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JOÃO SALGADO JUNIOR RÔMULO AUGUSTO OLIVEIRA AGUIAR VIVIAN SENA CUNHA LUCAS Uma vida, outra história Trabalho de Conclusão de Curso de Comunicação Social para bacharelado em Jornalismo Orientador: Prof. Doutor Ary José Rocco Júnior São Paulo 2010

Uma Vida Outra História

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Aqui está o nosso Trabalho de Conclusão de Curso. Uma espécie de embrião de um grande projeto.

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Page 1: Uma Vida Outra História

JOÃO SALGADO JUNIOR RÔMULO AUGUSTO OLIVEIRA AGUIAR

VIVIAN SENA CUNHA LUCAS

Uma vida, outra história

Trabalho de Conclusão de Curso de Comunicação Social

para bacharelado em Jornalismo

Orientador: Prof. Doutor Ary José Rocco Júnior

São Paulo 2010

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AGRADECIMENTOS

A Deus por nos dar coragem frente aos desafios de cinco anos de estudos

Aos nossos familiares por ter paciência conosco no desenvolvimento desse projeto

Aos professores que nos acompanharam nessa caminhada

Aos nossos colegas de turma com quem compartilhamos conhecimentos, dúvidas,

questionamentos, tristezas e alegrias

A todos que contribuíram de forma positiva para chegarmos até aqui

Page 3: Uma Vida Outra História

Sumário

Introdução ................................................................................................................. 04

Pastor Waldir Alves de Souza .................................................................................. 06

Eduardo José Martins Magalhães Júnior – Dudé ..................................................... 15

Kica de Castro .......................................................................................................... 23

Gonçalo Borges ........................................................................................................ 31

Referências Bibliográficas ........................................................................................ 39

Bibliografia complementar ........................................................................................ 40

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INTRODUÇÃO

Superação, essa é a palavra que combina com os relatos compostos no livro-

reportagem, pessoas com diversos motivos para reclamar e não tinham o porquê de

agradecer pela vida, mas quebraram todas as barreiras do medo e do preconceito

até conquistarem seus objetivos. O grupo formado por três estudantes começou a

pesquisar quais perfis se enquadrariam no trabalho, não poderia ser qualquer um e

sim aquelas que passaram por situações delicadas. No viés de superação se

reergueram, e hoje ajudam outros de situação igual ou semelhante as que foram

sofridas.

Com garra e determinação, o trio acredita que esse livro-reportagem pode

mudar de alguma forma o modo de pensar e agir da sociedade como um todo.

Muitos desconhecem o assunto preconceito, até mesmo por se acharem perfeitos. O

ser humano desrespeita as pessoas portadoras de qualquer deficiência física, seja

ao colocar seu automóvel na vaga preferencial, deixar de ajudar um cego a

atravessar uma avenida movimentada, olhar com descaso para um cadeirante,

dentre outros exemplos. Portanto, não há melhor forma do que eles mesmos, os

entrevistados, para contar os detalhes das situações vividas no dia-a-dia e os

obstáculos superados em suas vidas.

Em busca dos personagens, o primeiro encontrado foi o pastor Waldir, na

época era artista de teatro. Ele relatou que usava todos os tipos de drogas e a mais

utilizada foi o LSD, porque estava na moda dos anos 70. Em meio a altos e baixos

ele soube se reerguer e com a importante ajuda de sua mulher, Waldir conheceu o

evangelho, converteu-se, estudou teologia e medicina, deu aulas em faculdades

como médico legista e abriu uma casa de recuperação para dependentes químicos.

Essa primeira história virou projeto piloto na faculdade, ao passarmos pela

pré-banca fomos em busca de mais personagem e, assistindo ao SBT Repórter,

conhecemos Eduardo Magalhães, mais conhecido como Dudé, que nasceu com má

formação congênita, passou por diversos preconceitos, mas com boa educação e

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vontade de vencer, superou tudo. Formado em Direito, já no estágio viu que não

tinha vocação para a área jurídica, preferiu a carreira de músico. Hoje tem um

estúdio musical, leciona, é modelo fotográfico, toca até bateria, e, detalhe, ele não

tem parte dos braços.

Após conhecer um pouco da vida e rotina de Dudé, fomos apresentados à

Valquíria Carrara, cujo nome artístico é Kica de Castro, uma publicitária que se

especializou em fotografia. No Centro de Reabilitação, onde trabalhava não estava

contente, por não saber como lidar com as pessoas deficientes que precisavam tirar

fotos para prontuários médicos. Depois de algum tempo teve a ideia de transformar

a simples sala onde atendia os pacientes, em um estúdio de fotografia. Lá os

pacientes se sentiam valorizados e Kica ficou feliz em saber que tudo aquilo era fruto

de sua inteligência, o que aumentou a auto-estima dos portadores de deficiência.

Finalmente o quarto e último personagem foi indicado pelo orientador prof.

Ary Rocco. Fizemos uma busca na internet e pegamos o contato dele para fazer a

entrevista. Gonçalo Borges é um artista plástico que também nasceu com má

formação congênita. Por não ter movimentos nos braços, quando criança adquiriu

habilidade com os pés. As limitações que impunham eram rejeitadas por ele mesmo,

com muita vontade e dedicação, trocou os membros superiores pelos inferiores e

aperfeiçoou os movimentos com a boca. Gonçalo diz que embora as dificuldades

enfrentadas na época, jamais pensou em desistir. Hoje faz parte da Associação

Pintores com Bocas e os Pés, onde aprendeu todas as técnicas de pintura. Ele é

determinado, tirou até carteira de habilitação e comenta que nunca se envolveu em

acidente de trânsito. Em seu Ateliê, no bairro da Penha, expõe todas as suas obras

de arte, é casado pela segunda vez e tem duas filhas.

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PASTOR WALDIR ALVES DE SOUZA

Page 7: Uma Vida Outra História

APRESENTAÇÃO

Casado há 34 anos, pai de três filhos e avô de três netos, duas meninas e um

menino. Esse é Waldir Alves de Sousa, conhecido como pastor Waldir. Hoje está

aposentado, mas quando perguntam o que faz profissionalmente, logo responde:

“recupero vidas”.

Foi ator de teatro, enveredou-se para as drogas, foi preso e finalmente se

formou em medicina. Sua juventude foi repleta de perdas, acidentes e decepções

que o levaram a repensar qual caminho percorrer.

A seguir leia na íntegra a história desse homem que conseguiu se levantar e

hoje ajuda jovens com a mesma situação e crêem na esperança de uma vida

melhor.

Page 8: Uma Vida Outra História

A JUVENTUDE

Waldir Alves de Sousa nasceu no Hospital São Paulo, na Vila Clementino em

São Paulo há 55 anos. Sua família era simples e humilde, morava no Parque Bristol,

próximo ao zoológico da capital paulista.

Quando jovem Waldir gostava de conhecer as coisas, de criar e até mesmo

imaginar. Tinha muitos amigos, adorava freqüentar festas. Nessa época, como

muitos adolescentes, ele experimentou de tudo um pouco, mulheres, álcool e

drogas.

Aos 21 anos, o rapaz iniciou a carreira de ator no teatro, na década de 70.

Naquela época o Brasil passava por uma série de transformações políticas e

culturais. Vivíamos o regime militar e a censura começava a se intensificar. Diversos

artistas foram exilados, porém os que ficaram faziam manifestações alternativas.

As amizades, o mundo encantado do teatro e as facilidades da noite

paulistana, levaram Waldir a conhecer o mundo das drogas. Ele usou de tudo um

pouco, começou com a maconha, depois passou a usar droga injetável e LSD.

Segundo Waldir, a sensação que a droga provocava em seu organismo era

de avançar no tempo. “Estamos em 2008 e de repente nós iríamos para 2023. Aí

que comecei a entender o que Raul Seixas dizia na música Eu nasci a dez mil anos

atrás”, explicou.

Os amigos do teatro se encontravam praticamente todas as noites na casa de

Waldir e iam direto para o quarto, lugar onde usavam as diversas drogas do

momento.

Nesta fase, seus pais e parentes não desconfiavam que o rapaz já estava

dependente do vício. Eles achavam que a alegria era por causa da juventude.

Page 9: Uma Vida Outra História

A DESCOBERTA

Certo dia, Waldir comprou um conjunto de móveis novos para o seu quarto e

quando chegou, a sua mãe estava empolgada pela conquista do filho. Resolveu

então ajudá-lo na montagem.

O rapaz não sabia como despistar o entusiasmo da mãe, afinal ali era o

reduto onde as drogas circulavam livremente. Desconversou, tentou contar piadas e

até mesmo falar sobre o teatro, mas ela queria montar o tal dormitório.

No momento em que tiravam o dormitório velho para colocar o novo no lugar,

a mãe se espantou com o que vira: várias latas de leite em pó, mas não era leite que

continha no invólucro e sim um grande estoque de maconha.

Além disso, outras drogas foram encontradas ali, como pó branco (cocaína),

cola e até comprimidos. Todo material encontrado por ela, abastecia as “festinhas”

diárias dos amigos que o ajudavam a consumir.

A mãe ficou arrasada, não sabia o que falar, simplesmente chorou. A vida

para Waldir continuou normal, de dia trabalhava e a noite fazia teatro. Na semana

seguinte alguns colegas o chamaram para ir a Embu das Artes para comer

cogumelos, mas ele recusou o convite.

A PRISÃO

Depois de um dia corrido, Waldir voltando para a casa resolveu fumar um

baseado de maconha para relaxar. Após ter andado uns 10 metros, o rapaz ouviu

um barulho e logo se desfez do cigarro.

Era uma viatura preta e branca da Polícia Civil. Logo os homens armados

desceram do veículo e pararam o jovem por terem sentido o cheiro forte da erva. O

Page 10: Uma Vida Outra História

fato de Waldir dispensar a tal droga pelo caminho não adiantou muita coisa, porque

ele tinha mais em sua bolsa.

Ele quis passar por inocente. “Moço o que é CD? Eu não sei o que é isso”,

dizia Waldir se referindo ao LSD. Com essa postura, não deu outra, apanhou

bastante, foi algemado e levado para a cadeia.

Ficou oito dias preso, na quarta-feira santa, quinta-feira, sexta-feira da paixão,

sábado de aleluia e domingo de páscoa. Essas datas ficaram marcadas na vida de

Waldir. “Na segunda tinham 78 caras na cela, eu vi de tudo ali, desde ladrão até

estuprador”, relatou.

Um primo que era sargento da Polícia Militar descobriu onde ele estava.

Então o policial contratou um advogado para tirar o rapaz daquela situação. E

quando chegou em casa se deparou com uma senhora magra e com cabelos

brancos.

Ele não reconheceu a mãe, que havia emagrecido uns 20 quilos. “Quando vi a

minha mãe naquela situação não acreditei e logo pensei no desgosto que havia

causado a ela”, definiu. A mágoa foi grande e no primeiro dia de julho de 1973 ela

faleceu.

SINCRETISMO RELIGIOSO

Waldir e sua família se diziam católicos, porém gostavam também de

freqüentar o candomblé. De manhã iam as missas e a noite ao terreiro. Ele era fiel

as atividades da religião afro brasileira. Fazia rezas, trabalhos espirituais, sacrifícios

e também acendia velas para os orixás.

O rapaz namorava uma moça que morava em Santo Amaro, zona sul de São

Paulo, próximo a Represa de Guarapiranga. Eles gostavam de freqüentar os bailes

da época.

Page 11: Uma Vida Outra História

Certo dia um primo da garota veio visitá-la, como eles já estavam de saída,

resolveram convidar o jovem, que tinha 18 anos a ir à festa com o casal. Divertiram-

se muito, principalmente Waldir, porque usou droga a vontade.

O dia estava amanhecendo quando a festa acabou. Eles fizeram um outro

tipo de passeio, dessa vez mostraram ao primo como era a Represa Guarapiranga.

A alegria e animação continuavam em um ritmo que não tinha fim. Todos

entraram na água, menos o primo. Brincadeiras daqui e dali, muita conversa e

gargalhadas.

Waldir sempre andava com uma guia em volta do pescoço, com as seguintes

cores: preta, branca e vermelha. Segundo ele, ela representava Exu (entidade do

Candomblé). Ao nadar, ele bateu na corrente e quebrou.

Desesperado chamou a namorada e o primo dela. “Vamos sair daqui, porque

a minha guia estourou e isso não é um bom sinal”, disse. Todos retornaram para a

casa da namorada, ouviram música e dormiram.

Como o primo não havia entrado na água, logo que acordou, ele insistiu para

que Waldir o levasse novamente na represa. Dessa vez, os irmãos, os primos e

alguns amigos do jovem acompanharam a nova aventura.

Caminharam uns dois quilômetros até chegar no local, que estava repleto de

pessoas. Entraram na água, brincaram, mergulharam e quando menos perceberam

já estavam no fundo da represa.

Tentaram voltar para a beira da praia e quando se deram conta, o primo já

estava afundando, só enxergavam os braços do garoto. Então Waldir nadou até ele.

Estava bem fundo, deu várias braçadas e se cansou.

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Largou o menino, voltou e respirou, quando foi pegá-lo não conseguiu achar.

Todos ficaram apreensivos, mobilizaram-se, chamaram o Corpo de Bombeiros, mas

encontraram o primo morto.

A consciência de Waldir pesou. “Eu sabia que alguma coisa ruim ia acontecer.

Deveria ter tirado a guia, afinal eu tinha que ter alguns cuidados”, relatou. No dia do

enterro ele comprou de tudo, caixão branco, roupa branca e flores, mas mesmo

assim o pai do garoto não perdoou.

A MUDANÇA

Já casado com Iara, e com dois filhos pequenos, Waldir ainda insistia com as

drogas e a religião. Sua esposa era evangélica e vivia em um outro ritmo.

Costumava ser assídua nos compromissos com sua igreja.

Todas as tardes, Iara convidava algumas senhoras da igreja em que

freqüentava para orarem em sua casa, afinal o vício já tinha tomado conta de Waldir

e a mulher não sabia o que fazer para resgatar o marido das drogas.

Certo dia ele chegou do serviço e lá estava o grupo de mulheres em oração,

na intenção da libertação de Waldir do vício. Como eram pentecostais e acreditavam

nos dons espirituais, logo a esposa foi batizada com o Espírito Santo.

Pentecostal é uma vertente dentro do cristianismo que acredita em uma

experiência direta e pessoal com Deus através do Espírito Santo. No Brasil o

movimento começou na década de 60 e hoje conta com diversas denominações,

como batistas, metodistas, assembléianos, entre outras.

Iara disse para Waldir que teve uma visão em que Deus estava limpando o

seu quarto e pediu para ele descansar. Um dos quartos da casa era para montar o

altar dos orixás e também fazer os rituais do candomblé.

Page 13: Uma Vida Outra História

Waldir disfarçou e foi até lá, porque lembrou que tinha um tijolo de maconha

guardado no tal “quartinho”. Naquela época havia um poço em seu quintal, mas a

água já era encanada.

Ele jogou a droga lá e depois fechou o poço com entulho. Ficou com medo

dos traficantes irem cobrar, mas lembrou da promessa de Deus. Além disso, ele

também fumava cigarro e sofreu para largar o vício.

Segundo Waldir tudo aconteceu naturalmente, ouvindo e sendo ministrado

pela palavra, a Bíblia. Foi batizado, colaborou na igreja como obreiro, depois foi

diácono até chegar a pastor. (todos são ajudantes, aspirantes a líderes da igreja).

SÓ A MÃO DO ANJO Como Waldir era carismático e tinha facilidade para fazer amizades iniciou um

trabalho de evangelização no Parque D.Pedro, região central de São Paulo. Lá ele

entregava folhetinhos com o endereço da igreja que pastoreava.

Para sua surpresa sempre chegava algum mendigo para ouvir a palavra e

cada vez o numero de ouvintes aumentava. Desse grupo um era freqüentador

assíduo das palestras e Waldir se sentiu incomodado e queria ajudá-lo.

Waldir chegou a pedir ajuda a um pastor mais experiente e pelo qual tinha

grande admiração. Ao explicar sua situação, esse pastor falou brincando para ele

levar os homens para casa. Mas ele levou a sério essas palavras.

Quando percebeu sempre acabava levando um para sua casa. Um, dois, três,

dez. “Nossa e agora o que fazer?”, exclamou. A rotina era acordar cedo, tomar café,

levar os filhos para a escola e trabalhar. Iara não agüentava mais tanto homem em

casa, mas quando voltava de um dia cansativo, a casa estava arrumada e a comida

feita por eles.

Page 14: Uma Vida Outra História

O coração amolecia e mais um dia eles ficaram. Ele tinha um terreno em São

Lourenço da Serra e com os dízimos e ofertas dados na igreja em que pastoreava,

construiu uma clínica de recuperação, chamada Só a mão do anjo.

Lá cada um tem a sua missão, um lava, outro passa, pinta, planta, colhe,

cozinha. Além disso, fazem terapia com pessoas voluntárias, tem aconselhamento,

aulas sobre a Bíblia. O tratamento é baseado em 12 passos de conscientização.

O primeiro deles é o reconhecimento da impotência, parecido com o

tratamento dos Alcoólicos Anônimos – AA, que compartilha experiência a fim de

resolver o problema e ajudar os outros a se recuperar.

Hoje a Clínica Só a mão do Anjo atende 40 pessoas, sobrevive de doações e

trabalhos voluntários. Para Waldir, todos que estão lá são considerados como filhos

e declara “todas as pessoas tem o direito da segunda chance, porque Deus já dizia:

atire a primeira pedra quem nunca pecou. Sem contar que temos de amar o próximo

como Cristo nos amou”, finalizou.

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EDUARDO JOSÉ MAGALHÃES MARTINS JÚNIOR – DUDÉ

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APRESENTAÇÃO

Cantor, ator, modelo fotográfico, técnico de som, bacharel em direito. Já foi

vendedor de instrumentos musicais e baterista em uma banda do colégio.

Esse é o Eduardo José Magalhães Junior, conhecido como Dudé. Para

aqueles que logo desistem ao se depararem com um obstáculo, com sua história,

Dudé mostra a importância da persistência.

Como ele faz isso? Vivendo.

Ele nos conta que causa impacto desde quando nasceu. Nunca foi proposital,

mas sempre causou impacto. Sempre tenta mostrar a responsabilidade de cada um

sobre sua própria vida e não gosta de ser visto como um herói. É a forma

encontrada por ele para fazer os outros evoluírem

Page 17: Uma Vida Outra História

INFÂNCIA

Abril de 1972. No dia 24 Maria de Lourdes dá a luz pela quarta vez. O marido,

Eduardo José Magalhães Martins estava apreensivo, afinal, ambos queriam que

dessa vez fosse um menino, pois já eram pais de três meninas. Para alegria de

todos nasceu Eduardo José Magalhães Martins Junior, o Dudé.

Após o parto, ela percebeu que havia algo errado. A equipe médica optou por

não mostrar o bebê por não saber como dar a notícia. Depois de muito tempo de

espera e apreensão veio a notícia: a criança nasceu com má formação congênita.

Foi um choque para a família. Mesmo assim, Maria e Eduardo decidiram que o

menino teria de viver da forma mais natural possível.

A família morava em Valença, na Bahia. Uma cidade privilegiada pela

natureza. Por ser no litoral, suas praias são um dos principais atrativos turísticos. Foi

em Valença que o Brasil teve sua primeira fábrica têxtil. Além disso, possui duas

igrejas construídas no século XVIII. Mesmo com todo esse cenário a cidade ainda

não tinha estrutura para atender as necessidades de Dudé, esse foi o motivo para

que a família migrasse para São Paulo, quando ele tinha quatro anos de idade.

Maria e Eduardo não privaram o filho dos passeios no parque, das broncas e

palmadas quando necessário e sempre tratando todos os filhos de forma igual.

Porém os pais não conseguiram privar Dudé das atribulações que o mundo traria,

um exemplo foi a freqüente mudança de colégios, graças ao preconceito e falta de

conhecimento de professores e pais de outros alunos. Essa situação foi vivida no

período de transição entre o centro de reabilitação, onde iniciou seus estudos, para

os colégios comuns.

Sendo alvo de brincadeiras e gozações constantes e sem o respaldo de

legislação específica a única solução encontrada pelos pais de Dudé era novamente

mudá-lo de colégio. Dessa vez, optaram colocá-lo em uma escola particular com a

esperança que nada iria acontecer. Novamente outro engano. Em uma determinada

escola, houve por parte dos pais um abaixo-assinado convidando ele a se retirar do

Page 18: Uma Vida Outra História

colégio. Como era um convite e Dudé não havia feito nada de errado, resolveu ficar

e as demais pessoas tiveram que aceitar. Hoje, ele acredita que o preconceito é

hereditário e entende que tem de ser quebrado na infância.

Nessa época as pessoas não tinham a consciência que possuem hoje sobre

portadores de deficiência. Atualmente, o pouco de conhecimento que a sociedade

tem sobre esse tema foi à custa de muito trabalho de organizações não

governamentais, instituições e até mesmo da mídia. Recentemente a novela Viver a

vida, de Manoel Carlos e exibida na TV Globo, mostrou um pouco da realidade de

uma cadeirante. Ainda assim, muitos desrespeitam os direitos dessas pessoas.

Os pais do menino sempre diziam “se a escola não te aceitar é porque eles

não têm competência para ensinar e tê-lo lá dentro.” Certo vez, Dudé chegou em

casa chorando. Seu pai o deixou de castigo por isso. Sem entender nada, ele foi

para seu quarto. Quando se acalmou, seu José voltou e disse: “você passou por

uma situação difícil, baixou a cabeça e voltou para casa chorando. Se eu não fizer

isso, tudo o que acontecer de ruim você vai baixar a cabeça e voltar chorando. E

isso eu não quero”. Nas palestras que chegou a dar, Dudé ensinava que a melhor

maneira de combater o preconceito é mostrar que o preconceituoso está errado. Ele

mostra que todos têm condições para ser independente, porque com ou sem

deficiência física cada um tem sua limitação. Mas ao contrário de muitos, ele não

gosta de ser visto como um herói.

SÃO JUDAS E CAMARGO ARANHA

Dudé fala com carinho do Colégio São Judas Tadeu, onde fez o ensino

médio. Localizado no bairro da Mooca desde 1947 o colégio é muito conhecido na

região e tem como lema preparar os alunos para enfrentar a vida. Lá, Dudé foi aceito

e até chegou a participar de algumas bandas e festivais. Seguindo o que aprendeu

em casa, e por gostar de música, chegou a montar algumas bandas, mas sua lista

de desafios não para por aí: fez curso de teatro e trabalhou como modelo

Page 19: Uma Vida Outra História

fotográfico. Os amigos mais próximos acreditam que para ele só falta escalar o

Everest devido a tamanha disposição em encarar a vida.

Dudé sempre teve em mente que todos precisam trabalhar e estudar e, para

ele não seria diferente. Sua condição física sempre incomodou mais aos outros, do

que a ele mesmo, por isso, por volta dos 16 anos começou a trabalhar em uma

bandinha de colégio e por incrível que pareça, era ele o baterista da banda, graças a

idéia de seus amigos que amarraram as baquetas com fitas adesivas em seus

braços. Posteriormente ele resolveu assumir o vocal. Nessa época eles tocavam em

festivais e também em festas de aniversário.

Aos 17 anos participou de um festival no Colégio Camargo Aranha, um dos

primeiros colégios técnicos do estado de São Paulo, com cursos voltados para área

de administração. A escola fica na Rua Marcial, 25. Para muitos jovens, o colégio é a

chave para entrar no mercado de trabalho. Já para Dudé foi a entrada oficial para o

mundo da música. Lá, um grupo de rapazes mais velhos que ele tinham uma banda

de blues. Ao assistirem a apresentação sua resolveram convidá-lo para ser o novo

integrante do grupo.

A RUA TEODORO SAMPAIO Dudé começou a tocar nos bares da noite paulistana e para completar a

renda mensal, durante o dia trabalhava como vendedor de instrumentos musicais em

uma loja da Rua Teodoro Sampaio. A rua é conhecida pela grande concentração de

lojas de instrumentos musicais e equipamentos para som. Dudé era vendedor do

setor de cordas e, como não tinha as mãos para tocar, decorava todos os manuais

dos instrumentos, para conseguir dar instruções aos compradores e assim se tornar

um dos melhores vendedores. Sempre deixava os instrumentos ligados a um

amplificador e quando aparecia alguém interessado em comprar um violão, ou

guitarra, ele dava as especificações do aparelho e incentivava o cliente

experimentar.

Page 20: Uma Vida Outra História

IGREJA N. SRA. DO BOM CONSELHO, NANDO FERNANDES E O

LAR S. FRANCISCO

A Igreja Nossa Senhora do Bom Conselho foi outro local relevante na vida de

Dudé. Construída em 1945 a igreja é muito solicitada para realização de

casamentos, para Dudé, foi um local de outras realizações. Lá ele começou a

aperfeiçoar suas técnicas de canto. Posteriormente ele continuou com o

aprimoramento com o professor Nando Fernandes.

Nando é cantor e dá workshops de canto. Já trabalhou com diversas bandas

de Rock. Foi um percurso de seis anos. Em seu blog, Dudé relata que o professor

era muito exigente e ele o agradece por isso.

Em 2000, Fernandes disse ao rapaz que ele tinha condições de dar aula e foi

o que ele fez. Dudé começou a lecionar canto para adolescentes com algum tipo de

deficiência no Lar Escola São Francisco, entidade sem fins lucrativos que dá

assistência a crianças e adultos com deficiência. Com isso, Dudé percebeu que

estava ajudando os jovens na concentração, na coordenação motora e nas

dificuldades de fala e respiração.Para ele, melhorar a coordenação e o grau de

comunicação é importantíssimo para que a pessoa curse uma faculdade ou consiga

um emprego.

Dudé foi juntando umas economias com o dinheiro que ganhava com o

trabalho de professor de canto. O objetivo deu certo: ele comprou equipamentos

para poder dar aulas em casa e comprar a aparelhagem necessária para que em

2007 montasse um estúdio de gravação. É, ele também é produtor musical.

MIX MENESTRÉIS

A Companhia Mix Menestréis tem o Projeto Cadeirantes, com o qual

ministrava cursos a cadeirantes. Posteriormente esse mesmo projeto passou a

trabalhar também com deficientes visuais. Posteriormente passou a trabalhar com

Page 21: Uma Vida Outra História

pessoas portadoras ou não de deficiência. O grupo se apresenta no teatro Dias

Gomes.

Foi com os Menestréis que Dudé virou ator. O convite foi feito por um dos

integrantes, no Metrô, quando ele seguia para um ensaio de sua banda. Dudé foi

convidado a assistir um espetáculo, após a apresentação foi convidado para uma

festa do elenco. Foi assim que ele começou a se entrosar com os outros integrantes.

De início era só amizade com o grupo, depois Dudé começou a namorar uma

das atrizes. E com isso passou a freqüentar todos os espetáculos. Até que um dia,

ao ser entrevistado junto com o grupo, Deto Montenegro, um dos responsáveis do

Projeto Cadeirante, anunciou que iria abrir vagas para trabalhar com pessoas sem

deficiência. Ao saber disso, Dudé foi conversar com Deto, e por sempre estar

presente nos espetáculos e conhecer o grupo, foi convidado a participar de uma

montagem. Foi assim que começou a sua carreira nos palcos.

BANDA, ESTÚDIO E VIDA DE MODELO

Em 2008, Dudé montou uma banda chamada Easy Rockers Cover Band. O

grupo agregaria parceiros de outros grupos aos quais ele tinha participado. A banda

toca rock clássico, ou classic rock, como os mais aficionados chamam. Dudé é o

vocalista e a banda já caiu nas graças da Kiss FM de São Paulo, uma rádio que toca

somente esse estilo de rock. Os locutores da emissora gostam muito da banda e os

Easy Rockers Cover Band participaram de um evento patrocinado pela rádio. Desde

então passaram a ser promovidos pela Kiss.

.

No mesmo ano, Dudé se descobriu como modelo fotográfico. Reencontrou a

fotógrafa Kika de Castro, uma profissional cuja história será contada neste trabalho.

Eles já se conheciam em 2003 e foi em 2007 que retomaram o contato Kica o

convidou para um trabalho e foi assim que Dudé se tornou modelo. Kica também fez

as fotos do CD e DVD da banda além de fotografar as apresentações Em novembro

Page 22: Uma Vida Outra História

de 2008, Dudé apareceu no Programa SBT Repórter. Eles puderam mostrar o seu

trabalho.

CONSIDERAÇÕES

Para Dudé, a situação atual do deficiente físico hoje ainda é complicada e

ainda tem muita coisa para ser conquistada. Ao menos hoje há a discussão sobre o

tema. Ele e sua família tiveram a consciência que não estavam errados a respeito de

Dudé querer estudar e trabalhar, tanto que ele chegou a cursar Direito com

especialização na área criminal, mas não prestou o exame de ordem da OAB

(Ordem dos Advogados do Brasil), porque enquanto estagiava, percebeu que não

tinha vocação para a área jurídica.

Ele fala que percebeu a mudança de comportamento da sociedade a partir da

década de 1990. A diferença é que hoje se pode discutir com a sociedade, além de

um respaldo maior da lei, muito diferente das décadas de 1980 e 1970.

Dudé detesta ser encarado como batalhador ou como falado anteriormente,

super herói. Ele acha que o quanto mais o deficiente tenta provar para sociedade

que é capaz, mais ele é visto de forma diferente. Dessa forma o deficiente se vê de

uma forma diferente e passa a se achar um mártir.

Dudé acredita que vivendo de uma forma mais natural possível é melhor,

afinal ninguém tem que provar nada a ninguém. “Eu tenho essa coisa de me ver

naturalmente. Eu namoro, eu caio na balada, tenho meu trabalho, minhas contas

igual a todo mundo. Já estudei, tenho vontade de estudar mais coisas, tudo

encanado de uma forma muito natural e não porque eu tenho que mostrar para os

outros e se vocês me permitem dizer, eu quero que os outros se fodam. Eu faço

para mim, é a minha vida que está em jogo. Eu faço o que é prazeroso, vantajoso,

faço tudo o que percebo, que posso evoluir como ser humano”, declara.

Page 23: Uma Vida Outra História

KICA DE CASTRO

Page 24: Uma Vida Outra História

APRESENTAÇÃO

Nada foi pensado, planejado ou premeditado, mas a vontade de fotografar era

latente desde pequena, quando seu pai, um fotógrafo amador, tirava fotos dos

familiares.

Formada em Publicidade e Propaganda, trabalhou em diversas agências, mas

quando menos esperou, lá estava ela novamente envolvida com a fotografia, dessa

vez em um centro de reabilitação.

Tudo era muito mecânico, mandar o paciente tirar a roupa, segurar a placa

com a sua numeração de prontuário e tirar a foto. Ainda não era dessa forma que

ela, Valquiria Ferreira Carraro, mais conhecida como Kica de Castro gostaria de

trabalhar e mostrar o seu talento.

Teve uma grande idéia, simplesmente buscou nos acessórios o que precisava

para trabalhar de maneira diferente. Usou a fototerapia, para resgatar a auto-estima

dos pacientes, resolveu montar uma agência para modelos com deficiência física,

em 2007.

De lá para cá não parou mais, conseguiu uma parceria com a Visible, uma

agência de Berlim, realizou um desfile de moda inclusiva e também participou de

diversos programas televisivos, como o SBT Repórter e Xuxa.

Page 25: Uma Vida Outra História

O INÍCIO Após seis anos de trabalho em agência publicitária, Kica resolveu ir atrás de

seus sonhos, o de trabalhar com a fotografia. Foi à procura de emprego fixo, até que

encontrou um anúncio de jornal que dizia: Procura-se fotógrafo (a).

Resolveu arriscar e semanas depois foi convidada a participar de uma

entrevista. O emprego então chegou, mas para sua surpresa era para trabalhar com

pessoas deficientes.

Sua função era fazer fotos para o prontuário dos pacientes, o que facilitava

para o acompanhamento do médico. Era tudo muito automático, mandar o paciente

tirar a roupa, segurar uma placa com o número do prontuário e tirar a foto.

A sensação que isso causava não era boa. Faltava alguma coisa. “Confesso

que o começo, assim como tudo, foi muito difícil. Eu não sabia como chegar às

pessoas e elas não sabiam como falar comigo”, comentou.

Vendo essa dificuldade, ela resolveu falar com uma amiga, que trabalhava no

setor de Psicologia e disse que não conseguia desenvolver o seu trabalho da

maneira que queria. “As pessoas entram no meu setor e não acham que lá é um

estúdio fotográfico, a gente não tem comunicação, não estou me sentindo uma

fotógrafa”, desabafou.

Então foi aconselhada pela colega a trabalhar da forma com que ela sabia

fazer. Não deu outra, aproveitou o final de semana e fez umas comprinhas na

famosa Rua 25 de Março, no centro de São Paulo. Conhecida como o maior

shopping popular a céu aberto no Brasil por onde circulam 800 mil pessoas por dia

em épocas festivas.

Lá, Kica comprou de tudo, como: bijouteria, cacarecos, acessórios e até

revistas, como a Playboy. Lançada no Brasil pela editora Abril, em 1975, durante a

ditadura militar. É uma revista de entretenimento e erótico, voltado para o público

Page 26: Uma Vida Outra História

masculino e todo mês apresenta uma modelo, atriz ou personalidade diferente na

capa, como Claudia Ohana e Vera Fischer.

Quando chegou na instituição ninguém acreditara no que vira. “Parecia uma

“muambeira” na segunda-feira”, revelou a fotógrafa. A atitude começou a surtir

resultados, ela colocou um espelho no setor, deixou estojo de maquiagem para as

meninas; para os meninos, gel e pente.

Deixou também exemplares da Playboy e da G Magazine. Quando as

pessoas chegavam perguntavam para que servia aquelas revistas e ela dizia:

“estamos fazendo uma prévia para as publicações”, então as pessoas olhavam com

uma cara mais animada e isso ajudou a ficar mais próxima dos pacientes.

A partir daí, os pacientes começaram a ser tratados como pessoas e não

números. Segundo Kica, em vez de um local para fotografar imagens para

prontuários, elas encontravam um estúdio fotográfico e tinham pelo menos uns cinco

minutos com suas vaidades.

Passaram a conversar mais, contavam seus sonhos. No lugar das “fotos de

presidiários” – forma como os pacientes tratavam aquela foto para os prontuários –

eles sentiam mais humanos. “Aquilo foi mexendo comigo. Independente da condição

física, ainda são seres humanos”, declarou Kica.

Foi então que a fotógrafa percebeu que os pacientes tinham problemas com

auto-estima e novamente procurou a amiga psicóloga. Preocupada, ela relatou que

as pessoas a procuravam e se abriam com ela, como se fosse uma analista, com

isso surgiu a idéia de trabalhar com a fototerapia.

A fototerapia resgata a auto-estima das pessoas através das fotos. Em 2003,

o começo do trabalho, parecia uma brincadeira, mas em 2005 algumas pacientes

começaram a cobrar resultados no mercado de trabalho. “Com algumas dificuldades,

consegui colocá-los no mercado de trabalho, mas em trabalhos de promoção”, mas

não era exatamente o que queriam fazer.

Page 27: Uma Vida Outra História

De acordo com Kica, eles desejavam mais. “Infelizmente no Brasil não achei

nada na publicidade que pudesse atender as expectativas”, detalhou. Então, ela

começou a buscar idéias na internet e descobriu um concurso de beleza da “Mais

bela cadeirante”, realizado na Alemanha e também um reality show feito só com

cadeirantes na França, mas ainda não era o que queria.

Aqui no Brasil, ela chegou a ver um ensaio fotográfico com a vereadora de

São Paulo, Mara Gabrilli, que é tetraplégica e logo pensou: “se a Mara fez esse

ensaio sensual, por que eles também não podem fazer isso?”, questionou.

Em 2007, Kica largou a instituição e montou uma agência sem se desvincular

das atividades fotográficas sociais, pelas quais trabalha até hoje.

A AGÊNCIA KICA DE CASTRO Na agência os modelos fazem o book para ser apresentado para o mercado

publicitário. “A publicidade é um mercado amplo, tem espaço para todo o mundo, só

que cada um tem que saber o seu limite e onde pode atuar”, relatou.

Não é toda pessoa que entra na agência que pode trabalhar como modelo

fotográfico, não são todos que podem atuar nas passarelas. Segundo Kica, quando

a pessoa chega, ela avalia a personalidade.

Se a fotógrafa vê a necessidade de resgatar a auto-estima, pede ajuda as

amigas psicólogas, até porque ela não tem o conhecimento técnico, mesmo assim

costuma pontuar cada pessoa a sua realidade.

Kica faz uma análise do mercado junto com o modelo e aponta as áreas em

que ele pode atuar. “Procuro dar o realismo para as pessoas, mas de uma forma

sutil. Temos que saber, dentro de nossas possibilidades e da nossa vontade, o que

fazer ou não”, afirmou.

Page 28: Uma Vida Outra História

Em 2008 ela fechou uma parceria com uma agência em Berlim, na Alemanha,

a Visible e a partir daí começaram a surgir trabalhos para os seus modelos.

Recentemente Kica recebeu proposta de estilistas que trabalham com moda

inclusiva. Segundo ela, a sociedade está se preocupando com esse público, pois

passou a vê-los como consumidores e não como coitados.

Mesmo assim, o preconceito e a resistência em trabalhar com pessoas com

algum tipo de deficiência ainda é muito grande. “Se não fosse a lei de cotas, muitos

deles não estariam no mercado de trabalho”, comentou.

FATO ENGRAÇADO E MARCANTE

O trabalho é sério, mas tem hora que as brincadeiras são necessárias até

mesmo para descontrair. Certa vez, ela tinha uma pauta e o tema era sensualidade

e ela pensou como fazer isso, até mesmo para quebrar o paradigma, porque muitas

pessoas acham que o deficiente físico é coitadinho.

Então Kica pensou em não fazer as fotos no estúdio e sim em um lugar

diferente, mais precisamente um motel. Depois veio outra questão, quem ela iria

chamar?

É claro que ela não pensou duas vezes. “Vou chamar o Dudé, afinal com ele

não tem tempo ruim”, refletiu. Ele concordou, mas tinha outro problema para ser

resolvido, quem seria a modelo para fazer esse trabalho com o músico?

Ela conversou com ele sobre isso e pensou em fazer as tais fotos com “a

modelo” e ele sugeriu uma amiga de Curitiba, conversaram pelo msn e ela aceitou o

convite. Marcaram para se encontrar em um motel próximo a casa de Dudé, até

mesmo para não terem problemas com o deslocamento.

Page 29: Uma Vida Outra História

Não deu certo, porque eles, os modelos se precipitaram e foram na frente,

apenas ligaram para a fotógrafa dizendo que os dois o aguardavam no quarto, então

Dudé orientou a dizer que era repórter, quando chegasse no local.

Ela percebeu que todos os funcionários ficaram olhando até chegar no quarto.

Fecharam a porta, mas de cinco em cinco minutos o interfone tocava e cada hora

era uma coisa, trocar o lençol, o tapete, as toalhas. Eles não paravam de tirar as

fotos e percebiam que os funcionários olhavam com aquele ar de “o deficiente

pegando a gostosona”.

Como ela tinha horário para entregar as fotos, resolveu deixar os dois lá e

adiantar o serviço. Quando abriram a porta para se despedir, ainda empolgados

falavam de como foi bom, do prazer e a camareira ficou olhando com ar de espanto

e a Kica falou “calma, não é nada disso que está pensando”.

Explicou para o gerente sobre a tal matéria e ele ficou olhando com uma cara

sem graça. A fotógrafa percebeu que nessa hora ele perdeu a oportunidade de fazer

o motel mais conhecido, até mesmo por causa da sua atitude. Ela teve que retocar

todas as fotos que saiam o nome do estabelecimento.

AMIZADE COM O DUDÉ

Dudé é um rapaz que não tem “papas na língua”, ou seja, fala o que

realmente pensa independente quem esteja com ele. Quando Kica trabalhava no

centro de reabilitação, o Dudé participava de um programa que dava orientações

para o mercado de trabalho na mesma instituição que ela trabalhava.

Neste local era preciso preencher uma ficha e a recepcionista querendo ser

solidária, perguntou se ele gostaria que ela o ajudasse. O músico disse que não

tinha necessidade e a moça retrucou “estou aqui para isso, não é incômodo

nenhum”. Novamente ele recusou a ajuda e pediu a caneta, mas a funcionária foi

insistente.

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Dudé não se conteve e falou alguns palavrões, entregou a caneta e foi falar

com a chefe dela. A recepcionista ficou reclamando da postura do rapaz para as

pessoas que estavam na espera. Neste momento, a fotógrafa presenciou o

desentendimento dos dois e deu risada.

Depois disso, o rapaz foi encaminhado para o setor de psicologia e em seu

histórico contava sobre a sua agressividade. Kica resolveu conversar com ele e no

final deram muitas risadas. Depois perderam o contato um com o outro.

Em 2007, Kica já com a agência de modelos, resolveu mandar um e-mail para

ele explicando o seu trabalho, os projetos e convidou o moço para uma sessão de

fotos. Ele foi ao estúdio e de lá para cá, nunca mais parou. Fotografar, atuar, cantar

e até lutar boxe são tarefas indispensáveis no seu dia-a-dia.

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GONÇALO BORGES

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APRESENTAÇÃO

Gonçalo Aparecido Borges, mais conhecido como Gonçalo Borges nasceu

com uma deficiência nos membros superiores causada pela natureza. Nasceu em

Novo Horizonte, interior de São Paulo.

Aparecida, a mãe de Borges amamentava o menino na roça, local onde a

família trabalhava e foi lá que começou a fazer peripécias com os pés, derrubava

moringas de água e garrafas de café, tudo isso para substituir a função das mãos.

Por falta de recursos hospitalares, teve que conhecer a cidade grande, São

Paulo para entender melhor a sua deficiência e também buscar tratamento médico.

Passou pelo Hospital das Clínicas e em seguida foi para a AACD (Associação

de Assistência à Criança Defeituosa), onde aprendeu diversas atividades, dentre

elas, a pintura.

Quando se tornara jovem, um amigo apresentou a Associação Pintores com a

Boca e os Pés e lá foi aprovado como artista bolsista. Passou a receber para estudar

desenho e pintura.

Ele foi o primeiro a fazer displayers de celular no Brasil, com contrato

exclusivo com a Motorola, quando enveredou para o ramo de serigrafia e acrílico.

Hoje Gonçalo dá palestras, aulas de pintura, vende quadros e faz exposições.

A INFÂNCIA

Em 8 de janeiro de 1952, nasceu em Novo Horizonte, interior de São Paulo

uma criança de forma diferente. As pernas para cima dos ombros e entre elas os

braços, foi nesse cenário que a avó, Albertina Rosa recebeu Gonçalo Borges, depois

de fazer o parto da própria filha.

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A família era composta de seis pessoas, ele, o pai, a mãe, a avó e mais dois

irmãos. A casa em que morava era humilde e feita de pau a pique, ou seja, as

paredes eram de ripas, varas entrecruzadas e barro.

Enquanto os pais trabalhavam na roça, Borges não ficava sozinho, porque

tinham medo. Eles levavam o garoto para o campo e em sua memória, foi lá que

aprendeu a trocar as mãos pelos pés, simplesmente abrindo garrafas de água e

café.

Segundo Gonçalo, sua infância foi muito boa, várias amizades foram

conquistadas e muitas brincadeiras para passar o tempo. “Eu gostava de ficar com

os pés descalços, brincava de bolinha de gude, carrinhos e até mesmo empinar

pipas”, comentou. Devido à deficiência, tudo isso era feito com a boca e os pés.

Com fama de briguento, jogava bolinha de gude, mas media os palmos com

os pés. De certa forma, os amigos não achavam certa a atitude dele, porque os

demais faziam com as mãos, ou seja, Borges sempre levava vantagem na

brincadeira e aí começava a confusão.

Às vezes sua mãe o deixava de castigo por aprontar e ser encrenqueiro. Mas

bastava um amigo ir chamá-lo para brincar e a dona Aparecida não resistia, lá ia o

moleque novamente para a rua.

IDADE ESCOLAR

Como não havia recursos hospitalares na cidade e orientados por outras

pessoas, mudou para a capital paulista, São Paulo, mais precisamente na Penha.

Foi morar no mesmo quintal de alguns parentes, juntamente com os pais, irmãos e

avó.

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Conheceram o Hospital das Clínicas e virou matéria de estudos dos médicos,

onde até se submeteu a fazer uma cirurgia no braço esquerdo para facilitar os

movimentos. Isso ajudou muito o garoto.

Com sete anos, ainda não sentia o preconceito por parte das pessoas,

somente com oito anos pôde sentir na pele, quando passou a freqüentar a escola.

O primeiro obstáculo, sua mãe sentiu na pele quando tentou matricular o filho

no colégio. A diretora da instituição foi resistente e alegou que não poderia deixar o

menino a participar das aulas, porque atrapalharia outras crianças, iria chamar

atenção, devido escrever com a boca ou os pés.

Depois dessa tentativa, dona Aparecida procurou a Associação de

Assistência à Criança Deficiente, a AACD. Lá aprendeu a ler, escrever, nadar,

mergulhar e até mesmo datilografar. Com muito bom humor, ele até brinca “ou seria

pedilografar?”.

A Associação de Assistência à Criança Deficiente – AACD tem como missão

promover a habilitação e reabilitação de pessoas deficientes, não tem fins lucrativos

e está no seu 59º aniversário. Hoje, localizada num terreno doado pela prefeitura na

rua Ascendino Reis, próximo a estação Santa Cruz do metrô, zona sul de São Paulo.

Segundo Gonçalo, o centro de reabilitação só é bom para quem vai reabilitar

fisicamente, no caso dele era somente educação. “Meus pais fizeram de tudo e eu

fiquei interno devido à escola, foi muito interessante porque lá aprendi a desenvolver

a boca, escrever e manusear as coisas”, comentou.

Com o mesmo método que adquiriu com as brincadeiras, ele usou para iniciar

os desenhos e a pintura. “Obtive o primeiro contato com materiais de artes, como

papel de desenho, lápis, pincel, tinta aquarela e guache”, definiu.

Nessa época participou de vários concursos e campanhas educativas,

também ganhou prêmios. “Participei de campanhas promovidas pelo Estado e

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ganhei prêmios, um deles o da Unicef. Continuei adquirindo conhecimento e a cada

dia me superava”, relatou.

Ficou na AACD durante seis anos e devido passar muito tempo interno, ele

teve que fazer novas amizades e reentrosar com os irmãos, afinal só voltava para a

casa nas férias escolares.

ASSOCIAÇÃO PINTORES COM A BOCA E OS PÉS

Aos 17 anos, Borges conheceu a Associação Pintores com a Boca e os Pés -

APBP, que é internacional, mas tem uma sede no Brasil, localizado em Moema,

zona sul de São Paulo.

A APBP proporciona ao deficiente uma vida mais independente, porque os

membros e sócios aprendem a pintar com as bocas e os pés. Todos os trabalhos,

como cartões, calendários e quadros são vendidos e o dinheiro é repassado par o

próprio artista.

Depois de conhecerem o trabalho artístico de Borges, ele passou a receber

para estudar desenho e pintura, como artista bolsista. Após um ano, sua obra foi

publicada nos cartões de natal da instituição.

A associação reproduz os trabalhos de todos os artistas e manda para a sede

internacional, na Suíça e lá eles reproduzem, vendem e depois repassam o valor

para cada um.

VIDA PESSOAL

Gonçalo não nega que foi bastante namorador e extrovertido na juventude.

“Fui muito zoeiro, paqueirador, ia muito em bailes e tive uma adolescência gostosa e

saudável”, comentou.

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Ele também tem dois históricos de relacionamento. Foi casado com Celiana,

com quem teve uma filha chamada Aparecida, a Cidinha, que está com cinco anos.

Gonçalo se orgulha por ter a guarda da menina.

Hoje ele está casado com Fabiana, uma moça jovem, de apenas 30 anos e

grávida, a poucos dias de ganhar uma menininha, a Maria Heloisa. Segundo

Gonçalo, a Cidinha está bem ansiosa para a chegada da irmãzinha.

A menina já trata a madrasta como mãe e aparentemente as duas se dão

bem. “A Cidinha começou a chamar a Fabiana de mãe, ocorreu tudo naturalmente. A

minha filha precisa ter uma referência de mãe e era isso que estava faltando para

completar a nossa felicidade”, comentou Borges.

ESTUDOS

Depois que Borges começou a receber pela Associação Pintores com a Boca

e os Pés, com a venda dos trabalhos, resolveu voltar a estudar. Dessa vez, o artista

preferiu cursar Propaganda e Marketing, na Escola Superior de Propaganda e

Marketing – ESPM.

Fez também especialização na Faculdade Belas Artes e seguiu a carreira

como ilustrador, em uma agência de publicidade. “Por ser independente e já ter o

meu dinheiro, eu mesmo arcava com os meus estudos”, declarou.

A carreira de ilustrador não deu certo, mas mesmo assim ele não desistiu de

trabalhar. Conheceu uma pessoa que trabalhava com Silkscrean e como Gonçalo

não tinha nada a perder, resolveu montar o negócio com o moço.

No terceiro mês após a abertura do novo ramo, Borges viu que o sócio não

tinha dedicação, então resolveu desfazer a sociedade e continuar o trabalho sozinho

em seu quintal.

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O início não foi nada fácil, começou a fazer ilustrações, livros técnicos e de

informática. Em seguida aprendeu serigrafia e ampliou os trabalhos da empresa de

Comunicação Visual.

Fabricou também display de acrílico para celulares, na época foi o primeiro no

Brasil a produzir, com contrato exclusivo da Motorola, o único fabricante que existia.

Gonçalo se orgulha em falar que nunca teve um registro em sua carteira

profissional. “Minha carteira profissional ainda é virgem, mas eu fui e sou

empregador. No meu ateliê, antigamente era uma empresa voltada para eventos e

eu tive vários funcionários e pessoas terceirizadas”, enfatizou.

UMA GRANDE CONQUISTA Seu maior desafio foi conseguir tirar a carteira de habilitação. Quando foi

fazer exame no Detran, o médico pediu para que ele entregasse o RG com as mãos,

o que era impossível. “Não tem como eu entregar com as mãos, se as minhas

habilidades estão nos pés”, declarou.

Foram três anos para conquistar a tão sonhada carteira de motorista, depois

que recorreu ao Conselho Nacional de Trânsito. Hoje são quase 30 anos dirigindo.

Ele confessa que já dirigiu nas estradas e viajou pelo menos para seis estados

brasileiros.

Seu carro é adaptado e foi ele quem criou e patenteou o próprio sistema. O

volante fica no assoalho para dirigir com os pés. Quando precisa dar a seta, utiliza

uma espécie de vareta controlada com a boca. Gonçalo garante que só se envolveu

em um acidente de trânsito, mas confessa que não foi o culpado.

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BRINCANDO COM O JOGO DE PALAVRAS Como Gonçalo Borges é uma pessoa muito brincalhona, fizemos um jogo de

palavras, que ele define o que pensa. Segue abaixo:

Amor – bom relacionamento com a família e o próximo.

Ódio – muito instantâneo, depende do momento.

Saudade – muito cruel, momento que paramos para refletir e lembrar o

passado.

Alegria – estar bem.

Vida – um círculo, uma roda, faz parte.

Sucesso – trabalho, esforço, dedicação e suor.

Esperança – é a última que morre.

Morte – fim, mas encaro como uma passagem.

Tristeza – sofrer uma ação de perda irreparável.

Refúgio – fora do meu vocabulário.

Curiosidade – primeiro instante da formação de uma vida, não o nascimento.

Preconceito – rejeição por outra pessoa, pior atitude do ser humano.

Hoje, aos 58 anos Gonçalo Borges busca surpreender as pessoas e inovar

com o seu trabalho. Dá curso de pinturas em seu ateliê, faz palestras de motivação e

expõe suas obras de artes, além de se dedicar na Associação Pintores com a Boca

e os Pés.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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LIMA, Eduardo P. O que é livro Reportagem. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1993.

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Acesso em 13/11/2008.

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BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

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