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UMA GRAMÁTICA DA FORMA PARA ANÁLISE DE HABITAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL NO BRASIL: O CASO DO CONJUNTO HABITACIONAL JARDIM SÃO FRANCISCO Keywords: habitação de interesse social, conjunto habitacional, implantação urbana, gramática da forma. CONTEXTO DA PESQUISA A partir da segunda metade do século XX, o problema habitacional no Brasil, intensificado pela explosão territorial das cidades e o agravamento das condições urbanas, tornou urgente a discussão sobre o tema e a definição de novas abordagens para o desenvolvimento de habitação de interesse social de qualidade, a custos acessíveis. O desenvolvimento de estudos relativos ao déficit habitacional no país tem sido amplamente difundido pelos órgãos nacionais como a Secretaria Nacional de Habitação do Ministério das Cidades e abordados nos programas de pós-graduação das principais universidades brasileiras. No entanto, as pesquisas sobre habitação de interesse social no país têm se dedicado principalmente à análise das políticas públicas habitacionais e de novos sistemas construtivos, contudo poucos estudos têm enfatizado a importância da implantação urbana na configuração dos espaços públicos e qualidade dos empreendimentos. Como conseqüência, na maioria dos conjuntos habitacionais vê-se a imagem típica de casas idênticas repetidas ao longo de ruas, ou a versão mais densa baseada em edifícios de apartamentos. OBJETIVOS Este trabalho faz parte de uma pesquisa que tem como objetivos analisar as diferentes possibilidades de implantação urbana nos conjuntos de habitação de interesse social, e suas consequências para os espaços coletivos. O objetivo específico dessa pesquisa é propor um método de projeto que permita a obtenção de espaços urbanos de melhor qualidade nesses conjuntos.

UMA GRAMÁTICA DA FORMA PARA ANÁLISE DE … · Para isso, serão analisados os projetos: Malagueira - Portugal, desenvolvido por Álvaro Siza em 1977, conjunto habitacional no México,

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UMA GRAMÁTICA DA FORMA PARA ANÁLISE DE

HABITAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL NO BRASIL: O CASO

DO CONJUNTO HABITACIONAL JARDIM SÃO FRANCISCO

Keywords: habitação de interesse social, conjunto habitacional, implantação urbana,

gramática da forma.

CONTEXTO DA PESQUISA

A partir da segunda metade do século XX, o problema habitacional no Brasil,

intensificado pela explosão territorial das cidades e o agravamento das condições

urbanas, tornou urgente a discussão sobre o tema e a definição de novas

abordagens para o desenvolvimento de habitação de interesse social de qualidade,

a custos acessíveis. O desenvolvimento de estudos relativos ao déficit habitacional

no país tem sido amplamente difundido pelos órgãos nacionais como a Secretaria

Nacional de Habitação do Ministério das Cidades e abordados nos programas de

pós-graduação das principais universidades brasileiras. No entanto, as pesquisas

sobre habitação de interesse social no país têm se dedicado principalmente à

análise das políticas públicas habitacionais e de novos sistemas construtivos,

contudo poucos estudos têm enfatizado a importância da implantação urbana na

configuração dos espaços públicos e qualidade dos empreendimentos. Como

conseqüência, na maioria dos conjuntos habitacionais vê-se a imagem típica de

casas idênticas repetidas ao longo de ruas, ou a versão mais densa baseada em

edifícios de apartamentos.

OBJETIVOS

Este trabalho faz parte de uma pesquisa que tem como objetivos analisar as

diferentes possibilidades de implantação urbana nos conjuntos de habitação de

interesse social, e suas consequências para os espaços coletivos. O objetivo

específico dessa pesquisa é propor um método de projeto que permita a obtenção

de espaços urbanos de melhor qualidade nesses conjuntos.

Para isso, serão analisados os projetos: Malagueira - Portugal, desenvolvido por

Álvaro Siza em 1977, conjunto habitacional no México, desenvolvido por Christopher

Alexander em 1976 e conjunto habitacional Jardim São Francisco, Setor VIII - Brasil,

desenvolvido por Demetre Anastassakis, em 1989.

Neste artigo é apresentada a análise do conjunto habitacional Jardim São Francisco,

com a intenção de verificar o método de projeto utilizado para obter um resultado

satisfatório tanto na definição dos espaços internos da unidade habitacional, bem

como na configuração dos espaços públicos.

Com o uso da gramática da forma como metodologia de análise, é apresentado a

seguir um estudo do setor VIII desse conjunto habitacional, que se localiza na zona

leste de são Paulo.

DESCRIÇÃO DO CASO

O conjunto habitacional Jardim São Francisco, Setor VIII, foi resultado de um

concurso nacional destinado à construção de habitação de interesse social no

município de São Paulo no ano de 1989. A equipe vencedora foi coordenada pelo

arquiteto Demetre Anastassakis. Este conjunto constituí-se por uma área de cerca

de 10.000 m2 ocupada por 154 habitações.

A proposta apresentada fundamentava-se na valorização de elementos construtivos

pelo povo, como a vila, a esquina e a praça; rompendo as formas espaciais

tradicionais usadas em projetos de habitação de interesse social no Brasil. Baseava-

se no conceito da individualidade da casa, mas articulada com o espaço coletivo.

Visando aliar a redução de custos a princípios de conforto e beleza, buscou-se criar

grupos de casas geminadas, assimétricas, com acessos em planos diferenciados e

com pequenos pátios, que serviam como espaços de convívio individualizados. Essa

estrutura de “vilas”, caracterizada por uma rede complexa de espaços também

contemplava a possibilidade de expansão da moradia ao longo dos anos, de acordo

com os recursos e as necessidades das famílias.

O ESPAÇO PÚBLICO NO CONJUNTO SÃO FRANCISCO

O conceito baseava-se na idéia de um embrião modulado (concebido em material e

método construtivo regional – alvenaria estrutural) e algumas regras básicas usadas

na composição e expansão da casa, o que dava a flexibilidade, permitindo que as

mesmas pudessem adquirir a feição dos moradores. Por utilizar uma tecnologia

construtiva bastante simples e conhecida suas ampliações poderiam ser facilmente

realizadas por meio de sistemas de mutirão. Esse sistema compositivo, que partia de

um programa padrão (sala, cozinha, WC e 2 dormitórios) resultou em sete tipos

diferentes de casas, no entanto, para o desenvolvimento das regras foram

selecionadas 4 tipos de planta para compor o corpus da pesquisa (Figura 01).

Fig. 01 – Plantas e modelos geométricos digitais do corpus da pesquisa.

A ocupação das “vilas” no terreno seguiu um sistema de regras que visavam a

alteração mínima na topografia, por meio do aproveitamento máximo das curvas de

nível, a organicidade das soluções, a mixagem de residências, praças (com áreas

verdes) e espaços cívicos (Figura 02). O objetivo era criar uma estrutura

caracterizada por uma forte marcação territorial (dentro/fora) e aumento da

permeabilidade dos espaços, com variedade de áreas sombreadas, ensolaradas e

redução de barreiras ao vento. Essa estrutura de composição teria níveis diferentes

de privilégios de ventilação, iluminação, privacidade visual, e, teria o seu perímetro

valorizado pela criação de pórticos de entrada.

Figura 02 - Implantação do conjunto habitacional Jardim São Francisco e foto

(Fonte: Google earth e PINA, 2008).

GRAMÁTICA DA FORMA

O formalismo conhecido como gramática da forma (do inglês shape grammar) teve

seu início a partir de um artigo publicado por Stiny e Gips em 1972, no qual foram

estabelecidas as bases do que viria a tornar-se a mais importante abordagem

algorítmica do processo de projeto.

Desde sua invenção, essa área tem crescido exponencialmente, envolvendo um

número cada vez maior de exemplos de aplicações e problemas de investigação. A

gramática da forma consiste em um método de geração de formas baseado em

regras e tem sua origem no sistema de produção do matemático Emil Post e na

gramática generativa de Noam Chomsky. Ao longo dos anos, tem sido explorada em

diversas aplicações para a resolução de problemas projetuais, permitindo a geração

de projetos a partir de uma forma inicial, por meio da aplicação recursiva de regras

compositivas (DUARTE, 2007; KNIGHT, 2000; CELANI et al, 2006).

Uma gramática da forma é desenvolvida a partir da definição dos seguintes

elementos (CELANI et al, 2006):

1. Vocabulário de formas – Para o desenvolvimento de uma gramática,

primeiramente, é preciso definir um conjunto finito de formas primitivas que

farão parte da gramática. Essas formas podem ser bi ou tridimensionais.

2. Relações espaciais - Em seguida, são estabelecidas as combinações

espaciais desejadas entre as formas primitivas do vocabulário.

3. Regras - A partir das relações espaciais são definidas regras de

transformação do tipo A_B (ao encontrar A, substitua por B). Essas regras

podem ser do tipo aditivas ou subtrativas.

4. Forma inicial - Para dar início à aplicação das regras, é necessário selecionar

uma forma inicial, pertencente ao vocabulário de formas.

DESENVOLVENDO A GRAMÁTICA

A utilização da gramática da forma para análise foi aplicada pela primeira vez por

Stiny em 1977, para a caracterização de um conjunto de regras capaz de gerar

desenhos de janelas tradicionais chinesas (CELANI et al, 2006). Dessa forma, na

presente pesquisa, esse método permitiu a identificação das características típicas

empregadas no projeto do conjunto habitacional Jardim São Francisco e a partir

disto desenvolver propostas de intervenção para outros casos semelhantes. Assim,

para o desenvolvimento da gramática da forma, foram estudados tanto os projetos

das unidades habitacionais como a formação dos blocos de casas e o tipo de

implantação no terreno.

A seguir descreve-se as gramáticas desenvolvidas:

UNIDADES HABITACIONAIS

As casas do conjunto habitacional Jardim São Francisco caracterizam-se por plantas

com combinações simples de cômodos retangulares, especialmente idealizadas

para proporcionar uma construção facilitada, já que foram construídas em esquema

de mutirão. No entanto, a simplicidade das formas não significa uma monotonia nas

construções, já que as diferentes possibilidades de combinações permitiram uma

variedade de tipologias, pois os moradores puderam discutir com os arquitetos

responsáveis a combinação dos elementos.

No total foram desenvolvidas 7 tipos diferentes de plantas. Para compor o corpus de

análise desta pesquisa foram selecionados 4 tipos – definidos como R1, R2, R3 e

R4. As plantas apresentam clareza nas combinações entre retângulos numa

abordagem bidimensional e ao analisarmos os volumes das edificações,

observamos que sob este aspecto, temos a combinação de cubos na formulação

dos ambientes.

Partindo da abordagem volumétrica foi elaborada uma gramática da forma a fim de

analisar a metodologia empregada.

VOCABULÁRIO DE FORMAS DAS UNIDADES HABITACIONAIS

O vocabulário é composto basicamente por dois tipos de paralelepípedo que

possuem as dimensões máximas possíveis para uma construção, sendo o primeiro

com as dimensões 3,00 m x 4,50 m x 2,50 m (largura x profundidade x altura) e o

segundo 3,00 m x 3,00 m x 2,50 m (Figura 03). Se as dimensões forem alteradas,

devem ser mantidas para todas as formas utilizadas em um mesmo modelo.

RELAÇÕES ESPACIAIS/REGRAS

As relações espaciais possíveis com as formas definidas consistem em posicionar

os paralelepípedos lado a lado ou um sobre o outro respeitando as seguintes

condições:

- Área do pavimento superior deve ser menor ou igual a área do pavimento

térreo

- Área mínima do pavimento térreo deve ser de 4,50 m x 6,00 m

- Número máximo de pavimentos = 2

Figura 03: Vocabulário de formas e regras.

A gramática desenvolvida se mostrou capaz de gerar todas as casas do corpus de

análise (Figura 04) e ainda propor novas abordagens, mostrando assim, sua eficácia

e potencial (Figura 05).

Figura 04: Derivação das regras.

Figura 05: Geração de novas casas.

BLOCOS HABITACIONAIS

Para a composição dos blocos formados pelas unidades habitacionais, as regras

utilizadas correspondem às mesmas definições e critérios adotados para as plantas.

No entanto, foram definidas as seguintes restrições:

Número máximo de casas por bloco – 4 unidades

Número máximo de pavimentos – 3

Figura 06: Aplicação de regras para blocos tipo B1 e geração de novos blocos.

Figura 07: Aplicação de regras para blocos tipo B2 e geração de novos blocos.

IMPLANTAÇÃO DO PÁTIO

Para a utilização da regra de formação de pátio é necessário a inserção de blocos

adjacentes perpendiculares e composição com o número máximo de 6 blocos

(Figura 08).

Figura 8: Regras para implantação de pátio e derivações.

Figura 8: Regras para implantação de rua e aplicação da regra.

COMPARAÇÃO COM OUTROS CONJUNTOS HABITACIONAIS JÁ

ANALISADOS

Como dito acima, a análise do conjunto São Francisco faz parte de uma pesquisa

mais ampla, na qual foram analisados outros conjuntos habitacionais. A seguir é feita

uma comparação entre o conjunto São Francisco e os conjuntos da Malagueira, de

Álvaro Siza, e o conjunto habitacional no México, de Christopher Alexander. O

conjunto habitacional da Malagueira, localizado em Évora – Portugal, foi projetado

por Álvaro Siza e engloba 1200 habitações, construídas a partir de 1977 até hoje.

Esse conjunto apresenta mais de 35 plantas diferentes organizadas a partir do

alinhamento das ruas. José Duarte (2007) utilizou a gramática da forma para

analisar as unidades habitacionais da Malagueira e reconhecer as regras de projeto

incorporadas por Siza e seus colaboradores no desenvolvimento das casas.

Contudo, nesse caso o uso da gramática da forma se restringiu à organização

interna das edificações, talvez pelo fato de que a implantação era bastante simples,

organizada em filas ao longo das ruas.

O conjunto habitacional desenvolvido por Christopher Alexander e seus

colaboradores no México, construído por mutirão em 1976, se diferencia do projeto

de Siza, pois apresenta a organização das unidades habitacionais em aglomerados

(clusters), criando, assim, espaços públicos mais fluidos e diversificados entre as

casas. Esta forma de implantação urbana permite o convívio e apropriação do

espaço pelos moradores, bem como possibilita diferentes configurações e melhor

adaptação ao terreno – como no caso do conjunto São Francisco. Segundo

Alexander (1985):

“However, before they come to the stage of laying out their houses, they must first

play a role in laying out the common land between their houses, so that this public

unit of space, this common land which leads into their houses, is not some abstract

mechanical thing, done for them by the city or by a developer, but is itself unique and

personal to all the families, a collective expression of their will, a permanent part of

the world which is uniquely "theirs".”

A implantação urbana do conjunto São Francisco, estruturada em “vilas” que

acompanham a topografia do terreno, assemelha-se ao conjunto projetado por

Alexander, pois ambos apresentam espaços públicos que aumentam a

permeabilidade entre as edificações e definem uma composição diversificada de

casas, pátios e praças.

A análise dos conjuntos habitacionais demonstrou que por meio da gramática da

forma foi possível identificar a existência de sistemas combinatórios no projeto das

casas projetadas por Álvaro Siza e Demetre Anastassakis e presente na implantação

urbana do conjunto São Francisco. As situações em que foi possível detectar a

existência de regras subjacentes de combinação apresentam uma complexidade

e/ou variedade geométrica tal que resulta em maior diversidade de espaços e

consequentemente de situações urbanas, contudo, sem onerar demasiadamente o

projeto e a construção, pois existem repetições, ainda que estas estejam

“disfarçadas”.

DISCUSSÃO

A presente pesquisa demonstrou que o método da gramática da forma permitiu

verificar a existência de arranjos combinatoriais nos projetos analisados, dessa

forma, esse método também pode ser considerado uma estratégia viável e eficiente

para gerar novos projetos, pois permite que se obtenha uma variedade de opções a

partir de um número relativamente reduzido de peças, que podem ser cômodos - no

caso da gramática da forma para definição da unidade habitacional – ou blocos de

casas/apartamentos, considerando o âmbito da implantação urbana.

REFERÊNCIAS

ALEXANDER, C. The production of houses, Oxford University Press, Oxford, 1985.

CELANI, G. Beyond analysis and representation in CAD: a new computational

approach to design education. 2002. Tese (Doutorado em Architecture: Design &

computation) - Department of Architecture. Massachusetts Institute of Technology,

2002.

CELANI, G. ; GODOI, G. ; CYPRIANO, D. ; VAZ, C. . A gramática da forma como

metodologia de análise e síntese em arquitetura. Conexão (Caxias do Sul), v. 5, p.

180-197, 2006.

DUARTE, J.P. Personalizar a habitação em série: Uma Gramática Discursiva para

as Casas da Malagueira do Siza. Tese de doutorado. Lisboa: Ed. Fundação

Calouste Gulbenkian, 2007.

KNIGHT, T. W. Transformations in Design: a Formal Aprroach to Stylistic

Change and innovation in the Visual Arts Cambridge, England: Cambridge

University Press, 1994.

KNIGHT, T. W. Shape Grammars in education and practice: history and prospects

International Journal of Design Computing, Sydney, v. 2, 1999-2000. Disponível

em <http://www.mit.edu/~tknight/IJDC>.

Revista Arquitetura e Urbanismo, 1990, Concurso Jardim São Francisco, no 30,

jun/jul. pp. 58-60.

Revista Projeto (1990), Jardim São Francisco, no 130, pp. 110-111.

Revista Projeto (1990), no 134, pp. 86-87.