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UNIJUÍ – UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL Departamento de Economia e Contabilidade Departamento de Estudos Agrários Departamento de Estudos da Administração Departamento de Estudos Jurídicos CURSO DE MESTRADO EM DESENVOLVIMENTO SABRINA DALLEPIANE A SAÚDE PÚBLICA BRASILEIRA EM MUNICÍPIOS DA 17ª COORDENADORIA REGIONAL DE SAÚDE DO RIO GRANDE DO SUL (CRS/RS): Reflexões sobre descentralização Ijuí 2009

UNIJUÍ – UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO …livros01.livrosgratis.com.br/cp111135.pdf · unijuÍ – universidade regional do noroeste do estado do rio grande do sul programa

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  • UNIJUÍ – UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO

    ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL

    Departamento de Economia e Contabilidade Departamento de Estudos Agrários

    Departamento de Estudos da Administração Departamento de Estudos Jurídicos

    CURSO DE MESTRADO EM DESENVOLVIMENTO

    SABRINA DALLEPIANE

    A SAÚDE PÚBLICA BRASILEIRA EM MUNICÍPIOS DA 17ª COORDENADORIA REGIONAL DE SAÚDE DO RIO GRANDE DO

    SUL (CRS/RS): Reflexões sobre descentralização

    Ijuí

    2009

  • Livros Grátis

    http://www.livrosgratis.com.br

    Milhares de livros grátis para download.

  • UNIJUÍ – UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO

    ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTU SENSU EM

    DESENVOLVIMENTO ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: GESTÃO E POLÍTICAS DE

    DESENVOLVIMENTO LINHA DE PESQUISA: GESTÃO DE ORGANIZAÇÕES PARA O

    DESENVOLVIMENTO

    Sabrina Dallepiane

    A SAÚDE PÚBLICA BRASILEIRA EM MUNICÍPIOS DA 17ª COORDENADORIA REGIONAL DE SAÚDE DO RIO GRANDE DO

    SUL: Reflexões sobre descentralização

    Dissertação de Mestrado do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Desenvolvimento, requisito para a obtenção do título de Mestre em Desenvolvimento, sob a orientação do professor Dr. Dieter Rugard Siedenberg e co-orientação do professor Msc. Sérgio Luis Allebrandt.

    Ijuí

    2009

  • Catalogação na Publicação

    D146s Dallepiane, Sabrina. A saúde pública brasileira em municípios da 17. Coordenadoria Regional de Saúde do Rio

    Grande do Sul: reflexões sobre descentralização/ Sabrina Dallepiane. – Ijuí, 2009. – 197 f; 30 cm.

    Dissertação (mestrado) – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Campus Ijuí). Desenvolvimento.

    “Orientação: Dieter Rugard Siedenberg”

    1. Saúde. 2. Saúde pública. 3. Gestão pública. 4. Políticas públicas. I Siedenberg, Dieter Rugard. II. Título. III. Título: Reflexões sobre descentralização.

    CDU: 614 614 (816.5)

    Patrícia da Rosa Corrêa CRB10/1652

  • UNIJUÍ – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul

    Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento – Mestrado

    A Banca Examinadora, abaixo assinada, aprova a Dissertação

    A SAÚDE PÚBLICA BRASILEIRA EM MUNICÍPIOS DA 17ª

    COORDENADORIA REGIONAL DE SAÚDE DO RIO GRANDE DO

    SUL (CRS/RS): REFLEXÕES SOBRE DESCENTRALIZAÇÃO

    elaborada por

    SABRINA DALLEPIANE

    Como requisito parcial para a obtenção do grau de

    Mestre em Desenvolvimento

    Banca Examinadora:

    Prof. Dr. Dieter Rugard Siedenberg (UNIJUÍ):____________________________________

    Prof. Gilnei Luiz de Moura (UNICRUZ):_________________________________________

    Prof. Dr. Fernando Guilherme Tenório (UNIJUÍ/FGV):_____________________________

    Prof. Msc. Sergio Luis Allebrandt (UNIJUÍ):______________________________________

    Ijuí (RS), 22 de abril de 2009.

  • Ofereço Esse Trabalho e Agradeço

    Aos meus pais, Julieta e Francisco Osório e aos meus irmãos Rodrigo e Francisco.

    Ao meu noivo Júlio Cezar.

    Aos meus orientadores, Dieter Rugard Siedenberg e em especial ao professor Sérgio Luis

    Allebrandt, que incentivou e enriqueceu esse estudo com seus conhecimentos.

    Aos secretários municipais de saúde e profissionais da 17ª CRS-RS que aceitaram

    participar dessa pesquisa.

  • RESUMO

    Este estudo aborda a visão de gestores locais e regionais de saúde sobre o processo de

    descentralização da saúde pública brasileira, discutindo a participação da sociedade civil na

    gestão do sistema e a última grande reformulação do setor, o Pacto pela Saúde, de 2006.

    Trabalhando dados empíricos e teóricos, através de uma pesquisa de caráter interpretativo e

    qualitativo, propõe-se um repensar sobre os temas em questão, ouvindo profissionais atuantes

    junto à 17ª Coordenadoria Regional de Saúde do Rio Grande do Sul (17ª CRS/RS) e

    secretários municipais de saúde de 10 municípios de abrangência desta Coordenadoria. São

    problematizados os avanços, retrocessos, receios e desejos para com esse sistema complexo e

    dinâmico que é a saúde pública brasileira. No referencial teórico são discutidos os diferentes

    modelos de gestão pública que marcaram a trajetória brasileira; são analisados o federalismo e

    as relações intergovernamentais no processo da gestão descentralizada das políticas públicas;

    a trajetória das políticas da saúde pública no Brasil e o processo de construção e implantação

    do SUS através das normas operacionais e mais recentemente através do Pacto pela Saúde. A

    interpretação e análise dos dados evidenciam que os gestores entrevistados acreditam que o

    processo de descentralização proporcionou maior efetividade das ações de saúde em nível

    local, e que, além disso, contribuiu para que o secretário municipal de saúde passasse de

    executor a gestor das políticas públicas de saúde; entretanto são observados atritos entre as

    esferas de governo, especialmente com relação à questão do financiamento do sistema. No

    que diz respeito à participação popular junto aos conselhos e conferências de saúde os relatos

    assinalam reduzida participação, sendo apontados como motivos questões culturais e

    políticas; sobre o funcionamento dos conselhos são observadas discordâncias entre os

    gestores sobre sua efetividade. O Pacto pela Saúde é defendido pelos profissionais da 17ª

    CRS/RS como um instrumento de cidadania; no entanto, os gestores locais o vêem como uma

    ação vertical do governo federal, que pode sobrecarregar a saúde municipal. Os resultados

    apontam para a necessidade de se estimular o diálogo entre os diferentes atores envolvidos na

    gestão da saúde pública (secretários municipais, gestores regionais, estaduais e federais,

    sociedade civil e trabalhadores da saúde) para que se avance política e democraticamente na

    contínua implantação do SUS e para que se adote na gestão da saúde um efetivo modelo de

    gestão social, plural, transparente e baseado na democracia deliberativa.

  • ABSTRACT

    This study addresses the vision of local and regional health administrators about the process

    of decentralization of brazilian public health, discussing civil society participation in the

    management of the system and the last major reform of the sector, the pact for Health, 2006.

    By working empirical and theoretical data, through a qualitative and interpretative research, it

    proposes a rethinking on the concerned issues, hearing professionals with the 17th Regional

    Coordination Health of Rio Grande do Sul (17th CRS/RS) and municipal health secretaries of

    10 municipalities covered by the Coordinator. Advances, setbacks, fears and desires related to

    the complex and dynamic system that is the Brazilian public health are problematized in the

    present work. The different models of governance that characterized the Brazilian history are

    discussed in the theoretical framework; federalism and intergovernmental relations in the

    process of decentralized management of public policies are analyzed; the trajectory of public

    health policies in Brazil and the process of construction and deployment of SUS through the

    operational standards and more recently through the Pact of Health. Interpretation and

    analysis of data showed that the interviewed managers believe that the decentralization

    process provided greater effectiveness of health actions at local level and, moreover, it

    contributed to the municipal health secretary became, from the executor to manager of public

    health policies; but conflicts between the spheres of government are seen, especially with

    regard to the financing of the system. With regard to popular participation in the health

    councils and conferences, reports indicate low participation, and pointed out as reasons for

    that some cultural and political issues; on the functioning of the councils, disagreements

    between the managers on their effectiveness are observed. The Pact for Health is supported by

    professionals in the 17th CRS/RS as an instrument of citizenship; however, local managers

    see it as a vertical action of the federal government, which can overload the municipal health.

    The results point to the need of encouraging the dialogue between different actors that are

    involved in the management of public health (municipal secretaries, regional, state and federal

    managers, civil society and health workers) to make progress in the continued deployment of

    SUS political and democratically and to realize the adoption of an effective health

    management model in the management that should be social, pluralistic, transparent and

    based on deliberative democracy.

  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento

    BIRD – Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento

    CEBES – Centro Brasileiro de Estudos em Saúde

    CEO – Centro de Especialidades Odontológicas

    CEPAL – Comissão Econômica para a América Latina

    CEPEAD – Núcleo de Estudos de Gestão Social

    CES – Conselho Estadual de Saúde

    CIB – Comissão Intergestores Bipartite

    CISA – Consórcio Intermunicipal de Saúde

    CIT – Comissão Intergestores Tripartite

    CMS – Conferência Municipal de Saúde

    CNS – Conferência Nacional de Saúde

    CNSS – Conferências Nacionais de Saúde

    COGERE – Conselho de Gestores Regional

    COMUS – Conselhos Municipais de Saúde

    CONASEMS – Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde

    CONASS – Conselho Nacional de Secretários de Saúde

    CRS – Coordenadoria Regional de Saúde

    CRS/RS – Coordenadoria Regional de Saúde do Rio Grande do Sul

    DASP – Departamento Administrativo do Serviço Público

    EBAPE – Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas

    EC 29– Emenda Constitucional 29

    FGV – Fundação Getúlio Vargas

    FMI – Fundo Monetário Internacional

    FSESP – Fundação de Serviços Especiais de Saúde Pública

    GM/MS nº 399 – Gabinete do Ministro/Ministério da Saúde nº 399

    INAMPS – Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social

    IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

    LOS – Lei Orgânica da Saúde

    MARE – Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado (MARE)

    MESP – Ministério de Educação e Saúde Pública

    MS – Ministério da Saúde

  • MS/SIOPS – Ministério da Saúde/Sistema de Informações sobre Orçamento Público em

    Saúde

    NOAS – Norma Operacional de Assistência à Saúde

    NOAS/SUS – Norma Operacional de Assistência à Saúde do SUS

    NOBs – Normas Operacionais Básicas

    NOB/SUS – Norma Operacional Básica do SUS

    OMS – Organização Mundial da Saúde

    ONGS – Organizações Não Governamentais

    OPS – Organização Pan-Americana da Saúde

    PAB – Piso de Atenção Básica

    PAP – Programação das Ações Prioritárias

    PDI – Plano Diretor de Investimentos

    PDR – Plano Diretor de Regionalização

    PEGS – Programa de Estudos em Gestão Social

    PPI – Programação Pactuada e Integrada

    PSF – Programa Saúde da Família

    PT – Partido dos Trabalhadores

    SAMU – Serviço de Atendimento Móvel de Urgência

    SIA/SUS – Sistema de Informações Ambulatoriais do SUS

    SIH/SUS – Sistema de Informações Hospitalares do SUS

    SSMA/RS – Saúde, Segurança e Meio Ambiente do Rio Grande do Sul

    SUDS – Sistema Unificado de Saúde

    SUS – Sistema Único de Saúde

  • SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO.......................................................................................................................10

    CAPÍTULO 1: CONTEXTUALIZANDO O ESTUDO ......................................................12 1.1 Delimitando o tema.............................................................................................................13 1.2 A problemática da pesquisa ................................................................................................15 1.3 Objetivos .............................................................................................................................17

    1.3.1 Objetivo geral.......................................................................................................17 1.3.2 Objetivos específicos ...........................................................................................17

    1.4 Justificando a importância do estudo..................................................................................17 1.5 O caminho metodológico ...................................................................................................20

    1.5.1 A opção metodológica .........................................................................................20 1.5.2 O Universo e a amostra da pesquisa ....................................................................22 1.5.3 Sujeitos da pesquisa .............................................................................................23 1.5.4 Plano de análise e interpretação dos dados ..........................................................24

    CAPÍTULO 2: A GESTÃO PÚBLICA BRASILEIRA.......................................................26 2.1 A administração pública patrimonialista ............................................................................26 2.2 A administração pública burocrática ..................................................................................28 2.3 A administração pública gerencial......................................................................................33 2.4 Uma nova forma de gestão: a gestão social ........................................................................43

    CAPÍTULO 3: A GESTÃO DESCENTRALIZADA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE NO BRASIL: a trajetória do SUS...........................................................................52 3.1 O federalismo brasileiro e a gestão descentralizada das políticas públicas ........................52 3.2 A trajetória da saúde pública brasileira nas duas últimas décadas......................................56

    3.2.1 O Sistema Único de Saúde (SUS)........................................................................58 3.2.2 O processo de implantação do SUS: As Normas Operacionais...........................60

    3.2.2.1 Norma Operacional Básica do SUS – NOB/SUS 01/91 .......................61 3.2.2.2 Norma Operacional Básica do SUS – NOB/SUS 01/93 .......................63 3.2.2.3 Norma Operacional Básica do SUS – NOB/SUS 01/96 .......................65 3.2.2.4 Normas Operacionais da Assistência à Saúde – NOAS/SUS 01/2001 e

    NOAS/ 01/2002 ........................................................................................................... 66 3.2.3 O Pacto pela Saúde ..............................................................................................68

    CAPÍTULO 4: A SAÚDE PÚBLICA BRASILEIRA EM MUNICÍPIOS DA 17ª CRS/RS: Reflexões sobre descentralização, participação da sociedade civil e Pacto pela Saúde ........................................................................................................................................74 4.1 Os dilemas da descentralização ..........................................................................................74 4.2 A participação da sociedade civil na gestão do SUS ..........................................................88 4.3 O Pacto pela Saúde 2006 e a regionalização do SUS .......................................................104

    CONCLUSÃO .......................................................................................................................120

    REFERÊNCIAS....................................................................................................................128

    ANEXO A – ROTEIRO PARA AS ENTREVISTAS........................................................136

  • ANEXO B – LEI Nº 8.080/90 ...............................................................................................138

    ANEXO C – LEI Nº 8.142/90 ...............................................................................................156

    ANEXO D – PORTARIA Nº 399/06 ...................................................................................159

  • INTRODUÇÃO

    Este trabalho é fruto de muitas preocupações como profissional da saúde, atuando na

    rede privada, mas com um contato direto com a rede pública através da prestação de serviços

    ao Sistema Único de Saúde (SUS), e com o desejo de se inserir de forma mais efetiva nesta

    área. Preocupações que não são só desta pesquisadora, mas de muitos colegas que enfrentam

    diariamente a tarefa de consolidar nosso sistema de saúde pública.

    Optou-se pelo estudo sobre o setor público da saúde pela identificação profissional

    com a área e por acreditar-se no SUS como um sistema inovador, que está em constante

    mutação. Também, por observar entre os colegas, a falta de compromisso na defesa do SUS e

    na sua apropriação como cidadãos.

    Este estudo procura conhecer a visão dos atores envolvidos no processo de gestão do

    SUS, de âmbito local e regional, sobre a descentralização dos serviços de saúde a partir da

    criação do SUS, abordando a participação da sociedade civil na gestão do sistema e a última

    grande reformulação do setor, o Pacto pela Saúde, de 2006.

    Trabalhando dados empíricos e teóricos propõe-se um repensar sobre os temas em

    questão, ouvindo secretários de saúde e profissionais atuantes junto à 17ª Coordenadoria

    Regional de Saúde do Rio Grande do Sul (17ª CRS-RS), sobre os avanços, retrocessos,

    receios e desejos para com esse sistema complexo e dinâmico que é a saúde pública brasileira.

    A dissertação está organizada em quatro capítulos. No primeiro contextualiza-se o

    estudo, apresentando e delimitando o tema da pesquisa, os motivos que levaram a estudar esta

    temática, justificando sua relevância e definindo e detalhando os objetivos. Neste mesmo

    capítulo, explicita-se a opção metodológica, o universo e amostra do estudo, os sujeitos

    pesquisados e o plano de análise e interpretação dos dados.

    O segundo e terceiro capítulos constituem-se na construção do quadro teórico de

    referência, no qual se objetiva recuperar na literatura os elementos que se constituem em

    variáveis importantes para definir a moldura em que está inserida a presente proposta de

    pesquisa. No segundo capítulo, “A gestão pública brasileira”, aborda-se a trajetória da gestão

    pública no Brasil, pincelando seus diferentes modelos: patrimonialista, burocrática, gerencial,

  • com destaque para a gestão pública societal/social, sendo destacadas algumas características

    das políticas de saúde pública nos diferentes períodos.

    No terceiro capítulo, “A gestão descentralizada das políticas públicas de saúde no

    Brasil: a trajetória do SUS”, é analisado o federalismo brasileiro e as relações inter-

    governamentais no processo da gestão descentralizada das políticas públicas; é apresentado

    um histórico da saúde pública no Brasil e descrito em linhas gerais o processo de construção e

    implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) através das normas operacionais e mais

    recentemente através do Pacto pela Saúde, que traz à tona novas questões a respeito do papel

    dos diferentes entes federados na área da saúde.

    No quarto e último capítulo, “A saúde pública brasileira em municípios da 17ª CRS-

    RS: Reflexões sobre descentralização, participação da sociedade civil e Pacto pela Saúde”

    propõe-se uma análise sobre o processo de descentralização da saúde, discutindo a

    participação da sociedade civil na gestão do sistema e o Pacto pela Saúde, através da visão

    dos atores pesquisados, que atuam na 17ª CRS-RS ou nos sistemas municipais que integram

    esta Coordenadoria. São discutidos os pontos positivos e negativos da descentralização dos

    serviços de saúde das instâncias federal e estadual à municipal; as práticas dos conselhos e

    conferências de saúde, bem como a participação da sociedade civil junto aos órgãos

    deliberativos, e os entendimentos dos gestores sobre o Pacto pela Saúde, aprovado em 2006.

    Este trabalho, enfim, procura instigar nos sujeitos participantes, demais gestores,

    usuários e profissionais da saúde, o reconhecimento do SUS enquanto sistema democrático e

    sua apropriação como instrumento de cidadania. Proporcionar o diálogo entre os gestores, que

    estão diretamente envolvidos na gestão da saúde local e regional, sobre pontos estruturantes

    da saúde pública, como os temas abordados neste trabalho, essenciais para o amadurecimento

    e consolidação da saúde pública brasileira.

  • CAPÍTULO 1

    CONTEXTUALIZANDO O ESTUDO

    Definir-se por algo ou fazer uma opção não é um ato isolado, descontextualizado.

    Todas as escolhas tem um porquê, um para quê e um como, mesmo que não estejam

    explícitos. É um misto de objetividade e subjetividade que permeia o cotidiano, impulsiona

    para frente ao mesmo tempo em que obriga a resgatar tudo o que se é: as práticas, as teorias,

    as preocupações, as alegrias, as ansiedades, as necessidades, questionar faltas e sonhar,

    acreditar e ter utopias.

    Pesquisar é construir caminhos e cada caminho tem sua história. História essa

    compreendida não somente como a já feita, mas, nas palavras de Castoriadis (1992, p. 111),

    “a história que está sendo feita, e a história a ser feita. Essa história é essencialmente

    criação, criação e destruição”.

    Criação e destruição porque a retomamos, reafirmamos, e disso “decorre que nos

    situamos relativamente ao que é, ao que poderá ser, e mesmo ao que foi, como atores

    críticos. Não podemos mudar o que foi, contudo podemos mudar o olhar sobre o que foi”

    (CASTORIADIS, 1992, p. 112).

    A definição pelo tema de discutir a visão dos atores envolvidos no processo de gestão

    do SUS sobre descentralização, com enfoque na participação da sociedade civil na gestão do

    sistema e no Pacto pela Saúde, de 2006; e a construção dos rumos que o presente tema tomou,

    estão intimamente relacionados com a história de vida pessoal e profissional do pesquisador,

    porque os homens e mulheres não são coisas compartimentalizadas como as ciências

    modernas hoje se encontram.

    O grande desafio que se coloca aos pesquisadores é buscar o equilíbrio entre razão e

    sensibilidade, entre o empírico e o teórico, pensar e trabalhar com o sujeito em si, não

    fragmentado, com seu imaginário e suas percepções, sua condição de ser e se constituir como

    um sujeito cidadão.

  • 1.1 Delimitando o tema

    A saúde pública brasileira apresenta um leque imenso de temáticas interessantes de

    serem estudadas. Considerada uma das áreas mais complexas e dinâmicas do setor público, é

    responsável pela oferta de um direito fundamental e indispensável a qualquer cidadão - o

    direito à saúde; possui uma estrutura física e humana extraordinária e um histórico de muitas

    conquistas; a saúde pública encanta alguns e desencanta muitos outros.

    Como todos os setores dinâmicos, a saúde pública está em permanente mutação,

    passando ano a ano por redefinições do seu perfil de gestão e de assistência à saúde. Dentre

    muitas conquistas, a grande reforma do setor ocorreu com a criação do Sistema Único de

    Saúde (SUS), instituído pela Constituição Federal de 1988 e regulamentado pelas Leis nº

    8080/90 (Lei Orgânica da Saúde) e nº 8.142/90, com o objetivo de mudar a situação de

    calamidade em que se encontrava a saúde no Brasil.

    A reforma sanitária que deu origem ao SUS pode ser considerada a maior reforma da

    história do setor público brasileiro, transformando um sistema privatista, excludente e

    essencialmente curativo, em um modelo universal e gratuito. O SUS conforma o atual modelo

    público de prestação de serviços e ações de saúde em âmbito nacional, com princípios e

    diretrizes que fazem dele um sistema ímpar no mundo:

    Em sua concepção original, o SUS visa integrar os subsistemas de saúde pública e de assistência previdenciária, bem como, os serviços públicos e privados, em regime de contrato ou convênio, num sistema único e nacional, de acesso universal e igualitário, organizado de forma regionalizada e hierarquizada, sob comando único em cada nível de governo, segundo as diretrizes da descentralização administrativa e operacional, do atendimento integral à saúde e da participação da comunidade visando ao controle social (VIANA; LIMA; OLIVEIRA, 2002, p. 498).

    Nas décadas seguintes à aprovação da Lei 8.080, através de normas operacionais

    instituídas por portarias ministeriais, foram reformulados os papéis e funções das três esferas

    de governo - municipal, estadual e federal. Iniciava-se o processo de transferência de

    responsabilidades e recursos do âmbito federal e estadual ao município:

    Reformularam-se os papéis na oferta de serviços, na gerência de unidades e na gestão do sistema de saúde. Adotaram-se novos critérios de alocação e transferência de recursos e criaram-se novas instâncias colegiadas de negociação, integração e decisão, envolvendo a participação dos gestores, prestadores, profissionais de saúde e usuários, através da formação dos Conselhos de Saúde nos diferentes níveis de

  • governo e das Comissões Intergestores Tripartite e Bipartite, de caráter mais especializado e restrito, envolvendo a participação dos gestores da política nos planos federal, estadual e municipal (VIANA; LIMA; OLIVEIRA, 2002, p. 499).

    A última grande reformulação do setor saúde ocorreu em 2006, com a aprovação do

    Pacto pela Saúde, que vêm substituir, complementar e aperfeiçoar o que as normas

    operacionais deixaram a desejar. O Pacto é um conjunto de reformas institucionais do SUS

    pactuado entre as três esferas de gestão (União, Estados e Municípios) com o objetivo de

    promover inovações nos processos e instrumentos de gestão. Dentre as mudanças trazidas

    pelo Pacto destaca-se a substituição do atual processo de habilitação pela adesão solidária aos

    Termos de Compromisso de Gestão e a regionalização solidária e cooperativa como eixo

    estruturante do processo de descentralização.

    Pode-se observar que a implantação e a gestão do SUS são processos extremamente

    dinâmicos e que possuem muitas repercussões nas diferentes esferas de governo, produzindo

    expressivas mudanças no modelo de saúde atual e, conforme Lucchese (2003), profundas

    modificações no modo de atuação do Estado brasileiro no campo social.

    O município, através da descentralização dos serviços de saúde, vem recebendo ao

    longo de quase 20 anos, autonomia e inúmeras responsabilidades. Antes da Lei 8.080, a União

    era a grande responsável pelos serviços de saúde, enquanto que aos estados e municípios

    cabiam apenas ações de promoção da saúde e prevenção de doenças. Através da

    institucionalização do SUS, das normas operacionais e da aprovação em 2006 do Pacto pela

    Saúde, o município passou de coadjuvante a grande protagonista das ações de saúde no Brasil.

    Diante do panorama exposto, a presente pesquisa se propõe a analisar questões

    fundamentais relacionadas à gestão do sistema de saúde, a partir da visão de gestores locais e

    estaduais (coordenadores regionais de saúde). Em primeiro lugar, se discute os avanços e

    retrocessos causados pelo contínuo processo de descentralização das ações e serviços do

    governo federal e estadual ao local. A descentralização tem sido defendida e aclamada por

    muitos gestores e profissionais como sendo a melhor maneira de se alcançar uma gestão mais

    eficiente, igualitária e democrática. Entretanto, questionamentos começam a surgir sobre o

    fato desse processo acabar sobrecarregando o orçamento municipal, como conseqüência dos

    insuficientes recursos repassados por parte da União e Estados. Questiona-se também a real

    capacidade local na administração do vasto leque de ações e procedimentos do setor.

  • Pergunta-se, enfim, se as ineficiências geradas no processo de descentralização não dificultam

    sobremaneira que os objetivos do SUS sejam alcançados.

    Outra questão fundamental relaciona-se a participação da sociedade civil na gestão do

    sistema. A gestão social é aquela que envolve diferentes atores em um processo dialógico que

    busca o bem comum. No caso da saúde, a participação dos cidadãos e usuários vem ganhando

    espaço desde a criação do SUS, em 1990; no entanto, as experiências locais mostram que a

    prática participativa não está consolidada, sendo observado nos conselhos, conferências e

    outros espaços de discussão, reduzida participação popular. As políticas acabam por serem

    criadas, formatadas e conduzidas exclusivamente pelos gestores, sem a interferência e

    contribuições da sociedade civil, que irá usufruir dos serviços, e dos trabalhadores da saúde

    que moldam o sistema.

    Como último item de análise, discute-se a visão do gestor local sobre o Pacto pela

    Saúde e seus conseqüentes impactos para a gestão municipal. Apesar de sua instituição em

    fevereiro de 2006, os municípios em sua grande maioria ainda não aderiram ao pacto. São

    analisados os avanços e desafios em direção a uma gestão mais regionalizada, bem como as

    iniciativas locais nesse sentido.

    Os itens de análise do presente trabalho são tidos como pilares estruturantes do SUS.

    São eles que dão ao nosso sistema de saúde suas características essências: a de um sistema

    horizontal, que divide poder entre os entes federados, ou seja, descentralizado; com um

    modelo de gestão social, aberto à participação da sociedade civil em diferentes instâncias; e

    dinâmico, possuindo instrumentos (normas e agora pactos) que buscam aperfeiçoar

    constantemente o sistema, reafirmando suas características democráticas.

    Tem-se a gestão da saúde pública brasileira como o item chave para a formulação de

    um sistema de saúde que atenda aos princípios da universalidade, igualdade e integralidade,

    ainda tão distantes do esperado. Para que isso ocorra, essa gestão precisa evoluir em muitos

    sentidos. Discutir junto aos gestores locais e regionais é um primeiro passo para construir

    caminhos em direção a uma gestão participativa, dialógica, mais democrática e eficiente.

  • 1.2 A problemática da pesquisa

    O setor público da saúde no Brasil evoluiu muito nos últimos vinte anos, se

    compararmos ao modelo de saúde existente anteriormente, quando o acesso aos serviços era

    restrito a uma pequena parcela da população: os trabalhadores formais contribuintes da

    previdência. A grande maioria da sociedade ficava à mercê de atendimentos precários ou

    dependentes do setor privado.

    Pode-se dizer que a saúde pública passou por uma intensa reforma democratizante ao

    passar de um modelo privatista, curativo e discriminatório, que concentrava o poder decisório

    no governo central, a um modelo universal, gratuito, com ênfase na atenção primária e que

    abriu caminhos para a participação da sociedade civil como co-gestora do novo sistema.

    A problemática do presente estudo se concentra na reflexão de que apesar dos

    avanços, a saúde pública brasileira ainda é lembrada e caracterizada, tanto pela população,

    quanto gestores e profissionais da área, de forma negativa. As características atribuídas ao

    SUS são de um sistema precário, não humanizado, de baixa qualidade e para pobres, no qual

    as pessoas morrem nas filas à espera por atendimento. Sendo assim, discutir questões centrais

    para o amadurecimento e consolidação do SUS se torna essencial na busca de uma saúde

    pública de melhor qualidade.

    Acreditando na importância da valorização da opinião dos atores envolvidos

    diretamente no processo de gestão do SUS, propõe-se conhecer a opinião desses atores sobre

    descentralização, participação social e Pacto pela Saúde.

    Sendo assim, formula-se o problema da pesquisa: Os gestores locais e estaduais

    (coordenadores regionais de saúde) de saúde acreditam que o processo de descentralização,

    participação da sociedade civil na gestão do sistema e Pacto pela Saúde, contribuem para o

    fortalecimento do sistema de saúde pública brasileiro?

    A partir desta questão pretende-se construir um diálogo entra a teoria e as vivências

    dos sujeitos pesquisados, e assim, atingir os objetivos propostos.

  • 1.3 Objetivos

    Para responder ao problema de pesquisa, apresenta-se um objetivo geral e seu

    detalhamento em objetivos específicos.

    1.3.1 Objetivo Geral

    Como objetivo geral deste trabalho, propõe-se: Analisar a trajetória da gestão do

    sistema público de saúde brasileiro a partir da visão dos gestores locais (secretários de saúde)

    e estaduais (profissionais da 17ª Coordenadoria Regional de Saúde/RS) sobre

    descentralização, participação da sociedade civil na gestão do SUS e Pacto pela Saúde 2006.

    1.3.2 Objetivos Específicos

    a) Conhecer a trajetória do sistema público de saúde no Brasil;

    b) Conhecer e analisar a percepção dos gestores sobre o processo de descentralização e

    seu impacto nas práticas locais de saúde;

    c) Identificar, através da visão do gestor local, avanços em direção a uma gestão

    partilhada entre a sociedade civil, profissionais e demais cidadãos;

    d) Analisar a visão do gestor local sobre o Pacto pela Saúde.

    1.4 Justificando a importância do estudo

    O SUS é uma das reformas sociais mais amplas do Brasil, fruto de uma conquista

    popular e democrática. Contudo, muitas vezes, a estrutura do Estado não tem ainda os

    elementos a viabilizar todas as propostas, ou seja, são muitos os desafios a serem enfrentados

    para que se alcance os ideais de integralidade, equidade e universalidade na assistência à

    saúde.

    Nas palavras de Martins Júnior (2004, p. 12)

  • o SUS passou por um processo de normatização muito intenso, partindo de um momento em que os municípios não tinham participação alguma, e os estados, uma participação muito pequena na gestão da saúde, sendo necessário trazer esses atores para o cenário da gestão dessa política.

    Para Mendes (2004), há uma falsa idéia de que ao mudar a norma os problemas do

    SUS serão resolvidos; na visão do autor, uma nova norma é uma condição necessária, mas

    não é suficiente para melhorar o SUS. Como afirma Goulart (2001, p. 293) “passamos por um

    processo de esculpir o SUS a golpes de portarias”. No entanto todas essas mudanças

    constitucionais não significam mudanças reais nas práticas locais de saúde, isto é, mudanças

    efetivas no modelo assistencial até hoje vigente e na melhora da saúde da população.

    Diante desse contexto, a gestão do sistema brasileiro de saúde pública se apresenta

    como área crítica, exigindo uma atualização permanente através de estudos e pesquisas sobre

    a forma como se expressa a tensão entre a busca de redefinição das práticas de saúde em

    direção à universalidade, eqüidade e integralidade (princípios do SUS estabelecidos na Lei

    Orgânica da Saúde) e os limites financeiros, políticos e organizacionais para se alcançar a

    operacionalização desses princípios no cotidiano do sistema.

    Desde a criação do SUS e dos seus subseqüentes instrumentos de regulamentação (as

    normas operacionais) os municípios têm visto aumentar suas responsabilidades em relação à

    organização e operacionalização dos sistemas locais de saúde. Esse movimento de

    descentralização, de um conjunto importante de responsabilidades e de recursos das esferas

    superiores do sistema para os municípios é reconhecido, hoje, como uma verdadeira reforma

    setorial do Estado. A municipalização é um processo em curso e como tal precisa ser mais

    bem estudada e compreendida nos seus aspectos positivos e avanços, mas também em suas

    limitações, contradições e dificuldades, para que estratégias de apoio e desenvolvimento

    institucional possam ser desenvolvidas.

    O Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde reforça o incentivo a

    pesquisas e estudos:

    É necessário estimular estudos sobre as gestões descentralizadas nas suas diferentes variáveis, inclusive as que analisam pacto federativo, governabilidade e governança locais, poder local, democratização, eficiências de políticas descentralizadas etc. Os estudos de caso existentes não estão sendo suficientes para analisar essas diferentes dimensões (BRASIL/CONASEMS, 2005, p.16).

  • A compreensão das repercussões do processo de descentralização da saúde no Brasil

    requer a realização de investigações com enfoques diferenciados. Lucchese (2003) destaca a

    importância da valorização da experiência cotidiana dos gestores locais, dos profissionais de

    saúde e demais envolvidos no processo, não apenas na avaliação e controle de suas ações e na

    definição de prioridades e estratégias para a gestão política da saúde, mas na identificação e

    qualificação permanente dos problemas, carências e desafios na operação do sistema de

    saúde.

    Os estudos de caso são muito valiosos em países como o Brasil, com grande extensão

    territorial e heterogeneidade em termos culturais. A produção de conhecimentos teórico-

    empíricos que analisem a trajetória da gestão da saúde pública em diferentes regiões, sob o

    olhar dos atores locais, que vivenciam na prática a realidade, contribuem para a avaliação da

    efetividade das políticas de saúde que vem sendo desenvolvidas e implantadas nas diversas

    regiões do país.

    Além das contribuições que o trabalho oferece aos estudiosos e pesquisadores da

    saúde pública, destaca-se a produção de conhecimento, via pesquisa, que retorna aos gestores

    municipais e profissionais envolvidos no processo, que se encontram vivendo uma constante

    revisão da sua missão, isto é, de suas funções e competências em relação à gestão e

    organização do sistema. A pesquisa também socializa dados importantes para se analisar a

    realidade da saúde pública nos municípios da 17ª CRS-RS, contribuindo para outros trabalhos

    na área da saúde e para o próprio desenvolvimento da região, que possui municípios, como

    Ijuí, de referência para a saúde.

    O conhecimento do impacto das reorientações da gestão do sistema de saúde pública

    em nível local implica também no conhecimento das repercussões da trajetória do SUS no

    desenvolvimento local e regional. Concorda-se com Akerman (2005) que o fortalecimento da

    esfera pública é uma condição fundamental para o desenvolvimento. Dessa forma, busca-se a

    valorização dos serviços de saúde, através de reflexões sobre a gestão do sistema, para que

    estes contribuam com um desenvolvimento includente, sustentável e sustentado, não sendo

    excluídas do debate sobre desenvolvimento, mas sim, se constituindo em um verdadeiro pilar

    para o mesmo.

  • As contribuições do estudo para a pesquisadora se relacionam à contemplação de

    aspirações que permitam a reflexão e a busca de alternativas para intervir na realidade.

    Concorda-se com Minayo (2000, p. 17), que “nada pode ser intelectualmente um problema,

    se não tiver sido, em primeiro lugar, um problema da vida prática”; e é na prática que se

    percebe, apesar dos inúmeros avanços na assistência à saúde, a insatisfação de gestores,

    profissionais e usuários com o sistema de saúde, sendo muitos desses problemas originários

    do modelo gestacional.

    Propiciar o diálogo entre os atores é o princípio para se estabelecer consensos em prol

    de um bem comum. Como na ação comunicativa de Habermas (1989), todos têm a

    oportunidade de argumentar, explanar e juntos dialogar.

    1.5 O caminho metodológico

    A metodologia de um trabalho científico é o percurso escolhido pelo pesquisador para

    atingir seus objetivos. Ela inclui as concepções teóricas de abordagem, o conjunto de

    ferramentas que possibilitam a apreensão da realidade e também o potencial criativo do

    pesquisador.

    1.5.1 A opção metodológica

    Para desenvolver a pesquisa adota-se uma abordagem qualitativa, “acreditando-se que

    o objeto das ciências sociais é essencialmente qualitativo, que a realidade social, que só se

    apreende por aproximação é, conforme mais rica do que qualquer teoria, qualquer

    pensamento que possamos ter sobre ela” (LÊNIN, 2000, p. 225).

    De acordo com Minayo (1994, p. 22), a pesquisa qualitativa “representa uma

    tendência filosófica que vem despertando interesse dos pesquisadores, principalmente no

    campo das ciências sociais, por aprofundar-se no mundo dos significados das ações e

    relações humanas, um lado não perceptível e captável em equações, médias e estatísticas”.

    Pesquisa qualitativa, no entender de Minayo (1996, p. 10) “é aquela capaz de incorporar a

    questão do significado e da intencionalidade como inerente aos atos, às relações, e às

  • estruturas sociais, sendo que estas últimas tomadas tanto em seu advento quanto na sua

    transformação, como construções humanas significativas”.

    O qualitativo na sociologia compreensiva coloca como tarefa das ciências sociais a

    compreensão da realidade humana vivida socialmente e diversa do mundo das ciências

    naturais, tendo como conceito central o significado. “Em oposição ao positivismo propõe-se a

    subjetividade como fundante do sentindo e defende-a como constitutiva do social e inerente

    ao entendimento objetivo [sic]” (MINAYO, 1996, p. 11).

    A autora nos coloca que a sociologia compreensiva “não se preocupa de quantificar,

    mas de explicar os meandros das relações sociais consideradas essência e resultado da

    atividade humana criadora, efetiva e racional, que pode ser aprendida através do cotidiano,

    da vivência, e da explicação do senso comum” (MINAYO, 1996, p. 11).

    A opção metodológica para a pesquisa é o estudo de caso, que “consiste no estudo

    profundo e exaustivo de um ou poucos objetos, de maneira que permita seu amplo e detalhado

    conhecimento, tarefa praticamente impossível mediante outros delineamentos (...)” (GIL,

    2002, p. 54). Segundo Yin (2001, p. 19), “os estudos de caso representam a estratégia

    preferida quando se colocam questões do tipo “como” e “por que”, quando o pesquisador tem

    pouco controle sobre os eventos e quando o foco se encontra em fenômenos contemporâneos

    inseridos em algum contexto da vida real”.

    O presente estudo também pode ser classificado como fenomenológico, pois, de

    acordo com Vergara (2006, p. 87), “nas pesquisas norteadas pelo método fenomenológico, a

    fonte essencial de dados refere-se ao relato dos próprios sujeitos”, sendo a técnica mais

    utilizada para a obtenção de dados, nesse tipo de pesquisa, a entrevista aberta ou semi-

    estruturada.

    Com relação à coleta de dados, optou-se por utilizar entrevistas semi-estruturadas com

    os gestores municipais e a realização de uma entrevista coletiva com os profissionais da 17ª

    Coordenadoria Regional de Saúde/RS. As entrevistas com os secretários municipais de saúde

    foram previamente agendadas em seus respectivos municípios, realizadas em uma única

    visita, durante os meses de novembro e dezembro de 2008; a entrevista na 17ª CRS/RS

  • ocorreu em dezembro de 2008. Todas as entrevistas foram gravadas com o consentimento dos

    participantes e transcritas para posterior análise.

    O roteiro da entrevista foi usado como um ponto de referência para o diálogo que se

    travou entre os sujeitos da pesquisa.

    1.5.2 O universo e a amostra da pesquisa

    Para a presente pesquisa foram selecionados 10 municípios, de forma intencional, que

    fazem parte da 17ª Coordenadoria Regional de Saúde/RS, são eles: Augusto Pestana,

    Ajuricaba, Jóia, Ijuí, Coronel Barros, Bozano, Catuípe, Pejuçara, Panambi e Condor. Além

    destes, outros 10 municípios compõem a coordenadoria em questão, num total de 20: Campo

    Novo, Chiapeta, Crissiumal, Humaitá, Horizontina, Nova Ramada, Santo Augusto, São

    Martinho, São Valério do Sul e Sede Nova.

    Para compor a amostra, os municípios foram selecionados de forma intencional, mas

    contemplando localidades de diferentes complexidades, ou seja, de pequeno, médio e grande

    porte: até 5 mil habitantes (Bozano, Pejuçara e Coronel Barros), entre 5 mil e 10 mil

    habitantes (Ajuricaba, Catuípe, Condor e Jóia) e com mais de 20 mil habitantes (Ijuí e

    Panambi). O Índice de Desenvolvimento Socioeconômico (IDESE) relacionado à saúde, nos

    municípios pesquisados varia de 0,839 (Panambi) à 0,889 (Jóia), sendo assim, todos

    enquadrados, segundo o IDESE, como municípios de alto desenvolvimento no setor da saúde.

    Também fazem parte da amostra 7 profissionais da 17ª Coordenadoria Regional de

    Saúde/RS. Com sede em Ijuí, a 17ª abrange uma população de 225.015 habitantes, que

    contam com 17 hospitais e 781 leitos, sendo 573 credenciados pelo SUS. Foi escolhida como

    recorte para este estudo devido à proximidade com a pesquisadora e por representar um ponto

    em comum entre os municípios pesquisados. Além disso, o número de municípios estudados

    está relacionado com a viabilidade temporal e por se acreditar que em pesquisas qualitativas a

    quantidade da amostra não é o fundamental.

    A descentralização político-administrativa do SUS, no Rio Grande do Sul, tem sido

    efetivada através de 19 Coordenadorias Regionais de Saúde (CRS), existentes desde 1999 e

    formalizadas através do decreto 39.691 de 30 de agosto de 1999. As Coordenadorias

  • Regionais são responsáveis pelo planejamento, acompanhamento e gerenciamento das ações e

    serviços de saúde, em cooperação técnica, financeira e operacional com os gestores

    municipais e prestadores de serviços de saúde.

    Deixando de lado o caráter predominantemente administrativo e repassador de

    demandas dos órgãos centrais da Secretaria Estadual de Saúde, as Coordenadorias estão se

    estruturando no sentido de assumir suas novas funções, cuja dimensão mais importante é a de

    articulação do novo sistema de saúde regional. O atual desenho territorial das coordenadorias

    foi instituído pelo decreto 40.991 de 17 de agosto de 2001 e está sujeito a ajustes em função

    do processo de regionalização mais amplo proposto pelo plano diretor. A Coordenadoria é a

    instância responsável pela coordenação dos sistemas de saúde microrregionais e módulos

    assistenciais, correspondentes à sua área de atuação, dentro de uma macrorregião.

    Concorda-se com Nogueira (2001), que nos estudos essencialmente qualitativos de um

    modo geral, a seleção de elementos não é realizada no sentido de representar a população ou

    universo como um todo, já que não há uma preocupação em si com a representatividade, o

    que se pretende é encontrar unidades de análise e pessoas mais ou menos típicas da categoria

    em estudo. O mesmo autor destaca que este tipo de pesquisa não tem uma preocupação com o

    tamanho da amostra e com número elevado de elementos.

    1.5.3 Sujeitos da Pesquisa

    Os sujeitos desta pesquisa são os gestores locais de saúde (secretários municipais de

    saúde) dos municípios selecionados e os profissionais da 17ª Coordenadoria Regional de

    Saúde/RS, gestores regionais, representantes do estado.

    Com relação ao perfil dos gestores locais que foram sujeitos da pesquisa, destacam-se

    algumas características. Dos 10 entrevistados 3 são do gênero feminino e 7 do masculino,

    possuem idade que varia de 28 a 72 anos, com uma média de 43,5 anos. Dos entrevistados,

    somente um possui ensino superior completo, com graduação em Administração, sendo que

    nenhum possui nenhum tipo de formação na área da saúde. Outra característica é que todos

    possuem longa experiência no serviço público de seu município, atuando em diferentes áreas

    antes de assumir a Secretaria Municipal de Saúde.

  • Além dos secretários de saúde, foram entrevistados 7 profissionais da 17ª

    Coordenadoria Regional de Saúde, sendo 5 enfermeiros, um assistente social e um contador,

    todos com mais de 10 anos de experiência na gestão regional.

    1.5.4 Plano de análise e interpretação dos dados

    A análise dos dados é o momento de agrupar, tratar e confrontar as informações

    coletadas com a teoria explorada. No entendimento de Goldenberg (2003, p. 94) “deve-se

    analisar comparativamente as diferentes respostas, as idéias novas que aparecem, o que

    conforma e o que rejeita as hipóteses iniciais, o que estes dados levam a pensar de maneira

    mais ampla”.

    Para a análise dos dados, primeiramente se realizou a transcrição da gravação dos

    relatos e após a interpretação e discussão das mesmas. Concorda-se com Goldenberg (2003, p.

    95), que “é importante analisar tanto o dito como o ‘não-dito’ pelos pesquisados”,

    procedendo-se dessa forma.

    A escolha dos métodos de abordagem usados em uma pesquisa evidencia as opções

    teóricas e intencionalidades do pesquisador. Na busca de referências que fundamentem a

    opção metodológica da presente pesquisa, encontram-se as contribuições de Penin (1997, p.

    41) relacionadas à pesquisa interpretativa:

    Nos caminhos metodológicos da pesquisa interpretativa consideram-se como componentes de extrema relevância as explicações dos fatos fornecidos pelo sistema de significação das pessoas, e não só a identificada pela positividade dos fatos. Esta é uma característica básica das ciências humanas: não se está somente analisando ou procurando entender melhor o objeto; mas o entendimento do sujeito sobre o objeto.

    Além da pesquisa interpretativa, buscam-se contribuições do estudo das

    representações sociais, para análise e interpretação dos dados:

    O conceito de representação social auxilia a explicar diversos fenômenos coletivos das sociedades modernas, caracterizadas pela pluralidade de participação dos indivíduos nos mais diferentes grupos sociais e por forte interação entre indivíduos e grupos. Tais características contribuem para fazer do estudo das representações um instrumento privilegiado de compreensão das relações entre mundos individual e social (TENÓRIO e COSTA, 1999, p. 28).

  • Por fim, através de uma pesquisa qualitativa, baseada em um estudo de caso, propõe-

    se a discussão a partir da visão dos gestores locais e estaduais, atuantes na 17ª Coordenadoria

    Regional de Saúde/RS sobre descentralização, participação da sociedade civil e Pacto pela

    Saúde, a partir de uma análise interpretativa de seus relatos.

  • CAPÍTULO 2

    A GESTÃO PÚBLICA BRASILEIRA

    A gestão pública brasileira possui algumas características marcantes, entre elas, o

    avanço no processo de descentralização das ações do governo federal à esfera municipal, as

    constantes reorientações e reformulações dos sistemas, políticas e programas e a ainda

    permanente burocracia dos serviços. Essas características são decorrentes de um longo

    processo de evolução política do Estado e conseqüência da história social, econômica e

    cultural do país. Com a saúde pública não é diferente, apesar de possuir uma evolução e

    características específicas, a gestão do sistema é reflexo da trajetória da gestão pública de uma

    forma geral.

    Com o objetivo de analisar a gestão da saúde, em um primeiro momento se resgata a

    evolução da gestão pública brasileira, que acompanhou as transformações do papel do Estado

    e as mudanças de objetivos dos governos. São apresentados os principais modelos de

    administração pública que marcaram o país: a administração pública patrimonialista, a

    burocrática, a gerencial e mais recentemente a administração pública social/societal, com

    destaque para as duas últimas. Essas quatro formas de gestão se sucedem no tempo, sem que,

    no entanto, qualquer uma delas seja inteiramente abandonada, repercutindo diretamente nas

    ações em saúde.

    2.1 A administração pública patrimonialista

    O patrimonialismo perdurou no Brasil por cinco séculos, de Dom João I a Getúlio

    Vargas, resistindo a profundas transformações do Estado nacional ao longo desse período.

    Neste sistema, o poder decisório concentrava-se nas mãos de grandes proprietários de terra ou

    grupos políticos, senhores de engenho e coronéis, que governavam os bens públicos como se

    fossem bens privados seus.

    Bresser Pereira (1998) destaca que o que definia o governo nas sociedades pré-

    capitalistas e pré-democráticas era a privatização do Estado ou a interpermeabilidade dos

    patrimônios público e privado. Esta incapacidade ou a relutância dos dominantes em

  • distinguir entre o que era seu e o que era público, foi uma das marcas do modelo

    patrimonialista.

    Faoro (2001) analisa a formação do Estado nacional, caracterizando o modelo

    patrimonialista como aquele que prende os servidores numa rede patriarcal na qual, estes,

    representam a extensão da casa do soberano.

    O domínio tradicional se configura no patrimonialismo, quando aparece o estado-maior de comando do chefe, junto a casa real, que se estende sobre o largo território, subordinando muitas unidades políticas. Sem o quadro administrativo, a chefia dispersa assume caráter patriarcal, identificável no mando do fazendeiro, do senhor de engenho e nos coronéis. Num estágio inicial, o domínio patrimonial, desta forma constituído pelo estamento, apropria as oportunidades econômicas de desfrute dos bens, das concessões, dos cargos, numa confusão entre o setor público e o privado, que, com o aperfeiçoamento da estrutura, se extrema em competências fixas, com divisão de poderes, separando-se o setor fiscal do setor pessoal (...) (FAORO, 2001, p. 823).

    O modelo patrimonialista de administração foi marcado pela corrupção e o nepotismo,

    ficando o público reduzido a segundo plano, as decisões eram baseadas em interesses

    individuais ou de grupos privilegiados, sendo a sociedade manipulada pelas vontades da

    classe dominante, sem voz ativa de decisão. Nas palavras de Faoro (2001, p. 819), “a

    comunidade política conduz, comanda, supervisiona os negócios, como negócios privados

    seus, na origem, como negócios públicos depois (...). O súdito, a sociedade, se compreende

    no âmbito de um aparelhamento a explorar, a manipular, a tosquiar nos casos extremos”.

    O chefe, o soberano, o patriarca é o comandante do país, ele concede cargos e

    benefícios, estabelece normas e deveres e decide o que é certo e o que é errado. O apoio das

    massas é conseguido através de políticas de bem-estar social e a classe popular não exime

    nenhuma vontade em participar das decisões, ela quer a proteção do seu senhor e acata suas

    decisões.

    Durante o período em que predominou o modelo patrimonialista de administração, as

    políticas de saúde foram praticamente inexistentes ou muito incipientes. Jorge (2006) cita

    como iniciativas da época a criação das duas primeiras escolas de medicina do país, o Colégio

    Médico-Cirúrgico no Real Hospital Militar da Cidade de Salvador e a Escola de Cirurgia do

    Rio de Janeiro; e as primeiras ações sanitaristas do médico Oswaldo Cruz combatendo

  • doenças como varíola, malária e febre amarela que se espalhavam pelo país devido a falta de

    saneamento básico e outras ações preventivas.

    Em 1923 foi instituída a Lei Eloi Chaves, que assegurava a criação das Caixas de

    Aposentadoria e Pensão pelas empresas, que passavam a oferecer serviços de saúde aos seus

    funcionários e suas famílias. Elas tinham entre suas atribuições, além da assistência médica ao

    funcionário e a família, concessão de preços especiais para os medicamentos, aposentadorias

    e pensões para os herdeiros. Entretanto, essas Caixas só valiam para os funcionários urbanos,

    sendo que a União não participava dessa iniciativa, somente o setor empresarial.

    Com o surgimento do capitalismo e da democracia, o sistema patrimonialista acaba

    sendo substituído pelo modelo burocrático, que veio trazer profundas mudanças na forma de

    administração e organização da sociedade.

    2.2 A administração pública burocrática

    A burocracia emerge com o capitalismo e o surgimento do Estado moderno. Motta

    (1985) destaca que esse modelo de administração possui como elementos constitutivos uma

    elite política, que geralmente se concentra com a classe dominante e nela se recruta; um corpo

    de funcionários hierarquicamente organizados, que se ocupa da administração; e uma força

    pública, que se destina não apenas a defender o país contra o inimigo externo, mas

    principalmente a manter a ordem interna.

    Granjeiro (2003) sugere o termo burocracia com dois sentidos, um sentido científico,

    dentro da administração e da sociologia, e um sentido popular bem diverso do primeiro. No

    sentido popular, burocracia significaria papelada, número excessivo de tramitações, apego

    excessivo aos regulamentos, ineficiência.

    O formalismo da burocracia expressa-se no fato de que a autoridade deriva de um sistema de normas racionais, escritas e exaustivas, que definem com precisão as relações de mando e subordinação, distribuindo as atividades a serem executadas de forma sistemática, tendo em vista os fins visados. Sua administração é formalmente planejada, organizada e sua execução se realiza através de documentos escritos. (...) Quanto mais um sistema social é organizado, mais se aproxima do modelo ideal da organização burocrática. Um sistema social é ou não uma organização na medida em que é burocraticamente organizado” (GRANJEIRO, 2003, p. 54).

  • Bresser Pereira (1998) explica que para o capitalismo é essencial a clara separação

    entre o Estado e o mercado, só podendo existir democracia quando a sociedade civil

    distingue-se do Estado, ao mesmo tempo em que o controla. Tornou-se assim necessário

    desenvolver um tipo de administração que estabelecesse uma clara distinção entre o público e

    o privado, e também a separação entre o político e o administrador público, surgindo então, a

    administração pública burocrática moderna, racional-legal.

    No Brasil, o modelo de administração burocrática emerge a partir dos anos 30 no

    contexto da industrialização, quando o Estado assume papel decisivo de interventor nos

    setores produtivo de bens e serviços. A partir da reforma empreendida no governo de Getúlio

    Vargas por Maurício Nabuco e Luiz Simões Lopes, a administração pública sofre um

    processo de racionalização que se traduziu no surgimento das primeiras carreiras burocráticas

    e na adoção do concurso como forma de acesso ao serviço público.

    Em 1936 é criado o Conselho Federal do Serviço Público Civil, que se consolida

    através de sua transformação, dois anos depois, no Departamento Administrativo do Serviço

    Público (DASP), que passou a ser seu órgão executor e, também, formulador da nova forma

    de pensar e organizar a administração pública. A criação do DASP ocorreu em pleno Estado

    Novo, um momento histórico em que o autoritarismo brasileiro voltava com força, mas agora

    para realizar uma revolução modernizadora no país, industrializá-lo e valorizar a competência

    técnica. Representou assim, no plano administrativo, a afirmação dos princípios

    centralizadores e hierárquicos da burocracia clássica.

    Segundo Wahrlich (1983), dentre as realizações do DASP destacam-se o ingresso no

    serviço público por concurso, critérios gerais e uniformes de classificação de cargos,

    organização dos serviços de pessoal e de seu aperfeiçoamento sistemático, administração

    orçamentária, padronização das compras do Estado e a racionalização geral de métodos. Além

    disso, o DASP cooperou no estabelecimento de uma série de órgãos reguladores da época

    (conselhos, comissões e institutos), nas áreas econômica e social.

    No que diz respeito à administração dos recursos humanos, o DASP representou a

    tentativa de formação da burocracia nos moldes weberianos, baseada no princípio do mérito

    profissional. Por outro lado, embora tenham sido valorizados instrumentos importantes à

    época, tais como a instituição do concurso público e do treinamento, não se chegou a adotar

  • consistentemente uma política de recursos humanos que respondesse às necessidades do

    Estado.

    Surge a organização burocrática capitalista, baseada na centralização das decisões, na

    hierarquia traduzida no princípio da unidade de comando, na estrutura piramidal do poder, nas

    rotinas rígidas e no controle passo a passo dos processos administrativos. Implanta-se a

    burocracia estatal formada por administradores profissionais especialmente recrutados e

    treinados, que respondem, de acordo com o paradigma do tipo ideal de burocracia, de forma

    neutra aos políticos.

    Paiva (2003) chama a atenção para o fato de que o fenômeno burocrático se mistura

    com a centralização política, somado ao surgimento de uma organização administrativa que

    implementaria, pouco a pouco, o domínio do governo federal nos assuntos locais. No

    contexto, observa-se um gradual conflito nas relações sociais e políticas entre aqueles

    diretamente responsáveis pela elaboração e implementação das políticas públicas e a crescente

    burocracia estatal.

    Na mesma linha de pensamento, Paiva (2004) explica que uma série de problemas na

    implementação das políticas públicas, com destaque para as políticas de saúde, tem a ver com

    o crescente grau de burocratização no país. O autor acredita que

    o avanço da burocratização não implicou forte rejeição a toda perspectiva que ideologizasse a ação do Estado, mas significou um esvaziamento ideológico da ação do governo no campo da saúde, especialmente no sentido da saúde como ferramenta de construção da nacionalidade (PAIVA, 2004, p. 35).

    Com a burocratização do Estado e a criação de novos cargos, funções e órgãos

    administrativos, a máquina pública se transformou rapidamente em um organismo altamente

    complexo. Segundo Paiva (2003), em tese, o que se ganha em eficiência administrativa, se

    perde em eficácia política. A estrutura burocrática vai pouco a pouco minar o fermento

    ideológico que fazia movimentar os atores sociais mais atuantes da área da saúde, justamente

    aqueles estimulados pela idéia de construir um país via ações no campo da saúde pública.

    A saúde pública no contexto do surgimento e consolidação do modelo burocrático de

    administração foi marcada por ações verticalizadas e centralização decisória no governo

  • federal. O médico era o grande promotor da saúde, com ações predominantemente curativas,

    voltadas para a resolução de epidemias de doenças que assolavam a população. Como marco

    desse período, destacam-se a criação do Ministério de Educação e Saúde Pública (MESP), em

    1930, dividido em quatro departamentos: educação, saúde pública, assistência social e cultura;

    e a instituição das Conferências Nacionais de Saúde (CNSS), em 1937, buscando ampliar as

    discussões relacionadas às necessárias mudanças no setor.

    Outra característica marcante da saúde pública nessa época foi sua estreita relação com

    o setor previdenciário e setor privado. Apesar de algumas melhorias na área da saúde, com a

    queda de Vargas, quando os rumos da saúde pública passaram a ser debatidos em um

    ambiente mais democrático, a luta dos sanitaristas por uma saúde pública eficaz e universal,

    com enfoque preventivo e educativo, bem como com abertura das discussões para a sociedade

    civil, ainda perdia espaço para um modelo de atenção à saúde centrado na assistência médica,

    exposto às leis do mercado e que passava pelo setor previdenciário.

    A ênfase na medicina previdenciária, de cunho individual e assistencialista, foi acompanhada por um franco menosprezo pelas medidas de saúde coletiva tanto as tradicionalmente executadas pelo Ministério da Saúde quanto às inovações propostas pelos sanitaristas identificados com o projeto nacional desenvolvimentista (...) prova mais evidente do descaso com a saúde coletiva é o decréscimo do orçamento do Ministério da Saúde neste período (OLIVEIRA JÚNIOR e TEIXEIRA, 1989, p. 207).

    Mendes (1999) destaca algumas características do modelo médico-assistencial

    privatista, que marcou o período burocrático da administração pública: (a) extensão da

    cobertura previdenciária à quase totalidade da população, incluindo a rural; (b)

    privilegiamento da prática médica curativa, individual, tecnificada, especializada e centrada

    no atendimento hospitalar, em detrimento da saúde pública; (c) conformação de um complexo

    médico-industrial; (d) pagamento dos serviços contratados e conveniados por unidades de

    serviços; (e) desenvolvimento de um padrão de organização da prática médica orientada em

    termos de lucratividade, proporcionando a capitalização da medicina.

    Ainda segundo Mendes (1999), a forma de organização da prática médica durante o

    período previdenciário, fortemente influenciada pela ancoragem dos interesses capitalistas no

    setor, aprofundou um modelo de atenção centrado nos procedimentos, ancoradas ainda em

    elementos ideológicos como o biologismo (crença na predominância biológica das doenças),

    no individualismo (escolha do indivíduo como objeto exclusivo da prática, excluindo os

  • aspectos sociais) e no especialismo (aprofundamento do conhecimento específico em

    detrimento da globalidade inerente ao objeto).

    O período final da ditadura militar brasileira, que correspondeu aos governos de

    Garrastazu Médici (1969 a 1974) e Ernesto Geisel (1974 a 1979), representaram alguns

    avanços relacionados à mobilização social em busca dos direitos e necessidades do país.

    Houve também uma maior cobrança da população para o provimento de um sistema de saúde

    eficaz, que atendesse às necessidades da população como um todo.

    Com a Nova República, em 1985, frente à crise do modelo privatista e da previdência,

    associadas à maior mobilização de profissionais da saúde e estudiosos da área, o movimento

    pela reforma sanitária teve suas propostas aprofundadas. Foram formuladas as bases para a

    tão sonhada reforma sanitária brasileira, que culminou na criação do SUS, na Assembléia

    Constituinte de 1988.

    O Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (CEBES) caracteriza assim as políticas de

    saúde no Brasil durante os anos 70 e 80:

    Política que substitui a voz da população pela sabedoria dos tecnocratas e pelas pressões dos diversos setores empresariais; política de saúde que acompanha em seu traçado as linhas gerais do posicionamento sócio-econômico do governo – privatizante, empresarial e concentrada em renda, marginalizando cerca de 70% da população dos benefícios materiais e culturais do crescimento econômico (...). Política de saúde, enfim, que esquece as necessidades reais da população e se norteia exclusivamente pelos interesses da minoria constituída e confirmada pelos donos das empresas médicas e gestores da indústria da saúde em geral (CEBES, 1980, p. 47).

    No contexto de redemocratização do país se deu uma das mais radicais reformas

    político-sociais brasileiras – a reforma sanitária. A reforma sanitária representou um conjunto

    de idéias que se tinha em relação às mudanças e transformações necessárias na área da saúde.

    Essas mudanças não abarcavam apenas o sistema, mas todo o setor saúde, introduzindo uma

    nova idéia na qual o resultado final era entendido como a melhoria das condições de vida da

    população.

    Nas palavras de Fleury (1997, p. 33),

    o projeto da reforma sanitária portava um modelo de democracia cujas bases eram, fundamentalmente: a formulação de uma utopia igualitária; a garantia da saúde

  • como direito individual e a construção de um poder local fortalecido pela gestão social democrática.

    O movimento pela reforma sanitária foi composto por uma diversidade de atores, mas

    principalmente por intelectuais e trabalhadores da área da saúde e, posteriormente, por

    movimentos populares e secretários de saúde. O movimento estudantil teve um papel

    fundamental na propagação das idéias e fez com que diversos jovens estudantes começassem

    a se incorporar nessa nova maneira de ver a saúde.

    A criação do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES), em 1976, também é

    importante na luta pela reforma sanitária. A entidade surge com o propósito de lutar pela

    democracia, de ser um espaço de divulgação do movimento sanitário, e reúne pessoas que já

    pensavam dessa forma e realizavam projetos inovadores. A idéia era fazer isso pelas

    conferências de saúde (que na época eram espaços burocráticos) convidando a sociedade para

    discutir e participar.

    A 8ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986, representa um marco na

    saúde brasileira, pois culminou, através de ampla participação popular, na elaboração dos

    princípios e diretrizes do SUS. A partir das discussões realizadas na conferência e de uma

    grande mobilização nacional, o modelo que defendia a universalização da saúde através dos

    princípios da igualdade e integralidade, foi incluído na constituição de 1988 e dessa forma o

    SUS passa a ter base legal, garantindo o direito a todos os cidadãos, através de ações do

    Estado.

    2.3 A administração pública gerencial

    A administração pública gerencial se constituiu no Brasil durante os anos 1990, no

    governo de Fernando Henrique Cardoso, ligada ao intenso debate sobre a crise de

    governabilidade e credibilidade do Estado na América Latina. No contexto internacional, está

    relacionada ao gerencialismo, ideário que floresceu nos anos 1980 durante os governos de

    Margarteh Thatcher, na Inglaterra, e de Ronald Reagan, nos Estados Unidos.

  • Abrucio (1998) explica que a partir da crise do petróleo em 1973, e posterior crise

    econômica mundial, o antigo modelo de intervenção estatal passou a ser questionado. Como

    conseqüência, desde o início da década de 80, vê-se desenvolver uma onda global de reforma

    do setor público, a busca dos governos por um novo modelo de administração, que

    correspondesse aos anseios do novo momento econômico e político pelo qual o mundo

    passava. De acordo com Kettl (1998), os objetivos em geral consistiam em agilizar a

    administração, melhorar a eficácia e eficiência dos serviços públicos e reduzir os custos,

    sendo que o caminho encontrado foi o de reduzir o tamanho do Estado.

    No caso da Inglaterra, segundo Paes de Paula (2007), o gerencialismo surge como

    resposta ao avanço norte-americano, alemão e japonês no mercado internacional. A ex-

    ministra Thatcher e participantes de seu governo estiveram por anos engajados nos think

    tanks1 neoconservadores, que realizaram vários estudos no campo da cultura

    empreendedorista, sendo resgatados assim valores vitorianos, como o esforço e o trabalho

    duro, cultivando-se também a motivação, a ambição criativa, a inovação, a excelência, a

    independência, a flexibilidade e a responsabilidade pessoal, características até então do setor

    privado.

    Nos Estados Unidos se desenvolvia o culto a excelência, sendo a “Era Reagan”

    caracterizada por fixar no imaginário social fantasias de oportunidades de progresso e

    crescimento baseadas na iniciativa individual. Paes de Paula (2007) destaca a disseminação da

    cultura do management (crença numa sociedade de mercado livre, a visão do indivíduo como

    auto-empreendedor, a crença em tecnologias gerenciais que permitem racionalizar as

    atividades organizadas grupais) e a divulgação de “modismos gerenciais” (ferramentas e

    práticas administrativas bem-sucedidas na resolução de problemas gerenciais, como a

    administração da qualidade total e a reengenharia). Pode-se dizer que nos Estados Unidos o

    ideário gerencialista se consolidou como referência no campo da gestão pública com o livro

    Reinventando o Governo, de David Osborne e Ted Gaebler, muito conhecido até hoje.

    1 Os think tanks são centros de pensamento em geral dedicados ao estudo do Estado, das políticas governamentais e do desenvolvimento econômico. Têm como objetivo aproximar as elites intelectuais e governamentais britânicas das visões de livre-mercado (PAES DE PAULA, 2007).

  • Em síntese, a administração pública gerencial surge como alternativa para as

    características burocráticas das administrações vigentes, enfatizando a eficiência

    administrativa e baseando-se no ajuste estrutural, nas recomendações dos organismos

    multilaterais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, pautados no

    Consenso de Washington2 e no movimento gerencialista em curso na Europa e Estados

    Unidos.

    Como características da administração pública gerencial, destacam-se a

    descentralização do aparelho de Estado, que separou as atividades de planejamento e

    execução do governo e transformou as políticas públicas em monopólio dos ministérios; a

    privatização das estatais; a terceirização dos serviços públicos; a regulação estatal das

    atividades públicas conduzidas pelo setor privado e a adoção de idéias e ferramentas

    gerenciais oriundas do setor privado.

    No Brasil a reforma do Estado começou em meio a uma grande crise econômica que

    teve seu auge em 1990 com um episódio hiperinflacionário. Entretanto, a reforma

    administrativa só se tornou um tema central no país em 1995, após a eleição e posse de

    Fernando Henrique Cardoso (FHC). Luiz Carlos Bresser Pereira, ministro de FHC, foi o

    responsável pela reforma do Estado no país, à frente do Ministério da Administração Federal

    e Reforma do Estado (MARE), formulou uma proposta de adaptação do modelo gerencialista

    europeu à realidade brasileira.

    A Reforma da Gestão Pública ou reforma gerencial do Estado iniciou, em 1995, com a

    publicação do Plano Diretor da Reforma do Estado e o envio para o Congresso Nacional da

    emenda da administração pública que se transformaria, em 1998, na Emenda 19, efetivando as

    mudanças estruturais necessárias para legitimar a reforma gerencial.

    2 O Consenso de Washington se compõe de dez regras básicas, formulado em 1989 por economistas de instituições financeiras baseadas em Washington, como o FMI, o Banco Mundial e o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, fundamentadas num texto do economista John Williamson, e teve por objetivo organizar idéias para auxiliar a América Latina a reencontrar uma trajetória de crescimento e desenvolvimento (KUCZYNSKI; WILLIAMSON, 2004).

  • Paes de Paula (2007) identifica como elementos que influenciaram o processo de

    reforma no Brasil as constantes críticas às características patrimoniais e autoritárias do Estado

    e da administração pública; a crise do nacional-desenvolvimentismo e a ascensão do

    desenvolvimento dependente e associado, que pretendia fazer com que o país se

    desenvolvesse, principalmente pela abertura de mercado e pela atração de investimentos

    externos; a visão dos organismos financeiros internacionais e o Consenso de Washington.

    No pensamento de Bresser Pereira (1996), a crise do Estado brasileiro, que provocou a

    busca por uma nova forma de administrar o país, caracterizou-se pela perda de capacidade do

    Estado de coordenar o sistema econômico de forma complementar ao mercado, envolvendo

    alocação de recursos, acumulação de capital e distribuição de renda. Para este autor, a crise

    também pode ser definida como uma crise fiscal, do modo de intervenção do Estado, da forma

    burocrática pela qual o Estado é administrado, e política:

    A crise política teve três momentos: primeiro, a crise do regime militar – uma crise de legitimidade; segundo, a tentativa populista de voltar aos anos 50 – uma crise de adaptação ao regime democrático; e finalmente, a crise que levou ao impeachment de Fernando Collor de Mello – uma crise moral. A crise fiscal ou financeira caracterizou-se pela perda do crédito público e por poupança pública negativa. A crise da forma burocrática de administrar o estado emergiu com toda a força depois de 1988, antes mesmo que própria administração pública burocrática pudesse ser plenamente instaurada no país. (BRESSER PEREIRA; SPINK 1998, p. 239).

    Bresser Pereira (1996, p. 6), ao defender o modelo gerencial destaca como

    características da nova administração pública a ser instaurada:

    a) descentralização do ponto de vista político, transferindo-se recursos e atribuições para os níveis políticos regionais e locais; b) descentralização administrativa, através da delegação de autoridade aos administradores públicos, transformados em gerentes cada vez mais autônomos; c) organizações com poucos níveis hierárquicos, ao invés de piramidais; d) pressuposto da confiança limitada e não da desconfiança total; e) controle a posteriori, ao invés do controle rígido, passo a passo, dos processos administrativos; e f) administração voltada para o atendimento do cidadão, ao invés de auto-referida.

    Ainda segundo Bresser Pereira (1998), a proposta de reforma do aparelho estatal parte

    da existência de quatro setores dentro do Estado: a) o núcleo estratégico do Estado; b) as

    atividades exclusivas do Estado; c) os serviços não-exclusivos ou competitivos; e d) a

    produção de bens e serviços para o mercado. No núcleo estratégico são definidas as leis e as

    políticas públicas, é um setor relativamente pequeno, formado no Brasil, no nível federal, pelo

    presidente da república, pelos ministros de Estado e pela cúpula dos ministérios, responsáveis

  • pela definição das políticas públicas, pelos tribunais federais encabeçados pelo Supremo

    Tribunal Federal e pelo Ministério Público. Nos níveis estadual e municipal existem núcleos

    estratégicos correspondentes.

    As atividades exclusivas de Estado são aquelas em que é exercido o “poder de

    Estado”, ou seja, o poder de legislar e tributar. Inclui a polícia, as forças armadas, os órgãos

    de fiscalização e de regulamentação, e os órgãos responsáveis pelas transferências de

    recursos, como o Sistema Único de Saúde, o sistema de auxílio-desemprego, etc.

    Os serviços não-exclusivos ou competitivos do Estado são aqueles que, embora não

    envolvendo o poder de Estado, são realizados ou subsidiados por ele por serem considerados

    de alta relevância para os direitos humanos, ou por envolverem economias externas, não

    podendo ser adequadamente recompensados no mercado através da cobrança de serviços.

    No entendimento de Abrucio (1998), o novo modelo de administração pública

    proposto, com o objetivo de melhorar a agilidade e eficiência do sistema, separa os

    formuladores dos executores das políticas públicas, dificultando a implantação e efetividade

    das mesmas. O que acontece é que os formuladores das políticas não têm experiência de

    campo, desconhecendo os verdadeiros problemas do dia-a-dia administrativo; por outro lado,

    quem executa a política muitas vezes não sabe por que o faz, não tendo abertura para repassar

    seus conhecimentos aos criadores e formatadores das ações.

    Com relação aos avanços trazidos pela administração pública gerencial quando

    comparada à burocrática, Bresser Pereira (1998) acredita que a nova administração pública se

    diferencia da burocrática, por seguir os princípios do gerencialismo. Para o autor a

    administração pública gerencial está baseada em uma concepção de Estado e de sociedade

    democrática e plural, enquanto que a administração pública burocrática tem um vezo

    centralizador e autoritário. Segundo o mesmo autor, enquanto a administração pública

    burocrática se concentra no processo, em definir procedimentos para a contratação de pessoal,

    para a compra de bens e serviços e em satisfazer as demandas dos cidadãos, a administração

    pública gerencial orienta-se para os resultados.

    A administração pública gerencial constitui um avanço, e até certo ponto um

    rompimento com a administração pública burocrática; isso não significa, entretanto, que

  • negue todos os seus princípios. Pelo contrário, a administração pública gerencial está apoiada

    na anterior, da qual conserva, embora flexibilizando, alguns dos seus princípios fundamentais,

    como a admissão segundo rígidos critérios de mérito, a existência de um sistema estruturado e

    universal de remuneração, as carreiras, a avaliação constante de desempenho, além do

    treinamento sistemático.

    A diferença fundamental está na forma de controle, que deixa de se basear nos

    processos para se concentrar nos resultados, e não na rigorosa profissionalização da

    administração pública, que continua um princípio fundamental.

    Apesar de esse modelo surgir no intuito de substituir a administração pública

    burocrática, caracterizada, segundo Motta e Vasconcelos (2002, p. 140), por concentrar-se no

    processo, pela racionalidade, autoridade, controle e hierarquia, a administração pública

    gerencial ainda é burocrática. Mesmo que algumas características do tipo ideal weberiano

    tenham sido superadas, a dominação burocrática persiste e vem elaborando formas cada vez

    mais sofisticadas de controle social.

    Analisando a estrutura do aparelho do Estado pós-reforma, Abrucio e Costa (1998),

    constatam uma clara concentração do poder no núcleo estratégico. Para os autores, se aposta

    na eficiência do controle social e se delega a formulação de políticas públicas para os

    burocratas: o monopólio das decisões foi concedido às secretarias formuladoras de políticas

    públicas e a execução atribuída às secretarias executivas, aos terceiros ou às organizações

    sociais, de acordo com o caráter da atividade. De um modo geral, o governo da aliança social-

    liberal separou os grupos técnicos do sistema político, engajando-os em programas

    controlados pela própria Presidência.

    Neste contexto, o controle social é idealizado, pois na prática não há a transparência

    esperada e nem mecanismos para que este mesmo controle ocorra. Outro sinal do caráter da

    participação social na estrutura e dinâmica governamental da vertente gerencial é a ênfase no

    engajamento da própria burocracia pública ou dos quadros das organizações sociais no

    processo de gestão. A estrutura e a dinâmica do aparelho do Estado pós-reforma não aponta

    os canais que permitiriam a infiltração das demandas populares.

  • Para Abrucio (1998), o maior problema da separação entre a formulação e a

    implementação das políticas é que não se identifica com clareza o responsável pela prestação

    global dos serviços públicos. Dessa manei