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UFRJ A IGREJA CRISTÃ REFORMADA E OS JUDEUS NO BRASIL HOLANDÊS João Henrique dos Santos Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em História. Orientadora: Profa. Dra. Jacqueline Hermann Rio de Janeiro Junho de 2006

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UFRJ

A IGREJA CRISTÃ REFORMADA E OS JUDEUS NO BRASIL HOLANDÊS

João Henrique dos Santos

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa dePós-Graduação em História Social do Instituto deFilosofia e Ciências Sociais da Universidade Federaldo Rio de Janeiro, como parte dos requisitosnecessários à obtenção do título de Mestre emHistória.

Orientadora: Profa. Dra. Jacqueline Hermann

Rio de JaneiroJunho de 2006

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A IGREJA CRISTÃ REFORMADA E OS JUDEUS NO BRASIL HOLANDÊS

João Henrique dos Santos

Orientadora: Profa. Dra. Jacqueline Hermann

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social do

Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como

parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em História.

Aprovada por:

___________________________________

Presidente: Profa. Dra. Jacqueline Hermann

___________________________________

Prof. Dr. Carlos Ziller Camenietzki

___________________________________

Prof. Dr. Ronaldo Vainfas

Rio de JaneiroJunho de 2006

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FICHA CATALOGRÁFICA

SANTOS, João Henrique dos A Igreja Cristã Reformada e os judeus no BrasilHolandês / João Henrique dos Santos. Rio de Janeiro:UFRJ, IFCS, 2006. x + 110 f.Orientadora: Jacqueline Hermann, Dissertação(Mestrado), UFRJ, IFCS, Programa de Pós-Graduação emHistória Social, 2006. Refs.: 102-110.1. Brasil Holandês, 2. Judeus, 3. Intolerância ReligiosaI. Hermann, Jacqueline, II. UFRJ/PPGHIS, III. A IgrejaCristã Reformada e os judeus no Brasil Holandês

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RESUMO

A IGREJA CRISTÃ REFORMADA E OS JUDEUS NO BRASIL HOLANDÊS

João Henrique dos Santos

Orientadora: Profa. Dra. Jacqueline Hermann

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em

História Social do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio

de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em

História Social.

O presente estudo analisa as relações entre o Presbitério da Igreja Cristã Reformada,

também conhecida como Igreja Holandesa Reformada, e os judeus residentes nos domínios

holandeses do Nordeste Brasileiro durante os anos daquele período que a historiografia

denominou Brasil Holandês, de 1630 a 1654. Essas relações são analisadas não apenas

dentro do jogo de tensões e disputa de poder dentro do Brasil Holandês, mas sendo

remetidas àquelas existentes na República Holandesa e, mais particularmente, na cidade de

Amsterdã. As principais fontes utilizadas são as Atas das Assembléias Classicais do

Presbitério da Igreja, sendo empregadas também referências bibliográficas que remetem a

outros registros contemporâneos àquelas Atas.

Palavras-chave: Brasil Holandês, Judeus, Intolerância Religiosa.

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ABSTRACT

THE CHRISTIAN REFORMED CHURCH AND THE JEWS IN THE DUTCH BRAZIL

João Henrique dos Santos

Orientadora: Profa. Dra. Jacqueline Hermann

Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em

História Social do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio

de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em

História Social.

This study aims to analyze the relationships between the Presbytery of the Christian

Reformed Church, also known as Dutch Reformed Church and the Jews dwelling in the

Dutch dominations in Northeastern Brazil through those years known as “Dutch Brazil”,

from 1630 to 1654. Such relations are not only analyzed under the scope of the tensions and

power disputations in the Dutch Brazil, but those existing in the Dutch Republic, specially

in Amsterdam are taken into consideration. Major sources are the Acta of the Classis

Councils of the Presbytery of the Church, although bibliographical references leading to

other sources of that same time are also used.

Keywords: Dutch Brazil, Jews, Religious intolerance.

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À abençoada memória de meus pais, Argemiro e

Eneida, ou, simplesmente, Dadai e Neidão, por tudo o

que foram, por aquilo que são e pelo que sempre serão.

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AGRADECIMENTOS

“It was the best of times, it was the worst of times”.

(Charles Dickens, A Tale of Two Cities)

Na tradição judaica, em algumas congregações, quando esta prepara-se para receber

um novo rolo da Torah, costuma-se pedir que cada uma das pessoas que colaborou para que

aquele rolo da Lei fosse adquirido escreva uma letra no Livro Santo. De certo modo, todos

e cada um de vocês escreveram palavras inteiras nesta obra. Minhas palavras são

infinitamente pobres para expressar toda a minha gratidão a todos vocês, que me ajudaram

a atravessar este, que foi o melhor e o pior de todos os tempos.

Nenhuma empreitada de sucesso chega a bom termo sem a cooperação de muitos.

Desejo, neste breve espaço, expressar a minha maior gratidão a todos quantos colaboraram

para que este trabalho chegasse à sua forma final.

Inicialmente, a gratidão a todos os colegas e professores do PPGHIS/UFRJ, por

todo o saber que me permitiram compartilhar, pelos caminhos que souberam apontar e pelo

desejo de ir sempre mais além que despertaram. Estejam certos de que o tempo que passei

nesta Universidade com vocês fez de mim um homem melhor.

Aos integrantes da banca, Profs. Drs. Carlos Ziller Camenietzki e Ronaldo Vainfas,

por todas as importantes correções que apontaram na qualificação desta dissertação, meu

agradecimento e meu reconhecimento.

Ao ex-Reitor da Universidade Gama Filho, Prof. Sergio de Moraes Dias, e ao atual

Reitor, Prof. Arno Wehling, assim como à Sra. Vice-Reitora de Administração dessa

Universidade, Profa. Maria Teresa de Almeida Dias e Souza, pelo constante estímulo e pela

liberação de muitas de minhas atividades profissionais para que pudesse dedicar-me ao

Mestrado e à redação da dissertação. Recebam o penhor de minha gratidão.

Minha gratidão especial aos amigos historiadores, que tiveram a infinita paciência

de ler e reler projetos, ante-projetos, rascunhos, esboços etc., dentre os quais me permito

mencionar Ângelo Adriano Faria de Assis, Frank dos Santos Ramos, Carlos Eduardo

Calaça e Esther Kuperman, todos sempre dispostos a, generosamente, indicar-me rotas e

rumos a seguir, inclusive, no caso do Prof. Frank dos Santos Ramos, cedendo a permissão

para que eu utilizasse nesta dissertação valioso material que em muito a enriqueceu.

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Ao Rev. Prof. Dr. Frans Leonard Schalkwijk, o maior conhecedor da história da

Igreja Cristã Reformada no Brasil, por seu estímulo, pelas importantes sugestões de leitura

e pelo socorro sempre que a ele recorri, presto meu agradecimento.

Presto minha reverência de gratidão à Profa. Dra. Anita Novinsky, da Universidade

de S. Paulo, referencial para o estudo da presença judaica no Brasil, pelo permanente

estímulo e pela confiança depositada, assim como pela cessão de materiais que em muito

enriqueceram a pesquisa. Agradeço igualmente ao Prof. Dr. Nachman Falbel, também da

USP, por todas as generosas palavras de estímulo e demonstrações de respeito ao trabalho

por mim desenvolvido.

Aos amigos do Arquivo Histórico Judaico de Pernambuco, especialmente a Cláudia

Simonne e à Profa. Dra. Tânia Neuman Kaufmann, por sua permanente disponibilidade em

auxiliar, a minha gratidão, extensiva igualmente ao Museu Judaico do Rio de Janeiro,

particularmente a seu Presidente, Max Nahmias. Agradeço, ainda, todo o apoio recebido

dos amigos do Instituto Histórico Israelita Mineiro e do Arquivo Histórico Judaico

Brasileiro. Reservo especial gratidão à Profa. Dra. Lisley Nascimento, da UFMG, e à Profa.

Dra. Helena Lewin, da UERJ, por todo o apoio.

Ao Prof. Paul Koenders, a Diederick Kortlang e a A. M. Jolles, do Depto. de

Informação do Nationaal Archief de Haia, Holanda, por toda a colaboração, inclusive

sugerindo contatos e possibilitando o registro desta pesquisa naquele Arquivo, apresento

meu melhor agradecimento. Mijn bijzonder dankbaarheid.

Ao Prof. Clovis Paradela, amigo que apontou caminhos quando caminhos pareciam

já não mais haver, minha melhor gratidão.

A meus familiares, especialmente minhas tias, agradeço pelo estímulo e pela

compreensão para com minhas muitas ausências, agradecimento que torno extensivo a

todos os meus amigos.

A Aline Boechat, por sua tão grande amizade e companheirismo.

Ao Rev. Pastor Mozart Noronha, da Igreja Luterana de Ipanema, pelos sábios

conselhos sempre.

A Luciana, por fazer-me ver que história é muito mais que memória; que história é

presente e futuro. A você, amor, que ao retomar comigo a nossa história, faz deste o melhor

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dos tempos e que faz de mim o melhor que eu posso ser, com um amor que não cabe em

palavras, o meu coração, todo o meu coração.

Por fim, o agradecimento necessário à minha orientadora, Profa. Dra. Jacqueline

Hermann, que me fez ver a materialidade da reflexão de Gilson Amado, de que “até um

anão vê mais longe nos ombros de um gigante”. Agigantei-me em seus ombros, Jacqueline.

O agradecimento a você consumiria talvez mais páginas do que toda a dissertação, se eu

fosse enumerar todas as vezes em que você, com carinho e paciência inigualáveis, ouviu-

me, ensinou-me, aconselhou-me, acolheu-me. Creia-me que esta dissertação é muito mais

sua do que minha. Por tudo e para sempre, muito, mas muito obrigado, do fundo do

coração!

Acredito que Deus não leia dissertações, mas certamente Ele ajuda a escrevê-las.

Muito obrigado a Ele.

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x

SUMÁRIO

RESUMO........................................................................................................................ iv

ABSTRACT..................................................................................................................... v

AGRADECIMENTOS...................................................................................................vii

APRESENTAÇÃO...........................................................................................................1

CAPÍTULO I – “Inimigos Hereditários”......................................................................... 4

CAPÍTULO II – “Hereges, Papistas e Judeus” ............................................................. 36

CAPÍTULO III – “Geração escolhida, sacerdócio régio, Nação santa”........................ 71

CONCLUSÃO............................................................................................................... 99

BIBLIOGRAFIA......................................................................................................... 102

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APRESENTAÇÃO

O “tempo dos flamengos”, o quase quarto de século de dominação holandesa no

Nordeste brasílico, tem sido objeto de aprofundados estudos, quer seja pela imensa riqueza

a ser explorada, na tentativa de compreensão das teias relacionais existentes entre os

diferentes atores dos processos sociais, econômicos e políticos, quer seja pela peculiaridade

que apresenta, em razão de haver sido o único período hegemônico de uma denominação

protestante na história colonial da América ibérica.

Nessa “Babel Religiosa”, na expressão de Ronaldo Vainfas, conviveram calvinistas,

conversos, judeus e católicos, ora associando-se uns aos outros, ora combatendo-se

duramente, quase em uma reprodução do que Balmer, ao analisar o choque entre a religião

holandesa e a cultura britânica nas colônias da América do Norte chamou de “a perfect

Babel of confusion”.

A questão que se propõe nesta dissertação são as relações entre o Sínodo do Brasil

(ou Classe Brasiliana), órgão máximo do Presbitério da Igreja Cristã Reformada no Brasil,

e os judeus que aqui viviam naquele período. A historiografia tem apresentado duas visões

que são antagônicas: uma, entendendo que havia liberdade religiosa no Brasil Holandês,

interpretação de Charles Robert Boxer e Hermann Wätjen, entre outros; outra, cujos

expoentes podemos localizar em Francisco Adolpho de Varnhagen e Mário Neme,

apontando que não havia liberdade, visto que esta, concedida, deixa de ser liberdade, para

ser apenas e tão somente tolerância, e mesmo esta, rigidamente controlada e delimitada

pelas autoridades civis e religiosas holandesas.

Uma das discussões apresentadas nesta dissertação é a necessária distinção entre

liberdade de consciência e liberdade de prática religiosa, visto implicarem a adoção de

práticas diferentes pelo poder civil holandês da época. O maior conhecedor da história da

Igreja Cristã Reformada no Brasil, Frans Leonard Schalkwijk, reconhece que havia

restrição moderada aos judeus e aos católicos romanos, por parte tanto da Igreja quanto das

autoridades do Governo Geral durante a acupação batava.

As leituras iniciais apontavam para a existência de um viés especificamente anti-

judaico por parte do Presbitério calvinista, assumindo-se mesmo a informação reproduzida

por José Ribenboim de que os judeus recifenses comentavam em 1642 que estava em

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marcha no Brasil Holandês uma “inquisição calvinista”. Contudo, a leitura minuciosa das

Atas Classicais revelou que são poucas as referências aos judeus contidas nelas, embora

sempre demandando das autoridades a imposição de limitações às liberdades religiosas. De

modo especial, em 1640 pareceu chegar ao apogeu o conflito entre o Presbitério da Igreja

Reformada e a comunidade judaica no Brasil Holandês, com os gravames chegando a

requerer que não mais se permitisse a entrada de judeus nos domínios holandeses.

Tais demandas incluem-se na questão da negação da alteridade, comum no contexto

político-religioso do século XVII. Desta forma, o foco da questão foi deslocado para a

discussão acerca de se existia ou não um “problema judaico” no Brasil holandês e, não

havendo, quais as razões para isso. Neste sentido, a análise das Atas e de outras fontes

apontou fortemente para a vinculação entre a prosperidade da comunidade judaica residente

no Brasil e a intensificação dos gravames da Igreja. Isto constituiu um paradoxo, uma vez

que na Holanda o prestígio da comunidade judaica e sua qualificação como partícipes

importantes na consolidação da República das Províncias Unidas residia exatamente na

prosperidade dessa comunidade e em sua contribuição para a República.

Desta forma, a complexidade dessas relações somente pôde ser melhor analisada a

partir da comparação entre a dinâmica das relações entre a comunidade judaica e as

diferentes esferas do poder civil em Amsterdã, compreendendo a Casa Real de Orange-

Nassau, os Estados Gerais e o Conselho dos XIX – órgão colegiado diretor da Companhia

das Índias Ocidentais – e a dinâmica existente no Brasil, entre a comunidade judaica e o

Governo Geral.

Com relação às fontes, em 2001, Marcos Galindo e Lodewijk Hulsman compilaram

os acervos de manuscritos em arquivos holandeses, obra à qual denominaram “Guia de

Fontes para a história do Brasil holandês”, no qual referem a quase totalidade das fontes

disponíveis para o estudo da história do Brasil holandês, citando em quais arquivos daquele

país se encontram, bem assim em quais acervos brasileiros encontram-se algumas fontes

originais. A fonte principal escolhida para análise neste projeto são as Atas da Classe

Brasiliana ou Sínodo do Brasil, da Igreja Cristã Reformada ou Igreja Holandesa

Reformada, nas quais se registravam as reuniões do seu Presbitério.

Os manuscritos originais encontram-se depositados no Arquivo da Cidade de

Amsterdã (Gemeente-Archief Amsterdam), no qual igualmente se encontram depositados

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os seguintes arquivos: Arquivo do Conselho da Igreja Cristã Reformada de Amsterdã;

Arquivo da Diaconia da Igreja Cristã Reformada de Amsterdã e Arquivo do Presbitério de

Amsterdã. Deste, destacam-se os livros de atas do Presbitério de Amsterdã e o da comissão

presbiteral permanente encarregada dos assuntos ultramarinos (Deputati ad res indicas),

com os livros de cartas enviadas por eles e uma pasta com as cartas recebidas por eles.

Esta fonte original encontra-se em holandês antigo, manuscrita, tendo sido traduzida

para o português em 1993 por Frans Leonard Schalkwijk, pastor da Igreja Holandesa

Reformada e Doutor em História da Igreja. Sua tradução, a critério do autor, foi feita para o

português contemporâneo, sem preocupação com a preservação do estilo original e de

estabelecer a correspondência sincrônica entre o holandês e o português do século XVII.

Segundo informações que me foram passadas por ele e por integrantes da equipe que

participou da tradução e atualização dessa fonte, não houve qualquer alteração no conteúdo.

O uso das fontes traduzidas e impressas, e não em seus originais manuscritos,

emerge como melhor alternativa, o que é corroborado pela afirmativa do historiador

americano Russell Shorto, em “A ilha no centro do mundo – a história épica da Manhattan

holandesa”, quando enumera as dificuldades para a leitura dos manuscritos holandeses

atinentes à fundação de Nova Amsterdã (Nova York). Portanto, em razão da dificuldade de

acesso, a opção foi por utilizar a tradução para o português das Atas do Sínodo do Brasil

feitas por Schalkwijk, igualmente utilizadas por ele para a redação de sua tese de

doutoramento em História no Instituto Presbiteriano Mackenzie.

O Capítulo I tratará da formação da República Holandesa e de sua guerra com a

Espanha, abordando a criação das duas Companhias Licenciadas de Comércio para as

Índias e a estruturação da Igreja Holandesa Reformada.

O Capítulo II abordará as relações entre os calvinistas, os católicos e os judeus no

Brasil Holandês, fazendo algumas considerações sobre essas relações na Holanda. O

capítulo abordará, ainda, o estabelecimento da Igreja Cristã Reformada no Brasil.

O Capítulo III tratará das relações entre o Presbitério da Igreja Cristã Reformada e

os judeus no Brasil Holandês, sendo trabalhadas as Atas das Assembléias Classicais da

Igreja Cristã Reformada como base para a discussão acerca das motivações para alguns dos

gravames do Presbitério.

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CAPÍTULO I

Inimigos Hereditários

“Porque chamamos monstro a Filipe IIe não trememos ante o Vaticanoe porque condenamos a todo tiranoe conhecemos toda hipocrisiaporque honramos a Orangee o levamos muito dentro de nossa alma”.(Trecho de canção popular flamenga, c. 1856)

“Guilherme de Nassau eu souUm príncipe de sangue alemãoAo rei de Espanha eu jurei lealdade(...)”.(Versos iniciais do Hino Nacional Holandês)

Quando em 16 de janeiro de 1556, Carlos V, Imperador do Sacro Império, abdicou,

partilhando o Sacro Império entre seu irmão Fernando e seu filho Filipe 1, teve início aquilo

que Henry Méchoulan chamou de “a primeira revolução moderna” 2, em razão das causas e

dos ideais defendidos pelos revoltosos holandeses 3. Aquela cena apresentava os dois

protagonistas de um conflito que, ao final de oitenta anos, garantiria a independência das

sete Províncias do Norte do domínio espanhol, unidas sob o Príncipe de Orange, ao mesmo

tempo em que, ao longo e ao cabo do processo, os espanhóis foram eleitos pelos holandeses

– ou, antes, se fizeram – como seus “inimigos hereditários”.

Guilherme de Orange, por alcunha “O Taciturno”, em cujos ombros o imperador

nascido em Gande, em Flandres, se apoiara ao levantar-se do trono, e Filipe de Espanha, a

quem os nobres holandeses prestavam juramento de vassalagem e lealdade, foram os

1 Carlos V deixou a seu irmão Fernando a dignidade real e os Estados Patrimoniais do Habsburgo,excetuando-se Flandres e o Franco-Condado, os quais, junto com as Coroas de Aragão e de Castela, foramdeixados a seu filho, Filipe, a partir de 1556 Filipe II. Em decorrência de seu casamento com Maria Tudor, em1554, Filipe II manteve ainda o título de Rei Consorte da Inglaterra até 1558, quando a rainha inglesa morreu.2 MECHOULAN, H.. Dinheiro & Liberdade – Amsterdam no tempo de Spinoza. Rio de Janeiro: JorgeZahar Editor, 1992, p. 15.3 Segundo Evaldo Cabral de Mello, esta é a definição que melhor se aplica ao termo “holandeses”: “eramassim chamados apenas os habitantes da Província da Holanda, uma das Sete Repúblicas das ProvínciasUnidas dos Países Baixos” (MELLO, E. C.. Nassau, S. Paulo: Cia. das Letras, 2006, p. 11).

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antagonistas principais e próceres ímpares de seu tempo. Vinte e seis anos após aquele 16

de janeiro, Guilherme proclamou a perda do poder do “senhor do Escorial” 4.

Filipe soube manter a primeira parte do juramento solene que prestara ante seu pai:

Conservar um respeito inviolável pela religião, manter a fé em sua pureza; não cumprindo,

no entanto, a segunda parte: Nunca atentar contra os direitos e os privilégios dos vassalos.

Estes, espalhavam-se por dezessete províncias, em uma área que corresponde à Bélgica,

Luxemburgo e aos Países-Baixos atuais, além de partes da Alemanha e da França, com

diversidade de línguas e costumes; sempre ciosos das suas liberdades, liberdades essas que

Carlos V soube preservar, mesmo em tempos adversos face ao nascimento e afirmação da

Reforma Protestante e da intensa guerra contra o Império Otomano.

Henry Kamen, em duas obras referenciais 5, dedica-se a analisar a construção do

império espanhol e, de modo especial, a vida e a personalidade de Filipe II. Em ambas,

ressalta-se o papel crucial – trocadilho inevitável – que a religião exerceu na vida e no

reinado de Filipe II. Este, que na juventude simpatizou com o erasmismo, então vicejando

na Espanha, foi gradativamente aumentando seu sectarismo católico até, com propriedade,

tornar-se em sua maturidade e velhice alguém capaz de ser rotulado como “o intransigente

Calvino católico do Escorial” 6, assim como na vida de toda a Europa e suas extensões

coloniais.

Contrariamente ao uso de Carlos V, Filipe II saiu de suas Províncias do Norte em 5

de julho de 1559 jamais tendo a elas voltado, deixando em seu lugar uma regente,

Margarida de Parma, e nomeando Guilherme de Orange como stadhouder 7 dos Países-

Baixos. Ainda segundo Adriana López,

4 Duas importantes obras, The Spanish seaborne Empire, de J. H. Parry (Berkeley: Univ. Press ofCalifórnia, 1990) e El Imperio de Carlos V – Procesos de agregación y conflicto, organizado por BernardoJ. García y García (Madri: Fundación Carlos de Amberes, 2000) dão, com bastante acurácia, a dimensãoterritorial do Sacro Império, recordando o primeiro autor que as grandes navegações espanholas agregaram asnovas terras conquistadas ao Sacro Império.5 Empire – How Spain became a World Power 1492-1763, New York: Harper Collins, 2003, e Filipe daEspanha, Rio de Janeiro: Record, 2003.6 LOPEZ, A.. Guerra, Açúcar e Religião no Brasil dos Holandeses. Ed. SENAC, S. Paulo, 1999, p. 47.7 Esta palavra inglesa não tem tradução exata em português, correspondendo ao holandês stathouder, quepossui tradução – a meu ver, muito mais “transliteração” – para o espanhol como estatúder, significando emlinhas gerais, guardião ou governador. Tal função gerou uma instituição, o stathouderato, que se mostrouobsoleta durante a própria vigência da República Holandesa. Sobre o estatuderato, recomenda-se a leitura de

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“Educado na Espanha, Filipe abominava os ‘flamengos’,

nome pelo qual chamava os súditos que falavam o

neerlandês. (...)

Enfurnado no Escorial – o sombrio palácio que fez

construir ao pé da serra de Guadarrama, no coração da

meseta espanhola – o rei católico solapava o poder das

autoridades locais dos Países-Baixos, açulando a nobreza

por meio de intrigas palacianas. Ao desencadear a

perseguição aos calvinistas, Filipe II, o mais fanático e

cruel defensor da Contra-Reforma nos territórios que lhe

pertenciam por herança paterna, precipitou a

emancipação dos Países-Baixos.” 8

O novo soberano herdara não apenas dívidas enormes de seu pai, mas também uma

crescente quantidade de “inimigos da fé” a combater. Estes, luteranos, calvinistas,

anabatistas e mesmo os pacíficos e pacifistas menonitas 9, deveriam ser reconvertidos à fé

católica ou, se fossem irresignados, a eles se lhes deveria dar combate com toda a energia.

Tentava-se impor a todos os domínios espanhóis o que se quis levar a termo após a

Reconquista da Espanha aos muçulmanos: uma única fé para uma nação unida.

Em 1566, os nobres das Províncias do Norte, organizados por Luís de Nassau, irmão

de Guilherme de Nassau, redigiram um “Compromisso”, demandando o respeito à

liberdade política e ao direito de opção religiosa. O documento, transformado em petição

entregue a Margarida de Parma, então governadora indicada por Felipe II, foi redigido por

Filipe de Marnix, futuro teórico da revolta em curso, não apenas demandava liberdade de

consciência, mas propunha ao soberano que meditasse sobre os inconvenientes suscitados

pela sua fidelidade aos éditos de seu pai. Assim, tinha-se de um lado a quase totalidade de

uma população acostumada a viver de forma mais livre do que a maior parte das sociedades

européias de então, herança do governo de Carlos V, que se viu gradativamente

ROWEN, Herbert H.. The Princes of Orange – the Stadholders in the Dutch Republic. CambridgeUniversity Press, New York, 1990.8 op. cit., pp 47-48.9 Menonitas: seguidores do pastor anabatista frísio Menno Simmonsz (1492-1559), que se caracterizam pelorepúdio a toda e qualquer forma de violência, no que diferem dos demais anabatistas. Apud GANZER, K. eBruno Steimer, Dictionary of the Reformation, New York: Herder & Herder, 2004, p. 209.

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sobrecarregada de impostos e controlada por uma Igreja cada vez mais poderosa, segundo

os decretos do Concílio de Trento, e de outro o soberano espanhol, decidido a envidar todos

os esforços para manter “a pureza da fé e o respeito inviolável pela religião”, como jurara

solenemente em 1556.

Cumprindo o projeto eclesial de tentar controlar também a consciência de seus

súditos dos Países-Baixos, Filipe II conseguiu do Papa Pio V que fossem nomeados

dezoito, ao invés dos outrora três bispos para as Províncias. Instaurada a revolta, Filipe

ainda tentou fazer todas as concessões políticas que podia admitir, “mas não concebe reinar

sobre súditos heréticos: para ele a liberdade de consciência é um câncer que deve

desaparecer” 10. Isto possibilitou a intensificação da atividade inquisitorial e deu início à

publicação de uma série de “editais de sangue” 11, que levou à morte milhares de hereges

verdadeiros ou presumidos em um intervalo de breves anos.

A peculiaridade da Revolução Holandesa, em sua singularidade de luta pela

restituição das liberdades existentes sob Carlos V e perdidas sob Filipe II – não apenas

liberdades religiosas, mas também civis e comerciais –, foi bastante bem estudada por

Martin Van Gelderen, em duas obras “The Dutch Revolt” e “The political thought of the

Dutch Revolt”, nas quais se encontram subsídios que permitem apoiar a definição de

Méchoulan sobre essa ter sido a “primeira revolução moderna”, como já citado.

Um documento publicado em Londres em 1571, escrito por Elias Newcomen e

publicado por John Daye, dedicado a Lorde Cheyne, tendo por título A defence and true

declaration of the things lately done in the Low Country 12, inicia exatamente por denunciar

os abusos da Inquisição, primeiramente na Espanha e posteriormente em seus domínios,

sobretudo nos Países-Baixos. Méchoulan acrescenta outra às razões da repressão espanhola

sobre as Províncias do Norte: para este autor, na visão dos adeptos da Contra-Reforma

“todo comércio, todo lucro é uma forma de judaísmo” 13 que, uma vez erradicado

oficialmente da Espanha, não poderia ter espaço em qualquer parte dos domínios espanhóis.

Este documento foi escrito após a intervenção de Fernando Alvarez de Toledo,

Duque de Alba, mandado por Filipe II à frente de um exército forte para conter a sedição

10 Méchoulan, op. cit. p. 30.11 Bloedplakkaten, em holandês.12 Transcrito integralmente in VAN GELDEREN, Martin. The Dutch Revolt. Cambrige University Press,1993, pp 1-79.

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emergente, tendo recebido duas ordens: restabelecer a autoridade real e erradicar a heresia.

Entre 1567 e 1568, o Duque de Alba organizou um tribunal de exceção, o Conselho dos

Tumultos, conhecido popularmente como “Tribunal de Sangue”. Efetivamente, em 1568

Pio V enviou ao Duque de Alba um chapéu e uma espada, símbolos respectivamente do

poder temporal que Cristo delega ao seu Vigário, e da proteção divina aos que combatem os

inimigos da fé, em reconhecimento aos seus feitos em defesa do Rei e da Igreja. Em 1572,

Alba gabou-se de haver submetido à autoridade do rei todas as províncias rebeladas.

Decidiu exercer da forma mais crua a sua autoridade incontestável: prendeu e mandou

executar rebeldes, fez queimar livros, e centralizou em si o poder.

Contudo, foram as decisões fiscais impostas pelo Duque de Alba o catalisador da

nova rebelião, com a sublevação contra os novos impostos, que estabeleciam o pagamento

da centésima parte dos seus bens e, a cada transação, o décimo dos bens móveis e o

vigésimo dos imóveis 14. Essa reação foi perfeitamente interpretada por Grotius, que

escreveu:

“Este povo viu seus cidadãos serem entregues às chamas e

mortos os seus chefes. Suas leis, sua religião, seu governo lhe

foram tirados e ele quase não reagiu; só hoje ele se levantou

para vingar os males passados e afastar os que o

ameaçavam. A concordância nunca se estabelece mais

firmemente entre os homens do que quando o interesse

privado está em jogo.” 15

De um lado, o Duque de Alba, capitão experimentado que já havia comandado os

tercios espanhóis na Itália, dispondo de poderoso e bem armado exército, contando com os

elevados, embora mais escassos, recursos do tesouro espanhol. Do outro, Guilherme de

Orange, que teve que se exilar temporariamente em suas terras na Alemanha, cujos bens

nos Países-Baixos estavam confiscados, tendo que pagar às suas próprias expensas um

exército de livres combatentes, chamados pelos espanhóis de “mendigos”.

Mendigos em terra, mendigos no mar. Melhor dizendo: “mendigos do mar”, como

passaram a ser chamados aqueles marinheiros e capitães que haviam recebido carta de

13 op. cit.. p. 67.14 MÉCHOULAN, op. cit., p. 24-25.15 Annales et histoires dês troubles des Pays-Bas, Paris, 1672, apud Méchoulan, op. cit. p. 25.

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corso 16 do próprio Guilherme de Orange e que agora sequer podiam aportar na Inglaterra,

onde Elizabeth lhes negara permissão de abrigo. Foram esses homens do mar, em princípio

mais dados aos ofícios do comércio e do corso, que impuseram algumas importantes

derrotas aos espanhóis.

É importante recordar que a dramática situação econômica da Coroa Espanhola

levou Filipe II a proclamar em 1575 uma Declaração de Falência 17, o que fez com que os

credores não mais emprestassem dinheiro à Espanha e o fluxo de dinheiro entre a Espanha e

os Países Baixos fosse subitamente interrompido em 1° de setembro de 1575. Este quadro

deixou o Governador Geral dos Países Baixos 18, Luís de Requesens, que substituíra o

Duque de Alba em 29 de novembro de 1573, “horrorizado”, nas palavras de Martin Van

Gelderen 19, que cita o relato de Lovett 20: “Aqueles que aconselharam e arranjaram essa

Declaração fizeram com que a Igreja Católica perdesse esses Estados”.21

A repentina morte de Requesens em 5 de março de 1576 fez com que o Conselho de

Estado 22 assumisse as funções executivas interinamente, sendo colocado sob intensa

pressão por parte dos que queriam a implementação da solução política vislumbrada por

Requesens (as províncias católicas do Sul) e os grupos mais ao centro, que exigiam a saída

de todos os estrangeiros dos Países Baixos e o retorno ao antigo sistema de governo, com

um papel central para os Estados Gerais e concessões aos protestantes. Tais demandas

deixaram o Conselho de Estado em uma posição bastante desconfortável, visto as demandas

dos grupos mais extremados chegarem a exigir a eliminação dos soldados espanhóis,

usualmente dados a motins e pilhagens, e à reivindicação de que os Países Baixos fossem

governados por seus cidadãos, o que levou Filipe II a proibir ao Conselho de Estado

16 Autorização para saquear navios mercantes espanhóis ou de bandeiras de nações inimigas. Foi a primeiralegitimação da atividade de corso e pirataria na História Moderna.17 Pela Declaração de Falência, Filipe II confessava não haver possibilidade de o Erário espanhol honrar osmuitos empréstimos levantados pela Coroa para fazer face às muitas campanhas militares e à cada vez maiscustosa manutenção da administração do Império.18 É interessante recordar que, para os Países Baixos, Filipe II nomeou Governadores Gerais, ao contrário deseu uso de dotar seus domínios de Vice-Reis.19 The political thought of the Dutch Revolt 1555-1590. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p.45.20 in The Governorship of Don Luís de Requesens, p. 19821 idem ibidem.22 O Conselho de Estado era o Órgão responsável pelo Governo das Províncias Unidas. Não se deve confundircom os Estados Gerais, assembléia formada pelos representantes nomeados pelas Províncias. ApudMÉCHOULAN, H.. Dinheiro & Liberdade... pp. 43-48.

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quaisquer contatos com a Zelândia e a Holanda, as duas Províncias do Norte que lideravam

a revolta.

O desenrolar dos eventos, com o Conselho simpatizando com algumas das

reivindicações, levou seus membros à prisão em 4 de setembro de 1576, do que se

aproveitaram as províncias católicas para interromper todas as conversações com a Holanda

e a Zelândia, visando à pacificação. Todas as demais províncias do Norte foram convidadas

à convocação e composição dos Estados Gerais, exceto essas duas, tidas (especialmente

pelos brabantinos 23) como irredutíveis. Registre-se que tal convocação era uma afronta às

Ordenações, visto que era estatuído que somente o soberano poderia convocar os Estados

Gerais. Nenhuma das Províncias do Norte aceitou o convite.

Por paradoxal que possa parecer, essa situação foi bastante conveniente à Zelândia e

à Holanda, especialmente a Guilherme de Orange, a quem interessava que a revolta se

espalhasse pelas demais províncias.

Em 8 de novembro de 1576 foi assinada a Pacificação de Gande pelos Estados

Gerais, “uma firme e inquebrável amizade e paz entre as Províncias Holandesas” 24, cujo

objetivo era repelir os incontroláveis (especialmente amotinados) soldados espanhóis e

reinstalar todos os antigos privilégios. Esta proclamava um perdão geral e ordenava que as

“Províncias Holandesas” doravante se comprometessem a “assistir-se a todo tempo com

conselhos e atos, bens e sangue” e “especialmente, expulsar de seu território todos os

soldados espanhóis e demais estrangeiros e forasteiros e mantê-los fora”, tendo sido

estabelecido pelas Províncias que, uma vez isso ocorrendo, os Estados Gerais se reuniriam

para discutir de todos os demais assuntos pendentes, inclusive a questão religiosa.

Foram suspensos os éditos de perseguição aos hereges, sendo, porém, assegurado

que a prática da religião católica não sofreria qualquer obstáculo. Também a liberdade

comercial foi restabelecida pela Pacificação de Gande.

Exatamente o fato de a questão religiosa permanecer em aberto, sendo

diametralmente opostas as posições do Rei e dos Estados Gerais, tornou a Pacificação de

Gande não uma firme e inquebrável paz e amizade entre as Províncias, mas uma frágil paz,

especialmente por ter sido precedida de uma tentativa pelos Estados Gerais, em 6 de

23 Brabantinos: Naturais de Brabantes, católicos das Províncias do Sul.24 VAN GELDEREN. op. cit. p. 46. “Holandesas” aqui correspondendo ao inglês “Dutch”.

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outubro de 1576 (treze dias antes de se iniciar as conversações da Pacificação), de colocar

novamente a Holanda e a Zelândia sob o domínio de Filipe II. O que se tem nessa situação

é que os opositores de Filipe II nas Províncias do Norte exigiam também uma resistência

firme aos católicos.

O novo Governador Geral das Províncias do Sul, D. João d’Áustria, chegado no

início de 1577, relutantemente concordou com a Pacificação de Gande e com o envio das

tropas espanholas de volta à Espanha, tendo assinado, com os Estados Gerais, o “Édito

Eterno”, em 12 de fevereiro de 1577, submetendo todas as Províncias a Filipe II e à Igreja

Católica, o que era inaceitável para a Holanda e para a Zelândia.

Evidenciava-se que os Estados Gerais tornavam-se uma força política verdadeira e o

fato de João d’Áustria haver executado um protestante e, em 24 de julho de 1577, haver

sitiado a cidadela de Namur, eventos que opuseram o Governador aos Estados Gerais,

deixaram isso ainda mais claro, com a segunda União de Bruxelas, de dezembro de 1577.

Contudo, embora fortes, não eram monolíticos, havendo em seu interior forças que

desejavam minar o crescente poder de Guilherme de Orange. Este, por sua vez, estimulava

grupos não-aristocráticos nas Províncias do Sul, especialmente em Flandres e Brabante.

Tais comitês revolucionários, chamados de Comitês dos XVIII, ganharam força e levaram a

que Guilherme de Orange fosse apontado ruwaard (regente) de Brabante.

O aumento da rebelião levou à cisão entre as Províncias do Norte e as do Sul. Estas,

submeteram-se a Filipe II e à Igreja Católica, ao passo que aquelas preferiram lutar por um

soberano próprio, independente do trono espanhol, que lhes assegurasse liberdade

comercial e religiosa.

Em 1578, recrudesceram os combates e começou a desenhar-se uma divisão entre as

Províncias do Norte e as do Sul; estas, lideradas por Artois, Hainaut e Flandres, de

população majoritariamente católica. Em 6 de janeiro de 1579, a paz de Arras, assumindo a

defesa do catolicismo reconciliou as Províncias do Sul com Filipe II. Dezessete dias depois,

as Províncias do Norte reagiram, formando a União de Utrecht, unindo as províncias da

Holanda, Zelândia, Frísia, Utrecht, Gueldre, Groningen e Overijssel., sob a liderança de

Guilherme de Orange, conservando suas liberdades tradicionais e estatutos, e firmando

pacto de mútua ajuda.

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Alexandre Farnésio, sobrinho de Filipe II e por ele nomeado governador da região a

partir de fins de 1578, tirou partido da divisão e reconheceu às províncias submetidas o

direito de discutir os impostos e prometeu-lhes um príncipe da Casa de Espanha como

futuro soberano.

Para os registros historiográficos, a partir de então essas províncias tornaram-se os

Países Baixos espanhóis, enquanto que as províncias do Norte passaram a ser as Províncias

Unidas sob o Príncipe de Orange.

Ainda foi tentada nesse mesmo ano uma reconciliação em Colônia, estimulada pelo

Imperador do Sacro Império, desde 1576 Rodolfo II, com todos os príncipes europeus

representados, incluindo Guilherme de Orange, o Papa e Filipe II. Entretanto, as condições

à pacificação impostas pelo rei espanhol, representado por Carlos de Aragão, Duque de

Terranova, foram consideradas inaceitáveis, com a imposição do exílio a Guilherme e a

concessão de um tempo de quatro anos para a organização do exílio dos que quisessem

praticar outra religião 25.

Por oportuno, transcreve-se o texto dos Artigos concernentes à Religião das

condições para a pacificação, como citados em The Dutch Revolt 26:

“No tocante à religião, que deve ser muito correta e altamente

recomendado a todos os Príncipes Cristãos, o Rei não pode, de

nenhuma outra forma, fazer qualquer outra coisa senão (...)

desejar fortemente e mandar que a religião católica apostólica

romana seja defendida e praticada em suas províncias

patrimoniais (...) Com exclusão de todas as outras, esta religião

será ensinada e praticada livremente, pacificamente e sem

nenhum obstáculo pelas Províncias dos Países Baixos (...) Visto

que Holanda, Zelândia e a cidade de Bommel estão envolvidas,

isto refere-se ao decreto do tratado da Pacificação de Gande, já

sob a condição de que a religião católica romana seja

25 Filipe, mutatis mutandis, aplica a mesma fórmula adotada no Édito de Granada, de 1492, no qual os ReisCatólicos, Fernando e Isabel, deram o prazo de seis meses para a conversão ou exílio dos judeus emuçulmanos residentes na Espanha. Apud VAN GELDEREN, Martin. The Dutch Revolt. pp. 149 ss.26 Apud VAN GELDEREN, Martin. The Dutch Revolt. op. cit., pp. 153-154.

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restabelecida nas cidades e lugares onde ela era praticada ao

tempo daquele tratado”.

As mesmas condições igualmente consideravam as relações do Estado com os

súditos que houvessem apostatado do catolicismo, sendo-lhes concedida a possibilidade de

permanecer e viver naquelas províncias, sem qualquer punição ou importuno por conta dos

cartazes promulgados sobre religião. A esses súditos foi imposta a condição, entretanto, de

que se abstivessem de “escândalos ou emoção” e da prática de qualquer outra religião que

não a católica romana, tendo sido assegurada a posse e uso de seus bens pessoais. Poderiam

retornar às províncias tão freqüentemente quanto quisessem, sendo ressalvado que

“deveriam viver, entretanto, de forma católica, portando-se como católicos deveriam fazê-

lo”. Como se observa, o que Filipe II propunha não era conciliação, mas rendição.

O movimento da Reforma Protestante nos Países-Baixos remonta aos anos de 1520,

tendo sido iniciado pelo sul do País. Isso gerou reação imediata de Carlos V, que em 1522

aprovou a instalação do Santo Ofício nas províncias que constituíam os Países-Baixos. Já

em 1523 foram queimados em auto-de-fé, em Bruxelas, os dois primeiros reformados

holandeses, os frades agostinianos Hendrick Voes e Johannes Esch. Igualmente os

anabatistas conquistaram muitos seguidores, muitos dos quais, após os eventos de Münster,

em 1535, juntaram-se aos seguidores de Menno Simmonsz, constituindo o grupo dos

menonitas. A maioria dos anabatistas holandeses, no entanto, aderiu às teses calvinistas,

vinculando-se à Igreja Cristã Reformada. 27

A perseguição aos “heréticos reformados” intensificou-se, como visto, no reinado de

Filipe II, cujo principal conselheiro para as Províncias que constituíam os Países-Baixos era

Granvelle, arcebispo de Malines (ao norte de Bruxelas) e depois elevado ao cardinalato,

definido por Méchoulan como “personagem inteligente, ambicioso e astuto” 28. Este,

sobretudo ao ter aumentado o seu poder, desperta ressentimentos tanto na nobreza, que não

admitia ter Filipe preferido Granvelle – nascido no Franco-Condado e com origens na gleba

– a Margarida de Parma, como na população, que via crescer o poder de um hierarca da

Igreja Católica 29.

27 SCHALKWIJK, F. L.. Igreja e Estado no Brasil Holandês, 1630 – 1654. Editora Cultura Cristã, SãoPaulo, 2004, p. 30 ss.28 MÉCHOULAN, H.. Dinheiro & Liberdade… p.18.29 MÉCHOULAN, H.. Dinheiro & Liberdade…, p. 19.

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Os acontecimentos subseqüentes ao desaparecimento do Rei de Portugal, D.

Sebastião, na batalha de Alcácer-Quibir, em 1578, que levaram o trono português a ser

ocupado brevemente por seu tio, o Cardeal D. Henrique, visto que o jovem desaparecido

monarca não deixara filhos, fizeram com que Filipe II clamasse para a Espanha o direito à

sucessão da Coroa portuguesa, pelos vínculos de sangue da Infanta Joana, mãe do falecido

monarca português e irmã de Felipe.

Ressalta Jacqueline Hermann 30 que o Cardeal jamais aceitou a nomeação de Filipe

II como sucessor legítimo do trono de Portugal. Sua preferida era a Duquesa de Bragança,

D. Catarina, sem apoio na Corte. O outro pretendente de maior expressão foi D. Antonio,

sobrinho ilegítimo do Cardeal, por este igualmente rejeitado na disputa sucessória. Ao

morrer, em janeiro de 1580, D. Henrique deixou Portugal governado por uma Junta de

Governadores, destituída por Filipe II. As tropas espanholas tomaram Lisboa sem grande

dificuldade, pois boa parte da nobreza já havia aderido ao lado castelhano.

Consumada a União Ibérica em 1580, após dois anos de intensas negociações,

Portugal atraiu para si os muitos inimigos da Coroa Espanhola, dentre os quais os

holandeses. Esses “mendigos do mar”, que impuseram derrotas pesadas aos espanhóis e

eram hábeis navegadores, tendo desde meados do século XV dominado o comércio no

Báltico, derrotando a Liga Hanseática, sentiram-se livres para atacar as colônias

portuguesas, com quem mantinhas boas relações, apesar das diferenças religiosas, agora

domínios espanhóis, muito menos guarnecidas do que as colônias originalmente

espanholas.

Há dois historiadores referenciais para a compreensão desse período, sendo o

primeiro deles Francisco Adolpho de Varnhagen, que em sua obra 31, considera o marco

inicial da presença holandesa na América Portuguesa o ano de 1624, quando da efêmera

conquista da Bahia pelos holandeses. Varnhagen representa uma linha historiográfica,

hegemônica no século XIX no Brasil, que tendia a considerar invasores todos os

estrangeiros não portugueses. O segundo é Charles Robert Boxer que, escrevendo mais de

um século depois sua importante obra sobre a presença holandesa no Brasil 32, confirma

30 Cf. HERMANN, J.. No reino do Desejado. S.Paulo: Companhia das Letras, 2000, cap. 3.31 VARNHAGEN, F. A.. História das lutas com os holandeses no Brasil desde 1624 até 1654. Rio deJaneiro: Bibliex, 2002.32 BOXER, C. R.. De Nederlanders in Brazilië 1624 – 1654. Alphen: A. W. Sijthoff, 1977

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Varnhagen em alguns pontos. Ambos os autores convergem para a observação de que o

recrudescimento das hostilidades contra a América portuguesa foi resultante da União

Ibérica, quando, submetida à Coroa da Espanha, Portugal herdou, como acima mencionado,

também os inimigos dos espanhóis.

Varnhagen assinala:

Claro está que sendo a maior parte destes inimigos nações

marítimas, a própria vastidão, quase imensa da nova

monarquia a cujos destinos se havia associado a nascente

Colônia Brasília, dificultava a sua defesa e a deixava

vulnerável, como uma das paragens que menos lhe

interessava atender. 33

Efetivamente, os novos soberanos não dedicaram à ex-colônia portuguesa, continua

o mesmo autor, da qual os únicos produtos de algum valor eram o açúcar, ainda

escassamente produzido, e a madeira, cujo nome deu nome à Colônia, o mesmo nível de

proteção que davam ao México e ao Peru, cujas reservas de ouro e prata garantiam aos

espanhóis sucesso no financiamento de muitas guerras. Assim, desde 1581 aumentaram as

hostilidades de navios franceses, ingleses e holandeses contra o litoral nordestino da

América Portuguesa. Neste contexto, entende-se que a disputa comercial entre Holanda e

Espanha revestia-se de um caráter de guerra religiosa.

Em 30 de outubro de 1592, o governo espanhol instituiu o Consulado, imposto de

3% sobre o comércio na Colônia, a fim de armar e equipar esquadra para comboiar navios

mercantes. Embora cobrado, jamais a Espanha enviou tal comboio. Varnhagen enumera

ainda uma série de Cartas Régias, Resoluções e Providências promulgadas entre 1591 e

1614, que restringiam ou impediam a navegação de estrangeiros para as terras

conquistadas, determinavam que não fossem tolerados no litoral e mesmo determinando o

sentenciamento na própria Colônia de estrangeiros que nela fossem capturados. Destaque

deve ser dado à Carta Régia de 5 de janeiro de 1605, que proibia todo o comércio com os

33 Varnhagen, op. cit. p. 46.

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holandeses 34. Na prática e em tese, a partir dessa Carta Régia, os holandeses estavam

postos à margem do comércio com o resto do mundo. 35

Varnhagen afirma que a trégua de 12 anos, iniciada em 1609, no reinado de Filipe

III, “foi de tal modo redigida que não compreendeu nenhuma cláusula, ressalvando de todo

as hostilidades contra as colônias portuguesas. Desta falta se aproveitaram logo os

holandeses, caindo sobre a Índia portuguesa, apoderando-se de todo o comércio do

Oriente”. 36

Boxer chama ao momento iniciado em 1598 de “expansão ultramarina fenomenal

dos holandeses” 37, associando tal expansão, iniciada pelo Mar do Norte, a uma reedição

em versão flamenga do “aventureirismo elisabetano”, de tal sorte que a expansão do

puritanismo inglês teve sua correspondência na expansão do calvinismo dos holandeses. O

século XVII poderia ser denominado de “o Novo Século Elisabetano”. Boxer amplia o

contexto dessa expansão holandesa, associando-a ao processo de independência do domínio

espanhol das Províncias Unidas sob o Príncipe de Orange, que resultou na Guerra dos

Oitenta Anos, que opôs as Províncias Unidas à Espanha, somente encerrada em 1648. Essa

expansão teria que se fazer à custa de se tentar conquistar Colônias Ibéricas, realçando

Boxer que no ano de 1600, não havia um único centímetro colonial em todo o mundo,

pertencente aos espanhóis ou portugueses, que formaram a União Ibérica, de Macau na

China a Callao no Peru, que não estivesse visado [pelos holandeses]. 38

O mesmo Boxer vai além, ao afirmar:

“(...)pois quando os holandeses passaram à ofensiva na

sua Guerra dos Oitenta Anos pela independência contra a

Espanha, no fim do século XVI, foi contra as possessões

coloniais portuguesas mais do que contra as espanholas

34 Docs. citados in Varnhagen, op. cit. p. 47.35 Cf., a esse respeito, ISRAEL, Jonathan I.. Conflicts of Empires: Spain, the Low Countries and theStruggle for World Supremacy, 1585-1713. Londres: Hambledon & London, 1997.36 VARNHAGEN, op.cit. p. 48.37 BOXER, C. R.. op. cit. p. 13 – todas as citações dessa obra são feitas a partir da edição holandesa referida,em tradução livre.38 Ibidem idem.

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que os seus ataques mais pesados e persistentes se

dirigiram”. 39

O que se depreende da leitura desses dois autores é que os alvos dos holandeses não

eram Portugal ou suas Colônias, mesmo porque tinha havido entre holandeses e

portugueses um relacionamento comercial bastante proveitoso. O alvo eram as antigas

colônias portuguesas, que tinham agora se constituído em domínios espanhóis, muito

menos fortificados do que as lucrativas colônias espanholas na América do Sul e no Caribe.

A União Ibérica fez, portanto, da América Portuguesa um atraente objetivo militar e

comercial para os holandeses, havendo por parte destes interesse em “cortar as veias pelas

quais fluía a riqueza do sangue de Filipe da Espanha”, como se referiam os holandeses,

então, à possibilidade de interromper o afluxo de riquezas da América para a Espanha 40.

Economicamente, havia três alvos fundamentais para os holandeses: o açúcar do Brasil e,

em menor escala, do Caribe, os escravos da Costa Oeste africana (essenciais para a

produção do primeiro) e o principal: os metais preciosos extraídos das colônias espanholas

nas Américas. Conseguindo as Províncias Unidas controlar esses mercados produtores (ou,

ao menos, infligindo prejuízos à Espanha), a guerra na Europa poderia mudar de feição, de

forma a minar o forte poder bélico e militar dos espanhóis.

Segundo registros do cronista Johannes de Laet, por volta de 1600 os holandeses

possuíam duas fortificações de madeira na margem oriental do Rio Xingu, os Fortes

Oranije e Nassau, fundados por mercadores vindos da Zelândia. De 1616 a 1622, subsistiu

uma colônia fundada por Pieter Adriaenszoon e 150 holandeses nas margens do Rio

Jenipapo, cuja principal atividade era o comércio com nativos 41.

Visando a implementar de forma mais sistematizada a exploração do Norte da

América portuguesa e como reação à política restritiva ao comércio implementada pelos

espanhóis, em 1602 foi fundada em Amsterdã a Companhia das Índias Orientais (VOC –

Verenigde Oostindische Compagnie), com capital majoritário holandês e francês, tendo a

missão de explorar a rota oriental para as Índias e estabelecer lá feitorias. A Companhia das

Índias Ocidentais (WIC – West Indische Compagnie) foi fundada em 1621, com capital

39 BOXER, C. R..O império marítimo português 1415-1825, São Paulo: Companhia das Letras, 2002,p.123.30 Apud LOPEZ, Adriana. Guerra, Açúcar e Religião no Brasil dos Holandeses. S. Paulo: Ed. SENAC,1999, p. 35.

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holandês, francês, inglês, alemão e judaico, tendo por missão estabelecer feitorias em

ambos os lados do Atlântico, ocupando especialmente as possessões portuguesas, então

submetidas ao domínio espanhol.

O inspirador da criação dessa Companhia, Willem Usselincx, foi o grande

estrategista da expansão marítima das Províncias Unidas e um dos principais idealizadores

dos ataques à Costa Oeste africana e ao litoral brasílico, este deixado a cargo de Jakob

Willekens, Piet Heyn e Jan van Dorth, o último como responsável pelas forças terrestres 42.

Boxer e Varnhagen concordam em que, em um primeiro momento, não havia,

quanto ao litoral da América Portuguesa, estratégia de ocupação e conquista do território,

mas tão somente a captura e apresamento de navios comerciais que partiam em direção à

Europa. Tal prática, embora o estado de guerra entre Espanha e Holanda o

descaracterizasse como tal, assemelhava-se à prática do corso, legitimada por decreto de

Guilherme I de Orange, “o Taciturno” desde o final do século XVI.

Somente ao se darem conta da fragilidade das fortificações da Bahia é que os

holandeses empreenderam ação de conquista mais incisiva, tomando a cidade da Bahia com

pouco esforço, entre 8 e 10 de maio de 1624. Com os exércitos holandeses, vieram os

pastores e missionários da Igreja Reformada Holandesa. O primeiro culto na cidade de

Salvador realizou-se no dia 11 de maio de 1624, um dia após a captura da cidade, sendo

dirigente e pregador o Rev. Enoch Sterthenius 43.

A ausência de um plano efetivo de ocupação do território, a quebra dos princípios

da disciplina e o envio de forte esquadra espanhola para a reconquista da Bahia fizeram

com que a ocupação da Bahia pelos holandeses terminasse em 1626, sem que as medidas

votadas pelos Estados-Gerais naquele mesmo ano, garantindo liberdade de culto e de

comércio, chegassem a entrar em vigor 44.

Sobre o citado Piet Heyn, Hermann Wätjen 45 destaca que este teve meteórica

ascensão dentro da frota holandesa, após o apresamento, em setembro de 1628, de uma

grande frota de galeões espanhóis carregados de prata, ouro, pérolas, anil, pau campeche,

41 SCHALKWIJK, F. L.. Igreja e Estado no Brasil Holandês, S. Paulo: Editora Cultura Cristã, 2004, p. 43.42 SCHALKWIJK, F. L.. Op. cit., pp. 24 ss.43 Idem, p. 26.44 Idem ibidem.45 WÄTJEN, H.. O domínio colonial holandês no Brasil. Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 3ª ed.,2004, p. 93-94.

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açúcar e outros bens, na Baía de Matanzas, norte de Cuba, que rendeu à Companhia das

Índias Ocidentais a soma de 15 milhões de florins. Tal feito o levou a ser admitido à Mesa

de Guilherme de Orange e nomeado almirante suplente da Holanda, o segundo posto na

hierarquia naval das Províncias Unidas.

Esse extraordinário aporte de recursos fez a Companhia das Índias Ocidentais

sentir-se, nas palavras de Wätjen, “como renascida” 46. Daí a decisão de nova incursão

militar contra a América Portuguesa, especialmente dados os rumores de que a paz com a

Espanha estava à porta. Cita Wätjen:

“A Diretoria da W.I.C. dirigiu-se aos Estados Gerais e lhes

explicou num memorial [Nº 5770, de 23 de outubro de 1629]

por que razão a cessão das hostilidades importaria numa

sentença de morte para a Companhia. Temos necessidade de

dinheiro, ressoa em cada linha, ‘e só nos traz dinheiro a luta

incessante com a Espanha.Se queremos prover o nosso

erário, então precisamos capturar navios e por em almoeda

as presas. A continuação da guerra é, por conseguinte, uma

questão de vida e morte para a W.I.C.’.” 47

O malogro das tentativas de paz possibilitou à Companhia levar a cabo seu intento

de dar prosseguimento às hostilidades contra a Espanha, visando a atacar novamente o

litoral nordeste do Brasil, focando o alvo na capitania açucareira de Pernambuco.

Uma empreitada de tal magnitude não conseguiria ficar em segredo, tendo chegado

à corte de Bruxelas e, desta, a Madri, que notificou o Vice-Rei do Brasil. A vazante do

tesouro espanhol não permitia que a Espanha conseguisse mobilizar forças e recursos

próprios, mas como se encontrava em Madri àquela ocasião (setembro de 1629) Matias de

Albuquerque, um dos principais senhores de engenho de Pernambuco, e irmão do donatário

da capitania, Duarte de Albuquerque, o Primeiro-Ministro Conde de Olivares o incumbiu de

organizar a defesa da capitania ameaçada.

Ao chegar a Pernambuco, em outubro de 1629, Matias de Albuquerque constatou

que não havia como fazer frente à superioridade bélica dos holandeses, mas ainda assim

46 WÄTJEN, op. cit. p. 95.47 Op. cit. p. 95.

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buscou restaurar as fortificações nas capitanias de Pernambuco, Itamaracá, Paraíba e Rio

Grande do Norte, além de determinar o alistamento de dois mil novos recrutas.

Os holandeses aportaram em Recife em 15 de fevereiro de 1630, comandados pelo

Almirante Hendrick Corneliuszoon Lonck à frente daquela que documentos da época

denominaram “a maior armada que já cruzou o equinocial” 48, tendo Recife, Olinda e

Antonio Vaz caído em 3 de março do mesmo ano, graças também aos esforços do exército,

comandado pelo coronel Jonkheer Diederick van Waerdenburch, nomeado governador da

região conquistada pelos holandeses e presbítero da Igreja Holandesa Reformada. Em 1633,

Van Ceulen tomou o Forte dos Reis Magos, renomeado Fort Van Ceulen. Em março de

1635, Porto Calvo – terra natal de Domingos Fernandes Calabar, que desertara para o lado

dos holandeses três anos antes e se fizera profissão pública de fé 49 na Igreja Reformada em

20 de setembro de 1634 – foi conquistado, e em 1637, o coronel alemão Von Schkoppe, a

serviço dos holandeses, conquistou Sergipe, o que fez com que a Holanda tivesse posse da

metade das então dez colônias que constituíam o Estado do Brasil, uma vez que os

holandeses já dominavam um território que se estendia de São Cristóvão (Sergipe) até São

Luís do Maranhão, incluindo Fernando de Noronha 50.

A esta ocupação do litoral brasileiro correspondia igualmente o controle do litoral

do oeste africano, com o controle holandês desde 1612 sobre Mouri, na Costa do Ouro

(atualmente Gana), tomando aos portugueses S. J. da Mina (Elmina) em 1637 e Luanda,

Benguela, São Tomé e Ano Bom em 1641. Isso dava aos holandeses praticamente o

monopólio do comércio de escravos no Atlântico Sul.

Wätjen 51 discute a historiografia do século XVII até o início do século XX quanto

à teoria de que os holandeses foram forçados a empreender longas viagens transoceânicas

face ao impedimento de comércio imposto por Filipe II aos barcos holandeses em todos os

domínios espanhóis - e também portugueses, após 1580, como os aprisionamentos de

48 Segundo o cronista de Laët, apud Wätjen (op. cit. p. 99), “a esquadra expedicionária compunha-se de 35grandes naus, 15 iates, 13 chalupas e duas embarcações inimigas capturadas, com guarnição de 3.780marinheiros, 3.500 soldados e um armamento de 1.170 canhões de todos os calibres”.49 A profissão pública de fé era o ato formal determinante da conversão de um cristão à fé reformada, desdeque este já houvesse sido batizado em qualquer outra Igreja cristã.50 V. BOXER, C. R., Zeevarend Nederland en zijn wereldrijk 1600-1800. Amsterdã: Mutinga-Maarten/Rainbow , 1ª ed., 2002, p. 164-168 e BOXER, C. R., De Nederlanders in Brazilië 1624 – 1654.Alphen: A. W. Sijthoff, 1977, p. 238-259.51 WÄTJEN, H.. O domínio colonial holandês no Brasil. Recife: Cia. Editora de Pernambuco, 2004, 3ªedição, pp. 70 ss.

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barcos holandeses em 1585 e 1595. Os defensores dessa tese, como Blok e Preuss 52,

sustentavam que não haveria necessidade, antes de 1580, de que os holandeses

empreendessem longas e perigosas viagens em busca de açúcar, madeiras de tinturaria,

tabaco etc. enquanto os portos portugueses se lhes encontrassem abertos. Fundamentam-se

Blok e Preuss em um documento datado de 1622, citado por J. R. J. de Jonge 53, no qual

representantes dos comerciantes assim se dirigem aos Estados Gerais: “Os nossos amigos

comerciais portugueses têm em todos os tempos correspondido às suas obrigações e nos

acolhido como se fossem nossos pais”. O mesmo manuscrito, intitulado “Exposição em que

se contém a origem e progresso da navegação e comércio do Brasil com estas terras” 54

acrescenta que desde 1594 os holandeses empreendiam viagens diretas da região da foz do

Reno até o Brasil.

Schalkwijk 55, apoiado em historiografia holandesa, refere que as relações entre os

Países Baixos e a Colônia Brasílica eram boas até o momento da União Ibérica. De um

modo especial, essa presença pacífica remontaria às origens das Capitanias de Pernambuco

e de Itamaracá. Cita a presença de Arnau de Holanda, presumido descendente de Dirk I, da

Holanda, que teria vindo ao Brasil em 1535, com Duarte Coelho, aqui permanecendo e

casando-se posteriormente com D. Brites Mendes de Vasconcelos. Na região da Baía de

Todos os Santos, por volta das últimas décadas do século XVI, houve a presença dos

negociantes holandeses Jan van der Beke e Everard Hulscher, como citado por Sluiter, e

referido pelo mesmo Schalkwijk 56.

Também nas Capitanias do Sul a presença e os interesses flamengos se faziam

presentes, como, por exemplo, João Venista, casado com uma holandesa e que trabalhou na

Capitania de S. Vicente, ao lado de Martim Afonso de Souza, como sócio (juntamente com

Erasmo Schetz, banqueiro de Antuérpia) do “engenho do governador”, ou “Engenho de São

Jorge dos Erasmos”

As primeiras incursões militares das Províncias Unidas contra o território da

América Portuguesa somente se deram após 1600, com a fundação de colônias na foz dos

Rios Amazonas, fundadas por refugiados valões, e Xingu, aquelas por e estas por

52 Apud Wätjen, op. cit., pp. 68 e 69.53 Citado por Wätjen, op.cit. p. 69.54 Maço Admiraliteit 1622, Stat gen. Nr. 5470.55 SCHALKWIJK, F. L.. Op. Cit. p. 26 ss.

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zelandeses, que culminaram com a edificação de dois fortes, o Orange e o Nassau. Registre-

se que estes, que chegaram a infiltrar-se cerca de 150 km rio acima, somente foram

expulsos do território da América Portuguesa em 1623, na campanha de Bento Maciel

Parente 57.

É importante frisar que esta expulsão deu-se quando a Companhia Licenciada para

as Índias Ocidentais 58, fundada em 1621, já operava. Esta Companhia tentou, em 1625 e

1627, fundar colônias no Norte do território da colônia luso-hispano-brasílica, no

Amazonas e no Oiapoque, respectivamente, ambas malogradas, ao mesmo tempo em que

promovia a tomada e ocupação da cidade do Salvador, entre 1624 e 1625.

O Nordeste da colônia brasílica era a região que mais havia se desenvolvido no

primeiro século da colonização portuguesa. Especialmente a Capitania de Pernambuco

sobressaía-se econômica e populacionalmente, graças ao plantio da cana-de-açúcar e à

extração e comércio de açúcar. Estima-se que as populações branca e escrava eram

proporcionais, considerando-se a mão-de-obra necessária ao funcionamento dos 66

engenhos existentes nas Capitanias do Nordeste, especialmente Pernambuco e Itamaracá.

Em 1630, segundo dados de José Antônio Gonsalves de Mello 59, cerca de 30 mil colonos

luso-brasileiros viviam nas Capitanias do Nordeste, superando demograficamente uma

população indígena já então em declínio.

Do ponto de vista religioso, tanto as Ordenações Manuelinas como as então vigentes

Ordenações Filipinas determinavam o monopólio religioso do catolicismo romano, devendo

ser recordado que aos judeus e muçulmanos residentes em território espanhol e português,

os Éditos de Granada (1492) e da Vila do Muge (1496) eram as opções de converter-se ou

deixar o território dos Reinos. A década de 1630 encontrou o Brasil com uma única

Diocese, presidida pelo Bispo da Bahia. A tentativa de organização de uma Prelazia

separada que unisse as Capitanias de Pernambuco, Itamaracá, Paraíba e Maranhão

malogrou após desentendimentos com o Bispo da Bahia, levando a, no início do reinado de

Filipe IV (Filipe III de Portugal, 1621-1640), serem nomeados vigários-gerais para a

56 Idem, p. 26.57 Idem, p. 27.58 Geoctroieerde West-Indische Compagnie, em holandês, abreviada por WIC.59 MELLO, J.A.G. Tempo dos flamengos. Rio de Janeiro: Topbooks, 2001.

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Paraíba e o Maranhão, sob a direta responsabilidade do Bispo da Bahia, o que solapou a

autoridade do prelado olindense.

Sobre Olinda, cumpre acrescentar, era o mais importante centro econômico e

cultural do Nordeste da Colônia, contando, por volta de 1630, com uma população de duas

mil pessoas e com cerca de trezentos religiosos, que viviam nos engenhos ou nos quatro

conventos masculinos (beneditino, carmelita, franciscano e jesuíta). Mesmo a forte

religiosidade e a maciça presença de eclesiásticos não evitaram uma decadência moral da

população olindense, o que levou o Frei Antônio Rosado, dominicano, a vaticinar, um ano

antes da invasão holandesa, que “De Olinda a ‘Olanda’ não há mais aí que a mudança de

um i em a, e esta vila de Olinda se há de mudar em Holanda e ser abrasada pelos holandeses

antes de muitos dias; porque, pois, falta a justiça da terra, há de acudi-la a do céu” 60.

O que motivava os holandeses a querer tomar as terras do Nordeste, em geral, e de

Pernambuco, em particular, era o açúcar, produzido à quantidade de setecentas mil arrobas

por ano nos 137 engenhos existentes em Pernambuco 61.

Contudo, não se pode deixar de pensar no componente religioso como um dos

fatores que motivaram a criação da WIC e a expansão ultramarina holandesa. A Reforma

Protestante atingiu os Países Baixos por volta de 1520, iniciando-se pelo sul das 17

Províncias, onde o desenvolvimento de uma indústria têxtil expressiva, que utilizava muitos

operários oriundos do norte da França, permitiu a propagação da fé reformada. Centros

econômicos locais, como Valenciennes, Armentièrre, Lille e Doornick tornaram-se

embriões e centros da Igreja Cristã Reformada. Esta não se considerava uma nova seita ou

igreja, mas sim a continuação da igreja cristã existente nos Países Baixos desde o início da

era cristã 62. Seu alicerçamento de fé eram os “cinco pontos da fé reformada” (Sola Fides,

Sola Scriptura, Sola Gratia, Solus Christus, Soli Deo Gloria)63, evidenciando sua matriz

calvinista, distinguindo-se das dogmáticas luterana e anabatista.

Seu puritanismo peculiar, pois que diferente do puritanismo inglês, aliou-se a um

espírito empreendedor que permitiu o desenvolvimento de um incipiente sistema mercantil

60 Apud Schalkwijk, op. cit., p.28, referindo Camargo: História, 146.61 BOXER, C. R.. Nederlanders in Brasilië, p. 45.62 Confissão Neerlandesa, Artigo 27.63 “Somente a Fé, Somente a Escritura, Somente a Graça, Somente Cristo, Somente a Deus se dê Glória”.

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e financeiro na Holanda nos séculos XVI e XVII, cujo exemplo mais pertinente ao presente

estudo são as Companhias Licenciadas de Comércio para as Índias.

A Companhia das Índias Orientais, fundada em 1602, reproduzia o modelo da “John

Company”, a Companhia das Índias Inglesa, o que a levou a ser chamada popularmente de

“Jan Compagnie”, e foi a responsável pela expansão ultramarina holandesa em direção ao

Índico e ao Pacífico, colonizando terras e estabelecendo colônias e entrepostos comerciais64.

Nesse mesmo ano, Filipe III criou em Portugal o Conselho Ultramarino das Índias,

fechado pouco depois, sendo somente recriado após a Restauração, em 1642, com o nome

de Conselho Ultramarino. Pretendia ser um órgão de controle colonial, a exemplo do que já

existia para as colônias espanholas.

O flamengo Willem Usselinckx, que recebeu parte de sua educação na Espanha, viu

chegarem muitos navios com tesouros ultramarinos, esteve ainda em Portugal e nos Açores65, locais onde pôde conhecer produtos brasileiros. Idealizou a criação de colônias de

reformados na América, mutatis mutandis o mesmo ideal de João Calvino ao imaginar a

“Nova Genebra” no Rio de Janeiro, em meados do século XVI. Ao apresentar seus planos

aos Estados Gerais, Usselinckx insistiu em que ouro não era a única riqueza ibérica oriunda

da América, salientando que Portugal ganhava com o comércio de pau-brasil, açúcar, peles

etc. a soma de 4.800.000 florins anualmente 66.

Essa “guerra do açúcar” é bastante bem explicada por Evaldo Cabral de Mello, que

explora o duplo sentido da expressão, quando afirma: “(...) guerras pelo açúcar, vale dizer,

pelo controle das ricas fontes brasileiras [e] guerras sustentadas pelo açúcar, pelo sistema

econômico e social que se desenvolvera no nordeste a fim de produzi-lo e exporta-lo para o

mercado europeu” 67.

Usselinckx acreditou que não seria necessário invadir as colônias ibéricas na

América, mas sim uma zona entre os antigos domínios portugueses e as possessões

espanholas, tais como a Costa Brava, próxima à Guiana, e a região de La Plata. Enfatizou

ainda que os índios, se houvesse conflito entre os luso-espanhóis e os holandeses, tomariam

64 BOXER. Zeevarend Nederland en zijn wereldrijk 1600-1800, p. 72.65 Em razão da grande quantidade de holandeses nos Açores, essas ilhas eram chamadas de “IlhasFlamengas”. Apud Schalkwijk, p. 51.66 BOXER. Nederlanders in Brasilië, p. 4.

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o partido destes, e idealizou o estabelecimento de colônias na América, com protestantes

oriundos da Alemanha e Escandinávia, além dos holandeses. Deste modo, segundo seu

projeto, haveria florescente comércio entre os Países Baixos e a “Nova Holanda”, na qual

não se deveriam estabelecer indústrias, uma vez que adquiririam produtos manufaturados

na Holanda, nem tampouco a escravidão de nativos ou africanos. Membro ativo da Igreja

Holandesa Reformada, Usselinckx propôs a criação de um conselho teológico para a

Companhia a ser criada, de modo a que se pudesse “implantar a religião verdadeira para

levar muitos milhares de pessoas à luz da verdade e à salvação eterna” 68. Deveriam os

funcionários da Companhia esforçar-se por aprender a língua dos índios 69, ao mesmo

tempo em que lhes ensinariam a língua holandesa 70.

Esses planos foram ao encontro ao desejo dos Estados Gerais de não se empenhar

em mais guerras coloniais, especialmente no Atlântico, onde o comércio fluía bem, com os

navios holandeses operando no Caribe, em busca de peles, açúcar, tabaco, madeira e sal.

Somente após o reinício da guerra com a Espanha os planos de Usselinckx foram

reavaliados e, em 1621, os Estados Gerais aprovaram a criação de uma Companhia

Licenciada de Comércio para as Índias Ocidentais, cuja área de monopólio seria o

Atlântico, da Terra Nova ao Estreito de Magalhães a oeste, e do trópico de câncer ao Cabo

da Boa Esperança, a leste.

Os 74 curadores da Companhia, dentre os quais não se encontrava Usselinckx,

elegeram uma diretoria composta por 19 membros, os “Senhores XIX” (“De Heeren XIX”),

escolhidos entre os representantes das câmaras regionais, cuja representação era

proporcional à participação acionária, sendo as Câmaras de Amsterdã e da Zelândia as mais

importantes.

A hegemonia de Amsterdã na Companhia refletiu-se igualmente nos assuntos

eclesiásticos, com o Presbitério de Amsterdã da Igreja Cristã Reformada sendo o mais

influente e tornando-se a Igreja-mãe da Igreja Reformada no Brasil, sendo responsável pela

67 MELLO, E. C.. Olinda restaurada: guerra e açúcar no Nordeste 1630-1654. p.14.68 Citado por Schalkwijk, Op. Cit. p. 52.69 SCHALKWIIK, F. L.. Op. cit., p. 53.70 Muitos foram as articulações entre os estrangeiros que se aproximaram, ou viveram no litoral brasílico, e osíndios de diferentes etnias. No caso dos holandeses, a ação de Roulox Baro, flamengo que depois de umnaufrágio viveu entre os tapuias no início do século XVII e depois ofereceu seus serviços aos holandeses,ficou registrado em História das últimas lutas no Brasil entre holandeses e portugueses e Relação daviagem ao País dos Tapuias, MOREAU, P. e R. Baro. São Paulo: Livraria Itatiaia Editora, 1979.

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discussão e condução dos assuntos do Presbitério na América Portuguesa, secundada em

importância pelo Presbitério de Walcheren, importante cidade da Zelândia..

Cabe ressalvar que nem todos os acionistas e participantes das Câmaras da

Companhia eram neerlandeses e nem todos eram calvinistas, e que os judeus de Amsterdã

participaram com 1,2% do capital dessa Câmara 71.

Alencastro enfatiza que a WIC fora constituída com “duplo intuito – guerra e

comércio”, sendo os seus insuficientes recursos privados complementados com fundos

públicos, para garantir presença e atuação nos domínios luso-espanhóis 72.

A questão religiosa foi usada como um dos catalisadores na guerra dos holandeses

contra o poder estrangeiro. Há um outro aspecto cuja abordagem deve ser aprofundada, que

é o papel da Igreja Cristã Reformada como fator de coesão e unidade nas Províncias

Unidas. Huizinga 73 sustenta que, sem ela, não se teria fundado o Estado neerlandês nem

este teria se sustentado.

A Igreja Cristã Reformada sustentou a necessidade da união das Províncias em um

embrião do que se poderia chamar de projeto nacional, resistindo às pressões provinciais

para que os Países Baixos fossem considerados sete repúblicas unidas, ao invés de sete

províncias unidas em uma única república, como desejava Guilherme de Orange e assim se

realizou. Isto fez da Igreja uma “Igreja do Estado”, devendo todos os ocupantes de cargos

públicos dela ser membros e levando o Estado a promulgar leis promovendo a guarda e

observância dominical etc.. Essa relação estreita com o poder fez com que o Estado tentasse

controlar a Igreja, sendo esse assunto mais intenso durante a trégua dos doze anos (1609-

1621), que opôs “arminianos” e “gomaristas” 74. Vale dizer que, livres da necessidade de

combater os espanhóis, os holandeses podiam tentar resolver suas questões teológico-

politicas. Os pontos de vista dos arminianos (aristocratas, republicanos e provinciais) sobre

a soberania do governo pareciam diminuir ou ameaçar a liberdade da Igreja por defender o

princípio do poder e da soberania provinciais, tendo por principais partidários membros da

71 MÉCHOULAN, Op. Cit. p.87, e SCHALKWIJK, Op. cit., p. 54.72 ALENCASTRO, L. F.. O trato dos viventes. p. 209.73 HUIZINGA, J. Nederlands beschavings in de zeventiende eeuwe, p 40.74 Seguidores, respectivamente, de Jakob Hermann (Jacobus Arminius) e Frans (Franciscus) Gomarus.

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elite governamental, como Oldenbarenevelt 75 e Grotius. Essas teses enfraqueceriam, se

vitoriosas, a Igreja, pois esta ficaria sujeita às deliberações provinciais sobre a ação

eclesiástica. Seus pontos foram apresentados ao governo em uma “remonstrância” 76, que

foi refutada pelos gomaristas (monarquistas, centralizadores) através de uma “contra-

remonstrância”, o que levou esses grupos a serem conhecidos como “remonstrantes” e

“contra-remonstrantes”, respectivamente.

Declarados inimigos do Estado após o Príncipe de Orange ter se inclinado pelo

partido dos “contra-remonstrantes”, os arminianos foram duramente perseguidos, sendo

multados, presos, exilados ou até mesmo mortos, como ocorreu com Oldenbarenevelt.

Deve ser registrado que a chamada “controvérsia arminiana” somente foi

eclesiasticamente sanada em 1618-1619, com a realização do Sínodo de Dort (ou

Doordrecht), cujos Cânones passaram a integrar as três “Fórmulas da Unidade”

(“Formulieren van Enigheid”), juntamente com o Catecismo de Heidelberg e a Confissão

Neerlandesa. Estas “Fórmulas” funcionariam como acordo de comunhão eclesiástica,

devendo ser subscritos por todos os obreiros da Igreja Cristã Reformada. Assim, a Igreja

que defendia a unidade encontrava a sua própria fórmula de unidade interna.

A Igreja beneficiou-se do grande afluxo de imigrantes e refugiados que acorreram às

Províncias Unidas, sobretudo à Holanda. Entre 1540 e 1630, mais de duzentas mil pessoas

migraram para as Províncias do Norte, muitas das quais vindas das Províncias do Sul, que

haviam sido subjugadas pela Espanha. A população de Amsterdã passou, em um século, de

30 mil para 200 mil pessoas – dos quais um terço eram imigrantes – aumentando em seis

vezes sua área construída 77.

A pujança econômica fez a Holanda e, de modo especial, Amsterdã, viver o seu

“século de ouro”, não apenas no aspecto econômico mas também no cultural – artístico,

sobremodo – e religioso, tornando-se o refúgio preferido pela maioria dos perseguidos

religiosos na Europa, o que incluiu grandes levas de judeus, expulsos da Península Ibérica e

perseguidos em outros lugares da Europa.

75 Johan van Oldenbarenevelt, advogado da Província da Holanda junto aos Estados-Gerais, estadista e umdos fundadores da Companhia das Índias Orientais (Verenigte Oostindische Compagnie – VOC, na sigla emholandês).76 A Remonstrância (hol. Remonstrantie; lat. Remonstrantia) foi o documento pelo qual os arminianosexpuseram, em 1610, em cinco artigos, seus pontos de vista e convicções teológicas.77 MÉCHOULAN, H.. Op. Cit., p. 43.

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Importante distinguir os conceitos de “liberdade de consciência” e “liberdade de

religião”. Na Holanda do século XVII havia liberdade de consciência, sendo as leis editadas

opositoras da “coação das consciências”. Nada obstante, o culto público ainda era restrito e

submetido ao exame das autoridades civis e eclesiásticas da Igreja Cristã Reformada, sendo

em muitos casos permitido mediante o pagamento de taxas e multas. As sucessivas

demandas contra os heterodoxos ou praticantes de outras religiões que a própria Igreja

Reformada fazia aos magistrados civis, dava a estes poder de legislar aproveitando-se da

fragmentação em seitas e igrejas dentro do cristianismo.

Exemplo ilustrativo dessa fluidez de permissões e interditos religiosos é o fato de

que o culto público dos católicos romanos era permitido desde que pagas as taxas

estipuladas pela autoridade civil, ainda que as igrejas católicas romanas fossem, em tese,

secretas (muito embora a legislação distinguisse católicos romanos, armênios e greco-

ortodoxos), enquanto que os luteranos passaram décadas sem autorização para organizar

uma igreja, tendo sido autorizados somente quando a comunidade luterana, composta

majoritariamente por marinheiros, ameaçou emigrar para a Suécia, prejudicando seriamente

os interesses comerciais holandeses no Báltico. Religião e culto público eram, portanto,

negócios de Estado.

Segundo Méchoulan 78, o estabelecimento em Amsterdã dos primeiros judeus

vindos da Península Ibérica e que recusaram a máscara de católicos romanos assumindo sua

identidade como judeus dataria de 1593. Por sua vez, Pilar Huerga Criado aponta 1580

como um ano importante para o registro da presença judaica em Amsterdã 79. Estes

estabeleceram-se com a prudência necessária a homens que falavam português e espanhol,

línguas do “inimigo”, além do ladino, dialeto baseado no espanhol, com elementos de

hebraico. Efetivamente, em 1596 uma reunião desses judeus – chamados até 1648 de

“portugueses” ou “os da Nação” – foi interrompida pela força policial, por acreditar-se

tratar de uma reunião de espiões espanhóis 80. Esclarecida a situação, receberam do

burgomestre a autorização, um ano depois, para que inaugurassem uma casa de culto.

78 Op. Cit. p. 133.79 HUERGA CRIADO, P.. Entre Castilla y los Países Bajos – Lazos familiares y relaciones personales, inCONTRERAS, J., B. J. García García e I. Pulido (eds.): Família, Religión y Negocio. Madri: FundaciónCarlos de Amberes, 2002.80 Ibidem idem.

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Essa tolerância era, contudo, limitada e hesitante, tendo sido oferecida aos judeus

uma liberdade com limites bem definidos e configurados. Em 1615 foi pedido a Grotius um

projeto que regulamentasse a presença dos judeus. Quatro anos após, o burgomestre Pauw

estabeleceu a proibição de relações sexuais entre judeus e cristãos, o que incluía mesmo as

prostitutas cristãs. Os judeus admitidos em Amsterdã não podiam exercer nenhuma

profissão liberal, muitos ofícios lhes eram proibidos e, por não serem nem cidadãos nem

burgueses, não podiam pertencer às guildas. Contudo, diferentemente das demais nações

européias e do Império Otomano – no qual os judeus eram tolerados, mas freqüentemente

humilhados, sobretudo através da prática da dhimmitude 81 –, a República Holandesa

considerava os judeus como seus dependentes. Outras cidades das Províncias Unidas

simplesmente recusavam a presença de judeus.

Contudo, o ódio comum ao fanatismo inquisitorial de certo modo irmanava os

calvinistas holandeses e os recém-chegados judeus, pois ambos se viam como irmãos na

perseguição. Assim, os judeus chegados a Amsterdã eram livres: livres dos guetos, das

“juderías” e das humilhações; livres para exercer seu culto, circular e comerciar, pois se as

relações sexuais entre judeus e cristãos eram interditadas, todas as demais, especialmente as

comerciais, teológicas e intelectuais, eram livres. Dedicaram-se esses judeus a atividades

comerciais e à nascente indústria do livro.

O ardor do reencontro com as práticas judaicas e com a vida comunitária legalmente

estruturada levou os dirigentes da comunidade judaica, o mahamad, a estabelecer zelosas

normas para o comportamento religioso dos integrantes da comunidade. Isso estabelecia

como preço a ser pago pelos judeus para desfrutar da liberdade na República Holandesa a

dupla obediência: tanto ao magistrado da cidade quanto ao mahamad. Essas restrições

geraram vários conflitos no seio da comunidade, levando a duas excomunhões que se

tornaram emblemáticas, a de Uriel da Costa e a de Baruch Spinoza.

O primeiro, suicidou-se antes de lhe ser aplicada a pena acessória à segunda

excomunhão, deixando em sua última carta uma pesada condenação ao comportamento dos

dirigentes da comunidade: “Uma coisa, entre muitas, me espanta (...) : como os fariseus que

vivem no meio dos cristãos podem gozar de uma liberdade tão grande que podem até

81 Cobrança de um imposto diferenciado aplicado a judeus. Essa prática não foi inaugurada pelo ImpérioOtomano, sendo originária do Califado.

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exercer a justiça? Há nisso uma abominação intolerável numa cidade livre, que faz

profissão de manter os homens em liberdade e em paz, ao mesmo tempo em que não os

protege das injustiças devidas aos fariseus” 82. Spinoza reage ao cherem 83 promulgado

contra ele em 27 de julho de 1656 manifestando um violento anti-judaísmo em sua obra,

especialmente no Tratado teológico-político, publicado poucos anos após sua excomunhão.

Esses refugiados judeus empenham-se a fundo nos esforços da República das

Províncias Unidas contra o comércio e o poderio espanhol, e o fazem com certa facilidade,

até, em razão de seus parentes e amigos que ou não conseguiram sair ou optaram por ficar

na Península Ibérica. Estes, quando podiam, enviavam seus capitais a Amsterdã, de tal

forma que muitos judeus daquela cidade, ainda que aparentando ser homens ricos, eram

administradores e gerentes de fortunas que não lhes pertenciam.

Essa teia de relacionamentos fez com que os judeus, mercê de seus contatos em

muitos países da Europa, no Império Otomano, na África e na América luso-espanhola,

infligissem sérios danos ao comércio espanhol. Em 1634, o capitão Estebán de Ares

Fonseca relatou como os interesses espanhóis na América foram prejudicados por judeus da

Holanda e como os planos fornecidos por um judeu de Amsterdã permitiram aos holandeses

tomar Pernambuco. Ainda que esta última afirmação possa ser contada no que

82 Apud OSIER, J.-P.. D’Uriel da Costa à Spinoza. Paris, 1983, citado em MÉCHOULAN, op. cit., p. 135.83 Decreto de excomunhão subscrito por um tribunal rabínico. Por sua contundência absolutamente rara,merece ser integralmente transcrito nesta nota, como um exemplo do zelo excessivo das autoridades judaicasna Holanda: “Os Senhores do Ma’amad, isto é, o corpo dirigente dos seis parnassim e o Gabbai, anunciamque tendo longamente conhecido as más opiniões e atos de Barcuh de Espinoza, tentaram esforçar-se porvários meios e promessas para demovê-lo de seus maus caminhos. Mas tendo falhado em fazê-lo corrigir seusperversos caminhos e, pelo contrário, recebendo diariamente mais e mais sérias informações sobre asabomináveis heresias que ele praticou e ensinou e sobre seus feitos monstruosos, e tendo para isso numerosastestemunhas confiáveis que depuseram e prestaram testemunho sobre isso na presença do dito Espinoza,convenceram-se da verdade desse assunto; e depois de tudo isso ter sido investigado na presença doshonoráveis chachamim, decidiram, com seu consentimento, que o dito Espinoza deveria ser excomungado eexpelido do povo de Israel. Por decreto dos anjos e dos santos homens, nós excomungamos, expelimos,amaldiçoamos e danamos Baruch de Espinoza, com o consentimento de Deus, Bendito seja Ele, e com oconsentimento da inteira santa congregação, e em frente desses rolos santos com os 613 preceitos que estãoinscritos neles; amaldiçoando-o com a excomunhão com que Josué excomungou Jericó e com a maldição comque Eliseu amaldiçoou os meninos e com todos os castigos que estão escritos no Livro da Lei. Amaldiçoadoseja ele de dia e de noite; amaldiçoado seja ele ao se deitar e ao se levantar. Amaldiçoado seja ele ao ir e aoretornar. O Senhor não o poupe mas a ira do Senhor e seu zelo ardam contra esse homem, e todas asmaldições que estão escritas neste Livro caiam sobre ele, e o Senhor risque seu nome sob os céus. E o Senhoro separará para todo o mal fora de todas as tribos de Israel, de acordo com as maldições da aliança que estãoescritas nesse Livro da Lei. Mas vós que vos mantendes fiéis ao Senhor vosso Deus estais vivos cada um devós este dia. Que ninguém deverá comunicar-se com ele nem por escrito e nem lhe preste qualquer favor nemesteja com ele sob o mesmo teto nem dentro de quatro cúbitos em sua vizinhança; nem se deve ler qualquer

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contemporaneamente seria rotulado como “teoria da conspiração”, vê-se que tal idéia já era

corrente desde a segunda década daquele século, como se verá mais adiante, ao se falar da

Visitação do Santo Ofício ao Brasil em 1618-1619.

Van Dillen 84 descreve a vida econômica desses 3.000 judeus que viviam em

Amsterdã no século XVII:

“Na Bolsa, encontravam-se judeus em diferentes lugares,

mas absolutamente eles não a dominaram, como afirmam

alguns. Seu capital era insuficiente. Entre os grandes

banqueiros, não se encontrava um só judeu, e quando se

comparam os seus haveres com os dos grandes mercadores e

regentes, eles são insignificantes. Todavia, os judeus exercem

uma influência real.”

Méchoulan 85 agrega a isso que “em 1611, de 708 pessoas titulares de contas no

banco, observam-se 28 nomes de portugueses 86, ou seja quatro por cento; em 1674, treze

por cento dos titulares são judeus e não haverá mais do que isso no período em que nos

ocupamos [o século XVII]”.

Considerando-se, portanto, que, na comunidade de judaica de Amsterdã, alguns

homens eram ricos, alguns tinham posses mais modestas e uma expressiva parte era

dramaticamente pobre, pode-se entender a importância dada a essa comunidade por seu

capital simbólico, muito maior do que o pecuniário, afinal, aos olhos dos reformados

holandeses, os judeus que lá viviam eram os portadores da veritas hebraica.

A Reforma propiciou a tradução da Bíblia para o vernáculo, o que despertou o

desejo do conhecimento das fontes originais veterotestamentárias, do que dá testemunho a

criação da cátedra de teologia hebraica (sic) na Universidade de Leiden em 1593. Outro

fator interessante da aproximação entre o calvinismo holandês e o judaísmo foi a adoção de

nomes do Antigo Testamento pelos calvinistas para batizar seus filhos.

Portanto, a importância da comunidade judaica de Amsterdã era dada não apenas

pelo que eram, mas também por quem eram. Os diálogos freqüentes entre sábios da

tratado composto ou escrito por ele. Amsterdã, 6 de Av de 5416, 27 de julho de 1656”. Apud NADLER, S..Spinoza – a life. Cambridge: Cambridge University Press, 1999, p. 120.84 DILLEN, J. G. van. La banque d’Amsterdam. Revue d’Histoire Moderne, 15, maio-junho: 1928.85 Op. Cit. p.136-137

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comunidade judaica, destacando-se os rabinos Menasseh ben Israel, Levi Mortera e Isaac

Aboab da Fonseca, e teólogos e pastores da Igreja Reformada dão bem a dimensão do

encontro e circulação de idéias, assim como dos limites e contornos da tolerância. Essa

contribuição dada pela comunidade judaica, mais erudita e intelectual do que mercantil –

ainda que este aspecto tenha sido bastante importante –, possibilitou a Amsterdã ser

considerada, no século XVII, como a “Jerusalém do Norte”.

Essa importante comunidade judaica, cuja participação na vida econômica e cultural

da Holanda não era diretamente proporcional à sua expressão populacional, era formada em

grande parte por judeus sefarditas 87, judeus de origem ibérica – a maioria dos quais

portugueses – que tinham relações comerciais ou familiares com a América Portuguesa,

visto muitos de seus parentes viverem no Nordeste do Brasil.

Não seria de se admirar que, na Nova Holanda, essas relações entre os judeus e os

calvinistas se desse, da mesma forma, entre tensões e distensões, em um jogo de pressões

de lado a lado.

A presença de judeus no Brasil, na condição de “cristãos-novos” 88 ou cripto-judeus

era já bastante antiga, como atestam as Atas da Visitação do Tribunal do Santo Ofício ao

Brasil (1591-1593 e 1595), nas quais os hábitos dos ditos “judaizantes” foram denunciadas

ao Visitador, como relatam Anita Novinsky 89 e Bruno Feitler 90.

A vigilância dos vizinhos após a Visitação, de acordo com os registros de Ângela

Vieira Maia 91 fez com que os cristãos-novos judaizantes adotassem estratégias para

continuar praticando sua fé sem o risco de ser denunciados às autoridades eclesiásticas,

estratégias bastante semelhantes àquelas desenvolvidas pelos judeus, cristãos-novos

86 Neste caso, “portugueses” e “judeus” são sinônimos.87 Sefaradim, sefarditas, sefardim. Referência a Sefarad, Espanha em hebraico.88 “Cristão-novo” era a designação dada aos judeus e mouros e seus descendentes que foram forçadamentebatizados e convertidos ao catolicismo romano na seqüência dos éditos de expulsão de Granada (Espanha,1492) e da Vila do Muge (Portugal, 1496). Esses éditos proibiam a prática do judaísmo nesses Reinos e suasColônias e determinavam a expulsão dos judeus e mouros que não se fizessem batizar. Foi uma experiênciaquase que exclusivamente ibérica, embora haja registros de cripto-judeus na Itália e no Império Otomano.89 NOVINSKY, A.. Inquisição: rol dos culpados. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1992, e NOVINSKY,A.. Cristãos novos na Bahia. S. Paulo: Perspectiva, 1992.90 FEITLER, B.. Inquisition, juifs et nouveaux-chrétiens au Brésil – Le Nordeste XVIIe et XVIIIe siècles.Leuven University Press, Louvain, 2003.91 MAIA, A. V.. À sombra do medo. Rio de Janeiro: Oficina Cadernos de Poesia, 1995.

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judaizantes e marranos 92 na Europa cristã e na América espanhola, como descreve Gitlitz93.

É oportuno recordar que, quando da chegada do Visitador do Santo Ofício ao Brasil,

ele encontrou a situação bastante freqüente de casamentos entre cristãos-velhos e cristãos-

novos, muitos dos quais judaizantes. Um dos casos mais exemplares é o da família de Ana

Rodrigues, estudada por Angelo Adriano Faria de Assis em sua tese de Doutorado 94, que é

ilustrativa dessas dinâmicas familiares e sociais na colônia brasílica.

Uma segunda Visitação do Santo Ofício ocorreu entre 1618 e 1621, chefiada pelo

Bispo de Évora, D. Marcos Teixeira. Sonia Siqueira afirma que “eram metropolitanas as

molas catalisadoras das visitações de 1591 e 1618” 95. É todavia de se presumir que os

motivos que geraram essa Visitação tivessem fundo político, receosa como se achava a

Coroa quanto aos negócios dos cristãos-novos com a Holanda e quanto a certos indícios de

que o inimigo encontraria no Brasil aliados e guias. A conjetura tinha certo fundamento, e

os registros da visitação de 1618-1619 revelaram, efetivamente, que, durante cerca de 25

anos, os cristãos-novos do Brasil vinham se mantendo em constante comunicação com os

judeus confessos de Flandres e, em especial, com os cristãos-novos portugueses que tinham

escapado para Amsterdã e lá reassumido sua identidade judaica. Como sugere Sonia

Siqueira, “as visitações de 1591 e 1618 podem ter sido motivadas pelo aumento do afluxo

de cristãos-novos para o Brasil, o que colocava (...) uma ameaça à segurança da Colônia,

dadas as afinidades que tinham com as Províncias rebeladas do Norte” 96.

92 “Marrano” era uma designação pejorativa dada na Espanha aos judeus e muçulmanos que se convertiam aocatolicismo mas secretamente continuavam praticando sua religião. O termo traz uma referência ao porcojovem, animal tido como o mais impuro tanto pelo islamismo quanto pelo judaísmo. O termo inquisitorial porexcelência era “judaizante”, simultaneamente designação e acusação aos judeus convertidos, formalmentechamados conversos. Em Portugal o termo “marrano” (e seu equivalente nativo, “marrão”) foi supostamenteintroduzido com a unificação das coroas espanhola e portuguesa (1580-1640), sendo, contudo, de raro uso.Efetivamente, não se registra na literatura portuguesa a referência ao judeu convertido como marrano oumarrão. O emprego do tratamento “marrano” a qualquer judeu convertido das penínsulas Ibérica e Itálica éfenômeno muito mais recente, do século XX. Cf. LIPINER, E. Terror e linguagem: um dicionário da SantaInquisição. Lisboa: Contexto, 1998.93 GITLITZ, D. M., Secrecy and deceit: the religion of the Crypto-Jews. Philadelphia: Jewish PublicationSociety of America, 1996.94 ASSIS, A. A. F.. Macabéias da colônia: criptojudaísmo feminino na Bahia -séculos XVI-XVII . Tese de Doutorado, Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2004.95 SIQUEIRA, S. A.. A Inquisição Portuguesa e a Sociedade Colonial. S. Paulo: Ática, 1978, pp.181 ss..Citação na p. 184.96 SIQUEIRA, S. A.. Op. cit., p. 191.

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As suspeitas foram reforçadas mais tarde com a criação da Companhia das Índias

Ocidentais, aprovada em 1621 pelo governo holandês, com a participação de capital judaico

na estruturação dessa Companhia. Em face do programa e dos poderes dessa Sociedade -

entre os quais se incluíam os de nomear e depor governadores, fazer tratados de aliança

com os indígenas, erguer fortalezas e construir colônias, era lógico supor que o íntimo

intercâmbio entre os cristãos-novos do Brasil e os judeus da Holanda pudesse vir a ajudar

os propósitos conquistadores holandeses.

E a primeira prova real da justeza desse receio foi de fato obtida em 1624, quando

os holandeses invadiram e conquistaram a cidade de Salvador, então capital do Brasil. A

população cristã-nova, que naquela cidade era então mais numerosa do que em qualquer

outra cidade colonial, submeteu-se rapidamente aos conquistadores, com os quais haviam

vindo muitos judeus. Refere-se que cerca de 200 cristãos-novos aceitaram desde logo o

jugo holandês e passaram a induzir os habitantes de origem judaica a seguirem seu

exemplo. É bastante complexa e fluida a teia de relações nesse período.

Ronaldo Vainfas, porém, entende que não há senão indícios pontuais desse fato,

insuficientes para que se pudesse afirmar ter havido cooperação:

“Sem embargo, ainda que alguns cristãos-novos tivessem

atuado nas tentativas holandesas de invasão, nunca houve

uma prova concreta dessa aliança planejada entre eles e os

holandeses, senão evidências pontuais de alguns

contatos”. 97

Ronaldo Vainfas refere que o historiador português Joaquim Romero de Magalhães,

oferece uma boa interpretação para uma convergência de interesses entre os conversos

judaizantes e os holandeses, embora refute a possibilidade de uma aliança planejada entre

eles:

“Magalhães sugere que, além de conhecer a língua da

terra, os conversos estavam integrados na rede do açúcar

e, ademais, possuíam parentes ou amigos em Portugal.

97 VAINFAS, R.. La Babel Religiosa. católicos, calvinistas, conversos y judíos en Brasil bajo ladominación holandesa (1630-1654). in CONTRERAS, J., B. J. García García e I. Pulido (orgs.), Religión,Família, Negocio - el sefardismo en las relaciones entre el mundo ibérico y los Países Bajos en la EdadModerna. Madrid: Fundación Carlos de Amberes, 2002, pp. 321-339.

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Juntos, ‘calvinistas e judeus’, poderiam facilitar as

possibilidades de um Brasil holandês”. 98

Cumpre ressaltar a necessária distinção entre cristãos-novos que jamais tiveram

contato formal ou informal com o judaísmo, pois nasceram nessa condição e sob ela vieram

ao Brasil, e os que eram cristãos-novos judaizantes. Havia, de fato, muitos cristãos-novos

que jamais tiveram qualquer resquício religioso de judaísmo que eram ou procuravam ser

bons e sinceros católicos. Os judaizantes, porém, através do segredo e da dissimulação,

conseguiam preservar e transmitir a seu modo o judaísmo 99, o que, posteriormente, foi

fonte de conflitos com os judeus que chegaram com as forças holandesas a partir de 1630,

pois os recém-chegados da Holanda não reconheciam como judaicas muitas das práticas

dos que na Colônia já se encontravam.

98 Idem, p. 328.99 GITLITZ, D. I.. Op. cit., pp. 154 ss..

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CAPÍTULO II“Hereges, Papistas e Judeus” –

A convivência entre calvinistas, católicos e judeus no Brasil holandês

“Que diga o herege que Deus está holandês? Oh, não

permitais tal, Deus meu, não permitais tal por quem

sois”. (Pe. Antonio Vieira, “Sermão pelo bom sucesso

das armas de Portugal contra as de Holanda”, 1640)

Com a invasão dos holandeses, chegou ao Brasil a Igreja Reformada. Esta não

nasceu da pregação, mas veio transplantada diretamente da Holanda, tal como se deu com

as estruturas políticas, administrativas e econômicas então existentes na Metrópole. Era,

portanto, uma “Igreja de conquista”, como bem a caracteriza Schalkwijk 100. Knappert 101

usa, com muita propriedade, a expressão “Igrejas de transplante”, glosada da expressão

“plantação da igreja”, que era usada então pelo Sínodo da Holanda Setentrional entre 1634

e 1639, acerca do trabalho missionário na Indonésia. Essas Igrejas de conquista tinham sua

existência inteiramente vinculada aos exércitos invasores, chegando com eles e

desaparecendo quando esses exércitos eram expulsos, derrotados.

Exemplo dessa vinculação foi a efêmera conquista da Bahia pelos holandeses,

quando houve a possibilidade de instalação de uma Igreja reformada, com a exata duração

de uma ano, existindo entre maio de 1624 e maio de 1625. Mesmo nesse breve espaço de

tempo, há registros de sete pastores servindo à Igreja no território baiano, dos quais talvez

os mais afamados tenham sido os reverendos (dominees 102) Enoch Sterthenius, que

posteriormente serviu na Igreja Reformada de Olinda, e Johannes Neander, sepultado em

solo baiano. Com a saída dos exércitos holandeses, desapareceu todo sinal exterior da

Igreja Reformada na Bahia, sendo o culto doméstico e secreto, realizado por poucos

100 SCHALKWIJK, F.L.. Igreja e Estado no Brasil Holandês 1630-1654. S. Paulo: Ed. Cultura Cristã, 2004,3ª edição, p. 93 ss..101 KNAPPERT, L.. Geschiedenis der Nederlandsche Hervormde kerk gedurende de 16e en 17e eeuw.Amsterdã: Meulenhoff, 1911.102 Plural da palavra holandesa dominee, que é derivada do latim dominus, “senhor, patrão”. A palavra designaos pastores, pastores-auxiliares, pregadores (também chamados predikaants, sing. predikaant), evangelistas,consoladores de enfermos e até mesmo os professores.

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estrangeiros remanescentes o único resquício da presença da fé reformada na América

Portuguesa 103.

Contudo, a brevidade da dominação holandesa em Salvador não serve de padrão

para que se consiga inserir esse período no estudo da história da Igreja Cristã Reformada no

Brasil. Esta deve ser entendida a partir da conquista de Pernambuco e do Nordeste durante

o período do chamado “Brasil Holandês”, iniciado em 1630, com a tomada de Recife e

Olinda.

A dinâmica da Igreja em Pernambuco, de modo especial, e no Nordeste, como um

todo, acompanhou a dinâmica da conquista holandesa, cujo período de dominação é

dividido por Mário Neme 104 em três fases: crescimento (1630-1636), florescimento (1637-

1644) e declínio (1645-1654). Assim, o que se vê é que o período de crescimento da Igreja

deu-se até 1635, enquanto que os demais ciclos coincidem eclesiástica e politicamente.

Inicialmente, foram implantadas as Igrejas de Olinda e Recife, já em 1630, e após a

conquista de parte da Capitania de Itamaracá, iniciou-se a Igreja no Forte Orange. Com a

conquista pelos holandeses da Capitania do Rio Grande do Norte, estabeleceram-se igrejas

no Forte dos Reis Magos e em Natal; com o primeiro culto reformado celebrado naquele

em 12 de dezembro de 1633 e no domingo seguinte nessa cidade. Estabeleceu-se

igualmente a Igreja reformada na Capitania da Paraíba, com o Reverendo Jodocus à Stetten

à sua frente. Registre-se que o primeiro relatório pastoral elaborado no Brasil foi redigido

por ele em 1634.

Posteriormente, implantaram-se as Igrejas do sul de Pernambuco: Sirinhaém, Cabo

de Santo Agostinho (atual cidade de Suape) e Porto Calvo, esta a terra natal de Domingos

Fernandes Calabar, que se converteu à fé reformada em 1634, após desertar do lado

português 105. A conquista do Ceará em dezembro de 1637 fez com que em janeiro do ano

seguinte fosse apontado um pastor para a Igreja; assim como o pastor Caspar Velthusen

seguiu em 1641 com a frota que conquistou o Maranhão.

103 Cf. SCHALKWIJK, F. L.. op. cit.. p. 94.104 NEME, M.. Fórmulas políticas no Brasil Holandês. S. Paulo: Difel, 1971, p. 53 ss..105 Domingos Fernandes Calabar tornou-se um personagem polêmico que, ao mesmo tempo, refletiu em suatrajetória, parte da fluidez e dinâmica daqueles tempos. Aliado dos portugueses, passou-se para o lado dosholandeses, fazendo pública profissão de fé e batizando seu filho na Igreja Reformada. Atribui-se àsinformações passadas por ele aos holandeses uma série de vitórias destes sobre os portugueses, para quemCalabar tornou-se sinônimo da traição e da vilania. Essa estigmatização persiste até a contemporaneidade noBrasil, sobretudo nos discursos do meio militar.

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Schalkwijk 106 relata que existiram 22 igrejas reformadas no território da conquista

holandesa no Brasil, durante os 24 anos do domínio holandês no Nordeste, estendendo-se

da Bahia ao Maranhão. Estas localizavam-se na cidade de Salvador e, seguindo para o

Norte, encontrava-se um pequeno grupo em Sergipe, assim como uma Igreja no Forte

Maurício no Rio São Francisco (atual cidade de Penedo, Alagoas), em Alagoas do Sul

(correspondendo a parte da atual cidade de Maceió) e Porto Calvo, recordando-se que essas

cidades correspondiam à parte meridional da Capitania de Pernambuco. Na região da

Capitania de Pernambuco, encontravam-se, além das Igrejas citadas acima, outras em Santo

Antonio do Cabo (atual cidade do Cabo) e na Capital do Brasil Holandês, que se dividia

nos distritos de Recife, no istmo; Maurícia, na Ilha de Antonio Vaz, e Olinda. Ainda ao

norte da capital, encontravam-se as Igrejas de Igaraçu, Itamaracá e Goiana, além das igrejas

compostas por índios convertidos ao calvinismo, alvo de uma missão especial da Igreja

Reformada, em Itapecerica, Maurícia e Massurepe (também referida como Maiereba). Na

Capitania da Paraíba encontravam-se Igrejas na capital, a cidade da Paraíba, e no Forte

Margarita, ou Cabedelo. No Rio Grande do Norte, havia uma Igreja no Forte Van Ceulen

(Forte dos Reis Magos) e no Ceará na Fortaleza de Schoonenburch; havendo ainda igrejas

bem menores no Maranhão e na Ilha de Fernando de Noronha.

Em razão da dinâmica exposta acima, à medida que havia reconquista do território

pelas forças luso-brasileiras, essas Igrejas foram sendo expulsas ou desfeitas. É o que se

deu no Maranhão, em 1643; em Sirinhaém, Santo Antonio do Cabo e Cabo de Santo

Agostinho, recapturados em 1645 por André Vidal de Negreiros 107, que igualmente desfez

as Igrejas de Alagoas, Porto Calvo e do Forte Maurício no Rio São Francisco, a qual ainda

se refez em 1646, após a breve retomada holandesa, subsistindo, porém, por apenas cinco

meses. Também as Igrejas do norte da Capitania de Pernambuco, como as de Goiana, as

dos brasilianos 108 e a de Igaraçu foram duramente afetadas durante a guerra de reconquista,

tendo as demais sido encerradas quando da expulsão dos holandeses em 1654.

106 SCHALKWIJK, F. L.. op. cit. p. 95-96.107 Um dos líderes da Restauração Pernambucana, representante dos mazombos, tornado herói por umavertente da historiografia, representada por Varnhagen, teve participação decisiva nas batalhas dosGuararapes e na reconquista de Recife, em 1654. Foi nomeado Governador do Maranhão (1655-1656),Pernambuco (1657-1661), Angola (1661-1666) e novamente Pernambuco (1667). Cf. VAINFAS, R. (org.)Dicionário do Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.108 Esta denominação é encontrada nas Atas do Sínodo do Brasil para designar os indígenas nativos, sendoque a própria Classe do Brasil denominou-se “Classe Brasiliana”. Schalkwijk dedica o capítulo 8 de seu livro

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Não havia qualquer possibilidade de sobrevivência do cristianismo reformado sob a

bandeira portuguesa. Assim, a Igreja Holandesa Reformada chegou e partiu sob a bandeira

holandesa.

Importante tecer alguns comentários acerca da estrutura eclesiástica da Igreja Cristã

Reformada. Sendo holandesa, regia-se pela “Ordem Eclesial de Dordt”, aprovada em 1618,

no Sínodo de Dordt, e que estabelecia as normas para que se organizassem igrejas locais.

Importante ressaltar que, na situação colonial, especialmente por estar em praticamente

permanente estado de guerra, nem todas as normas prescritas se podiam observar. O órgão

dirigente da Igreja local é o Consistório (kerkenraad), com reuniões semanais ou com a

freqüência que as necessidades determinassem. Este era um conselho eclesiástico composto

de pastores, presbíteros e diáconos. O primeiro e mais importante foi o da Igreja de Recife,

que pode ser considerada a Igreja-Mãe da Igreja Reformada no Brasil, instalado

oficialmente em 16 de dezembro de 1636, muito embora os pastores, ministros e

postulantes estivessem articulados desde o início da conquista holandesa.

A importância dessa Igreja local torna-se ainda mais evidente quando se recorda que

era a ela que se dirigiam as Classes das Igrejas na Holanda em suas correspondências.

Schalkwijk ressalta ainda que a Igreja do Recife tinha – como não é de se admirar – entre

seus congregantes algumas das pessoas mais preeminentes do projeto colonial holandês.

Registre-se que quando Domingos Fernandes Calabar e sua mulher, D. Bárbara Cardosa,

apresentaram seu filho, Domingos Filho, para ser batizado na Igreja do Recife, foram

testemunhas o Alto e Secreto Conselheiro Servatius (Servaes) Carpentier; o coronel alemão

Sigismund von Schkoppe, comandante das forças terrestres holandesas; o coronel polonês

Krzystof (também referido como Christophe ou Chrestophle, ou ainda Cristóvão)

Arciszewski e o almirante holandês Jan Corneliusz Lichthart 109.

Igreja e Estado no Brasil Holandês às missões aos brasilianos, destacando a presença de pastores queaproveitaram o fato de que muitos dos indígenas já haviam sido batizados e rudimentarmente catequizadospelos portugueses para iniciá-los na fé reformada. O mais destacado dos sete pastores que serviram nasaldeias, em missão aos brasilianos, foi o espanhol Vicente Joaquín Soler. Por oportuno, transcreve-seSchalkwijk, op. cit. p. 97: “As dez outras igrejas eram congregações, a saber, igrejas em formação, a saber:(...) as três igrejas indígenas, nas aldeias de Maurícia, Massurepe e Itapecerica. Algumas destas eram maiores,como as dos índios.” (Dagelischke Notulen, 23/10/1641).109 Segundo o livro de batismos, Doopboek, de 20 de setembro de 1634, depositado no Gemeente ArchiefAmsterdam - Archief Classis Amsterdam (Arquivo Geral da Cidade de Amsterdã - Arquivo do Presbitério deAmsterdã) MS 52 “Livro Batismal do Recife, 1633-1654”, apud Schalkwijk, Igreja e Estado..., p. 62.

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Essa diversidade de origens daqueles que se encontravam a serviço da Companhia

das Índias Ocidentais levou a que a Igreja Reformada estabelecesse templos para cultos em

línguas outras que não o holandês, do que dão testemunho a adaptação da capela do

Convento de Santo Antonio, em Maurícia, para o culto em inglês, e a construção do

Templum Gallicum referido por Barléu, a “Igreja dos Franceses”. Além dessas igrejas e dos

cultos em holandês, havia pregações em alemão, português e mesmo em espanhol 110.

Há divergências quanto à data de estabelecimento do Consistório da Igreja de

Recife, visto que a leitura de Wätjen e Neme 111 indica que este somente começou a

funcionar em 1636, ao passo que o relato de Servaes Carpentier, de julho de 1635,

informava que este já existia “há algum tempo”. Schalkwijk relata que em 1632 o

Consistório já expedira um atestado em favor do Reverendo C. Leoninus 112, sendo de se

supor que o Consistório foi eleito pouco após a conquista de Recife, em 1630.

Em verdade, em 1636 foram organizados os diversos Consistórios locais em uma

Convenção, chamada de Classe ou Presbitério 113. Esta Classe congregou em uma

Convenção “nacional” todas as Igrejas locais do território ocupado pelos holandeses,

adotando o nome oficial de Classe do Brasil da Igreja Cristã Reformada. Seis anos depois,

esta foi desmembrada em duas, a Classe de Pernambuco e a Classe da Paraíba, constituindo

juntas o “Sínodo do Brasil”. É importante sinalizar esta distinção entre as estruturas

diretivas e organizacionais da Igreja Cristã Reformada para que não se incorra no mesmo

equívoco de Hermann Wätjen, que não soube distinguir o conselho eclesiástico do Recife, a

Classe e o Sínodo 114, assim como Mário Neme 115 também se confunde ao afirmar que

“todos os pastores pertenciam ao sínodo ou ‘classe’”, e que “o conselho eclesiástico era o

órgão executivo do sínodo” 116.

110 SCHALKWIJK, F. L.. Op. cit., p. 97.111 WÄTJEN, H.. O domínio colonial holandês no Brasil. Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 3ªed., 2004, p. 347, e NEME, M. op. cit., p. 160.112 SCHALKWIK, F. L.. Op. cit., p. 98.113 O termo Classe deriva do latim classis, de clamare, “convocar”, referindo-se ao exército ou à marinha;podendo indicar igualmente um grupo de naus que navegam juntas, em formação. Daí sua aplicação a umgrupo de Igrejas locais de uma mesma região que se organizam em um Presbitério (do gr. Presbyteros,“ancião”, como referido na passagem de I Timóteo 4:14).114 WÄTJEN, H., ibidem idem.115 NEME, M., ibidem idem.116 NEME, M., ibidem idem.

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Segundo Schalkwijk 117, a estrutura da Igreja Reformada no Brasil era a mesma de

todas as Igrejas Reformadas no mundo, seguindo o preceituado na Ordem Eclesiástica de

Dort: a igreja local tinha por órgão dirigente da igreja local era o consistório, também

chamado de conselho eclesiástico. Os consistórios reuniam-se em nível regional em uma

classe ou presbitério, e os presbitérios em conjunto formavam um sínodo.

Impossível separar, nessa quadra histórica, Igreja e Estado. Este funcionava como o

braço secular daquela. Assim, mesmo somente tendo se organizado eclesiasticamente, de

modo formal, em 1636, desde o início da conquista, em 1630, já se podia sentir a influência

dos pastores, embora estes fossem pouco numerosos até 1635, sobre a conduta dos oficiais

a serviço da WIC, e também sua ascendência sobre o Governador Geral, desde o primeiro,

Jonkheer Diederik van Waerdenburch, até o mais notável do Brasil Holandês, João

Maurício de Nassau-Siegen, cuja chegada a Recife coincidiu com a formalização da

estruturação do Presbitério.

Importante lembrar que os Presbitérios das Igrejas de Amsterdã e de Walcheren

nomeavam uma comissão para travar contatos com as Igrejas ultramarinas; estes eram os

Deputati ad res indicas. Estes mantinham os contatos com os dirigentes da Companhia das

Índias Ocidentais, os “Senhores XIX”, que, por seu turno, nomeavam representantes

denominados “Comissionados para Assuntos Eclesiásticos”. No Brasil, desde 1641, o

Presbitério nomeava os seus “deputados” e o governo-geral o seu comissário político,

obedecendo ao diagrama abaixo, encontrado em Schalkwijk 118.

117 SCHALKWIK, F. L.. Op. cit., p. 111.118 Apud SCHALKWIJK, F. L.. op. cit., p. 113.

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A compreensão deste diagrama e das relações de força e poder que o permeiam

permitirá entender as relações existentes entre o a Classe e o Sínodo do Brasil e as

autoridades civis às quais as autoridades religiosas constantemente demandavam em suas

Atas de Assembléias, realizadas entre dezembro de 1636 e maio de 1648. Contudo, não

apenas com o poder civil local havia troca de correspondências, esta também foi bastante

farta com Classes da Igreja na Holanda, especialmente Amsterdã e Walcheren, mas também

Utrecht, com a Igreja valã 119, com autoridades civis da Companhia das Índias Ocidentais e

com Igrejas localizadas no Caribe e na Nova Amsterdã, atual Nova York. Não havia

contato, até onde se tem registro, com Igrejas localizadas nos domínios da Companhia das

Índias Orientais, sendo uma das explicações para tal o fato de que quando se instalou a

Igreja Reformada na África do Sul, em 1652, a administração holandesa no Brasil já estava

em colapso e próxima ao seu fim; não há, tampouco, registros de contatos maiores com as

Igrejas na Indonésia 120. Nada obstante, foi o pastor da Igreja Portuguesa de Batávia, João

Ferreira de Almeida, que fez em meados do século XVII a tradução da Bíblia para o

português, na edição que é considerada o padrão para as igrejas protestantes de língua

portuguesa.

Igreja de conquista, Igreja de missão. Fiel aos postulados calvinistas, a Igreja Cristã

Reformada estabeleceu missões particulares no Brasil, dentre as quais podem ser

destacadas as missões junto aos africanos, aos brasilianos 121, aos holandeses, aos

portugueses e aos judeus, cada qual dentro das diretrizes traçadas para obter o maior

número possível de conversões. Para os fins do presente estudo, essa última missão – junto

aos judeus – é a que será analisada.

Barléu, descrevendo os oito anos da administração nassoviana no Brasil (1637-

1644), quando se referiu aos judeus escreveu que era “necessário persuadi-los à fé em Jesus

Cristo, filho de Maria, como Messias prometido e havia muito nascido” 122. Não há

evidências, contudo, de que o intento da Igreja tenha se materializado de forma expressiva

nem que o diálogo tenha prosperado.

119 Constituída essencialmente por refugiados das Províncias do Sul de fala francesa.120 SCHALKWIJK, F. L.. Op. cit., pp. 124 ss..121 Usa-se aqui a mesma definição empregada pela historiografia holandesa, para a qual “brasilianos eram osintegrantes das tribos tupi, como os tupinambás, tabajaras, potiguares etc.; enquanto que o termo tapuia erareservado para os cariris não subjugados”. Apud Schalkwijk, op. cit., p.207.

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Há poucos registros de que haja ocorrido muitas conversões de judeus – fossem

professos ou cristãos-novos judaizantes. Há um interessante relato do Reverendo Jodocus à

Stetten, que foi pastor da Igreja da Paraíba, e que é citado por Adriaen van der Dussen 123,

ao informar que a jovem Judite Lion, filha dos cristãos-novos Simon Lion e Filipina da

Fonseca, ao contrário de seus pais, que decidiram assumir sua identidade judaica, adotando

os nomes de Abraão e Sara, decidira converter-se à fé cristã reformada, fazendo profissão

de fé naquela Igreja da Paraíba em 26 de janeiro de 1636, adotando o nome de Christina.

Uma vez que não há relatos de que ela haja sido batizada, isso confirma o fato de que ela e

seus pais eram cristãos-novos, tendo sido batizados na Igreja Católica Romana 124.

Desta forma, o que se vê é que o marrano, “homem dividido” na magistral síntese

de Anita Novinsky 125, nesse tempo de domínio holandês, buscava ou reassumir ou

encontrar sua identidade, quer voltando a praticar o judaísmo sem véus e sem dissimulações

(ainda que o judaísmo praticado por muitos cristãos-novos não fosse reconhecido como tal

pelos judeus que vieram a serviço da Companhia das Índias, o que foi fonte de tensões e

conflitos) ou assumindo uma identidade cristã, fosse católica romana, fosse ela reformada.

Os vinte e quatro anos do domínio holandês no Nordeste do Brasil foram

caracterizados, entre outras coisas, por um jogo de tensões entre os praticantes das três

religiões principais no Brasil holandês: o cristianismo reformado, de matriz calvinista; o

catolicismo romano e o judaísmo.

Os integrantes dessas denominações religiosas converteram-se em protagonistas de

disputas não apenas espirituais, mas também econômicas e políticas. Se estas, algumas

vezes eram veladas e surdas, outras vezes eram explicitadas de maneira direta, com a

questão religiosa servindo de pano de fundo e mobilizador das engrenagens políticas e

sociais.

122 BARLÉU, G.. História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil. Ed.Itatiaia/Edusp, S. Paulo, 1974, p. 53.123 DUSSEN, A. van der. Relatório sobre as capitanias conquistadas pelos holandeses (1639) – suascondições econômicas e sociais. Rio de Janeiro: Instituto do Açúcar e do Álcool, 1947. Introdução e notas deJosé Antonio Gonsalves de Mello, p. 108 e nota 242.124 O batismo em qualquer Igreja cristã era considerado válido pela Igreja Cristã Reformada, se observada afórmula batismal trinitária (“eu te batizo em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo”) e o uso de águapura. Essa questão opôs, no início da Reforma, ainda no século XVI, os anabatistas aos demais cristãos, vistoque os anabatistas preconizavam a necessidade de rebatizar a todos os que se convertessem, somenteaceitando como válido o batismo de adultos por imersão. Apud BAUBÉROT, J., Histoire duprotestantisme, Paris: PUF, 1998, 5ème ed..125 NOVINSKY, A.. Cristãos novos na Bahia. S. Paulo: Perspectiva, 1992, cap. 5.

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Para os católicos romanos, numericamente majoritários, os demais moradores do

Brasil holandês eram “hereges e judeus”; para os cristãos-novos judaizantes, que puderam

pela primeira vez no Brasil desfrutar de alguma liberdade de culto, concedida com

restrições, havia alguma simpatia pelos reformados, enquanto que para estes, hegemônicos

politicamente, somente havia no Brasil, além de si próprios, dos escravos e dos brasilianos,

“papistas e judeus”.

A visão dos diretores de ambas as Companhias holandesas Licenciadas para as

Índias acerca de sua missão no mundo, incluía não apenas os lucros para os acionistas e

investidores das Companhias e a consolidação do poder dos Príncipes de Orange, mas

também a propagação da fé reformada e do credo calvinista. Homens do século XVII,

também procuraram, nas palavras universais de Camões, dilatar “a fé e o Império”.

Também seria impossível separar a nacionalidade da prática da fé. Assim é que

“português”, “espanhol” e “católico” eram sinônimos, devendo ser considerado que, desde

1580, Portugal estava submetido à Coroa de Castela, situação que perduraria até 1640. Os

espanhóis, por sua vez, eram os “inimigos hereditários” dos holandeses, que objetivavam,

com a ação das Companhias das Índias, “cortar o fluxo de açúcar que nutre o Rei da

Espanha” 126. Face à significativa quantidade de judeus de origem ibérica (sefaradim) que

se encontravam exilados na Holanda e vieram para o Brasil a serviço da WIC, e também

dado à quantidade elevada de cristãos novos 127 existentes nos domínios holandeses,

“português” e “judeu” também se tornaram equivalentes em dados momentos, o que notara

o jesuíta Antônio Vieira, como relata António Carlos de Carvalho:

“O Padre Antonio Vieira testemunhou que ‘Judeu’ e

‘Português’ eram sinônimos na Europa, embora a

denominação de “gente da nação portuguesa” tenha sido

dada inicialmente pela municipalidade de Antuérpia, em

1511, aos mercadores portugueses lá residentes. Os

126 LOPEZ, A.. Guerra, Açúcar e Religião no Brasil dos Holandeses. Ed. SENAC, S. Paulo, 1999, p. 35.127 “Cristão-novo” era a designação dada aos judeus e mouros e seus descendentes que foram batizados econvertidos ao catolicismo romano na seqüência dos éditos de expulsão de Granada (Espanha, 1492) e da Vilado Muge (Portugal, 1496). Esses éditos proibiam a prática do judaísmo nesses Reinos e suas Colônias edeterminavam a expulsão dos judeus e mouros que não se fizessem batizar. Foi uma experiência quase queexclusivamente ibérica, embora haja registros de criptojudeus na Itália e no Império Otomano. É importantelembrar que a historiografia registra a presença de vários cristãos-novos no Brasil já no início do próprioséculo XVI, inclusive o cristão-novo Gaspar da Gama, que veio na frota de Pedro Álvares Cabral.

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próprios judeus portugueses assim se chamavam com as

variantes de ‘os da nação’, ‘homens de nação’, ‘nação

judaica portuguesa’, ‘mercadores de nação portuguesa’.

Preferiam usar tais denominações a Judeus, Sefardim ou

Portugueses, nomes que lhes eram dados pelos outros

povos.” 128

Se cada espanhol era um inimigo da Holanda, o raciocínio pode ser entendido a todo

católico ser tido como um inimigo da fé reformada e, por extensão, dos interesses da

Holanda.

Portanto, não pode causar demasiada estranheza que dentre os primeiros atos dos

holandeses em Pernambuco constasse a profanação e o incêndio de igrejas católicas e a

conversão de algumas delas em templos protestantes ou em locais para aquartelamento de

homens, animais e armas. Nas palavras de Mário Neme 129, “em Olinda, os conventos,

mosteiros e igrejas são incendiados ou destruídos, e tomadas as capelas existentes em suas

redondezas. O único convento na Ilha de Santo Antônio (Antônio Vaz) é transformado em

quartel, depósito e arsenal de guerra pelos conquistadores. Todos os bens patrimoniais de

igrejas e irmandades na área dominada são confiscados para a Companhia, e confiscadas

são as alfaias, quando não roubadas pelos soldados”.

Por seu lado, os eclesiásticos preocuparam-se em conseguir as necessárias

autorizações para as celebrações religiosas, enquanto que por outro lado, a população

dividia-se entre aquele grupo minoritário, que desejava aderir à nova fé, seja por interesse e

oportunismo, seja por conversão sincera, e aqueles que viam qualquer colaboração com as

autoridades flamengas como uma traição ao Rei e ao Papa. Essa afirmativa encontra

respaldo no Livro de Batismo de Recife, assim como em outros documentos eclesiásticos

da Igreja Reformada, quantificando o número de convertidos.

Os registros de casamento da Igreja Cristã Reformada no Brasil ainda não foram

localizados no Arquivo Geral de Amsterdã, de tal forma que não se pode quantificar com

absoluta precisão os residentes nos domínios holandeses que se converteram ao

protestantismo, abjurando o catolicismo romano. Embora houvesse vários judeus a serviço

128 CARVALHO, A. C. – Os judeus do desterro de Portugal. Lisboa: Quetzal Editores, 1999, p. 18.129 NEME, M.. Op. cit., p. 166.

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da WIC, não se tem registro de que tenha havido muitas conversões destes à fé cristã

reformada, visto estes gozarem de alguns privilégios durante o domínio holandês, sendo o

mais notável e documentado caso o da jovem Christina, filha de cristãos-novos, já

mencionado.

Dentre estes, podem ser citados a dispensa de guarda aos sábados nas Companhias

de Burgueses do exército, devendo pagar uma multa compensatória; liberdade de culto

religioso privado e – posteriormente – autorização para a construção de duas sinagogas, e

liberdade comercial e civil, subordinada às diretrizes da WIC e do Governo Geral.

Contra os judeus, porém, a Classe do Brasil fazia registrar em sua Assembléia de 3

de março de 1637, a segunda realizada no Brasil, um gravame contra “certa judia na

Paraíba, culpada de horrível sacrilégio contra o nosso Salvador Jesus Cristo e o Santo

Batismo, demandando que S. Exas. queiram puni-la conforme o grau de sua culpa” 130. O

fato de que essa mulher, cujo nome é omitido, estava em processo de conversão à Igreja

Reformada, fez o Presbitério desistir de demandar novas medidas contra ela, como se

registra na Assembléia de Classe de 05 de janeiro de 1638 131.

Nesta mesma Assembléia foram registrados gravames contra católicos e judeus,

como se lê:

Sessão 4

Gravames Gerais

(Gravame 1) . Há uma reclamação sobre a grande

liberdade dos Papistas, mesmo nos lugares que se

submeteram aqui no país, sem ter feito um acordo. Pois

pregam sem impedimento em igrejas públicas, os monges

habitam os conventos gozando de suas rendas , fazem

procissões nas vias, casam os Neerlandeses sem proclamas

a quem isto foi recusado por nós por motivos seguros, e

ouvem em confissão aos condenados à morte.

130 SCHALKWIJK, F. L.. A Igreja Cristã Reformada no Brasil Holandês. Rev. Inst. Arq., Hist. e Geog. dePernambuco, vol. LVIII: 145-284, 1993, p. 152.131 Apud idem, p. 162.

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A Classe resolveu falar a esse respeito e pedir a S. Exa. e aos

Altos Secretos Conselheiros, que no futuro, impeçam isso, de

que não há precedentes na Pátria. 132

É importante extrair desse Gravame o fato de que havia holandeses calvinistas que

se converteram ao catolicismo romano, visto que receberam autorização católica para casar-

se, presumivelmente com católicos. O texto não é suficientemente preciso para que se

estabeleça exatamente qual era a situação à qual o Presbitério se referia nem quão

freqüentemente ela ocorria.

Quanto aos judeus, prossegue a Assembléia:

(Gravame 2) . Também não são poucas as reclamações sobre a

grande liberdade que gozam os judeus no seu culto divino, a

ponto de se reunirem publicamente em dois lugares no Recife,

em casas alugadas por eles para esse fim.

Tudo isso contraria a propagação da verdade,

escandalizando os crentes e os portugueses que julgam que

somos meio judeus, em prejuízo das Igrejas Reformadas onde

tais inimigos da verdade gozam ao seu lado de igual liberdade.

Sobre isso julgam urgente recomendar muito seriamente à S.

Exa. e aos Altos Secretos Conselheiros que tal liberdade seja

tirada por sua autoridade.133

Aí se observa o desconforto do Presbitério da Igreja Reformada por os portugueses

confundirem os holandeses com judeus. Tal confusão, se havia de fato, pode ser devida à

quantidade significativa de judeus de origem portuguesa a serviço da WIC assim como aos

contatos tidos anteriormente à conquista holandesa, entre cristãos-novos de Pernambuco e

judeus de Amsterdã, o que foi investigado pelo Santo Ofício na Visitação de 1618-1621,

havendo a confirmação da suspeita dos cristãos-velhos de que os cristãos-novos. do

Nordeste brasileiro estavam, àquela época, havia mais de um quarto de século em contato

com judeus de Flandres e da Holanda, como já visto no capítulo anterior.

132 idem, p. 166.133 idem, p. 167.

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Embora nenhum dos autores dê razões concretas para as razões pelas quais os

holandeses se importariam com o que os portugueses deles pensassem, uma forte

possibilidade para isso é o fato de que, por ser um tempo de demarcações de identidades,

somado ao fato de que o outro – no caso, o católico romano – era o inimigo, essa confusão

identitária ser indesejável.

Igualmente quanto a algumas práticas dos católicos romanos, o Presbitério se

manifestava:

Sessão 5

Gravame Especial 1:

Apresenta-se que os portugueses nos lugares que se renderam

por acordo, exorbitam tanto da liberdade de sua religião, como

acontece na Paraíba, que não se contentam com o culto

desimpedido dentro dos muros dos templos, mas ostentam

publicamente nas ruas as suas procissões e espetáculos em

honra dos seus santos. Entre outras coisas, fincam um poste

com uma bandeira no topo, dando-se um prêmio ao que a tirar;

o que causa grande escândalo entre os nossos e confundem-se

os nossos facilmente com suas idolatrias pela cobiça dos

prêmios. Pergunta-se se não é necessário pedir um remédio a

isso.

Responderam ser preciso representar à S. Exa. e aos Altos

Secretos Conselheiros a pedir-lhes um edital contra esses

abusos porque são coisas que causam grande escândalo.134

(Gravame 5) . Em quinto lugar referem que alguns da nossa

nação toleram que, no princípio da moagem, segundo o uso dos

Papistas, os seus engenhos fossem consagrados por um padre

com benzeduras, cerimônias e rezas supersticiosas, tanto dentro

como fora das suas casas, com aspergimento d’água benta, etc.

134 idem, p. 169.

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Remédio contra isso é que os praticantes mais próximos

peçam e exortem aos senhores de engenho para que não

permitam isso futuramente.135

A primeira das práticas recriminadas é até a contemporaneidade freqüente no

Nordeste, sobretudo na época junina, enquanto que a segunda, caída em desuso com o

tempo, era a chamada “bênção da botada”, segundo a qual se acreditava que a bênção de

um sacerdote católico romano garantiria boa colheita.

A peça teatral “El Brasil Restituído”, de Lope de Vega, retratava essa opinião

generalizada, da qual Anita Novinsky tem visão divergente, apontando que vários cristãos-

novos, como Diogo Lopes Ulhoa, Domingos Álvares de Serpa e outros, combateram

ombreados aos portugueses contra o invasor holandês 136. A respaldar esse ponto de vista,

há o fato concreto de que dentre as pessoas que foram enforcadas após a expulsão dos

holandeses da Bahia, apenas uma era um cristão-novo. Nada obstante, o piloto holandês

Dierick Ruyters afirmara em 1623, com certo exagero, que “a maioria dos portugueses do

Rio da Prata até o Amazonas era de judeus, e que estes preferiam ver duas bandeiras laranja

a um inquisidor” 137. Desta forma, se há que se concordar com Boxer, quando este afirma

que a conquista da Bahia não foi devida à ínfima cooperação israelita 138, também não se

pode negar que houve cooperação e, mesmo, simpatia pela ocupação holandesa.

Convergia de católicos e protestantes o sentimento de descontentamento por serem

chamados “judeus”, uma vez que face à quantidade elevada de cristãos-novos portugueses

no comércio, “português” e “judeu” foram durante os séculos XVI e XVII tidos por

sinônimos em vários locais da Europa, fora, claro, da Península Ibérica, como afirmado por

António Carlos Carvalho 139.

Embora protestassem contra as restrições à liberdade de culto público determinadas

pelas autoridades holandesas, as autoridades eclesiásticas católicas romanas não tentaram

confrontar o poder civil holandês, visto essa atitude, no limite, acarretar o risco de ameaças

135 idem, p. 168.136 NOVINSKY, A.. Cristãos novos na Bahia. S. Paulo: Perspectiva, 1992, p. 40.137 No original: “meestendeel joden zyn, en liever twee Oraeinge vlagghen saghen, dan eenen inquisidor”,citado em “A Tocha da Navegação”. Separata RIHGB, 269:3-84, 1965.138 BOXER, Charles Robert. De Nederlanders in Brazilië 1624 – 1654. A. W. Sijthoff, Alphen, 1977, p. 123.139 CARVALHO, A. C.. Op. cit..

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concretas às propriedades eclesiais e à incolumidade dos membros do clero e dos próprios

fiéis.

Deste modo, houve conformação às restrições ao culto público católico romano,

sendo estas eventualmente burladas pela realização de procissões, o que indignava os

pastores calvinistas. Não apenas procissões não autorizadas foram realizadas, mas

igualmente várias que contaram com a aprovação do Governador-Geral João Maurício de

Nassau-Siegen.

O Regimento Geral das Praças Conquistadas e que Venham a ser Conquistadas,

aprovado pelos Estados Gerais em outubro de 1629, estabelecia em seu artigo 10º: “será

respeitada a liberdade dos espanhóis, portugueses e naturais da terra, quer sejam

católicos romanos quer judeus, não podendo ser molestados ou sujeitos a indagações em

suas consciências ou em suas casas e ninguém se atreverá a inquietá-los, perturbá-los ou

causar-lhes estorvo, sob penas arbitrárias, ou conforme as circunstâncias, exemplar e

rigoroso castigo”. 140 Contudo, o artigo 9o do mesmo Regimento preceituava que “o

conselho cuidará primeiramente do estabelecimento e exercício do culto público por meio

de ministros, segundo a ordem seguida na igreja cristã reformada destas Províncias

Unidas, a palavra Santa de Deus e o ritual da união aceito pelas mesmas Províncias” 141.

Vale dizer que, ao passo em que o artigo 10° assegurava a liberdade de culto, o anterior

estabelecia que a religião reformada seria a oficial.

Deste modo, era estabelecida a existência de uma igreja oficial, correspondendo à

religião de todos os magistrados e oficiais do Estado. Uma vez que no século XVII era uma

das funções do Estado a proteção à Igreja e o combate a todas as manifestações cismáticas e

heréticas, na Holanda as demais igrejas reformadas não calvinistas sofriam as mesmas

restrições que eram impostas aos judeus e católicos romanos, indo tais sanções das

restrições ao culto público até a privação de direitos civis dos seus fiéis.

Portanto, o que a Companhia das Índias estabelecia para o Brasil era tolerância às

demais manifestações de culto e não a liberdade religiosa; entendida esta como uma

conquista, e não uma concessão de acordo com os interesses do Estado. Essa tolerância era

muito mais devida a um pragmatismo da Companhia das Índias, para a qual os interesses

140 Apud NEME, Mário. Fórmulas políticas no Brasil holandês. S. Paulo: DIFEL, 1971, p. 158.141 Apud idem, p. 159.

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mercantis tinham precedência – ainda que não se descurasse da questão da defesa da fé

reformada.

Na circular de 25 de dezembro de 1634, distribuída aos habitantes da Paraíba, que a

tornou a base do “Pacto da Paraíba”, posteriormente estendido às demais Capitanias, era

afiançado pelo Governo de Recife, em nome dos Estados Gerais, do Príncipe de Orange e

dos Diretores da Companhia: “Em primeiro lugar, nós vos deixaremos livre o exercício de

consciência do mesmo modo como o tendes usado antes, freqüentando as igrejas e

praticando os sacrifícios divinos, conforme os seus ritos e preceitos, não roubaremos as

vossas igrejas nem deixaremos roubar, nem ofenderemos as imagens nem os padres nos

atos religiosos ou fora deles”.142

O que se depreende da leitura desses artigos é que a autoridade concede o direito à

liberdade de consciência, intervindo na religião – matéria de fulcro privado – e, de acordo

com a sua conveniência, facultando o exercício da prática religiosa aos grupos que não

professavam a religião do Estado.

Wätjen, citado por Mário Neme, assevera que “entre os pregadores chegados à

Colônia após a instalação do Sínodo, havia verdadeiros fanáticos, que cheios de abrasadora

cólera contra a Igreja Romana, seus padres e monges, cobriam-nos de maldições do alto do

púlpito” 143. Esse animus beligerante não tardou a se refletir na situação de católicos e

judeus. Os primeiros, de acordo com relatório de 1° de junho de 1636, de Servaes

Carpentier 144, viviam pacificamente e sem ter sofrido qualquer expropriação dos seus bens.

Em 1638, foram proibidas as procissões e todas as manifestações externas de culto

católico, assim como a proibição do casamento católico sem a licença da Igreja Reformada,

a bênção dos engenhos por padres145 e a extrema-unção, por padre, dada a portugueses

condenados à morte. Para burlar as exigências referentes ao matrimônio, os padres

passaram a realizar os casamentos de forma secreta, sem deles dar publicidade através de

proclamas.

142 Apud idem, p. 158.143 Apud idem, p. 161.144 MELLO, J. A. Gonsalves de. Fontes para a história do Brasil holandês. Recife: MinC/Fundação Pró-Memória, 1985, p. 41-52 (vol. 2).145 A cerimônia da “bênção da botada” era tradicional entre os donos de engenho no Nordeste do Brasil eacreditava-se que a falta da bênção poderia não apenas resultar em má colheita, mas também em acidentes eaté mesmo morte dos que trabalhassem naquele engenho.

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Com relação aos cristãos-novos judaizantes, há registro recolhido por Câmara

Cascudo de que esses “judaizantes” reuniram-se em uma sinagoga improvisada, “para os

lados de Camaragipe”, já em meados do século XVI (segundo Cascudo), para a celebração

das grandes festas judaicas (“Rosh Hashaná” – ano novo; “Yom Kippur” – dia do perdão;

“Purim” etc.) 146.

É lícito inferir que o mesmo faziam os judaizantes residentes em Recife e Olinda,

conquanto os primeiros registros dessas reuniões somente remontem à década de 1630,

quando não apenas o Recife, mas Pernambuco e parte do Nordeste do Brasil já se

encontravam sob o domínio holandês (1630 – 1654). Tais reuniões, nas quais também se

celebrava o Shabat, dia santificado na religião judaica, eram realizadas na casa emprestada

pelo cristão-novo David Senior Coronel 147.

A relativa liberdade religiosa trazida ao Brasil pelos administradores da Companhia

das Índias Ocidentais possibilitou à comunidade judaica solicitar ao Governador Geral da

Nova Holanda, Conde João Maurício de Nassau-Siegen, a autorização para a construção de

uma sinagoga, em 1641 , pedido que foi deferido, sendo remodelada e adaptada a casa até

então usada para as reuniões religiosas, sendo conjugada à casa vizinha.

É importante lembrar que, para os calvinistas holandeses, judaizar ou praticar a

religião judaica (ou mesmo a católica romana) não era crime, desde que a prática fosse

circunscrita às determinações do Governo-Geral, que as tomaria apoiado nos pareceres e

nas instruções do Conselho dos XIX, o Conselho Diretor da Companhia das Índias

Ocidentais.

Característica das comunidades judaicas européias, em Recife os judeus também

moravam majoritariamente em uma rua ou conjunto de ruas próximas, como demarcação

de um território de identidade cultural e religiosa. Em Recife, a maioria dos judeus foi

morar na Rua Nova, que logo passou a ser conhecida como “Rua Nova dos Judeus” ou

apenas “Rua dos Judeus”, como lembra Tânia Kaufmann 148.

A partir de 1630, os holandeses mudaram os topônimos de parte das regiões

conquistadas no Brasil, fazendo-o também em relação às ruas do Recife. Assim, a Rua

146 CASCUDO, L. da C.. Apud Mouros, franceses e judeus. S. Paulo: Ed. Perspectiva, 1984.147 Idem.148 KAUFMAN, Tânia Neumann. Passos perdidos, história recuperada: A presença judaica em Pernambuco.Recife: Ensol, 2000.

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Nova teve seu nome mudado para “Bokstraat” (“Rua do Bode”), embora a população

judaica e cristã permanecesse chamando-a “Rua dos Judeus”, sobretudo após a construção

da sinagoga “Kahal Kodesh Zur Israel” (“Sagrada Congregação Rocha de Israel”), cuja

frente era na Bokstraat, como lembra Tânia Kaufman, em “Passos perdidos – história

recuperada. A presença judaica em Pernambuco”:

“A sinagoga tinha frente para a Rua dos Judeus

(Bockstraet)...” 149.

Ainda com relação aos judeus, foi determinado o fechamento, em 1638, das duas

sinagogas recifenses, medida de breve duração, porém. Essas sinagogas, em verdade,

funcionavam inicialmente de modo informal na casa de cristãos-novos que haviam

assumido publicamente o judaísmo. A primeira congregação judaica de Recife foi criada

em 1636, enquanto que a de Maurícia, foi criada no ano seguinte. A obra da sinagoga “Zur

Israel” (“Rochedo de Israel”) começou em 1636, apesar dos protestos dos pastores Schagen

e Van der Poel, que foram levados pelo Conselheiro Seroodskercke aos Senhores XIX

através de carta datada de 25 de julho de 1636. Somente em 1641 foi construída a sinagoga

em seu prédio existente até hoje, na Rua do Bode, depois Rua dos Judeus, atual Rua do

Bom Jesus; enquanto que a sinagoga “Magen Avraham” (“Escudo de Abraão”), em

Maurícia, somente foi erigida em 1642 150.

As sinagogas de Recife e Maurícia foram objeto de estudo da Dissertação de

Mestrado de Frank dos Santos Ramos, defendida em 2006 na Universidade Federal

Fluminense, na qual é utilizada rica documentação 151.

A expulsão dos holandeses do Brasil em 1654 significou o fim da relativa liberdade

religiosa desfrutada pelos judeus desde 1630 e, com o fechamento da sinagoga naquele ano,

os portugueses vitoriosos mudaram o nome da rua para “Rua da Cruz”. O atual nome de

Rua do Bom Jesus vem dos tempos do Império, de 1879, como relata a mesma autora:

“Após a reconquista do Recife pelas forças luso-

brasileiras, a rua passou a ser conhecida como Rua da

149 KAUFMANN, T. N.. Op. cit., p. 24.150 Apud SCHALKWIJK, F. L.. Igreja e Estado…151 RAMOS, F. S.. Judeus Novos no Brasil Holandês – 1636-1654. Dissertação de Mestrado, Niterói:Universidade Federal Fluminense, 2006.

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Crua e os edifícios da antiga sinagoga e escolas religiosas

receberam o número 26. Somente a partir de 1879 o

logradouro passou a ter o nome atual de Rua do Bom

Jesus” 152.

A imposição de multas e a sobretaxação eram instrumentos de coerção empregados

pelo governo civil de Recife, em favor da fé reformada. É o caso, por exemplo, da igreja

dos franceses, construída pelos holandeses em 1642 a um custo de 8000 florins, dos quais a

metade veio da Holanda e metade foi a multa imposta a um “certo judeu blasfemador”, para

livrar-se da forca. Tal importância, para uma avaliação, correspondia ao salário médio de

um funcionário da WIC durante cinco anos e meio.

O Governador Geral João Maurício de Nassau-Siegen, entre 1636 e 1644, permitiu

a presença de religiosos católicos das ordens franciscana, carmelita e beneditina, tendo,

contudo, ratificado a proibição da presença de jesuítas, conforme preceituado no Regimento

das Praças Conquistadas, por a pregação jesuítica revestir-se de um caráter que contrariava

os interesses da Companhia das Índias. Registre-se que uma das peças de oratória mais

importantes da literatura do período colonial brasileiro é o “Sermão pelo bom sucesso das

armas de Portugal contra as de Holanda”, do padre jesuíta Antônio Vieira, composto em

1640.

A participação do jesuíta Antonio Vieira neste período é bastante intensa. Em um

primeiro momento, Vieira aceitou disputar com um rabino em Amsterdã. Posteriormente,

tornou-se admirador da obra do rabino Isaac Aboab da Fonseca, líder da comunidade

judaica pernambucana. Essa afirmação é baseada no bibliógrafo português Antônio Ribeiro

dos Santos, citado por Yehoshua David Weitman 153:

“Rabino Isaac Aboab era reconhecido também por

intelectuais não judeus, contemporâneos e posteriores. O

bibliógrafo português Antônio Ribeiro dos Santos (1745-

1818) registrou: ‘O Padre Antônio Vieira o ouviu pregar

diversas vezes, maravilhando-se por seu grande juízo e sua

ampla e excessiva sabedoria, costumando dizer sobre

152 KAUFMANN, T. N.. Op. cit., idem ibidem.153 WEITMAN, Y. D.. Bandeirantes espirituais do Brasil – século XVII. S. Paulo: IMESP/Maayanot, 2003,pp. 162-163.

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Menasseh [ben Israel] e ele que Menasseh dizia o que

sabia, e que Aboab sabia o que dizia’.”154

Ainda que não tenha havido liberdade de crença no tempo dos flamengos, não há

mais dúvida de que os holandeses mostraram-se mais tolerantes face a prática da alteridade

religiosa do que os católicos romanos portugueses e espanhóis. A inexistência de uma

estrutura eclesiástico-judicial , como o Tribunal do Santo Ofício, não elidiu aos calvinistas

holandeses criarem, através da interação das ações do governo da colônia e do presbitério

da Igreja Reformada, um mecanismo inibidor de manifestações de alteridade religiosa.

Toleravam-se as práticas religiosas de católicos romanos e de judeus enquanto elas

pudessem garantir alguma quietude aos praticantes dessas religiões e, por via de

conseqüência, a cooperação destas aos esforços da WIC.

Se os católicos resistiam de forma mais ostensiva, os judeus valiam-se de

integrantes da comunidade judaica de Amsterdã – cuja contribuição financeira foi

importante para a criação das Companhias das Índias – para pressionar o Conselho dos

XIX a fim de que as medidas coercitivas não fossem tomadas contra os judeus do Brasil.

Talvez por serem o vértice mais frágil desse triângulo, os judeus não registraram nas Atas

de suas Congregações quaisquer queixas contra os praticantes de outras religiões. Antes, ao

contrário, determinaram que seus membros jamais disputassem com cristãos reformados ou

com católicos romanos 155.

Não se pense, porém, que não havia sangue cristão-novo na Casa de Nassau.

Schalkwijk aponta alguns membros com sangue cristão-novo na Família de Nassau 156.

Contudo, houve profunda diferença face ao tratamento dado à herança cristã-nova pelas

Casas Reais da Holanda e de Portugal. No mesmo ano, 1642, em que D. João IV, primeiro

Rei de Portugal da Casa de Bragança, assistiu a um auto-da-fé em Lisboa, o Príncipe

154 SANTOS, A. R.. Memórias da Literatura Sagrada dos Judeus Portugueses no século XVII. ColeçãoMemórias da Literatura Portuguesa, Lisboa: Academia Real das Ciências de Lisboa, Tomo III, p. 300, 1792.Apud WEITMAN, Y. D., op. cit. ibidem idem.155 WIZNITZER, A.. O livro de atas das Congregações Judaicas “Zur Israel” em Recife e “MagenAbraham” em Maurícia, Brasil 1648-1653. Anais da Biblioteca Nacional vol. 74 pp. 214-240 (1955).156 Apud SCHALKWIJK, F.L.. Igreja e Estado no Brasil Holandês 1630-1654. S. Paulo: Ed. Cultura Cristã,2004, 3ª edição, p. 304, nota 27. São os seguintes membros os referidos: Mencia de Mendoza (cristã-nova),casada com o Conde Henrique III (falecido em 1538, irmão de Guilherme, o Rico – falecido em 1559); e D.Manuel de Portugal (cristão-novo, falecido em 1638), era casado com Emília de Nassau, filha de Guilhermede Orange-Nassau. Convém lembrar que D. Manuel de Portugal era filho do Prior do Crato, D. Antonio(falecido em 1595) e de sua amante, a cristã-nova Ana Barbosa.

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Frederico Henrique de Orange-Nassau foi com sua família visitar a ampliada sinagoga dos

portugueses no Houtgracht (atual Waterlooplein).

Mesmo antes desses eventos narrados, durante a Guerra dos Trinta Anos e depois

dela, muitos judeus, especialmente da Alemanha e Polônia, fugindo da Contra-Reforma,

buscaram (e encontraram) refúgio em Amsterdã. Não por acaso, na gíria holandesa,

Amsterdã é chamada de Mokum, palavra seguramente derivada do hebraico “haMakon”,

indicando “o Lugar”, por excelência 157.

Desde havia muito que se sabia na Holanda das dificuldades dos cristãos-novos do

Brasil, e de modo especial dos da Bahia. Em 1624, o pastor Willem Teellink escreveu em

um panfleto que “Judeus que o são em seus corações, ali são muitos naqueles países, apesar

de serem forçados a confessar algo diferente com a boca, por medo da Inquisição” 158.

Após a expulsão dos holandeses da Bahia, o presbítero Ewout Teellink, tesoureiro

da Província da Zelândia e irmão do pastor Willem, redigiu um panfleto intitulado

“Segundo Atalaia”, no qual se refere aos judeus como “a Igreja judaica” (sic!), tratando-a

por “nossa mãe”, lembrando que a Igreja cristã nasceu do judaísmo. Nesse mesmo ano, foi

publicado em Amsterdã um panfleto chamado “Trombeta da guerra”, pregando que a

guerra contra a Espanha e o poder católico-romano deveria continuar, pois a Holanda a

todos garantia liberdade de consciência 159.

Essa liberdade de consciência, expressa nos mencionados artigos do Regimento para

as Praças Conquistadas, repetia quase que textualmente os termos da “Declaração de

Utrecht”, de 1579, o qual preceituava em seu artigo 13 que “cada um em particular poderá

ficar livre em sua religião, e ninguém poderá ser alcançado ou investigado por causa de

religião” 160.

Deste modo, ao vir ao Brasil os judeus e cristãos-novos judaizantes residentes na

Holanda sabiam que seria respeitada sua liberdade de culto e de presença religiosa. Essa

liberdade possibilitou que o número de judeus no Nordeste da Colônia aumentasse

157 Importante lembrar que na religião judaica “haMakon” é um dos nomes de Deus; este, de modo especial,tirado do Livro de Esther, que narra a primeira grande perseguição coletiva aos judeus, nos tempos do ReiAssuero. Agradeço a Annelies Stellinga pela confirmação da informação sobre a gíria holandesa.158 TEELLINCK, W.. Davids Danckbaerheydt voor Gods Weldadicheyt. (Gratidão pela conquista daBahia) Middelburgh: V.d. Hellen, 1624, p. 50.159 Citados por SCHALKWIJK, Igreja e Estado..., p. 306.160 Apud VAN GELDEREN, M.. The political thought of the Dutch Revolt 1555-1590. Cambridge:Cambridge University Press, 2002, p. 41.

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rapidamente, quer por reconversão, quer por imigração. Como recorda Wiznitzer, carta

impressa do Reverendo Soler, de 1639, dizia que “dos portugueses, a maior parte são

judeus, ou cristãos-novos, isto é, irmãs e irmãos dos primeiros; os outros são papistas” 161.

Auguste de Quelen exagerava em 1640 ao escrever que o número de judeus era o dobro do

de cristãos;muito embora relatório do Governador-Geral João Maurício de Nassau, datado

de 10 de janeiro de 1641, advertisse os Senhores XIX que, mantido o fluxo de imigrantes

que se observava até então, o número de judeus muito em breve iria suplantar o de cristãos162.

Efetivamente, a necessidade de ampliar a sinagoga “Zur Israel”, para que nela

coubessem os congregantes, era um indicativo desse crescimento populacional judaico que,

apesar de concentrado em Recife, também se fazia presente em outras áreas da conquista

holandesa, como a Paraíba Nesta, se construiu em 1638 uma sinagoga que funcionou até

1644 163, quando, em razão de problemas, os escabinos locais determinaram que não

funcionasse mais no centro, mas sim na periferia da cidade, e, posteriormente, proibiram

seu funcionamento. A natureza desses problemas não é mencionada na bibliografia

consultada 164, na qual é citada unicamente a referência às Dageliksche Notulen, nas quais

consta a decisão dos Escabinos da Paraíba 165.

Esta decisão, contudo, pode ter sido a resposta da esfera política local a um gravame

de quatro anos antes, publicado nas Atas da Assembléia da Classe, de 20 de abril de 1640:

“Visto se saber que os Judeus cada vez chegam em maior

número a este país, atraindo a si o comércio por meio das

suas astúcias; também já conseguiram a maior parte das

lojas para si, e é de recear que tudo irá a pior, vergonha e

prejuízo para os cristãos, escândalo para os Brasilianos e

Portugueses, e enfraquecimento do nosso Estado. (...) Os

Irmãos julgam em conjunto ser de sua jurisdição e estrito

dever não somente protestar contra isso a S. Exa. e Altos

161 WIZNITZER, A.. Os judeus no Brasil colonial. S. Paulo: Pioneira, 1966, p. 70.162 MELLO, J. A. G.. Tempo dos Flamengos. Rio de Janeiro:Topbooks, , 4ª edição, 2001, p. 300 nota 94.163 Cf., a respeito dos judeus na Paraíba, FEITLER, Bruno. Inquisition, juifs et nouveaux-chrétiens auBrésil – Le Nordeste XVIIe et XVIIIe siècles. Louvain: Leuven University Press, 2003.164 Apud SCHALKWIJK, F. L.. Igreja e Estado…, p. 308.165 Dageliksche Notulen de 27/10 e de 12/11/1644, referindo a decisão tomada em 24/10/1644.

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Secretos Conselheiros (...) para o que ficou descrito acima,

seja remediado em tempo. E, como não haja país em todo o

mundo em que os Judeus não sejam limitados, que o mesmo

possa acontecer neste país, e os que agem contra isso sejam

punidos convenientemente. Ficou resolvido ainda protestar

esse assunto por meio de uma missiva ao Ilustre Colégio dos

XIX”. 166

Contudo, do ponto de vista formal e legal, aos judeus era plenamente assegurado

não apenas o direito de praticar sua religião, a chamada “liberdade de defensiva religiosa”,

segundo a qual poderiam recusar as ofertas de conversão, como também a “liberdade de

ofensiva religiosa”, ou seja, a possibilidade de fazer propaganda religiosa e receber pessoas

que quisessem converter-se ao judaísmo. Durante a ocupação holandesa, o mais célebre

missionário judeu foi Isaac de Castro, também chamado José de Lis ou José de Tartas, por

ter vindo daquela cidade da Gasconha, de maioria huguenote, nascido na França de pais

cristãos-novos. Wiznitzer e Gonsalves de Mello 167 relatam que Isaac de Castro chegou ao

Recife em 1641, com a idade de 16 anos, seguindo posteriormente para a Bahia. Wiznitzer

supõe que a missão precípua de Castro seria a de auxiliar os desejosos de retornar ao

judaísmo, em razão de seu grande conhecimento da lei mosaica. Sua missão encerrou-se

brevemente, face à denúncia que fizeram contra ele ao Governador Antônio Teles da Silva

de ser espião holandês. Após marchas e contra-marchas, foi entregue à Inquisição em 1644,

sendo queimado em auto-de-fé em Lisboa em dezembro de 1647, aos 22 anos 168.

Não foi a primeira nem a única tentativa de “reconversão” dos cristãos-novos ao

judaísmo, mas é de se destacar que a mais intensa atividade missionária judaica ocorreu em

Recife durante a conquista holandesa. Como recorda Anita Novinsky, vários cristãos-novos

abandonaram a incômoda dupla personalidade que cada marrano trazia, a de um judaísmo

166 SCHALKWIJK, F. L.. A Igreja Cristã Reformada…, p. 208.167 WIZNITZER, A.. op. cit., p. 18, e MELLO, op. cit. p. 95ss.168 Cf. LIPINER, E.. Isaque de castro – o mancebo que veio preso do Brasil. Recife: Massangana, 1992.

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em potencial sob uma fachada romana. Muitos, registra a autora, “tiraram a máscara de

cristãos-novos” 169, ainda que muitos tenham permanecido no catolicismo.

Retomando a questão da “liberdade de ofensiva religiosa”, o Presbitério denunciou

às autoridades civis que os judeus “tentavam converter cristãos”, o que resultou na

intimação dos anciãos da sinagoga, em 1645, para que prestassem contas ao governo dessa

denúncia. Vê-se, portanto, a contradição entre o disposto nos regimentos e normas legais do

Brasil Holandês e as atitudes das autoridades eclesiásticas da Igreja Cristã Reformada.

Os judeus intimados alegaram conhecer as leis vigentes nas Províncias Unidas,

especialmente na Holanda, que proibiam que cristãos fossem judaizados, mas alegavam que

na “Nova Holanda” as circunstâncias eram diferentes, e que, ademais, “várias pessoas

haviam aderido ao judaísmo”, mas “nenhuma delas se fizera circuncidar, exceto algumas

que eram da nação portuguesa que haviam sido antigos adeptos do judaísmo, e que agora,

com a liberdade sob o nosso governo, fizeram profissão pública desse fato” 170. Gonsalves

de Mello cita que o Governo, em seguida, informou aos Senhores XIX que “nunca tinham

tido notícia de que algum holandês ou alguém de outra nação houvesse sido circuncidado

por eles, mas que somente portugueses descendentes de judeus, que se fingiram cristãos sob

o governo espanhol, fizeram-se circuncidar depois de declarar publicamente que eram da

religião judaica, como os muitos que aqui existem entre os moradores portugueses,

conhecidos por cristãos-novos, ou descendentes de judeus que eram publicamente

conhecidos como cristãos fingidos” 171.

A teia de relações entre os poderes eclesiástico e civil, como mostrada no início

deste capítulo, mostraria sua utilidade quando o crescimento da comunidade judaica

ameaçou os interesses da comunidade cristã, seja ela católica romana (“cristã-velha”) ou

reformada. Os judeus do Brasil holandês, ao prosperarem no comércio, empurravam ambas

as comunidades cristãs para a periferia econômica, sobretudo nas atividades de mascate,

comércio de escravos, corretores e, de modo especial, cobradores de impostos. Gonsalves

169 NOVINSKY, A.. op. cit., pp. 134, 135 e 143. Notar que o capítulo 5 dessa obra chama-se, com muitapropriedade, “O Homem Dividido”, como já mencionado anteriormente.170 Dagelijksche Notulen de 20 de dezembro de 1640 e de 11 de dezembro de 1642.171 MELLO, J. A. G.. op. cit, p. 306, nota 107.

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de Mello afirma que em 1638, dos 11 cobradores de impostos que havia no Brasil holandês,

3 eram judeus, ao passo que em 1642, dos 17 cobradores, 12 eram judeus 172.

A reação não tardou e a Câmara dos Escabinos de Olinda, em 05 de dezembro de

1637, dirigiu uma representação ao Governo da Holanda, nos seguintes termos:

“(...)coerente com a guerra surda que os católicos de Pernambuco moviam contra os

israelitas estabelecidos entre nós... a Câmara Municipal de Olinda, nesta data, dirige uma

representação ao governo da Holanda contra a continuação da vinda de judeus (...) dizendo

(...) essa gente é tão odiosa (...) não merecem nenhuma amizade (...) pelo menos mandem

que não tenham mais larguezas das que têm na Holanda” 173. A Câmara da Paraíba

simplesmente pediu o banimento dos judeus.

Em verdade, a situação no Brasil Holandês, quer em termos religiosos, quer em

termos econômicos, mostrava-se muito mais favorável aos judeus do que na própria

Holanda, o que levou, como observou Gonsalves de Mello, a uma rara união no século

XVII: ações conjuntas de católicos e protestantes contra judeus 174. Em 1641, refere

Schalkwijk, apoiado em Wätjen e Wiznitzer 175, católicos romanos portugueses e

holandeses reformados apresentaram ao Governo-Geral um documento intitulado

“Objeções dos cristãos comuns” (“Gravamina der gemeene cristenen”) com 66 assinaturas,

demandando que aos judeus se lhes impusesse símbolos externos, como chapéus

vermelhos, a fim de que fossem distinguidos dos cristãos, assim como protestou contra a

imigração de judeus vindos da Polônia, Espanha, Turquia, Itália e Norte da África. Em

1651, a Câmara de Olinda pediu que os judeus tivessem apenas os mesmos privilégios que

tinham na Holanda.

O que se observa é que a dinâmica dos protestos religiosos segue o mesmo ciclo dos

protestos econômicos na esfera política civil. O primeiro ciclo destes, como já visto,

ocorreu em 1637, a partir do episódio da blasfêmia proferida por aquela “certa judia da

Paraíba” contra o batismo e o nome do Senhor, somente minorado quando os “irmãos da

Paraíba informaram que ela estava em processo de conversão”, e do “escândalo” causado

pelo culto judaico, sobre o qual pediram providências ao Governo Geral. Esse ciclo de

172 MELLO, J.A.G.. op. cit. p. 111 3 307.173 COSTA, F.A.P.. Anais Pernambucanos (10 vols.). Recife: Arquivo Público Estadual, 1952-1966, vol. III,p. 73.174 MELLO, J.A.G.. op. cit., p. 296.

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protestos coincidiu com a consolidação da presença da comunidade judaica no Brasil

holandês.

O início da década de 1640 marcou o segundo ciclo de protestos das autoridades

religiosas holandesas contra a comunidade judaica, coincidindo com o aumento na

imigração judaica para o Brasil holandês. Os episódios mais emblemáticos dessa fase são

os protestos contra a construção da sinagoga “Zur Israel”, já visto neste capítulo, e o caso

do “pequeno enteado”, que é descrito pormenorizadamente por Schalkwijk 176.

Este caso foi a determinação do Presbitério ao Governo-Geral para que

encaminhasse à Holanda, para ser educado na fé reformada, um jovem, filho do primeiro

casamento de uma judia (anteriormente membro da Igreja Reformada) com um reformado.

Em 20 de abril de 1640, um casal de judeus compareceu diante do Presbitério. O marido era

filho de um judeu francês e havia sido batizado como católico romano, quando criança.,

tendo sido instruído sobre a Lei judaica por seu pai, tendo sido circuncidado na Holanda

posteriormente. A esposa era também filha de um judeu francês e pertencera à Igreja

Reformada quando jovem, tendo se casado pela primeira vez com um reformado francês,

que não tinha qualquer ascendência judaica. Logo após o nascimento do filho, seu primeiro

marido morreu. A mulher casou-se com seu segundo marido, na Igreja Católica de La

Rochelle, de onde o casal seguiu para Amsterdã, onde abraçou abertamente o judaísmo. Seu

filho foi circuncidado naquela cidade quatorze meses após o segundo casamento da mãe,

mesmo com a relutância do padrasto. De Amsterdã seguiram para Recife; mas a família do

primeiro marido daquela mulher demandou que o menino fosse enviado à Europa, para ser

educado na religião cristã, como era desejo do falecido pai do jovem. Acionado o

Presbitério, este assim se manifestou, na Assembléia de 21 de novembro de 1640:

“A respeito do Judeu e da Judia com seu filho, referem os

Deputados que o menino, por ordem de S. Exa. e dos Altos

Secretos Conselheiros, foi mandado para a Pátria ao D.

[Dominee] Rivet, por ser seu parente; que também S. Exa.

e Altos Secretos Conselheiros prometeram mandar os pais,

o que não aconteceu. Ficou resolvido a esse respeito pedir

175 SCHALKWIJK, F. L.. Igreja e Estado…, p. 314, e especialmente as fontes na nota 103.176 SCHALKWIJK, F. L.. Igreja e Estado…, pp. 315-316.

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novamente a S. Exa. e Altos Secretos Conselheiros que

realizem a promessa”. 177

Desta forma, foi assegurado o direito da família do rapaz, sobrepujando a vontade e

os direitos da mãe. Tudo faz certo que a questão da filiação religiosa foi preponderante

para a decisão do Presbitério.

Esta decisão já estava formalmente tomada desde a Assembléia de abril daquele

ano, na qual, após o interrogatório do padrasto e da mãe do rapaz, assim ficou registrado

nas Atas:

“Após o interrogatório, foi resolvido que os D. Deputados

insistirão com S. Exa. e Altos Secretos Conselheiros para

que estas pessoas sejam enviadas à Pátria e o menino

entregue aos amigos do pai, para ser educado pelos

mesmos na Religião Cristã”. 178

Outro exemplo das tensões entre as comunidades holandesa e judaica foi a morte do

contratador judeu Moisés Abendana, que merece uma análise pouco mais detalhada.

O contratador de açúcar e de negros Moisés Abendana contraiu dívidas com

credores holandeses que somavam 12 mil florins. Foi encontrado enforcado em 5 de agosto

de 1642, deduzindo as autoridades que ele se suicidara em razão de sua insolvência. A

Câmara dos Escabinos proibiu o enterro e determinou que seu corpo fosse exposto na

forca, o que teria a dupla função de desprestigiar a comunidade judaica e alertar os

moradores contra os judeus. Somente após a intervenção de dignitários da comunidade

judaica local, assumindo as dívidas de Moisés Abendana (David Senior Coronel, Jacob

Senior, Mordechai Abendana e João da Fonseca) junto a Maurício de Nassau, este

reformou a sentença dos escabinos permitindo que o enterro fosse realizado.

É necessário que se esclareça o posicionamento da Halachá 179 sobre o suicídio.

Citando Alan Unterman:

“É proibido tirar uma vida inocente, inclusive a própria, e

por isso acreditava-se que o suicida perderia seu lugar no

177 SCHALKWIJK, F. L.. A Igreja Cristã Reformada…, p. 202.178 SCHALKWIJK, F. L.. A Igreja Cristã…, p. 195.179 A Lei judaica, não apenas aquela escrita na Bíblia, mas também aquela proveniente da interpretação dosrabinos.

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mundo por vir (olam ha-bá). (...) No passado, os suicidas

eram sepultados numa extremidade do lado de fora do

cemitério judaico e nenhum ritual de luto era feito em sua

homenagem. Hoje em dia, no entanto, presume-se que os

suicidas não são responsáveis por suas ações, e são tratados

como qualquer outra pessoa. Há várias circunstâncias em

que o suicídio é permitido ou prescrito.(...)” 180

Deste modo, o autor estabelece uma contraposição entre o passado e o presente na

tradição judaica no que se refere ao suicídio. É divergente, porém, a interpretação dada por

Philip Birnbaum:

“A proibição judaica ao suicídio é baseada na

interpretação tradicional de Gênesis 9:5 (“E por certo o

sangue de vossas almas requererei” 181). (...) Quão mais

próxima for a relação com a pessoa assassinada, mais

horrível é o crime, e o homem é o mais próximo de si

próprio. (...) Tem sido notado que uma pessoa é

considerada um suicida somente quando existe absoluta

certeza de que ele premeditou e cometeu o ato com plena

consciência, sem estar perturbado com por grande medo

ou preocupação que o tenha levado a temporariamente

perder sua razão (Hatam Sofer, Yoreh Deah 326).

As leis de luto são suspensas no caso de um suicida: não

se faz keriá 182 , não é feito nenhum panegírico, não se faz

shivá 183, a menos que seja evidente que o ato tenha sido

praticado por loucura ou medo da tortura, como no caso

do Rei Saul”. 184

180 UNTERMAN, A.. Dicionário judaico de lendas e tradições. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994,pp. 254-255.181 Adotado aqui o texto de “Torá – A Lei de Moisés” (São Paulo: Ed. Sêfer, 2001).182 Parte do cerimonial do luto judaico, no qual o enlutado faz um rasgo em sua veste.183 Observância estrita de luto pelo período de sete dias.184 BIRNBAUM, P.. Encyclopedia of Jewish Concepts. New York: Hebrew Publishing Company, 1995,p.76.

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Deste modo, Birnbaum introduz um elemento importante que é a voluntariedade do

ato de suicidar-se. Efetivamente, o tema tem merecido abordagens diferentes – e, por

vezes, conflitantes – entre rabinos. Há os que sustentam, como lembrado por Unterman,

que algumas vezes o suicídio foi encorajado na história judaica como uma forma de fazer

kiddush Hashem, a santificação do Nome de Deus pelo martírio voluntário.

Não se tratava, no caso de Moisés Abendana, de kiddush Hashem, como os mártires

suicidas de Massada, no ano 73 da era Cristã, ou dos sete filhos suicidas de Ana, como

narrado no Segundo Livro dos Macabeus. Portanto, era de se estranhar em uma

comunidade fortemente observante da ortodoxia da Lei, que houvesse tanto empenho em

sepultar um presumido e declarado suicida de acordo com a tradição e o rito judaicos.

José Antônio Gonsalves de Mello reporta o caso Abendana como exemplar da

“forte odiosidade contra os israelitas” 185, considerando “inesperada” a decisão da Câmara

dos Escabinos. Estes decidiram que o corpo de Moisés Abendana deveria permanecer

insepulto, ficando exposto em uma forca “como um alerta aos moradores contra a nação

judaica”. O Governador-Geral João Maurício de Nassau somente reformou a decisão dos

Escabinos quando um grupo de judeus assumiu a responsabilidade pela quitação do débito

de Moisés Abendana. Consta nas Dagelijksche Notulen (Nótulas Diárias) de 5 e 6 de agosto

de 1642 que esses judeus eram Duarte Saraiva, Jacob Senior, Mardochai (ou Mordechai)

Abendana e João da Fonseca que, em 6 de agosto daquele ano requereram ao Governador-

Geral autorização para sepultarem o corpo de Moisés Abendana. A dívida foi plenamente

quitada em 19 de agosto de 1642, como atesta documento firmado pelos comerciantes

holandeses 186.

Ocorre que exatamente naquele mesmo ano um judeu fora torturado, no mês de

fevereiro, por ordem da Câmara dos Escabinos de Maurícia, para que dele se extraísse uma

confissão de blasfêmia, como consta nas Dagelijksche Notulen de 14, 19 e 21 de fevereiro187. Esta ação levou o Conselho dos XIX a remeter cartas ao Governador-Geral para indagar

o que havia acontecido, face aos protestos da comunidade judaica de Amsterdã.

185 MELLO, J.A.G.. op. cit., p. 270.186 MELLO, J.A.G.. op. cit., p. 284.187 MELLO, J.A.G.. Ibidem idem.

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Ainda em 1642, um judeu blasfemador foi apanhado na rua e linchado pela

multidão, como relatado por Gonsalves de Mello 188.

Este precedente de violação da integridade física de um membro da comunidade

judaica pelo poder público pode ter levantado a suspeição no seio da comunidade judaica

recifense de que seu correligionário talvez não tivesse se suicidado mas que fora

assassinado por seus credores ou a mando destes.

Ribemboim cita o “caso Abendana” como um caso “cujo desfecho, até hoje, se

encontra ainda por esclarecer” 189, enfatizando que “Abendana é encontrado morto por

enforcamento, deduzindo as autoridades que o mesmo se suicidara por não ter podido

saldar suas dívidas”, acrescentando que “a Câmara dos Escabinos, numa atitude inusitada (e

por isso mesmo suspeita) proíbe o enterro do inditoso comerciante e determina que seu

corpo fique exposto na forca”.

Wiznitzer afirma: “Outro escândalo envolvia no mesmo ano o judeu Moses

Abendana, que se suicidou, enforcando-se” 190. Ressalta, porém, que “os judeus disseram

que Abendana não se suicidara, mas fora assassinado”. O autor acrescenta que os escabinos

determinaram que o corpo de Moisés Abendana fosse enforcado nas galés, como castigo

póstumo por sua falência. Refere, ainda, Wiznitzer que naquele mesmo ano os judeus

queixaram-se de que o capitão Dassinex aprisionara judeus em Igaraçu “somente pelo fato

de eles praticarem sua religião”, o que corrobora a afirmativa de Ribemboim, no texto já

mencionado, de que “os judeus comentavam à boca pequena que se estava tentando

implantar no Recife uma ‘Inquisição Calvinista’, visando a perseguir os membros da

comunidade judaica”.

Face ao exposto inicialmente acerca da postura judaica face aos suicidas e ao

suicídio e considerando-se que as Congregações judaicas de Pernambuco primavam pelo

rigor – muitas vezes excessivo – em relação a seus membros, conforme consta de suas

ordenações e Livros de Atas, compilados por Arnold Wiznitzer 191 – não transigindo com

qualquer desvio de conduta de seus membros, por menor que fosse esta – , tudo faz certo

188 MELLO, J.A.G.., p. 304, apud NEME, M., op. cit. p.177.189 RIBEMBOIM, J. A. Senhores de engenho – Judeus em Pernambuco Colonial 1542 – 1654. Recife: 20-20 Comunicação Editorial, 1998, pp. 71-73. O texto reproduz artigo seu publicado no boletim KOL ISRAEL,de setembro de 1986, da Federação das Organizações Israelitas de Pernambuco.190 WIZNITZER, A.. op. cit., pp. 75-76.

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que a Congregação não transigiria em matéria de tamanha gravidade como o suicídio de um

de seus membros, demandando a um custo pecuniário e político elevado a permissão para

sepultá-lo.

O que se vê no caso de Moisés Abendana é que, por mais que fosse declarado pelas

autoridades que houve suicídio, com as devidas provas, ainda assim insistiu-se no pedido

de permissão para o sepultamento, fazendo claro que seus correligionários acreditava em

causa diversa para a morte do que o putativo suicídio voluntário.

Do judeu que blasfemou em 1641 foi cobrada multa de 4 mil florins, importância

utilizada especificamente para a construção da Igreja dos Franceses 192. No ano seguinte, o

corretor judeu Daniel Gabilho fugiu de seus credores, deixando enorme dívida por pagar.

Capturado, foi torturado, tendo este fato chegado ao conhecimento da comunidade judaica

de Amsterdã, que encampou e propagou a expressão que a comunidade judaica do Recife

cunhou, afirmando estar em marcha uma “inquisição calvinista” 193.

As negociações da comunidade judaica de Amsterdã com os Senhores XIX fizeram

com que estes determinassem ao Governo-Geral no Brasil que a blasfêmia deveria ser

castigada no Brasil tal como estabelecido nas leis holandesas, e que tal assunto deveria ser

tratado diretamente pelo Conselho de Justiça, a instância maior legal no Brasil holandês.

Como resultado desse jogo de pressões em Amsterdã e em Recife, em 1642 foi

elaborado na República das Províncias Unidas um regulamento para os judeus, feito em

razão do interesse da Companhia das Índias em continuar a exploração comercial do Brasil,

para a qual os judeus se revelavam súditos bastante leais e cooperadores. A professarem

publicamente fé no judaísmo, e não desejarem retornar ao jugo luso-espanhol, em tudo

deveriam empenhar-se para garantir a vitória dos interesses holandeses. Esse regulamento

constava de sete pontos, a saber:

“1 – Não edificarão novas sinagogas.

2 – A nenhum judeu será permitido casar com cristã ou ter

concubina cristã.

191 WIZNITZER, A.. O livro de atas das Congregações Judaicas “Zur Israel” em Recife e “MagenAbraham” em Maurícia, Brasil 1648-1653. Anais da Biblioteca Nacional vol. 74 pp. 214-240 (1955).192 Esta Igreja, o Templum Gallicum, foi o único construído pela administração holandesa no período doBrasil Holandês. Era usada pelos franceses a serviço da WIC para seus cultos e celebrações. (ApudSCHALKWIJK, F. L., Igreja e Estado no Brasil Holandês.193 RIBEMBOIM, J. A. Senhores de engenho..., p. 53, e SCHALKWIJK, F. L., Igreja e Estado..., p.316.

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3 – Não poderão converter cristãos ao mosaísmo, nem

chamá-los da liberdade evangélica para a Lei velha, nem da

luz para as sombras.

4 – Nenhum judeu poderá ultrajar o sacrossanto nome de

Cristo.

5 – No recenseamento dos corretores, não excederão a terça

parte do respectivo número.

6 – Comerciando, não fraudem ninguém.

7 – Os filhos nascidos de judeu e de cristão, morrendo os

pais, serão entregues aos parentes cristãos para ser

educados. Os que não os tiverem, serão educados em

orfanatos, se forem pobres, ou serão entregues ao Conselho

Secreto, se forem ricos.” 194

Ao comentar em nota este regulamento, Schalkwijk afirma que “o conflito religioso

mascarava o conflito real, de natureza econômica, e este continuava sem solução” 195.

Contudo, as autoridades coloniais holandesas mostraram-se muito menos rigorosas

do que as determinações dos Senhores XIX requeriam, chegando, ao fim do período

nassoviano, quando do retorno de Maurício de Nassau à Holanda, a ser afirmado pelo rev.

Plante, seu capelão pessoal e presidente do Sínodo do Brasil no período 1641-42, que

“havia tanta liberdade para os judeus que ultrapassava toda a crença”, opinião idêntica à do

reverendo Soler, que declarou aos Deputati ad res indicas, em 05 de setembro daquele ano,

que “a liberdade [aos judeus] era tão grande que não se achava assim em nenhum outro

lugar” 196.

De certo modo, a comunidade israelita do Brasil holandês via o Conde Maurício de

Nassau como fiador de sua liberdade, e Wiznitzer relata que quando os judeus souberam

que Nassau desejava voltar à Europa, procuraram-no, entregando-lhe um documento e

oferecendo-lhe a soma de três mil florins a cada dia 1º de janeiro por todo o tempo que

194 Apud BARLEU, G.. op. cit., p. 327.195 SCHALKWIJK, F. L.. Igreja e Estado…, p. 317, nota 125.196 Relatório do Reverendo Plante aos Senhores XIX, em 18 de julho de 1644.

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ficasse. Quando Nassau partiu, em 11 de maio de 1644, várias famílias israelitas deixaram

o Brasil 197.

Efetivamente, após a partida de Nassau, tanto o Presbitério quanto o Governo-Geral

passaram a adotar posições mais severas e restritivas, mais próximas àquelas em vigor na

Holanda. A eclosão da insurreição portuguesa, em junho de 1645 fez com que judeus e

holandeses se reaproximassem, superando momentânea e aparentemente suas divergências.

O governador da Bahia, Antônio Telles da Silva, familiar do Santo Ofício, mandou

carta ameaçadora ao governo de Recife, acusando os judeus de, através de suas perfídias,

provocar conflitos entre portugueses e holandeses, assinalando que os judeus “eram os mais

pérfidos e irredutíveis inimigos da cristandade” 198. Quando o sul da Capitania de

Pernambuco foi reconquistado pelos portugueses, em meados de 1645, a situação para os

judeus parecia haver retrocedido uma década ou mais, quando em junho daquele ano três

judeus foram enforcados em Ipojuca, recordando o enforcamento de Manuel de Castro (ou

Crastro), supliciado em 1635 em Porto Calvo, juntamente com Domingos Fernandes

Calabar, quando da efêmera retomada daquela cidade pelos portugueses. Em 30 de agosto

de 1645, dois judeus foram capturados em Pau Amarelo e, no mesmo dia, condenados,

catequizados, batizados e enforcados, gerando protestos enérgicos do Governo Geral, do

Recife, a André Vidal de Negreiros.

Essa preocupação parecia sincera, considerando-se a ponderação do governo

recifense aos Senhores XIX naquele mesmo ano, afirmando que discordava da insistência

dos Presbitérios de Recife e de Amsterdã no que se refere à liberdade concedida aos judeus,

uma vez que as determinações foram para que se tratassem os judeus como súditos da

República Holandesa.

Esta igualdade de direitos somente foi votada pelos Estados Gerais em 7 de

dezembro de 1645, não devendo ser confundida com a cidadania, que somente foi conferida

nove anos mais tarde pelos mesmos Estados Gerais quando, em 1654, espanhóis

começaram a capturar navios holandeses, que partiam do Brasil em direção às possessões

197 WIZNITZER, A.. op. cit., p. 195.198 WÄTJEN, H.. op. cit., p. 372.

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holandesas no Caribe, e a prender os judeus que neles estavam, desejando entregá-los ao

Santo Ofício 199.

A intensificação dos combates e do cerco a Recife fez com que os judeus buscassem

fugir do Brasil sempre que fosse possível. No início da insurreição, a população judaica no

Recife era estimada em cerca de 1.450 pessoas, decaindo para cerca de 720 em 1648 e

apenas 600 em 1654.

Todos os que decidiram permanecer foram incluídos pelos holandeses na

capitulação de Taborda, em 1654, cujo artigo segundo previa que “o mesmo perdão seria

estendido aos judeus que se encontram em Recife e em Maurícia”.

Ronaldo Vainfas 200 registra que este privilégio era fruto do memorial endereçado

pela Congregação Talmud Torah, de Amsterdã, matriz das congregações de Recife, ao

burgomestre da cidade, externando sua preocupação com o avanço da revolta dos luso-

brasileiros, que poderia significar o retorno ao status quo anterior à ocupação holandesa.

Esse memorial, de 28 de setembro de 1645, solicitava aos holandeses “apoio aos judeus do

Brasil em caso de vitória portuguesa”, sendo respondido através da “Carta dos Estados-

Gerais em favor da Nação Judaica estante no Brasil”, de 7 de dezembro daquele ano, que

atestava a fidelidade dos judeus aos holandeses e “garantindo que, em qualquer acordo com

os inimigos, os judeus gozariam dos mesmos privilégios dos holandeses, ‘sem fazer

nenhuma diferença ou separação entre eles e os outros dos nossos nativos, em nenhuma

maneira, no menos nem no mais’” 201.

Vetado este artigo pelas autoridades de Lisboa, o mestre-de-campo Francisco

Barreto concedeu aos judeus que se encontravam em Recife e Maurícia o prazo de três

meses para desaparecer, após o que ele não poderia garantir a segurança aos que haviam

sido cristãos-novos, sujeitos ao Santo Ofício que, inclusive, já tinha um agente em

Pernambuco, o vigário-geral padre José Pinto de Freitas 202.

Todas essas questões, desdobradas do problema inicial, ou seja, se havia um anti-

judaísmo específico da Igreja Cristã Reformada, conduzem ao aprofundamento da

199 BÖHM, G.. Los sefardíes en los dominios holandeses de América del Sur y del Caribe 1630–1750.Frankfurt: Vervuert Verlag, 1992, p. 70.200 VAINFAS, R.. A questão dos judeus novos, in A presença holandesa no Brasil: memória eimaginário. TOSTES, V. L. B. et al. (orgs.) Rio de Janeiro: MinC/IPHAN, Museu Histórico Nacional, 2004,pp. 259-270201 VAINFAS, R.. op. cit. p. 265.

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discussão sobre a existência ou não de uma “questão judaica” no Brasil holandês, e como

ela se matizava. Se não havia um explícito anti-judaísmo, havia, contudo, a clara intenção

de estabelecer limites para a ação dos judeus em Pernambuco. As razões políticas

somaram-se às econômicas, gerando conflitos e estimulando limitações que alcançaram a

esfera religiosa.

202 SIQUEIRA, S.A.. A Inquisição portuguesa e a sociedade colonial. Rio de Janeiro: Ática, 1979, p. 149.

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CAPÍTULO III“Geração escolhida, sacerdócio régio, Nação santa.”

“Mas vós sois a geração eleita, o sacerdócio real, a nação santa,o povo adquirido, para que anuncieis as virtudes daquele que voschamou das trevas para a sua maravilhosa luz; vós, que em outrotempo não éreis povo, mas agora sois povo de Deus; que nãotínheis alcançado misericórdia, mas agora alcançastesmisericórdia.”(Primeira epístola de Pedro, II:9-10)

“Crê isso, ó Menasseh!Deste modo ficarei eu Cristão e tu, Judeu.”(Gaspar Barléu)

Para completar o quadro que se começou a delinear no capítulo I, acerca das

relações entre os cristãos reformados e os judeus – e de que forma essa relação se

desdobrou entre a Holanda e o Nordeste da Colônia Brasílica, é necessária uma breve

digressão a respeito de como a Reforma Protestante via os judeus.

Como citado por Pierre Chaunu 203, “Jean Delumeau, Lucien Febvre e W. L. Langer

se encontram sobre este ponto: a explicação da Reforma, se ela existe, é uma explicação

religiosa”. Com isto, quer se dizer que as explicações político-econômicas podem ser

consideradas como secundárias para que se compreenda a Reforma Protestante pelo viés da

História Cultural. A pregação inicial da Reforma era a volta do Cristianismo às suas raízes

judaicas, valorizando-as ao invés de sua herança helênica, vista como pagã e facilitadora da

decadência e corrupção morais. Neste sentido, os judeus eram vistos como portadores da

veritas hebraica, a “verdade judaica” 204.

O objetivo maior dos Reformadores era a conversão dos judeus à fé cristã,

reformada e purificada de seus vícios e pecados helenísticos, apresentada de forma cortês e

persuasiva, da qual se enfatizariam sempre seus componentes judaicos – então

absolutamente negligenciados ou mesmo negados dentro da Igreja Romana. Havia uma

certeza quase que absoluta de que os judeus se converteriam, prenunciando o Milênio, a

nova vinda do Cristo – a Parusia – e a inauguração da Jerusalém terrestre, espelho da

Jerusalém celestial, descrita no Livro do Apocalipse 205. Parecia-lhes certo que os judeus

203 CHAUNU, P.. L’Aventure de la Réforme. Paris: Ed. Complexe, 1991, p. 46.204 Cf. especialmente o capítulo 5 de MÉCHOULAN, H., Dinheiro & Liberdade...205 Para uma visão mais aprofundada do milenarismo nos séculos XVI e XVII, ver COHN, Norman, Thepursuit of the Millennium. Oxford: Oxford USA Trade, 1990.

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ainda não se haviam convertido à fé cristã porque esta lhes era apresentada de forma

corrompida, na qual não se sobressaíam os laços com o judaísmo.

Da convergência de milenarismo e admiração da veritas hebraica serve como

exemplo a carta do pastor Jean Brun:

“São pessoas que se comportam muito modestamente neste

país. (...) Eles desejam ardentemente a prosperidade, e

quisesse Deus que os cristãos que aqui nasceram e vivem

fossem tão bons patriotas. (...) Eu me surpreendo que essas

pessoas sejam tão zelosas pelo bem do Estado e tão modestas

em matéria de religião. Mas eles mesmos me fizeram

facilmente compreender a razão. É que, disseram eles, aqui

não se sofre a idolatria, nem se cultuam imagens, como na

Espanha, na Itália e em outros lugares; que aqui há um

governo admirável, que a justiça é aplicada com eqüidade.

(...) De sorte que se Deus quiser converter esse povo um dia,

como é de se esperar em sua misericórdia, parece que Ele se

servirá da Holanda e da cidade de Amsterdã para efetuar

uma obra tão maravilhosa” 206.

Havia, da parte dos reformados, especialmente dos calvinistas, o desejo de

identificar-se com o Israel bíblico. Portanto, ao lado de converter os judeus ao cristianismo,

buscavam os protestantes também legitimar sua herança religiosa como proveniente do

judaísmo, de modo especial na República Holandesa. Os missionários da Igreja Cristã

Reformada que embarcavam nos navios da Companhia das Índias Orientais com destino à

África do Sul a partir do estabelecimento do núcleo colonizador naquele lugar, em 1652,

designavam-se e aos colonos como “os novos israelitas”, entendendo haver um paralelo

entre a conquista de Canaã pelos hebreus e a conquista daquela nova terra pelos holandeses.

Daí enfatizarem em suas pregações que a eles se aplicava stricto sensu o texto da Primeira

Carta de Pedro (1Pd. 2:9-10): “Mas vós sois a geração eleita, o sacerdócio real, a nação

santa, o povo adquirido, para que anuncieis as virtudes daquele que vos chamou das trevas

206 BRUN, J.. La véritable réligion des Hollandais. Amsterdã, 1675, pp. 221 ss..

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para a sua maravilhosa luz; vós, que em outro tempo não éreis povo, mas agora sois povo

de Deus; que não tínheis alcançado misericórdia, mas agora alcançastes misericórdia”.

Na República Holandesa, os judeus foram mais do que apenas tolerados: foram

aceitos. Méchoulan cita a ambígua frase do embaixador Conrad van Beuningen a Luís XIV,

que se indignou ao saber que uma nação cristã acolhia judeus: “Majestade, já que todos os

países os expulsam, é necessário que Amsterdã os acolha” 207. A ambigüidade da frase

reside nas razões para a acolhida; se apenas por simpatia e tolerância religiosa, ou se por

razões mercantis. Estas, podiam tornar-se políticas na guerra, visto que o ódio comum de

holandeses e judeus aos católicos espanhóis seguramente contribuiu para essa aproximação

e aliança. Efetivamente, uma razão não exclui a outra.

Méchoulan 208 registra, ainda, o grande interesse que havia entre os holandeses em

travar contato com os judeus, chegando muitos de seus teólogos, filósofos e pastores a

aprender hebraico, buscando uma melhor compreensão do Antigo Testamento e, de certo

modo, aproximar-se mais da já referida veritas hebraica.

Essa deferência religiosa tinha, certamente, uma contrapartida comercial, pois a

comunidade judaica de Amsterdã, cada vez mais crescente e próspera, contribuía

fortemente para o enriquecimento e o fortalecimento da Holanda. Eram, nas palavras do

mesmo autor, que emprestam título a outra obra sua, “mercadores e filósofos” que se

beneficiavam da tolerância religiosa existente 209. Importante lembrar que, como registra

Kaplan 210, esta tolerância somente se deu após a queda de Antuérpia, em 1585, tomada

pelas forças espanholas. Antes disso, prevalecia, implementada pelas Províncias e pelos

Conselhos Municipais, na prática e apesar da “Declaração de Utrecht”, a política anti-

judaica que havia apagado quase todo traço da presença judaica nos Países Baixos. Refere o

mesmo autor que “aos judeus estava proibido o acesso às cidades da nova república e o

culto da religião judaica seguia nelas sem ser permitido” 211. Somente o êxodo de mais de

cem mil pessoas da região de Flandres e de Brabantes, dentre os quais muitos da “Nação

207 MÉCHOULAN, H.. Dinheiro & Liberdade..., p. 134.208 MÉCHOULAN, H.. Dinheiro & Liberdade...209 MECHOULAN, Henry. Amsterdam XVIIe siècle – Marchands et philosophes: les bénéfices de latolérance. Paris: Ed. Autrement, 1993.210 KAPLAN, Y.. Judíos nuevos en Amsterdam – estúdio sobre la historia social e intlectual deljudaísmo sefardí en el siglo XVII. Barcelona: Gedisa Editorial, 1996, p.12.211 KAPLAN, Y.. Ibidem idem.

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Portuguesa de Antuérpia” 212, a maioria dos quais dinâmicos comerciantes cristãos-novos,

judaizantes alguns, outros, assimilados ao cristianismo. Foram estes homens os que

estabeleceram os contatos comerciais com cristãos-novos na América Portuguesa,

impulsionando atividades comerciais importantes na nova República e possibilitando o

fluxo imigratório de novos judeus e cristãos-novos de outras partes da Europa.

Desta forma, razões de Estado e motivações religiosas convergiam para garantir aos

judeus, posteriormente, a possibilidade de alguma liberdade de culto e de expressão

religiosa, o que tornou Amsterdã um dos destinos preferidos dos judeus de outras regiões

da Europa, ameaçados quer pela Inquisição católica, quer pela intolerância de príncipes e

pastores reformados.

Muitos dos judeus recém-chegados a partir da década de 1560 a Amsterdã eram

cristãos-novos que escondiam seu judaísmo sob a máscara do catolicismo, e que na

Holanda podiam reassumir sua identidade judaica. Outros, porém, eram cristãos-novos que

jamais haviam sido judeus, pois que perderam ou nunca tiveram contato com o judaísmo.

Estes, assediados pela atividade proselitista dos judeus, para que assumissem o judaísmo,

criou uma nova categoria religiosa, os “judeus-novos”. Eram homens estigmatizados tanto

pelos cristãos, que ou os sabiam ou os suspeitavam judaizantes, como pelos judeus ou

judaizantes, que os tinham visto assimilar-se ao cristianismo. Essa situação é bem

exemplificada no poema de Miguel (Daniel Levi) de Barrios 213:

“Con un pueblo estás mal quisto

por lo que te apartas del,

otro no te juzga fiel

por lo que fingir te ha visto”.

Faz-se necessário ressaltar que esse fenômeno era característico da comunidade

sefaradi de Amsterdã, não se aplicando à comunidade asquenazi 214 que chegou à Holanda

posteriormente. Esses judeus centro-europeus ou da Europa do Leste não haviam passado

pelo mesmo fenômeno que levou os judeus da Europa Ocidental a ser convertidos forçada e

212 O mesmo autor estima a comunidade de cristãos-novos naquela cidade em cerca de 400 pessoas àquelaépoca.213 Citado como epígrafe ao livro Judíos nuevos en Amsterdam – estúdio sobre la historia social eintlectual del judaísmo sefardí en el siglo XVII, de Yosef Kaplan.214 Asquenazi ou Ashquenazi (aceitando-se as variações da transliteração) refere-se aos judeus da EuropaCentral e Oriental.

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massivamente; desta forma, lhes era praticamente desconhecido o criptojudaísmo, pois que

em seus países de origem conheceram ou massacres ou expulsões, mas não a conversão

forçada, que, se e quando ocorreu, foi fenômeno absolutamente pontual. Portanto, estes

jamais poderiam ser “judeus novos”, pois sempre foram judeus. Isto vale também para os

cristãos novos sefaradis.

Assim, pode-se afirmar que a comunidade sefaradi de Amsterdã no início do século

XVII, era composta majoritariamente de ex-criptojudeus ou descendentes de conversos que

haviam fugido da Península Ibérica e que buscavam seu retorno ao judaísmo após um hiato

de gerações em sua convivência com o universo judaico. Não receberam valores judaicos

transmitidos ledor vador 215, como preceitua a tradição judaica, e sua sociabilização se deu

em um universo não apenas cristão, mas fortemente anti-judaico. Muitos conseguiram obter

informações sobre a fé judaica (ou sobre o que esta poderia ser) apesar das dificuldades

para travar contatos com judeus de fora da Península Ibérica. Assim, considerando-se a

Holanda do século XVII, não é de se estranhar que seus conhecimentos sobre o judaísmo e

sua prática fossem tão difusos, imprecisos, algumas vezes conflitantes e, por isso mesmo,

pouco ou não confiáveis para judeus que jamais perderam o contato com a tradição.

Para muitos deles, a primeira comunidade judaica que conheceram foi aquela que

eles mesmos fundaram, como informa Kaplan 216. Mesmo sendo assistidos por rabinos

sefaradis 217 que foram à Holanda oriundos do Império Otomano 218, da Itália e do Norte da

África, ainda assim a principal responsabilidade pela organização e estruturação da

comunidade foi desses judeus, o que os levou a inaugurar um modelo de organização

comunitária inteiramente novo, diferente dos modelos de comunidades sefaradis existentes

na diáspora judaica.

Uma das situações paradoxais vividas por esses “judeus novos” refletia-se no fato

de que, simultaneamente a muitos cristãos-novos que chegavam a Amsterdã fugindo da

215 Hebraico: De geração em geração; conceito caro ao judaísmo por sua significação de transmissão devalores, observâncias, preceitos etc. em uma continuidade de tempo.216 KAPLAN, Y.. Op. cit., p.34.217 Necessário esclarecer que, dadas as diferenças culturais, incluindo as lingüísticas, e as de culto eobservância, comunidades sefaradis e asquenazis têm, sempre que for possível, rabinos de sua mesma origem.218 Uma das razões alegadas pelos financistas judeus da Alemanha e de outras regiões da Europa para nãocontribuir financeiramente com o esforço de guerra dos príncipes cristãos contra os turcos foi o fato de quehavia muitos judeus, inclusive alguns influentes, no Império Otomano, levando vida muito melhor do que osdemais judeus levavam sob a quase totalidade dos Principados da Cristandade; daí seu desejo de não apoiaruma guerra que poderia voltar-se contra os judeus que viviam como súditos do Império Otomano.

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Inquisição, havia “judeus novos” que, após terem formalizado sua conversão ao judaísmo e,

inclusive, feito profissão pública de fé, retornavam às “terras de idolatria”. Autores como

Kaplan e Vainfas têm salientado que vários cristãos-novos nunca foram judeus.

Não apenas esse paradoxo era notado, mas igualmente a importante referência a

“Nação”. Nos documentos das Congregações de Amsterdã, os termos “Gente da Nação”,

“Gente da Nação Portuguesa” ou ainda “Gente da Nação Espanhola e Portuguesa” referem-

se tanto aos seus membros quanto a todos os judeus da diáspora ibérica, ou, ainda, os

judeus expulsos de Portugal e que se fixaram no Ocidente e, mesmo, no limite, aos cristãos-

novos que residiam nas “terras de idolatria”.

Parafraseando Chaunu, pode-se afirmar que se a causa para a intolerância é

religiosa, a causa para a tolerância é comercial. Grell e Scribner relembram o caso das

cidades de Frankenthal, Altona e Glückstadt, no Palatinado, cujos Conselhos Municipais,

no início do século XVII, decidiram aplicar a tolerância aos refugiados e imigrantes valões,

judeus e holandeses que lá chegavam, muitos oriundos de Hamburgo e Frankfurt, cidades

nas quais a hostilidade do clero luterano fazia com que a tolerância fosse meramente

formal. Continuam os autores afirmando que “uma semelhante razão de estado

mercantilista está por trás das ações do governo de Elizabeth I, da Inglaterra” 219.

Desta forma, os pujantes e empreendedores mercadores judeus foram aceitos e

tolerados na República das Províncias Unidas, uma vez que sua ação e seus contatos na

Europa e nas Américas, especialmente dentro do território controlado pelo inimigo

espanhol, fariam prosperar as Províncias Unidas e suas Companhias Licenciadas para

Comércio nas Índias.

Considerando-se a existência de conflitos entre os interesses eclesiais e os do Estado

e das Companhias de comércio na República Holandesa, emergia a figura do magistrado

como moderador das crises. Em acurada definição de Méchoulan,

“a autoridade do magistrado sustenta a Igreja na medida em

que esta concorre com seus funcionários – os pastores – para

o bem público. A Igreja deve velar pela proclamação do

Evangelho e evitar entrar em espinhosas questões

dogmáticas que avivam as divisões e causam as secessões.

219 Op. cit. p. 8.

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Os pastores, privados de qualquer poder político, devem

exercer um papel pacífico e trabalhar, mesmo contra sua

vontade, na manutenção da tolerância” 220.

Faz-se necessário recordar que, no apogeu do triunfalismo calvinista, na Holanda,

ninguém negava a liberdade de consciência, vista como uma prova da libertação da “tirania

papal”. Todavia, para a verdade calvinista, liberdade de religião e de opção religiosa não

significava liberdade de expressão. “Liberdade de consciência não significava permitir que

seitas viciosas falassem livremente, deste modo seduzindo corações e criando discórdia.

Antes, as autoridades públicas tinham o dever de silenciar aqueles que tentassem minar a

verdadeira religião que eles perversamente se recusaram a aceitar. Colocado de outra

forma, a liberdade de consciência era viver em Cristo, o que, na prática, implicava aderir à

fé reformada protestante” 221.

Méchoulan aborda o problema por outro viés:

“Por liberdade de consciência entende-se o direito que o

homem possui de meditar na solidão de seu lar, de ler as

obras de sua escolha, de expressar, no meio de sua família e

de seus amigos, as suas opiniões. Ninguém, em Amsterdã,

questiona essa liberdade. Mesmo não se podendo negar a

incidência confessional sobre a carreira ou a profissão,

nunca a segurança pessoal ou de seus bens esteve ameaçada.

O que é admirável é, sobretudo, a possibilidade de não

freqüentar nenhuma Igreja, de não pertencer a nenhuma

seita” 222.

Andrew Pettegree remonta ao início da República Holandesa a determinação dos

ministros da Igreja Reformada em converter toda a sociedade à sua fé: “Em termos mais

amplos, os ministros, naqueles anos, estimulados por seu quase inacreditável progresso, de

seita banida a Igreja oficial, esperavam agora construir seu sucesso, criando uma igreja

220 MECHOULAN, H.. Amsterdam XVIIe siècle – Marchands et philosophes: les bénéfices de latolérance. Paris: Ed. Autrement, 1993, p. 42.221 VAN GELDEREN, M.. The political thought of the Dutch Revolt, 1555-1590. Cambridge: CambridgeUniversity Press, 1992, pp. 250, 257-8.222 MECHOULAN, H.. Amsterdam XVIIe …, pp. 48-49.

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nacional, mesmo uma sociedade calvinista, na qual eles exerceriam uma influência

preponderante em várias áreas da vida social” 223.

As políticas de tolerância religiosa existentes na República Holandesa no século

XVII são o tema de um importante estudo de Joke Spaans, intitulado “Religious policies in

the seventeenth-century Dutch Republic” 224. As políticas de tolerância, sustenta o autor,

eram fruto de uma calculada disputa de poder entre a Igreja e o Estado, não sendo o

calvinismo de per se um modelo de tolerância, mas trazendo consigo o pragmatismo

necessário para entender e utilizar a tolerância como ferramenta de estabilidade e promoção

econômica 225.

Esse pragmatismo, matriz do “espírito do capitalismo” weberiano 226, dava tanto aos

ministros quanto aos magistrados calvinistas a possibilidade de administrar conflitos tendo

em vista sempre também os interesses da República Holandesa. Nesse jogo de tensões,

havia espaço mesmo para o “papismo”, ligado umbilicalmente ao “inimigo hereditário”

espanhol. Estes conseguiam reunir-se clandestinamente em várias cidades, e outras vezes

de forma aberta e ostensiva, burlando a lei e os placares de proibição dessas reuniões,

inclusive ameaçando a autoridade civil, como no episódio de Texel, em 1616, citado por

van Nierop 227. Ainda assim, e considerando sua utilidade para os negócios da República

Holandesa, a autoridade civil permitia que se realizassem reuniões “secretas” das quais

eram sabidos o lugar, os participantes e o que se faria nelas.

Sendo Igreja de conquista, a Igreja Cristã Reformada ao chegar ao Brasil procurou

reproduzir o cenário existente na Holanda, com o diferencial de que os pastores que aqui

chegaram encontraram uma sociedade majoritariamente católica romana estabelecida, à

qual se impuseram por missão convertê-la à fé reformada. Contudo, deveriam igualmente

observar os interesses de seus mantenedores, o Estado e a Companhia das Índias

Ocidentais, na definição e aplicação de uma política de tolerância. Sua implantação (ou

223 PETTEGREE, A.. The politics of tolerance in the Free Netherlands, 1572-1620, in Grell e Scribner, op.cit., pp. 182-198.224 In PO-CHIA HSIA, R. e H. F. K. van Nierop (eds.). Calvinism and Religious Toleration in the DutchGolden Age. Cambridge: Cambridge University Press, 2002, pp. 72-86.225 Sobre a intolerância religiosa calvinista, especialmente em Genebra, a “Roma protestante”, focando demodo particular no suplício de Miguel Servet, ler CAMMILLERI, R. La vera storia dell’Inquisizione.Roma: Ed. Piemme, 2001, e CHAUNU, P. L’Aventure de la Réforme – le monde de Jean Calvin, op. cit..226 WEBER, M.. A ética protestante e o espírito do capitalismo. S. Paulo: Companhia das Letras, 2004.227 VAN NIEROP, H. F. K.. Sewing The bailiff in a blanket: Catholics and the law in Holland, in PO-CHIAHSIA, R e H. F. K. van Nierop (eds.), op. cit., pp. 102-111.

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transplante) no Brasil registrou exatamente a aplicação desse mecanismo de tensões e

distensões em seu diálogo com o poder civil e com as demais forças participantes da

dinâmica social, consideradas suas origens e práticas religiosas. Assim, tentou-se

transportar para o Brasil a mesma prática de tolerância exercida em Amsterdã.

Esta distinção é particularmente importante, pois que, quando da chegada de uma

expressiva leva de pastores oriundos sobretudo da Zelândia, a partir de 1636, estes, como já

se viu, descritos por Mário Neme como muito mais fanáticos 228, procuravam adotar a

mesma rigidez e as mesmas restrições existentes em Walcheren, já citadas no capítulo I, e

que incluíam a proibição do acesso de judeus às profissões liberais e a algumas outras

funções, no que não foram bem sucedidos.

Se comparadas superficialmente, as cidades de Recife e Amsterdã guardam muito

mais diferenças do que semelhanças. Contudo, são estas diferenças as que merecem uma

observação importante para que se compreenda a ação da Igreja Cristã Reformada no

Brasil. Se Recife, diferentemente de Amsterdã, não era um pólo de convergência para todo

tipo de refugiados, particularmente os refugiados em razão de matéria religiosa, havia

naquela cidade, diversamente de em Amsterdã, a questão dos cristãos-novos, judaizantes ou

não, que eram olhados com desconfiança por seus vizinhos cristãos-velhos após as

Visitações do Santo Ofício ao Nordeste da América Portuguesa em 1591 e em 1618, como

relata Ribemboim 229.

Durante a conquista e ocupação holandesa do Nordeste do Brasil, a questão

religiosa foi tratada pela historiografia de forma mais esmaecida que a política, fato que, de

forma alguma, deixará pouco claro o conflito entre os reformados e os católicos, um dos

centros de gravidade dessa abordagem. O judaísmo foi tratado levemente e, embora Boxer,

citando Fr. Manuel Callado, aponte a existência de duas sinagogas legais em Recife, deu

mais atenção à importância da política conciliatória movida por Nassau ao analisar as atas

da assembléia legislativa convocada pelo conde em agosto de 1640, assim como às normas

ou orientações deixadas para seus sucessores, após seu retorno à Holanda em 1644. Boxer

conclui que a política de João Maurício de Nassau “respeita a tolerância em matéria de raça

228 NEME, M.. op. cit. p. 161.229 RIBEMBOIM, J. A.. Senhores de Engenho – Judeus em Pernambuco Colonial 1542 – 1654. Recife:20-20 Comunicação Editorial, 4ª edição, 1998, p. 34.

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e de religião”230, procurando verificar a envergadura de suas conseqüências. Mas isso não

quer dizer pouco interesse quanto a essa tolerância surgida na conjuntura nassoviana. Boxer

ressalta que ela se estendia aos próprios judeus, apesar do comum ódio e menosprezo que

os predicantes e frades sentiam por eles.

De modo geral, Wizntzer considera a administração holandesa branda, justa e

permissiva à abertura de possibilidades, mas Nassau teria a difícil tarefa de lidar com a

grande diversidade da população: brasilianos, portugueses, espanhóis, judeus, cristãos-

novos, holandeses e escravos negros. O autor lembrará ainda um agravante: a presença de

soldados mercenários de muitas nacionalidades dentro do exército de ocupação, como

ingleses, franceses, poloneses e alemães. Ressalta, porém, o rápido sucesso de Nassau,

dando “a todos os habitantes do Brasil Holandês o senso de segurança que deriva da

consciência de viver-se em um país com base na lei.”231

Em O Negócio do Brasil232, obra que deu continuidade à saga dos restauradores

luso-brasileiros de Olinda Restaurada233, Evaldo Cabral de Mello questiona essa vitória

portuguesa e a conseqüente expulsão dos holandeses, apontando que a saída dos holandeses

se deveu mais aos vários acordos diplomáticos decorrentes da Restauração Portuguesa, em

1640, do que a uma suposta luta bravia dos colonizadores luso-brasileiros. Trata da

liberdade religiosa dada aos comerciantes, incluindo os judeus e cristãos-novos, como fator

relevante para o convívio harmonioso e o bom andamento das negociações e do comércio

entre nações.

Em outra obra-chave para que se compreenda esse período, Rubro Veio234, Evaldo

Cabral de Mello refere-se à questão judaica, tendo por base a chegada e o estabelecimento

dos judeus de Amsterdã ao Brasil, nos seguintes termos:

“Não foi por acidente que se atirou a outro povo, os judeus,

conhecido pela sua agudeza comercial, a mesma pecha de

incapacidade para a lavoura, atividade enobrecedora,

advinda de um alegado apego à mercancia, atividade

230 BOXER, C. R.. Os Holandeses no Brasil. Op. cit. p. 165.231 WIZNITZER, A.. Os judeus no Brasil Colonial. Op. Cit., p. 54.232 MELLO, E. C.. O Negócio do Brasil: Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669. 3a ed. Rio deJaneiro: Topbooks, 2003.233 MELLO, E. C.. Olinda Restaurada: guerra e açúcar no Nordeste, 1630-1654. 2a ed. Rio de Janeiro:Topbooks, 1998.

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envilecedora; e que na Península Ibérica dos séculos XVI e

XVII identificava-se o cristão-velho autêntico, não com a

nobreza que se sabia penetrada de sangue semítico, mas com

os lavradores, incontaminados, no seu isolamento rural, de

contatos judaizantes, no contexto do fenômeno que Américo

Castro designou por ‘rustificação’, aquela ‘inversão violenta

do sistema das valorações sociais’, que explica boa parte do

vigor dos preconceitos antiintelectuais na Espanha e em

Portugal, preconceitos que não contribuíram pouco para

segregar estes países da modernidade.”

Outro referencial da historiografia desse período, José Antonio Gonsalves de Mello,

em sua obra Tempos dos Flamengos, refere-se nestes termos à tensa relação entre os judeus

e os cristãos existente no Brasil Holandês: “Os inimigos da religião judaica e dos judeus em

geral não eram apenas os católicos brasileiros, mas também os holandeses reformados” 235.

Seguramente, uma das razões que se pode atribuir para tal seria, nas palavras do mesmo

autor, o fato de que alguns cristãos novos “revelaram-se, com o livre exercício da religião,

marranos; circuncidaram-se e mudaram os nomes, passando a usar outros mais

caracteristicamente israelitas” 236. Nada obstante, o mesmo autor refere um fato que parece

estar na origem dessa hostilidade: “É fato que os judeus iam, inegavelmente, apoderando-se

dos principais negócios da colônia: o comércio a retalho, a venda de açúcar, os contratos

para cobrança de impostos, a venda dos negros, a corretagem. No Brasil gozavam eles de

direitos que em Amsterdã não lhes eram concedidos, como manter lojas ou ter solicitadores

seus no foro”.237

De certo modo, essa possibilidade seria endossada pelo mesmo autor em sua obra

Gente da Nação: “A chegada incessante ao Recife desses judeus, quer individualmente,

quer em famílias e em grupos, começou a inquietar seriamente aos holandeses, sem falar

nos moradores luso-brasileiros, que viam na odiada ‘gente da nação’ os maiores inimigos

234 MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, pp. 337-338.235 MELLO, J. A. G.. Tempo dos flamengos: influência da ocupação holandesa na vida e na cultura doNorte do Brasil. 3a ed. aum. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana; Instituto Nacional do Livro, 1987, pp.251-252.236 Idem, p. 247.237 Idem, p. 259.

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da fé católica; percebia-se já sua presença em diversas atividades econômicas da colônia

desde 1635” 238.

Os cristãos-novos não eram um problema para os holandeses, tal como não eram os

judeus confessos que chegaram com as forças de ocupação. Nem problema religioso, nem

problema econômico, em um primeiro momento. Em movimento análogo ao que aconteceu

aos judeus que haviam chegado a Amsterdã, as autoridades holandesas, lastreadas no

Regimento para as Praças Conquistadas, concederam a liberdade de prática religiosa,

devendo estar claro que muitas das restrições existentes na Holanda foram transplantadas

para o Nordeste brasileiro. A maior evidência disso foi a expulsão dos católicos romanos de

Recife em 1630, somente recebendo permissão para retornar seis anos depois 239.

Não havia um “problema judaico” no Brasil holandês, em razão de prática religiosa

pelos cristãos-novos ou pelos judeus que, lenta e gradualmente, foram recebendo permissão

para organizar-se em congregações, seguindo o modelo existente em Amsterdã que, como

já se viu, não era cópia de qualquer outro, constituindo-se em experiência inédita.

Importante mencionar que os católicos romanos tiveram permissão para regressar a

Recife em 1636, com base no respeito à liberdade de consciência que lhes foi assegurado

pelo Pacto da Paraíba, de 1634, e pelo Acordo de 1636. A permissão para voltar a residir

em Recife e Olinda dada aos católicos romanos serviu como dinamizador da economia

naquelas cidades.

O ano de 1636 foi o da inauguração da Sinagoga Zur Israel, a primeira das

Américas, inaugurada em Recife, com a permissão do Governo Geral e após solicitações

encaminhadas pela comunidade judaica de Recife.

Deste modo, pode-se inferir que a mesma capacidade de gerar a circulação e o

acúmulo de bens, que fez os judeus ser bem aceitos em Amsterdã, pois cooperavam para a

prosperidade das Províncias Unidas, teria, no Brasil Holandês, despertado rancores

ancestrais.

Não se quer dizer que as questões econômicas fossem as únicas motivadoras das

tensões e pressões contra os judeus no Brasil Holandês, pois isso seria, mutatis mutandis,

endossar a tese de que, por seu turno, a Inquisição seria uma “fábrica de judeus”, a indicar

238 MELLO, J. A. G.. Gente da Nação: Cristãos-novos e judeus em Pernambuco, 1542-1654. 2a ed. Recife:FUNDAJ, Editora Massangana, 1996, p. 223.239 NEME, M.. Op. cit., p. 167.

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que as razões de ordem econômica prevalecessem sobre todas as demais. É preciso, porém,

ressaltar que foi somente quando a comunidade judaica residente nos domínios holandeses

prosperou é que as pressões através da Câmara dos Escabinos e da Classe do Brasil se

fizeram mais fortes.

A vasta rede de contatos comerciais estabelecida pelos cristãos-novos e judeus da

Holanda e do Brasil Holandês, na Europa, Caribe, África e em outros pontos da América

luso-espanhola, estabelecida desde o século XVI, foi, indubitavelmente, um importante

fator de propulsão para sua prosperidade comercial. Prova disso é que em menos de uma

década após a chegada dos holandeses, eram judeus ou cristãos-novos os maiores

comerciantes de escravos e açúcar no Atlântico Sul, como atestam vários autores, dentre os

quais podemos destacar Russel-Wood 240, que cita a presença judaica, quer atuando junto

aos portugueses, quer junto aos holandeses, ou ainda Salvador, que em suas duas obras

sobre o tema, dá a medida da hegemonia dos mercadores judeus e cristãos-novos nessas

atividades econômicas 241.

A dimensão da atuação dos judeus e cristãos-novos no comércio de escravos, foi

estudada por dois autores com bastante propriedade, ambos ratificando a necessidade dos

“braços negros para o ouro branco”: o holandês Klaas Ratelband 242 e o brasileiro Pedro

Puntoni 243. Em sua dissertação de Mestrado, Wolfgang Lenk 244 assinala a preponderância

dos interesses econômicos na ocupação da Bahia pelos holandeses, particularmente a

produção e comercialização do açúcar.

Isto corrobora a afirmação de Evaldo Cabral de Mello no sentido de que a ocupação

holandesa no Nordeste do Brasil foi motivada pelo açúcar, antes de qualquer outro

interesse, como no já citado livro Olinda Restaurada e também na obra O negócio do

Brasil 245.Schalkwijk introduz um outro elemento no jogo de tensões e pressões no Brasil

240 RUSSEL-WOOD, A. J. R.. Um mundo em movimento – os portugueses na África, Ásia e América.Lisboa: Difel, 1998.241 SALVADOR, J.G.. Os cristãos-novos, povoamento e conquista do solo brasileiro (1530-1680). S.Paulo: Pioneira, 1976 e SALVADOR, J. G.. Os magnatas do tráfico negreiro. S. Paulo: Pioneira, 1977.242 RATELBAND, K.. Os holandeses no Brasil e na Costa Africana. Lisboa: Veja, 2003.243 PUNTONI, P.. A mísera sorte – a escravidão africana no Brasil holandês e as guerras do tráfico noAtlântico Sul, 1621-1648. São Paulo: Hucitec, 1999.244 LENK, W.. A idade de ferro da Bahia – guerra, açúcar e comércio no tempo dos flamengos, 1624-1654. Dissertação de Mestrado, Instituto de Economia, Unicamp, Campinas, 2003.245 MELLO, Evaldo Cabral. O negócio do Brasil – Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641 – 1669.Rio de Janeiro: Topbooks, 2003.

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Holandês, ao informar que “os judeus também preocuparam-se com a grande liberdade

político-religiosa dos católicos romanos, fornecendo informações secretas ao governo 246.

Na nota de rodapé referente a esta informação, aponta, baseado nos arquivos, Moisés da

Cunha como a pessoa que passou, em 14 de outubro de 1644, essas informações, não

especificando sua natureza ou quem era Moisés da Cunha, para que se possa melhor

compreender as suas razões 247.

A liberdade política e religiosa dos católicos romanos não deveria ser algo estranho

aos judeus residentes no Brasil, o que torna algo singular esse desconforto, sendo, pela

ausência de mais informações acerca do autor da reclamação, impossível precisar se seria

motivação pessoal ou se refletiria um desconforto da comunidade judaica pernambucana

quanto a essa liberdade.

A questão das queixas do Presbitério quanto à matéria de liberdade religiosa pode

ser entendida pelo prisma de que havia divergências, por parte dos pastores, quanto à

interpretação das cláusulas do Regimento das Praças Conquistadas, de 1629, do Pacto da

Paraíba, de 1634, e do Acordo de 1636. Schalkwijk reitera – e os Gravames das Atas

corroboram isso – que era entendido pelos integrantes do Presbitério que a liberdade de

culto e de consciência era restrita à esfera doméstica, privada, e que ninguém seria

importunado por matéria de religião 248. O Presbitério reiterava continuamente nas Atas das

Assembléias Classicais que a “liberdade no Brasil é muito maior do que na Pátria”, como

se pode extrair dessa nota, por exemplo:

A Classe resolveu falar a esse respeito e pedir a S. Exa. e aos

Altos Secretos Conselheiros, que no futuro, impeçam isso [a

administração de sacramentos católicos aos condenados à

morte], de que não há precedentes na Pátria. 249

(da Assembléia de 05 de janeiro de 1638)

Essas considerações ratificam o exposto no capítulo I desta dissertação acerca do

intento de Usselinckx, ao propor a criação da Companhia das Índias Ocidentais. A questão

246 SCHALKWIJK, F. L.. Igreja e Estado…, p. 357.247 A fonte encontra-se no arquivo da Antiga Companhia das Índias Ocidentais (Oude West-IndischeCompagnie), no Algemeen Rijks-Archief (Arquivo Geral do Reino), em Haia, na documentação das “Cartas ePapéis do Brasil”. Referência ARA-OWIC 59, BPB 1644/25 e BPB 1644/26 e 1644/27.248 SCHALKWIJK, F. L.. Igreja e Estado…, p. 359.249 SCHALKWIJK, F. L.. A Igreja Cristã... p. 166.

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religiosa, portanto, vinha a reboque da questão econômica, podendo ser ampliado o

comentário de que se as razões para a tolerância religiosa encontravam-se nas causas

econômicas, igualmente nestas repousavam as razões para a intolerância.

Desta forma, era na tênue linha que existe entre o dever da observância zelosamente

calvinista quanto à prática da religião e o pragmatismo imposto pelos interesses da WIC

que os pastores da Igreja Cristã Reformada deveriam mover-se no tempo de seu ministério

no Brasil Holandês.

Verificamos que não havia, a princípio, qualquer forma de anti-judaísmo específica

por parte dos calvinistas na Holanda, o que quer dizer que, por extensão, igualmente este

não havia – ou, ao menos, não deveria haver – no Brasil Holandês por parte dos ministros

religiosos e das autoridades civis. Mesmo o virulento anti-catolicismo existente na Holanda

e na Igreja na Holanda mitigou-se no embate entre a retórica do Presbitério da Igreja

Reformada no Brasil e a pragmática das autoridades civis holandesas.

Dados levantados por Schalkwijk apontam para um percentual de cerca de 60% de

católicos romanos nos domínios holandeses no auge da conquista holandesa, em 1640 250.

Ainda que tal número possa ser contestado, por subestimar eventualmente o número de

católicos, é importante recordar que na primeira década da ocupação holandesa, cerca de

dez mil luso-brasileiros emigraram dos domínios holandeses para a Bahia, em duas grandes

ondas emigratórias: a primeira, imediatamente após a conquista, e a segunda, após o

massacre de 35 brasileiros na capela de Cunhaú 251. Mesmo a proteção legal concedida aos

católicos romanos não parece lhes ter dado segurança para permanecerem nos domínios

holandeses. Registre-se que em 1637 as forças holandesas intervieram para evitar o

massacre de portugueses pelos tapuias na conquista do Ceará e que, anos mais tarde, o

250 SCHALKWIJK, F.L.. Igreja e Estado no Brasil Holandês, p. 334.251 Este episódio é bastante controverso em suas leituras pelas historiografias brasileira e holandesa, tendosido, pela abordagem daquela, ordinariamente atribuído aos holandeses. Foi, entretanto, praticado em 16 dejulho de 1645, festa de Nossa Senhora do Carmo, por indígenas tapuias, liderados pelo alemão Jakob Rabbi,que massacraram 25 portugueses durante a celebração de uma missa em uma capela no engenho de Cunhaú,na cidade de Canguaretama (RN) em retaliação ao massacre de 23 indígenas pelos portugueses após arendição de Sirinhaém. O episódio, até hoje, é objeto de ressentimentos por parte da Igreja Católica Romanaque, em 5 de março de 2000, declarou bem-aventurados, como mártires da Igreja, o Padre André de Soveral,Matias Moreira e os demais mortos no “Massacre de Cunhaú”. Quase uma década antes, no encerramento doCongresso Eucarístico Nacional, em 1991, em Natal, o Papa João Paulo II encerrou com estas palavras a suahomilia: “Quando insultado e ferido pelos hereges por sua recusa a renegar a fé na Eucaristia e fidelidade àIgreja do Papa, [Matias Moreira] exclama enquanto lhe abriam o peito para lhe arrancar o coração "Louvado

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pastor Jodocus à Stetten esteve à frente de uma guarnição de soldados para proteger os

portugueses que estavam em vias de ser massacrados pelos mesmos tapuias 252.

Visto que a política colonizadora estabelecida pela WIC para os domínios da “Nova

Holanda” previa o controle dos meios de produção de açúcar, quase que imediatamente

após o início da ocupação holandesa, estes começaram a ser confiscados e arrematados por

proprietários holandeses (calvinistas) ou cristãos-novos. A questão do comércio, porém,

permanecia palco de disputa renhida entre os comerciantes holandeses (vrijburghers) e os

que no Nordeste colonial já estavam estabelecidos, majoritariamente cristãos-novos,

judaizantes ou não, aos que se somaram os judeus confessos que vieram após a tomada do

Nordeste pelos holandeses. Visto a rede relacional dos cristãos-novos ser muito mais ampla

e sólida do que a dos holandeses, não é admirável que prosperassem mais rápida e

fortemente do que aqueles.

É deste jogo de tensões que emerge a “questão judaica” no Brasil Holandês.

Vê-se, portanto, a inversão da rota: se na Holanda os judeus eram tão mais aceitos à

medida que contribuíam para a prosperidade da República Holandesa, no Brasil Holandês a

intolerância contra eles crescia na direta razão em que sua prosperidade aparentemente

interferia ou prejudicava a prosperidade dos comerciantes holandeses.

Deste modo, observa-se que a intensificação dos gravames e petições da Classe do

Brasil ao Governo-Geral e aos Senhores XIX coincidiu com o aumento da população

judaica nos domínios holandeses, assim como com o aumento de sua prosperidade.

Importante ressalvar que não se pode tomar toda a população judaica do Brasil Holandês

como próspera, uma vez que estão registrados repasses às congregações judaicas recifenses

pela comunidade de Amsterdã, oriundos, em sua maioria da Dotar, a “Santa Companhia de

Dotar Jovens e Donzelas”, como documentado por Mendes dos Remédios 253.

A figura exponencial do Brasil Holandês, o Governador Geral João Maurício de

Nassau-Siegen (1636-1644), foi referido como um garantidor das liberdades nos domínios

holandeses: não somente a liberdade religiosa, mas também a liberdade comercial, por

seja o Santíssimo Sacramento”. Por não ser objeto do presente estudo, não se estenderão mais os comentáriosa respeito do episódio.252 SCHALKWIJK, F. L.. Idem ibidem.253 MENDES, D. F. e MENDES DOS REMÉDIOS, J.. Os judeus portugueses em Amesterdão. Lisboa:Edições Távola Redonda, 1990, p. 204.

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uma vertente historiográfica “de Barléu a Boxer” 254, para quem, nas palavras de Neme,

“tudo se reduziria a uma benevolência de João Maurício, a qual o conde dispensa a

portugueses e judeus por iniciativa própria, independentemente de prescrições legais ou de

normas de governo estabelecidas por autoridade superior” 255. Barléu afirma textualmente

que Maurício de Nassau “tolerou” as religiões alheias à sua 256.

Sabe-se, entretanto, que tais dispositivos foram promulgados pelo governo da

Holanda, garantindo aos residentes nos domínios conquistados pelos holandeses a liberdade

de consciência, não cabendo, portanto, qualquer reforma, aditiva ou subtrativa de seu teor.

O Governador Geral Maurício de Nassau deveria cumprir, como efetivamente cumpriu, as

determinações que haviam sido aprovadas e promulgadas em 1629, e ratificadas em 1634 e

1636, anteriormente, portanto, à sua chegada à Colônia.

As restrições de fulcro religioso que a própria administração nassoviana adotou,

como a proibição de ministração dos sacramentos católicos a condenados e a proibição de

bênçãos aos engenhos feitas por padres 257 inserem-se em uma perspectiva maior. As

restrições à liberdade de culto não se referem a atos individuais, como, no caso católico, a

confissão, a comunhão e a assistência espiritual, ou, no caso judaico, as rezas diárias e a

observância de leis, práticas e costumes. A restrição irá exatamente incidir sobre as práticas

coletivas, muitas das quais externas, como as procissões católicas ou a dança pública com

os rolos da Torah na festa judaica de Simchat Torah. Essas práticas são demonstrações

efetivas e ostensivas de uma identidade cultural e religiosa, “produzindo efeitos jurídicos e

morais” 258.

Visto não haver, como demonstrado, um sentimento especificamente anti-judaico na

República Holandesa, este não poderia vir transplantado para o domínio holandês no Brasil

e, por via de conseqüência, ser implantado e implementado pelo Presbitério da Igreja Cristã

Reformada. Por suposto que o anti-judaísmo não era sentimento inexistente ou

desconhecido dos pastores e ministros da Igreja Holandesa, assim como não o era das

autoridades civis holandesas. Prova disso é que, quando entendido ser necessária a restrição

254 NEME, M.. Op. cit., p. 163.255 Ibidem idem.256 BARLÉU, G.. Op. Cit., p. 35.257 BARLÉU,G.. Op. cit. p. 56: “quando os senhores de engenho desejarem pedir a bênção de Deus para osseus trabalhos, pedissem a proteção divina não pela boca do padre católico romano, mas pela do predicante daigreja reformada”.

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às liberdades religiosas – e posteriormente, civis e comerciais – dos judeus, os estereótipos

usados desde a Antigüidade cristã foram usados, como nos seguintes exemplos:

“Também não são poucas as reclamações sobre a grande

liberdade que gozam os judeus no seu culto divino, a ponto de

se reunirem publicamente em dois lugares no Recife, em casas

alugadas por eles para esse fim.

Tudo isso contraria a propagação da verdade,

escandalizando os crentes e os portugueses que julgam que

somos meio judeus, em prejuízo das Igrejas Reformadas onde

tais inimigos da verdade gozam ao seu lado de igual

liberdade. Sobre isso julgam urgente recomendar muito

seriamente à S. Exa. e aos Altos Secretos Conselheiros que

tal liberdade seja tirada por sua autoridade”.259

(Assembléia Classical de 05 de janeiro de 1638)

Vê-se que a expressão religiosa dos judeus, com sua atividade ainda circunscrita

somente às casas que serviam como sinagogas improvisadas, era considerada uma afronta à

pregação da verdade. Retoma-se aqui a questão de a veritas christiana ser mais do que

superior à veritas hebraica: de fato, se a prática religiosa judaica “contraria a propagação

da verdade”, é de se suspeitar que, para o Presbitério do Brasil talvez não houvesse

nenhuma veritas hebraica.

Em verdade, a ação do Governo Geral foi no sentido do atendimento ao gravame,

sendo, porém, de breve duração o fechamento das casas para que servissem como

sinagogas. Ainda assim, não se sabe acerca da eficácia da medida, pois expressões

individuais de religiosidade podem ser praticadas mesmo de forma clandestina, com o que,

aliás, os judeus estavam bastante familiarizados.

A Assembléia na qual foi aprovado este gravame foi a terceira a se realizar no

Brasil, momento de consolidação da implantação do Presbitério, que ocorrera havia pouco

mais de um ano; momentos ainda incipientes da administração nassoviana, no qual as

258 NEME, M.. Op. cit., p. 163.259 SCHALKWIJK, F. L.. A Igreja Cristã Reformada no Brasil Holandês. Rev. Inst. Arq., Hist. e Geog. dePernambuco, vol. LVIII: 145-284, 1993, p. 167.

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forças econômicas, políticas e religiosas do Brasil Holandês buscavam um ponto de

equilíbrio e acomodação.

Este momento marca, igualmente, o início da prosperidade mais acentuada dos

cristãos-novos judaizantes e dos judeus sob o domínio holandês. Cumpre registrar que esta

mesma Assembléia Classical registrou que aumentava a quantidade de engenhos

recentemente adquiridos por neerlandeses:

“Vários engenhos de açúcar foram comprados por

Neerlandeses que neles também passam a residir, mas

acham-se alguns situados em pontos tão distantes que não

podem freqüentar o culto público em outras comunidades.”260

O que se vê, portanto, é que, neste momento, havia afluência nas comunidades

holandesa e judaica no Brasil Holandês. Visto que muitos dos engenhos de açúcar eram

propriedade de cristãos-novos judaizantes ou de judeus, parece ser lícito inferir que havia

uma disputa de interesses econômicos entre os integrantes dessas comunidades, que

repercutiu nas Assembléias Classicais.

É digno de nota o fato de que, na Holanda, foi exatamente a prosperidade da

comunidade judaica e sua contribuição à consolidação e fortalecimento da República

Holandesa que garantiu seu papel como interlocutora privilegiada dos Estados Gerais, do

Conselho dos XIX e da própria Casa de Orange; ao passo que no Brasil Holandês essa

prosperidade – mesmo incipiente e frágil – pareceu ensejar a demanda por medidas

restritivas aos membros da comunidade, ou mesmo a ela como um todo. É o que se extrai

da moção seguinte, da Câmara dos Escabinos de Olinda, de 1640:

“(...)coerente com a guerra surda que os católicos de

Pernambuco moviam contra os israelitas estabelecidos entre

nós... a Câmara Municipal de Olinda, nesta data, dirige uma

representação ao governo da Holanda contra a continuação

da vinda de judeus (...) dizendo (...) essa gente é tão odiosa

260 Idem, p. 172.

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(...) não merecem nenhuma amizade (...) pelo menos mandem

que não tenham mais larguezas das que têm na Holanda” 261

À solicitação para que se proibisse a vinda dessa “gente odiosa”, não merecedora de

qualquer amizade, agrega-se o pedido para que, ainda que venham, não lhes seja permitido

ter mais “larguezas” do que as têm na Holanda. Essas “larguezas” podem ser entendidas

como não apenas liberdades civis e comerciais, mas também como riquezas, bens e

dotações.

O ano de 1640 parece marca, de acordo com os registros das Atas, o ápice da

pressão sobre os judeus, como se vê do seguinte gravame, o de número 8, da Assembléia de

21 de novembro daquele ano:

“Visto se saber que os Judeus cada vez chegam em maior

número a este país, atraindo a si o comércio por meio das

suas astúcias; também já conseguiram a maior parte das

lojas para si, e é de recear que tudo irá a pior, vergonha e

prejuízo para os cristãos, escândalo para os Brasilianos e

Portugueses, e enfraquecimento do nosso Estado”. 262

Neste ponto, os integrantes do Presbitério opinavam sobre matéria absolutamente

fora do domínio religioso ou do campo espiritual. Registrou-se a compra das lojas e a

predominância dos comerciantes judeus, apontando-os e às suas atividades, inclusive, como

capazes de enfraquecer o Estado. O mesmo gravame continua, desta feita abordando

aspectos religiosos:

“Além disso, a sua ousadia quanto ao espiritual se torna tão

grande que não somente se reúnem publicamente no mercado

aqui no Recife, apesar da proibição do Alto Governo dando

assim escândalos a outros, mas ainda se preparam para

construir ali uma sinagoga. Eles se casam com Cristãos,

seduzem Cristãos para o sacrílego Judaísmo, circuncidam

261 COSTA, F.A.P.. Anais Pernambucanos (10 vols.). Recife: Arquivo Público Estadual, 1952-1966, vol. III,p. 73.262 SCHALKWIJK, F. L.. A Igreja Cristã..., p. 208.

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Cristãos, usam Cristãos como empregados nas suas casas e

Cristãs para suas concubinas”. 263

Além de “ousados” na esfera comercial, os judeus também o eram no campo

religioso. Vê-se que a Assembléia se realizou anteriormente à construção da sinagoga “Zur

Israel”, cujo projeto é mencionado no gravame, quando os judeus costumavam reunir-se na

Rua do Bode 264, como já visto no capítulo anterior. Essa rua, também chamada de Rua da

Guarda do Bode – e, popularmente, de Rua dos Judeus – era rua de intenso comércio em

Recife, e no seu entorno residia a maioria da comunidade judaica recifense. Ali foi

efetivamente erguida a primeira sinagoga das Américas.

Penso caber uma reflexão sobre a “circuncisão de cristãos” mencionada no texto. Os

judeus tinham a liberdade de fazer proselitismo, podendo atrair ao judaísmo aqueles que

quisessem aderir. Contudo, era vedada a pregação religiosa ostensiva da religião judaica.

Não há elementos suficientes para que se afirme se esses cristãos que se deixavam

circuncidar seriam cristãos-novos judaizantes que retornavam ao judaísmo ou se seriam

prosélitos efetivamente convertidos.

Se for permitida uma inferência sobre o texto, existe a possibilidade de que se trate

de cristãos reformados que teriam sido convertidos ao judaísmo, visto os católicos romanos

serem chamados nas Atas de “papistas”, sendo o termo “cristãos” reservado aos cristãos

reformados. Contudo, nada indica se houve conversões de calvinistas ao judaísmo e, se

houve, quantos e quais foram os convertidos, e quando se deram tais conversões.

Importante ressaltar que não se pode confirmar esses registros junto às fontes judaicas, que

são as Atas das Congregações de Maurícia e Recife, pois estas somente começaram a ser

redigidas em 1648 265.

O mesmo gravame continuava, demandando que, face aos delitos de ordem

religiosa, os judeus sofressem restrições que, seguramente, interfeririam em sua vida civil:

“Os Irmãos julgam em conjunto ser de sua jurisdição e

estrito dever não somente protestar contra isso a S. Exa. e

Altos Secretos Conselheiros, mas também rogar por causa do

263 Idem ibidem.264 KAUFMAN, Tânia Neumann. Passos perdidos... p. 17.265 WIZNITZER, Arnold. O livro de atas das Congregações Judaicas “Zur Israel” em Recife e “MagenAbraham” em Maurícia, Brasil 1648-1653. Anais da Biblioteca Nacional vol. 74 pp. 214-240 (1955).

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Nome de Jesus Cristo, nosso único Salvador, que é mais

difamado pelos Judeus do que por todos os outros inimigos,

para o que ficou descrito acima, seja remediado em tempo.

E, como não haja país em todo o mundo em que os Judeus

não sejam limitados, que o mesmo possa acontecer neste

país, e os que agem contra isso sejam punidos

convenientemente. Ficou resolvido ainda protestar esse

assunto por meio de uma missiva ao Ilustre Colégio dos

XIX”. 266

Três aspectos sobressaem desse trecho: os judeus serem juntados aos “inimigos”,

sendo acrescentado que os judeus difamavam o nome de Jesus Cristo mais do que “todos os

outros inimigos”, o que enseja o pretexto para que se demande punição aos judeus através

de sua limitação. Esta, não especificada qual seria, tomaria por referencial limitações então

existentes em outros países na Europa. Como estas eram variadas, desde a obrigatoriedade

do uso pelos judeus de símbolos distintivos – geralmente uma estrela, círculo ou triângulo

na cor amarela – passando pelo confinamento em guetos ou mesmo com a proibição de sua

presença, como em Portugal e Espanha 267, não se sabe ao certo o que demandavam os

integrantes do Presbitério, formado, em grande parte nesse momento por pregadores vindos

da Zelândia, conhecidos por seu fervor e rigor, avaliado por Mario Neme como

“fanatismo” 268.

É importante mencionar que esta Assembléia foi presidida por Franciscus Plante,

capelão pessoal do Governador Geral Maurício de Nassau, o mesmo que, diante do Alto e

Secreto Conselho, em 6 de maio de 1644, ao despojar-se das funções de Governador Geral,

recomendou “principalmente ao governo que fosse tolerante e moderado no tocante ao

exercício do culto das diversas nações submetidas ao domínio holandês” 269.

Por seu referencial maior e mais imediato ser naturalmente a Holanda, verifica-se

que a demanda dos componentes do Presbitério seria inócua, visto àquele tempo não haver

266 SCHALKWIJK, F. L.. Idem, p. 208-209.267 POLIAKOV, L.. História do Anti-semitismo (4 vols.). São Paulo:Perspectiva, 1980, cf. vol. 2.268 NEME, M.. op. cit. p. 161.269 GOUVÊA, F. C..Maurício de Nassau e o Brasil Holandês – correspondência com os Estados Gerais.Recife: Ed. Universitária UFPE, 1998, p. 148.

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na Holanda qualquer medida cerceadora da liberdade dos judeus maior do que aquelas que

já estavam em vigor no Brasil Holandês, como relatam Méchoulan, em suas obras já

citadas, e também Simon Schama 270 e Johan Huizinga 271.

Tendência diametralmente oposta ocorria em Amsterdã, conforme registrado por

David Franco Mendes, em sua obra Memorias do estabelecimento e progresso dos judeus

portuguezes e espanhoes nesta famosa cidade de Amsterdam, de 1772 272, que compilou

parte das anotações dos livros de Atas das Congregações judaicas daquela cidade, formadas

por judeus portugueses:

“No A[nn]o 5397 273Experimentou a nossa Nação a summa

benevolência & Estima q[ue] tinhão para com ella os

Estad[o]s Gerais das Provincias Unidas, Quando

Remostrarão a Louis 13e Rey de França & Navarra, Que os

Mercadores Espanhoes e Portug[uese]s que a t[em]pos se

retirarão para habitar com suas fam[ilha]s nestas

Provincias, gozavão nellas baixo da sua Authoridade &

protecção, dos mesmos direytos & privilégios, que os seus

naturais & originaes sujeitos, erão inquietad[o]s &

estorvados em seu Commercio, por alguns dos officiaes &

sujeitos de Sua Mag[esta]de tanto nos seus portos, como por

mar, baixo do pretexto de q[eu] professavão a Religião

Judaica”. 274

Em 30 de março daquele ano, continua o registro, os Estados Gerais conseguiram,

mediante pressão, que fosse apostilada uma Pragmática por Luís XIII, garantindo aos

barcos das Províncias Unidas, de proprietários judeus, o livre acesso aos portos da França e

de Navarra. O Presbitério da Igreja Cristã Reformada no Brasil demandava ao Conselho

270 SCHAMA, S.. O desconforto da riqueza – a cultura holandesa na época de ouro. São Paulo:Companhia das Letras, 1992.271 HUIZINGA, J.. Nederlands beschaving in de zeventiende eeuw – een schets. Amsterdã: Uitgeverij,1998.272 In MENDES, D. F. e MENDES DOS REMÉDIOS, J.. Os judeus portugueses em Amesterdão. Lisboa:Edições Távola Redonda, 1990.273 Segundo a contagem do calendário judaico; corresponde ao ano 1637 da era comum.274 Apud MENDES, D. F.. Op. cit., p. 41.

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dos XIX, portanto, medidas que, se adotadas, iriam de encontro a decisões dos Estados

Gerais, adotadas um ano antes.

A questão que emerge é se seria aplicada alguma restrição aos judeus e qual seria

essa restrição. Uma vez que o apelo seria endereçado diretamente aos Senhores XIX, o que

se pretendia, tudo faz crer, seria uma medida legal que, emanada de autoridade superior,

deveria obrigatoriamente ser cumprida pelo Governador Geral e por todas as instâncias

administrativas do Brasil Holandês.

Não demandava sozinho o Presbitério contra os judeus. Seus gravames eram

ecoados pela Câmara dos Escabinos de Recife de forma até mais dura:

“Não se compreende que os acionistas da Companhia

tenham investido seus capitais para que essa corja de judeus

enriqueça como aqui acontece, vindos da Polônia, Itália,

Turquia, Barbária, Espanha, Alemanha, etc., voltando com o

que ajuntaram, prejudicando a nossa Pátria, com cujo

sangue e dinheiro esta terra foi conquistada, com a ajuda de

Deus, cujo nome santo eles vivem a profanar grosseiramente

todos os dias”. 275

A Câmara dos Escabinos tentava, por essa reclamação, fazer com que os acionistas

da Companhia das Índias Ocidentais se sentissem lesados em seus legítimos interesses face

à atuação dos judeus no Brasil Holandês e à concorrência que estes faziam aos

comerciantes holandeses. Observe-se que, no limite, é invocada razão religiosa.

Os judeus, “escandalizadores”, que atraíam a si o comércio “por meio de suas

astúcias”, uma “corja que enriquecia no Brasil prejudicando a Holanda”, “profanadores do

nome santo de Deus”, foram rapidamente estigmatizados com a rememoração desses

estereótipos.

Importante ressaltar a utilização do elemento do judeu apátrida transnacional, pela

primeira vez empregado no Brasil. Contudo, tais estigmas, como bem aponta Goffmann 276,

não são específicos do século XVII, percorrendo a linha do tempo desde a Antigüidade

275 Apud NEME, M. . Fórmulas políticas no Brasil Holandês, p. 164.276 GOFFMAN, E.. Estigma –notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: LTC,1998, 4ª ed, p. 27.

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Clássica até a Idade Contemporânea, sendo apropriados em tempos diferentes para uso

pelos grupos detentores do poder quando lhes convinha disputar com os judeus.

Se as medidas demandadas não foram implementadas isso deveu-se, muito

seguramente, às contrapressões vindas de Amsterdã, oriundas da prestigiosa comunidade

judaica daquela cidade.

Exemplo maior disso é a “Carta em Favor da Nação Judaica estante no Brasil”, já

mencionada, na qual os Estados Gerais da República Holandesa demandavam aos

portugueses que concedessem aos judeus o mesmo tratamento que aos nacionais

holandeses, em uma antecipação de três anos à decisão dos Estados Gerais em reconhecer

aos judeus a igualdade dos direitos de cidadania dos cristãos reformados holandeses, pois

somente em 1657 o Parlamento Holandês reconheceu os judeus como cidadãos holandeses

que seriam defendidos se capturados no mar pelos espanhóis. Transcreve-se o registro do

Livro de Atas da Congregação Talmud Torah, formada pelos judeus portugueses de

Amsterdã:

“No A[nn]o 5417 resolverão os Estad[o]s de

Holanda, e o rateficarão os Estad[o]s Gerais

em 17 d[it]o, que serão reputad[o]s os judeus

dahi em diante por verdadeiros súbditos da

Republica e que como tais gozarão de todos os

privilégios”. 277

Sobre o episódio que gerou esta decisão, vale recordar que a maioria da comunidade

judaico-portuguesa fez o percurso de retorno à Holanda, e parte dela embarcou com os

holandeses em direção ao Caribe e à América do Norte. Destes e sua tumultuosa viagem

temos o relato de Saul Levi Mortera, em sua obra publicada em Amsterdã, “Providência de

Deus com Israel”, na qual informa que um dos dezesseis barcos postos à disposição dos

judeus pelo general Barreto de Menezes foi “aprisionado pelos espanhóis que estavam a

entregar esses pobres judeus à Inquisição”. Relata ainda que, antes que se consumasse esse

intento, “o Senhor fez aparecer um barco francês que livrou os judeus e os levou a uma

277 Apud MENDES, D. F.. Op. cit., p. 63. A datação judaica empregada refere-se a 3 de julho de 1657.

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parte segura, na Flórida ou África ou Nova Holanda, de onde puderam chegar sem

contratempo à Holanda”278.

O relato de Mortera faz, ainda, referência a um navio nas mesmas circunstâncias

que foi capturado pelos espanhóis quando, levado por ventos contrários e tempestades,

aproximou-se da Jamaica, em sua rota à colônia francesa da Martinica, cujos passageiros

somente não foram levados à Espanha para serem julgados pelo Santo Ofício em razão da

enérgica intervenção do governo holandês, que protestou em carta de 14 de novembro de

1654 ao rei da Espanha. Na carta, protesta-se especialmente por os judeus aprisionados

serem não apenas súditos e moradores do Reino, mas muitos nascidos em Amsterdã. Esse

barco, o “Valck”, e outro barco, o francês “Sainte-Cathérine”, foram os principais

transportadores de judeus para o Caribe e para a então “Nieuw Amsterdam”, atualmente

Nova Iorque.

Em sua obra Os judeus portugueses em Amsterdam, originalmente publicada em

1911, J. Mendes dos Remédios exaltou a tolerância dos holandeses – particularmente dos

habitantes de Amsterdã nesses termos, ao comentar a suntuosidade da Sinagoga Portuguesa

de Amsterdã, quando de sua edificação, no século XVII:

“Não deixaram os hollandeses de olhar com certo receio

para taes engrandecimentos não pensando, decerto, em os

contrariar ou em lhes oppor resistencia (...) Ah! A

liberdade antes de tudo, primeiro que tudo, acima de tudo.

Para este povo sobrio e honesto, trabalhador e pacífico,

havia um só culto no mundo ao qual estavam dispostos a

sacrificar as suas vidas sempre que elle perigasse – era o

da liberdade”. 279

O mesmo autor prossegue narrando que, inicialmente, poderia haver suspeita sobre

os judeus recém-chegados a Amsterdã na segunda metade do século XVI:

“Seriam os recemvindos inimigos, espiões ao serviço da

Espanha? Bem depressa o comportamento dos Judeus

afastou todo o motivo de suspeita. O que os foragidos

278 Apud BÖHM, Günter, op. cit., p. 96.279 MENDES, D. F.. Op. cit., pp. 187-188.

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pretendiam era viver tranqüilos, ignorados, no

afastamento de seu culto e do seu regimen civil e familial”.280

Efetivamente, os judeus ibéricos provaram não apenas não ser espiões ou agentes

espanhóis, como ainda pessoas capazes de cooperar com o desenvolvimento e a

prosperidade da República Holandesa. À medida que sua prosperidade aumentava,

aumentava sua respeitabilidade e eram assegurados mais direitos e garantias a essa

comunidade. Diametralmente oposto ao que ocorreu no Brasil Holandês, onde, tudo indica,

a prosperidade e a vitalidade da comunidade judaica foram as inicializadoras – ou, ao

menos, catalisadoras – de demandas por medidas restritivas das liberdades dos judeus.

Essas, quando chegaram a ser implementadas na Holanda, o foram nos anos a partir

de 1615, como visto no capítulo I, e eram restrições bastante específicas: em algumas

cidades, os judeus não podiam exercer algumas profissões e ofícios e, por não serem

cidadãos nem burgueses, não poderiam pertencer às guildas; em outras cidades, lhes era

recusada a presença. Posteriormente, tais medidas foram sendo abolidas ou meramente

caíram em desuso, exatamente em razão da prosperidade da comunidade judaica,

especialmente em Amsterdã.

Vê-se, portanto, que não existia um anti-judaísmo específico por parte das

autoridades religiosas e civis holandesas, mas sim que estas, atendendo às pressões dos

comerciantes e correligionários, atacaram os judeus pelo único flanco deixado: o estigma

da diferença e da herança histórica. Contudo, a tradição dos holandeses de prezar a

liberdade fez com que tais demandas não deixassem o campo da retórica durante a

dominação holandesa no Brasil. Prevaleceu sempre o Regimento para as Praças

Conquistadas e para Aquelas a Conquistar, aprovado em 1629, bem como os textos

conciliatórios do Pacto da Paraíba, de 1634, e do Acordo de 1636, assegurando a todos os

residentes nos domínios holandeses a liberdade de crença.

Como refere Arno Wehling em seu artigo “A organização política do Brasil

holandês e o papel das liturgisas de poder no governo de Nassau” 281, “as ‘tensões da

280 Idem, p. 188.281 WEHLING, A.. A organização política do Brasil holandês e o papel das liturgias de poder no governo deNassau, in A presença Holandesa no Brasil: memória e imaginário. MinC/IPHAN, Museu HistóricoNacional : Rio de Janeiro, 2004, pp. 11-30; citação p. 16.

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sociedade estamental’, a que se refere José Antonio Maravall, refletem as dificuldades para

se encontrar sucessivos pontos de equilíbrio em sociedades crescentemente complexas pela

diversificação econômica e pela diferenciação social, conquanto ainda presas,

institucionalmente, a fórmulas jurídicas que ainda não haviam perdido sua eficácia social”.

A busca desses pontos de equilíbrio pautou a atuação do Presbitério da Igreja Cristã

Reformada em suas relações com o poder civil, tanto no domínio holandês quanto na

Metrópole.

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CONCLUSÃO

Havia um “problema judaico” no Brasil Holandês? Esta é a pergunta que

inicialmente se procurou responder A análise desenvolvida da fonte principal, que são as

Atas das Assembléias Classicais do Presbitério da Igreja Cristã Reformada, indica que

havia conflitos de interesses, mas não especificamente um problema judaico a ser resolvido

através de medidas coercitivas.

Igualmente, não havia uma postura anti-judaica por parte do Presbitério, anda que

alguns dos gravames e solicitações tenham se revestido de um vezo que derivava para essa

postura. Os judeus são referidos poucas vezes nas Assembléias, intensificando-se as

pressões em dois momentos específicos: 1638 e 1640. As demandas à autoridade civil para

a adoção de medidas restritivas quer à liberdade dos judeus, quer à possibilidade de que

continuassem vindo aos domínios holandeses no nordeste brasílico mesclavam supostos

abusos e escândalos praticados pelos judeus com razões de ordem estritamente mercantil,

que são mencionados como tendo atraído o comércio para si por conta de ardis e astúcias.

Mesmo nestas denúncias, as ilações que se faziam eram referentes a um caráter

intrinsecamente mau, perverso e desonesto dos judeus, de modo especial na Assembléia de

1640. Esses estereótipos não eram originais do século XVII e seguramente deles tanto o

Presbitério como as Câmaras de Escabinos se apropriaram para dar uma resposta a um

problema pontual, específico. Contudo, isso não configura uma postura anti-judaica por

parte desses atores da dinâmica social, parecendo muito mais apontar para o que se poderia

chamar de um “anti-judaísmo de ocasião”.

Observa-se nessas relações no Brasil Holandês um sentido inverso ao do que ocorria

na Holanda. Na República das Províncias Unidas, inicialmente os judeus não foram aceitos

ou, quando o foram, sobre eles recaíam restrições de ordem religiosa e comercial, de um

modo especial em 1615, quando se estabeleceram rígidos limites para a presença de judeus

em várias cidades da Holanda. Todavia, os contatos e as teias de relações que os judeus

portugueses, a “Gente da Nação Portuguesa”, haviam estabelecido por toda a Europa, na

África e nas Américas fizeram com que a comunidade judaica holandesa prosperasse

expressivamente, contribuindo para o fortalecimento da República.

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A isso, pode ser somada a intensa atividade intelectual e cultural dessa comunidade,

desproporcional ao seu reduzido tamanho. Se no nordeste brasílico viviam-se os “tempos

dos flamengos”, na Holanda vivia-se o “tempo de Espinoza”. A este, figura maior da

comunidade judaica holandesa do século XVII, podem ser somados outros nomes, como

Uriel da Costa, Isaac Aboab da Fonseca, Menasseh ben Israel, entre outros. O prestígio

dessa comunidade pode ser avaliado pela presença do Príncipe de Orange e da Família Real

em visita à Sinagoga Talmud Torah, que congregava os judeus sefaradis.

Uma prova de sua dimensão de interlocutora privilegiada do poder civil na Holanda

foi a “Carta dos Estados-Gerais em favor da Nação Judaica estante no Brasil”, de 7 de

dezembro de 1645, requerendo, face à intensificação da rebelião luso-brasileira, em caso de

derrota holandesa, igualdade de tratamento aos judeus residentes nos domínios holandeses,

e assegurando serem eles leais e fiéis à Holanda. Efetivamente, quando da Capitulação de

Taborda, em 1654, foram respeitados pelos portugueses os direitos dos judeus residentes

nos domínios holandeses, sendo-lhes concedido partir junto aos holandeses.

Mesmo restando dúvidas acerca de se houve colaboração efetiva dos cristãos-novos

judaizantes com os holandeses na preparação das invasões e ocupações no nordeste

brasílico, estes seriam parceiros naturais para o projeto de implantação de um “Brasil

Holandês”. A prosperidade dos parceiros pode ter surpreendido alguns comerciantes

holandeses, constatando em sua atuação uma indesejável concorrência. O parceiro

converteu-se em competidor e este deveria ter sua ação limitada.

O Presbitério da Igreja Cristã Reformada e as Câmaras de Escabinos requereram ao

Governo Geral e ao Conselho dos XIX restrições quer à atividade, quer à vinda dos judeus

aos domínios holandeses. Uma vez que a liberdade de consciência era garantida em

documentos aprovados por instâncias superiores do governo, na Holanda, do que é exemplo

maior o “Regimento para as Praças Conquistadas e para Aquelas que vierem a ser

Conquistadas”, de 1629, votado e aprovado pelos Estados Gerais, ao endereçar missivas ao

Conselho dos XIX, as instâncias de poder no Brasil Holandês, tanto o Presbitério quanto as

Câmaras, poderiam estar agindo dentro de duas vertentes.

A primeira seria o real desejo de que as severas medidas coercitivas requeridas

fossem adotadas, o que traria imediatas implicações comerciais com a retirada de cena de

um dos agentes – ou a limitação de suas atividades; outra seria uma forma de pressionar os

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acionistas da Companhia das Índias Ocidentais no sentido de adotarem medidas mais

favoráveis aos comerciantes holandeses.

Esta segunda alternativa parece bastante provável, visto as medidas demandadas

nunca haverem sido implementadas mas os gravames contra as atividades dos judeus

simplesmente desapareceram a partir de 1641, não havendo mais qualquer registro sobre

judeus nas Atas das Assembléias do Presbitério da Igreja. Esse período coincide com o

início da rebelião luso-brasílica contra os ocupantes holandeses, que resultaria na

Restauração de Pernambuco quatorze anos depois, e também com o início do colapso

financeiro da Companhia das Índias Ocidentais.

Revelou-se equivocada a possibilidade de que após a Restauração de Portugal, com

o fim da União Ibérica, em 1640, levasse a Holanda a investir menos na manutenção da

administração e do exército no Brasil Holandês. As hostilidades contra os holandeses

aumentaram após a Restauração Portuguesa, e isso levou judeus e calvinistas a terem que

repactuar sua aliança, visando a resistir ao avanço dos luso-brasileiros e, no limite, a

garantir a sua sobrevivência. Importante registrar que, após a Restauração, Portugal buscou

aproximar-se da Holanda e da França, tentando resistir às pressões espanholas. O

Presbitério e as Câmaras silenciam sobre as atividades dos judeus a partir desse ponto,

provavelmente como fruto das dinâmicas existentes no Brasil Holandês e na Holanda.

Desta forma, não se pode ver a tolerância aos judeus como fruto de vontades

individuais, mas sim como resultado de uma política de Estado, que visava a buscar

estabilidade e prosperidade para os envolvidos nos processos econômicos no Brasil

Holandês.

Não se pode, porém, reduzir a tolerância a uma questão meramente econômica. Os

calvinistas, entre os séculos XVI e XVII, particularmente na Holanda, buscavam

aproximações com a herança judaica do cristianismo, em muitos momentos identificando-

se com o Israel bíblico e vendo-se como os “novos israelitas”. Entendiam que a conversão

dos judeus ao cristianismo seria um dos sinais da nova vinda do Messias. Portanto, se

houve a necessidade tática de conceder a tolerância, no caso dos judeus essa necessidade

encontrava alguma base na doutrina religiosa calvinista, ainda que em algumas cidades da

República das Províncias Unidas, controladas por calvinistas, tenham sido impostas

restrições aos judeus.

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