiam a omitir o fundo político, temendo que
o público ficasse entediado, e, no caso de Merlim, porque a política
poderia ser perigosa para o escritor (Merlim passou a vida lutando
contra a Igreja que controlava o período medieval). Precisei tratar as
provas históricas escritas com um cuidado particular porque quase
sempre tendiam a favor da Igreja e do Estado em detrimento de Merlim
e da vida que este defendia. As autoridades teriam apagado todas as
referências a Merlim se pudessem, mas não conseguiram, e assim seu
nome, que virou sinônimo do antigo modo de vida celta, sobreviveu
na tradição oral, apesar dos esforços daqueles que estavam no poder
de apresentá-lo como cristão.
Para avaliar as dificuldades envolvidas na busca por Merlim, pen-
se como seria complicado mostrar o perigo do tabaco se as empresas
de fumo tivessem, ao longo de 1.500 anos, preparado e apresentado
seus argumentos sem que houvesse oposição, se as únicas provas dis-
poníveis fossem aquelas que produziram ou registraram após censu-
rar qualquer coisa que pudesse servir a um possível detrator e se tivessem
o controle absoluto da mídia por quase todo esse período. Como se-
ria difícil para o lobby antitabagista contra-argumentar com firmeza
e com alguma esperança de obter sucesso, particularmente se os in-
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EM BUSCA DE MERLIM
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teresses das empresas de fumo e daqueles que ouviriam e decidiriam
sobre a questão fossem os mesmos? Não seria fácil, mas pelo menos
seria possível.
Mesmo depois de sua morte, uma campanha difamatória feita
para distorcer as lembranças das pessoas sobre Merlim foi em-
preendida para indeterminar seu lugar na história e mascarar o fato
de que ele era um druida representante do antigo costume. Inicial-
mente, isso o levou a ser caricaturado como um mago extravagante
das florestas e mais tarde, no proselitismo da tardia Idade Média,
neutralizado e apresentado como o conselheiro protetor de Arthur,
o pai de personagens fictícios como Gandalf, Obi Wan Kenobi e do
professor Dumbledore. Descobri que ele não foi nada disso, mas
um erudito, político e líder que viveu na Escócia central no final do
século VI e início do século VII. Ele também foi o irmão gêmeo de
Languoreth, rainha dos bretões de Strathclyde, uma das mais im-
portantes mulheres na história europeia, apesar de completamente
desconhecida nos dias de hoje.
Por séculos depois de morrerem, tanto Merlim quanto Languoreth
foram proeminentes na tradição oral, então o principal meio de
preservação da história. Como a internet, a tradição oral era de fá-
cil acesso, mas de difícil controle. Assim, era bem sabido que fora
Merlim o druida a liderar os antigos quando estes se confrontaram
pela última vez abertamente com os cristãos e que, com Arthur como
comandante, conduziu os bretões e seus aliados escotos contra os
anglos. Também se sabe que todos esses fatos foram tão influencia-
dos por Languoreth quanto por qualquer homem. A Igreja, claro,
achava essas verdades intoleráveis e assim, conforme os registros
manuscritos foram se tornando mais comuns, ela ditava o que seria
registrado por escrito, garantindo que todo relato refletisse a ideia
prescrita. Quando a história de Merlim que conhecemos atualmen-
te foi consolidada, Languoreth, como mulher, havia sido “eliminada
da paisagem”.
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INTRODUÇÃO
Quase tudo o que pesa contra os primeiros cristãos nessas pági-
nas tem como base as fontes cristãs determinadas a mostrar seu povo
sob uma boa luz. Os escritores cristãos como Jocelyn, na Glasgow do
século XII, não achavam nada de mais escrever mentiras para favore-
cer os interesses de seus patronos e da Igreja — de fato, eles se gaba-
vam disso — ou sobre seus rivais serem assassinados. A maioria dos
patronos era de poderosos cristãos britânicos do sul, que exigiam
que as histórias resultassem na afirmação do status quo político, ti-
vessem como cenário o sul da Grã-Bretanha e ignorassem qualquer
oposição que pudesse ter ocorrido à dominação cristã da sociedade.
Como consequência, o papel desempenhado pelos antigos nos acon-
tecimentos era excluído da história. Os druidas nunca eram mencio-
nados porque isso levantaria questões sobre sua filosofia. Os escritores
se autocensuravam: por exemplo, ao usar palavras em “código”, como
bardo no lugar de druida.
Pelo menos alguma alusão era feita aos druidas. Homens gays e
mulheres influentes, independentes e inteligentes, todos desempenhan-
do papéis vitais na sociedade dos antigos, sofreram a desaprovação
da Igreja primitiva, para dizer o mínimo, e, se não foram excluídos
por completo dos registros, foram castigados da maneira mais vil.
Devemos distinguir entre os cristãos seguidores de Mungo, que
para mim eram um bando de fanáticos religiosos fundamentalistas,
tal qual o Talibã, e os cristãos seguidores de Telleyr, mais tolerantes, a
ponto de serem preparados para viver lado a lado em paz com os
antigos. Ambos os grupos viveram no século VI, de forma que suas
ações não podem ser comparadas com as dos cristãos tolerantes da
atualidade, apesar de muitos dos assuntos aos quais se dedicaram no
passado permanecerem controversos hoje em dia: sexo, obviamente,
e o abismo entre a fé e a razão, entre as sagradas escrituras e a ciência.
Jocelyn, ao descrever o sexo, faz referência a “tanques ímpios de excreções
carnais”, sendo mesquinho com relação às mulheres e perverso com
os homossexuais. Ele se refere apenas obliquamente aos travestis, mas
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EM BUSCA DE MERLIM
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é possível supor que fosse avesso a eles também. Assim como um
astrônomo pode deduzir algo de um planeta que não consegue ver
pelo efeito que este exerce sobre a estrela mais visível, eu fui capaz de
encontrar alguma coisa dos antigos sem provas diretas. Os cristãos
tendiam a descrever os antigos como libertinos licenciosos, mas dada
sua perspectiva extremada com relação ao sexo, podemos concluir
que os antigos eram simplesmente... mais relaxados em se tratando
de sexo do que os cristãos.
Nos tempos de Merlim, Escócia, Inglaterra e País de Gales não
existiam como as nações que hoje conhecemos. Havia os escotos, mas
sua terra se estendia pelo norte da Irlanda e pelo extremo oeste da
atual Escócia. O povo que viria a constituir os galeses descendia dos
britões que viviam nos limites entre os rios Forth e Clyde, na atual
Escócia, e o extremo sul da atual Inglaterra, antes que a pressão dos
anglo-saxões os empurrasse para oeste. Os ingleses, anglo-saxões, eram
relativamente recém-chegados no século VI. Eles viveram primeira-
mente no leste da Grã-Bretanha, na fronteira da atual Escócia-Ingla-
terra, ao sul de Kent.
Uso esses rótulos para descrever a ordem política ativa no século
VI. Eles não têm o mesmo significado hoje em dia. O termo escoto,
agora, descreve os últimos descendentes dos homens do Neolítico,
que foram os primeiros a se assentar nessa terra, e a linhagem atual
dos escoceses pode ser traçada a partir de uma linha hesitante de
descendentes anteriores, incluindo os povos celtas (escoto-irlandeses
que deram seu nome à Escócia, pictos e britões); italianos (roma-
nos); vários povos não romanos que foram para a Escócia com as
legiões; judeus (Isaac, um médico judeu que foi para o sul com o
exército de Gododdin para lutar contra os anglos na campanha de
Catterick, c. 600); germanos (anglos e saxões); dinamarqueses (jutos);
escandinavos (vikings); flamengos (belgas); franceses (normandos);
e o povo que se tornou os “ingleses” (eles também uma mistura ge-
nética variada). No século XIX, mais irlandeses e italianos foram para
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INTRODUÇÃO
a Escócia, e, no século XX, indianos, paquistaneses, chineses, malaios,
malauianos, poloneses, iranianos, iraquianos, gregos, colombianos e
muitos outros mais tomaram parte. Essas pessoas, coletiva e indivi-
dualmente, constituem a atual comunidade escocesa. Ser um escocês
hoje em dia não é uma questão de sangue, mas de coração.
Merlim teve um papel importante ao fazer os anglos recuarem
para o norte na Grande Guerra dos Anglos que se deu nos anos 580,
e assim nós temos hoje uma “Escócia”, não uma “Grã-Anglolândia”,
mas ele perdeu sua batalha contra a cristandade. Ironicamente, isso o
levou a se transformar em um dos nomes mais famosos do mundo. A
seguir, busquei contar o que acredito ser a narrativa verdadeira, res-
tituindo Merlim à terra em que nasceu, viveu e morreu, e revivendo
sua irmã esquecida, mas talvez até mais influente, Languoreth.
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CAPÍTULO 1
A lenda
Q ualquer um que tenha lido Le Morte d’Arthur, de Thomas Malory,
ou Once and Future King, de T. H. White — de fato, quase
todo mundo que já tenha lido algum livro sobre Arthur, ficcional ou
não, ou que tenha visto um dos muitos filmes ou programas de TV
passados em Camelot — conhece a versão autorizada de Merlim: um
eterno velho ou, mais propriamente, um mago envolvido no nasci-
mento, na educação e na coroação de Arthur, mas que daí em diante
cumpre somente um papel periférico.
Algo da verdadeira história da vida de Merlim sobreviveu por um
tempo na tradição oral e em obras escritas, mas, com a passagem dos
séculos, muito foi esquecido, páginas foram perdidas ou destruídas e
versões modificadas foram escritas; finalmente, as histórias viraram
lendas. Apesar de mais de mil anos de censura, essas lendas continuam
cheias de referências sobre o antigo costume que prevaleceu antes do
advento do cristianismo: o Cavaleiro Verde, em Sir Gawain e o Cavalei-
ro Verde, espadas na água em quase todas as fábulas de Arthur e uma
sensação de que, o que quer que Merlim fosse, ele não era um cristão.
Hoje em dia, tudo o que muitos historiadores admitirão é que
“Merlim pode ter sido baseado em uma figura histórica”, e mesmo os
que chegam tão longe encontram problemas em identificar o século
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EM BUSCA DE MERLIM
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em que ele viveu, porque, na sabedoria popular, expressa aqui por
Philips e Keatman, “o Myrddin [Merlim] histórico parece ter vivido
mais de meio século após o verdadeiro período arturiano”1 (geral-
mente aceito como sendo o início do século VI). No entanto, se o
verdadeiro período arturiano foi o final do século VI, a época de Arthur
Mac Aedan, então o Merlim histórico e o Arthur histórico (Mac Aedan)
foram contemporâneos e não há separação.
Tais considerações estavam longe das ideias de Thomas Malory,
o homem que nos deu, melhor do que ninguém, o Merlim mais
conhecido hoje, no que foi um dos primeiros livros a serem im-
pressos na Inglaterra, Le Morte d’Arthur, publicado por Thomas
Caxton em 1485 (o nome em francês desse livro de língua inglesa
mostra quantas fábulas retornaram à Inglaterra via França). Malory,
de Warwick, era um soldado e ferrenho participante da causa dos
Lancaster na Guerra das Rosas. Não tinha vergonha de exibir suas
tendências partidárias no que escrevia e era inescrupuloso ao per-
seguir os próprios interesses, a ponto de ser preso certa vez por agres-
são à mão armada e estupro. Esse não era um homem que hesitaria
em dar preferência ao que queria escrever, em vez de usar o que
suas fontes indicavam.
Malory estabelece seguramente os acontecimentos com Arthur
ao sul logo nas duas primeiras linhas: “Aconteceu nos dias de Uther
Pendragon, quando ele era rei de toda a Inglaterra...” Uther está doente
de amor por Igraine, a mulher do duque da Cornuália. Um cortesão
diz que ele deverá “procurar Merlim, que lhe dará a cura”. A magia de
Merlim transforma o rei na imagem e semelhança do marido de Igraine
e, por meio dessa ilusão, Arthur é concebido. O marido de Igraine
morre convenientemente “de causas naturais”, permitindo a Uther se
casar com Igraine e a Arthur ser filho legítimo (mesmo que não o
tenha sido na concepção). Como recompensa por seus serviços, é per-
mitido a Merlim determinar a maneira de educar Arthur, que é cria-
do no lar do bom Sir Ector e de seu filho, menos aprazível, Kay. Durante
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A LENDA
a infância de Arthur, Merlim permaneceu seu tutor e guia. “Do jeito
como Merlim planejou, foi feito.”2
Após a morte de Uther, Malory faz Merlim ir ao arcebispo de
Canterbury e sugerir que ele chame todos os senhores e cavaleiros a
participarem de um torneio em Londres, na esperança que Jesus Cristo
fosse “mostrar, por um milagre, quem deveria ser o honrado rei des-
ses domínios”. O arcebispo aceita o conselho de Merlim, mas não
tem uma grande participação nos fatos que se seguem. Malory o in-
troduz apenas para colocar Jesus nos procedimentos e garantir que o
rei parecesse ter sido escolhido sob a égide da Igreja. A escolha de um
rei era muito importante para ser deixada a cargo de qualquer outra
corporação. Isso não teria sido necessário se Merlim fosse reconheci-
do como uma figura cristã, ou se assim o tivessem feito parecer, o
que seria impossível.
Um milagre ocorreu convenientemente quando uma espada pre-
sa a uma bigorna em uma grande rocha apareceu no adro de uma
igreja. Sobre a espada se escreveu: “Seja quem for a retirar a espada
dessa pedra e bigorna é o virtuoso rei inato de toda a Inglaterra.” O
jovem Arthur compareceu ao torneio como escudeiro de seu irmão
adotivo, Kay. Quando Kay deixou sua espada para trás, enviou Arthur
de volta para buscá-la, mas Arthur, em vez disso, pegou a espada da
bigorna que repousava sobre a pedra no adro e a levou até o irmão.
Kay tentou levar o crédito, mas logo Arthur foi revelado como o ver-
dadeiro rei. Merlim comprovou o fato de que Arthur era filho de Uther.
O processo de seleção da espada-e-da-pedra claramente se deu
sob o controle de Merlim, apesar de Malory ter providenciado um
supervisor na figura do arcebispo. O mesmo acontece quando o guarda-
costas de Arthur é escolhido pelo “arcebispo de Canterbury, por meio
das diligências de Merlim” — sob as recomendações deste —, e quando
Merlim encontra cavaleiros para a Távola Redonda, Malory faz com
que o arcebispo abençoe seus assentos. Esses acontecimentos não de-
mandavam o envolvimento de duas pessoas. As histórias teriam fun-
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EM BUSCA DE MERLIM
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cionado da mesma forma se tudo estivesse sob a tutela ou do arcebis-
po ou de Merlim. Com certeza, o arcebispo foi quem havia sido in-
corporado para dispersar qualquer suspeita de que a Igreja não estava
no comando, não havendo razão para a inserção de Merlim.
A espada de Arthur, provavelmente a que ele retirou da pedra,
quebrou-se em um único combate. Assim, Merlim levou Arthur para
um lago onde um braço “envolto em samito branco, de forma mara-
vilhosamente mística”, elevou-se da água segurando a espada Excalibur.
A Senhora do Lago emergiu e deu a Arthur essa fabulosa espada.
O Merlim de Malory fica do lado de Arthur nos primeiros dias de
seu reinado, mas está longe da trama principal depois que Arthur se
casa com Guinevere. Há boas razões dramáticas para distanciar Merlim
da ação a essa altura. Arthur está para se tornar o marido enganado
por Lancelot e Guinevere, e isso seria difícil de explicar se o sábio
Merlim ainda estivesse ao seu lado. Antes mesmo de eles estarem ca-
sados, Merlim é levado a advertir Arthur que sua mulher se provará
infiel.3 Se Merlim estivesse no momento do verdadeiro adultério, não
poderia deixar de apontar as evidências, mas isso teria estragado a
narrativa de Malory.
Arthur passou a ser uma figura avuncular ao governar em um tem-
po de paz e prosperidade no qual exercia seu reinado com justiça, e
seus cavaleiros, particularmente Lancelot, realizavam façanhas heroicas.
A tragédia se precipita quando Lancelot se interessa por Guinevere, e
o sobrinho de Arthur, Mordred, usa a relação amorosa para quebrar
a comunhão da Távola Redonda e mais tarde atentar contra o trono.
Em uma grande batalha, Arthur e Mordred são mortalmente feridos.
O moribundo Arthur manda um de seus homens jogar Excalibur de
volta no lago antes de ser levado em um barco para a ilha de Avalon,
de onde se espera que ele volte um dia.
Essa é a fábula básica de Merlim e Arthur, com a qual cresci e, em
geral, a lenda que a maioria das pessoas conhece; mas não foi assim
que aconteceu. As narrativas de Malory, como aquelas contadas por
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A LENDA
Geoffrey de Monmouth na sua Historia Regum Brittaniae (História
dos reis da Inglaterra; c. 1136) e Vita Merlimi (A vida de Merlim; c.
1150) não têm uma base sólida na história, pelo menos não na histó-
ria que tem alguma relação com Arthur e Merlim. Malory, em parti-
cular, escreveu como se Arthur e Merlim estivessem em atividade no
seu tempo. Esse é o motivo de Camelot sempre ser pintada, como no
musical Camelot, como tendo existido na Baixa Idade Média. Malory,
partidário dos Lancaster, “até mesmo dá a Mordred... uma armadura
do tipo usado pelos York, desenhada no sudeste da Inglaterra”.4
Quando os motivos e métodos de autores como Thomas Malory
e Geoffrey são reconhecidos e o proselitismo que são compelidos a
apresentar em benefício de seus patronos e do sucesso comercial é
revelado, é possível ver Merlim e Arthur como foram: homens reais
da Escócia do século VI.
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CAPÍTULO 2
Os filhos de Morken
Já foi dito que o nome Merlim vem de Moridunon, que significa
castelo do mar; que Merlim nasceu em Carmarthen, no País de
Gales, e tomou o nome do lugar (apesar de os dois nomes não serem
parecidos); que Merlim significa falcão; e que o nome Merlim se ori-
ginou de Meriage, traduzido como louco, e Linn, cujo sentido seria
cachoeira, dando origem a algo como o Louco da Cachoeira.
Essa última alternativa não pode ser verdadeira porque o sufixo
Lin do nome Merlim seria inventado somente após a conquista da
Inglaterra pelos franceses normandos em 1066. Antes disso, como se
sabe, o homem que conhecemos como Merlim era chamado de Myrd-
din. Porém, Myrddin soa aos ouvidos francófonos embaraçosamente
como merde, termo em francês para excremento, fazendo escritores
como Geoffrey mudarem Myrddin para Merlim, em sua opinião, mais
melodioso.
Jocelyn, em sua biografia sobre Mungo, santo protetor de Glasgow,
The Life of Kentigern, escrita no século XII, descreve Merlim como
“um incontestável louco” que entretinha o rei com “gracejos e risa-
das altas [e] palavras e gestos ridículos”. O Merlim de Jocelyn seria
no máximo o bobo da corte e, por conseguinte, um louco (segundo a
tradição dos Annales Cambriae, em que se diz que Merlim teria en-
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EM BUSCA DE MERLIM
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louquecido após a Batalha de Arderydd). Jocelyn não foi capaz de
manter essa ficção. O Merlim que ele descreve está longe de ser louco.
A explicação dada é que às vezes Deus coloca palavras sábias na boca
dos loucos. Na Vita de Geoffrey, angustiado pela perda de amigos na
Batalha de Arderydd, Merlim foge com o rosto “banhado em lágri-
mas” para se tornar um “homem da floresta”. Esquecendo-se de quem
era, esse Merlim se esconde como um animal selvagem, até que um
mensageiro enviado por sua irmã, a rainha, encontra-o oculto entre
as árvores, e com uma música suave convence “o enlouquecido ho-
mem [Merlim] a sair de seu estado selvagem”. Segundo Geoffrey, Merlim
volta a si e reflete sobre sua loucura com espanto. Com a razão recu-
perada, ele retorna à corte, mas após um curto período perde o juízo
novamente e tem de ser afastado, diz Geoffrey.
Como Jocelyn, Geoffrey está determinado a aceitar as determina-
ções sobre Merlim, que deveria ser retratado como louco para que as
pessoas não perguntassem a que ele fazia frente, oferecendo uma al-
ternativa ao regime sob o qual viviam. Da mesma forma que Jocelyn,
Geoffrey encontrou dificuldades em apresentar a versão autorizada e
ao mesmo tempo contar a história contida em suas fontes. Pouco
antes de dizer que Merlim havia enlouquecido e sido afastado pelo
rei, ele informa que este havia implorado a Merlim para não voltar
ao exílio na floresta, mas que ficasse na corte e “empunhasse o cetro
real e governasse uma nação de guerreiros”. Ninguém ofereceria ta-
manho poder a um louco. Ou a oferta de poder foi inventada por
Geoffrey ou Merlim não estava louco. Não há motivos para Geoffrey
inventar tal oferta quando isso não se coadunava com a diretriz do
partido que havia tomado, de que Merlim estava louco, e assim po-
demos supor que Merlim não estava de fato insano.
Na verdade, aqueles que a Igreja desejou destruir foram os pri-
meiros a ser chamados de loucos. Para que a Vita de Geoffrey faça
sentido, basta ler a obra retirando-se as referências às passagens so-
bre a loucura. O que sobra, quando transferido para o tempo e lugar
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OS FILHOS DE MORKEN
verdadeiros, o século VI na Escócia, e lido com outras fontes primá-
rias, é a sensata história que reflete a política religiosa e temporal da
época. Geoffrey e Jocelyn encobrem o conflito entre a cristandade e
os antigos ao simular a loucura de Merlim.
A Vita Merlimi Silvestris (Biografia de Merlim da Floresta — não
confundir com a Vita1 de Geoffrey) diz não somente que Merlim era
um “louco, despido e desgrenhado”, com o corolário subentendido
de que ninguém precisaria levá-lo a sério, tomando assim partido do
lado mais forte, mas que era um cristão, tendo implorado a Mungo a
concessão dos últimos ritos da Igreja.
Mesmo após 1.500 anos, durante os quais os meios de comunica-
ção estiveram quase inteiramente nas mãos de seus inimigos, nin-
guém acreditou que Merlim fosse um cristão. Ele era muito não cristão
para isso. Como também ninguém acreditou que fosse louco. Ao con-
trário, apesar de uma longa campanha de difamação, seu nome é hoje
sinônimo de sabedoria.
O significado do nome Merlim — isto é, Myrddin — pode ser
explicado somente quando levamos em conta o período e o lugar em
que se originou: a Escócia no final do século VI e início do VII. A
palavra gaélica Mear, de acordo com o Etymological Dictionary of Scottish
Gaelic, de MacBain, deriva do gaélico irlandês arcaico Mer, que signi-
fica louco (as palavras merry e mirth, em inglês, têm a mesma raiz).
Duine, em gaélico, quer dizer homem. A palavra Mer-duine, no gaélico
dos primeiros escoceses, significa homem louco.
Conforme mencionei, os britões refugiados da Escócia meridio-
nal e afugentados pelos anglos levaram as histórias de Merlim para o
sul no século VII. Rapidamente, essas histórias foram repetidas em
uma língua estranha a eles, até o momento em que o componente
difamatório do nome Merlim foi esvaziado. O copista galês que es-
creveu as palavras “e Merlim enlouqueceu” no final do verbete sobre
Arderydd dos Annales Cambriae não poderia saber que, na verdade,
estava escrevendo “o louco enlouqueceu”.
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EM BUSCA DE MERLIM
32
Mais tarde, escrevendo em Strathclyde, onde Merlim teria vivido
e onde muitas pessoas teriam familiaridade com o gaélico escocês,
Jocelyn não usaria o nome Merlim. Muitos saberiam o que significa-
va e achariam estranho que um homem de fato fosse chamado de
Louco o Louco. Em vez disso, Jocelyn o chamou de Merlim Lailoken.
Lailoken ou Laleocen ou, em galês, Llallogan, todos são usados
como alternativas a Merlim em fontes variadas. Em Silvestris encon-
tramos “Lailoken, que alguns dizem ser Merlim”. Isso é uma maneira
de dizer, mas não há dúvidas sobre essa conexão. Lailoken, segundo
W. F. Skene, em The Four Ancient Books of Wales, significa “irmão
gêmeo”, apesar de não haver provas. O nome também manteve o sen-
tido de “amigo”, que eu saiba sem nenhuma razão. É claro que, se eu
estiver certo e Lailoken não tiver origem no País de Gales, não haverá
um significado sensato em galês.
Os cristãos suprimiram o antigo costume dos druidas e depois
reescreveram a história para apagar sua influência, de forma que nin-
guém se lembrasse que havia uma filosofia alternativa à da Igreja cristã.
O próprio termo druida era evitado. Ninguém ousaria falar sobre os
druidas ou registrar o termo por escrito. A palavra “bardo”, mais inó-
cua, passou a ser usada no lugar de druida, e referências a canções
passaram a conotar alguma ligação com os druidas. O poema Y
Gododdin, escrito em torno de 600 na região de Edimburgo, contém
algumas das mais antigas referências escritas sobre Artur e Merlim.
Este é citado como “Merlim das Canções”. Segundo a história em ge-
ral aceita, o Concílio de Drumceatt, ocorrido em 575, reuniu-se para
discutir as relações internacionais e destruir a influência dos “bar-
dos”. Em minha opinião, os bardos que a Igreja queria destruir em
Drumceatt não eram os artistas populares — isso não teria sentido
—, mas os druidas.
O significado do nome Lailoken pode ser explicado apenas se o
partirmos em dois. O sufixo Ken é sugestivo do gaélico Ceann, que
quer dizer líder ou chefe (literalmente, cabeça). O nome Kenneth possui
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OS FILHOS DE MORKEN
essa raiz. Malcolm Canmore, às vezes tomado por Malcolm, o Cabe-
ça Grande, era de fato Malcolm, o Grande Chefe. Quando entendi
que o nome era feito de duas partes e que Ken significava “cabeça de”
ou chefe, tudo o que precisei foi encontrar uma palavra que fizesse
sentido com a primeira parte “Lailo”. Achei essa palavra no gaélico
escocês. A palavra Laoidh (pronuncia-se Leu-y) significa uma “bala-
da”. Uma balada, como em The Lay of the Last Minstrel, de Walter
Scott, é um poema narrativo, em especial um que seja cantado, ou
simplesmente uma canção. Se a parte “Lailo” de Lailoken é uma
corruptela do gaélico escocês Laoidh, o nome Lailoken faz sentido.
Lailoken significa Chefe dos Cantos ou, na verdade, Chefe dos Druidas.
Laoidh, que em inglês termina com o som de “y”, exigiria eufonicamente
uma vogal quando seguida do som “k”. Laoidh Ceann, fonetica-
mente em inglês “leu-y ken”, poderia com facilidade ter sido corrom-
pido e se tornado “Lai-y-ken”, especialmente dada a grafia “Laoi”.
Lai-o-Ken e Lailoken não estão longe disso. É preciso considerar que
quando o nome perdeu seu sentido, ao ser retirado do contexto
linguístico original, teria sido soletrado foneticamente por inúmeros
copistas através dos séculos.
Devido ao controle dos meios de comunicação pelos inimigos de
Merlim ao longo de mais de mil anos após sua morte, o nome difa-
matório Merlim foi sempre o mais popular. Eu o uso nesse livro do
começo ao fim por ser o nome à disposição mais prontamente reco-
nhecível e porque o que lhe fora dado, o nome pelo qual sua família o
conhecia, perdeu-se.
Geoffrey diz em Vita que Merlim tinha uma irmã, Ganeida, mu-
lher de Rodarch, rei de Cúmbria. Esse Rodarch era Rhydderch, rei
dos britões de Strathclyde, que governou de 580 a 612. Cúmbria foi
parte de Strathclyde durante um tempo, após 573, mas seria uma fal-
sidade dizer que Rhydderch era rei de Cúmbria. Geoffrey simples-
mente está estabelecendo a cena o mais ao sul possível, enquanto
permanece em contato com suas fontes. As batalhas nas quais o
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EM BUSCA DE MERLIM
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“Rodarch” de Geoffrey lutou são claramente identificáveis como as
que Rhydderch estava envolvido. Geoffrey descreve Rodarch como
“o generoso”. A alcunha Hael, que significa generoso ou munificiente,
com frequência está ligada a Rhydderch. Não há dúvida de que o
Rodarch de Geoffrey e o Rhydderch de Strathclyde são o mesmo ho-
mem. Essa única prova na Vita de Geoffrey claramente liga Merlim a
um lugar e um período histórico, a Escócia de fins do século VI.
Pelo menos desde os anos 550 até a morte de Mungo em 612,
Merlim e Mungo foram inimigos mortais. Apesar de o grupo cristão
de Mungo ter vencido a guerra por supremacia no final, Mungo e
seus cristãos não estiveram sempre em ascendência. No início dos
anos 570, Mungo foi expulso de Strathclyde. Ele foi para o sul viver
no País de Gales com David, hoje o padroeiro do País de Gales, mas
Mungo se indispôs com David e foi embora, estabelecendo-se sozi-
nho em um lugar ao norte do País de Gales, agora chamado de St.
Asaph, em memória do tenente de Mungo, o jovem monge Asaph.
Mas Mungo também brigou com Asaph e novamente foi embora para
se estabelecer sozinho, dessa vez em Hoddam, nas fronteiras da Escó-
cia. Isso levou Asaph a tomar conta do monastério que Mungo havia
fundado — hoje Catedral de St. Asaph, em Gales do Norte.
Quinhentos anos depois, próximo à época em que escreveu Vita,
Geoffrey de Monmouth foi nomeado bispo de St. Asaph. Ele escre-
veu sobre Merlim em Historia Regum Brittaniae nos anos 1130, mas
somente coisas sem relevância: histórias roubadas de Ambrosius
Aurelianus (Emrys), um disparate fantástico sobre Stonehenge e uma
ficção romântica e mágica relativa principalmente ao nascimento de
Arthur. É como se o interesse de Geoffrey por Merlim tivesse inspira-
do sua ligação com St. Asaph e o conduzido a encontrar o material
necessário para capacitá-lo a escrever sua detalhada Vita Merlimi, uma
obra repleta de informações verdadeiras (todas relevantes para a Es-
cócia). A mulher de Rhydderch, rei dos bretões de Strathclyde, era
“Ganeida, uma bela mulher com quem foi muito feliz: ela era irmã
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OS FILHOS DE MORKEN
de Merlim”.2 As genealogias pertinentes ao século VI tendem a igno-
rar as mulheres, mesmo as rainhas. Essas obras são mesmo menos
aptas a identificar o pai de uma mulher, mas a esposa de Rhydderch,
irmã de Merlim, está registrada na genealogia da Casa de Strathclyde
como Gwenddyydd Ferch Morfryn; Gwynedd, filha de Morken, nas-
cida em 540. Ganeida é simplesmente uma latinização grosseira de
Gwyneth. Gwyn significa alvura, mas é mais bem compreendida como
formosura, no sentido de bom aspecto. É um prefixo comum em nomes
femininos. Gwynedd quer dizer, na realidade, a mais formosa.
A árvore genealógica de Strathclyde também mostra Rhydderch
com uma esposa anterior, Languoreth, nascida em 530. Isso não pode
estar correto. Em Life of Kentigern, de Jocelyn, Rhydderch vive menos
que sua mulher, Languoreth, morrendo em 612. Se Languoreth foi a
primeira das duas mulheres, não poderia ter sido viúva de Rhydderch.
Quem quer que tenha feito a árvore genealógica, não avaliou que
Gwynedd, o nome pelo qual a irmã de Merlim era chamada na infân-
cia, e Languoreth, um apelido, eram a mesma pessoa, e assim deram
a Rhydderch duas esposas por engano. A diferença na data de nasci-
mento, cerca de uns suspeitos dez anos, foi uma invenção. Estabeleci
a data de nascimento mais tardia, 540, como a correta. Por esses cál-
culos, Merlim tinha quase 80 anos ao morrer e sua irmã mais velha
continuava viva nessa época. Supor que eles tenham vivido dez anos
a mais é, em minha opinião, um exagero. Ter 80 anos era ser muito
velho no século VI.
Os homens em geral tinham um nome pelo qual eram conheci-
dos na vida pública. As mulheres tendiam a ser conhecidas como as
companheiras de seus maridos. Não a irmã de Merlim. Ela tinha um
nome público. Nas genealogias e na obra de Jocelyn, Life of Kentigern,
a mulher de Rhydderch é chamada de Languoreth. Invariavelmente,
como quase sempre no caso dos nomes do século VI, há várias ver-
sões a se considerar: Languueth e Langueth não são mais do que duas
alternativas. Languoreth é a versão utilizada com mais frequência.
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EM BUSCA DE MERLIM
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A única tentativa que conheço de explicação do significado do
nome Languoreth é bastante complicada: ele “é um composto diteístico
típico”, o qual é possível ser dividido em Lan e guoreth, o que “pode”
significar algo relacionado a libertação ou redenção. Como Merlim e
sua irmã viveram na Escócia, concentrei-me no gaélico Q (há duas
formas de gaélico: P e Q. O gaélico Q se constitui do gaélico irlandês
e escocês; o gaélico P, do gaélico bretão, córnico e galês). Segundo o
Etymological Dictionary de MacBain, Làn significa cheio e òr signifi-
ca ouro. Lan-òr é facilmente transposto para o mais eufônico Lang-or.
O sufixo eth é prontamente entendido como uma corruptela do
usual sufixo gaélico P britânico Edd ou Ydd (como em Arderydd).
Seria preciso que Jocelyn cometesse um pequeno engano (acarre-
tado pela peculiaridade da pronúncia do sufixo edd soar como
eth), e a irmã de Merlim, a rainha Rhydderch, passaria de Lan-or-
edd para Languoreth.
Portanto, concluo que Languoreth quer dizer, literalmente, “cheia
de ouro” ou “toda dourada”, mas esse significado pode ser mais bem
percebido se lido no contexto como o nome de uma rainha combina-
do com seu nome de nascença, Gwynedd. Gwynedd Languoreth sig-
nifica Gwyneth, a formosa, A Mais Gloriosa.
No poema “Dialogue Between Myrddin and His Sister”,3 escrito
em algum momento entre 1375 e 1425, mas cuja base está em fontes
escritas e orais muito anteriores, Merlim encontra sua irmã na flo-
resta em que está se escondendo após a Batalha de Arderydd no final
dos anos 570. Vem dessa fonte nosso conhecimento de que eram gê-
meos, uma vez que ela se dirige a ele como “meu irmão gêmeo Myrddin”,
o seu “célebre gêmeo”. Elis Gruffudd, no século XVI, identificou um
homem chamado de modo variado Morfryn ou Morvryn (na Escó-
cia, Morken) como sendo o pai de Merlim, antes de se voltar para a
irmã de Merlim:
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OS FILHOS DE MORKEN
[O]s escritos mostram que um homem com esse nome [Morfryn] teve
um filho que era chamado de Myrddin, filho de Morfryn, e uma filha
chamada Gwenddydd, conforme conta a fábula... Para ele, Deus havia
dado o dom da profecia... e especialmente para sua irmã Gwenddydd,
que, segundo minhas cópias evidenciam, era sagaz e instruída [e] es-
creveu um grande livro sobre os pronunciamentos do irmão, em espe-
cial sobre as profecias relacionadas a essa ilha...4
Obviamente, Gruffudd teve acesso a provas pontuais, pois não era
comum no século XVI a capacidade intelectual de uma mulher ser
notada, muito menos enaltecida. Assim, é pouco provável que Gruffudd
tivesse simplesmente inventado uma irmã inteligente para Merlim.
No mínimo, sua irmã foi tão culta e erudita quanto ele.
Dado que Languoreth nasceu em 540 e que Merlim era seu irmão
gêmeo, somos obrigados a concluir que Merlim nasceu em 540. As
provas que localizam Merlim no sul da Grã-Bretanha foram todas
elaboradas tendo em vista esse fim particular, sendo consequentemente
suspeitas. Elas também tendem a ser duvidosamente vagas. Porém,
as provas que estabelecem Merlim na Escócia estão expressas na his-
tória: a irmã de Merlim era Languoreth; Languoreth era casada com
Rhydderch; Rhydderch reinou em Strathclyde de 580 a 612. Além de
serem, de modo convincente, fatos triviais.
As fontes de origem escocesa também incluem evidências con-
trárias aos interesses do grupo que as fornece e por isso adquirem
um peso adicional. O texto Alberdeen Breviary, por exemplo, é uma
obra cristã que esclarece a história de Merlim, embora de forma inad-
vertida. Foi escrito no século XVI para louvar vários santos escoce-
ses, incluindo Serf, o professor de Mungo, Taneu, a mãe de Mungo,5
Columbano, seu novato correligionário, e o próprio Mungo, todos
tendo vivido no século VI e cada um desempenhando um papel na
história de Merlim. O autor desse texto cristão não menciona Merlim
e não teria razão para apoiar a causa de um Merlim escocês, mas é o
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EM BUSCA DE MERLIM
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que faz. Em sua história sobre o adultério de Languoreth e o sumiço
de um anel, conta de onde ela veio: “Aconteceu de a rainha de Cadzow6
estar enferma, pelo que dizem, por causa do amor de um certo solda-
do que o rei levou consigo para a caçada.”7
Esse é o único momento em que Languoreth é designada como
sendo “de Cadzow”. Ela era rainha de Strathclyde nessa época, mas
estava em apuros — cometera adultério —, o que talvez explique por
que fora identificada com referência ao lugar de onde viera, assim
como Maria Antonieta era chamada de A Austríaca.
As terras de Cadzow se estendem pelas margens do rio Clayde,
uns 18 quilômetros rio acima de Glasgow. Não haveria motivos para
o autor de Alberdeen Breviary inventar o lugar de origem da rainha
Languoreth, nem mesmo para escolher Cadzow. Ele o menciona uma
vez de passagem e depois não mais. Na falta de provas contrárias,
então, podemos dizer que Languoreth era de Cadzow. E, portanto,
que Merlim também era de Cadzow, se essa é a origem de Languoreth
e sendo eles gêmeos. Essa evidência tem um peso particular por vir
de uma fonte que seria contrária a Merlim, caso estivesse minima-
mente preocupada com ele.
Sempre ouvi falar do lugar chamado Cadzow, a uns sete quilôme-
tros de minha casa, como parte da moderna cidade de Hamilton. O
atual subúrbio Cadzow se expande ao sul da cidade perto do rio Avon,
onde se une ao rio Clayde. Próximo a essa junção, há uma colina
de onde é possível vislumbrar Glasgow, Dunbartonshire e Loch Lomond
até Ben Arthur, 64 quilômetros adiante. Essa colina abriga hoje o
“alojamento de caça” setecentista de Chatelherault. O rei da França
aparentemente deu ao duque de Hamilton as terras francesas de Cha-
telherault e um título como recompensa por serviços escusos presta-
dos à época da rainha Maria da Escócia, por isso o nome Chatelherault.
As ruínas de um castelo do século XIII se encontram perto, ao lado
de descobertas arqueológicas de uma fortificação do século VI, que,
segundo informações turísticas oficiais, um dia foi o alojamento de
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OS FILHOS DE MORKEN
caça de “antigos reis de Strathclyde”. O lugar, situado bem acima de
um desfiladeiro próximo de onde dois rios se encontram, não era
apenas uma localização natural para uma fortaleza, motivo pelo qual
um castelo foi construído lá depois, mas estava estrategicamente es-
tabelecido no que seria, no século VI, a fronteira entre países. Cadzow
era uma fortaleza.
Foi lá que os líderes de Cadzow, inclusive Morken, o pai de Merlim,
viveram e onde provavelmente nasceram Merlim e Languoreth. Morken
tinha outra propriedade rio abaixo, na vila real de Partick, mas Lan-
guoreth é descrita como “a rainha de Cadzow”, o que sugere ser Cadzow
— e não Partick — o lugar com o qual mais a associavam.
No domingo, 24 de outubro de 2004, visitei com minha filha o Castelo
Cadzow pela primeira vez. Eu esperava uma pequena fileira de pedras
perto de Chatelherault, mas em vez disso fomos levados para a porta
dos fundos do centro de visitantes, ao longo de um caminho arborizado,
com a promessa de que após uma caminhada de cinco minutos chega-
ríamos a uma ponte e depois ao castelo. Cinco minutos mais tarde,
estávamos na ponte em cima do caudaloso rio Avalon. Apesar de estar-
mos a menos de 1,5 quilômetro da rodovia M74, a principal estrada
para a Inglaterra, e no coração da industrial Lanarkshire, o silêncio
predominava, exceto pelo barulho da água. Havia árvores por toda a
parte e, cruzando o rio, na extremidade do desfiladeiro, o Castelo Cadzow.
Era fácil imaginar a fortaleza que ali se erguera nos tempos de Merlim.
O rio era o mesmo. As árvores originavam-se daquelas que ele teria
visto. Não houve ponte mais alta no século VI (possivelmente), mas o
vau do rio que se estendia abaixo estivera lá quando Merlim e Languoreth
eram crianças, brincando em suas encostas.
Cadzow dominava o médio Clayde, pelo qual se estendiam os rei-
nos de Manau e do povo de Gododdin e, mais tarde, dos anglos. Era
uma localidade estrategicamente vital.
Os druidas recitavam os poemas, narravam as histórias e canta-
vam as canções por meio dos quais a tradição de seu povo sobrevi-
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veu. Para ajudá-los na lembrança dos acontecimentos posteriores, eles
usavam tercetos remanescentes da tradição oral, para a qual foram
criados, da época de Merlim até o século XIII, quando foram registrados
por escrito, como as Tríades galesas. A “Tríade 115” apresenta Merlim
contabilizado entre os Três Bardos de Batismo da Ilha da Grã-Bretanha.
O “de batismo” foi adicionado para que ninguém pensasse terem os
bardos algo a ver com os antigos:
Merddin Emrys,
E Taliesin, líder dos bardos,
E Merddin, filho de Madoc Morvryn.
Merddin Emrys está listado apenas por causa da confusão entre Merlim
e Emrys (Ambrosius Aurelianus) originada quando escritores como
Geoffrey colheram as fábulas sobre Emrys e as atribuíram a Merlim.
Uma vez confundidas as figuras de Emrys e Merlim, a criação do per-
sonagem composto Merlim-Emrys foi um pequeno passo, mesmo
nunca tendo existido tal pessoa. Houve um bardo chamado Merlim,
mas nenhum Merlim-Emrys. Emrys era outra pessoa, um líder guer-
reiro dos antigos.
O segundo bardo nomeado, Taliesin, era um druida, o conselhei-
ro-chefe do rei herói, Urien de Rheged, e amigo de Merlim. O reduto
de Taliesin em Galloway, no sudoeste da Escócia, havia sido devasta-
do por exércitos cristãos no final do século VI porque, segundo os
cristãos, era um “santuário de canções fantásticas”, isto é, um lugar
onde o antigo costume druida continuava a florescer. Taliesin foi um
líder dos bardos como Merlim. Pelos meus cálculos, o verdadeiro Merlim
é o terceiro poeta da “Tríade 115”: “Merddin, filho de Madoc Morvryn.”
Fontes materiais como essa — que sugerem que existiram dois
Merlims — foram usadas por aqueles que aceitavam o critério de
Arthur ter sido um homem do final do século V ou início do século
VI, mas que estavam presos ao problema apresentado pelas provas
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OS FILHOS DE MORKEN
de que Merlim teria vivido no final do século VI, quando todos sa-
bem que os dois eram contemporâneos. Eles simplesmente diziam
haver dois Merlims: um que viveu no início do século VI e outro, no
final do mesmo século. Claro que se Arthur e Merlim viveram no final
do século VI, como de fato ocorreu, esse problema deixa de existir,
sendo preciso apenas um Merlim. A “solução dos dois Merlims” tam-
bém foi usada para explicar a evidência que localiza Merlim tanto no
País de Gales/Inglaterra quanto na Escócia. Se Merlim foi um esco-
cês, como de fato se comprova, novamente deixa de ser necessária a
existência de dois Merlins.
Uma vez reconhecido Merlim-Emrys como pura ficção e qual-
quer ideia da existência de dois Merlims ser colocada de lado como
um disparate, permanece um Merlim, o terceiro bardo nomeado,
“Merddin, filho de Madoc Morvryn”. Morvryn é mencionado e rela-
cionado a Merlim em vários poemas, cuja base é a tradição oral e que
foram registrados por escrito nos séculos XII e XIII. Nos “Dialogue
Between Myrddin and His Sister”, Merlim é citado como “Myrddin,
filho de Morvrun, o habilidoso”. Em “A Fugitive Poem of Myrddin in
His Grave” (também presente no Red Book of Hergset), Merlim diz:
Eu bebi de um esplêndido cálice
com destemidos e beligerantes senhores
meu nome é Myrddin, filho de Morvryn.
Há, portanto, em mais de uma fonte primária, a corroboração das
provas nas Triads de que o nome do pai de Merlim era Morvryn. O
poema “Fugitive” também traz referências aos guerreiros Morgenau,
Moryal, Moryen e Mordav, apesar de esses não serem os nomes pelos
quais suas famílias e seus amigos os conhecessem. Um nome iniciado
por Mor era o nome pelo qual um homem era conhecido no círculo
guerreiro em que vivia. No gaélico escocês, Mor significa magnâni-
mo ou grande, e assim, por motivos óbvios, tornou-se parte comum
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EM BUSCA DE MERLIM
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de muitos nomes usados para descrever guerreiros. As barreiras de
escudos contiveram muitos homens conhecidos por seus companheiros
como “O Magnânimo alguma coisa” ou “O Grande alguma coisa”.
Elis Gruffudd reflete a perspectiva de seu tempo ao dizer em The
Story of Merddin Wyllt: “Segundo a narrativa de alguns autores, havia
nessa época... um homem chamado Morfryn... os escritos mostram
que um homem com esse nome teve um filho chamado Myrddin.”
Merlim, filho de Morvryn, ou Morfryn, qualquer que seja a ver-
são escolhida, não existe na história do sul da Grã-Bretanha. Para
encontrá-lo, é necessário considerar as fontes escocesas.
A primeira parte de Life of Kentigern, de Jocelyn, cobre a época
em que Merlim era criança e jovem. Sua narrativa é sobre um grande
chefe, um homem dos antigos, que estava antes de mais nada entre os
inimigos dos cristãos. Morken era seu nome. Já foi visto que Mor
significa grande ou magnânimo e Ken quer dizer cabeça, no sentido
de líder ou, coloquialmente, chefe. No gaélico escocês moderno, tan-
to Ceannabhard quanto Ceannard significam comandante ou líder.
Morken, Mor Ken, Mor Ceann querem dizer, quase literalmente, Grande
Chefe e simplesmente conotam um comandante ou líder. Novamen-
te, os nomes que chegaram a nós são de uso público, não privado.
Quando se considera a história da Escócia, há que se encontrar
um homem com o nome certo, vivendo no período certo e fazendo
exatamente o que se esperaria do pai de Merlim: lutar pelos antigos
costumes contra a afluência dos cristãos. Morken também possuía
uma propriedade em Partick, onde Merlim, por sua vez, tinha uma
casa. Morken era o pai de Merlim.
Para resumir o que espero ter demonstrado até agora, Merlim,
filho de Morken, irmão gêmeo de Gwynedd Languoreth, rainha de
Strathclyde, nasceu em 540 em Cadzow. Essa é sua história.
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