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UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO EM LINGUÍSTICA Cenografia, ethos e humor: uma análise de Esopo, La Fontaine e Millôr Fernandes ROSI APARECIDA CORRÊA SILVA Orientadora: Profa. Dra. Patrícia Silvestre Leite Di Iório Dissertação apresentada ao Mestrado em Linguística, da Universidade Cruzeiro do Sul, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Linguística. SÃO PAULO 2015

UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL PROGRAMA DE PÓS … · Millôr Fernandes recria as fábulas tradicionais a partir de um discurso político, mesclando sátira social e crítica política,

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UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO

MESTRADO EM LINGUÍSTICA

Cenografia, ethos e humor: uma análise de Esopo, La

Fontaine e Millôr Fernandes

ROSI APARECIDA CORRÊA SILVA

Orientadora: Profa. Dra. Patrícia Silvestre Leite Di Iório

Dissertação apresentada ao Mestrado em Linguística, da Universidade Cruzeiro do Sul, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Linguística.

SÃO PAULO

2015

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AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL DA

UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL

S579c

Silva, Rosi Aparecida Corrêa. Cenografia, ethos e humor: uma análise de Esopo, La Fontaine

e Millôr Fernandes / Rosi Aparecida Corrêa Silva. -- São Paulo; SP: [s.n], 2015.

105 p. : il. ; 30 cm. Orientadora: Patrícia Silvestre Leite Di Iório. Dissertação (mestrado) - Programa de Pós-Graduação em

Linguística, Universidade Cruzeiro do Sul. 1. Análise do discurso 2. Fábula 3. Ethos 4. Enunciados

(Análise) 5. Humor I. Di Iório, Patrícia Silvestre Leite. II. Universidade Cruzeiro do Sul. Programa de Pós-Graduação em Linguística. III. Título.

CDU: 81’42(043.3)

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UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO

Cenografia, ethos e humor: uma análise de Esopo, La

Fontaine e Millôr Fernandes

Rosi Aparecida Corrêa Silva

Dissertação de mestrado defendida e aprovada

pela Banca Examinadora em 10/04/2015.

BANCA EXAMINADORA:

Profa. Dra. Patrícia Silvestre Leite Di Iório

Universidade Cruzeiro do Sul

Presidente

Profa. Dra. Ana Elvira Luciano Gebara

Universidade Cruzeiro do Sul

Profa. Dra. Maria Teresa Nastri de Carvalho

Centro Universitário Anhanguera

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À

Minha Família.

Especialmente aos meus pais por terem sido meu

suporte em todos esses anos de minha vida.

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AGRADECIMENTOS

O mérito desta conquista se estende tanto aos familiares, pelo apoio dado,

como aos amigos queridos, pela constante motivação, todos colocados por Deus em

meu caminho. São essas pessoas, que me ensinaram, acolheram, fortificaram e

auxiliaram, que eu gostaria de agradecer.

Agradeço à minha orientadora, Patrícia Silvestre Leite Di lório, pela paciência,

compreensão e pelo carinho com o qual me auxiliou nos momentos de dificuldade,

apontando os caminhos precisos para que este trabalho fosse concluído.

Agradeço aos meus pais, Ivanir Corrêa e Eva Corrêa, meus exemplos de

vida, de perseverança, que me ensinaram a nunca desistir dos meus sonhos.

Agradeço ao meu marido, Nilberto Silva, e a meus filhos, Pedro Henrique e

Ana Carolina, pelo apoio e pelo carinho de sempre.

Agradeço profundamente a todos os professores do Curso de Mestrado em

Linguística, pelos importantes ensinamentos que auxiliaram no meu processo de

construção do conhecimento, em especial às professoras doutoras Maria Teresa

Nastri de Carvalho e Ana Elvira Luciano Gebara, pela contribuição a este trabalho

em minha Banca de Qualificação.

Agradeço à amiga Carla de Andrade e ao amigo Eliseu Cesário, que me

estimularam a realizar este curso. Também às amigas Lilian Graciela, Karina Soares

e Larissa Reis, que me apoiaram nesta caminhada e a todas as pessoas que direta

ou indiretamente contribuíram para o nascimento desta dissertação.

Agradeço ainda à Prefeitura Municipal de Caraguatatuba pela concessão da

bolsa de estudo que propiciou esta aprendizagem.

A todos minha eterna gratidão.

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“Com muita sabedoria, estudando muito, pensando muito,

procurando compreender tudo e todos, um homem consegue,

depois de mais ou menos quarenta anos de vida, aprender a

ficar calado”.

Millôr Fernandes

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SILVA, R. A. C. Cenografia, ethos e humor: uma análise de Esopo, La Fontaine e Millôr Fernandes. 2015. 105 f. Dissertação (Mestrado em Linguística)–Universidade Cruzeiro do Sul, São Paulo, 2015.

RESUMO

A presente dissertação, Cenografia, ethos e humor: uma análise de Esopo, La

Fontaine e Millôr Fernandes, parte de pesquisa realizado no Grupo de Pesquisas

Teorias e Práticas Discursivas: Leitura e Escrita, na Linha de Pesquisa: Texto,

discurso e ensino: processos de leitura e de produção do texto escrito e falado da

Universidade Cruzeiro do Sul, foi fundamentada em Maingueneau, Orlandi, Amossy

e Possenti, que se situam no âmbito da Análise do Discurso de Linha Francesa.

Nosso objetivo é verificar como se constrói o efeito humorístico na recriação das

fábulas tradicionais. Consideramos, para tanto, que todo este jogo discursivo forma

uma cenografia e um ethos, que são lugares de manifestação da ideologia e da

intencionalidade do autor. Millôr Fernandes recria as fábulas tradicionais a partir de

um discurso político, mesclando sátira social e crítica política, ora velada, ora

explícita. Há também elementos psicológicos e filosóficos no discurso humorístico do

autor, assim como uma pequena quantidade de humor negro, que descreve

situações politicamente incorretas. O elemento cômico está presente em toda obra e

o movimento de retorno (à fábula tradicional) e volta (para a paródia) é percebido

como o meio de levar o leitor a observar a intenção do autor original para depois

compará-la à construção humorística da sua recriação e adaptação à realidade

cotidiana. O autor se move entre as regras rígidas da fábula clássica e sua

demolição contínua na paródia, introduzindo elementos modernos que obviamente

não caberiam no discurso original, mas que se encaixam com perfeição na intenção

cômica da transmutação da obra tradicional em paródia moderna. Na paródia, há

indubitáveis trocas entre locutor e interlocutor, que realizam permanente intercâmbio

de intenção e compreensão, alusão e entendimento, desconstrução de sentido e

reconstrução da intenção. Essa construção discursiva aparece em suas paródias,

muitas vezes, servindo como gatilho do toque humorístico.

Palavras-chave: Fábula, Ethos, Cenas da enunciação, Humor.

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SILVA, R. A. C. Scenography, ethos and humor: an analysis of Esopo, La Fontaine and Millôr Fernandes. 2015. 105 f. Dissertação (Mestrado em Linguística)– Universidade Cruzeiro do Sul, São Paulo, 2015.

ABSTRACT

This dissertation: Scenery, ethos and humor: an analysis of Esopo, La Fontaine and

Millôr Fernandes, part of a research developed in the Group of Research, Theories

and Discursive Practices, Reading and Writing, in the line of Research: text,

discourse and teaching: reading processes and written and spoken text production of

Cruzeiro do Sul University. It was based on Maingueneau, Orlandi, Amossy and

Possenti, who are in the field of the French Discourse Analysis. Our goal is to verify

how the humor effect is built in the re-creation of traditional fables. To do this, we

consider that the discursive game makes scenery and an ethos, which are places for

the manifestation of the ideology and intentionality of the author. Millôr Fernandes

recreates traditional fables out of a political discourse, mixing social satire and

political critics, some veiled, some explicit. There are too psychological and

philosophical factors in the author’s humoristic discourse, as well as a little black

humor, which describes politically incorrect situations. The comic factor is present in

all the works and the return movement (to the traditional fable) and back (to the

parody) is perceived as the means to make the reader to observe the original

intention of the author so he can later compare it to the humoristic construction of its

re-creation and adaptation to a day to day reality. The author moves himself between

the rigid rules of the classic fable and its continuous demolition in the parody,

introducing modern elements which obviously wouldn’t fit in the original discourse,

but fit perfectly in the comic intention of the transmutation of the tradition work into

the modern parody. In the parody there are doubtless exchanges between the

speaker and the listener, who make a permanent exchange of intention and

understanding, allusion and knowledge, deconstruction of sense and re-construction

of intention. This discursive construction appears in his parodies many times, as a

trigger for the humoristic touch.

Keywords: Fables, Ethos, Scenes enunciation, Humor.

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SUMÁRIO

CONSIDERAÇÕES INICIAIS .................................................................................... 10

CAPÍTULO 1

1 DIZERES DA ANÁLISE DO DISCURSO ....................................................... 15

1.1 A Análise do Discurso de Linha Francesa – Apontamentos Preliminares

........................................................................................................................ 15

1.2 Cenas da Enunciação ................................................................................... 25

1.3 Ethos .............................................................................................................. 30

1.4 Interdiscurso ................................................................................................. 34

1.5 Humor e Ironia .............................................................................................. 36

CAPÍTULO 2

2 UMA VISÃO PANORÂMICA SOBRE O GÊNERO FÁBULA ........................ 41

2.1 Fábulas: Origens, Conceito e Evolução ..................................................... 41

2.2 Esopo, La Fontaine e Millôr Fernandes: Três Momentos da Fábula ........ 47

2.2.1 Primeiro Momento: Esopo – Um Contador de Histórias ........................... 47

2.2.2 Segundo Momento: Jean de La Fontaine – Um Poeta da Moral ............... 49

2.2.3 Terceiro Momento: Millôr Fernandes – Um Escritor de Entrelinhas ........ 52

2.2.4 Esopo, La Fontaine e Millôr Fernandes: Discursos em Diferentes Séculos

........................................................................................................................ 57

CAPÍTULO 3

3 ESOPO, LA FONTAINE E MILLÔR FERNANDES: TRÊS TEMPOS EM

DIÁLOGO ....................................................................................................... 59

3.1 A Galinha dos Ovos de Ouro em Três Versões ......................................... 60

3.1.1 Versão de Esopo ........................................................................................... 60

3.1.2 Versão de La Fontaine .................................................................................. 62

3.1.3 Versão de Millôr Fernandes ......................................................................... 66

3.2 O Leão e o Rato em Três Versões ............................................................... 70

3.2.1 Versão de Esopo ........................................................................................... 70

3.2.2 Versão de La Fontaine .................................................................................. 73

3.2.3 Versão de Millôr Fernandes ......................................................................... 77

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 86

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 91

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BIBLIOGRAFIA CONSULTADA .............................................................................. 94

ANEXOS .................................................................................................................. 95

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A riqueza literária e linguística do texto de humor são indiscutíveis, e rica é,

também, sua estruturação. Para a realização de uma análise do discurso de fábulas,

é necessário que uma ampla gama de recursos linguísticos seja verificada. Nessa

dissertação de mestrado, particularmente, analisaremos as fábulas criadas por

Esopo, La Fontaine e Millôr Fernandes.

O tema escolhido – fábulas – justifica-se pela atualidade dos conteúdos, uma

vez que tratam de aspectos universais presentes no espírito humano, como virtudes,

anseios e falhas de caráter, qualidades e defeitos que, mesmo na atual sociedade

moderna, em nada mudaram.

Este estudo visa a apontar como, quando e quais os recursos foram utilizados

pelos fabulistas para introduzir questões sócio-históricas, políticas e ideológicas nas

suas produções. Para tanto, propomo-nos a analisar comparativamente as fábulas

“A Galinha dos Ovos de Ouro” e “O Leão e o Rato” de Esopo (ANEXO A), “A Galinha

Que Punha Ovos de Ouro” e “O Leão e o Rato” de La Fontaine (ANEXO B) e “A

Galinha dos ovos de ouro” e “O Leão e rato” de Millôr Fernandes (ANEXO D). Ainda

pretendemos verificar as cenas enunciativas e as condições de produção,

observando as mudanças ocorridas e, consequentemente, como essas mudanças

interferem no ethos da personagem, objeto de análise deste trabalho, no humor e no

tom irônico; estes, particularmente, muito presentes nas fábulas de Millôr.

Nesse sentido, as fábulas escolhidas – “A Galinha dos Ovos de Ouro” e “O

Leão e Rato” – são exemplares de atitudes sociais. Nelas estão presentes traços de

personalidade que podem ser encontrados em qualquer indivíduo, em qualquer

tempo na nossa sociedade ocidental desde as suas origens mais distantes na

Grécia.

Quanto aos autores selecionados, Esopo foi escolhido por ser considerado “O

pai das fábulas”. O autor divulgava suas histórias em forma oral – era um contador

de histórias –, e a qualidade dessas histórias permitiu que fossem conhecidas ao

longo dos séculos. La Fontaine foi escolhido por ser o primeiro a registrar – em livro

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– as fábulas de Esopo, de forma que, ainda que fossem suficientemente conhecidas,

tornaram-se célebres. Por fim, foi selecionado, também, Millôr Fernandes por ter

registrado essas fábulas, adaptando-as ao seu tempo, desconstruindo personagens

e mensagens morais, para trazê-las à realidade e confrontar o poder e as forças

dominantes de então.

As fábulas de Esopo escolhidas como objeto deste estudo estão no livro

Fábulas de Esopo (2006), tradução de Antônio Carlos Vianna. No livro Fábulas de

La Fontaine (1957), na tradução de Curvo Semmedo, encontramos as fábulas de La

Fontaine. Por sua vez, as fábulas de Millôr Fernandes são encontradas em seus

livros Fábulas Fabulosas (1973), 100 Fábulas Fabulosas (2005) e Novas Fábulas

Fabulosas (2007).

La Fontaine, na tradução de Semmedo, e Millôr Fernandes, ao reconstruírem

as fábulas de Esopo, por meio de suas versões, desconstroem o enunciado

tradicional e reconstroem um novo discurso, subscrito nas falas e ações das

personagens, que se relacionam ao contexto sócio-histórico, político e ideológico de

suas produções. Essa desconstrução consiste, basicamente, na atualização do texto

pelo imperativo de inclusão de novas perspectivas sociais e morais, por exemplo, a

espetacularização da vida cotidiana e a mudança no paradigma moral que promove

a ambição a algo necessário.

Desse modo, nem sempre o objetivo do humor é provocar um riso leve ou

fácil. O elemento político presente nas fábulas é frequente e pode ser detectado em

várias épocas, não obstante o regime político em vigor. O gênero fabular contém em

si notas, por vezes voláteis, de crítica social, de sarcasmo, de ironia e,

principalmente, carregam em si posições e norteamentos políticos que podem

transformar os caminhos da sociedade, quer sejam os já percorridos quer sejam os

que estão por vir.

As fábulas, tradicionalmente, são marcadas, em sua enunciação, pelas

condições sócio-históricas e ideológicas de seu momento de produção. Têm, ainda,

como característica básica a presença de animais que se transvestem das atitudes

humanas para mostrarem à sociedade conteúdos moralizantes com o objetivo de

adequá-la ao que é socialmente exigido.

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O modelo de fábula tradicional apresenta formas mais rígidas e um tom mais

sério e até punitivo de estabelecer preceitos morais e solicitar atitudes mais

“corretas” da sociedade em que ela toma corpo. Esse modelo, aos poucos, vai se

tornando menos rígido e, modernamente, rompe com o formato clássico para

adequar o seu dizer a uma sociedade diferente, que necessita de fórmulas menos

rígidas e mais objetivas para atingir seus objetivos.

Desse modo, é provável, e esse será um dos pontos focais deste trabalho,

que o momento histórico induza o enunciador a criar sua fábula incluindo aspectos

críticos da vida cotidiana, construindo, assim, seus sentidos, mesclando a lição de

ética à presença do humor, o que causa o estranhamento, ao romper com o modelo

tradicional, porém conseguindo manter a mesma postura crítica.

Interessa-nos, então, perceber a (des)construção de um texto tradicional para

a criação de outro mais atual, acrescentando-lhe um tom humorístico e adaptando-o

às questões próprias do seu tempo, entre as quais estão as questões sociais,

históricas, políticas e ideológicas.

Assim, nesse gênero, percebemos que o humor, acompanhado sutilmente

pela ironia, é um retrato fiel da época em que foi produzido, bem como reflexo do

caminhar da sociedade em dado momento no que se refere a tempo e espaço. Em

tempos democráticos ou ditatoriais, liberais ou conservadores, opressivos ou

libertários, ainda e sempre se produz humor.

Notamos que as fábulas de Esopo, de La Fontaine e as de Millôr se

entrelaçam, complementam umas as outras, ainda que seus posicionamentos

ideológicos sejam completamente diversos. Assim, levantamos as seguintes

questões: quais são as transformações que o novo contexto imprime às versões

mais atuais? Além disso, quais são os diferentes modos de produzir cenas da

enunciação e ethos para adequar modelos tradicionais às versões mais

contemporâneas? Como se estabelecem as relações interdiscursivas entre as

questões morais das fábulas tradicionais e das versões mais modernas? Os

discursos moralizantes se mantêm e/ou se atualizam? Por fim, outra indagação

pertinente é: como se produzem essas mudanças?

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Nesse sentido, o presente trabalho aprofundará essas questões, esmiuçando

as fábulas “O Leão e o Rato” e “A Galinha e os Ovos de Ouro”, versões de Esopo,

de La Fontaine e de Millôr Fernandes, buscando o discurso que as permeia.

Buscaremos, ainda, as denotações sócio-históricas e políticas entrelaçadas ao

discurso moralizante das fábulas escolhidas, bem como observaremos as diferenças

na construção das cenas da enunciação, procurando perceber as mudanças

decorrentes das necessidades socioideológicas. Além disso, pretendemos observar

se houve mudanças nos èthé e no fechamento moral das fábulas. Por fim,

procuraremos relacionar a origem do humor presente nas fábulas, levando-se em

consideração as mudanças da cenografia e das condições de produção. Almejamos,

assim, confrontar as fábulas e estabelecer suas proximidades e distanciamentos em

relação ao interdiscurso.

Para conseguir responder à problematização e atingir os objetivos propostos,

apresentaremos no primeiro capítulo – DIZERES DA ANÁLISE DO DISCURSO – a

Análise do Discurso de Linha Francesa, particularmente os conceitos e as ideias de

Maingueneau (1997, 2001a, 2001b, 2005, 2006, 2008, 2010), os trabalhos de

Orlandi (1988, 1996, 2009), Amossy (2005) e Possenti (2010), autores que darão

suporte à discussão pretendida.

No segundo capítulo – UMA VISÃO PANORÂMICA SOBRE O GÊNERO

FÁBULA –, traremos o conceito de fábula, sua organização e algumas

considerações sobre os autores das fábulas selecionadas para o estudo, Esopo, La

Fontaine e Millôr Fernandes, com base em Aveleza (2003), Portela (1983), La

Fontaine (1957a) e outros. Também revisaremos o contexto histórico de produção

dos textos, uma vez que algumas observações sobre esses autores e o período em

que viveram serão de grande importância para o desenvolvimento do trabalho.

No terceiro capítulo – ESOPO, LA FONTAINE E MILLÔR FERNANDES:

TRÊS TEMPOS EM DIÁLOGO –, analisaremos as fábulas “O Leão e o Rato” e “A

Galinha dos Ovos de Ouro”, versões de Esopo, La Fontaine e Millôr Fernandes,

destacando as cenas enunciativas e retomando as condições de produção.

Observaremos, ainda, como as suas mudanças interferem no ethos, no humor e no

tom irônico presente nas fábulas de Millôr. Desse modo, propomos como critério de

análise a observação da construção da cenografia e, nessa, da constituição do ethos

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da personagem, assim como o interdiscurso estabelecido. Além disso, verificaremos

como este discurso se reveste de ironia e/ou de humor para a validação da cena da

enunciação.

Por fim, apresentaremos as Considerações Finais, em que mostraremos

como, por meio de representações interdiscursivas, a enunciação se manifesta nas

cenas enunciativas e no ethos, trazendo marcas ideológicas do contexto de

produção.

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CAPÍTULO 1 – DIZERES DA ANÁLISE DO DISCURSO

Este capítulo foi fundamentado em Maingueneau, Orlandi, Amossy e

Possenti, que se situam no âmbito da Análise do Discurso de Linha Francesa. Será

feita, inicialmente, uma breve abordagem a respeito do histórico da Análise do

Discurso; depois, uma explanação teórica sobre os seus principais conceitos:

discurso, sujeito, ideologia, contexto de produção, formação discursiva, formação

ideológica, cenas da enunciação, ethos e interdiscurso. Observaremos esses

conceitos no universo das fábulas, com o propósito de que sejam identificados os

interdiscursos historicamente situados e a finalidade da enunciação.

1.1 A Análise do Discurso de Linha Francesa – Apontamentos Preliminares

Para iniciarmos, faremos uma pequena trajetória histórica da Escola Francesa

de Análise do Discurso, utilizando dados das pesquisas de Maingueneau (1997), em

que o autor define e situa historicamente essa escola.

Segundo Maingueneau (1997), a Escola Francesa de Análise do Discurso foi

um modelo metodológico que teve início nos anos 60 e 70, na França, país com

grande tradição nas pesquisas do texto literário. Essas pesquisas foram

consagradas em 1969, com a publicação do número 13 da revista Langages,

denominada “A Análise do discurso”, e com o livro Análise automática do discurso,

de Pêcheux (1938 – 1983), pesquisador mais representativo dessa corrente.

Esses trabalhos não se restringiram ao quadro francês. Emigraram para

outros países e tinham como centro de pesquisas o estudo do discurso político

orientado por linguistas e historiadores. As pesquisas apresentavam uma

metodologia que associava a linguística estrutural a uma “teoria da ideologia”,

conjuntamente inspirada na releitura da obra de Marx, pelo filósofo Louis Althusser,

e na psicanálise de Lacan. Pensava-se a relação entre o ideológico e o linguístico,

evitando-se, simultaneamente, resumir o discurso à análise da língua e diluir o

discursivo no ideológico, assim como, delatar a ilusão que teria o Sujeito do discurso

de ser “a fonte do sentido”.

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Como apontam Charaudeau e Maingueneau (2004):

A Escola Francesa privilegiava os procedimentos que desestruturam os textos. Tratava-se de fazer o texto parecer uma plenitude enganadora cuja análise devia revelar a “incoerência” fundamental, relacionando-a ao “trabalho” de forças inconscientes. Pode-se caracterizar a conduta dessa escola como reveladora de uma abordagem analítica do discurso, que, bastante influenciada pelo modelo psicanalítico, descompôs as totalidades para atingir o sentido. (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 202).

Assim, define-se Análise do Discurso como o estudo linguístico das condições

de produção de um enunciado; e, para marcar a sua especificidade nos estudos da

linguagem, é necessário considerar, segundo Maingueneau (1997), o quadro das

instituições em que o discurso é criado e que delimita profundamente a enunciação;

os embates históricos, sociais e outros que se cristalizam no discurso; o espaço

próprio que cada discurso configura para si mesmo no interior de um interdiscurso.

Em outras palavras, a análise do discurso, sabendo que a linguagem não é

transparente, procura identificar, no texto, como ele significa. Ela vê o texto como

detentor de uma materialidade simbólica própria e significativa. Assim, por meio do

estudo do discurso, pretende-se compreender a língua enquanto atividade simbólica

que faz e dá sentido, e também como se constitui o homem e sua história.

A Análise do Discurso se interessa pela capacidade do homem em, por meio

da linguagem, transformar a si mesmo e a realidade em que vive, conferindo sentido

à sua existência humana. Considera, também, os processos e as condições em que

se produz a linguagem, assim inserindo o homem e a linguagem à sua exterioridade,

à sua própria historicidade.

Orlandi (2009) e Brandão (2004) abordam questões sobre o discurso, o

sujeito e a ideologia, definindo-os e afirmando que o discurso, o sujeito e a ideologia

estão interligados e que a ausência de um desses elementos interfere na existência

do outro.

Nas palavras de Orlandi (2009), a Análise do Discurso não vai se dedicar ao

sentido do texto, ou do discurso, mas aos modos e às dinâmicas do texto e do

discurso, por ocasião da produção de sentidos aos passos da história. A autora

afirma que a Análise do Discurso trabalha “refletindo sobre a maneira como a

linguagem está materializada na ideologia e como a ideologia se manifesta na

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língua”. (ORLANDI, 2009, p.16). Segundo ela, a Análise do Discurso “visa à

compreensão de como um objeto simbólico produz sentidos, como ele está investido

de significância para e por sujeitos.” (ORLANDI, 2009, p. 26).

Orlandi (2009) explica que o discurso é a palavra em movimento. É a

materialização da ideologia por meio da prática da linguagem, ou seja, do discurso.

A autora, em relação ao discurso, cita Pêcheux (1993), que afirma não existir

discurso sem sujeito e não existir sujeito sem ideologia.

Já para Brandão (2004), discurso é toda atividade comunicativa produtora de

sentidos que se dá na interação entre os falantes. Não existe discurso neutro, pois

todo discurso produz sentidos que expõem as posições sociais, culturais e

ideológicas dos sujeitos da linguagem. A ideologia se manifesta no discurso por

meio da língua. O discurso é o espaço em que se produzem saber e poder, pois

quem fala, fala de um determinado lugar, a partir de um direito que lhe é conferido

socialmente. Ele, o discurso, é o lugar onde se criam polêmicas.

Para nós, o discurso é sempre particular dentro de diferentes contextos e

contribui para definir esse contexto ou para modificá-lo. O discurso adquire sentido

quando está no interior do universo de outros discursos.

Consideramos também postulados de Dominique Maingueneau, que trata a

Análise do Discurso como um estudo que privilegia a interdisciplinaridade, ao

articular pressupostos teóricos da Linguística, do Materialismo Histórico e da

Psicanálise, e define o discurso como “uma dispersão de textos cujo modo de

inscrição histórica permite definir como um espaço de regularidades enunciativas.”

(MAINGUENEAU, 2005, p. 15).

A Análise do Discurso traz a noção de sujeito que se constitui na relação

dinâmica entre identidade e alteridade. Para a Análise do Discurso, a interação com

o outro se dá com a construção da identidade do sujeito; e o texto é o centro dessa

relação, pois se encontra no espaço discursivo criado entre ambos.

Segundo Brandão (2004), a Análise do Discurso considera a relação que há

no espaço discursivo do Eu e do Tu:

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Para a análise do discurso é essa concepção de sujeito [...] que vai ocupar o centro de suas preocupações atuais. Para ela, o centro da relação não está nem no eu nem no tu, mas no espaço discursivo criado entre ambos. O sujeito só constrói sua identidade na interação com o outro. (BRANDÃO, 2004, p. 76).

É no texto que essa conexão ocorre. Brandão (2004) faz uso das palavras de

Orlandi, que declara que “[...] o domínio de cada um dos interlocutores, em si, é

parcial e só tem a unidade no (e do) texto. Consequentemente, a significação se dá

no espaço discursivo (intervalo) criado (constituído) pelos/nos dois interlocutores.”

(ORLANDI, 1988, apud BRANDÃO, 2004, p. 76). Assim, examinando todo o

contexto dentro do discurso é que vamos encontrar o sujeito. Brandão, baseando-se

nos estudos de Pêcheux, cita:

[...] as palavras, expressões, proposições mudam de sentido segundo posições sustentadas por aqueles que as empregam, o que significa que elas tomam o seu sentido em referência a estas posições, isto é, em referência as formações ideológicas [...] nas quais essas posições se inscrevem. (BRANDÃO, 2004, p. 77, grifo da autora).

Brandão (2004) aborda questões referentes à ideologia. Segundo a autora, “o

termo ideologia é ainda hoje uma noção confusa e controversa” (BRANDÃO, 2004,

p. 18), por isso expõe em seus estudos algumas abordagens sobre o fenômeno

ideológico feito por Marx, Engels e Althusser.

De acordo com Brandão (2004), o que sustenta uma ideologia são todos os

valores e ideias formadas pelo sujeito, “[...] Sujeitos que implicam uma dimensão

social, mesmo quando no mais íntimo de suas consciências realizam opções morais

e escolhem valores que orientam sua ação individual.” (BRANDÃO, 2004, p. 56).

Assim, mesmo que de modo inconsciente, o sujeito é formado por uma ideologia. A

autora continua: “[...] A constituição do sujeito deve ser buscada, portanto no bojo da

ideologia, o ‘não-sujeito’ é interpelado, constituído pela ideologia.” (BRANDÃO,

2004, p. 79).

Brandão (2004), baseando-se nos estudos de Althusser, afirma que “não há

ideologia senão pelo sujeito e para sujeitos” (ALTHUSSER apud BRANDÃO, 2004,

p. 79), e completa:

Assim, é a interpelação ideológica que permite a identificação do sujeito, e ela tem um efeito por assim dizer retroativo na medida em que faz com que todo sujeito seja "sempre já-sujeito". Isto é, "o sujeito é desde sempre um indivíduo interpelado em sujeito". É isso que permite a resposta absurda e

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natural "sou eu" à pergunta "quem está aí?", mostrando que eu sou o único que pode dizer eu falando de mim mesmo. (BRANDÃO, 2004, p. 79).

Nada, nem as palavras, nem o sujeito, nem o discurso, tem sentido fechado

ou isolado de outros fatores. Brandão (2004), recorrendo aos estudos de Pêcheux,

afirma que:

[...] Concebe-se o sentido como algo que é produzido historicamente pelo uso e o discurso como o efeito de sentido entre locutores posicionados em diferentes perspectivas. Para nós, não há discursos constitutivamente monológicos, mas discursos que se "fingem" monológicos na medida em que reconhecemos que toda palavra é dialógica, que todo discurso tem dentro dele outro discurso, que tudo que é dito é um "já-dito". (BRANDÃO, 2004, p. 85).

Ainda com base nos estudos de Pêcheux, Brandão (2004) declara que o

sujeito de interesse para a Análise do Discurso é o definido e moldado pela

ideologia, que é absorvida, de maneira inconsciente, a partir do discurso de outros

falantes, que adotamos como sendo nosso, “acreditando” e “legitimando” como

sendo nossa a fala de outrem. O sujeito varia de acordo com o uso das palavras

dentro do Discurso Ideológico e, em um mesmo tempo, podemos encontrar diversas

Formações Discursivas.

A respeito do conceito de ideologia, Brandão (2004) aconselha, de início, a

análise da definição elaborada por Marx e Engels, muito usada por vários autores:

Dessa forma, se em Marx o termo “ideologia” parece estar reduzido a uma simples categoria filosófica de ilusão ou mascaramento da realidade social, isso decorre do fato de se tomar, como ponto de partida para a elaboração de sua teoria, a crítica ao sistema capitalista e o respectivo desnudamento da ideologia burguesa. A ideologia a que ele se refere é, portanto, especificamente a ideologia da classe dominante. (BRANDÃO, 2004, p. 22).

Após analisar a definição de ideologia de Marx e Engels, Brandão (2004) faz

apontamentos sobre o conceito e funcionamento de ideologia de acordo com

Althusser:

Para manter sua dominação, a classe dominante gera mecanismo de perpetuação ou de reprodução das condições materiais, ideológicas e políticas de exploração. É aí então que entra o papel do Estado que, através de seus Aparelhos Repressores – ARE – (compreendendo o governo, a administração, o exército, a polícia, os tribunais, as prisões et.) e Aparelhos Ideológicos – AIE – (compreendendo instituições tais como: a religião, a escola, a família, o direito, a política, o sindicato, a cultura, a informação), intervém ou pela repressão ou pela ideologia, tentando forçar a classe dominante a submeter-se às relações e condições de exploração. (BRANDÃO, 2004, p. 23).

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Complementando a definição de ideologia, Brandão (2004) também afirma

que toda ideologia tem a função de formar indivíduos concretos em sujeito,

exercendo papel importante no funcionamento de toda ideologia. É nos

acontecimentos da vida cotidiana que a ideologia age transformando os indivíduos

em sujeitos e como categoria constitutiva da ideologia será somente por meio do

sujeito e no sujeito que a ideologia poderá existir.

De acordo com Orlandi (2009), o sujeito da análise de discurso apresenta

duas características: uma de ordem da interioridade (o inconsciente) e outra da

exterioridade (a ideologia), ambas encobertas pela linguagem e também

materializadas nela.

Desse modo, a conferência que inicia esse sujeito na área discursiva retorna-

se a um sujeito-autor, o qual está registrado na instância da produção do texto.

Devemos assim entender o lugar materializado de onde o discurso é decorrente – o

texto – como uma unidade exclusivamente linguística, uma manifestação do

pensamento (consciente) que promove discursos, por ser palco do sujeito autor que

se manifesta o autor, segundo Orlandi (2009):

O sujeito, diríamos, está para o discurso assim como o autor está para o texto. Se a relação do sujeito com o texto é a da dispersão, no entanto a autoria implica em disciplina, organização, unidade. [...] Assim como definimos o discurso como efeito de sentido entre locutores e consideramos, na sua contrapartida, o texto, como sendo uma unidade que podemos, empiricamente, representar como tendo começo, meio e fim, uma superfície linguística fechada nela mesma, assim também consideramos o sujeito como resultando da interpelação do indivíduo pela ideologia, mas o autor, no entanto, é representação de unidade e delimita-se na prática social como uma função específica do sujeito. (ORLANDI, 2009, p. 73).

Portanto, o autor do discurso planeja um sentido revelado no consciente, ora

compreendido como a relação do texto com os elementos referentes ao mundo,

assim sendo materiais, predominando o valor semântico, e não de sentidos, dos

dados contidos no texto.

Dessa forma, o texto se revela como produto do materialismo histórico-

dialético que encontra espaço na linguagem, e se manifesta no relacionamento do

homem com as palavras, divergindo do discurso pela homogeneidade presente,

considerada no ato de promover enunciados em que a responsabilidade é

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direcionada excepcionalmente a um sujeito, aquele que “fala” o texto. Segundo

Charaudeau e Maingueneau:

A enunciação constitui o pivô da relação entre a língua e o mundo: por um lado, permite representar fatos no enunciado, mas, por outro, constitui por si mesma um fato, um acontecimento único definido no tempo e no espaço. Faz-se geralmente referência à definição de Benveniste, que toma a enunciação como “a colocação em funcionamento da língua por um ato individual de utilização”, que o autor opõe a enunciado, o ato distinguindo-se de seu produto. (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 193).

Dessa maneira, a enunciação será definida como o episódio que promove a

interação entre os interlocutores por meio de três bases externas ao processo

linguístico: os sujeitos implicados na interação, o tempo em que ela ocorre e o

espaço como troca verbal. Logo, o enunciado pode ser definido como a matéria

linguística que será demarcada pelas diversas possibilidades de uso da linguagem.

Orlandi (2009) também nos traz considerações importantes a respeito da

ideologia. Segundo a autora, ideologia “é a condição para a constituição do sujeito e

dos sentidos” (ORLANDI, 2009, p. 15), ao mesmo tempo em que, na presença de

qualquer objeto simbólico, o homem é conduzido a interpretar, buscando o sentido

das palavras e das coisas, pois não há sentido sem interpretação,

consequentemente, sem ideologia. Como não temos como não interpretar, não

temos como escapar da presença da ideologia em nossas vidas, a ideologia assume

a função de estabelecer a relação necessária entre linguagem e mundo.

Nesse sentido, a noção de ideologia é deslocada, posta a partir de uma

definição discursiva. O trabalho da ideologia na ordem do discurso, segundo Orlandi

(2009), é o de criar evidências. Criando evidências, coloca o homem numa relação

imaginária com suas condições materiais de existência. Ao mesmo tempo em que

cria evidências, a ideologia, como estrutura-funcionamento, disfarça sua existência,

a começar de seu próprio funcionamento, criando, assim, a ilusão da transparência

dos sentidos, principiando pelo apagamento da determinação da formação

discursiva (enquanto instância ideológica de produção de sentidos) e mesmo do

interdiscurso (enquanto instância de memória do já-dito).

Outro aspecto importante para a Análise do Discurso é o de condição de

produção, que abordaremos utilizando as considerações de Brandão (2004) e

Orlandi (2009).

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Pêcheux, segundo Brandão (2004), foi quem propôs a primeira definição da

noção de condições de produção, apontando essa noção no esquema informacional

da comunicação, realizado por Jakobson1, esquema que, ao colocar em cena os

protagonistas do discurso e seu referente, permite compreender as condições

históricas da produção de um discurso. A contribuição de Pêcheux está no fato de

ver os protagonistas do discurso como indivíduos representantes de lugares

determinados em uma estrutura social, dos quais ocorrem formações imaginárias

diferentes, que determinarão discursos diferentes, que, por sua vez, dependerão da

imagem que cada indivíduo faz de seu próprio lugar e do lugar do outro.

As condições de produção, segundo Orlandi (2009), quando pensadas em um

sentido restrito, informam sobre o contexto imediato da enunciação. Consideradas

em um sentido mais amplo, introduzem o contexto sócio-histórico e ideológico e dão

conta do imaginário produzido pelas instituições sobre o já-dito, sobre a memória.

Para a autora, a memória é o interdiscurso, que é o exterior constitutivo do discurso.

Ela é a responsável pelos sentidos que se originam de outro lugar, além dos

movimentos parafrásticos e polissêmicos para a constituição dos sentidos. Dessa

forma, não é possível começar um sentido totalmente novo, pois esse seria

incompreensível. O novo surge a partir de deslocamentos do já-dito.

Em outras palavras, as condições de produção compreendem os sujeitos e a

situação, assim como a memória, o conhecimento pré-adquirido, o que já foi dito em

outros lugares. Elas estão relacionadas ao momento, ao contexto sócio-histórico-

ideológico. Segundo Orlandi (2009), o que fazemos ou deixamos de fazer do ponto

de vista discursivo é influenciado pela nossa relação com a língua e com a história,

por nossa experiência de mundo, por meio da ideologia. Assim, a leitura discursiva

buscando interpretar o que é dito considera o não dito. Ainda completando a ideia de

condições de produção, Orlandi (1988) levanta a questão da formação do sujeito-

leitor. A autora situa a história do sujeito-leitor como semelhante à história do sujeito

em sua relação com o texto.

Orlandi (1988) também observa, a começar da preparação histórica do

sujeito, como se produz a formação da noção de sujeito-leitor: ele “apresenta-se

1 Roman Osipovich Jakobson: pensador russo que se tornou num dos maiores linguistas do século

XX e pioneiro da análise estrutural da linguagem, poesia e arte. Foi criador das famosas funções da linguagem.

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como esse sujeito capaz de livre determinação dos sentidos ao mesmo tempo em

que é um sujeito submetido às regras das instituições.” (ORLANDI, 1988, p. 50). Ele

tem liberdade para atribuir sentidos aos textos, porém não a todos.

Compreendemos, assim, que nunca é neutra essa construção de efeito de

sentido, uma vez que a ideologia questiona o sujeito em todo contexto social, porque

o dito significa, pois, em relação ao não-dito, mas também em relação a um já-dito,

histórico e inconsciente.

Orlandi (1988), com base nos estudos de Pêcheux, explica que o efeito que

se pretende atingir tem significação relacionada ao lugar social de onde se diz e a

quem se diz, estando estritamente ligado a todos os discursos veiculados numa

dada sociedade. O sujeito é interpelado pela subjetividade, mas não é senhor de seu

discurso, o que mostra seu “assujeitamento”, uma vez que a ideologia também o

interpela, embora essa tenha espaços que podem ser apropriados pelo sujeito, para

opor-se contra o discurso oficial que se encontra em vigor.

Assim, para a Análise do Discurso, fica nítido que os sentidos não estão

somente nas palavras, mas também na sua exterioridade e não dependem apenas

da vontade do sujeito que é interpelado pela ideologia e determinado pelo momento

sócio-histórico da enunciação.

Brandão (2004) e Orlandi (2009), sobre os conceitos de formação ideológica

e formação discursiva, declaram que essas formações aparecem intimamente

atreladas na análise do discurso e é a partir de seu estudo que se tornam possíveis

esclarecimentos acerca desse assunto.

No que tange à formação ideológica, Brandão (2004) expõe que a linguagem

é um fenômeno que deve ser estudado não só em relação ao seu sistema interno

enquanto formação linguística a exigir de seus usuários uma competência

específica, mas também enquanto formação ideológica que se manifesta por meio

de uma competência socioideológica. A formação ideológica é um conjunto de

atitudes e representações ou imagens que os locutores têm de si mesmo, do

interlocutor e do assunto a ser tratado. Esse conjunto tem relação com a posição

social de onde falam ou escrevem, estabelecendo relações de poder expressas na

interação.

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De acordo com Brandão (2004), a formação ideológica tem essencialmente

como um dos seus componentes uma ou várias formações discursivas ligadas entre

si. Levando-se em conta uma relação de classe, são as formações discursivas que,

em uma formação ideológica específica, determinam o que pode e o que deve ser

dito, a partir de uma determinada posição e em um determinado acontecimento.

Brandão (2004) explica que uma formação ideológica pode estar carregada

de várias formações discursivas em relação de polêmicas ou de alianças. Cada

formação discursiva está somada a um conjunto de enunciados marcados por

características comuns, tais como: características linguísticas, temáticas, de posição

ideológica. Em concordância com o materialismo histórico, os efeitos de sentido são

determinados pela ideologia dos sujeitos, durante o momento sócio-histórico em que

a produção discursiva é realizada. Esse sentido é tirado dessas posições ocupadas

pelo sujeito. Portanto, em uma posição ideológica estabelecida, tudo o que pode e

deve ser dito instaura-se numa formação discursiva, devido ao sentido do discurso

do sujeito estar de acordo com a formação discursiva em que ele se insere. Assim,

as palavras têm um sentido que deriva das formações discursivas em que estão

escritas, e o enunciado tem o sentido que apresenta no processo enunciativo e não

outro que difere da formação discursiva em que se inclui. Portanto, linguagem e

ideologia se articulam, instituindo o discurso do sujeito.

Quanto à Formação Discursiva, Brandão (2004) a define por sua relação com

a Formação Ideológica, ou seja, os textos que fazem parte de uma Formação

Discursiva referem-se a uma mesma Formação Ideológica. É a formação discursiva

que estabelece o que deve ou não, o que pode ou não, ser dito pelo falante, a partir

da sua posição social, histórica e ideológica e do lugar que esse falante ocupa. A

autora ainda acrescenta que toda formação discursiva traz dentro de si outras

formações discursivas. De acordo com a posição socioideológica de quem fala, um

mesmo enunciado pode aparecer em formações discursivas diferentes,

apresentando, assim, sentidos também diferentes. Pois, mesmo a língua sendo a

mesma gramaticalmente, ela não é a mesma do ponto de vista discursivo, ou seja,

da sua realização, devido à interferência dos fatores externos, tais como: quem fala,

para quem se fala, de qual posição social se fala e de quais ideologias se fala.

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Orlandi (2009) declara que:

O discurso se constitui em seus sentidos porque aquilo que o sujeito diz se inscreve em uma formação discursiva e não outra para ter um sentido e não outro. [...] As formações discursivas, por sua vez, representam no discurso as formações ideológicas. Desse modo, os sentidos sempre são determinados ideologicamente. Não há sentido que não o seja. (ORLANDI, 2009, p. 43).

Assim, uma Formação Discursiva é marcada por regras de formação,

consideradas como mecanismos de controle do que diz respeito e do que não diz

respeito a uma formação discursiva. Portanto, é sempre invadida por elementos que

vêm de outros lugares, de outras formações discursivas.

Uma formação discursiva, no dizer de Orlandi (2009), “se define como aquilo

que em uma formação ideológica dada – ou seja, a partir de uma posição dada em

uma conjuntura sócio-histórica dada – determina o que pode e deve ser dito”

(ORLANDI, 2009, p. 43), o que implica dizer que os sentidos sempre são definidos

ideologicamente, pois é possível se afirmar que a ideologia recorta o interdiscurso,

definindo regiões de memória, ou seja, os sentidos não estão predeterminados na

língua, mas se encontram constituídos nas e pelas formações discursivas.

Assim, a linguagem deve ser pensada no que se refere aos seus aspectos

sócio-histórico-ideológicos, que se expressam por meio de um saber

socioideológico, e não somente por seu aspecto gramatical.

1.2 Cenas da Enunciação

Comunicação, segundo Maingueneau (1997), pressupõe ação, e é o seu meio

de expressão – a linguagem – que estabelece as condições para a realização do ato

discursivo, no qual locutor e interlocutor conhecem e solidificam suas posições em

relação ao ato.

Os parceiros de comunicação realizam um contínuo intercâmbio dos

elementos que compõem seu papel no ato discursivo, como explica Maingueneau,

apoiado em Landowski (1980), a respeito da credibilidade das enunciações por meio

do ato da fala, de que fazem parte:

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[...] o próprio enunciado, certamente, mas, também, o modo pelo qual o enunciador se inscreve (gestualmente, proxemicamente, etc.) no tempo e no espaço de seu interlocutor, bem como todas as determinações semânticas e sintáticas que contribuem para forjar ‘a imagem distinguida’ que os parceiros remetem um ao outro no ato de comunicação. (MAINGUENEAU, 1997, p. 31).

Maingueneau (1997), sobre os elementos que compõem a cena enunciativa,

partindo dos conceitos mais básicos, como a hierarquia inserida no ato da fala,

propõe: “Ao dar uma ordem, por exemplo, coloco-me na posição daquele que está

habilitado a fazê-lo [...]”, até a ‘tomada da palavra’, que é “ato virtualmente violento

que coloca outrem diante de um fato realizado.” (MAINGUENEAU, 1997, p. 29).

Como exemplo, Maingueneau (1997) aponta o fato de que a Análise do

Discurso deve “formular as instâncias de enunciação em termos de ‘lugares’,

visando a enfatizar a preeminência e preexistência da topografia social sobre os

falantes que aí vêm se inscrever [...]” (MAINGUENEAU, 1997, p. 32). O autor conclui

especulando que a cena, ou ‘encenação’, “não é uma máscara do ‘real’, mas uma de

suas formas, estando este real investido pelo discurso.” (MAINGUENEAU, 1997, p.

32).

A noção de cena, na Análise do Discurso, refere-se ao modo pelo qual o

discurso constrói uma representação de sua própria situação. Na encenação, o

enunciador escolhe um papel para si e para atribuir a seu parceiro, por meio de sua

fala.

Maingueneau (2010, p. 205) define a cena de enunciação: “Um texto é, na

verdade, rastro de um discurso no qual a fala é encenada”. Assim, distinguem-se, na

cena de enunciação, três cenas atuantes e complementares: a cena englobante, a

cena genérica, a cenografia.

Maingueneau (1997, p. 29) explica que a cena englobante “corresponde ao

tipo de discurso (político, religioso, administrativo...)”. Refere-se ao tipo de discurso a

que pertence um texto e ao lugar em que o destinatário deve se colocar para

interpretá-lo (um eleitor, um fiel, um executivo etc.).

Na cena englobante, os locutores interagem por meio de gêneros de discurso

particulares. Denominada “cena genérica”, cada gênero de discurso implica cenas

específicas: estabelece papéis circunstanciais, ou seja, um modo de inscrição no

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espaço e no tempo, um suporte material, um modo de circulação, uma finalidade e

outros, para seus parceiros do discurso.

A cenografia é construída pelo próprio texto: é a enunciação que constrói a

cena de enunciação que a torna legítima. Ela não é determinada pelo tipo ou pelo

gênero de discurso, mas estabelecida pelo próprio discurso. A função da cenografia

é levar a cena englobante e a cena genérica para o segundo plano. Ela é produzida

pelo próprio discurso, por meio do modo como se realiza a enunciação pelo locutor.

De acordo com Maingueneau (2001a), “uma cenografia pode apoiar-se em cenas de

fala ‘validadas’, isto é, já instaladas na memória coletiva, seja a título de modelos

que se rejeitam ou de modelos que se valorizam.” (MAINGUENEAU, 2001a, p. 92).

A fábula, objeto de análise desse estudo, é um gênero da esfera literária que

apresenta características específicas, porém, ao trazer em seu discurso assuntos

sobre o cotidiano do ser humano, aborda questões morais, políticas, sociais, entre

outras, incluindo, em sua composição, um discurso político.

Segundo Aveleza (2003) a fábula, como forma literária específica, é uma

narração breve, em prosa ou em verso, de caráter individual, moralizante e didático,

que apresenta animais como personagens, sob uma ação alegórica, e conclui com

um ensinamento, um princípio geral ético, político ou literário, que se compreende

obviamente do caso narrado.

Portanto, as fábulas têm como objetivo mostrar e criticar as relações entre os

homens na sociedade, destacando sempre a existência de dois polos que se opõem

na vida social. Os personagens representados por seres irracionais, ou inanimados,

são uma forma mais serena e delicada de retratar a realidade social, bem como

mostrar o ser humano em sua essência, sem ocasionar danos maiores ao próprio

escritor. Esses seres irracionais, na maioria das vezes, representam os homens na

sociedade com as suas diversas imperfeições. Os animais presentes nas fábulas já

têm ligado a eles uma característica, uma representação, como, por exemplo, a

raposa que se liga à astúcia, o leão que se liga à majestade e assim por diante.

Levando-se em consideração que a fábula traz consigo um discurso político

que se atualiza a cada dia, abordaremos as noções de discursos constituintes, que,

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por sua vez, contêm o discurso político, muito presente nas fábulas devido às

questões sociais e moralizantes que trazem à tona.

A concepção de discursos constituintes, de acordo com as propostas de

Maingueneau (2006) em “Cenas da Enunciação” diz respeito aos discursos que se

ligam em uma unidade consistente, como, por exemplo, as categorias literária,

religiosa, filosófica, científica e outras, que mais que “dão sentido aos atos da

coletividade. Eles são os fiadores de múltiplos gêneros dos discursos”, são “zonas

de falas em meio a outras falas que pretendem preponderar sobre todas as outras”

(Maingueneau, 2006, p. 34). Maingueneau (2006) coloca, ainda, que essa noção diz

respeito tanto ao processo pelo qual o discurso nasce no interdiscurso, como pela

maneira como o interdiscurso se organiza no texto e no discurso. Segundo o autor,

os discursos constituintes passam pelas tipologias e por vários critérios utilizados

pelos linguistas: as “Tipologias linguísticas”, que opõem os enunciados baseados na

situação de enunciação aos que rompem com ela; as “Tipologias funcionais”, que

analisam os discursos de acordo com sua finalidade; as “Tipologias situacionais”,

traçadas a partir de gêneros de discursos definidos por critérios sócio-históricos e

adequados às atividades sociais. Maingueneau (2006) declara também que:

Os discursos constituintes representam o mundo, mas suas enunciações são parte integrante desse mundo que eles representam, elas são inseparáveis da maneira pela qual geram sua própria emergência, o acontecimento da fala que elas instituem. [...] Na verdade, a enunciação se manifesta como dispositivo de legitimação do espaço de sua própria enunciação, a articulação de um texto e uma maneira de se inscrever no universo social. Recusamo-nos, assim, a dissociar, na constituição discursiva, as operações enunciativas pelas quais se institui o discurso, que constrói, assim, a legitimidade de seu posicionamento, e o modo da organização institucional que o discurso ao mesmo tempo pressupõe e estrutura. (MAINGUENEAU, 2006, p. 36).

Segundo Maingueneau (2006), a comunidade discursiva é representada pelos

discursos que ela mesma produz, pois a comunidade discursiva partilha de um

mesmo conjunto de rituais e regras que podem gerar ou produzir o discurso.

Portanto, um discurso constituinte mobiliza autores e uma variedade de papéis

sociodiscursivos.

Maingueneau (2006) ainda explica que o discurso político “se situa na

confluência dos discursos constituintes, sobre os quais se apoia (invocando a

ciência, a religião, a filosofia etc.) e os múltiplos extratos da doxa da coletividade”.

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(MAINGUENEAU, 2006, p. 34). “Doxa é palavra grega que designa a opinião, a

reputação, o que dizemos das coisas e das pessoas. Corresponde a “sentido

comum”, isto é, a um conjunto de representações socialmente predominantes, cuja

verdade é incerta, tomadas, mais frequentemente, na sua formulação linguística

corrente”. (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 176). O discurso político está

relacionado com os lugares de sua fabricação e situação de comunicação, situação

essa que o politiza. Ele é resultado de uma combinação de elementos externos com

os fatos políticos, sociais, jurídicos, morais e psíquicos.

A cenografia é o ponto central da enunciação e em seu entorno gira a própria

enunciação. O discurso literário é um discurso cuja identidade se estabelece por

meio da negociação de seu próprio direito de construir um determinado mundo,

mediante uma determinada cena de fala relacionada que confere um lugar a seu

coenunciador.

A cenografia estabelecida pelas fábulas está ligada à mundanidade, ao

conhecimento das coisas do mundo. Ela se mostra para além de toda cena

discursiva que seja montada pelo autor. A cenografia é lida ao mesmo tempo como

denúncias das mazelas de que se padece e como a legitimação da cenografia que

sustenta essa denúncia. Maingueneau (2001b) levanta uma discussão acerca de

“Fábulas”, dizendo que o interdiscurso difundido passa pela cenografia de um

fabulista que sabe intervir em seu discurso para estabelecer uma convivência com

um coenunciador bem próximo dele:

Esse contador apresentar-se como um homem de bem culto que se dirige a gente honesta, ela própria culta e submetendo-se às regras da conversação mundana: necessidade espiritual, de variar seu discurso, de não ser prolixo demais, de adotar uma distância irônica, de manejar a alusão e o duplo sentido, etc. É, portanto através de uma cenografia vinculada à sociabilidade de uma elite refinada que as Fábulas mostram a crueldade de um mundo de predadores. Existe tensão o humanismo (nos dois sentidos do termo) da cenografia e a desumanidade das histórias que esta permite contar. (MAINGUENEAU, 2001b, p. 125).

A partir dessa discussão, é importante destacar que, para refletir sobre a

cenografia, é importante não apenas considerar o discurso como um espaço

fechado que contém tudo, mas como um espaço interdiscursivo no qual há trocas

entre os elementos internos e os externos ao discurso. É a partir da consciência

dessas trocas que se pode seguir nas afirmações sobre esse ou aquele discurso.

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Perceber a (des)construção das fábulas tradicionais e analisar o debate

interdiscursivo travado entre as cenografias de La Fontaine e Millôr Fernandes com

as fábulas de Esopo, na criação de outros discursos, assim como observar as

adaptações ocorridas devido às questões próprias do tempo de cada autor, entre as

quais estão as questões sociais, históricas, políticas e ideológicas e o acréscimo de

“pitadas” de humor nas fábulas de Millôr, é o que intencionamos realizar com este

estudo.

1.3 Ethos

Para tratarmos das concepções do termo ethos, abordamos como

fundamentação teórica as considerações de Aristóteles (1966), Maingueneau

(2005), Caretta (2005) e Amossy (2005).

Segundo Maingueneau (2005), os textos, indiferentemente do gênero ao qual

pertençam, são compostos de estruturas, temas, estilos próprios e da relação que

mantêm com o coenunciador, e são esses elementos que permitem uma

compreensão global do discurso. Tais elementos, quando isolados, não exercem o

mesmo sentido, e é o ethos o ponto de interação entre os elementos.

A etimologia da palavra ethos é grega e significa costumes, modo de ser ou

caráter. Na Análise do Discurso, hoje, o ethos é um termo tomado por empréstimo

da antiga Retórica de Aristóteles e se refere à imagem de si que o locutor constrói

em seu discurso.

Aristóteles (1966), em seus estudos sobre a retórica, introduz os conceitos de

logos, ethos e pathos, criados pelo filósofo com o intuito argumentativo de

convencimento de um público e que podem ser entendidos como características

individuais e individualizadoras do enunciador.

O filósofo Aristóteles (1966) distinguiu o logos como argumentação baseada

nos argumentos propriamente ditos e diz respeito à lógica incorporada no discurso

do enunciador. O pathos, como argumentação baseada no estado emocional do

auditório, envolve o apelo emocional promovido pelo enunciador. Já o ethos foi

considerado como argumentação baseada no caráter do enunciador e diz respeito à

forma como é transmitida determinada mensagem. Essa noção dos estudos de

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Aristóteles sobre a retórica permite-nos refletir sobre o processo mais geral da

adesão de sujeitos a determinadas posições discursivas. Ela tem um laço crucial

com a reflexividade enunciativa e implica a relação entre corpo e discurso. O

estatuto (papel), a “voz”, e o “corpo enunciante”, historicamente especificado e

inscrito em uma situação que sua enunciação ao mesmo tempo pressupõe e valida

progressivamente, são as instâncias subjetivas que se manifestam por meio do

discurso.

O ethos não é dito, ele se mostra. É responsável pela criação da pessoa que

se encontra por trás dos discursos; no nosso caso, das fábulas. É o ethos que

chama a atenção do coenunciador para o dito e o não dito. O ethos engloba

características físicas e psíquicas do enunciador e faz com que o coenunciador

sinta-se atingido, ou não, pelo seu discurso. Assim, o coenunciador forma uma

imagem a respeito do enunciador e sente-se parte do contexto, quando ocorrem

semelhanças, ou cria uma sensação de indiferença, quando entre as características

de ambos ocorre o afastamento.

Para Charaudeau e Maingueneau (2004), os enunciados são elementos de

uma enunciação que implica uma cena. Toda fala procede de um enunciador

encarnado. Um texto é sustentado por uma voz – a de um sujeito situado para além

do texto. O texto possui um tom que dá autoridade ao que é dito, permitindo ao

coenunciador construir uma representação do corpo do enunciador. Emerge, então,

uma instância subjetiva que desempenha o papel de fiador do que é dito. Pela noção

de ethos, compreende-se o conjunto das determinações físicas e psíquicas ligadas

pelas representações coletivas à personagem do enunciador. Ao fiador são

atribuídos um caráter e uma corporalidade.

O enunciado se dá pelo tom de um fiador (instância subjetiva que emerge do

texto a partir da leitura), assim, o coenunciador participa do mesmo mundo do fiador,

captado pelo ethos, envolvente e invisível, de um discurso. Faz mais do que decifrar

seus conteúdos, ele é implicado em sua cenografia, participa de uma esfera na qual

pode reencontrar um enunciador que, pela vocalidade de sua fala, é construído

como fiador do mundo representado.

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O ethos, como declara Charaudeau e Maingueneau (2004), não se mostra

explicitamente. Está presente naquilo que é dito e nas escolhas sintáticas e lexicais,

as quais apontam para a presença dessa pessoa que é construída linguisticamente.

O ethos admite que o coenunciador crie uma imagem que represente esse

possível caráter enunciativo, fundamentado pela sociedade em estereótipos

culturais. A essência do ethos está relacionada diretamente com a enunciação e é

por meio dessa relação que o coenunciador se submete a uma avaliação dos efeitos

de sentido do discurso.

Charaudeau e Maingueneau (2004) foram os responsáveis pela retomada

desse conceito aristotélico nos estudos de Análise do Discurso. Para eles, “o

enunciador deve legitimar seu dizer: em seu discurso, ele se atribui uma posição

institucional e marca sua relação a um saber (...) ele se deixa apreender também

como uma voz e um corpo”. (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 220)”. Para

os autores, o conceito de ethos está intimamente ligado à noção de cena de

enunciação, e, para explicar melhor o termo, Maingueneau (2005) expõe as

observações de Barthes, que define a construção da imagem como “os traços de

caráter que o orador deve mostrar ao auditório (pouco importando sua sinceridade)

para causar boa impressão. [...] O orador enuncia uma informação e, ao mesmo

tempo ele diz eu sou isto, eu sou aquilo.” (BARTHES, 1966, p. 212 apud

MAINGUENEAU, 2005, p. 70).

Maingueneau (2005) segue o seu pensamento teórico a respeito do ethos:

O texto não é para ser contemplado, ele é enunciação voltada para um co-enunciador que é necessário mobilizar para fazê-lo aderir "fisicamente" a um certo universo de sentido. O poder da persuasão de um discurso decorre em boa medida do fato de que leva o leitor a identificar-se com a movimentação de um corpo investido de valores historicamente especificados. (MAINGUENEAU, 2005, p. 73).

Maingueneau (1997) lembra ao conceituar voz do discurso que “a descrição

dos aparelhos não deve levar ao esquecimento de que o discurso é inseparável

daquilo que poderíamos designar muito grosseiramente de uma ‘voz’”

(MAINGUENEAU, 1997, p. 45) isto é, o que o enunciador revela sobre si próprio ao

se expressar.

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Na Análise do Discurso, afirma Maingueneau, esse efeito é imposto “não pelo

sujeito, mas pela formação discursiva”, ou seja, “O que é dito e o tom com que é dito

são igualmente importantes e inseparáveis.” (MAINGUENEAU, 2005, p. 45-46).

Maingueneau (2005) acrescenta que toda fala tem origem em um enunciado

encarnado, mesmo os textos escritos são dotados de uma “voz” ou “tom”, como

prefere o autor: voz ou tom de um sujeito para além do texto, que por si só não

recobre, em seu conjunto, o campo do ethos enunciativo, uma vez que está

associado a uma corporalidade. Encarnando uma voz que dará suporte ao discurso,

o enunciador mostra uma atuação, já que, independentemente da veracidade, o

sujeito da enunciação deverá convencer o ouvinte por meio da autoridade

demonstrada no caráter performático.

De acordo com Maingueneau (2010), o leitor, ou ouvinte, atribui, de livre

vontade, características psicológicas – e outras igualmente subjetivas – à figura do

enunciador, apenas baseado em seu modo de expressão. Essa reação, porém,

pode ser ofuscada pela pretensão ao extremo.

Caretta (2005), a respeito da Análise do Discurso, compreende o enunciado

como produto de uma enunciação e, segundo o autor, toda enunciação pressupõe

um enunciador. O mais importante para uma análise não é definir o ethos desse

enunciador e entender como ele foi construído. De acordo com o autor, “O ethos do

enunciador é constituído por um caráter, conjunto de características psicológicas e

ideológicas, e por uma corporalidade, determinada por suas características físicas,

mas principalmente pelo lugar social que ele assume ao enunciar”. O ethos é

entendido como um efeito de sentido do discurso, a "maneira de dizer" que

determina a "maneira de ser".

Maingueneau (2008) propõe algumas designações possíveis para o termo

incorporação, como a maneira pela qual o coenunciador, na situação de intérprete,

toma posse do ethos:

A enunciação da obra confere uma “corporalidade” ao fiador, dá-lhe um corpo;

O destinatário incorpora, assimila um conjunto de esquemas que correspondem a uma maneira específica de se relacionar com o mundo habitado pelo seu próprio corpo;

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Essas duas primeiras incorporações permitem a constituição de um corpo, o da comunidade imaginária daqueles que aderem ao mesmo discurso. (MAINGUENEAU, 2008, p. 18).

Para que o enunciador alcance seus objetivos persuasivos, faz-se necessário

que o coenunciador considere válidos os valores sócio-históricos identificados por

ele num determinado discurso. Assim, a partir da formação da corporalidade, o

coenunciador se aproxima do mundo ético. Esse mundo ético, apresentado por meio

do discurso, representa algumas circunstâncias estereotipadas agregadas aos

comportamentos e forma de ser.

Conforme Amossy (2005), o ethos se estabelece nas atividades cotidianas do

convívio social. Dessa maneira, o enunciador não necessita descrever suas

qualidades e defeitos ao seu coenunciador, uma vez que essas características se

constroem de forma natural durante o processo de enunciação, sucedendo o

julgamento de outros, pois as instruções sobre os autores eventuais da enunciação

são promovidas pelo enunciado.

1.4 Interdiscurso

A partir dos pressupostos de Maingueneu (1997) e Orlandi (2009),

abordaremos a compreensão de interdiscurso e suas características.

O interdiscurso é obra da presença de discursos diferentes, que provêm de

diversos momentos históricos e diferentes lugares sociais, que se entrelaçam no

coração de uma formação discursiva. Desse modo, os enunciados se constituem

como ambientes básicos para a composição do corpus em Análise do Discurso,

assim sendo, todo o enunciado heterogêneo é repleto de um conhecimento

linguístico, histórico, social e ideológico.

Maingueneau (1997) define interdiscurso como um conjunto de discursos que

sustentam uma relação discursiva entre si. Esse conjunto de discursos divide-se em

uma tríade: universo discursivo, campo discursivo e espaço discursivo.

Denomina-se universo discursivo o conjunto heterogêneo de formações

discursivas que se comunicam em determinados acontecimentos. É finito, porém

irrepresentável, não podendo ser compreendido em sua globalidade. Por sua vez, o

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campo discursivo é o conjunto de formações discursivas que mantêm uma

concorrência delimitada numa determinada região do universo discursivo. Desta

forma, o discurso se estabelece dentro de um campo discursivo, que foi determinado

tradicionalmente como campo discursivo religioso, político, literário, entre outros. Já

o espaço discursivo é definido como um subconjunto do campo discursivo, pois liga

pelo menos duas formações discursivas que estabelecem uma relação e que são

essenciais para a compreensão dos discursos estabelecidos. Esses subconjuntos de

formações discursivas são relacionados da forma que julgarmos mais importante.

A concepção de interdiscurso é o que torna possível relacionar a memória

coletiva à análise das fábulas, já que o interdiscurso permite que os discursos que já

foram ditos tenham sentido em nossos discursos. Aliás, o discurso adquire sentido

quando se relaciona com outros discursos. O interdiscurso subentende a presença

do outro, que se constitui por meio da heterogeneidade enunciativa.

Desse modo, o sujeito jamais é a origem de seu discurso; é o interdiscurso

que permite que os discursos já ditos tenham sentido em nosso dizer. Além disso,

somente numa relação de confronto com outros discursos é que o discurso ganha

sentido.

Maingueneau (1997) faz uma associação da interdiscursividade com a

gênese do discurso, visto que há sempre um já-dito constituído no outro discurso.

Assim, em toda produção discursiva transitam formulações já anunciadas, pois, no

interdiscurso, há a presença do outro por meio da heterogeneidade enunciativa.

Orlandi (2009), no que se refere ao conceito de interdiscurso, aponta que o

interdiscurso resulta do papel conferido à memória nas pesquisas discursivas:

Este [o interdiscurso] é definido como aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente. Ou seja, é o que chamamos de memória discursiva: o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sobre a forma do pré-construído, o já dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada da palavra. O interdiscurso disponibiliza dizeres que afetam todo o modo como o sujeito significa em uma situação dada. (ORLANDI, 2009, p. 31).

Assim, sob o ponto de vista da Análise do Discurso, o sujeito cria significados

em seus discursos, a partir de uma memória discursiva. Portanto, existe

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constantemente uma heterogeneidade presente no discurso. Esse já-dito, que está

na base do dizível, é inconscientemente retomado.

Orlandi (2009) relaciona o interdiscurso com o eixo da constituição, “um eixo

vertical em que teríamos todos os dizeres já ditos – e esquecidos que representam o

dizível”. (ORLANDI, 2009, p. 32). Já com o eixo horizontal – o intradiscurso –, ela

associa a ideia de formulação, “isto é, aquilo que estamos dizendo naquele

momento dado, em condições dadas”. (ORLANDI, 2009, p. 33). Assim, toda a

enunciação encontra-se no cruzar de dois eixos: o da memória (constituição) e o da

atualização do já-dito (formulação).

Em outras palavras, o interdiscurso se dá por meio da existência de diferentes

discursos, originando-se de momentos históricos e lugares sociais diferentes, que se

encontram dentro de uma formação discursiva. Logo, todos os enunciados são

heterogêneos e carregados de conhecimentos linguísticos, históricos, sociais e

ideológicos e se estabelecem como elementos essenciais para a composição do

corpus em Análise do Discurso.

1.5 Humor e Ironia

O discurso, além de poder ser deslocado, é reflexo e, ao mesmo tempo,

marcado pelo aspecto sócio-histórico. Para o desenvolvimento do nosso trabalho,

observaremos nas fábulas a serem analisadas que, devido às suas condições de

produção e das suas próprias formações discursivas, o discurso fabular apropria-se

de outro campo: o humor.

Conforme afirma Pinto (1969), “O Humor é uma forma criativa de analisar

criticamente, descobrir e revelar o homem e a vida. [...] O Humor é um caminho”.

Portanto, o humor brinca com os absurdos, com as contradições, com os medos,

com as satisfações e as frustrações, sentimentos aos quais o ser humano está

sempre sujeito, porém em diferentes circunstâncias. O humor pode ser usado, por

um lado, como uma forma de manter a ordem e a hierarquia pelos poderosos e, por

outro, mais habitualmente, pode ser usado como um instrumento de mudança, de

luta, de oposição, por outros grupos sociais.

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De acordo com Possenti (2010), no que se refere ao humor, “tem sido

percebido que se trata de corpus privilegiado para uma espécie de teste de diversas

teorias ou de avaliação de práticas como a da leitura.” (POSSENTI, 2010, p. 25).

Essa atenção que o humor tem atraído para si pode ser devido ao fato de existirem

várias questões referentes aos aspectos textuais, linguísticos, discursivos e

cognitivos, entre outros. Aspectos esses heterogêneos internamente, porém com

comportamentos que caracterizam cada um. Os enunciados pertencentes ao

discurso humorístico são construídos e ampliados, e os vários efeitos de sentido,

portanto, formulados e captados, permitindo a compreensão não apenas do

enunciador, mas também dos outros discursos.

Os discursos de humor têm, na sua origem, o desmascaramento de

determinados temas, a ruptura de conteúdos considerados como corriqueiros pela

sociedade e pela própria história, podendo gerar polêmica. Esse tipo de enunciado

consegue colocar em evidência assuntos, posicionamentos e pontos de vista que, às

vezes, ficam implícitos quando presentes em gêneros classificados como sérios.

Assim, o humor admite a crítica no que ela seria impossível de outro modo, podendo

revelar um caráter libertador, instituir a polêmica, criar conflito e causar o

desequilíbrio.

Uma particularidade que merece destaque em relação ao humor é a sua

ligação com os aspectos próprios do ser humano, por isso sua estreita relação com

os temas criados e voltados à humanidade. Nessa ligação com o humano, e com a

função por ele assumida, encontra-se outra característica: a capacidade de o humor

mostrar uma forma específica para cada um dos diferentes gêneros.

Para os estudos discursivos, mais particularmente para o gênero fábula, a

presença do humor é um campo aberto no qual os discursos sofrem alterações e

ampliações e, portanto, relatam momentos históricos, memórias e contextualizações

diferentes. Segundo Possenti (2010), um discurso é o resultado de um conjunto de

normas que o sujeito segue em um determinado campo.

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O traço principal de um campo descobriu-se, é que seus membros seguem regras específicas. Ou seja: há regras que o caracterizam que são constitutivas de um campo. A principal consequência desse conceito é que, adotando-o, não se pode mais considerar que um discurso (e outras atividades a ele relacionadas) são ações ou decisões de um indivíduo – um sujeito, um pesquisador, um autor – mas o resultado de um conjunto de regras que esses indivíduos seguem em um campo específico. (POSSENTI, 2010, p. 171).

Ao conciliar humor e prazer, consideramos o riso e, ao mesmo tempo, o

aspecto social. O riso é o efeito do cômico e ambos estão situados no campo do

humor, por isso só é possível entender o riso em seu ambiente natural, que é a

sociedade. Assim sendo, o riso deve ter uma significação social, uma vez que o

cômico é casual, ou seja, permanece na superfície da pessoa, mas deve ser

entendido como um gesto social, pois é necessário o outro para que o cômico se

instaure, e o riso, consequentemente, se efetue.

De acordo com apontamentos de Possenti (2010), “o humor é cultural, ou

mais dependente de fatores culturais de que outros fenômenos – textuais ou não

[...]”. (POSSENTI, 2010, p. 178). Ainda segundo Possenti (2010), as técnicas

humorísticas essenciais baseiam-se em permitir a descoberta de outro sentido,

frequentemente longe daquele que é expresso em primeiro plano e que parece ser o

único possível até o desfecho do discurso.

Por sua vez, a ironia também se faz presente nas fábulas a serem analisadas.

Apesar de não ser foco de nosso trabalho, traçaremos uma breve consideração

sobre o tema, haja vista sua presença, ora explícita, ora implícita nos discursos de

Esopo, La Fontaine e Millôr Fernandes.

Charaudeau e Maingueneau (2004) afirmam que muito já se escreveu sobre o

fenômeno ironia, porém é uma questão ainda aberta:

Fenda que o enunciador escava em sua própria enunciação, desconexão que se quer desconcertante entre discurso e realidade, a ironia, ao contrário da metáfora, permanece por natureza uma questão aberta, que cada teoria analisa em função de seus pressupostos. Decidir o que é ironia implica, na realidade, uma certa concepção de sentido, da atividade de fala ou da subjetividade. (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004, p. 292).

Assim, o sentido não está totalmente no enunciador, no discurso ou apenas

no coenunciador, mas emana das três instâncias, pois depende da atividade dos

enunciadores, do discurso construído e da atividade de quem recebe. A situação de

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enunciação pode ser parte constitutiva do sentido, assim como os sujeitos que agem

linguisticamente, embora sejam eles também dependentes de suas posições

históricas e sociais.

De acordo com Oliveira e Machado (2013), a ironia é definida como uma

espécie de antífrase, como um momento em que o enunciador invalida o enunciado

e o reconstrói no mesmo instante. Utiliza-se de termos contrários para expressar as

ideias desejadas, cujo sentido é compreendido por meio das muitas vozes que

envolvem um enunciado irônico: a presença de outro sentido que não apenas o

sentido exato. O objetivo de um enunciado irônico é dizer algo diferente do que foi

dito, relacionando-se sempre ao campo do humor, seja para expor algo de maneira

depreciativa, polêmica ou até mesmo séria.

Dessa forma, a ironia deve ser compreendida por meio dos efeitos de sentido,

pois é um fenômeno empregado com o intuito de descrever comicamente uma

realidade e de constituir o diálogo.

Na ironia, o outro é desqualificado. O discurso traz diversos sentidos,

tornando-se ambíguo; apresenta um jogo entre o assumido e o rejeitado. O

enunciador desconstrói os valores apresentados como verdadeiros e absolutos

estabelecidos pela sociedade, levantando uma dúvida no coenunciador: o que

validar no discurso. Segundo Maingueneau (1997), “a ironia subverte a fronteira

entre o que é assumido e o que não o é pelo locutor”. Este “coloca em cena um

‘enunciador’ que adota uma posição absurda e cuja alocação não pode assumir.”

(MAINGUENEAU, 1997, p. 98). Deste modo, a ironia consiste em uma forma de

rejeitar um enunciado sem fazer uso de um operador explícito. Para Brait (1996), o

enunciador e enunciatário fazem um acordo perante a ironia:

Se o processo da ironia conta com a conivência, a cumplicidade do enunciador-enunciatário, ao sublinhar os discursos que estão sendo ironizados, o produtor procura demonstrar que eles são indesejáveis não apenas para ele, mas necessariamente para o enunciatário que foi qualificado pelo contrato de cumplicidade que o próprio discurso foi estabelecendo. (BRAIT, 1996 p. 197).

A ironia é muito utilizada nas mais diversas áreas e situações. É um recurso

que exige tanto do enunciador como do coenunciador muito cuidado na atuação, na

forma de identificação e apreensão dos efeitos de sentido, devido ao fato de não se

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apresentar de maneira totalmente explícita na enunciação. A ironia tem uma

importante função comunicativa. Segundo Brait (1996), ela pode ser vista como

“uma espécie determinada de disposição e atitude intelectuais próprias de um tipo

de homem.” (BRAIT, 1996, p. 21-23).

O “tipo de homem” irônico é aquele que se recusa a admitir o óbvio, ou o

indiscutível, ou mesmo o senso comum. Para ele, tudo pode ser questionado e, a

depender do tipo de argumento, demolido. Para tanto, seu discurso parte das

assertivas do interlocutor, nas quais são acrescentados traços irônicos e, muitas

vezes, ridículos. O objetivo não é apenas contra-argumentar, mas, principalmente,

polemizar.

Desse modo, a ironia precisa recorrer à participação do outro na construção

de sentido de um enunciado, e esse outro precisa perceber a negação implícita, o

oposto contido na enunciação. Assim sendo, é imprescindível que no discurso haja

um espaço comum compartilhado: “o jogo irônico conta unicamente com a

linguagem para se insinuar; isso significa que os elementos linguísticos discursivos

mobilizados dizem respeito ao imaginário e à cultura de uma comunidade.” (BRAIT,

1996, p. 42). A ironia, além disso, relaciona-se à coerência presente na

argumentação:

A ironia permite ao locutor escapar às normas de coerência que toda argumentação impõe: o autor de uma enunciação irônica produz um enunciado que possui, a um só tempo, dois valores contraditórios, sem, no entanto, ser submetido às sanções que isto deveria acarretar. (MAINGUENEAU, 1997, p. 97).

O humor e todos os recursos a ele vinculados, como a ironia, a ambiguidade,

a comicidade, o riso, entre outros, compõe um campo cujos domínios estão tomando

proporções respeitáveis, como formas de ataques e instaurações polêmicas, ou

como forma de quebra de expectativa.

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CAPÍTULO 2 – UMA VISÃO PANORÂMICA SOBRE O GÊNERO

FÁBULA

Neste capítulo, apresentaremos e contextualizaremos o objeto desta

pesquisa: a fábula. De início, conceituamos e situamos o gênero fábula

historicamente. Trazemos dados sobre sua origem, evolução e sobre os fabulistas

Esopo, La Fontaine e Millôr Fernandes, que, em diferentes momentos históricos,

contribuíram para que a fábula permanecesse viva.

Sobre cada um desses fabulistas, apresentaremos alguns dados contextuais

que julgamos relevantes para que possamos compreender melhor seus discursos e

encaminhar a análise dos corpora.

Na perspectiva da Análise do Discurso, que norteia este trabalho, é

fundamental que se estude o discurso atrelado a seu contexto, pois um sempre

influencia e é influenciado pelo outro. Assim, partimos para a interpretação dos

dados e das relações entre as escolhas linguísticas realizadas, as representações

dos personagens, manifestadas linguisticamente, e dos contextos de situação e

cultura em que as fábulas estavam inseridas no período em que foram criadas.

2.1 Fábulas: Origens, Conceito e Evolução

As fábulas se fizeram presentes na vida social em várias culturas marcadas

pela instabilidade política, social e religiosa, sendo propagadas principalmente por

meio da oralidade, o que está de pleno acordo com a origem da palavra Fabulare,

do latim, que significa falar, conversar, dizer. Devido à característica oral das

fábulas, não se pode indicar com precisão sua origem, nem marcar a época na

história em que tenha sido utilizada pela primeira vez.

O termo fábula pode também ser entendido como “objeto de conversa”, de

uma narração inventada, fictícia. Moisés (1999) define o gênero fábula da seguinte

forma:

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Latim – fábula, narração. Narrativa curta, não raro identificada com o apólogo e a parábola, em razão da moral, implícita ou explícita, que deve encerrar, e de sua estrutura dramática. No geral, é protagonizada por animais irracionais, cujo comportamento, preservando as características próprias, deixa transparecer uma alusão, via de regra, satírica ou pedagógica, aos seres humanos. (MOISÉS, 1999, p. 226).

De acordo com a noção de gênero apresentada por Marcuschi (2002), a

fábula nasceu como pequenas histórias orais contadas a pessoas em situações

informais do dia a dia e, posteriormente, passou a ser registrada pela escrita. Trata-

se, assim, de um gênero composto por histórias, ágeis, curtas e simbólicas, que

criticam as atitudes humanas ou aconselham as pessoas. Esse gênero tem mais de

mil anos e sempre foi utilizado para narrar situações vividas por animais que

retratam características humanas, como o egoísmo, a ingenuidade, a esperteza, a

vaidade, a mentira etc., tendo por objetivo transmitir certa moralidade e explicar

comportamento e situações da vida cotidiana, chegando a sugerir soluções,

principalmente no campo da convivência social.

O gênero fábula pode ser produzido em prosa ou em versos. Suas

personagens, em geral, são animais que, como já dissemos, simbolizam alguma

característica humana: fraquezas de caráter e virtudes. Esse gênero apresenta, na

maioria das vezes, após o desfecho, um tipo de resumo das intenções do autor, a

moral da história.

Por meio das fábulas, foram encontradas formas de anunciar publicamente a

verdade de uma situação, tendo em vista que o povo ou mesmo o fabulista não tinha

voz ativa na sociedade. A história era criada de tal forma que não atingisse

diretamente o alvo, para que ninguém precisasse, de imediato, rejeitá-la.

Os fabulistas procuravam divulgar seus valores e pensamentos a respeito da

comunidade de que faziam parte e, assim, as fábulas eram produzidas a partir de

uma visão que procurava transmitir valores e julgamentos conforme a cultura de

uma determinada sociedade. A fábula pode apresentar-se em um ambiente

conflituoso, onde encontramos interesses divergentes entre os personagens. Isso

acontece porque as pessoas buscam, a seu modo, sua própria felicidade, tornando-

se inevitável entrar em desentendimento com o seu próximo. As fábulas estão

impregnadas de ideologias que são transmitidas ao leitor de maneira simples,

natural e de fácil aceitação.

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Podemos considerar a fábula um gênero literário que se caracteriza por ser

uma narrativa breve que, geralmente, apresenta apenas um diálogo, em prosa ou

em verso. Apresenta uma estrutura formal e bem definida: situação inicial, problema,

tentativa de solução, conclusão e moral. Suas personagens são quase sempre

animais personificados que representam, de forma alegórica, algum vício ou alguma

virtude humana, procurando transmitir, contextualizadamente, uma direção de leitura

por meio de ensinamentos ou críticas.

Outras características da fábula são o tempo e espaço imprecisos, que

possibilitam uma leitura em qualquer época, pois são discursos que, mesmo

produzidos em séculos passados, permanecem atuais. A fábula também apresenta

um discurso e um contradiscurso para acentuar posições dicotômicas entre as

personagens e uma moral ao final da história.

A linguagem empregada nas fábulas, levando-se em conta seu objetivo moral

e didático, dá-se de forma simples e objetiva, sempre contendo diálogos claros e

representativos da forma coloquial de linguagem, de modo que o leitor se reconheça

na enunciação.

A fábula tem, portanto, duas partes substanciais: uma narrativa breve e uma

lição ou ensinamento. La Fontaine, segundo Portela (1983), chamou essas duas

partes da fábula de corpo e alma. A narrativa que trabalha as imagens e concede

forma sensível às ideias gerais é representada pelo corpo. As verdades gerais

corporificadas na narrativa são representadas pela alma. As verdades gerais são

próprias a toda a humanidade; são a experiência de vida dos povos e a concepção

filosófica do bem e do mal, presente em cada indivíduo nas suas possibilidades

mentais e morais. Assim, as fábulas revelam discursos que podem transmitir valores,

julgamentos, pensamentos, ideologias, visão de mundo e até mesmo

questionamentos.

A oposição bem versus mal, certo versus errado, justo versus injusto na qual

se envolve o poder é bastante evidente nas fábulas, constituindo um exemplo de

discurso cativante em todo e qualquer meio social, desde tempos longínquos. Essas

questões sociais estão subentendidas nas fábulas, sendo que o bem deve ser

exaltado, e o mal, repelido. Em cada fábula, ecoa a voz do povo, apresentando em

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sua essência diversos discursos de caráter socioideológico, presente, quase

universalmente, em toda sociedade.

Quanto às condições de produção, o gênero fábula tem como criador o

sujeito-enunciador que assume o papel de um fabulista: o de criar uma curta história

fictícia que reproduz comportamentos humanos, de modo a apresentar uma lição de

moral. O coenunciador da fábula, na atualidade, é particularmente o público infanto-

juvenil; seu local preferencial de circulação são os livros, os livros didáticos e sites

da internet.

As fábulas possuem um conteúdo temático variado e buscam a transmissão

de valores morais. No que se refere à construção composicional, o gênero fábula

apresenta os componentes básicos da narrativa (personagens, fatos, tempo e lugar),

estruturados da seguinte forma: apresentação do contexto da situação, a ação, o

clímax e a resolução do conflito. O gênero pode ser finalizado com uma moral, que

pode se apresentar de forma explícita ou implícita no texto. A fábula, geralmente,

não se situa no tempo e nem no lugar da história, pois pretende apresentar uma

situação que envolve poucos personagens e uma moral que se manifesta por meio

de um conselho, uma crítica, uma sátira etc., que serve para qualquer tempo e

qualquer lugar, motivo pelo qual estão presentes nas fábulas as expressões como

“Era uma vez”, “Certo dia”, “Um dia”. O tempo verbal predominante é o da narrativa:

o pretérito perfeito. Nas fábulas são empregados, basicamente, o discurso direto e o

indireto.

As fábulas se apresentaram nas sociedades ocidentais e orientais e ainda se

fazem presentes na atualidade. Sua origem perde-se na pré-história. Elas estão

inseridas em inúmeras culturas e percorreram vários períodos da história da

humanidade, características que direcionam a sua existência para a sabedoria

popular.

Segundo Aveleza (2003, p. XXIX), a origem da fábula perde-se na pré-

história, sendo impossível indicar o período exato de seu aparecimento. A literatura

a respeito do tema indica que foi no solo da antiga Grécia que o gênero Fábula se

aperfeiçoou de maneira sistemática e que serviu de modelo a todos os cultivadores

do gênero, como, por exemplo, La Fontaine.

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Esopo, de acordo com Aveleza (2003, p. XXXV), é considerado hoje como “o

pai da fábula”, não porque a tenha inventado, mas porque foi o primeiro a utilizá-la

para criticar, divertir, moralizar e instruir, simultaneamente.

As fábulas, segundo Aveleza (2003), são narrativas de cunho popular,

frequentemente de origem anônima, de diferentes povos e culturas, e incluem,

quase sempre, a exortação de bom senso, moralidade, disciplina e outros

comportamentos socialmente aceitos, e refletem, constantemente, certa ideologia,

em geral compartilhada por classes sociais dominantes ou pelo senso comum.

Para o autor, “a Fábula é uma obra individual, propositalmente elaborada,

com o objetivo de explicar comportamentos e situações da vida prática cotidiana,

chegando mesmo a sugerir soluções, principalmente no campo da convivência

social.” (AVELEZA, 2003, p. XX).

De forma mais generalizada, Aveleza (2003) conceitua assim o gênero:

A fábula costuma ser conceituada como uma breve narrativa alegórica, de caráter individual, moralizante e didático, independente de qualquer ligação com o sobrenatural. Nela, as personagens apresentam situações do dia-a-dia, de onde podem ser extraídos paradigmas de comportamento social, com base no bom-senso popular. Seres irracionais e, às vezes, até mesmo coisas e objetos, contracenam entre si, ou com pessoas, ou com Deuses mitológicos. Tais cenas simbolizam situações, comportamentos, interesses, paixões e sentimentos, humanos ou não, que nem sempre podem ser focalizados explicitamente. (AVELEZA, 2003, p. XXX).

A fábula propõe, como aponta Aveleza (2003), explicações sobre a

procedência de certos comportamentos, ou situações, relacionados com animais ou

coisas inanimadas, assumindo, assim, a intenção da descoberta da origem dos

comportamentos humanos.

Por meio da observação da realidade cotidiana do homem, as fábulas podem

servir para repreender comportamentos em dissonância com a sociedade. Na

maioria das vezes, no entanto, têm a intenção de transmitir algum ensinamento útil,

por meio de prosopopeias, alegorias, símbolos, apólogos e até certos mitos, sempre

que não convier ou for impossível colocar em cena as verdadeiras personagens dos

episódios representados nas fábulas. Em outras palavras, a fábula é um discurso de

cunho moralizante, didático e sentencioso.

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Para explicar a fábula, Aveleza recorre a Fedro, em Prologus – Auctor, em

que o fabulista latino escreve “O gênero de Esopo é constituído de exemplos; e por

meio das fábulas não se pretende outra coisa senão que seja corrigida a ignorância

dos mortais, e estimulada a sua atividade consciente” e em Phaedrus ad Eutychum

acrescenta “Agora resumidamente ensinarei por que foi inventado o gênero das

fábulas: como a escravidão submissa não ousava dizer o que queria, disfarçavam

em fábulas os seus próprios sentimentos, esquivando-se da punição com

imaginosos divertimentos.” (FEDRO apud AVELEZA, 2003, p. XXXI). Tais anotações

são denúncias de que a fábula se constituiu, principalmente, quando o homem teve

consciência de que a sociedade em que vive é desigual.

Segundo Aveleza (2003), esse conjunto de particularidades empresta à fábula

um caráter didático e moralizante, o que deu origem à moral da fábula,

provavelmente acrescentada por autores de épocas posteriores, não pertencente ao

texto original da fábula. Cabe às fábulas de Esopo o mérito de atribuir virtudes e

defeitos humanos a determinados animais, como, por exemplo: ao leão, a

majestade; ao lobo, a brutalidade; ao camelo, a complacência; à formiga, a

previdência.

A partir de uma visão panorâmica do gênero fábula, observamos que a sua

presença atravessa a história de várias civilizações ao longo dos tempos, tornando-

se parte de várias culturas. A instabilidade e a presença em tradições distintas dão-

lhe um caráter universal. Por também ter sido definida pela sua propagação oral, a

busca pela origem da fábula é uma tarefa praticamente impossível de realização,

assim como a de fixar a época exata de seu surgimento. A indicação de sua origem

é marcada por suposições e deduções.

No entanto, frente às questões levantadas, é preciso ter a concepção de que

a fábula fez e ainda faz parte da cultura humana e traz consigo um discurso político

que é representativo do momento de produção. Dado o exposto, cabe apontar que o

item que se seguirá tratará das relações entre o momento de enunciação e o

enunciado.

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2.2 Esopo, La Fontaine e Millôr Fernandes: Três Momentos da Fábula

A criação literária reflete tempo, espaço, costumes e, principalmente, uma

visão de mundo bem particular, e isso pode ser aplicado tanto para o autor como

para seus leitores. Determinadas obras são lidas por determinados leitores que se

identificam com a obra em si, ou com o locutor.

Considerando-se essas características da atividade literária e da atividade da

leitura, observaremos as relações, laços e referências existentes entre os autores:

Esopo, Jean de La Fontaine e Millôr Fernandes. Pode-se dizer, em primeiro lugar,

que todos, a seu modo, foram fabulistas, embora questões pontuais, como estilo,

condições de produção literária e panorama sociopolítico, aparentemente tenham

sido diferentes e, em princípio, isso seja razão para certos antagonismos em termos

de espírito criativo e pano de fundo histórico.

Aproximadamente 25 séculos separam Esopo, intitulado “pai das fábulas”, e

Millôr Fernandes, havendo, nesse entremeio, La Fontaine. Nas épocas em que

viveram, a sociedade, os costumes, os valores que constituem a cultura eram

distintos de algum modo. Além disso, cada autor tem sua maneira peculiar de

expressar e representar essas distinções.

Nesta seção, apresentaremos algumas informações importantes para a

interpretação dos dados linguísticos obtidos nas análises e, com isso, para a

identificação de como estão representados os personagens e as relações com os

valores vigentes em cada época.

2.2.1 Primeiro Momento: Esopo – Um Contador de Histórias

De acordo com Aveleza (2003), Esopo era um simples escravo que se tornou

famoso pelo seu talento em inventar histórias fabulosas e em renovar muitas outras,

sempre partindo da experiência e do que se considerava socialmente aceitável. Seu

nome, porém, apresenta-se rodeado de mistério: muitos pesquisadores afirmam que

Esopo nunca existiu e que se trata apenas de um artifício dos historiadores para que

o gênero fábula não ficasse sem um criador definido. O que dificulta a constatação

da existência de Esopo são os exagerados relatos apresentados como passagens

autênticas da sua vida, além da ausência de documentos genuínos.

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Esopo tem sido objeto de diversas biografias, sendo a versão mais aceita a

que revela que o seu nascimento teria ocorrido no final do século VII a.C. ou no

início do século VI a.C. e que seu período de vida teria sido de 620-560 a.C..

Algumas regiões da Ásia Menor disputam a naturalidade do fabulista, principalmente

a Frígia e a Trácia. Aveleza (2003) adverte que Esopo jamais teve biógrafos

confiáveis e que a questão da disputa do lugar de nascimento por essas regiões

deve-se, provavelmente, à fama conquistada pelo fabulista.

Esopo viveu em uma época de muitas transformações: o período clássico. A

Grécia experimentava grande desenvolvimento, transformando-se de país

eminentemente agrícola em grande centro comercial. Grandes conquistas sociais e

políticas, com a organização da sociedade e o surgimento de uma classe dirigente,

também foram parte dessas transformações.

Segundo Aveleza (2003), admitindo a sua existência, Esopo é apontado como

gago e corcunda e deve ter despertado a admiração dos seus contemporâneos,

devido ao seu espírito irreverente e engenhoso. De origem escrava, teria sido

vendido, ainda adolescente, em Samos, ilha grega do mar Egeu. Mais tarde, foi

alforriado pelo seu comprador, o filósofo Xanto, que lhe teria reconhecido o talento.

Tanto a sua condição de escravo, quanto o seu talento são mencionados pelo

fabulista Fedro: “Como Esopo sozinho fosse toda a família para o seu amo, foi

mandado preparar a ceia mais cedo” e “Se pôde o frígio Esopo, se pôde o cita

Anacársis, com o seu talento adquirir eterna fama.” (FEDRO apud AVELEZA, 2003,

p. XLI).

Esopo, de acordo com Aveleza (2003), uma vez livre, teria viajado muito. Diz-

se que visitou Atenas, onde, então, teria contado ao povo a fábula As rãs que

pleiteavam um rei (V. p. 151), a fim de induzir os atenienses a mudarem de

governante. Esse fato também é mencionado por Fedro.

Conta-se, segundo Aveleza (2003), que algumas ironias de suas fábulas

desagradaram os cidadãos de Delfos, que se vingaram acusando-o de sacrilégio e

lançando-o do alto do rochedo Hiampeio, um dos picos montanhosos de Parnaso,

em meados do século VI a.C..

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As fábulas de Esopo, de acordo com Aveleza (2003), relacionam-se a

transformações de ordem política e à maneira de pensar dos gregos. Portanto, a

fábula era um discurso usado para satirizar muitos dos poderosos da época.

2.2.2 Segundo Momento: Jean de La Fontaine – Um Poeta da Moral

Nascido em 1621 e falecido em 1695, La Fontaine de certa forma sobressaiu

aos escritores da época, embora sua ascensão literária compartilhe as mesmas

condições e circunstâncias de seus contemporâneos. A esse respeito, pode-se

afirmar que o ofício de escritor na época dependia da boa vontade de algum

mecenas, o que, porém, não garantia a qualidade da obra ou o sucesso do autor.

Por seu talento, La Fontaine conquistou as duas coisas, de forma que sua obra

atravessou séculos, chegando aos dias atuais.

Chagas (1957a), em sua introdução para a edição de 1957 das fábulas de La

Fontaine, afirma a respeito do autor:

O que faz o supremo encanto de La Fontaine como fabulista, o que constitui a sua superioridade sobre todos os que antes e depois dele trataram este mesmo gênero, não é a originalidade, pois raras são as fábulas cujas ideias ele não houvesse encontrado em Esopo e Fedro, é a vida que ele dá a todos os animais da natureza, que falam a linguagem que lhes presta, obedecendo a paixões que lhes atribui. Os seus personagens têm a um tempo a verdade humana e a verdade zoológica [...] (CHAGAS, 1957a, p. 9).

Como já mencionado sobre o trabalho do escritor, deve-se ter em mente que,

no século XVII, nenhum autor sobrevivia ou atuava efetivamente em seu ofício sem

o sustento e a proteção de algum representante das elites. Sobre esse aspecto

segundo Coelho (1985), La Fontaine não diferiu de muitos outros artistas da época:

após deixar o cargo de inspetor de águas, herdado do pai, La Fontaine se empregou

a serviço do ministro das finanças, Nicolas Fouquet, notório mecenas e entusiasta

das artes.

O patrocínio das artes pelas elites, de acordo com Coelho (1985) não era algo

incomum ou eventual. Numa época em que não havia leis que amparassem ou

financiassem a produção artística, e também em que a maioria da população era

iletrada e suportava pesada carga de trabalho, a fruição das artes era restrita à

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nobreza e às altas classes, que por sua vez financiavam os autores para, pode-se

dizer, consumo próprio.

Assim, financiado por Fouquet, La Fontaine escreveu o romance Os amores

de Psique e Cupido, tornando-se, então, íntimo de grandes nomes da literatura de

então, como Molière e Racine. Após a queda do ministro, tornou-se protegido das

duquesas de Bouillon e d’Orleans. Essa sucessão de padrinhos e madrinhas tem

sua razão de ser: numa França em que a maior parte da população era analfabeta,

sem qualquer acesso a qualquer tipo de instrução formal, o artista criava para a elite

e essa era educada e letrada.

Suas primeiras fábulas foram publicadas em 1668. O livro, com o título

Fábulas Escolhidas, continha 124 fábulas e era dedicado ao filho do rei Luís XIV.

Muito bem escritas, contavam histórias povoadas de animais, além de apólogos.

Todas possuíam um fundo moral e edificante.

O sucesso entre seus leitores foi imediato e, em 1683, tornou-se membro da

Academia Francesa e foi finalmente consagrado como um dos grandes escritores de

língua francesa de seu tempo.

La Fontaine faleceu cerca de 100 anos antes da Revolução Francesa, ou

seja, viveu na época áurea da nobreza, ocupando cargos públicos e, por toda a

carreira, beneficiando-se do mecenato. Entende-se, então, que, para permanecer

nas graças da elite, deveria, como Molière, cuidar para que sua literatura não fosse

ofensiva aos valores da época. Percebe-se esse cuidado pela forma como suas

fábulas foram criadas: embora os personagens-animais se comportem, ajam e falem

como seres humanos, não há, geralmente, qualquer contestação política (marcamos

aqui a exceção de O Lobo e o Cordeiro). De forma geral, as personagens das

fábulas de La Fontaine representam apenas anseios, medos, desvios e virtudes

humanas.

Pode-se dizer que as fábulas, todas retiradas ou adaptadas da tradição oral

do povo, foram um meio seguro de garantir sua posição de destaque em uma corte

que prezava, acima de tudo, a etiqueta, as aparências e as intrigas palacianas.

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Chento (2012) lembra que a França do século XVII vivia sob o governo

absolutista de Luís XV, famoso pelo dito “O Estado sou eu”. O país era dividido em

três classes sociais: a nobreza, o clero e o chamado terceiro estado. O terceiro

estado era o mais numeroso e incluía o povo em geral. Com um sistema

educacional reservado apenas às classes altas, 70% da população masculina e 90%

da feminina eram analfabetas.

Essa alta taxa de analfabetismo se estendia por todas as classes, com

exceção, talvez, do clero e, por si só, dá uma medida de como vivia a sociedade da

época. Se apenas cerca de 10% da população dominava a escrita e a leitura, essa

parcela obviamente dominava todas as atividades sociais e econômicas.

O terceiro estado mencionado, segundo Chento (2012), referia-se a mais ou

menos 98% da população, cerca de 18 dos 19 milhões de habitantes da França.

Essa enorme massa não tinha privilégios nem direitos e travava uma luta

permanente pelo fim dos privilégios da nobreza e do clero.

Segundo Coelho (1985), os discursos escritos por La Fontaine consistiam em

denunciar a miséria, os desequilíbrios e as injustiças da época. Segundo

Maingueneau (2005), o discurso de críticas à monarquia nas fábulas não geram

perseguições a seu autor, uma vez que esse gênero não era concebido socialmente

como adequado para discussões entre ou sobre opositores políticos. Nesse sentido,

La Fontaine se valia de um discurso “de mentiras” para falar de “verdades sociais”.

A partir de La Fontaine é que podemos dizer que o discurso fabular passa a

ter também como público-alvo a criança, pelo fato de La Fontaine dedicar sua obra

intitulada Fábulas Escolhidas (1668) ao filho do rei Luís XIV. Porém não podemos

afirmar que no século XVII houvesse uma literatura propriamente infantil, visto que a

criança ainda era considerada um adulto em miniatura.

Nesse contexto social viveu e trabalhou La Fontaine. Criou e publicou suas

fábulas para um público restrito, sob a proteção das classes altas.

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2.2.3 Terceiro Momento: Millôr Fernandes – Um Escritor de Entrelinhas

Conforme assinala Nogueira Júnior (2007), Milton Viola Fernandes, escritor,

cartunista, dramaturgo e tradutor, nasceu em 1923, no Méier, subúrbio do Rio de

Janeiro, e faleceu em 2012, na mesma cidade. Millôr teve seu primeiro desenho

publicado em 1934, em O Jornal. Aos 13, foi contratado pela revista O Cruzeiro,

como uma espécie de factótum. Já no início de 1938, com apenas 14 anos, Millôr

Fernandes começou a escrever para jornais e revistas.

Aperfeiçoou seu talento de desenhista no Liceu de Artes e Ofícios entre 1938

e 1943. Durante o curso, em 1939, ganhou um concurso de contos da revista A

Cigarra, e foi então convidado para trabalhar como colunista na mesma revista.

Começou, então, a carreira de escritor. Na revista, criou a coluna Poste Escrito,

assinando como Emmanuel Vão Gôgo. Com o mesmo pseudônimo iniciou uma

coluna no Diário da Noite. Em seguida, tornou-se diretor de A Cigarra, por três anos.

Em 1945, criou a seção humorística Pif Paf para a revista O Cruzeiro, que

algum tempo depois passou a ilustrar. Sua veia artística era aperfeiçoada

continuamente.

Grande parte de sua vida aconteceu durante um período democrático, livre e

relativamente pacífico, mas ele também conviveu com um período conturbado da

história do Brasil: o da Ditadura Militar.

Passou a colaborar, por essa época, com o semanário O Pasquim, e sua

carreira alçou outros voos, pois passou a escrever para teatro, traduzir, apresentar

programas de televisão e a publicar dezenas de livros.

Foi durante o período da ditadura militar que a produção literária de Millôr

Fernandes foi mais profícua. A ditadura enrijeceu de forma decisiva, e, ao mesmo

tempo, Millôr consolidou sua carreira de escritor, humorista, desenhista e teatrólogo.

A crítica social, a mescla de ícones da cultura pop e da cultura clássica, as alusões

filosóficas e o refinamento do texto escrito tornaram-se marca pessoal do humorista,

porém isso não foi visto com bons olhos pelos órgãos de censura, que jamais

levavam em conta o fato de um artista ser venerado tanto pela intelectualidade

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quanto pela pessoa comum, isto é, a qualidade da criação de determinado autor não

era critério para o alcance da ação do censor.

Durante o governo Médici (1969 – 1974), em 1973, período considerado como

o auge da ditadura militar, a obra Fábulas Fabulosas de Millôr Fernandes teve sua

reedição.

Convivendo há mais de dez anos com a ditadura, em 1978, Millôr Fernandes

publicou mais um livro de fábulas: Novas Fábulas Fabulosas, no qual a veia cômica,

sarcástica e irônica parece ainda mais afiada, não obstante a mão de ferro da

censura.

Nesse contexto histórico marcado pela repressão, salienta Coleone (2008, p.

24), “quem cria se vê obrigado a burlar as coerções do discurso, buscar outras

formas de dizer aquilo que se encontra interditado, impedido naquele momento”.

Assim, destacam Oliveira e Lucena (2006), a carnavalização, o humor e a sátira

foram uma marca constante em textos de vários autores, entre eles Millôr

Fernandes.

Frente a esse cenário de repressão, ainda segundo Coleone (2008), Millôr

Fernandes encontrou na fábula uma alternativa eficaz, inteligente e bem-humorada

de manifestar-se contra a ditadura, inicialmente, e estendendo o mesmo humor

ácido às instituições tradicionais, como casamento, escola, religião, família e às

relações sociais tão deterioradas pela repressão política.

Millôr se destacou dos outros escritores e autores dessa época por uma razão

mais ou menos polêmica: o peso do aparelho de repressão do Estado caiu sobre

todos os intelectuais da época. Aqueles que ainda estavam ativos encontraram

meios de “driblar” a censura, lançando mão de todo seu talento para tornar

aparentemente inócuo seu trabalho, que guardavam, secretamente, duras críticas ao

regime e à situação socioeconômica do país.

Dialogando com o período de abuso do poder vivido pelo país e com o

ceticismo característico do pensamento pós-moderno, destacam Oliveira e Lucena

(2006), suas fábulas fabulosas promovem a crítica a verdades institucionalizadas e

se propõem a disseminar outras. Nesse sentido, reforçam as autoras, as fábulas de

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Millôr Fernandes se afirmam como fábulas “às avessas”, contrariando dizeres,

crenças e valores cristalizados na cultura popular e também fabular clássica.

Para Coleone (2008), fugindo do modelo didático-pedagógico, Millôr

abandona algumas características da fábula clássica em favor de uma criação mais

voltada à comicidade e à irreverência em meio a movimentos políticos, lutas

trabalhistas e por salários, greves, atos de contestação, manifestações estudantis e

sindicais. Em resumo, o escritor, tradutor, jornalista, artista plástico, humorista e

pensador Millôr Fernandes não se atém rigidamente às formas tradicionais, o que o

torna uma das mais importantes e versáteis figuras no contexto sociocultural

brasileiro.

Com o fim da ditadura, muitos artistas do calibre de Millôr se retraíram,

deixando de produzir com a qualidade de antes, talvez pela ausência de censura,

que talvez funcionasse como um elemento motivador para a originalidade da criação

artística. Millôr, porém, continuou um crítico ácido da sociedade, da classe política e

dos problemas globais, sem jamais diminuir a intensidade de sua verve cômica e de

seu texto extremamente crítico.

Na política brasileira, Millôr Fernandes passou a definir a democracia com

ironia e desdém. Era conhecedor dos políticos e da política brasileira. Essa

contaminada por negociações e alianças, praticante assídua da troca de favores e

do clientelismo, que levavam governo e oposição a se dobrarem aos caprichos dos

poderosos.

Millôr, durante o regime da ditadura militar, defendia, principalmente por meio

do O Pasquim, de forma impetuosa os valores da democracia. Mesmo censurado

escreveu obras para o teatro, como Por que me ufano do meu país (1962),

Pigmaleoa (1965) e Os órfãos de Jânio (1979). Millôr brincava com a vida política

brasileira. Ele dizia: “Nós, os humoristas, temos bastante importância para ser

presos e nenhuma importância para ser soltos”.

Millôr produziu três livros sobre fábulas: Fábulas Fabulosas (1963), As Novas

Fábulas Fabulosas (1978) e 100 Fábulas Fabulosas (2003). No livro Fábulas

Fabulosas, Millôr Fernandes provou como as fábulas, criadas na Grécia Antiga para

demonstrar ensinamentos morais, podem também trazer ensinamentos amorais ou

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imorais. Na obra 100 Fábulas Fabulosas, Millôr Fernandes reúne 100 histórias cujo

conteúdo edificante foi transformado em uma coletânea de histórias críticas,

satíricas e cômicas.

Na década de 60, houve grandes mudanças econômicas e culturais no Brasil

que influenciaram na postura e produções dos brasileiros, principalmente nas

produções artísticas. Nessa fase de modernização, instalou-se, no Brasil, a ditadura

militar, sob a presidência de Marechal Humberto de Alencar Castello Branco, que

assumiu o poder em 1964. A ditadura militar permaneceu 21 anos no poder, de 1964

a 1985, e tinha como principal objetivo combater, de forma radical, o comunismo, de

maneira que este não se disseminasse e dominasse o país.

Entretanto, mesmo longe da possibilidade de o Brasil tornar-se um país

comunista, havia certa apreensão e várias investidas contra muitos políticos,

promovendo reprovações às atitudes que sugerissem radicalismo e ameaças ao

país. Segundo a revista Caros Amigos 2 : “A direita, civil e militar não admitia

manifestações ou medida de cunho nacionalista ou popular. Militares tentavam e

tentariam o golpe sistematicamente, contra Vargas, JK, Jango após renúncia de

Jânio.” (CAROS AMIGOS, 2007, p. 58).

Os militares tiveram apoio militar e logístico dos EUA logo após o golpe e

retribuíram, firmando contratos comerciais cancelados em épocas anteriores. O

Marechal Humberto de Alencar Castello Branco foi o primeiro Presidente escolhido

por colégio eleitoral, tomando posse no dia 15 de abril de 1964. Nesse período,

foram cinco os presidentes-generais: Castelo Branco (1964-1967); Costa e Silva

(1967-1969); Médici (1969-1974); Geisel (1974-1978); Figueiredo (1979-1985).

Por meio da repressão, a ditadura procurou evitar a exaltação de temas

polêmicos, como, por exemplo, sexo, drogas, divórcio entre outros, pois, segundo os

militares, levantar esses temas feria os bons costumes e a moral do país. Da mesma

forma que esses temas, considerados pelos militares como imorais, eram proibidos,

2

Caros Amigos é uma revista brasileira de informação – política, economia e cultura – com periodicidade mensal e tendências esquerdistas. Foi fundada em abril 1997 por um grupo de jornalistas, publicitários, escritores e intelectuais, liderados pelo jornalista Sérgio de Souza, que foi editor desde a fundação até sua morte, em 2008.

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56

também eram proibidas quaisquer produções artísticas que trouxessem discussões

políticas ou difamassem a imagem da ditadura.

Os militares precisavam manipular a consciência da população contra o

comunismo e alcançar o poder por meio do golpe, pois eles não tiveram êxito em

chegar ao poder pelo voto popular, e assim o fizeram. Segundo a revista Caros

Amigos, para convencer a população, o governo utilizou os melhores atores,

cineastas, agências de publicidade e escritores. No início do período militar, muitas

mulheres também colaboraram para convencer a população, tomando a frente e

participando de passeatas: “o IPES financiou cursos nos quais mulheres da elite

receberam aulas de como pregar a união da família contra o comunismo” (CAROS

AMIGOS, 2007, p. 25).

Diante desse cenário problemático, em 1o de abril de 1964, João Goulart não

resistiu mais à situação política que se desenhava, sendo destituído da presidência.

Nesse mesmo dia, informa Sousa (2009), os militares assumiram o poder na pessoa

de Rainieri Mazzieli, dando origem ao que ficou conhecido como O Golpe de 1964,

instituindo o Regime Militar no Brasil.

A Constituição Federal de 1967, promulgada pelo executivo e aprovada pelo

Congresso, não tinha qualquer representatividade. Assim, no sistema repressor

ditatorial, predominava a corrupção, a violência, invasões de domicílios, prisões

ilegais, torturas, cassações de direitos políticos, proibições de greves,

esvaziamentos dos sindicatos e a censura telefônica e aos meios de comunicação,

conforme enumera Gomes (2001).

Sousa (2009) lembra que, com plenos poderes, os militares acirraram as

perseguições políticas, agora ainda mais eficazes com a criação de Inquéritos

Policial-Militares, responsáveis pelo controle de todas as pessoas consideradas

ameaçadoras à ordem então estabelecida.

O período da ditadura militar ficou conhecido também pelas repressões e o

cerceamento dos direitos políticos e das liberdades individuais. A Constituição

promulgada pelos próprios militares não era respeitada, sendo o país regido por atos

institucionais. Segundo Sousa (2009), nesse período foi criado mecanismos de ação

capazes de desarticular qualquer manifestação oposicionista, entre os quais

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estavam a tortura, as prisões arbitrárias, a perseguição e a denunciação. Foi criada,

também, a Lei de Imprensa, que proibia especialmente toda e qualquer publicação

de conteúdo que incentivasse, de alguma maneira, a desordem social ou criticasse

as autoridades instituídas.

É, portanto, nesse período sombrio que o humor se transforma em protesto,

ora velado, ora diluído em produções artísticas em princípio dramáticas. Também é

esse o período em que a produção literária de Millôr Fernandes sobressai, uma vez

que o humor cínico, sarcástico e ácido tem grande apelo, servindo como válvula de

escape em meio à opressão generalizada.

O contexto sociopolítico e econômico de determinada época influencia

fortemente a produção artística e não somente em termos estéticos como, também,

o próprio discurso do autor, seja qual for a linguagem artística. Notamos, dessa

forma, essas influências nas obras dos três autores analisados. Millôr conviveu

durante boa parte de sua vida com a repressão política e ideológica já descrita. La

Fontaine e Esopo não fugiram a essa regra, como se verá no tópico seguinte e no

capítulo a seguir.

2.2.4 Esopo, La Fontaine e Millôr Fernandes: Discursos em Diferentes Séculos

Esopo, La Fontaine e Millôr Fernandes viveram em épocas históricas

diferentes, em hemisférios – e sociedades – diferentes, com heranças culturais

totalmente estranhas umas às outras.

Se há pontos em comum, seria o ofício, o fato de os autores estudados serem

artistas completos, com variados talentos, a persistência como marca pessoal e a

crítica, que, de maneiras distintas, funcionavam como uma espécie de farol social

para seus leitores.

Esopo, cuja intuição filosófica era espetacular e marcava suas fábulas com

um caráter contestador e político, aparece como um autêntico porta-voz do povo

oprimido e, por consequência, era descrente dos políticos, além de abalado nas

suas convicções religiosas.

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Por sua vez, La Fontaine valia-se da cultura popular para entreter os nobres,

enquanto que Millôr Fernandes utilizava os valores morais dos cidadãos brasileiros e

da cultura clássica transformando-os em reflexões humorísticas do momento

histórico do país, conclamando seus leitores ao pensamento crítico e a uma visão de

mundo crua e objetiva.

Millôr, ao reescrever as fábulas de Esopo e La Fontaine, resgatou um pouco

da cultura infanto-juvenil, transformando-a, porém, em uma crítica bem humorada,

dirigida ao público adulto, sem fazer concessões a classes sociais ou ideologias.

As fábulas não se baseiam em um gênero do discurso humorístico, pois a

finalidade comunicativa dessa narração é a de explicar um preceito. Porém, a partir

da leitura das fábulas fabulosas de Millôr, percebemos que, além do ensinamento

moral, elas são caracterizadas pela presença do elemento humorístico.

Há, como se vê, certa semelhança nos objetivos de cada autor: Esopo era um

porta-voz do povo oprimido; La Fontaine, custeado pela classe alta, escrevia fábulas

com fundo moral, que de forma indireta conclamavam a sociedade a respeitar os

valores da nobreza; por sua vez, ao incluir nas fábulas pitadas de psicologia,

política, filosofia e sabedoria popular, Millôr atacava com classe as elites da época,

enquanto criticava a apatia dos oprimidos, utilizando para isso novas versões de

histórias que já dominavam o ideário social.

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CAPÍTULO 3 – ESOPO, LA FONTAINE E MILLÔR FERNANDES:

TRÊS TEMPOS EM DIÁLOGO

Este capítulo terá como escopo a análise dos elementos discursivos das

fábulas “A Galinha dos Ovos de Ouro” e “O Leão e o Rato” de autoria de Esopo, na

versão de Antônio Carlos Vianna (ANEXO A); “A Galinha Que Punha Ovos de Ouro”

e “O Leão e o Rato” de La Fontaine, na tradução de Curvo Semmedo (ANEXO B); e

“A Galinha dos ovos de ouro” e “O Leão e o rato” de Millôr Fernandes ( ANEXO D).

Pretende-se examinar, a partir dos elementos discursivos, compreendidos como

resultado das escolhas enunciativas, como o enunciador elabora as cenas

enunciativas, cria imagens, caracteriza os èthé e como ocorrem os interdiscursos.

Por se tratar de um gênero narrativo popular, que advém dos textos orais, as

fábulas têm por finalidade discursiva retratar aspectos próprios da conduta humana,

sua principal característica. Por meio das pistas deixadas pelo enunciador no

enunciado, podemos investigar o processo constitutivo da enunciação que na fábula

se instaura e como o enunciador relaciona a fábula aos procedimentos humanos e à

moral. Desse modo, o critério de análise proposto é a observação da construção da

cenografia e, nessa, da constituição do ethos da personagem, assim como o

interdiscurso estabelecido. Ainda, analisaremos como este discurso se reveste de

ironia e/ou de humor para a validação da cena da enunciação.

Segundo Maingueneau (2001), a fim de enunciar, o enunciador constrói uma

cena, um “palco enunciativo” constituído pelas cenas da enunciação: a cena

englobante, a cena genérica e a cenografia. São essas as cenas que ajudarão na

análise da constituição enunciativa.

Nesse sentido, pensando sobre o quadro cênico formado pela cena

englobante, podemos apresentar as fábulas como um tipo de discurso que pertence

à esfera da literatura, bem como à esfera política, esferas que reescrevem o

cotidiano enfatizando aspectos morais, éticos e políticos. Assim, a cena englobante

é a literária e política.

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Percebemos a cena englobante literária pelo cuidado do autor com o texto em

si: versos com bom ritmo e rimas elegantes, ou prosa articulada e expressiva. Em

ambos os estilos há preocupação com a clareza e a síntese.

Por sua vez, a cena englobante política é mais discreta e está diluída em boa

parte do texto. Ela é discreta, pois aponta para temas políticos sem partidarismos,

como a necessidade de o indivíduo ser colaborativo e não competitivo e cultuar

hábitos e costumes que não prejudiquem o outro.

Assim, as fábulas transitam entre os aspectos literários e políticos. O primeiro,

por ser usualmente bem construído, transmite mais facilmente a mensagem moral

da história; o segundo sugere ao leitor a razão pela qual a questão moral deve ser

considerada: para que a sociedade progrida e prospere.

Em relação à cena genérica, podemos afirmar que a forma composicional e o

estilo do enunciado estabelecido marcam-na como uma fábula, pois se tratam de

criações que traduzem aspectos relacionados ao povo e à sua cultura. Nos textos

analisados, percebe-se o convite ao bom senso, à moralidade, à disciplina e a outros

comportamentos socialmente aceitos. Nota-se que as fábulas em análise refletem

uma ideologia compartilhada por classes sociais dominantes ou pelo senso comum.

Os aspectos que podemos destacar como de maior diferenciação entre as

fábulas são a construção de suas cenografias e dos seus èthé. Convém ressaltar

que se percebe a interdiscursividade e formas diferenciadas de apresentar a ironia,

quer seja implicitamente ou explicitamente, manifestando-se pelo humor.

3.1 A Galinha dos Ovos de Ouro em Três Versões

3.1.1 Versão de Esopo

Apesar de terem centenas de anos e revelarem a base da cultura grega no

início da civilização ocidental, as fábulas de Esopo são constantemente

recuperadas, tanto no âmbito literário como nas demais esferas discursivas.

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A fábula “A Galinha dos Ovos de Ouro” de Esopo, tradução de Antônio Carlos

Vianna (2006), apresenta-se como uma narrativa curta, em prosa, com uma

linguagem simples, que aponta, com crueldade, a ganância humana.

Em Esopo, a cenografia conduz ao tom de severidade que o autor defende.

Ele apresenta os valores absolutos do mundo antigo sob a forma de um texto de

caráter pedagógico voltado à diversão, porém com propósitos didáticos

moralizantes, que estabelecem a punição do homem, devido à sua ganância, como

uma consequência de sua ambição.

Ao analisarmos a fábula “A Galinha dos Ovos de Ouro” de Esopo, notamos

que o discurso se constrói apresentando as personagens, a relação de posse – da

galinha e do ouro – estabelecida entre elas e a presença de um fato inusitado: “Um

homem tinha uma galinha que punha ovos de ouro”. (ANEXO A).

Por ambição, o homem decide matar a galinha, imaginando que dentro da ave

havia só ouro. Mediante a descoberta de não haver nada no interior da galinha que a

fizesse diferente das outras, se expressa o desfecho ligado ao texto: “perdeu até o

pequeno lucro que ela lhe dava”. (ANEXO A).

Em continuidade ao desfecho apresentado, a fábula é finalizada com a moral

em destaque, que reforça a ideia anterior: “Cuidado com a ambição. Contenta-te

com o que já tens”. (ANEXO A).

Ao fazer uso do excepcional – uma galinha com um dom especial de botar

ovos de ouro –, a fábula conduz o coenunciador à lição de moral, por meio da qual

alerta, aconselha e critica o comportamento humano quando dominado pela

ambição, defendendo que quem é ambicioso, por querer enriquecer rapidamente,

acaba perdendo tudo, até “o pequeno lucro”. Assim, a fábula apresenta um ethos de

enunciador ambicioso, e a ambição é marcada como uma fraqueza humana que

deve ser evitada.

Dessa forma, a moral apresenta uma crítica à ambição e à cobiça, em uma

possível relação interdiscursiva com o discurso sociopolítico dos poderosos da

época de Esopo, visto que, historicamente, as sociedades eram regidas por batalhas

para conquistas de territórios, escravos e poder. Essa luta por poder sacrifica os

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mais vulneráveis e desfavorecidos, como os escravos. Parece haver uma relação

entre essas pessoas, marginalizadas, escravizadas e exploradas com a galinha da

fábula, já que, como tais, eram obrigadas a trabalhar para favorecer os mais

abastados.

3.1.2 Versão de La Fontaine

A construção estética da fábula “A Galinha que Punha Ovos de Ouro” de La

Fontaine, com tradução de Curvo Semmedo, é composta de 6 estrofes e 34 versos,

que o tradutor construiu sob a forma de 3 e 4 sílabas poéticas, com rimas

alternadas. Como outras criações literárias da época – século XVII –, a fábula

deveria conter lições de ética ou moral, lidando com atos, ações e comportamentos

considerados aceitáveis pela sociedade. “A Galinha que Punha Ovos de Ouro” trata

dos malefícios – e do castigo – provenientes da ambição desmedida e, para tanto, a

voz do enunciador é categórica em anunciar esse vício como um mal humano, pois

segue essas regras éticas à risca.

A fábula de La Fontaine recebe de Semmedo um tratamento que se distancia

da tradução costumeira, para se aproximar de uma versão mais elaborada.

Percebemos que o tradutor introduz na fábula características socioculturais,

históricas e políticas do século XVII. La Fontaine conta uma história simples, com

uma introdução, a história em si e um desfecho. Notamos essa simplicidade logo na

introdução:

L’avarice perd tout en voulant tout gagner (ANEXO C)

“A avareza perde tudo querendo tudo ganhar”3

Assim, Semmedo muda essa introdução, acrescentando, em sua versão,

elementos que remetem à mitologia greco-romana: “Um homem tinha uma galinha/

Que Juno bela/ Por desenfado/ Tinha fadado”. (ANEXO B). Esse acréscimo torna

ainda mais evidente o caráter extraordinário da história, dando-lhe ares de mito

divino.

A versão de Semmedo não somente mantém a mensagem moral, como a

reforça e afirma: “E por avaro/ Se despojou/ Do rico amparo/ Que nela tinha”

3 Tradução nossa.

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(ANEXO B), enquanto que o original de La Fontaine encerra a fábula com uma

pergunta:

Pendant ces derniers temps, combien en a-t-on vus

Qui du soir au matin sont pauvres devenus

Pour vouloir trop tôt être riches?(ANEXO C)

“Durante estes últimos tempos, quantos foram vistos

Que de uma tarde à manhã pobres ficaram

Por querer muito cedo estar ricos?”4

A versão de Semmedo apresenta referências a três elementos muito próprios

do momento de produção: a deusa Juno, o covo e a moeda da época – o dobrão.

Já na primeira estrofe, vemos características classicistas, como fazer

referências à deusa Juno. Ao enunciar a deusa, remetemo-nos à Academia Árcade

de Portugal, a Nova Arcádia (1790 a 1794), que apresentava características tais

quais: a recorrência a elementos da cultura greco-latina – deuses pagãos, ninfas,

cupidos, Vênus, Zéfiro; a predominância da razão sobre o sentimento; a busca do

homem em ser dotado de virtudes, valores que enaltecem sua capacidade de ação,

entre outras.

Sobre a deusa Juno5, da mitologia romana, rainha do céu e esposa de Júpiter,

que também era deusa da força vital e deusa dos deuses, o autor traz os versos:

“Um homem tinha

Uma galinha,

Que Juno bela

Por desenfado

Tinha fadado.” (SEMMEDO, apud SANTOS; SANTOS,1957, p. 625).

O autor apresenta Juno como criadora de uma galinha com uma

característica peculiar: botar ovos de ouro. A deusa tinha feito uma brincadeira; criou

a galinha daquela forma por passatempo.

4 Tradução nossa.

5 Juno na mitologia grega é Hera.

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Em outra referência, temos o covo, espaço onde a galinha vivia, “Vivia ela/

Dentro dum covo”. (ANEXO B). Esse elemento, o covo, é uma espécie de cesto

comprido e estreito, provido de uma abertura em uma das extremidades, o que dá

um lugar de destaque à galinha na casa do seu dono, pois o animal não vivia no

quintal ou em um galinheiro, mas num cesto, algo que nos parece muito mais

próximo da casa. A galinha é considerada quase um animal de estimação.

Outro exemplo da relação da versão apresentada com o seu momento de

produção é o dobrão. O enunciador avalia financeiramente o ovo posto pela galinha

ao distinguir o seu valor nos versos:

“E punha um ôvo

D’ouro luzente

Em cada um dia,

Que valeria

Seguramente

Dobrão e meio;” (SEMMEDO, apud SANTOS; SANTOS, 1957, p. 625).

Esse preço, dobrão e meio, ajuda o coenunciador daquele contexto a ter

dimensão do valor de cada um dos ovos, pois o dobrão era uma moeda portuguesa/

brasileira que circulou nos anos de 1707 a 1750, durante o reinado de D. João V, e

foi a de maior valor intrínseco que circulou no mundo, pois valia 20.000 réis. O

coenunciador deve retomar a expressão em seu contexto histórico para ter

conhecimento do grande custo de cada ovo.

Esses enunciados vêm carregados de características que marcam o contexto

sócio-histórico em que viveu o português Curvo Semmedo, criando-se um novo

discurso no já-dito, levando-nos a concluir que a fábula analisada não é uma

tradução da fábula de La Fontaine, mas uma adaptação.

A cenografia cuidadosamente conduz o leitor a uma reflexão, apontando a

direção do bom senso e dos males da ganância. Na versão de Semmedo, é

introduzida a deusa Juno, que criou uma galinha especial e lhe deu um dom: “Que

Juno bela/ Por desenfado/ Tinha fadado”. (ANEXO B). Entenda-se “desenfado”

como diversão, entretenimento ou recreação e “fadado”, como predestinado.

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Portanto, a galinha a quem a deusa concedeu tal dom era, por assim dizer, um

presente dos deuses.

Semmedo vai adiante com sua versão, de tal forma que, em sua cenografia, a

galinha da fábula continua a mudar, como em: “[...] E punha um ôvo/ D’ouro

reluzente/ Em cada um dia [...]”. (ANEXO B). Com isso, a galinha sofre mais uma

reviravolta nessa estrofe. Percebemos, nesses versos, que a galinha cumpre uma

obrigação diária, passando, assim, de animal de estimação a simples empregada.

A terceira estrofe registra o que se pode chamar de a verdadeira essência da

fábula: a ambição, que é tratada de forma explícita: “Mas o patrão/ Um dia cheio/

D’ímpia ambição/ Foi-se à galinha/ E degolou-a”. (ANEXO B). A imagem é bastante

expressiva, até mesmo antecipando a consequência de um ato movido por pura

cobiça, que se desvela na última estrofe: “Outra galinha/ Jamais topou/ Com tal

condão/ E assim pagou/ Sua ambição”. (ANEXO B).

Dessa forma, a cenografia do encerramento da fábula, na versão de

Semmedo, reforça a intervenção da deusa Juno, que, “por desenfado”, concedeu o

dom dos ovos de ouro àquela galinha específica e a nenhuma outra. A mensagem

transmitida é a de que “quem tudo quer, tudo perde”, isto é: desejar riquezas e as

acumular sem qualquer fim prático, senão o próprio acúmulo, acaba por ser um

prazer que se deteriora e se consome com o tempo.

Ao analisar o ethos do personagem da fábula, o dono da galinha, percebemos

que o enunciador, por meio do seu “modo de dizer”, construiu uma imagem coerente

com a cena da enunciação apresentada, indicando as intenções do enunciador-

fabulista. Assim, o homem, dono da galinha dos ovos de ouro, apresenta

inicialmente um ethos de ingenuidade, simplicidade e generosidade, que zelava pelo

seu animal. Com o tempo, se torna patrão, apresentando um èthé ganancioso e de

ignorância. Os èthé apresentados transmitem um discurso moralizante, em que a

ambição e a ignorância são valores negativos para o homem.

Percebemos que, ao matar a galinha para apanhar o rico tesouro que,

erroneamente, o homem acreditava haver dentro dela, o enunciador passa a ser

movido pela ganância desmedida e pela ignorância. Assim, acaba desconsiderando

a natureza da ave, pois ela não só não possui nada de especial em sua anatomia

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como também não possui um estoque de ovos dentro de si, mas os produzia

diariamente.

Dessa forma, a cobiça faz o homem se privar de todo o amparo que a galinha

e seus ovos lhe haviam proporcionado:

“E, por avaro,

Se despojou

Do rico amparo

Que nela tinha.” (SEMMEDO apud SANTOS; SANTOS, 1957, p. 625).

Por fim, a lição da fábula é para aqueles que não se contentam em enriquecer

aos poucos, e querem enriquecer muito depressa, arriscando perder a fonte da

fortuna: “[...] E assim pagou/ Sua ambição”. (ANEXO B).

A mensagem moral remete a um aspecto do espírito humano sempre

presente: a cobiça, que pode ter consequências ruins, a depender de sua

intensidade. É negativa quando se converte em fim em si mesma, seja para

acumular riquezas, seja simplesmente para ostentá-las.

3.1.3 Versão de Millôr Fernandes

A fábula “A Galinha dos ovos de ouro” de Millôr Fernandes está inserida no

livro Fábulas Fabulosas, publicado em 1963. Em sua cenografia, o enunciado

conduz o leitor a uma reflexão no sentido de que a ambição é algo próprio da

natureza humana e essencial para o crescimento econômico e ascensão social.

Em sua cenografia, o enunciado inicia a fábula com o clichê “Era uma vez...”

(ANEXO D) e assim remete à atemporalidade dos fatos, apresentando uma

intertextualidade estrutural explícita com os contos de fada. O enunciador procura

colocar o coenunciador em prontidão para adentrar outro tempo, porém se remete a

um contexto contemporâneo. Ele também grafa a Galinha com G maiúsculo,

destacando o seu papel na história, nomeando-a e reforçando-a como uma

personagem.

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Nessa cenografia, assim como ocorre na fábula de La Fontaine, Millôr

também apresenta um homem que possui uma Galinha que bota ovos de ouro: “Era

uma vez um homem que tinha uma Galinha. [...] a Galinha pôs um ovo de ouro”.

(ANEXO D).

Também vemos que o homem apresenta a mesma esperança ambiciosa de

enriquecer por meio da produção dos ovos: “[...] que o tirava da miséria, e aos

poucos o ia guindando ao milionarismo”. (ANEXO D). E também a mesma ação de

matar a Galinha, não encontrando nada dentro: “[...] abriu a Galinha para apanhar os

ovos que tivesse lá dentro. Para sua decepção não havia nenhum”. (ANEXO D).

Ainda, ao afirmar “O fato, que antigamente poderia passar despercebido, [...]”

(ANEXO D), o enunciador retoma as fábulas de Esopo e La Fontaine, marcando o

contexto de produção como de pessoas mais preocupadas com as questões

financeiras do que com as questões relacionadas a um status de sucesso, fama. Em

seguida, retorna aos tempos atuais: “[...] na data de hoje atraía verdadeiras

multidões”. (ANEXO D).

Essas épocas, quando referidas no enunciado, tomam a forma de uma

espécie de jogo; Millôr chama o enunciatário para uma viagem no tempo, ora

desembarcando no passado fabulístico, quando não se dava tanto valor à fama

fortuita, ora viajando para o presente, quando o estrelato fugaz é almejado por

muitos.

A Galinha dos ovos de ouro de Millôr também desperta no homem um ethos

ambicioso: a ambição pela riqueza fácil, que o tiraria da miséria e o levaria a ser um

milionário famoso, porém paciente, calculista: “Esperava todas as manhãs pelo ovo

de ouro – clara, gema, gala, tudo de ouro!” (ANEXO D); e também um ethos

oportunista, pois o homem soube tirar proveito das circunstâncias em benefício de

seus interesses, conseguindo atingir os seus objetivos.

O fato de a Galinha pôr ovos de ouro também não passa despercebido em

Millôr: “E a Galinha, também, ia dando aqui e ali os seus shows diante dos jornais,

câmaras, microfones” e “[...] conseguiu pôr um ovo diante da câmera da TV Tupi”.

(ANEXO D). O enunciador, no entanto, não enfatiza o valor financeiro do ovo de

ouro, mas a possibilidade de fama para a qual ele conduz. A cenografia traz a TV

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Tupi para o centro da enunciação, pois essa emissora teve seu auge nas décadas

de 1960 e 1970, constatando, assim, a espetacularização da mídia na época. Assim,

na fábula de Millôr, a Galinha não proporciona apenas riqueza, mas também fama.

A Galinha apresenta um ethos de vaidade, ao passar do anonimato para a

fama repentinamente, tornando-se de pronto uma celebridade, promovendo-se pela

mídia. A personagem se atira no turbilhão da fama, o que remete aos programas

televisivos e às revistas de celebridades, apresentando-se assim um interdiscurso

com a obra A sociedade do espetáculo, de Guy Debord (2003), que afirma: “O

espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas,

mediatizada por imagens.” (2003, p. 14).

A obra de Guy Debord, publicada em 1967, pode ser considerada a

precursora de toda análise crítica da moderna sociedade de consumo. Essa crítica

também pode ser vista na fábula de Millôr, em que se notam os elementos de

exaltação à fama repentina e fugaz de publicações e programas relacionados ao

mundo das celebridades.

Millôr ainda acrescenta o humor ao descrever uma Galinha – animal comum,

doméstico, não muito brilhante – que se torna famosa por seus dotes físicos

inusitados, como centenas de celebridades sem talento artístico ou intelectual, que

ostentam como único atributo o vestuário sumário ou o corpo esculpido em clínicas

exclusivas, a penagem humana.

Assim como na fábula de Esopo e La Fontaine, a Galinha também é morta

por seu dono na versão milloriana, mas não pelo mesmo motivo. O homem não

apresenta o desejo de enriquecer de uma vez só. Ele a mata por desespero, já que

a Galinha havia parado de botar ovos de ouro, interrompendo o processo de

acúmulo de riqueza. O homem, para não perder a fama, esconde o fato de todos:

“[...] muito antes que o homem conseguisse ficar rico, a Galinha deixou de botar

ovos de ouro. Desesperado, o homem foi ocultando o fato”. (ANEXO D).

Na narração apresentada, o homem, não encontrando nenhum ovo dentro da

Galinha, ficou decepcionado, mas soube aproveitar a fama que a Galinha tinha lhe

proporcionado e abriu um restaurante: “Então o homem – espírito bem moderno –

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resolveu explorar o nome que lhe ficara do acontecimento e abriu um enorme

restaurante”. (ANEXO D).

Esse final, no qual Millôr apresenta o proprietário da Galinha como alguém

que sabe tirar vantagem do infortúnio, está em franca oposição com a punição

recebida pelos homens nas fábulas de Esopo e La Fontaine. Nessas fábulas, a

ambição resulta em desgraça pessoal. Dessa maneira, a fábula de Millôr envereda

pelo caminho oposto, insinuando que o ato de matar a Galinha resultará em

desastre, para, em seguida, descrever o sucesso resultante do mesmo ato.

Na cenografia, o enunciador aproveita a fama da Galinha e apresenta uma

saída para a falta que os ovos de ouro fariam: abrir o restaurante “Aos ovos de

ouro”. Ele categoricamente anuncia que o restaurante lhe rendeu mais riqueza que

os próprios ovos de ouro: “E isso lhe deu muito mais dinheiro do que a Galinha

propriamente dita”. (ANEXO D).

Ao afirmar e confirmar o sucesso do homem, não obstante o fato de ter

matado a Galinha, vê-se aflorar o ethos oportunista já mencionado anteriormente.

Nessa fábula, a ideia de que a ambição leva à perda da riqueza muda para a

ideia de que é a ambição que leva o homem a se aproveitar da situação e

enriquecer. A moral defendida, “Cria Galinhas e deita no ninho” (ANEXO D),

apresenta um interdiscurso com o ditado popular “Cria fama e deita na cama”.

Ainda que expresso de forma diferente, o significado dos ditados é

equivalente e remete, por exemplo, ao artista de uma só obra, que nunca mais

produziu qualquer outra, vivendo apenas dos dividendos daquela única. No

enunciado de Millôr, fica mais evidente a obra única: apesar de morta, a Galinha

continua a ser fonte de fama e riqueza.

O enunciador substitui os valores morais e a punição do homem devido a sua

ganância pelos valores do mundo moderno e premia o homem ambicioso por meio

da fama, que leva à sua conquista financeira. É evidente que, na nossa sociedade

capitalista, já não cabe mais castigar os anseios materialistas humanos. Nesse

sentido, a frase “espírito bem moderno” (ANEXO D) mostra que a ambição não é

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pecado e que quem tem criatividade aproveita as oportunidades e a fama adquirida

para alcançar a riqueza tão desejada.

Assim, percebemos, no humor de Millôr, também o interesse das pessoas

pelo fato de a Galinha botar ovos de ouro, bem como a participação da mídia e da

Galinha em shows, o que estabelece a fama como algo presente e necessário em

nosso cotidiano. Ainda, o desfecho irônico e a moral mostram uma formação

discursiva diferente da de Esopo e La Fontaine sobre o mesmo vício social, a

ambição. Nas fábulas de Esopo e La Fontaine, é vista definitivamente como grave

desvio de caráter, que merece punição exemplar. Essas lições morais eram dirigidas

diretamente àquela sociedade, em que se acreditava que a ambição – que poderia

levar ao sucesso – era um vício extremamente desagregador.

Millôr, por sua vez, por trazer ao seu tempo a mesma fábula, e por ser crítico

ácido da geração de então, que prezava pelo sucesso fácil a qualquer preço, reforça

ironicamente essa atitude socialmente aceitável, mostrando a ambição como um

meio – ou o único meio – de alcançar objetivos.

3.2 O Leão e o Rato em Três Versões

3.2.1 Versão de Esopo

Como em outras fábulas de Esopo, o texto apresentado é, antes de tudo,

sucinto. A apresentação das personagens, a história, seu desenvolvimento e a moral

final ocupam poucos parágrafos, de forma que a mensagem é facilmente assimilada.

Na fábula O Leão e o Rato, o leão é apresentado como o rei absoluto e

tacitamente reconhecido como tal, e o rato transmite a ideia de subordinação e

temor perante a autoridade.

O contexto mostra um embate entre a realeza – que domina tanto os súditos

quanto o ambiente – e o mais insignificante dos subalternos – um rato –, que, de

certa forma, desafia a ascendência da nobreza sobre si, demonstrando que mesmo

o menor dos súditos é capaz de ser desprendido e compassivo.

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Ao analisarmos a cenografia da fábula de Esopo, devemos destacar o início

do primeiro parágrafo: “Um rato foi passear sobre um leão adormecido”. (ANEXO A).

Entende-se que esse foi um ato de desafio impensado, talvez como um meio de o

rato se sentir mais forte e importante que o leão. A reação do leão foi a esperada: ao

acordar, furioso, já estava disposto a devorar o rato pela sua audácia. Neste ponto,

Esopo parece propor que o leão tenha se sentido desafiado pela promessa do rato:

“[...] te serei útil”. (ANEXO A). Há, nesse ponto, certa equivalência a regimes

políticos totalitários que dominam o povo pela força e nos quais os mandatários se

sentem ameaçados por qualquer ato popular que minimamente evoque um desafio

ou afronta ao status quo.

Percebemos na cenografia uma relação desequilibrada de poder e, ao mesmo

tempo, um jogo em que predomina o desafio de ambos os lados. O rato aparece

como subalterno, fraco e medroso, que não disfarça seu medo e desespero, pois

suplica por sua vida: “[...] em um gesto de desespero, pediu ao leão para que o

deixasse ir embora [...]”. (ANEXO A). Essa cenografia evoca certas sociedades nas

quais o povo oprimido teme o mandatário que detém o poder de decidir sobre a vida

e a morte. Há um jogo de poder de vida e morte, como se percebe pela prepotência

do leão ao libertar o rato: “E o leão, achando graça naquilo, soltou-o”. (ANEXO A).

As marcas temporais – “tempos depois” e “naqueles dias” – têm papel

importante no contexto e no desenvolvimento da história, ainda que não haja nela

uma localização temporal. Essas marcas se referem ao que aconteceu

anteriormente e ao que acontecerá depois.

Em “tempos depois”, nota-se uma bem construída inversão de papéis; o leão

se vê em situação de fragilidade: “[...] o leão ficou preso em uma rede de caçadores”

(ANEXO A), exatamente como o rato que resolvera passear sobre ele quando

estava adormecido. Essa inversão é ainda mais clara em: “O rato ouviu seus rugidos

de raiva, foi até lá, roeu as cordas e o libertou”. Nota-se a semelhança com o que

ocorreu anteriormente: “E o leão, achando graça naquilo, soltou-o”. (ANEXO A).

Na fábula, o leão, ao cair na armadilha, torna-se tão frágil quanto o rato que

antes estivera entre suas garras. O rato, por sua vez, ao salvar o leão daquela

armadilha, mostra-se forte e poderoso, como o leão que quase o devorara.

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Também se destaca na cenografia o papel do rato. A princípio, a palavra rato

já contém várias conotações negativas: o animal rato – substantivo – é sinônimo de

destruição e propagação de doenças, ambição, cobiça, avareza, abandono dos

valores morais e atividades clandestinas. A palavra rato – adjetivo – nomeia pessoas

desprezíveis, larápios, dilapidadores de fundos alheios, trapaceiros.

O rato da história mostra também várias facetas: ao salvar o leão, por

exemplo, a princípio demonstra gratidão e caráter, pois cumpriu sua promessa: “[...]

te serei útil” (ANEXO A). Por outro lado, o ato de libertar o leão não aparenta ser

somente um gesto de gratidão, senão, também, um meio de elevá-lo a uma posição

de igualdade de poder e realeza com o leão.

O leão apresenta um ethos poderoso baseado na força, na prepotência e na

incredulidade, achando que aquele ratinho nunca poderia servi-lo, chegando até a

zombar do pobre animal diante a proposta: “- Se me poupares - disse o rato -, te

serei útil” (ANEXO A), proposta que traz pistas sobre a moral defendida pela fábula:

“Uma boa ação ganha outra”. (ANEXO A).

Como já comentado, ratos jamais foram bem vistos pela humanidade e

sempre serão objeto de asco e desprezo pela sua natureza arredia, noturna e

insidiosa.

Na fábula, porém, o rato pode apresentar um ethos de honra, de palavra, de

reconhecimento e retribuição, pois, ao perceber a dificuldade pela qual passava o

leão, que um dia o poupou, foi ao seu encontro para ajudá-lo: “Tempos depois o leão

ficou preso em uma rede de caçadores. O rato ouviu seus rugidos de raiva, foi até lá,

roeu as cordas e o libertou”. (ANEXO A). Apesar de mostrar um ethos de honra, o

rato se conforma com sua condição de ser inferior, sorrateiro e indigno de confiança,

mas declara que é capaz de ser solidário: “Aprende então que até entre os ratos

também se encontra gratidão”. (ANEXO A).

Há, porém, mais de uma análise possível para o ethos do rato: o animal é

trapaceiro, arredio, enfim, um animal movido pela sua própria natureza e por isso, na

fábula, é também desafiador. Antes, o rato se sentiu diminuído pelo leão, que o

soltou por achar graça na sua proposta e não acreditar na capacidade de ser-lhe útil.

O rato ao salvar o leão, protagoniza uma inversão de papéis: o leão o poupou por

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ser poderoso, para depois ser libertado pelo rato, que mostrou então ao leão,

também, o seu lado poderoso.

A moral apresenta um interdiscurso com o dito popular “Uma mão lava a

outra”, que tem como significado ajudar-se mutuamente. O provérbio completo, mas

nem sempre proferido, é “Uma mão lava a outra – e as duas lavam o rosto”. Esse

provérbio – “uma mão lava a outra” – tem várias leituras, sendo a principal delas, e

talvez a mais utilizada, a da troca de favores, lícitos ou não.

Na fábula “O Leão e o Rato”, há exatamente uma troca; não de favores, mas

de uma vida pela outra.

3.2.2 Versão de La Fontaine

A construção estética da fábula “O Leão e o Rato” de La Fontaine, tradução

de Curvo Semmedo, é composta de 32 versos. São estrofes com quebras a cada

oito versos, que o tradutor construiu com sete sílabas poéticas, com rimas

alternadas – o metro popular. A fábula foi criada no século XVII e contém lições

éticas. Lida com atos, ações e comportamentos considerados aceitáveis pela

sociedade da época. “O Leão e o Rato” trata da virtude da gratidão.

Na cenografia, destaca-se o fato de o rato estar aparentemente confuso,

“Saiu da toca aturdido [...]” (ANEXO B), caindo sem querer entre as garras de um

leão, o que pode significar que ele não se colocou em situação de perigo

intencionalmente. Nesse ponto, a fábula de La Fontaine difere daquela de Esopo,

que conta que o rato estava passeando sobre o leão adormecido, num aparente

gesto de desafio.

Entendemos também que há alguma falha no caráter do rato, descrito, de

início, como “daninho” e depois como “vil”, palavra que se vê na segunda estrofe. A

cenografia aponta para um desfecho rápido e letal: o rato daninho e aturdido seria

devorado rapidamente, mas há, em seguida, uma inesperada reviravolta, quando o

leão, de forma inesperada, levando-se em conta sua ferocidade e força, decide,

talvez por um ato de generosidade, poupar o rato: “[...] Lhe concedeu liberdade/ Ou

por ter dele piedade/ Ou por não ter fome então”. (ANEXO B).

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A cenografia mostra que, por ser “o monarca das feras” (ANEXO B), o leão

talvez veja o rato como um ser tão desprezível que não vale um bocado,

descartando-o sem maiores explicações. Nesse ponto, existe certa semelhança com

a versão de Esopo, na qual o desprezo pelo rato é evidente.

A partir da segunda estrofe, La Fontaine começa a tecer a mensagem moral,

apresentando os desdobramentos das ações do rato e do leão:

Mas essa beneficência

Foi bem paga, e quem diria

Que o rei das feras teria

Dum vil rato precisão! (SEMMEDO apud SANTOS; SANTOS, 1957, p. 547).

Há, nessa estrofe, elementos que, embora opostos, não se contradizem: diz-

se que o leão teve “Dum vil rato precisão!”, entendendo-se ‘vil’ como adjetivo

apropriado para o caráter arisco do rato, ou ‘vil’ como um ser insignificante. No outro

extremo, o leão é chamado “rei das feras”, o que lhe dá uma aura de nobreza, em

completa oposição ao rato. As qualidades e defeitos de cada um, porém, somem

ante a situação desesperadora que se apresenta e que dá a dimensão da

consequência dos atos de cada um.

A cenografia da segunda estrofe retrata dois personagens que têm

características individuais opostas: o Leão, majestoso e soberbo, e o rato,

mesquinho e covarde, que saem de sua zona de conforto e enfrentam situações

extremas, que até então jamais experimentaram. O risco de vida faz sobressair em

cada personagem uma faceta desconhecida, que é revelada na terceira estrofe.

A cenografia dessa terceira estrofe mostra o “rei das feras” andando em uma

“selva frondosa” quando cai em uma rede, presumivelmente de caçadores. Embora

rato e leão sejam por natureza diferentes em força, caráter e – por assim dizer –

posição social, há um elemento que os torna ligados: o acaso, pois o rato “[...] foi

cair insensato/ entre as garras do leão”, enquanto que o leão “caiu em rede

enganosa/ sem conhecer a traição” (ANEXO B). Não parece haver nada de

extraordinário no fato de um animal cair em uma armadilha, mas La Fontaine reforça

o destino sombrio do leão, antes nobre, agora cativo. Assim, o rei das feras

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experimenta o outro lado, aquele do vassalo, do súdito, que vive à sombra do

monarca, respeita-o e o teme.

Um segundo elemento que os liga é o ato de bondade realizado por eles,

visto que, por se tratar de um leão de índole feroz e um rato de temperamento

desconfiado e arisco, ambos se ajudam em momentos de perigo. O acaso perpassa

boa parte da fábula, mas não parece ter um fim em si, isto é, o próprio acaso gera os

acontecimentos extraordinários que transformam o cotidiano e mesmo os princípios

de cada personagem.

La Fontaine descreve essa cena reiterando o lado talvez menos controlador

de quem é majestade: “Caiu em rede enganosa/ Sem conhecer a traição”. (ANEXO

B). Entende-se por “sem conhecer a traição” que o leão jamais fora traído ou

enganado por seus súditos; nesse caso, porém, há uma “rede enganosa”, que

contribui para uma cenografia repleta de elementos mais ou menos insidiosos,

enganosos, nos quais o leão cai por não ser, talvez, tão expedito quanto o rato.

Levemos em conta, também, que La Fontaine considera a captura do leão um

ato de traição, fato que jamais preocuparia o leão, por ser o monarca absoluto e

aparentemente imune a tal ato. Importante lembrar que o leão fora magnânimo,

libertando o rato num gesto inusitado, enquanto o rato, que poderia fugir quando

solto, sente-se obrigado a retribuir o favor: “Mas essa beneficência/ foi bem paga

[...]” (ANEXO B), e esses fatos ligados por La Fontaine introduzem um elemento de

dúvida sobre a eficácia da força e do poder. Em “Rugidos, esforços, tudo/ Balda sem

poder fugir-lhe” (ANEXO B), o autor descreve o arsenal do leão e sua inutilidade

frente a um incidente que não faz parte do mundo conhecido por ele.

O resultado da queda do monarca na “rede enganosa” e da traição que ele

próprio desconhecia é descrito na cenografia da quarta estrofe, que mostra, em sua

abertura, que a força e o poder do leão não são páreos para a traição e o engano; o

leão ruge e se esforça para fugir, mas é tudo em vão. Sua nobreza de nada vale

frente ao imponderável, ao inesperado, principalmente quando o acontecimento

inesperado é causado por insídia e astúcia de um inimigo desconhecido.

Nesse ponto, a cenografia remete a uma situação, em princípio,

desesperadora: o leão está sozinho e é vítima de um mal desconhecido na forma de

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uma armadilha mortal. Provavelmente, a vítima não se lembre do fato de ter sido

piedoso com um ser desprezível tempos atrás e jamais tenha atentado para

qualquer possibilidade de remissão ou retribuição, fosse de sua parte, fosse da parte

de outrem.

Essas questões começam a ser encaminhadas para uma solução, quando o

rato entra em cena na penúltima estrofe. O roedor parece surgir do nada; não há

diálogos, pedidos de ajuda por parte do leão ou qualquer preâmbulo. O rato começa

a roer as malhas da armadilha de imediato. Há então reconhecimento mútuo: do

leão, que vê no rato, além de seu salvador, aquele que lhe retribuiu o gesto de

bondade, e do rato, que cumpriu seu compromisso de gratidão.

A cenografia dessa quarta estrofe ressalta, da mesma forma, o trabalho

paciente e persistente do rato, uma vez que se pode imaginar uma armadilha para

leões como forte e cheia de tramas. Percebe-se também, na descrição do esforço do

rato para libertar o leão, uma franca e evidente comparação entre a luta inútil do leão

para se libertar, “Rugidos, esforços”, e a paciente, mas eficaz ação do rato.

A cenografia da fábula de La Fontaine traz um ensinamento sobre a gratidão

vencendo a força. Exalta também a perseverança e a retribuição do bem recebido. A

fábula se encerra com dois ensinamentos: a virtude da retribuição e gratidão,

pagando o bem com o bem, e a paciência e persistência como forças gentis, que

vencem a fúria da tirania.

Quanto ao rato, notamos, a princípio, que o personagem apresenta um ethos

desprezível, insignificante e miserável, porém, mais adiante, adquire um ethos de

sensatez, paciência, ponderação e prudência. O leão, por outro lado, por sua

natureza, mostra um ethos majestoso e poderoso, e, em seguida, esse ethos passa

a ser piedoso, generoso e inocente.

Um interdiscurso bastante provável está em: “Que o trabalho com paciência/

Faz mais que a força, a imprudência / Dos que em fúria sempre estão”. (ANEXO B).

Na Epístola de São Paulo aos Romanos (capítulo 12, versículo 12), lemos: “Sedes

alegres na esperança, pacientes na tribulação e perseverantes na oração”. Entende-

se esse versículo como a ação de vencer desafios e não desistir, seja qual for o

obstáculo.

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3.2.3 Versão de Millôr Fernandes

A versão de Millôr para a fábula “O Leão e o rato” está inserida no livro 100

Fábulas Fabulosas, publicado em 2005. É, em primeiro lugar, uma completa

transgressão da estrutura original das fábulas. O texto foi construído em prosa e não

é tão curto quanto as outras versões, apresentando oito parágrafos. Em sua

cenografia, o autor acrescenta elementos alheios à época em que a fábula foi criada,

conseguindo, dessa forma, diferentes ritmos no texto e muitas variações para o tema

original da fábula.

Millôr, logo no início da fábula, faz um intertexto com outra fábula, “Ândrocles

e o leão”, na qual o escravo Ândrocles tira um espinho da pata de um leão feroz, que

se torna seu amigo: “Depois que o Leão desistiu de comer o rato porque o rato

estava com um espinho no pé [...]” (ANEXO D). Isso reforça a ideia de ser o rato um

animal imundo, ainda mais com uma ferida, e confirma esse asco que se tem, em

geral, por ele, também verificado em “(ou por desprezo, mas dá no mesmo)”.

(ANEXO D).

Ainda na construção da cenografia, Millôr rompe com as expectativas do leitor

e até com o próprio gênero e se volta às questões cotidianas da época, assim,

insinua as crises sociais e econômicas pelas quais passava o Brasil e que chegaram

até as florestas sob a forma de destruição do meio ambiente, temas impedidos de

serem divulgados na época pela censura do regime militar: “E como os tempos são

tão duros nas florestas quanto nas cidades, e como a poluição já devastou até

mesmo as mais virgens das matas, eis que os dois se encontraram, em certo

momento, sem ter comido durante vários dias”. (ANEXO D).

Vemos claramente que a intenção narrativa do autor em “O Leão e o rato”

apenas parece de início ser comprometida com a verdade, mas, ao comparar seu

texto com o texto original, o leitor percebe-se, por assim dizer, enganado, e então

surge o riso:

Depois que o Leão desistiu de comer o rato porque o rato estava com espinho no pé (ou por desprezo, mas dá no mesmo), e, posteriormente, o rato, tendo encontrado o Leão envolvido numa rede de caça, roeu a rede e salvou o Leão (por gratidão ou mineirice, já que tinha que continuar a viver na mesma floresta), os dois, rato e Leão, passaram a andar sempre juntos, para estranheza dos outros habitantes da floresta (e das fábulas). (FERNANDES, 2005, p. 134).

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A técnica de trazer o humor imprevisível e inesperado para um texto em

princípio sério é recorrente na obra de Millôr. Nesse trecho da fábula, percebemos a

presença de um enunciado que aparenta não ter um encadeamento lógico, mas que

se resolve mais adiante, pois provoca no enunciatário surpresa e, por vezes, certa

confusão, que acaba por dar lugar ao riso quando o sentido do enunciado, embora

subvertido, é restaurado, isto é, quando o enunciador se refere a uma fábula bem

conhecida – “O Leão e o rato”, que, porém, é contada mesclando-se a outra história,

“Ândrocles e o Leão” (também conhecida como “O leão com o espinho no pé”).

O enunciador também acrescenta o uso de termos informais completamente

diferentes aos utilizados na fábula original, como “mineirice” – “Por gratidão ou

mineirice, já que tinha que continuar a viver na mesma floresta” – (ANEXO D), e

empresta um sabor de conversa descompromissada, além de introduzir no texto

certo regionalismo, que por sua vez remete a histórias de malandragem, nas quais

“tirar vantagem” é o principal objetivo.

No segundo parágrafo, a fala do leão “Nem mesmo uma borboleta como hors-

d’oeuvres de uma futura refeição” (ANEXO D) reflete exatamente a estratificação

social da época: uma elite bem nascida e bem educada, que ostenta seu

conhecimento e superioridade para os cidadãos de segunda classe. A analogia é

clara: o leão, majestoso e poderoso, dirigindo-se ao rato, pequeno e desprezível.

A cenografia do terceiro parágrafo mostra o leão caído no chão, fraco e

faminto, que “[...] lançou um olhar ao rato que o fez estremecer até a medula”.

(ANEXO D). Como havia dito, o leão não comera “nem uma borboleta” e olha o rato

que antes deixara escapar, sendo agora sua única opção para matar a fome. Millôr

reforma o temor do rato com um simples sinal gráfico logo depois da palavra

“amigo”: (?), mostrando a certeza do rato quanto ao risco que corria.

Millôr reforça o lado totalitário do leão, fazendo um claro paralelo com a

situação política do país. O leão é o ‘ditador das selvas’, um equivalente selvagem

dos ditadores militares da época. Na fábula, o caráter ditatorial e autocrático do leão

é reforçado pela própria grafia da palavra, com “L” maiúsculo: Leão, ao contrário do

rato, que tem sua condição subalterna também reforçada pela grafia, com “r”

minúsculo: rato.

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O autor reforça o lado sombrio do ditador – o Leão – que obriga o subalterno

– o rato – a atitudes extremas para aplacar a fúria do poderoso. Nesse sentido o rato

traz para o leão um pedaço de queijo gorgonzola, e em plena selva. Millôr destaca o

absurdo da situação, introduzindo mais um elemento humorístico por meio de um

comentário: “[...] um pedaço de queijo gorgonzola que ninguém jamais poderá

explicar onde conseguiu (fábulas!)” (ANEXO D). A exclamação ‘fábulas!’, apesar de

fazer parte do gênero, mostra que qualquer coisa, por mais fantástica que seja, pode

acontecer nas fábulas e ainda demonstra uma crítica ao próprio gênero devido à

facilidade com que situações absurdas convivem com lições de moral e ética.

O enunciador dessa fábula posiciona-se em uma cena enunciativa cuja

cenografia apresenta uma declaração sobre a época sombria que forçava os artistas

a utilizar várias formas de encobrir e disfarçar tanto as críticas sociais como as

críticas políticas em suas obras, como “Roda Viva” (1968), de Augusto Boal, no

teatro, e “Apesar de você” (1970), de Chico Buarque, na música, e mesmo “O

reizinho mandão” (1978), de Ruth Rocha, na literatura infantil. A censura foi um

instrumento muito usado pela ditadura militar, como uma forma de impedir que

certas informações chegassem ao público geral, pois informação leva ao

conhecimento, e conhecimento é poder. A censura ocorria em várias manifestações

culturais como cinema, literatura e televisão e muitos artistas foram presos ou

exilados, outros viram o seu trabalho ser cortado por ela. Apesar da censura, alguns

artistas, como os citados, conseguiram contorná-la por meio da sua criatividade e

genialidade de escrita.

Recursos linguísticos como os presentes na fábula eram necessários para

“driblar” a censura prévia, como o faziam compositores, autores teatrais e até

mesmo jornalistas, substituindo palavras e expressões potencialmente ofensivas ao

regime por alegorias ou analogia, como alguns termos encontrados na fábula de

Millôr. “Ditador das selvas” é excelente exemplo desse recurso, assim como “tempos

tão duros”, “natural prepotência”, “democrata nato”, “litígio com os súditos”.

A fábula de Millôr, por ser um gênero pertencente à esfera literária, exige um

ethos criativo e extraordinário. Para validar a sua enunciação, o enunciador deve,

por meio do seu “modo de dizer”, construir uma imagem coerente com a cena da

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enunciação que está apresentando. Ele demonstra saber tratar as palavras com

ironia, promovendo o humor.

Essas declarações a respeito da fábula indicam as intenções do enunciador-

humorista. Por se tratar de um discurso de humor com ideais políticos, o ethos

possui um tom crítico e irônico, um efeito de sentido criado pela fábula.

A cenografia, responsável pelo ethos assumido, apresenta um enunciador

que avalia, analisa e comenta metaforicamente as mudanças negativas pelas quais

passava o país: “E dividiu o queijo como o Leão queria: uma parte do rato, outra

parte do Leão. Isto é: deu o queijo todo ao Leão e ficou apenas com os buracos”.

(ANEXO D).

Tendo em vista o contexto da época, podemos compreender o valor político e

ideológico que essa fábula adquiriu, como, por exemplo, ao tratar da relação

explícita do poder com a injustiça social: a concentração de bens nas mãos de

poucos, que se vê pela partilha do queijo gorgonzola. As intervenções do enunciador

são marcadas ora por parênteses, ora por aspas, ora por interlocução direta entre

enunciador e enunciatário, construindo um novo discurso fabular, como em: (ou por

desprezo, mas dá no mesmo)/ “A amizade resistiria à fome?”/ Isto é: deu o queijo

todo ao Leão e ficou apenas com os buracos. (ANEXO D).

Assim, o enunciador reforça a carga ideológica do texto ao assumir várias

posições-sujeitos, ora simplesmente atuando na voz do enunciador-um, ora tomando

o lugar de um enunciador-dois e comentando o próprio texto por meio de inserções

pontuais, como um sinal gráfico, ou adicionando um termo chave, aparentemente,

externo ao texto:

Depois que o Leão desistiu de comer o rato porque o rato estava com espinho no pé (ou por desprezo, mas dá no mesmo), e, posteriormente, o rato, tendo encontrado o Leão envolvido numa rede de caça, roeu a rede e salvou o Leão (por gratidão ou mineirice, já que tinha que continuar a viver na mesma floresta), os dois, rato e Leão, passaram a andar sempre juntos, para estranheza dos outros habitantes da floresta (e das fábulas). (FERNANDES, 2005, p. 134).

Nesse gênero, é comum a presença de tipos estereotipados no discurso

humorístico. Por essa razão, o leão da fábula é autoritário, e o rato, covarde. Porém

outros èthé se manifestam no leão e no rato. O leão apresenta-se orgulhoso,

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raivoso, odioso, populista e bajulador (por conveniência) e prepotente. No rato,

observamos èthé de esperteza, agradecimento, dissimulação e bajulação (com o

objetivo de manter uma boa convivência), além de sorrateiro, arisco e previdente.

Na fábula, o ethos do vilão opressor é reforçado depois da partilha do queijo:

“E dividiu o queijo como o Leão queria: uma parte do rato, outra parte do Leão. Isto

é: deu o queijo todo ao Leão e ficou apenas com os buracos”. (ANEXO D). Em

seguida, o ethos do opressor fica ainda mais evidente: “Muito bem, meu amigo. Isso

é que se chama partilha. Isso é que se chama justiça”. (ANEXO D).

A amizade entre o Leão e o rato é um fato inusitado para os habitantes da

floresta e “até das fábulas” (ANEXO D), porém se caracterizava por simples

conveniência, com o objetivo de manter uma boa convivência.

Prontamente identificado como pessoas reais, que realmente detêm o poder,

o Leão é visto como um completo ditador, criando-se, dessa forma, um ethos que se

constitui e tem várias finalidades, além da mais óbvia: oprimir os mais fracos.

“O Leão e o rato” de Millôr apresenta vários interdiscursos, entre eles com o

conto popular “Ândrocles e o leão” (ou “O leão com espinho na pata”), conto

atribuído a Esopo e comparado à fábula “O Leão e o rato”, também do mesmo

fabulista. O conto “Ândrocles e o leão” apresenta uma moral sobre a reciprocidade

da misericórdia. Millôr faz referências ao conto por meio da seguinte frase: “Depois

que o Leão desistiu de comer o rato porque o rato estava com espinho no pé”.

(ANEXO D).

A fábula estabelecida pelo enunciador pode ser compreendida no contexto

político da época em que foi escrita: os anos da Ditadura Militar, e nesse

interdiscurso, como manifestação de protesto, o posicionamento do enunciador da

fábula está em oposição ao discurso desse regime que vigorava na época.

Apresenta também um interdiscurso com as sete maravilhas, as mais

famosas obras artísticas e arquitetônicas da antiguidade clássica: “- Maravilhoso,

amigo, maravilhoso! Você é uma das sete maravilhas!”. (ANEXO D). Nessa fala, o

Leão reproduz os maneirismos da maioria dos ditadores: o excesso de elogios, a

linguagem pomposa quando conveniente e a adulação de indivíduos e grupos

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alinhados com sua política. Ao comparar o rato com as sete maravilhas, o Leão faz o

jogo do tirano que recompensa o comportamento submisso com nada mais que

belas palavras. Tem-se, dessa forma, a medida exata do desequilíbrio de poder. O

Leão atribui ao rato qualidades poderosas, ainda que o rato seja, por natureza,

desprezível, em nada se comparando às sete maravilhas.

Estabelecendo uma analogia entre as sete maravilhas (1 – Pirâmide de

Quéops; 2 – Jardins suspensos da Babilônia; 3 – Estátua de Zeus em Olímpia; 4 –

Templo de Ártemis em Éfeso; 5 – Mausoléu de Halicarnasso; 6 – Colosso de Rodes;

7 – Farol de Alexandria) e o momento de produção da fábula, podemos apontar que

o Leão, como representativo do poder, do Governo Brasileiro, apresenta

características megalomaníacas, aspecto bastante criticado naquele momento,

porque surgiram no país projetos grandiosos e de alto custo, como Itaipu, a rodovia

Transamazônica e a Ponte Rio-Niterói.

O Leão, ao se intitular um “democrata nato e confirmado”, exibe um

interdiscurso político: “E como tenho receio de não resistir à minha natural

prepotência, e sendo ao mesmo tempo um democrata nato e confirmado” (ANEXO

D), apesar de se apresentar como um ditador.

Outro interdiscurso se dá com a frase atribuída a Jesus nos evangelhos

sinóticos que definia a separação entre a política (César) e a religião (Deus): “Dai a

César o que é de César e a Deus o que é de Deus”; na fábula: “A parte do rato para

o rato; para o Leão, a parte do Leão”. (ANEXO D).

Semelhante interdiscurso está na saudação “O Rei está morto. Longa vida ao

Rei!”, saudação tradicional feita na sequência da subida ao trono de um novo

monarca: “- Longa vida ao Rei Leão! Longa vida ao Rei Leão!”. (ANEXO D).

A variedade de recursos presentes nas fábulas – e na de Millôr em particular

– mostra que o gênero vai bem além do que aparenta à primeira leitura. Escrita em

tempos difíceis, “O Leão e o rato” exprime, por meio desses recursos, as condições

de opressão e medo comuns a todo cidadão.

A moral da fábula “Os ratos são iguaizinhos aos homens” (ANEXO D) tem

uma carga de humor político e social ainda mais contundente. Há certamente mais

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de uma leitura para esse enunciado; algumas evidentes, como o hábito bastante

corriqueiro para o homem comum que consiste em exaltar seu superior, visando a

alguma recompensa futura. Leitura semelhante sugerida no enunciado é a nada

elogiosa comparação de caráter: o do rato, oportunista que não se constrange em

ser bajulador, e do homem, que suporta qualquer humilhação com um sorriso no

rosto, desde que lhe sirva como meio de conseguir alguma vantagem. A moral da

fábula possibilita uma terceira leitura: um homem é comparado a um rato quando

simplesmente carece completamente de caráter. Para esse homem, tudo é permitido

e não há escrúpulos, tais como avaliar ou separar o bem do mal.

Em síntese, podemos perceber que as fábulas são meios eficazes de difundir

críticas à sociedade de sua época, principalmente por meio de animais que

personificam o bem e o mal da alma humana. As atitudes e ações das personagens

reproduzem de forma sutilmente irônica e humorística as mesmas ações e atitudes

do homem comum, seja ele rei ou camponês. As seis fábulas compartilham essas

características, principalmente o viés irônico, implícito em todas elas.

O fato de utilizar animais no lugar de pessoas é parte dessa ironia implícita.

Cada animal corresponde a um tipo humano, embora essa não seja uma regra geral.

A humanização dos animais nas fábulas é completa: o Leão e o rato pensam,

sentem, agem e falam como qualquer pessoa, o que reforça a sátira a esses

sentimentos humanos.

Importante notar que há diferenças estéticas entre as fábulas. Esopo era um

contador de histórias; suas fábulas eram transmitidas oralmente. La Fontaine as

compunha em versos de construção clássica. Millôr rompe completamente com essa

estética, escrevendo suas fábulas em prosa.

Destacamos que, na época de Esopo, praticamente não havia escrita, daí a

transmissão oral, enquanto que, no tempo de La Fontaine, apesar do cuidado na sua

produção literária, a escrita era restrita a poucos privilegiados. No período em que

Millôr atuou, porém, a escrita já era universal, e havia outras mídias, como a

televisão, jornais e revistas. Dessa forma, a difusão de suas versões alcança um

grande público, e sua mensagem política, social e humorística, longe de ser restrita

a poucos, como no caso de Esopo e La Fontaine, atinge muitos leitores.

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Em “A Galinha dos ovos de ouro”, Esopo e La Fontaine mostram que a

ambição desmedida leva ao infortúnio e à perda de tudo que foi acumulado. Millôr,

ao contrário, exalta a ambição, mostrando-a como necessária para se alcançar o

sucesso.

Apesar das condições sociais dos autores – Esopo, escravo; La Fontaine,

escritor mantido pelo mecenato; e Millôr, escritor e jornalista –, há certa semelhança

entre o contexto histórico dos três autores: eram tempos de absolutismo, escravidão

e opressão, assim os autores pesquisados viviam sob alguma forma de repressão.

Esopo e La Fontaine acrescentavam à crítica social o elogio das virtudes. Millôr, por

sua vez, dedicava-se com afinco à crítica aos poderosos, apontando seu talento

criativo não para o povo, mas ao poder, em especial às atitudes dos agentes que

manipulavam o panorama socioeconômico, cultural e político brasileiro.

Os personagens de Millôr são, muitas vezes, a personificação da ironia,

ridicularizando e menosprezando determinados modelos, modos e crenças. Sua

recriação das fábulas provoca a demolição desses valores, tornando-os grotescos e

carentes de sentido moral. Em “O Leão e o rato”, esses elementos são recorrentes,

como na fala supostamente democrática do Leão: “Quando eu voltar ao poder

entregarei sempre a você a partilha dos bens que me couberem no litígio com os

súditos”. (ANEXO D). Em resumo, o Leão promete compartilhar bens surrupiados

dos cidadãos; em outro trecho, o Leão admite ser um rematado ditador: “[...] e como

tenho receio de não resistir à minha natural prepotência [...]”. (ANEXO D).

La Fontaine e Esopo, por outro lado, mostram temperamentos,

comportamentos e personalidades mais ou menos lineares, que raramente se

excedem e, quase sempre, mostram-se sem disfarces, ora sendo muito bons, ora

muito maus, sem exageros.

Nesse sentido, Esopo transmitia conselhos aos seus ouvintes, como meio de

aprendizagem e de reflexão sobre as ações cometidas, ou ainda como forma de

evitar que se cometessem atitudes que não estavam de acordo com os preceitos

morais vigentes. Por ter sido escravo, podemos atribuir a seus personagens certo ar

desafiador, como o rato de O Leão e o Rato, que “[...] foi passear sobre um leão

adormecido”. (ANEXO A). Notamos uma atitude temerária de um animal inferior

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quando comparado ao leão, que encontra uma solução inteligente para a situação

grave em que se encontra.

Já La Fontaine criava suas fábulas para entreter a nobreza e divulgar seus

valores, embora houvesse resquícios de uma oposição às questões políticas da

época. Sua atividade literária se caracterizou como um registro de costumes, de

relações sociais entre os homens de seu tempo. O autor lapidava a forma estrutural

da narrativa para que a lição de moral ficasse inserida nas entrelinhas de forma que

ele não se expusesse.

Não há, no texto desses autores, menções diretas a qualquer posicionamento

ideológico, embora o tom irônico deixe clara a ideia geral de posições sociais bem

definidas, o que talvez agradasse o público de La Fontaine, para quem a

estratificação social rígida e inabalável era um valor a ser cuidadosamente cultivado.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Há inúmeras relações entre as fábulas de Esopo, La Fontaine e Millôr. Essas

relações não sofrem qualquer descontinuidade devido ao lapso de tempo entre o

original e o atual. Ao contrário, os elementos básicos das fábulas, como

personagens e situações, são sempre preservados, exatamente por serem

universais e perenes.

Essas relações, porém, são atualizadas por Millôr, o fabulista moderno.

Embora os personagens sejam os mesmos, suas características são modificadas, e

seu espírito é transportado para o século moderno, de forma que agem, pensam e

atuam como qualquer indivíduo cujos princípios e ideais são os mesmos daqueles

que os cercam e alinhados com seu tempo.

Levando-se em consideração os aspectos de tempo e de espaço das fábulas,

nota-se que o contexto das fábulas de Millôr ultrapassa em muito a questão

socioeconômica, uma vez que na época da criação das fábulas originais os regimes

políticos não tinham muita preocupação com o bem-estar do cidadão e, de modo

geral, não toleravam críticas. Por essa razão, o elemento político das fábulas era

sutil e diluído no texto, dando-se ênfase à questão moral, de forma que a história

fosse considerada apenas como exemplo de comportamentos socialmente

aceitáveis.

As versões de Millôr para as fábulas são completamente isentas da obrigação

de dourar o aspecto político e social, mas, em razão da repressão política e da

censura da época, crítica social e política eram implicitamente encaixadas no texto e

acrescidas de uma crítica bem humorada do caráter dúbio do homem comum. O

efeito cômico dessa construção bem planejada é imediato, tornando o leitor uma

espécie de cúmplice do autor.

O autor da versão moderna de uma história de alguns séculos deve

inicialmente considerar que as fábulas em geral contam histórias universais, isto é,

tratam de temas comuns em qualquer época, como ética, moral, caráter e

comportamento social.

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As fábulas de Millôr contêm esses mesmos elementos moralizantes, mas o

autor os desconstrói, transformando, por exemplo, o ethos do dono da Galinha, em

A Galinha dos ovos de ouro, de ingênuo e ganancioso, em pessoa oportunista,

embora ainda gananciosa, que vê em uma situação desanimadora uma

oportunidade de obter fama e fortuna.

A cenografia dessa mesma fábula é trazida para a época atual com

elementos de modernidade, como a mídia sempre sedenta de novidades imediatas e

sensacionalismo.

As personagens das fábulas originais, em geral, são apenas símbolos, sem

muita profundidade, mas na versão moderna adquirem traços igualmente modernos,

mais completos com respeito ao caráter, como a tendência à adulação para obter

benesses dos poderosos, que se vê no rato de “O Leão e o Rato”, ou no próprio

leão, transformado de rei dos animais da fábula original em ditador feroz que se

autoproclama democrata.

Igual transformação sofre a galinha, de “A Galinha dos Ovos de Ouro”. Em

Esopo e La Fontaine, a galinha nada mais é do que simples animal doméstico, um

meio de subsistência do proprietário. Em Millôr, o animal adquire status de

celebridade, posando para grandes publicações e ganhando fama nacional.

Dessa forma, o fabulista moderno desconstrói o modelo original e o reconstrói

de acordo com o tempo e espaço atuais, quer seja por usar a ironia como recurso

tanto para criticar a sociedade, como para estabelecer uma conexão com o

coenunciador, quer seja por acrescentar ou retirar defeitos e qualidades dos

personagens de forma a transformá-lo em homem comum, com o qual o leitor

imediatamente se identifica.

Elemento de grande importância das fábulas é o discurso moralizante. O

objetivo do fabulista não é apenas entreter, mas transmitir lições edificantes, que

incluem certo incentivo ao conformismo, seja com a condição social, seja com a

relação de subordinação às autoridades e aos poderosos.

O fabulista moderno desconsidera totalmente o discurso moralizante,

substituindo-o por relações interdiscursivas que remetem a questões mais

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concretas, diferentemente das mensagens edificantes dos fabulistas originais. Em “A

Galinha dos Ovos de Ouro”, o interdiscurso de Esopo e La Fontaine pode ser

resumido em uma relação direta a provérbios e ditos populares que condenam a

ganância e a ambição desmedida. Em Millôr, o interdiscurso aponta na direção de

regras oficiosas que povoam a mentalidade do homem comum: levar vantagem

sempre, aproveitar as oportunidades para levar vantagem a qualquer custo.

Da mesma forma, o interdiscurso presente em “O Leão e o Rato”, que remete

a ditos populares e provérbios como “Fazer o bem sem olhar a quem”, ou “Amor com

amor se paga”, é totalmente desconstruído por Millôr, que transforma a moral

edificante da fábula em crítica mordaz ao homem subalterno por escolha própria,

que não se importa em se diminuir para exaltar o poderoso.

Fábulas tradicionais e fábulas modernas são ricas fontes de análises

discursivas, que não se esgotam dadas às múltiplas facetas que apresentam.

Personagens, situações, ensinamentos e mensagens implícitas e explícitas formam

generoso e diverso material para reflexão, uma vez que essas mesmas mensagens

e ensinamentos são sempre atuais, ainda que enunciadores e enunciatários vivam a

plena modernidade e projetem seu discurso para o presente.

A razão e o espírito humano são, em alguns aspectos, imutáveis, e esses

aspectos estão presentes tanto nas fábulas de séculos atrás como no discurso

cotidiano do homem do século XXI.

A universalidade das fábulas pode também ser atribuída ao seu caráter

francamente ideológico. Percebemos que nas propostas analisadas encontramos

diversos traços ideológicos humanos que são parte do caráter de cada personagem.

Em “A Galinha dos Ovos de Ouro”, La Fontaine e Esopo mostram uma

galinha que é símbolo da ambição humana e representa o povo, que, por sua vez,

serve um mandatário poderoso e opressor. Essa opressão política e social impede o

povo de realizar seus mais básicos anseios, pois a moral da fábula sugere um

posicionamento conformista e indica que a transgressão será punida.

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Percebemos que La Fontaine e Esopo promovem a prática da distinção clara

e consciente entre virtude e vício, bem e mal, fazendo com que o enunciatário seja

constantemente confrontado com essas dualidades.

Na fábula de Millôr Fernandes, a Galinha também representa a ambição,

porém, nesse caso, há sucesso, sucesso conquistado a qualquer preço. Dessa

forma, o dono não mede esforços para alcançar a fama e a fortuna, ainda que estes

durem pouco. Subvertendo o sentido primeiro, fortuna e fama são mais prováveis de

serem conquistados por meio da mídia, mais especificamente pela televisão, que em

parceria com instituições governamentais aliena o povo pela manipulação feita pela

censura.

O homem ignora as consequências dos meios utilizados para chegar ao topo

e tira proveito até mesmo dos fracassos. Se nas fábulas tradicionais o homem é

punido, na subversão moderna ele é recompensado. O homem comum se vale do

“jeitinho brasileiro” como alavanca para atingir o sucesso.

Em o “Leão e o Rato”, nas três versões, percebemos a ideologia de um povo

submisso – o rato – versus um governo poderoso – o Leão.

Devido ao caráter moralizante da fábula, a submissão ao poder é o aspecto

ideológico principal nas versões de La Fontaine e Esopo. Há, todavia, forte

similaridade entre os dois autores, embora haja entre os dois um hiato temporal. O

povo iletrado, ignorante e sem qualquer direito percebia nas fábulas a necessidade

de manter o seu conformismo. Ainda que empobrecido pelos impostos e pela falta

de oportunidades, o povo tinha que, por obrigação, ter apresso aos seus senhores

como forma de autopreservação. Deveriam enriquecer esses senhores da única

forma que podiam: com sua força de trabalho.

Millôr Fernandes inscreve em suas fábulas uma posição social totalmente

diversa daquela de Esopo e La Fontaine, transformando os personagens em

grandes malandros, porém ainda oprimidos por uma sucessão de governos

autoritários.

Em “O Leão e o rato”, vê-se a ideologia dos interesses escusos, da

conivência, do apadrinhamento e de atos e atitudes que ignoram escrúpulos para

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alcançar o sucesso, sem dar atenção a qualquer freio moral ou ético. Na fábula, o

rato é uma representação do povo manipulado e reprimido, mas que, apesar dessas

condições, vende-se por qualquer preço e toma atitudes moralmente questionáveis

para alcançar suas metas.

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ANEXO A – TEXTOS FONTE – FÁBULAS DE ESOPO

1.1 A Galinha dos Ovos de Ouro

Um homem tinha uma galinha que punha ovos de ouro. Achando que dentro

dela era só ouro, matou-a, mas não encontrou nada de diferente das outras

galinhas. Assim, em vez de descobrir o enorme tesouro que esperava, perdeu até o

pequeno lucro que ela lhe dava.

Moral: Cuidado com a ambição. Contenta-te com o que já tens.

1.2 O Leão e o Rato

Um rato foi passear sobre um leão adormecido. Quando este acordou, pegou

o rato. Já estava para devorá-lo quando o rato, em um gesto de desespero, pediu ao

leão para que o deixasse ir embora:

- Se me poupares - disse o rato -, te serei útil.

E o leão, achando graça naquilo, soltou-o. Tempos depois o leão ficou preso

em uma rede de caçadores. O rato ouviu seus rugidos de raiva, foi até lá, roeu as

cordas e o libertou. E disse ao leão:

- Naquele dia zombaste de mim. Aprende então que até entre os ratos

também se encontra gratidão.

Moral: uma boa ação ganha outra.

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ANEXO B – TEXTOS ORIGINAIS DE LA FONTAINE

2.1 La Poule aux oeufs d'or

L'avarice perd tout en voulant tout gagner.

Je ne veux, pour le témoigner,

Que celui dont la Poule, à ce que dit la Fable,

Pondait tous les jours un oeuf d'or.

Il crut que dans son corps elle avait un trésor.

Il la tua, l'ouvrit, et la trouva semblable

A celles dont les oeufs ne lui rapportaient rien,

S'étant lui-même ôté le plus beau de son bien.

Belle leçon pour les gens chiches:

Pendant ces derniers temps, combien en a-t-on vus

Qui du soir au matin sont pauvres devenus

Pour vouloir trop tôt être riches?

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2.2 Le Lion et le Rat

Il faut, autant qu'on peut, obliger tout le monde:

On a souvent besoin d'un plus petit que soi.

De cette vérité deux Fables feront foi,

Tant la chose en preuves abonde.

Entre les pattes d'un Lion

Un Rat sortit de terre assez à l'étourdie.

Le Roi des animaux, en cette occasion,

Montra ce qu'il était, et lui donna la vie.

Ce bienfait ne fut pas perdu.

Quelqu'un aurait-il jamais cru

Qu'un Lion d'un Rat eût affaire?

Cependant il advint qu'au sortir des forêts

Ce Lion fut pris dans des rets,

Dont ses rugissements ne le purent défaire.

Sire Rat accourut, et fit tant par ses dents

Qu'une maille rongée emporta tout l'ouvrage.

Patience et longueur de temps

Font plus que force ni que rage.

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ANEXO C – TRADUÇÕES DAS FÁBULAS DE LA FONTAINE DE

CURVO SEMMEDO

3.1 A GALINHA QUE PUNHA OVOS DE OURO Um homem tinha

Uma galinha,

Que Juno bela

Por desenfado

Tinha fadado

Vivia ela

Dentro dum covo,

E punha um ôvo

D’ouro luzente

Em cada um dia,

Que valeria

Seguramente

Dobrão e meio;

Mas o patrão

Um dia cheio

D’ímpia ambição

Foi-se à galinha

E degolou-a.

Examinou-a;

Porque supunha

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Que em si continha

Rico tesouro,

Visto que punha

Os ovos de ouro;

Mas nada achou!

E por avaro

Se despojou

Do rico amparo

Que nela tinha.

Outra galinha

Jamais topou

Com tal condão;

E assim pagou

Sua ambição.

(Tradução CURVO SEMMEDO)

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3.2 O LEÃO O E RATO

Saiu da toca aturdido

Daninho pequeno rato,

E foi cair insensato

Entre as garras de um leão,

Eis o monarca das feras

Lhe concedeu liberdade

Ou por ter dele piedade,

Ou por não ter fome então.

Mas essa beneficência

Foi bem paga, e quem diria

Que o rei das feras teria

Dum vil rato precisão!

Pois que uma vez indo entrando

Por uma selva frondosa,

Caiu em rêde enganosa,

Sem conhecer a traição.

Rugidos, esforços, tudo

Balda sem poder fugir-lhe;

Mas vem o rato acudir-lhe

E entra a roer-lhe a prisão.

Rompe com seus finos dentes

Primeira e segunda malha;

E tanto depois trabalha,

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Que as mais também rôtas são.

O seu benfeitor liberta,

Uma dívida pagando,

E assim à gente ensinando

De ser grato a obrigação.

Também mostra aos insofridos,

Que o trabalho com paciência

Faz mais que a força, a imprudência

Dos que em fúria sempre estão.

(Tradução CURVO SEMMEDO)

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ANEXO D – TEXTOS USADOS DAS FÁBULAS FABULOSAS DE

MILLÔR FERNANDES

4.1 A Galinha dos ovos de ouro

Era uma vez um homem que tinha uma Galinha. Subitamente, em dia

inesperado, a Galinha pôs um ovo de ouro. Ouro! Outro dia, outro ovo. Outro ovo de

ouro! O homem mal podia dormir. Esperava todas as manhãs pelo ovo de ouro –

clara, gema, gala, tudo de ouro! – que o tirava da miséria aos poucos, e aos poucos

o ia guindando ao milionarismo. O fato, que antigamente poderia passar

despercebido, na data de hoje atraía verdadeiras multidões. E não só multidões.

Rádios, jornais, televisão, tudo entrevistava o homem, pedindo-lhe impressões,

querendo saber detalhes de como acontecera o espantoso acontecimento. E a

Galinha, também, ia dando aqui e ali seus shows diante dos jornais, câmaras,

microfones. Certa vez até, num esforço de reportagem, conseguiu pôr um ovo diante

da câmara da TV Tupi. Porém o tempo passou e muito antes que o homem

conseguisse ficar rico, a Galinha deixou de botar ovos de ouro. Desesperado, o

homem foi ocultando o fato, até que, certo dia, não se contendo mais abriu a galinha

para apanhar os ovos que ela tivesse lá dentro. Para sua decepção não havia mais

nenhum.

Então o homem – espírito bem moderno – resolveu explorar o nome que lhe

ficara do acontecimento e abriu um enorme restaurante, com o sugestivo nome de

Aos Ovos de Ouro. E isso lhe deu muito mais dinheiro do que a galinha

propriamente dita.

Moral: cria galinhas e deita-te no ninho.

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4.2 O Leão e o rato

Depois que o Leão desistiu de comer o rato porque o rato estava com espinho

no pé (ou por desprezo, mas dá no mesmo), e, posteriormente, o rato, tendo

encontrado o Leão envolvido numa rede de caça, roeu a rede e salvou o Leão (por

gratidão ou mineirice, já que tinha que continuar a viver na mesma floresta), os dois,

rato e Leão, passaram a andar sempre juntos, para estranheza dos outros

habitantes da floresta (e das fábulas). E como os tempos são tão duros nas florestas

quanto nas cidades, e como a poluição já devastou até mesmo as mais virgens das

matas, eis que os dois se encontraram, em certo momento, sem ter comido durante

vários dias. Disse o Leão:

- Nem um boi. Nem ao menos uma paca. Nem sequer uma lebre. Nem

mesmo uma borboleta, como hors-d'oeuvres de uma futura refeição.

Caiu estatelado no chão, irado ao mais fundo de sua alma leonina. E, do chão

onde estava, lançou um olhar ao rato que o fez estremecer até a medula. "A

amizade resistiria à fome?" - pensou ele. E, sem ousar responder à própria pergunta,

esgueirou-se pé ante pé e sumiu da frente do amigo(?) faminto. Sumiu durante muito

tempo. Quando voltou, o Leão passeava em círculos, deitando fogo pelas narinas,

com ódio da humanidade. Mas o rato vinha com algo capaz de aplacar a fome do

ditador das selvas: um enorme pedaço de queijo Gorgonzola que ninguém jamais

poderá explicar onde conseguiu (fábulas!). O Leão, ao ver o queijo, embora não

fosse um animal queijífero, lambeu os beiços e exclamou:

- Maravilhoso, amigo, maravilhoso! Você é uma das sete maravilhas!

Comamos, comamos! Mas, antes, vamos repartir o queijo com equanimidade. E

como tenho receio de não resistir à minha natural prepotência, e sendo ao mesmo

tempo um democrata nato e confirmado, deixo a você a tarefa ingrata de controlar o

queijo com seus próprios e famélicos instintos. Vamos, divida você, meu irmão! A

parte do rato para o rato; para o Leão, a parte do Leão.

A expressão ainda não existia naquela época, mas o rato percebeu que ela

passaria a ter uma validade que os tempos não mais apagariam. E dividiu o queijo

como o Leão queria: uma parte do rato, outra parte do Leão. Isto é: deu o queijo

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todo ao Leão e ficou apenas com os buracos. O Leão segurou com as patas o queijo

todo e abocanhou um pedaço enorme, não sem antes elogiar o rato pelo seu alto

critério:

- Muito bem, meu amigo. Isso é que se chama partilha, Isso é que se chama

justiça. Quando eu voltar ao poder, entregarei sempre a você a partilha dos bens

que me couberem no litígio com os súditos. Você é um verdadeiro e egrégio

meritíssimo! Não vai se arrepender!

O ratinho, morto de fome, riu o riso menos amarelo que podia, e ainda lambeu

o ar para o Leão pensar que lambia os buracos de queijo. E enquanto lambia o ar,

gritava, no mais forte que podiam seus fracos pulmões:

- Longa vida ao Rei Leão! Longa vida ao Rei Leão!

Moral: os ratos são iguaizinhos aos homens.