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1
PRISCILA AKEMI BELTRAME
TUTELA PENAL DOS DIREITOS HUMANOS E
O EXPANSIONISMO PUNITIVO
Tese de Doutorado
Orientador: Professor Titular Dr. Miguel Reale Jnior
Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo
So Paulo
2015
2
PRISCILA AKEMI BELTRAME
TUTELA PENAL DOS DIREITOS HUMANOS E
O EXPANSIONISMO PUNITIVO
Tese apresentada Banca Examinadora do
Programa de Ps-Graduao em Direito, da
Faculdade de Direito da Universidade de
So Paulo, como exigncia parcial para
obteno do ttulo de Doutor em Direito, na
rea de concentrao de Direito Penal, sob a
orientao do Professor Titular Dr. Miguel
Reale Jnior.
Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo
So Paulo
2015
3
Banca Examinadora:
_______________________________________________________
_______________________________________________________
_______________________________________________________
_______________________________________________________
_______________________________________________________
4
memria de meu pai, Deonil Beltrame.
5
AGRADECIMENTOS
Agradeo ao Prof. Miguel Reale Jnior, meu orientador, mas acima de tudo um
professor e mestre das cincias jurdicas e humanas, generoso com seu conhecimento e
exigente na mesma medida, por sua confiana, disposio e interesse pela luta travada e
compartilhada pelo tema deste trabalho.
Agradeo a professores que dialogaram e acrescentaram conhecimentos,
reflexes, referncias, especialmente aos relevantes comentrios dos membros da banca de
qualificao: Prof. Renato Jorge Mello da Silveira, Prof. Alamiro Velludo Salvador Netto.
Tambm aos demais professores e colegas de convvio nas aulas da ps-graduao e
acadmico, Prof. Srgio Salomo Shecaira, Prof. Xabier Arana, Prof. Luciano Anderson de
Sousa, Prof. Masato Ninomiya, Prof. Eduardo Saad-Diniz, Joo Daniel Rassi, Profa. Deisy
Ventura, Ingrid Leo, Fbia Veoso, Anne-Dorothee Slovic e Iaki Txoperenac.
Agradeo aos colegas de profisso e amigos que me brindaram com sua
generosidade, convivncia, reflexes e apoio: Carlos Frederico Barbosa Bentivegna
(Cacaio), Paula Camargo, Rafael Mendes Gomes, Rodrigo Vesterman Alcalde, Maria Laura
Rossi, Vitor Andr Lopes da Cruz, Astrid Monteiro de Carvalho Guimares de Lima Rocha,
Melissa Borja, Valquiria Santos Gaudencio da Silva, Ruan Cavalcante e Patrcia Arnaud.
De forma muito especial, por motivos mais pessoais do que acadmicos,
agradeo Maria Lucia Ribeiro Avila Maronna, meus irmos, Rodrigo Jos Antonio
Beltrame, dedicado leitor, Fernando Antonio Beltrame, minhas quase-irms Mariana Avila
Maronna, Aline da Rocha Jarozewski e Maria Helena Guedes Crespo. Agradeo meu esteio,
uma luz que ilumina minha vida e minhas condies para realizar estre trabalho, minha me,
Maria Itiko Beltrame.
Agradeo Cristiano Avila Maronna, companheiro nessa jornada, e a nossos
filhos Ceclia e Antonio.
6
SUMRIO
INTRODUO 11
CAPTULO 1 EXPANSIONISMO PENAL E DIREITOS
HUMANOS 20
1.1 O direito penal na globalizao 20
1.1.1 Globalizao e ampliao do campo penal 20
1.1.2 Constelao de riscos e crise do direito penal 25
1.2. Criminalidade no cenrio global 31
1.2.1. Crimes globais e enfrentamentos internacionais 31
1.2.2. Tendncias a respeito: internacionalizao e interlegalidade 36
1.3. Conformao de um direito penal comum 41
1.3.1. Extraterritorialidade, direito penal e competncias
compartilhadas 41
1.3.2. Consenso na poltica criminal 46
1.4. Expansionismo Penal e Direitos Humanos 52
1.4.1 Direito Penal e Direitos Humanos 52
1.4.2 Valores Penais Humanos 59
1.4.3.Expansionismo, Internacionalizao e Cincia do direito penal 63
CAPTULO 2 DIREITO PENAL INTERNACIONAL -
FORMAO 69
2.1 Conceito 69
2.2 Rumo a um consenso 71
2.3 Dificuldades de harmonizao 73
2.4 Afirmao Histrica dos Tribunais Militares, Penais Internacionais
Ad Hoc e Mistos 76
7
2.4.1 Tribunais Internacionais 76
a) Primeiros Antecedentes e Nuremberg: Tribunal Militar
Internacional 76
b) Tquio: Tribunal Militar do Extremo Oriente 80
c) Lei n 10 do Conselho de Controle Aliado 81
2.4.2 Tribunais Ad Hoc 83
a) Iugoslvia: Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslvia 83
b) Ruanda: Tribunal Penal Internacional para Ruanda 87
2.4.3. Tribunais Mistos Ad Hoc 91
a) Serra Leoa: Tribunal Especial para Serra Leoa 91
b) Timor Leste: Sesso Especial dos Crimes Graves para o
Timor Leste 92
c) Camboja Cmaras Extraordinrias no Tribunal do Camboja 93
d) Kosovo: Tribunal da Guerra do Kosovo e Crimes tnicos 93
e) Lbano: Tribunal Especial para o Lbano ou Tribunal Hariri 93
2.5 Tribunal Penal Internacional 95
2.5.1 Breve Histrico 95
2.5.2 O princpio da complementaridade das jurisdies e sua evoluo 98
2.6 Justia de Transio 103
2.6.1 Conceito 103
2.6.2 Direito Verdade, Anistia e o Direito Penal para a Justia de
Transio 108
2.6.3 Justia de Transio e a Conteno da Perspectiva Punitivista 118
2.7 O sistema latino-americano de proteo de direitos humanos e o
direito penal internacional 122
8
CAPTULO 3 DIREITO PENAL INTERNACIONAL
ELEMENTOS 130
3.1. Crimes Internacionais vs. Crimes de Direito Internacional 130
3.1.1 Aspectos Gerais e Definio 130
3.1.2 Crimes contra o direito internacional 135
3.1.3 Conflito na consolidao do direito penal internacional 137
3.2 O direito penal internacional e suas fontes 140
3.2.1 A questo da norma costumeira em direito penal internacional 140
3.2.2 Princpios Gerais de Direito em Direito Penal Internacional 149
3.3 O TPI e a interpretao das normas de direito penal
internacional 156
3.3.1 Interpretao no direito penal internacional 156
3.3.2 O direito penal internacional e o recurso analogia 158
3.4. Principais Elementos de Direito Penal Internacional 162
3.4.1 A evoluo do conceito de responsabilidade individual em DPI 162
3.4.2 A crtica aos elementos do direito penal internacional 166
a) Norma costumeira pro societate 166
b) Princpio da Legalidade 168
c) O DPI e o Ius Cogens 171
d) Jurisdio Universal 173
3.5 O direito penal internacional e a teoria do bem jurdico 181
3.5.1 Aspectos Gerais do Bem Jurdico em DPI 181
3.5.2 Direitos Humanos no so bens jurdicos 184
3.5.3 A problemtica da teoria do bem jurdico em relao aos crimes
do direito penal internacional 188
3.5.4 Expanso do direito penal e enfraquecimento da teoria do
bem jurdico 194
9
CAPTULO 4 - O DIREITO DE PUNIR INTERNACIONALMENTE E
SUA CRTICA 198
4.1 Premissas do Direito de Punir Internacionalmente 198
4.1.1. Consideraes sobre a origem do direito de punir 198
4.1.2 Expansionismo e o DPI das Cortes 201
4.2 Tendncias Crticas ao Expansionismo Penal do DPI 203
4.2.1 Entre direitos e perplexidades 204
4.2.2 Liberalismo e o DPI: justia substantiva e assimetrias 209
4.2.3 Responsabilidade individual vs. Contexto Scio-Poltico 215
4.2.4 Efeito preventivo dos julgamentos internacionais 217
4.3 Fraturas Expostas do DPI 223
4.3.1 Direito Universal vs. Moral Universal 223
4.3.2 Objetivos e Realizaes: ativismo judicial 226
4.3.3 O brao penal dos direitos humanos 232
CONCLUSO 239
RESUMO 248
ABSTRACT 249
RESUM 239
BIBLIOGRAFIA
2391
10
Que tempos modernos chegam,
Depois de to dura prova?
Quem vai saber, no futuro,
De que alma vai ser feita
Essa humanidade nova?
(Ceclia Meireles, Romanceiro da
Inconfidncia, Romance LIX da reflexo
dos justos)
11
LISTA DE ABREVIATURAS
CNU Carta das Naes Unidas
CDI Comisso de Direito Internacional
CEDH Corte Europeia de Direitos Humanos
CICGLH Conveno sobre a Imprescritibilidade de
Crimes de Guerra e Lesa Humanidade
CIDFP Conveno Interamericana sobre o
Desaparecimento Forado de Pessoas
CIDH Conveno Americana de Direitos
Humanos
CIJ Corte Internacional de Justia
ComIDH Comisso Interamericana de Direitos
Humanos
CorteIDH Corte Interamericana de Direitos
Humanos
DPI Direito Penal Internacional
ETPI Estatuto do Tribunal Penal Internacional
ONU Organizao das Naes Unidas
TEDH Tribunal Europeu de Direitos Humanos
TMI Tribunal Militar Internacional (Tribunal
de Nuremberg)
TMIEO Tribunal Militar Internacional para o
Extremo Oriente (Tribunal de Tquio)
TPI Tribunal Penal Internacional
TPII Tribunal Penal Internacional para a Ex-
Iugoslvia
TPIR Tribunal Penal Internacional para Ruanda
12
INTRODUO
O trabalho em torno do direito penal internacional nos ltimos 20 anos promoveu
essa recente rea a um novo patamar, que vinha embrionrio desde a II Guerra Mundial e os
Tribunais Militares Internacionais, mas que recentemente ganhou grande impulso pela
importncia da jurisprudncia dos tribunais ad hoc, seus estatutos, e a aprovao do Estatuto
de Roma do Tribunal Penal Internacional, que entrou em vigor dia 1 de julho de 2002 como
o primeiro tribunal penal internacional permanente na histria.
Paralelamente a este movimento, testemunhamos a expanso do direito penal
adaptado proteo dos direitos humanos, em alta carga diante da gravidade dos fatos sob a
caracterizao de crimes de direito internacional. Nosso ponto de partida o de que os
direitos humanos servem como catalisadores para a tendncia expansiva do direito penal,
especialmente dentro do direito penal internacional, integrando valores comuns da
humanidade, globalizao e represso por meio de novas instituies globais.
Nesta nova complexidade normativa, os Estados j no podem mais se proteger
atrs das regras de soberania em face dos mais graves crimes, assim como o direito penal
tem suas garantias flexibilizadas diante dos ditames da justia substancial. O mbito
internacional passou a conduzir a convergncia discursiva e simblica de dois ramos
jurdicos distintos: o direito penal e os direitos humanos, numa tendncia comum da lei de
super-prometer1 e o excesso legislativo no mbito internacional, alm das obrigaes de
processar criminalmente que, num contexto de instabilidade poltica, tende a reduzir as
chances de paz, estabilidade e justia2. Por outro lado, tambm pode-se defender que os
mecanismos legais internacionais forjam a construo de ganhos democrticos internamente
e que o direito internacional e as organizaes internacionais seriam os veculos primrios
para a afirmao do corpo normativo de uma comunidade e de legitimao coletiva, por
1 KENNEDY, David. The dark sides of virtue: reassessing international humanitarism. Nova Jersey, Princeton
Univ. Press, 1999, p. 1073. No original, the laws own tendency to over-promise. 2 HELFER, Laurence R. Forum Shopping for Human Rights, University of Pensylvania Law Review, 148(2),
285, 1999. HELFER, Laurence R. Overlegalizing Human Rights: International Relations Theory of the
Commonwealth Caribbean Backlash Against Human Rights Regimes, Columbia Law Review, 102:1832, p.
44, 2002.
13
meio do qual promove-se um processo legal transnacional que fincar razes nas instituies
e prticas domsticas.
O dilogo estabelecido entre o direito penal e os direitos humanos, mediado no
contexto escolhido deste trabalho, do direito internacional, leva a uma relao desarmnica,
tendo como efeito a mudana da prtica local, geralmente orientada pela flexibilizao das
garantias clssicas para a realizao da justia substancial. Trataremos do processo de
construo e afirmao do direito penal internacional e da captura dos instrumentos de
direito penal pelo discurso de proteo dos direitos humanos para chegarmos num complexo
normativo disfuncional, numa integrao artificial e num incoerente de proteo de valores.
I
O primeiro captulo dedicado avaliao das condies presentes para a
expanso do direito penal e a aproximao do direito penal com os direitos humanos, tanto
em termos tericos quanto reais, que abrir caminho para os captulos seguintes sobre crimes
contra a humanidade e a criminalizao dos direitos humanos. Para tanto, refletiremos sobre
os desafios postos ao direito penal, crises relacionadas sua capacidade de gesto das novas
categorias de crime, suas tendncias expansivas e sua organizao em torno de valores
universais. O segundo captulo percorre os momentos histricos e tericos de afirmao do
direito penal internacional, tratando tambm da justia de transio como uma possvel
perspectiva para si. Aprofundamos os institutos do direito penal internacional no terceiro
captulo, assim como as discusses sobre as fontes de direito penal internacional, a base
costumeira em face do princpio da legalidade da norma penal, as condies e precaues
em torno da justia universal e afirmao do ius cogens internacional penal. O ltimo
captulo aborda a difcil harmonizao entre os pressupostos expansivos dos direitos
humanos e a natureza contentora intrnseca do direito penal.
Antes, porm, h que se fazer uma breve sistematizao do que se entende por
expanso do direito penal e do que se entende por direitos humanos. De modo sucinto, por
direitos humanos, entendemos ser uma potente conveno terminolgica, de cunho poltico-
jurdico, como caminho para a construo da dignidade humana, baseada na liberdade (plano
14
cultural), fraternidade (plano poltico) e igualdade (plano social)3. H concepes legalistas4,
outras relativas capacidade de reivindicaes5, outras ontolgicas6: todos so titulares de
direitos humanos pelo fato de serem seres-humanos (direitos de igualdade, que todos tm
por serem igualmente seres-humanos), e, portanto, inalienveis e universais, incluindo o
sujeito e a norma como parte do conceito de direitos humanos. Nesse sentido, os valores
inscritos pelos direitos humanos iluminam todo o ordenamento jurdico ao mesmo tempo
que representam compromissos assumidos pelo Estado brasileiro perante a ordem
internacional7, como inscrito na Declarao Universal dos Direitos Humanos (1948), art. 28,
ao afirmar que toda pessoa tem direito a que reine, no plano social e no plano internacional,
uma ordem capaz de tornar plenamente efetivos os direitos e as liberdades enunciadas na
declarao.
Por expanso do direito penal, entendemos o fenmeno assinalado por SILVA
SNCHEZ8 de apario de novos tipos penais em diversos ordenamentos jurdicos, uma
expanso no apenas quantitativa (novos tipos penais e agravao das penas), mas
essencialmente qualitativa (reinterpretao das garantias clssicas, acomodaes teoria do
bem jurdico, flexibilizao das regras de imputao e relativizao dos princpios poltico-
criminais). O autor defende que a expanso ocorra segundo critrios racionais, com base na
demanda popular de mais proteo, ao contrrio do uso simblico e populista da represso
penal. A expanso, em decorrncia disso, abrange reflexamente a globalizao e a integrao
3 HERRERA FLORES, Joaqun. Cultura y derechos humanos: la construccin de los espacios culturales. In
MARTNEZ, Alejandro Rosillo (et al., eds.). Teoria Crtica dos Direitos Humanos no Sc. XXI, Porto Alegre:
Edipucrs, 2008, pp. 262 ss. 4 BRYSK, Alisson. Globalization and Human Rights, Berkeley, CA: University of California Press, 2002, p.
3. 5 GOODALE, Mark. The practice of human rights. Tracking law between the global and the local. Cambridge:
Cambridge Univ. Press, 2003, p. 6. 6 DONELLY, Jack. Universal Human Rights in Theory and Practice. Ithaca: Cornell Univ. Press, 2003, p. 10.
De maneira semelhante, VERGS RAMREZ, Salvador. Derechos humanos: fundamentacin. Madri: Tecnos,
1997. 7 COMPARATO entende que a tendncia predominante a de se considerar que as normas internacionais de
direitos humanos, pelo fato de exprimirem uma conscincia tica universal, esto acima dos ordenamentos
jurdicos de cada Estado e que a proteo da dignidade humana a finalidade ltima e razo de ser de todo o
sistema jurdico. O sistema de direitos humanos de duas ordens para o autor: conforme digam respeito aos
valores ticos supremos ou lgica estrutural do conjunto. Em todo caso, elas do coeso ao sistema jurdico
como um todo e permitem a correo de rumos em caso de conflitos internos ao sistema ou transformaes
externas. COMPARATO, Fbio Konder. A afirmao histrica dos direitos humanos. So Paulo: Ed. Saraiva,
1999, pp. 48-49. 8 SILVA SNCHEZ, Jess-Mara. La expansin del derecho penal. Aspectos de la poltica criminal en las
sociedades postindustriales, Civitas, 2 ed., 2001. A expanso tema de discusso por diversos autores, dentro
do direito penal de interveno, de Winfred Hassemer, ou dos autores da Escola de Frankfurt (Naucke,
Lnderssen, Albrecht e Prittwitz), alm dos autores que defendem a necessidade de interveno criminal
referente criminalidade econmica, como Schnemann, Tiedemann, entre outros.
15
supranacional relacionadas ao direito penal na rea dos direitos humanos. Assim, trata-se de
promover progressivamente as modificaes dos critrios de aplicao da lei penal no
espao, a indicar a crise do princpio de territorialidade, frente ao qual se pretende abrir
novos mbitos de incidncia do princpio de proteo e ao de justia universal9.
O movimento do direito penal em direo ao campo internacional sofre a
influncia de cinco maiores perspectivas, tratadas ao longo deste primeiro captulo:
globalizao econmica, aspectos relacionados sociedade do risco, construo de uma
comunidade universal em torno de valores protegidos pelos direitos humanos, coordenao
de instituies supranacionais e a prpria reviso por que passa o direito penal em direo
sua expanso. O equacionamento destes vetores modular o direito penal do futuro, para
alguns autores, com reduo das garantiras e ampliao do alcance das normas penais, para
outros um caos jurdico, uma maior integrao entre as naes, colaborando para a
construo de um sistema protetivo de direitos humanos que contribua para a prpria
emergncia de um direito penal supranacional.
II
O direito penal, como manifestao repressiva do poder estatal, tem apresentado,
mais modernamente, tendncia de avano para o campo internacional, especialmente na rea
dos direitos humanos. A reboque do fenmeno da mundializao das relaes sociais,
econmicas, culturais, o complexo jurdico espraia-se para alm dos domnios do estado-
nao e conforma uma nova razo jurdico-penal que justifique a atuao do assim chamado
direito penal internacional.
A criao dos espaos jurdico-penais internacionais deve ser entendida nessa
perspectiva das inter-influncias, ao mesmo tempo em que os mecanismos de justia de
transio, as cortes internacionais penais, a cooperao internacional em matria penal e as
formas de internacionalizao do direito passam a compor este cenrio. Atualmente
considera-se a dupla dimenso na rbita do direito internacional pblico a construir o espao
de incidncia do direito penal internacional: de um lado, a comunidade internacional
composta por Estados soberanos e de outro, a comunidade internacional como grupo social
9 SILVA SNCHEZ, Jess-Mara. La expansin del derecho penal: aspectos de la poltica criminal en las
sociedades postindustriales. Madri: Civitas, 2 ed., 2001, nota 255, pp. 101-102.
16
universal com interesses prprios10, trafegando o presente tema de um lado a outro. No
concerto entre os Estados, a aplicao das normas de direito penal internacional, a adeso
aos tratados e a cooperao para efetivao das normas, favorece a emergncia de valores
universais de proteo internacional e influencia tambm a atuao do direito penal para a
garantia do objetivo comum, a manuteno da ordem social e da paz.
Em nossa viso, o fortalecimento dos direitos humanos no passa pela
criminalizao das condutas, com apoio nas teorias criminolgicas que criticam o uso do
direito penal como parte do aparato de segurana do Estado. Da mesma forma, os direitos
humanos e o direito penal tambm atuam em sinergia, comunicando entre si suas foras e
seus princpios, no que CARVALHO11 expe como a reversibilidade do discurso e inverso
ideolgica do sentido histrico dos direitos humanos no campo das prticas punitivas.
O percurso do captulo demonstra que a globalizao econmica favorece a
integrao dos Estados na construo de uma tica mundial, veiculada pelo discurso dos
direitos humanos. De maneira concomitante, as prticas criminais beneficiam-se da maior
integrao propiciada pela globalizao e interconexo das sociedades para organizarem
categorias de crimes ao redor do mundo. A comunidade de valores e a eroso da capacidade
do Estado em enfrentar o problema da criminalidade transnacional, ressaltado pela teoria da
sociedade do risco, destaca um novo papel ao direito penal: a busca de novos fundamentos
de existncia, novas categorias de bens jurdicos, orientando sua expanso.
A internacionalizao da interveno penal impacta tanto o edifcio jurdico que
um dos atributos fundamentais do Estado, o direito de punir, manifestao direta da
soberania, transferido outra jurisdio supranacional, a jurisdio internacional. Assim,
a definio de crime internacional e crime contra a humanidade essencialmente a razo de
ser das Cortes Internacionais Penais e do Tribunal Internacional Penal, em ltima instncia.
Conforme adverte DELMAS-MARTY12, a proteo dos direitos humanos marca,
primeiramente, os limites do poder de punir dos Estados (recurso de incriminar, mas tambm
10 GIL GIL, Alicia. Derecho penal internacional. Madri: Tecnos, 1999, p. 34. 11 CARVALHO, Salo de. Criminologia, Garantismo e Teoria Crtica dos Direitos Humanos. In:
MARTNEZ, Alejandro Rosillo (et al., eds.). Teoria crtica dos direitos humanos no sculo XXI, Porto Alegre:
Edipucrs, 2008, pp. 494-5. 12 DELMAS-MARTY, Mireille; CASSESE, Antonio. Crimes Internacionais e Jurisdies Internacionais.
Barueri: Ed. Manole, 2004, p. 306.
17
condio de instaurao dos processos, da produo da condenao, da escolha e execuo
das penas), logo os limites ao movimento de penalizao.
Pelo quanto exposto, identifica-se a necessidade de se chegar a uma abordagem
estrutural dos elementos que compem o direito penal internacional, a partir do exame dos
diversos mecanismos criados no corpo da proteo internacional dos direitos humanos,
especialmente para processamento e punio dos crimes contra a humanidade. Trata-se de
uma abordagem crtica aplicada dos pressupostos de afirmao dos direitos humanos, dando
nova perspectiva de recurso ao direito penal no campo das relaes internacionais. Essa
construo corre em paralelo preocupao de que a proteo dos direitos humanos e o
consequente expansionismo punitivo contribuiria para o processo de tornar o direito mais
autoritrio, com a respectiva, gradual e constante reduo do mbito de incidncia das
liberdades, influenciando o direito penal nacional ao recepcionar as tendncias das cortes
internacionais. O campo das garantias instrumentaliza-se consoante o programa de
afirmao dos direitos humanos.
III
O programa de afirmao do direito penal internacional percorre os seguintes
elementos: a) fortalecimento dos valores comuns da humanidade e consolidao na norma a
funo preventiva de crimes; b) fortalecimento das condies para a paz por meio da
aplicao das penas (funo retributiva) para responsabilizar e punir os violadores das regras
da humanidade, reduzindo a propenso social vingana privada; c) obrigaes positivos
dos Estados de reparao das violaes sofridas pelas vtimas, por meio de indenizaes
pelos danos e prejuzos experimentados; d) produo de memria dos fatos julgados, fazendo
dos relatos uma parte da realidade social13.
Apontaremos neste trabalho as fragilidades de cada um destes elementos,
possibilitando a viso em perspectiva de um tema conflituoso. Questionamos a existncia da
funo preventiva da norma, quando inexiste a percepo ampla de que os crimes de direito
internacional sero de fato julgados internacionalmente, sendo muito mais poderoso o
13 Conforme adaptado dos objetivos de orientao valorativa do direito penal internacional, apresentado por
BASSIOUNI, M. Cherif. International Criminal Justice in the Age of Globalization, International Criminal
Law: Quo Vadis, AIDP, n. 19, 2004, p. 153.
18
contexto local que determina a comisso dos graves crimes do que perspectiva de aplicao
da norma internacional. No mais, os julgamentos tambm mostraram outra face da aplicao
do direito penal internacional: falta de sensibilidade para os argumentos jurdicos das
defesas, flexibilizao das garantias diante da aplicao da norma substantiva de direitos
humanos, contraposio (inexistente) entre direitos humanos e garantias penais e processuais
penais, aplicao seletiva da justia.
IV
Ressaltamos que o direito penal e sua forma de atuar, como o concebemos,
uma ferramenta impotente para enfrentar o crime internacional, e que o direito penal
internacional como est, alm de no se mostrar eficaz, prejudica os marcos civilizatrios
que o direito penal alcanou por meio dos princpios da mnima interveno,
fragmentaridade e de ultima ratio. Portanto, tambm aqui, torna-se fcil o discurso do
populismo antigarantista, no qual as garantias fundamentais so facilmente reduzidas a um
mnimo em prol da eficincia da punio, ironicamente sob o fundamento de proteo dos
direitos humanos.
Alertamos que a expanso do direito penal no se faz apenas pela ampliao
formulao de novos delitos ou de bens jurdicos, mas sobretudo pela reduo de princpios,
de condies para a imputao objetiva e subjetiva, que no se conforma mais com o papel
tradicional da busca justa e exemplar pela responsabilidade individual14. Conquanto at
agora o direito penal seja concebido como uma cincia nacional15, como expresso do poder
de soberania sobre seus cidados, novas perspectivas e rearranjos internacionais podem
alterar esta concepo, catapultados sobretudo pela afirmao institucional dos direitos
humanos.
14 PRITTWITZ, Cornelius. A funo do direito penal na sociedade globalizada do risco defesa de um papel
necessariamente modesto. In: AMBOS, Kai; BHN, Mara Laura (coords.). Desenvolvimentos atuais das
cincias criminais na Alemanha. Gazeta Jurdica: Braslia, 2013, p. 58. 15 Em igual sentido, FIGUEIREDO DIAS, Jorge de. Direito Penal Parte Geral, Ed. Revista dos Tribunais e
Coimbra Editora, 2007, pp. 10 e ss. O direito penal ainda hoje essencialmente direito intra-estatal, que
encontra a sua fonte formal e orgnica na produo legislativa estadual e aplicado por rgos nacionais.
Todavia, a partir da ltima dcada do sc. XX assistiu-se a um prodigioso incremento da relevncia do direito
internacional no direito penal (grifos no original).
19
Crime e persecuo penal so temas ainda melhor localizados e resolvidos na
esfera judicial nacional e para o direito penal internacional progredir em termos tcnicos e
dogmticos, no pode se afastar de uma construo que atue no mximo padro de garantias
e direitos daqueles que so objeto do poder punitivo, os ofensores. Os valores comuns da
humanidade pressupem uma elaborao terica para a concepo do princpio do cidado
mundial, cuja consequncia a de legitimar a persecuo criminal das mximas violaes
aos direitos humanos, que dever ocorrer, para HABERMAS, dentro do ordenamento estatal.
Os direitos humanos deveriam atuar no apenas como orientao moral da ao
poltica, mas tambm como direitos subjetivos a serem implementados por normas jurdicas,
conforme o autor. Apenas quando os direitos tenham encontrado seu lugar, num
ordenamento jurdico global, como os direitos fundamentais esto plasmados social e
juridicamente nas Constituies, poderemos tambm partir para o plano global, quando os
destinatrios destes direitos possam ser considerados, ao mesmo tempo, como seus
autores16.
16 HABERMAS, Jurgen. Die Zeit, de 29 de abril de 1999, citado por AMBOS, Kai. Temas de Derecho Penal
Internacional y Europeo. Madri: Marcial Pons, 2006, p 27 (trad. livre).
20
CAPTULO 1 EXPANSIONISMO PENAL E DIREITOS HUMANOS
1.1 O direito penal na globalizao
1.1.1 Globalizao e ampliao do campo penal
O direito penal tem sofrido as influncias perturbadoras das novas dinmicas
sociais infundidas pela globalizao, particularmente com o compartilhamento de valores
mundiais comunicados pelos direitos humanos e com a desorganizao na forma de
responder aos desafios. Desafios relacionados a renovaes dos conceitos clssicos de
soberania estatal e a princpios como a legalidade em direito penal internacional so
enfrentados pelo direito penal moderno. Entre as distintas posies a respeito da influncia
da globalizao no direito penal, do ceticismo que enxerga a flexibilizao das garantias at
a defesa dos interesses da humanidade, existe um arranjo improvvel de variveis
dissonantes.
Globalizao um veculo de oportunidades, mas tambm de incertezas. A
criao do Tribunal Penal Internacional e a consolidao da jurisdio universal uma
tentativa de resposta a essas incertezas, que necessariamente se relacionam com o
compartilhamento de valores comuns e a falta de meios de concretizar essa mesma base de
valores. A irrealizao desses valores est conectada ao que Ulrich BECK chamou de
irresponsabilidade organizada da sociedade de risco.
certo que as pessoas localizam a questo da segurana entre as suas
prioridades17, associada forma como o Estado responder aos novos desafios relacionados
segurana, tendo em vista a perda do poder estatal e a necessidade de concertos jurdicos
17 Pirmide de Maslow, MASLOW, Abraham. A Theory of Human Motivation, Psycological Review, 1943,
50, pp. 370-396, na qual o primeiro nvel de necessidade corresponde s necessidades fisiolgicas e a segunda
segurana.
21
internacionais num mundo globalizado18. Por outro lado, o Estado, como nico rgo com
monoplio do recurso violncia, deve estar preparado para contornar sua impotncia diante
dos desafios trazidos pelos novos riscos e a nova forma de organizao das sociedades.
No se trata, no presente trabalho, de discutir a criminalidade global, ou de
discorrer sobre se se trata de manifestaes locais ou de mega-organizaces criminosas
impulsionando o fato criminoso para alm das fronteiras nacionais e navegando nos recursos
facilitados pela globalizao (fsicos, financeiros, informticos), mas de refletir sobre as
condies que fizeram nascer essa comunidade de valores19 a ponto de fundamentar a
reunio de Estados em torno de um projeto de cidadania mundial que culminasse na validade
e alcance da jurisdio universal. Se a globalizao no necessariamente trouxe uma nova
criminalidade, ela sem dvida traz elementos para se questionar os limites do direito penal
tradicional diante de uma realidade complexamente conectada, movimentando diferentes
pontos do planeta, com uma facilidade jamais vista de trnsito em termos de pessoas,
18 STIGLITZ, Joseph, El mal estar en la globalizacin (Trad. Carlos Rodrguez Braun). Madrid: Taurus, 2002,
para uma abordagem econmica do fenmeno e CAPELLA HERNNDEZ, J. R., La naturaliza de la
mundializacin. In: CAPELLA HERNNDEZ, J. R. (ed.). Transformaciones del derecho en la
mundializacin, Madri: Consejo General del Poder Judicial, 1999, pp. 13-81, para uma abordagem histrico-
jurdica. A doutrina tem distinguido os termos globalizao de mundializao, identificando que a
mundializao o processo de integrao das sociedades num primeiro momento, isoladas e com pouco contato
entre si, a partir do sc. XV, impulsionado inclusive pela Cristandade Medieval, por meio da expanso,
conquista e colonizao dos povos, at a situao de franca integrao das naes, ao redor de uma sociedade
mundial, conforme ARENAL, Celestino del, Mundializacin, cresciente interdependncia y globalizacin,
conferncias, Univ. Complutense de Madrid, p. 197, disponvel em
http://www.ehu.es/cursosderechointernacional vitoria/ponencias/pdf/2008/2008_4.pdf (Acesso 11.8.2012).
Por outro lado, a globalizao seria apenas a etapa final desse processo, marcada pela crescente
interdependncia, que conforme entendido atualmente, bastante recente, tanto do ponto de vista quantitativo
quanto qualitativo. Tal como la entendemos hoy da, es decir, en cuanto afecta a un conjunto de procesos y
mbitos muy diferentes a escala planetaria y supone actuar en unas condiciones situadas ms all de las
dimensiones espacial y temporal y en el que las distancias se cubren de forma inmediata, la globalizacin slo
tiene lugar a partir de los aos setenta o a partir de principios de los aos ochenta, en directa relacin, por
un lado, con la revolucin en el campo de la informacin y la comunicacin que se inicia en esos momentos
y, por otro, con la transformacin fundamental que experimenta a partir de los aos setenta el sistema
capitalista mundial., conforme ARENAL, p. 217. Entretanto, em algumas obras podemos observar que o uso
feito indistintamente, como em TERRADILLOS BASOCO, El derecho penal de la globalizacin: luces y
sombras. In: CAPELLA HERNNDEZ, J. R. (ed.). Transformaciones del Derecho en la mundializacin, op.
cit., 185-217, o prprio CAPELLA HERNNDES, J.R.,La naturaleza de la mundializacin, op. cit., ou
DELMAS-MARTY, M., O direito penal como tica da mundializao, Revista portuguesa de cincia
criminal, A.14, n 3, Jul./Set. 2004, pp. 287-304, entre outros. 19 SILVA SNCHEZ, Jess-Mara. La expansin del derecho penal (), op. cit., pp. 92-93. A adoo dessa
perspectiva pode permitir dotar o sistema do direito penal de um inegvel carter supranacional, se se toma
como ponto central de referncia a comunidade cultural e de valores subjacentes s constituies ocidentais
atuais. Mas isso implica um fator de relativizao. Uma cincia do direito penal baseada exclusivamente nas
estruturas lgico-objetivas, ou que se limite a construir o sistema de problemas ou de estruturas de imputao
pode ser plenamente universal. Ao contrrio, uma cincia com traos teleolgicos-valorativos, se pode bem ser
supranacional, independentemente dos ordenamentos jurdicos nacionais, no pode alijar-se das culturas, dos
sistemas de representaes valorativas: tem, portanto, bvios condicionantes espao-temporais (trad. livre).
22
recursos financeiros, de informao e de jurisdies. Nas palavras de Luciano Anderson de
SOUZA, essa intensidade de circulao de ativos que em termos de criminalidade se reflete
nos elementos de organizao, transnacionalidade e poderio econmico, deixa perplexas e
ineficazes, respectivamente, as autoridades e os mecanismos estatais de controle,
tradicionalmente voltados para a preveno e represso ao criminoso individual20.
No acreditamos que esse fenmeno diga respeito apenas aos elementos de
conexo21 entre diversas jurisdies que de forma mais intensa passam a fazer parte dos
crimes comuns, mas que efetivamente essa conformao das novas relaes sociais em
escala mundial facilita de modo geral todo tipo de atividades transacionais, mais
especificamente, as prprias das atividades criminais. Estas, desse modo, beneficiam-se da
estrutura e limites da justia penal, inclusive da dificuldade de persecuo22.
Como afirmado por Joachim VOGEL23, no cabe s cincias jurdicas definir o
termo globalizao, justamente por no ser um conceito jurdico, mas social, sociolgico,
histrico; cabe, sim, ao direito, refletir sobre os seus impactos nas relaes sociais e buscar
um posicionamento de como estes sero enfrentados pelos respectivos sistemas jurdicos.
De interessante meno, os cinco pontos enunciados por VOGEL sobre o que compreende
a referncia globalizao: em termos econmicos, poltico descritivo, poltico normativo,
geral objetivo e geral subjetivo.
Em termos econmicos, a globalizao se reflete na gnese de mercados globais nos
quais os agentes econmicos, em particular, as empresas transnacionais na qualidade
de global players, movem-se com liberdade em escala mundial, e nos quais, em
princpio, capital, trabalho e servios podem se mover livremente, o que possvel
graas aos avanos tcnicos (de transportes, de informao e de comunicaes).
20 SOUZA, Luciano Anderson de. Expanso do Direito Penal e Globalizao, So Paulo: Quartier Latin, 2007,
p. 26. 21 Trata-se de um conceito caro no mbito do direito internacional privado. Em italiano, punto de collegamento,
na Frana, point de rattachement, na Espanha, circunstancia de conexin, como uma tcnica de identificar o
direito aplicvel. So as diretrizes para dirimir o conflito de leis. STRENGER, Irineu. Direito Internacional
Privado, vol. 1, So Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1986, pp. 265-266. 22 CUESTA, J. L. de la, Retos y perspectivas del sistema penal en un mundo globalizado, Revista Acadmica
de la Facultad de Derecho de la Univ. de la Salle, IV, 7 de julho, 2006, pp. 274 ss. 23 VOGEL, Joachim. Derecho Penal y Globalizacin (trad. Manuel Cancio Meli), AFDUAM, 9, 2005, p.
114. Segundo o autor, globalizacin no es un concepto jurdico, y yo como jurista no pretendo decir algo
original o propio a respecto. Assim, a globalizao no apenas no um conceito jurdico, como prescinde
do prprio direito para se conformar.
23
No plano poltico-descritivo, a globalizao se refere perda de relevncia poltica
(mundial) que sofrem os Estados nacionais (the breaking of nations), e a gneses de
mecanismos de governana global.
No plano poltico-normativo, a globalizao se reflete na orientao poltica com
base nos interesses do mundo em seu conjunto, na humanidade, e no em interesses
nacionais;
Do ponto de vista geral objetivo, a globalizao corresponde aproximao do
mundo, a gnese de uma comunidade de destino global com os trs subaspectos: de
uma comunidade da violncia (da perspectiva do autor), uma comunidade de
necessidade e sofrimento (da perspectiva da vtima) e uma comunidade de
cooperao (da perspectiva internacional, do sistema); e
Do ponto de vista geral subjetivo, a crescente conscincia do mundo como um todo,
a gnese de uma tica mundial.
O fenmeno da globalizao, portanto, reduz as distncias fsicas24 e de valores
que orientam as sociedades e, juntamente com a eroso do Estado nao25, destacam um
novo papel ao direito penal: equacionar as novas categorias de bens jurdicos, buscar novos
fundamentos de existncia, inclusive imbudo da misso de um direito penal que apesar dele
consiga gerar consenso e reforar a comunidade26, mas que tambm, apoiado nos valores
comuns da humanidade, fortalea-se pela sua dimenso preventiva27. A apreenso destes
24 Nesse sentido, FARIA, Jos Eduardo, O direito na economia globalizada, So Paulo: Ed. Malheiros, 2004,
p. 61, enfatizando inclusive a substituio do Estado pelas empresas privadas e a instaurao de uma nova
forma de ordenao scio-econmica e regulao poltico-normativa. 25 Octavio IANNI localiza essa questo no que chamou de emergncia de uma sociedade global, tanto
metodolgica quanto empiricamente: pode ser vista como um todo abrangente, complexo e contraditrio,
subsumindo formal ou realmente a sociedade nacional, A Era do Globalismo. Rio de Janeiro: Ed. Civilizao
Brasileira, 1997, p. 99. 26 SILVA SNCHEZ, Jess-Mara. A expanso do Direito penal: aspectos da poltica criminal nas sociedades
ps-industriais. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2002 (Srie as Cincias Criminais no Sculo XXI; v. 11), p.
41. 27 SILVA SNCHEZ, Jess-Mara. A Expanso do direito penal (...), op. cit., para quem o efeito preventivo
est no significado comunicativo da norma penal. Um fator que permite a manuteno dos nveis tanto de
preveno dissuasria como de conteno de reaes informais, como, enfim, de preveno de integrao, sem
necessidade de aumentar o sofrimento efetivo dos sujeitos afetados pela interveno do direito penal (p. 73).
24
fatores enunciados por VOGEL praticamente nos remete considerao de que passa a
existir tambm para o direito uma nova coletividade de interesses e que as cincias jurdicas
no podem deixar de atentar para essa conformao potente que se molda,
internacionalizada, cujo catalisador em diversas dimenses a defesa dos direitos humanos.
Comumente, a globalizao tratada como um novo ciclo do capitalismo28, ou
como uma nova forma de diviso internacional do trabalho, baseada na alocao global de
recursos29 possibilitada pela construo de imprios empresariais que do jogo dos benefcios
mundialmente calculados articula sua produo e seus riscos. Essa interconectividade de
meio e de mensagem, de forma e contedo, de pessoas e instituies que permitem um
funcionamento global constitui, nas palavras de um dos principais tericos da globalizao,
Manuel CASTELLS, uma unidade em tempo real e em escala mundial30. Alm do intenso
aumento dos intercmbios econmicos e comerciais a que se assistiu no final do sculo,
decorrente de uma diversidade de fatores, favoreceu a abertura dos mercados de capital, a
aproximao do Ocidente do Oriente, a melhora tecnolgica das comunicaes e dos meios
de transporte, o favorecimento de uma interdependncia econmica em escala mundial, os
movimentos migratrios intensificados, mas especialmente o pouco grau de regulao
financeira dando ensejo aos abusos para escapar da legislao nacional de toda sorte31.
Um reflexo contundente na rea jurdica , sem dvida, a possibilidade de
harmonizao normativa que abrisse caminho a essa intensificao das trocas internacionais,
mas tambm como fruto do que VOGEL afirmou acima, do processo de construo de uma
tica mundial. Mas prprio tambm do capitalismo, para Boaventura de Sousa SANTOS,
a globalizao das lutas que tornem possvel a distribuio democrtica da riqueza, assente
em direitos de cidadania, individuais e coletivos, aplicados transnacionalmente32. Em outra
perspectiva, FERRAJOLI vislumbra que o impacto da globalizao nas novas formas de
28 IANNI, Octavio. A Era do Globalismo, op.cit., p. 11. 29 FOLKER, Froebel (et al.), The New International Division of Labor. Cambridge: Cambridge University
Press, 1980. 30 CASTELLS, Manuel. The Information Age: Economy, Society and Culture, vol. I: The Rise of Network
Society, Oxford, 1996, p. 92. 31 Especificamente, fazemos referncia aos recentes escndalos envolvendo o Banco HSBC na Sua por fraude
fiscal e por ter sido negligente (a ser apurado) em reportar operaes suspeitas (V., entre outros: Ao divulgar
queda de lucro, presidente do HSBC diz que prticas na Sua eram vergonhosas, disponvel em:
http://veja.abril.com.br/noticia/economia/ao-divulgar-queda-de-lucro-presidente-do-hsbc-diz-que-praticas-
na-suica-eram-vergonhosas, Acesso 21.02.2015). 32 SANTOS, Boaventura Sousa. A Globalizao e as Cincias Sociais, So Paulo: Ed. Cortez, 2002, p. 71.
25
criminalidade efeito da situao geral de anomia, em suas palavras, em um mundo cada
vez mais integrado e interdependente e confiado lei selvagem do mais forte: um mundo
atravessado por desigualdades crescentes (...)33. Essa interdependncia tambm pressupe,
cada vez em maior medida, que a proteo dos bens jurdicos de cada um dependa da
realizao de condutas positivas (de controle de riscos) por parte de terceiros, aumentado a
necessidade de transferncias de funes de segurana nas esferas alheias34.
Uma resposta adequada s mudanas por que passa a questo criminal deveria
ser uma mudana de paradigmas do direito penal altura dos novos desafios trazidos pela
globalizao, no entendimento de FERRAJOLI35. Essa mudana de paradigma captada
tanto pela perspectiva dos direitos humanos, internacionalizao e expanso do direito penal
e expanso, inspirados na cosmoviso anunciada por BOBBIO que alerta para os riscos de
perdas democrticas: melhor uma liberdade sempre em perigo mas expansiva do que uma
liberdade protegida e incapaz de desenvolver-se. Somente uma liberdade em perigo capaz
de renovar-se. Uma liberdade incapaz de se renovar se transforma cedo ou tarde numa nova
escravido36. Talvez uma leitura moderna da frase de Benjamin Franklin inscrita na Esttua
da Liberdade: Aqueles que podem abrir mo da liberdade essencial para obter um pouco de
segurana no merecem nem liberdade nem segurana37.
1.1.2 Constelao de riscos e crise do direito penal
Para entendermos a harmonizao normativa que incide sobre o direito penal,
devemos antes compreender os fatores de desarmonia, sendo um dos principais a prpria
percepo dos riscos, na construo do que BECK chamou de sociedade do risco. Nunca
uma sociedade viveu numa poca to segura, mas ao mesmo tempo nunca essa mesma
sociedade sentiu-se to ameaada: catstrofes naturais, como terremotos e tsunamis,
acidentes nucleares, guerras, fome, ataques terroristas, crises financeiras. Sem dvida que a
33 FERRAJOLI, Luigi. Criminalidad y globalizacin (trad. Miguel Carbonell), 2008, p. 17, disponvel em
www.cienciaspenales.net (Acesso 30.7.2014). 34 Modelo tpico adotado para preveno do crime de lavagem de dinheiro. 35 FERRAJOLI, Luigi. Criminalidad y globalizacin, op. cit., p. 22. 36 BOBBIO, Norberto. El tiempo de los derechos (Trad. Rafael de As Roig), Madri: Ed. Sistema, 1991, p. 254. 37 Do original: They that can give up essential liberty to obtain a little safety, deserve neither liberty nor
safety.
26
potncia das armas aumentou, sobretudo com a possibilidade de ataques por avies no
tripulados sem risco ao pas que ataca, mas somente ao pas atacado, e assim a sensao do
medo aumenta com a mitificao que essa ferramenta, o medo, exerce no imaginrio
repetidas vezes pelas televises, que tambm alardeiam a nova epidemia. Por outro lado, as
instncias internacionais tambm esto mais prontas para agir e condenar violaes no
mbito das relaes internacionais, em vista das ameaas estabilidade poltica causada,
pelo menos, por um Estado.
A irresponsabilidade organizada da sociedade de risco deixa-a incapaz de agir
de forma poltica dissuasria, sobretudo em face dos novos riscos, inclusive a possibilidade
de autoaniquilamento, dentro de uma comunidade de perigo mundial, forjando uma
unidade artificial que em mbito internacional pudesse dar conta destes novos riscos. Por
irresponsabilidade organizada o autor se refere a forma como as instituies da sociedade
moderna admitiram o surgimento dos riscos de catstrofe enquanto simultaneamente negam
a sua existncia, esconderam suas origens e impediram a compensao e o controle38, como
numa sociedade governada por um simulacro, num dilogo friamente calculado com a
opinio pblica. BECK descreve a traduo da criao e percepo do medo em ao poltica
transformadora: de que forma as ameaas permanentes a que a sociedade est submetida
conforma a vida ao nvel dos cidados, fazendo com que a segurana assuma o lugar da
liberdade39, elevando o risco categoria de paradigma explicativo da sociedade
contempornea?40 O ideal de uma sociedade com liberdade d lugar ao de uma sociedade
em que se desfrute de segurana, retomando a ideia da pirmide de Maslow, o que acaba por
justificar as maiores transferncias de poderes, aceitando-se qualquer antecipao de perigo,
at o ponto de a preocupao com a apario do acidentes ficar maior do que com eles
prprios, pois a ao preventiva integra todos os mantras da vida moderna.
O pressuposto, assim, de, ao incorporar o perigo como meio natural no
desenvolvimento de nossa vida cotidiana, toda poltica criminal dever considerar o risco
em sua elaborao. Na tentativa de controlar os riscos, as sociedades procuraro decifrar
uma lgica de produo, distribuio e conteno. BECK diferencia entre riscos aceitveis,
38 MACHADO, Marta R. A. Sociedade do risco e direito penal. Uma avaliao de novas tendncias poltico-
criminais. So Paulo: IBCCRIM, 2005, p.61. 39 BECK, Urich. La sociedad del riesgo mundial, Barcelona: Paids, 2008, p. 26 ss. 40 BERDUGO GMEZ DE LA TORRE, I.; PREZ CEPEDA, A. Derechos Humanos y Derecho Penal.
Validez de las viejas respuestas frente a las nuevas cuestiones. Revista Penal, n. 26, julho/2010, p. 89.
27
diante das oportunidades verificveis, e riscos inaceitveis, mas criticamente pondera que
um risco inaceitvel no depende de questes objetivas, mas de opes polticas e
alinhamento estratgico de prioridade. Nesse sentido, a opo norte-americana de liderar o
combate internacional ao mercado de drogas e crimes ligados corrupo de agentes
pblicos, ao lado de seu pouco entusiasmo em relao jurisdio do Tribunal Penal
Internacional ou s iniciativas globais na rea do meio-ambiente. Diante disso, no cabe
outra alternativa ao Estado, que no distingue mais entre um perigo real, uma ameaa ou o
risco, do que organizar sua forma de reagir por meio da preveno, como a atitude correta a
ser empreendida, e passando e incorporar o risco como elemento de relevncia penal com
natureza e reflexo normativos. Isto porque a encenao do risco torna-o mais real do que ele
precisa ser para que a ao poltica de fato ocorra.
O risco aceito, socialmente adequado e que deve contribuir para o
desenvolvimento social, tecnolgico e cientfico tem sido incorporado com exagero,
causando a transformao do princpio da interveno mnima em interveno mxima,
visto que tambm se tutelam novos interesses e funes, ou seja, instituies, modelos ou
objetivos de organizao poltica, social ou econmica, ou ainda contextos, entornos, ou
condies de fruio dos bens jurdicos individuais, deixando de lado o critrio limitador do
bem jurdico, o que se encontra em clara contradio com o princpio da lesividade41. O
discurso torna-se facilmente o do populismo antigarantista, no qual as garantias
fundamentais so facilmente reduzidas a um mnimo em prol da eficincia do poder
repressivo do Estado de Direito com o fim declarado ou no de acalmar a opinio pblica e
sua ideia ancestral de vingana42.
O resultado um Estado impotente diante dos novos riscos, uma ordem
mundial disfuncional diante desses mesmos riscos, que quer garantir a segurana sem
conseguir oferecer bem-estar, em uma sociedade que consome o risco, como um produto
trabalhado pelos mass media e que de maneira equivocada provoca o direito penal para que
funcione em torno do risco, erija o direito penal como o instrumento para que o Estado atinja
esse objetivo. Essa situao est atrelada a uma crise do direito diante da globalizao,
41 BERDUGO GMEZ DE LA TORRE, I.; PREZ CEPEDA, A. Derechos Humanos y Derecho Penal (...),
op. cit., p. 90 (trad. livre). 42 Isso porque tem sido demonstrado em pesquisas criminolgicas que o endurecimento das penas no reduz
os ndices de criminalidade, e da mesma maneira, no garante a maior segurana das pessoas. MAQUEDA
ABREU, Maria Lusa. Crtica a la reforma penal anunciada, JpD, n 47, 2003, p. 87.
28
incapaz de atribuir alguma organicidade a um emaranhado disperso de convenes, tratados,
legislaes e que pouco conseguiu em termos efetivos de reduo das desigualdades ou do
ciclo de pobreza43. Assim, para FERRAJOLI, a globalizao seria um vazio de direito
pblico altura dos novos poderes e dos novos problemas, como a ausncia de esfera pblica
internacional, ou seja, de um direito e um sistema de garantias e instituies idneas para
disciplinar os novos poderes desregulados e selvagens tanto do mercado como da poltica44.
Em sentido semelhante, a aceitao das consequncias da globalizao para o direito penal
como natural, limitaria a funo dos tericos a pouco mais do que aceitar a existncia destas
manifestaes delitivas e tentar articular polticas criminais adequadas, adotando-se como
fundamentais os bens jurdicos que interessam expanso do mercado45, conforme
ironicamente nos expe TERRADILLOS BASOCO.
A funcionalizao do direito penal em direo proteo a valores e
mecanismos econmicos, especialmente incentivado pela globalizao, desnatura o prprio
princpio da lesividade, e a funo garantista do bem jurdico penal, pois ao criar novos bens,
com caractersticas multiforme e contornos difusos, nas palavras de TERRADILLOS
BASOCO, no poderia erigir-se como critrio definidor nem limitador do poder punitivo46.
Como vimos, a globalizao dirige o sistema penal a demandas fundamentalmente prticas,
no sentido de uma abordagem mais eficaz da criminalidade, ao se prescindir das garantias
e estribar-se no que convenientemente passou-se a chamar de legislao excepcional47. A
crise de superproduo de normas de direito penal causa, em ltima instncia, o colapso de
sua capacidade regulatria, a banalizao do mal que a preveno geral negativa da norma
pode causar, produzindo o seguinte retrato: caos normativo, multiplicao das fontes,
superposio de competncias, cujas incertezas48 e arbitrariedades podem levar o direito
atual a se aproximar do direito jurisprudencial pr-moderno, como denunciando
FERRAJOLI, no qual o aparente paradoxo que a inflao legislativa tambm leva a ausncia
43 Em igual sentido, MENEZES, Wagner. Tribunais internacionais jurisdio e competncia. So Paulo:
Ed. Saraiva, 2013, p. 91. 44 FERRAJOLI, Luigi. Criminalidad y globalizacin, op. cit., p. 18. 45 TERRADILLOS BASOCO, El derecho penal de la globalizacin: luces y sombras, op. cit., p. 187. 46 TERRADILLOS BASOCO, El derecho penal de la globalizacin: luces y sombras, op. cit., p. 189. 47 SILVA SNCHEZ, Jess-Mara. A expanso do direito penal (...), p. 66 e 86-88. 48 Para CHOULIARAS, Athanasios, a globalizao exacerbou ainda mais a dificuldade de apreenso dos exatos
contornos do fenmeno criminal pelo direito, favorecendo a ocorrncia de novas formas de criminalizao e
justia criminal. Bridging the Gap between Criminological Theory and Penal Theory within the International
Criminal System. European Journal of Crime, Criminal Law and Criminal Justice 22, 2014, p. 250.
29
de regras, limites e controles sobre os grandes poderes econmicos transnacionais e sobre os
poderes polticos que os alimentam.
Ressalta-se, assim, que a globalizao um terreno frtil para o avano de um
direito penal expansivo, de novas categorias, mas que paradoxalmente, encontra um Estado
mais fraco para a mesma persecuo. O resultado um ambiente criminal mais regulado,
mas tambm de um controle menos efetivo, que expe a fragilidade do prprio direito ao
manejar as categorias prprias de sua produo: a norma e o poder49. Ao atribuir ao direito
penal o papel de resolver os problemas da sociedade mundial, de um direito penal mximo,
garantindo a utopia da segurana, ao invs de ser um direito de ultima ratio, sobressai a
impotncia do direito que se impe a despeito de suas funes de garantias e de preveno,
quebrando a confiana nas instituies do Estado, e, portanto, em crise, distanciando-se de
seus princpios clssicos de legitimao, como a taxatividade, legalidade, ofensividade,
proporcionalidade, obrigatoriedade da ao penal, e do papel do processo como instrumento
de verificao dos fatos cometidos50 (contrariamente criminalizao preventiva). geral a
preocupao de que se atribua ao direito penal aquilo que ele puder resolver, ou tentar conter,
evitando o mau uso do poder com a apresentao de respostas simblicas para problemas
reais, ou criando exigncias exageradas que iro corroer as engrenagens do sistema penal51.
O recurso ao direito penal para a soluo dos problemas da modernidade
temerrio, porque ele uma arma potente contra um alvo difuso, uma arma do Estado e em
relao ao qual respondem os critrios democrticos e de legitimidade que qualquer
exerccio do poder do Estado requer. O direito penal o pior candidato a solucionar os
problemas da sociedade de risco, nas palavras de PRITTWITZ, isto porque o fato do direito
penal ocorre no passado e o direito penal, portanto, orienta-se na busca de responsabilidades
por fatos que ocorreram no passado. As sentenas em direito penal tampouco geram um
comportamento no futuro, sendo o nico ramo do direito que isso ocorre. Assim, ele no
49 Em referncia ao pensamento de DELMAS-MARTY, M., presente na obra Lo relativo y lo universal
Estudios jurdicos comparativos e internacionalizacin del Derecho, (trad. Marta M. Morales Romero).
Instituto de Derecho Penal Europeo e Internacional. Universidad Castilla-La Mancha, disponvel em
http://www.college-de-france.fr/media/mireille-delmas-marty/UPL12997_ UPL2491 _rescoursespdm0203.
pdf (Acesso 10.11.2014). 50 FERRAJOLI, La democracia constitucional, op. cit., p. 24. 51 PRITTWITZ, Cornelius. A funo do direito penal na sociedade globalizada do risco defesa de um papel
necessariamente modesto. In: AMBOS, Kai; BHN, Mara Laura (coords.). Desenvolvimentos atuais das
cincias criminais na Alemanha. Gazeta Jurdica: Braslia, 2013, p. 58.
30
modula aes e reaes no plano ftico. Um segundo motivo o fato de o direito penal
funcionar dentro de respostas binrias, em um programa normativo limitado apenas para
dizer sim ou no, afirmando a existncia ou no de culpabilidade. Os problemas da
sociedade de risco no se resolvem apenas dentro desse binmio, requerendo criatividade,
negociao e ponderao. Em terceiro, o direito penal clssico foi orientado ao indivduo,
ao passo que a sociedade de risco no tem o indivduo como objeto a ser combatido
primariamente os riscos nesta escala so criados por coletividades criminosas,
empresariais, at estatais ou internacionais. O autor ainda nos brinda com outra trinca de
motivos pelos quais o direito penal no serve para conferir maior proteo numa sociedade
do risco. O direito penal reage ao comportamento individual desviado, j a sociedade do
risco se preocupa com as causas sistmicas dos problemas causados s funcionalidades e
atividades do Estado. A individualizao do problema, por meio de um comportamento
desviado, enfraquece a forma de enfrentar o problema, portanto. Referindo-se aos riscos
ambientais, o autor indica que 90% dos danos ao meio ambiente so resultados de atividades
absolutamente legais, ou seja, realizando riscos permitidos, no que representa uma barreira
atuao do direito penal.
Tambm no serve o direito penal para enfrentar os problemas da sociedade de
risco pois as consequncias que o direito penal prescreve visam atribuir penas aflitivas aos
mesmos indivduos fora do campo de preveno da sociedade de risco. Assim, as
consequncias jurdicas dramticas e invasivas, por meio das penas restritivas de liberdade,
penas capitais (em alguns pases), restritivas de direito, funcionam mal como um remdio
aos problemas geralmente atribudos a entes despersonificados. Por fim, o direito penal
separa o bom do mau, o que, para a sociedade do risco, designar-se de mau no
fornece o tratamento adequado quilo que causa o perigo. A significao do perigoso como
mau no d as respostas que indicam o tratamento correto para a reduo ou conteno do
problema, mas apenas estigmatiza o causador, conduzindo a uma ruptura ao invs de abrir
caminho para a ressocializao ou ajustamento de conduta de acordo com os padres aceitos.
Para que o direito penal sirva globalizao, para VIADA52, deveramos viver
num mundo com menores desigualdades sociais e pauperizao dos pases menos
desenvolvidos, com a construo de um direito penal de mnimos, com novos tipos, mas
52 Viada, Natacha G. Derecho penal y globalizacin..., op. cit, p. 46.
31
limitando aqueles que poderiam ser solucionados com penas alternativas, com
fortalecimento das condies para a cooperao internacional, com avanos na
harmonizao processual e substantiva em matria penal at um pluralismo ordenado,
defendido por DELMAS-MARTY53, alm da criao de rgos de justia supranacional para
proteo dos direitos humanos. Correndo o risco de construir um sistema jurdico que
mantenha os mesmos graus de desigualdade que a desigualdade econmica, pode-se estar
caminhando para reunir sob o mesmo sistema jurdico clssico (civilista ou de common law)
com base numa aproximao em termos de poltica criminal e de segurana que abranja
todos os pases, que levasse a uma numa pretensa legitimao para que os pases
desenvolvidos produzam o direito, realizem os julgamentos e condenem os atos praticados
nos pases subdesenvolvidos, num uso poltico54 dos instrumentos internacionais.
BERDUGO e PREZ, por sua vez, defendem que o direito penal do futuro trilhe
o mesmo traado do velho direito penal, mas adaptado s necessidades de um presente
sempre em mutao, colaborando com a construo de um direito penal como ferramenta
til para a tutela dos direitos humanos em todo o mundo e garantir, por esta via, a liberdade
individual de todas as pessoas, mas tambm deve tender a uma ampla humanizao, no
sentido de um direito penal, ao mesmo tempo liberal e social, que comporte uma atenuao
geral da represso55.
1.2. Criminalidade no cenrio global
1.2.1. Crimes globais e enfrentamentos internacionais
A intensificao das trocas internacionais aliadas s facilidades propiciadas pela
tecnologia, transporte e informao, ainda que de maneira moderada, alterou a realidade da
criminalidade, mas sem que tenha gerado em si uma criminalidade global, apesar dos
53 DELMAS-MARTY, M. (trad. Marta M. Morales Romero), Un pluralismo ordenado - Estudios jurdicos
comparativos e internacionalizacin del derecho, op. cit., p. 14. 54 Sobre o uso poltico dos direitos humanos, IGNATIEFF, Michel. Los derechos humanos como poltica e
idolatra. Barcelona: Paids Estado y Sociedad 108, 2003. 55 BERDUGO GMEZ DE LA TORRE, I.; PREZ CEPEDA, A. Derechos Humanos y Derecho Penal...,
op. cit., p. 100 (trad.livre).
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sensveis efeitos criminolgicos. O fato de um crime transitar e transpor fronteiras modula a
criminalidade transnacional56, e isso pode ter encontrado na globalizao um fator que
favorea esse tipo de crime57. Assim, a ocorrncia de crimes relacionados atividade
econmica potencializada, assim como a criminalidade em relao ao controle aduaneiro,
exigindo uma regulao global de temas como a corrupo de funcionrios pblicos
estrangeiros, crimes contra a propriedade intelectual, crimes por meio da internet, trfico de
pessoas. comum os crimes aproveitarem-se das oportunidades oferecidas com a abertura
de caminho propiciada pelas novas correntes econmicas, novas formas de capitalismo e de
organizaes capitalistas, at porque as oportunidades econmicas chamam a ateno para
a riqueza que criam e pelo meio de que se valem.
Abrindo o campo internacional para a evoluo do direito penal, por meio dos
crimes internacionais, contribui-se para o processo de globalizao do direito penal,
pressupondo questionamentos de ordem axiolgica, por estarmos projetando em escala
universal a parte mais simblica do direito, aquela que expressa pelo jogo dos ilcitos
fundamentais uma identidade comum, a do pertencimento sua comunidade de valores,
num universalismo normativo, ainda que fragilmente encontrado no plano emprico,
conforme DELMAS-MARTY58, mas que confirma o pensamento de BORDIEU de que os
smbolos so instrumentos por excelncia da integrao social59. A preocupao em relao
ao uso simblico do direito penal infelizmente que no se atinge, por meio dele, a funo
primordial de efetivamente comunicar e fazer vigorar os valores de uma comunidade
internacional segura e livre dos crimes mais violentos, vivida em paz e em harmonia60, por
56 Para CANCIO MELI, Manuel, esse seria o grande vetor para a internacionalizao do direito penal,
Internacionalizacin del Derecho Penal..., p. 227. 57 VOGEL, Joachim. Derecho Penal y Globalizacin, op. cit., pp. 115-6. 58 DELMAS-MARTY, Mireille; CASSESE, Antonio. Crimes internacionais e jurisdies internacionais.
Barueri: Ed. Manole, 2004, p. xvii. Tambm SALVADOR NETTO, Alamiro Velludo, Finalidades da Pena,
Conceito Material de Delito e Sistema Penal Integral, Tese de Doutorado, FADUSP, 2008, p. 5, sobre a
expanso do conceito de delito para campos tradicionalmente no penais. 59 BOURDIEU, Pierre. O poder simblico. (Trad. Fernando Tomaz). 4 ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2001, p. 10. 60 A respeito do uso simblico do direito penal, v. JAKOBS, Gnther; CANCI MELI, Manuel. Derecho
Penal del Enemigo. Madri: Civitas. 2003, p. 217, ou cf. HASSEMER, W., ressaltando a prevalncia de uma
oposio entre realidade e aparncia (...) entre o verdadeiramente querido e o diversamente aplicado, La
autocomprensin de la ciencia del derecho penal frente a las exigencias de su tiempo (Trad. Mara del Mar
Diaz Pita). In: MUOZ CONDE, Francisco (Coord.). La ciencia del derecho penal ante el nuevo milenio.
Valncia: Tirant lo Blanch, 2004, p. 28.
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caractersticas tpicas destes crimes, como o contexto organizacional da prtica e as
deficincias da funo preventiva nesses casos61.
Essa avaliao tambm compartilhada por SILVA SNCHEZ62, quando
observa que a expanso do direito penal decorre de uma espcie de perversidade do aparato
estatal, e mesmo no mbito internacional, da ao atribuda a cada Estado na construo dos
institutos de direito internacional, ao buscar na legislao penal a soluo de todos os
problemas sociais, com o deslocamento do foco para o plano simblico. Como resultado
desta ao, afirma o autor, resulta que as instituies do Estado no somente acolham tais
demandas irracionais sem qualquer reflexo, em vez de introduzir elementos de
racionalizao nas mesmas, alimentando-as em termos populistas. O sistema penal, alm
de mais extenso e cruel, nas palavras de SALVADOR NETTO63, torna-se mais impaciente
em vista da desenfreada antecipao de tutela, tipificaes de perigo abstrato e mera conduta,
num desespero protecionista.
Os casos de violaes graves de direitos humanos ou de infraes ao direito
internacional humanitrio so problemas tratados como da comunidade mundial, ainda que
VOGEL alerte para o risco de que problemas que no sejam realmente globais, como a
escravido e a pirataria, a criminalidade relacionada s drogas, terrorismo internacional, a
partir da vinculao a que se trate de ataques civilizao ou aos interesses comuns de
todos os povos civilizados64. Junto com o incremento da criminalidade65, prprio do mundo
contemporneo, nota-se tambm uma criminalidade nova, potencializada por uma forma de
organizao mais profissionalizada, uma integrao em formato de rede que se organiza ao
redor do mundo (p. ex., ligada ao trfico de drogas), o trfico de seres humanos,
criminalidade econmica66, marcados essencialmente pelo excesso de inteligncia, mas
tambm pela capacidade de dano.
61 Tema a ser aprofundado no captulo IV da tese. 62 SILVA SNCHEZ, Jess-Mara. La expansin del derecho penal..., op. cit., p 23. 63 SALVADOR NETTO, Alamiro Velludo. Finalidades da pena, conceito material do delito (...), op. cit., p.
6. 64 VOGEL, Joachim, op. cit., p. 116. 65 Afirma-se que os tempos atuais assistem o incremento da criminalidade, conforme entende o Conselho
Cientfico Criminolgico do Conselho da Europa. V. SHAW, Mark; VAN DIJK, Fan; RHOMBERG,
Wolfgang. Determining trends in global crime and justice: an overview of results from the united nations
surveys of crime trends and operations of criminal justice systems. Disponvel em http://www.unodc.org
/pdf/crime/forum/forum3_Art2.pdf (Acesso 30.08.2014). 66 V. ARROYO ZAPATERO, Lus. A harmonizao internacional do Direito Penal: ideias e processos in
RIBCCRIM, ano 18, n 84, maio-jun/2010, pp. 62-64.
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Fato que cada vez mais a globalizao vista como um potencializador de uma
criminalidade especial, chamada por alguns de criminalidade globalizada, marcando uma
nova agenda para o direito penal, que se depara com a crena de que frente a
internacionalizao do crime, urge responder com a internacionalizao da poltica de
combate ao crime67. Nesse sentido, reforam-se as aes de integrao para a luta,
cooperao internacional e intercmbios de conhecimentos e de aes de polcia. Reflexo
aprofundada merecem as palavras do Ministro federal do interior alemo: na luta contra o
terrorismo temos que fazer uso efetivo de todos os instrumentos que esto disposio do
terrorismo. O direito penal parte de uma misso de segurana do Estado de orientao
preventiva. Temos que combater o terrorismo, tambm com o direito penal, ali onde comece
a ser perigoso, e no somente quando se tenham produzido atentados68, alterando-se
fundamentalmente a atuao do Estado, com discurso preventivo (quando comece a ser
perigoso), para uma poltica proativa (e no somente quando se tenham produzido
atentados), inclusive margem do Estado de Direito69 (com o uso efetivo de todos os
instrumentos que esto disposio do terrorismo).
Os mecanismos de resposta a essa criminalidade global tm sido articulados de
maneira conjugada, dentro do uso preventivo do direito penal, de persecuo coordenada de
agresses criminais e favorecendo a articulao das instituies que compe o sistema de
justia criminal internacional, como forma de se forjar uma coeso intra-sistmica70. Essa
articulao em torno do combate internacionalizado do crime, por sua vez, segue um rito
especfico quando liderados por agncias ou organismos internacionais. Inicialmente,
aprovam-se programas globais de ao, buscando assumir a liderana na promoo e
67 MIRANDA RODRIGUES, Anabela; LOPES DA MOTA, Jos Lus. Para uma poltica criminal europeia.
Quadro e instrumentos da cooperao judiciria em matria penal no espao da Unio Europeia, Coimbra:
Coimbra Editora, 2002, p. 15. 68 SCHUBLE, Wolfgang. Zeitschrift fr Rechtspolitik, 2006, p. 71, conforme citado por CANCIO MELI,
La internacionalizacion del derecho penal..., op. cit., p. 232. 69 Em confronto exatamente com o j antecipado por RUDOLPHI: si se quiere evitar que el Estado de
Derecho sea vaciado y minado desde dentro por la lucha contra el terrorismo, ha de prestarse una estricta
atencin a que no se renuncie de ningn modo a los principios propios del Estado de Derecho. Hay que evitar
que nuestro Estado de Derecho ni siquiera por aproximacin se convierta en aquella imagen que los
terroristas, desconociendo radicalmente la realidad, presentan ya ahora injuriosamente de l. Pues tambin
esto en ltima instancia supondra el triunfo de los terroristas sobre el Estado de Derecho, RZP 1979, p. 214,
citado por CANCIO MELI, Internacionalizacin del derecho penal..., p. 239. 70 Conforme BASSIOUNI, M. Cherif. International Criminal Justice in the Age of Globalization,
International Criminal Law: Quo Vadis, AIDP, n 19, 2004, p. 79, a respeito das instituies do Sistema de
justia internacional, e p. 90, sobre o progresso movido pelos atributos da globalizao.
35
coordenao de aes interestatais daquelas infraes consideradas de especial interesse de
ocorrncia ou impacto internacional. Os instrumentos aprovados pelas agencias71
privilegiam um enfoque puramente punitivo do fenmeno, e concentram-se na harmonizao
de definies e dos padres de criminalizao e no estabelecimento de bases firmes para a
cooperao na investigao e persecuo dos crimes, sendo que apenas de maneira residual
refere-se a temas de preveno criminolgica dos crimes ou do tratamento dos
delinquentes72.
Do que vimos at ento, encontram-se na agenda da globalizao para o direito
penal os seguintes temas:
a) criminalidade empresarial
b) criminalidade econmica individual
c) criminalidade organizada (trfico de pessoas, terrorismo, drogas)
d) criminalidade ambiental
e) criminalidade contra os valores da humanidade
f) poltica criminal
Cada um destes tpicos representa uma lgica e um interesse nacional e setorial
por trs, com esforos polticos e tericos prprios a lhes dar substrato. Ainda que
representem reflexos do mesmo sentido expansivo da tutela penal na globalizao, ensejam
os mesmos desafios de: aumento de esforos de harmonizao em matria penal,
intensificao das iniciativas voltadas cooperao, flexibilizao do princpio da
territorialidade desencadeando um processo supranacional de integrao jurdica (judicial e
legislativa) ao que VOGEL chamou de interlegalidade.
Tratando desta criminalidade internacional, BASSIOUNI entende que crimes
internacionais no so sinnimos de delitos internacionais. Para o autor, so crimes
internacionais aqueles atos que afetam ou a paz e a segurana da humanidade, ou so
contrrios aos direitos humanos, ou resultado de uma ao poltica do Estado. Em
71 Conveno das Naes Unidas contra o Trfico Ilcito de Drogas e Substncias Psicotrpicas de 1988,
Conveno das Naes Unidas contra a Corrupo, 2005, com captulo sobre preveno, Conveno das
Naes Unidas contra o Crime Organizado, 2000. 72 CUESTA, Jos Luis de la, Retos y perspectivas..., op. cit., p. 280.
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consequncia, so crimes tpicos do direito penal internacional, quando se estuda sua
competncia. Por outro lado, delitos internacionais so aquelas infraes penais que afetam
um interesse protegido pelo direito internacional, sem chegar relevncia e magnitude dos
crimes internacionais, por outro, contm elementos de transnacionalidade. Assim, entre os
delitos internacionais, BASSIOUNI73 enumera: pirataria, atentados segurana da
navegao area internacional, atentados navegao martima e das plataformas em alto-
mar, infraes contra as pessoas protegidas internacionalmente, sequestro internacional,
financiamento ao terrorismo, uso ilcito dos meios postais, criminalidade transnacional
organizada, atentados contra o meio ambiente, corrupo de funcionrios pblicos
estrangeiros, trfico de pessoas, entre outros.
Ocorre que em direito internacional penal, poucas vezes se declara claramente
que um fato incriminado um crime internacional. A contrrio, o que ocorre comumente
os Tratados internacionais conterem prescries dirigidas aos Estados parte com trs
principais mandamentos: a) obrigando-os a tipificar o fato em seu ordenamento interno; b)
obrigando-os perseguir o fato punvel, julgar e executar a pena; e b) atender a obrigao de
extraditar aquelas pessoas acusadas ou declaradas culpadas pelo fato incriminado no tratado
em outro Estado parte74. Organiza-se, assim, em torno de um tratado em matria penal, uma
comunidade de Estados que perseguem o mesmo fato, envolvidas que esto em torno do
mesmo objetivo e critrio de valores e que optaram pelo recurso ao em conjunto e de
contedo penal para criar um ambiente mais seguro sua populao.
1.2.2. Tendncias a respeito: internacionalizao e interlegalidade
Os efeitos da globalizao para o direito penal so recepcionados de maneiras
diversas. Em primeiro lugar, destacamos seu efeito multiplicador e condutor da expanso do
direito penal, na construo terica feita por SILVA SNCHEZ, que reduzir seu aspecto
garantista e menos prprio de um Estado de Direito, com regras de imputao mais flexveis
73 BASSIOUNI M. Cherrif. El derecho penal internacional: historia, objeto y contenido. ADPCP Oceana
Publications, Nova Iorque, p. 11. 74 VIADA, Natacha G. Derecho penal y globalizacin., op. cit., p. 96.
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e relativizando as garantias processuais75. PRITTWITZ, por sua vez, identifica na
globalizao fenmeno que causa uma dolorosa eroso de nossa herana cultural comum,
alm do fato de que a globalizao necessariamente conduza a adaptaes e equiparaes
que levar perda de peculiaridades das distintas tradies76 e referncias de suas culturas
jurdicas.
VOGEL refora a existncia de uma nova dinmica, fruto da integrao de
maneira desordenada de diversos planos de legalidade ou normatividade, citando que
vivemos em um tempo de (...) redes de contato de ordens jurdicas que nos foram em
direo a constantes transies ou trespasse. Nossa vida jurdica constituda pela (...)
interlegalidade77. Essa interlegalidade pressupe a captao dos valores essenciais para a
compreenso e posicionamento nesse contexto, no a condio esttica de uma determinada
ordem jurdica, mas essencialmente a dinmica do processo de intercmbio entre as
distintas ordens78. da convergncia da atuao de uma mirade de novos agentes, de novas
relaes, de novas ordenaes e de novos interesses que faz com que interlegalidade seja
considerada um fenmeno chave do direito penal da globalizao. Notamos que esta
interlegalidade, a demandar concertos internacionais para assinatura de determinada
conveno internacional, tambm abrangendo a importncia dos papis desempenhados
pelas organizaes no-governamentais de alcance global, a influncia exercida por Estados
poderosos, como os Estados Unidos, na conformao das legislaes penais de outros
pases79.
O segundo elemento para a compreenso da globalizao nas esferas jurdicas
da interlegalidade a existncia de um objetivo comum que orienta a unio dos diversos
agentes: o fortalecimento da persecuo penal e do interesse globalmente compartilhado nas
punies, partindo da ideia de que os ordenamentos jurdicos nacionais so impotentes diante
75 SILVA SNCHEZ, Jess-Mara. La expansin del derecho penal..., op. cit., p. 21. 76 Por exemplo, a flexibilizao do princpio da legalidade em direito penal internacional, ou as inter-
influncias do common law no direito civil praticado pelos tribunais internacionais. GIL GIL, Alicia. Derecho
penal internacional. Madri: Tecnos, 1999 e BASSIOUI, M. Cherif, Introduction to International Criminal
Law. 2 edicao, Brill:Nijhoff, 2012. 77 Do original, We live in a time of [...] network of legal order forcing us to constant transition or trespassing.
Our legal life is constituted by [...] interlegality. VOGEL, op. cit., p. 117. 78 VOGEL, Derecho Penal y Globalizacin, op. cit., p. 117. Contrariamente existncia atual de uma
tendncia de convergncia cientfica, CANCIO MELI, Manuel, Internacionalizacin del Derecho Penal
(...), pp. 226-7, afirmando que no se pode dizer que se tenha progredido muito em direo a um verdadeiro
conhecimento mtuo. 79 VOGEL, Derecho Penal y Globalizacin, op. cit., p. 118.
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da criminalidade transnacional. Tambm em relao a este aspecto, ter mais fora o
repertrio de criminalidade elegida pelos poderes que organizem determinado concerto
internacional. Passa a surgir a questo de a partir de quando se est diante de uma
criminalidade global, ainda que de efeitos locais, ou de uma criminalidade transnacional. Por
criminalidade global entende-se uma criminalidade gestada para ocorrer em diversas partes
do globo simultaneamente, desestabilizadora e generalizada. Assim, crimes transnacionais
corresponde a uma parte do conceito de crimes globais.
A interlegalidade, em relao ao direito penal, contribui como vetor de mudanas
relevantes para a modernizao do direito. Consoante observado por VOGEL, o direito penal
passa a no desfrutar daquele status especial que confere pena e o direito penal a ultima
ratio da interveno estatal, passando a ser tanto a cincia quanto seu mais contundente
elemento, a pena, mais um dos vrios mecanismos de interveno estatal, em equivalncia
com os demais instrumentos de que dispe o Estado na definio de suas prioridades e
construo de sua poltica.
O direito penal globalizado se concentra em campos modernos, com
caractersticas modernas, no sentido da crtica formulada por HASSEMER, com o uso
frequente de crimes de perigo e de organizao, com estruturas de imputao distintas e
provas mais fceis que as do direito penal clssico, conforme referido por VOGEL, com a
incriminao de condutas no campo anterior ou posterior a um dano concreto, como a
falsificao de documentos ou lavagem de dinheiro. Para ARROYO ZAPATERO80, por sua
vez, o direito penal moderno no mais do que a aceitao do direito penal das modernas
condies da vida social do tempo contemporneo, a requerer novas formas e instrumentos
de proteo dessas novas necessidades sociais conquanto vaga a afirmao, em essncia
trata-se da mxima flexibilizao do direito penal para apoiar o combate aos novos inimigos
da sociedade. O autor pondera que qualquer novidade absorvida pelo direito penal parte e
consequncia da mudana de panorama global do nosso mundo cultural, em alguns dos seus
contornos jurdicos, sintetizado na sensao de cidadania do mundo.
80 ARROYO ZAPATERO, Lus. A harmonizao internacional do Direito Penal: ideias e processos,
RIBCCRIM, ano 18, n 84, maio-jun/2010, pp. 64-71. Faz referncia, em especial, aos delitos imprudentes,
como os delitos contra a segurana viria, a incriminao da direo perigosa e exasperao das penas em
caso de morte ou leso, inclusive pela combinao com a previso das penas administrativas pelo sistema de
pontos na carteira de motorista.
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Ocorre que o direito penal, ao exigir um alto nvel de legitimao do controle do
poder punitivo do Estado81, no pode descuidar dessa sua funo maior para se concentrar
apenas no poder criativo de tipos penais. A atuao das organizaes internacionais ou
supranacionais, como a Unio Europeia, ensejam relevantes questionamentos em suas
atribuies relacionadas ao crime e ao direito penal diante do dficit democrtico, pela falta
do poder de controle da ao punitiva, em suas competncias substanciais em matria de
legislao penal ou poltica criminal82. Ressalta-se, portanto, que esse aspecto pragmtico
de um direito mais preocupado com a luta preventiva efetiva e de orientao policial, no
gera necessariamente uma preocupao com a justia ou com a profundidade de um processo
de internacionalizao do direito penal83. A exigncia prtica que a sociedade leva ao direito
penal traz um enunciado vazio, sem apontar o que se entende por criminalidade e quais as
condutas em questo, pois os instrumentos que se quer manipular, com o aumento das
sanes e a reduo das garantias, concentram-se nos campos preventivos.
A aplicao do direito penal na perspectiva da sua internacionalizao e
interlegalidade passa a ser mais complicada, menos previsvel e mais custosa em tempo, o
que de modo evidente afeta o princpio jurdico-penal da determinao e do mandamento
processual penal da celeridade, cobrando um preo ainda mais alto de sua legitimao e
segurana jurdica de seus preceitos84. VOGEL questiona se nos encontramos a caminho de
uma cincia global do direito penal, que trabalhe ainda que utopicamente sobre um direito
penal mundial, ou se a cincia penal continua enraizada sua famlia do direito penal de
origem, cultivando a identidade e a cultura jurdico-penal nacional e, sobretudo, defendendo-
a contra os embates da globalizao. Opina que a cincia do direito penal esteja mudando e
que deve mudar sob o influxo da globalizao em um sentido triplo: da abertura
metodolgica, sua aproximao da prtica de casos e das questes materiais (em oposio
s questes da dogmtica jurdica) numa referncia construo de uma gramtica prpria
81 Manuel CANCIO MELI refere-se funo de bloqueio do direito penal e de elementos de sua configur