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III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia Campus I Salvador - BA TRANSTORNOS DA IDENTIDADE SEXUAL” – A MEDICINA LEGAL DEFINE A HOMOSSEXUALIDADE, LESBIANIDADE E TRANSGÊNEROS. SABRINA GUERRA GUIMARÃES 1 LINA MARIA BRANDÃO DE ARAS 2 RESUMO O presente artigo discute as terminologias ainda utilizadas em alguns dos livros recentes de Medicina Legal em seu ramo da Sexologia Forense ao tratar a homossexualidade, lesbianidade e transgêneros como distúrbios ou transtornos as orientações e identidades sexuais dos indivíduos, inclusive ainda utilizando o sufixo “ismo” remetendo essas categorias a doenças. Portanto, acreditamos que essas discussões auxiliarão na crítica a uma ciência hegemônica, androcêntrica e heteronormativa ao percebermos que esses livros acabam por legitimar a patologização num momento em que se busca a despatologização das identidades trans e a já despatologizada identidade homo. Palavras-chave: Medicina legal; Homossexualidade; Lesbianidade; Transgêneros; Feminismos. APRESENTAÇÃO A escrita deste texto se deu a partir de uma inquietação que surgiu quando, ao pesquisar o objeto da dissertação que trata da primeira médica legista do Brasil a Dra. Maria Theresa de Medeiros Pacheco, recorremos aos livros de medicina legal para entendermos como a pesquisada desenvolvia suas atividades profissionais. Com nossa formação na área de História e a pós-graduação voltada para Mulheres, Gênero e Feminismo e com o suporte teórico que ambas fornecem, lançamos um olhar crítico para o que líamos. Conforme íamos folheando as páginas de alguns destes livros, sem nenhum entendimento sobre as práticas da Medicina Legal e nem das áreas que ela 1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo, da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Graduada em História (UCSAL). Bolsista FAPESB. [email protected] 2 Doutora em História e professora do Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo, da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade Federal da Bahia (UFBA). [email protected]

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Salvador - BA

“TRANSTORNOS DA IDENTIDADE SEXUAL” – A MEDICINA LEGAL

DEFINE A HOMOSSEXUALIDADE, LESBIANIDADE E TRANSGÊNEROS.

SABRINA GUERRA GUIMARÃES1

LINA MARIA BRANDÃO DE ARAS2

RESUMO

O presente artigo discute as terminologias ainda utilizadas em alguns dos livros recentes

de Medicina Legal em seu ramo da Sexologia Forense ao tratar a homossexualidade,

lesbianidade e transgêneros como distúrbios ou transtornos as orientações e identidades

sexuais dos indivíduos, inclusive ainda utilizando o sufixo “ismo” remetendo essas

categorias a doenças. Portanto, acreditamos que essas discussões auxiliarão na crítica a

uma ciência hegemônica, androcêntrica e heteronormativa ao percebermos que esses

livros acabam por legitimar a patologização num momento em que se busca a

despatologização das identidades trans e a já despatologizada identidade homo.

Palavras-chave: Medicina legal; Homossexualidade; Lesbianidade; Transgêneros;

Feminismos.

APRESENTAÇÃO

A escrita deste texto se deu a partir de uma inquietação que surgiu quando, ao

pesquisar o objeto da dissertação que trata da primeira médica legista do Brasil a Dra.

Maria Theresa de Medeiros Pacheco, recorremos aos livros de medicina legal para

entendermos como a pesquisada desenvolvia suas atividades profissionais. Com nossa

formação na área de História e a pós-graduação voltada para Mulheres, Gênero e

Feminismo e com o suporte teórico que ambas fornecem, lançamos um olhar crítico

para o que líamos. Conforme íamos folheando as páginas de alguns destes livros, sem

nenhum entendimento sobre as práticas da Medicina Legal e nem das áreas que ela

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e

Feminismo, da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Graduada em História (UCSAL). Bolsista FAPESB. [email protected] 2 Doutora em História e professora do Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre

Mulheres, Gênero e Feminismo, da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, da Universidade Federal

da Bahia (UFBA). [email protected]

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atende, isto é, a medicina e o direito, propusemos tratar especificamente de uma sub-

parte que abarca exatamente o que interessa no desenvolvimento da questão proposta.

Para dar uma visão mais ampla é preciso remeter o/a leitor/a, a breves definições

da Medicina Legal.

A Medicina Legal é uma ciência de largas proporções e de extraordinária importância no conjunto dos interesses da coletividade, porque ela existe e se

exercita cada vez mais em razão das necessidades da ordem pública e do

equilíbrio social. Não chega a ser propriamente uma especialidade médica,

pois aplica o conhecimento dos diversos ramos da medicina às solicitações

do direito. Mas pode se dizer que é ciência e arte ao mesmo tempo […] A

Medicina Legal não se preocupa apenas com o individuo enquanto vivo.

Alcança-o ainda quando ovo e pode vasculhá-lo muitos anos depois da

escuridão da sepultura. É muito mais uma ciência social do que propriamente

um capítulo da medicina devido à sua preocupação no estudo das mais diversas formas de convivência humana e do bem comum. (FRANÇA,

2011:1)

A Medicina Legal se divide em inúmeros ramos e dentre elas está a Sexologia

Forense e ora também tratada por Sexologia Criminal que é o ramo da Medicina Legal

que estuda a atividade sexual humana relacionada às questões jurídicas, cíveis e

criminais. “Se dedica ao estudo dos fenômenos relacionados com a reprodução humana,

desde a concepção até o puerpério”. (DEL-CAMPO, 2005:187). A sexologia forense foi

dividida em áreas para atender as demandas e são elas: Himeneologia forense- estuda

toda questão médico-legal voltada para o casamento, desde o seu estabelecimento

(momento do ato), suas finalidades (proteção a família, o dever de consumar as relações

sexuais, procriação, proteção e educação da prole, fidelidade e outros). Obstetrícia

forense- estuda toda questão médico-legal voltada para a mulher no período gestacional,

do parto até o puerpério. Como também a investigação da paternidade através do DNA.

Erotologia forense- estuda os crimes sexuais, a prostituição, o perigo e contágio e

também os “distúrbios ou transtornos do instinto sexual” e é nesse ponto que iremos nos

ater e que versará este trabalho, utilizando alguns livros da área para identificarmos a

linguagem utilizada por eles que nunca contemplou e continua a não contemplar as

chamadas “minorias”: homossexuais, lésbicas, travestis, transexuais, transgêneros e

outros.

Faremos, portanto, uma análise pautada nas teorias feministas que nos darão

suporte para entender os discursos que legitimaram tais posicionamentos, assim como

discutir a dificuldade da sociedade ainda munida de preconceitos e alicerçada por uma

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ciência que só consegue admitir uma lógica baseada e presa no biológico: pênis (macho)

vagina (fêmea) sem perceber as inúmeras possibilidades de gênero que nos são postas

diariamente.

Objetivamos colaborar para que se pense numa forma de analisar e monitorar

esses livros que são lidos por alunos em formação no curso de Direito e na

especialização em Medicina Legal e que compõem a gama de conhecimento dos futuros

médicos legistas, advogados, juristas. Enfim, formadores de opiniões e regentes

hierárquicos na sociedade.

DOS LIVROS

Em meio a discussões e seminários pela despatologização das identidades

transgêneros somos remetidos/as a luta que também foi cunhada pelos homossexuais em

relação à retirada do código 302.0 da CID (Classificação Internacional de Doenças) que

caracterizava o “homossexualismo” como doença, DISTÚRBIO e perversão. A

militância festejou a vitória em 17 de maio de 1990 quando em Assembléia-Geral da

OMS (Organização Mundial de Saúde) foi retirada o "homossexualismo" da

Classificação Internacional de Doenças. A partir daí seria adotado o termo

homossexualidade referindo-se a comportamento e não mais o sufixo “ismo” que

passava a ideia de doença.

Perguntamos: porque a maioria dos livros de Medicina Legal ao tratar da

Sexologia Forense ainda utiliza o sufixo ismo ao se referir à homossexualidade e

lesbianidade? Por ter consciência da infinidade de obras/autores que tratam da Medicina

Legal, trataremos de alguns exemplos para contribuir com essa discussão. Cada vez

mais, acreditamos que podemos lutar e, dessa forma, conseguiremos uma sociedade

mais igualitária, que respeite a sexualidade dos indivíduos. Portanto, traçaremos de

início, um quadro onde se trata a homossexualidade e a lesbianidade como distúrbios ou

transtorno do instinto sexual. Começarei analisando uma das edições mais atuais:

Faz parte da sexualidade de um individuo seu instinto sexual. Esta qualidade

se manifesta pela atração sexual que ele tem por outra pessoa levando em

conta certos valores culturais positivos construídos como um patrimônio durante toda sua existência.Se este instinto se equilibra dentro dos padrões de

normalidade, teremos o ideal. Todavia, vez por outra, surgem distúrbios,

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transtornos, perversões e alterações da identidade sexual capazes de

comprometer a segurança das pessoas e o equilíbrio da sociedade.

A sexualidade é sempre um assunto que, ao ser tratado, impõe um certo cuidado. Ultimamente vem-se notando uma irrefreável inflação dessa forma

de literatura, cujo interesse é atrair os menos avisados a veredas da

sexomania e do erostismo. Tem sido comum falar de sexo a qualquer

pretexto, ao até sem pretexto algum utilizando-se falsos conceitos científicos

ou escamoteados por propósitos pouco recomendáveis.No relacionamento

sexual do homem e da mulher, não existe apenas a satisfação da posse carnal.

Há, isto sim, uma compensação afetiva que ultrapassa a simples exigência

instintivo material e que oferece significações maiores.O perigo está no fato

de que a juventude ávida de inovações, impregnada de sexo e erotismo,

possa deixar-se arrastar por uma ideologia sexual, definida por alguns como

forma de realização, mas que, na maioria das vezes, leva-os a terríveis frustrações. (FRANÇA, 2011:271)

De fato, inicialmente acreditamos que os sufixos “ismos” e a referência a

transtornos e distúrbios, poderia ser um problema de edição ou que fosse mesmo um

pensamento vigente, mas não esperávamos encontrar numa edição de dois mil e onze

pensamentos sexistas. O autor (FRANÇA) que será analisado mais longamente traz na

sua obra uma classificação feita pela:

Associação Americana de Psiquiatria em seu Manual diagnóstico e estatístico

dos transtornos mentais, quando equaciona os “transtornos sexuais e da

identidade sexual” em três tipos:

1-Transtornos sexuais. Encerram as disfunções sexuais, como as alterações do desejo, mudança na resposta sexual convencional mal estar ou conflitos

interpessoais. São eles:

a)Transtornos do desejo sexual (desejo sexual hipoativo ou aversão ao sexo).

b)Transtornos da excitação sexual (na mulher e na ereção do homem);

c)Transtornos orgásmico feminino e masculino (ejaculação precoce);

d)Transtornos sexuais devido a dor (dispareunia e vaginismo);

e)Transtorno sexual devido a uma enfermidade, provocada por medicamentos

ou não especificado.

2-Parafilias. São impulsos sexuais, fantasias ou comportamentosrecorrentes e

intensos que implicam condutas pouco habituais. Entre as mais comuns

destacam-se:exibicionismo, fetichismo, clismafilia, zoofilia, necrofilia, coprofilia, froutterismo, pedofilia, masoquismo, sadismo e voyerismo.

3-Transtornos da identidade sexual. A identidade sexual é a consciência

imutável que alguém tem de pertencer a um ou outro sexo. Seu transtorno,

portanto, consiste na identificação persistente com o outro sexo e um mal-

estar com o seu próprio, querendo ser do sexo oposto. Esse é um assunto que

vem causando muitos desafios devido à sua delicadeza e complexidade. (Id.

Ibidem, 2011:271-272).

Quando ele afirma que esse é um assunto que vem causando muitos desafios, ele

está se referindo a causa já ganha dos homossexuais de não serem mais considerados

doentes e a luta dos transgêneros e transexuais pelo mesmo objetivo. Mesmo assim ele

acaba por se contradizer em muitos momentos e é por esse motivo que optamos por uma

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descrição mais alongada da sua obra, quando ele analisa o item 3-“Transtornos da

identidade sexual” começando pelo excessivo sufixo ismo:

Travestismo- é um transtorno da identidade sexual. Pode ocorrer entre

indivíduos heterossexuais, que se sentem impelidos a vestir-se com roupas de

pessoas do sexo oposto, fato esse que lhes rende gratificação sexual. Em

geral nesse tipo de erotopatia, o individuo é reservado e comedido e se

traveste de maneira discreta e quase furtiva; muitos deles, apenas no recato

dos seus lares e para satisfação somente sua. Havia um deles cujo prazer era

apresentar-se aos seus amigos, em sua casa, vestido de bailarina.

-Homossexualismo masculino- chamado também de uranismo ou pederastia,

é uma das formas mais comuns de transtorno da identidade sexual.

No entanto o problema do homossexualismo continua a desafiar,

principalmente pela sua repercussão e pelo seu crescimento em todas as partes. A psicologia e a psicanálise disputam a primazia da elucidação e da

justificação desta opção sexual. Seja qual for a sua etiologia, o homossexual

tem de ser encarado como alguém que fez uma opção sexual e não como

antes, um caso estritamente médico.

Há necessidade de que se faça distinção entre homossexualismo, o

intersexualismo, o transexualismo e o travestismo.

No intersexualismo ou sexo dúbio, o individuo apresenta-se com a genitália

externa e/ou a genitália interna indiferenciada como se a natureza não tivesse

se definido sobre o sexo.

No transexualismo, o individuo é um inconformado com seu estado sexual.

Geralmente, não admite a prática homossexual.

No travestismo, a pessoa sente-se gratificada com o uso de vestes, maneirismos e atitudes do sexo oposto. São tendentes ao homossexualismo.

Homossexualismo feminino- também chamado de safismo, lesbianismo ou

tribadismo. É muito mais comum do que se pensa. Vai desde os ciúmes

perseguidores até a prática de atos libidinosos.

Existem como na inversão masculina, graus variados que vão desde os tipos

masculinizados (feições, hábitos, disfarces e maneiras de se portar) até os

tipos femininos, delicados e ternos, nos quais jamais se poderia pensar numa

inversão sexual.

Também se distingue em ativas e passivas. Começa essa inversão muitas

vezes em colégios, internatos, presídios, conventos e até nos prostíbulos,

pelas amizades estreitas e continuadas. Não é raro encontrar-se uma lésbica, com filhos assumindo uma dupla

personalidade, muitas vezes sem nenhuma aparência.

A promiscuidade, o receio da gravidez, as decepções com os homens, os

maus-tratos dos maridos, a educação moderna, a nova literatura, o

comportamento masculino na atualidade, aproximando-se do unissexo, e a

solidão podem ser considerados, entre outros, como elementos da gênese

dessa anomalia. A chamada emancipação da mulher através dos princípios

definidos pelos movimentos feministas e o exagero da liberdade que se

apregoa têm determinado, sem dúvida, o aumento assustador do safismo. (Id.

Ibidem, 275- 276).

Nesta citação fica evidente que o discurso de ordem de gênero patriarcal ainda

persiste na sociedade. Atacando o movimento feminista que aparece entre essas linhas

de forma banalizada, sem importância, como se fosse um movimento solto sem teorias,

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práticas e objetivos, como uma quimera que surgiu para abalar o modelo que deveria ser

inabalável o da heterossexualidade. E o autor prossegue:

As particularidades mais curiosas e constantes são: a aversão pelo sexo masculino e um amor violento, fustigado por ondas incessantes de ciúme

passional quando se vêem abandonadas. Ciúme que deixa de ser prova de

amor para se constituir em ódio e inveja. Mas um pecado que já nasce

perdoado porque nasce no coração. Muitas vivem juntas e felizes numa água-furtada ou apartamento de luxo, dividindo o amor e a alegria. Outras

terminam a convivência de maneira trágica e passional traídas pelo ciúme e

pelo abandono. (Id. Ibidem, 276-277).

Após explanar de forma infundada e preconceituosa a homossexualidade

feminina o autor retoma a discussão sobre o transexualismo.

De todos os transtornos da identidade sexual, o transexualismo ou síndrome

de disforia sexual é aquele que mais chama atenção, pela sua complexidade e

por seus desafios às questões morais, sociais e jurídicas. Roberto Farina (In

transexualismo, São Paulo: Editora Novolunar, 1982) define-o como uma

pseudossindrome psiquiátrica, profundamente dramática e desconcertante, na

qual o individuo se conduz como se pertencesse ao gênero oposto. Trata-se,

pois, de uma inversão psicossocial, uma aversão e uma negação ao sexo de

origem, o que leva esses indivíduos a protestarem e insistirem numa forma de

cura por meio da cirurgia de reversão genital, assumindo, assim, a identidade

do seu desejado gênero. (Id. Ibidem, 2011:275).

França ao se referir dos aspectos médicos legais traz a diferenciação entre eles:

Antes de qualquer análise, é necessário que se faça uma distinção entre transtorno da preferência sexual, transtorno da identidade sexual e perversão

sexual. Na primeira situação, o individuo faz opção por certas práticas

sexuais que, na identidade, são toleradas sem maiores censuras como a

mixoscopia e o onanismo. No transtorno da identidade sexual, a pessoa se

identifica sexualmente com o mesmo sexo, imitando o sexo oposto ou agindo

como se fora igual, como nos casos do homossexualismo e do travestismo,

que a sociedade começa aceitar como questão da preferência de cada um. E a

perversão sexual, a manifestação mais abjeta da sexualidade, cuja prática

denota um comprometimento moral e psíquico muito grave, e que justifica maior interesse médico-legal, como nos casos do bestialismo, da necrofilia e

da pedofilia. (Id. Ibidem:279)

Apesar de parecer amenizado os aspectos voltados para o transtorno da

identidade sexual, ele categoricamente sentencia as escolhas feitas pelos indivíduos que

não aceitam a sua identidade de gênero e também quem realiza a mudança de sexo:

Na verdade o que se faz comumente nessas cirurgias é tão só a emasculação e

a castração, com aproveitamento de retalhos de pelo do pênis e do saco

escrotal para a confecção de uma aparente genitália feminina. Essa prática resume-se, pois, na confecção de um canal revestido de tegumento em

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comunicação com o reto. Em suma, uma rude mutilação e uma disfarçada

oficialização para uma pseudo- heterossexualidade, que- sob qualquer

pretexto- tema representação de homossexualismo. Castrar e emascular um individuo, querendo valer-se de um suposto “sexo psicossocial”, parece-nos,

à primeira vista, um método apressado e simplista de resolver uma situação

complexa que deixa suas raízes num psiquismo alterado. Uma coisa é certa:

pode-se até mudar o “sexo-civil”. No entanto, ninguém poderá transformar

realmente, um sexo em outro: nem o endocrinologista, nem o psiquiatra, nem

o juiz, nem mesmo Deus. (Id. Ididem: 280).

De posse de mais quatro livros para analisar, fazemos a seguinte pergunta: como

o/a discente de Medicina, de Direito e outros profissionais que se preparam para

concurso público recebem essas informações postas nessas obras? Com uma base já

imposta desde o seu nascimento de que pênis e vagina se completam e que algo fora

desse padrão é anormal, esses livros acabam por reforçar essa noção já pré-concebida e

forçosamente concebida.

Outro autor, Flaminio Fávero, apesar de falar em travestismo e disfarcismo não

trata a homossexualidade como homossexualismo, mas diz que são doentes psíquicos.

Na forma congênita chamada de uranismo, o individuo bem conformado sexualmente é um doente psíquico; tem ele pendor homossexual, pudor

também homossexual, consciência absoluta do ato sexual invertido, mas

sendo conduzido a ele por verdadeira obsessão. Além disso entrega-se

preferivelmente ao exercício de profissões do sexo oposto ao seu do qual,

ainda assume, certas particularidades de caráter, atitude, vestes (travestismo

ou disfarcismo). (FÁVERO, 1991: 811)

O livro de Celso Martins é voltado para concursos públicos e não se diferencia

dos demais nas abordagens:

Os conceitos de transtornos de personalidade devem considerar a sociedade

dominante. Alguns casos devido à agressão moral e/ ou física que produzem, enquadram-se exclusivamente como aberrações, chegando à condição de

psicopatias; outros, embora firam ainda alguns padrões sociais enquadram-se

em desvios sexuais. (MARTINS, 2010:114).

E também utiliza o sufixo ismo para denominar “homossexualismo masculino

ou uranismo ou pederastia; Homossexualismo feminino ou safismo, lesbianismo ou

tribadismo”. (Id. Ibidem:115).

Outro livro analisado é um de bolso e, também, voltado para provas de

concursos de Ricardo Bina e traz as seguintes informações:

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Distúrbios Sexuais: são doenças, ou transtornos relacionados aos atos

libidinosos que podem não ter causa apenas psicológica, mas também

psiquiátricas. Nesse caso, podem figurar como doenças mentais. Alguns desses transtornos despertam interesses apenas para a medicina. Outros já

provocam ações antissociais punidas pelo direito, despertando interesses

médico-legais. P. 133.

São distúrbios sexuais:

Transexualismo: é a negação do próprio sexo. A pessoa não aceita seu corpo.

Mais comum em homens que gostam de se passar por mulheres. Pode estar

associado a distúrbios mentais, mas também pode ter causa genética e

hormonal.Algumas pessoas nascem com corpo de homem, mas apresentam

caracteres femininos ou vice-versa. Muitos países discutem a legalização de

cirurgias de mudança de sexo. P. 135/136.

Homossexualismo: é a atração sexual por alguém do mesmo sexo. Nos homens recebe o nome de pederastia ou uranismo.

Nas mulheres de safismo, lesbianismo ou tribadismo. (BINA, 2009:136).

Analisando mais um livro, na edição de 2009, Eduardo Del-Campo nos traz o

seguinte esquema:

Transtorno do desejo sexual hipoativo

Transtorno da aversão sexual

Transtorno da excitação sexual feminino

DISFUNÇÕES SEXUAIS Transtorno erétil masculino

Transtorno orgásmico feminino

Transtorno orgásmico masculino

Ejaculação precoce Vaginismo

Dispaurenia

Transtorno decorrente de uma condição

médica geral disfunção sexual induzida por substância

TRANSTORNOS

SEXUAIS Transexualismo

TRANSTORNOS DA Homossexualismo egodistônico

IDENTIDADE DE GÊNERO

Elencadas Exibicionismo

no DSM-IV Fetichismo Frotteurismo

Pedofilia

Masoquismo Sadismo

PARAFILIAS Voyeirismo ou mixocospia

Parafilias sem outra especificação

Outras parafilias apontadas na doutrina médico-legal, e novas terminologias.

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Nesse contexto, nos propomos analisar o que se encontra no esquema acima,

esse autor cita homossexualismo e homossexualidade ao mesmo tempo:

Transtorno da identidade de gênero ou homossexualismo

No transtorno da identidade de gênero propriamente dito ou transexualismo,

existe uma forte e persistente insatisfação com o próprio sexo, acompanhada

de uma identificação com o gênero oposto. O individuo possui corpo masculino, mas tem o desejo de ser ou até mesmo

insiste que pertence ao gênero e feminino (transexual de homem e mulher),

ou apresenta caracteres sexuais femininos, mas sente-se como homem

(transexual de mulher a homem), chegando, inclusive, à transformação sexual

cirúrgica. O transexual é um inconformado com seu estado sexual e não

admite ser um homossexual.

A homossexualidade (preferência pelo mesmo sexo) não é mais aceita como

desvio sexual ou anormalidade, antes correspondendo a um modo de

expressão sexual alternativa. Exceção deve ser feita em relação à forma

egodistônica (CID-10-F 66.1), em que o homossexual mostra se descontente

com sua situação e procura a terapia, quer para superar a insatisfação, quer para modificar padrão de comportamento. (DEL-CAMPO, 2009:50).

Diante da análise desses livros fica evidente que todos eles ainda estão numa

elaboração arcaica e desconectada dos debates atuais, pois a homossexualidade e

lesbianidade não são mais consideradas doenças e, por isso, o sufixo ismo já não os

cabe. Estamos diante, portanto, de uma sociedade cada vez mais doente de preconceitos

seja ela de ordem de gênero patriarcal, religiosa e de falta de informação e educação,

precisamos rever tais conceitos e fazer uma crítica concisa a essas leituras que já não se

encaixam no século XXI, portanto, nesse caso, é de suma importância tratarmos essas

questões e fomentar as discussões que estão sendo feitas no campo feminista e queer

que trazem contribuições fundamentais para trabalharmos de forma contundente tais

críticas.

NOVOS FEMINISMOS E A TEORIA QUEER

Em tempo de discussões sobre as despatologização das identidades trans é mister

falar da importância dos novos feminismos nesse campo. Concordando com Ella Sohat

quando cunhou o termo feminismo no plural, essa autora, assim como outras, nos

chama a atenção para:

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[…] Ver o feminismo como área de pesquisa de genealogias múltiplas. Essa

formulação vai a contrapelo de uma narrativa feminista eurocêntrica que

simplesmente situa a emergência do feminismo na Europa e nos Estados

Unidos. Também vai a contrapelo de uma narrativa difusionista iluminista

que só consegue ver o feminismo no interior do projeto de modernidade.

(MALUF E COSTA, 2001:159).

É exatamente nesse sentido que sabemos das discussões acirradas dentro dos

movimentos feministas.

Sem dúvida, essa tarefa seria bem menos problemática para todas nós se o

pensamento feminista não fosse uma arena de tensões, onde se embatem

posicionamentos plurais e polêmicos, quando não conflitantes. É claro que

essa diversidade de olhares e de posturas certamente enriquece nossos

discursos críticos sobre a sociedade e a ciência, como uma de suas

expressões; contudo, as divergências entre feministas tornam impossível

falarmos de “epistemologia feminista” no singular. (SARDENBERG,

2002:98).

Nessa linha de pensamento em pluralizar o feminismo que me remeto a Gayle

Rubin em Pensando o Sexo, quando denuncia a forma como o feminismo lidava

inadequadamente com as práticas sexuais não convencionais.

O feminismo sempre foi vitalmente interessado no sexo, mas houve duas correntes do pensamento feminista sobre a matéria. Uma tendência tem

criticado as restrições aos comportamentos sexuais das mulheres e

denunciado os custos altos impostos à mulher por ser sexualmente ativa. Esta

tradição do pensamento sexual feminista tem conclamado a libertação sexual que funcionaria para mulheres e homens. A segunda tendência considerou a

liberação de ser inerentemente uma mera extensão do privilégio masculino.

Essa tradição ressoa como os discursos anti-sexuais e conservadores. Com o

advento anti-pornografia, atingiu hegemonia temporária sobre a análise

feminista. (RUBIN, 1984:35).

De fato a resistência do movimento feminista sofreu inúmeras críticas e ao

deixar em aberto uma lacuna, deu espaço para a chamada Teoria Queer que foi

influenciada por Michel Foucault, Gilles Deleuze e Jacques Derrida, pelas suas análises

do poder, do discurso e desconstrução. A Teoria Queer acaba por se recusar a classificar

os indivíduos de forma universal como: homem, mulher, homossexual e heterossexual,

pois as diferenças de comportamentos sexuais são muitas e não se encerram em termos

binários, fazendo uma ampla discussão para as possibilidades de gênero não os

universalizando também, mas trazendo-os para o bojo da sociedade, informando a

existência destes enquanto indivíduos dentro um universo sexista e heteronormativo, ou

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seja, “as minorias sexuais tornam-se multidões. O monstro sexual que tem por nome

multidão torna-se queer”. (PRECIADO, 2001:14).

A crítica radical do sujeito unitário do feminismo, colonial, branco, proveniente da classe média alta e dessexualizado foi posta em marcha. Se as

multidões queer são pós-feministas não é porque desejam ou podem atuar

sem o feminismo. Pelo contrário, elas são o resultado de um confronto

reflexivo do feminismo com as diferenças que o feminismo apagou em proveito de um sujeito político “mulher” hegemônico e heterocêntrico.(Id.

Ibidem:17).

Voltando a Rubin, essa autora é categórica ao dizer que o feminismo não deveria

ser o campo privilegiado para trabalhar a sexualidade e que esta deveria ser distinta do

gênero, mas apesar das criticas que faz ao movimento feminista, ela fala dessa arena de

tensões e a sua contribuição.

A liberação sexual foi e ainda é um dos objetivos feministas. O movimento de mulheres talvez tenha produzido parte do mais retrógrado pensamento

sexual lado a lado com o vaticano. Mas também produziu uma defesa

excitante, inovadora e articulada do prazer sexual da justiça erótica. Este

feminismo “pró-sexo” tem sido encabeçado por lésbicas cuja sexualidade não se conforma ao modelos de pureza (primariamente lésbicas sadomasoquistas

e lésbicas do modelo sapatão/ feminina), por heterossexuais sem remorso, e

por mulheres que aderiram ao feminismo radical ai invés de versões

revisionistas de celebração da feminilidade, que se tornaram tão comuns.

(RUBIN, 1984:37).

A autora chama a atenção para a Medicina e a Psiquiatria que multiplicaram as

categorias de má conduta sexual (Id.Ibidem:14), assim como chamamos a atenção para

a Medicina Legal. Ela faz uma análise trazendo como exemplo uma pirâmide para

explicar a estratificação sexual para assim poder contestá-las, onde em seu topo

encontram-se:

Heterossexuais maritais e reprodutivos estão sozinhos no topo da pirâmide erótica. Clamando um pouco abaixo se encontram heterossexuais

monogâmicos não casados em relação conjugal, seguidos pela maioria de

heterossexuais. O sexo solitário flutua ambiguamente[...]Casais lésbicos e

gays estáveis, de longa duração, estão no limite da respeitabilidade, mas sapatões de bar e homens gays promíscuos estão pairando um pouco acima

do limite daqueles grupos que estão na base da pirâmide. As castas sexuais

mais desprezadas correntemente incluem transexuais, travestis, fetichistas,

sadomasoquistas, trabalhadores do sexo como as prostitutas e modelos

pornográficos, e abaixo de todos, aqueles cujo erostismo transgride as

fronteiras geracionais. (Id. Ibidem, 13:14).

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Retorno a Preciado para citar a sua explanação sobre o que busca a multidão

queer:

A noção de multidão queer se opõe decididamente àquela de “diferença sexual”, sinônimo da principal clivagem da opressão (transcultural, trans-

histórica), que revelaria uma diferença de natureza e que deveria estruturar a

ação política. A noção de multidão queer se opõe decididamente àquela de

“diferença sexual”... Não existe diferença sexual, mas uma multidão de

diferenças, uma transversalidade de relações de poder, uma diversidade de

potências de vida. Essas diferenças não são “representáveis” porque são

“monstruosas” e colocam em questão, por esse motivo, os regimes de

representação política, mas também os sistemas de produção de saberes

científicos dos “normais”. (PRECIADO, 2011:18).

É fundamental trazer para essa discussão o pensamento de Judith Butler e sua

teorização sobre a identidade performativa que têm sido descritas como indispensáveis

ao feminismo pós-moderno, afirmando que há modos de construir a nossa identidade

que irá perturbar a quem interessa manter oposições existentes: macho/fêmea,

masculino/feminino, gay/hétero e outras possibilidades, para ela todo gênero é, por

definição, não natural. Não há uma relação necessária entre o corpo de alguém e o seu

gênero.

É possível ser uma fêmea “masculina” ou um macho “feminino” e, também,

outras possibilidades. Nessa perspectiva ela faz uma crítica ao feminismo que não

amplia o seu campo de visão que acaba por essencializar como forma de estratégia

política. Critica também a ciência que tem como verdade e matriz a heterossexualidade.

As relações de poder que permeiam as ciências biológicas não são facilmente redutíveis, e a aliança médico-legal que emergiu na Europa do século XIX

gerou ficções categóricas que não poderiam ser antecipadas. A própria

complexidade do mapa discursivo que constrói o gênero parece sustentar a

promessa de uma convergência inopinada e generativa dessas estruturas

discursivas e reguladoras. Se as ficções reguladoras do sexo e do gênero são, elas próprias, lugares de significado multiplamente contestado, então a

própria multiplicidade de sua construção oferece a possibilidade de uma

ruptura de sua postulação unívoca. (BUTLER, 2003:58)

O conceito central no pensamento de Butler é direcionado a performatividade

que ela explica significar uma prática repetitiva (reiterativa) e citacional (que

cita/nomeia), como exemplo: de tanto repetir uma forma de comportamento e um nome

que associa aquela que tem vagina ao nome de menina, acaba-se criando a feminilidade

e o mesmo ocorre com os meninos e essas práticas reprimem as diversas possibilidades.

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A linguagem e o discurso é que “fazem” o gênero. Não existe um “eu” fora

da linguagem, uma vez que a identidade é uma prática significante, e os

sujeitos culturalmente inteligíveis são efeitos e não causas dos discursos que

ocultam a sua atividade. É nesse sentido que a identidade de gênero é

performativa. (SALIH, 2012:91).

Portanto, essas discussões demonstram o quanto à ciência é autoritária e

arbitrária ao trazer a heterossexualidade como algo natural, pronta, finalizada e perfeita

e qualquer pensamento que fira a sua integridade é considerado anormal, ocasionando

ruptura dos padrões desejáveis. Então é necessário que se faça uma crítica a essa ciência

excludente e preconceituosa, como bem ressaltou Edgar Morin que além de citar todas

as virtudes e importância da ciência para a humanidade, também destaca o seu caráter

duplo: “essa ciência libertadora traz, ao mesmo tempo, possibilidades terríveis de

subjugação. Esse conhecimento vivo é o mesmo que produziu a ameaça do

aniquilamento da humanidade”. (MORIN, 2008:16).

Feyerabend faz uma discussão da necessidade de se questionar a ciência, seus

métodos e suas aplicações.

A unanimidade pode indicar uma redução de consciência crítica: a crítica permanece fraca enquanto apenas uma opinião está sendo considerada. Esta é

a razão pela qual uma unanimidade que depende apenas de considerações

“internas” acaba sendo errônea. (FEYERABEND, 2011:110)

Seguindo esse raciocínio encerramos nosso artigo, ainda preocupadas da mesma

maneira como no seu início, porém acreditando que a partir dele e outros tantos que

possam aparecer, que de alguma maneira consigamos monitorar, propondo uma

discussão para que esses livros de Medicina Legal possam ser reestruturados e

dialoguem com outras matrizes teóricas correntes no século XXI, onde não dá mais para

conceber preconceitos e qualquer tipo de discriminação.

REFERÊNCIAS

BINA, Ricardo. Medicina Legal. São Paulo: Saraiva, 2009.

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero – feminismo e subversão da identidade. São

Paulo: Civilização Brasileira, 2003.

DEL-CAMPO, Eduardo Roberto Alcântara. Medicina Legal. São Paulo: Saraiva, 2005.

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DEL CAMPO, Eduardo Roberto Alcântara. Medicina Legal II. São Paulo: Saraiva

2009.

FÁVERO, Flamínio. Medicina Legal: Introdução ao estudo da medicina legal,

identidade, traumatologia. Belo Horizonte: Villa Rica, 1991.

FRANÇA, Genival Veloso de. Medicina Legal. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan,

2011.

FEYERABEND, P. Parte II – A ciência em uma sociedade livre. In.: _____. A ciência

em uma sociedade livre. São Paulo: UNESP, 2011.

MALUF, Sonia; COSTA, Claudia. Feminismo fora do centro: Entrevista com Ella

Sohat. Estudos Feministas, N. 01, 2001.

MARTINS, Celso. Medicina Legal. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.

MORIN, E. Parte I- Ciência com consciência. In.:_____. Ciência com consciência. Rio

de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.

PRECIADO, Beatriz. Multidões queer: notas para uma política dos “anormais”. Estudos

Feministas, Florianópolis, 19(1):312, janeiro-abril/2011 - disponível em:

http://www.ieg.ufsc.br/admin/downloads/artigos/27062011-060716p-1120-preciado.pdf

RUBIN, Gayle. Thinking sex: notes for a radical theory of the Politics of sexuality. In

VANCE, Carole. Pleasure and danger: exploring female sexuality. Pandora Press,

(1984). (Há uma tradução para o português disponível na internet: Pensando o sexo:

notas para uma teoria Radical das Políticas da Sexualidade, por Felipe B.M. Fernandes).

SALIH, Sara. Judith Butler e a teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

SARDENBERG, Cecília M. B. Da crítica feminista à ciência a uma ciência feminista?

In: Sardenberg, Cecília Maria. Bacellar. Feminismo, ciência e tecnologia. Salvador:

Redor. (Coleção Bahiana). 2002.