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Uma Crítica a Reale Fernando Machado da Silva Lima* 15.07.2002 Não, prezado leitor, não se trata de uma crítica ao Ministro Reale, que se demitiu, no episódio da proposta de intervenção federal no Espírito Santo, mas ao seu ilustre pai, o jusfilósofo Miguel Reale. Aliás, uma crítica não a ele, evidentemente, mas à sua famosa Teoria Tridimensional do Direito, crítica extraída de uma resenha que elaborei, por exigência da disciplina Teoria Geral do Direito, no mestrado da Unama. Para Miguel Reale, o Direito não é apenas a norma jurídica, como afirmava Kelsen, não é somente o fato, como querem os marxistas, ou os economistas do Direito, porque Direito não é Economia. Direito não é produção econômica, embora a envolva e nela interfira. Não é um simples instrumento de dominação de classes. O Direito também não é principalmente valor, como pensam os adeptos do Direito Natural. Para Reale, ele é ao mesmo tempo fato, norma e valor. Portanto, a experiência jurídica se manifesta sempre através desses três elementos, e a norma jurídica seria apenas a indicação de um caminho, cujo ponto de partida é o fato, e cujo ponto de chegada é o valor. Assim, para Miguel Reale, o Direito é uma integração normativa de fatos, segundo valores. Mas o Direito não é abstrato, dizia ele, porque também está imerso na vida humana, que é um complexo de sentimentos e estimativas. O

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Uma Crtica a RealeFernando Machado da Silva Lima*15.07.2002No, prezado leitor, no se trata de uma crtica ao Ministro Reale, que se demitiu, no episdio da proposta de interveno federal no Esprito Santo, mas ao seu ilustre pai, o jusfilsofo Miguel Reale. Alis, uma crtica no a ele, evidentemente, mas sua famosa Teoria Tridimensional do Direito, crtica extrada de uma resenha que elaborei, por exigncia da disciplina Teoria Geral do Direito, no mestrado da Unama.Para Miguel Reale, o Direito no apenas a norma jurdica, como afirmava Kelsen, no somente o fato, como querem os marxistas, ou os economistas do Direito, porque Direito no Economia. Direito no produo econmica, embora a envolva e nela interfira. No um simples instrumento de dominao de classes. O Direito tambm no principalmente valor, como pensam os adeptos do Direito Natural. Para Reale, ele ao mesmo tempo fato, norma e valor.Portanto, a experincia jurdica se manifesta sempre atravs desses trs elementos, e a norma jurdica seria apenas a indicao de um caminho, cujo ponto de partida o fato, e cujo ponto de chegada o valor. Assim, para Miguel Reale, o Direito uma integrao normativa de fatos, segundo valores. Mas o Direito no abstrato, dizia ele, porque tambm est imerso na vida humana, que um complexo de sentimentos e estimativas. O Direito uma dimenso da vida humana, um produto histrico-cultural.Mas o prprio Miguel Reale, ao expor a sua Teoria, ressaltava a interferncia do Poder no processo de criao da norma jurdica, e afirmava que sem base de Justia no pode haver ordem, nem segurana, e a riqueza passa a ser privilgio de alguns. O uso da fora, segundo ele, s legtimo quando se funda em razo de Justia.A meu ver, tinha razo Reale quando afirmava que o problema do Poder deve ser concebido em conexo com a experincia axiolgica, e que somente a Justia pode legitimar a fora. Mas esta , no meu entendimento, a lacuna da teoria de Reale, porque no seria tambm, na realidade, uma utopia, a reduo do fenmeno jurdico tricotomia de fato, valor e norma? Como seria possvel determinar cientificamente o significado de Justia? O que seria a Justia? Aquilo que a maioria acredita que justo? No seria essa tambm uma forma de imposio autoritria? Ou seria aquilo que as elites dominantes dizem que justo e impem ao povo, atravs da fora ou da propaganda?O prprio Reale aflorou em sua obra o tema do Poder, e referiu a sua interferncia no processo de criao da norma jurdica, mas no lhe deu a devida importncia. Segundo Reale, o Direito uma integrao normativa de fatos segundo valores. No entanto, como seria possvel evitar que o poder, em todas as suas vertentes, econmicas, sociais, culturais, etc., interferisse decisivamente nesse processo da integrao normativa, para determinar o direcionamento da atividade nomogentica, neste ou naquele sentido, e para fazer as leis de acordo com os interesses e as convenincias dos detentores do Poder?A Histria est repleta de exemplos do que afirmo, e que evidenciam a importncia dos fatores econmicos e polticos e da extraordinria diversidade cultural, ideolgica e poltica dos povos, no processo de criao do direito. Esse processo no pode ser resumido a fato, valor e norma, porque o fato sempre interpretado de acordo com as convenincias, o valor freqentemente deturpado, e a norma s vezes imposta pela fora dos canhes. Alis, aqueles mesmos fatores que interferem no processo de criao do Direito interferem tambm, dramaticamente, no processo de interpretao e aplicao do Direito posto, como poderia ser fartamente exemplificado com a nossa vigente Constituio Federal, porque eles freqentemente anulam princpios fundamentais, como o da soberania, o da cidadania, e o da dignidade da pessoa humana, e impedem a efetivao de inmeros dispositivos constitucionais que consagram direitos e garantias. No seria tambm, assim, a Teoria Tridimensional do Direito, uma doutrina de justificao do Estado autoritrio, semelhana do Leviathan, de Hobbes, ou uma doutrina de hipocrisia, destinada a esconder sob uma aparncia jurdica a realidade dos interesses e do Poder, quando finge ignorar o cerne da questo? Ou ser que algum teria coragem de dizer que a nossa verdadeira Constituio corresponde exatamente ao texto da Constituio Federal de 1.988? A meu ver, portanto, o Direito no pode ser explicado apenas em funo do fato, do valor e da norma, porque a prpria realidade econmica e social origina uma complexa teia de fatores de Poder que interferem, decisivamente, quer no processo de criao da norma, quer na sua interpretao e aplicao. O Direito um processo de libertao permanente, que pode ser negativamente influenciado pelas ideologias jurdicas, manipuladas pelos detentores do Poder. * Professor de Direito Constitucional