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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS CURSO DE DIREITO A RESPONSABILIDADE PENAL NA EUTANÁSIA: UM BREVE ESTUDO SOBRE A (IN) DISPONIBILIDADE DA VIDA DO SER HUMANO VISTA COMO BEM JURÍDICO TUTELADO PELO ESTADO JOSIANE CONTE Itajaí (SC), 20 de novembro de 2009

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS CURSO DE DIREITO

A RESPONSABILIDADE PENAL NA EUTANÁSIA: UM BREVE ESTUDO SOBRE A (IN) DISPONIBILIDADE DA VIDA DO SER

HUMANO VISTA COMO BEM JURÍDICO TUTELADO PELO ESTADO

JOSIANE CONTE

Itajaí (SC), 20 de novembro de 2009

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS CURSO DE DIREITO

A RESPONSABILIDADE PENAL NA EUTANÁSIA: UM BREVE ESTUDO SOBRE A (IN) DISPONIBILIDADE DA VIDA DO SER

HUMANO VISTA COMO BEM JURÍDICO TUTELADO PELO ESTADO

JOSIANE CONTE

Monografia submetida à Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel

em Direito. Orientador: Professor Msc. Carlos Roberto da Silva

Itajaí, de novembro de 2009.

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AGRADECIMENTO

Primeiramente ao meu professor e orientador Carlos Roberto da Silva, por sua incansável dedicação e paciência, por transmitir sua tranqüilidade que foi fator essencial para a conclusão deste trabalho. Aos meus amigos, à minha família e principalmente a Deus por ter me proporcionado este momento tão especial em minha vida.

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DEDICATÓRIA

À minha mãe Jussara, meu pai (Valdir) e à minha tão especial irmã (Graciele), que estes seres saibam que tudo de bom que tem acontecido devo a eles, à minha mãe porque me educou da melhor maneira possível, pois durante todo período do meu desenvolvimento reservou as essências mais especiais, dedicou sua vida para me ver aqui hoje, realizando mais um sonho. Ao meu pai, porque não existem palavras para dizer o que este homem significa em minha vida, agradeço a exata maneira que ele é, porque muito dele está em mim, suas noites sem dormir procurando a melhor maneira de deixar bem a sua filha que estava e está longe dele. À minha irmã, ah, se ela soubesse como é bom tê-la como irmã, como amiga, se ela soubesse como é bom saber que ela existe, a esta pessoa incrivelmente diferente de todos que eu conheço, porque me ensinou, ensinou muito, mas existem coisas que a gente nunca esquece como aquela data em que choramos muito por uma notícia triste, e hoje nos encontramos cheios de perspectivas, apenas positivas, é claro, porque eu, minha mãe e meu pai, aprendemos com ela (Graci) que o verdadeiro sentido da vida se encontra em viver, viver e viver. Obrigada por fazerem parte da minha vida.

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TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE

Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total

responsabilidade pelo aporte ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a

Universidade do Vale do Itajaí, a coordenação do Curso de Direito, a Banca

Examinadora e o Orientador de toda e qualquer responsabilidade acerca do mesmo.

Itajaí, 20 de Novembro de 2009.

Josiane Conte Graduanda

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ROL DE CATEGORIAS

Rol de categorias que a Autora considera estratégicas à

compreensão do seu trabalho, com seus respectivos conceitos operacionais.

DIGNIDADE DO SER HUMANO

Deriva do latim dignitas (virtude, honra, consideração), em regra se entende a

qualidade moral, que, possuída por uma pessoa, serve de base ao próprio respeito

em que é tida. Compreende-se também como o próprio procedimento da pessoa,

pelo qual se faz merecedor do conceito público. Dignidade, em sentido jurídico,

também se entende como a distinção ou honraria conferida a uma pessoa,

consistente em cargo ou título de alta graduação. No Direito Canônico, indica-se o

beneficio ou prerrogativa decorrente de um cargo eclesiástico 1.

DISTANÁSIA

No que se refere à distanásia, é sabido que a etimologia revela que a palavra deriva

do grego dis (afastamento) e thánatos (morte), consistindo, portanto “no emprego de

recursos médicos com o objetivo de prolongar ao máximo possível a vida humana” 2.

ÉTICA

A palavra ética é usada, sob a expressão de ética profissional, para indicar a soma

de deveres, que estabelece a norma de conduta do profissional no desempenho de

suas atividades e em suas relações com o cliente e todas as demais pessoas com

quem possa ter trato 3.

EUTANÁSIA

1 SILVA, Plácido de, et al. Vocabulário Jurídico. v. II. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2008. p. 8. 2 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia. Curitiba: Juruá, 2009. p. 26. 3 SILVA, Plácido de, et al. Vocabulário Jurídico. v. II. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2008. p. 12.

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Morte que alguém proporciona a uma pessoa que padece de uma enfermidade

incurável ou muito penosa, e a que tende a extinguir a agonia demasiado cruel ou

prolongada. 4.

HOMICÍDIO

É a eliminação da vida de alguém levada a efeito por outrem. Embora a vida seja um

bem fundamental do ser individual-social, que é o homem, sua proteção legal

constitui um interesse compartido do indivíduo e do Estado. 5.

HOMICÍDIO PRIVELIGIADO

As circunstâncias especialíssimas elencadas no § 1º do art. 121 minoram a sanção

aplicável ao homicídio, tornando-o um crimen exceptum. Contudo, não se trata de

elementares típicas, mas de causas de diminuição de pena, também conhecidas

como minorantes […] 6.

ORTOTANÁSIA

[...] as condutas ortotanásicas diferem amplamente da eutanásia passiva, pois nesta

ocorre a provocação da morte do doente terminal por meio da omissão quanto aos

cuidados “paliativos ordinários e proporcionais” que evitariam seu passamento 7.

MORAL

[…] designa a parte da filosofia que estuda os costumes, para assinalar o que é

honesto e virtuoso, segundo os ditames da consciência e os princípios de

humanidade 8.

MORTE CLÍNICA

4 ASUA, Luis Jimenez de. Liberdade de Amar e Direito a Morrer: Eutanásia e Endocrinologia. Belo

Horizonte: Mandamentos, 2003. p. 185. 5 BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, parte especial: dos crimes contra a

pessoa. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 22. 6 BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, parte especial: dos crimes contra a

pessoa. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 46. 7 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia. Curitiba: Juruá, 2009. p. 25. 8 SILVA, Plácido de, et al. Vocabulário Jurídico. v. II. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2008. p. 23.

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“[...] desintegração irreversível da personalidade em seus aspectos fundamentais

morfofisiológicos, fazendo cessar a unidade biopsicológica como um todo funcional e

orgânico, definidor daquela personalidade que assim se extinguiu” 9.

9 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia. Curitiba: Juruá, 2009. p. 99.

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SUMÁRIO

RESUMO...........................................................................................09 INTRODUÇÃO ..................................................................................10 CONCEITO, ANTECEDENTES HISTÓRICOS E CLASSIFICAÇÃO DA EUTANÁSIA. ..............................................................................13 1.1 NOÇÕES INTRODUTÓRIAS, CONCEITO E ETIMOLOGIA ......................... 13 1.2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA E O DIREITO COMPARADO............................... 17 1.3 CLASSIFICAÇÃOE ESPÉCIES ...........................................................................31

CAPÍTULO 2 .....................................................................................41 O DIREITO À VIDA E OS ASPECTOS ÉTICOS E MORAIS DA EUTANÁSIA .....................................................................................41 2.1 DIREITO À VIDA – CONCEITO DE MORTE CLÍNICA ................................ 41 2.2 DISCUSSÃO ÉTICA E MORAL DA EUTANÁSIA......................................... 49 2.3 A EUTANÁSIA VISTA PELAS RELIGIÕES .......................................................54

CAPÍTULO 3 .....................................................................................63 A HIPÓTESE DE UMA MORTE DIGNA E A RESPONSABILIDADE PENAL DO MÉDICO NA EUTANÁSIA.............................................63 3.1 UMA BREVE EXPLANAÇÃO SOBRE O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA FRENTE À EUTANÁSIA..................................................... 63 3.2 A TIPICIDADE DO CRIME DE HOMICÍDIONA CONDUTA MÉDICA NA EUTANÁSIA ........................................................................................................ 69 3.3 UMA NOVA PRPOPOSTA DE DEFINIÇÃO JURÍDICO PENAL DA EUTANÁSIA ........................................................................................................ 76 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..............................................................80 REFERÊNCIA DAS FONTES CITADAS...........................................86

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RESUMO

O avanço científico da medicina tem trazido inegáveis

benefícios à toda a sociedade, prolongando a expectativa de vida e, em alguns

casos, prorrogando de forma artificial uma vida humana já condenada à morte por

doença incurável. Nessa última circunstância, a hipótese da eutanásia vem

ganhando corpo e espaço nas discussões jurídico filosóficas em tempos atuais, o

que traduz uma tendência à eventual aceitação da prática médica eutanásica no

mundo jurídico. De fato, é sabido que o direito tenta traduzir um sentimento social

predominante, para o fim de regrar a conduta e a convivência dessa mesma

sociedade. Se assim entendido, é de se concluir que essa evolução de pensamento,

para o fim de admitir a eutanásia, afastando a hipótese de crime ou, ao menos,

amenizando a sanção Estatal, tem como tendência culminar com essa proporcional

e paralela evolução legislativa. No campo jurisfilosófico, essas eventuais mudanças

referidas encontram fundamento no Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e no

Princípio da Autonomia, no sentido de se admitir a dignidade do ser humano no

momento da morte, evitando um sofrimento exagerado e desnecessário, e

possibilitando à pessoa dispor do bem vida, que em última análise lhe pertence.

Nesse panorama, observa-se que o direito pátrio, apesar de tentativas de alterações

em frustrados projetos de lei, ainda contempla a conduta eutanásica como

homicídio, vislumbrando-se apenas a possibilidade de se reconhecer a causa de

diminuição de pena do privilégio em razão de relevante valor moral decorrente das

circunstâncias em que se admite a eutanásia (doença terminal e sofrimento intenso

do enfermo). Por tais aspectos, discute-se, no presente trabalho, essa mudança de

paradigma e a possibilidade de se admitir uma mudança legislativa em nosso

sistema jurídico, para enquadrar de forma diferente da atual o ato médico da

eutanásia.

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INTRODUÇÃO

A presente Monografia tem como objeto a análise crítico-

reflexiva da possibilidade de se propor uma nova definição jurídico-penal da

eutanásia no ordenamento jurídico brasileiro, levando-se em consideração as

peculiaridades que cercam o ato médico que abrevia, a pedido, a vida do paciente

terminal.

É sabido que o ordenamento penal nacional enquadra a

conduta eutanásica como homicídio, entendendo assim que o médico, ao antecipar

a morte do paciente a pedido do próprio, mesmo estando ele fadado a esse

inevitável resultado, e sofrendo intensamente em decorrência dessa moléstia

incurável, atuaria com o dolo genérico de ceifar uma vida humana, tal qual o

delinquente comum que age nos mais variados rincões de violência desse país.

No entanto, considerando serem especiais as circunstâncias do

ato eutanásico, porquanto se pode questionar a eventual desconsideração da

dignidade do ser humano condenado ao sofrimento enquanto aguarda a morte certa,

porque já anunciada pela medicina. Nessa hipótese, além do aspecto da

questionável manutenção de sua dignidade como pessoa, estar-se-ía impedindo o

indivíduo de dispor de sua própria vida, mesmo não reprimindo, o direito pátrio, o

suicídio.

Assim, considerando esses aspectos e o panorama legislativo

atual, e tendo em conta ainda que a hipótese de que a atuação do profissional da

medicina nessa situação não poderia ser equiparada a do marginal comum, o

presente estudo inicia a abordagem do tema, no primeiro capítulo, destacando as

bases históricas, conceituais e de classificação das espécies conhecidas de

eutanásia, para uma compreensão inicial do tema central proposto.

Já no segundo capítulo, pretende-se abordar as implicações do

ato eutanásico no campo da ética, porquanto é sabido que a valoração da conduta

humana se dá através da evolução do pensamento, dos hábitos e dos costumes de

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uma sociedade, fatores que são influenciados pela cultura e raízes históricas e

religiosas desse mesmo contingente social.

Assim, no segundo capítulo propõe-se uma abordagem do

direito à vida e, consequentemente, à morte, para repensar a idéia de

disponibilidade do bem jurídico vida pelo próprio indivíduo, correlacionando esses

temas com o pensar e o agir ético dominante, culminando com a influência exercida

pelas religiões em relação ao tema eutanásia.

Por fim, no terceiro capítulo, adentra-se ao estudo mais

específico do tema central, ligado à proposta de discussão sobre uma nova definição

jurídico penal do ato eutanásico. Para tanto, principia-se abordando o princípio da

dignidade da pessoa humana e sua influência na hipótese de se conceber a idéia de

uma morte digna através da eutanásia. Empós, embrenha-se na questão técnica da

tipicidade da conduta eutanásica segundo a legislação vigente, a fim de culminar

com o estudo da possibilidade de se rediscutir essa tipificação tendo-se em conta os

aspectos peculiares que cercam o ato médico de, nas circunstâncias definidas,

abreviar, e pedido, a vida humana, que por doença terminal experimenta intenso

sofrimento.

O presente Relatório de Pesquisa se encerra com as

Considerações Finais, nas quais são apresentados pontos conclusivos destacados,

seguidos da estimulação à continuidade dos estudos e das reflexões sobre a

responsabilidade penal na eutanásia: um breve estudo sobre a (In) disponibilidade

da vida do ser humano vista como bem jurídico tutelado pelo Estado.

Para a presente monografia foram levantadas as seguintes

hipóteses:

A vida se eleva à condição de bem jurídico absolutamente

indisponível, inclusive em relação ao próprio indivíduo, afastando por completo a

hipótese de se admitir a abreviação através da eutanásia, mesmo nos casos de

morte certa cientificamente comprovada e quando a doença estiver impondo ao

enfermo sofrimento intenso.

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O princípio da dignidade da pessoa humana poderá

fundamentar a possibilidade do doente terminal, ou seus parentes, optarem pela

hipótese de uma morte digna (antecipada pela eutanásia) quando a enfermidade já

atestada como incurável estiver impondo ao doente um expressivo sofrimento

A eutanásia, segundo a lei penal vigente em nosso país, deve

ser enquadrada como crime de homicídio com pena mais branda, ou será possível

aplicar uma causa de diminuição em razão de relevante valor moral, ou, ainda, será

viável considerar-se uma conduta atípica, em todos os casos quando se verificar a

hipótese de morte cientificamente comprovada e estiver o doente sofrendo

intensamente.

Quanto à Metodologia empregada, registra-se que, na Fase de

Investigação10 foi utilizado o Método Indutivo11, na Fase de Tratamento de Dados o

Método Cartesiano12, e, o Relatório dos Resultados expresso na presente

Monografia é composto na base lógica Indutiva.

Nas diversas fases da Pesquisa, foram acionadas as Técnicas

do Referente13, da Categoria14, do Conceito Operacional15 e da Pesquisa

Bibliográfica16.

10 “[...] momento no qual o Pesquisador busca e recolhe os dados, sob a moldura do Referente

estabelecido[...]. PASOLD, Cesar Luiz. Prática da Pesquisa jurídica e Metodologia da pesquisa jurídica. 10 ed. Florianópolis: OAB-SC editora, 2007. p. 101.

11 “[...] pesquisar e identificar as partes de um fenômeno e colecioná-las de modo a ter uma percepção ou conclusão geral [...]”. PASOLD, Cesar Luiz. Prática da Pesquisa jurídica e Metodologia da pesquisa jurídica. p. 104.

12 Sobre as quatro regras do Método Cartesiano (evidência, dividir, ordenar e avaliar) veja LEITE, Eduardo de oliveira. A monografia jurídica. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 22-26.

13 “[...] explicitação prévia do(s) motivo(s), do(s) objetivo(s) e do produto desejado, delimitando o alcance temático e de abordagem para a atividade intelectual, especialmente para uma pesquisa.” PASOLD, Cesar Luiz. Prática da Pesquisa jurídica e Metodologia da pesquisa jurídica. p. 62.

14 “[...] palavra ou expressão estratégica à elaboração e/ou à expressão de uma idéia.” PASOLD, Cesar Luiz. Prática da Pesquisa jurídica e Metodologia da pesquisa jurídica. p. 31.

15 “[...] uma definição para uma palavra ou expressão, com o desejo de que tal definição seja aceita para os efeitos das idéias que expomos [...]”. PASOLD, Cesar Luiz. Prática da Pesquisa jurídica e Metodologia da pesquisa jurídica. p. 45.

16 “Técnica de investigação em livros, repertórios jurisprudenciais e coletâneas legais. PASOLD, Cesar Luiz. Prática da Pesquisa jurídica e Metodologia da pesquisa jurídica. p. 239.

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CAPÍTULO 1

CONCEITO, ANTECEDENTES HISTÓRICOS E CLASSIFICAÇÃO DA EUTANÁSIA

1.1 NOÇÕES INTRODUTÓRIAS, CONCEITO E ETIMOLOGIA

O direito à vida por evidente sugere a abordagem do tema

relacionado ao estudo da Eutanásia. Não por outro motivo, então, suscita

controvérsias de ordem ética, política, social e, conseqüentemente, jurídica.

Mesmo com o avanço da medicina e da vida social moderna,

não houve óbice para que essa discussão encontrasse solução pacífica, sobretudo

porque o bem jurídico "vida" é, de todos aqueles protegidos pelos ordenamentos

jurídicos dos Estados Democráticos de Direito, o mais valioso, não somente sob o

ponto de vista jurídico penal, mas igualmente no imaginário social17.

Por toda essa complexidade, e as discussões acaloradas que o

tema suscita, a conceituação e o estudo da origem do vocábulo eutanásia são

aspectos importantes a serem abordados, para o bom início da compreensão do que

se propõe a expor.

Etimologicamente, conclui-se que o termo encontra berço na

língua grega, do grego "eu" + "thantos" que tem por significado "a morte sem

sofrimento e indolor" ou, ainda, "... morte fácil e sem dor", "morte boa e honrosa",

"alívio da dor", "golpe de graça", "morte direta e indolor", "morte suave", etc...",

sendo possível traduzi-lo como "boa morte" ou "morte apropriada"18.

17 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida. São Paulo: Loyola, 2004. p. 105. 18 ALVES, Ricardo Barbosa. Eutanásia, bioética e vidas sucessivas. Sorocaba: Brazilian Books,

2001. p. 32.

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Oportuno registrar que tal denominação foi utilizada

primeiramente por Francis Bacon, em 1623, em sua obra "Historia vitae et mortis",

como sendo o "tratamento adequado às doenças incuráveis".

Consoante o já referido filósofo inglês (1561-1626):

O ofício do médico não é somente restaurar a saúde, mas também mitigar as dores e tormentos das enfermidades; e não somente quando tal mitigação da dor [...] ajuda e conduz á recuperação, mas também quando, esvaindo-se toda esperança de recuperação, serve somente para conseguir uma saída da vida mais fácil e eqüitativa [...]. em nossos tempos, os médicos fazem questão de escrúpulo e religião o estar junto ao paciente quando ele está morrendo [...], devem adquirir habilidades e prestar atenção em como o moribundo pode deixar a vida mais fácil e silenciosamente. A isso eu chamo a pesquisa sobre a "eutanásia externa" ou morte fácil 19.

No contexto etimológico, pode-se conceituar o termo como a

morte boa, a morte calma, a morte piedosa e humanitária, ou seja, a morte que

afasta o ser humano de um sofrimento físico maior, abrandando, portanto essa dor

com a abreviação do resultado já esperado (a própria morte).

De sua parte, Luiz Jimenez de Asúa, renomado professor

espanhol, em sua obra "Liberdade de Amar e Direito de Morrer", define a eutanásia

como a "morte que alguém proporciona a uma pessoa que padece de uma

enfermidade incurável ou muito penosa, e a que tende a extinguir a agonia

demasiado cruel ou prolongada". 20 . O autor espanhol acentua que esse é o sentido

verdadeiro da eutanásia, compatível com o móvel e a finalidade altruística da

mesma.

Todavia, o supracitado autor mostra-se de certa forma

incoerente ao ampliar o conceito da morte boa aos antigos sacrifícios de crianças

fracas e disformes e às modernas práticas para eliminar do mundo os idiotas, loucos

e incapazes incuráveis, porquanto tais mortes não possuem o mesmo fundamento

da definição citada, que é a de eliminar uma vida humana em razão do

19 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 105. 20 ASUA, Luis Jimenez de. Liberdade de Amar e Direito a Morrer: Eutanásia e Endocrinologia.

Belo Horizonte: Mandamentos, 2003. p. 185.

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desnecessário e desproporcional sofrimento experimentado pelo ser humano, cuja

vida só existe porque sustentada artificialmente21.

Se admitida fosse a concepção lançada por Asúa, poderia ser

citado Licurgo, legislador espartano, como um dos precursores do termo, senão o

iniciador da eutanásia, quando, considerando o bem público, mandava lançar ao

abismo as crianças débeis, disformes ou enfermas. Em outras palavras, o sentido

que se quer empregar ao termo eutanásia não se aproxima do puro desapego ao

valor da vida humana, do contrário, procura dignificar o sentido de vida e expressar

que deve prevalecer o bem estar do ser humano, para que possa viver dignamente

por toda a sua existência, até o ponto em que por sacrifício ou sofrimento

desproporcional, essa vida vegetativa não tenha mais sentido22.

Bizatto, citando os ensinamentos de Morselli, define eutanásia

como "aquela morte que alguém dá a uma pessoa que sofre de uma enfermidade

incurável, a seu próprio requerimento, para abreviar a agonia demasiado longa ou

dolorosa", em sua obra "Eutanásia e Responsabilidade Médica". O citado autor

menciona que esta conceitução é complementada por Pinan Y Malvar, que acentua

um impulso de exacerbado sentimento de piedade e humanidade, presente naquele

que pratica a eutanásia23.

De outro lado, destaca-se a conceituação do estudioso

paraense Lameira Bittencourt, em sua dissertação intitulada "Da Eutanásia",

publicada em Belém, no ano de 1939, sustentou que "a eutanásia é tão-somente a

morte boa, piedosa e humanitária, que, por pena e compaixão, se proporciona a

quem, doente e incurável, prefere mil vezes morrer, e logo, a viver garroteado pelo

sofrimento, pela incerteza e pelo desespero"24.

Importante carrear outro semelhante conceito de eutanásia

pode ser extraído dos ensinamentos de Ricardo Oxamendi, em seu livro "El Delito":

21 ASUA, Luis Jimenez de. Liberdade de Amar e Direito a Morrer: Eutanásia e Endocrinologia,

2003. p. 186. 22 ASUA, Luis Jimenez de. Liberdade de Amar e Direito a Morrer: Eutanásia e Endocrinologia, p.

86. 23 BIZZATO, José Ildefonso. Eutanásia e Responsabilidade Médica. 2. ed. São Paulo: Editora de

Direito, 2000. p. 15.

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[…] boa morte, crimes caritativos, piedade homicida, homicídio caritativo, a arte de morrer, exterminação de vidas sem valor vital, suprema caridade, morte de incuráveis, morte benéfica, crime humanitário, direito de matar, homicídio piedoso, direito de morrer, morte libertadora, eliminadora, econômica e suprema caridade25.

Segundo Menezes, citando Pinam y Malvar:

[...] a eutanásia é aquele ato em virtude do qual uma pessoa dá morte a outra, enferma e parecendo incurável, ou a seres acidentados que padecem dores cruéis a seu rogo ou requerimento e sob impulsos de exacerbado sentimento de piedade e humanidade26.

Conceituação moderna e sintetizada do termo poderia ser

estabelecida pensando-se a eutanásia como ato de dar a morte, por compaixão, a

alguém que sofre intensamente, em estágio final de doença incurável, a pedido do

próprio doente ou, se impossibilitada estiver a sua livre manifestação de vontade,

dos seus parentes próximos.

Destaca-se, também, que a eutanásia em tempos hodiernos

experimenta um sensível alargamento de seu campo de incidência, não mais sendo

vista apenas em relação às hipóteses de doentes terminais, alcançando igualmente

outras hipóteses, como nos casos de recém-nascidos com anomalias congênitas, o

que tem sido denominado de eutanásia precoce; pessoas em estado vegetativo

considerado irreversível ou até de pessoas inválidas que não são capazes de cuidar

de si mesmas etc27.

Dessa forma, em termos amplos, entende-se por eutanásia

quando uma pessoa dá causa, de forma deliberada e intencional, à morte de outra

que está em situação de fragilidade ou de qualquer modo fragilizada. Nessa última

hipótese, a eutanásia seria utilizada para evitar a distanásia (esta definida como

morte lenta, ansiosa e com muito sofrimento).

24 BITTENCOURT, Lameira. (Dissertação para Concurso). Belém: 1939. 25 SILVA, Sônia Maria Teixeira da. Eutanásia: Disponível em: <

ttp://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1863>. Acesso em: 19 Jul. 2009. 26 MENEZES, Evandro Corrêa de. Direito de matar: (Eutanásia). 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. Freitas

Bastos, 1997. p. 39/40. 27 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia. Curitiba: Juruá, 2009. p. 16.

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Pode-se extrair da atuação na eutanásia dois elementos

principais: o primeiro, relacionado à intenção de realizar o ato, que pode gerar uma

ação (eutanásia ativa); um segundo, relacionado à omissão, isto é, a não realização

de uma ação que teria indicação terapêutica naquela circunstância (eutanásia

passiva)28.

De um modo geral pode-se estabelecer que a eutanásia, seja

pela origem etimológica da palavra, seja pela definição que o termo alcançou

durante os tempos, quer disciplinar a ação que põe fim à vida humana, no entanto,

não de forma criminosa ou negativa. É que visa minorar o sofrimento daquele ser

que padece ante uma enfermidade incurável, procurando, antes de causar-lhe um

mal, dar-lhe algo que possa ao menos reduzir o sofrimento que experimenta, em um

momento tão ruim de sua existência.

Portanto, longe de dizer que o significado do termo alcance, do

ponto de vista ético, ou seja, da justificativa da ação, algo plenamente aceito pela

maioria, até porque os críticos a julgam pelo resultado em si (a morte provocada de

um ser humano), é certo que as origens do termo têm significado positivo, é dizer,

de algo que possa contribuir para o bem estar e valorizar a dignidade do homem.

1.2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA E O DIREITO COMPARADO

Já percorrido o caminho da origem do termo e conceitos que se

construiu, passa-se a discorrer sobre a evolução histórica do termo eutanásia.

A eutanásia não é prática recente na humanidade, do contrário,

sabe-se de sua existência na antiguidade, na Grécia e em Roma, ainda que com

concepção bem diferente daquela que passou a ter modernamente, pois distinta era

a própria valoração do conceito vida e das finalidades da eutanásia29.

Entre os gregos, os filósofos Platão e Aristóteles defendiam

sua prática, através do abandono à própria sorte dos recém-nascidos com

28 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 16. 29 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 104.

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anomalias ou más-formações, chancelando o que faziam os Espartanos, quando

jogavam crianças nessas situações às pedras30.

Nessa hipótese, se observa a eutanásia de uma maneira pouco

humana, pois se desprezava a vida ainda em seu início, tão somente porque aquele

ser não teria vindo ao mundo de forma perfeita, não sendo belo ou esteticamente

aceito. Assim, bem longe estava a explicação ética da eutanásia, daquela hoje

alcançada em termos de modernidade.

Como exemplo de admissão da eutanásia nessa época da

história, Pessini e Barchifontaine, citando Platão em sua obra A República,

mencionam que o referido filósofo grego defendia o sacrifício de velhos, fracos e

inválidos, sob o argumento de interesse do fortalecimento do bem estar e da

economia coletiva, dizendo que o cuidado médico deve centrar-se naquelas pessoas

que têm "corpos são por natureza" e contraem alguma enfermidade, enquanto, pelo

contrário, "em relação às pessoas crônicas por doenças internas", o médico não se

consagra a prolongar e amargar a vida31.

Ainda de Platão, na citada obra, colhe-se que "quem não é

capaz de viver desempenhando as funções que lhe são próprias não deve receber

cuidados, por ser uma pessoa inútil tanto para si mesma como para a sociedade".32

A função do médico estaria, então, nessa concepção, unida à eutanásia, de modo

que uma das práticas médicas socialmente admitidas seria a da eliminação da vida

econômica e socialmente inútil33.

Pessini, citando a obra Feri Technés, menciona parte do corpo

de escritos Hipocráticos, na órbita da prática médica: “A medicina consiste em

afastar por completo os padecimentos dos que estão enfermos e mitigar as dores de

30 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 104. 31 PESSINI, Leo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas Atuais de Bioética. 7. ed.

São Paulo: Centro Universitário São Camilo: Ed. Loyola, 2007. p. 374. 32 PESSINI, Leo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas Atuais de Bioética, p. 374. 33 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 104.

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sua enfermidade, e não tratar os já dominados por enfermidades, conscientes de

que em tais casos a medicina não tem poder”34.

Portanto, as concepções de aplicação da eutanásia, seja do

ponto de vista da medicina, seja da própria concepção de vida humana, partiam na

visão grega de uma premissa de utilidade econômica da vida, e não de uma

preservação digna da existência enquanto houvesse perspectiva de mantê-la,

revelando a característica de uma cultura grega centrada no "belo e são", com uma

concepção de vida feliz e bem vivida35.

Então, essa ideologia do que representava a eutanásia para os

gregos, caminhava em sentido oposto ao famoso juramento de Hipócrates, assim

expressado:

Eu juro, por Apolo, médico, por Asclépio, Higia e Panacea e por todos os deuses e deusas, a quem conclamo como minhas testemunhas, juro cumprir, segundo meu poder e minha razão, a promessa que se segue: estimar, tanto quanto a meus pais, aquele que me ensinou esta arte; fazer vida comum e, se necessário for, com ele partilhar meus bens; ter seus filhos por meus próprios irmãos; ensinar-lhes esta arte, se eles tiverem necessidade de aprendê-la, sem remuneração e nem compromisso escrito; fazer participar dos preceitos, das lições e de todo o resto do ensino, meus filhos, os de meu mestre e os discípulos inscritos segundo os regulamentos da profissão, porém, só a estes. Aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento, nunca para causar dano ou mal a alguém. A ninguém darei por comprazer, nem remédio mortal nem um conselho que induza a perda. Do mesmo modo não darei a nenhuma mulher uma substância abortiva. Conservarei imaculada minha vida e minha arte. Não praticarei a talha, mesmo sobre um calculoso confirmado; deixarei essa operação aos práticos que disso cuidam. Em toda a casa, aí entrarei para o bem dos doentes, mantendo-me longe de todo o dano voluntário e de toda a sedução, sobretudo longe dos prazeres do amor, com as mulheres ou com os homens livres ou escravizados. Àquilo que no exercício ou fora do exercício da profissão e no convívio da sociedade, eu tiver visto ou ouvido, que não seja preciso divulgar, eu conservarei inteiramente secreto. Se eu cumprir este juramento com fidelidade, que me seja dado gozar felizmente da vida e da minha profissão, honrado para sempre entre os homens; se eu dele me afastar ou infringir, o contrário aconteça36.

34 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 104. 35 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 104. 36 http://pt.wikipedia.org/wiki/Hip%C3%B3crates

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Os romanos também praticaram a eutanásia com essa

característica pouco humanitária, mas há notícias de que também conheciam a

morte piedosa. Theodoro Hommsen, romanista alemão citado por Lameira

Bittencourt, apresenta sua obra "Direito Penal Romano" com provas concretas da

prática da eutanásia, quando se referiu à lei Cornélia, que definia o homicídio,

considerando-se este, inclusive, o movido por compaixão e exemplificando com o

médico que matava o enfermo para pôr fim às suas dores. Os magistrados

julgadores e os tribunais do povo consideravam a diferença entre o homicídio e a

eutanásia não apenas para as decisões de culpabilidade, como também para

graduar a pena37.

Assim, os romanos denominavam tal situação de homicídio

benigno ou tolerável, portanto, já se aderindo a uma justificativa positiva para o ato

de ceifar precocemente a vida humana, pois a citada lei dava a este tipo de

homicídio tratamento especial e mais brando, tendo em vista os móveis generosos e

nobres que o inspiravam, deixando de se interpretar a lei de modo frio e meramente

literal, sem valorar o elemento subjetivo da ação.

Ora, ainda que de forma embrionária, pois a concepção

avançou e continua avançando, não se pode negar que o ponto de vista central do

presente estudo foca exatamente a possibilidade de se dar uma nova e diferente

conceituação jurídico legal do termo eutanásia, admitindo-a inclusive como prática

legal, desde que respeitados padrões preestabelecidos.

É que esse hábito consistia na morte dada a um indivíduo que

sofria em demasia, por um amigo que dessa maneira atuava de forma piedosa.

Nessa comunidade, esse tipo de ação não representava tão somente um costume

do povo, mais que isso, era considerado um dever do bom amigo e quem se

negasse a fazê-lo era reputado impiedoso e covarde. A conceituação de eutanásia,

vista sob esse ângulo, também de certa forma se aproxima daquela moderna visão

de prática extrema, todavia, com justificativa humanitária.

Dos ensinamentos bíblicos também se colhe exemplo da

prática de eutanásia. A Bíblia, no Velho Testamento, exemplifica de forma clara um

37 BITTENCOURT, Lameira. (Dissertação para Concurso). Belém: 1939.

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caso típico de tentativa de suicídio, seguida de morte eutanásica, quando cita o caso

de Saul que, tendo se ferido em batalha contra os Filisteus e temendo ser capturado

por estes, pediu ao seu escudeiro que o matasse. Naquele episódio, negando-se o

escudeiro a matá-lo, Saul resolveu se atirar contra a própria espada, ferindo-se

gravemente38.

Na sequência, não conseguindo obter o resultado morte, Saul

resolveu acionar um amalecita, e pediu-lhe que o matasse, por não mais agüentar a

dor que experimentava, tendo sido então derradeiramente atendido. No entanto,

David, ao saber da morte de Saul, contada pelo próprio amalecita que praticou o ato

naquelas circunstâncias, não o perdoou e mandou puni-lo com a morte39.

Necessário citar a corrente que defende a origem do termo

ainda mais antiga, no pensamento estóico, porquanto Cícero (106 – 43 a.C.), na

Carta de Ático, já teria empregado a palavra eutanásia como sinônimo de "morte

digna, honesta e gloriosa". Os estóicos, embora longe de utilizarem o termo

"eutanásia" no sentido atual, representam evidente expoente de um sistema

filosófico ético da antiguidade que admitia sua prática. Para exemplificar, admitiam o

suicídio como uma hipótese heróica. Por isso, evidente que era terminantemente

contra uma existência excessivamente sofredora e sem sentido40.

Destaca Pessini, que Sêneca (Lúcio Aneu Séneca), um dos

mais celebres escritores e intelectuais do império romano, e precursor do período

renascentista, afirmou em suas Cartas:

O sábio se separará da vida por motivos bem fundados: para salvar a pátria ou os amigos, porém igualmente quando está agoniado por dores demasiado cruéis, em casos de mutilações ou de uma enfermidade incurável [...] não se dará a morte, caso se trate de uma enfermidade que pode ser curada e não danificada a alma; não se matará por causa das dores, mas quando a dor impede tudo aquilo

38SILVA, Sônia Maria Teixeira da. Eutanásia: Disponível em: <

http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1863 >. Acesso em: 19 Jul. 2009. 39 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 286. 40 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 105.

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pelo que se vive, prefiro matar-me a ver como se perdem as forças estando morto em vida41.

Encontram-se também registros que informam a utilização do

vocábulo desde a época do Imperador Augusto, sendo também utilizada pelo

historiador romano Suetônio. Na obra do referido historiador, destaca-se a síntese

do pensamento defendido na época, que já entendia a eutanásia como uma medida

de minorar o sofrimento do dente terminal, quando expressa Suetônio os momentos

finais da morte do Imperador César, que desejava morrer de maneira não dolorosa

ou sofrida42:

[…] conseguiu um final fácil e tal como sempre tinha desejado. Pois quase sempre a ouvir que alguém tinha morrido de uma morte rápida e sem tormento, pedia para si e para os seus uma eutanásia semelhante (esta era na verdade e palavra que usava)43.

Esse texto, como outros do mundo greco-romano, dão à

palavra "eutanásia" seu sentido etimológico originário: morte em paz, sem dores,

consciente. O sentido não era o que hoje se dá geralmente a esse termo.

Já na idade média são raras as notícias que se tem sobre a

eutanásia. No entanto, colhe-se que durante as guerras, era comum encontrar-se a

utilização entre os soldados de um punhal pequeno e afiado, denominado

"misericórdia", que era então usado para dar fim à vida dos soldados gravemente

feridos, para exatamente livrá-los daquele sofrimento desnecessário.

Além das guerras, a eutanásia também encontrou a prática de

certa forma comum na Idade Média, por ocasião das seguidas epidemias e pestes

vivenciadas pelos povos daquele período da história. É que, como sabido, a

propagação de doenças naquele período era rápida e assim o contágio alastrava-se

em grande velocidade, em razão do grande estado de miséria em que se encontrava

a população durante o período de decadência do feudalismo44.

41 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 105. 42 A vida dos doze Césares, traduzida por Sady – Garibaldi, Rio de Janeiro: Ediouro 1992, p. 96-97

(Coleção Clássicos de Bolso). 43 A vida dos doze Césares, traduzida por Sady, p. 97. 44 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 105.

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Em tempos não tão remotos, cita-se um exemplo de eutanásia

em razão de enfermidade acometida durante o período de guerra, como no caso do

pedido feito por Napoleão, na campanha do Egito, ao médico Degenettes, de matar

com ópio soldados atacados de doença incurável. Todavia, o médico respondeu ao

pleito afirmando que se negava em razão daquilo que defendeu ser função ética e

profissional do médico evitar, e não provocar a morte. Colhe-se de ensinamentos

históricos que a pretensão de Napoleão tinha cunho econômico e militar, pois

pretendia por fim à vida dos doentes incuráveis já em estágio terminal, para que não

se tornassem prisioneiros dos povos inimigos45.

Apesar de a Igreja Católica ser doutrinariamente contraria à

eutanásia, por ferir frontalmente as leis de Deus no sentido da preservação da vida

humana dada pelo Altíssimo, cita-se Thomás Morus (1478/1535), um santo da Igreja

Católica, que defendeu a eutanásia em sua famosa obra Utopia, escrita em 1516, o

primeiro documento que aborda o tema dentro dos limites da medicina, da moral e

da pessoa humana.

Segundo Ana Bela Pinto da Silva, em sua dissertação de

Mestrado concluída em 2007, no Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, da

Universidade do Porto, com o título "Eutanásia: Prós e Contras de uma Legalização

em Portugal", Morus, depois de ter insistido na necessidade de que em sua

sociedade ideal, utópica, se atenda aos enfermos com grande solicitude e se lute

por aliviar as dores, afirma na obra já mencionada:

[…] Mas quando a estes males incuráveis, se juntam sofrimentos atrozes, então os Magistrados e os Sacerdotes se apresentam ao paciente para exortá-lo. Procuram fazê-lo ver que já está privado dos bens e das funções vitais; que está sobrevivendo à sua própria morte; que é uma carga para si mesmo e para os outros. É inútil, portanto, obstinar-se em se deixar devorar por mais tempo pelo mal e pela infecção que o corrói. E, já que a vida é um puro tormento, não deve duvidar em aceitar a morte […]46.

Pelo que se apura Thomás Morus não impõe a morte pura e

simples ao doente, porém a aconselha. Caso o enfermo esteja de acordo, pode-se

45 RODRIGUES, Paulo Daher. Eutanásia. Belo Horizonte: Del Rey, 1993. p. 26-27. 46 SILVA, Anabela Pinto da. Eutanásia: Prós e contra de uma legalização em Portugal. Instituto de

Ciências Biomédicas Abel Salazar. Dissertação de Mestrado.

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causar a morte por privação de alimentos ou mediante um veneno que funcione

como narcótico. A fim de evitar o perigo dos abusos, sempre que requerer a

permissão das autoridades e dos sacerdotes em seu modelo utópico de sociedade.

Salta à vista como o pensamento utópico de Thomás Morus reflete a visão da

sociedade de Platão e Averróis. Na medicina hipocrática, estando o enfermo

desenganado, o médico não estava presente47.

O termo Eutanásia, como já fundamentado no presente estudo,

tem origem na língua grega, sendo possível traduzi-lo como "boa morte" ou "morte

apropriada". No entanto, a partir dos estudos de Francis Bacon (1561-1626), em

1623, em sua obra "Historia vitae et mortis", passou a ter nova e moderna

conceituação.

O já citado autor Pessini, cita Francis Bacon que afirmou:

O ofício do médico não é somente restaurar a saúde, mas também mitigar as dores e tormentos das enfermidades; e não somente quando tal mitigação da dor [...] ajuda e conduz á recuperação, mas também quando, esvaindo-se toda esperança de recuperação, serve somente para conseguir uma saída da vida mais fácil e eqüitativa [...]. Em nossos tempos, os médicos fazem questão de escrúpulo e religião o estar junto ao paciente quando ele está morrendo [...], devem adquirir habilidades e prestar atenção em como o moribundo pode deixar a vida mais fácil e silenciosamente. A isso eu chamo a pesquisa sobre a "eutanásia externa" ou morte fácil. 48

Ainda segundo Pessini, Bacon representa nos estudos da

eutanásia um marco precursor de uma visão diferenciada e próxima da atual, porque

sustentou uma visão até então pouco ou quase nada defendida na idade média, no

sentido de que o médico tinha como função não penas e puramente aplicar seus

conhecimentos para curar, mas igualmente para diminuir as dores de uma doença

incurável e mortal49.

47 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 106. 48 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 105. 49 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 105.

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Desse modo, a eutanásia passou a ter contornos parecidos da

conceituação atual, pois já não se relacionava somente ao sentido etimológico

grego, possuindo também o sentido de "prestar atenção em como o moribundo pode

deixar a vida mais fácil e silenciosamente", 50 ou seja, emprestando-se uma intenção

de propiciar um alívio, antes que um mal, ao doente terminal.

No entanto, não ficou esclarecido se nos ensinamentos de

Bacon a admissão sem restrições da atuação médica que põe fim positivamente à

vida do enfermo, parecendo mais afirmar que o médico tinha como missão muito

importante para cumprir nesse "estar junto ao paciente quando ele está morrendo". 51 Mesmo assim, os avanços da conceituação, a partir de Bacon, são inegáveis.

Há que se destacar a existência de breves registros de estudo

do tema eutanásia no século XIX, quando os teólogos Larrag e Claret, em seu livro

"Prontuários de Teologia Moral", publicado em 1866, utilizaram eutanásia para

caracterizar a "morte em estado de graça"52.

Mas a eutanásia também estava presente entre os germanos,

que davam fim à vida dos doentes cuja possibilidade de cura inexistia, ou era

considerada impossível segundo os conhecimentos médicos da época. Já na

Birmânia, os doentes nessa mesma situação eram enterrados vivos juntamente com

os velhos. Por sua vez, os eslavos e os escandinavos também apressavam a morte

de seus pais quando estes sofriam de mal incurável, irreversíve53l.

Citado por Maria Teixeira da Silva, o autor Evandro Correa de

Menezes, mencionando o doutrinador José Ingenieros, sustentou outro exemplo de

eutanásia, quando asseverou a prática de um costume denominado "despenar", que

significava privar de pena, de dor ou de sofrimento, que era utilizada por população

50 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 105. 51 PESSINI, Leo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas Atuais de Bioética, p. 375. 52 http://www.ufrgs.br/bioetica/eutanasi.htm 53 NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Em Defesa da Vida. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 43

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rural de algumas colônias da América do Sul, em situações quando davam fim a

uma vida humana, também com uma conotação humanista54.

Ainda que represente um momento negro da história da

humanidade, é necessário mencionar que durante o nazismo a eutanásia

experimentou uma triste evolução não somente no sentido de ocorrências, mas

igualmente de conhecimento científico. Destaca-se que tal processo se iniciou em

1933 com a promulgação da Lei para a Prevenção das Enfermidades Hereditárias,

que justificava a esterilização obrigatória para prevenir a propagação de

enfermidades hereditárias graves tais como a anormalidade mental, a loucura, e

epilepsia, a surdez, a cegueira e o alcoolismo.

Em outubro 1939 a Alemanha nazista implantou a "Aktion T4",

que era um programa de eliminação de recém nascidos e crianças pequenas de até

3 ano, que tinham uma "vida que não merecia ser vivida". Os médicos e parteiras

tinham o dever de notificar a autoridade sanitária de casos de retardo mental,

deformidades físicas e outras condições limitantes. Uma junta médica de três

profissionais examinava cada caso e a eliminação somente era realizada quando

houvesse unanimidade55.

Após, tal programa se estendeu para adultos e velhos,

pacientes internados há mais de cinco anos, ou criminalmente insanos, portadores

de esquizofrenia, epilepsia, desordens senis, paralisias que não respondiam a

tratamentos, sífilis, retardos mentais, encefalite, doença de auntington e outras

patologias neurológicas. Posteriormente, foram acrescidos os requisitos de não

terem cidadania ou ascendência alemã, discriminando especialmente negros, judeus

e ciganos. No entanto, em nenhuma das hipóteses admitidas pelos nazistas,

pretendia-se com a eutanásia minorar o sofrimento dos doentes terminais, porque o

objetivo final era mesmo o de proceder-se a uma depuração racial56.

Sintetizando o período recente da história, Leo Pessini,

citando o autor Diego Garcia, bioeticista espanhol e professor da Universide

54SILVA, Maria Teixeira da. Eutanásia. Disponível em:

http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1863. Acesso em 21.jun.2009. 55 PESSINI, Leo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas Atuais de Bioética, p. 372. 56 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 104.

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Conplutense de Madri, explica que “a evolução da eutanásia pode ser traduzida em

três períodos históricos: a eutanásia ritualizada, a medicalizada e a autônoma”57.

Segundo Pessini, o mencionado autor espanhol explica que a

eutanásia ritualizada é caracterizada em razão da ritualização do fato da morte, à

medida em que os grandes acontecimentos da existência humana – o nascimento, a

puberdade, o matrimônio e a morte – são ocorrências que vão além de seu mero

significado biológico, porquanto também representam acontecimentos culturais,

regulados e ritualizados pela sociedade58.

Por outro lado, sustenta Pessini, citando Diego Garcia, que a

eutanásia medicalizada nasce na Grécia com a medicina e se estende até a

segunda Guerra Mundial. Já com a expressão eutanásia autônoma, o autor procura

definir a atual situação do debate sobre a eutanásia, que se caracteriza pelo

protagonismo do enfermo. O princípio da autonomia é o que agora, então, está no

centro: o direito de cada um à própria morte. As práticas eutanásicas de que temos

notícia desde os albores da cultura ocidental, na Grécia antiga, até a época nazista,

como já acima citado, basearam-se sempre em motivos sociais, políticos, médicos,

eugênicos etc., porém nunca levaram em conta a vontade dos pacientes59.

Por fim, afirma PESSINI, mencionando os ensinamentos de

Diego Garcia:

[…] que a pergunta pela eutanásia hoje se formula de modo distinto do de qualquer outra época, salientando que a preocupação direta não é se o Estado tem ou não o direito de eliminar os enfermos e deficientes, mas se existe a possibilidade ética de dar a uma resposta positiva a quem deseja morrer e pede ajuda para tanto. É que se está vivendo a era dos direitos humanos, descobrindo-se que o direito está a decidir, dentro de certos limites, é claro, a respeito das intervenções que se realizam no próprio corpo, isto é, a respeito da saúde e da enfermidade60.

57 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 103. 58 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 104. 59 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 104. 60 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 108.

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No campo do direito comparado, segundo se apura da

doutrina, em poucos países a eutanásia é admitida de forma irrestrita, sem previsão

de punição legal. Citam-se os casos da legislação do Peru e do Uruguai, assim

como no caso da Colômbia, que prevê o perdão judicial para o homicídio eutanásico.

Todavia, nos países baixos, especialmente na Holanda,

encontra-se o pioneirismo da institucionalização legal da eutanásia. Apura-se que tal

prática era ilegal naquela nação até 1993, embora a jurisprudência admitisse com

certa flexibilidade, aplicando suspensões de aplicações de pena a réus condenados,

e até entendendo pela absolvição em razão da excludente de "estado de

necessidade psíquico". Assim, em razão dessa tendência jurisprudencial, em 1982

foi criada uma comissão estatal para elaboração de nova legislação sobre o tema,

que culminou em 20.11.2000, com a aprovação da "Lei relativa à Eutanásia e ao

Suicídio Assistido"61.

Tal legislação desce em minúcias a abordagem do tema,

disciplinando a aplicabilidade da eutanásia aos enfermos em idade adulta, com

doenças incuráveis e que solicitarem de forma espontânea e voluntária o fim de sua

vida. Nessa legislação, incumbe ao médico que acompanha o doente a

responsabilidade de prestar a informação ao paciente quanto à evolução da doença

e eventuais outras opções de tratamento possível para a cura, sendo necessário,

ainda, ouvir a opinião de outro profissional da área médica. Semelhante norma legal

também surgiu na Bélgica, conforme Lei de 28.05.2002, que entrou em vigor em

20.09.200262.

É de se consignar, no entanto, que o tema eutanásia, no

campo legislativo do direito comparado, está muito distante de encontrar aceitação

pacífica, mesmo em terras do Velho Continente, mencionando José de Faria Costa

essa conflitualidade do tema, em razão de que instâncias européias de Direito

Internacional, especificamente o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, "vão

61 MOLLER, Letícia Ludwig. Direito à Morte com Dignidade e Autonomia. Curitiba: Jurua, 2008.

p.97. 62 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 56.

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precisamente no sentido contrário daqueles que seguiram aos Países Baixos e a

Bélgica" 63.

Ainda no campo do direito alienígena, colhe-se dos

ensinamentos de Ricardo Barbosa Alves:

[…] a lei penal de Portugal prevê uma atenuante para o homicídio praticado mediante consentimento ou a pedido da vítima, com a exigência de que tal se dê de forma livre e consciente. Também na Itália há previsão de tipo penal específico para o homicídio consentido, exigindo-se certos requisitos de validade para o consentimento, tais como: vítima maior de 18 anos, mentalmente sã, consciente (não podendo estar narcotizada, bêbada etc.) e ser livre, ou seja, não obtido mediante violência, ameaça ou fraude. Semelhantes ainda são os tratamentos da questão na Alemanha e na Suíça, onde há norma legal considerando o consentimento da vítima no crime de suicídio64.

De sua parte, em terras espanholas, há previsão do crime de

participação em suicídio, mas é prevista uma causa especial de redução de pena

quando o autor ajuda na morte da vítima a seu inequívoco pedido. Também o

Código de Ética Médica Espanhol de 1990 afasta a prática da eutanásia. Seu art. 28,

n. 1, dispõe:

El médico nunca provocará intencionalmente la muerte de um paciente ni por propria decisión ni cuando el enfermo o sus allegados lo solociten no por ninguna outra exigencia. La eutanasia u homicidio por compasión es contraria a la ética médica65.

Já com relação à ortotanásia o mesmo art. 28, em seu n. 2, é

bastante tolerante:

Em caso de enfermidad incurable y termina el médico debe limitarse a aliviar los dolores físicos y morales del paciente, manteniendo em todo lo posible la calidad de uma vida que se agota y evitando emprender o continuar acciones terapéuticas sin esperanza, inútiles

63 COSTA, José de Faria. Linhas de Direito Penal e Filosofia. Coimbra: Coimbra, 2005. p. 140. 64 ALVES, Ricardo Barbosa. Eutanásia, bioética e vidas sucessivas, p. 48. 65 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 42.

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y obstinadas. Asistirá al enfermo hasta el final, com el respeto que merece la dignidad del hombre

66.

Na Polônia é possível excluir a culpabilidade do agente que

pratique a conduta com o consentimento da vítima e movido por sentimento

compassivo. É ainda interessante anotar que vigorou nos Territórios do Norte da

Austrália, desde 01.07.1996 até 24.03.1997, a primeira lei autorizadora da

eutanásia, a qual acabou sendo revogada 67.

Considerando o sistema americano de justiça, apura-se que a

jurisprudência norte-americana vem reconhecendo a possibilidade da ortotanásia em

casos nos quais as terapias sejam inúteis, constituindo-se em futilidade terapêutica.

Naquele país, em 08.11.1994, foi promulgada no Estado do Oregon uma lei sobre

"morte digna", autorizando a eutanásia e o homicídio assistido.

Segundo Cabette:

Noticia Ricardo Barbosa Alves que no Japão a eutanásia vem sendo admitida pelos tribunais há mais de trinta anos. Por seu turno, Maria de Fátima Freire de Sá traz à colação importante caso sobre um rapaz que, atendendo a pedido do pai, doente terminal, acrescentou veneno num copo de leite e, em seguida, convenceu sua mãe a ministrar a mistura ao enfermo68.

Ainda conforme o autor acima citado:

Leo Pessini expõe que nesse decisum a Corte de Nagoya estabeleceu seis condições a serem satisfeitas para a autorização da eutanásia:“...a enfermidade é considerada terminal e incurável pela medicina atual e a morte é iminente; 2) o paciente deve estar sofrendo de uma dor intolerável, que não pode ser aliviada; 3) o ato de matar deve ser executado com o objetivo de aliviar a dor do paciente; 4) o ato deve ser executado somente se o próprio paciente fez um pedido explícito; 5) cabe ao médico realizar a eutanásia, caso isto não seja possível, e, situações especiais será permitido receber assistência de outra pessoa; 6) a eutanásia deve ser realizada utilizando-se métodos eticamente aceitáveis69.

66 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 42/43. 67 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 43. 68 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 43. 69 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 43/44.

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Desse modo, não é difícil concluir que a questão, em sede de

legislação internacional é mesmo complexa e conflitiva. Há países em que as leis

reprovam a conduta, sem qualquer ressalva, havendo outras, no entanto, em que

existem benefícios ao infrator, com o reconhecimento de atenuantes e causas de

diminuição de pena, chegando a casos de legislações que admitem a exclusão da

punibilidade ou da ilicitude.

1.3 CLASSIFICAÇÃO E ESPÉCIES

Complexo como é o tema em debate, e já abordados os

aspectos históricos e conceituais, é certo igualmente que não é pacífica, nem

mesmo única, a classificação do vocábulo eutanásia, obtida a partir dos

ensinamentos doutrinários. Por tal razão, necessário que se percorra, ainda que não

de forma exaustiva, sobre as principais diferentes espécies de classificação do

termo.

Conforme artigo de autoria de Carlos Fernando Francisconi e

José Roberto Goldim, extrai-se que ao longo dos tempos o vocábulo admitiu

diferentes significados em 1928, Ricardo Royo-Villanova, propôs a seguinte

classificação sobre Eutanásia:

Eutanásia súbita: morte repentina; Eutanásia natural: morte natural ou senil, resultante do processo natural e progressivo do envelhecimento; Eutanásia teológica: morte em estado de graça; Eutanásia estóica: morte obtida com a exaltação das virtudes do estoicismo; Eutanásia terapêutica: faculdade dada aos médicos para propiciar uma morte suave aos enfermos incuráveis e com dor; Eutanásia eugênica e econômica: supressão de todos os seres degenerados e inúteis (sic); Eutanásia legal: aqueles procedimentos regulamentados ou consentidos pela lei 70.

Deve-se consignar que uma das classificações citadas pela

doutrina procura distinguir eutanásia natural e eutanásia provocada. No que toca à

eutanásia natural, está ela relacionada à morte ocorrida sem que tenha havido

70GOLDIN, Roberto José. Tipos de Eutanásia. Disponível em

http://www.ufrgs.br/bioetica/eutantip.htm. acesso em 11.jun.2009.

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intervenções externas e sofrimentos. Por outro lado, a eutanásia provocada ou

voluntária é concebida como aquela em que ocorre o uso, de alguma forma pela

qual a conduta humana, seja por parte do próprio doente ou de outrem, ajuda a

terminar com a agonia, amenizando o padecimento do doente ou abreviando seu

período de vida, comissiva ou omissivamente, de maneira direta ou indireta.

Já a modalidade de eutanásia provocada se subdivide em

autônoma e heterônoma. Na primeira hipótese não há intervenção de terceiros, de

modo que o próprio doente dá cabo em sua vida. Já na segunda, ocorre a atuação

de terceiros, como o médico ou pessoas próximas, para a eliminação da vida e do

sofrimento do moribundo.

É de se observar que no caso de eutanásia provocada inexiste

o interesse jurídico-penal por se tratar de suicídio, fato não punível em nosso

ordenamento jurídico. Todavia, esse desinteresse penal pelo tema não é absoluto

em face da legislação brasileira, pois deve-se ter em mente as hipóteses dos crimes

de induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio, previsto no art. 122, CP.

Nas palavras do autor Luiz Eduardo Santos Cabette:

Nesses casos pode-se falar no chamado suicídio assistido, que se aproxima da eutanásia, mas não é um sinônimo. Freire de Sá esclarece em sua obra a distinção entre essas figuras, lançando mão do escólio de Ribeiro: Na eutanásia, o médico age ou omite-se. Dessa ação ou omissão surge, diretamente, a morte. No suicídio assistido, a morte não depende diretamente da ação de terceiro. Ela é conseqüência de uma ação do próprio paciente, que pode ter Sido orientado, auxiliado ou apenas observado por esse terceiro71.

Entende-se como outra vertente para definir-se a classificação,

em razão da atitude do agente quanto ao curso vital da vítima, falando-se então em

eutanásia solutiva e eutanásia resolutiva. A eutanásia solutiva também chamada de

pura, lenitiva, autêntica ou genuína, explica-se em razão da ajuda prestada para a

ocorrência de uma boa morte, sem que tenha ocorrido uma abreviação do ciclo

natural da vida.

71 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 20.

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Nessa hipótese, o agente atua apenas na assistência física,

moral, espiritual e psicológica ao moribundo, ajudando-o, com humanidade, a

enfrentar o fim inevitável. Nestes casos, o agente nada faz para abreviar o curso

vital; tão somente presta assistência ao enfermo, amparando-o sob diversos

aspectos. Já na eutanásia resolutiva, em sentido oposto, atua-se de forma a reduzir

o tempo do curso vital no suposto interesse do doente, com sua concordância livre,

consciente e espontânea72.

É certo que os casos de eutanásia solutiva não apresentam

maior discussão sob ponto de vista ético ou jurídico. É que o agente, nessa

situação, age cumprindo um dever moral de assistência e solidariedade humana, de

modo que nada pode haver de reprovável em tal conduta.

Explica Cabette: “No que tange à eutanásia resolutiva,

costuma-se proceder a nova subdivisão mencionando-se a eutanásia libertadora ou

terapêutica, a eutanásia eugênica ou selecionadora e a eutanásia econômica”73.

A eutanásia libertadora ou terapêutica é caracteristicamente

humanitária, praticada por solidariedade, altruísmo ou compaixão para com o doente

que sofre. O intento é o de liberação do sofrimento do doente, envolvendo o próprio

autor emocionalmente no episódio74.

Por sua vez, a eutanásia eugênica ou selecionadora a doenças

incuráveis ou contagiosas e de neonatos em degeneração, pretende perseguir o

aprimoramento da espécie humana. Nessa hipótese, objetiva-se evitar a procriação

de sujeitos possuidores de anomalias genéticas, doenças mentais ou com

tendências criminosas ou anti-sociais, de forma a evitar que se propaguem tais

males pela sociedade, em busca da chamada pureza racial75.

Ainda nessa forma de classificação, cita-se a eutanásia

econômica, que objetiva a supressão de deficientes mentais, alienados ou

72 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 34. 73 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 21. 74 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 21. 75 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 21.

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irreversíveis inválidos, inválidos e idosos com a finalidade de liberar a sociedade do

ônus que representam pessoas economicamente inativas76.

Extraindo-se subsídios dos ensinamentos de Pessini e

Berchifontaine:

[…] a eutanásia econômica, também denominada de social é uma opção da sociedade “em conseqüência do fato de se recusar a investir em casos de custos elevadíssimos no tratamento de doentes com enfermidades prolongadas. Os recursos econômicos seriam reservados aos doentes em condições de voltar sadios à vida produtiva. Entra em jogo o critério custo-benefício 77.

Cumpre observar que dentre essas três últimas modalidades

expostas, somente a eutanásia libertadora ou terapêutica pode ser considerada

própria e genuinamente uma espécie de eutanásia. As chamadas eutanásia

eugênica ou selecionadora e eutanásia econômica ou social, somente podem

ostentar e denominação de “eutanásia” de forma imprópria e até mesmo espúria,

pois que inexistem nelas qualquer móvel piedoso ou humanitário, antes refletem

absoluta frieza, crueldade e desumanidade, procedendo a uma terrível e impiedosa

eliminação fria e cruel de seres humanos, não podendo, pois, de forma alguma, ser

admitida como prática que dignifique a existência humana78.

Dando-se seqüência à exposição das classificações, deve-se

atentar para aquela referente ao modo de execução, distinguindo-se assim a

eutanásia ativa da eutanásia passiva. A eutanásia ativa ou por comissão é aquela

praticada através de atos que ajudam o doente a morrer, buscando com isso aliviar

ou eliminar seu sofrimento, subdividindo-se entre direta e indireta, de acordo com o

fim colimado pelo autor. A eutanásia ativa direta é a que tem em mira principalmente

a diminuição do lapso temporal de vida do enfermo por meio de “atos positivos” que

o auxiliam a morrer. Já a eutanásia ativa indireta destina-se a duas finalidades:

diminuir o sofrimento do paciente e concomitantemente reduzir seu tempo de vida,

sendo tal redução um efeito do fim principal, que é, na verdade, diminuir o

sofrimento do doente.

76 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 21. 77 PESSINI, Leo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. Problemas Atuais de Bioética, p. 380.

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Cabette citando Faria Costa, afirma que:

A determinação da chamada eutanásia indireta mais não e do que a aceitação de um comportamento, por quase todos normalmente tido como lícito, que se preenche quando a ministração de um qualquer fármaco analgésico – absolutamente imprescindível porquanto o paciente apresenta dores insuportáveis, insuportáveis para lá do razoável, provoca ou pode provocar um ligeiro encurtamento do tempo esperado de vida79.

De seu lado, a eutanásia passiva ou por omissão é aquela que

se verifica por ocasião da abstenção deliberada da continuidade do tratamento que

poderia prolongar a vida do enfermo, situação que então antecipa a morte80.

Ainda CABETTE mencionando Gisele Mendes de Carvalho:

Fala-se em eutanásia passiva o que é um eufemismo, porque, por exemplo, a desconexão de uma máquina – coração – pulmão de funcionamento automático ou de um respirador similar não requer menos atividade que a injeção de um veneno. A caracterização como eutanásia passiva tem a seguinte razão de ser: a enfermidade como constelação corporal, é parte da corporalidade do moribundo e se realiza sem intervenção exterior; na medida – e somente na medida em que – os outros permanecem passivos, ainda que seja desmontando ativamente os aparelhos previamente estabelecidos para tentar ajudar-lhe, se deixa a enfermidade seguir seu curso81.

Evidencia-se na doutrina uma certa confusão entre eutanásia

passiva ou por omissão e a ortotanásia, pois há quem empregue tais termos como

sinônimos. No entanto, esse não é melhor entendimento, pois que não há

“identidade conceitual” entre ortotanásia eutanásia passiva.

É que em sua origem etimológica, ortotanásia advém do grego

orthós (norma, correta), e thánatos (morte), designando, portanto, a morte natural ou

correta. Desse modo, ortotanásia é explicada pela ocorrência da morte em seu

78 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 22. 79 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 22. 80 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 23. 81 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 23-24.

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tempo, sem que tenha sido abreviada como na eutanásia, ou tenha havido

prolongamentos irracionais do processo de morrer, como na distanásia82.

Ortotanásia é conceituada, então, como a morte ‘correta’,

alcançada através da abstenção, supressão ou limitação de todo tratamento fútil,

extraordinário ou desproporcional (não se confundindo com a interrupção do

tratamento proporcional, como na eutanásia passiva), ante a iminência da morte do

paciente, morte esta a que não se busca (pois o que se pretende aqui é humanizar o

processo de morrer sem prolongá-lo abusivamente), nem se provoca (já que se

resultará da própria enfermidade da qual o sujeito padece)83.

Igualmente Cabette sustenta que:

[...] as condutas ortotanásicas diferem amplamente da eutanásia passiva, pois nesta ocorre a provocação da morte do doente terminal por meio da omissão quanto aos cuidados “paliativos ordinários e proporcionais” que evitariam seu passamento. Na lição Maria Celeste Cordeiro Leite Santos. Enquanto na eutanásia a morte decorre de um ato praticado voluntariamente pelo médico, na ortotanásia o seguimento natural da doença e seu agravamento são independentes das ações ou omissões do facultativo. Em verdade, “o fundamento principal da ortotanásia é a absoluta ineficácia de uma intervenção médica extremada para evitar a morte do paciente84.

No que se refere à distanásia, é sabido que a etimologia revela

que a palavra deriva do grego dis (afastamento) e thánatos (morte), consistindo,

portanto “no emprego de recursos médicos com o objetivo de prolongar ao máximo

possível a vida humana”. 85

Possível, portanto, conceituar distanásia como o ato de

postergar o evento morte, quando iminente, através de atos médicos ou tratamentos,

prolongando-se não a vida propriamente dita, mas o processo da morte inevitável.

Segundo Cabette:

82 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 25. 83 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 25. 84 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 25. 85 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 26.

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A distanásia está, portanto, ligada às chamadas “obstinação terapêutica” e “futilidade médica”. Nesses casos, especialmente no atual estágio da medicina, sobressai o chamado “imperativo tecnológico”. A expressão faz alusão ao tempo verbal imperativo, o qual está ligado a uma ordem taxativa. Portanto, tem o significado seguinte: “posto que temos a possibilidade técnica de manter a vida, isso deve ser feito de forma imperativa e categórica, e em toda situação86.

Podem ser citadas outras classificações de eutanásia

propostas pela doutrina: eutanásia voluntária ou consentida e eutanásia involuntária

ou não-consentida. No que se refere à eutanásia voluntária, há o consentimento ou

mesmo o pedido da vítima ou de seu representante legal para a prática eutanásica.

Já na eutanásia involuntária, o autor a pratica independentemente de

consentimento, reservando para si a decisão sobre a morte do doente.

O já mencionado Cabette destaca que:

Singer apresenta uma diferenciação entre a eutanásia voluntária, a qual somente considera o próprio moribundo pede ou concorda diretamente com sua morte, e aquilo que ele denomina de eutanásia não – voluntária, que abrangeria o caso de pessoas que são mortas sem o seu próprio e direto consentimento ou pedido porque são incapazes de expressá-lo ou de compreender qualquer indagação ou responder a algum estímulo de forma consciente. Nesses casos as pessoas são mortas por deliberação de terceiros, seus representantes legais. Em resumo, para Singer voluntária e involuntária seriam as eutanásias em que, de alguma forma, há manifestação ou pelo menos possibilidade de manifestação da vontade do doente, enquanto que não-voluntária seria aquela em que a vontade do doente sequer chega a manifestar-se porque ele está impossibilitado para isso”87.

Também merecem destaque as classificações de eutanásia

verdadeira e pseudo-eutanásia. A primeira, porque perpetrada por médico, e a

segunda, porque praticada por terceiros que não sejam médicos. Igualmente,

eutanásia agônica, na qual se proporciona a morte do paciente terminal

inconsciente, sem sofrimento, e eutanásia lenitiva, em que se procura aliviar o

sofrimento ou doença incurável.

86 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 26. 87 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 28.

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Do mesmo modo, identifica-se a eutanásia estóica com aquela

que se refere à morte com o fim de pôr cobro aos transtornos da vida. É que para os

estóicos a morte é encarada como o fim dos tormentos terrenos e a fuga contra

todas as dores e sofrimentos. Já a eutanásia etária ou morte branca, diz respeito a

uma “obrigação sagrada”, existente em alguns povos antigos, do filho para com o pai

doente e idoso de fazer-lhe adormecer suave e definitivamente. Ademais, eutanásia

coletiva, é aquela executada com vistas a uma finalidade pública, consistindo na

eliminação da vida de indivíduos deformados, física ou psicologicamente,

objetivando, com isso, melhorar a raça, como antes frisado, trata-se de modalidade

odiosa da eutanásia.

O já mencionado Cabette ratifica que:

Fernando Mantovani ainda vislumbra como subtipo de eutanásia coletiva a eutanásia econômica que, como já visto, relaciona-se à eliminação indolor de enfermos terminais, vegetativo, inválidos e idosos, tendo por escopo avaliar a sociedade do encargo relativo à assistência dos “economicamente indigentes”. Essa denominada “Socil Killing” na doutrina anglo-saxônica, certamente merece a designação dada por Deusdedith Souza como “uma irmã gêmea da eutanásia eugênica88.

E continua:

Pela mesma senda, enquanto subtipos da eutanásia coletiva, Mantovani arrola a eutanásia criminal, relativa à eliminação sem sofrimento de criminosos dotados de periculosidade; a eutanásia experimental, referente ao “sacrifício de vidas humanas” em prol da pesquisa médica ou científica; a eutanásia profilática, consiste na morte de pessoas contaminadas por “doenças epidêmicas”; a eutanásia solidária, cujo objetivo é sacrificar certas pessoas em benefício da vida e/ou saúde de outras (v.g. retirar órgãos vitais de alguém para usar em transplante que salvará a vida de outrem)89.

Cita-se também a eutanásia teológica, que se refere à “morte

em estado de graça”, chamada por alguns de “morte por visitação de Deus”. Essa

espécie está relacionada à religiosidade e baseia-se na crença de que Deus viria dar

morte a certas pessoas dotadas de beatitude, conduzindo-as pessoalmente à sua

88 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 29. 89 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 29-30.

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presença. A história de São Francisco de Assis é um belo exemplo, já que inclusive

foi vítima de tratamentos médicos obstinados e inúteis, sofrendo queimaduras dos

ouvidos e têmporas com ferro quente em procedimentos médicos inúteis contra a

moléstia que padecia.

Também sob a característica da religiosidade, fala-se na

eutanásia ritualizada, que exprime, na realidade, os mais diversos ritos de morte e

de amparo aos moribundos em inúmeras manifestações religiosas. Um exemplo do

catolicismo é a “extrema-unção”. No oriente encontra-se a chamada pratica da

Phowa, que consiste em uma série de procedimentos de meditação e amparo ao

moribundo, a fim de possibilitar-lhe uma transição tranquila90.

Por outro lado, conceitua-se a mistanásia, cuja origem

etimológica tem o significado de “morrer como um rato”. Representa, portanto,

aquela faceta triste da sociedade moderna mundial, provocada pelo capitalismo

selvagem, que conduz as parcelas miseráveis da sociedade ao abandono social,

econômico, sanitário, higiênico, educacional, de saúde e segurança, que acabam

morrendo pelo descaso e desrespeito aos sagrados direitos humanos91.

Segundo Pessini:

É justamente por isso que queremos examinar a eutanásia levando em consideração o resultado que provoca, a intenção ou motivação que se tem para praticar o ato, a natureza do ato e as circunstâncias. Precisamos também distinguir o valor moral – considerando objetivamente – que se pode atribuir um ato eutanásico de culpa ética ou jurídica que se pode atribuir num determinado caso. Uma das grandes diferenças entre a mistanásia e a eutanásia é o resultado. Enquanto a mistanásia provoca a morte antes da hora de uma maneira dolorosa e miserável, a eutanásia provoca a morte antes da hora de uma maneira suave e sem dor. É justamente esse resultado que torna a eutanásia tão atraente para tantas pessoas92.

90 ALVES, Ricardo Barbosa. Eutanásia , Bioética e Vidas Sucessivas. Sorocaba: Brazilian Books,

2001. p. 35. 91 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 31. 92 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 202.

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É certo, por outro lado, que seja pelo aspecto da dignidade da

pessoa humana, seja pelo viés religioso, o estado de consciência do paciente é

considerado de vital importância à adaptação espiritual ao pós-morte.

O já mencionado afirma, citando Rinpoche:

[…] a necessidade de dissipar nossa ansiedade perante o sentimento de uma dor intensa não mitigável durante o processo da morte. No entanto, chama a atenção para o fato de que hoje uma dor dessa espécie é evitável pelo uso das mais diversas combinações de analgésicos e narcóticos. Portanto, na atualidade é possível proporcionar uma “morte serena”, sem abrir mão da consciência do doente na grande maioria dos casos, satisfazendo condições de dignidade humana temporal e espiritual 93.

Portanto, diferentes sejam as classificações apontadas e

reconhecidas pelos doutrinadores, a conceituação e a classificação do termo

igualmente não representa tema pacífico, suscitando portanto controvérsias com a

mesma força que o tema central suscita, variando sua intensidade à medida em que

variam os valores morais e éticos defendidos pela sociedade local.

93 RINPOCHE, Sogyal. O Livro Tibetano do Viver e Morrer. 7. ed. Tradução de Luiz Carlos Lisboa. São Paulo: Taleto, 1999. p. 234.

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CAPÍTULO 2

O DIREITO À VIDA E OS ASPECTOS ÉTICOS E MORAIS DA EUTANÁSIA

2.1 DIREITO À VIDA – CONCEITO DE MORTE CLÍNICA

Após breve explanação sobre as origens históricas, conceitos e

classificações que o termo eutanásia alcançou ao longo da história, torna-se

necessário discutir a questão conceitual do direito à vida e do momento científico da

morte.

Sabidamente o bem jurídico de maior relevância para a

humanidade, a discussão sobre o direito à vida não pode deixar de levar em conta

os aspectos ligados à morte, seu conceito e momento médico e jurídico de sua

ocorrência.

Segundo Cabette:

[…] A necessidade de compreender a morte para poder gozar de uma vida dignificante está presente na filosofia desde antanho. Cícero afirmou que "filosofar é preparar-se para a morte". Também Sêneca defendia que a vida somente deveria ser preservada se pudesse ser considerada digna de ser fruída: "Não devemos conservar a vida a todo custo, pois o importante não é viver, mas viver bem. Por isso o sábio vive tanto quanto deve e não tanto quanto pode […]. Morrer mais cedo ou mais tarde, que importa? Morrer bem ou morrer mal, é isso que importa94.

Por isso, mesmo que de forma sintética, é salutar que se defina

o conceito de morte no plano jurídico, pois haverá casos em que a conduta omissiva

do profissional médico não chegaria a influenciar o curso normal da vida, não

havendo razão, portanto, para ser responsabilizado criminalmente.

94 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 56-57.

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Para definir o conceito, extrai-se de Cabette, citando Hélio

Gomes:

[…] A dificuldade ou impossibilidade de definir a vida existe também no tocante à definição da morte, com a agravante de que a respeito desta o ministério é maior. Dizem, por exemplo, que a morte é o contrário da vida; é a cessação da vida; é a passagem dum estado de equilíbrio instável para o de um equilíbrio instável. Os conceitos, também, não satisfazem. As definições de morte são por igual ininteligíveis, embora ela esteja constantemente a nosso lado, invisível, sem dúvida, mas presente, à espreita, à espera95.

Ainda dos ensinamentos de Cabette, citando Marrey Neto, a

melhor conceituação de morte seria da lavra de Hilário Veiga de Carvalho, que a

define como:

[...] desintegração irreversível da personalidade em seus aspectos fundamentais morfofisiológicos, fazendo cessar a unidade biopsicológica como um todo funcional e orgânico, definidor daquela personalidade que assim se extinguiu96.

Não apenas pertinente, mas porque não dizer essencial ao

estudo da hipótese de revisão da responsabilização penal do profissional médico

frente à eutanásia no direito vigente, tem-se como necessário que se estabeleça

critérios para a definição não apenas do conceito, mas também do momento em que

se pode diagnosticar a morte como fato ocorrido.

Nesse sentido, colhe-se da história que na Grécia a morte era

verificada pela paralisação dos batimentos cardíacos.

Pessini, citando Christoph, enaltece esse momento da história

onde se concebia a morte como o momento da parada cardíaca:

Não constituía problema para o médico, até agora, constatar a morte duma pessoa: o fim da vida coincidia com a derradeira pulsação cardíaca. A morte sucedida quando o coração parava de bater. Para dizer que alguém tinha morrido, o médico ou perito legista baseava-se, além de na cessação das manifestações de vida clinicamente perceptíveis – respiração, circulação – nos “inconfundíveis sinais da

95 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 99. 96 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 99.

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morte”, manifestados horas após – rigidez letal, esfriamento do corpo e manchas cadavéricas – que valiam como prova de que sucedera a morte (CHRISTOPH, 19674, P. 450) 97.

Posteriormente, os judeus-cristãos passaram a apontar o

momento da morte como aquele em que cessarem as atividades pulmonares. Assim,

da conjugação desses dois critérios passou-se a adotar a posição de que a morte

clínica ocorreria, então, quando houvesse ao mesmo tempo a paralisação das

atividades cardíacas e respiratória98.

Todavia, em tempos mais recentes, é dizer, no século XVII, em

1799, explica Cabette que surgiu o primeiro conceito científico de morte, de autoria

de Fraçóis Xavier Bichat, fundador da anatomia geral e da histologia, o qual

expressou que "[...] a morte é um processo cronológico que leva a uma catástrofe

fisiológica"99.

Segundo Cabette, ainda que tenha destacado que nessa época

da história o diagnóstico de morte levava em conta a paralisação das funções

circulatória e respiratória, dos estudos de Bichat surgiu a denominada "Trípode de

Bichat", de acordo com a qual "as funções vitais do organismo estão sustentadas

pelo coração, pulmão e cérebro". 100

A história apurada na doutrina aponta um evento que em muito

contribuiu para a evolução do conceito de morte, a fim de que deixasse de levar em

conta apenas o término dos batimentos cardíaco, para definir-se como a paralisação

das atividades do cérebro. É que em 1564, em Madri, quando o médico anatomista

Versalius realizava uma necropsia à frente de muitas pessoas que o assistiam, todos

ficaram assombrados ao verificarem que na abertura do tórax o coração ainda

pulsava com vigor101.

97 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 51. 98 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 51. 99 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 100. 100 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 100. 101 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 105.

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Nesse sentido, Pessini, citando M. de Almeida explica que:

A definição legal e médica de morte mudou recentemente da cessação da função cardiorrespiratória para a chamada morte cerebral. Pacientes que tiveram perda irreversível da função cerebral, mas que continuam a respirar, teriam de ser considerados vivos sob a prévia definição legal e médica. Agora eles são declarados mortos. Embora as alteração estejam sancionadas por autoridades liderantes da Medicina e do Direito, prosseguem em clima de certa confusão, sintomas do que foi recentemente estabelecido por um juiz nos Estados Unidos: “esta senhora está morta, estava morta e está sendo mantida viva artificialmente”. Em parte essa confusão é comumente o resultado da incompreensão dos juízes e do público em geral acerca do que aquelas autoridades, que propõem a redefinição têm em mente (ALMEIDA, 1988, p. 42)102.

Hodiernamente, a quase totalidade das legislações reconhece

juridicamente a morte quando cessada por completo a atividade neurológica do

cérebro.

Cabette menciona, citando Marre Neto, que:

[…] os Estados norte-americanos de Ilinois, Montana e Tennessee adotaram a seguinte definição de morrer (…): Para todos os propósitos legais, um corpo humano, com irreversível cessação das funções cerebrais, apurada de acordo com os padrões costumeiros e usuais da prática médica, será considerado morto103.

Ainda das palavras de Cabette, colhe-se que: "[…]a doutrina

espanhola reconhece a "morte encefálica" como definidora do momento da morte,

conforme expuseram Arroyo Urita e outros nas XI Jornadas Médico-Forense

Espanhola[…]"104.

A legislação brasileira segue no mesmo sentido, reconhecendo

como o momento da morte, para os efeitos jurídicos, aquele em que se verificar a

morte encefálica. Nesse sentido, estabelece a Lei n. 9.434/97 (Lei dos

102 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 52. 103 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 99. 104 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 101.

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Transplantes), com a redação que lhe foi dada pela Lei n. 10.211 de 2001, em seu

art. 3º, § 1º:

Art. 3°. A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina. § 1° Os prontuários médicos, contendo os resultados ou os laudos dos exames referentes aos diagnósticos de morte encefálica e cópias dos documentos de que tratam os arts. 2°, parágrafo único; 4° e seus parágrafos; 5°; 7°; 9°, §§ 2°, 4°, 6° e 8°; e 10, quando couber, e detalhando os atos cirúrgicos relativos aos transplantes e enxertos, serão mantidos nos arquivos das instituições referidas no art. 2° por um período mínimo de cinco anos.

O Conselho Federal de Medicina, através da resolução n.

1.480/97 de 8 de agosto de 1997, define os critérios para a definição de morte

encefálica. Na exposição de motivos é dito:

Considerando que a parada total e irreversível das funções encefálicas equivale à morte, conforme critérios já bem estabelecidos pela comunidade científica mundial; Considerando o ônus psicológico e material causado pelo prolongamento do uso de recursos extraordinários para o suporte de funções vegetativas em pacientes com parada total e irreversível da atividade encefálica; Considerando a necessidade de judiciosa indicação para interrupção do emprego desses recursos; Considerando a necessidade da adoção de critérios para constatar, de modo indiscutível, a ocorrência de morte; Considerando que ainda não há consenso sobre a aplicabilidade desses critérios em crianças menores de 7 dias e prematuros,

RESOLVE:

Art. 1º. A morte encefálica será caracterizada através da realização de exames clínicos e complementares durante intervalos de tempo variáveis, próprios para determinadas faixas etárias. Art. 2º. Os dados clínicos e complementares observados quando da caracterização da morte encefálica deverão ser registrados no "termo de declaração de morte encefálica" anexo a esta Resolução. Parágrafo único. As instituições hospitalares poderão fazer acréscimos ao presente termo, que deverão ser aprovados pelos Conselhos Regionais de Medicina da sua jurisdição, sendo vedada a

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supressão de qualquer de seus itens. Art. 3º. A morte encefálica deverá ser conseqüência de processo irreversível e de causa conhecida. Art. 4º. Os parâmetros clínicos a serem observados para constatação de morte encefálica são: coma aperceptivo com ausência de atividade motora supra-espinal e apnéia. Art. 5º. Os intervalos mínimos entre as duas avaliações clínicas necessárias para a caracterização da morte encefálica serão definidos por faixa etária, conforme abaixo especificado: a) de 7 dias a 2 meses incompletos – 48 horas b) de 2 meses a 1 ano incompleto - horas c) de 1 ano a 2 anos incompletos – 12 horas d) acima de 2 anos – 6 horas; Art. 6º. Os exames complementares a serem observados para constatação de morte encefálica deverão demonstrar de forma inequívoca: a) ausência de atividade elétrica cerebral ou, b) ausência de atividade metabólica cerebral ou, c) ausência de perfusão sangüínea cerebral105.

A jurisprudência da mais alta Corte de Justiça do Brasil

igualmente já se posicionou a respeito, como se observa do voto do Ministro Ayres

Britto, em seu voto na ADin. 3.510-0/DF.

[…]a vida tão-só é irreversivelmente assegurada por aparelhos já não cona, porque definitivamente apartada das pessoas a que pertencia (a pessoa já se foi, juridicamente, enquanto a vida exclusivamente induzida teima em ficar)". E arremata, afirmando que "a vida humana já rematadamente adornada com o atributo da personalidade civil é o fenômeno eu transcorre entre o nascimento com vida e a morte cerebral". 106

Da lição de Maria Helena Diniz, quando comenta o momento

da morte para fins de transplante de órgãos, destaca-se:

A noção comum de morte tem sido a ocorrência de parada cardíaca prolongada e a ausência de respiração, ou seja, a cessação total e permanente das funções vitais, mas, para efeito de transplante, tem a lei considerado a morte encefálica, mesmo que os demais órgãos estejam em pleno funcionamento, ainda que ativados por drogas. Assim sendo, não se aguarda a parada cardiorrespiratória e a conseqüente autólise dos órgãos, bastando a ocorrência de dano encefálico de natureza irreversível que impeça a manutenção das funções vitais, devendo empregar-se aos recursos de terapia

105 Conselho Federal de Medicina, 1997. 106 DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito, p. 296.

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intensiva para garantir a perfusão dos demais órgãos durante um período que possibilite sua utilização em transfusão107.

Prossegue a autora:

Como se vê não é tarefa fácil diagnosticar a morte encefálica ou neurológica, que vem a ser a abolição total e definitiva das atividades do encéfalo, de que dependem, fundamentalmente, todas as demais funções orgânicas. Com a morte das células do sistema nervoso central, das funções vitais, a única que pode permanecer é o batimento cardíaco, porque o coração tem um sistema de controle independente daquele. Será imprescindível sua constatação, mediante critérios científico técnico rigorosos, por médicos especializados e do mais elevado sentido ético108.

Assim, é certo que essa evolução histórica do conceito do

momento morte leva em conta, especialmente, a necessidade de se estabelecer

com segurança essa ocorrência, notadamente o momento em que ela se torna

irreversível por verificação médica inconteste.

Daí que um dos grandes entraves éticos e jurídicos surge

quando se verifica a possibilidade do doente diagnosticado com morte encefálica ter

sua vida sustentada artificialmente por longo e talvez até indefinido período.

Assim, indaga-se se ocorreria ou não a eutanásia (ativa,

passiva ou ortotanásica), caso se desligassem todos os aparelhos que

possibilitavam a manutenção artificial dessa vida nessas circunstâncias, repete-se

porque essencial: quando já verificada a morte encefálica109.

Segundo Cabette, em hipóteses tais nem mesmo eutanásia se

verificaria:

[…] Trata-se de um caso em que o paciente já morreu por causas naturais e apenas se processa a retirada de um cadáver da conexão com os aparelhos que lhe dariam sustentação se estivesse vivo. Sob o prisma criminal, aventando-se eventual acusação de eutanásia,

107 DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito, p. 296. 108 DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito, p. 297. 109 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 101.

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configurar-se-ia a moldura do chamado "crime impossível", de acordo com o disposto no art. 17, CP […]110.

Cabette mencionando Genival Veloso de França afirma:

[…] que tal conduta "nada tem a ver com eutanásia", não se devendo confundir esta última "com a suspensão dos meios artificiais que mantêm precariamente ligado à vida um indivíduo com parada total e irreversível de suas funções encefálicas, pois nesses casos, ele já estaria morto111.

E complementa:

[…] Ultimamente, já se vem notando uma tendência da sociedade em aceitar a suspensão do tratamento fútil ou dos meios artificiais de vida, ante uma morte encefálica corretamente confirmada. Parte dessa sociedade já passa a entender que, nas situações de irreversibilidade de consciência e de outras funções superiores, e quando essa vida se mantém de forma considerada artificial, o indivíduo teria o direito de morrer com dignidade112.

Pontifica o autor Ricardo Barbosa Alves:

[…] E, uma vez constatada a morte através desses critérios, ainda que mantida a pessoa com o coração, pulmões, sistema digestivo e urinário em funcionamento, o desligamento dos aparelhos não implica eutanásia, porque a vida já não mais existe sob o aspecto clínico – e, em conseqüência, sob o prisma legal. E, assim sendo, não se pode chamar de eutanásia passiva ou ortotanásia a interrupção de recursos artificiais capazes de manter outros órgãos vitais em funcionamento […]113.

Portanto, apurou-se que o bem jurídico vida encontra inegável

proteção jurídica, em âmbito constitucional e que a definição científica do momento

da morte é efetivamente importante para a discussão da responsabilização penal da

eutanásia.

110 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 102. 111 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 102. 112 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 102. 113 ALVES, Ricardo Barbosa. Eutanásia , Bioética e Vidas Sucessivas, p. 243.

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2.2 DISCUSSÃO ÉTICA E MORAL DA EUTANÁSIA

É complexa a definição do termo ética, ainda que se tenha em

consenso uma noção de que representa o bom, ou o bem aceito comportamento

humano.

Os mais remotos estudos do conceito são retirados da filosofia

grega, cerca de 500 e 300 A.C., dos estudos de Sócrates, Platão e Aristóteles, a

partir de quando então impulsionou-se o estudo sobre o agir do ser humano114.

Segundo a origem etimológica do termo ética, a derivação

provém do grego ethos que significa modo de ser, caráter. Expressa a reflexão

filosófica sobre a conduta moral dos indivíduos ou grupo de indivíduos, ou seja,

acerca das regras e códigos morais que norteiam a conduta humana. Tem como

pretensão definir as bases do fato moral e determinar as diretrizes e os princípios

abstratos da moral115.

Em outras palavras, a ética pretende analisar os padrões ou

costumes de uma determinada sociedade, para se aferir o comportamento,

enquandrando-o como aceito ou correto, aos “olhos” dessa mesma sociedade. Em

resumo, tem-se a ética como o estudo das ações e dos costumes humanos ou a

análise da própria vida considerada virtuosa. A ética se diferencia da ontologia, pois

esta tem como objeto o ser das coisas.

Portanto, a ética objetiva desvendar aquilo que o homem

"deve fazer". Seu campo é o do juízo de valor e não o do juízo de realidade, ou da

existência. Desse modo, o estudo desse comportamento, no que se refere aos

profissionais médicos, vai representar o estudo da atuação do profissional médico no

que se refere aos seus deveres (deontologia) e direitos (diceologia), disciplinados,

não de forma exaustiva, no Código de Ética médica.

114 CHARNAUX, Renato Lima. A distanásia e a dignidade do paciente. Rio de Janeiro: Renovar,

2005. p. 134-135. 115 SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direito de morrer: eutanásia, suicídio assistido. 2 ed. Belo

Horizonte: Del Rey, 2005. p. 65.

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Os assuntos ligados à moral e, por conseguinte, ao

comportamento ético do profissional médico, são estudados pela ética biomédica,

que teve seu primeiro impulso a partir de um movimento que buscou conciliar os

interesses da medicina com os interesses éticos e, ao mesmo tempo, humanísticos.

Procura-se, então, com uma visão crítica, examinar os princípios gerais éticos e a

maneira como esses princípios poderão se incorporar ao dia a dia da atividade

médica.

Os temas ligados à ética médica têm alcançado ainda maior

repercussão à medida em que avançam os recursos técnicos e científicos da

medicina com o propósito de alcançar a cura ou prolongar a vida do paciente,

motivando acalorados questionamentos quanto aos aspectos econômicos, éticos e

legais relativos à aplicação desses novos métodos e tecnologia, levando em conta

os princípios, às vezes antagônicos, para manter a vida ou aliviar o sofrimento.

Assim, em razão desse avanço da medicina, a morte vem

ganhando contornos éticos diferentes de outros tempos, alcançando o espaço de

discussão do que poderia representar uma morte digna, havendo discussão antes

inexistente sobre o direito da família decidir sobre o destino de seus entes queridos

acometidos de doenças incuráveis, quando existente inconteste sofrimento físico e

ausente esperança de cura116.

Sobre o tema, colhe-se o ensinamento de Pessini:

Ninguém nega e, menos ainda, rejeita que os progressos da higiene e da medicina marcam nosso tempo de modo determinante. De modo geral, a qualidade de vida e seu prolongamento espetacular nos países, por exemplo, aproximadamente uma entre duas meninas que hoje nascem será centenária117.

Ainda, do mesmo autor:

A discussão a respeito do papel da tecnologia no fim da vida apresenta-se como uma faca de dois gumes. De um lado, não podemos ignorar que muitas vidas continuam, recuperam seu potencial vital, sendo restituídas à saúde, mas, por outro lado,

116 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 85. 117 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 85.

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surgem sérios problemas ético no sentido de manipular a dignidade da pessoa humana na fase final de vida118.

Continuando o citado autor expressa que:

Em meio a uma situação de possibilidades infinitamente maiores de manipulação da vida em seu acaso, ganha cada vez mais força reivindicativa o clamor pelo resgate da dignidade humana no fim da vida119.

Considerando a legislação brasileira, além das

responsabilidades civil e penal decorrentes da prática da eutanásia pelo médico,

existia, ainda, a sanção de natureza administrativa, que seria aplicada Conselho de

Ética Médica do respectivo Conselho.

Todavia, a partir da aprovação, por unanimidade, pelo

Conselho Federal de Medicina, da Resolução n. 1.805/06, que passou a permitir aos

médicos, nos temos expostos pela referida resolução, a interrupção de tratamentos

que prolongam a vida de pacientes terminais sem chances de cura, outro passou a

ser o entendimento, sob o ponto de vista disciplinar, da atuação médica120.

Sobre os objetivos dessa resolução, explica Eduardo Luiz

Santos Cabette:

O Conselho Federal de Medicina tem procurado deixar claro que não está convalidando a prática da eutanásia, mas sim da ortotanásia, de modo a apenas antecipar uma morte inevitável, sem nem mesmo causá-la por ação ou omissão. Ademais, a decisão sobre a adoção do procedimento não é arbitrariamente conferida ao profissional da medicina. As responsabilidades pela decisão são compartilhadas entre o médico e o doente ou seus representantes legais121.

Esse posicionamento do órgão da classe médica brasileira

segue a linha de entendimento adotado internacionalmente. Nesse sentido,

esclarece Cabette:

118 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 87. 119 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 89. 120 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 35. 121 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 35.

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Ademais, frise-se que o posicionamento do Conselho Federal de Medicina brasileiro não é pioneiro em termos internacionais. Já em 1986 a American Medical Association assentou que é eticamente correto para o médico deliberar pela retirada dos sistemas de prolongamento artificial da vida, incluindo alimentação e água, em casos de enfermos terminais que estão perecendo e também daquelas pessoas que podem permanecer em como prolongado122.

Esse novo estudo ético acerca do comportamento do

profissional médico, assim como dos familiares, nos casos de enfermidades sem

possibilidades de cura encontra na bioética um campo apropriado.

Etimologicamente falando, é sabido que bio significa vida;

ética o mesmo que ethos, que quer dizer modo de ser. Assim, na forma

contemporânea, pode-se afirmar ainda que bioética é o ato correto de lidar com a

vida, ou que deveria ser o correto, podendo, ainda, ter o entendimento das relações

do homem com a vida, sob o enfoque das escolhas boas e más, do ponto de vista

ético, conforme descrito anteriormente: a reflexão ética do "bem" e "mal", do "justo" e

do "injusto".

Segundo Maria Helena Diniz:

A bioética seria, em sentido amplo, uma resposta da ética às novas situações oriundas da ciência no âmbito da saúde, ocupando-se não só dos problemas éticos, provocados pelas tecnociências biomédicas, e alusivas ao início e fim da vida humana, às pesquisas em seres humanos, às formas de eutanásia, à distância, às técnicas de engenharia genética, às terapias gênicas, aos métodos de reprodução humana assistida, à eugenia, à eleição do sexo do futuro descendente a ser concebido, à clonagem de seres humanos, à mudança de sexo em caso de transexualidade, à esterilização compulsória de deficientes físicos ou mentais, à utilização da tecnologia do DNA recombinante, às práticas laboratoriais de manipulação de agentes patogênicos etc [...]123.

Ainda sobre o tema relacionado à necessidade de se manter

de forma artificial a vida humana, quando a ciência médica afirma extreme de

dúvidas que a vida não mais é recuperável, extrai-se dos ensinamentos de Pessini,

citando Haring, expressa:

122 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 36-37. 123 DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito, p. 10.

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[…] se uma pessoa perdeu irrevogavelmente a consciência e inexistem esperanças de que a recupere, a história da liberdade chegou ao fim para essa pessoa, nesta terra... Uma coisa é cuidar da vida e prolongá-la, outra é prolongar apenas o processo inelutável da morte, depois que o médico soube claramente ser inútil qualquer tratamento. É lamentável que, em hospitais modernos perfeitamente equipados, as pessoas sejam manipuladas com toda a maquinaria e ativismo, cujo fim não é o de curar, mas somente prolongar um estado clínico sem futuro. A reanimação é boa prática clínica, quando subsiste a esperança razoável de restituir, de qualquer forma, a saúde ao paciente. No caso, porém, de existir a previsão de que serão reativados apenas os centros vegetativos do cérebro, ao passo que o córtex cerebral não poderá ser reanimado, o processo nada mais será do que manipulação das funções biológicas, visto que a pessoa chegou irrevogavelmente ao termo de sua história. A reanimação é meio excepcional de tratamento e não deve ser utilizada na falta razoável de esperança de restituir a pessoa ao estado consciente e à atividade mental normal (HARING, 1884, P. 125-126)124.

E adiante, citando Lepargneur:

[...] enquanto houver esperança de devolvermos a vida normal a uma pessoa que perdeu a consciência, façamos todos os esforços para reanimá-la. Esse é o papel dos médicos e eles têm o direito e o dever de cumpri-lo. No entanto, se a consciência está irremediavelmente perdida, e se a pessoa é dada como clinicamente morta, o caso precisa ser tratado diferentemente. [...] Quando comprovadamente inexistir vida cerebral, pode-se e deve-se desligar o aparelho que mantém uma pessoa em estado vegetativo (LEPARGNEUR, p. 157). 125

Portanto, ainda que seja compreensível, do ponto de vista

humanístico e em especial tendo em conta a proximidade dos entes queridos com o

enfermo, que exista uma "busca insana" pela cura a qualquer custo, esquecendo-se,

em certos casos, que o mais relevante seria cuidar, ou seja, dar ao doente a

necessária assistência, meios para aliviar sua dor física e psíquica, propiciando-lhe

cuidados paliativos para o seu bem estar126.

Poderia se admitir, então, sem ofensa à ética ou à moral, a

suspensão ou a não iniciação de tratamentos que não trouxessem nenhum benefício

124 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 85-88. 125 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 87. 126 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 88.

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ao doente terminal, prorrogando, apenas, o seu sofrimento, ainda que ocasionasse o

seu falecimento.

Desse modo, por mais variável que seja a posição ética do

tema eutanásia, é possível perceber que a aceitabilidade dessa conduta passa

necessariamente pela inclusão do conceito dignidade humana a fim de evitar um

sofrimento desproporcional do paciente.

2.3 A EUTANÁSIA VISTA PELAS RELIGIÕES

Tendo em conta a ampla divergência, no campo da ética, como

já visto, e a reconhecida valoração dada pelas religiões à vida, considerado como

um bem sagrado, a discussão que começa a admitir a hipótese da eutanásia, ou de

algumas de suas modalidades para os casos de doentes terminais, notadamente

para se rediscutir a questão da responsabilidade penal do profissional médico, ainda

não exerce influência no meio religioso de forma a tornar tal assunto algo inconteste.

Do contrário, observa-se que as realizações, de um modo geral, buscam a

preservação da vida.

Pessini afirma que:

[...] As religiões, segundo Hans Kung, são todas mensagens de salvação que procuram responder às mesmas perguntas básicas das pessoas. As perguntas sobre os eternos problemas de amor e sofrimento, culpa e reparação, vida e morte: donde vêm o mundo e suas leis? Por que nascemos e por que devemos morrer: O que governa o destino do indivíduo e da humanidade? Como se fundamentaram a consciência moral e a existência de normas éticas? Todas oferecem caminhos semelhantes de salvação: caminhos nas situações de penúria, sofrimento e culpa da vida terrena; indicação de caminhos para um procedimento correto e conscientemente responsável nesta vida, a fim de alcançar uma felicidade duradoura, constante e eterna, a libertação de todo sofrimento, culpa e morte (KUNG, 1994, 1998)127.

Prossegue o autor:

127 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 229-230.

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Mas tudo isso também significa que mesmo quem rejeita as religiões precisa levá-las a sério, como realidade social e existencial básica. Elas têm a ver com o sentido e o não-sentido da vida, com a liberdade e a escravidão das pessoas, com a justiça e com a opressão dos povos, com a guerra e a paz na história e no presente [...]128.

Maria de Fátima Freire Sá igualmente discorre sobre a

influência que as religiões exercem na humanidade, por conseqüência, a

importância da percepção dessas religiões sobre o tema morte e sua eventual

interrupção pela eutanásia. Assim se manifesta:

Não se pode negar eu a religião tem muita influência nos homens, porque é ela que traduz ao indivíduo mensagens de salvação. Oferece bálsamo nas situações de sofrimento e penúria, indica caminhos para um procedimento reto e responsável na vida, afirmando que, ao agir de acordo com os ensinamentos de Deus, as pessoas alcançarão felicidade duradoura e eterna. Por isso, não há como olvidar sobre a pertinência em se abordar a questão do morrer nas maiores religiões do mundo [...]129.

De fato, o tema é por demais atual e palpitante em todos os

meios, por isso não poderia ser diferente, ou indiferente, no meio religioso. Ainda

segundo Pessini:

[...] Abalizados pensadores na área da bioética dizem que, assim como o aborto foi o tema do século XX, com liberalização em muitos países do globo, a eutanásia certamente será a grande questão do século XXI130.

No que se refere à Igreja Católica, especialmente por se tratar

daquela que possui o maior número de fiéis em nosso país, portanto, com maior

poder de influência no dia a dia da sociedade, é certo concluir que inadmite a

eutanásia ou algumas de suas vertentes, equiparando-a ao ato de homicídio, sem a

abertura de discussão sobre eventual admissibilidade, como se observa no

128 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 230. 129 SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direito de morrer: eutanásia, suicídio assistido, p. 62. 130 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 230.

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“Documento de Aparecida”, que consiste no “Texto conclusivo da V Conferência

Geral de Episcopado Latino-Americano e do Caribe”131.

Por outro lado, de forma expressa a Carta Anhcíclica Evangeliu

Vitae de 1995, da lavra do Papa João Paulo II, critica as hipóteses de eutanásia e da

distanásia, enfatizando uma crescente “cultura” da morte, adotada por uma

sociedade que visa somente a produtividade, acreditando por isso que os idosos ou

enfermos, porque não mais “úteis”, não possuem valor132.

Igualmente a distanásia, que como já fundamentado na parte

inicial do presente trabalho, diz respeito à renúncia ao tratamento excessivo,

demasiado ou inadequado à situação do doente, em razão de seu irreversível

estado, é criticada e não encontra aceitação na Igreja Católica.

José Transferetti, afirma que é diferente a visão católica cristã

acerca da ortotanásia, dizendo que: “a ortotanásia é a que mais se aproxima da

visão cristã”, acatando-se a conclusão da humanidade da conduta de “evitar

sofrimento inútil de pacientes terminais”133.

Essa aceitação, em termos condicionados, ficou expressa

quando a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) expediu nota

explicativa sobre o tema, ressaltando a manifestação do Papa João II no número 65

da Encíclica Evangelium Vitae, nos seguintes termos:

Para um correcto juízo moral da eutanásia, é preciso, antes de mais, defini-la claramente. Por eutanásia, em sentido verdadeiro e próprio, deve-se entender uma acção ou uma omissão que, por sua natureza e nas intenções, provoca a morte com o objectivo de eliminar o sofrimento. « A eutanásia situa-se, portanto, ao nível das intenções e ao nível dos métodos empregues ». Distinta da eutanásia é a decisão de renunciar ao chamado « excesso terapêutico », ou seja, a certas intervenções médicas já inadequadas à situação real do doente, porque não proporcionadas aos resultados que se poderiam esperar ou ainda porque demasiado gravosas para ele e para a sua família. Nestas situações, quando a morte se anuncia iminente e inevitável, pode-se em consciência « renunciar a tratamentos que dariam somente um prolongamento precário e penoso da vida, sem,

131 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 232. 132 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 36. 133 TRANSFERETTI, José. Sobre a Ortotanásia. Boletim Salesiano, n.1, p. 13, jan/fev.

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contudo, interromper os cuidados normais devidos ao doente em casos semelhantes ». Há, sem dúvida, a obrigação moral de se tratar e procurar curar-se, mas essa obrigação há-de medir-se segundo as situações concretas, isto é, impõe-se avaliar se os meios terapêuticos à disposição são objectivamente proporcionados às perspectivas de melhoramento. A renúncia a meios extraordinários ou desproporcionados não equivale ao suicídio ou à eutanásia; exprime, antes, a aceitação da condição humana defronte à morte. Na medicina actual, têm adquirido particular importância os denominados « cuidados paliativos », destinados a tornar o sofrimento mais suportável na fase aguda da doença e assegurar ao mesmo tempo ao paciente um adequado acompanhamento humano. Neste contexto, entre outros problemas, levanta-se o da licitude do recurso aos diversos tipos de analgésicos e sedativos para aliviar o doente da dor, quando isso comporta o risco de lhe abreviar a vida. Ora, se pode realmente ser considerado digno de louvor quem voluntariamente aceita sofrer renunciando aos meios lenitivos da dor, para conservar a plena lucidez e, se crente, participar, de maneira consciente, na Paixão do Senhor, tal comportamento « heróico » não pode ser considerado obrigatório para todos. Já Pio XII afirmara que é lícito suprimir a dor por meio de narcóticos, mesmo com a consequência de limitar a consciência e abreviar a vida, « se não existem outros meios e se, naquelas circunstâncias, isso em nada impede o cumprimento de outros deveres religiosos e morais ». É que, neste caso, a morte não é querida ou procurada, embora por motivos razoáveis se corra o risco dela: pretende- -se simplesmente aliviar a dor de maneira eficaz, recorrendo aos analgésicos postos à disposição pela medicina. Contudo, « não se deve privar o moribundo da consciência de si mesmo, sem motivo grave »: quando se aproxima a morte, as pessoas devem estar em condições de poder satisfazer as suas obrigações morais e familiares, e devem sobretudo poder-se preparar com plena consciência para o encontro definitivo com Deus.Feitas estas distinções, em conformidade com o Magistério dos meus Predecessores e em comunhão com os Bispos da Igreja Católica, confirmo que a eutanásia é uma violação grave da Lei de Deus, enquanto morte deliberada moralmente inaceitável de uma pessoa humana. Tal doutrina está fundada sobre a lei natural e sobre a Palavra de Deus escrita, é transmitida pela Tradição da Igreja e ensinada pelo Magistério ordinário e universal. A eutanásia comporta, segundo as circunstâncias, a malícia própria do suicídio ou do homicídio134.

Tal aceitabilidade é confirmada porque o Papa Pio XII já nos

ano de 1957 admitia a possibilidade de se evitar o intenso sofrimento da dor através

de remédios, ainda que tal representasse uma limitação da consciência e até a

abreviação da vida, quando não houvesse outros meios135.

134 Encíclica Evangelium vitae. Disponível em Ioannes Paulus PP. II

http://www.clerus.org/clerus/dati/2009-03/10-13/Evangelium_vitae.html. acesso em 26. ag. 2009. 135 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 49.

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A justificativa para a tolerância da ortotanásia junto ao

catolicismo encontra explicação no fato de que nessa hipótese a morte não

representava a intenção dos agentes, que sequer a procuraram, apenas admitiram a

sua ocorrência com a mais que plausível justificativa de que estar-se-ía evitando um

sofrimento desproporcional, pois já não há expectativa de manter a vida consciente

do ser humano.

Bem explicando as razões pelas quais a ortotanásia é aceita

pelo Catolicismo, Cabette citando Freire de Sá, explica que:

[…] a “tradição moral católica”, com ciência de um exato conceito de ortotanásia e eutanásia indireta, faz uma nítida “distinção entre matar e deixar morrer”. Essa distinção nem sempre é percebida pelos cultores da bioética moderna, os quais, inclusive como já demonstrado neste trabalho, freqüentemente confundem os conceitos de ortotanásia e eutanásia passiva. Já “para a doutrina católica, ‘matar’ significa a ação ou omissão que visa causar a morte”, enquanto “‘deixar morrer’ é considerar que a natureza seguirá seu curso, não empregando tratamento desnecessário em paciente terminal, no momento em que nada mais pode ser feito136.

Em tempos recentes, a Igreja Católica continua condenando as

demais hipóteses de eutanásia (ressalvada a ortotanásia – como acima dito). O

Papa Bento XVI igualmente condena a eutanásia, destacando que representa

odiosa ofensa à dignidade da pessoa humana, como o é o homicídio. No entanto,

seguindo a linha antes mencionada, faz ressalva à possibilidade de renúncia ao

tratamento terapêutico inútil, doloroso e desproporcional em razão do estado de

saúde da pessoa137.

De sua parte, a cultura oriental budista, entende ser eticamente

aceitável a assistência ao suicídio, nos casos de morte iminente e se o ato for

movido por compaixão, ou seja, se tiver como suporte a necessidade de se evitar

um sofrimento prolongado e desarrazoado do paciente em fase terminal138.

136 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 84. 137 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 37. 138 SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direito de morrer: eutanásia, suicídio assistido. 2 ed. Belo

Horizonte: Del Rey, 2005. p. 65.

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Todavia, é certo que a lei japonesa penaliza o ato de auxílio ao

suicídio de pessoas que não se encontrem em estado irreversível de doença e com

intenso sofrimento, não sendo, pois, o caso de admitir-se a morte por questões de

dignidade (songenshi)139.

Colhe-se dos ensinamentos históricos que o Código Samurai,

no suicídio, incluía uma disposição para a eutanásia: o kaishakunin, era a figura do

auxiliar para a fase suicida do Samurai após o corte do abdome, quando esse golpe,

por si só, não era suficiente para provocar uma morte sem sofrimento. Competia ao

kaishakunin, portanto, nessa hipótese de sofrimento em razão do suicídio, cortar-lhe

o pescoço para evitar a intensa dor, aplicando-se o golpe derradeiro140.

Pode-se, então, por esse viés histórico oriental, equiparar o

suicídio dos samurais, que ocorriam para evitar que caíssem em mãos de inimigos e

experimentassem uma morte inevitável com duradouro e cruel período de

sofrimento, situação que os desonrava, fazendo com que não mais se tornassem

ativos e úteis para a sociedade como um todo. Essa equiparação se dá em razão da

defensável tese de que a eutanásia também visa evitar uma morte que é iminente e

que ocorrerá com intenso e desnecessário sofrimento ao ser humano.

Para os budistas, portanto, a diferença básica entre o suicídio e

a eutanásia reside no fato do estado de consciência, porquanto, salvo tenha deixado

texto expresso consentindo a morte, não há como se saber se o paciente admitia a

antecipação da morte. No entanto, ficando claro que a consciência se dissociou

permanentemente do corpo, o budismo não vê razão para continuar nutrindo ou

estimulando o corpo, que não é mais uma pessoa141.

O islamismo, cuja tradução literal poderia representar

“submissão à vontade de deus” representa uma das grandes religiões mundiais que

surgiu após o cristianismo (Maomé, 570-632 d.C.), calculando-se que seus

139 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 235. 140 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 235. 141 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 229-230.

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seguidores alcancem cerca de um bilhão de pessoas, ou seja, quase um quinto da

humanidade142.

O pensamento islâmico sobre a eutanásia pode ser traduzido

pelo Código Islâmico de Ética Médica, aprovado na 1ª Conferência Internacional de

Medicina Islâmica em 1981, que discorre sobre o perfil do profissional médico,

enfatizando a obrigatoriedade ética de proteger a vida, dom de Deus, em qualquer

estágio ou circunstância.

Assim, para o mundo islâmico, cumpre ao médico resguardar a

vida, defendendo-a com a maior habilidade técnica que possuir, não sendo

admissível a eutanásia, ainda que movida por compaixão, diante de uma morte

iminente, para o fim de evitar um sofrimento intenso.

Pessini, discorrendo sobre o pensamento do islamismo,

destaca:

[...] Se é cientificamente certo que a vida não pode ser restaurada, então é uma futilidade manter o paciente em estado vegetativo utilizando-se de medidas heróicas de animação ou preservá-lo por congelamento ou outros métodos artificiais. O médico tem como objetivo manter o processo da vida e não o processo do morrer. Em qualquer caso, ele não tomará nenhuma medida para abreviar a vida do paciente. ...Em relação ao paciente incurável, o médico fará o melhor para cuidar da vida, prestará bons cuidados, apoio moral e procurará livrar o paciente da dor e da aflição143.

Portanto, para o mundo islâmico, tendo em conta a concepção

sagrada da vida, e verificando-se como inexistente a autonomia do paciente ou de

seus familiares, mesmo nos casos de doenças terminais e intenso sofrimento, a

eutanásia é rejeitada, assim como o é o suicídio. Não são admitidas práticas para

abreviar a vida, e se não for possível restaurá-la será inútil manter a pessoa em

estado vegetativo através de medidas drásticas144.

142 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 239. 143 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 242. 144 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 236.

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Por sua vez, o judaísmo fundamenta seus ensinamentos em

rigorosas regras morais de conduta para seus adeptos, fundadas em princípios

tradicionais que sofreram, com o tempo, transformações do mundo moderno145.

De fato, a tradição hebraica condena e inadmite a eutanásia

ativa, por ser igualmente ferrenha defensora do direito à vida. No entanto, sabe

distinguir e igualmente reprova a prorrogação indefinida do sofrimento e da agonia

do paciente já desenganado pela ciência médica, e cuja morte é apenas uma

questão de tempo146.

Freire de Sá, citando a Dra. Elisabeth Kluber-Ross, destaca os

ensinamentos do Rabino Immanuel Jakobovits, acerca do real entendimento do

judaísmo sobre o tema morte e eutanásia:

A Le judaica autoriza, talvez até exija, o afastamento de qualquer fator estranho ao próprio paciente ou não – que possa artificialmente retardar sua partida na fase final. Pode-se argumentar que tal modificação implica a legalidade de apressar a morte de um doente incurável em agonia aguda retirando-lhe os medicamentos que lhe mantêm a continuidade da vida por meios artificiais – caso também considerado na filosofia moral católica. Nossas fontes apenas se referem a caos nos quais é esperada morte iminente; portando, não está completamente claro se tolerariam esta moderada forma de eutanásia – embora isto não possa ser excluído147.

Nesse sentido, prossegue a autora:

Cada caso deve ser julgado independentemente, levando em conta julgamentos de objetivos médicos e considerações subjetivas sobre as condições do paciente […]. A ciência e a tecnologia que produziu já não são ‘valor livre’, desobrigado de enfrentar dilemas morais e decisões que devem orientar sua aplicação prática à situação humana. Tais julgamentos devem ser feitos dentro da estrutura de um sistema de filosofia moral que veja não só a ética situacionista imediata como também a longa fila de ramificações. A tradição judaica tem examinado longamente os princípios subjacentes em tais questões148.

145 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 243. 146 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 235. 147 SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direito de morrer: eutanásia, suicídio assistido, p. 64. 148 SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direito de morrer: eutanásia, suicídio assistido, p. 64.

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Admitem algumas, no entanto, a ortotanásia, que nada mais

representa do que a proposta de por fim à agonia, deixando que o inevitável (a

morte) ocorra com o menor dano possível ao doente.

Portanto, foi possível aferir, através desse rápido ensaio sobre

o pensamento das principais religiões do mundo acerca do tema relacionado à morte

humana e a possibilidade de ser ela antecipada nos casos de irreversibilidade da

doença e do sofrimento exagerado que essa anomalia pode causar que a hipótese

da eutanásia, notadamente a ativa, é por todas rejeitada.

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CAPÍTULO 3

A HIPÓTESE DE UMA MORTE DIGNA E A RESPONSABILIDADE PENAL DO MÉDICO NA EUTANÁSIA

3.1 UMA BREVE EXPLANAÇÃO SOBRE O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA

PESSOA HUMANA FRENTE À EUTANÁSIA

Não há dúvida de que a devida compreensão e uma

necessária reconstrução da questão ligada à responsabilidade penal da eutanásia

passa necessariamente, pela análise de aspectos constitucionais relativos ao tema.

Nessa seara, o estudo do princípio da dignidade da pessoa

humana ganha expressiva relevância. Segundo Plácido e Silva:

Dignidade: Deriva do latim dignitas (virtude, honra, consideração), em regra se entende a qualidade moral, que, possuída por uma pessoa, serve de base ao próprio respeito em que é tida. Compreende-se também como o próprio procedimento da pessoa, pelo qual se faz merecedor do conceito público. Dignidade, em sentido jurídico, também se entende como a distinção ou honraria conferida a uma pessoa, consistente em cargo ou título de alta graduação. No Direito Canônico, indica-se o beneficio ou prerrogativa decorrente de um cargo eclesiástico149.

Esse princípio está previsto em nossa Constituição Federal, em

seu artigo 1º, inciso III:

Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Direito Federal, constitui-se em Estado democrático de Direito e tem como fundamentos:

(...)

III - a dignidade da pessoa humana.

149 SILVA, de Plácido e. Vocabulário Jurídico / atualizadores: Nagib Slaibi e Gláucia Carvalho - Editora Forense. Rio de Janeiro, 2008.

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Indiscutivelmente a dignidade representa um dos princípios

norteadores de nosso sistema jurídico, balizador do Estado Democrático de Direito.

Segundo a doutrina de José Afonso Silva:

Dignidade da Pessoa Humana é um valor supremo que atraí o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida, concebido como referência constitucional unificadora de todos os direitos fundamentais [observam Gomes, Canotilho e Vital Moreira], o conceito de dignidade da pessoa humana obriga a uma densificação valorativa que tenha em conta o seu amplo sentido normativo-constitucional e não uma qualquer idéia apriorística do homem, não podendo reduzir-se o sentido da Dignidade humana à defesa dos direitos pessoais tradicionais, esquecendo-a nos casos dos direitos sociais, ou invocá-la para construir teoria do núcleo da personalidade individual, ignorando quando se trate de garantir as bases da existência humana. Daí decorre que a ordem econômica há de ter por fim assegurar a todos existência digna (art. 270), a ordem social visará a realização da justiça social (art. 193), a educação, o desenvolvimento da pessoa e seu preparo para o exercício da cidadania (art. 250) etc, não como meros enunciados formais, mas como indicadores do conteúdo normativo eficaz da dignidade da pessoa humana150.

No entanto, a dignidade humana representa muito mais do que

um princípio constitucional, pois impõe às esferas governamentais um dever de

atuação para que sua previsão ultrapasse o abstratismo e alcance resultados aos

destinatários, é saber, o próprio ser humano.

O filósofo Kant descreveu dignidade como algo em que não se

poderia aferir qualquer preço, ou não pudesse ser trocado por algo semelhante. A

dignidade humana para Kant reflete na lógica de ser a pessoa essencialmente

moral151.

A qualidade da dignidade humana faz da pessoa um ser

absolutamente integral, não sendo algo que se possa mensurar ou buscar

equivalência, nem mesmo aferir se a de um indivíduo é superior a do outro.

150 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 17. ed. São Paulo: Malheiros,

2000. p. 109. 151 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 144.

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Definida em breve resumo a conceituação do princípio da

dignidade da pessoa humana, torna-se necessário, em razão do tema do presente

estudo dizer respeito ao direito à morte digna, correlacioná-lo ao próprio direito à

vida, ou à obrigação do Estado de proteger esse bem jurídico, previsto no art. 5º,

caput, da Carta Magna:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes.

À vida, como direito assegurado, corresponde o direito à

qualidade desse “viver”, ou seja, um “viver” com dignidade. Ora, se um indivíduo

alcança a amarga etapa de não mais experimentar o doce sabor de viver

dignamente, porque não lhe resta mais forças, experimenta dor e sofrimento, e a

ciência médica garante que não há expectativas de que a vida sobreviverá à

doença, parece estar lançado o desafio no sentido de que não será digna a

existência nessas condições152.

O que se lança para discutir, então, diz respeito à

possibilidade de se garantir a dignidade ao ser humano naquele que é,

possivelmente, o mais triste momento de sua vida. No entanto, como visto, a

dignidade é atributo inerente, inalienável e incondicional do ser humano, devendo

ser preservada em todos, sem exceção, em todos os momentos em que ainda existir

vida.

Renato Lima Charnaux Sertã, exemplifica, citando um caso

ocorrido na justiça Norte Americana, sobre a hipótese de aplicação do princípio da

dignidade da pessoa humana, por ocasião da hipótese de eutanásia.

[…] Parece-nos a esta altura que sem que se necessite tomar partido definitivo em prol da legalização ou não da eutanásia, deve-se na realidade brasileira, utilizar os valores existentes na sociedade e os

152 PESSINI, Léo. Eutanásia. Por que abreviar a vida, p. 244.

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princípios abrigados pelo nosso ordenamento jurídico para resolver a aflitiva questão da distanásia153.

“Dúvida não resta de que o nosso Direito proíbe a eutanásia, seja na capitulação como crime das práticas que retiram a vida de alguém, seja ainda, pelo Código de Ética Médica que, em seu artigo 66 especialmente a reprime.

“O que dizer, entrementes, quanto à distanásia?

“É de se observar que os valores acima referidos que defendem a vida humana permeiam a nossa cultura, mas ao mesmo tempo o Estado interfere na vida privada dos cidadãos em prol de interesses públicos. Se é verdade que a liberdade do ser humano é respeitada, não é menos verdade que outros valores de ordem pública são consagrados.

“Parece-nos que, em um contexto que proíbe a eutanásia, devemos preservar a vida tanto quanto possível.

“Em contrapartida, no desempenho desta preservação deve estar sempre presente a observância da dignidade da pessoa humana, como valor fundamental insculpido na Constituição de 1988.

“A propósito, portanto, dever-se-ia perguntar: seria digno manter uma paciente como Nancy Cruzan por cerca de sete anos, vivendo vegetativamente.

“Teria havido observância do princípio da proporcionalidade, que deve sempre vir de mãos dadas com o da dignidade?

“Cabe aqui recordar que o princípio da proporcionalidade, consoante já assinalado por Daniel Sarmento, compreende três vertentes, a saber, a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito.

“A decisão sobre os procedimentos terapêuticos destinados a manter o suporte artificial da vida de um paciente nas condições de Nancy Cruzan passará necessariamente por saber se, mesmo tendo em

153 CHARNAUX, Renato Lima. A distanásia e a dignidade do paciente, p. 133.

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mente a prevalência do princípio da dignidade, estariam presentes os elementos da proporcionalidade.

“Vale dizer, além de se avaliar se o tratamento ministrado responde eficazmente ao que dele se espera (adequação), deve-se verificar se as conseqüências do tratamento serão as menos gravosas possíveis, seja para o enfermo, seja para sua família ou agregados (necessidade). E ainda, há de se indagar se o benefício trazido com o tratamento será maior que o ônus imposto por ele (proporcionalidade em sentido estrito).

“Interessante notar que o caminho para se responder a essas questões, sobretudo à última – que perquire sobre a proporcionalidade em sentido estrito – percorrerá necessariamente as sendas do reconhecimento do que sejam os interesses fundamentais do homem”154.

O tema relacionado à licitude das escolhas médicas, e dos

entes próximos ao paciente em estado terminal, que experimenta considerável

sofrimento diante da doença, provoca como já visto neste trabalho, intenso e atual

debate.

Aliás, a atualidade dessa discussão relacionada à eutanásia e

o princípio da dignidade da pessoa humana, é bem ressaltado por Maria Helena

Diniz:

No século XXI é imprescindível que o legislador, o aplicador do direito e o jurista reflitam sobre esses tormentosos problemas, ante o seu conteúdo altamente axiológico, sem olvidarem que a dignidade da pessoa humana é o valor fonte legitimador de todo ordenamento jurídico. A consciência jurídica atual, diante da indiferença de um mundo tecnicista e insensível, precisa ficar atenta à maior de todas as conquistas: o respeito absoluto e irrestrito pela dignidade humana, que passa a ser um compromisso inafastável e um dos desafios para o século XXI155.

Todavia, não se desconhece que a base de sustentação da

teoria que admite a prática da eutanásia médica, seja a ativa, seja a própria

ortotanásia, passa, como já destacado, pela fundamentação da dignidade da pessoa

154 CHARNAUX, Renato Lima. A distanásia e a dignidade do paciente, p. 133-134. 155 DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 336.

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humana, como elemento maior a justificar a prática de ato que, em tese, atentaria

contra o maior e mais protegido dos bens jurídicos: a vida.

Evidentemente em casos de sofrimento humano decorrente de

doença atestada como incurável, não se sacrificará uma vida humana por

desapego a princípios de humanidade, ao contrário, serão estes princípios de

valorização da pessoa humana, esta como ente destinatário principal de todo o

ordenamento jurídico e social, que darão suporte à ação.

Em paralelo ao princípio maior da dignidade da pessoa

humana, atuam igualmente os princípios da bioética e do biodireito, além de outros,

previstos na Constituição Federal, balizados pela ponderação, proporcionalidade e

razoabilidade, serão observados por ocasião da atuação médica na eutanásia156.

No campo do biodireito, em especial quando nos defrontarmos

com a hipótese da distanásia, que como já fundamentado afronta a dignidade do ser

humano, tem-se que o princípio da dignidade humana funcionará, em sua eficácia

negativa, como impeditivo de atos que contra ele atentem.

É certo que o princípio da dignidade humana compõe o

conjunto não disponível dos direitos da pessoa humana. Competirá, pois, ao

intérprete e aplicador, no caso em estudo, aos que se envolverem no caso da

necessidade de prática da eutanásia, identificar onde e em que parte se encontra a

dignidade do doente terminal, para que possa esse patrimônio ser preservado.

Para esse resgate e efetiva aplicabilidade do princípio da

dignidade, deve-se verificar se o aludido princípio tem relação com o que se

denomina como mínimo existencial, ou seja, aquilo que o ser humano necessita, e

do qual não pode abrir mão, para não se colocar em situação degradante, em

situação que avilte por demais a sua própria existência.

Dessa forma, e porque sabidamente o Direito tem como meta

sempre estar em sintonia com a permanente evolução social, e sem que tal

represente afronta ao direito à vida, ou mesmo à integridade física, há que se

estabelecer uma séria discussão a respeito da garantia da dignidade ao ser humano

156 CHARNAUX, Renato Lima. A distanásia e a dignidade do paciente, p. 134.

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no momento de sua morte, propiciando-lhe, ou aos seus entes queridos, dentro de

critérios estabelecidos por lei, condições de decidir sobre a continuidade da vida,

quando vida mesmo já se sabe não mais existirá.

3.2 A TIPICIDADE DO CRIME DE HOMICÍDIO NA CONDUTA MÉDICA NA

EUTANÁSIA

Sabe-se que a eutanásia representa o abreviamento da vida do

ser humano que está inevitavelmente condenado em razão de enfermidade

incurável, que lhe provoca intenso sofrimento, havendo assentimento ou

consentimento da vítima ou de seus familiares.

Em nosso país a eutanásia é reprimida pelo ordenamento

Constitucional, que garante o direito à vida (art. 5º, caput), e infraconstitucional, que

igualmente disciplina a vida como o principal dos bens jurídicos a serem protegidos

pelo Estado, como se vê no art. 121, caput e parágrafo 2º, que assim prevê:

Homicídio simples

Art. 121. Matar alguém:

(...)

Homicídio qualificado

§ 2° Se o homicídio é cometido:

I - mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe;

II - por motivo fútil;

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III - com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa resultar perigo comum;

IV - à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido;

V - para assegurar a execução, a ocultação, a impunidade ou vantagem de outro crime:

Pena - reclusão, de doze a trinta anos.

De outra banda, a Lei Penal igualmente incrimina a conduta de

quem cria em outrem ou fomenta a idéia de suicídio, prestando auxílio efetivo para o

resultado, disciplinando no art. 122 do Código Penal:

Art. 122. Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça. Pena –Reclusão de dois a seis anos, se o suicídio se consuma, ou reclusão de três anos, se da tentativa de suicídio lesão corporal de natureza grave.

No entanto, estando presentes as condições previstas no

parágrafo 1º do art. 121 do Código Penal, a eutanásia poderá, eventualmente, ser

enquadrada como um homicídio privilegiado por representar relevante valor moral,

recebendo, portanto uma causa especial de diminuição de pena de um sexto e um

terço, na forma do par. 4º do art. 121, que assim prescreve:

Art. 121. […]

§ 4º. Considera-se praticado o crime no momento da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do resultado.

Nota-se que a previsão legal do homicídio privilegiado não

prevê exatamente quem seja o sujeito ativo da ação delituosa (não se trata de

homicídio próprio), razão por que se conclui que não apenas o médico, mas

qualquer um, desde que agindo sob motivo de relevante valor moral, no caso, para

interromper intenso sofrimento do doente terminal, a pedido deste ou da família,

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poderá, em tese, segundo a legislação vigente, ter sua conduta enquadrada como

homicídio privilegiado157.

Assim, o suicídio assistido é resultado da intenção e ação do

próprio enfermo, que poderá ser orientado, auxiliado material ou moralmente ou

apenas observado por terceiro, médico ou não.

Portanto, e porque em nossa legislação não há previsão

expressa, haja vista não ter vingado a proposta prevista Anteprojeto do Código de

1984, a hipótese do abrandamento da pena ficará a cargo do reconhecimento pelo

Júri Popular, e em decorrência de evolução da doutrina e da jurisprudência.

Colhe-se da exposição de motivos do Anteprojeto do Código

Penal de 1987:

O motivo que, em si mesmo, é aprovado pela moral prática como, por exemplo, a compaixão ante irremediável sofrimento da vítima (caso do homicídio eutanásico).

Ainda que a legislação penal não preveja o suicídio como

crime, é tradição da lei penal brasileira classificar a eutanásia como crime de

terceiros, seja pela indução ou instigação ao suicídio, na forma do art. 122 do

Código Penal, delito material, ou seja, que se consuma com o resultado morte ou

lesão corporal do sujeito passivo (exigindo exame de corpo de delito – art. 158 do

CPP), não admitindo tentativa ou forma culposa158.

Apura-se da doutrina que ocorreram inexitosas tentativas de se

abrandar a punição ou excluir da legislação penal a ilicitude da eutanásia. É sabido,

ainda, que o ordenamento jurídico atual não agasalha a hipótese do direito de

morrer, sendo permitido o uso de violência para impedir o suicídio, na forma do par.

3º, art. 146 do CP.

Como já dito, nossos legisladores já propuseram a

admissibilidade da eutanásia passiva dentro do ordenamento jurídico penal

157 SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direito de morrer: eutanásia, suicídio assistido, p. 128-129. 158 SÁ, Maria de Fátima Freire de. Direito de morrer: eutanásia, suicídio assistido, p. 134-135.

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brasileiro, acolhendo a hipótese da excludente de antijuridicidade do estado de

necessidade, na forma hoje prevista pelo art. 23, I, da Lei Penal Substantiva.

Tal excludente foi admitida como possibilidade de alegação

defensiva, nos casos de eutanásia passiva ou ortotanásia, pelo Anteprojeto da Parte

Especial do Código Penal de 1984, que assim previa na redação do artigo 121, §4º

do mencionado diploma:

Art. 121. [...]

§ 4º. Não constitui crime deixar de manter a vida de alguém por meio artificial se previamente atestada por dois médicos, a morte como iminente e inevitável, e desde que haja consentimento do doente ou, na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, conjugue ou irmão.

Por outro lado, o mesmo Anteprojeto de 1984 previa no par. 3º

do art. 121, no que toca à eutanásia ativa, um tipo penal com pena de 2 a 5 de

reclusão, portanto, inferior ao do homicídio simples, desde que o agente fosse

cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente, irmão ou pessoa ligada por

estreitos laços de afeição à vítima, e, ainda, que tivesse agido por compaixão a

pedido da vítima, sendo esta maior e imputável, tudo havendo doença grave em

estágio terminal devidamente atestada, experimentando a vítima imenso sofrimento

físico.

Houve também o empenho da Comissão de Juristas que atuou

na formulação de proposta de modificação do Código Penal, apresentando texto em

1993 que incluiu a previsão da eutanásia no art. 121 e, ainda, acrescentou nota

explicativa classificando a eutanásia passiva e a ortotanásia159.

Assim previu o texto referido, criando o parágrafo 6º ao art.

121, com o seguinte teor:

Art. 121. […]

159 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 45.

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§ 6º Não constitui crime a conduta de médico que omite ou interrompe terapia que mantém artificialmente a vida de pessoa, vítima de enfermidade grave e que, de acordo com o conhecimento médico atual, perdeu irremediavelmente a consciência ou nunca chegará a adquiri-la. A omissão ou interrupção da terapia devem ser precedidas de atestação, por dois médicos, da iminência e inevitabilidade da morte, do consentimento expresso do cônjuge, do companheiro em união estável, ou na falta, sucessivamente do ascendente do descendente ou do irmão e de autorização judicial. Presume-se concedida a autorização, sem feita imediata conclusão dos autos ao juiz, com as condições exigidas, o pedido não for por ele despachado no prazo de três dias.

Caminhando mais à frente no histórico legislativo acerca do

tema principal deste trabalho, qual seja, da necessidade de se distinguir e de haver

tratamento diferenciado, sob o ponto de vista jurídico penal, entre a atuação

homicida típica prevista na lei penal e a eutanásia, destaca-se o estudo da

Comissão de Juristas criada pelo Ministério da Justiça, através da Portaria n. 1.265,

de 16.12.1997, abordou com ainda maior especificidade o tema da eutanásia, em

especial prevendo a questão da ortotanásia160.

Nesse recente estudo, há clara separação entre a figura típica

do homicídio e a eutanásia, que encontra previsão no art. 121, parágrafo 3º, como

homicídio privilegiado, cujo nome jurídico é “eutanásia”. A pena para esse tipo penal

abrandado, segundo o Anteprojeto, de 3 a 6 anos de reclusão, é efetivamente menor

do que o tipo penal normal de homicídio (este, de 6 a 20 anos). Já no que diz

respeito à ortotanásia, o estudo prevê de forma expressa como causa de exclusão

de ilicitude no parágrafo 4º, do art. 121, do já mencionado Anteprojeto.

Tal documento de proposta fez constar a seguinte redação ao

parágrafo 3º do art. 121:

Art. 121. […]

§ 3º Se o autor do crime agiu por compaixão, a pedido da vítima imputável e maior, para abreviar-lhe sofrimento físico insuportável, em razão de doença grave: Pena – Reclusão de três a seis anos.

160 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 45.

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Já o parágrafo 4º foi redigido com a seguinte proposta

legislativa:

Art. 121. […]

§ 4º Não constitui crime deixar de manter a vida de alguém por meio artificial, se previamente atestada por dois médicos, morte como iminente e inevitável, e desde que haja consentimento do paciente, ou na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge, companheiro ou irmão.

Observa-se que nos termos previstos na proposta, o parágrafo

3º é suficientemente claro ao prever tão somente a hipótese do sofrimento físico

como causa objetiva autorizadora do enquadramento legal benevolente, afastando-

se, por isso, a hipótese de sofrimento psíquico de caráter insuportável, situação que

por certo deve ser diagnosticada por profissional médico. Por fim, no que se refere à

expressa autorização da eutanásia no parágrafo 4º, nota-se que não há previsão de

preleção, ou seja, de ordem de manifestação daqueles que, no lugar do enfermo,

porque impossibilitado de se manifestar, deverão apor sua autorização.

Ainda no campo legislativo, destaca-se a existência de Lei no

Estado de São Paulo (art. 2º, XXIII, Lei n. 10.241, de 1999), que possibilita aos

usuários dos serviços de saúde recusar tratamento doloroso ou extravagante com o

fim de prorrogar a vida do paciente.

Art. 2º - São direitos dos usuários dos serviços de saúde no Estado de São Paulo:

XXIII - recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida;

Definida a tipificação da conduta do homicídio, e os avanços

que se tem tentado no campo legislativo, conclui-se ser viva a corrente que defende

uma nova roupagem ao tema eutanásia, no que diz respeito à responsabilidade

penal, prova disso foram e são as seguidas tentativas, no campo do direito pátrio, de

se aceitar, ou ao menos diferenciar, a eutanásia em relação ao crime comum de

homicídio.

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Essa tendência, vista no campo legislativo, ao menos das

propostas de alterações do Código Penal, reflete, por óbvio, uma tendência

igualmente verificada no imaginário social, pois é sabido também que desse campo,

ou seja, dos sentimentos e anseios da sociedade, provém os fundamentos para a

alteração das leis que regulam o convívio social.

Igual movimento experimentam e já experimentaram outros

países, ditos com sociedades mais contemporâneas, introduzindo em seus sistemas

legais a possibilidade da eutanásia, ou, ao menos, amenizando o rigor das punições,

diferenciando a tipificação da conduta daquela de homicídio. São exemplos desse

movimento, entre outros, Portugal, Alemanha, Áustria, sendo conveniente mencionar

também o muito ousado anteprojeto do Código Penal do Equador161.

É sabido por todos o valor dado à vida humana, bem jurídico

cujo domínio transcende os limites da individualidade, fazendo vigir, então, o

princípio da indisponibilidade da vida, é dizer, não compete ao indivíduo,

isoladamente, a decisão por manter ou não a vida, seja de outrem, seja de si

próprio.

Todavia, tal situação tem se modificado, como se modificam

com freqüência os fenômenos sociais. No mundo atual observa-se o nascimento de

uma nova concepção, que enxerga o bem jurídico vida de uma maneira um pouco

diferente, sem que tal represente, ao menos é o que se indica, um retrocesso a um

mundo menos humano ou sensível.

Assim, e tendo em conta o que já foi dito, quanto à existência

de tentativas de modificação do sistema legal penal relativo à responsabilidade

médica na eutanásia, a modificação trilha o caminho de se reconhecer a liberdade

de disposição, pelo próprio indivíduo, do bem jurídico vida, tendo em conta a

situação de indignidade que se encontra quando a doença incurável transforma os

seus derradeiros momentos de existência em momentos de profundo desgosto e

sofrimento.

161 CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Eutanásia e Ortotanásia, p. 37-38.

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3.3 UMA PROPOSTA DE NOVA DEFINIÇÃO JURÍDICO PENAL DA EUTANÁSIA

Como visto no tópico anterior, é nítida a tendência legislativa

no sentido de admitir a hipótese da eutanásia, ou de minorar a sanção Estatal tendo

em conta a especificação da conduta, pois não se está diante de uma ação que

coloca fim à vida humana de forma injustificada. Evidentemente, há que se

estabelecer uma forma diferenciada de tratamento, em respeito à dignidade humana

no ponto de vista da dignidade do direito de morrer.

O homem, ser racional e que domina o habitat humano, deve

ter a autonomia de decidir os seus destinos em todos os momentos, inclusive

naqueles mais dolorosos, onde aguarda sua morte já iminente, devendo, por isso,

aguardá-la de maneira digna.

O que o direito em geral protege, seja no campo interno, seja

no externo (Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, art. 6º, e Convenção

Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San Jose -, art. 4º) quer enfatizar que

o direito à vida é inerente à pessoa humana, e não pode ser retirado de forma

arbitrária.

No entanto, seja na ortotanásia, seja na eutanásia indireta, não

se pode falar de retirada arbitrária da vida, pois evidente a motivação que leva em

conta a dignidade da pessoa. Nesse sentido, para que a morte não seja arbitrária,

seria possível estabelecer condições ao exercício da eutanásia, como a existência

de sofrimento irremediável e insuportável; que seja o paciente informado de seu

estado terminal e das perspectivas do tratamento; que exista pedido expresso e

voluntário do doente em estado lúcido e, ainda, a manifestação de mais de um

médico especialista na doença.

Necessário, para o ponto de partida da fundamentação que

defende uma nova concepção jurídico penal para a eutanásia dentro do sistema

jurídico nacional, em especial no que toca à tipicidade da conduta com vistas à

relevância da omissão, na forma do art. 12, parágrafo 2º, do CP, que se estabeleça

uma distinção entre os conceitos de eutanásia ativa, eutanásia passiva e

ortotanásia.

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É certo que na eutanásia, seja ela ativa ou passiva, o resultado

morte ocorre por ação ou omissão do agente, ou seja, poderia não causar ou

poderia impedir o resultado. Já na ortotanásia, o agente apenas se abstém de

causar sofrimento à vítima, nada podendo fazer em relação à mote. Por sua vez, a

eutanásia indireta ocorre quando não há alternativas, salvo remédios para sedar o

doente, e a morte ocorre pela cessação dessa medicação que não tem como

finalidade a cura162.

Dessa forma, tanto na ortotanásia, como na eutanásia indireta,

no que diz respeito ao resultado morte, o agente nada pode fazer, ou seja, não há

como evitar a morte. Tal omissão, nessa circunstância, não tem relevância penal,

pois nossa legislação penal não aceita a responsabilidade objetiva.

No aspecto da causalidade (art. 13 do CP), tendo em conta a

teoria adotada por nossa legislação (conditio sine qua non), não há como se

estabelecer relação de causalidade entre a conduta e o resultado nos casos de

ortotanásia e eutanásia indireta, pois a supressão da omissão (ortotanásia) ou da

ação (eutanásia indireta) em nada afetam o desfecho fatal da moléstia no aspecto

da reprovabilidade penal163.

Ocorre que nas hipóteses da ortotanásia e da eutanásia

indireta a alteração do curso causal vem em benefício do enfermo em estágio

terminal, pois a ação enaltece um bem jurídico constitucionalmente relevante, qual

seja, o da dignidade da pessoa humana, pois se está diante do quadro de um ser

humano experimentando desnecessário sofrimento. Por isso, a conduta não pode

ser penalmente relevante à medida em que é positiva ao doente terminal164.

Defendendo a hipótese de alteração legislativa para a

concepção de uma diferente responsabilização penal da conduta relativa à

eutanásia, colhe-se a posição do conceituado Prof. Luiz Flávio Gomes:

Na nossa opinião, a eutanásia, qualquer que seja a modalidade (incluindo-se aí a morte assistida), desde que esgotados todos os recursos terapêuticos e cercada de regramentos detalhados e

162 GOMES, Luiz Flávio. A legalização da eutanásia no Brasil, p. 40-41. 163 GOMES, Luiz Flávio. A legalização da eutanásia no Brasil, p. 40-41. 164 GOMES, Luiz Flávio. A legalização da eutanásia no Brasil, p. 40-41.

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razoáveis, não pode ser concebida como um fato punível, porque não é um ato contra a dignidade humana senão, todo o contrário, em favor dela. Pensar de modo diferente levaria ao seguinte paradoxo: quem não padece nenhum sofrimento e tenta dar cabo a sua vida (tentativa de suicídio) não é penalmente punível; seria passível de sanção o ato de pôr em prática, não arbitrariamente, o pedido de morte de quem, em condições terminais, já não suporta tanto sofrimento físico e/ou mental 165.

E continua o catedrático:

Já é hora de passar a limpo o emaranhado de hipocrisias, paradoxos, obscuridades e preconceitos que estão em torno da questão da eutanásia que, em última análise, envolve a própria liberdade humana, tão restringida pelas barbáries históricas que nada mais exprimem que a volúpia de dominar o homem para sujeitá-lo escravocratamente a crenças ilógicas e, muitas vezes, irracionais 166.

Portanto, seja pelo aspecto, seja pelo viés do princípio da

dignidade da pessoa humana, seja em decorrência dos princípios pedagógicos e de

normatização do convívio social, é certo que se reconheça a possibilidade de um

novo e diferente enquadramento, no campo penal, da eutanásia.

Não há dúvida que outros são os tempos, e que os avanços

sociais e tecnológicos permitem atualmente uma nova finalidade de vida e uma

prorrogação, muitas vezes artificial e às custas de sofrimento e dor, da vida.

Assim, especialmente para esses casos em que a vida já não

mais é exercida em sua plenitude, porque do contrário, ao invés do prazer, o ser

humano cuja morte já se tem como certa, experimenta a dor e o sofrimento, é

necessário repensar o papel do Estado na questão da prestação do bem jurídico

vida e de exercício do jus puniendi. Ora, dadas as condições já referidas, não é

proporcional e razoável que o profissional médico seja enquadrado como criminoso

165 GOMES, Luiz Flávio. A legalização da eutanásia no Brasil. In Revista Prática Jurídica. São

Paulo: Revista dos Tribunais, ano I, n.º 1, 30 de abril de 2002, p. 40-41. 166 GOMES, Luiz Flávio. A legalização da eutanásia no Brasil, p. 40-41.

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comum, quando, na verdade, sua intenção não e causar mal, mas sim interromper

esse sofrimento desproporcional.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com o desenvolvimento do presente estudo foi possível

constatar o quão polêmico é o tema eutanásia, em especial por representar, em

razões práticas, a antecipação de um evento não desejado e até temido pelo ser

humano, como é a morte. Por certo, o ser humano, de um modo geral, não está

preparado e não aceita sua condição de mortal, também por isso continua resistindo

à idéia de se conceber como legal, ou até abrandado do ponto de vista da pena, o

ato médico da eutanásia.

Assim, apesar de não representar prática recente, a eutanásia

encontrou e ainda encontra resistência para sua aceitabilidade. Ao longo do tempo,

a influência exercida pelas religiões também aumentou a afirmação da

indisponibilidade da vida que, dada ao homem por Deus, só poderia ser retirada por

sua vontade.

Tratando-se de assunto que envolve o direito à vida,

patrimônio considerado como sagrado do ser humano civilizado e que também é o

primeiro e principal bem jurídico tutelado pela lei penal brasileira, muitos são os

desafios a serem enfrentados para uma abordagem que pretenda levantar tal tipo de

discussão, ademais sabendo-se que opiniões favoráveis e contrárias estarão

sempre presentes e com paixão.

Entre as variantes relacionadas ao tema, não é possível se

olvidar também da influência da moral, sobretudo da moral aplicada que representa

a ética defendida por determinada sociedade, tendo em conta os valores por ela

defendidos, ou seja, da ética vivida por esse grupo. É que uma nova concepção de

eutanásia representa igualmente uma nova concepção de valor do direito de dispor

da vida, bem supremo cuja disponibilidade é tida como absolutamente indisponível,

seja qual for a circunstância.

Portanto em tal evolução de pensamento apurou-se o

nascimento de uma nova ética de agir, ou seja, um outro padrão social de

comportamento humano que vem ganhando espaço no mundo contemporâneo,

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sobretudo nas sociedades consideradas como mais avançadas ou liberais. Essa

transformação trouxe conseqüências no campo legislativo, com a edição de leis que

abrandaram a pena ou até admitiram a atipicidade da conduta médica eutanásica.

O presente trabalho também propiciou o entendimento de que

a referida transformação social começa a admitir a possibilidade da morte

denominada como digna, porque preserva, em relação ao doente terminal que

vivencia intenso sofrimento, a dignidade de morrer em paz e sem sofrer em demasia.

Essa condição é fundamentada no Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa

Humana, princípio esse que serve de base ao Estado Democrático de Direito.

Desse modo, qualquer preâmbulo de fundamentação que

pretenda rediscutir as conseqüências jurídicas da eutanásia passa,

necessariamente, por um estudo relacionado à dignidade do ser humano, do quanto

esse princípio base do ordenamento jurídico autoriza o entendimento de que

também a morte sem sofrimento representa o “viver” com dignidade, ao menos até

os últimos instantes em que esse “viver” é possível.

No campo do direito interno, constatou-se que o Direito Penal

nacional não reconhece qualquer tipo de eutanásia, disciplinando em seus artigos

121 e 122 do Código Penal que o ato de quem de qualquer modo põe fim à vida de

seu semelhante, é típico, antijurídico e culpável, merecendo por isso a sanção

Estatal. No entanto, verificou-se também que incursões no campo dos projetos

legislativos tem sido verificadas, no rumo da diferenciação da conduta criminosa,

com abrandamento da pena, para os casos de eutanásia passiva e ortotanásia, o

que significa que o direito pátrio, ao menos em fases embrionárias, tem esboçado

seguir o antes falado movimento de outras sociedades mais liberais.

Verificou-se que o compromisso da ciência com a qualidade

de vida do ser humano, e o evidente progresso alcançado pelos novos tratamentos

encontra no agir médico, frente aos casos terminais, um amplo debate sobre quais

os meios a serem empregados para prolongar a vida, e até que ponto essa

prorrogação vai ao encontro dos interesses daquele que sofre esse processo: o

próprio paciente e seus familiares, porquanto pode-se efetivamente questionar se

esse prolongamento infirma a preservação da dignidade do ser.

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Assim, tendo como base o Princípio da Dignidade da Pessoa

Humana e o Princípio da Autonomia, é possível estabelecer-se em níveis de

aceitabilidade uma discussão que possibilite a construção de definições e critérios

legais relativos à eutanásia, debatendo pontos de vistas culturais, filosóficos,

médicos e jurídicos no atual contexto legal brasileiro e estrangeiro.

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