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1 PRETTU JÚNIOR 1ª EDIÇÃO ISBN-13: 978-1492933908 Your book has been assigned a CreateSpace ISBN. RIO DE JANEIRO Edição do autor

Um Pouco Além Das Rimas · Seu trabalho tem vida e morte ... psicológico de um homem negro urbano e a sua ... A Metrópole e a Vida Mental. In: VELHO, O. G. (org) O Fenômeno Urbano

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PRETTU JÚNIOR

1ª EDIÇÃO

ISBN-13:

978-1492933908 Your book has been assigned a

CreateSpace ISBN.

RIO DE JANEIRO

Edição do autor

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Um Pouco além Das Rimas: O Preto e a Cidade Prettu Júnior

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Prefácio: Por Denílson Araújo de Oliveira1 Dados biográficos: origens e trajetórias

No dia 09 de Outubro1973 na cidade de Jandaia do Sul, estado do Paraná, nasceu Izaqueu Alves. Sexto filho de uma família de quatro meninas e três meninos – cujos pais eram bóias frias. Seu pai morreu quando tinha apenas dois anos e sua ida para a cidade foi à trajetória de sua família por melhores condições. Assim, migrou para o Rio de Janeiro com a família ainda criança. Aí construiu os seus itinerários. Morou também em São Paulo, por um tempo, mas se sente hoje um legítimo carioca, pois viveu quase a vida inteira nos subúrbios do Rio de Janeiro, especialmente em Piedade e Del Castilho.

Pai de dois filhos e amante do bom futebol. Batizou seu primogênito de Denner, em homenagem ao famoso driblador da portuguesa paulista no início dos anos 90 que

1 Doutorando em Geografia pela UFF e professor substituto da

UERJ-FFP.

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faleceu num trágico acidente de carro no bairro da lagoa, no Rio, quando jogava no Vasco da Gama. Flamenguista apaixonado, porém não fanático, lamenta que a redenção econômica que alguns jovens negros conseguem no futebol, não venha acompanhada também de uma redenção política da condição social do negro no Brasil.

Freqüentador assíduo dos bailes blacks do subúrbio carioca P. Júnior, como é mais conhecido é rapper e ativista da cultura hip hop, no Rio de Janeiro. Participou efetivamente de iniciativas de delegações brasileiras que participaram na III Conferência Mundial contra o racismo, a xenofobia e formas correlatas de intolerância promovida pela ONU, em Durban, na África do Sul. Participou também do fórum social mundial, nos anos de 2002 e 2003, em Porto Alegre, no qual teve a oportunidades de desfilar seus versos e rimas recheados de críticas sociais. Foi um dos protagonistas na criação da iniciativa “fórum das periferias”, no Rio de Janeiro, que infelizmente não se realizou por completo. Fez shows e apresentações em várias partes do Brasil, América do Sul e Central. Já proferiu inúmeras palestras sobre negritude, hip hop e violência em colégios e universidades públicas e particulares do Rio de Janeiro como a UERJ, UFRJ, UFF e a Cândido Mendes. Esteve presente na criação da posse Zn - máfia e de programas na rádio revolução FM, com o grupo poetas de ébano dentro do hospital psiquiátrico Nise da Silveira, em Engenho de Dentro. Criou a posse Diáspora Africana e realizou trabalhos com dentro da cultura hip hop do Rio. Também fez parte do grupo de artistas e intelectuais que se reuniam em Madureira com o produtor Celso Ataíde, rapper MV Bill e o também rapper Dudu do Morro Agudo entre outros com o fim de criar uma unidade no movimento hip

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hop. Ao longo da sua trajetória de artista-militante Prettu Júnior sempre esteve propondo, pensando e divulgando a cultura hip hop do Rio de Janeiro, o que o levou a participar fazendo shows no seminário Juventude e Raça que aconteceu em Fevereiro de 2004 em Laceiba, Honduras, América Central.

Já militou em vários movimentos sociais envolvidos

com a temática étnico-racial no Brasil, mas não se institucionalizou e nem se submeteu às estruturas hierárquicas e hierarquizantes de muitos movimentos. Prettu Júnior é um verdadeiro negro em movimento. Compreende que a luta social para emancipação dos negros possui várias frentes, como lembra o produtor cultural e escritor Haroldo Costa, “os estilhaços da Diáspora Negra disseminaram novos padrões” 2. O campo das representações “literárias” é uma das inúmeras frentes. Como diria o filósofo Michel Foucault: [...] O discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou o sistema de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar. ( p.10 )3 De Izaqueu Alves a Prettu Júnior

2 COSTA, Haroldo. 120 anos Depois. In: COSTA, Haroldo. (org.)

Fala, crioulo. Rio de Janeiro: Record, 2009. 3ª ed. Revista e ampliada. 3 FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo: Loyola,

1996.

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Como muitos negros pobres no Brasil, Izaqueu largou os estudos para trabalhar. Queria ter logo o seu dinheiro. Sempre estudou em escola pública, mas não concluiu o ensino médio. Conhecimento institucional faltou, mas não sabedoria adquirida na universidade da vida. Izaqueu, como certa vez me disse em entrevista, era um “vendidão”, isto é, queria namorar mulheres loiras, pois o destino do negro é branco, como diria Franz Fanon. Queria apenas ganhar dinheiro e gastar nas “noitadas”. Era totalmente despreocupado com a sua condição social de negro na cidade e com história de seus antepassados. Os choques de valores e mentalidades em relação aos negros quando foi morar no “asfalto”, quando escutou Racionais MC’s pela primeira vez, quando morou em São Paulo e voltou para o Rio, quando se envolveu com intelectuais envolvidos com movimentos sociais negros assim, foi que Izaqueu Alves começou reconstruir sua trajetória. Nascia Prettu Júnior. Nesse sentido o hip hop teve um papel preponderante. Prettu Passou a construir essa nova identidade referenciada na diáspora africana. Novos sentidos, direções, rumos, objetivos e metas começavam a ser criados. Outros significados foram construídos pela sua experiência de negro na cidade. Tornou-se um intelectual público preocupado com a mentalidade criada sobre os negros e passou a agir para uma mudança. Este livro expressa essa preocupação. Notas e opiniões sobre o trabalho de Prettu Júnior

No meio do caminho tinha uma pedra. Tinham infinitas pedras no meio do caminho. Quando se é preto e pobre no Brasil, as pedras ainda são maiores e mais

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escorregadias. Pedras que têm ora produzido “eus” retorcidos, mutilados e inferiorizados, ora sujeitos políticos que se tornam negros não apenas pela cor da sua pele ou pela fisionomia corpórea, mas por reconstituírem essa identidade em política, que inventou o negro na Diáspora Africana. Essas pedras não saem das retinas tão fatigadas de “solanos”, “veras”, “rosanes”, “abdias”, “júlios”, “lázaros”, “joéis”, “marias”, “daianes” e tantos outros negros e negras no Brasil que não só resistem, mas produzem uma outra existência. Essa é uma marca política da história dos descendentes de africanos em nosso país desde os quilombos, aos terreiros de umbanda e candomblé, na capoeira, no samba e nas distintas manifestações culturais e políticas negras e ou Afrodescendentes. Essa “r(-)existência” aos obstáculos criados por uma sociedade racista e excludente é a história de como Izaqueu Alves tornou-se Prettu Júnior, ou mais conhecido como P. Júnior.

O trabalho de P. Júnior não é apenas literário, mas de um intelectual público que quer romper com uma hegemonia elaborada e mediada por intelectuais luso-tropicalistas que criaram e difundiram a ideologia da democracia racial e de um povo cordial, ainda muito presente no imaginário social. Como diria o filósofo Michel Foucault [...] Em toda a sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que tem por função conjurar seus poderes e perigos dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade.4

4 Idem. (pgs. 08 e 09).

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Não são apenas contos, crônicas, ensaios ou histórias.

É tudo isso “junto e misturado”. As palavras escritas por Prettu Junior se propõem ao mesmo tempo, uma análise das relações raciais a partir de sua experiência vivida, suas observações, percepções e invenções sobre a vida urbana no Rio de Janeiro. Seu trabalho tem vida e morte, tem raiva, desejo, doçura, sarcasmo, intensidade, amargura, tem dor, realismo, ilusão, incertezas, prazer, medo, esperança, ressentimento, decepção. Seu trabalho tem pessoas de carne e osso, conhecidas e desconhecidas pelo autor. As palavras e histórias de P. Júnior geram incômodo. Assim, o ficcionismo aparente de algumas histórias, aponta, em realidade, as trajetórias de inúmeros filhos de preto, isto é, dos prettus junior que escrevem suas vidas com muito suor e sangue na cidade do Rio de Janeiro e a sua pouca, ou muitas vezes nenhuma, mobilidade social.

Sua análise é de perto e de dentro. Ela faz um retrato psicológico de um homem negro urbano e a sua relação com as condições objetivas e subjetivas da metrópole. Suas experiências, traumas, vivências, vitórias, observações do que é ser e de como um indivíduo torna-se negro na cidade, faz com que P. Júnior, em vários momentos, nos lembre Georg Simel, quando afirma que na metrópole a atitude mental das pessoas, umas para com as outras, pode ser tida como sendo, uma atitude de reserva5. Essa reserva, para P. Júnior, não está relacionada apenas à condição econômica do indivíduo, mas também, se refere aos preconceitos e estereótipos raciais instituídos no imaginário social e na consciência das pessoas

5 SIMMEL, Georg. A Metrópole e a Vida Mental. In: VELHO, O. G.

(org) O Fenômeno Urbano. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1967.

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sobre os negros e moradores de morros, favelas e comunidades. As histórias são velozes como a metrópole. Os ‘personagens’ ao mesmo tempo carregam silêncios e são figuras silenciadas. As pessoas buscam ser protagonistas de alguma coisa numa sociedade perversa e racista como a nossa. Assim, o despertar da consciência significa para P. Júnior, compreender a condição imposta aos negros na diáspora.

Quando conheci P. Júnior e o entrevistei pela primeira vez, um fato que me impressionou foi à imaginação geográfica de extrema qualidade que ele havia construído da condição urbana do negro na cidade do rio de janeiro. São suas as palavras abaixo: [...] São Paulo é uma cidade super industrializada e o Rio de Janeiro não. No Rio predomina o comércio e para se trabalhar no comércio são exigidas algumas coisas. Exige-se um mínimo de educação [formal], um mínimo de aparência que geralmente não é a do povo brasileiro. É [aparência] de europeu. Então, essas coisas fazem com que as pessoas te tratem pelo que você aparenta ser. [...] Com essa mentalidade característica no Brasil de preto ser conhecido como pobre. Aqui, no Rio de Janeiro o preto é pobre, logo é tirado e não respeitado.6 Uma dimensão da condição urbana imposta aos negros nos é revela por P. Júnior no trecho acima, por meio de sua vivência em várias cidades brasileiras. Na chamada “cidade maravilhosa”, a presença do negro no campo visual dos brancos, especialmente em alguns espaços e contextos

6 Entrevista concedida na tarde de 22 de junho de 2002, em Del

Castilho (RJ).

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sociais se dá sob tensões explícitas ou tácitas. Esse fato marca várias histórias que virão a seguir. Ele também nos diz que a questão racial brasileira possui cores locais. P. Júnior fala do Rio de Janeiro, mas lembra que a questão racial em cada cidade brasileira se expressa de forma diferente.

Na noite ou no sol carioca de quase 400, na rua ou na favela, na festa ou no encontro amoroso, as formas de poder e violências diretas e indiretas marcam especialmente as pessoas mais pobres e negras. Elas são fuziladas por olhares desconfiados. Mas, o inimigo não é tão claro. Pode ser a milícia, o tráfico, a polícia corrupta ou os valores racistas impregnados num segurança de um supermercado ou num passageiro de um ônibus que mesmo sendo negro se sente um negro diferenciado (não favelado e/ou se sente “moreninho”). Assim, o cotidiano dos negros que o autor retrata é pesado. Formas de poder e violência racista buscam modificar as condutas dos indivíduos, dotados de um mínimo de vontade própria, mutilando suas identidades. Cotidianos impregnados de falsas consciências que tornam os indivíduos estranhos de si e do coletivo. Indivíduos negros que muitas vezes endossam a impunidade à procura de respeito, como dirá a música “tribunal de rua” do grupo o Rappa. Violências que têm por finalidade destruir, ofender e coagir, impedindo material e simbolicamente que os outros cumpram determinada ação. Todavia, P. Júnior não é desesperançoso. Pelo contrário, suas idéias contagiosas, despertam consciências, boicotam racistas, fazem pensar um mundo perfeito que poderia ser possível, ou pelo menos, sonhado. P. Júnior transita entre uma visão utópica e sarcástica do mundo da vida. Como diria uma música do grupo Z’áfrica Brasil “quem tem cor age, tem que ter coragem”. O autor também amplia as histórias e criações negras na diáspora para além de

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referenciais religiosos. São histórias laicas, profanas e cotidianas dos negros na cidade do Rio de Janeiro.

Alguns dos seus trabalhos foram publicados em revistas da web sob a genérica designação de crônicas, muito embora tenham um tratamento de ficção característico dos contos e das histórias curtas. Mas quase 95% das histórias contidas neste volume são inéditas. Seu trabalho aqui é dividido em quatro partes. Em “Vidas Urbanas” e Suburbanas os personagens urbanos e os cenários cariocas conhecidos e não conhecidos pelo grande público expressam o palco de suas histórias. Os conflitos e as tensões silenciados da cidade maravilhosa são a tônica desta parte. Já em “Cotidianos Suburbanos” conta histórias de pessoas comuns. Seus sonhos, decepções e como percebem a vida. Em “Afirmação Política” há a expressão de diferentes “protagonismos” negros e a busca por transformações sociais. Finalizando em “Construindo Identidades” e Diferenças expressa-se como a consciência, as percepções e os sujeitos políticos são criados. Por meio da análise de histórias individuais, o autor aponta a construção social da realidade.

Apesar da classificação que sugerimos ao autor de seu trabalho em quatro partes, existem vários ‘contos’, ‘crônicas’ e ‘histórias’ que imbricam e perpassam essas partes. Isso pode gerar alguma contrariedade. Deixamos isso, a cargo do leitor. Cada texto deste livro é uma evocação diferente do mesmo tema central: o negro na cidade.

Naturalmente, os textos aqui apresentados podem ser lidos numa seqüência, como uma espécie de desdobramento

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de argumentações. Mas também, podem ser lidos aleatoriamente de modo a abrir espaço à participação e intervenção dos leitores, por de conexões laterais que permitem entrar nas narrativas em qualquer ponto, sem perder de vista o objetivo do autor: criar outros modos de entender a questão racial no Rio de Janeiro7. Deixamos novamente a cargo do leitor.

Entendemos que a riqueza do trabalho de P. Júnior está em problematizar, a partir de sua experiência particular, como os negros estão inseridos nas cidades que construímos e que estamos construindo. P. Júnior é uma das inúmeras vozes negras que reclamam na noite suburbana carioca por uma verdadeira cidadania para todos.

7 Inspirado em SOJA, E. W. Geografias Pós-Modernas: a reafirmação

do espaço na teoria social crítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993.

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Sumário

Parte I ........................................................................................ 18

Gigolô ........................................................................................ 18

Garota de Ipanema ..................................................................... 21

O dono do morro ....................................................................... 25

O fogueteiro ............................................................................... 31

Traficante do asfalto .................................................................. 36

Voos Noturnos ........................................................................... 43

Um dia para esquecer ................................................................ 47

Parte II ...................................................................................... 53

Menina de morro ....................................................................... 53

O último camisa 10 .................................................................... 55

Pelada de fim de semana ........................................................... 61

Um dia de sonho ........................................................................ 65

Parte III ......................................................................................70

O cotista ..................................................................................... 70

Boemia Selvagem ...................................................................... 74

Cantos de redenção .................................................................... 80

Feijão com Limão ...................................................................... 85

Boicote ...................................................................................... 90

Ideias Contagiosas ..................................................................... 98

Mundo Perfeito ........................................................................ 101

Parte IV – Identidade e diferença ..........................................108

Crise de identidade .................................................................. 108

O despertar da consciência ...................................................... 115

Voltando ao passado ................................................................ 118

Parte I - Vidas Urbanas e Suburbanas

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- Gigolô - Garota de Ipanema - O dono do morro - O fogueteiro - Traficantes do asfalto - Voos noturnos Parte II - Cotidianos Suburbanos - Menina de morro - O último camisa 10 - Pelada de fim de semana - Um dia de sonho Parte III - Afirmação Política - O cotista - Boemia selvagem - Cantos de redenção - Feijão com limão - Boicote - Ideias contagiosas - Mundo perfeito

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Parte IV - Identidades e Diferenças - Crise de identidade - O despertar da consciência - Voltando ao passado

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Parte I Gigolô Outro dia, outra manhã com cara de feriado. A nega foi trabalhar bem cedinho, mas ele só vai acordar depois das onze e meia. Às vezes acorda mais tarde, mas raramente acorda mais cedo. A planta no quintal é o relógio, todos os dias quando ele acorda a flor já está aberta. O nome da planta é onze horas. Ela sempre abre sua flor neste horário. Ele se levanta espreguiçando e abrindo a boca. Sonolento vai até a porta da sua casa e dá uma espiada na vizinha que está pondo a roupa no varal que se derrete toda ao vê-lo sem camisa e com os músculos à mostra. Ela espia o seu corpo de cima abaixo e se arrepia da cabeça aos pés. “Que homem é esse” ? pensa ela consigo mesma. E o cara orgulhoso do seu porte físico e do fato de despertar os olhares cobiçosos das mulheres alheias deixa escapar um sorriso cínico. O subúrbio quente dos dias longos de verão pede sexo. Os corpos em evidência, o calor, a pele soada logo ao alvorecer estimulam a imaginação. Ele olha novamente para a mulher com um short minúsculo e por alguns segundos a mente viaja. Vira-se, vai até a cozinha ainda desarrumada, faz um cafezinho para si mesmo. Pega um cigarro no maço estrategicamente posto na cabeceira da cama e com uma inscrição bastante sugestiva

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“FUMAR FAZ MAL ` À SAÚDE”. Lê, mas não reflete a respeito do assunto. Pega o inseparável violão que se encontra atrás da porta, vai até o quintal da sua casa e procura uma sombra acolhedora. Senta-se e começa a tocar uma canção. A melodia deliciosa se espalha pela vizinhança despertando olhares curiosos. Compor, cantar e amar é só o que ele sabe fazer e fazer bem feito. Por vezes sonha com uma oportunidade no show business, mas enquanto o sonho não se concretiza ele segue cantando de bar em bar nas noites cariocas. É um homem frustrado por ter nascido no país errado. Por saber que tem talento, mas que o mercado branco de música negra no seu país é restritivo e cruel. Por vezes assistiu estarrecido na TV propagandas contra a suposta intenção do governo de censurar os meios de comunicação. Logo lhe vem à mente o quanto a TV brasileira é preconceituosa. O quanto censura artistas que têm preocupação social e vínculo com a sua comunidade. O quanto censuram o funk, o rap e tudo mais que vem do gueto. Lembrou-se dos velhos e bons tempos da capoeira e do samba e do quanto ambos foram reprimidos. Pensou com seus miolos que enquanto o samba estava em “nossas mãos” era música de bandido e maloqueiro. Agora que “eles” tomaram conta é música chique.

_“Censurar não é só proibir. Fingir que não existe não dar espaço nas programações também é uma forma de censura. E isso é só o que “eles” têm feito com a polução negra desde tempos remotos.” _ fala ele gesticulando para si mesmo, como se estivesse falando com seu melhor amigo.

Ao perceber seu devaneio, disfarça e volta a tocar. A sua vida tem sido na madrugada. E ele sabe que a vida noturna tem suas armadilhas, mas também exerce um fascínio incrível sobre seus atores. Rua da Lapa, Joaquim Silva, Mem

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de Sá, Lavradio e tantas outras do centro da cidade são o seu habitat. Quantas e quantas vezes não às atravessou cambaleantemente com um cigarro na boca e um copo descartável até a metade com cerveja quente. Quantas vezes ele não caminhou por elas acompanhado de uma prostituta de meia idade drogada, insatisfeita com a vida e os bares todos fechados.

Enquanto ele dedilhava em sua viola uma música do Roberto Carlos, seu cantor favorito, não pelo fato de ser rei disso ou daquilo, mas porque pra ele o sentimento é o que importa, e isso o Roberto tem de sobra, mentalmente ele passa o olhar em revista à plateia do dia anterior. Uma mulher na primeira fila vestida de maneira atraente vestido vermelho, sandália de salto alto combinando, maquiagem com tons fortes, olhar sensual em companhia de algumas amigas não tirava os olhos de cima dele.

Lembrou-se do cartão de visita que recebeu ao término da apresentação e que esqueceu no paletó. Que sorte que a sua preta não o revistou antes de ir ao trabalho como sempre fazia. Mas também depois daquela transa deliciosa feita às pressas minutos antes dela sair para o emprego, nem tinha como se lembrar de nada.

Aquela mulher era a sua joia rara, o seu tesouro e bem maior. Quando o bicho pegava e as contas apertavam, era ela quem o socorria. Nas noites de insônia e bebedeira, era ela quem o carregava. No mundo de hoje, onde as mulheres estão se tornando cada vez mais independentes e cada vez mais se assemelhando aos homens sob vários aspectos, ela ainda nutria um quê de Amélia com seu instinto maternal à flor da pele. Mulher bonita, inteligente e financeiramente independente... No fundo, ela era muita areia pro seu

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caminhão, mas, enquanto ela não soubesse disso, tudo estaria bem. Garota de Ipanema

Manhã de sexta feira, tempo nublado, vento frio, barulho de criança brincando, briga de casal, som alto na casa do vizinho, buzina de moto, acelerador de carro, barulho de marreta quebrando parede, assobio, carro de som anunciando seus produtos, sirene de ambulância latidos de cachorro, fogos, canto de pássaros e o inconfundível som do carro da policia que marca o inicio de mais um dia numa favela em Piedade.

Dentro do quarto de uma casa aparentemente confortável para aquele ambiente de pobreza e miséria, gemidos, suor e sussurros. Dois jovens despidos num momento de intimidade se agarram, se tocam, se beijam e se desejam de maneira frenética. A pele branca e macia, sem manchas ou marcas denuncia a origem da moça que ignora completamente sua condição social em nome do prazer e do desafio de se deitar com um bandido. Sexo, droga, armas, sentimentos à flor da pele, desprezo, monotonia, inquietação e uma gama de outros fatores a levaram até aquele quarto escuro.

O celular toca, dentro de uma bolsa de grife com tom rosado que se encontra ao lado da cama desarrumada. A jovem deitada de bruços e com o corpo inclinado para frente pega o aparelho e desliga sem observar o visor. Volta e olha para seu parceiro com olhar de desejo e o chama novamente, se abrindo para recebê-lo. De maneira violenta, ele a toma em

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seus braços pressionando o seu corpo abrutalhado sobre o corpo frágil da menina que se delicia com o ato. Com a cabeça sobre o travesseiro, olhos fechados, mãos segurando firmemente o colchão como quem faz força, lábios entreabertos, mamas enrijecidas, pernas, braços e troncos movendo-se desesperadamente até o orgasmo inevitável.

Minutos depois o jovem se levanta e vai até uma mochila jogada num canto da casa completamente bagunçada. Toalhas no chão, meias, peças íntimas, tênis e blusas. Ele pega um saquinho com um pó branco dentro e põe o seu conteúdo sobre uma mesa com restos de pizza e guimbas de cigarros. Em seguida com uma cédula de cinquenta reais enrolada em forma de canudo se debruça sobre o pó até sugá-lo de quase todo. Assim que termina chama a garota que ainda nua se levanta apressadamente, em silêncio. Com uma visível excitação ela se joga por sobre a droga e a aspira como quem sorve o próprio ar depois de um naufrágio. Na seqüência, olha para o rapaz com seus lindos olhos azuis e com a espontaneidade de uma criança diz:

_ Quero mais! Quem via aquela criatura adocicada jamais poderia

imaginar tudo o que já fizera e o que seria capaz de fazer para alcançar seus objetivos. Objetivos estes que na maioria das vezes eram esquizofrênicos e medíocres. Acostumada a sempre ouvir sim como resposta de todos que a cercavam, acostumada a ser sempre tratada de maneira especial onde quer que fosse, no colégio, no shopping, nos bares, na praia e em casa. Tudo isso fizera dela uma pessoa extremamente volúvel, fútil e sem limites. Nada era proibido, nada era suficiente ou difícil demais para uma mulher bonita como ela. No inicio o desafio era fumar maconha no banheiro da escola. Era normal todo mundo fazia.

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Mas era tão comum que perdera a graça, se tornara cafona assim como ser assediada, bajulada e mimada o tempo todo.

Num acampamento, num fim de semana prolongado, conheceu o cara que vendia a droga para a galera da praia. Começou a ficar com ele no início, novamente pelo desafio de se relacionar com alguém que lhe inspirasse um pouquinho de receio depois pela facilidade em adquirir sua nova paixão: a cocaína. Ela se envolveu tanto com a droga que tudo o que fazia era em prol do vício. O seu mundo que já era restrito se tornou ainda menor. Suas amizades giravam em torno disso, as baladas, as festas, as relações tudo era movido única e exclusivamente pelo vício. Foi numa dessas noitadas que ela conheceu o fornecedor do seu namorado um cara frio de poucas palavras, olhar distante, extremamente cético. Tinha um tom de pele amarronzado, cabelos crespos, corpo tatuado, um pouco forte provavelmente malhava. Quando foi apresentada a ele sentiu arrepios ao tocar suas mãos, mas não demorou em saber que ele seria o seu próximo namorado. Algumas semanas depois já estava morando numa favela da zona norte do Rio de Janeiro. Deixou tudo pra trás, luxo, conforto, parentes e amigos pra se embrenhar na mata virgem como uma leoa no cio.

Depois de passar a manhã inteira transando e usando droga, ela adormece e acorda ouvindo vozes vindas do quintal da casa. Levanta-se e abre bem de vagarinho a cortina. No portão, seu namorado conversa com dois caras que gesticulam, falam palavrão o tempo todo, e tudo o que dizem gira em torno de crime, assalto e morte. _ Vamu logo cara, tu tá demorando, pô! _ Bota a vadia de isca, e nóis, fica como? _ Só na contenção né! Cê tá ligado?

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_ Aí como? Nem vai dar pro mané pensa. Quando ele piscar, nós já vamu tá em cima cum duas pistola na cara dele, né! _ Bagulho todo dado, é só chegar e leva.

_ Já é! Vou dá o papo. Às oito horas do dia seguinte a jovem chega ao lugar marcado de mini saia, blusa decotada, cabelos molhados, maquiagem sóbria, bolsa e sapato alto. Para em frente à loja e fica olhando para o relógio como quem espera por alguém. Ela age de maneira natural até que o gerente com uma funcionária se aproximam e, no instante seguinte, ela finge sentir tonteira e, é imediatamente socorrida pelo homem que a toma em seus braços, enquanto a funcionária termina de abrir a porta da loja. Alguns segundos se passam e aquele jovem senhor de, no máximo 48 anos, já trancado dentro da joalheria; vê estarrecido um anjo se tornar demônio. A jovem surpreende até seus companheiros com a súbita ira que até então não demonstrara. Ameaça, xinga, gesticula e agride a funcionária. Empunhando uma 45 milímetro cromada que pegou do namorado, ela sentiu a sensação que perseguira a vida inteira: o domínio da vida e da morte estava em suas mãos agora. Enfim, encontrara seu lugar no mundo. Ali, diante daquele homem de cabelos grisalhos com ar de sofisticado como todo mundo que a cercara a vida inteira, morria menina da zona Sul que nascera para ser esnobe. E nascia uma mulher violenta e destemida, disposta a cunhar seu nome com sangue na história do crime.

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O dono do morro

A noite caiu obscura sobre a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Fogos de artifício iluminavam o céu cinzento colorindo a madrugada escura enquanto traçantes cortavam o ar frio que pairava sobre o estado naquele inicio de inverno. Barulho de grilos, tiros, granadas, gritos e berros se misturavam ao cheiro de pólvora que tomava toda a atmosfera. Jovens e crianças se digladiavam, gritavam, falavam alto, xingavam, atiravam, matavam e morriam... Ao som de passos comedidos, uma alma sedenta pelo sangue dos seus inimigos atravessava furtivamente os becos sujos de sua infância roubada. A pele escura soada reluzia ao luar. O olhar atento, a garganta ressecada de ódio e a adrenalina a mil. Em frações de segundos um vulto, um reflexo e o fuzil canta com uma ferocidade animal disparando um projétil com precisão milimétrica que saiu e rasgou a carne como a navalha. E mais um negro pobre se afogava no próprio sangue...

O eco do tiro ficou tinindo nos ouvidos e por alguns segundos um silêncio mínimo se fez ouvir, para logo em seguida o estrondo da explosão de uma granada sem direção espalhar estilhaços pelo corpo de uma criança de três anos. Gritaria, dor e desespero roubavam a cena novamente dando novos contornos a uma história trágica que em breve seria esquecida pelo senso comum que se escondia em baixo de

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suas camas. Covardia, medo, ignorância ou tudo ao mesmo tempo? No ato seguinte um casal de jovens descia a favela com o fruto do seu amor ensanguentado nos braços: infelizmente para eles ou felizmente para o Estado, a criança não sobreviveu.

_ Filho da puta, Alemão safado vai se fuder, porra! plá, plá, plá... Extravasou todo o seu ódio apertando o gatilho de um 762...

A vida não foi nada confortável para ele. Que cresceu sem pai e praticamente sem mãe. Já que sua mãe depois de ter sido abandonada pelo namorado na gravidez fez algumas escolhas erradas. Acabou se tornando alcoólatra e se enchendo de filhos. Ele era o mais velho numa casa de seis irmãos e toda a responsabilidade recaiu sobre seus ombros. Com doze anos ele tinha que prover o sustento da família. A sua esperteza era a única esperança dos seus irmãos mais novos que contavam exclusivamente com ele, já que a mãe vivia passando de braços em braços nos bares da vida. O tráfico foi um caminho quase inevitável, era a fonte de renda mais acessível, mais próxima. E além do mais estava ali bem diante dos seus olhos. O respeito, a dignidade, a moral, mulheres, covardia, dinheiro e a morte precoce que seria um possível efeito colateral.

_ Que se foda!! _ pensava consigo mesmo.

Melhor seria morrer como homem do que ficar sendo humilhado como inúmeros adultos da comunidade. Pais de família que tomavam tapa na cara na frente dos filhos e da esposa, e se calavam amedrontados. Se algum daqueles caras lhe tocasse as mãos, teria que matá-lo. Já havia visto muitos homens de bem que viviam para o trabalho e a família se

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tornarem monstros depois de serem humilhados pela polícia. Gaguinho era um desses. Apanhou feito cachorro sem dever nada a ninguém e assim que se recuperou entrou para o tráfico e desde então procurava a chance de se vingar.

_ Se eu bato de frente com aquele covarde filho da puta é eu ou ele. _ dizia Gaguinho batendo no fuzil entrelaçado no corpo. História triste é o que não faltava naquele lugar.

Depois de descarregar todo o pente com vinte projéteis, aquele jovem aparentando uns 17 anos para por um instante diante do corpo de outro jovem com as mesmas feições que as suas, o mesmo porte físico e aparentemente da mesma idade. Para e olha com ar de desprezo. Depois continua rumo ao ponto alto da favela. Vê o beco vazio e aponta o fuzil em direção ao nada e, então corre pra não ser notado por alguém que por ventura estivesse escondido. No beco seguinte o mesmo procedimento seguido de um assobio sinalizando que está tudo tranquilo. Correndo vagarosamente, ele segue seu caminho deixando pra traz um rastro de sangue. Ao contrário de tempos atrás quando corria por essas mesmas vielas com os pés descalços, sem camisa e de bermuda. Quando ainda nutria um brilho nos olhos que foi se perdendo com o passar do tempo. Quando tudo que era importante deixou de fazer sentido. A pipoca doce, a água com açúcar e farinha, a manga no quintal do vizinho, o pé de jaca do seu “Manél” e as brincadeiras inocentes. Tudo havia mudado e na sua cabeça não havia mais espaço pra isso, os jogos adultos haviam começado...

Sexo, dinheiro, álcool, drogas, prostituição, violência, repressão, impostos, juros abusivos arbitrariedades e todo tipo de atrocidades cometidos em nome da justiça e do bem-

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estar comum estava agora ao seu alcance.

O Estado brasileiro havia deixado bem claro o seu papel nessa balburdia quando importou mão de obra principalmente da Europa para substituir o trabalho escravo no final do século XIX, forçando milhares de homens, mulheres e crianças a migrarem para as grandes cidades sem nenhum apoio ou assistência por parte do mesmo. E este tipo de comportamento persistiu, até os dias de hoje, com o dito combate ao tráfico nas favelas (criadas a partir deste processo de migração forçado) que é a última fronteira do ultra lucrativo comércio de entorpecentes. E ele mais que ninguém sabia disso, sabia inclusive quem eram os seus fornecedores e como a droga chegava até a sua comunidade. Para cada jovem não branco morto em confronto com a polícia um novo emprego era criado nas fábricas de segurança, um novo discurso era escrito, novos furos de reportagem, outros carros seriam blindados, assassinos aplaudidos nos restaurantes da Zona Sul, revistas vendidas, jornais, medo, pavor, incerteza e caos, não passava de combustível para mover as engrenagens da multinacional estadunidense de criação em massa de não cidadãos: chamada Brasil.

Essa mentalidade o ensinou que na selva o fraco é subjugado e ele assimilou tudo isso de maneira brilhante. Dominava aquela fauna como ninguém. Sabia que o sistema não sobrevive sem pessoas como ele, e que o sistema precisava de um Fernando Beira-mar, de um Elias Maluco, de um Celcinho. Enfim, de um inimigo visível para legitimar todos os gastos, todos os recursos não repassados, extravagâncias, excessos mil... Precisam-se criar mitos, heróis e vilões sejam eles do Complexo da Maré, Complexo do Alemão, Vila Cruzeiro, Vila do João, Argentina ou qualquer

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parte do planeta. A lógica é criar conforto para uns em detrimento de outros, e essa era a dinâmica do jogo que ele estava jogando. Ao chegar ao ponto mais alto da favela, de onde podia avistar cada entrada e saída da comunidade, o dia já estava amanhecendo. A luz do sol iluminava a copa das árvores com folhagens amareladas, vento úmido soprando, cheiro de orvalho e terra molhada, pássaros cantando num claro contraste com o seu interior sombrio. No fundo ele sabia que a morte precoce era inevitável. Mas, pra ele já não tinha mais volta fora longe demais. Agora só restava esperar que a história tomasse seu rumo.

Com o fuzil atravessado nas costas e uma pistola nas mãos, ele observava outro dia começar naquela comunidade massacrada pelo descaso do poder público. Com olhos fixados no horizonte ele via o rabecão chegar à comunidade. O coração parecia sentir uma fisgada, perdera alguns amigos de infância no conflito. Ali em pé, feito uma estátua, só pôde ouvir o barulho da sirene se afastando e o grito de dor de uma mãe inconsolada. Choro doido podia sentir no seu íntimo, mas fazer o quê? Para pessoas como eles não havia espaço no mundinho burguês de faz de conta onde à hipocrisia é a moeda de troca. Enquanto refletia sobre a noite anterior ele descia lentamente de volta à comunidade. Rodeado por seguranças e buchas. Uma moto fazendo a batida e as pessoas o cumprimentado por um misto de medo e respeito. E assim ele caminhava pelos becos intocados desde a sua infância. Uns nasceram, outros morreram, alguns envelheceram, mas aquele cantinho de mundo permanecera o mesmo. A lama ainda se acumulava quando chovia, as casas ainda eram

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invadidas pela águas da chuva. A poeira, o lixo, o rio poluído, o esgoto a céu aberto, a babação de ovo, as pessoas, os valores, a cegueira coletiva, o medo, tudo permaneceu intocado ao longo daqueles 17 anos.

Ele próprio era um estereótipo. Jovem negro, bandido não é bem o que se podia chamar de originalidade, num país marcado pela segregação racial. Mas a parada era essa. Enquanto a morte não chegasse ele seguira ocupando seu lugar ao sol como um leão em seu habitat natural. Outras guerras viriam, outras mortes ocorreriam e outras crianças cresceriam sonhando ser como ele: o dono do morro...

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O fogueteiro

Amanheceu com chuva aquele dia e a umidade penetrava na parede sem emboço e formava goteiras

que corriam até o chão, criando poças d'água em alguns pontos da casa. Na cozinha a infiltração era ainda maior, as goteira pingavam nos baldes e espirravam molhando todo o chão.

O menino Tuísca não gostava de dia de chuva por que parecia que tudo era mais triste. Ele acordou bem cedinho e foi direto pra rua. Ainda chuviscava, mas tinha que assumir o seu posto. Procurou um lugar onde não podia ser visto facilmente, e ali ficou a manhã inteira. De lá dava pra ver os carros passando no asfalto e levantando água pra tudo quanto é lado. Um senhor desavisado no ponto de ônibus ficou todo molhando quando um carro passou em alta velocidade e espirrou aquela lama de esgoto, forçando-o a voltar para casa pra trocar de roupa. Até ouviu o xingamento:

_ Filho da puta! Vai molhar a tua mãe, safado! O cara foi embora e nem se desculpou. No dia anterior havia perdido um grande amigo, só em pensar doía o coração:

_ Léo era “novim” _ pensou se lembrando do amigo de bruços com uma poça de sangue ao seu lado. O menino tinha só 16 anos e não era envolvido com o tráfico. Mas foi

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infeliz ao fazer um favor a um amigo e segurar o rádio dele enquanto o carinha resolvia um problema. Então, quando a Patamo subiu o morro, ao vê-lo com o Radinho, atirou. Ficou estirado implorando pela vida e os vizinhos todos se aproximaram da cena pra pedir pela vida do garoto. A mãe do menino foi chamada às pressas pelos vizinhos. Achando que nada mais aconteceria ao seu filho e que ele viveria, saiu de perto para pegar uma toalha pra tentar estancar o sangue que jorrava ininterruptamente inundando o asfalto. Foi-se esperando voltar e encontrar seu filho vivo. Mas foi só ela virar as costas e sair de perto pro policial atirar no rosto do rapaz indefeso. Dor, medo, inquietação, covardia, desrespeito aos direitos humanos, desprezo pela vida, impotência... Na comunidade onde vivia era assim o tempo todo. Antes do Léo tinha sido o Birinha, também morto pela policia, e o Alê morto pelos traficantes por que estava vendendo droga no asfalto bem em baixo do nariz do Zen, o dono do morro. Mandaram chamá-lo e ele foi lá se justificar:

_ Pow Beça, pow beça... _ Foi mau aí, eu tava fora de mim, nem pensei..._disse ele apavorado com a ideia de morrer. Dizem que a ideia era só dar um pau nele já que era

cria da comunidade, mas quando ele viu os caras pegando a perna de três, se desesperou e saiu correndo. Os caras pegaram as peças e foram atrás: _ Neguim, já tava com sede de sangue mermo _ pensou com o pensamento solto no passado. Foi quando o rapaz entrou na casa de uma senhora e o Aranha foi atrás e o matou.

_ O Alê era boa pinta pra caralho, pegava mulher à beça! Pow deu mólim! _ falou sozinho o menino.

Tuísca, apelido dado por um uma tia que se inspirou

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num livro de Jorge Amado. A história da famosa mulata Gabriela que adorava cantar e dançar assim como o menino Tuísca, amigo dela na trama. Ele era engraxate, informante, entregador de jornal que além de dançar gostava de circo. Gabriela era o estereótipo perfeito para os homens brancos: mulher negra gostosa e burra, quase uma mucama. _ dizia sua tia indignada. “Mas o que era Mucama? O que era estereótipo?” Tuísca tinha receio de perguntar para não parecer idiota. Ele não era engraxate, mas dançar era com ele mesmo, bastava tocar um funk no rádio e lá estava ele se exibindo ao som do tamborzão. A sua família era uma das mais pobres naquela comunidade. Às vezes, eles ganhavam cesta básica, mas não durava uma semana. Ele, com 11 anos, teve que largar a escola pra se virar, afinal já estava ficando um rapazinho e as novinhas não davam mole pra cara fodido. Tuísca, ainda sentado no alto da laje, meio que se escondendo do mundo, lembrou-se do dia que quase o pegaram:

_ Pow eu pudia tá morto agora _ respirou fundo ao pensar nisso. Ele tinha a mania de pular o quintal da Dona Arlete para sair na rua principal e depois pular para o quintal de outra senhora para só então chegar a sua casa. Foi num dia deste que pulou o quintal da Dona Arlete e deu de cara com a patrulha policial:

_ Nossa! _ Eles vieram cum tudo mermo - falou vislumbrando a cena de terror Muito esperto o menino pulou de volta para o quintal, saiu correndo e pulando quintal em quintal sem nem olhar pra trás. Tinha a nítida impressão de que alguém o estava o seguindo. Até que chegou a casa de uma tia e por lá ficou.

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A noite na comunidade era uma incógnita, ninguém sabia quando “os alemão” iam invadir ou a polícia subir atirando... Muitas vezes os “traçantes” cortavam o céu de estrelas rumando para a favela. Eram os caras da comunidade vizinha tentando mostrar poder de fogo. O maluco da rua de baixo que era músico e gostava muito de ler por isso todos o chamavam de maluco. Sempre dizia que se os caras estavam atirando assim é porque estavam fracos. Segundo ele, demonstra-se força quando se está fragilizado. Dizia também que pra favelado homem inteligente ou é viado ou é otário; mas seu estereótipo de maluco anulava qualquer hipótese dele ter alguma razão.

Favela, berço da malandragem, terra de ninguém e de todos. Lugar de dores, guerras, amores e traições; espaço de cultura, reinvenção e criatividade. Assim era o seu canto no mundo. O seu lugar ao sol. Barracos à beira de barranco, sobre esgoto, arquitetura de improviso, madeiras, pedras, paus, cacos de telhas, remendos...

Ali onde as histórias trágicas de cada dia recebiam um olhar indiferente da sociedade. Ali onde as dores de cada dia apareciam de relance nos telejornais, onde os mortos eram mais merecedores da morte do que os que viviam em condomínios. Ali onde ele nascera e crescera driblando as dificuldades, o medo, a fome, a incerteza, as dores, o desprezo e a falta de vontade política. Ali onde quase tudo era via de regra. Talvez o seu avô tivesse razão mesmo e o mundo o jaz do maligno. Às vezes, o seu avô ia até mais adiante e dizia com aquela voz dura e olhar cansado:

_ Quando o nosso Senhor foi tentado no deserto, o diabo lhe ofereceu todos os reinos do mundo. Como alguém pode oferecer o que não lhe pertence? Talvez porque os governantes estivessem a serviço dele e, é por isso que há

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tanta corrupção nesse meio. Por mais que não entendesse direito Tuísca sabia que os políticos eram os responsáveis por tanta miséria e corrupção. Sabia por que todo dia no jornal apareciam alguns playboys roubando e sendo solto logo em seguida. Habeas corpus, advogados, prisão preventiva, responder em liberdade... Na favela não tinha nada disso, não, se fosse pego roubando pela polícia era morto na hora, não tinha nem conversa.

_ Mas, pá playboy é diferente, né? _ imaginou o menino voltando à realidade. As muitas histórias contadas pelos mais velhos mostravam exatamente o desfechar do enredo. Histórias de paixões sangrentas, injustiças, traições, mortes precoces, monstruosidades, traumas, conflitos mil. Um olhar para o infinito seguido de um pensamento fúnebre lhe dá à exata medida do que fazer. Era ora de buscar outro meio de sustento, outra forma de se virar nessa selva aterrorizante.

Depois de muito pensar, Tuísca saiu andando pela favela disposto a falar pro Zen que queria sair. Aquela vida não era pra ele, tinha outras ambições e desejos que o tráfico jamais lhe daria. Caminhando desligado e perdido em pensamento, o menino nem vê a patrulha se aproximar só escuta o grito que ecoa como um trovão em dia de tempestade: _ Ai, ai, nem pensa em correr! - um homem branco desce da viatura empunhando uma pistola enquanto outro homem de pele mais escura aponta o fuzil com a porta da viatura aberta. O radinho vai ao chão com o susto. Era o fim. Estava tudo acabado, não poderia mais abandonar o que mal havia começado. Não poderia mais dançar, correr, brincar, beijar a Flavinha como no dia anterior, sorrir o riso despreocupado,

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sonhar... Em frações de segundos as imagens passeavam por sua mente como um filme em câmera lenta. Sua tia, seus irmãos mais novos, sua mãe, a Flavinha, o beijo roubado, os amigos todos iam sentir a sua falta.

Quem iria ajudar a sua mãe com as compras, com o sustento da casa e a olhar seus irmãozinhos? Só pôde ouvir o disparo que mais parecia o rugido de uma besta selvagem e tudo se congelara no instante seguinte. A ruazinha de terra, o barzinho, uma menininha brincando de boneca do outro lado, um grito distante, a vida.

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Traficante do asfalto A sua infância foi doce como a infância da maioria das crianças da Zona Sul. Cresceu protegido pelos muros, grades, câmeras de segurança e guardas armados que trabalhavam no condomínio onde nasceu e cresceu, desfrutando das benesses de ser branco e rico num país pobre e mestiço. Desde cedo teve que aprender a guardar segredo e a não violar os tabus, como, por exemplo, perguntar qual era a profissão do seu pai. Sua mãe era sempre muito atenciosa e amável, uma mulher linda e formidável que vivia para a família e que tratava o seu pai como um rei intocável.

O tempo passou e, repentinamente, sem aviso prévio, teve que enfrentar a pior tragédia em sua vida de regalias e facilidades. Teve que assimilar a misteriosa morte do seu pai. A dor foi intensa... Precisou de terapia para suportar, pois até então não sabia que os heróis morriam. Depois de toda dor e dificuldade advinda da falta do pai teve que amadurecer e assumir os negócios da família. Acordou cedo, depois de uma noite mal dormida. Levantou-se, foi direto para o banheiro e lá ficou por um longo tempo. Parou em frente ao espelho, se olhou receoso. O seu mundo de repente havia virado de cabeça pra baixo. Pensou em seu pai ainda jovem, cheio de vida e sempre de

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bom humor. Queria muito entender o motivo de seu pai não tê-lo preparado para aquele instante. Lembrou-se dos vários momentos que passaram juntos nas inúmeras férias em família. Nunca tinha ouvido uma palavra do pai sobre o assunto. Agora estava prestes a assumir tudo e não tinha se quer ideia do que estava por vir. Depois de passar quase duas horas no trânsito engarrafado de Copacabana chegou ao escritório no centro da cidade. O prédio moderno e com arquitetura futurista lhe pareceu familiar, talvez seu pai o tivesse levado ali quando pequeno, mas não se lembrava bem. Entrou meio desconfiado e não deu a menor atenção ao seu tio que falava pelos cotovelos. Notou o olhar dos funcionários do prédio que pareciam surpresos com sua juventude. O porteiro, um jovem senhor de olhar cansado e atitude simplória, lhe cumprimentou com a cabeça.

Já na sala de reunião, só se propôs a ouvir e tentar entender o ramo de atuação da empresa da família. Então tudo lhe foi dito e só ai se deu conta do porquê de tanto mistério em torno do ramo de atividade. Entendeu também que no fundo o seu pai só queria livrá-lo daquele mundo e com isso protegê-lo de ser um criminoso. Precisou de um tempo para assimilar tudo, mas logo soube que teria de ter pulso firme para comandar aquele negócio. Por traz da fachada de um escritório de advocacia funcionava uma importadora de armas que eram negociadas no mercado negro por quantias astronômicas. As armas entravam pelas fronteiras e para que não esbarrasse na fiscalização havia um número grande de cooperadores. Todos detinham cargos importantes nas forças armadas, nas policias rodoviária federal, civil e militar, além de juízes e promotores. A jogada era alta. A cada carregamento que chegava, o

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escritório se tornava um hospício e a correria era absurda. Naquele dia, em especifico, o rapaz teve que ir a um balcão dentro de uma favela na zona norte. No início ele ficou apreensivo, já que nunca havia pisado numa comunidade anteriormente, mas foi se acalmando ao longo do trajeto. Pode ver pela janela do automóvel blindado crianças e mais crianças jogadas nas calçadas vitimadas pelo crack e enquanto observava a cena ouvia seu tio espraguejando:

_ Esses moleques nojentos! Odeio essa gente. Olha só a cara daquele negrinho ali. Nossa! Que nojo. Drogado, ladrão, safado. _ dizia, enquanto um garoto, de no máximo doze anos, sentado na linha de trem observava o carro importado que rumava para o outro lado da favela. O rapaz ficou ali pensando como era incrível a noção de certo e errado do seu tio. Como aquele jovem senhor de barba serrada, olhos verdes e cabelo grisalho criara um mundo particular onde não era crime fornecer droga e armas de uso exclusivo das forças armadas para jovens envolvidos com o tráfico. E ele ainda tentava justificar o seu crime como sendo de utilidade pública. Como se corrupção e crimes praticados por brancos não fossem crimes ou fossem menos crimes. É claro que o martelo do juiz era mais leve para com os seus iguais e mais pesado para com aquela gente despossuída. Olhou novamente para o seu tio que continuava apontando e xingando, à medida que o carro de vidro escuro entrava favela a dentro.

_ Eles estão drogados tio? _ Claro! Mas a maioria ai vai morrer antes dos quinze

anos, ainda bem. _ É. _ concordou o jovem, voltando os olhos para o

lado de fora do carro.

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_ Rodrigo entenda uma coisa nesse ramo de atividade não há espaço para compaixão. Nós prestamos um serviço à sociedade e ao governo e, principalmente, a esse país que nós descendentes de europeus desbravamos e libertamos. Te digo uma coisa: O governador têm que prestar conta para um monte de burocrata de direitos humanos e por isso fica com as mãos atadas. Mas alguém tem que fazer alguma coisa e esse alguém somos nós.

_ Como assim tio? Não entendi. _ comentou Rodrigo apreensivo.

_ É o seguinte. Nós vendemos as armas para os traficantes e também facilitamos as negociações com os cartéis internacionais de drogas. Ou você acha que um neguinho semi-analfabeto, nascido e criado no morro sabe falar idiomas e fazer negócios que envolvem bilhões de dólares no mundo inteiro? Nós deixamos que eles vendam as drogas por um tempo, deixamos que eles negociem e se matem uns aos outros. Depois de um tempo nós saímos de cena, mas o governo já tem o pretexto que precisa para invadir a favela e matar quantos negros forem preciso. É uma guerra filho, uma guerra étnica e o que está em jogo é o futuro deste país. Esse é um trabalho de saneamento básico. E se você pensar bem vai ver que todo mundo ganha. O governo ganha dando resposta à sociedade que clama por segurança com grandes operações policiais, as empresas de segurança ampliam seu ramo de atuação. Criam-se novas demandas e geram-se novos empregos para a classe média, que por sua vez apoia as ações funestas do governo nas comunidades pobres. A sociedade que fica livre desses filhos indesejados, os jornais e as grandes redes de TV que fazem suas coberturas ao vivo, os políticos profissionais criam suas campanhas em cima da violência urbana, prometendo uma

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sociedade livre de marginais, e nós lucramos cifras milionárias a cada acordo fechado. Esse sim é um negócio da China. Depois de um tempo, Rodrigo já havia se familiarizado com aquele mundo. Havia se conformado com a lógica de raciocínio do seu tio e de todos que trabalhavam na importadora. Ninguém ali se julgava traficante ou criminoso, muito pelo contrário, todos se sentiam pessoas honestas e honradas. Alguns chegavam ao cúmulo de criticar o governo pela impunidade e falta de policiamento nas ruas. A sensação geral era a de que cadeia e polícia não são para pessoas como eles. Ser bandido pressupunha ser preto e estar com uma arma na mão. A dona Dora, por exemplo, era muito religiosa e falava de Jesus para todo mundo, mas quando se tratava da parte dela nos negócios a coisa mudava de figura. O rapaz também já havia encontrado um jeito particular de não ser punido pela consciência mesmo sabendo que no fundo contribuía para a morte de milhares de jovens nas comunidades pobres da cidade.

Mas Rodrigo só se deu conta do quão estava envolvido naquele mundo quando se encontrou num episódio bizarro. Numa rua do centro viu um jovem tentando roubar uma senhora e, com outros populares, saiu em defesa da senhora. Quando conseguiram pegar o ladrão, começaram a bater nele que se debatia e pedia para que parassem pelo amor de Deus.

_ Ladrão tem que morrer. _ Gritava Rodrigo à medida que espancava o carinha que sangrava caído na calçada segurando a nota de vinte reais que havia roubado da senhora. Depois que a polícia chegou e prendeu o cara, as pessoas o agradeceram pelo ato de coragem e bravura. Logo chegou uma emissora de TV que o convidou para dar uma

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entrevista e explicar o acontecido. A repórter o batizou de justiceiro solitário e lhe perguntou como se sentia sendo o principal responsável por livrar a sociedade daquele marginal perigoso. Olhou-a nos olhos e sorriu para logo em seguida entrar no personagem. _ Ah! Não fiz mais que minha obrigação. Vi uma senhora em apuros e quis ajudar. _ E o que o senhor acha da violência e da falta de segurança que assola as nossas cidades? Manda um recado para os governantes. _ É um absurdo isso, sabia! Precisamos de mais segurança, mais polícia nas ruas. Alô, governador! _ Quem acabou de falar foi um cidadão indignado com a sensação de insegurança que paira sobre nossas cidades. _conclui a repórter. Estava começando a entrar no jogo. Ao acabar a entrevista, lembrou-se do seu tio que culpava aqueles negrinhos na favela por toda a desgraça do mundo. Era mais fácil para ele culpar suas vítimas do que parar para se olhar no espelho e ver quem era o verdadeiro bandido. Ou olhar para a história do Brasil e saber que os seus antepassados mataram crianças inocentes, estupraram meninas e mulheres, mataram, escravizaram, roubaram, torturaram e dizimaram aldeias inteiras. E tudo o que ele faz hoje é dar continuidade aos erros do passado. Rodrigo olhou para dentro de si e por um breve momento se sentiu um monstro, mas logo a realidade o chamou de volta. Então, entrou no seu carro blindado levantou os vidros e arrancou de vagarinho assistindo o povo o saudar como se fosse um herói hollywoodiano que saiu da tela direto para o dia a dia das ruas. Começava ali uma carreira política promissora.

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Voos Noturnos Logo de manhã dei um teco e já fiquei ligado. Porra! Calor do caralho. Várias neuroses passando pela cabeça, maldade, ódio, magoa ressentimento. O bagulho é doido. Fiquei o dia inteiro de função. Tipo como? Aí dei outro teco e desci pro asfalto. Boladão, né!? A dezenove milímetros já tava no esquema. Essa bicha é foda, um tiro dela e já era. _ Tava a semana inteira duro no bagulho, tinha que dar um jeito.

Cheguei na pista e o clima tava tranquilão . Fui prum baile que rola na área, sempre têm uns otários metido a malandro dando sopa. Porra! Mal botei o pé no bagulho e um playboy estacionou a Cheroky, desceu cheio de marra e gingando como se fosse negão, cuma vagabunda gostosa do lado. Ela tava cuma minissaia quase mostrando o rabo, um decote sinistro e cabelo molhado como se tivesse acabado de sair do banho. Só vendo neguim! Mas eu num tava nem aí pra essa porra. Queria é o carro e o relógio do otário.

Um Rolex boladão, que provavelmente ganhou do papai ladrão de colarinho branco. Parei e fiquei ali só escoltando. O play dançou, bebeu e com certeza deu uma narigada no banheiro. Pow, não tem nem como. Já viu playboy que não dá um teco? Tudo viciado mano, tudo viciado, é que nem polícia. – “Esse vai ser fácil,” pensei comigo. Depois de um tempo o cara tava doidão, me afastei e esperei na esquina por onde ele inevitavelmente teria que

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passar. Não deu noutra, quinze minutos de espera e lá veio o meu carro prateado reluzindo à luz do luar. Só foi o tempo dele reduzir pra fazer a manobra que cheguei sorrateiramente por entre as sombras da noite e botei o ferro na cara do Mané. A pistola cromada parecia um diamante bruto de tanto que brilhava.

_ Perdeu Playboy! _ Desce, desce! Desce dessa porra. Vai, vai, vai...

Já cheguei gritando na adrenalina total só deu pra ver a cara da piranha assustada descer e sair correndo do carro. O playboy murchou na hora. A marra foi embora como o ar que sai duma bexiga. Desceu do carro implorando pra viver. Dei uma coronhada nele que caiu com o sangue jorrando na testa. Pequei a carteira e o relógio do otário e entrei no possante. Aquilo sim era carro. Desci a Avenida Central voando. O vento batendo no rosto, o frio da noite, as luzes vermelhas dos hotéis, putas nas esquinas, a sensação de poder e a tostesterona. À noite tava perfeita. Fui direto pro morrão e chapei... Àquela hora madrugada já estava fria e mórbida. Luzes deficientes clareavam minimamente a entrada da favela. O chão úmido de sereno, um vento contínuo soprando, o escuro e o silêncio. Passos apressados que caminhavam solitários pelas vielas movimentadas. Na esquina seguinte um corredor de gente se movimentava como seres sem alma. O caminho de fuga da realidade dura e insensível nos remetia a escravidão desumana e cruel. Algo me movia, me instigava e me impunha um desejo tão intenso que se fosse preciso abdicaria da própria vida pelo prazer de sentir o prazer de estar fora dessa realidade insana. O escuro da noite é como uma longínqua lembrança de um abraço acolhedor de uma velha senhora com lágrimas nos olhos. O meu cachimbo era

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meu algoz, meu vilão. Meu redentor que me libertava, escravizava, me tirava o sono, a fome e a dor intensa que continuamente ardia no peito. Naquele dia houve um princípio de tumulto no Beco da Rua 15 que logo se transformou num silêncio profundo. E em silêncio passei pelos meus parceiros de autodestruição. Vi em seus olhos o mesmo vazio que vejo em mim todos os dias. Sinto que são tão impotentes diante do vício, como eu próprio. Podia até imaginar o que havia por trás de cada um deles, o que os levara a esse mundo? Como chegaram até aqui? O que restou dos seus laços familiares e dos amores de outrora? Talvez uma bela jovem que se desiludiu, uma esposa, uma mãe, um pai, mas o que importa agora? Já era neguim tá tudo perdido. Toda noite ela volta linda de pele sedosa e branca como a neve, me chama me ama, me acaricia, me beija e me sentencia a um prazer desumano.

_ Caralho, Mané, tô ficando maluco, falando sozinho direto. O crack está mudando radicalmente a expectativa de vida por aqui. Jovens, adultos e crianças suburbanas metidos nessa merda aí. Ontem mesmo eu vi uma galerinha chegar aqui deslumbrada com a ideia de poder se drogar à vontade. A menina do grupo de três. Putz! Ela era linda. Seu corpo tenro, as curvas perfeitas, seu rosto, aquele cabelo meio revoado, olhos arredondados num misto de índio e negro, era meio cafuza, meio mulata, meio meiga, meio selvagem. Porra! Viajei tá ligado? Só em falar me arrepiei tá ligado? Perguntei-me ao vê-la o que ela tá fazendo aqui? - Pergunta tola e ingênua. Por ela talvez eu abdicasse de tudo. Botaria uma casa pra ela na favela, arrumava um trampo, sei lá! Qualquer coisa. _ Sou do tipo faz tudo, sempre fiz um punhado de coisas. Mas não, ela queria a noite, o prazer sem limites. Nem posso

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culpá-la eu também sou assim. Hoje nem tanto dou um teco, fumo um, mas me controlo na boa. A vi passar por mim inúmeras vezes sempre apressada correndo pra lugar nenhum, mas correndo. Passava e cumprimentava:

_ Qual é! Nada mais. Meus olhos a acompanhava até virar a esquina seguinte. A vontade real era a de ir atrás dela e dar um papo reto, mas achei melhor não, ela tava andando com uns carinhas neuróticos lá da praça. Cracudos metidos a bandido, sabe qual é! Não tem desenrolo, os caras quando tão na onda não pensam. Às vezes é melhor evitar. Já vi muita coisa na noite, assassinatos, socos, facadas, brigas, estrangulamentos, covardia, trairagem, traição, mortes e mais mortes. Vi gente boa ser tirada como bandido, homens de bem ser taxados de X9 e pilantras como heróis, vi valentes virarem moça e humildes leões. _ Faz tempo... Ontem eu a vi novamente com a mesma pressa, a mesma ansiedade, o mesmo ímpeto, mas agora estava irreconhecível o rosto desfigurado, magra e abatida vendendo o seu corpo pelo valor da pedra. Já era! A droga já havia roubado a sua dignidade completamente. O dia já estava amanhecendo e a claridade vinha dando vida aos becos mórbidos e degradados da favela. Algumas pessoas saindo para o trabalho, outras comprando pão na mercearia do seu João Américo, viciados jogados nos cantos, fugindo da luz como vampiros depois de voos noturnos. A luz dura do dia é como uma facada na alma que corta e sangra na consciência ou no pouco que restou dela, já me senti mais incomodado com a suposta lucidez dos outros, mas hoje vejo que estão tão embriagados como nós, embriaguez lúdica e desesperada. Estão todos embriagados

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pelo dinheiro, poder, luxo, fama e glória ou simplesmente pela mera possibilidade de ascender socialmente. Mas, no fim, quem vai julgar é Deus.

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Parte II Menina de morro

Magra, esguia e desconfiada metida numa saia simples estilo godê que se encaixa perfeitamente em suas curvas delicadas. Beleza rústica da cor do ébano que atravessa as ruazinhas de terra a passos largos. Quase sempre acompanhada de si mesma.

É do trabalho pra casa e de casa pro trabalho, nunca está de bobeira. Sai de manhã cedinho e volta quase à noitinha. Depois de um abraço amoroso no filho, fruto de um relacionamento com um rapaz do asfalto na adolescência volta ao seu mundo ermo.

Nascida e criada numa comunidade pobre da zona norte do Rio de Janeiro, onde raramente as meninas não engravidam precocemente. Cismou em não fugir a regra. É quase como uma identidade ou marca registrada. É como se buscassem afirmar a feminilidade ou fecundidade dando à luz. Vivendo num mundo onde quase nada é seu, ter um filho é como um troféu conquistado a duras penas. O preço é alto. São noites e mais noites de sono perdidas, festas, baladas e paqueras numa fase da vida em que isso é tudo o que

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importa. Ela, assim como muitas meninas da comunidade, carrega no colo o fruto das várias campanhas de branqueamento promovido pelos meios de comunicação com suas infindáveis novelas de gosto duvidoso e caráter dominador que nada mais são do que uma tentativa desesperada de reafirmar a já combalida hegemonia branca diante da mediocridade de negros e negras iludidos com esse mundinho de faz de conta. O cara meteu o pé não assumiu, mas ela tirou de letra. Fazer o quê, né? Ela é negra. Ontem a flagrei distraída no ponto de Moto Taxi, com uma calça Jeans justa que enfatizava as curvas do seu corpo, camisa do flamengo, seu time de coração. Nada combinava, mas não tinha que combinar e, é assim que é... Mantinha aquele jeito irresistível de menina travessa que não se preocupa muito com a aparência, mas, que ainda assim, é extremamente sensual. Como pode? Mulheres e mais mulheres buscando a perfeição física nas academias ou em centros estéticos de ultima geração e uma negrinha que mal tem tempo para cuidar de si mesmo desfilar o seu corpo de odalisca pelas ruas empoeiradas de uma favela.

Gostaria de vê-la de black, trança nagô, dreadlock ou com algum visual mais despojado, desses da moda. Mas a sua timidez não deixa. O cabelo alisado e penteado de maneira a deixar uma franja, os olhos puxados como de uma índia e a pele marcada pelas travessuras da infância quando pulava amarelinha, jogava queimada, subia e descia de árvores, batia, apanhava, chorava, gritava e sorria. Olhando assim para o passado posso até vê-la inquieta subindo e descendo as escadarias do morro apressada num eterno ir e vir para lugar nenhum. Gabriela ou simplesmente Gaby é assim que gosta de ser chamada pelos amigos. A verdade é que essa beleza nada ortodoxa pode até nunca

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figurar entre os fetiches masculinos, mas tem todo um glamour que a multidão cega pelos ícones cuidadosamente fabricados pelas indústrias de cosméticos, entretenimento e afins não consegue enxergar. Visitei o perfil dela num site de relacionamentos dia desses. Flagras de momentos de intimidade com a família, as brincadeiras, a casa simples, o jeito único de ser me deram a exata medida de como a vida moderna nos grandes centros urbanos tem estreitado os nossos horizontes. O banho de mangueira, o riso despreocupado, as crianças brincando as brincadeiras da minha infância. Até parece que o tempo parou lá no alto do morro.

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O último camisa 10

O domingo amanheceu com sol e com poucas nuvens no céu. Logo de manhã, o sol parecia queimar a pele. Seus raios amarelados tocavam o corpo como um balde de água quente. O ardor era quase que instantâneo. Pouco vento, baixa umidade. Para os mais velhos era uma tortura, até pela pouca resistência. As crianças também sofriam, mas pareciam se incomodar menos. Em alguns bairros do subúrbio parecia que o calor era ainda maior talvez pela poluição ou pelo pouco vento que corria naquela hora do dia.

Aquele calor todo não era muito comum mesmo no Rio de Janeiro uma cidade conhecida por seus 40 graus. A natureza começava a dar sinais claros de que este é um momento crucial para a humanidade. As chuvas, o sol, a temperatura, o ar não eram mais os mesmos. A maioria absoluta da população ainda nem se dera conta de que era necessário repensar toda uma sociedade de consumo irresponsável e predatório.

Entretanto no campinho de terra de uma comunidade a beira de um rio poluído, cheio de garrafas, pneus, plástico, sacos de lixo, carcaça de animais e toda sorte de objetos que faziam com que aquele córrego mais parecesse um esgoto a céu aberto, bem ali a molecada, em sua maioria nascida e criada naquelas condições, parecia não sentir nada. Corriam, gritavam, pulavam e faziam muito barulho na ânsia por tocar aquele pedaço de couro velho descolorado pelo uso constante, que eles

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chamavam de bola. No meio deles, um menininho correndo descalço,

naquele palco de terra batida, de short e sem camisa, deixando a barriga de vermes à mostra. O mesmo sonho, a mesma vontade de pegar na bola e driblar todos até parar no gol e sair correndo para a torcida em êxtase. Cada passe, cada toque, cada drible era como se estivesse num campo em algum lugar da Europa, jogando ao lado dos seus ídolos.

A pele escura soada reluzia ao sol de meio dia que a cada minuto se tornava mais quente. A vontade de brilhar nos gramados impecáveis e bem drenados dos grandes clubes, de ser aclamado pela torcida depois de uma grande jogada. Esse sonho fazia aqueles garotos ficarem horas a fio correndo feito loucos atrás da bola. A ginga era nata, o jeito, o olhar, os toques, os dribles desconcertantes, a habilidade em conduzir aquele pedaço de couro velho deixava claro que eles haviam nascidos uns para o outro.

O verão se estendeu ao longo dos dias, semanas e meses da estação, e a cidade do Rio de Janeiro brilhava de costa a costa As pipas coloriam o céu nos fins de tarde, os cachorros latiam, os passarinhos cantavam ou pranteavam dentro de uma gaiola, os carrinhos de sorvetes passavam a cada meia hora chamando a molecada.

Os adultos iam e vinham de suas jornadas cansativas. Gente que voltava da praia, gente que vinha da casa de parentes ou de algum churrasco homens bêbados cambaleando ou falando alto na porta de um botequim, garotas púberes com shorts curtíssimos passeando pela comunidade num eterno ir e vir, caminhando rapidamente como quem vai para algum lugar, muito embora não fossem para lugar algum. Carros com o som ligado, no último volume, tocando funk e hip hop Jovens segurando armas de

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fogo de última geração, como se fosse um brinquedo de infância, e o menino seguia no seu incansável desejo pela bola.

_ Betinho, toca aqui, estou livre!!! _ Márcio, ah eu, ah eu, ah eu!!! _ É minha!!! É minha!!! É minha!!! _ Caracas!!! _ Pow Zumbi. _ Não deu, foi mal!!! Todos os dias de sol e, às vezes, até em baixo de

chuva. Quando ela corria enlameada pelo campo igualmente barrento, batia na pele e deixava marcas ardidas, tocava o chão e ganhava uma velocidade impressionante, em meio às pedras, buracos e poças d'água ela reinava absoluta. Era mais pesada, mais hostil, mais bruta, quase indomável, mas, era a mesma de sempre que vinha ao seu encontro, como uma amante fiel.

Tocava-lhe o peito e deslizava bem devagarzinho até o chão, beijava seus pés descalços e corria pelo barro úmido passando por entre as pernas dos adversários... Flutuava feito pluma depois de um toque sutil por cima de um zagueiro desavisado, viajava de um extremo ao outro do campo cortando o vento chuvoso para se acomodar bem diante dos seus olhos e depois estufar uma rede imaginária.

Não havia como negar ele sabia tratá-la como poucos, talvez por isso fossem tão íntimos.

Dias, semanas, meses, estações e anos se vão num piscar de olhos e o menininho, outrora franzino, vai ganhando corpo e crescendo em talento. A ginga ainda é a mesma, a habilidade, o toque, o requinte a elegância, o jeito e o fascínio não mudaram, apenas o seu corpo havia ganhado

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outros recursos. Era mais veloz, mais forte, mais hábil e até mais sutil.

E à medida que praticava, ia se destacando na multidão de sonhadores anônimos que diariamente chegavam aos clubes em busca de fama, dinheiro e glória.

Mas ele, ah! Ele não. Ele era apenas um romântico dos gramados, um drible bem feito tinha a mesma importância de um gol aos seus olhos. Um lançamento milimétrico que deixava o companheiro cara a cara com o goleiro o fazia feliz. Bater uma falta entre os dois pontos das traves. Ouvir a torcida gritar: ‘Uhhhhhhh!!!’, cada vez que fazia uma jogada dos sonhos, isso o movia. Driblar quatro, cinco adversários ao mesmo tempo e rasgar a defesa num voo rasante e perpendicular até entrar com bola e tudo sem tomar conhecimento do marcador. Essas e outras imagens povoavam seus sonhos de menino. E a bola, era a sua cúmplice maior, ela fazia o que ele imaginava. Fazia curvas que desafiavam a lei da física e da gravidade. Parecia parar no ar a fim de esperá-lo.

Deslizava, corria, rodopiava, parava, subia, descia e viajava para acabar no fundo de uma rede qualquer.

A sua rápida ascensão a titular do time que defendia muito tinha a ver com o seu padrinho e conselheiro no futebol, um ex-jogador que já atuara em vários clubes importantes no Brasil. O primeiro a ver talento num moleque melequento que nunca tinha pisado num campo gramado, mas que conhecia como ninguém os atalhos para o gol. Ele era um visionário sonhador, muito questionado por acreditar mais no talento do que na insistência desmedida, que segundo ele podia até formar jogadores, mas nunca um craque.

Todos os dias à tardinha, ele saia do Condomínio onde morava e ia até o campinho de terra da comunidade pra

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ver o menino jogar. Ficava fascinado com o que via. Um dia que não se conteve, chamou o menino e lhe prometeu que iria levá-lo para um clube. Naquela noite, Zumbi nem dormiu e ficou a noite inteira se vendo com a camisa 10 do Flamengo, seu time de coração.

E foi num clima não muito amistoso o seu reencontro com sua eterna companheira agora mais bonita, colorida e macia. Diante de um estádio completamente entupido de gente ele a vê parada no centro do campo e percebe que nada mudara e que apesar do ambiente ambos ainda eram os mesmos. E ela não passava de uma menina de dores e paixões que já fora rainha ao lado do rei, fora idolatrada por estrelas de primeira grandeza, amada, paparicada, odiada, desejada, pisada, violentada e rejeitada por muitos amantes, mas reinava absoluta naquele coração de moleque que batia acelerado ao vê-la correndo em sua direção.

Naquela tarde, o maracanã brilhava intensamente, era dia de festa para alguns e tristeza para outros. O campeonato chegara ao fim e aquela era a decisão.

Zumbi escalado para começar jogando sente a pressão da torcida absurdamente gigante. Aquele era o momento que sonhara, aquele era o dia que esperara por anos a fio.

O jogo começa e logo nos primeiros toques ela o vê e o reconhece quase que de imediato. Minutos passam e o menino ainda não acreditando no que estava acontecendo corre desnorteado pelo campo. Via tudo em flashes, nada era claro, nada era nítido, tudo eram vultos. Cada contato com sua amada era meramente formal. O estresse era alto, o medo de errar era como um fardo de toneladas. Mas ela insistia em procurá-lo no meio daqueles aficionados, insistia em estar ao seu lado e buscar sua presença. Termina o primeiro tempo e ele volta para o campo no

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segundo tempo mais motivado. O jogo era truncado e corrido, quase não sobrava espaço para as travessuras do garoto ainda intimidado pelos companheiros famosos e a torcida. Até que sua amiga, amante e companheira para na sua frente com apenas o zagueiro e o goleiro entre eles e o gol.

Um drible, um efeito, uma gingada, um toque sutil no melhor estilo ‘‘menino da favela’’ deixa o marcador sem ação. No ato seguinte, o que se via era a explosão da torcida em êxtase completo.

Minutos se passam e num segundo momento um voleio decreta o placar. A partida é reiniciada e o jogo segue truculento, até que num lance isolado no meio de campo, um carrinho por traz silencioso, um estalo, a dor repentina, um grito, o choro inconsolado sentencia. O fim de uma carreira ainda no início. Ele nunca mais conseguiu voltar a jogar o seu futebol. Até hoje, quando ele passa pelos mais velhos daquela comunidade com um fuzil atravessado nos ombros e rodeado de soldados, eles comentam:

_ Aquele que vai ali foi o último grande camisa 10 que vimos jogar.

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Pelada de fim de semana

A semana passou como uma tempestade de verão, chuva torrencial, vento soprando rijo, nuvens carregadas, trovões e relâmpagos para culminar num lindo raiar de dia. Assim, chegou o domingo de sol com um vento gostoso soprando logo pela manhã, céu sem nuvens e um sol morno, mas agradável. Ao acordar ainda de ressaca e correr para o banheiro depois de quase ter mijado na cama, Ruy, ainda sonolento, começa a arrumar sua mochila para a pelada de fim de semana. Pega a chuteira, caneleira, meião, shorts e camisa joga-os de qualquer jeito dentro da mochila e sai apressado rumo ao campo de grama sintética próximo a sua casa. Chega ao local e todo mundo já está se aquecendo. Ele se arruma rápido pra não ficar de fora da primeira turma, mas não tem jeito, o time já estava escolhido. Ele sabia que havia a panela do Maurão, e o cara era um pé no saco, marrento, ruim de bola, arrogante e mal-humorado, e não obstante todos pareciam temê-lo. Ninguém em sã consciência se arriscava a desafiá-lo a não ser o coitado do Zequinha que apanhou que nem cachorro naquele dia, e depois disso evitava estar no mesmo ambiente que o Maurão. Nem havia ido ao futebol mais. Depois de dez minutos de jogo, o time do chato do Maurão perde, e Ruy, por não ter gente suficiente para formar o time de fora, tem que escolher alguém para sair. Por um ato instintivo, resolve tirar o Maurão, que imediatamente protesta:

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_ Qual foi ô macaco, por que me escolheu e não ao Marquinho ou ao Rosa? Você tem alguma coisa contra mim? O bigode do Maurão era esdrúxulo e quando ele ficava nervoso soltava espuma como um touro bravo, seus olhos faiscavam e seus punhos serravam quase que instantaneamente.

_ Não. É que eu tinha que escolher alguém. Ser chamado de macaco era ultrajante, mas por incrível que pareça o otário do Maurão era mestiço e como muitas pessoas que tinham esse tom de pele ele também se julgava branco caucasiano, apesar de seu pai ser negro. Olhou-o com olhar de ódio e se lembrou do seu Padrinho que sempre dizia que tem um monte de negão safado que coloca filho no mundo e não educa. Aí, nem passa uma geração e os filhos do monstrinho já estão discriminando outros negros, como se fossem herdeiros legítimos de Adolph Hitler. Todos ficaram calados olhando com receio para o cara que tirou o colete resignado e foi se sentar. A bola rola novamente e o time do Ruy parecia não se acertar de jeito nenhum. Ninguém se entendia naquele campo e a coisa piorou quando o Marcio, do time adversário, se machucou e deu o seu lugar para o Maurão. O cara entrou na intenção do Ruy que o havia tirado do time, mas o pior de tudo não era isso, é que ninguém queria marcar o cara, e todo mundo rifava a bola meio que querendo se livrar dela o mais rápido possível. Nessas idas e vindas, a bola parou no pé do Ruy e logo de cara quem vinha em sua direção bufando, soltado fumaça e espuma pela boca? Era o Maurão. Ruy, um jovem franzino que até tinha certa habilidade com a bola, naquela hora tremeu na base e em frações de segundos passou um mundo em sua cabeça: a perna quebrada, o braço, o pescoço,

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a costela ou qualquer outra parte do corpo. Viu-se no hospital com as pernas engessadas e com uma enfermeira rude ao seu lado.

_ Tô fodido _ pensou por um instante. No desespero fechou os olhos e deu um toquinho na bola na esperança de sair daquela situação ileso. Só abriu quando sentiu a pancada no joelho. Voou como uma pena e caiu do lado de fora do campo. Até pensou em reagir, mas o medo falou mais alto. Levantou-se mancando e xingando baixinho:

_ Filho da puta, grosso, idiota. O Maurão saiu satisfeito, com um sorriso sínico estampado no rosto. O cara era grosso como uma porteira, mas agia como se fosse o próprio Ronaldinho Gaúcho. Estava sempre tentando fazer jogadas de efeito que nunca resultavam num lance de gol, mas a cada tentativa gabava-se:

_Tu viu, cara? Porra, botei no ponto futuro e o mané nem entendeu a jogada. Que lance! _ Falava orgulhoso da suposta habilidade.

_ Nossa! Viu, Mané? Dei de três dedos, pena que a bola não entrou.

Falava como um craque, e todo mundo reagia como se o cara realmente tivesse algum talento. Mesmo quando dava canelada, o cara se gabava:

_ Caramba Mané, se eu acerto esse veleio era gol. A bola havia pegado na canela do cara de pau. Ruy odiava aquele cara e sua vontade era a de lhe dar uma porrada que o deixasse um mês mancando.

Depois de perder a partida e ter descansando do lado de fora Ruy voltou disposto a não perder mais para o Maurão. Gritou, agitou, deu passes, driblou, gesticulou, mas não adiantava a galera continuava com medo do cara.

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Quando tinha uma divida, todo mundo tirava o pé. Aí foi a vez de ele entrar numa divida com o cara que já esperava que ele tirasse o pé também, mas Ruy veio por cima e acertou em cheio o tornozelo dele que gritou na hora. Quando o gigante foi ao chão gritando de dor todo mundo ficou aterrorizado parecia que o mundo ia acabar. Ruy então nem reagiu, a perna afrouxou no mesmo instante. Era um misto de medo e pavor, andava de um lado pro outro não sabia se corria, chorava ou socorria o cara. No fim, o medo falou mais alto e Ruy saiu voado para o chuveiro enquanto o grosseirão se contorcia no gramado, tomou banho rapidinho, pegou suas coisas e foi direto pra casa. Nem viu o Maurão se levantar e voltar a jogar futebol normalmente. Depois daquele dia Ruy resolveu jogar futebol de botão, era mais seguro.

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Um dia de sonho

O momento estava chegando. O coração apertado batia cada vez mais forte. Em pé e ao lado de outras centenas de anônimas, igualmente ansiosas, ela espera olhando para a arquibancada agitada. Ao longe tenta avistar seus parentes, amigos, filhos, netos e uma gama de pessoas da comunidade que foram torcer e apoiar, apesar de só terem conseguido ingressos para o setor treze, já no fim da passarela. Os fogos anunciam que a hora está chegando, a perna afrouxa, mas ela segura a onda inspirando e soltando todo o ar acumulado nos pulmões. Levanta os olhos e vê sua filha e discípula de cabeça baixa, parecendo estar fazendo uma oração. O cavaquinho chora e ela sente um arrepio correndo pelo corpo, aquele friozinho na barriga ainda existia mesmo depois de tantos carnavais. O instante seguinte é marcado pela entrada do repique que acelera ainda mais as batidas do coração. Aquela era a deixa. A escola estava pronta pra entrar na avenida. O puxador chama no microfone:

_ Alô comunidade! Chegou a hora, hein! E o surdo, o bumbo, a caixa, o tamborim, o Agogô e a

cuíca vêm logo em seguida chamando o povo pra sambar. Aquele era o momento pelo qual passara o ano inteiro esperando e aquela altura a mente já nem comandava mais o corpo que parecia mover-se sozinho guiado única e exclusivamente pela emoção, ritmo e paixão.

Uma a uma as alas iam se preparando para entrar na avenida e representar a escola com raça, sangue, suor e lágrimas. Os carros alegóricos

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colossais repletos de celebridades vinham abrindo espaço no meio daquele mar de gente. Atores, modelos, putas, artistas, atletas, homossexuais todos se exibindo para as câmeras de televisão em busca de mais um segundinho de fama. Nos camarotes Vips, soberba, luxo, ostentação, bandidos com sotaque italiano, francês, inglês e americano, policiais, traficantes influentes, homens de negócio, políticos, contraventores, prostitutas de luxo, mafiosos, socialites, atrizes, playboys. Fama e dinheiro contrastando com a origem humilde da maior parte dos integrantes das agremiações.

Alheia a tudo isso, aquela senhora de sessenta anos, sendo quarenta e cinco deles dedicados ao samba, mostra a que veio. Vestida de baiana ela roda, dá uma volta e roda de novo com a maestria de quem sabe o que está fazendo. Ela dá seu show particular na avenida. Não é fotografada, não é filmada, não é vista não é lembrada nem reverenciada, mas mesmo assim ela não perde a majestade nem a consciência de que esta dando a sua contribuição. Com o samba da escola do coração na ponta da língua, ela canta com o entusiasmo de uma adolescente, àquela hora, já com pés descalços, pisando o chão duro, da Marquês de Sapucaí, como quem pisa num tapete vermelho.

Os repórteres e os fotógrafos com suas lentes viciadas que só enxergam os seus iguais aparecem clicando desesperadamente as mesmas figuras de sempre. Até parece algo combinado, mas não, são os valores plantados e regados dia a dia por 500 longos anos que permanecem intocados no inconsciente de cada um deles e de uma boa parcela da população brasileira que guia seus aparatos tecnológicos de última geração rumo à mediocridade.

Apesar da tentativa desesperada de expor a população pobre, majoritariamente negra, ao ridículo de ser mero

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coadjuvante na sua própria festa, todos os anos pessoas como a D. Dinha indiferentes ao glamour e aos milhares de dólares investidos anualmente no carnaval, mostram que esta luta que não vem de agora ainda terá muitos rounds.

Depois de atravessar toda a Sapucaí sambando e cantando o corpo esguio e ainda forte, D. Dinha começa a dar sinais de cansaço. Ela, ainda tomada de emoção por ter visto a sua escola fazer um desfile impecável, muito embora saiba que não irá nem desfilar no sábado, no desfile das campeãs, pois conhece bem as escolas que são as preferidas dos jurados apesar disso, ela se sente satisfeita, pura e simplesmente por ter participado do melhor desfile já realizado por sua escola de samba.

Um a um os foliões iam se dispersando. Uns com a fantasia nos ombros rumo ao ponto de ônibus que saiam para a Baixada Fluminense, Zona Norte, Zona Oeste, Niterói, São Gonçalo, Campo Grande, Bangu, Queimados, Austin, Santa Cruz e periferias da cidade, outros empurravam carros alegóricos ou o que sobrou deles de volta a concentração. O sol já estava raiando quando D. Dinha chega ao pé do Morro, com os pés cheio de bolhas e sangrando, assim começa a jornada até o alto, a subida é íngreme e a idade já não ajuda mais. O cenário é épico, como aqueles imortalizados nas poesias de Cartola, Bezerra da Silva, Chico Buarque e tantos outros. Embora o corpo reclame passo a passo ela começa a subida enquanto os primeiros raios de sol tocam a sua face já repleta de suor. Um olhar para o horizonte seguido de um pensamento encorajador lhe dá ânimo. Ainda falta um bom pedaço para caminhar e ela o faz até chegar ao fim e entrar em seu barraco ainda bagunçado, como deixara ao sair para o desfile. Ao se jogar na cama como quem se joga num rio de águas cristalinas o corpo

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desfalece quase que imediatamente. Para ela terminava ali mais um carnaval, mais um dia de sonho.

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Parte III O cotista O ano já estava chegando ao fim, mas a luta estava apenas começando. Acordou às sete e meia da manhã depois de ter ido dormir às quatro da madrugada. Levantou-se a tempo de ver sua mãe sair para o trabalho e pedir pra ele não ficar de bobeira na rua, pois a favela está perigosa. Fez sua higiene diária e voltou para os livros. Tinha que estudar para o vestibular. Se passasse poderia dar uma vida melhor para sua mãe que o criara sozinha trabalhando em casa de família e fazendo faxinas nos fins de semana. Por sempre ter estudado em escolas pública sabia que as suas chances eram mínimas mesmo com as cotas. Mas tinha que se superar, essa era a oportunidade de mudar de vida. Sentou-se à mesa na sala pequenina e pôs-se a ler, sonhando com um futuro melhor. A sua comunidade era um barril de pólvora e sempre havia tiroteios e mortes. Viveu a vida inteira ali. Viu muitos amigos serem seduzidos pelo tráfico e o crime. Ele próprio andou balançado a esse respeito, só não levou a ideia adiante devido aos inúmeros conselhos dado por sua mãe que era a sua heroína. Ela foi fundamental na decisão dele de se afastar daquelas amizades e começar a se dedicar aos livros. Não foi fácil deixar de sair nos fins de semana, de ficar até mais tarde

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na esquina com os amigos e paquerar as gatinhas que se amontoavam num barzinho na entrada da favela. O sacrifício deu resultado e estava concluindo o ensino médio, afinal. Se entrasse na universidade seria o primeiro membro da família a fazer isso, em séculos. Estava feliz e ansioso, mas primeiro tinha que passar na prova. Precisava vencer o último obstáculo para só então rumar para o futuro. Os dias voavam e parecia que aquelas matérias nunca entrariam em sua cabeça. Decidiu buscar ajuda, matriculou-se num pré-vestibular comunitário e viu as coisas mudarem. Viu que não era o único naquela situação desesperadora. Com o apoio dos novos amigos e com muita dedicação, conseguiu se sentir mais seguro para prestar o vestibular. Então, chegou o dia da prova. Acordou motivado deu um beijo em sua mãe que havia acordado mais cedo para fazer o café que ele só beliscou em virtude da ansiedade. Pegou suas coisas e saiu correndo para o ponto do ônibus que o levaria até o local da prova. Chegou ao lugar antes de todo mundo, olhou o prédio, a arquitetura, o jardim na entrada, o estacionamento e se imaginou passando por ali todos os dias. _ “Putz! Vou estudar aqui se eu passar. _ Maneiro, ai!”

Já na sala recebeu o seu pedaço de papel. Frio, branco e cruel. Olhou para as pessoas a sua volta e viu os semblantes apreensivos que se debruçavam sobre as carteiras. Sem saber por que se sentiu importante por estar ali. Talvez por ser uma exceção na sua comunidade, assim como os outros dois negros que entraram com ele para fazer aquela prova. Olhou novamente para as pessoas a tua volta e viu os rostos brancos dos jovens de classe média que se multiplicavam pela sala. Por um momento se sentiu intimidado, sabia que todos eles haviam estudado em escolas particulares, porem por um

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motivo quase ingênuo se reanimou acreditando que depois de tanto sofrimento, sacrifício e adversidade a sua história teria que ter um final feliz. Estava equivocado, não é bem assim que a banda toca, mas a vontade era tanta que ele nem parou para analisar sua aspiração ingênua. Baixou a cabeça e caiu dentro da prova. Sentiu medo, calafrios e transpirou como nunca. Fez o seu melhor e saiu da sala realizado.

Chegou em casa e viu tua mãe apreensiva lhe perguntando: _ “Como foi à prova filho?” Olhou-a nos olhos e por um instante se sentiu receoso achava que tinha ido bem, mas não tinha certeza. Abraçou-a com todo amor do mundo como a confortá-la. Sabia que ela não havia tido a oportunidade de estudar que mal sabia escrever o próprio nome e que ver o seu filho numa universidade era a realização de um sonho, mas era necessário esperar pra ver o resultado. Foi para a segunda fase e garantiu a sua passagem para o tão sonhado mundo universitário. O fim de semana foi de festa na sua comunidade. Na segunda-feira, ao acordar pela manhã e ligar a TV, sentiu um calafrio correr por todo o seu corpo. Um jovem de classe média que não havia garantido a vaga entrou na justiça para impregnar a prova alegando que o sistema de cotas era inconstitucional. O chão saiu debaixo de seus pés. Sempre ouviu que o Brasil é um país democrático e que aqui não havia racismo. Acreditava nisso e nunca julgava ser racismo quando as senhoras o viam na rua e atravessavam à calçada; quando a polícia o parava pedindo pra ele não correr e perguntando: _ Vai aonde? Como se a constituição não lhe garantisse o direito de ir e vir; quando entrava num ônibus e as pessoas limpavam a garganta, tossiam e escondiam bolsas e celulares ao vê-lo; quando não era admitido numa empresa mesmo quando tinha o perfil para o cargo pretendido. Todavia era muito estranho que sempre

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eram os brancos de classe média que protestavam contra qualquer medida do governo que beneficiasse a população negra. Era no mínimo estranho o fato de eles sempre exaltarem a luta contra a ditadura e simplesmente ignorarem em seus discursos éticos a escravidão negreira e as várias lutas travadas pelos descendentes de povos que foram escravizados. Era bizarro o fato de eles só lembrarem que o Brasil é um país mestiço em momentos como estes. Provavelmente era só uma infeliz coincidência, contudo o silêncio em torno desses assuntos era no mínimo suspeito. Ficou ali parado olhando para a TV imaginando o desfecho da história. _Ouviu os discursos patéticos de alguns políticos a respeito do assunto, alegando que as cotas são um privilégio e convenientemente, ignorando fatos históricos, como um nazista que nega o holocausto. Viu a maneira como a mídia sutilmente se colocava contra, dando mais espaço para os especialistas de ocasião que apareciam dizendo ter medo disso ou daquilo, mas sempre evitando a comparação com os Estados Unidos, berço do sistema de cotas onde a população negra não passa de 13% e que já até haviam conseguido eleger um presidente negro, cujo próprio pai foi cotista, ao passo que na tão celebrada democracia racial brasileira os números soam como ofensa. Imaginou a decepção da sua mãe quando recebesse a notícia, e se sentiu frustrado. Seria melhor não dizer nada. Andou de um lado pro outro, falou sozinho, gesticulou, xingou baixinho: “Filhos da Puta”. E tomou uma decisão. Foi até o armário pegou uma cartolina branca, sua arma e depois saiu revoltado para frente da universidade num ato desesperado e solitário. Lá descarregou todo o pente naquele pedaço de papel. Quando o reitor daquela universidade chegou pela manhã recebeu a notícia: _“Senhor tem um jovem negro com um cartaz lá fora

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protestando contra a anulação das cotas e aos poucos outros jovens o estão seguindo.” O reitor foi até a janela e deu uma espiada por entre as cortinas, de longe se lia no cartaz: “Nós negros não vamos ficar calados enquanto os brancos decidem o nosso futuro”.

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Boemia Selvagem

A madrugada cai em um fino sereno sob os becos da Lapa antiga, rua abarrotada de gente, álcool, música alta, drogas, sonhos e militância. As palavras voam aleatoriamente pelas mentes entorpecidas. Momentos de prazer, deslumbramento, desolação e abandono sob o mesmo teto de estrelas.

Na Joaquim Silva, reduto da boemia local, mais um jovem suburbano começava na vida noturna em alto estilo: Cerveja, whisky, maconha, mulher e dinheiro o levava a um mundo de prazer extremo. Sonhos, valores, amigos, familiares tudo era esquecido diante de uma carreira de cocaína posta estrategicamente na frente dos seus olhos. O nariz aspira a droga com a mesma facilidade com que sorve o ar passado da noite. Ao seu lado, algumas pessoas igualmente perdidas buscando os mesmos prazeres, as mesmas sensações e sentimentos. Encontros, desencontros, amores, brigas, fantasias, prazeres, dores, alegrias e tristezas marcavam as noites quentes da Lapa. A noite não começava ali e nem terminaria naquele lugar com cara de gueto, mas cheio de gente da Zona Sul do Rio de Janeiro, da Barra e de outras partes do planeta. As muitas pessoas que viviam em baixo dos arcos, de alguma forma, compartilhavam com os transeuntes, hippies, vendedores ambulantes, viciados, universitários, “hip hoppers”, bêbados e menores de rua, aquele pedaço de chão. Cada um com uma história triste para contar, história de abandono,

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mágoa, exploração sexual, medo, fuga, drogas, falta de oportunidade, racismo, álcool, assassinato e desespero. A madrugada produz inúmeras vítimas, pessoas que não conheciam os códigos e ultrapassavam os limites, não se adequavam, falavam demais, bebiam demais, cheiravam demais, sonhavam demais e cobiçava demais. Essas misturas dependendo do dia eram sentença de morte.

Muitos daqueles jovens universitários com camisa do Che Guevara, bolsas transadas no corpo e visual alternativo que se amontoavam próximos aos Arcos, em rodinhas restritas de amigos para beber, se drogar e militar. Eram filhos de ex-militantes da época da ditadura que viram algumas de suas reivindicações serem atendidas no período pós-ditadura e que agora representam a classe emergente, quase burguesa que celebra a democracia à moda da casa, a liberdade de expressão de alguns grupos sociais, mas fecham os olhos para a favela. Fecham os olhos para a luta ancestral de quase 500 anos dos descendentes de povos escravizados como se a ditadura tivesse sido muito pior que a escravidão negreira. Eu também era militante e mantinha uma relação amistosa com eles, mas, havia muitos receios de ambas as partes, até pela questão racial mal resolvida no Brasil. Não tocar num assunto não significava que ele não existia. Em uma daquelas noites eu saboreava um copo de cerveja ao lado de uma linda jovem com um corpo que me lembrava uma passista de escola de samba, cabelos transados, olhos negros, pele mulata e um jeito irresistível de menina. A Sarah tinha uma inteligência rara, mas por sua história de vida também tinha sérios problemas emocionais. A mãe havia sumido ainda quando era criança, e ela vivia com seus pais e irmãos adotivos. Era uma história confusa, e quando ela contava

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parecia que buscava o sentimento de ternura de quem estava ouvindo. E por ser uma jovem extremamente atraente sempre havia algum marmanjo disposto a ouvir sua história triste e eu não era diferente, claro. Então, me convidaram para participar das discussões que giravam em torno de cotas raciais. Eu sabia que a minha opinião divergia da opinião da maioria presente, não porque eu fosse a favor ou contra, mas porque se esperava que eu fosse como todos ali, adaptados aos códigos de conduta, as regras vigentes. Alguém em algum lugar se equivocara a meu respeito, eu não era do meio, não nutria aquele desejo ingênuo ou quase covarde do não embate. Logo, quando expunha meus pensamentos invariavelmente causava constrangimento. Talvez por dizer o que não deveria jamais ser dito, talvez por não aceitar o que já era consenso. Era algo quase mórbido, mas já estava tudo tacitamente combinado:

_Vocês negros não falam de racismo, Preconceito, xenofobia, genocídio, tráfico negreiro, migração forçada, abolição feita à moda caralho, imigrantes estrangeiros recebendo incentivo fiscal e terras, ao passo que famílias inteiras eram abandonadas à própria sorte, e outros fatores igualmente determinantes, e nós brancos deixamos vocês brincarem de revolucionários, certo?

Ok? Então, tá tudo certo! E lá ia mais um neguinho com a camisa do Che Guevara estampada no peito e um sorriso idiota de volta pra favela. Pra mim, em particular, diluir a luta milenar de um povo na questão de classe é no mínimo ultrajante, mas o Brasil é um celeiro de ideias antagônicas mesmo, então, tudo é permitido inclusive se apropriar da imagem de um revolucionário legítimo e abdicar de todo o resto.

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Invariavelmente eu via alguns universitários negros capachos de ideias revolucionárias anódinas se colocarem na posição de exemplo tipo como: “se eu consegui todos podem”. Discurso simplista e perigoso para não dizer vendido. Alguém falou: Nós somos contra as cotas raciais porque acreditamos que discriminar, seja positiva ou negativamente, desagrega e separa.

O foda nisso tudo é que sempre tem um otário de pele preta e mente “branca” pra balançar a cabeça de maneira positiva a qualquer frase dita por um playboy. E aquele cara falou esperando que eu fosse assim, mas como eu não concordei, ele indagou:

O que você acha? Fitei-o por alguns segundos e a minha vontade real era mandá-lo ir se foder. Até diria isso mesmo em outros tempos, mas o bom senso falou mais alto, então eu disse:

No Brasil sempre existiu contas, mas a diferença é que as cotas sempre foram para os brancos. Disse lembrando-me de uma entrevista da Sueli Carneiro a Revista Democracia Viva. Uma publicação antiga. Não nego que plagiei aquilo, entretanto não acho condenável de todo pois tudo que o carinha tava dizendo era a reprodução fiel do que lera em algum livro patético de esquerda à moda brasileira ou até mesmo de direita. Porém o que mais me intrigava é que o discurso caridoso e solicito quase paternal era praxe no discurso de quem era parte do sistema e falava de cima, como um Lorde caridoso, gentil e amável. É aquele carinha branco com barba por fazer e olhos claros, falando como se estivesse numa novela de época de uma emissora qualquer. E, parecia que

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eles realmente acreditavam que aquela atitude estava contribuindo com alguma causa que não era a de manter os privilégios sociais adquiridos anteriormente por seus pais, avós ou tataravós.

Os debates eram acalorados e raramente se respeitava a fala do outro, tentava-se o tempo todo ganhar no grito.

Desencanei... E, em vez de dar continuidade a discussão, pedi mais uma cerveja para a moça no balcão que me fitava desconfiada. Minha trança nagô chamava a atenção, mas acho que não era isso que despertava a desconfiança daquela jovem senhora. Podia ser o meu discurso, o tom meio raivoso das palavras ou sei lá... Cogitei por último a cor da pele, mas não deve ser não eu é que era meio neurótico mesmo.

Naquele dia estava esperando um parceiro pra desenrolar uma parada, mas o cara só vivia atrasado.

_ Pow!! O Ras é foda. _disse para Sarah levando um copo de cerveja a boca.

_ Aonde ele foi? _ Sei lá Sarah! Esse cara é maluco. _ É mesmo, ele não bate bem da bola não _ retrucou

ela com um sorriso largo. _É! _resmunguei sem dar muita atenção a sua

observação. O Ras era uma figura histórica local. Embora seu

tempo de glória já houvesse passado ele resistia bravamente aos novos tempos. O cara mantinha longas tranças dreadlook e um estilo bem casual. Capoeirista baiano que viera para o Rio em busca de melhores dias. Não encontrou o que esperava e acabou se envolvendo com a malandragem local. Agora só queria viver sua vida tranquilamente já que a malandragem mudara, não era mais como nos velhos tempos.

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O cara do local agora era o Lú, negro forte, alto e bom de onda. O cara era um entusiasta do hip hop e parecia um gangsta', no sentido literal da palavra. Sempre rodeado de mulheres gostosas, buchas, baba ovos e, é claro, viciados de toda ordem. Ah, aquela malandragem da lendária Madame Satã... Época em que ser um cara rápido com as pernas podia fazer a diferença entre a vida e a morte fora enterrada com ela. Chegou um tempo que esse mundo já não me fascinava mais, o movimento estava perdendo a essência. Daqueles eventos feitos com a força do idealismo, cada um trazia algo. Os DJs traziam o equipamento, os MCs traziam as rimas politizadas, os B. Boys e B.Girls desafiavam a lei da física e do bom senso para fazer seus passes num chão totalmente irregular, os Grafiteiros iam sempre cuspindo subjetividades nos muros da cidade, os coletivos femininos e os inúmeros simpatizantes davam a exata medida da força do conjunto. Entretanto isso era utopia pura ninguém mais queria esse hip hop. O ser individual precisava prevalecer, as individualidades pediam passagem, os mais talentosos precisavam brilhar, os conscientes tinham que dominar sobre os inconscientes para impor o seu modo de vida. Não havia mais espaço para sonhadores e idealistas naquele movimento. Agora era a vez dos moderados assumirem as rédeas e tocarem o barco rumo à inevitável subordinação e seria assim pelo menos até onde fosse possível...

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Cantos de redenção

A madrugada já estava chegando ao fim quando João Pedro avistou a ruazinha que dava acesso à comunidade onde morava. Entrou na rua quando o sol despontava no horizonte iluminando lentamente aquele pedaço de chão esquecido pelo aparelho de estado. Havia poucas nuvens no céu que naquele instante mantinha um tom meio avermelhado devido à claridade do sol que se opunha ao crepúsculo e dava vida a cidade. Eram quase seis horas da manhã. Na paisagem de concreto e aço, decorada com carros velhos depenados por sobre a calçada igualmente destruída, lixo, entulho e mato apontavam a exata medida do descaso. Nos muros velhos e quebradiços desgastados pelo tempo, tentativas desesperadas de embelezar com pinturas enigmáticas, letras colossais, desenhos, riscos aleatórios que ganham vida nas mãos do anonimato, frases de efeito, contestação, rebeldia e toda sorte de ideias jamais percebidas pelo senso comum, contrastando com o caos e desordem.

Àquela hora do dia muita gente estava saindo para o trabalho, mesmo num domingo era grande o número de cidadãos que deixavam a família em casa para buscar o sustento. Aquilo era o reflexo de uma vida sem significado e valor, reflexo de uma existência quase despercebida. Nascer e morrer no seio de uma comunidade pobre era a única

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realidade possível para a maioria absoluta das pessoas daquele lugar. Andando de maneira sonolenta João atravessa aquele emaranhado de barracos, casas, cubículos, becos e vielas povoados pelos não adaptáveis, àqueles que à sociedade brasileira renegou e renega em favor de um ideal de brancura não mais possível.

Ao chegar a casa, o jovem entra sorrateiramente para não ser percebido. Havia dormido fora àquela noite, algo que sua mãe não tolerava. Porem ir ao baile da comunidade era a única opção de lazer possível para ele e a grande maioria dos seus amigos com idade oscilando entre 16 e 22 anos.

Deitou-se, ainda excitado, com a lembrança da noite passada viva na memória. A batida alucinante do tamborzão, os corpos suados, meninas dançando com sensualidade, decotes, saias curtíssimas, shorts minúsculos enfatizando as curvas, toques e olhares se cruzando simultaneamente, lábios que se tocam, mãos e pernas, desejo a flor da pele, sexo.

Tudo era tão estimulante, tão real, tão simples que parecia que aquela era a única razão para estar vivo. Não havia mais nada para além dos muros da quadra de baile.

Músicas altamente pornográficas, coreografias sexualmente estimulantes, jovens com os hormônios em ebulição, famílias em farrapos, falta de perspectiva, baixa estima, álcool, drogas lícitas e ilícitas aliadas à desinformação promovida pelos meios de comunicação tornavam aquele espaço no lugar perfeito para fabricação em massa de não cidadãos, aqueles que iriam engrossar as filas de desempregados ou preencher as vagas em aberto no tráfico de drogas.

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A segunda feira chega com a mesma velocidade com que vai embora deixando pra trás a vaga lembrança de um dia vazio e sem ocupação. “Melhor seria que não existisse”, pensa João olhando para o sol poente. Na cabeça dele era como se aquele dia existisse somente para acabar com o domingo de lazer. A total falta de compreensão da vida e das regras transformava ele e seus amigos no alvo perfeito para o sistema. Não entendiam o significado dos códigos sociais, não se importavam com mais nada além do motivo pelo qual existiam: sexo e diversão. Fim de semana clássico no Rio de Janeiro, céu sem nuvens, calor intenso, praias lotadas, corpos à mostra, vento suave com cheiro de mar, ambulantes vendendo cervejas, refrigerantes, água mineral, água de coco, mulheres gostosas exibindo suas curvas que beiram a perfeição, um baseado que passa de mão em mão na roda de amigos, eventos, festas e bailes povoavam as mentes. Próximo às pedras do Arpoador alguém começa a ouvir uma música que mais parece um hino, à voz é bastante conhecida daquela turma, mas o som soa como novidade.

Acompanhado de um violão Bob Marley entoava um grito de liberdade sem barreiras lingüísticas. Emancipem a si mesmos da mentalidade de escravidão Ninguém além de nós mesmos pode libertar nossas mentes Não tenha medo da energia atômica Pois nenhum deles consegue parar o tempo Até quando eles matarão nossos profetas Enquanto nós ficamos de lado e olhamos? Sim, alguns dizem: “isto é apenas uma parte”. “Nós temos de cumprir o livro”

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Aquela música trazia a tona todo o desejo de mudança escondido no inconsciente coletivo, era a reflexão de um gênio que sintetizou em forma de notas musicais toda a dor de um povo. Por mais que não pudesse traduzir na íntegra a canção, o prantear ficou gravado no subconsciente daquele jovem que não parava de cantar o refrão. Won´ you help to sing Theses songs of freedom Cause all I ever have: Redemption songs Redemption songs. A música mudou completamente a vida do João Pedro, que de uma hora para outra, passou a se interessar por hip hop e reggae, a gostar das mensagens e a compor suas próprias rimas. Matriculou-se num curso de inglês fez informática, aprendeu violão, começou a freqüentar uma biblioteca e tomou gosto pela leitura, deixou o cabelo crescer e depois fez dread, leu Malcon X, Panteras Negras, Steve Biko e deixou pra trás os tempos de ignorância, para a completa decepção dos policiais que volta e meia o abordava procurando um motivo para enquadrá-lo em algum artigo ou fazer dele mais um número nas estatísticas. Quando Assim que teve acesso à tradução da música Redemption Songs percebera que já sabia o que estava sendo dito, pois a emoção com que Bob Marley cantava dispensava tradução. E era para ele aquela mensagem redentora, pois da sua galera fora o único a não ser cooptado pelo trafico e a se manter vivo.

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Feijão com Limão

Ele entrou correndo na sala e parou em frente à televisão. Queria saber o que estava rolando. Queria saber de quem era àquela voz que gritava palavras rimadas, cheia de ritmo acompanhada por uma batida tão forte.

_ Nossa! Que maneiro. Caracoles! O cara tira maior onda, Mané!

_ Ih! Esse ai é o Barnabé, um dos maiores rappers brasileiros. Aliás, o único que ainda faz rap de verdade. - disse seu tio com os olhos grudados num televisor LCD de última geração.

_ Caramba tio, não sabia que pessoas negras sabiam cantar rap também. - disse o rapazinho animado. O homem meio sem jeito viu o brilho nos olhos do seu sobrinho e o silêncio foi inevitável. - O garoto empolgado com a ideia de ter uma pessoa como ele, negra, cantando o ritmo que ele mais gostava e era o mais ouvido nas rádios on line continuou com seu questionamento:

_ Tio, é a primeira vez que vejo alguém assim cantado rap pensei que não sabíamos cantar esse tipo de música. Assim como não sabemos o samba, o funk, reggae e o rock. Porque nós negros somos tão ruins na música?

O tio do garoto fuzilou-o com um olhar tão duro que parecia querer esganá-lo. Depois de alguns segundos, pois

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pareceu estar contando mentalmente até dez, quebrou o silêncio, e de maneira tranqüila falou ao rapaz:

_ Diogo, o rap, assim como o samba e o rock, são músicas negras cara.

_ O que? Ah! Fala sério tio, num vem com essa, não! _ Porque você não acredita cara? _ Tio, o senhor não viu na internet a lista dos maiores

rappers de todos os tempos? Num tem nenhum preto. _ Diogo, não tem preto porque a lista foi feita por

alguém que tinha ou tem algum interesse particular nisso. Não podemos esquecer também que de uns tempos pra cá a indústria fonográfica se tornou uma extensão dos valores medíocres dessa sociedade hipócrita em que vivemos. Mas o rap, o samba, o jazz, o blues, o reggae e o rock, o tango foram estilos de música criado pelos negros. Aliás, quase todos os estilos que tocam na internet hoje ou é de origem negra ou é uma dissidência de estilos de musica negra.

_ Ih! Claro que não tio, pois naquela Revista a Forbes diz que o rei e criador do rap é o Survey, aquele gringo lá que canta aquele som que tocou no seu aniversários, lembra tio?

_ Mas isso não é verdade, Diogo. Se tiver alguém que pode ser considerado o rei do rap esse alguém era o Tupac Amaru Shakur.

_ Quem tio? _ Ah! Tu não conhece o Tupac? Não acredito cara, tu

não sabe o que é rap, isso sim! O tio do rapaz falava alto e gesticulando empolgado

com a ideia de dar uma lição ao sobrinho desinformado. _ Rap é a sigla para Ritmo e Poesia e ninguém fazia

isso melhor que o 2PAC. _ Ih! Tio, o senhor tá muito atrasado, ninguém mais

ouve essa velharia aí não. O senhor só fala de coisas idiotas.

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Ontem tava cantando aquela música lá do tal de Racio... Qual o nome mesmo tio? Fala sério ai. _ disse o rapazinho rindo, dançando e cantando de maneira debochada.

_ Hoje eu sou ladrão, artigo 157...

_ Não acredito no que estou ouvindo. Você tá falando mal dos Racionais MC’s, o maior grupo de rap brasileiro de todos os tempos. Tu tá é maluco moleque! Esses manés que estão aí rimando feijão com limão não sabem o que é fazer rap de verdade. Que papo é esse de rap universitário? Isso não existe, cara. Rap tem haver com poesia, ginga, malandragem, é como as histórias dos velhos Griot que giram em torno das lendas urbanas, das guerras do dia a dia das ruas. Fala de prostituição, drogas, corrupção, coração partido, amores frustrados, cafajestes, putas, bandidagem e cafetões que se multiplicam pelos guetos degradados com fedor de urina de bêbedos e drogados. Fala da dor de ser descriminado pela polícia, de ser mal visto na sociedade, da morte de um amigo, do amor de uma mãe que perdeu o filho nos campos de batalhas urbanos. Rap é a reciclagem de tudo que já foi feito, é um trecho musical que marcou época, um verso antológico que ganha nova roupagem nas mãos de um aficionado saudosista, é o eco de um grito que está ecoando desde os anos sessenta nas vielas e becos escuros do mundo globalizado. Rap é um verso simples escrito à luz de velas num canto escuro de uma cela abarrotada, é a poesia marginal que emerge dos guetos sociais, das masmorras sem muros e grades que se multiplicam nas mentes dos jovens suburbanos. Rap é dor, rancor, amor, ódio e insurgência. É uma palavra que queima nas vísceras do sistema dia após dia.

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Depois de alguns minutos falando ao sobrinho o sentido da palavra rap ele o chama:

_ Ai vem cá vou te mostrar o que é música de verdade _ disse pegando uma caixa velha e empoeirada embaixo da cama.

_ O que é isso tio? Perguntou o carinha ainda com ar de deboche.

_ isso aqui é a minha caixa de CDs. _ Ah! Fala sério tio ninguém mais tem aparelho de

CD, não. Quando eu nasci isso já era relíquia. _ Pois é, mas eu tenho. E guardei porque sabia que

esse dia iria chegar. _ Porque tio? Perguntou Diogo, curioso. _ Porque eu já vi esses fatos se repetirem inúmeras

vezes ao longo da história. Tudo começou com o rock que depois de terem elegido um rei branco para o Rock Negro nunca mais houve espaço para que falássemos das nossas dores, tristezas e alegrias cantando a música forte e apaixonada, que surgiu como uma evolução do blues nos guetos americano. Depois invadiu os corações e mentes da juventude branca daquele país. Nós tínhamos o samba, que era o nosso único veículo de comunicação num país segregado, onde ser negro e pegar num pandeiro era um crime imprescritível. Lutamos, apanhamos, tomamos tapa na cara, fomos presos, ridicularizados, humilhados e mais uma vez fomos vencidos pelo cansaço e, por que não dizer, pela falta de senso coletivo de alguns membros de nossas comunidades. Vi o mesmo acontecer com o rap, que aos poucos foi saindo das nossas mãos, muitas vezes levado por irmãos negros ambiciosos que colocavam seu desejo pessoal acima da coletividade. Assim, aos poucos fomos perdendo o controle sobre um veículo de comunicação que surgiu na

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Jamaica ainda nos anos 50. Surgiu pela necessidade gritante de um povo oprimido em sua própria terra. No início, eram apenas rimas improvisadas sobre um ritmo experimental que mais tarde daria origem ao reggae. Naquela época, muito Jamaicanos cansados de esperar o cumprimento da profecia de Marcus Garvey e dispostos a acelerar o processo de mudança, decidiram se jogar numa grande aventura rumo a Babilônia. Levaram na bagagem esse estilo peculiar de cantar que em pouco tempo se espalhou pelos guetos americanos se miscigenando com outros ritmos de origem negra. E como uma droga alucinógena invadiu as periferias do mundo sempre como a voz dos despossuídos, dos sem voz e excluídos em todas as partes do planeta. Sempre a falar das mazelas de uma sociedade segregacionista e preconceituosa

À medida que o seu tio falava os olhos do rapaz brilhavam com uma chama tão intensa que aquele jovem senhor de expressão cansada, aparência subversiva e jeito de pirata somali sentiu orgulho de suas convicções e de ter tido a oportunidade de ter aprendido a história da música negra. História que se confunde com a dor e sofrimento do seu povo. Sentaram-se num canto do quarto ao lado de uma cama desarrumada com aquela caixa suja e velha, cheia de história. Começaram a ouvir as relíquias que ele cuidadosamente havia preservado como memória de uma época em que a música ainda era música, e que a poesia escrita por um bêbado num canto de um bar podia balançar milhares de corpos mundo afora.

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Boicote

Dona Maria de Jesus acordou no meio da noite com insônia. Olhou pro relóginho na cabeceira da cama e ainda eram 03h14min da madrugada. A insônia vinha sendo uma constante desde que o marido morrera de um derrame. A partir daí, a sua única preocupação vinha sendo seus netos. Tinha de cuidar deles para que seus filhos pudessem trabalhar. Todos viviam no mesmo quintal como tantas outras famílias da comunidade. Fazer um puxado, bater uma laje, dividir a casa foi à maneira encontrada para manter a família unida e diminuir os gastos com habitação.

Maria de Jesus, nome dado por sua mãe por ser devota da virgem Maria, nasceu num dia chuvoso de verão no mesmo quintal que vive até hoje. A pele escura marcada pelo tempo, os olhos descoloridos, o andar cauteloso e a fala direta se tornaram uma marca dessa senhora. Ela levava uma vida pacata numa favela da Zona Norte do Rio de Janeiro, era bastante conhecida naquela comunidade por ter suas raízes fincadas naquele pedaço de chão. Seus pais foram uns dos fundadores da comunidade e sempre estiveram metidos com tudo de importante que se fazia naquele lugar:

_ O bloco, que mais tarde veio a se tornar a premiada escola de samba, a associação de moradores, os projetos

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comunitários, algumas lutas com a polícia e até com o tráfico local. Naquela manhã cinza, ao se levantar e seguir a sua rotina, Dona Maria não tinha a menor ideia de que aquele dia marcaria pra sempre a sua vida e a vida da comunidade onde ela vivia. Logo nas primeiras horas da manhã resolveu ir ao supermercado para comprar o que estava faltando para sua casa.

Entrou no mercadinho com uma bolsa pequena de cor marrom na qual carregava as suas coisas inclusive o dinheiro. Fez o que sempre fazia nos últimos dez anos. Andou, olhou e depois de ter comprado tudo o que era necessário se dirigiu ao caixa. Então, foi abordada por um segurança do mercado, um jovem de uns 28 anos, mestiço, forte e alto, que lhe disse com ar ameaçador:

_ Cadê o objeto que a senhora pegou na prateleira? Ela atônita com a atitude do rapaz e sem acreditar que

aquilo realmente estava acontecendo lhe respondeu: _ Não peguei nada, você está maluco meu rapaz?

Mas o cara insistiu e obrigou-a acompanhá-lo até uma sala. Logo em seguida chamou a polícia e, mesmo sem a evidência do crime, sem o produto do suposto crime, ela foi conduzida para a delegacia. Ali, depois de se recusar a assumir a culpa, foi ridicularizada pelos policias para logo em seguida ser conduzida a uma cela.

Ao saber do acontecido, a comunidade indignou-se a tal ponto que queriam fazer barricadas e apedrejar os ônibus. Ninguém soube explicar como alguém poderia supor que a dona Maria roubaria se quer um sabonete num supermercado. Muitos moradores foram até a associação cobrar uma atitude do presidente. O cara era um jovem íntegro e falante,

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tinha um ar de líder religioso. Falava alto e se impunha por sua atitude de não temer a polícia nem os bandidos, além de se revoltar contra a tirania dos meios de comunicação. Ele havia servido na brigada paraquedista. Também era mestre de Capoeira, o que lhe rendera certa fama, já que poucos ousaram encará-lo numa briga justa e os poucos que tentaram não se saíram bem. Logo que soube da história, o rapaz resolveu agir. Os ânimos estavam exaltados, mas ao perceber isso, ele pediu ordem e assumiu toda a situação dizendo: Veja pessoal! Eu sei que há muito a nossa comunidade vem sendo insultada pela política racista vigente nessa sociedade, um exemplo disso é a escola de samba da nossa comunidade. Quem aqui se lembra como era, deve se lembrar também de que ela era o orgulho da nossa gente e que sempre simbolizou a nossa união. Vejam o que ela está se tornando pra nós. Vejam se as famílias vão juntas para a quadra como antigamente e se ainda tem a noite da beleza negra, quando todos íamos juntos até a quadra para aplaudir nossas filhas e irmãs?

_ Me digam o que uma passista de escola de samba ganha, além da fama de gostosa e boa de cama? São chamadas pra fazer comercial de TV? Fazem trabalho de modelos? Claro que não. Exagerou o jovem tentando impressionar os ouvintes.

_ Todas as meninas da nossa comunidade que foram passistas só conseguiram arrumar um playboy pra amante e até pra posarem nuas são preteridas. Nós pagamos para desfilar na escola que criamos, somos ridicularizados nos shoppings, nos supermercados, e preteridos na hora de arrumarmos emprego. Acho que é chegada a hora de reagirmos, pois não podemos mais assistir calados essa porcaria. Mas só que, desta vez, não

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vamos quebrar nenhum ônibus. _ falou taxativamente. _ para não sermos classificados como vândalos e traficantes, como sempre fazem em ocasiões como esta. Desta vez, vamos fazer diferente, vamos fazer um "boicote". Ao dizer isso, o presidente da associação ouviu um monte de burburinho no meio da comunidade. Estavam todas ali crianças, jovens e adultos. Nunca, nada na comunidade tinha reunido tanta gente indignada, nem mesmo quando a polícia entrava na favela e matava algum jovem, que segundo eles era envolvido com o tráfico. Aliás, toda vez que matam alguém nas comunidades pobres essa pessoa é automaticamente elevada ao status de traficante. Ao ver que todos estavam confusos o jovem continuou...

_ Gente, gente! _ Boicote é uma maneira legítima de protestar em vez

de sairmos por aí destruindo patrimônio público ou privado, vamos deixar de comprar naquele supermercado. É simples assim.

Todos concordaram, e, então, começou o "Boicote". No primeiro dia do boicote aconteceu algo surpreendente. Uma senhora que vivia na comunidade para aderir ao boicote andou até o outro mercado que era de outra rede. O supermercado ficava a cerca de um quilômetro daquela comunidade, mas por não ter dinheiro sobrando, quando estava voltando a pé com as bolsas, os mototaxis vendo isso, se prontificaram a ajudar e foram seguidos pelos motoristas de Kombi que também decidiram que não iriam cobrar de quem fosse fazer compras na outra rede. Alguém mandou colar placas na comunidade dizendo “Não compre no supermercado racista. Quem comprar já sabe, né?” E assim novas iniciativas foram surgindo, como

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um grupo de senhoras que passou a ir ao Ceasa pra comprar mais barato e revender na comunidade por um preço abaixo do mercado.

Aquela era uma época de inquietação e as pessoas estavam todas insatisfeitas, até porque estava tudo muito confuso. Eram as operações policiais, bandidos trocando tiros a toda hora e a suspeita de que a milícia invadiria a favela. A comunidade nunca estivera tão fragilizada, nunca fora objeto de tanta disputa, de tanta repressão. Eram sinais dos tempos. Globalização, aquecimento global, natureza em fúria, queimadas, alagamentos e deslizamentos de encostas, crise global, medo, recessão, dúvidas, acirramento de disputas, drogas e inúmeros fatores levavam Moisés a crer que se não lutassem naquele momento seriam massacrados como insetos. Ainda no primeiro dia do boicote, ele saiu de casa logo cedo. À medida que caminhava pelos becos sujos e sem urbanização da comunidade onde nasceu e cresceu, imaginava como tudo podia ser diferente. Também entendia que era assim porque vivemos num mundo em que quase tudo foi conquistado com lutas, guerras, perdas de vidas, matanças, genocídios, injustiças, holocausto, escravidões e opressões mil. O sol brilhava intensamente naquela manhã de inverno, e das casas saiam os sinais de vida, barulhos de toda ordem, crianças que choravam mães gritando com seus filhos, som de rádio ligado, gente falando alto, vizinhos o cumprimentando, uns com certo receio, outros mais animados, em geral havia certo temor em relação a ele. O boicote foi um sucesso. Todos aderiram e o tal supermercado ficou ás moscas. Era a comunidade que o mantinha. Por um misto de ignorância, prepotência e preconceito, os donos da loja sempre tiveram uma atitude de

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desprezo para com a comunidade local, que por sua vez fingia não se importar por que também o mercado facilitava a vida de todos no entorno. Ao se darem conta do que estava acontecendo os donos do mercado retiraram a queixa e demitiram o funcionário que criou o tumulto. Já era tarde, o estrago já estava feito. E não demorou para que baixassem as portas. As tardes de verão eram uma oportunidade única para Moisés que adorava sentar-se à porta da Associação para ouvir black music. Ele era um entusiasta da música negra feita em qualquer parte do mundo. Gostava de tudo, desde Bob Marley, Michel Jackson, James Brown à Tupac Amaru Shakur que tinha o nome inspirando num lendário índio revolucionário da América Latina, além de ser filho de Afeni Shakur, ex-Panteras Negras. As batidas fortes do hip hop invadiam as tardes da favela com ideias que falavam de putaria, negritude e autoconhecimento. Now let me welcome everybody to the wild, Wild West... era Tupac e Dr. Dre em California Love

A madame se assustou, A favela me deu dez/ Quando eu entrei sem camisa e de pistola no Free Jazz... era o Mv Bill satirizando a elite.

Nu Brooklin tô sempre aqui, vou prosseguir/ Não sei qual que é, se me vê dão ré... - Já era o falecido Sabotage tirando uma.

Sempre que estava ali a molecada vinha até ele para ouvir suas histórias dos tempos de loucura.

_ Tio Moisés conta aquela história lá, ele não acredita _ disse um garotinho com um short preto e sujo de barro.

_Ah! Hoje não, tô cansando _ Moisés falou rindo e passando a mão na cabeça do garoto

_ Ah! Conta aí tio _ insistiu o menino.

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_ Nós vamos ficar na moral _ replicou outro garoto que aparentava uns oito anos de idade, mas devia ter mais.

_ Tá bom, vai! Moisés já ia começar a contar a história que ele sempre contava, quando um menino veio avisar sobre o acontecido:

_ Tio, sabe o mercadinho? Ele fechou... Moisés não disfarçou certa alegria, mas procurou não expressar seus sentimentos.

Quando a notícia chegou ao resto da comunidade foi uma festa. Todos saíram de suas casas e foram pra rua comemorar, como se fosse fim de copa do mundo.

Era uma vitória simples, contudo uma vitória. Depois de muito tempo, aquela gente que sempre foi pisada pela classe média e a elite financeira deste país descobriam que ainda tinham forças para lutar. E que por mais que fossem limitadas as suas forças aos olhos do mundo capitalista, essa força emanava de seus corações outrora fracos e derrotados, mas que agora pulsavam novamente. Via-se o brilho nos olhos das crianças inocentes que saiam pela ruazinha de barro gritando:

_”Nós vencemos! Nós vencemos!”, sem entender realmente o que significava uma vitória, sem se quer entender o que é vencer numa circunstância como aquela. Mesmo assim o grito ecoava pelas vielas como um rugido de leão ferido, e todos sentiam em seus corações a força da união.

Aquela era uma nova chance, uma nova possibilidade, um novo caminho que todos podiam percorrer juntos. Era possível fechar um supermercado. Nossa! Então era possível, eleger um vereador da comunidade, ou um deputado. Agora tudo era possível. Inclusive não assistir programas de TV que não tinha a proporção de negros adequada, que mostravam a população favelada e

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majoritariamente negra de maneira estereotipada. Era possível também boicotar candidatos que só apareciam em época de eleição. Era possível sim. Parecia um sonho, mas todos estavam vivendo aquele sonho e ninguém queria acordar dele. Todos ficaram se abraçando e comentando a notícia. Moisés, sempre mais contido, olhava o seu povo se abraçando e vibrando como num jogo do Flamengo. Sentiu-se o próprio Zumbi dos Palmares. Aquilo realmente era incrível, era como se tivessem derrotado o próprio Golias. Aquele dia jamais seria esquecido, pois era o prenúncio de um novo tempo. Aquela comunidade pequena, espremida por arranha-céus, Condomínios de luxo, linha de trem, rio poluído e grandes avenidas estava sendo apresentada ao mundo novo. Um mundo no qual toda força provém do coletivo, no qual o individualismo era o alicerce dos fracos e derrotados.

O inimigo real não era o supermercado e sim os valores de uma sociedade preconceituosa representada pelo mesmo. Por isso a importância da vitória. Aquela noite mudou o rumo daquela comunidade que passou a se chamar “Comunidade Palmares. A partir dessa experiência outras comunidades aderiram ao boicote como forma legítima de protesto. Em pouco tempo a ideia passou a ser reproduzida em larga escala. Finalmente a favela entendia que o Golias tinha a sua fraqueza e que por ser maioria da população podia-se boicotar até as eleições, se fosse preciso. O povo negro, entendia, agora, que sem o seu voto não é possível eleger sequer o presidente da República. E, assim, outros boicotes aconteceram, outras empresas faliram e o nome de Dona Maria de Jesus se tornou referência para todos que lutavam e lutam contra as injustiças.

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Ideias Contagiosas

Doze anos de idade, milhares de dúvidas, sonhos, ilusões e incertezas sobre o futuro. Justamente no período de sua vida em que a juventude é sua maior aliada. Armas, dinheiro, drogas, jovens com disposição pra desafiar a lei, subjugar seus adversários, correr riscos extremos. Tudo isso era um atrativo ou simplesmente um pretexto para se aproximar.

Vivendo uma vida medíocre numa comunidade qualquer da cidade maravilhosa, rodeada de pessoas humildes, com poucas chances de ascender socialmente e sem acesso à educação de qualidade. A maioria quase tão desgraçada quanto ela, mas com um diferencial: ainda não tinham desistido de viver. Ela caminha por entre becos e vielas, ruas de terra, esgoto a céu aberto, barracos miseráveis quase sempre inacabados, com uma arquitetura confusa, ligações elétricas clandestinas e nenhuma infra-estrutura.

Nesse cenário, onde há quase que diariamente crimes, invasões e mortes, ela vive seu cotidiano.

O pai havia morrido antes do seu nascimento , vítima do mesmo mundo em que ela se encontrava enterrada até o pescoço agora.

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Fora criada pela avó, a mãe vivia com o atual marido e seus três irmãos mais novos. O ódio que tinha de si mesma refletia nos seus semelhantes. Os seus maiores inimigos tinham quase sempre os mesmos traumas, complexos, conflitos internos e na maioria das vezes tinham a mesma cor que a sua. Cada dia pra ela era um novo desafio, uma nova tentativa de se fortalecer perante esses inimigos que muita das vezes dividiam com ela o mesmo espaço físico.

A vontade de se sentir protagonista de alguma coisa que lhe desse a sensação de pertencer a algo importante, a fizera caminhar por caminhos tortos.

Outrora era só uma criança inquieta, hoje uma mulher de quartoze anos com uma história de vida extremamente confusa, cheia de altos e baixos e inúmeras decepções. Enfim, um ser humano, mergulhado em um mundo, onde poucos ousaram chegar. Num dia chuvoso de inverno, lá estava ela, confinada no seu mundinho. A água da chuva que entrava através das várias goteiras e escorria pelas paredes de tijolos velhos e quebradiços do seu quarto escuro era sua única companheira.

Estava inacessível naquele momento de profundo desespero e dor. O som ligado na casa do seu vizinho, um maluco convicto que insistia em acreditar que podia mudar o mundo, entrava pela parede e invadia seus pensamentos com ideias em princípio idiotas a fez relaxar, pois a batida lhe agradara, e o ritmo não estava distante daquilo que costumava ouvir nos bailes da comunidade. Frases como: “Uma negra e uma criança nos braços,/ solitária na floresta de concreto e aço,/ Veja! Olha outra vez o rosto na multidão

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A “multidão é um monstro sem rosto e coração...” (Racionais Mcs). “Assim sem tirar nem por,/ Rio de Janeiro praia sol calor,/ barracos miseráveis,/ lutas intermináveis, sonhos mil, / é verão no Brasil”, (Diáspora Africana.). penetravam na sua cabeça deixando um rastro de dúvidas, incômodo e curiosidade. A partir desse momento já era, foi infectada...

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Mundo Perfeito

Ao acordar e pegar o celular para ver as horas tomou um susto enorme. Estava muito atrasada, mas tinha que ir ao trabalho mesmo assim. Seria pior se faltasse. Pulou da cama e foi direto para o banho. Ligou o chuveiro e deixou aquelas gotas de água correrem por seu corpo nu e suas tranças feitas no dia anterior que lhe davam um ar alternativo. Com os olhos fechados viajava em pensamentos na correria dos últimos dias. Tanta agitação, trabalho, faculdade, academia, cursos, namorado. Nunca fora tão feliz. Nunca estivera tão satisfeita com o mundo. Enquanto tomava aquele banho delicioso podia ouvir no jornal da manhã:

_O Brasil bateu mais um recorde de exportação, o número de crianças na escola triplicara, o analfabetismo fora completamente erradicado. Tantas notícias boas, cinema nacional entre os melhores do mundo, as novelas mostrando um país multirracial ao invés daquela porcaria que ninguém mais suportava. O comercial de TV era a cara de um país moderno e civilizado, a mídia era independente e não uma espécie de partido político, as escolas públicas reequipadas, professores valorizados ensinando disciplina que falavam diretamente aos alunos. As favelas não eram mais palco de confrontos diários,

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os policiais bem treinados e não violentos. O caveirão não era mais uma ameaça para a população favelada e o crime fora reduzido significativamente quando o estado, por fim passou a investir em cultura, educação, esporte e lazer. Ali o país se dava conta de que os gastos com a prevenção eram menores do que com a repressão. Chegara-se a conclusão de que o país estava caminhando na contramão do mundo e assim como fora o último país do mundo a abolir a escravidão estava sendo um dos últimos a apostar na diversidade, a matéria prima do desenvolvimento no século XXI. A lista de melhorias sociais era intermináveis, fruto da união nacional. Assim a classe média deixava de enxergar a população pobre como um inimigo em potencial e não mais justificava o extermínio em massa de jovens negros nas comunidades pobres. Aquele país de políticos corruptos fazendo remessas ilegais de dólares ao exterior, comprando voto, roubando hospitais públicos e matando crianças e idosos por falta de assistência estavam extintos. Aquela geração de oportunistas, empresários inescrupulosos fazendo lobby no Congresso e influenciando diretamente nas decisões políticas, essa gente havia sido erradicada do poder e da vida pública. O país havia amadurecido tanto que estava preste a eleger o seu primeiro presidente negro, seguindo o exemplo de grandeza do povo americano que transformou ódio racial em esperança, medo em fé, dúvida em certeza. Em frente ao espelho, ela viaja relembrando a posse do primeiro presidente negro dos EUA, Barack Hussein Obama. Claro que na ocasião sentira uma pontinha de inveja dos negros americanos que não passavam de 13% da população, mas que desde a luta pelos direitos civis, quando milhares de cidadãos marcharam a pé pelas ruas das cidades americanas em boicote a lei que dizia que os negros tinham

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que ceder o lugar aos brancos nas conduções. Vinham dando exemplo ao mundo de que a esperança e a fé combinadas são mais fortes do que qualquer preconceito. Vinham dando em doses homeopáticas uma lição diária de que a América não se tornara a maior nação do mundo de graça. Fosse com o lendário sonho de Martín Luther King, fosse com as palavras avassaladoras de Malcolm X, fosse com os punhos cerrados dos Panteras Negras, fosse com o reverendo Jessye Jackson ou com as várias lutas travadas nas ruas das cidades em chamas. Agora, especificamente, chegava à vez de o Brasil tornar-se uma nação unida por um ideal de liberdade e democracia, um país de todos, não de alguns, como vinha sendo desde o princípio.

Ao sair do banho, Emanuela olha para a TV e não disfarça certo orgulho de ser brasileira. Crescera ouvindo histórias de opressão, racismo, preconceito, covardias, mortes, intolerância e todo tipo de atrocidade, mas agora podia sentir orgulho de viver num país que valoriza os idosos, que tem liberdade religiosa, enfim poderia viver num país em que todos independente de raça, religião ou opção sexual podiam ser felizes. Enfim o Brasil se tornara o que nascera para ser, uma grande nação. Acabou de trocar de roupa e tomou o seu café da manhã. Enquanto saboreava aquelas deliciosas ameixas, maçãs e peras, abriu uma revista semanal que trazia na capa uma foto fabulosa da Floresta Atlântica totalmente preservada. Aquela Era de desmatamento, queimadas e discursos ridículos enfatizando a preocupação ecológica de empresas poluidoras havia terminado.

O futuro estava salvo e o tal Aquecimento Global virara uma lenda, o tipo de história que contaria para os seus netos. Dali foi direto para a locadora para depois ir ao

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trabalho. No caminho pode notar que não havia mais pedintes e crianças jogadas nas ruas. Aquele volume enorme de automóveis soltando gás carbônico na atmosfera, pessoas cuspindo no chão e jogando lixo em qualquer lugar. A cidade estava organiza e limpa.

_Bom dia senhora! _ um senhor de boa aparêcia a cumprimentava com um sorriso sincero.

_Bom dia! _ Respondeu satisfeita. Não conseguia disfarçar um sorriso de satisfação,

como era bom ser bem tratada pelas pessoas, como era bom ser respeitada e bem vista numa sociedade. Tudo a sua volta estava mais leve, até o ar que respirava era mais puro e as expressões das pessoas eram mais alegres. Sentiu-se bem com aquilo, pegou sua longa cabeleira dread presa a um turbante outrora vista com receio pela maioria das pessoas e a soltou. Levantou a cabeça e saiu pelas ruas celebrando as diferenças que só agora começavam a ser respeitadas. As ruas estavam cheias e aquela multidão já não era mais um monstro sem rosto e coração como dizia o saudoso Mano Brown. Era uma multidão solidária, pessoas de todas as raças e credos num país diverso, plural e igualitário. Parecia um filme de ficção, mas tudo aquilo estava acontecendo e era maravilhoso.

Enquanto caminhava rumo ao trabalho decidiu mudar a direção, já estava bastante atrasada melhor seria se faltasse logo. Olhou para a bolsa de cor prata com detalhe em couro sintético feito a mão que carregava do seu lado direito e se lembrou do cartão de crédito:

_Ah! Já sei, vou ao Shopping! _ pensou Emanuela já tomada de excitação. Parou o primeiro táxi que passava e foi direto para o Shopping mais popular da cidade.

Andou, olhou, comprou, sorriu, fez amizades, brincou, almoçou, foi ao cinema, ao teatro, tomou um delicioso chopp

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e no fim do dia estava exausta. Então, decidiu ir para casa. Estava um pouco alta, mas imensamente feliz. Já no táxi que a levaria para casa pegou no sono e começou a ouvir um barulho lá no fundo, e o barulho ia aumentando... aumentando... até que ela o identificou, era uma música:

_Nossa! Que música linda! _Ah... Eu a adoro. _É, eu também _ Respondeu uma voz masculina que

era a voz do seu pai no motorista de táxi. Até achou estranho, mas não disse nada.

_ É do James Brown, eu tenho ela no toque do meu celular - disse empolgada.

_ Ela é bem a minha cara! _ Resmungou para si mesmo se imaginando numa pista de dança e a música tocava cada vez mais alta;

_ Hey... I feel good... _ os sopros entram rasgando a alma.

_ pararan, raran, raran. _ So good... _ os sopros voltam trazendo consigo uma

enorme vontade de dançar. _ pan pan... _ So good... So good… You..., panpan paparapanpan...

Hey… O corpo não resiste e começa a mexer-se sozinho. Animada ela para o táxi e começa a dançar como uma louca no meio da rua. E, para a sua surpresa maior, outras pessoas a seguiram e a música só aumentava, parecia que a cidade inteira estava ouvindo a mesmo som. Mas ela nem se importava com o volume da música queria mais é dançar, dançar e dançar... Neste instante, o som parou repentinamente e ela abriu os olhos despertando de um lindo sonho.

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_ Droga... _ suspirou decepcionada à medida que se levantava para se arrumar pra ir ao trabalho.

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Parte IV Crise de identidade

Houve um grande assalto ao banco na floresta. A bicharada estava toda agitada querendo saber quem fora a mente brilhante que engendrara golpe tão perfeito. O senhor Urso estava despachando em sua delegacia quando a dona Coruja pousou na janela do seu gabinete e disse que sabia quem havia feito o assalto. Então, imediatamente o Sr. Urso se levantou da cadeira e disse:

_ Então me mostra quem é o pilantra que eu vou botá-lo na cadeia agora. E lá se foi o senhor delegado com a dona Coruja procurar pelo autor do maior assalto já realizado, naquela floresta. Ao chegarem num pasto, onde algumas vacas estavam se deliciando com grama fresca, avistaram um bando de urubus brigando por um resto de carniça, sendo que um deles estava numa cerca ao largo do resto do grupo que discutia entre si porque ele estava tão indiferente. O Urubu em cima da cerca continuava com as asas abertas e com um sorriso cínico, tomando banho de sol. Então a dona Coruja apontou direto pra ele:

_ É aquele urubuzão lá ó! Aquele que está com as asonas todas abertas. Até o senhor delegado se assustou com a precisão da

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Coruja e indagou: _ Como você sabe que foi ele quem fez o assalto se eles são todos

parecidos? Então, Coruja de maneira convicta retrucou: _ Foi ele sim eu tenho certeza. _ Mas como? _ perguntou de novo o Sr. Urso. E a coruja com

toda convicção do mundo sentenciou: _ Foi ele sim, porque preto quando está com dinheiro adora aparecer. Olha só o asão dele todo aberto. _ disse abrindo as asas em demonstração.

_ Essa foi boa... Essa foi boa... Uma a uma as piadas iam sendo contadas para a

diversão do marido da Suzana, que mesmo incomodada se continha e, às vezes, fingia um sorriso. A vida inteira fingira não existir preconceito, sempre se relacionara com homens brancos como o seu atual marido. Seu pai era contra porque achava que ela era tratada como objeto sexual não como namorada ou esposa. Por várias vezes, ele se desentendeu com os namorados da filha. Sempre falava para a filha sobre como as mulheres negras mais formosas eram tratadas na escravidão, que a mentalidade do povo brasileiro não mudou quase nada em relação a isso. Mas ela achava que eram ciúmes do pai e acabava por ficar do lado do namorado. Por ter um corpo escultural, ser uma mulher bonita e extremamente sensual, invariavelmente era tratada de maneira especial, ou com um pouco mais de carinho, principalmente, por parte dos homens. Era como se ela não fosse negra, aliás nunca se sentira assim até então. Sempre estudou em escola particular, muito embora seus pais fossem oriundos de comunidades pobres e não tivessem condições financeiras. Mas pelo empenho do seu pai e da mãe, que faziam horas extras no emprego, conseguiu cursar a

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faculdade de Sociologia. Depois de ter se casado, Suzana se afastou um pouco

dos pais por causa do marido que não gostava do bairro em que eles moravam. Então, Suzana acabou se afastando gradativamente da sua família também. Embora a vida ao lado daquele homem estivesse cada vez mais difícil. Alem de saber que ele mantinha relação com outras mulheres. aquelas reuniões com seus amigos se tornavam cada vez mais frequentes. Toda vez era a mesma coisa. Piadas sobre negros, homossexuais e Paraíba. No início, não se incomodava e também ria, mas com o passar do tempo as máscaras começaram a cair. Era sempre ela que tinha que ir para cozinha fazer petiscos. Era sempre ela que tinha que se levantar para servir o resto do pessoal. O argumento era de que ninguém sabia cozinhar igual a ela. Quando o assunto era beleza, a única coisa que ela possuía de bom eram as pernas e a bunda. A sua faculdade era ignorada completamente, era como se fosse analfabeta nada do que dizia tinha valor para eles. Suas intervenções eram sempre motivo de chacotas. Então, resolveu calar-se para não constranger o marido que nem era tão culto assim. Pois tinha um emprego mediano na micro-empresa do seu pai que o proporcionava uma vidinha de classe média, embora se comportasse como o próprio Bill Gates. Assim era o mundo que ela havia escolhido para viver. As aparências e a origem social/racial vinham antes de qualquer coisa. Talvez ela própria fosse um estereótipo, já que no fundo só estava naquela situação por causa dos seus valores medíocres de negação da própria identidade em prol de um ideal de brancura ideológico que torna a estima objeto de manipulação. Na sua cabeça, casar-se com um homem branco a tornava melhor aos olhos da sociedade. O que é

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uma verdade. Mas até que ponto esta atitude de negação de si mesmo valia a pena? Bom! Pra ela não estava compensando.

Sua mãe era o oposto do seu pai e sempre dizia que tinha que clarear a família, melhorar o sangue etc. Mas ela era uma mulher formada ao passo que a sua mãe mal sabia escrever o próprio nome. Porque então, acabara reproduzindo os mesmos valores? O que de fato a levara cometer tantos equívocos em nome de uma ideologia? Essas interrogações era uma constante naqueles momentos de depressão.

As palavras cheias de ressentimento que saíam da boca do seu pai pareciam tinir em seus ouvidos a cada piada que ouvia. Para ele todo branco tem certa restrição em relação ao negros, mesmo que nunca demonstre. Isso tem razão de ser. Até porque, o racismo é uma doutrina econômica que encontrou no Brasil o palco perfeito para se manifestar. Já que aqui se construiu um modelo de exclusão social que não pressupõe o embate direto, mas torna inviável o modo de vida de povos que foram escravizados. E isso, significa a manutenção de privilégio para os filhos e netos dos Senhores de Engenho. O que quer dizer também que lutar por justiça social é lutar contra tais valores. E quem em sã consciência abdicaria das facilidades obtidas pela cor da pele num mundo cada vez mais global e confuso onde as disputas por moradia, lazer, emprego e bem-estar se tornam cada vez mais acirradas? Toda vez que ele dizia isso, citava uma passagem bíblica:

_ Certo homem de posição perguntou-lhe:

Bom mestre, o que farei para herdar a vida eterna? Respondeu-lhe Jesus: Por que me chamas bom? Ninguém é bom senão um que é Deus. Sabes os mandamentos:

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Não adulterarás, não matarás, não furtarás, não dirás falso testemunho, hora teu pai e tua mãe. Replicou ele: Tudo isso tenho observado desde a minha juventude. Ouvindo-o Jesus, disse-lhe: Uma coisa ainda te falta: Vende tudo o que tens da-o aos pobres e terás um tesouro nos céus; depois, vem e segue-me. Mas, ouvindo ele esta palavra, ficou muito triste, porque era riquíssimo.

Depois de visitar os seus pais Suzana pensou em chegar em casa e dar um basta naquela situação, mas depois de tantas idas e vindas já nem sabia mais se conseguiria sair daquela relação. Pegou o seu carro e antes de ir para sua casa resolveu ir à casa de uma amiga de faculdade. Passou lá a tarde toda.

_ Nossa Carla, há muito tempo não passo uma tarde tão bem assim.

_ Ah! Você devia vir aqui mais vezes então. _ Mas o Evandro não gosta que venha aqui. _ É, eu sei, fazer o que né

_ Nada eu dou um jeito, não agüento mais esta escravidão. Ao falar isso Suzana olha para a aliança e aquele sentimento ruim volta com toda força. Era aquela sensação de estar sendo traída, sensação de estar sendo passada pra traz e de impotência. A depressão voltara e num instante ela muda o comportamento e se despede da amiga.

_ Tchau! _ Sú, Houve alguma coisa? O seu semblante mudou

de repente. _ Nada não já vou. _ Ok! Beijos. Suzana entra no carro e sai desesperada para casa

como quem busca o ar depois de um naufrágio. Ao chegar em casa e dizer para o marido que estava na casa de sua amiga Carla a briga começou.

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_ Não gosto dessa Carla, você sabe disso - disse ele em tom raivoso.

_ Mas ela é minha amiga, o que tem eu ir visitá-la? Você visita os seus amigos chatos e eu não digo nada.

_ Chata é você sua macaca nojenta. A máscara havia caído de vez.

Ao perceber isso Suzana perdeu a cabeça e atirou o copo de água que segurava na cara do marido que revidou lhe dando uma tapa forte no rosto. Que a fez cair no chão. Tomada de ódio ela começou a chorar e não conseguiu dizer nem fazer mais nada. Ficou ali encostada num canto entre a pia e o fogão, com as mãos no rosto. Quis morrer naquele momento. A sua vida era quase uma novela com enredo medíocre e de profundo mau gosto.

Depois do ocorrido o seu marido foi assistir TV como se nada tivesse acontecido. Ao despertar na manhã seguinte ele já havia saído para o trabalho. Levantou-se e foi até o espelho, o rosto ainda inchado devido à pancada, a moral em farrapos o coração partido e uma imensa vontade de sumir no mundo pra nunca mais ser encontrada. Ao analisar os fatos com serenidade se deu conta de que se continuasse assim tudo poderia acabar de maneira trágica como tantas e tantas história de mulheres mortas pelos maridos que se julgavam donos do seu corpo. Juntou as suas coisas e decidiu ir para a casa dos seus pais. Era um ato desesperado de alguém que se encontrava no fundo do poço. Com a estima em baixa, se sentindo feia e sem atrativos. Nem se lembrava mais de como tudo isso se deu. Só sabia que tudo havia começado como brincadeiras inocentes em momentos de descontração. Era um vem cá minha macaquinha aqui outro ali. Às vezes uma observação inoportuna disfarçada de elogio, mas que nada

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mais era do que uma crítica a sua herança africana. Tudo isso foi minando a tua resistência, diminuindo a auto-estima até chegar num ponto onde o espelho havia se tornado o seu pior inimigo. Foi como num sonho num dia um casamento de princesa no outro não passava de uma mucama.

Agora era tempo de repensar sua vida, reavaliar seus valores e se reencontrar naquele emaranhado de idéias depreciativas que acumulara ao longo dos anos. Era tempo de rever seus conceitos e tentar se amar um pouco. Por mais que o tempo agora já não jogasse mais ao seu favor.

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O despertar da consciência

O dia está amanhecendo numa comunidade do subúrbio carioca e os primeiros raios de sol surgem no horizonte, ofuscando o brilho da lua cheia que timidamente se esconde atrás do morro. O clima é de verão, mas ainda estamos no outono, e logo nas primeiras horas do dia o calor é intenso. Um vento tímido sopra levantando poeira da ruazinha de terra enquanto uma pessoa caminha por aquele pedaço de chão esquecido chamado favela. Com expressão carregada, olhar baixo e o suor escorrendo pela pele escura do seu rosto, uma pasta embaixo do braço, jeans surrado e tênis velho. A largos passos ele atravessa a linha de trem que separa a favela do asfalto. Seu destino uma fila de emprego em algum lugar do centro da cidade. Ele vai e deixa pra trás dois filhos e uma esposa desesperada por não ter o que dar às crianças.

Ao entrar no ônibus, logo de cara a sua aparência chama a atenção! As pessoas ficam olhando para ele como se tivesse uma doença contagiosa, ele sabe que o fato de estar mal vestido e ser negro o torna ameaçador, mas era a única peça de roupa que tinha para vestir naquele momento. Ele sente que as pessoas o fuzilam com os olhos e tem vergonha de si mesmo. Com a cabeça baixa tenta se esconder, suas mãos suam frias, seus olhos olham fixamente pro lado de fora do ônibus. A sensação é horrível, aquilo faz com que ele se sinta um lixo, como se tudo que ele valesse fosse aquilo que

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estava usando:

Um tênis velho, uma calça desbotada e uma camiseta de propaganda eleitoral. Uma hora depois ele descia do ônibus e a sensação de alívio estava estampada em seu rosto. O dia estava apenas começando...

Com um olhar triste ele caminha pelas ruas e avenidas do centro da cidade do Rio de Janeiro, a sua cabeça parece estar dando voltas os olhos fixados no chão como quem procura algo, seus pensamentos vagam sem direção enquanto caminha apressadamente rumo ao endereço que viu no jornal. Vai pensando em como seria bom se ele conseguisse uma vaga, chega a imaginar a cara de felicidade de sua esposa quando contasse a notícia, vê o brilho nos olhos dos seus filhos no dia que recebesse e chegasse a casa com bolsas de supermercado repletas. Mas no fundo ele sabe que suas chances são mínimas e que mais uma vez deve voltar para casa sem porra nenhuma.

Alguns minutos depois, lá estava ele e mais umas centenas de pessoas numa fila que atravessava o quarteirão. Cada minuto que passava a angústia aumentava e a fome apertava ainda mais. Havia um senhor vendendo uns biscoitos, ele estava quebrado, só com o dinheiro da passagem.

Algumas horas depois, um homem aparece na porta da empresa e pergunta se todo mundo ali havia concluído o ensino médio. Aquilo foi o fim das suas esperanças, mal concluirá o primário e sempre trabalhara em serviços braçais, tudo o que ele tinha naquele momento era a sua força de trabalho. Sua situação era a descrição exata relatada por Karl Marx no livro “O Capital”. Ao ouvir tais palavras seus olhos

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se encheram de água, parecia que aquele homem lhe dera uma facada no estômago. Ainda atordoado com a notícia, tentou argumentar, o que de nada adiantou, era aquilo e pronto.

Caminhando lentamente e sem direção, ele chega até uma praça e senta, fica ali pensando numa solução pra sua vida e em como reverter aquela situação. Naquele instante de completa incerteza em relação ao futuro ele se pega observando o mundo a sua volta. Crianças, jovens e adultos todos negros vivendo nas ruas, camelôs brigando pra trabalhar, prostitutas, homens e mulheres de negócios vestidos impecavelmente e falando ao celular, como se eles não fizessem parte desse mundo. Carros de luxo, ares de superioridade e desprezo por pessoas como ele. Naquele instante tudo começava a fazer sentido para sua mente, ali ele começava a ver outro mundo que até então não havia percebido. Parecia que haviam colocado uma venda em seus olhos.

Enquanto refletia sobre a sua mais nova descoberta, um jovem passa furtivamente por uma mulher e leva a sua bolsa. Logo em seguida ouvem-se os gritos “PEGA LADRÃO!”. Então, ele olha novamente pra observar melhor e vê uma criança de uns dez anos de idade correndo desesperada pela rua, no mesmo instante vem em sua cabeça à imagem dos seus filhos, aquilo mexe com seus nervos e quase de imediato as lágrimas, que insistentemente segurara até aquele momento, começam a cair.

Depois de alguns minutos, parado com as mãos sobre rosto pra esconder sua fraqueza, ele se recupera e a sensação é de alivio. Parece que haviam arrancado um peso de suas costas. Todo ódio que sentira de si mesmo havia passado e

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não tinha mais motivos para se envergonhar da sua situação, pois sabia que podia revertê-la, principalmente, agora que ele sabia muito bem quem eram os causadores da miséria que vivia o seu povo.

Então aquele homem se levanta e de cabeça erguida sai caminhando em direção ao ponto do ônibus que o levaria para casa, estava disposto a nunca mais se humilhar pra ninguém, se sentir inferior a quem quer que fosse e prometera pra si mesmo que jamais abaixaria sua cabeça novamente. Nascia ali a saga de Zé do morro.

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Voltando ao passado

Ao desembarcar no Aeroporto, Hebron ficou surpreso com o brilho da cidade. Chegara à noitinha e as luzes já estavam todas acessas. Pegou um táxi e indicou o hotel que ficaria. Dentro do táxi pôde observar as pessoas em suas rotinas, uma saindo do trabalho, outras paradas no ponto de ônibus, algumas sentadas num bar saboreando um delicioso copo de cerveja e outras caminhando apressadamente rumo a algum lugar. A Av. Brasil brilhava em sua magnitude, carros e mais carros indo e vindo num vaivém constante. Uma garotinha loira com lindos cabelos cacheados no carro ao lado lhe fuzila com os olhos, e ele retribui com um sorriso e um gesto de tchau. Era sexta-feira e a cidade devia ter muitos lugares para se ir, afinal estava na cidade maravilhosa conhecida no mundo inteiro por sua exuberância e beleza. A noite carioca era bem legal, tal como lhe falara sua mãe, e apesar de já ter passado uns 15 anos não devia ter mudado muito. Ao chegar ao hotel, foi direto para o quarto, não sem antes notar que era observado todo o tempo pelos atendentes do hotel, pelos poucos hóspedes que encontrara, pela recepcionista loira de olhos castanhos claros, seios fartos, lábios com batom um pouco exagerado e, principalmente, pelo gerente que parecia meio receoso com sua presença. Ele era jovem e não disfarçava certo ar de sofisticação, aliás parecia se orgulhar desse detalhe. Falou estritamente o necessário o que causou uma boa impressão em Hebron.

_“Este cara é bastante profissional” _ pensou Hebron a caminho do chuveiro.

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Quando fora morar no exterior Hebron ainda era um garoto de dez anos de idade e não tinha noção real de como era a cidade, o povo, os costumes e a sociedade como um todo. Sua mãe por uma amiga fora morar na Bélgica terra do carniceiro Rei Leopoldo que hoje não passa de histórias tristes de um passado distante. Assim que se estabilizara financeiramente havia mandado levá-lo para lá. Por ser filho único, tivera uma vida bem cômoda, todo o carinho e atenção da sua mãe voltaram-se para ele. Todavia, por não ter conhecido o seu pai biológico nutria certo vazio no peito, mas sabia lidar com aquilo. Formara-se em Medicina e levava uma vida bastante confortável. Todavia, não era suficiente, aquele vazio havia aumentado nos últimos anos, sentia que aquilo o estava sufocando. Perdera toda a referência e contato com a família por parte da mãe e mais ainda por parte do pai. Seu padrasto era boa pessoa, mas não era o seu pai. Sua cultura e valores eram completamente diferentes, tinha uma noção de mundo quase “irreal”.

“Aquele congresso de medicina viera em boa hora” _ pensava enquanto pegava uma garrafa de vinho no frigobar. Sentou-se e, enquanto apreciava o sabor delicioso de um vinho de safra especial, viajava em seus pensamentos. Como seria quando chegasse à casa de sua avó materna, o que ela diria? Como reagiria? No dia seguinte iria rever alguns amigos de infância. “Será que aquela galera do morro ainda se lembraria dele?” _ perguntou a si mesmo.

O dia amanheceu lindo. A brisa do mar invade a janela da suíte deixada propositalmente aberta e toca sua face, despertando-lhe. Hebron se levanta vai até a janela e viaja pela visão do mar.

Eram oito horas da manhã e o calçadão estava lotado.

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Tinha gente fazendo caminhada com o cachorro, gente correndo, andando de bicicleta ou sentada num trailer com um coco na mão curtindo a paisagem. Alguns minutos se vão, enquanto ele observa aquela orla absurdamente linda. A vontade que tinha era de ficar ali por horas e horas, porém o seu destino o esperava. Depois do café da manhã ele pede um táxi e vai direto para o morro onde viviam seus parentes e amigos de infância. A saudade era absurda, queria muito vê-los. Assim que chegou ao morro e perguntou por sua avó todos foram solícitos com o rapaz e o levaram direto à casa dela. Ao chegar a casa, pode notar crianças brincando no quintal, cachorros latindo e muros pequenos entre uma casa e outra. No geral, parecia que as casas eram uma só, as edificações pareciam sair umas de dentro das outras como numa obra inacabada, ainda havia as paredes sem reboco e pintura. Hebron se colocou no portão e chamou:

_ Vó Lurdes! _ Sou eu, Hebron. _ Minha nossa! _ exclamou sua avó com um sorriso

lindo no rosto. Estava de avental, com uma panela na mão e um lenço na cabeça.

_ Cidinha venha aqui, por favor, venha aqui! _ gritou para dentro da casa dona Lurdes, correndo para o portão para abraçá-lo.

_ Nossa, menino, como você cresceu! Como está lindo!

_ Ah! Vó, eu agora sou um homem já, né? _É verdade, mas pra mim não passa de um moleque

bagunceiro. Os dois riam juntos, como se fosse ontem que Hebron corria por aquele quintal quebrando tudo o que via pela frente.

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Os primos, as primas, as tias e os tios de Hebron foram lá na casa da avó Lurdes para vê-lo. Aquilo era como a realização de um sonho para ele. Enfim, estava tendo contato com o seu passado e, poderia saber mais do seu pai já falecido como lhe contara a sua Avó.

_ Faleceu? E como foi, Vó? _ Ah! Ninguém sabe direito apareceu morto ai. Acho

que já tem um ano isso. Também ele não era flor que se cheirasse, devia estar metido com jogo, mulher essa coisas...

_ Drogas? _ Não, drogas não, ele era safado, mas não se metia

com essas coisas. Isso tenho certeza! Apesar de tudo aqueles dias tinham sido formidáveis

para Hebron. Nunca havia se divertido tanto. Fora para vários churrascos, bailes, várias festas. Em geral, preferia ficar no morro. Gostava das pessoas simples daquele lugar, da maneira como era tratado, do riso fácil e da alegria de estar ao lado da sua avó a quem ele amava. Hebron só havia visto um lado da cidade, não tinha tido quase contato com o pessoal do asfalto. Gente atrasada e preconceituosa que parecia viver num país do século XIX. Ao chegar num shopping com seus amigos de infância fora imediatamente apresentado a eles. Nem acreditou que ainda existia gente assim no mundo. Ficara surpreso com a maneira que os vendedores os trataram, era como se não devessem estar naquele lugar, como se estivessem sendo inconvenientes ao pisar naquela lojinha. Mas é claro, se ele estivesse sozinho e falando com sotaque estrangeiro e provavelmente vestido como eles, não o teriam discriminado diretamente, fariam exatamente como fizeram no Hotel nada mais que isso.

_ Covardes! _ pensou, enquanto caminhava pelo

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shopping sob os olhares desconfiados dos frequentadores brancos.

Todavia, Hebron não vira nada, não tinha ideia de como o racismo matava no Brasil. Nunca tinha visto de perto uma batida policial, não tinha ideia de como era a atitude da polícia ao abordar indivíduos que eles consideravam ameaçadores e esses indivíduos eram negros, geral e não coincidentemente, é claro.

Por ter sido criado numa sociedade de primeiro mundo ou que pelo menos desse modo era vista pela sociedade ele não havia tido contato com esse tipo de comportamento medieval que ainda reinava na América Latina. Não, esses valores mesquinhos de quase impedir alguém de entrar numa loja, isso era demais. Especialmente numa sociedade capitalista. Como alguém pode supor que vai obter vantagem ao não vender os seus produtos para um determinado grupo social? Depois de uma semana no Rio de Janeiro ele havia mudado completamente de opinião em relação ao Brasil. Perdera o interesse até pelas praias, sua grande paixão. Foi só se despir das roupas de grife e entrar na pele de um nativo negro que ele passou a ser parado, empurrado, xingado e insultado. Ao ser parado pela polícia e se declarar médico, foi ainda pior.

_ O que você é, médico? Cê ouviu isso Machado? _O Angolano é médico.

_ Se ele é médico, eu sou a Xuxa _ disse um policial com um riso cínico, para logo em seguida sentenciar.

_ Você tem é sorte de não estar com nada em cima, senão tu ia precisar de um médico de verdade.

_Vai some da nossa frente! _ falou outro policial empurrando-o. Depois disso Hebron decidiu voltar para a Bélgica, a

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aventura estava ficando perigosa, podia ser morto a qualquer momento. Já havia ouvido falar do caso do Borel, em que um estrangeiro havia sido morto pela polícia, do caso do dentista em São Paulo e muitas outras histórias no morro onde sua avó morava.

Voltou para seu hotel completamente decepcionado, não tinha a menor ideia de que as coisas eram assim. Já no hotel voltara a ser o médico Belga que viera para um congresso no Brasil. As reuniões profissionais que se seguiram eram frustrantes, não tinha mais cabeça para se concentrar em nada. Decidira partir de imediato para casa, só faria uma última visita a sua avó e partiria. Já no morro comentou com sua avó sobre o acontecido a caminho do hotel no dia anterior.

_ Ah! Meu filho aqui é assim mesmo. Você é negro e para eles todo negro é bandido.

_ É incrível, vó, nunca pensei que um dia passaria por situação tão humilhante. Pensei que aquele homem fosse me matar. Podia ver em seus olhos o ódio.

_ Eu sei meu neto, mas não tenha raiva do Brasil por causa de uma pessoa como essa, pois há muita gente boa nesta terra ainda.

_ Eu sei vó, eu sei. Esperava mais de um país que almeja ser aceito no conselho de segurança da ONU e que vai sediou uma Copa do Mundo e uma Olimpíada. Esperava que pelo menos houvesse mais negros na televisão, já que este é um país mestiço.

E continuou. _ Vó! Nem na TV pública há negros direito, como

pode! Nem os oito anos do Lula na presidência foi capaz de mudar isso!

No dia seguinte Hebron partiria para a Europa, já

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estava com saudade da sua mãe e de voltar a viver num país onde os direitos das pessoas eram minimamente respeitados, onde podia andar tranquilamente pelas ruas sem ficar sendo observado o tempo todo. De ver senhoras escondendo a bolsa quando e atravessando a rua quando eles se aproximavam, pois essa era a sensação que tinha toda vez que saia com seus amigos de infância no Brasil. Era como se as pessoas fossem seus donos. Talvez esse comportamento fosse fruto do passado recente de escravidão no país. As pessoas brancas ainda se comportavam como se fossem responsáveis pelos negros, como se eles fossem incapazes de gerir a sua própria vida. Talvez esse comportamento peculiar fosse um traço marcante da sociedade brasileira que se reproduzia em outras esferas. Ao não empregar negros em certos setores das mais variadas empresas públicas e privadas, ao dificultar a ascensão social, ao não expor a realidade da população negra nos meios de comunicação e legitimar as ações funestas de policiais nas comunidades pobres. Talvez! Já no avião Hebron assisti a cidade ficar para trás, vê o Cristo de braços aberto, a praia e toda aquela exuberância, toda aquela beleza, toda aquela riqueza natural. Era realmente uma pena haver tanto preconceito, tão pouca noção de civilidade, diversidade e de direitos humanos.

Page 122: Um Pouco Além Das Rimas · Seu trabalho tem vida e morte ... psicológico de um homem negro urbano e a sua ... A Metrópole e a Vida Mental. In: VELHO, O. G. (org) O Fenômeno Urbano

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Fim