128
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E ENSINO DE PÓS-GRADUAÇÃO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS CAMPUS I- SALVADOR / BAHIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS NERIVALDO ALVES ARAÚJO NAVEGANDO NAS MARGENS: NARRATIVAS ORAIS DO VELHO CHICO Salvador 2010

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E ENSINO DE PÓS-GRADUAÇÃO

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS I-

SALVADOR / BAHIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS

NERIVALDO ALVES ARAÚJO

NAVEGANDO NAS MARGENS: NARRATIVAS ORAIS DO

VELHO CHICO

Salvador

2010

Page 2: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

1

NERIVALDO ALVES ARAÚJO

NAVEGANDO NAS MARGENS: NARRATIVAS ORAIS DO

VELHO CHICO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Estudo de Linguagens da

Universidade do Estado da Bahia, como

requisito para obtenção de grau de Mestre em

Estudo de Linguagens.

Orientadora: Profa. Dra. Edil Silva Costa

Salvador

2010

Page 3: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

2

TERMO DE APROVAÇÃO

NERIVALDO ALVES ARAÚJO

NAVEGANDO NAS MARGENS: NARRATIVAS ORAIS DO

VELHO CHICO

Dissertação aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Estudo de

Linguagens, Universidade do Estado da Bahia, pela seguinte banca examinadora:

Alvanita Almeida Santos ______________________________________________________

Doutora em Letras e Linguística, Universidade Federal da Bahia, UFBA, Brasil

Universidade Federal da Bahia

Edil Siva Costa – Orientadora ___________________________________________________

Doutora em Comunicação e Semiótica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

PUC/SP, Brasil

Universidade do Estado da Bahia

Silvio Roberto dos Santos Oliveira _______________________________________________

Doutor em Teoria e História Literária, Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP,

Brasil

Universidade do Estado da Bahia

Salvador, 29 de março de 2010.

Page 4: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

3

À Cida Sodré, com carinho e gratidão por sua presença e incansável apoio ao longo de todo o

período de realização dos estudos e elaboração deste trabalho.

Page 5: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

4

AGRADECIMENTOS

Neste momento, direciono meus agradecimentos a todas as pessoas e às instituições que

contribuíram para a realização desta viagem pelas margens literárias do Velho Chico;

presenças essenciais para a concretização deste trabalho. Sem a preciosa contribuição delas,

não o teria concluído com êxito. Muito obrigado por me possibilitarem viver esta experiência

tão enriquecedora e gratificante, ponto fundamental ao meu crescimento como ser humano e

como profissional.

Inicialmente, agradeço a Deus, por ter me concedido sabedoria, saúde e forças para lutar pela

realização do sonho de ser mestre; e humildade para reconhecer não só as minhas

imperfeições e limitações, mas o quanto meu conhecimento é pequeno diante da imensidão do

universo.

À professora Edil Costa, minha orientadora e presença decisiva durante esta viagem para o

enriquecimento da minha trajetória profissional. Agradeço por ter acreditado em mim, pela

acolhida e pela sua extrema atenção e carinho, além das suas palavras de confiança e

otimismo, fazendo-me desejar, e cada vez mais ir ao encontro de novos conhecimentos para

que pudesse estar à altura de suas expectativas. Agradeço também pela disponibilidade, pelas

críticas, sugestões, enfim, por todas as suas tão sábias, competentes e cuidadosas palavras

proferidas durante a nossa convivência no Mestrado, sem esquecer a tranquilidade que sempre

me transmitia em nossas conversas.

A Cida Sodré, pela presença constante nesta caminhada e por toda a ajuda que me

proporcionou nos momentos mais difíceis. Muito obrigado por tudo. A Gabriela Sodré, pelo

apoio manifestado e acolhimento em seu apartamento.

Aos meus pais e à minha família, agradeço pelo apoio e confiança, desde o primeiro momento

da aprovação na seleção e por compartilharem comigo a minha alegria.

À minha irmã Micaele e ao meu cunhado Robério, pela disponibilização do seu apartamento

durante o tempo em que necessitei residir em Salvador, à minha amiga Sidney, à minha tia

Page 6: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

5

Dilma e à minha prima Valéria, pela acolhida nas idas a Salvador para as aulas como aluno

especial e durante o processo seletivo.

Aos meus amigos, que sempre acreditaram e torceram pelo meu sucesso, compreenderam as

minhas ausências e sempre estiveram dispostos a atender aos meus apelos.

Aos meus companheiros de caminhada: Alisson, Edicarlos, Eliane, Eumara, João Neto e

Marquileide, por todo o apoio durante a pesquisa de campo, principalmente nas gravações e

fotografias.

À Universidade do Estado da Bahia (UNEB), por meio do Departamento de Ciências

Humanas e Tecnologias (Campus XXIV) de Xique-Xique. Agradeço a João Rocha, diretor do

Departamento, pela parceria e colaboração; aos funcionários, pelos gestos de solicitude e

compreensão; e aos colegas de trabalho, pelos momentos inesquecíveis de troca, interação e

palavras de incentivo e confiança, além da disponibilização de referencial teórico.

À Secretaria de Educação do Estado da Bahia (SEC), pelo afastamento concedido durante o

período do Mestrado, e aos colegas do Colégio Estadual Professora Aydil Lima dos Santos

que desejaram o meu sucesso e contribuíram, direta ou mesmo indiretamente, para a

realização deste trabalho, especialmente ao diretor e amigo Nilton Guimarães, pela

compreensão nos momentos em que precisei me ausentar.

Aos meus colegas de turma do PPGEL (Programa de Pós-Graduação em Estudo de

Linguagens - UNEB), com os quais pude compartilhar grandes momentos de troca de

conhecimentos, pelas sugestões, companheirismo e apoio na realização das atividades.

À minha colega e amiga Lise Arruda, companheira de jornada, pela presença constante,

torcida, incentivo, apoio e material disponibilizado.

A todos os meus professores do Programa, pelas preciosas colaborações, através das

contribuições teóricas necessárias ao amadurecimento intelectual das ideias aqui defendidas; e

a Camila e Danilo, funcionários, sempre dispostos a nos ajudar, fazendo o possível para

facilitar a nossa vida acadêmica.

Page 7: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

6

À professora Alvanita Santos e ao professor Silvio Roberto Oliveira, por terem aceito o

convite para integrar a banca avaliadora, demonstrando muita atenção e companheirismo; e

pela pertinência de suas colocações e sugestões por ocasião da qualificação e da defesa.

À professora Mariza Sodré, pela ajuda nas correções ortográficas.

Ao meu colega Paulo Esteves, pela ajuda com as traduções.

Agradeço também aos meus colegas e amigos Andréa Betânia, Crizeide, Ilmara Valois,

Jacimara, João Neto e José Henrique, pelo incentivo e apoio com a disponibilização de livros

e outros suportes teóricos.

E por fim, às minhas narradoras e narradores, pelas suas narrativas encantadoras e fantásticas,

sem as quais eu não conseguiria alcançar o sucesso na realização deste trabalho. Agradeço a

disponibilidade, a solicitude, o acolhimento e, sobretudo, a generosidade ao compartilhar o

acervo oral de sua memória cultural.

Page 8: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

7

Este jeito

de contar as coisas

à maneira simples das profecias

- Karingana ua Karingana

é que faz a arte sentir

o pássaro da poesia.

E nem

de outra forma se inventa

o que é dos poetas

nem se transforma

a visão do impossível

em sonho do que pode ser.

-Karingana!

(José Craveirinha, 1974)

Page 9: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

8

RESUMO

Este trabalho é resultado de um estudo sobre as narrativas orais dos povos ribeirinhos da

região da Ilha do Miradouro e Mocambo dos Ventos, uma comunidade formada por

remanescentes de quilombo, situada às margens do Rio São Francisco, na região de Barra e

Xique-Xique, Estado da Bahia. Tem por objetivo investigar a construção da identidade

cultural a partir da análise de suas narrativas orais, buscando destacar o papel dessas

narrativas na consolidação da memória cultural, as suas formas de transmissão e de recepção,

ressaltando as suas principais marcas culturais, dentre elas a afrodescendência. Nele,

procurou-se discutir a identidade cultural a partir de uma visão centrada no multiculturalismo,

na incompletude e nas relações com o outro, além de estabelecer um diálogo entre literatura e

identidades. Para tanto, empreendeu-se a análise do corpus composto por cinco narrativas

orais, que foram gravadas, transcritas e adaptadas, a saber: “A Serpente da Ilha do

Miradouro”, “O Nego d‟Água”, “A Mãe d‟Água”, “O Arco-íris” e “O Rio que Dorme”. Com

o intuito de atingir os objetivos colimados, utilizaram-se, como fundamentação, os

pressupostos teóricos trazidos por Alcoforado (1990, 2008), Bauman (2005), Bernd (2002,

2003), Bhabha (2003), Burke (2006), Canclini (2006), Cascudo (2006, 2008), Hall (2000), Le

Goff (1996), Meihy (2005), Ortiz (2003) e Zumthor (1993, 1997, 2007), dentre outros. Trata-

se de uma pesquisa qualitativa de cunho etnográfico, na qual se procurou desenvolver uma

relação estabelecida no processo de construção de sentidos, em que o pesquisador e demais

participantes estão envolvidos. A análise empreendida sobre as narrativas orais revelou uma

identidade cultural ribeirinha em estado de movência, que apresenta marcas das principais

matrizes culturais brasileiras: indígena, portuguesa e africana. São identidades líquidas,

produtos de uma hibridização permanente, construídas a partir da interação entre os sujeitos

que navegam nas margens, num processo perene de autoconstrução identitária, em busca de

um reconhecimento cultural, de um porto possível.

Palavras-chave: Identidade cultural. Narrativas orais. Multiculturalismo. Hibridização.

Afrodescendência.

Page 10: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

9

ABSTRACT

This work results from a study about oral narratives of rivershore peoples from Miradouro

island and Mocambo dos Ventos, a community made of quilombolas, along São Francisco

River in Barra and Xique-Xique towns, in the state of Bahia. It aims to investigate the

construction of cultural identity from analyzing its oral narratives, highlighting the role of

these narratives in the consolidation of cultural memory, their way of transmission and

reception, focusing their main cultural marks such as the African origin. In this work, it was

discussed cultural identity from multiculturalism in the incompleteness and in the

relationships to other subjects. It also promotes a dialogue between literature and identities.

So it was analyzed a corpus made of five oral narratives, that were recorded, transcribed and

adapted: “A Serpente da Ilha do Miradouro”, “O Nego d‟Água”, “A Mãe d‟Água, “O Arco-

íris” e “O Rio que Dorme”. In order to fulfill the proposed objectives, it were used, as

theoretical perspective, the works by Alcoforado (1990, 2008), Bauman (2005), Bernd (2002,

2003), Bhabha (2003), Burke (2006), Canclini (2006), Cascudo (2006, 2008), Hall (2000), Le

Goff (1996), Meihy (2005), Ortiz (2003) e Zumthor (1993, 1997, 2007), among other authors.

It is a qualitative research with an ethnographic character which was intended to develop a

relationship set up in the process of meaning construction that researcher and informants are

involved in. The analysis about the oral narratives showed a rivershore cultural identity in a

moving state that presents marks of the main Brazilian cultural matrices: Indigenous,

Portuguese and African. They are liquid identities, products of a permanent hybridization,

built from the interaction between the subjects that sail on the shore, in an endless process of

identity selfconstruction looking for a cultural recognition, from a possible harbor.

Keywords: Cultural identity. Oral narratives. Multiculturalism. Hybridization. African

origins.

Page 11: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

10

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO

1.1 O ESTUDO: PRIMEIRAS REMADAS

1.2 DOS LIVROS AO LEITO DO RIO E À CAMINHADA NA AREIA:

PERCURSOS METODOLÓGICOS

1.3 DELINEANDO O CORPO DO TRABALHO

2 RETRATOS AO VENTO: BELEZA E ENCANTAMENTO RUMO À ILHA

DO MIRADOURO E MOCAMBO DOS VENTOS

2.1 PRIMEIRAS REMADAS EM BUSCA DAS NARRATIVAS

2.2 APORTANDO NA ILHA DO MIRADOURO

2.3 A CIDADE DA BARRA: HISTÓRIA, COLONIZAÇÃO E POVOAMENTO DA

REGIÃO

2.4 UM MOCAMBO AO SABOR DOS VENTOS: CONTEXTUALIZAÇÃO

3 LITERATURA ORAL: SAINDO DAS MARGENS, RESSIGNIFICANDO AS

FRONTEIRAS

3.1 O MULTICULTURALISMO COMO MARCA DAS NARRATIVAS ORAIS

3.2 LITERATURA E IDENTIDADES: DISCUTINDO CONCEITOS

3.2.1 Identidade: um conceito em construção

3.2.2 Cultura afrodescendente: firmando identidades

3.2.3 Hibridismo cultural e identidades líquidas

3.2.4 A identidade e os meios de comunicação de massa

3.2.5 Representação de identidades nas narrativas orais

3.3 O CORPO E A VOZ NA ARTE DE CONTAR AS NARRATIVAS ORAIS DO

VELHO CHICO

3.3.1 As narrativas orais e o testemunho

3.3.2 Braços e mãos como pincéis das narrativas

3.3.3 O ato de narrar: ser mulher, ser negra

3.4 O LUGAR SOCIAL E A RECEPÇÃO DAS NARRATIVAS ORAIS NO

COTIDIANO RIBEIRINHO

12

12

17

21

25

25

26

28

29

43

48

51

51

53

58

59

62

64

66

68

71

75

Page 12: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

11

4 TRADIÇÃO ORAL ÀS MARGENS DO VELHO CHICO: UM PASSEIO

PELAS NARRATIVAS

4.1 “A SERPENTE DA ILHA DO MIRADOURO”: MARCAS IDEOLÓGICAS NA

LITERATURA ORAL RIBEIRINHA

4.1.1 A simbologia da serpente e da água

4.1.2 Outras considerações sobre a narrativa

4.2 O NEGO D‟ÁGUA

4.3 A MÃE D‟ÁGUA

4.4 O ARCO-ÍRIS

4.5 O RIO QUE DORME

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: ENTRE AS MARGENS E UM PORTO

POSSÍVEL

REFERÊNCIAS

83

84

91

93

94

97

100

104

107

111

ANEXOS 117

Page 13: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

12

1 INTRODUÇÃO

Gosto de contá história [...] Qualqué história eu gosto de contá.

Se é um caso alegre, de brincá com os otro, eu vô contano e vô rino.

Se é história de sofrimento, eu vô falano,

o coração vai doeno e tem vez que dá choro.

Aí nós chora junto e lembra tudo de difici que nós passô.

É um choro manso, uma chuva fininha...

(Clóvis Barbosa, 1992)

1.1 O ESTUDO: PRIMEIRAS REMADAS

O trabalho, ora apresentado, está vinculado ao Programa de Pós-Graduação em

Estudo de Linguagens da Universidade do Estado da Bahia e tem, por objetivo, investigar a

construção da identidade cultural1 dos povos ribeirinhos, a partir da análise de suas narrativas

orais, buscando destacar o papel destas narrativas na consolidação da memória cultural, as

suas formas de transmissão e de recepção, ressaltando as suas principais marcas ideológicas.

Ampara-se inicialmente em reflexões contemporâneas acerca da cultura popular,

da literatura oral e suas relações estabelecidas com o processo de construção da identidade,

especificamente a dos povos da Ilha do Miradouro e do Mocambo dos Ventos, nas margens

do Velho Chico, na região de Barra e Xique-Xique, Estado da Bahia. As narrativas orais

desses lugares constituem-se em elemento fundamental para a compreensão do processo de

consolidação da memória cultural ribeirinha, uma vez que são reveladoras do imaginário

local.

A realidade brasileira aponta, em sua história, para a valorização de uma cultura

dominante, de base eurocêntrica, que negava a diversidade de um país multicultural. Hoje,

tanto no Brasil, como em outras nações, há um grande interesse pela busca das

particularidades e o senso de diferença vem se intensificando a cada momento. Diante disso,

torna-se mister salientar que tem havido uma crescente problematização das diferenças

culturais e étnicas, próprias do Brasil e que as múltiplas faces, desfavorecidas e suprimidas

por uma visão tradicional e elitista tendem a se descortinar, pois verdadeiramente

desempenham um papel extremamente relevante na elaboração da consciência nacional.

1 “Identidade” compreendida, de acordo com Hall (2000, p. 13) como “[...] uma celebração móvel: formada e

transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpolados nos sistemas

culturais que nos rodeiam”. O termo será retomado em discussão posterior.

Page 14: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

13

A literatura oral, em muitas circunstâncias, não vinha recebendo a devida

importância para a compreensão da formação da identidade nacional, mas atualmente, isso

tem sido revisto por muitos. Conforme aponta Meihy (2005), ela pode ser vista como um

manancial que se constitui em base da organização cultural de um grupo que, sem isso, não

teria garantida parte relevante de sua identidade.

A literatura oral é considerada por Meihy (2005, p. 22), como “todas as narrativas

transmitidas oralmente e com estrutura de conto, poesia, „causos‟2 não escritos e mantidos na

tradição3 popular.” As narrativas orais de um povo trazem consigo, elementos capazes de

proporcionar o entendimento da sua cultura. Dessa forma, pode-se então considerar, que a

construção da identidade cultural desses povos ribeirinhos se sustenta nas suas narrativas

orais, sendo o seu estudo, um dos caminhos para o entendimento de uma cultura popular

reconhecida e respeitada, tornando-se capaz de sobressair-se das margens literárias e integrar-

se à cultura nacional.

Neste sentido, as margens literárias aparecem como lugar a que estão destinadas

as manifestações literárias orais, as quais não apresentam os padrões estéticos e ideológicos

exigidos pelo cânone literário, que, segundo Reis, R. (1992), se constitui numa lista de obras e

autores a serviço de uma elite cultural dominante. Tem-se visualizado, portanto, uma

democratização desse cânone tido como oficial, a partir da criação de um contracânone, a fim

de que manifestações literárias importantes para a cultura nacional possam sair das margens e

ocupar um lugar no centro canônico, conforme já vem acontecendo com alguns autores da

nossa literatura. Esta questão será discutida no capítulo 3 LITERATURA ORAL: SAINDO

DAS MARGENS, RESSIGNIFICANDO AS FRONTEIRAS.

Dentro desta perspectiva, entende-se que, através das representações, a literatura

reforça a identidade de grupos colocados à margem, por um grupo elitista e conservador, o

qual se baseia nos cânones literários seculares, como uma estratégia de poder. As

representações literárias produzem sentidos sobre a nação e “esses sentidos estão contidos nas

estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com o seu

passado e imagens que delas são construídas” (HALL, 2000, p. 51).

Toda a riqueza literária que habita nessas margens ribeirinhas não pode ser

deixada para trás. Faz-se necessário conhecê-la melhor, para valorizá-la como elemento

2 Neste trabalho, a expressão “causo” traz a mesma significação utilizada por Cascudo para se referir às histórias

populares contadas pelo povo, das quais os mesmos ou conhecidos se fazem personagens. Segundo o dicionário

Michaelis (2009), o mesmo que caso, acontecimento, fato, ocorrência. 3 Deverá ser entendida com o mesmo sentido trazido por Jerusa Pires Ferreira (2003, p. 91) que define tradição

como “uma espécie de reserva conceitual, icônica, metafórica, lexical e sintática, que carrega a memória dos

homens, sempre pronta a se repetir, e a se transformar, num movimento sem fim”.

Page 15: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

14

principal de preservação e de divulgação da memória local. Para tanto, ela necessita de

registro escrito, gravações de áudio e de vídeo, de estudos mais detalhados, a fim de que possa

ser disponibilizada para um maior número de leitores e estudiosos da temática,

compartilhando assim, conhecimentos sobre aspectos peculiares da sua oralidade.

Estes registros, antes de significarem uma forma de preservação, são uma forma

de divulgação das narrativas para além das margens, para além do Mocambo dos Ventos.

Estudos como este, poderão ser publicados e disponibilizados em bibliotecas, universidades,

livrarias e servir ainda de ponto de partida para outras pesquisas, registros e publicações.

Outra forma de divulgação é a organização de eventos em que se apresente e discuta sobre

estes registros. O trabalho com a literatura oral nas escolas também é fundamental para a sua

valorização e divulgação.

Convém ressaltar que a palavra “margem”, neste trabalho, passa a assumir o

sentido de beira do rio e, também, de um lugar de desmerecimento, de discriminação

sociocultural e literária, estabelecido a partir de um centro canônico. A expressão “Navegando

nas margens” passa a referir-se então, ao fato de se realizar, nas margens do rio, o estudo de

uma literatura popular e ribeirinha, muitas vezes marginalizada, desmerecida por um centro,

no qual o cânone literário ocidental se encontra enraizado.

Faz-se, portanto, uma relação com o fato de trazer para o centro das discussões,

uma literatura que se localiza geograficamente nas margens do Rio São Francisco, em

comunidades ribeirinhas e também por esta literatura ser produto de comunidades carentes, de

situação econômica desfavorável, com uma cultura que foge aos padrões conceituais da

cultura dos dominantes. Também, por se apresentar uma literatura fora dos padrões da

literatura escrita e que ainda se constitui de marcas culturais dos povos marginalizados

socioculturalmente, como os negros e os índios.

O Mocambo dos Ventos, como já sinaliza o próprio nome, é um lugar que,

segundo sua história, a ser detalhada mais à frente, neste trabalho, possui uma população

descendente de negros escravizados, embora não seja oficialmente reconhecido como

quilombo pelos órgãos governamentais. Mesmo assim, faz parte de um grupo étnico cuja

identidade cultural tem sido negada historicamente por uma elite social que a despreza e

marginaliza. Porém, toda uma cultura peculiar a este grupo de remanescentes de quilombo

existe, mesmo que muitas vezes pareça estar à mercê dos ventos, correndo o risco de ser

encoberta pelas areias do embranquecimento, presentes na mídia e no discurso ocidental

preponderante. Para compreender melhor por que o Mocambo dos Ventos pode ser

Page 16: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

15

considerado como uma localidade de remanescentes de quilombo, observem-se as

considerações de Munanga (1996, p. 58-63) sobre o conceito de quilombo.

O quilombo é seguramente uma palavra originária dos povos de língua

bantu (kilombo, aportuguesado: quilombo). Sua presença e seu significado

no Brasil têm a ver com alguns ramos desses povos bantu cujos membros

foram trazidos e escravizados nesta terra [...] tem a conotação de uma

associação de homens, aberta a todos sem distinção de filiação a qualquer

linhagem, na qual os membros eram submetidos a dramáticos rituais de

iniciação que os retiravam do âmbito protetor de suas linhagens e os

integravam como co-guerreiros num regimento de super-homens

invulneráveis às armas de inimigos. O quilombo amadurecido é uma

instituição transcultural que recebeu contribuições de diversas culturas:

lunda, imbangala, mbundu, kongo, wovimbundo, etc. [...] São campos de

iniciação à resistência, campos esses abertos a todos os oprimidos da

sociedade (negros, índios e brancos), prefigurando um modelo de

democracia plurirracial que o Brasil ainda está a buscar.

Face à problemática até aqui delineada, busca-se preencher as lacunas para as

questões relacionadas ao processo de construção da identidade dos povos ribeirinhos, à função

das narrativas com suas marcas culturais, recepção e performance. Na busca das respostas

para um entendimento maior do problema, fez-se necessário ainda, procurar responder a

outras indagações secundárias complementares, que puderam oferecer subsídios e

informações necessárias à conclusão deste estudo, como a presença da afrodescendência nas

narrativas, dentre outras.

Procurou-se desenvolver uma investigação criteriosa da tessitura literária destes

povos, que está presente na sua memória cultural, considerando todo o simbolismo de uma

ancestralidade que tem resistido ao preconceito étnico-racial4 e se impõe enquanto memória e

história na formação da identidade cultural do lugar, para além dos estereótipos. Este trabalho

se torna importante e necessário por se constituir numa “porta” capaz de permitir adentrar-se

em uma literatura fantástica, de espaço misterioso e encantador como é o Velho Chico, de

personagens guerreiros e resistentes, mas fragilizados pela eminência da discriminação

cultural. Também por trazer à pauta um embate cultural existente em nossa sociedade,

proporcionando reflexões mais aprofundadas para os problemas relacionados à temática,

4 O preconceito racial, no Brasil, surgiu a partir da interação entre dois grupos – uma classe política e

economicamente dominante que assumiu uma concepção de mundo considerada superior e estigmatizou o outro

grupo, neste caso, o dos não brancos, caracterizando-o como de qualidade inferior, crença que passa a ter a

função de justificar a dominação sobre ele. (FERREIRA, R., 2004, p. 51-52).

Page 17: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

16

dentre eles, a possível construção de uma identidade nacional infiel ao multiculturalismo5 que

a compõe.

As reflexões apresentadas pretendem contribuir para a inversão desta tendência

em valorizar a cultura do colonizador europeu e desmerecer as culturas populares, que se

constroem na diversidade, para que ocorra, então, o fortalecimento de uma identidade cultural

local e possivelmente, para o próprio reconhecimento oficial do Mocambo dos Ventos, pelas

autoridades governamentais, como uma localidade quilombola. Além do avivamento de

narrativas marginalizadas e desqualificadas em relação às práticas culturais hegemônicas.

Convém ressaltar que este trabalho não se refere exclusivamente à presença da

afrodescendência na identidade dos povos ribeirinhos. Desta forma, não se tratará somente de

questões da cultura afrodescendente, trazendo e esgotando todas as discussões e

conhecimentos sobre a temática. Juntamente com a Ilha do Miradouro, o Mocambo dos

Ventos é apresentado como um espaço da cultura popular, que se apoia na diversidade e na

liquidez6, o que contribui para uma reflexão que possa contemplar as marcas da pluralidade

cultural.

É importante acrescentar ainda, que o termo “afrodescendência” ou

“afrodescendente” será empregado neste trabalho para referir-se a determinado segmento da

cultura brasileira, o qual apresenta marcas da cultura africana, trazidas para o Brasil pelos

negros escravizados durante a colonização e que ao chegar aqui, devido às circunstâncias

locais impostas pelo colonizador, dentre outras, como a união e a convivência entre povos de

diversas tribos e culturas africanas, assumiram características diferenciadas, mas sem perder a

sua ligação com as matrizes culturais. Também aos povos que fazem parte desse segmento

cultural. Observe-se Fonseca (2006, p. 38) para que se possa compreender melhor o tema:

[...] as expressões “afro-brasileiro” e “afro-descendente” circulam com

maior desenvoltura, afirmando-se, sobretudo, quando são discutidas

questões relacionadas com determinados segmentos da cultura brasileira. O

uso dessas expressões não esgota as complexas questões que circulam em

torno de seus significados, mas pode revelar, certamente, um modo de se

considerar a pluralidade como um traço da cultura brasileira.

5 O multiculturalismo possui, na sua essência, a idéia, ou ideal, de uma coexistência harmônica entre grupos

étnica ou culturalmente diferentes em uma sociedade pluralista. [...] Ideologicamente, o multiculturalismo

abrangeu temas relacionados, incorporando a aceitação de diferentes grupos étnicos, religiões, práticas culturais

e diversidades lingüísticas numa sociedade pluralista (CASHMORE, 2000, p. 370). 6 Bauman (2005) utiliza as expressões “liquidez” e “fluidez”, para se referir à mobilidade das identidades.

Segundo ele, já não existem mais identidades fixas, sólidas e imutáveis, pois ganharam um livre percurso,

cabendo a cada indivíduo, homem ou mulher, capturá-los em pleno vôo, utilizando os recursos a as ferramentas

disponíveis. Outros autores, dentre eles Canclini (2006), também utilizam as expressões com o mesmo sentido.

Page 18: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

17

1.2 DOS LIVROS AO LEITO DO RIO E À CAMINHADA NA AREIA:

PERCURSOS METODOLÓGICOS

Para ir ao encontro das narrativas orais, principais objetos deste trabalho, e dos

seus narradores7, além da busca de conhecimentos teóricos sobre a temática que percorre este

estudo, foi necessária a adoção de procedimentos metodológicos específicos e qualificados

para a coleta das narrativas, observação e registros da vivência nas margens do São Francisco.

Com o objetivo de melhor compreender as nuances da identidade ribeirinha,

representada em narrativas orais, o caminho metodológico escolhido, por ser aquele que

melhor nos conduz entre os rios e suas margens, miradouros e dunas de areia e ao encontro de

uma cultura popular, segue os princípios e determinações da pesquisa qualitativa de cunho

etnográfico.

Os caminhos trilhados pelo pesquisador são aqueles que permitem contemplar,

baseado em concepções contemporâneas sobre o processo de conhecimento, o real como um

“fenômeno cultural, histórico e dinâmico, cuja complexidade não deve ser rompida, como um

tecido que não pode ser esgarçado sem o risco de se perder sua identidade e, portanto, sem a

possibilidade de ser conhecido” (FERREIRA, R., 2004, p. 27).

Há na pesquisa qualitativa de cunho etnográfico, que aqui se procurou

desenvolver, uma relação estabelecida no processo de construção de sentidos, em que o

pesquisador e demais participantes estão envolvidos. Mas, vale ressaltar que esse

envolvimento entre pesquisador e pesquisados pode ocorrer somente em aspectos que não

venham comprometer o cunho científico da pesquisa, ou seja, estabelece-se uma relação de

confiança, de inclusão no grupo, mas sem que isso venha causar o direcionamento ou a

modificação do objeto de pesquisa. Sendo assim, não se pode somente estabelecer critérios

para a escolha dos participantes (narradores), pois estes não devem mais ser vistos como

simples sujeitos que fazem parte de amostras representativas de uma população, eles vão

muito mais além.

Antes de começar a trilhar pelo caminho da pesquisa qualitativa, é preciso que o

pesquisador preencha a sua bagagem com aspectos relacionados ao seu conhecimento prévio

da temática, interesse pela pesquisa, valores pessoais condizentes com a realidade, já que tais

aspectos incidem diretamente sobre o delineamento da pesquisa e suas interpretações.

Contudo, é necessário conscientizar-se de que esse conhecimento prévio não deve contribuir

7 A palavra “narrador” refere-se aos contadores e contadoras das histórias. Apesar de, neste trabalho, aparecer no

gênero masculino, refere-se também às mulheres narradoras.

Page 19: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

18

para que o pesquisador venha interferir nos dados, emitir um parecer já pré-estabelecido ou

produzir um saber, uma visão influenciada por valores generalizados e estigmatizados. É

preciso preparar-se para a pesquisa com o intuito de não se deixar influenciar, não repetir ou

ratificar uma situação que se consolida através de estereótipos, isto é, não impregnar as suas

interpretações com conceitos prévios, fixados por uma formação pessoal.

Deve-se, portanto, evitar o que Said (2007) aponta em sua obra sobre o

Orientalismo, na qual mostra o fato de que o Ocidente criou uma visão distorcida do Oriente

como o "Outro", trazendo uma tentativa de diferenciação que estivesse de acordo com os

interesses da política colonialista ocidental, ou seja, o oriente como “invenção” do ocidente.

Said (2007) na introdução do seu estudo, ressalta sobre os estereótipos que permaneceram e

que nos levam a perceber o Oriente como fonte de mistério, corrupção, sensualidade ou

(paradoxalmente), iluminação espiritual.

Pode-se chamar esta preparação e este processo de estudo como uma tomada de

consciência, a fim de que não se cometa o erro da política do desmerecimento do outro,

através da formação de conceitos discriminatórios e dicotômicos em relação ao tema. Sendo

assim, deve-se estar preparado, obtendo o máximo de conhecimento possível sobre a temática

da pesquisa, para que esta possa corresponder da maneira mais fiel possível à realidade

pesquisada, atendendo aos objetivos propostos sem a interferência de uma visão já enraizada.

Tais circunstâncias mostram que não existe uma total neutralidade na pesquisa científica e é

esta consciência que leva o pesquisador a conclusões mais precisas.

Desta forma, na fase da redação, convém apresentar uma descrição, de modo

mais detalhado e rigoroso possível, do contexto em que ocorreu a sua realização, do caminho

percorrido e ainda de como se procedeu em sua interpretação, permitindo, como versa

Ferreira, R. (2004, p. 27), uma “visão caleidoscópica do fenômeno estudado”.

Descrevendo-se os passos da caminhada, inicialmente fez-se uma análise da

documentação indireta com o levantamento, fichamento e estudo de referencial bibliográfico

relacionado à temática: identidade cultural, cultura popular, literatura oral, cultura e literatura

afrodescendente. Utilizaram-se, como fundamentação para norteamento do trabalho, dentre

outros, os pressupostos teóricos trazidos por Alcoforado (1990, 2008), Bauman (2005), Bernd

(2002, 2003), Bhabha (2003), Burke (2006), Canclini (2006), Cascudo (2006, 2008), Hall

(2000), Le Goff (1996), Meihy (2005), Ortiz (2003) e Zumthor (1993, 1997, 2007). Fez-se

ainda uma pesquisa documental em arquivo municipal e na Prefeitura de Barra, também na

sede do IBGE da cidade de Xique-Xique.

Page 20: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

19

Depois destas incursões teóricas e documentais, rumou-se para a pesquisa de

campo. O percurso desenvolvido, a partir deste momento, constou de uma sucessão de passos,

os quais nem todos foram previamente definidos e planejados, pois na verdade, muito se

construiu à medida que a pesquisa ia se realizando. Tal pesquisa desenvolveu-se a partir de

conversas com os moradores sobre a localidade, a história e os costumes. Depois, procurou-se

utilizar entrevistas não padronizadas e não estruturadas que eram gravadas em áudio e vídeo.

Um roteiro prévio, com as abordagens, foi definido para a entrevista e de conhecimento

somente do entrevistador/ouvinte/interlocutor, já que o objetivo era registrar as narrativas

orais que navegam por entre as pessoas, percebendo o seu lugar social e as suas formas de

transmissão.

Buscou-se estabelecer, entre o pesquisador e os participantes da pesquisa, uma

relação de confiança, cumplicidade e interlocução, a fim de que não houvesse nenhum

direcionamento das histórias narradas, ou tolhimentos de qualquer ordem. No primeiro

momento em que se chegou ao povoado do Mocambo dos Ventos, fomos recebidos

inicialmente por crianças que iam para a escola. Em seguida, nos aproximamos das pessoas

adultas, estabelecemos uma conversa amistosa, onde nos apresentamos como professores e

estudantes que estavam ali para conhecer um pouco da história do lugar e realizar uma

pesquisa. Foi explicada a finalidade, o objeto e a relevância da pesquisa, ressaltando a

necessidade de colaboração.

Desta forma, as entrevistas foram feitas nos momentos mais descontraídos e

naturais, procurando-se interferir o mínimo possível na exposição das narrativas, a fim de que

os narradores pudessem expressar livremente as suas ideias, a sua memória cultural. Durante

todos os momentos em que se esteve presente no local da pesquisa, procurou-se fazer

observações e registros, por meio de um “diário de campo”, da rotina, das conversas

informais, do cenário e dos costumes do lugar.

Em termos gerais, a coleta de dados etnográficos pertinentes teve como

ferramenta central, o emprego de observação participante que permitiu o acesso aos eventos

sociais cotidianos, onde as relações e interações puderam ser flagradas, facilitando ainda o

contato com os narradores e suas histórias.

Os próprios moradores se aproximaram e conduziram o pesquisador às pessoas

tidas como mais conhecedoras dos causos e da história do lugar. Dona Maria Alexandrina

Caxiado – 73 anos (Figura 1), (Dona Xandu, como é chamada por todos) foi a primeira a ser

apresentada como a principal narradora. Além de Dona Xandu, outros moradores participaram

desta pesquisa com seus depoimentos e histórias, os quais, a sua utilização e publicação neste

Page 21: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

20

trabalho, inclusive das fotografias, foram autorizados através de termos de autorização

anexos.

Convém apresentar, portanto, os demais narradores, nossos eminentes

colaboradores do Mocambo dos Ventos, sem os quais não se poderia ter realizado tal estudo.

São eles: Alberto de Souza Dias – 56 anos, Domingos Pereira de Carvalho – 49 anos, Maria

Francisca da Silva – 70 anos, Maria Pereira de Carvalho – 75 anos, Marilene de Souza Vargas

– 48 anos e Valdemar Caxiado da Silva – 62 anos (Ver figuras 2 a 7 com as fotografias dos

narradores). As narrativas coletadas no Mocambo dos Ventos, trazidas posteriormente neste

estudo, sob a forma de adaptações baseadas nas transcrições são: “O Nego d‟Água”8, “A Mãe

d‟Água”, “O Arco-íris” e “O Rio que Dorme”.

Já a narrativa “A Serpente Da Ilha do Miradouro” não foi coletada da mesma

forma que as narrativas do Mocambo dos Ventos, mas extraída de versões documentadas em

registros da sede do IBGE, na cidade de Xique-Xique e em Barbosa et al. (2007), também em

uma versão escrita apresentada pela própria narradora. As versões foram apresentadas,

respectivamente, por Jorge Pinheiro Meira, Raimunda Francisca Bonfim – 62 anos e

Marquileide da Silva Oliveira – 28 anos (Figura 08).

Na visita à Ilha do Miradouro, apenas registros fotográficos e algumas

observações sobre a localidade foram feitos, vez que a eminente narradora em questão não se

dispôs a contar a história da serpente, justificando que as pessoas só prometem, mas não

contribuem para a reforma da igreja e por isso, não iria mais contar histórias ou dar

informações.

Quanto às fotografias apresentadas neste trabalho, a maioria é de autoria do

próprio autor da pesquisa, inclusive a da capa, por isso não há em todas, a indicação da

autoria, mas somente naquelas que foram extraídas de outras fontes. Optou-se por apresentá-

las agrupadas no interior do texto, ao final de cada capítulo, para melhor visualização do

leitor.

Outro passo seguido foi a transcrição e adaptação das diversas versões das

narrativas contadas. Esta etapa pode ser considerada com uma das mais importantes, pois

permitiu relembrar e reviver grandes e inesquecíveis momentos da pesquisa. As transcrições

das falas gravadas foram feitas pelo pesquisador, na íntegra, buscando considerar as regras

básicas para a transcrição, e depois adaptadas, no sentido de garantir conteúdo, estilo e

legibilidade, procurando sanar as dificuldades de entendimento, evitando repetições

8 O “Nego d‟Água” também é chamado por alguns moradores do Mocambo dos Ventos de “Cumpade d‟Água”.

Page 22: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

21

desnecessárias, truncamentos, ou seja, o excesso de expressões e símbolos complicados que

viessem a comprometer o sentido do texto. Nas narrativas apresentadas como um todo e nas

citações dos narradores, utilizam-se algumas adaptações feitas de acordo com orientações

teóricas. Para tanto, baseou-se nas orientações trazidas na REVISTA ESTUDOS

LINGÜÍSTICOS E LITERÁRIOS, n. 7, Universidade Federal da Bahia, Instituto de Letras,

Salvador: out. 1988, 146 p.

Procurou-se, a todo momento, conservar, nas adaptações, o discurso dos

narradores, a fim de preservar o máximo possível a fidelidade às marcas da oralidade,

proporcionando ao leitor o contato com essa literatura que representa a memória cultural do

povo brasileiro. Preocupou-se em trazer várias versões das mesmas narrativas, inclusive as

fragmentadas, para um confronto durante as análises e também porque a fragmentação faz

parte da tradição oral.

Na sequência, por último, consolidou-se a fase da redação, momento em que se

procurou apresentar alguns entendimentos teóricos sobre o tema dissertado, as narrativas

coletadas, bem como suas análises e ainda as considerações finais referentes à identidade

cultural ribeirinha. Para todo este procedimento de coleta e análise das informações, como

também da tessitura conclusiva, foram considerados os preceitos da história oral, enquanto

produtora de uma literatura oral capaz de garantir parte relevante da identidade cultural. Neste

sentido, Meihy (2005, p. 22) afirma que “a literatura oral é outra manifestação eloqüente das

fontes orais”.

1.3 DELINEANDO O CORPO DO TRABALHO

O trabalho apresentado foi edificado em três capítulos que se estruturam e se

constroem, a partir das relações estabelecidas entre a teoria e as narrativas com suas marcas

discursivas e seus elementos formadores da memória cultural da população ribeirinha,

acrescidos deste texto introdutório e das considerações finais.

Em RETRATOS AO VENTO: BELEZA E ENCANTAMENTO RUMO À

ILHA DO MIRADOURO E MOCAMBO DOS VENTOS, faz-se uma apresentação do

campo de pesquisa que compreende a Ilha do Miradouro e o Mocambo dos Ventos. Procura-

se retratar, inclusive com fotografias, o cenário paisagístico, os povos ribeirinhos, seus

costumes e atividades diárias, além de trazer todo um conhecimento histórico-geográfico da

Page 23: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

22

região com informações sobre o processo de povoamento e alguns aspectos socioculturais e

econômicos.

O capítulo LITERATURA ORAL: SAINDO DAS MARGENS,

RESSIGNIFICANDO AS FRONTEIRAS traz uma reflexão baseada em teóricos,

exemplificada com situações e falas que envolvem os narradores. Inicia-se com a

apresentação de conceitos e informações sobre a cultura popular e a literatura oral, ressaltando

as formas como se apresentam e suas características fundamentais. Discute o

multiculturalismo como marca das narrativas, busca problematizar conhecimentos sobre

literatura oral e identidade, inclusive a afrodescendente, trazendo a visão da identidade em

construção. Aborda temas como hibridismo cultural e identidades líquidas, identidade e os

meios de comunicação de massa, e a representação da identidade através das narrativas. Ainda

destaca a performance e o testemunho dos narradores, o lugar social e a recepção das

narrativas orais no cotidiano ribeirinho, além de uma abordagem da posição social da mulher,

em especial, a negra.

Em TRADIÇÃO ORAL ÀS MARGENS DO VELHO CHICO: UM

PASSEIO PELAS NARRATIVAS, apresentam-se as narrativas, em suas diversas versões,

destacando-se as marcas ideológicas e os elementos identitários presentes, os quais mostram a

diversidade cultural. Procura-se discutir toda uma simbologia e representações culturais

trazidas pelas narrativas. Ainda se destaca e se comenta sobre a afrodescendência, como uma

marca do multiculturalismo, presente na identidade cultural ribeirinha, tomando como

exemplo as narrativas.

Na conclusão, parte na qual as CONSIDERAÇÕES FINAIS se situam ENTRE

AS MARGENS E UM PORTO POSSÍVEL, procura-se fazer uma recapitulação sintética da

pesquisa sobre a identidade ribeirinha, reforçando a presença das marcas da pluralidade

cultural encontradas nas narrativas, através dos discursos apresentados. Faz-se ainda, uma

inferência sobre a construção identitária ribeirinha, a partir do multiculturalismo, da

hibridização e da liquidez.

Page 24: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

23

Figura 1 – Maria Alexandrina Caxiado

Figura 2 – Alberto de Souza Dias

Figura 3 – Domingos Pereira de Carvalho

Figura 4 – Maria Francisca da Silva

Page 25: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

24

Figura 5 – Maria Pereira de Carvalho

Figura 6 – Marilene de Souza Vargas

Figura 7 – Valdemar Caxiado da Silva

Figura 8 – Marquileide da S. Oliveira

Page 26: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

25

2 RETRATOS AO VENTO: BELEZA E ENCANTAMENTO RUMO À

ILHA DO MIRADOURO E MOCAMBO DOS VENTOS

A narrativa, que durante tanto tempo floresceu num

meio de artesão – no campo, no mar e na cidade –, é

ela própria num certo sentido, uma forma

artesanal de comunicação. Ela não está interessada

em transmitir o “puro em si” da coisa narrada como

uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa

na vida do narrador para em seguida retirá-lo dele.

Assim se imprime na narrativa a marca do narrador,

como a mão do oleiro na argila do vaso.

(Walter Benjamin, 1987)

2.1 PRIMEIRAS REMADAS EM BUSCA DAS NARRATIVAS

A viagem rumo ao Mocambo dos Ventos, passando pela Ilha do Miradouro em

busca das narrativas orais que o Velho Chico tem para contar, é feita navegando-se pelas suas

próprias águas, partindo-se da cidade de Xique-Xique. Utilizam-se como meios de transporte,

vários tipos de embarcações, desde pequenas e rudimentares canoas a remos e velas precárias,

até as embarcações maiores, com capacidade de aproximadamente 20 pessoas, movidas a

motor. A partida é considerada algo realmente singular. Já na saída, a paisagem nos convida a

embarcar de encontro aos mistérios, beleza e encantos das narrativas (Figura 9).

No caminho, pode-se tomar conhecimento da rotina dos povos ribeirinhos, que

têm o rio como personagem principal para as suas vidas. Este se constitui na principal via de

acesso à cidade, e o trânsito de embarcações é considerável, pois diariamente os pescadores

utilizam o seu leito para viajarem a Xique-Xique com o intuito de vender seus pescados.

Vários elementos compõem a paisagem ribeirinha e fazem parte de um cenário

ímpar, próprio da região. Vale destacar, a presença dos pescadores em suas canoas e nas

margens do rio (Figura 10), as lavadeiras batendo as suas roupas n‟água acompanhadas de

seus meninos nus a observar as embarcações (Figura 11), as casinhas e ranchos rudimentares

próximos aos barrancos (Figura 12), a garça que espera pacientemente o peixe (Figura 13), as

aves chamadas de mergulhões, o vento e o sol, nossos fiéis companheiros em todas as

viagens, não esquecendo a constante presença imaginária do Nego d‟Água que nos

acompanhava nas viagens. Mas esta é uma narrativa que será apresentada e discutida em

abordagem próxima.

Page 27: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

26

Há uma intensa relação estabelecida entre os povos e o Rio São Francisco, que

carrega consigo, a memória, a história daqueles momentos de glória, dos grandes vapores, da

riqueza econômica e cultural que representara. Tudo funciona em estreita ligação com o rio, o

qual se constitui como fator preponderante de subsistência, sustentando o imaginário da

população ribeirinha. Inclusive para o próprio povoamento da região, pois se sabe que foi a

principal via de acesso para os colonizadores ali chegarem. Tem-se conhecimento de que,

desde o início do processo de colonização do Brasil, havia investidas do governo pelo sertão,

com o objetivo de descobrir riquezas minerais, aprisionar índios para usá-los na lavoura e

garantir a colonização, com o povoamento do sertão nordestino. E assim, a viagem continua

rumo à próxima parada e seus encantos: a Ilha do Miradouro.

2.2 APORTANDO NA ILHA DO MIRADOURO

Segundo documentação encontrada na sede do IBGE da cidade de Xique-Xique,

de autoria de Jorge Pinheiro Meira (2009), Francisco Garcia Dias D‟Ávila, o conde da Casa

da Torre, foi o primeiro latifundiário brasileiro que conquistou o direito de propriedade em

quase toda a área esquerda do São Francisco. Nos idos de 1549 a 1553 começou o

povoamento da sua margem, com a construção de currais a cada 20 léguas e deixando um

casal de escravos, alguns novilhos e equinos. Por volta de 1649, tendo começado pela foz,

Francisco Garcia Dias D‟ Ávila e seus homens chegaram à região do Miradouro, iniciando o

processo de colonização.

Segundo o dicionário Michaelis (2009), “miradouro” corresponde a um ponto

elevado de onde se descobre largo horizonte. A ilha está localizada numa região do São

Francisco que recebe este nome, certamente por possuir as características apontadas no

dicionário, ou seja, lugar de onde se pode mirar o horizonte. Os seus moradores dizem que da

ilha mirava-se o ouro da Serra do Assurá, local em que se localiza atualmente, o município de

Gentio do Ouro. Daí, se pode compreender melhor a origem do nome da Ilha do Miradouro.

A povoação ocorreu por devotos de Nossa Senhora Santana em terras de

propriedade da viúva de Francisco Garcia Dias D‟Ávila, a qual mandou construir na ilha, a

capela de Nossa Senhora Santana (Figura 14). A Ilha do Miradouro foi posteriormente doada

pela viúva aos garimpeiros da Serra do Assurá, aos lavradores e pequenos criadores de

animais.

Page 28: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

27

São aproximadamente 20 minutos de viagem de barca, rio acima, até chegar à Ilha

do Miradouro, localizada no município de Xique-Xique, a cerca de dois quilômetros da sede.

A Ilha do Miradouro possui cerca de 280 habitantes, segundo o censo (2007) do IBGE, todos

com um grau de parentesco entre si e vivendo principalmente da pesca. A capela, em estilo

colonial, ainda resiste ao tempo, embora se perceba claramente a necessidade de uma reforma,

a fim de se preservar essa marca histórica de tão preciosa arquitetura, que além do valor

histórico-cultural, também faz parte do cenário das narrativas. Os próprios narradores

afirmam que ela abriga embaixo de si, a cabeça da Serpente da Ilha do Miradouro e que

também ouvem rugidos e murmúrios vindos de seu interior.

A nossa viagem e nossa atenção voltam-se de forma mais detalhada ao Mocambo

dos Ventos, pela sua história de remanescência quilombola9, não reconhecida oficialmente

pelo governo, além da sua localização geográfica e do seu povo. A aportagem na Ilha do

Miradouro deu-se pela necessidade e importância de se conhecer melhor o cenário da

narrativa da Serpente da Ilha do Miradouro, tão presente e contada nas comunidades

ribeirinhas. Sendo assim, buscou-se conhecer também um pouco da história da ilha e de seu

povo.

O interesse pela pesquisa no Mocambo dos Ventos surgiu de uma visita feita pelo

pesquisador, juntamente com um grupo de alunos do curso de Letras da Universidade do

Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas e Tecnologias – Campus XXIV –

Xique-Xique, como atividade de campo de um curso de extensão realizado pelo professor e

antropólogo Guilherme Santos10

. Ao conhecer a beleza e o encantamento do lugar, pela sua

história, seu povo e sua localização geográfica, surgiu o interesse em investir numa pesquisa

que pudesse trazer das margens, as narrativas fantásticas que permeiam o imaginário da sua

gente, bem como a sua cultura.

Depois de uma parada para conhecer e fotografar a Ilha do Miradouro, a viagem

continua em direção ao Mocambo dos Ventos, a parada final. O rio se torna mais largo, as

“c‟roas”11

aparecem no caminho e em alguns momentos, percebe-se que fica raso em certos

9 Os próprios moradores ao contarem a história do lugar, ressaltam que os primeiros habitantes foram negros

escravizados que vieram fugidos e se estabeleceram no local, formando uma espécie de quilombo, tomando

como base a conceituação de Munanga (1996). 10

Prof. Dr. Guilherme dos Santos Barboza é etnólogo, antropólogo, observador da ONU e presidente do Centro

Afro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Culturais. Percorre o Brasil desde os anos 1960 estudando os quilombos e

outros aspectos da cultura negra, como o candomblé e a capoeira. 11

Espécie de pequenas ilhas, formadas por bancos de areia no meio do leito do rio quando a sua vazão baixa, em

que os pescadores costumam aportar-se para pescar. Também é utilizada pelas pessoas para passeios e banhos. A

palavra original é coroa, mas sofre uma transformação lingüística para “c‟roa”, ou seja, é uma variante local da

palavra coroa.

Page 29: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

28

trechos, devido ao assoreamento e erosão das margens. São aproximadamente três horas de

viagem de barca da cidade de Xique-Xique até o Mocambo dos Ventos. A paisagem vai

ficando cada vez mais paradisíaca e exuberante. Dunas de areia começam a surgir nas

margens. Apesar de, em boa parte, a realidade nos mostrar a degradação das margens, a falta

de mata ciliar e de investimentos do poder público na revitalização do rio, a região ainda nos

proporciona as mais belas imagens de uma natureza peculiar.

O Mocambo dos Ventos é um povoado pertencente ao município de Barra. Está

localizado a 42 km da sede do município (Figuras 15, 16 e 17). A sua fundação, segundo o

morador Alberto de Souza Dias, 56 anos, foi há aproximadamente 135 anos. Ainda segundo a

história do lugar, contada pelos próprios moradores, o Mocambo dos Ventos foi fundado por

escravos fugidos. “[...] era uns nego assim altos, sem cabelo, era escravo que chegaram

fugidos [...]” (Alberto Souza Dias). Mas, antes de maiores apresentações sobre esta

localidade, convém apresentar também um breve passeio pela história da cidade da Barra.

2.3 A CIDADE DA BARRA: HISTÓRIA, COLONIZAÇÃO E

POVOAMENTO DA REGIÃO

Sede do município onde está situado o Mocambo dos Ventos, a cidade da Barra

está localizada numa região cuja colonização e povoamento se deu também por volta do final

do século XVI, pelos mesmos colonizadores da região do Miradouro. Conforme dados do

IBGE (2009), a região era primitivamente habitada pelos índios Acroás, na margem esquerda

do Rio São Francisco, e pelos índios Mocoazes, na direita, além de Tupiniquins, Xacriabás,

Caiapós, Cariris e Aricobés. O território integrava a sesmaria da Casa da Torre, de Garcia

D'Ávila. O povoamento iniciou-se por volta de 1670, pelo segundo Conde da Torre, Francisco

Dias D‟Ávila Pereira que instalou, na foz do Rio Grande com o São Francisco, a fazenda

Barra do Rio Grande.

Em 1680, religiosos franciscanos erigiram a capela de São Francisco, ficando o

local conhecido por São Francisco das Chagas da Barra do Rio Grande do Sul. A atividade

econômica da povoação consistia na criação de gado e agricultura, com o cultivo da cana-de

açúcar. Abrigava grande diversidade populacional: portugueses, escravos africanos,

brasileiros, filhos de portugueses, mestiços de branco e índio, índios puros, holandeses,

flamengos e espanhóis que exploraram a região sob o comando da Casa da Torre. Em 1752,

criou-se o município com a denominação de Vila de São Francisco do Rio Grande do Sul. O

Page 30: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

29

topônimo, simplificado para Barra do Rio Grande, em 1873, e alterado para Barra, em 1931,

tem origem atribuída ao fato do Rio Grande ter sua barra em frente à cidade.

O município de Barra localiza-se a 807 Km de Salvador, capital da Bahia e está

totalmente inserido no Vale do São Francisco, na mesorregião do Vale-São-Franciscano da

Bahia e na microrregião de Barra. Limita-se ao Norte com Buritirama e Pilão Arcado, ao Sul

com Muquém do São Francisco, a Leste com Xique-Xique, Morpará e Ibotirama, a Oeste com

Buritirama, Cotegipe e Santa Rita de Cássia (Figuras 15 e 17). Segundo o IBGE, possui uma

área territorial de 11.333 km2

e de acordo com o Censo (2007) do IBGE, uma população de

47.755 habitantes.

A cidade da Barra ainda conta com inúmeras manifestações da cultura popular, a

maior parte ligada à religiosidade, seja com caráter litúrgico ou profano. O barrense procura

preservar, na medida do possível, a sua memória, como se pode perceber na arquitetura e

escultura locais, também nas histórias contadas pelos moradores e em documentos e

fotografias encontradas em arquivos públicos e particulares. Há em seus moradores certa dose

de orgulho pelo que a cidade da Barra já significou histórica, econômica e culturalmente para

a região.

No século passado, até meados da década de 30, o transporte fluvial era o

principal meio de locomoção e ligação entre as diversas cidades do Vale do São Francisco, e

destas com os demais estados ribeirinhos. A cidade da Barra era um importante entreposto

comercial. Destaca-se ainda a beleza dos brejos e das dunas, localizadas nas margens do

Velho Chico, o espetáculo da natureza no encontro dos Rios Grande e São Francisco, além do

conjunto arquitetônico da cidade.

2.4 UM MOCAMBO AO SABOR DOS VENTOS: CONTEXTUALIZAÇÃO

Fazendo parte desse contexto de beleza e história, encontra-se, situado sobre

dunas de areia nas margens do São Francisco, o Mocambo dos Ventos. O povoado possui 36

casas e aproximadamente 200 habitantes. Possui luz elétrica, um telefone público (Figura 18)

e uma escola de Educação Infantil e Ensino Fundamental até a quarta série, com turmas

multisseriadas e dois professores. Não possui água encanada, igrejas, nem outros serviços ou

benfeitorias do poder público.

As casas são construções simples, sem banheiros, nem privadas (Figura 19). É um

hábito dos moradores, usarem o rio para o banho, para lavar roupas e a louça. As necessidades

Page 31: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

30

fisiológicas são feitas no mato, no fundo das casas, um costume ainda rudimentar. Segundo o

dicionário Michaelis (2009), “mocambo” significa lugar em que os escravos se recolhiam

quando fugiam para o mato, habitação comum, sem nenhum conforto. O Mocambo dos

Ventos, portanto, apresenta as características apontadas pelos dicionários, uma vez que os

próprios moradores afirmam ser descendentes de escravos fugidos que se firmaram no local, e

a própria estrutura da moradia também confirma a denominação recebida. A Sra. Maria

Pereira de Carvalho, 75 anos afirma que a sua bisavó, tratada de Maria Braba, era escrava

fugida e foi “pegada a dente de cachorro na caatinga”.

Quanto ao nome “mocambo”, o Sr. Alberto Souza Dias explica o porquê: “Diz

que é por causa de uns escravo que chegaram fugido antigamente [...]”. Já a Sra. Maria

Alexandrina Caxiado, 73 anos, moradora do lugar desde o nascimento, complementa a

afirmação do Sr. Alberto, dizendo: “Porque venta muito, eles botaram esse nome de

Mocambo dos Ventos”.

Um fato que chama a atenção é a presença da TV e antena parabólica na maioria

das casas (Figura 20). Em todas elas, não se observou em seu interior ou em área externa a

construção de banheiro, de sanitário. Também não possuem piso de cerâmica ou cimento,

nem cômodos forrados. A maioria delas nem possui reboco ou pintura nas paredes, e até

mesmo o fogão é uma espécie de trempe formada de três pedras ou armação de ferro,

geralmente numa cozinha de palha no fundo das casas.

Mas a presença da TV e da antena parabólica nos leva a perceber o fascínio e o

estímulo ao consumo que a modernidade tecnológica e a cultura de massa exercem nas

sociedades, por mais isoladas que pareçam, ou seja, o desejo por conhecer o mundo, a cultura

do outro e de pertencimento a essa cultura. Como se tem conhecimento, cada vez mais as

tecnologias se inserem de forma inevitável no cotidiano das pessoas. Costa (1998, p. 22)

destaca que “a interferência dos meios de comunicação de massa, e com eles o popular não-

tradicional, também contribui para a transformação da cultura popular”. Uma discussão mais

aprofundada sobre os meios de comunicação de massa e a cultura popular será feita mais

adiante neste trabalho.

A região do Mocambo dos Ventos é um lugar paradisíaco, formado por dunas de

areias brancas, as quais se quebram e se molham nas águas do Velho Chico (Figuras 21 e 22).

O povoado está situado sobre essas dunas que se movem ao sabor do vento e da erosão das

margens do rio. Considerada também como uma característica do texto oral, presente na

memória das narrativas ribeirinhas, a movência das dunas é uma realidade, uma vez que

muitas casas já não existem mais e outras vão sendo construídas cada vez mais afastadas da

Page 32: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

31

margem. Morros de areia surgem e se desfazem com tempo. “Sei que aqui não tinha esse

morro não. Depois que virou esse morro, aí era plano” (Maria Pereira de Carvalho).

Zumthor (2007) chama de movência o processo de consolidação da memória, que

se implica na reiteração, e em incessantes variações recriadoras. Ou seja, além das dunas e do

próprio povoado, que se movem ao sabor dos ventos, a memória presente nas narrativas

também se move ao sabor dos seus intérpretes, dos seus contadores, de suas performances e

recriações.

Podem-se perceber ruínas de moradias antigas que foram soterradas pela areia

(Figura 23). No lugar em que já foi uma igreja, hoje existe apenas uma cruz, pois a construção

ruiu e desapareceu com o movimento da areia. Vê-se, próximo à localidade, também

provocado por essa movência, emergir-se, meio às dunas, um cemitério antigo e desconhecido

para muitos moradores, provavelmente de seus antepassados (Figura 24). Com isso, vem

surgindo novas histórias, novos personagens, que, embora não estejam mais vivos, podem ser

tomados como referências pelos atuais moradores, possivelmente no resgate como

personagens de suas narrativas. Toda a área do povoado é repleta de uma areia esbranquiçada

e fina. Justificando o próprio nome do povoado, o vento faz-se presente em todas as horas,

dias e meses do ano.

Vale ressaltar nos moradores do Mocambo dos Ventos, o saudosismo e a forte

lembrança de um passado em que o Velho Chico se destacava pela sua importância viária,

reforçada pela imponência dos vapores. Não apenas casas e dunas se desfizeram pela ação do

vento, mas outra realidade de um rio com uma força e uma vitalidade, cujo brilho ainda se

reflete nos olhos de seus moradores, assim como as luzes dos vapores.

Tinha o vapor que encostava era aqui, o pessoal cortava lenha na caatinga.

Nesse tempo, o primeiro vapor que veio aqui no rio era o Saldanha, tinha

uma roda no meio e os outros era atrás... Tinha o Venceslau, o Barão, o São

Francisco. Era bonito, o Barão, quem tinha coração, chorava quando ele

apitava... Hoje dá aquele aperto no coração quando lembra (Maria Pereira

de Carvalho).

A população do Mocambo dos Ventos é formada de pessoas simples, humildes e

acolhedoras. As portas das casas sempre estão abertas e o convite para adentrar ao espaço

interior das casas, é feito a todos que chegam. Sempre oferecem e compartilham o que têm:

água, comida, cadeira e também uma boa conversa, conforme se percebe na pré-disposição

em contarem as suas narrativas. Vivem da pesca, da agricultura de subsistência e do criatório

de animais domésticos como porcos e galinhas.

Page 33: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

32

A pesca e a agricultura servem para a alimentação das famílias e o que vendem, é

para a satisfação das necessidades básicas, como a compra de vestuário, materiais de higiene,

alimentos que não cultivam, alguns móveis e utensílios. O programa do Governo Federal

Bolsa Família complementa a renda familiar. Embora o povoado esteja localizado nos limites

do município de Barra, a população tem a cidade de Xique-Xique como referência maior para

a realização das atividades urbanas e venda do peixe. A cidade é a mais próxima e o acesso é

mais rápido, pois é mais fácil descer o leito do rio.

Não é possível retratar, fielmente, neste trabalho, toda a singularidade do lugar, do

seu povo, de suas paisagens. É preciso ir, conhecer, ver. Assim como a magia e o

encantamento de suas narrativas e seus personagens, o lugar nos enfeitiça. Impossível não

querer voltar, conhecer melhor, conviver mais com aquelas pessoas. Mas fica a tentativa de

apresentar imagens, narrativas, mistérios, beleza e sedução, retratos ao vento de uma cultura

que não pode ser encoberta com o tempo, pelas areias do esquecimento.

Pode-se afirmar que o Mocambo dos Ventos constitui-se numa comunidade

narrativa, pois fazem parte do seu cotidiano, narrativas orais com as quais os seus moradores

constroem o sentido de pertencimento e se reconhecem como próprios personagens. As

histórias são contadas com a mais pura veracidade pelos narradores que convivem

naturalmente com a presença de seus personagens e situações desencadeadas.

Convém ressaltar que o sentido utilizado para comunidade narrativa neste estudo,

apresenta-se em conformidade com Lima (1985), no qual considera como tal, o conhecimento

mútuo de narrativas e o hábito de compartilhá-las, recriá-las e performatizá-las entre

narradores e o seu público, numa unidade interdependente, indissociável e dinâmica. Ou seja,

é o espaço onde se constrói uma relação de pertencimento entre os narradores e ouvintes; um

envolvimento de ambos, estabelecido a partir das narrativas.

As narrativas orais estão presentes na cultura e no próprio lugar, da mesma forma

que o rio, as dunas, o vento e o sol. Não se pode pensar em retratar o Mocambo dos Ventos

sem trazer para o conhecimento, o mistério, a fantasia e os exemplos de suas narrativas. A

singularidade dessas narrativas não se limita ao valor estético, mas à sua força de

representação e seu mérito sociocultural. Diante desse retrato, pode-se, a partir de então,

passar a uma abordagem teórica a respeito da Literatura Oral e outras considerações

relacionadas à cultura popular e identidades, o que nos permitirá compreender melhor a

identidade cultural da região.

Page 34: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

33

Figura 9 – Cais da cidade de Xique-Xique de onde saem as embarcações

Figura 10 – Pescadores

Page 35: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

34

Figura 11 – Lavadeiras

Figura 12 – Rancho: espécie de moradia e abrigo dos pescadores

Page 36: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

35

Figura 13 – Garça à espera do peixe, seu principal alimento e da população

Figura 14 – Capela de Nossa Senhora Santana na Ilha do Miradouro (Foto Marquileide)

Page 37: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

36

Figura 15 – Localização do município de Barra no mapa da Bahia (Disponível em:

http://pt.wikipedia.org/wiki/Microrregi%C3%A3o_de_Barra)

Barra

Page 38: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

37

Figura 16 – Localização do município de Xique-Xique no mapa da Bahia (Disponível em:

http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Bahia_Municip_XiqueXique.svg)

Xique-Xique

Page 39: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

38

Figura 17 – Localização das cidades de Barra e Xique-Xique nas margens do Rio São Francisco no

mapa da Bahia (Disponível em: http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1)

Barra

Xique-Xique

* *

Page 40: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

39

Figura 18 – O único telefone do lugar ao lado de moradia simples

Figura 19 – Moradia no Mocambo dos Ventos

Page 41: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

40

Figura 20 – Moradia simples com TV e antena parabólica

Figura 21 – Dunas no Mocambo dos Ventos (Foto PDDU, município de Barra)

Page 42: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

41

Figura 22 – Dunas no caminho de acesso ao povoado

Figura 23 – Ruínas de moradias encobertas pela areia (Foto PDDU, município de Barra)

Page 43: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

42

Figura 24 – Dunas próximas ao Mocambo dos Ventos onde se visualiza marcas de um cemitério

antigo

Page 44: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

43

3 LITERATURA ORAL: SAINDO DAS MARGENS,

RESSIGNIFICANDO AS FRONTEIRAS

As narrativas de vida, tanto quanto as de ficção,

podem ser a janela para entender-se com o mundo.

(Eliana Yunes, 2002)

Antes de dar início a uma discussão em torno da cultura e da literatura popular,

convém afirmar que a representação de cultura trazida neste trabalho é a mesma utilizada por

Campos, C. (2004, p. 39) que a considera como sendo um “conjunto de práticas perpetuadas

transgeracionalmente”. Indo ainda mais além, cultura pode ser entendida como um texto

amplo e contínuo, composto de camadas que se sobrepõem a todo instante, trocando

informações e construindo novos textos.

A cultura popular passa a ser também entendida neste trabalho, a partir da mesma

visão de Costa, (2005, f. 22):

[...] não como algo exótico, produto de exportação ou atração turística, mas

considerando-a um estrato da cultura brasileira em suas relações com os

outros estratos mais sujeitos à rapidez das transformações das sociedades

modernas e à velocidade contemporânea.

Há uma tendência ao desmerecimento das manifestações culturais que fogem às

regras estabelecidas pela hegemonia cultural, de base eurocêntrica. Com isso, muitas vezes,

essa cultura popular tem sido marginalizada por uma elite cultural, a qual na maioria das

vezes desqualifica as demais formas que fogem aos padrões de cultura estabelecidos pelos

dominantes, pois como se tem conhecimento, “toda manifestação popular tende portanto a ser

inserida num espaço de subordinação que arbitrariamente é imposto a partir do alto” (ORTIZ,

2003, p. 78). Não há, contudo, entre a cultura popular e a cultura hegemônica, uma relação de

alienação, como até pode parecer, mas uma relação de forças, em que o dominante determina,

classifica e exclui.

Considera-se se como elite cultural, aquela que representa uma visão de cultura,

tomando como referência maior a hegemonia cultural de base eurocêntrica, imposta pelo

colonizador durante a colonização, embora se saiba que atualmente, a elite cultural brasileira

não aparece exclusivamente ratificada somente pelos preceitos e valores canônicos desse

colonizador.

Page 45: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

44

Desta maneira, já não se pode afirmar que a cultura brasileira da elite seja, na

atualidade, apenas eurocêntrica e firmada nos valores da época do colonizador, porque há

muitos modos de reprodução centralizadores, os quais não são apenas do etnocentrismo

europeu. Muitos desses valores etnocêntricos do colonizador foram também apropriados e

reinventados pela cultura popular e encontram-se bem fundamentados dentro das suas

próprias bases de discriminação e de marginalização. Isto nos faz perceber que tais ideias

valorativas e hierarquizantes perpassam por todas as camadas culturais brasileiras, inclusive

pelas ditas marginalizadas.

Para melhor entendimento do que vem a ser uma visão etnocêntrica, convém

afirmar que “Etnocentrismo é uma visão de mundo onde o nosso próprio grupo é tomado

como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores,

nossos modelos, nossas definições do que é a existência” (ROCHA, 1988, p. 5). Uma visão

etnocêntrica é aquela em que um indivíduo, ou grupo de indivíduos faz de um grupo social

diferente do seu, tomando como base, os valores, referências e padrões adotados pelo grupo

social ao qual esse indivíduo ou grupo fazem parte. Segundo Rocha (1988), o grupo do “eu”

faz da sua visão a única possível, a melhor, a natural, a superior, a certa e o grupo do “outro”

passa a ser considerado como engraçado, absurdo, anormal ou ininteligível.

Apesar de Câmara Cascudo, tido como o maior folclorista brasileiro, e das suas

posições, as quais podem ser consideradas como conservadoras, torna-se pertinente a sua

presença na discussão sobre estudos culturais e contemporaneidade, proposta neste trabalho,

uma vez que foram inúmeras as contribuições do autor aos estudos da cultura popular, por ser

um dos primeiros a trazer uma série de abordagens e informações, o que muito contribuiu

para o conhecimento da cultura popular brasileira. Partindo-se de suas considerações, pode-se

chegar até a uma ressignificação das fronteiras culturais do Brasil, ou seja, repensar valores,

discursos e práticas culturais. Dessa forma, as palavras de Cascudo são validadas para tratar

da temática.

Sendo assim, não se deve compreender cultura popular através do seu conceito

clássico e predominante que se estabeleceu por muito tempo. Segundo Chartier (2003), a

cultura popular era concebida na Europa e, possivelmente nos Estados Unidos, a partir de três

ideias: como algo que se opunha à cultura letrada e dominante; como popular conforme o seu

público; e tomando as expressões culturais como essencialmente puras, destacando algumas

como intrinsecamente populares.

Segundo Ortiz (2003), não se pode mais pensar a cultura popular associada

somente à persistência do elemento conservador e à valorização da tradição como presença do

Page 46: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

45

passado, apesar desta posição conservadora da cultura popular ter dominado grande parte da

literatura folclórica brasileira. O conceito de cultura popular deve ultrapassar a barreira da

assimilação com a tradição e ir mais além, relacionando-se com ideia de conscientização, de

ação política, de crenças, valores e posicionamentos que representem o povo. Dessa forma

também se pode considerar que:

“Cultura Popular” não é, pois, uma concepção de mundo das classes

subalternas [...] nem sequer os produtos artísticos elaborados pelas camadas

populares, mas um projeto político que utiliza a cultura como elemento de

sua realização (ORTIZ, 2003, p. 72).

Na contemporaneidade, os estudos culturais não mais coadunam também com a

utilização dos rótulos: erudito e popular, uma vez que as expressões culturais, até então tidas

como populares, não têm qualidade inferior ou mais simples que as vistas como eruditas e

nem podem mais ser consideradas como de baixo merecimento.

Torna-se mister, acrescentar ainda, uma comparação sobre Literatura popular e

tradicional, feita por Cascudo, (2008, p. 331-332) em seu Dicionário do Folclore Brasileiro,

no qual define a literatura popular como aquela que “tipicamente impressa, não exclui a

passagem à oralidade. É veiculada por meio de folhetos que abordam os mais variados

assuntos” e a literatura tradicional, como aquela que “sempre impressa, tem sua permanência

no tempo, constantemente renovada pela reimpressão [...]”.

O termo “Literatura oral” foi criado oficialmente em 1881, por Paul Sèbillot. A

literatura oral, considerada por Cascudo (2008, p. 333) como “todas as manifestações

culturais, de fundo literário, transmitida por processos não gráficos”, capaz de caracterizar um

determinado grupo social, tendo a memória como a principal forma de registro, sofre um

processo de marginalização, pois se constitui na maioria das vezes num produto cultural de

uma população economicamente menos favorecida.

A elite cultural tende a deixar às margens, excluir a literatura popular do cânone

oficial, chegando a criar estereótipos e a classificá-la como ineficaz, pitoresca e desprovida de

valores estéticos. Nessas circunstâncias, vale destacar ainda Cascudo (2006, p. 25), quando

declara que:

A Literatura Oral é como se não existisse. Ao lado daquele mundo de

clássicos, românticos, naturalistas, independentes, digladiando-se,

discutindo, cientes da atenção fixa do auditório, outra literatura sem nome

em sua antiguidade, viva e sonora, alimentada pelas fontes perpétuas da

imaginação, colaboradora da criação primitiva, com seus gêneros, espécies,

Page 47: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

46

finalidades, vibração e movimento, continua rumorosa e eterna, ignorada e

teimosa, como rio na solidão e cachoeira no meio do mato.

Nada melhor do que as palavras poéticas supracitadas de Cascudo para retratar a

literatura oral como uma das formas de expressão cultural. Logo, não se pode desmerecer a

literatura popular, frente à literatura tradicional. Esta “literatura que chamamos oficial, pela

sua obediência aos ritos modernos ou antigos de escolas ou de predileções individuais,

expressa uma ação refletida e puramente intelectual” (CASCUDO, 2006. p. 25).

A literatura tida como oficial tem se desenvolvido e se classificado tomando como

base aspectos que constituem, na sociedade, a configuração de produções literárias escritas, as

quais privilegiam a norma linguística adotada por um grupo restrito de falantes que, mediados

por estratégias políticas, sociais e ideológicas, divulgam sua opção como a única aceita e

condizente com a representação do perfil do povo brasileiro. Tal circunstância ocasiona a

marginalização das produções que se afastam desse perfil, as quais passam a ser consideradas

como imperfeitas, não podendo fazer parte do seleto grupo literário estabelecido pelo cânone

oficial.

Entende-se como cânone, uma seleção de obras do ramo específico do

conhecimento, algo que passa a ser considerado como um modelo, o qual tende a ser

referendado por diversas gerações. Porém, a cultura dos dominantes acaba elegendo e

reverenciando as suas criações como padrão, excluindo aquelas que se distanciam de tais

marcas estéticas.

[...] O conceito de cânon implica um princípio de seleção (e exclusão) e,

assim, não pode se desvincular da questão do poder: obviamente, os que selecionam (e excluem) estão investidos da autoridade para fazê-lo e o farão

de acordo com os seus interesses (isto é: de sua classe, de sua cultura, etc.)

(REIS, R., 1992, p. 70).

Deste modo, esse caráter excludente faz o cânone tornar-se um problema, pois é

preciso tomar cuidado para que nesse processo de escolha dos parâmetros de seleção

canônica, não se impeça a entrada de artistas com suas obras e modalidades culturais que

fogem a critérios pré-estabelecidos, quer sejam estéticos ou ideológicos. Críticos como

Harold Bloom, por exemplo, têm nos mostrado que a estética é uma condição essencial para

uma obra fazer parte de uma lista canônica, causando certo apagamento dos aspectos

ideológicos.

O movimento de dentro da tradição não pode ser ideológico nem colocar-se

a serviço de quaisquer objetivos sociais, por mais moralmente admiráveis

Page 48: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

47

que sejam. A gente só entra no cânone pela força poética, que se constitui

basicamente de um amálgama: domínio da linguagem figurativa,

originalidade, poder cognitivo, conhecimento, dicção exuberante. (BLOOM,

1995, p. 36)

Mas, como se percebe, Reis, R. (1992) destaca que a ideologia não deve ser

apagada, pois é algo latente em todas as escolhas do homem. E até para o estabelecimento dos

critérios estéticos, a marca ideológica impera. Logo, pode-se afirmar que ideologia e estética

se completam na consolidação dos cânones sem nenhuma sobrepor-se à outra.

O que se sugere, portanto, não é o apagamento do cânone, mas a democratização

de um espaço para o “não-canônico”, ou seja, a criação de um “contracânone”, um cânone

paralelo, para que expressões artístico-culturais de grande importância como a literatura oral

possam ter visibilidade e não sejam relegadas a um plano inferior, pois a cultura nacional

popular e a de elite, durante muito tempo, vêm convivendo lado a lado.

Sendo assim, poderá ocorrer uma alternância de lugar, uma penetração de

manifestações marginalizadas nas barreiras do cânone ocidental. Como se sabe, autores e

obras antes tidos como não-canônicos, hoje, fazem parte desse cânone oficial. Não se propõe

o fim do modelo oficial, pois os modelos sempre existirão, mas uma democratização para que

as culturas excluídas possam adentrar nessa lista e deixem de ser vistas como subculturas, e

sim como representações da identidade nacional.

Mas, percebe-se ainda que estas produções orais vêem-se relegadas ao grupo das

criações populares e rotuladas como iniciativas isoladas que tendem a trilhar pelas margens

desse cânone excludente. Os seus criadores e receptores não recebem o devido

reconhecimento social, nem são considerados como aptos a representarem a literatura e a

cultura nacional, embora já se visualize uma certa transformação das opiniões nesse aspecto.

Tem-se notado, nos últimos tempos, uma mudança no que concerne aos temas e

conceitos relacionados à literatura popular. Para Santos, (1995), o próprio termo “popular” é

literalmente repleto de definições verdadeiras ou falsas, consideradas como problemáticas por

gerações de estudiosos. Aparece muitas vezes distorcido ou associado a algo inferior, quando

comparado ao erudito, oficial e culto, que geralmente são associados à cultura escrita,

ratificada pela sociedade grafocêntrica. Mas, essa visão vem sendo revista e redimensionada,

pois de acordo com Santos, (1995, p. 33-34),

A definição da literatura oral, por sua vez, mudou consideravelmente desde

Paul Sébillot, criador oficial do termo, que o assimilava a popular e

analfabeta [...] a literatura oral está saindo do gueto da folclorização [...]

(grifo da autora).

Page 49: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

48

São diversas as formas em que a literatura oral se apresenta. Pode-se considerar

como literatura oral, os contos, as lendas, mitos, causos, advinhações, provérbios, parlendas,

cantos, orações, anedotas, dentre outras manifestações literárias transmitidas oralmente.

3.1 O MULTICULTURALISMO COMO MARCA DAS NARRATIVAS

ORAIS

As narrativas orais constituem um segmento da literatura popular capaz de fazer

emergir os traços culturais de um grupo, de uma comunidade, de uma nação. Essas narrativas

confirmam uma cultura que se apoia na diversidade, uma vez que as diversas culturas se

relacionam e se interpenetram, influenciando-se mutuamente. Já não é mais possível defender

um conceito de cultura centrado na homogeneidade, numa visão tradicional, a qual

desconsidera as variedades de influências, pois Bhabha (2003, p. 24, grifo do autor) mostra

que “os próprios conceitos de culturas nacionais homogêneas, a transmissão consensual ou

contígua de tradições históricas, ou comunidades étnicas „orgânicas‟ – enquanto base de

comparativismo cultural –, estão em profundo processo de redefinição”.

Considerado como a existência de muitas culturas num determinado grupo social,

cidade ou país, o multiculturalismo apresenta-se como uma realidade em praticamente todas

as culturas brasileiras, já que se pode observar a predominância do pluralismo cultural em

todas as regiões do Brasil. Sendo assim, Honwana (2006, p. 20) ressalta que:

Cresce a consciência de que a preservação do pluralismo cultural é a única

forma de garantir que a nossa arte, a nossa literatura, como os outros

elementos que definem a nossa identidade cultural, possam se manifestar e

florescer no espaço que lhes é próprio.

No multiculturalismo, essas culturas convivem umas com as outras deixando as

suas marcas nas diversas formas de expressão cultural, como na literatura por exemplo. No

Brasil, uma nação multicultural, as culturas afrodescendentes e indígenas convivem lado a

lado com a do colonizador português, dentre outras de povos que aqui se firmaram durante e

após o processo de colonização, através do processo migratório.

Como a cultura pode ser considerada uma referência a crenças, comportamentos,

valores, instituições, regras morais que permeiam e identificam uma sociedade, a nação

brasileira acaba se constituindo culturalmente na diversidade cultural, trazendo consigo

referências de diversos povos e seus elementos, marcas e características. O sentido rigoroso

Page 50: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

49

de nação como grupo de pessoas com os mesmos hábitos, costumes, tradiçoes e valores passa

a ser democratizado para a visão de um grupo, o qual apresenta aspectos que os aproximam

como língua e território, mas com certas diferenças em outros, emboram convivam entre si

diariamente com tais diferenças. É o que se poderia chamar de nação multicultural.

Uma das maneiras de se confirmar o multiculturalismo nas narrativas orais, como

as do Mocambo dos Ventos é através da sua própria autoria, a qual não é atribuída

exclusivamente a um indivíduo, isto é, não se pode nomear, identificar um autor específico

para a narrativa oral, pois esta é de autoria coletiva. Mesmo podendo-se atribuir uma autoria

ao narrador, no momento da transmissão da narrativa, não se pode dizer que o texto é

exclusivamente seu, pois os textos narrados são repassados de geração a geração, embora cada

narrador acrescente o seu estilo pessoal e as marcas culturais locais.

Para Almeida e Queiroz (2004, p. 148) “o contador figura sempre como

intérprete, e a função da autoria é atribuída a abstrações como a tradição, a coletividade, o

povo, não se cogitando a identificação de um autor individual”. Acrescente-se que, além de

intérprete, pode-se considerá-lo também um criador de seu texto, um artífice da memória,

ainda que represente uma coletividade, mas não um autor exclusivo. Pode-se perceber a

incerteza quanto ao momento de criação das narrativas, mas não se pode negar a fluidez com

que são re-elaboradas de narrador para narrador, e recontadas a partir das experiências

individuais de cada um, estabelecidas na relação com o outro.

Com isto, pode-se afirmar que o multiculturalismo faz-se notório na constituição

histórico-cultural dos povos, especialmente do brasileiro. O Brasil apresenta uma realidade

cultural apoiada na heterogeneidade, uma vez que a nação brasileira é constituída

principalmente na miscigenação de povos nativos, colonizadores e afrodescendentes.

Confirmando tal assertiva, Cascudo (2006, p. 27) aponta que:

A literatura Oral brasileira se comporá dos elementos trazidos pelas três

raças para a memória e o uso do povo atual. Indígenas, portugueses e

africanos possuíam cantos, danças, estórias, lembranças guerreiras, mitos,

cantigas de embalar, anedota, poetas e cantores profissionais, uma já longa

e espalhada admiração ao redor dos homens que sabiam falar e entoar.

Sendo assim, a cultura brasileira é plural, diversificada e não uma cultura

uniforme e singular, pois as diversas vertentes culturais aqui presentes, contribuem para a sua

consolidação numa mistura das múltiplas faces de seus múltiplos povos. Para Bhabha (2003,

p. 25), “cada vez mais, as culturas „nacionais‟ estão sendo produzidas a partir da perspectiva

de minorias destituídas.” Então, essas “minorias destituídas”, que formam a nação brasileira,

Page 51: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

50

tornam-se extremamente importantes para a definição de uma cultura capaz de melhor

representar o nosso povo, pois não existe povo que possua uma só cultura, fechada,

desprovida de influências externas. Nesse sentido, as discussões e análises das narrativas não

estão pautadas a partir de uma única origem cultural, mas de um texto híbrido, pois se busca o

estudo de uma poética própria, a qual faz parte de um processo que amplia a perspectiva de

criação do texto oral.

As narrativas orais são compostas de elementos não somente regionais, mas de

caráter universal. Pode-se até, equivocadamente, entender que pelo fato de fazer parte da

camada popular, essas narrativas constituam-se apenas de elementos e temas da região, do

lugar onde se encontram. Muito pelo contrário, “as estórias populares no Brasil não são mais

regionais ou julgadamente nascidas no país, mas aquelas de caráter universal, antigas,

seculares, espalhadas por quase toda a superfície da terra” (CASCUDO, 2006, p. 33).

Bhabha (2003) ressalta a junção do universal com o regional nas culturas

populares, como ocorre com as narrativas, as quais não devem ser vistas como

exclusivamente representantes de aspectos regionais. Essas narrativas apresentam elementos

universais, que foram introduzidos pela memória dos colonos e por isso não se pode afirmar

que exista uma narrativa de origem exclusivamente ibérica, africana ou indígena. Há sempre

uma fusão de elementos das diversas culturas.

Até mesmo porque, quando se fala da cultura ibérica, esta se apresenta composta

de elementos temáticos de várias culturas como a celta, a moura e a latina, dentre outras. Não

se pode esquecer também de que os povos afrodescendentes são oriundos de uma pluralidade

cultural advinda de várias regiões, as quais formam a vastidão territorial do continente

africano, conforme se observa em depoimento de Amadou Hampâté Bâ, recolhido em 1986

por Hélène Heckman:

Quando se fala da “tradição africana”, nunca se deve generalizar. Não há

uma África, não há um homem africano, não há uma tradição africana

válida para todas as regiões e todas as etnias. Claro, existem grandes

constantes (a presença do sagrado em todas as coisas, a relação entre os

mundos visível e invisível e entre os vivos e os mortos, o sentido

comunitário, o respeito religioso pela mãe, etc.), mas também há numerosas

diferenças: deuses, símbolos sagrados, proibições religiosas e costumes

sociais delas resultantes, que variam de uma região a outra, de uma etnia a

outra; às vezes, de aldeia para aldeia (HAMPÂTÉ-BÂ, 2003, p. 14).

Já no que se refere às narrativas indígenas, que também são de autoria de povos de

diversas etnias, quando estas chegaram ao nosso meio e se traduziram para a língua

Page 52: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

51

portuguesa, naturalmente os elementos externos à sua cultura foram incorporados. Nesse

sentido, Costa (1998, p. 21) afirma:

No caso da cultura brasileira, devemos ter em mente que a tradição oral

ibérica trazida com a língua e a cultura portuguesa, por razões históricas, é a

principal vertente de nossa cultura popular. Porém o legado ibérico,

mesclado com a contribuição negra e indígena, enriquecido pela

interferência de elementos tomados de um contexto sociocultural brasileiro,

resultou em uma tradição diferenciada da européia.

Cascudo (2006 p. 34) discute essa ausência de exclusivismo total na literatura

oral, que pode até constituir-se de elementos locais, de alguma coisa curiosa e sugestiva que

não se recebeu de fora, mas em maioria, de elementos universais, importados, acrescentando

que:

A produção local, de fundo indígena, reduzir-se-á às áreas geográficas em

que a tribo se fixou. A negra espalhar-se-ia mais rapidamente através do

mestiço. A segunda geração brasileira, mamelucos e curibocas, “cabras” e

mulatos, foi a estação retransmissora, espalhando no ar as estórias de seus

pais.

Nos últimos tempos, a literatura oral começa então a sair das margens para

ultrapassar as fronteiras do preconceito e as barreiras impostas pelo cânone, para adentrar

num espaço em que o foco dos estudos literários faz com que comece a ganhar relevância no

universo da literatura, passando a ser vista como um instrumento capaz de retratar o seu povo,

transmitir conhecimentos, valores, religião, costumes, através dos contos, lendas, poesias,

músicas, orações, etc. Dessa forma, convém afirmar neste estudo, que o texto literário oral

Poderá ser melhor definido pelo conceito de etnotexto, que designa o

discurso que um grupo social, uma coletividade elabora sobre sua própria

cultura, na diversidade de seus componentes, e através do qual reforça ou

questiona sua identidade” (SANTOS, 1995, p. 39, grifos da autora).

3.2 LITERATURA E IDENTIDADES: DISCUTINDO CONCEITOS

3.2.1 Identidade: um conceito em construção

A discussão sobre a identidade cultural tem se tornado cada vez mais presente no

campo da teoria social. Abre-se um campo discursivo no que concerne aos conceitos de

Page 53: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

52

cultura e identidade, e de como se consolidam e têm se mantido dentro dos grupos sociais, em

especial daquelas culturas de fronteiras12

.

Não se admite mais a homogeneidade da cultura, como também a sua

imutabilidade. Nota-se que o conceito de identidade passa por um processo de instabilidade e

de redefinição. Nesse sentido, Meihy (2005, p. 86) nos diz que:

Modernamente, no mundo globalizado, novos problemas têm atingido a

estabilidade do conceito de identidade, o que leva a duas alternativas

possíveis: a “multiplicidade de identidades” ou a “negociação de

identidades”.

Deste modo, a visão de Meihy, como as de outros estudiosos do tema, nos

mostram que o conceito de identidade, assim como a própria identidade, ainda estão em

formação, buscando um consenso diante da diversidade de conceitos e de afirmações

existentes. Nesse aspecto, Hall (2000, p. 08) afirma:

O próprio conceito com o qual estamos lidando, “identidade”, é

demasiadamente complexo, muito pouco desenvolvido e muito pouco

compreendido na ciência social contemporânea para ser definitivamente

posto à prova.

Tem-se notado que o conceito de identidade, tida como fixa e estável, já não se

enquadra mais nos nossos dias, pois ela se constrói, apoiando-se em um processo contínuo de

identificação, que a cada momento se aprimora e se completa. Para Hall (2000) a identidade

plenamente unificada, completa e segura é uma fantasia. Considerando-se esse fato da

identidade estar sempre inacabada e em construção, Meihy (2005, p. 82) informa que:

Modernamente, todos estamos submetidos a uma multiplicação de pólos

possivelmente identitários, que, por sua vez, sofrem alterações dadas as

influências das variações da cultura e as situações a que se submetem as

pessoas.

Percebe-se ainda, que o trabalho com as identidades, devido a essa multiplicidade

de pólos e de fatores identitários presentes em uma única pessoa, torna-se de difícil precisão,

uma vez que a identidade cultural consolida-se na diversidade. De certo modo, a cultura

diversificada dos grupos minoritários, considerada como inferior e desmerecida pelos grupos

hegemônicos, tem soado como falsa nos discursos dos mesmos propagadores do cânone

12

Segundo Canclini (2006), hoje, todas as culturas são culturas de fronteira. São culturas que se influenciam

mutuamente, que acabam se construindo no choque de uma com as outras, ou seja, no contato, na interação e na

troca; são culturas em trânsito.

Page 54: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

53

elitista, o que não deve mais ser tolerado. Burke (2006, p. 14), versando sobre esse processo

de desmerecimento das minorias na construção da identidade, chama a atenção de que:

Um dos sinais do clima intelectual de nossa época é o uso crescente do

termo “essencialismo” como um modo de criticar o oponente em todo tipo

de discussão. Nações, classes sociais, tribos e castas têm todos sido

“desconstruídos” no sentido de serem descritos como entidades falsas.

Sendo assim, defende-se o conceito de identidade como um processo dinâmico e

em construção, em torno do qual o indivíduo se referencia e procura construir a si mesmo e a

seu mundo, desenvolvendo um sentido de pertencimento e de autoria. A identidade se constrói

no estabelecimento de relações entre o indivíduo e o seu mundo e também entre o indivíduo e

o outro, ou seja, a partir das relações que estabelece com o outro e com as diferenças. Sobre a

construção da identidade e a relação do indivíduo com o outro, pode-se apontar que:

Tanto o indivíduo quanto suas concepções de realidade são constituídos nas

relações interpessoais. Essas inter-relações são mediadas por crenças,

padrões, práticas e normas de toda uma sociedade e esta, por sua vez, em

parte, é constituída por esse mesmo indivíduo dela participante, em um

processo contínuo e dinâmico de mútua construção, cuja direção não é

casual, mas determinada pelo somatório das ações políticas de todos os

indivíduos que a constituem. (FERREIRA, R., 2004, p. 44).

Logo, pode-se concluir essa acepção sobre identidade, trazendo FERREIRA, R.

(2004, p. 47), que a considera como “uma referência em torno da qual o indivíduo se

autorreconhece e se constitui, estando em constante transformação e construída a partir de sua

relação com o outro”. Ainda, dentro dessa perspectiva de uma visão de identidade como lugar

de confluência múltipla, Chamoiseau, (1997, p. 200 apud Bernd 2003, p. 27-28), diz que:

O Outro me modifica e eu o modifico. Seu contato me anima e eu o animo.

E estes desdobramentos nos oferecem ângulos de sobrevida, e nos desselam

e nos amplificam. Cada outro torna-se um componente de mim, embora

permaneça distinto. Eu me torno o que sou em meu apoio aberto sobre o

Outro.

3.2.2 Cultura afrodescendente: firmando identidades

Conforme as estatísticas atestam, o Brasil é o segundo país do mundo que

apresenta a maior quantidade de negros. Somos a maior população negra fora da África e

dessa forma não há como negar no Brasil, a expressiva presença demográfica de

Page 55: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

54

afrodescentes13

, pois os valores da ancestralidade africana encontram-se presentes e muito

atuantes no processo de construção da identidade e da cidadania. Contudo, percebe-se a

desvalorização dos elementos das cosmovisões de matrizes africanas e que os valores

determinados pela cultura do branco europeu são considerados superiores, fazendo com que

em certos momentos da história cultural brasileira, os afrodescendentes venham desenvolver

uma autoimagem negativa, uma baixa autoestima .

Nota-se que o próprio sistema social contribui para a perpetuação de um processo

de exclusão, gerando assim uma condição desumana de existência dos afrodescendentes. O

próprio negro, desde muito tempo atrás, costumava negar a sua cultura e tradição, pois

O africano escravizado, com sua estranheza e diferença, era tanto mais

aceito quanto mais negava e se distanciava de seus ritos e de sua cultura. Só

na negação de si mesmo ele podia ser reconhecido como gente, como

pessoa, como humano (GÓIS, 2008, p. 87).

Essa situação é reafirmada pelo discurso do “branqueamento”, estimulado por

parcelas da sociedade, através da mídia e da literatura, que atrelavam, há até bem pouco

tempo, a imagem do negro a estereótipos negativos, reforçando o preconceito racial criado no

Brasil desde a época da colonização. Com isso, aspectos importantes deixam de ser

considerados, como a efetiva integração social dos antigos negros escravizados, dentre outros.

É preciso salientar que o processo de interação social contribui para a construção

da identidade afrodescendente e que muitas vezes, os valores negativos sobre o negro são

repassados e incorporados dentro de um grupo social, causando o desenvolvimento de uma

identidade que inclui valores estigmatizados, como se pode observar na fala da Sra. Maria

Francisca da Silva, moradora do Mocambo dos Ventos, em parte de sua narrativa sobre o

Nego d‟Água: “A moça era bonitona, cabelão bom, né? Ele só gostava de mulher bonita, de

gente feia não, ele é negro preto e não gosta de preto não. A moça era morena, bonita do

cabelão na cintura”.

Há, portanto, a reprodução pelo próprio afrodescendente, de um discurso

preconceituoso, pautado em valores da cultura do colonizador (branco) que desmerece e

desqualifica o negro. Vale ressaltar, que a Sra. Maria Francisca possui 70 anos de idade e é

negra. (Figura 27).

13

De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, PNAD, IBGE (2007), a população

brasileira é composta de 49,5 % de negros (pardos ou pretos) que se autodeclararam, comprovando que,

praticamente, metade da população brasileira constitui-se de afrodescendentes. Disponível em:

http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2007/sintese/tab1_2.pdf.

Acesso em: 17 set. 2009.

Page 56: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

55

O Brasil, país que se constitui culturalmente numa pluralidade de grupos étnicos,

apresenta um imaginário coletivo que é compartilhado, evidentemente, por toda a coletividade

social. Muito desse imaginário coletivo está relacionado à cultura do afrodescendente, logo

“o desenvolvimento da identidade do brasileiro está absolutamente condicionado à

participação dos africanos na vida brasileira e sua sabedoria está presente nas manifestações

culturais, nos gestos e nas relações” (FERREIRA, R., 2004, p. 40). E os seus valores,

repassados de geração a geração, agem diretamente no processo de formação da cidadania.

O desmerecimento da cultura e da imagem do afrodescendente perpetua-se em

nossa história há muito tempo, sob o amparo do clero. Segundo FERREIRA, R. (2004), o

homem africano e seus valores foram associados a qualidades negativas pelo europeu desde

antes do processo de colonização do Brasil e a Igreja Católica era a agência legitimadora dos

valores e práticas humanas que iam de encontro ao negro e à sua cultura, com a intenção de

regulamentar as ações dos cruzados e dos colonizadores. Para reforçar tal acepção e entender

como se consolida, desde a idade média, o uso dessas práticas, traz-se a bula Romanus

Pontifex, de 8 de janeiro de 1454, do Papa Nicolau V, a esse respeito:

Não sem grande alegria chegou ao nosso conhecimento que nosso dileto

filho d. Henrique, incendido no ardor da fé e zelo da salvação das almas, se

esforça por fazer conhecer e venerar em todo o orbe o nome gloriosíssimo

de Deus, reduzindo à sua fé não só os sarracenos, inimigos dela, como

também quaisquer outros infiéis. Guinéus e negros tomados pela força,

outros legitimamente adquiridos foram trazidos ao reino, o que

esperamos progrida até a conversão do povo ou ao menos de muito mais.

Por isso nós, tudo pensado com devida ponderação, concedemos ao dito rei

Afonso a plena e livre faculdade entre outras, de invadir, conquistar,

subjugar a quaisquer sarracenos e pagãos, inimigos de Cristo, sua terra e

bens, a todos reduzir à servidão e tudo praticar em utilidade própria e dos

seus descendentes. Tudo declaramos pertencer de direito in perpetuum aos

mesmos d. Afonso e seus sucessores, e ao infante. Se alguém, indivíduo ou

coletividade, infringir essas determinações, seja excomungado [...]

(RIBEIRO, D., 1995 apud FERREIRA, R., 2004, p. 41, grifo nosso).

Na atualidade, como se tem conhecimento, tais procedimentos discriminatórios

não são mais tolerados na sociedade brasileira. A presença das leis anti-racismo, da lei

10.639/03, alterada pela 11.645/200814

, que versa sobre a obrigatoriedade do estudo da

14

Segundo a Lei Federal 11.645 de 10 de março de 2008, o conteúdo programático deverá incluir diversos

aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos

étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no

Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as

suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil. Estabelece ainda que os

conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no

Page 57: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

56

história e cultura afro-brasileira e indígena para estabelecimentos de ensino fundamental e

médio, públicos e privados, em todo o país, bem como de outros atos legais voltados para essa

esfera, tem coibido atitudes racistas explícitas e motivado, de certa forma, a valorização da

cultura afrodescendente.

Mas não impede que indiretamente, preconceitos contra os negros e sua cultura

ainda existam dentro da sociedade. Ou seja, o discurso do “branqueamento” até agora não foi

banido da realidade social brasileira, pois o afrodescendente ainda enfrenta, nos dias de hoje,

uma constante discriminação racial, de forma aberta ou encoberta. Dessa forma, não se pode

negar que “a identidade da pessoa negra traz do passado a negação da tradição africana, a

condição de escravo e o estigma de ser um objeto de uso como instrumento de trabalho”

(FERREIRA, R. 2004).

No Mocambo dos Ventos, essa identidade e a condição de escravo não é negada.

Apesar da internalização, até de forma inconsciente, de alguns aspectos do discurso

branqueador europeu, os seus moradores reconhecem a sua descendência de negros

escravizados, o que consolida o local como um lugar de remanescentes de quilombos. Após

ser questionada sobre a sua descendência, a Sra. Maria Alexandrina Caxiado não hesitou em

afirmar-se descendente de escravos. “A minha bisavó era escrava fugida. Foi pega no mato,

braba, de dente de cachorro [...] Aqui todo mundo é descendente de escravo”.

Dentro de um universo que deforma toda essa diversidade cultural, criado pelo

colonizador europeu, o afrodescendente segue enfrentando dificuldades para o

desenvolvimento de sua identidade. É preciso assim, compreender a maneira como ele

desenvolve essa identidade, principalmente em contextos sociais adversos. A literatura negra

é um exemplo de sobrevivência nessa adversidade. Sabe-se que a literatura negra brasileira,

como nos mostra BERND (2003, p. 18) “tem sua gênese no resgate de uma memória coletiva

solapada pelo monologismo da historiografia oficial”.

Com as narrativas orais do Mocambo dos Ventos não acontece de forma diferente,

que, por fazerem parte de uma comunidade formada por afrodescendentes, não recebem a

devida valorização e reconhecimento literário. Elas têm sido marginalizadas pelo cânone,

porque, segundo Duarte (2002), a literatura negra, de certo modo denuncia o caráter

etnocêntrico de muitos dos valores adotados pela academia literária. Elas são excluídas do rol

das literaturas tidas como belas, devido à falta do purismo, ou seja, ao fato de que o

âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e de história

brasileiras.

Page 58: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

57

conservadorismo estético elege como belo canônico universal uma literatura sem

contaminação com as contingências ou pulsões da história.

Proibidos pelos senhores de escravos de manifestarem a sua cultura, os negros

escravizados aqui no Brasil tiveram que criar elementos que os permitissem sobreviver

culturalmente e uma das alternativas foi a ressignificação dos seus laços culturais. Surge daí,

o sincretismo15

religioso como forma de manter os cultos de suas divindades que tiveram de

ser batizadas com os nomes dos santos católicos, camuflando os rituais religiosos de origem.

Como a religião, muitos aspectos da cultura negra tiveram que ser reinventados para que

pudessem ser aceitos em suas práticas, tornando-se elementos da identidade cultural.

A construção da identidade afrodescendente, diante de toda uma história de

supressão cultural, traz a marca da reinvenção e do compartilhamento de traços culturais.

Assim, a hibridização passou também a ser a marca dessa identidade, que através da

adaptação da sua cultura à nova realidade, acabou incorporando elementos da hegemonia

europeia, proporcionando a construção de uma nova identidade cultural.

E assim esse processo se desenrola até hoje. A tradição oral nos proporciona

apreender as marcas do multiculturalismo presentes na identidade afrodescendente, sendo

que, na vivência desses povos ainda é latente a prática da ressignificação de marcas culturais,

pois tal como na época da colonização, o processo de desmerecimento e supressão dos laços

da afrodescendência continuam no contexto sociocultural brasileiro.

Firmar uma identidade afrodescendente, portanto, exige o reconhecimento de

diversas marcas multiculturais que são incorporadas nesse processo. Muitas vezes, há nessa

identidade do afrodescendente, uma afirmação ideológica que não lhe favorece e também o

soterramento de elementos de sua cultura capazes de o identificarem com maior

fidedignidade. Dessa forma, segue procurando firmar-se nessa instabilidade identitária em que

a sua condição sociocultural na maioria das vezes, dificulta o seu autorreconhecimento, a sua

autoidentificação.

15

Sincretismo visto como uma intermistura de elementos culturais, o que dá uma nova fisionomia às culturas

que se colocam em contato. Ressalte-se que “o sincretismo não é uma coisa fixa, cristalizada, mas variável.

Continua ainda hoje sua evolução criadora, pois penetrou de tal forma nos costumes que dá sempre lugar a novas

identificações" (BASTIDE, 1973, p. 164).

Page 59: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

58

3.2.3 Hibridismo cultural e identidades líquidas

Fica difícil afirmar, que alguma cultura nos dias de hoje, possa viver num

processo total de isolamento. Por mais que haja resistência do seu povo, ou mesmo que as

situações de interação sejam as mais escassas, nenhuma cultura sobrevive sem receber

influência de outras tradições e valores. Pode até não ocorrer incorporação direta de marcas

exteriores, mas há influências no comportamento, inclusive quando o próprio grupo se

manifesta resistente, pode-se considerar que esse comportamento se consolida sob influências.

A realidade global aponta para um processo contínuo de transculturação, movido pela

intercomunicação promovida pelas tecnologias de informação e comunicação. Como afirma

Burke (2006, p. 101):

Em nosso mundo, nenhuma cultura é uma ilha. Na verdade já há muito

tempo que a maioria das culturas deixaram de ser ilhas. Com o passar dos

séculos, tem ficado cada vez mais difícil se manter o que poderia ser

chamado de “insulação” de culturas com o objetivo de defender essa

insularidade. Em outras palavras, todas as tradições culturais hoje estão em

contato mais ou menos direto com tradições alternativas.

Vale ressaltar que o contato entre os povos e suas culturas conduz ao que se

considera como hibridismo cultural. Nesse sentido, as formas híbridas que se constroem

dentro dessas culturas devem ser entendidas como o “resultado de encontros múltipos e não

como o resultado de um único encontro, quer encontros sucessivos adicionem novos

elementos à mistura quer reforcem os antigos elementos [...]” (BURKE, 2006, p. 31). As

influências mútuas se processam constantemente nesses contatos, porque ainda segundo

Burke (2006), não há entre os grupos uma fronteira cultural nítida ou firme e sim, pelo

contrário, um continuum16

cultural.

É como se essas culturas acabassem se interpenetrando, não havendo uma linha

limite entre elas. Daí surge o processo de hibridização da cultura, ou seja, de formação

cultural a partir de influências, características e aspectos múltiplos e não apenas de uma

origem única, unilateral e fechada. Canclini (2006) nos leva a compreender melhor a

hibridização quando a considera como processos socioculturais nos quais estruturas ou

práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas,

objetos e práticas.

16

Expressão e grifo do próprio Burke no texto, quando fala da relação híbrida entre as culturas, referindo-se à

continuidade entre as culturas de fronteira. (BURKE, 2006, p. 14).

Page 60: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

59

O hibridismo cultural tem recebido especial atenção nas discussões, ocupando

espaço relevante no tratamento dado à temática da identidade cultural, até porque a hibridez

tem desenvolvido um longo trajeto por entre as culturas latinoamericanas. Burke (2006, p. 16)

diz que “os historiadores também, inclusive eu mesmo, estão dedicando cada vez mais

atenção aos processos de encontro, contato, interação, troca e hibridização cultural”.

Um exemplo apontado por Canclini (2006) são os países em que as suas fronteiras

se entrecruzam, substituindo a solidez pela fluidez das formas culturais que se interpenetram

hibridizando as culturas de cada um.

Quando se trata de entender o entrecruzamento nas fronteiras entre países,

nas redes fluidas que intercomunicam os povos, etnias e classes, então o

popular e o culto, o nacional e o estrangeiro aparecem não como entidades,

mas como cenários. Um cenário – conforme vimos a propósito dos

monumentos, dos museus e da cultura popular – é um lugar onde o relato é

levado à cena (CANCLINI, 2006, p. 362).

Bauman (2005) também aponta para uma discussão sobre o fim da solidez das

identidades. Na modernidade, há uma maior influência entre as culturas, devido ao alcance

que os meios de comunicação de massa ocupam nas comunidades, até mesmo aquelas com

um maior grau de isolamento. O contato entre pessoas e entre culturas se faz com mais

facilidade e as identidades deixam de ser estáticas e fixas para se abrirem à fluidez cultural.

Como as águas do rio nunca são as mesmas, as identidades ribeirinhas também se

transformam e vivem numa movência constante de construção e reconstrução. Juntamente

com suas águas, se movem e flutuam, adotando uma transitoriedade de forma, assim como os

fluidos.

Estamos agora passando da fase “sólida” da modernidade para a fase

“fluida”. E os “fluidos” são assim chamados porque não conseguem manter

a forma por muito tempo e, a menos que sejam derramados num recipiente

apertado, continuam mudando de forma sob a influência até mesmo das

menores forças [...] Em nossa época líquido-moderna, em que o indivíduo

livremente flutuante, desimpedido, é o herói popular, “estar fixo” – ser

“identificado” de modo inflexível e sem alternativa – é algo cada vem mais

mal visto (BAUMAN, 2005, p. 35-57).

3.2.4 A identidade e os meios de comunicação de massa

Além das marcas culturais locais, não se pode desconsiderar as influências

culturais externas na definição identitária. Até mesmo essas culturas das “minorias” recebem

Page 61: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

60

constantemente influências da globalização hegemônica através dos meios de comunicação de

massa, em especial a TV. “Todos os níveis culturais se reconfiguram quando se produz uma

reviravolta da magnitude implicada pela transmissão eletrônica de imagens e sons.” (SARLO,

2000, p. 102).

Por isso, no processo de construção da identidade cultural, devem-se considerar os

meios de comunicação de massa e as influências que eles exercem sobre as culturas

populares, pois segundo Sarlo (2000), não há culturas populares não influenciadas pela

cultura de massa. Ainda para ela, culturas populares são artefatos que não existem em estado

puro. As culturas populares já não recebem apenas influências locais das vozes tradicionais

trazidas pela igreja e pelos setores dominantes, mas também dos meios de comunicação de

massa.

Essas culturas, através desses meios e das antenas parabólicas, como no caso do

Mocambo dos Ventos, acabam sendo influenciadas por outra perspectiva cultural,

estabelecendo-se um diálogo entre o seu mundo e o mundo apresentado pela modernidade

tecnológica. Dessa forma, são incorporadas inovações no discurso, na maneira de contar e de

representar a cultura dos sujeitos, mas não a superação ou extermínio dessas manifestações,

fazendo surgir um diálogo entre essas marcas e valores culturais que se entrecruzam e se

incorporam muito lentamente.

Daí que nossas populações possam, com certa facilidade, assimilar as

imagens da modernização e não poucas mudanças tecnológicas, porém

somente muito lenta e dolorosamente possam recompor seus sistemas de

valores, de normas éticas e virtudes cívicas. Tudo isso nos exige continuar o

esforço por desentranhar a cada dia mais complexa trama de mediações que

a relação comunicação/cultura/política articula. (MARTIN-BARBERO,

2003, p. 12-13).

Com a presença dos meios de comunicação de massa, há um processo de ruptura,

ou seja, o choque do tradicional com o moderno. E nesse choque, as tradições devem ganhar

força para, através desses meios, participarem de um espaço de maior repercussão na

construção da própria identidade nacional, pois Sarlo (2000, p. 103) nos mostra que “com a

televisão todas as subculturas participam de um espaço nacional-internacional que adota

características locais segundo a força que tenham as indústrias culturais de cada país”.

Isso nos faz perceber que a própria unidade nacional se fortalece através dos

meios de comunicação, pois eles contribuem para o avivamento das marcas identitárias, uma

vez que fazem com que essas marcas deixem as margens do isolamento e possam ser

reconhecidas como elementos essenciais na construção da identidade nacional. Com isso,

Page 62: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

61

pode-se afirmar que há uma influência recíproca entre as culturas populares e as de massa,

pois de certa forma uma acaba absorvendo elementos da outra.

Embora os meios de comunicação de massa possam trazer uma cultura

homogeneizada, entende-se que esta homogeneização, de certa forma, pode até ser

considerada como benéfica, porque contribui para a consolidação de uma cultura local forte e

reconhecida na totalidade cultural hegemônica, fazendo constituir-se como parte dela. Tais

meios servem para a divulgação dessa cultura local marginalizada. Monsiváis (1984 apud

Canclini 2006, p. 256) vem reforçar essa acepção afirmando que:

Os mexicanos aprenderam no rádio e no cinema a reconhecer-se como uma

totalidade que transcende as divisões étnicas e regionais: modos de falar e

de vestir-se, gostos e códigos de costumes antes distantes e dispersos,

juntam-se na linguagem com que a mídia representa as massas que

irrompem nas cidades e lhes dão uma síntese da identidade nacional. Tais

divisões étnicas e regionais acabam tomando uma dimensão nacional e

torna-se, de certa forma, inserida numa homogeneização cultural nacional.

Diante disso, a hegemonia provocada pelos meios se constrói e não se pode negá-

la. Dessa forma, só resta tê-los como um forte instrumento para a manutenção e conservação

das culturas populares e das suas identidades, embora não se possa ver claramente o que tenha

sido considerado como ganho.

As culturas populares, então, atravessam uma longa transição sobre a qual é

difícil fazer um balanço. Sabemos o que se perdeu, mas ninguém sabe ao

certo o que se ganhou desde que os meios audiovisuais implantaram sua

hegemonia (SARLO, 2000, p. 103).

Os meios de comunicação chegam e com eles a possibilidade de destruição e

corrosão das tradições culturais, mas trazem também a capacidade de criar pontes para ligar as

tradições culturais a uma multicultura. Basta, portanto, que se perceba a relevância desses

meios e que a sociedade os veja como possibilidade de fortalecimento da cultura popular e

não apenas de destruição. Não se pode fechar os olhos e negar a sua influência na hibridização

cultural que a cada dia se torna mais presente nas comunidades.

E para que, com esta hibridização, marcas identitárias não venham ser encobertas

pela areias do esquecimento, torna-se necessário permiti-las adentrarem na cultura de massa

através dos meios de comunicação. Para tanto, resta a democratização do acesso aos meios e

ofertas audiovisuais para estas culturas populares, igualdade e liberdade na seleção dos

instrumentos, das manifestações e das expressões culturais, pois ainda percorre nas veias de

nossa sociedade o sangue do poder elitista que tende a desmerecer a cultura popular das

Page 63: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

62

margens, impedindo que ocorra, conforme Martin-Barbero (1996), a verdadeira

democratização da televisão, sem tanta vinculação ao poder econômico, mas como espaço de

ressignificação cultural.

Essa democratização já pode ser percebida na TV Educativa da Bahia, a qual traz

em sua programação, a cultura dos povos de várias regiões do Estado. Programas como o

“Bahia de todos os cantos”, apresentado, atualmente, às quartas-feiras 20:30 horas e aos

Sábados nove horas, oportunizam o conhecimento dos territórios baianos e suas identidades,

através da exibição das suas manifestações culturais e religiosas. A divulgação dessas

manifestações para uma grande massa contribui para o fortalecimento das marcas locais, pois

nessa circunstância, muitos povos acabam se reconhecendo juntamente com sua cultura.

Pode-se utilizar como exemplo dessa realidade, o Mocambo dos Ventos que,

conforme relatado anteriormente neste trabalho, a maioria dos seus moradores possui em suas

casas, um aparelho de rádio, televisão e antena parabólica (Figura 25). Mesmo sendo uma

comunidade consideravelmente isolada dos grandes centros culturais, apresenta um contato

direto e permanente com a cultura dos meios de comunicação de massa. Esse contato e

interferência dos meios de comunicação de massa não apagam as marcas da cultura popular,

mas transformam-na e acrescentam-lhe outras marcas, outros discursos advindos de uma

ideologia e de uma intencionalidade presentes nessa cultura massificada, imposta pelo poder

socioeconômico, porque “os meios de comunicação constituem hoje espaços-chave de

condensação e intersecção de múltiplas redes de poder e de produção cultural [...]”

(MARTIN-BARBERO, 2003, p. 20).

3.2.5 Representação de identidades nas narrativas orais

Faz-se mister também neste estudo, uma abordagem sobre as manifestações

literárias e a representação da cultura da qual fazem parte. Hall (2000, p. 48) nos mostra que

“as identidades nacionais não são coisas com as quais nós nascemos, mas são formadas e

transformadas no interior da representação”. Coadunando com estas considerações, Bernd

(2003, p. 19) afirma que “a construção da identidade é indissociável da narrativa e

conseqüentemente da literatura”. Desse modo, é através das manifestações literárias, inclusive

as de cunho oral, que a identidade cultural se torna consistente e capaz de promover a sua

autoafirmação, uma vez que os textos literários expressam a identidade através das

representações.

Page 64: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

63

Nesse sentido, Hall (2000, p. 71) ainda argumenta que “a identidade está

profundamente envolvida no processo de representação”. Essa argumentação é também

confirmada por Bernd (2002, p. 36): “o texto literário pode ser um poderoso agente ou pelo

menos um excelente coadjuvante, quando se trata de construção, expressão e solidificação de

identidades de diferentes coletividades ou grupos étnico-culturais”.

As narrativas orais trazem representações temáticas, definições e conceitos, que,

mesmo modificados durante a transmissão, deixam marcas que possibilitam a identificação de

modos específicos da cultura brasileira. Expressam hábitos e valores cujo compartilhamento

se dá no ambiente familiar, religioso, comunitário, escolar. Todo este patrimônio está no

corpo e na mente das pessoas, onde quer que elas estejam. Dessa forma, faz-se necessário o

reconhecimento da pluralidade e polifonia17

da literatura como representação de culturas

multifacetadas e abertas às relações com o outro. Vieira (2003, p. 104) comenta que “rejeitar

ou marginalizar as histórias e as culturas daqueles que não representam o grupo dominante

tem conseqüências profundas na expressão da subjetividade e da identidade”. Nesse sentido,

Souza (2006) afirma que:

Com o processo de desierarquização do cânone literário, no entanto, essas

narrativas, outrora marginalizadas, atualmente são consideradas como uma

importante fonte de estudo, tanto nas vertentes da crítica literária, como no

âmbito cultural, sobretudo em pesquisas que visem a compreender e realçar

as diversidades culturais de localidades a serem analisadas. Além disso, as

narrativas orais podem contribuir para o entendimento do comportamento

humano em relação aos fenômenos naturais, bem como em relação à sua

própria história, tradições, hábitos, valores, medos, crenças e superstições

que, estabelecidas pelo imaginário, constituem a sua identidade. Pode

mostrar, ainda, a utilidade e o sentido das instituições sociais que

determinam o comportamento coletivo da comunidade em estudo.

A oralidade torna-se um fator preponderante para a construção da identidade

coletiva de uma etnia18

, que passa a ganhar projeção e visibilidade, ou seja, consegue sair das

margens e adentrar ao espaço, o qual, até então só era permitido ser ocupado por uma

literatura tradicional, estruturada e caracterizada aos moldes do cânone ocidental excludente.

17

Entenda-se o termo “polifonia” como sendo, segundo Bakhtin (2005), a presença de outros textos dentro de

um texto, causada pela inserção do autor num contexto, o qual já inclui previamente textos anteriores que lhe

inspiram ou influenciam. A polifonia pode ser também relacionada à heterogeneidade enunciativa. 18

O termo deriva do grego ethnikos, adjetivo de ethos, e refere-se ao povo ou nação. Em sua forma

contemporânea, “étnico” ainda mantém o seu significado básico no sentido em que descreve um grupo possuidor

de algum grau de coerência e solidariedade, composto por pessoas conscientes, ao menos em forma latente, de

terem origens e interesses comuns. Um grupo étnico não é mero agrupamento de pessoas ou de um setor da

população, mas uma agregação consciente de pessoas unidas ou proximamente relacionadas por experiências

compartilhadas (CASHMORE, 2000, p. 196). Para Casas (1984 apud Ferreira, R. 2004, p. 50), etnia refere-se a

uma “classificação de indivíduos, em termos grupais, que compartilham uma única herança social e cultural

(costumes, idioma, religião, e assim por diante) transmitida de geração a geração”.

Page 65: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

64

Através das narrativas orais, os registros de conhecimento de mundo, os valores, as crenças,

enfim, toda a história de vida, toda a cultura de um povo perpetua-se entre as diversas

gerações, sobrevivendo dentro de uma memória coletiva. Essas narrativas fazem parte,

segundo Bhabha (2003), de um processo social de representações, de reprodução e de re-

elaboração simbólica.

Em uma comunidade que tem a memória coletiva consolidada pela tradição oral,

visto que, através dela, a identidade cultural, crenças e valores se perpetuam

transgeracionalmente, as narrativas, como as do Mocambo dos Ventos e região do Miradouro,

tornam-se peças fundamentais para que a sua cultura sobreviva e exerça a sua força em meio

às influências de outras formas culturais, pois para essas culturas, a oralidade é considerada

como

[...] um conjunto complexo e heterogêneo de condutas e de modalidades

discursivas comuns, determinando um sistema de representações e uma

faculdade de todos os membros do corpo social de produzir certos signos,

de identificá-los e interpretá-los da mesma maneira: como – por isso mesmo

– um fator entre outros de unificação das atividades individuais

(ZUMTHOR, 1993, p. 22).

Para Le Goff (1996), nas sociedades em que a memória social constitui-se,

sobretudo na oralidade ou que ainda estão em vias de constituírem uma memória coletiva

escrita, faz-se notória a luta pelo domínio da memória, a fim de que não se perca a identidade

coletiva. Na transmissão oral dessas narrativas, repassam-se valores responsáveis por toda a

estrutura social, por toda a tradição de um povo. Logo, a literatura oral constitui-se em

instrumento de expressão identitária. É preciso compreender o grande valor da oralidade,

reforçar a importância dessas narrativas orais para o coletivo, pois

A memória realmente, para as culturas de pura oralidade, constitui-se – no

tempo e parcialmente no espaço – o único fator de coerência. À medida que

se expande o uso da escrita, sua importância social decresce, assim como

seu poder sobre os indivíduos – lentamente e não sem arrependimento.

Nada a eliminará jamais (ZUMTHOR, 1997, p. 232).

3.3 O CORPO E A VOZ NA ARTE DE CONTAR AS NARRATIVAS ORAIS

DO VELHO CHICO

A literatura oral, para que possa sobreviver dentro da cultura popular, depende

exclusivamente da transmissão entre os povos, através das palavras, das entonações e dos

Page 66: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

65

gestos. Com isso, não se pode deixar de lado o papel que os elementos performáticos exercem

na transmissão das narrativas orais do Velho Chico, pois o seu sentido não se constrói

exclusivamente na palavra. O texto oral narrado se compõe ainda de elementos extremamente

relevantes para o desfecho do enredo, a consolidação das ideias e das verdades narradas.

De acordo com Alcoforado (2008) estão associados à voz do narrador, vários

aspectos translinguísticos, específicos do discurso oral, como os gestos, dicção entonacional,

mímica facial, expressão corporal e o próprio estímulo da plateia, que não reduzem a

transmissão da mensagem exclusivamente à ação específica da voz. Outro aspecto

considerável é a pausa, utilizada pelo narrador experimentado, para intencionalmente dar um

sentido de ambiguidade, ou mesmo reforçar o efeito de seu discurso sobre o interlocutor.

Para a literatura oral, a performance19

contribui ativamente na construção do seu

sentido. É ela que vai dar ao ouvinte das narrativas orais, por exemplo, um entendimento que

só será consolidado por completo, mediante também a leitura dos gestos faciais, corporais e

da entonação da voz. Na recepção da oralidade, a palavra sozinha não constituirá o verdadeiro

e único sentido, pois

A “recepção” vai se fazer pela audição acompanhada da vista, uma e outra

tendo por objeto o discurso assim performatizado: é, com efeito, próprio da

situação oral, que transmissão e recepção aí constituam um ato único de

participação, co-presença, esta gerando o prazer. Esse ato único é a

performance. (ZUMTHOR, 2007, p. 65).

Dentro do universo performático, em meio ao qual o texto oral tradicional habita,

uma série de componentes da arte de narrar contribui para o envolvimento emocional da

plateia que passa a apreender em sua memória os valores e saberes da tradição. A

performance imprime mais funcionalidade e sentidos narrativos na recepção desse texto pela

comunidade. Conforme Alcoforado (2008), o efeito vocal da transmissão e a presença física

do produtor do texto imprimem ao ato da performance, um poder de persuasão e esse ato não

se restringe a um contexto exclusivamente verbal.

A linguagem performática contribui para a efetivação de um discurso que não

dever ser somente artisticamente verdadeiro, mas ainda culturalmente correto para os seus

interlocutores, para a sua plateia. Explicando melhor, a voz do narrador não pode destoar das

vozes da coletividade, sob o risco de comprometer o texto recriado.

19

Performance entendida como o desempenho, a maneira de atuar, de realizar e se comportar durante uma

apresentação. No caso deste estudo, refere-se ao modo de narrar, utilizando-se de gestos, entonações,

onomatopeias, dentre outros elementos.

Page 67: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

66

Dessa forma, o dialogismo bakhtiniano20

se consolida através da interação entre as

vozes do narrador e as do seu público, sendo que nessa interação, o sentido é construído e a

memória é consolidada. Assim, os elementos que compõem o ato de narrar, tanto os

linguísticos como os extralinguísticos, são responsáveis pela legitimação das narrativas e de

seus narradores.

A performance faz com que o conhecimento seja modificado, pois permite uma

ressignificação da palavra, já que uma entonação, um gesto ou expressão facial pode mudar

totalmente o seu sentido. Ela está inserida dentro de um contexto cultural e de situações,

fazendo estabelecer-se uma relação direta entre narrador e plateia, os quais necessitam estar

integrados em um mesmo espaço cultural, permitindo dessa forma, o seu reconhecimento

mútuo. “A performance realiza, concretiza, faz passar algo que eu reconheço, da virtualidade

à atualidade [...] Ela não é simplesmente um meio de comunicação: comunicando, ela o

marca” (ZUMTHOR, 2007, p. 31-32).

3.3.1 As narrativas orais e o testemunho

Todos os narradores deixam evidente em suas performances, a preocupação com a

veracidade das narrativas. Há a necessidade de convencer, de exprimir a verdade dos fatos,

mesmo que as narrativas tragam personagens e situações fantásticas e mitológicas. O

testemunho, fator relevante na relação entre o imaginário inventado e a verdade, torna-se o

fator essencial para a fidelidade dos acontecimentos. Para o narrador, “o que importa é a

realidade, a verdade das ações narradas; função parecida com a que na Idade-Média tiveram

gêneros literários tais como o exemplum e a parábola [...]” (LEMAIRE, 2002, p. 110).

Essas narrativas fazem parte do que se pode chamar segundo Lemaire (2002), de

“Literatura do Testemunho”. Desse modo, pode-se considerá-las como narrativas de

testemunho, por seus narradores trazerem em suas performances as características

fundamentais do testemunho. Para entender melhor tais considerações sobre o testemunho e

as narrativas, torna-se pertinente conhecer mais sobre a palavra “testemunho”.

Derivada da palavra indo-européia trists que denota literalmente uma

terceira pessoa – a testemunha, está presente como “terceiro” (quer dizer

20

Bakhtin (2003) considera o dialogismo como o processo de interação entre textos, pois o texto não deve ser

visto isoladamente, mas sim correlacionado com outros discursos similares e/ou próximos. No caso das

narrativas, a interação se processa entre as vozes discursivas que as compoem, entre os interlocutores da

comunicação.

Page 68: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

67

vindo de fora), para testemunhar, para trazer a verdade, ou a prova da

verdade [...] Características fundamentais do testemunho são:

- a presença da testemunha, da terceira pessoa que veio de fora para trazer a

verdade;

- a transmissão deliberada, desejada, intencional da verdade;

- uma verdade que essa pessoa, como tristis/terceiro, descobriu, por a ter

vivido, visto (testemunha ocular) ou ouvido dizer (testemunha auricular)

(LEMAIRE, 2002, p. 92).

Na região do Mocambo dos Ventos, quando os fatos narrados não são vivenciados

pelos próprios narradores, estes afirmam com veemência ter visto um parente, um conhecido

vivenciar, ou ouvido dizer de alguém que vivenciou. “Eu tenho uma nora, uma afilhada, que

ele já carregou ela um pedaço e ela ficou sem fala. Eu já vi. Ele é deste tamanho assim, da

cabeça careca” (Maria Alexandrina Caxiado, sobre o Nego d‟Água). “Tem gente que já viu

ele lá no Brejo, a cabecinha dele é assim redonda [explicando com as mãos o formato da

cabeça], mas não tem um fio de cabelo. Diz que se a gente pedisse peixe a ele, ele dava”

(Maria Francisca da Silva, sobre o Nego d‟Água). “A Mãe d‟Água, quando a gente via,

mergulhava. Era assim: cabelão bom, a metade era de peixe e carne, sabe?” (Valdemar

Caxiado da Silva). “Eu já ouvi falar, mas nunca vi não. Não vou mentir, né? Diz que ela é

alva, do cabelão e com um cabo de peixe” (Maria Alexandrina Caxiado, sobre a Mãe

d‟Água).

É comum entre os narradores, em busca do reconhecimento do parceiro, a

confirmação das informações e da veracidade dos fatos com seus interlocutores, dos quais

alguns também são narradores. No início das narrativas, percebe-se que o local e muitas vezes

os nomes das pessoas são estrategicamente assinalados para reforçar a autenticidade das

histórias. Como se percebe, em trechos narrados no parágrafo anterior, podem-se identificar

tais características e, portanto, classificá-las como narrativas de testemunho.

A performance do narrador-testemunha, aliada ao desejo de estar em comunhão e

de exprimir empatia com o seu interlocutor ou público contribuem para a recomposição da

realidade.

Em cada nova performance, nos quadros do jogo que ele estabelece junto

com a platéia, co-produtora da realidade, poeta e público redefinem as

margens entre repetição e variante, entre realidade e invenção, entre

conservação e esquecimento (de componentes) da tradição, do passado,

estabelecendo assim, - eles próprios! – os limites da própria credulidade

(LEMAIRE, 2002, p. 117-118).

Nesse sentido, poeta e narrador acabam assumindo o mesmo papel quando

buscam a credulidade. Essas narrativas que podem ser consideradas como do gênero

Page 69: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

68

testemunho, consolidam seu valor não apenas pela veracidade dos fatos contados, mas pela

sua importância e representatividade para a construção da identidade cultural, para o

entendimento do seu povo, do lugar, da época e das circunstâncias que envolvem tais fatos.

Oportunizam, através dos seus narradores-testemunhas, o conhecimento do contexto

sociocultural, histórico e político da comunidade da qual fazem parte.

A narrativa oral de testemunho, através das marcas da oralidade como a

performance e entonação, evidenciam as referências e vivências do narrador, a sua visão e

posicionamento diante da sua história, do seu mundo. Mesmo trazendo um cunho fictício e

fantástico, essas narrativas, acompanhadas das intervenções dos seus narradores, como seu

modo de contar e de testemunhar, representam a sua identidade cultural, uma vez que a

própria consciência de sua história e formação cultural, aliada a tais marcas de oralidade

acabam construindo uma suposta realidade da qual o sujeito faz parte, passando a interferir na

aceitação e autenticidade do discurso. As particularidades desse discurso, ou seja, a palavra

falada tem muito a revelar sobre a identidade cultural do sujeito narrador e da sua própria

comunidade.

O testemunho, portanto, consolida-se como uma forma de narrativa independente,

capaz de contribuir para o fortalecimento de uma literatura marginalizada, desprovida da

estética canônica e que geralmente representa grupos, etnias e comunidades desmerecidas

socialmente, economicamente e culturalmente. Assim, as narrativas orais seguem no curso

das águas do Velho Chico tendo os seus próprios narradores como testemunhas que buscam o

cumprimento da sua missão de perpetuar a memória da comunidade a que pertencem, de

modo mais verossímil possível. Para finalizar esta discussão, convém afirmar que “uma das

características do testemunho, no sentido original da palavra, situa-se na necessidade de a sua

verdade ser compartilhada, aceita pela comunidade que o recebe” (LEMAIRE, 2002, p. 111).

3.3.2 Braços e mãos como pincéis das narrativas

As narrativas orais do Velho Chico são encantadoras. Trazê-las neste trabalho sob

a forma de transcrições ou adaptações, permitirá ao leitor conhecê-las, até envolver-se com os

fatos e com os discursos apresentados. Poderá o leitor conhecer a história ou parte dela, dos

povos ribeirinhos, sua visão de mundo, suas crenças, seu modo de viver. Mas, o leitor, apenas

com estas palavras não poderá deleitar-se com detalhes e aspectos da oralidade que poderão

Page 70: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

69

ser percebidos somente presencialmente, ou mesmo, embora com algumas perdas, através das

gravações audiovisuais.

Aportar num cenário paradisíaco, ser recebido por pessoas acolhedoras e alegres,

participar do seu cotidiano e poder observar a sua vivência já se torna uma grande

oportunidade para um estudioso da literatura oral. Mas ver e ouvir os próprios moradores

contarem as suas histórias é muito gratificante e especial. Observar o semblante sereno da Sra.

Maria Francisca da Silva e o seu olhar azulado como o céu, ao narrar a história da Mãe

d‟Água e do Nego d‟Água, é poder assistir a um show, no qual além de se poder conhecer os

personagens ribeirinhos e as suas ações, pode-se ainda envolver-se pela suavidade da voz na

maioria das vezes, e em outras, um próprio aumento do seu timbre e da intensidade, para

inspirar veracidade, enfatizar certos momentos das narrativas (Figura 28).

Dona Maria Francisca utilizava-se de um gestual particular, apontando sempre

para o rio, para o cenário das narrativas. O seu corpo também narrava, seus braços e mãos

gesticulavam a todo instante quando estava narrando. O seu olhar fixo em nós, mais ouvintes

do que interlocutores, a sua entonação, ou seja, suas formas verbais e gestuais nos levavam a

penetrar na veracidade das narrativas, nos faziam aumentar o desejo de que tais narrativas não

terminassem e de que ali, pudéssemos permanecer por mais de mil e uma noites (Figura 27).

Pudemos encontrar ali no Mocambo dos Ventos, várias Sherazades21

, que cada

vez mais nos encantavam, não somente por suas narrativas, mas pelas suas maneiras tão

próprias de narrarem. “[...] quando ela [a Mãe d‟água] viu ela, tchum... caiu dentro d‟água”

(Sra. Maria Francisca, utilizando-se de sons e gestos), (Figura 29). As mãos e os braços de

Dona Maria Francisca, assim como as de outros narradores, funcionam como pincéis

fantásticos, pintando figuras no ar, desenhando os personagens e o cenário.

Na literatura oral, o narrador utiliza os efeitos da teatralidade da performance e

procura explorar o máximo os seus elementos prosódicos. Dona Maria Francisca, bem como

outros narradores, transforma as imagens auditivas em imagens verbais, quando se utiliza de

sequências fônicas, buscando imitar os sons com a voz e o corpo, lançando mão dos recursos

onomatopeicos, muito comuns na literatura oral, como reforça Alcoforado (2008), afirmando

que as onomatopeias são largamente usadas pelo transmissor do saber popular tradicional.

Eles procuram utilizar-se, além dos símbolos convencionalmente estruturados na nossa

21

Personagem dos contos de fadas que para não morrer no dia seguinte pelo próprio marido, um sultão traído,

que matava a esposa após a noite de núpcia, Sherazade contava histórias para o rei, deixando-as para concluí-las

na noite seguinte. Assim, o seduziu com suas histórias por mil e uma noites quando o sultão já não tinha mais

ressentimentos e livrou-lhe da condenação. Versão baseada em As mil e uma noites: contos árabes. Trad. Ferreira

Gullar. Rio de Janeiro: Revan, 2000. Disponível em: http://www.letras.puc-rio.br/catedra/revista/ 7Sem_07.html.

Acesso em: 10 set. 2009.

Page 71: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

70

língua, de elementos linguísticos de criação própria, considerados como signos sonoros

especiais. O barulho do vento e da água motiva a todo instante a criação desses signos

especiais pelos narradores do lugar.

O Sr. Domingos Pereira de Carvalho (Figura 26) se utiliza muito das

onomatopeias acompanhadas de gestos e expressões faciais que tornam o ato de narrar um

verdadeiro espetáculo teatral cativante, pois prende o interlocutor em sua “rede”, como se

pode perceber em alguns trechos destacados na narrativa sobre a Mãe d‟Água. Os braços e as

mãos do Sr. Domingos não paravam durante a narrativa, o seu olhar e os gestos, apontando na

direção do rio, envolvia a todos que o acompanhavam.

Ela mudou pra serra, lá tinha um riacho, depois o riacho secou. Aí ela

mudou mais pra longe, ficou em riba da serra e quando batia o buzo de cá,

que a turma dizia:

- Bamburrou22

de peixe!

Ela também [a Mãe d‟Água] batia o buzo,

buuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu! Nesse tempo eu era maior que esse

moleque aí [apontando para um garoto], eu batia nas lata, putuco, putuco,

putuco e a turma puxando a rede e eu putuco, putuco, putuco.

O bom narrador, segundo Alcoforado (2008), demonstra prazer ao contar as

histórias e possui as qualidades de narrador habitual, exercendo frequentemente essa função,

apresentando um bom repertório, desenvoltura expressiva e facilidade em comunicar-se

verbalmente. Ao narrar, o Sr. Domingos demonstra altivez, segurança e conhecimento dos

fatos, o que dá um cunho de veracidade ainda maior às narrativas, além de toda uma

performance própria. Assim também se apresentam os outros narradores citados neste estudo.

Quanto ao conhecimento do repertório, todos dominam as mesmas histórias, as

quais sempre têm uma ligação com o rio. Embora haja variação na maneira de contar e a

incorporação de marcas próprias e adaptações, as narrativas são as mesmas e giram em torno

da mesma temática e dos mesmos personagens e fatos. O próprio Cascudo (2006) traz em seu

Dicionário do Folclore Brasileiro, a presença do Nego d‟Água, da Mãe d‟Água, do Arco-íris

e da Serpente e suas diversas histórias no repertório das narrativas brasileiras, inclusive na

região do São Francisco. Elas percorrem todo o território brasileiro e assumem versões

específicas em cada lugar.

22

A expressão “bamburrar” ou “embamburrar” vem de “bamburro”, que em Campos, C. (2004) aparece com o

sentido de sujeira, algo que atrapalha a vida e a vista. Uma espécie de matas baixas e impenetráveis. No sentido

da narrativa apresentada, entende-se como encher a água de peixes, sujar a água com muitos peixes.

Page 72: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

71

3.3.3 O ato de narrar: ser mulher, ser negra

A mulher, em determinados momentos da história, não tem sido favorecida

socialmente da mesma forma que o homem. Aparece numa posição de inferioridade em

relação aos seus direitos e comportamentos dentro da sociedade, que sempre procurou, através

dos seus meios, fortalecer uma concepção de mulher submissa, casta, mãe, dedicada ao lar e

aos afazeres domésticos. Esta ideologia se fortalece com a idade média e a difusão do

cristianismo, que muito vem contribuindo para a sua consolidação.

Já no Iluminismo, no século XVIII, mesmo com uma nova concepção e filosofia

de vida centrada nos ideais de autonomia, de igualdade e de liberdade, pressupostos

fundamentais da Revolução Francesa, “a maior parte dos homens das Luzes ressaltou o ideal

tradicional de mulher silenciosa, modesta, casta, subserviente e condenou as mulheres

independentes e poderosas” (PINSKY; PEDRO 2003, p. 267). Nesse mesmo século, num

outro momento da história da América inglesa, o modelo republicano de mulher que emerge

junto à nova nação é o de mãe, afastada dos seus direitos políticos e assuntos públicos, que se

dedica de corpo e alma à família. E assim, essa imagem de que as mulheres exerciam um

papel social importante, atuando como mães em suas famílias, é reforçada por todo o século

XVIII.

O século XIX, apesar da ampliação de algumas possibilidades, do florescimento

do feminismo e da ação das mulheres em diversos movimentos sociais, também traz a

continuidade e a difusão dessa visão centrada na desigualdade.

É verdade que esse século popularizou o ideal da mulher restrita à esfera

doméstica, limitada ao cuidado do lar e da família, maximizou o imaginário

da segregação sexual dos espaços público e privado, reforçou concepções

tradicionais da inferioridade feminina, negou às mulheres muitos direitos e

impôs muitos obstáculos à sua independência (PINSKY; PEDRO, 2003,

p. 265-266).

Dessa forma, o ideal de mulher sentimental, passiva, casta, vulnerável,

dependente e destinada ao lar foi se estabelecendo e a maior parte das mulheres terminaram se

convencendo do seu papel de mãe e esposa obediente. A própria educação feminina primava

por essa mulher de “boa família” e por isso, essas atribuições femininas contrárias ao trabalho

e à vida pública acabavam representando sucesso, status e ascensão social. A educação

escolar aparecia, nesse cenário, reforçando as disparidades entre os sexos, já que era oferecida

de maneira diferenciada para homens e mulheres.

Page 73: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

72

No início do século XX, os novos códigos e leis nacionais acabaram também

regulamentando e fortalecendo essa relação entre os sexos de modo desfavorável à mulher,

uma vez que consideravam a submissão, a dependência e a repressão feminina como natural.

A partir do final do século XX, começa-se a ampliar as possibilidades de atuação das

mulheres, novas oportunidades de emprego e outras conquistas sociais. Mas, apesar de ser o

século XX considerado como o “séculos das mulheres” (PINSKY; PEDRO, 2003), na prática,

a igualdade de direitos ainda hoje, no século XXI, não se aplica totalmente, pois:

Os estereótipos de gênero atravessaram os tempos e naturalizaram a

diferença entre o masculino e o feminino, como se essa visão social e

cultural que varia a depender da civilização, época e povo, fosse uma

característica biológica. Até hoje, é predominante entre as instituições

sociais, tais como a família e a escola, as idéias preconcebidas do que seria

apropriado para os indivíduos a depender do sexo. E mais do que isso, essa

hierarquia entre os gêneros, na qual o ser masculino é visto como superior

ao feminino, mantém-se na atualidade até no mercado de trabalho. Embora

desempenhe as mesmas funções que os homens, as mulheres ainda ganham

menos que eles, como provam algumas pesquisas (PALMEIRA; SOUZA,

2008).

O modelo falocêntrico de comportamento feminino continua se reproduzindo

dentro da sociedade, inclusive por algumas mulheres, por imposição das estruturas políticas,

econômicas e sociais. Esse modelo de papel social tipicamente feminino ainda se consolida

nos últimos tempos, pois, segundo Lemaire (1995), cada vez em que seu condicionamento

político e histórico torna-se mais aparente, tende a deslizar imperceptivelmente em direção a

um “eterno feminino”, justificador de novas restrições e normas, impostas às mulheres.

Mesmo na contemporânea sociedade do conhecimento, as mulheres que

manifestam a sua liberdade sexual e erótica, bem como a maternidade independente fora do

casamento, em muitas comunidades, ainda são vistas com certa marginalização e

estranhamento. Por isso, pode-se considerar que:

De simples “costela de Adão” à conquista da cidadania plena, é uma longa

trajetória ainda não completada pelas mulheres. Mesmo no Ocidente, onde

o avanço é maior e a subordinação social das mulheres tem se reduzido

sensivelmente, elas ainda sofrem com a violência, salários menores,

preconceitos de diferentes tipos (PINSKY; PEDRO, 2003, p. 265-266).

Ser mulher na sociedade colonial já era difícil, devido à sua condição social de

submissão e desmerecimento em relação ao homem. Imagine ser mulher e ser negra, fator que

vem reforçar mais ainda a marginalização dessa mulher. Como se sabe, os negros

Page 74: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

73

escravizados eram tidos como mercadorias dos seus donos e deviam-lhes toda obediência e

respeito.

Para a mulher negra, além da posição desfavorável do gênero, havia a posição

étnica, de maior discriminação e destrato, inclusive eram submetidas aos caprichos sexuais

dos seus senhores. Muitas mães negras também exerciam a função de amas-de-leite que

trabalhavam nas Casas-Grandes e além do cuidado, influenciavam na formação cultural dos

filhos de suas senhoras. Sobre o papel da mulher negra, Cascudo (2006, p. 165) aponta que:

Fazia deitar as crianças, aproximando-as do sono com as estórias simples,

transformadas pelo seu pavor, aumentadas na admiração dos heróis míticos

da terra negra que não mais havia de ver. Dos elementos narrados pelas

moças e mães brancas, as negras multiplicavam o material sonoro para a

audição infantil.

Mas, esse papel social da mulher negra, ainda hoje no século XXI, não sofreu

muitas mudanças quanto a esse estado de inferioridade. Muitas delas trabalham de

empregadas domésticas ou babás, interferindo de certo modo na formação das crianças. Até

mesmo a própria literatura brasileira contribui para a consolidação desses estigmas, conforme

no mostra Campos, M. (2007):

A representação hegemônica da mulher negra na literatura brasileira, ao

longo da história, resultou, como sabemos, de construções de escritores

brancos: integrou uma tripartição de funções socialmente atribuídas a

mulheres brancas, mulatas e negras, elaborada pelo imaginário masculino

eurodescendente. Centrada nos interesses do projeto de hegemonia deste

segmento, via patriarcalismo, não apenas nas relações entre os gêneros, mas

também nas econômicas, de dependência da mulher ao homem, e políticas,

de marginalização dela da esfera pública e, sobretudo, do poder.

No Mocambo dos Ventos, todas as mulheres narradoras são de fenótipo negro,

de classe economicamente baixa, com pouca escolaridade; apenas uma tem menos de 50 anos

e as outras, mais de 65, o que vem ratificar essa realidade social. As narrativas ganham vida

no corpo das contadoras, uma vez que, através delas, transmitem as suas experiências, suas

crenças e conhecimentos com tamanha veracidade que contagia o interlocutor. Todas as

emoções são repassadas no momento da recepção das narrativas. O corpo fala, mostra,

enuncia os sentimentos de ira, medo, desejo, angústia, alegria, tristeza, enfim, todas as

emoções sentidas pelo narrador, contagiando também o interlocutor. Cascudo (2006, p. 177)

ressalta que as mulheres são melhores narradoras, porque:

Page 75: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

74

[...] possuem o arquivo mental em desenvolvida extensão. Cícero dizia-as

sabedoras de arcaísmos porque tinham menor contato com a multidão e

falavam com menos gente. Porque são as narradoras de estórias para os

filhos e netos, exercitam-se com vantagem [...] A maioria absoluta dos

contos populares constituindo as coleções famosas [...] foram participações

femininas, as tias em Portugal, para Adolfo Coelho e Consiglieri, a Brígida

para Almeida Garrett, mucamas, mães-pretas para o Brasil (grifo do autor).

Vale ressaltar também que a negra e o negro se destacam na literatura oral do

Brasil pela sua forma de narrar. Assim também é no Mocambo dos Ventos, um lugar de

remanescentes de negros escravizados, fator que vem justificar a maneira peculiar de

apresentar oralmente as suas narrativas. A maneira da negra e do negro contarem as suas

histórias é singular e diferenciada, pois na cultura negra, as pessoas são mais soltas nos

gestos, na dança, no canto, na desenvoltura, no riso, o contrário do branco europeu, tolhido

pela Igreja Católica e suas castrações.

Segundo Cascudo (2006), no Brasil, com a chegada dos negros africanos,

depressa a velha indígena foi substituída pela velha negra, por talvez ser esta mais resignada a

ver entregue ao seu cuidado a ninhada branca do colonizador, que confiava o cuidado dos

seus filhos às mães pretas e estas se utilizavam das entonações e performances ao deitar as

crianças, fazendo-as dormir com as suas narrativas.

Sendo assim, as narrativas de origem portuguesa acabaram sendo

consideravelmente modificadas por essas velhas e amas-de-leite negras, que munidas de

gestos, entonação e docilidade, “[...] se tornaram entre nós as grandes contadoras de histórias”

(CASCUDO, 2006, p. 165). Estas características performáticas da mulher negra permanecem

até hoje na literatura oral brasileira.

As negras tiveram um papel fundamental na propagação, fixação e desdobramento

dos contos africanos e portugueses. Pode-se afirmar que o negro e a negra predominam como

narradores nas narrativas orais do Brasil, com “[...] seu interesse supremo no enredo,

gesticulação insuperada e a mobilidade fisionômica, encarnando, personalizando os

sucessivos personagens, gente e bichos, ocorrentes” (CASCUDO, 2006, p. 175).

Como se observou no Mocambo dos Ventos, onde todos os moradores podem ser

considerados como afrodescendentes, a performance, a atuação dos narradores caracterizam-

se de maneira semelhante às registradas na história da cultura popular brasileira.

[...] O negro ou negra que narra a estória consegue efeitos maravilhosos de

sinceridade, verismo de expressão, sugestionando inteiramente seu

auditório, dando a impressão vaga e assombrosa de angústia ameaçadora, de

Page 76: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

75

próxima e vingadora alegria, de antevista e negaceante justiça, infalível e

esmagadora. (CASCUDO, 2006, p. 175).

Desta forma, como bem pode ser comprovado durante a exposição das narrativas

pelos moradores do Mocambo dos Ventos, conclui-se que:

O ato de narrar cria um espaço de fantasia próprio, com características

especiais que o transforma de fria transmissão a uma encenação em que o

emissor e receptor se tornam personagens e passam a viver conjuntamente

em um mundo de faz-de-conta, numa “aventura psicológica” onde a

narração é um espetáculo, o narrador e os ouvintes são atores

(ALCOFORADO, 1990, p. 57).

Neste momento, é preciso destacar a Sra. Maria Alexandrina Caxiado como uma

das grandes “atrizes” do povoado. Ela é respeitada por todos e as suas narrativas, muito bem

contadas, envolvem os seus ouvintes que se inserem e acabam também assumindo os seus

papéis de atores dentro do contexto. Dona Xandu, como é chamada carinhosamente pelos

moradores, é a primeira pessoa a quem se deve procurar, para tomar conhecimento das

narrativas. O espetáculo que se estabelece na consolidação da memória cultural ribeirinha a

tem como atriz principal, com sua atuação peculiar e envolvente durante o ato de narrar.

“Ele é deste tamanho assim, da cabeça careca [...] aí o menino passou e botou a mão assim na

cabeça e pulou assim paf dentro d‟água” (Dona Xandu e suas performances, narrando sobre o

Nego d‟Água), (Figura 30). As expressões destacadas em negrito, na transcrição supracitada,

eram proferidas acompanhadas de uma entonação diferenciada, expressões faciais e toda uma

performance, utilizando-se das mãos, dos braços e do próprio corpo.

3.4 O LUGAR SOCIAL E A RECEPÇÃO DAS NARRATIVAS ORAIS NO

COTIDIANO RIBEIRINHO

As narrativas orais fazem parte da cultura dos povos das margens do São

Francisco desde a sua colonização. São histórias que, juntamente com o rio e seus

personagens, compõem o imaginário da região. O povoado de Mocambo dos Ventos

constitui-se em uma comunidade narrativa e a coleta e análise dessas narrativas contribuem

para a compreensão da vida desses povos e de sua cultura local, permitindo a inclusão de suas

vozes marginalizadas em um discurso que possa representá-los, não como elemento exótico,

mas como componente da identidade nacional.

Page 77: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

76

É através dessas narrativas, que a memória cultural do Mocambo dos Ventos se

consolida e perpetua, porque a transmissão entre os seus moradores, de geração a geração

ocorre por meio da oralidade que se concretiza ainda nas rodas à sombra das árvores, nos

momentos em que os pescadores e pescadoras se reúnem para pescar ou tratar os peixes e nas

atividades laborais nas quais há reunião de pessoas. Devem-se destacar ainda na efetivação da

oralidade, as viagens dos pescadores de ida e volta à cidade de Xique-Xique para a venda do

pescado. Nesse momento, começam a contar as suas histórias, cada um à sua maneira,

imprimindo ao texto oral as suas marcas, suas vivências e suas memórias. Os causos também

são reproduzidos ao chegarem ao convívio familiar, fazendo com que ocorra a sua

memorização pelos filhos, netos e esposas.

Graças à força da oralidade, nas comunidades narrativas, como a do Mocambo

dos Ventos,

Toda uma cultura marginalizada dissemina-se e sobrevive, apesar das

pressões, das coerções de uma cultura oficial, policiada por instituições

tradicionais veiculadoras de um padrão dito culto, muitas vezes

distantes das raízes formadoras da cultura de um povo (ALCOFORADO, 1990, p. 57, grifo da autora).

Assim, as atividades de transmissão das narrativas e a sua recepção tornam-se essenciais para

a sobrevivência das marcas culturais ribeirinhas.

Os meios de comunicação de massa e a escola com sua prática pedagógica muitas

vezes tradicional e reprodutora do discurso hegemônico, contribuem, hoje, para a formação

das preferências literárias do público leitor. Nesse meio, que prioriza a leitura do texto escrito

e desfavorece a audição do texto oral, a transmissão e a apreensão das narrativas orais chegam

muitas vezes a ser soterradas pelas preferências por leituras difundidas na mídia e na escola.

Com isso, narradores e ouvintes do texto oral acabam muitas vezes em desvantagem.

Porém, no Mocambo dos Ventos, as areias que soterram são moventes e com isso,

tal soterramento não dura. As narrativas emergem em meio a toda essa imposição e se fazem

presentes na memória de todas as pessoas, desde os mais velhos, até as crianças em idade

escolar. As narrativas sobre o Nego d‟Água e a Mãe d‟Água, por exemplo, trazem

personagens do imaginário ribeirinho, conhecidos e narrados pelas crianças, inclusive aquelas

que estão em idade escolar.

Deste modo, a literatura oral acaba sobrevivendo ao lado da cultura impressa e

seus artefatos, pois no Mocambo dos Ventos, além da TV e da escola com o seu livro

Page 78: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

77

didático, há uma presença muito forte no cotidiano popular das narrativas e seus elementos:

enredo, personagens e discursos.

Chegar ao Mocambo dos Ventos em mais uma tarde de sol e ver, à sombra de

uma árvore frondosa que fica no centro do povoado, Dona Xandu rodeada de outros

moradores, é presenciar um dos mais preciosos momentos de transmissão e de recepção das

narrativas (Figura 31). Tal situação faz parte da rotina, pois, geralmente, as atividades

relacionadas à pesca e à lavoura ocorrem no início e final do dia, momentos em que o sol

brilha com menos intensidade nas águas e nas areias da região, como dizem os próprios

moradores, “a hora em que o dia está mais fresco”.

Ao lado dos gêneros televisivos que não são objetos deste estudo, as narrativas

orais podem ser consideradas como um dos principais gêneros textuais para a leitura dos

povos do Mocambo dos Ventos, já que estes povos apresentam costumes que desfavorecem a

leitura de textos escritos, pois as suas atividades diárias se voltam especialmente à pesca e à

pequena lavoura de subsistência. Boa parte dos seus habitantes não é alfabetizada e poucos

detêm o domínio da leitura e da escrita fluentes. O índice de escolaridade dos seus moradores

é baixo. Apenas as crianças e poucos jovens frequentam a escola, já que, para cursarem, a

partir da quinta série do Ensino Fundamental, precisam se deslocar para as cidades de Xique-

Xique ou da Barra.

Nota-se que o contato com os textos escritos é muito raro e não há a prática da

leitura dos seus mais diversos tipos (revistas, jornais, romances...). O contato com essa

modalidade de leitura se dá praticamente através dos textos escolares dos livros didáticos.

Mas a leitura dos textos orais das narrativas, que se processa através da sua audição e se difere

em muitos aspectos da leitura do texto escrito, aparece nessas comunidades como hábito e

como elemento formador de identidades. As formas de socialização ocorrem de maneira bem

natural, como parte do cotidiano.

As narrativas estão presentes em rodas de amigos sob a sombra das árvores,

quando estão exercendo alguma atividade como: debulhando milho, fazendo farinha de

mandioca, tratando os peixes e até mesmo nas pescarias quando estão em grupos ou nas

viagens para vender os peixes. Na figura 31, tem-se um exemplo de um costume diário dos

moradores. Neste dia, estavam reunidos sob a sombra da árvore, Dona Xandu, alguns

moradores e crianças catando mamona23

e conversando. Esse foi um dos momentos em que se

aproveitou para fazer o registro de algumas narrativas.

23

Catar a mamona significa nesse caso, estourar a semente, retirar a sua casca e deixar apenas os caroços.

Page 79: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

78

Dessa forma, as narrativas orais são repassadas na comunidade e cada

narrador/ouvinte estabelece os seus sentidos e absorve os seus valores morais, os

conhecimentos e as informações. Através da transmissão oral entre os moradores, inclusive

para as gerações mais jovens, dá-se a própria sobrevivência dessas narrativas que ocupam um

lugar social de destaque, pois cada ouvinte ao fazer a sua leitura, ou seja, ao construir um

sentido sobre o texto oral, contribui para a sua perpetuação, para a fixação da memória

coletiva. Elas permanecem vivas dentro da cultura oral do Velho Chico, pois de acordo com

Campos, C. (2004, p. 44) “numa cultura de tradição oral, além do cotidiano, os narradores, os

„contadores de causos‟, desempenham uma tarefa educativa extremamente importante. O

papel da memória, em comparação com as culturas letradas é significativo.

Como afirma Benjamin (1987, p. 200), em considerações sobre a narrativa:

[...] tem sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária.

Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa

sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida – de qualquer

maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos.

As narrativas orais do Mocambo dos Ventos e região ribeirinha refletem bem tal

característica, pois na maioria delas, há sempre uma referência a alguma contravenção do

personagem, seguida de uma punição, trazendo assim um ensinamento, uma formação moral

para os ouvintes, como se verá adiante em “A Serpente da Ilha do Miradouro”.

Page 80: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

79

Figura 25 – A antena parabólica, presente em praticamente todas as casas, confirmando a presença dos

meios de comunicação de massa

Figura 26 – Sr. Domingos Pereira de Carvalho

Page 81: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

80

Figura 27 – Momentos da performance da Sra. Maria Francisca

Figura 28 – Momentos da performance da Sra. Maria Francisca

Page 82: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

81

Figura 29 – Momentos da performance da Sra. Maria Francisca

Figura 30 – Sra. Maria Alexandrina Caxiado (Dona Xandu) narrando sobre o Nego d‟Água

Page 83: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

82

Figura 31 – Um dos momentos de recepção das narrativas

Page 84: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

83

4 TRADIÇÃO ORAL ÀS MARGENS DO VELHO CHICO: UM PASSEIO

PELAS NARRATIVAS

E era texto, porque havia gesto.

Texto, porque havia dança.

Texto, porque havia ritual.

Texto falado, ouvido e visto.

(Manuel Rui, 1987)

A cultura popular brasileira, mesmo consolidada na diversidade, na mistura com

as diversas culturas que aqui chegaram, ou já estavam em nosso país quando foi colonizado

pelo português, apresenta em suas diversas formas de manifestações, especialmente a

literatura oral, a marca ideológica da colonização europeia. Não existe uma literatura neutra,

sem intencionalidade, sem ideologia impregnada em suas linhas, em suas letras, em suas

palavras.

Então, a literatura oral não possui exclusivamente a finalidade ingênua de

divertimento, distração, recreação, ou mesmo de provocar sono nas crianças e até adultos. As

narrativas orais apresentam no corpo do seu texto, uma função educadora, formadora da

moral. Para Cascudo (2006), a finalidade da literatura oral é doutrinar, por ao alcance da

mentalidade infantil e popular os ensinamentos religiosos e sociais que presidem a

organização do grupo.

Por ser um discurso produzido no interior de um grupo social, as narrativas orais

apresentam-se impregnadas de marcas ideológicas, sobressaindo-se a ideologia hegemônica.

Dessa forma,

O discurso literário também porta traços ideológicos, embora de maneira

menos substantiva, que são absorvidos na recepção do texto, na relação que

se estabelece, no movimento de circulação entre o produtor do discurso e o

seu consumidor (ALCOFORADO, 1990, p. 23).

As narrativas trazem consigo marcas discursivas como fruto dessa hibridização

cultural. Nelas, há a presença de personagens, elementos e temática de uma pluralidade

cultural, sobressaindo-se toda uma ideologia cristã conservadora. As proibições e as lições da

moral conduzem o comportamento da sociedade e a consolidação de valores como a

virgindade, a submissão e a maternidade da mulher, dentre outros.

Page 85: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

84

Vale ressaltar ainda, que as tradições orais, no decorrer dos tempos, têm sido

perseguidas pela Igreja Católica, a qual manifestava seu descontentamento e repreensão em

seus Concílios e Capitulários.

[...] conhece-se a amplitude das perseguições que a Igreja Católica inflingiu

com uma obstinação particularmente agressiva e violenta às tradições orais

dos povos europeus, tanto às dos homens quanto às das mulheres. Por sua

concepção “pagã” da vida, da sexualidade, da posição da mulher, da

natureza, estas tradições orais constituíam um perigo permanente de

subversão, uma ameaça para as doutrinas da Igreja. [...] constata-se que as

perseguições visavam sobretudo às mulheres, consideradas como

instigadoras e condutoras das práticas (divertimentos, jogos, danças) às

quais os homens vinham participar (LEMAIRE, 1995 p. 110).

4.1 “A SERPENTE DA ILHA DO MIRADOURO”: MARCAS

IDEOLÓGICAS NA LITERATURA ORAL RIBEIRINHA

Antes de iniciar especificamente a análise das marcas ideológicas, convém

apresentar algumas versões das narrativas sobre a Serpente da Ilha do Miradouro. A primeira

versão é uma adaptação livre, baseada em uma narração24

da Senhora Raimunda Francisca

Bonfim de 62 anos.

Era uma mulher que teve uma filha, mas que queria ficar moça virgem toda

vida. Ele teve a filha, jogou dentro d‟água e essa menina virou uma

cobrinha. Não sei como foi, mas descobriro que tinha sido essa moça que

ficou grávida e teve a menina. Aí veio a santa missão, vem missionário,

padre, papa, bispo e não sei mais o quê. Vem celebrar a missa aí na igreja.

O padre disse: - Vai entrar uma cobra aqui, mas vocês não se mexa e não tenha medo que

ela não vai fazer má, bulir com ninguém. Ela vai procurar sua mãe. Gente,

vocês não se mexa que não vai bulir com ninguém.

Lé vai, lé vai... que quando chegou aqui nos pé dela, diz que chegou

cheirando nos pé dela... O padre disse:

- Não se tema! Assente e dê mama a sua fia.

Aí foi a mãe quem virou serpente. Porque o padre xingou:

- Tu é uma serpente! Como é que tu tem sua filha e cabá joga n‟água?! Pois

aí é tua filha e você é que é a serpente!...

24

Narração disponível em: BARBOSA, Irailde. et al. A poética oral às margens da comunidade ribeirinha.

2007. 56 f. Trabalho de Conclusão do Curso (Licenciatura em Língua Portuguesa e Literaturas da Língua

Portuguesa). Departamento de Ciências Humanas e Tecnologias, Campus XXIV, Universidade do Estado da

Bahia, Xique-Xique, 2007.

Page 86: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

85

Na sequência, apresenta-se outra versão narrada pelo Sr Jorge Pinheiro Meira e

registrada em documento do IBGE da cidade de Xique-Xique, uma folha digitada e datada de

26 de julho de 2009 (Ver anexo A).

Um rico fazendeiro de Miradouro, da família Moribeca, temido por muitos,

teve notícia de que sua filha única estava grávida de um tropeiro. Com

grande temor do pai e muito assustada, a filha negava tudo, e daí por diante,

por mais de seis meses, para esconder sua gravidez, amarrava fortemente a

sua barriga... Pariu sozinha, jogando a criança dentro do rio. A criança virou

uma serpente encantada e nos dias de missas saía do rio e vinha mamar em

sua mãe dentro da capela, e há muito tempo, se refugia sob o altar de Nossa

Senhora Santana na Igreja do Miradouro.

Por último, traz-se uma adaptação feita pelo pesquisador, da versão de

Marquileide da Silva Oliveira, filha e neta de pescadores da região, professora da rede pública

municipal, que desenvolve desde o ano de 2006, um projeto envolvendo arte e educação,

trabalhando com a coleta e divulgação das narrativas orais ribeirinhas, em especial esta da

Serpente da Ilha do Miradouro. Ela construiu a sua versão, a partir das várias apresentadas

pelas crianças, jovens, adultos e velhos, moradores nas imediações da Ilha do Miradouro e por

isso, apresenta um número maior de informações e detalhes.

Segundo as contadoras de história das margens do Rio São Francisco, existe

uma serpente encantada na Igreja de Nossa Senhora Santana na Ilha do

Miradouro. De acordo com os mais velhos, essa história aconteceu há

muitos anos. Com a chegada dos bandeirantes, veio gente de todo o Brasil

atrás de ouro e cristais preciosos e com eles os negros escravizados para

ajudarem na procura pelo ouro. Dizem que da ilha mirava-se ouro na Serra

Assuruá, hoje município de Gentio do Ouro, por isso o nome de Ilha do

Miradouro.

Dentre essa nova população que estava se instalando na ilha, veio uma

família de gente muito poderosa e muito rica e construíram uma igreja

muito bonita em homenagem a Nossa Senhora Santana. Essa igreja tinha

que ter uma estrutura forte para aguentar as enchentes e um espaço para

servir de esconderijo para o ouro encontrado, então foi feito um porão

embaixo do altar de Nossa Senhora Santana, lugar onde se encontra a

serpente.

Esse senhor era conhecido como o fazendeiro mais importante daquele

lugar pela construção da igreja, mas ele não veio sozinho para cá, trouxe

com ele a sua esposa e filhos. Ele tinha uma filha que se destacava por sua

beleza e encanto, uma moça muito bonita que atraía a atenção e os olhares

de todos os moradores. Ela se chamava Mariá e adorava se banhar nas

águas do “Velho Chico”.

Naquela época, havia muitos tropeiros, pessoas que estavam apenas de

passagem vendendo ou trocando mercadorias com os moradores e a jovem

se envolveu e se apaixonou por um tropeiro que a abandonou depois de

alguns meses. Ela não se conformou com a partida do amado e chorava nas

margens do rio. Meses depois, ela começou a perceber mudanças no seu

Page 87: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

86

corpo e sentiu falta das suas regras25

, não sangrava há três meses. Ela

desconfiada de uma suposta gravidez, começou a amarrar sua barriga, a

apertá-la e a usar roupas folgadas para esconder o “erro” cometido, já que

naquela época as mulheres não podiam ter relação sexual antes do

casamento, pois eram vistas como “mulheres da vida” e ela não podia sujar

a reputação da sua família, já que o pai nunca aceitaria uma mulher com um

filho sem pai. Desesperada e sem conseguir esconder a gravidez, ela não

saía mais de casa, vivia escondida para não atrair olhares e fofocas na

comunidade. Aos nove meses, nos dias de ter a criança, Mariá começou a

sentir dores muito forte e, desconfiada de que o bebê iria nascer, corre em

direção ao rio, onde acabou tendo a criança, decidindo jogá-la no rio,

porque assim estaria livre de todos os problemas e ninguém saberia da

existência daquela criança.

Nossa Senhora Santana é uma santa muito milagrosa, dizem que foi ela que

não deixou a criança morrer, mas que aquela mãe merecia um castigo pelo

pecado que cometeu e a criança foi transformada numa cobra, uma cobrinha

que viveu muitos anos nas águas do São Francisco, uma cobra que não fazia

mal para ninguém, uma cobrinha com um olhar de gente, um olhar humano.

Um dia, uma mulher que estava lavando as suas roupas no rio, ficou

observando aquela cobra indo e voltando, fixando o olhar como se quisesse

dizer alguma coisa. A senhora ficou com aquela imagem na cabeça e

resolveu procurar o padre da igreja e contar o que havia acontecido, o padre

não se espantou, pois também já havia observado aquela cobra. Foi então

que ele chegou à conclusão de que aquela cobra era encantada, que havia

um mistério com aquela cobra, resolvendo levar o caso aos seus superiores

para um estudo mais detalhado sobre a misteriosa cobra do São Francisco.

O bispo mandou um aviso para a paróquia de Nossa Senhora Santana

mandando convocar toda a população da ilha e região para uma missa,

principalmente as mulheres e que não deveria faltar ninguém.

A notícia se espalhou rapidamente, todo mundo só falava dessa missa e

diziam que na missa ia ser desvendado o mistério da cobra. No dia da

missa, a igreja estava lotada, muito gente apareceu para assistir à celebração

e fazia muito barulho, foi então que o padre falou em voz alta:

- SILÊNCIO! Façam silêncio, que hoje é um dia muito importante para essa

ilha e contamos com a presença do Bispo, por favor, façam silêncio, os

homens dê lugar às mulheres, elas precisam ficar sentadas. Afastem,

afastem, deixa esse lugar aqui livre, esse lugar que dá acesso ao altar,

afastem que por aquela porta vai entrar uma cobra.

Dito isso, todos na igreja ficaram assustados e com medo da cobra. O padre

falou novamente: - Não fiquem com medo que essa cobra não vai fazer mal

pra ninguém, ela só vai procurar a mãe dela.

As mulheres ficaram nervosas, ninguém queria ser mãe da cobra. O padre

continuou:

- Não se preocupem que ela saberá quem é sua mãe.

Se dirigindo a cobra disse:

- Agora vá, vá procurar sua mãe.

A cobra saiu andando, indo no pé de uma, no pé de outra, vai lá, vai cá, de

uma a uma. Algumas mulheres se assustava e começava a gritar com medo

da cobra. Chegando no fundo da igreja, sentada num cantinho como se

estivesse querendo se esconder, estava Mariá, a cobra parou e fixou o seu

olhar no olhar da sua mãe, nesse momento o padre se aproximou dizendo:

- Ponha o seio para fora e dê de mama a sua filha.

25

Menstruação.

Page 88: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

87

Mariá ficou com receio, queria negar e afirmava que tudo aquilo era um

engano, que ela não era mãe de uma cobra. Devagar, ela foi colocando o

seio para fora e a cobra subiu até o seu colo e mamou pela primeira vez o

leite materno. Foi então que se desfez o encanto e a cobra foi transformada

novamente em uma criança. E o padre continuou:

- Como é que você tem seu filho e depois você joga n‟água? Você é que é

uma serpente! Mãe que é mãe não abandona seu filho em momento algum,

mãe é pra proteger, é pra cuidar, pra enfrentar todos os problemas, pois

então você é que é uma serpente!

Dito essas palavras, Mariá foi transformada em uma enorme serpente e foi

trancafiada no porão da igreja. Dizem que até hoje ela não se conformou

com o castigo e não se arrependeu do que fez e costuma fazer vários

barulhos que estremece toda igreja, um barulho que é escutado por todos os

moradores da ilha. Ela só se acalma depois de rezarem um ofício a Nossa

Senhora Santana.

Percebe-se nas versões apresentadas, a presença de um discurso punitivo e

repressor, especialmente quanto à virgindade, ao comportamento subversivo e à repressão

sexual feminina. A mulher idealizada pela igreja católica seria aquela que se aproximasse da

pureza e conduta da virgem Maria. Fica evidenciado que o modelo de mulher a ser seguido

não deve se distanciar da submissão, da docilidade, da dedicação aos afazeres domésticos, à

maternidade e à família, reprimindo a própria sexualidade.

O sexo deveria ser apenas uma forma de procriação e afastar-se dos prazeres, o

que não ocorre com a personagem (a moça mãe da serpente), a qual rompe as amarras da

repressão e é punida, sendo, no final da primeira e da terceira versão, transformada em

serpente, por cometer o pecado da luxúria.

A luxúria é um desejo desordenado ou um gozo desregrado do prazer

venéreo. O prazer sexual é moralmente desordenado quando é buscado por

si mesmo, isolado das finalidades de procriação e de união (CATECISMO

DA IGREJA CATÓLICA, 1998, p. 530).

Alcoforado (1990, p. 53) comenta sobre o modelo feminino intencionalmente

defendido pelo discurso hegemônico nas narrativas populares:

Os contos que dizem respeito à conduta da mulher insistem num modelo

feminino que valorizando a beleza, a ingenuidade e a submissão ao pátrio

poder, que não é apenas do pai, mas também do marido e da sociedade,

nega-lhe iniciativas mais ousadas e independência de ação.

À mulher, destinava-se a subserviência pregada por um discurso machista. No

decorrer dos tempos, ela aparece na literatura como perigosa e causadora de danos à moral

social. Assim também ficou impregnada a literatura oral.

Page 89: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

88

É muito expressivo o número de estereótipos negativos que caracterizam a

mulher, como: seres poucos inteligentes, incapazes de pensar, objetos de

desejo pecaminoso, de modo que a própria Bíblia utiliza-se da figura

feminina, colocando-a como responsável pela introdução do pecado no

mundo (BARBOSA et al. 2007, f. 31-32).

Sabe-se que o poder natural da mulher de genitora, capaz de procriar, gerar a vida,

era visto como ameaça à sociedade falocêntrica, que sempre procurou a todo custo apagar tal

circunstância, através de uma ideologia, de uma política de desfavorecimento e opressão da

mulher, que se perpetuou por todos os séculos. Lemaire (1999-2001, p. 105), através da

história sobre Mélusine26

, comenta sobre essa realidade nas tradições orais:

Ao mesmo tempo, Mélusine ilustra também a força e a capacidade de

resistência das tradições orais que, apesar de séculos e séculos de luta

política e ideológica dirigida contra elas, guardaram uma história e um

imaginário ancestrais, permitindo assim até hoje em dia, evocar e viver

emoções, um saber, uma sabedoria diferentes e através delas, questionar

aquela “ordem do discurso” oficial que a tenta excluir e ocultar [A autora

refere-se à ordem do discurso trazida por Michel Foucault, L’Ordre Du

Discours, PUF, Paris, 1970].

Esse poder ancestral da mulher acaba sendo conduzido ao seu apagamento e

desmerecimento, por isso, esse estado de subalternidade ao qual a mulher tem sido submetida.

Consequentemente, nas histórias orais como estas, tendem a destacar-se mais os atos de

“subversão” ou fatos que apagam a sua bravura e qualidades, por influência da hegemonia

ocidental. É o que nos faz perceber (LEMAIRE, 1999-2001, p. 105) ao se referir à Mélusine:

Figura emblemática da história da mulher na sociedade ocidental, o

percurso de Mélusine ilustra o lento e progressivo declínio do poder

ancestral da mulher, a sua utilização para os objetivos do poder patriarcal, a

perda de controle sobre o que era tradicionalmente a base do seu poder: a

procriação, a progenitura.

O tratamento dado à mulher evidencia ainda a sua castração em relação ao sexo.

Estudos histórico-culturais nos revelam que tanto na cultura dos afrodescentes como na dos

indígenas, o sexo era visto com algo natural, que fazia parte da realidade humana, sendo

aceito por toda a comunidade e jamais era reprimido ou tido como algo sujo e impuro,

26

Boa mãe e esposa, mas que escondia um mistério: aos sábados, transformava-se em mulher da cabeça até a

cintura e serpente com uma cauda enorme da cintura até os pés. Ver: LEMAIRE, Ria. Melusine – Melusina /

Mélusines – Melusinas: serpentes, sereias e dragões. In: REVISTA LUSITANA. (Nova Série), 19-21, Lisboa:

Centro de Tradições Populares Portuguesas Professor Manuel Viegas Guerreiro, Universidade de Lisboa –

Faculdade de Letras, 1999-2001, p. 81-107.

Page 90: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

89

passível de punição. Apesar de em algumas sociedades haver determinadas regras, o sexo não

era visto como pecado ou algo proibido. Há registros na história de comunidades indígenas

em que a poligamia é aceita até hoje. Essa visão castradora do sexo é uma marca ideológica

da Igreja Católica, que instituiu regras e castigos para aqueles que o praticassem fora do

casamento ou com a finalidade de prazer, já que só era permitido com o intuito de procriação

da espécie humana sem ligação à libido e a sensualidade. Para a igreja, o corpo jamais deveria

ser visto e desejado sexualmente.

Quanto à mulher, nas culturas afrodescendentes e indígenas, ela aparece sendo

respeitada por toda a sociedade, inclusive desempenhando funções importantes. Há culturas

em que a mulher muitas vezes ocupa uma posição social de maior destaque que a do homem.

Esse discurso de depreciação e opressão da mulher faz-se presente nessas culturas ribeirinhas

por influência da igreja, que reforçava o patriarcalismo da cultura eurocêntrica. Nas culturas

africanas, a mulher era vista de forma bem diferente dessa forma de hoje, motivada por um

falocentrismo colonial que permanece até hoje e é reproduzido nas narrativas. Sobre a

importância do papel das mulheres em muitas tribos da África, inclusive do seu

comportamento sexual, convém afirmar que:

[...] a mulher negra, porém, apesar das mutilações corporais que por vezes

lhe eram infligidas, gozava também de prerrogativas que são precisamente o

contrário da opressão... liberdade sexual, por vezes exagerada, aliás, antes

do casamento em certos países animistas; .....liberdade de deslocamento....

liberdade econômica pela apropriação de ganhos das suas múltiplas

atividades rurais ou comerciais,... direitos políticos ou espirituais que lhes

abrem por vezes o caminho do trono e da regência ou fazem dela

sacerdotiza respeitada, em particular dos ritos de fertilidade. E isto apesar

de as feiticeiras terem sido particularmente maltratadas (KI-ZERBO, 1999,

p. 225, apud REIS, L., 2008, p. 54).

A forte presença da ideologia católica nessas comunidades ribeirinhas é revelada

dentro das próprias narrativas, quando relatam a chegada das Santas Missões e as missas, com

seus padres, bispos e missionários, cujo objetivo era “evangelizar” as comunidades,

principalmente aquelas mais isoladas. A igreja estabelece um discurso em que a mulher é

vista como inferior e subserviente ao homem. Como se tem conhecimento da história da

região, a presença da Igreja Católica e sua ideologia foram marcantes no processo de

povoamento e colonização. Destaca-se a presença dos religiosos franciscanos ainda no século

XVII e das frequentes missões catequizadoras que se instalaram na região de Barra e Xique-

Xique. Para se ter uma ideia, em Portugal, as mudanças no tratamento dado às mulheres só

Page 91: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

90

vieram a se manifestar por volta de 1976 com o fim da ditadura militar e a diminuição do

poder da Igreja Católica.

A mulher que infringisse as normas religiosas e sociais, como por exemplo, a

perda da virgindade ou a gravidez antes do casamento, era e ainda é punida dentro da

sociedade, embora hoje, com menor veemência e maior tolerância. Com isso, muitas

escondiam a gravidez, matavam seus filhos, livravam-se deles, a fim de não serem expulsas

de casa, da igreja e do convívio social, como ocorre com a moça das narrativas.

O discurso trazido nas versões da narrativa revela também uma falta muito grave

da mulher, quando esta rompe com os laços de maternidade e abandona a sua cria. Para

esconder uma falta cometida: a da perda da virgindade, ela comete outra maior, que é o

descumprimento do seu papel de prestar acolhimento, cuidados e carinho ao seu filho. Deixa

de ser a mãe zelosa e devotada que amamenta e educa o filho para desprezá-lo, jogando-o na

água, deixando de ser a “mãe-maria” para tornar-se a “mãe-desnaturada”. Nas culturas

africanas e indígenas, o abandono e o descuido com o filho pela mulher, também não era

tolerado, sendo motivo de punição em alguns casos com a morte e a expulsão do grupo social.

Sendo assim, nas culturas populares brasileiras, as marcas da punição e da

repreensão também aparecem de maneira vigorosa, como se pode perceber no trecho da

narrativa de Marquileide Oliveira:

- Como é que você tem seu filho e depois você joga n‟água? Você é que é

uma serpente! Mãe que é mãe não abandona seu filho em momento algum,

mãe é pra proteger, é pra cuidar, pra enfrentar todos os problemas, pois

então você é que é uma serpente!

Dito essas palavras, Mariá foi transformada em uma enorme serpente e foi

trancafiada no porão da igreja.

Outro aspecto que pode ser presenciado ainda é o fato de a própria mulher

narradora reproduzir em suas histórias esse modelo falocêntrico de comportamento feminino.

Nesse caso, ela acaba contribuindo para a confirmação dessa ideologia, quando ressalta as

atitudes subversivas da personagem e a punição sofrida. Simplesmente com o seu ato de

narrar, contribui para a transmissão, entre os povos, de uma marca ideológica que estabelece

para a mulher, um lugar de submissão e obediência aos dogmas referendados pela igreja e

pela sociedade conservadora. Sem se dar conta, não somente nesta narrativa, mas em muitas

outras, muitas vezes um discurso que inferioriza não somente a mulher, mas a cultura popular,

seu povo e seus valores é repassado e consubstanciado pelos próprios narradores.

Page 92: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

91

4.1.1 A simbologia da serpente e da água

Lemaire (1999-2001, p. 84), versando sobre a serpente e as suas raízes indo-

europeias, nos diz que:

No mundo inteiro, em já extintas e em ainda existentes, não globalizadas

civilizações, a serpente era e é um animal sagrado, celebrado e venerado em

ritos, cultos, danças e outras formas de expressão artística e religiosa.

Animal ao mesmo tempo aquático e telúrico, a Serpente vive, nesses dois

mundos, uma existência que o imaginário quer antes de mais nada liminar,

passando de fontes, rios e riachos a grutas, cavernas, pedras e rochedos.

Transitando da superfície e da beira dos rios e lagos ao seus fundos, do

interior nocturno das grutas ao seu portal luminoso, do mundo dos animais

ao dos seres humanos, do natural ao sobrenatural, a Serpente é o animal

chtónico por excelência, naquele jogo dialético entre o ocultar e o mostrar,

entre o tabu do olhar e a vontade de saber, entre o fascínio e o encanto do

mistério e a cobiça de um conhecimento apropriador e aviltante.

Como se percebe, a serpente com os seus encantos que fascinam e permeiam o

imaginário ribeirinho é o ser no qual a mulher subversiva é condenada a transformar-se,

passando a apropriar-se das suas características, percorrendo as águas do rio, ocultando um

mistério, despertando a vontade de saber, a cobiça pelo conhecimento da verdade, revelado

posteriormente como uma forma de exemplo.

A transformação em serpente, da mulher no final da primeira e da última versão, e

da criança em todas as versões apresentadas, mostra uma forma de punição que a relaciona ao

mal, à tentação e ao pecado. A igreja tem essa figura associada à libido, à luxúria, ao

rompimento das normas, como na narrativa bíblica de Adão e Eva. Perceba-se que o pecado

da tentação do Jardim do Éden foi cometido por Eva, a mulher, e não por Adão, o homem,

atribuindo-se assim mais uma culpa à mulher, pois segundo Lemaire (1999-2001), a ideologia

cristã do pecado e da punição aparece presente também já nos textos do século XII.

A serpente é considerada ainda como a sedutora do pudor virginal de Eva,

inspirando-lhe o desejo pelo coito sexual.

No arquétipo do relato bíblico a serpente aparece fazendo Adão (ou melhor,

Eva) acreditar que a árvore da morte era, na realidade, a árvore da vida; ela

própria, evidentemente, comeu os frutos da árvore da vida (CHEVALIER;

GHEERBRANT, 2009, p. 824).

Sendo assim, a serpente é condenada pela cristandade que ressalta o seu aspecto

maldito e negativo. Segundo Cascudo (2008), para o povo, ela é o símbolo diabólico da

Page 93: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

92

tentação do mal, e assim é retratada nas narrativas, por influência das formas exorcistas da

igreja. Quanto ao fato da serpente vir à procura de sua mãe para amamentar-se com o seu leite

nos dias de missas, entende-se também como uma influência da tradição ibérica, pois para

Cascudo (2008, p. 144) “segundo a tradição portuguesa, corrente por todo o interior do Brasil,

[...] a cobra procura as mães que amamentam os filhos, surpreendendo-as durante o sono, e

suga-lhes o seio, pondo a ponta da cauda na boca da criança para que não chore”.

No imaginário brasileiro, a serpente se faz presente em várias narrativas, com

várias nomenclaturas e enredos. Aparece na maioria das vezes como ser encantado, temido.

São várias as passagens bíblicas em que ela também aparece com essa conotação associada ao

mal, ao castigo, à maldição. Referindo-se a esse elemento simbólico do imaginário brasileiro,

Leite (2003, p. 92) nos diz que “quando se trata de mitos em forma de serpente, diversos seres

se apresentam: Boiúna amazônica; Minhocão mato-grossense, mineiro; Cobra Norato; Boitatá

etc”.

Nesta narrativa, ocorre também um processo comum em outras narrativas da

cultura brasileira, que é a zoomorfização das personagens. Nesse caso, a mulher é

zoomorfizada, transformada em serpente, símbolo da libido, fazendo com que o animalesco

venha aproximar o humano dos seus instintos básicos como o sexual.

A água, segundo Chevalier e Gheerbrant (2009) possui significações simbólicas

em três temas dominantes; fonte de vida, meio de purificação e centro de regenerescência. Na

narrativa, a água do rio faz-se presente como elemento primordial para o desenrolar dos fatos.

Ela é o cenário para o misterioso, o encantado. É nela que mora a serpente e foi nela que a

mãe jogou a filha. Ao jogar a filha na água, a mãe espera livrar-se das consequências de ter

rompido com os princípios morais e religiosos, de ter engravidado e praticado sexo antes do

casamento. Assim, a água cumpre o papel de uma espécie de purificação e regenerescência,

pois vem esconder e dar fim ao seu pecado diante da sociedade, mantendo-a pura e casta

perante os olhos da sociedade e da igreja.

Mas o inesperado acontece, que é a punição e a revelação do pecado cometido. A

água torna-se o berço, a fonte da vida para uma serpente encantada que sai à procura de sua

mãe, causando a revelação do seu rompimento com os dogmas religiosos e morais, também

do abandono da maternidade, no momento em que a procura na igreja, para mamar em seu

seio. Passa a ocupar um papel antagônico, pois ao mesmo tempo em que pode ser usada como

fuga e apagamento da realidade, também contribui para a continuidade do drama, já que se

torna elemento vital para a sobrevivência da serpente/criança, como se fosse um útero para a

sua criação e desenvolvimento. E assim, a água segue misteriosa, rio abaixo, como “o símbolo

Page 94: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

93

das energias inconscientes, das virtudes informes da alma, das motivações secretas e

desconhecidas” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 824).

4.1.2 Outras considerações sobre a narrativa

Nesta narrativa, percebe-se a presença do encantamento, quando traz o mistério e

o sobrenatural, elementos representados pela serpente encantada, que desfaz o encanto, ao ser

amamentada em sua mãe. Também no momento em que a mãe se transforma em serpente,

conforme narração da primeira e última versão apresentada.

Tal narrativa ainda serve de exemplo, por apresentar o rompimento das normas de

caráter social e religioso. Nela, há a presença da subversividade contra os preceitos morais, e

o desfecho é conduzido para uma lição de moral cuja personagem que contraria tais preceitos

sofre uma punição. Por ter se entregado aos prazeres do sexo antes do casamento,

engravidado e abandonado sua cria, atirando-a ao rio, a moça tem o seu segredo revelado

durante a missa, diante do padre e dos seus sermões e é transformada em serpente, condenada

a viver nas águas do rio ou embaixo do altar da igreja, servindo como exemplo para todos os

fiéis presentes. O momento é oportuno para a igreja aplicar a sua ideologia conservadora e

punitiva. Nesta narrativa, “os exemplos ensinam a Moral sensível e popular, facilmente

percebível no enredo [...]” (CASCUDO, 2006, p. 298).

Nas duas últimas versões apresentadas, pode-se ainda perceber a discriminação

socioeconômica. No relato, a filha única de um rico e respeitado fazendeiro engravida de um

tropeiro. Embora não apareça claramente a discriminação pela condição socioeconômica do

tropeiro, fica subentendido, pela atitude da filha ao buscar esconder a gravidez, que não havia

possibilidade de se permitir a sua união com um homem desconhecido, sem tradição familiar,

sem posses, fazendas, sobrenome. Pode-se inferir que se o mesmo fosse um filho de

fazendeiro de família conhecida, de nome respeitado, o desfecho não teria sido esse.

Torna-se mister salientar ainda, a força que essa narrativa exerce sobre os

moradores da região do Miradouro. Segundo o Sr. Jorge Pinheiro Meira e Marquileide

Oliveira, depois de séculos, os moradores próximos à igreja, ainda afirmam ouvir fortes

rugidos e murmúrios vindos de seu interior, que só cessam quando rezam o ofício. Também

outros moradores da região afirmam que a serpente mora no rio e a sua cabeça fica alojada

embaixo da igreja. Percebe-se, portanto, um forte teor de fé, de verdade quanto à existência da

Page 95: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

94

serpente e de sua história, constituindo-se num elemento vivo do imaginário dos povos

ribeirinhos.

Em vários lugares do Brasil, também existem histórias que relatam uma serpente

cuja cabeça se localiza embaixo de alguma igreja. Isto talvez possa ter sido criado e difundido

pela própria Igreja Católica com a intenção de estabelecer um moralismo e controle do povo,

pois se sabe que muitas vezes os próprios padres costumavam criar certas narrativas religiosas

para justificarem algumas ações como a construção de igrejas ou a realização das Missões em

determinado lugar.

4.2 O NEGO D‟ÁGUA

O Nego d‟Água, conforme nos apresenta Cascudo (2006), é uma criatura

fantástica que habita no Rio São Francisco, favorecendo tudo aos amigos a quem ele chama

de compadres do Caboclo d‟Água, e perseguindo ferozmente os pescadores, barranqueiros e

pessoas com quem antipatiza, virando canoas, erguendo ondas, derrubando as barreiras,

afugentando pescarias. Recebe ainda outras denominações como Caboclo d‟Água, Compadre

d‟Água, Moleque d‟Água, Bicho d‟Água e outras mais, conforme a região.

Tal personagem habita o imaginário da comunidade do Mocambo dos Ventos, nas

águas profundas do rio. É também chamado de “Cumpade d‟Água” por muitos e as suas

características físicas mais relatadas em todo o São Francisco, assim como na região deste

estudo, são as seguintes, segundo Cascudo (2006, p. 89): “baixo, grosso, musculoso, cor de

cobre, rápido nos movimentos e sempre enfezado”. A Sra. Maria Francisca da Silva assim o

descreve:

Tem gente que já viu ele lá no Brejo, a cabecinha dele é assim redonda

[explicando com as mãos o formato da cabeça], mas não tem um fio de

cabelo. Ele é pequeno assim [...] Ele é nego preto e não gosta de preto não

[...]

Já Dona Maria Alexandrina Caxiado diz: “Eu já vi. Ele é deste tamanho assim

[mostrando com a mão a altura semelhante a de uma criança pequena], da cabeça careca [...]

Ele é piquinininho da cabeça careca [...]”.

As versões apresentadas a seguir por moradores do Mocambo dos Ventos

apresentam de um modo geral as mesmas características apontadas por Cascudo, mas com

algumas modificações de um narrador para outro:

Page 96: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

95

a) Versão narrada pela Sra. Maria Alexandrina Caxiado (Dona Xandu):

Eu tenho uma nora, uma afilhada, que ele já carregou ela um pedaço e ela

ficou sem fala. Eu já vi. Ele é deste tamanho assim, da cabeça careca. Ele

veio atrás dela e perseguiu tanto que ela foi embora pra Xique-Xique. Ester

e Cumade Lene, Ela tá ali viva e sã, foi quem segurou ela e puxou quando

ela pegou a chorar. Aí ela tava batendo roupa o ano passado e disse:

- Minha madrinha!!!

Aí o menino [referindo-se ao Nego d‟Água] passou e botou a mão assim na

cabeça e pulou assim paf dentro d‟água. Ela não batia roupa só com medo.

Ele perseguiu muito ela. Pra agradar ele, tem de dar fumo, mas eu que não

vou dar fumo. Ele deixa qualquer barco parado no meio do rio e diz que ele

só gosta de mulher e mulher roxa, assim do cabelo bom, do cabelo ruim ele

não gosta não. Ele fica no seco vadiano27

e sai, fica escondido quando vê

qualquer pessoa. Um dia meus menino tava na ilha. Aí eu falei assim:

- Meninos, cês tão brigando aí?

Era ele quentando sol. Quando eu vi que era o cumpade, fiquei tremendo e

saí... Aí ele botou a mão aqui assim [colocando as mãos na cabeça] e pá

dentro d‟água. As pessoa tem medo dele comer as pessoa, mas ele não come

não. Quando o rio tá raso ele vai pro Rio Grande, ele só gosta de fundo;

b) Versão narrada pela Sra. Maria Francisca da Silva:

Tem gente que já viu ele lá no Brejo, a cabecinha dele é assim redonda

[explicando com as mãos o formato da cabeça], mas não tem um fio de

cabelo. Ele é pequeno assim. Diz que se a gente pedisse peixe a ele, ele

dava. Os velho de primeiro, dizia que se fosse pescar e jogasse um

pedacinho de fumo assim dentro d‟água, você tomava pauta28

com ele e

ganhava peixe. Eu nunca conheci ninguém que viu ele, agora diz que uma

mulher foi tomar banho e passaro a mão nela. Ela saiu daqui e foi morar em

Xique-Xique [referindo-se à mesma mulher da versão anterior]. Vejo dizer

que era ele [o Nego d‟Água]. Era num fundão que tinha ali. A moça era

bonitona, cabelão bom, né? Ele só gostava de mulher bonita, de gente feia

não, ele é negro preto e não gosta de preto não. A moça era morena, bonita

do cabelão na cintura;

c) Versão narrada pela Sra. Marilene de Souza Vargas:

Que eu lembre, só que uma tardezinha eu vinha panhar água, aí quando eu

tô enchendo o balde, caiu n‟água que nem um homem, sabe? O Nego

d‟Água. Aí eu fiquei pensando:

- Meu Deus, o que é isso?

Pensei que era uma pessoa, sabe? Fiquei esperando, né? Saí. Quando é que

essa pessoa saiu? Aonde? Aí eu peguei o balde seco e fui embora. Aí eu tive

medo.

Como se percebe nas versões apresentadas, o Nego d‟Água faz parte do cotidiano

do Mocambo dos Ventos. Assim como os outros personagens que compõem as narrativas do

lugar, a sua presença é relatada pelos narradores que afirmam com tamanha veracidade a sua

27

Na região, é comum usar o verbo vadiar no sentido de brincar. 28

Significa fazer amizade, conquistar.

Page 97: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

96

existência. Quando os mesmos não afirmam ter vivenciado o fato narrado, declaram com toda

certeza a participação de alguém da comunidade, de pessoas mais velhas ou que já morreram,

o que tornam o seu testemunho mais verdadeiro. “Eu já vi. Ele é deste tamanho assim, da

cabeça careca [...] Quando eu vi que era o cumpade, fiquei tremendo e saí...” [Dona Xandu,

que afirma já ter visto]. Já a Sra. Maria Francisca diz que ela mesma não viu, mas que outras

pessoas do lugar já viram. “Tem gente que já viu ele lá no Brejo, a cabecinha dele é assim

redonda, mas não tem um fio de cabelo”. Dona Marilene de Souza Vargas também relata ter

visto. “[...] Aí quando eu tô enchendo o balde, caiu n‟água que nem um homem, sabe? O

Nego d‟Água”. A sua presença imaginária é muito forte entre todos, chegando até, durante a

pesquisa, a nos contagiar, o que justifica a afirmação no início deste trabalho, de que o Nego

d‟Água nos acompanhava durante as viagens, em nossa imaginação.

Os moradores tratam-no muitas vezes de “cumpade”, por considerá-lo um ser que

faz parte do seu cotidiano, principalmente na hora em que exercem as atividades diárias como

pescaria, banho, e outras. A expressão os aproxima dessa criatura fantástica e a intenção de

todos é estabelecer um vínculo de amizade, pois ninguém quer tê-lo como inimigo ou

contrariá-lo. Buscam agradá-lo a fim de ter os benefícios que ele pode trazer na pesca e na

navegação, já que, quando contrariado, afunda barcos, cria maletas29

e ondas, rouba os anzóis,

espanta os peixes, dentre outras ações. Segundo os moradores, ele deve ser presenteado com

pedaços de fumo e quando contrariado pode até levar, matar ou comer a pessoa. “Pra agradar

ele, tem de dar fumo [...] As pessoa tem medo dele comer as pessoa [...]” (Dona Xandu).

A religiosidade, uma marca presente na identidade ribeirinha, se mostra quando

ressaltam que também não se deve xingar ou cometer más ações, sob pena de ser castigado

pelo Nego d‟Água. Também outra marca da religiosidade é o culto das oferendas, que está em

todas as matrizes da cultura brasileira: indígena, portuguesa e africana. Presentear esse

personagem encantado com uma oferenda significa que se poderá receber em troca a graça

desejada, como o sucesso na pescaria. Na fala de Dona Maria Francisca, pode-se perceber

essas crenças. “Os velho de primeiro, dizia que se fosse pescar e jogasse um pedacinho de

fumo assim dentro d‟água, você tomava pauta com ele e ganhava peixe”. Através da narrativa,

toma-se conhecimento ainda do modo de vida da população do Mocambo dos Ventos,

revelando a pesca como o principal meio de sobrevivência.

O discurso advindo da cultura do branco europeu é reproduzido na narrativa. Sem

se dar conta, há uma fixação de valores que desfavorecem a cultura e os povos

29

Para os ribeirinhos, o mesmo que onda, movimento das águas.

Page 98: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

97

afrodescendentes, quando ao narrar, afirmam que o personagem é um negro, mas que não

gosta de negro, de gente feia e só gosta de gente bonita. Nesse caso, a ideologia do

“branqueamento” está implícita, pois a expressão reflete a necessidade de se limpar o sangue,

através do casamento com pessoas mais brancas. O discurso racista se estabelece e se

referenda pelo próprio negro no momento em que ele mesmo apresenta o negro como gente

feia e o branco como gente bonita. Os estereótipos e preconceitos circulam dentro da

narrativa, sem que o narrador, afrodescendente, perceba e questione tais marcas.

E, de alguma forma, eles incorporam-se à violência explícita contra a

população de afro-descendentes, pelo uso de termos pejorativos, de

brincadeiras usadas aparentemente sem maldade ou da rejeição explícita a

traços do corpo negro. (FONSECA, 2006, p. 35).

Apresentam-se a seguir, algumas comprovações desse discurso preconceituoso

que desqualifica os traços fenotípicos do negro: “A moça era bonitona, cabelão bom, né? Ele

só gostava de mulher bonita, de gente feia não, ele é negro preto e não gosta de preto não. A

moça era morena, bonita do cabelão na cintura” (Maria Francisca). Nesse discurso, fica

estabelecida a pessoa negra como feia e a branca como bonita, considerando ainda o cabelo

do branco como bom e o do negro como ruim. Esses traços, que continuam a dar legitimidade

a essa desvalorização do afrodescente em relação à cor da pele e ao tipo de cabelo, ainda estão

enraizados entre nós e têm a sua origem numa sociedade escravocrata, constituída de senhores

brancos e de escravos negros. Fica comprovada assim, a deformação das qualidades do negro

que foi implantada pelo colonizador europeu e que dificulta a valorização e o reconhecimento

da identidade afrodescendente por toda a sociedade, até por si mesmos.

4.3 A MÃE D‟ÁGUA

Assim como o Nego d‟Água, a Mãe d‟Água é uma personagem que faz parte do

imaginário brasileiro em todas as regiões. A sua presença no imaginário dos povos do

Mocambo dos Ventos é inegável, visto que são muitos os relatos em que ela aparece. Cascudo

(2008) afirma que em todo o Brasil, a Mãe d‟Água é conhecida como a sereia europeia, alva e

loura, meio peixe, cantando para atrair o namorado, que morre afogado ao acompanhá-la para

as bodas no fundo das águas.

Porém, essa sereia acaba também sofrendo as personificações e características das

culturas afrodescendentes e indígenas. Toma-se como base, o mito europeu da sereia, mas é

Page 99: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

98

ressignificado de acordo com a diversidade cultural brasileira. Assim, vale reforçar, que no

Brasil, este mito não é exclusivamente europeu, pois como a maioria dos mitos, a Mãe

d‟Água está presente de formas diferentes nas diversas culturas, não tendo origem em lugar

específico, mas existindo concomitantemente.

Para Leite (2003, p. 96), “o ciclo da Mãe d‟Água é apontado nos estudos

brasileiros, como assentado no cruzamento entre os imaginários indígena, português e

africano. Entretanto, em certos casos, ele seria mais fortemente africano”. Tal assertiva vem

confirmar a força da figura da mãe africana, da deusa-mãe que chegou ao Brasil através de

Iemanjá, que representa a Mãe d‟Água. Para as culturas afrodescendentes, ela é a deusa dos

rios, das fontes e dos lagos, “resultante de um sincretismo mítico, onde concorrem três orixás

yorubás, principalmente Yemanjá, Oxum Anamburucu ou Nanan” (RAMOS, 1940, apud

LEITE, 2003, p. 96).

Com isto, a influência africana acabou por sobressair-se, mas não se pode deixar

de ressaltar que o português, por não compreender direito a mítica indígena, ou mesmo

compreendê-la a partir de outros signos mais familiares, acabou associando também o mito

indígena das Ipupiaras30

e das Cis31

com a Mãe d‟Água. Sendo assim, houve uma

ressignificação desses mitos sobre as figuras aquáticas, destacando-se uma visão da Mãe

d‟Água, a qual ajuda os pescadores e moradores ribeirinhos em troca de presentes, de

donativos. As narrativas sobre a Mãe d‟Água, trazidas pelos moradores do Mocambo dos

Ventos assemelham-se a tal visão que se aporta em traços africanos, marcando assim a sua

afrodescendência cultural, como se pode observar nas versões que se seguem:

a) Versão narrada pelo Sr. Domingos Pereira de Carvalho:

Ela mudou pra serra, lá tinha um riacho, depois o riacho secou. Aí ela

mudou mais pra longe, ficou em riba da serra e quando batia o buzo de cá,

que a turma dizia:

- Bamburrou de peixe!

Ela também [a Mãe d‟Água] batia o buzo,

buuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu! Nesse tempo eu era maior que esse

moleque aí [apontando para um garoto], eu batia nas lata, putuco, putuco,

putuco e a turma puxando a rede e eu putuco, putuco, putuco. Meu pai era

arraia de uma rede, aí batia o buzo:

- Ei, bamburrou de peixe!

A altura dos peixe ficava igual a dessa casa aí. Aí a turma dizia:

- Ê, aquele ali embamburrou!

30

Para Cascudo (2008, p. 283) “Ipupiara é o gênio das fontes, animal misterioso, que os índios davam como o

homem marinho, inimigo dos pescadores, mariscadores e lavandeiras”. 31

Segundo Cascudo (2008) o indígena não concebe nada do que existe sem mãe, a quem a chama de “Ci”. A

mãe é sempre necessária para que haja a vida. Devia haver uma “Ci” para todas as espécies animais, vegetais e

minerais.

Page 100: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

99

Aí batia o buzo de cá e ela batia de lá. Olha, se você botava uma rede, se era

pra mandim era pra mandim, se botasse pra crumatá, era crumatá, botasse

pra piranha, era pra piranha, botasse pra traíra, era só traíra. Olha as ruma

que ficava! Era a Mãe d‟Água que ajudava, que dava, só dava o peixe que a

gente botava a rede;

b) Versão narrada pela Sra. Maria Francisca da Silva:

Eu vejo dizer que tem uma Mãe d‟Água. Diz que uma mulher foi pro riacho

tomar banho e quando chegou lá viu aquela mulher lá, aquela mulher do

cabelão, dos cabelos na bunda. Aí diz que ela rompeu e viu assim aquela

mulher tomando banho e penteando os cabelo, aquele cabelão. Quando ela

[a Mãe d‟água] viu ela, tchum, caiu dentro d‟água. Aí ela deixou um

pente em riba da tábua da mulher lavar roupa e ela não sabia o que era,

correu e não pegou. A riqueza que ela ia achar, mas não pegou. Era uma

riquezona que ela ia pegar, um pentão de ouro lá em riba da tábua. Ela de cá

ia tomar banho e correu com medo dela. A Mãe d‟Água era bonitona, vi

dizer que ela é rica. Eu sei contar que existe a Mãe d‟Água;

c) Versão narrada pela Sra. Maria Alexandrina Caxiado (Dona Xandu):

Eu já ouvi falar, mas nunca vi não. Não vou mentir, né? Diz que ela é alva,

do cabelão e com um cabo de peixe. Vi dizer que ela entrou prus brejos, que

lá tinha uma cachoeira. O povo diz que tinha tido ela. Quando tem uma

cachoeira alta, ela vai pru brejo, sai daqui e vai pru brejo;

c) Versão narrada pelo Sr. Valdemar Caxiado da Silva:

A Mãe d‟Água, quando a gente via, mergulhava. Era assim: cabelão bom, a

metade era de peixe e carne, sabe? Pra baixo era peixe e pra cima era carne.

Ela era roxa, da minha qualidade e o cabelo era aqui assim [mostrando com

as mãos, ser na cintura].

Em todas as narrativas apresentadas, percebe-se que a personagem encontra-se

totalmente inserida no cotidiano do lugar, uma vez que afirmam ter visto ou ouvido contar

uma história sobre sua aparição. Constitui-se como um ser encantado que habita as águas do

rio, assim como em outras regiões do Brasil. Como se vê nas descrições feitas, é considerada

uma mulher bonita, de cabelos compridos e com o rabo de peixe. Isso nos mostra a associação

com a figura mitológica portuguesa de uma sereia que é mulher da cintura para cima e peixe

da cintura para baixo, geralmente vista sobre uma pedra e penteando os cabelos.

Mas essa imagem, apesar de associada à forma europeia da sereia, é relatada como

de cor “roxa” assim como a dos narradores e não de cor branca. O cabelo também deixa de ser

louro para tornar-se escuro. Quanto à cor, é comum entre os ribeirinhos, utilizarem a

Page 101: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

100

denominação “roxa” para representar o seu fenótipo negro, o que se entende como uma forma

costumeira de reduzir-lhe o peso da descendência africana e da escravidão. A associação com

o fenótipo negro faz com que a Mãe d‟Água assuma uma identidade mais próxima dos seus

narradores, o que lhe dá um pertencimento maior à sua cultura. Um indício dessa associação é

que a Iara encontrada no Norte do Brasil se apresenta com fenótipo branco e cabelos claros,

diferente da região do Mocambo dos Ventos.

O comportamento dessa mulher sereia assume uma identidade da mãe africana no

momento em que premia o pescador ofertando-lhe uma grande quantidade de peixes. “Era a

Mãe d‟Água que ajudava, que dava, só dava o peixe que a gente botava a rede” (Sr.

Domingos). Esse é o comportamento da deusa-mãe africana que ajuda seus filhos e que

recebe ofertas de prendas, como no caso do sabonete que muitos também afirmam presenteá-

la, em troca da sua ajuda. Como na narrativa sobre o Nego d‟Água, as histórias da Mãe

d‟Água trazem como uma marca da religiosidade, o culto das oferendas, que está em todas as

matrizes da cultura brasileira: indígena, portuguesa e africana. Para alcançar uma graça, nesse

caso a boa pescaria, os peixes em abundância, deve-se presentear essa deusa-mãe encantada,

isto é, desenvolver a prática da oferenda.

4.4 O ARCO-ÍRIS

Outra presença entre as narrativas do Mocambo dos Ventos é a do Arco-Íris.

Mesmo apenas um morador tendo se disposto a contar a narrativa, os outros afirmaram já

terem ouvido falar do Arco-Íris, mas que não sabiam contar direito. Como se tem

conhecimento, o Arco-Íris está presente em todas as regiões do Brasil dentro do seu

imaginário. Segundo Cascudo (2008), também é conhecido como arco, arco celeste, arco da

chuva, olho-de-boi e ainda como arco-da-velha no sul do Brasil e em Portugal. Costuma beber

água nos rios, lagos e mares, podendo engolir gado, aves e crianças, depois desaparecer, após

ser observado a beber o líquido precioso. Na região do Mocambo dos Ventos, foi denominado

apenas de Arco-Íris, como se pode observar na narrativa da Sra. Marilene de Souza Vargas:

Diz que o Arco-Íris bebe água ali no meio do rio, né? Aí aquela água, diz

que ele joga em outro lugar ou então em outra lagoa ou em outros rios, ou

então assim: em outros lugar, na caatinga, sabe? Teve gente assim que já

viu isso, mas eu mesmo nunca vi ele fazer isso, eu já vi ele assim no meio

do rio. Diz também que ele leva as criança e até os bicho e que também ele

pode até secar a água do rio de tanto beber se ele ficar com raiva.

Page 102: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

101

Nesta narrativa, também há a presença do encantamento, do fantástico, uma marca

comum em todas as apresentadas neste trabalho. O Arco-Íris é um elemento encantado, que

bebe água e é capaz de conduzir a água do rio para outros lugares e até mesmo, levar as

pessoas. Deixa de ser visto como um fenômeno de natureza científica, mas como algo

fantástico que possui existência própria, qualidades e atitudes de um ser mágico. Esta

personificação do Arco-Íris, assim como de outros elementos da natureza, é muito comum nas

práticas religiosas animistas, consideradas primitivas, como as africanas e indígenas.

Em todas as culturas de diversos povos pelo mundo, há várias simbologias e

explicações para a presença do Arco-Íris. Chevalier e Gheerbrant (2009, p. 77, grifos dos

autores) apresentam o Arco-Íris como o “caminho e mediação entre a terra e o céu. É a

ponte de que se servem deuses e heróis, entre o Outro-Mundo e o nosso”. Essa sua função

está presente não somente na cultura ocidental, mas em muitas outras culturas. “Essa função

quase universal é atestada tanto entre os pigmeus quanto na Polinésia, na Melanésia, no Japão

– para mencionar apenas culturas extra-européias” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p.

77).

A necessidade de ligação do plano terreno com o espiritual, com o divino está

enraizada em todas as culturas e dessa forma, em muitas delas, o Arco-Íris se constitui em

uma ponte de ligação entre os dois mundos, entre as duas esferas. No Japão, por exemplo, é a

“ponte flutuante do céu; a escada de sete cores, através da qual o Buda torna a descer do céu”

(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 77, grifo dos autores). Na Grécia, ele é tido como

“Íris, a mensageira rápida dos deuses. Simboliza também, de modo geral, as relações entre o

céu e a terra, os deuses e os homens: é uma linguagem divina”. (CHEVALIER;

GHEERBRANT, 2009, p. 77).

Ainda dentro desta perspectiva, a Bíblia o traz como anúncio de bonança após a

tempestade. Depois do dilúvio, surge o Arco-Íris anunciando o fim da tormenta, uma aliança

de Deus com Noé. O Arco-Íris bíblico significa o pacto feito por Deus com Noé de que não

acabaria o mundo com dilúvio. Dessa forma, passa a ser visto pelos cristãos, geralmente como

anunciador de felizes acontecimentos ligados à renovação.

Mas também há outras culturas, como os povos Incas e outras tradições, em que

ele vem associado à outra face da sua simbologia, assumindo uma significação inspiradora de

temor, já que, por muitas vezes, é considerado também como uma serpente perigosa, nefasta,

causadora do mal.

A versão apresentada pela Sra. Marilene e conhecida na região aproxima-se de

uma concepção bastante corrente na Ásia Central, a qual

Page 103: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

102

“Pretende que o arco-íris aspire ou beba a água dos rios e dos lagos. Os

incautos acreditam que ele pode até mesmo levar consigo os homens da

terra. No Cáucaso, exortam-se as crianças a tomarem cuidado para que o

arco-íris não as leve para as nuvens. (HARA, 1959, p.152 apud

CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 79, grifo dos autores).

Mais uma vez o Rio São Francisco é o cenário, é nele que o Arco-Íris aparece,

assim como os personagens das outras narrativas apresentadas. Tal circunstância nos faz

considerar que o imaginário ribeirinho no Mocambo dos Ventos está relacionado diretamente

com o Velho Chico, seus mistérios e encantos, pois em todas as narrativas pode-se perceber

uma relação direta com suas águas.

Como na versão da Ásia Central, a Sra. Marilene afirma que o Arco-Íris aspira a

água do rio e a leva para outros lugares. Para ela, não é apenas um acontecimento da natureza,

mas um ser, um personagem vivo, o qual constrói o enredo de suas narrativas, tornando-se um

ser encantado. Fica ainda latente, que ele se constitui na ponte que leva a água para os lugares

que necessitam dela, como a caatinga, castigada pela seca e escassez desse líquido tão

precioso e vital para o nordestino. Aparece nesse momento como o símbolo de boas novas, de

bons acontecimentos, de renovação e transformação de um ciclo, já que a água levada faz

brotar a vida na caatinga, vingar o alimento, matar a sede dos viventes. Ressalte-se que,

apesar da fartura da água no leito do rio, a caatinga seca, na maior parte do ano, grita por água

que se torna essencial para o cultivo das lavouras de subsistência como a da mandioca, do

milho e do feijão, dentre outras. Essa crença demonstra a fé e a esperança de um tempo

melhor, de fartura trazida pela água, pela tão desejada chuva.

A água mais uma vez faz brotar toda a vida na região e o Arco-Íris para a Sra.

Marilene e demais moradores recebe a conotação da ponte capaz de proporcionar vida à terra

castigada pelo Sol. Mas além de anunciador de boas novas, há também o lado nefasto, pois

“ele pode igualmente preludiar perturbações na harmonia do universo e, até mesmo, assumir

uma significação inspiradora de temor: é a outra face esquerda ou noturna, do mesmo

complexo simbólico [...]” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 78). Nesse sentido,

existe ainda todo um imaginário em torno do misterioso rapto de crianças e de animais pelo

Arco-Íris. “Diz também que ele leva as criança e até os bicho e que também ele pode até secar

a água do rio de tanto beber se ele ficar com raiva” (Marilene Vargas).

Desta forma o Arco-Íris é visto como um ser encantado que tem a capacidade de

punir as crianças desobedientes ou mesmo os adultos, quando leva as crianças e os animais.

Assim, é temido e respeitado por todos. É preciso não desagradá-lo, pois ele pode “beber”

Page 104: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

103

toda a água do rio, o que seria catastrófico para as comunidades. Por isso, “o sertanejo não

gosta do arco-íris porque furta água” (CASCUDO, 2008, p. 21) e também, porque geralmente

aparece após o fim da tão almejada chuva, significando que não irá chover mais naquele

momento, como no pacto feito entre Deus e Noé.

O temor da punição em relação à má conduta, ao pecado, à subversão aos

mandamentos religiosos se faz presente como marca do eurocentrismo católico. Logo, é

preciso não descumprir os mandamentos cristãos, é preciso agradá-lo, respeitá-lo, pois o

Arco-Íris pode também não representar somente boas novas, mas trazer transtornos e dores

como punição.

De acordo com Verger e Prandi, dentre outros estudiosos, nas culturas africanas

da região de onde vieram os negros escravizados para o Brasil, ou seja, para a cultura afro-

brasileira de origem iorubana, a marca mais evidente de Oxumaré é o Arco-Íris, de quem é

senhor. Oxumaré é um orixá que representa polaridades contrárias, dos opostos como o

masculino e o feminino, o bem e o mal, a chuva e o tempo bom, o dia e a noite,

respectivamente, e sob as formas do Arco-Íris e de serpente. Cascudo (2008, p. 459) traz

Oxumaré como “[...] orixá do arco-íris. Santo iorubano ocupado em transportar água da terra

para o ardente palácio das nuvens onde reside Xangô, que depois a devolve em forma de

chuva”. Ao recolher a água da terra durante a chuva, levando-a para as nuvens, dá

continuidade ao ciclo da chuva, à vida. Ele é ao mesmo tempo macho e fêmea, pois não tem

sexo definido e durante seis meses tomava a forma de Arco-Íris, cuja função era levar a água

para o castelo de Oxalá, que morava em Orun (no céu). Após o cumprimento da tarefa,

voltava à terra por outros seis meses, assumindo a forma de uma cobra.

Para Cascudo (2008), o Arco-Íris, também representado pela serpente, aparece

como mito africano que se estende do Senegal ao Congo Belga. Já no que diz respeito à sua

origem, tanto os africanos como os indígenas sul-americanos tinham explicações semelhantes.

Cascudo (2008, p. 460) nos diz que os “indígenas e africanos tinham um elemento comum

para a explicação etiológica do arco-íris”, pois as serpentes, para os indígenas sul-americanos,

encontram-se presentes em todos os temas aquáticos, simbolizando o próprio elemento ou

seus habitantes e dirigentes, e não se pode afirmar que essa relação se concretiza por

influência africana entre esses indígenas.

O arco-íris é N‟Tyama, serpente que vive no fundo do rio Congo, no

primeiro rápido e, quando, depois da chuva, vem se aquecer à superfície, o

dorso se reflete nas nuvens, formando o espectro das sete cores. Entre os

indígenas sul-americanos, a mesma tradição é conhecida. Não parece, pela

Page 105: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

104

sua antiguidade e processo verbal de exposição, que seja uma influência

africana entre os ameríndios [...] (CASCUDO, 2008, p. 460).

Deste modo, nota-se que o imaginário apresentado em torno do Arco-Íris no

Mocambo dos Ventos consolida-se sob influência maior da cultura africana e de seus orixás,

especificamente Oxumaré, e ainda das culturas indígena e portuguesa. Dessa forma, os fatos

narrados pelos seus moradores encontram uma relação com a cultura de seus antepassados. A

própria associação com a mudança de sexo daquele que passar por baixo do Arco-Íris

encontra também a fundamentação na sexualidade antitética do orixá. Muitos moradores

também afirmam ter ouvido dizer que se alguém passar por baixo do Arco-Íris muda para o

sexo oposto.

Vale destacar também o jogo performático da Sra. Marilene no momento em que

ao mesmo tempo, narra e lava roupas no leito do rio. (Figura 32). As expressões afirmativas,

apontando para as águas, dão credibilidade à sua história. E quando ela não vivencia o que

narra, deixa claro que outras pessoas presenciaram tais acontecimentos. Não apenas a Sra.

Marilene, mas todos os outros narradores apresentados demonstram uma preocupação com a

veracidade das suas narrativas, as quais já se pode considerá-las como de testemunho.

4.5 O RIO QUE DORME

O Rio São Francisco para todo o povo de suas margens é tido como um

companheiro de jornada, um lugar mágico, fantástico, que muitas vezes se torna personagem

das histórias contadas. No Mocambo dos Ventos, também se apresenta desta forma para a

maior parte dos seus moradores, que muitas vezes o vêem como um ser que possui alma e

sentimento, atribuindo-lhes em certas situações, características de um ser vivo, embora

envolvido em mistérios e encantamentos.

Até o nome carinhoso de Velho Chico serve para reforçar essa relação em que o

Rio aparece também como um personagem do imaginário ribeirinho. É como se esse nome

atribuído contribuísse para a aproximação e familiarização do povo com o rio. A narrativa que

se segue traz essa personificação do São Francisco, comum em todas as regiões percorridas na

sua viagem rumo ao mar.

O Rio dorme sim, as água dorme. Você vê quando foi. As hora ele ta

mexendo a água, aí na hora dela dormir, ó! Ela serena ali, fica quietinha,

que ninguém vê a maleta do rio. De manhã cedo, a gente sai para pegar

água, chega lá ta quentinha, e ta ói! Clarinha, que ninguém vê uma maleta

Page 106: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

105

de jeito nenhum. Quentinha! Depois o vento chega e bate, suja a água

(Maria Francisca da Silva).

Como se pode observar, a narrativa traz a personificação de elementos do

imaginário ribeirinho, trazendo-os do lugar de cenário para ocupar o papel de um personagem,

de um ser fantástico e misterioso. Assim, o Velho Chico é ao mesmo tempo espaço mágico,

companheiro, confidente, testemunha e sujeito de muitas ações narradas, de muitos fatos e

episódios contados pelos seus crédulos narradores. O próprio apelido toponímico Velho

Chico, que muito tem para nos contar, já nos remete a uma personificação do rio, podendo

ainda ser considerado um narrador, dono de muitas histórias para contar. A ideia de

antiguidade posta vem até salvaguardar um símbolo de sabedoria, de conhecimento, de

experiência, comum principalmente aos narradores mais velhos.

O Rio, juntamente com a Serpente da Ilha do Miradouro, a Mãe d‟Água, o Nego

d‟Água e o Arco-Íris formam o elenco de um grande espetáculo da cultura ribeirinha no

Mocambo dos Ventos: as suas narrativas orais. São histórias e personagens encantadas que de

tantos testemunhos, já fazem parte do cotidiano e cuja veracidade não se contesta. Nas

margens do Velho Chico, navegam estas e outras histórias fascinantes que nos convidam a

todo instante a embarcar numa viagem fantástica por suas tão atraentes e misteriosas águas.

Tanto “O Arco-Íris” quanto “O Rio que Dorme” se apresentam de uma forma

diferenciada das três narrativas trazidas anteriormente, as quais existem como lendas, histórias

e causos em todo o território brasileiro. A própria estrutura e o modo de narrar não se

consolidam da mesma maneira. Pode-se, portanto, considerá-las como um gênero

diferenciado de narrativas, mas não menos importante para deixar de ser relatado neste

trabalho.

Page 107: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

106

Figura 32 – Sra. Marilene, após suas narrativas, levando água do rio para casa

Page 108: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

107

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: ENTRE AS MARGENS E UM PORTO

POSSÍVEL

A identidade [...] é um conceito altamente contestado. Sempre que se ouvir

essa palavra, pode-se estar certo de que está havendo uma batalha. O campo

da batalha é o lar natural da identidade. Ela só vem, à luz no tumulto da

batalha, e dorme e silencia no momento em que desaparecem os ruídos da

refrega. Assim, não se pode evitar que ela corte os dois lados. [...] A

identidade é uma luta simultânea contra a dissolução e a fragmentação; uma

intenção de devorar e ao mesmo tempo uma recusa a ser devorado.

(Zygmunt Bauman, 2005)

É chegada a hora de “desaportar”, pelo menos por enquanto, dessa viagem pelas

águas encantadas do Velho Chico na região do Mocambo dos Ventos. Navegar nas suas

margens, tendo a oportunidade de conhecer a magia e mistérios das narrativas orais dos seus

moradores, proporcionou uma abordagem reflexiva sobre a construção da identidade cultural

dos povos ribeirinhos. Identidade esta, que, como se pode notar, se encontra em estado

líquido, assim como as águas do rio, ou seja, em um processo perene de autoconstrução

através das relações estabelecidas entre as diversas culturas coexistentes.

Na identidade cultural ribeirinha percebe-se a presença da pluralidade cultural,

pela ideologia presente nos discursos trazidos nas narrativas. São marcas culturais que

representam as principais matrizes de formação da cultura brasileira: indígena, portuguesa e

africana. Embora em alguns aspectos, o modelo cultural logocêntrico32

procure desmerecer a

cultura indígena e a africana, elas têm resistido e se encontram presentes nas narrativas orais,

como as apresentadas neste trabalho. Nesse sentido, “a literatura oral sofreu influências tanto

dos portugueses e africanos, quanto dos indígenas, preservando-se na memória do povo”

(CASCUDO, 2008, p. 334). Além disso, também foi e ainda é influenciada por marcas

culturais de outras culturas pós-coloniais, inclusive através dos meios de comunicação de

massa, principalmente a antena parabólica e a TV.

Dentro do imaginário ribeirinho, há uma fusão de diversos valores, conceitos e

saberes que, através da oralidade, têm permanecido na memória cultural, resistindo a essa

carga de “modernidade” trazida pelas tecnologias. Em todas as narrativas, as culturas

indígena, europeia e africana deixam suas marcas, mesmo modificadas ou ressignificadas.

32

Logocentrismo como uma visão cultural centrada no modelo eurocêntrico, branco, masculino, escrito e

fundamentado na razão.

Page 109: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

108

Embora o Mocambo dos Ventos seja considerado historicamente como uma

localidade quilombola, mesmo não reconhecida oficialmente, jamais será válido afirmar que

por isso, a sua cultura é exclusivamente afrodescendente, pois é uma cultura centrada no

hibridismo e na liquidez, construída a partir de diversas influências culturais como a

eurocêntrica e indígena. As marcas da afrodescendência são muito fortes em todas as

manifestações culturais do Mocambo dos Ventos, mas não se pode afirmar que sejam as

únicas. Isto pode ser comprovado nas análises e discussões sobre as narrativas, trazidas

anteriormente neste estudo.

Ainda é necessário considerar que a formação cultural dessa região não se

encontra estabilizada, pois esse processo se constrói a todo momento, a partir da interação

com o outro, com o novo que chega. Assim como as águas do rio e as areias das dunas, a

identidade cultural dos povos do Mocambo dos Ventos e região encontra-se em estado de

movência.

As considerações finais deste trabalho se voltam para uma visão que direciona a

uma literatura como um lugar de entrecruzamento de linguagens, um lugar de construção e

desconstrução de identidades. Identidades que navegam entre as margens em busca de um

porto possível, de um reconhecimento diante de toda uma coletividade. Nesse sentido,

conclui-se que as narrativas orais, tão bem apresentadas pelos seus narradores, nos permitem

entender esse processo de construção identitária na região do Mocambo dos Ventos, por

trazerem, claramente, as marcas ideológicas oriundas das diversas culturas que ali co-habitam.

Pode-se observar, portanto, um acervo de narrativas orais que apresentam traços

de uma hibridização cultural. Claramente, aspectos da cultura portuguesa aparecem fundidos

com a cultura afrodescendente e indígena. Narrativas orais como estas, construídas no

hibridismo cultural, na miscigenação de culturas se afastam da ideologia do purismo estético.

Duarte (2002, p. 50) aponta que:

A ideologia do purismo estético, ela sim, faz o jogo do preconceito, à

medida que transforma em tabu as representações vinculadas às

especificidades de gênero ou etnia e as exclui sumariamente da “verdadeira

arte”, porque “maculadas” pela contingência histórica. Este purismo é, no

fundo, um discurso repressor, que cala a voz dissonante desqualificando-a

enquanto objeto artístico.

As narrativas trazem consigo a reprodução de vozes repressoras, dentro de uma

sociedade conservadora que se utiliza da linguagem para a solidificação de valores, normas e

crenças, especialmente os referendados pelo discurso etnocêntrico, tendo a Igreja Católica

Page 110: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

109

como grande propagadora desse discurso. Bernd (2002, p. 45) chama a atenção para este fato,

quando afirma que “a linguagem poética é necessariamente plural e polifônica, devendo tocar

e sensibilizar o ser humano em geral independente da cor de sua pele, da religião que pratica e

das práticas culturais que lhe são próprias”.

As ações de fala presentes no Mocambo dos Ventos, cuja cultura é considerada

como de margens, de fronteiras, acabam construindo a autoafirmação identitária dos seus

moradores. Sobre as ações de fala, Habermas (2002, p. 95) afirma que “sob o aspecto do

entendimento, elas servem à tradição e à continuidade do saber cultural, sob o aspecto da

socialização, servem à formação e à conservação de identidades sociais”.

A identidade cultural desses povos vem representada em suas narrativas orais,

uma vez que incorporam na sua fala, a ideologia, a crença, os valores, os costumes e o

comportamento dos seus indivíduos, mesmo que sejam estes, natos ou produtos de uma

hibridização, pois a cultura, como afirma Habermas (2002, p. 96), “é o armazém do saber, do

qual os seus participantes da comunicação extraem interpretações no momento em que se

entendem mutuamente sobre algo.”

As narrativas orais da região do Mocambo dos Ventos proporcionam “a própria

difusão das tradições culturais por sobre as fronteiras de coletividade e comunidades de

linguagem” (HABERMAS, 2002, p. 98), pois o saber cultural vem representado através das

formas simbólicas da linguagem e é, através das ações de fala, repassado entre os povos. As

próprias pessoas assumem o papel de difusores das tradições, uma vez que através das suas

ações de fala, contribuem para a transmissão cultural.

Logo, tais narrativas deixam emergir traços identitários, que embora sendo

produto de hibridização, fazem-se reconhecer em meio a uma homogeneização da cultura

global. Vêm acompanhadas de uma ideologia, mostrando a face que muitas vezes o modelo

ocidental eurocêntrico tende a mascarar.

Assim, convém concluir esta reflexão acerca da identidade cultural dos povos das

margens ribeirinhas do Velho Chico com a seguinte afirmação: “Toda tradição cultural é

simultaneamente um processo de formação para sujeitos capazes de ação e de fala, os quais se

formam no interior dela e que, por seu turno, mantém viva a cultura” (HABERMAS, 2002, p.

100). Portanto, tais identidades são construídas a partir das relações com outras e permanecem

instáveis, líquidas e híbridas, pois são representadas por uma literatura plural e polifônica,

cujo discurso a todo instante, sofre diversas influências, seja através dos meios de

comunicação ou pelo contato com outras culturas de fronteiras. São identidades das margens

Page 111: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

110

que navegam pela liquidez cultural, as quais serão sempre identidades em trânsito, na busca

de um porto possível para o reconhecimento, a igualdade e a valorização de sua cultura.

Page 112: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

111

REFERÊNCIAS

ALCOFORADO, Doralice Xavier. A escritura e a voz. Salvador: EGBA/Fundação das

Artes, 1990.

ALCOFORADO, Doralice Xavier. Belas e feras baianas: um estudo do conto popular.

Salvador: Fundação Pedro Calmon, 2008. (Coleção Selo Letras da Bahia)

ALMEIDA, Maria Inês de; QUEIROZ, Sônia. Na captura da voz – as edições da narrativa

oral no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica; FALE/UFMG, 2004.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução Maria Ermantina Galvão. 3. ed.

São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Tradução Paulo Bezerra. 3. ed.

Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.

BARBOSA, Clóvis. In: GOMES, Núbia P.M.; PEREIRA, Edimilson P. Mundo encaixado –

Significação da cultura popular. Belo Horizonte: Mazza Edições, 1992. (Depoimento extraído

da obra).

BARBOSA, Irailde. et al. A poética oral às margens da comunidade ribeirinha. 2007. 56 f.

Trabalho de Conclusão do Curso (Licenciatura em Língua Portuguesa e Literaturas da Língua

Portuguesa). Departamento de Ciências Humanas e Tecnologias, Campus XXIV,

Universidade do Estado da Bahia, Xique-Xique, 2007.

BASTIDE, Roger. Estudos afro-brasileiros. São Paulo: Perspectiva, 1973.

BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Tradução Carlos Alberto

Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I: Magia e técnica, arte e política. 3. ed. São Paulo:

Brasiliense, 1987.

BERND, Zilá. Enraizamento e errância: duas faces da questão identitária. In: SCARPELLI,

Marli Fontini; DUARTE; Eduardo de Assis. (Orgs.) Poéticas da diversidade. Belo

Horizonte: UFMG/FALE: Pós-Lit., 2002.

BERND, Zilá. Literatura e identidade nacional. 2. ed. Porto Alegre: Editora da UFGRS,

2003.

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Tradução Myriam Ávila, Eliana Loureiro de Lima

Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003.

Page 113: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

112

BLOOM, Harold. O cânone ocidental. Tradução Marcos Santarrita. 3. ed. Rio de Janeiro:

Objetiva, 1995.

BRASIL. Lei no 11.645, de 10 de março de 2008. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro

de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes

e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a

obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Diário Oficial

[da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 11 mar. 2008.

BURKE, Peter. Hibridismo cultural. Tradução Leila Souza Mendes. Rio Grande do Sul:

UNISINOS, 2006.

CAMPOS, Cristina. Pantanal mato-grossense: o semantismo das águas profundas. Cuiabá:

Entrelinhas, 2004.

CAMPOS, Maria Consuelo. Representações da mulher negra na literatura

brasileira. In: Seminário Nacional Mulher e Literatura, 12. e Seminário Internacional Mulher

e Literatura, 3., 2007, Ilhéus. Anais eletrônicos... Ilhéus: UESC, 2007. Disponível em:

http://www.uesc.br/seminariomulher/anais/PDF/Mesas/Maria%20Consuelo%20Cunh

a%20Campos.pdf. Acesso em: 25 jan. 2010.

CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade.

Tradução Heloísa Pezza Cintrão, Ana Regina Lessa. Tradução Introdução Gênese Andrade. 4.

ed. 1. reimp. São Paulo: EDUSP, 2006.

CASCUDO, Luiz Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Edição revista, atualizada e

ilustrada. 2. reimp. São Paulo: Global Editora, 2008.

CASCUDO, Luiz Câmara. Literatura oral no Brasil. 2. ed. São Paulo: Global, 2006.

CASHMORE, Ellis. Dicionário de relações étnicas e raciais. Tradução Dinah Kleve. São

Paulo: Summus, 2000.

CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. 8. ed. São Paulo: Vozes Ltda, 1998. 744 p.

CHARTIER, Roger. Cultura escrita: entre distinção e apropriação. Tradução Maria de

Lourdes Meirelles Matêncio. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2003.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos (mitos, sonhos,

costumes, gestos, formas, figuras, cores, números). Tradução Vera da Costa e Silva [et al.].

23. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.

COSTA, Edil Silva. Cinderela nos entrelaces da tradição. Salvador: Secretaria da Cultura e

Turismo do Estado da Bahia, Fundação Cultural, EGBA, 1998.

Page 114: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

113

COSTA, Edil Silva. Comunicação sem reservas: ensaios de malandragem e preguiça.

2005. 236 f. Tese (Doutorado em comunicação e semiótica) Programa de estudos pós-

graduados em comunicação e semiótica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São

Paulo, 2005.

CRAVEIRINHA, José. Karingana, ua Karingana. Moçambique, Lourenço Marques:

Edição da Acadêmica, 1974.

DUARTE; Eduardo de Assis. Notas sobre a Literatura Brasileira Afro-descendente. In:

SCARPELLI, Marli Fontini; DUARTE; Eduardo de Assis. (Orgs.) Poéticas da diversidade.

Belo Horizonte: UFMG/FALE: Pós-Lit., 2002.

FERREIRA, Jerusa Pires. Armadilhas da memória e outros ensaios. São Paulo: Ateliê

Editorial, 2003.

FERREIRA, Ricardo Franklin. Afro-descendente: identidade em construção. São Paulo:

EDUC; Rio de Janeiro: Pallas, 2004.

FONSECA, Maria Nazareth Soares. Literatura negra, literatura afro-brasileira: como

responder à polêmica. In: SOUZA, Florentina; LIMA, Maria Nazaré (Orgs.). Literatura

afro-brasileira. Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais, Brasília: Fundação Cultural

Palmares, 2006.

GÓIS, Aurino José. O diálogo inter-religioso entre o cristianismo e as tradições afro-

brasileiras. In: AMÂNCIO, Maria da Costa (Org.). África-Brasil-África: matrizes, heranças

e diálogos contemporâneos. Belo Horizonte: Editora PUC Minas, Nandyala, 2008.

HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002

HALL, Stuart. A Identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da

Silva, Guaracira Lopes Louro. 4. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.

HAMPÂTÉ-BÂ, Amadou. Amkoullel, o menino fula. Tradução Xina Smith de Vasconcelos.

São Paulo: Casa das Áfricas; Palas Athena, 2003.

HONWANA, Luis Bernardo. Literatura e o conceito de africanidade. In: CHAVES, Rita;

MACÊDO, Tânia (Orgs.). Marcas da diferença: as literaturas africanas de língua

portuguesa. São Paulo: Alameda, 2006.

IBGE (2009). Disponível em: http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1. Acesso

em: 04 set. 2009.

LE GOFF, Jacques. Memória. In: História e memória, São Paulo: Editora Unicamp, 1996.

Page 115: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

114

LEITE, Mário Cezar Silva. Águas encantadas de Chacororé: natureza, cultura, paisagens e

mitos do pantanal. Cuiabá: Cathedral Unicen Publicações, 2003. (Coleção Tibanaré de

estudos matogrossenses; v. 4)

LEMAIRE, Ria. Melusine – Melusina / Mélusines – Melusinas: serpentes, sereias e dragões.

REVISTA LUSITANA. (Nova Série), 19-21, Lisboa: Centro de Tradições Populares

Portuguesas Professor Manuel Viegas Guerreiro, Universidade de Lisboa – Faculdade de

Letras, 1999-2001, p. 81-107.

LEMAIRE, Ria. Passado-presente e passado-perdido: transitar entre oralidade e escrita.

REVISTA LITTERATURE D’AMERICA. Roma: Bulzoni Editore, Trimestral, Anno

XXII, n. 92, p. 83-121, 2002.

LEMAIRE, Ria. Expressões femininas na literatura oral. In: BERND, Zilá; MIGOZZI,

Jacques (Orgs.) Fronteiras do literário: literatura oral e popular Brasil/França. Porto Alegre:

UFRGS, 1995.

LIMA, Francisco Assis de S. Conto Popular e comunidade narrativa. Rio de Janeiro:

FUNARTE/ Instituto Nacional do Folclore, 1985.

MARTIN-BARBERO, Jesus. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia.

Tradução Ronald Polito e Sérgio Alcides. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003.

MARTIN-BARBERO, Jesus. Pré-Textos; conversaciones sobre las comunicaciones e sus

contextos. Santiago de Cali: Editorial Universidade del Valle, 1996.

MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de história oral. 5. ed. rev. e ampl. São Paulo:

Edições Loyola, 2005.

MUNANGA, Kabengele. Origem e histórico do quilombo na África. Revista USP, São

Paulo, n. 28, p. 56-63, 1996.

ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional, 4. reimpressão da 5. ed. São

Paulo: Brasiliense, 2003.

PALMEIRA, Francineide Santos; SOUZA, Florentina da Silva. Representações de gênero e

afrodescendência na obra de Conceição Evaristo. ENECULT - Encontro de Estudos

Multidisciplinares em Cultura, 4., 2008, Salvador. Anais eletrônicos... Salvador: Faculdade

de Comunicação/UFBA, 2008. Disponível em:

http://www.cult.ufba.br/enecult2008/14440.pdf. Acesso em: 27 jan. 2010.

PINSKI, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria. Igualdade e especificidade. In: PINSKI,

Jaime; PINSKI, Carla Bassanezi. (Orgs.). História da cidadania. São Paulo: Contexto, 2003.

PLANO DIRETOR DO MUNICÍPIO DE BARRA. Barra, Bahia, Dez. 2004.

Page 116: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

115

PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

PRANDI, Reginaldo. Oxumarê, o Arco-Íris. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

REIS, Liana Maria. Africanos no Brasil: saberes trazidos e ressignificações culturais. In:

AMÂNCIO, Maria da Costa (Org.). África-Brasil-África: matrizes, heranças e diálogos

contemporâneos. Belo Horizonte: Editora PUC Minas, Nandyala, 2008.

REIS, Roberto. Cânon. In: JOBIM, José Luís (org.) Palavras da crítica: tendências e

conceitos no estudo da literatura. Rio de Janeiro: Imago, 1992.

REVISTA ESTUDOS LINGÜÍSTICOS E LITERÁRIOS, n. 7, Universidade Federal da

Bahia, Instituto de Letras, Salvador: out. 1988, 146 p.

ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é etnocentrismo. 5. ed. São Paulo: Brasiliense,

1988.

RUI, Manuel. Eu e o outro – O Invasor ou Em poucas três linhas uma maneira de pensar o

texto. In: MEDINA, Cremilda. Sonha Mama África. São Paulo: Epopéia, 1987.

SAID. Edward W. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. Tradução Rosaura

Eichenberg, São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

SANTOS, Ildete Muzart Fonseca. Escritura da voz e memória do texto: abordagens atuais da

literatura popular brasileira. In: BERND, Zilá; MIGOZZI, Jacques (Orgs.) Fronteiras do

literário: literatura oral e popular Brasil/França. Porto Alegre: Editora da

Universidade/UFRGS, 1995.

SARLO, Beatriz. Cenas da vida pós-moderna: intelectuais, arte e videocultura na

Argentina. Tradução Sérgio Alcides. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2000.

SOUZA, Mari Guimarães. Literatura oral e imaginário em perspectiva de expansão

através do turismo cultural. ENECULT - Encontro de Estudos Multidisciplinares em

Cultura, 2., 2006, Salvador. Anais Eletrônicos... Salvador: Faculdade de Comunicação/UFBA,

2006. Disponível em: http://www.uesc.br/icer/artigos/mariliteraturaoral.htm. Acesso em: 18

set. 2009.

VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás. Tradução Maria Aparecida da Nóbrega. Salvador:

Corrupio, [ca. 1995].

VIEIRA, Nelson H. Hibridismo e allteridade: estratégias para repensar a história literária. In:

MOREIRA, Maria Eunice (Org.). Teoria da literatura: teorias, temas e autores. Porto

Alegre: Mercado Aberto, 2003.

Page 117: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

116

WEISZFLOG, Walter. (Ed.). Michaelis Moderno Dicionário Da Língua Portuguesa.

Coordenador Rosana Trevisan 1998-2009. Editora Melhoramentos Ltda. © 2009. Disponível

em: http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues

YUNES, Eliana (Org.). Pensar a leitura: complexidade. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São

Paulo: Loyola, 2002.

ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: A "Literatura" Medieval. Tradução Amálio Pinheiro,

Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. Tradução Jerusa Pires Ferreira, Maria Lúcia

Diniz Pochat e Maria Inês de Almeida. São Paulo: Hucitec, 1997.

ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Tradução Jerusa Pires Ferreira e Suely

Fenerich. 2a. ed. rev. e ampl. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

Page 118: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

117

ANEXOS

Page 119: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

118

ANEXO A – Documento com a versão da narrativa “A Serpente da Ilha do Miradouro”, de

autoria de Jorge Pinheiro Meira, disponível no IBGE da cidade de Xique-Xique

Page 120: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

119

ANEXO B – Cópias dos Termos de Autorização dos narradores para a utilização da fala e da

imagem na pesquisa

Page 121: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

120

Page 122: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

121

Page 123: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

122

Page 124: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

123

Page 125: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

124

Page 126: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

125

Page 127: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

126

ANEXO C – Outras fotos da pesquisa no Mocambo dos Ventos e região

Autorização Domingos Pereira Carvalho

Autorização Maria Pereira de Carvalho

Autorização Maria Alexandrina Caxiado

Autorização Alberto de Souza Dias

Preenchimento das autorizações

Gravação das narrativas

Page 128: UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB PRÓ … · universidade do estado da bahia - uneb prÓ-reitoria de pesquisa e ensino de pÓs-graduaÇÃo departamento de ciÊncias humanas

127

Pescador

Lavadeiras

Embarcação

Entardecer

Rancho nas margens

Pescadores nas margens