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MARIA BETHÂNIA DE ARAUJO
UMA FOICE E MUITAS LEMBRANÇAS:
um caso de filicídio no Paraná escravista do século XIX
CURITIBA 2000
MARIA BETHÂNIA DE ARAUJO
UMA FOICE E MUITAS LEMBRANÇAS: Um caso de filicídio no Paraná escravista do século XIX
Monografia apresentada para obtenção de grau de bacharel em História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. Orientador: Prof. Carlos Lima
CURITIBA 2000
Quando nasceu meu rebento, seu moço Não era o momento dele rebentar Já foi nascendo com cara de fome Eu não tinha nem nome p’rá lhe dar...
O meu guri. Chico Buarque de Holanda Aos curiosos
SUMÁRIO
APRESENTANDO O CASO.................................................................................................2 O ESPAÇO.............................................................................................................................3 A FONTE...............................................................................................................................9 A FAMÍLIA ESCRAVA NA HISTORIOGRAFIA RECENTE..........................................11 EM BUSCA DA HISTORIOGRAFIA: RESISTÊNCIA E FAMÍLIA ESCRAVA............15 O PROCESSO......................................................................................................................19 CONCLUSÃO......................................................................................................................25 REFERÊNCIAS...................................................................................................................27
1
APRESENTAÇÃO
Este trabalho trata das formas de resistência, conflitos, estratégias de fuga, negociação e
insubordinação de cativos frente à sociedade escravista. A maneira de enxergar o mundo e
lógica própria dos escravos ganham destaque sendo a base desta pesquisa. A experiência cativa
torna-se o ponto de partida e seus gritos, murmúrios e silêncios guiam o rumo percorrido na
tentativa de entender como viviam, sentiam e sofriam os escravos, suas formas de adaptação ao
sistema escravista até mesmo a negação da escravidão.
Muitas foram as maneiras encontradas pelos cativos de tornar a sua existência mais
tolerável, negociando no dia a dia maneiras dignas de viver, mesmo que fosse sob o olhar
constante dos senhores . E muitas foram as formas de buscar a liberdade fosse ela individual
ou coletiva, agindo dentro da lei, quando esta permitia, ou se valendo do direito
consuetudinário; encontrando nas fugas e em último caso na morte uma maneira possível de
escapar dos grilhões da escravidão. E é a morte a anfitriã dessa história de vida. Uma vida
sofrida ao ponto de levar uma mãe a cometer o assassinato a sangue frio do único filho que ela
ainda “possuía”.
Partindo de um documento único uma análise comparativa com pesquisas atuais se
apresenta como uma alternativa de estudo. O documento em questão é um processo judicial
instaurado contra a escrava Ignácia, acusada de homicídio.1 O processo, que se encontra no
Arquivo Público do Paraná, conta com o depoimento da ré e também de pessoas de sua
convivência, demonstrando uma ampla rede de relacionamentos, sendo eles vizinhos e
moradores da região e também o depoimento do capitão-do-mato que estava à sua procura.
1 Ignácia (ré), Justiça (autor).PARANÁ, Departamento de Arquivo Público, processo judicial: jp 500, caixa 31, 1868.
2
APRESENTANDO O CASO
Esta é a história de uma escrava de nome Ignácia, nascida na vila de Nossa Senhora de Belém
de Guarapuava no final dos anos de 1820, início de 30, filha de Verônica, escrava de Manoel
Jacinto Mendes. Quando moça teve duas filhas. Três gerações mantinham relações dentro da
propriedade de Mendes, e pode-se apenas especular quantos laços familiares e de solidariedade
haviam naquela senzala. De repente, essa aparente harmonia familiar é quebrada, Ignácia é
vendida a outro senhor: agora passava a ser escrava de João de Abreu e Araujo. No momento da
venda foi firmado um contrato, provavelmente verbal, entre o marido de Ignácia(como não
sabemos seu nome vamos chamá-lo de Teobaldo); ele e seu novo senhor, que estipulava que
este deveria trabalhar durante x anos para conseguir a liberdade da esposa. Labutaram os dois
durante mais de seis anos para João de Abreu e Araujo, confiantes na proximidade da liberdade,
enquanto isso, Ignácia teve um filho que se chamaria Antônio. E a liberdade não chega. Se
sentindo traído Teobaldo sai em busca de justiça, mas a polícia não ajuda em nada. Na
propriedade do senhor, Ignácia e Antônio ainda tem que sentir as agruras da escravidão, e seu
senhor como para se vingar da atitude de Teobaldo, começa a castigar a mãe e o pequeno
Antônio. Chega um momento que a mãe não suportando mais ver seu filho sofrer foge com ele e
vai em busca do marido. Na cidade nada se pode fazer, a não ser ficar em poder de outra pessoa
até que seu senhor viesse buscá-la. Ela não aceita essa condição e acaba fugindo de novo, só que
desta vez para mais longe, para a comarca de Curitiba e se estabelece em Campo Largo. Ali ela
encontra trabalho como agregada nas terras de Dona Joaquina Maria de Bastos. Em algum
momento desta jornada seu marido morre, mas Ignácia, que dizia se chamar Maria e ser liberta,
continua vivendo com o filho que também ganhou um novo nome: José. Se passam quase 4
anos desde que saíra da casa de seu senhor, quando um dia chega a Campo Largo o capitão
Francisco de Bastos Coimbra, encarregado de capturar Ignácia e Antônio. Eles os encontra,
apesar da troca dos nomes, e ao se identificar e dizer a que veio ela pede ao capitão que ele
permita que troquem de roupa para a viagem e entrando em casa para isso olha o filho e se
lembra das sevícias e do sofrimento e prevê o castigo que os aguarda em Guarapuava. Num
momento de loucura ou quem sabe de extrema sanidade ela pega um foice e desfere dois golpes
certeiros na cabeça do filho. Interrogada mais tarde diz que matou o filho para não ter que vê-lo
sofrer no cativeiro.
3
O ESPAÇO
Os campos de Guarapuava, pertenceram à província de São Paulo desde sua
“descoberta” em 1770, pela bandeira chefiada pelo tenente Cândido Xavier de Almeida e Souza,
até a emancipação política e formação da Província do Paraná em 1853, quando passou a fazer
parte do território paranaense. Habitada por índios kaigangs nativos e guaranis expulsos do
primeiro planalto pelos colonizadores, os campos foram palco de lutas territoriais ferozes entre
índios e brancos durante o século XVIII e XIX.
A colonização efetiva da região se iniciou após a chegada da família real ao Brasil, um
decreto do Príncipe regente D. João de cinco de novembro de 1808, endereçada ao governador
de São Paulo, manda ocupar os campos e também escravizar os índios da região, os quais
poderiam ser explorados durante quinze anos, pois eram prisioneiros de guerra. Receberiam
doações da sesmaria quem possuísse escravos, agregados e animais.2 Foi criada a Junta da Real
Expedição e Conquista de Guarapuava que definiu os objetivos da colonização, expressos na
Carta Régia de 1º de abril de 1809, substituindo o extermínio dos índios por:
(manda) civilizar os bárbaros que infestam aquele território(...)
(...) bem entendido que a prisão ou cativeiro dos índios prisioneiros só durará
quinze anos, contados do dia em que foram batizados(...)Bem entendido que os
serviços do índio prisioneiro de guerra poderão vender-se uns a outros
proprietários, pelo espaço que durar seu cativeiro(...)
igualmente vos ordeno que façais remeter para os campos de Guarapuava todos
os criminosos e criminosas que forem sentenciados a degredo.3
Mesmo proibida a escravidão indígena, sua prática era sancionada pelo próprio príncipe
regente, criando assim uma legítima fonte de mão de obra nos campos de Guarapuava. Na
expedição colonizadora vieram militares, civis, homens, mulheres e crianças, clérigos, animais e
escravos. A miscigenação da população guarapuavana foi fortemente marcada pelas presenças
índias e negras, mesmo considerando para os negros um índice quantitativo abaixo doas 10%
até 1825.4 A partir de assentos de batismo pode-se perceber que muitas índias tiveram relações
com brancos e negros, pois um grande número de filhos de mães índias são registrados como de
pai incógnito, o que não aconteceria se o pai fosse índio, mesmo que polígamo.5
Grande parte dos planteis de escravos negros era formada por crioulos oriundos da
Província de São Paulo: Santos, Faxina Itapetininga, Itu, Campo Longo e Sorocaba foram
2 ABREU, A. T.; MARCONDES, G. G. Escravidão e trabalho. Guarapuava: Fundação Universidade Estadual do Centro-Oeste, 1991. 3 Id., p. 90. 4 Id., p. 94.
4
lugares que contribuíram com grande parte da mão de obra. Do Paraná, das regiões de Curitiba,
São José dos Pinhais, Castro, Palmeira e Ponta Grossa também vieram escravos, mas a grande
maioria nasceu em Guarapuava. A transferência de políticos paulistas para a região também
contribuiu decisivamente para a presença negra, pois ao requererem sesmarias na 5ª Comarca do
Paraná, muitos mandaram seus escravos para tomar posse das terras. Sesmarias foram
distribuídas também para pessoas pobres, vindas dos Campos Gerais, e que possuíam apenas um
ou dois escravos, trazendo um pequeno mas significativo aumento na população negra escrava.
Diretamente da África, via Rio de Janeiro ou Paranaguá, também vieram escravos para a região.
Em 1835 uma estatística realizada pelos Inspetores de Quarteirão, registrou setenta e
seis escravos, dos quais 49 eram nascidos em Guarapuava, 23 vindos da Costa Leste da África e
4 de Portugal. Não se registra nenhum escravo nascido em território nacional além dos
guarapuavanos.6 Nos processos de inventários post-mortem é possível identificar a naturalidade
dos cativos, sua idade, estado civil, profissão e valor no mercado criando possibilidades de
pesquisa muito interessantes. Um bom exemplo é o inventário do Coronel Pedro de Siqueira
Cortes.7, aberto em 1882, além de várias propriedades estão arrolados os escravos num total de
36; 21 eram nascidos em Guarapuava; 2 na África; 2 no Rio Grande do Sul; 2 em Palmas; 2 em
São Paulo; 4 em Palmeira; 1 em Maceió e 2 eram de origem desconhecida. Destes 22 eram
homens, 14 eram mulheres, as idades variam de 12 a 65 anos, sendo 7 de 10 a 19 anos, 8 de 20
a 29 anos, 8 de 30 a 39 anos, 7 de 40 a 49 anos, 2 de 50 anos, 1 de 60 e 1 de 65 anos (já libertos
pela Lei do Sexagenário). Segundo a profissão 7 eram lavradores, 13 campeiros, 1 aguateiro e 1
carpinteiro/pedreiro,* todas as mulheres trabalhavam com domésticas, sendo uma registrada
como cozinheira. É ainda registrada a filiação do escravo Job, de 12 anos, que tem a mãe
Genoveva, africana, vivendo no mesmo plantel.
De todos os escravos arrolados somente 2 eram casados; considerando que o casamento
reconhecido pelos brancos era aquele sancionado pela Igreja católica, pode-se especular sobre a
possibilidade de existirem casais que viviam amasiados. Robert SLENES8 em seu estudo sobre
o sudeste encontra em vários planteis casais de escravos que conviviam como marido e mulher
sem estarem legalmente casados pelas leis do direito canônico. Em Guarapuava alguns
proprietários permitiram a união de cativos, mas os dados mostram que apenas um casal de
5 Id., p.95. 6 Id., p.102. 7 Arquivo do cartório da 1ª vara cível do Fórum Dr. Ernani Guarita Cartaxo. Processo n. 244. 1882. Caixan.236 a 254. In: ABREU e MARCONDES, op. cit., p.105-107. * se refere ao escravo Belmiro que foi trazido de Maceió para trabalhar na construção dos casarões de Guarapuava, alforriado por testamento foi um grande abolicionista, conseguindo a liberdade e a tutela de muitos escravos de Guarapuava. 8 SLENES, R. Na senzala uma flor: esperanças e recordações da família escrava, Brasil, sudeste, século XIX, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
5
cada plantel se casou na igreja9. Destes casamentos, num total de 30, entre 1841 e 1878, todas
as mulheres eram escravas, mas haviam três homens livres e dois libertos entre os noivos,
possibilitando levantarmos a hipótese dessas uniões significarem uma aproximação maior com a
liberdade, pois muitos foram os casais que labutaram juntos para a compra da alforria, assim
como Ignácia e seu marido.
A possibilidade de existência de uniões estáveis aumenta se considerarmos a análise do
crescimento vegetativo positivo, mesmo que pequeno, na população escrava. Em 1853 foi
realizado um levantamento populacional no Paraná onde se encontra para o terceiro planalto
(Guarapuava e Palmas) uma população de 3.274 habitantes e 547 escravos10.
Na relação da população de 187211, contabiliza-se 849 cativos em Guarapuava, 776
eram nascidos no Brasil e destes, 656 eram naturais da própria vila e do distrito de Palmas. Um
outro relatório de 187512 (que apresenta dados contraditórios) apresenta 491 escravos, com 1244
filhos ingênuos libertados pela lei do Ventre Livre, muitos dos quais não estavam batizados.[se
considerarmos o número de 491 escravos para os que possuíam filhos e não para população
total, a estatística parece ficar mais próxima dos relatórios anteriores e posteriores.] Um
relatório do Presidente da província Dr. Carlos Augusto de Carvalho, datado de 188213 parece
esclarecer os números.
TABELA 1- TOTAL DE ESCRAVOS ENTRE 1873 E 1882 ( população masculina,
feminina e total)
30.9.1873 entradas saídos falecidos libertos 31.8.1882 Local
m f t m f t m f t m f t m f t m f t
Guarapuava 278/252 530 47/65/112 18/27/45 36/19/55 58/48/106 213/223/436
Palmas
184/152/336 13/24/37 01/04/05 07/08/15 18/19/37 171/145/316
FONTE: ABREU; MARCONDES. op. cit., p. 113.
9 Relação dos senhores que permitiram casamento entre os escravos, Livro 3-B de assentamentos de escravos, Arquivo nossa senhora de Belém de Guarapuava. In: ABREU; MARCONDES, op. cit. p. 198-199. 10 Id., p. 112 11 Id., p. 108. 12 Id., p. 109.
6
TABELA 2 – POPULAÇÃO ESCRAVA EM GUARAPUAVA E PALMAS EM
1872.(população masculina, feminina e total por faixa etária)
Setor urbano Setor rural Local
- de 21
m/f/t/
De 21 a 60
m/f/t
+ de 60
m/f/t
- de 21
m/f/t
De 21 a 60
m/f/t
+ de 60
m/f/t
Guarapuava 10/14/24 37/27/64 00/01/01 65/76/141 182/141/323 20/10/30
Palmas 8/2/10 37/16/53 00/00/00 14/9/23 99/81/180 00/00/00
FONTE: LISTAS NOMINATIVAS, arquivo da paróquia de nossa senhora do Belém de
Guarapuava, departamento de arquivo de s. Paulo In: ABREU E MARCONDES, P.153
TABELA 3 – POPULAÇÃO ESCRAVA EM GUARAPUAVA E PALMAS EM
1882.(população masculina, feminina e total por faixa etária)
Setor urbano Setor rural Local
- de 21
m /f / t
De 21 a 60
m/ f / t
+ de 60
m/ f /t
- de 21
m /f /t
De 21 a 60
m /f/ t
+ de 60
m /f /t
Guarapuava 02/07/09 07/07/14 00/01/01 58/46/104 152/141/293 10/05/15
Palmas 60/58/118 24/37/61 00/00/00 14/04/18 80/39/119 00/00/00
FONTE: ABREU; MARCONDES. op. cit., p. 113.
Ao analisarmos esses dados podemos montar um quadro da distribuição dos escravos
pela região de Guarapuava. Há um razoável equilíbrio entre o número de homens e mulheres,
durante o período de 1873 até 1882; permitindo que se levante hipóteses sobre a possibilidade
de existirem relações familiares nas senzalas. Estudos realizados no sudeste demonstraram que
as ligações afetivas nas senzalas e a permanência da família escrava não foi uma exceção no
sistema escravista. As possibilidades de formação de famílias eram grandes e os escravos
souberam aproveitá-las, negociando formas melhores de viver.
As mulheres entram e saem da região em maior número, demonstrando que,
diferentemente de São Paulo, a mão de obra importada não servia exclusivamente para o
trabalho na lavoura. Percebemos um grande número de escravos concentrado no setor rural,
tanto em Guarapuava como em Palmas; entretanto apesar de um número considerável de
escravos urbanos em Palmas, a maioria destes são menores de 21 anos, possivelmente por ser o
13 Id., p.113.
7
trabalho na cidade mais leve e facilmente realizado pelos moleques e molecas. A partir da
década de 60 o tropeirismo cresce consideravelmente na região promovendo um rápido
enriquecimento dos proprietários e assimilando uma grande quantidade de mão de obra adulta
nos campos.
Mesmo vivendo no cativeiro os escravos tentaram de algum modo reproduzir relações
familiares estáveis, o casamento para eles era baseado mais no costume e na aceitação pessoal
do que nas leis dos brancos. Eugene GENOVESE, estudando o cotidiano da escravidão nos
Estados Unidos a partir de documentos pessoais, como diários e cartas, encontrou vários
indícios que levaram a crer na existência real da família escrava e da não subordinação desta às
leis e sim aos costumes.14
Pode-se ter mais dados para a análise da família ao comparar os dados populacionais
aos registros de batismo da matriz de Guarapuava.15 De 1810 a 1871 foram realizados 398
batismos de filhos de mulher escrava, podemos incluir os filhos de índias escravizadas, sendo 73
de pais legítimos, isto é, pais casados pela igreja; e 325 de pais incógnitos. Outro documento
citado o livro 3-b de assentos de escravos (1810-1872) do arquivo da paróquia de Nossa
Senhora de Belém de Guarapuava, registra 390 batizados de crianças filhas de mulher escrava,
sendo destas 217 de pai incógnito16. Podemos considerar esses registros válidos somente para
dentro do registro canônico, pois é muito pouco provável que numa sociedade que os escravos
adultos viviam espalhados em fazendas, trabalhando na lavoura ou no tropeirismo, que tantos
pais incógnitos existissem na realidade. Portanto a designação incógnito não descarta a
possibilidade da mulher até mesmo viver com o pai de seu filho como casados. Indica a negação
por parte da igreja de aceitar e legitimar uma relação baseada no costume e não nas leis. Depois
da Lei do Ventre Livre há um aumento nos registros de batismo sendo batizados 338 ingênuos,
19 de pais legítimos e 319 de pais incógnitos17. É interessante não aparecer a denominação
ilegítimo, pois essa denominação significava que os pais não eram legalmente casados na época
do nascimento, mas poderiam até mesmo viver em concubinato. A denominação incógnito
talvez abranja os dois tipo de caso.
O aumento nos registros de batismo pode até parecer à primeira vista um aumento na
natalidade escrava, mas esse dados são questionáveis. A prática do batismo dos filhos de
escravos pode estar mais ligada ao crescimento da influência da igreja na vida de Guarapuava,
na estratégia dos senhores de pacificar seus escravos* ou ainda o cumprimento à lei de 1871.
14 GENOVESE, E. A terra prometida: o mundo que os escravos criaram. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. cap. 1 e 2. 15 Arquivo da Paróquia de Nossa Senhora de Belém. Livro de batismo de escravos, de 1810 a 1888. In: ABREU..., op. cit. p. 109. 16 Id., p. 191. 17 Id. p. 109. * Segundo FLORENTINO e GÓES a possibilidade dos escravos constituírem famílias dentro das senzalas foi uma das estratégias de controle utilizadas pelos senhores que mais rendeu frutos para os dois lados.
8
Quanto à cor são registrados, segundo o livro de registros da catedral,18 de 1871 a 1888, 218
ingênuos de cor parda, 103 pretos, 10 de cor fula, 4 mulatos e 5 de cor ignorada.
A porcentagem de escravos na população total da Guarapuava no século XIX ficou na
faixa dos 10%, sendo 19,40% o ápice na década de 60; não ficando muito distante dos números
relativos às localidades da Província do Paraná no mesmo período, que variavam de 18 à 8% de
1830 à 1874, segundo os registros de recenseamento da população. 19 Não possuímos ainda
dados relativos à população não-branca livre em Guarapuava e Palmas, mas pode-se pensar pelo
números de alforriados entre 1873 e 1982(tabela 1), que estas pessoas ajudaram a compor a
sociedade guarapuavana. Os libertos formaram importantes elos de ligação entre os escravos e
livres, transitando pelos dois mundos teceram redes de solidariedade que permitiram
aproximações e realizações de projetos de vida. O marido de Ignácia era livre, não se sabe se era
liberto, foi ele quem negociou o contrato de liberdade dela com o senhor, e foi ele também
quem foi procurar justiça no momento da quebra de contrato, demonstrando toda sua relevância
naquele contexto.
Estes dados reforçam a idéia da possibilidade da formação de famílias cativas na região
de Guarapuava durante a segunda metade do século XIX. Para que a hipótese se confirme ainda
serão necessários levantamentos mais sistemáticos dos dados da população, como registros de
casamentos, batizados, testamentos e inventários post-mortem. No momento fica registrada esta
primeira tentativa de estudo da região dos campos de Guarapuava e o desejo de ampliação da
pesquisa.
FLORENTINO, M.; GÓES, J. R. A paz nas senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c.1790-c.1850. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1997. 18 ABREU; MARCONDES. op. cit. p. 110. 19 SPILLER PENNA, E. O jogo da face: a astúcia escrava frente aos senhores e à lei na Curitiba provincial. Curitiba: Aos quatro ventos, 1999. p. 29.
9
APRESENTANDO A FONTE
“O historiador, contudo, está condenado a trabalhar com as fontes que
encontra, não com as que deseja. Esta, aliás, é sua sina, ciência e arte.”20
Uma única fonte pode trazer informações suficientes para podermos compreender uma
parte das vidas dos que passaram ? Talvez. Mas vários olhares podem trazer para um
determinado documento múltiplas possibilidades de leituras. Sidney CHALHOUB analisando
transações de compra e venda de escravos e ações de liberdade conclui que as interrogações que
surgem na pesquisa a respeito das atitudes e percepções dos escravos diante dos acontecimentos
vão encontrando respostas “(n)à medida em que conseguimos juntar fragmentos, interpretar
detalhes, voltar a olhar, mas com outro olhar, as coisas que vão ficando para trás, e que, de
repente surgem desafiadoras e opacas novamente a nossa frente.”21
No presente caso a partir da leitura de um processo judicial instaurado contra uma
escrava22, encontramos situações recorrentes no sistema escravista. Elementos presentes na
história de Ignácia se transformam em releituras de situações vivenciadas por escravos em
outras partes do Brasil. Mas o conjunto de sua história é único e apesar de situações recorrentes
na escravidão, sua experiência a carregou de significados muito próprios. Pretende-se fazer uma
viagem por esse mundo e tentar resgatar as atitudes dos escravos enquanto um grupo e as
particularidades de Ignácia que a imortalizaram nas folhas de um processo judicial.
Os processos judiciais tem sido uma importante fonte nos estudos sobre o modo de vida
das pessoas livres pobres, libertas e escravos, pois pode-se perceber nas falas dos envolvidos sua
visão de mundo e suas experiências enquanto sujeitos de sua própria história23.
Em um artigo muito lido e discutido pela bibliografia recente sobre a escravidão Robert
SLENES fala sobre a importância dos processos crime como fonte para a história da
escravidão: “Processo crime se impõe para nós como um documento único por sua riqueza de
20 REIS, J. J.; SILVA, E. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 14. 21 CHALHOUB, S. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas de escravidão na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p.113. 22 Ignácia (ré); Justiça (autor). PARANÁ. Departamento de Arquivo Público. Processo Judicial: JP 500, cx. 31. 1868. 23 Leituras importantes sobre o uso de processos judiciais como fontes para a melhor compreensão da cultura popular foram: CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano das classes populares no Rio de Janeiro da Belle Époque. ____________ Visões da liberdade: A história das últimas décadas de escravidão na Corte. FRANCO, Maria Sílvia. Homens livres na ordem escravocrata. PENNA, Eduardo S. O jogo de face: a astúcia escrava frente aos senhores e a lei na Curitiba provincial.
10
informações que revele o calor e a paixão de um episódio e que contribui, tanto quanto uma
fonte de valor qualitativo para a construção do social.”24
Mesmo direcionadas pelo aparato jurídico pode-se encontrar nos depoimentos destas
pessoas indícios sobre suas relações familiares, suas redes de solidariedade e compradrio, suas
noções de justiça e liberdade e seu cotidiano.25
Estamos diante de um tipo de documento que permite a interpretação de seus silêncios,
produto do aparato jurídico e da mentalidade oficial, mas também permite a compreensão do
mundo dos escravos a partir do que eles próprios tem a dizer. Numa situação limítrofe em sua
vida as palavras de Ignácia guiarão os passos desta pesquisa e auxiliarão na reconstituição de
um crime, de uma vida e de um período ainda nebuloso do passado paranaense.
24 SLENES, R. O que Rui Barbosa não queimou: novas fontes para o estudo da escravidão no século XIX. Apud: PARDO, T. Das relações familiares dos escravos no Paraná do século XIX. Curitiba: UFPR, 1993. Tese de mestrado: departamento de história. 25 Sobre a questão da interpretação de textos de outras épocas ver SCHWARCZ, L. M. Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p 17. A autora alerta que tão importantes quantos as informações, que seriam a tradução de sentidos, são os silêncios contidos no texto. Recorrendo a Merleau-Ponty para explicar essa “linguagem do silêncio”, Schwarcz conclui que a “a linguagem diz por si mesma, ainda que se recuse a fazê-lo.”
11
A FAMÍLIA ESCRAVA NA HISTORIOGRAFIA RECENTE
A história da família escrava no Brasil ainda precisa ser recuperada e novas abordagens
e fontes têm contribuído para recentes estudos.26 Deixemos de lado por enquanto a
historiografia que negava a existência da família cativa, retomaremos esta discussão no
momento apropriado. Três obras recentes servem de base para a discussão das possibilidades de
existência da família cativa e suas implicações no sistema escravista.
Robert SLENES nos brinda com um amplo estudo sobre a família escrava no sudeste,
sua estrutura, suas relações, noções de parentesco e seu impacto no cativeiro. Aliando a
antropologia, a lingüística e a demografia à história uma excursão às senzalas traz à tona novas
questões e novos métodos de estudo para a história da escravidão no Brasil.
Hebe Maria de MATTOS em sua pesquisa sobre os significados da liberdade no sudeste
encontra redes de solidariedade e relações pessoais que permearam a vivência dos escravos e
libertos no período de transição do trabalho escravo para o livre. A dinâmica das condições
sociais, culturais, políticas e jurídicas destes atores sociais se juntam ao processo que culmina
com a abolição da escravidão revelando importantes aspectos para a compreensão daquele
período histórico.
Por fim a obra conjunta de Manolo FLORENTINO e José Roberto GÓES, sobre a
família escrava e o tráfico atlântico traz novas informações sobre a visão de família dos cativos
e os limites que a senzala lhes impunha enquanto tais. Levantamentos demográficos a partir de
processos crime, inventários post-mortem e registros eclesiásticos são a base para a pesquisa que
culmina na convicção da existência inegável de relações familiares nas senzalas.
* * *
Robert SLENES encontrou na região sudeste indícios que comprovam que a família
escrava era mais presente e constante do que até agora a bibliografia permitiu pensar. Usando
cruzamento de fontes diversas, tais como inventários post-mortem, testamentos e levantamentos
de registros paroquiais, o autor faz um levantamento demográfico brilhante onde se destacam a
presença das famílias escravas. Taxas de fecundidade, preferências étnicas, estabilidade dos
laços entre pais e crianças, índices de mulheres casadas e viúvas por faixa etária; aliadas ao
tamanho do plantel, vão se delineando e formando um quadro promissor para se repensar a
escravidão, e tão importante quanto isso, abre portas para novos olhares sobre fontes que à
primeira vista parecem tão desprovidas de significados.
Ressaltando que o caso do Sudeste é peculiar e que o modelo de família escrava pode
não se adaptar ao Sul pós-1850, pois esta era uma das áreas estáveis do país, por perder um
grande número de cativos para as fazendas de café, SLENES acredita que, mesmo mais fraca
26 SLENES, R. op. cit. 1999.; MATTOS, H. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.; FLORENTINO, M. ; GÓES, J. R. op. cit.
12
que a paulista, a família no Sul também teve (ou melhor, deve ter tido) sua importância. A
“estabilidade” das propriedades do sudeste traduzia, além da maior prosperidade econômica,
uma “política de domínio senhorial, criada no calor do embate com a senzala.”27 Era uma dança
a dois. Tanto senhores quanto escravos se adaptavam, concediam e cobravam criando
estratégias para a melhor sobrevivência possível.
Sobretudo, [os senhores] tiveram que abrir mão do desejo de cultivar a
“estranheza” entre os cativos—de torná-los “perdidos, uns para os outros”—, para
investir em outras estratégias de controle.(...)
Ao fazerem isso, no entanto, abriram o caminho para os escravos se
“encontrarem”. (...)a família cativa—nuclear, extensa, intergeracional—contribuiu
decisivamente para a criação de uma comunidade escrava, dividida até certo ponto pela
política de incentivos dos senhores, que instaurava a competição por recursos limitados,
mas ainda assim unida em torno de experiências, valores e memórias compartilhadas.
Neste sentido, a família minava constantemente a hegemonia dos senhores, criando
condições para a subversão e a rebelião, por mais que parecesse reforçar seu domínio na
rotina cotidiana.28
Se a família foi um “campo de batalha, um dos palcos principais, aliás, em que se trava
a luta entre escravo e senhor e se define a própria estrutura e destino do escravismo.”29, muitas
foram as vezes que os escravos perderam a batalha. A formação da família cativa forneceu
novas armas aos senhores, pois a família acabou por se tonar “refém“ dessa luta. A venda para
regiões distantes como medida punitiva, a maior dificuldade em fugir abandonando os seus aos
castigos do senhor, a localização da família como pista para descobrir o destino de escravos
fujões, foram algumas das medidas adotadas pelos proprietários.
A compra da alforria para si e para a família pode ter sido um dos motivos que levaram
escravos, em situações que o possibilitavam acumular recursos, ‘poupar’ ao longo do tempo
para a compra da liberdade. Se tornar livre demandava tempo e dinheiro, além disso para que o
ex-escravo realmente se libertasse do cativeiro a criação de laços de parentesco e estratégias de
inserção no mundo dos homens livres eram necessários.
Hebe MATTOS trabalha a questão da socialização e da criação de laços entre homens
livres e escravos. Os códigos culturais eram assimilados por ambos os grupos através da
convivência; experiências tomavam significados e a vivência da liberdade podia ser sentida pelo
escravo. A troca de experiências entre cativos e livres criava uma bagagem importante para os
primeiros na hora da fuga.
Estas esferas diferentes de socialização [escravos, lavradores livres pobres e
senhores] encontravam-se integradas por um mesmo código cultural que reforçava o
lugar social de cada um e as formas legítimas ou possíveis (fuga) de se transitar entre
27 SLENES. op. cit. p. 48. 28 Id., p. 48.
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elas. Neste quadro, a escravidão era praticamente a única relação social efetivamente
institucionalizada.30
A inserção no mundo dos homens livres passava pelo reconhecimento do indivíduo
como tal pela comunidade na qual ele pretendia se fixar. A troca e a criação de uma nova
identidade era a primeira medida tomada por muitos fugitivos na tentativa de começar uma vida
longe do cativeiro. As histórias de muitos desses escravos se encontram nos processos crimes,
geralmente instaurados por causa de alguma violência ocorrida na hora da recaptura. Nestes
casos os fujões trabalhavam e possuíam relações pessoais que legitimavam sua condição de
livre. Muitos camaradas, conhecidos e patrões só descobriam a verdadeira condição do
indivíduo no momento da recaptura ou do crime.
Segundo MATTOS as expectativas em torno de liberdade se forjaram na sociabilidade
das relações familiares e de parentesco dos escravos dos grandes planteis. Tanto a autora quanto
SLENES salientam a importância do tamanho do plantel na permanência ou desagregação da
família escrava. No sudeste, as grandes propriedades eram lugar de destino de muitos escravos
originários de outras regiões, mas as vendas eram pouco freqüentes. A possibilidade de uma
maior estabilidade em relação ao resto do país, fez com que a família escrava do sudeste
pudesse gozar de uma maior incidência.
Laços de solidariedade entre cativos também são destaque na obra de FLORENTINO e
GÓES, “(...) devia se lhes afigurara vital construir laços de solidariedade e de auxílio mútuo que
os ajudassem a sobreviver no cativeiro— a levar a vida, como bem o afirmou Antonil.”31 Os
autores trabalham com a tese que a existência da família escrava instituiu a paz no cativeiro.
Numa sociedade em que freqüentemente novas peças chegavam nas senzalas, produzindo desta
maneira constantemente o “estrangeiro”, a família seria um porto seguro onde os cativos
constituíam um nós em meio à uma intensa reintrodução de braços.
Espécie de meta-nós, era o parentesco escravo a possibilidade e o cimento da
comunidade cativa. Era o solvente imprescindível a senhores e escravos, por intermédio
do qual se tecia a paz das senzalas. Ao cativo, ele tornava possível esconjurara a
anomia, pelo estabelecimento de regras através das quais a vida poderia ser vivida. Ao
senhor , ávido de homens pacificados, permitia auferir uma renda política, cuja
contabilidade, por não parecer nunca de maneira óbvia nos inventários que deixavam,
tem sido com freqüência despercebida. O movimento incessante de criação e recriação
de parentesco cativo era um elemento chave no processo pelo qual se produzia o
escravo.32
A formação constante do estrangeiro é um ponto muito interessante da tese. Não
concordo, assim como SLENES, que a família tenha instituído a paz nas senzalas. Acho mais
29 Id., p.48. 30 MATTOS, op. cit., p.69. 31 FLORENTINO E GÓES, op. cit., p. 36.
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provável que ela tenha existido apesar e acima da vontade dos senhores, pois, afinal de contas,
os escravos também eram seres humanos com desejos e necessidades acima da condição
jurídica que lhes era imposta. Os escravos eram sim, agentes históricos com vontade própria que
lutaram e negociaram a melhor maneira de sobreviver.
Acima de tudo eram relações políticas que regiam a lógica do cativeiro. A manutenção
do poder dos senhores através da coerção, da violência e da imposição de normas de conduta
passava pela negociação e aceitação dessas mesmas normas pelos cativos. Os escravos agiram
como seres políticos, dotados de opiniões e sentimentos peculiares, barganharam e criaram
estratégias para viver da melhor forma possível no cativeiro e também fora dele, tecendo redes
de solidariedade que permitiram sua circulação no mundo dos livres. Mundos que não eram tão
antagônicos quanto se pensava.
32 Id., p. 36.
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EM BUSCA DA HISTORIOGRAFIA: RESISTÊNCIA E FAMÍLIA ESCRAVA
“Por toda a parte a história brasileira é um rosário de
rebeliões e atitudes radicais de escravos rebelados.” 33
Durante mais de três séculos a escravidão ceifou vidas e determinou destinos nas terras
brasileiras, mas houveram aqueles que resistiram e suas atitudes e histórias sobreviveram e
chegaram até nossos dias, mostrando que é possível o resgate de histórias que se supunham
perdidas nas chamas libertadoras de Rui Barbosa34. Novas abordagens e fontes para o estudo da
escravidão no Brasil têm permitido a realizaçào de envolventes trabalhos sobre o tema35. As
atitudes e o modo de vida dos escravos começam a ganhar destaque e a revisão dos olhares
sobre o negro demonstram que muito há ainda para se desvendar. Neste momento um ligeiro e
despretensioso passeio à historiografia sobre a escravidão e a condição jurídica, social e racial
de ser cativo se faz necessário.
Como primeiro estudioso da escravidão no Brasil, Perdigão MALHEIRO, busca no
direito o entendimento da instituição escravista. Em sua obra intitulada A escravidão no Brasil,
publicada em 1860, o jurista demonstra que o escravo se encontra coisificado tanto legal quanto
socialmente. E ainda vai além do discurso jurídico tentando perceber o mundo dos escravos ao
afirmar que: “sem consideração alguma na sociedade, perde o escravo até a consciência da
dignidade humana, e acaba quase por acreditar que ele não era realmente uma criatura igual aos
demais homens livres, que é pouco mais do que um irracional.”36 No entanto é importante não
perder de vista os objetivos de MALHEIRO ao escrever tal obra. Segundo Sidney CHALHOUB
os objetivos dele era “convencer setores mais conservadores das elites da necessidade de se
encaminhar a questão da abolição do “elemento servil“(...)”37 atacando a própria instituição,
que era uma barreira à chegada da “civilização” e do “progresso”. Para MALHEIRO então, o
escravo não irracional porque era escravo ou negro, e sim a própria escravidão é que era algo
irracional e cruel. Mesmo quando afirmava que eram negados qualquer direito, família ou
33 GOULART, J. A. Da fuga ao suicídio: aspectos da rebeldia dos escravos no Brasil. Rio de Janeiro: Conquista, 192, p. 16. 34 Referência ao episódio em que Rui Barbosa manda queimar todos os documentos relativos à escravidão no Brasil. CARVALHO, R. Aspectos da influência africana na formação social do Brasil. In: FREYRE, G. e outros. Novos estudos afro-brasileiros. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937. 35 A partir da obra de Slenes muitos autores tem produzido importantes trabalhos que no momento oportuno serão referenciados. SLENES, R. O que Rui Barbosa não queimou: novas fontes para o estudo da escravidão no século XIX. São Paulo: Estudos Econômicos, v.13, n.1,1983, p.117-49. 36 CHALHOUB, S. op. cit., 36. 37 Id., p. 37.
16
consideração e eram os escravos reduzidos a condição de coisa, era o desmonte da ideologia
escravista o maior objetivo daquela obra.
Nina RODRIGUES, etnólogo e médico-legista foi o principal estudioso da questão
negra em seu tempo, baseado num cientificismo evolucionista e racista, influenciado pelas
idéias da antropologia criminal de Lombroso, considerava a raça negra inferiora e a
mestiçagem mulata prejudicial, imputando ao indivíduo negro um estigma que iria acompanhá-
lo durante muito tempo. Nas palavras do autor:
A raça negra no Brasil, por maiores que tenham sido os seus incontestáveis serviços à
nossa civilização, por mais justificadas as simpatias de que a cercou o revoltante abuso da
escravidão, por maiores que se revelem os generosos exageros dos seus turiferários, há de se
constituir sempre um dos fatores da nossa inferioridade como povo.
(...) extremando as especulações teóricas sobre o futuro e o destino das raças humanas,
do exame concerto das conseqüências imediatas das suas desigualdades atuais para ao
desenvolvimento do nosso país, consideramos a supremacia imediata ou mediata da raça negra
nociva à nossa nacionalidade, prejudicial em todo o caso a sua influência não sofreada aos
progressos e à cultura do nosso povo.38
Gilberto FREYRE contrapõe volta à análise racial, mas a contrapõe a uma análise
pautada na condição socio-econômica de ser escravo, revelando grandes heranças negras na
cultura brasileira . A racismo foi substituído pela harmonia racial. FREYRE, eternizou, no
Brasil e no exterior, a figura do negro submisso e dócil, produto do paternalismo e da
democracia racial vigente na sociedade brasileira. A promiscuidade na senzala, a inexistência
de relações familiares e as relações sexuais entre escravos e senhores ganham destaque na
análise do autor que conclui: “não há escravidão sem depravação sexual”.39 Muitos autores
norte-americanos usaram a obra de FREYRE para comparar a dureza do escravismo anglo-
saxão com a bondade do católico ibérico.
Na mesma época Artur RAMOS negava docilidade do escravo e a bondade do sistema
escravista e vai demonstrar toda a força e rebeldia que o elemento cativa possuía. A busca por
escravos transgressores que não se adaptavam nem aceitavam a condição social lhe imposta vai
permear a obra deste autor.
Na década de 60 um grupo de historiadores e sociólogos conhecidos como a Escola de
São Paulo40, baseados em novas pesquisas históricas e aliados à inquéritos sociológicos, trazem
à luz a dureza da escravidão no Brasil e a permanência de preconceitos e discriminações
impostas aos descendentes de africanos, derrubando a tese de democracia social brasileira de
FREYRE. Mais preocupados com deliberações teóricas, que legitimassem a luta contra a
38 RODRIGUES, N. Os africanos no Brasil. Apud: MOTA, J. F. Família escrava. História : questões e Debates, Curitiba, 9 (16): 108. Jun./1988. 39 FREYRE, G. Apud: Mota, op. cit. p. 110 40 Grupo de Historiadores e sociólogos aglutinados em torno de Florestan Fernandes, Roger Bastide e Caio Prado Júnior
17
política da época, do que com o levantamento de fontes, estes trabalhos ficaram restritos à
crítica da escravidão e suas heranças na sociedade. A dureza da escravidão e os esforços dos
senhores em minar qualquer forma de união escrava, fez com que estes grupos tivessem
relações de parentesco extremamente estáveis e desregradas, segundo Florestan FERNANDES.
A destruição da família impôs aos escravos “condições anômicas de existência” que persistiram
até muito além da abolição, desvalorizando a presença dos negros na sociedade.
Roger BASTIDE, antropólogo francês que residiu no Brasil, analisa a questão da
presença do senhor no caráter psicológico do escravo negro. A “dualidade racial” do escravo
negro nascido no Brasil, sem pai e linhagem, o fizeram interiorizar o patrão branco como seu
pai, o que em várias ocasiões era verdade. Já o filho do senhor, conhecia seu pai branco ao
mesmo tempo que via na ama-de-leite a mãe negra. Para BASTIDE esse mecanismo de
aculturação do negro resultava numa concepção de mundo, de vida e de costumes apropriado
dos brancos. Mais uma vez o escravo era visto como um ser sem identidade própria e sem ações
políticas.
Outro estudioso da Escola Paulista, Fernando Henrique CARDOSO, também tratou os
escravos, libertos, pobres livres, camponeses e índios como instrumentos passivos no processo
de passagem para uma sociedade capitalista e burguesa. Se houveram lutas estas não foram
“embriões de uma luta social maior, capaz de pôr em causa a ordem senhorial.”41 Todas essas
obras, segundo SLENES, ajudaram a “criar um ambiente propício para colocações taxativas e
igualmente desqualificadas dos escravos (e de outros grupos populares) como agentes
históricos.”42
Depois da publicação dos trabalhos do GUTMAN e GENOVESE, na década de 70, nos
Estados Unidos, muitos trabalhos começaram a resgatar a experiência escrava do ponto de vista
dos próprios escravos. Os cativos começam a aparecer como agentes históricos modificadores
do seu destino. Usando novas fontes e aliando-as a pesquisas demográficas a historiografia
encontra o escravo e outros grupos subalternos a partir da “fala” próprio escravo, eternizada em
documentos oficiais como por exemplo os processos-crime .Vários autores têm trabalhado com
este tipo de fonte conseguindo resultados gratificantes e esclarecedores.
Com a obra de Kátia MATTOSO43 a historiografia retorna a FREYRE, com o olhar
reorientado. Com o reforço das obras internacionais o neopatriarcalismo se junta à visão
capitalista da escravidão criando novas conclusões a respeito da escravidão. O consenso, mais
que a coerção, funcionava como medida nas relações entre senhores e escravos. Apesar de
MATTOSO não buscar fontes, ela inova na metodologia, privilegiando o imaginário com base
na nova história francesa. O culturalismo de Thompson, veio com Silvia LARA, João José
41 CARDOSO, F. H. Apud: SLENES, op. cit. p. 32. 42 Ibd. 43 MATTOSO, K. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988.
18
REIS, e Sidney CHALHOUB, trazer mais contribuições que ajudaram a criar novos olhares
sobre o assunto.
Da pesquisa pioneira de Maria Silvia de Carvalho FRANCO44, até os mais recentes de
Silvia LARA45, Sidney CHALHOUB 46, Robert SLENES, Hebe Maria MATTOS, Manolo
FLORENTINO e José Roberto GÓES, testamentos, inventários post-mortem, levantamentos de
listas de escravos nas igrejas e processos-crime têm servido de pano de fundo para pesquisas
que buscam na experiência escrava respostas para as questões do cotidiano da sociedade
brasileira.
A historiografia que tratava o escravo como coisa, agente passivo frente à escravidão ou
degenerador da raça, já foi exaustivamente discutida e superada. Um rápido passeio por ela foi
realizado e acreditamos que foi mais importante para essa trabalho tratar da recente
historiografia sobre a família escrava e suas formas de adaptação à escravidão do que insistir em
modelos ultrapassados de pesquisa.
44 FRANCO, M.S. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo : Ática, 1974., 45 LARA, S. H. Processos crimes: o universo das relações pessoais. Apud: PENNA, E.D. O Jogo da Face. op. cit. 46 CHALHOUB, S. Trabalho, lar e botequim, op. cit. e Visões da liberdade. op.cit.
19
O PROCESSO
“O primeiro ato humano do escravo é o crime.”47
(?)
“ Que o que tem a dizer em seu favor, é que, quando foi para o poder de seu último senhor,
houve a condição de ser ela interrogada liberta, dentro de certo tempo, o que foi contratado
entre o mesmo e seu falecido marido, (...)”
O momento da venda era uma brecha onde os cativos encontravam espaço para a
negociação de sua liberdade. Eram comuns pressões dos escravos sobre o senhor na tentativa de
melhorar suas condições de vida no cativeiro. Ignácia e seu marido buscaram num acordo uma
maneira de conciliar a escravidão, que era real, com o sonho da liberdade que estava por vir.
Segundo a ré um contrato entre seu novo senhor e seu marido estipulava um prazo de
trabalho para a obtenção, de sua liberdade. Não se fala em alforria condicional mas sim, em um
contrato estabelecido entre duas pessoas livres para a compra da liberdade de uma terceira,
afinal não cabia mais exclusivamente ao senhor arbitrar a liberdade de seus cativos, a liberdade
passou a ser, cada vez mais, negociável. CHALHOUB encontrou na Corte vários exemplos de
escravos que interferiam na hora de sua compra e venda, negociando formas mais justas de
cativeiro ao mesmo tempo que moldavam significados para a liberdade.48 E estes escravos
encontravam caminhos tão diversos quanto suas histórias para chegar à ela. Entretanto, era
também um tempo de incertezas e angústias pois o futuro estava em jogo, a separação[quebra
de laços familiares e de amizade] das pessoas conhecidas, a possibilidade de ir para um lugar
distante, a adaptação a seus novos senhores e o medo de ir labutar em uma fazenda de café*,
faziam desde momento um locus de tensão na vida dos envolvidos.
Vários processos judiciais dão conta de mostrar a vasta rede de solidariedade que os
cativos teciam em torno de si, seja nas cidades integrados à multidão ou no campo contando
com livres pobres, libertos e também pessoas mais abastadas às quais se ligavam por meio do
compadrio49. FLORENTINO e GÓES ressaltam que a relações de compadrio por meio do
batismo estreitava os laços de convivência entre os escravos e entre estes e os homens livres: “o
sacramento do batismo foi uma oportunidade aproveitada pelos cativos para tecer laços de
proteção e ajuda mútuas.”50
47 GORENDER, J. Apud: FLORENTINO... op. cit., p 31. 48 CHALHOUB, op. cit. Especialmente capítulos 1 e 2. * id., p. 159. A ida dos escravos para as fazendas de café reduziam drasticamente suas chances de conseguir alforria. 49 Ver CHALHOUB, op. cit.; MATTOS, op. cit.; SPILLER PENNA, op.cit.; FRANCO, M. S. C. op. cit. 50 FLORENTINO..., op. cit., p. 92.
20
*
“(...)mas ele [o senhor] não quis cumprir o contrato apesar de trabalhar seu marido para esse
fim prestando-lhe serviços por mais de seis anos, e saindo ele por esta razão a procurar a
justiça,(...)” “(...) encontrou seu marido que tinha vindo falar com a Polícia, mas que nada
sendo impossível obter-se senão ficar ela interrogada aqui na cidade em poder de uma pessoa
até que chegasse seu senhor”
O marido de Ignácia saí da propriedade já com destino certo: ele vai à polícia para
buscar justiça. A percepção que os escravos tem da polícia como uma aliada na sua busca pela
justiça é recorrente em vários lugares. Estudando a Corte CHALHOUB conclui que:
“ histórias de escravos – e ocasionalmente libertos – que pensam em recorrer à polícia no sentido
de conseguir alguma proteção, ou mesmo que parecem cometer um crime com o objetivo de
escapar de um destino indesejável, se sucedem com uma regularidade espantosa.”51
SPILLER PENNA encontra para Curitiba situações parecidas, principalmente a partir da década
de 70 o poder público, mesmo quando não tinha a intenção, estava “ao lado” da causa dos
escravos:
“(...) uma quantidade significativa de escravos passou a impor limites bem concretos
às atitudes de dominação senhorial, por meio da fuga para as cadeias ou delegacias
públicas, onde eram depositados até resolverem suas pendências com os
senhores(...)”52
Talvez em meados da década de 60 fosse mais complicado para os escravos ou seus
aliados encontrar no poder público a solução para seus problemas. No entanto a busca pela
polícia traz indícios que a prática já existia e que alguma mudança era melhor que nada. Ser
depositado em poder de outra pessoa era uma estratégia que pouco a pouco tomou forma e,
valorizada pelos cativos, auxiliou muitos a buscarem um futuro mais digno e justo. Os escravos
possuíam noções claras de justiça, direitos, deveres e cobravam, explícita ou implicitamente, a
aplicação dessas noções.
*
“(...)mais tarde foi para o lugar onde morava ultimamente onde de novo a quiseram prender
para conduzi-la outra vez a sua casa, ou à casa de seu senhor (...) que então vendo que ela iria
continuar a sofrer principalmente por causa de seu filho, que ela interrogadas preferia antes
ver morto do que penando, matou-o e ficou assim ela interrogada sofrendo só (...)
Ignácia toma uma atitude drástica e definitiva ao assassinar seu filho, ao mesmo tempo
que interrompe o retorno de ambos ao cativeiro, atrai para si um novo e imprevisível futuro. Um
instante de insanidade mudou o rumo de sua vida. Casos de filicídio são raros na bibliografia,
mas talvez não tenham sido raros no dia a dia dos cativos. Métodos anticoncepcionais, abortos e
51 CHALHOUB, op. cit., p. 176. 52 SPILLER PENNA, op. cit., p. 167.
21
infanticídios podem ter sido comuns diante das possibilidades que o sistema escravista impunha
aos cativos. Este é um tema que precisa de mais pesquisas para sua confirmação. Segundo
FLORENTINO e GÓES, em alguns relatos de viajantes há alusões sobre práticas abortivas e
suposições sobre o costume do coitus interruptus. No entanto os autores concordam que era
possível que os escravos também se casassem ou amancebassem para gerar filhos, mesmo
dentro de um sistema violento e explorador. Um grande exemplo da influência do sistema
diretamente na vida dos indivíduos é o caso que abre a referida obra.
Marcelino era um crioulo que morava com a mulher e a mãe em Curral Falso, Campo
dos Goitacazes. Havia ganhado a alforria pelo testamento de seu senhor, o capitão Manuel
Antônio Barroso, proprietário da fazenda Partido. Ele havia conseguido a liberdade, no entanto,
seus filhos continuavam cativos do filho e herdeiro do capitão. Um dia Marcelino chamou seus
filhos num dos canaviais que circundavam a propriedade para lhes dar a benção. O que passou
na cabeça dele nunca se saberá, o que é certo é que ele pegou um facão e matou os dois filhos,
de seis e sete anos de idade. Disse a um parceiro que as havia matado para “não vê-las escravas
de seu senhor moço.”53 Interrogado mais tarde disse não estar em seu juízo perfeito e não sabia
porque havia feito tal coisa.
Hebe MATTOS também encontrou, não um, mais dois casos de filicídio, ambos
seguidos de tentativa de suicídio. Justina matou os três filhos e depois tentou o suicídio cortando
a garganta, foi capturada oito dias depois, julgada e condenada a 42 anos de trabalhos forçados.
MATTOS encontrou indícios no processo de que Justina temia ser vendida sem os filhos e no
desespero os matou. Nascida e criada na propriedade, Justina tinha em seus filhos a terceira
geração com a família de seu senhor. É possível que a iminência de ser vendida como castigo e
não mais poder ver os filhos criou uma tensão tamanha que o apelo à morte foi a única saída
encontrada por ela.54 Outro caso de infanticídio relatado por MATTOS têm como protagonista a
escrava Maria Rosa. Ela também matou os três filhos que tinha e tentou o suicídio, perguntada
sobre a razão de tal desatino disse que era por causa de intrigas que estavam fazendo dela.
Pergunta igualmente sem resposta. A perda da posição e do prestígio conquistado em casa, a
venda para o sertão, a separação da família, a perda do sonho de liberdade são algumas das
hipóteses que MATTOS levanta para explicar o porquê de tais comportamentos.
SPILLER PENNA ao estudar os cativos em Curitiba encontra vários momentos de
tensão em que os escravos tiveram que “rever sua própria condição, tomando atitudes sutis ou
diretas que, mesmo não se tornando explícitas, revelam uma postura digna e uma astúcia
corriqueira que devem ser encaradas pelos historiadores.”55 E ele encontra em Walter Benjamin
a resposta para tais atitudes: “articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como
53 FLORENTINO..., op. cit., p.16. 54 MATTOS, op. cit., p 112-114. 55 SPILLER PENNA, op. cit., p. 91.
22
ele de fato foi`. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no
momento de um perigo.”56
O momento de perigo para Ignácia acontece na chegada do capitão à sua casa. O retorno
à casa do senhor implicaria em grandes castigos, não só para ela mas também para seu filho, a
volta à condição de cativa depois de anos gozando de liberdade. A insistência em salientar os
castigos como injustos pode ser vista como uma estratégia de Ignácia para mostras que seu
senhor era injusto e mau no trato com os escravos. Todas as cinco testemunhas do processo
afirmam que ouviram a ré dizer que matou o filho porque seu amo era muito mau. Para os
escravos mais que a luta contra um sistema explorador, o cotidiano era a batalha contra um
senhor real, severo e injusto. A noção de castigos “justos” permeava a relação entre senhor e
escravo, o castigo aceito como justo era aquele medido e moderado que servia como um
elemento pedagógico. Segundo GORENDER57 a “dimensão pedagógica” do castigo físico se
inseria na relação pessoal de amor e medo, mercê e rigor que mediava o cotidiano de senhores e
escravos.
“[o castigo]Inseria-se num cotidiano de dentro do qual a criatividade
dos escravos se revelava nas estratégias de resistência e acomodação. O escravo que se
acomodava era agente histórico mais relevante do que aquele que simplesmente repelia
a escravidão. Tendo o escravo como ator a escravidão deixava de ser relação imposta e
se convertia em relação contratual. Como parte num contrato, seria vantajoso ao
escravo confirmar a expectativa senhorial de fidelidade, obediência e trabalho assíduo
para obter a alforria e outras vantagens.” 58
Podemos voltar a partir desta citação para uma questão interessante no caso de Ignácia:
a questão do contrato. Sabemos que um contrato de trabalho foi feito entre seu senhor e seu
marido com intuito de no final de determinado tempo ela se tornar liberta. A reciprocidade entre
as partes é um dos pontos principais em qualquer tipo de contrato. No caso em questão cabia à
Ignácia e seu marido trabalhar um determinado número de anos na propriedade de João de
Abreu e Araujo; da mesma forma ficou estabelecido que o senhor se comprometia a libertar a
escrava findo o período trabalhado. Ela se sente injustiçada pois faz sua parte e seu senhor não
cumpre a promessa de libertá-la castigando-a, assim como a seu filho, quando seu marido sai
em busca de ajuda. Para Ignácia a parte do contrato que cabia a ela e seu marido estava
cumprida, ela se via como liberta e por isso foi em busca de justiça. Mas o sistema não lhe deu
razão, a justiça almejada se perdeu nas entranhas do aparato jurídico que protegia aos poderosos
em detrimento da verdade. A fuga se tornou a única solução para que seu projeto de vida se
realizasse. E durante algum tempo ela viveu em liberdade. Liberdade esta que não se resumia a
não ver mais seu filho castigado ou não ter que trabalhar mais, mas que significava sua inserção
56 Id., p. 91. 57 GORENDER, J. A escravidão reabilitada. São Paulo: Ática, 1990, p. 23. 58 Ibd.
23
total no mundo dos livres, conquistada através de laços de solidariedade e de reconhecimento de
sua nova condição jurídica.
Claude MEILLASSOUX, analisando a origem do conceito de livre encontra em
Benveniste o sentido de liberdade.59 Para o segundo são os homens que “nasceram e se
desenvolveram conjuntamente” que são livres. O estranho é aquele que não se desenvolveu no
mesmo meio social. Se nos utilizarmos desta idéia para a história de Ignácia, ela poderia ser
considerada livre mesmo em cativeiro, quando cresceu e viveu junto aos seus na senzala de
Manoel Jacinto Mendes. Se tornou estranha no momento de sua venda para José de Abreu e
Araujo, e novamente teve que criar laços para se reinserir na comunidade escrava. Quando fugiu
e buscou refúgio em Campo Largo a criação de novas relações e a adequação à nova condição
jurídica que ela criou demandou uma nova ‘desestrangeirização’ para sua aceitação naquela
comunidade. A liberdade encontrada só teve fim com seu desmascaramento pelo capitão do
mato e no desfecho trágico de sua história.
Todas as testemunhas do processo afirmam que só ficaram sabendo da verdadeira
condição de Ignácia quando aconteceu o crime. Todos acreditavam que ela era liberta. A
primeira pessoa a testemunhar foi o capitão Francisco de Bastos Coimbra. Contratado pelo
senhor de Ignácia para recapturá-la, diz que conhece a ré e o filho dela, há mais ou menos
dezoito meses e apenas há quatorze dias conheceu a identidade da mesma através de seu amo,
que encomendou a ele que pegasse os dois. O capitão e Manoel da Rosa estavam esperando a ré
se arrumar para a viagem quanto o delito ocorreu.
(...) e indo ele testemunha [o capitão] para onde ela morava, e achou só o filho
e perguntou pele Mãe, este respondeu que estava no Monjolo para donde seguiu ele
testemunha e Manoel da Rosa em procura dela aonde encontrara, e pelos sinais dados
por seu amo reconheceu ser a mesma a escrava de quem tinha recomendação, a prendeu
e quando ele testemunha amarrava ela pediu que não amarrasse que ela não escapava e
ele tstemunha assim o fez trazendo solta até o dito rancho onde ela residia, e entrando a
ré para dentro pegou a mesma sua roupa, estando o filho a sair para o lado de fora com
ele testemunha e o dito Rosa, ela chamou o filho para dentro e mudou a roupa nele e
este lhe perguntava, para donde iam, ela respondia que iam para casa de seu senhor
visto que eram cativos, tornou o dito filho a sair para fora, ela tornou a chamar e levou
para um canto aonde ficava encoberto dele testemunha, e nessa ocasião ele testemunha
ouviu uma pancada e o grito do filho, e lhe disse o dito rosa que ficava mais em frente a
ela ré que ela estava matando o filho e entrando para dentro tomaram da ré uma foice e
viu ele testemunha o filho de bruço no chão com dois golpes na cabeça dos quais
morreu instantaneamente, e no mesmo ato ele e o dito Rosa amarraram e entregaram ao
respectivo inspetor daquele quarteirão(...)
59 MEILLASSOUX, Claude. Antropologia da escravidão: o ventre de ferro e dinheiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. Capítulo introdutório.
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Manoel de Lima Teixeira, 18 anos, conhecido como Manoel da Rosa, foi a segunda
testemunha ouvida no processo Natural do distrito, lavrador, morador do distrito do Rodeio, diz
que conhecia a ré há pouco tempo pelo nome de Maria e que morava no mesmo quarteirão,
como agregada de Dona Joaquina Maria de Bastos, a título de liberta. Diz ainda que ouviu a ré
dizer que matou seu filho porque seu amo é muito judeu. Thobias Alves Pereira, 23 anos,
solteiro, comerciante, natural de São José dos Pinhais, diz que conhecia a ré que vivia como
agregada da mãe dele “a título de liberta”, e que só ficou sabendo ser a ré escrava do dia do
delito para cá. Declarou também que ouviu da ré que ela matou seu filho para não ir em poder
do seu amo, visto que o mesmo a judiava e que a tudo mais não queria que seu filho sofresse.
Antônio de Ramos Teixeira, mais ou menos 38 anos, casado, lavrador, natural da freguesia de
Nossa Senhora da Piedade de Campo Largo, disse que sabe ser a ré agregada de Dona Joaquina
Maria de Bastos há aproximadamente um ano. Achava que a ré era liberta e hoje sabe que ela é
escrava. Perguntado se sabia o motivo para a ré matar o filho disse que ela lhe falou que matou
o filho para não ter que servir seu amo que era muito mau. O último depoimento é do lavrador e
também morador do quarteirão do Rodeio, João Ribeiro de Lima, casado, com mais ou menos
30 anos de idade, disse que ouviu a ré dizer que “matou o filho para não servir mais seu amo
visto ser este muito mau.”
Todas as testemunhas concordam que Ignácia cometeu assassinato porque não queria
que seu filho sofresse com a volta à casa do senhor, por ser aquele muito mau. As testemunhas
conheciam a ré e o filho há algum tempo e nenhuma delas sabia que Ignácia era uma escrava
fugida, todos acreditavam que ela era liberta. Nenhuma das testemunhas menciona o marido de
Ignácia, e a senhora que empregou-a sequer depõe nos autos do processo, o que é uma pena se
considerarmos as valiosas informações que ela poderia fornecer sobre Ignácia, pois acredito que
como que estava sendo julgado era um crime de homicídio e não a fuga e a troca de identidade
da escrava não eram importantes para o inquérito estes detalhes.
A história de Ignácia é muito peculiar e demonstra algumas das estratégias dos escravos
para negociar uma vida melhor. Eles não eram coisas, objetos móveis ou anomias, como parte,
já superada, da historiografia fez pensar. Foram sim, seres dotados de vontade própria,
lutadores, negociantes e acima de tudo pessoas, que como todas as outras, possuíam
sentimentos, sonhos e projetos de vida e tentaram, na medida do possível, viver mais
dignamente e encontrar a liberdade. Ignácia não conseguiu a liberdade que almejava, pois seu
marido e seu filho estavam mortos e ela condenada à quatorze anos de prisão com trabalhos,
mas ao mesmo tempo que estava presa era pessoa livre, não mais escrava, pois seu amo havia
desistido dos direitos sobre ela no decorrer do processo. Um novo tipo de escravidão se
mostrava para esta valente escrava, que mesmo com todas as adversidades não deixou de ir atrás
de seu sonho de liberdade.
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CONCLUSÃO
“(...) e se a gente não fica corrigindo o livro
pelo resto da vida é porque o mesmo rigor de ferro que faz
falta para começá-lo se impõe na hora de terminá-lo.”
Gabriel Garcia Márquez
O escravo passivo, a mulher degenerada e a família anômica, são visões da escravidão
brasileira que não tem mais espaço na historiografia recente. O árduo trabalho de levantamento
de fontes nos arquivos, mesmo sendo sujo e cansativo, é necessário para que, cada vez mais,
possamos compreender a dura vida dos que passaram antes de nós. É Robert SLENES quem
chama a atenção não só para as fontes, mas para a importância da interpretação destas. Os
relatos de viajantes dos séculos XVIII e XIX, que muitas vezes serviram de fonte para o estudo
da família escrava, são repletos de preconceitos derivados da época e da visão européia de quem
os escreveu. Para uma análise mais fidedigna do passado é necessário colocar numa balança
todos os prós e contras do uso destas fontes. Não se deve tampouco relegá-las, a sua importância
já está mais que provada exatamente por mostrar visões de mundo diferentes e às vezes
antagônicas, que permitem entender melhor as ambigüidades do passado.
A busca de fontes para um trabalho de pesquisa pode se tornar uma verdadeira tarefa de
detetive. Ao nos depararmos com um documento intrigante a primeira coisa que vem à cabeça é
a pergunta: será que vou conseguir reunir provas suficientes para conseguir reconstituir o caso?
Às vezes o destino dá uma mãozinha revelando indícios e possibilidades. Mas na maioria das
vezes é o trabalho incessante que rende frutos. Leituras e mais leituras, releituras do mesmo
documento e aos poucos as fontes permitem que entremos no universo misterioso do passado.
As memórias dos sobreviventes enchem de rumores, gritos, choros, tristezas e alegrias as
páginas manuscritas de algum processo judiciário ou testamento. São estes documentos que nos
levam para mais perto do cotidiano dos populares, sejam eles escravos, libertos, homens livres
pobres, comerciantes, negociantes e até mesmo o modo de vida dos senhores, das sinhás e da
casa grande são revelados.
Escutar os ecos do passado e aprender com eles a reconstituir um tempo que não volta
mais. Momentos de tensões, revoltas, medos, incertezas, conflitos e negociações permeavam a
vida dos escravos pelas inúmeras senzalas do Brasil. Cada qual com seu destino e seus
suplícios, mas todos com sonhos de uma vida melhor. Estratégias pessoais ou coletivas para
acabar com a escravidão, ou fazê-la mais branda e suportável, foram postas em prática.
Negociando dia a dia, com paciência de quem sabe esperar a melhor hora para agir, os escravos
foram modificando sua sina e conquistando espaço na sociedade. Desenvolveram costumes que
se transformaram em regra, fazendo com que o mesmo sistema que os relegava e os enxergava
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apenas como objetos móveis nos primeiros tempos, criasse leis para afirmar seus direitos ante
toda a população.
É nesse contexto que das páginas de um processo judicial surge Ignácia, uma escrava
foragida que no momento de sua recaptura matou seu próprio filho de apenas cinco anos de
idade. Questionada mais tarde diz que não agüentaria vê-lo sofrer no cativeiro. Para Ignácia a
morte seria melhor que a vida de escravo. Mas quais foram os motivos que a levaram a matar
seu filho? Durante todo o interrogatório ela afirma que matou o filho para este não sofrer nas
mãos do senhor que era muito mau, e que a lembrança de ir sofrer no cativeiro a fez ficar fora
de si e por isso matou o filho, diz que se tivesse pensado melhor talvez não o fizesse. As
testemunhas afirmam que ouviram-na dizer que este foi o motivo. A tensão emocional
decorrente da captura e do inevitável retorno aos castigos, que sempre eram mais severos para
escravos que haviam fugido, fez uma mãe tomar uma atitude desesperada e sem retorno.
Selando seu destino e transformando seu futuro Ignácia escapou da fúria do seu senhor, mas
teve um novo cativeiro, talvez pior que o primeiro porque se encontrava sozinha e no meio de
estranhos. No entanto a luta de Ignácia para modificar sua condição e proporcionar um futuro
mais digno para seu filho não passou despercebida e a mesma justiça que lhe negou auxílio na
disputa com seu senhor a imortalizou nas páginas poeirentas e amareladas de um processo
judicial que ainda tem muito para contar.
A venda para um novo senhor, a estipulação de contrato de trabalho visando a liberdade,
a quebra do contrato, a busca por justiça, os castigos, a fuga, a adoção de uma nova identidade,
e a descoberta da real condição jurídica são elementos presentes em várias histórias de escravos
brasileiros e muitas mais são as histórias de vida que ainda estão “escondidas” nos arquivos,
cartórios, igrejas e lugares que ainda vão ser descobertos por incansáveis pesquisadores ávidos
por boas histórias e realizados por desvendar um pouco mais das vidas daqueles que foram
explorados por tantos e tantos anos e ajudaram, mais que todos, a constituir o povo brasileiro.
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FONTE MANUSCRITA
PARANÁ, Departamento de Arquivo Público, processo judicial: Ignácia (ré), Justiça (autor).
JP: 500, caixa: 31, 1868.
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