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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
FACULDADE DE CIÊNCIAS MÉDICAS
JANAÍNA ALVES DA SILVEIRA HALLAIS
SOCIABILIZANDO NA PRÁTICA: AS FORMAS DE SOCIABILIDADE NOS GRUPOS
DE PRÁTICAS CORPORAIS NA ATENÇÃO PRIMÁRIA EM CAMPINAS/SP.
CAMPINAS
2016
JANAÍNA ALVES DA SILVEIRA HALLAIS
SOCIABILIZANDO NA PRÁTICA: AS FORMAS DE SOCIABILIDADE NOS GRUPOS
DE PRÁTICAS CORPORAIS NA ATENÇÃO PRIMÁRIA EM CAMPINAS/SP.
ORIENTADOR: PROF. DR. NELSON FILICE DE BARROS
CAMPINAS
2016
Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências Médicas da
Universidade Estadual de Campinas como parte dos requisitos
exigidos para a obtenção do título de Mestra em Saúde Coletiva,
área de concentração em Ciências Sociais em Saúde.
.
ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA POR JANAÍNA ALVES DA SILVEIRA HALLAIS E ORIENTADA PELO PROF. DR. NELSON FILICE DE BARROS.
FICHA CATALOGRÁFICA
BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE MESTRADO
JANAÍNA ALVES DA SILVEIRA HALLAIS
ORIENTADOR: NELSON FILICE DE BARROS
MEMBROS:
1. PROF. DR. NELSON FILICE DE BARROS _____________________________________________
2. PROFA. DRA. YARA MARIA DE CARVALHO ____________________________________________
3. PROF. DR. JULIANA LUPORINI DO NASCIMENTO _____________________________________
Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas
da Universidade Estadual de Campinas.
A ata de defesa com as respectivas assinaturas dos membros da banca examinadora
encontra-se no processo de vida acadêmica do aluno.
Data: 24/02/2016
Aos meus pais, que estão comigo desde sempre.
E ao Hugo, que agora segue ao meu lado.
AGRADECIMENTOS
À FAPESP pela concessão da bolsa de mestrado, que viabilizou a
dedicação exclusiva a essa pesquisa.
Ao querido Nelson, orientador zeloso, pelas leituras atentas, pela
sensibilidade e por seu apoio e inspiração na minha caminhada acadêmica, que só
está começando.
Aos colegas e funcionários do Programa de Pós-Graduação em Saúde
Coletiva pelo convívio e apoio constante.
Aos meus pais e meu irmão, pelo amor incondicional e por me iluminarem
e me guiarem em minha jornada, estando sempre ao meu lado apesar da distância
espacial que nos separa.
Ao Hugo, que vivenciou de perto todas as etapas do mestrado,
compartilhando comigo as incertezas, as angústias, as conquistas e as alegrias,
sempre me apoiando com dedicação, amor e amizade.
Aos meus sogros, Nailto e Atsuko, que me acolhem, não só em sua casa,
mas em seus corações.
Às queridas Andrea, Bianca, Pamela, Renata e aos queridos Octávio e
Marlon, pela amizade e pela disposição em sempre contribuir com seus
conhecimentos.
Aos estimados companheiros e companheiras do LAPACIS, com quem
convivi e muito aprendi ao longo desses três anos.
Finalmente, agradeço afetuosamente a cada pessoa que participou da
pesquisa de campo pelos encontros, pelo carinho, pela acolhida e pela troca de
conhecimento e afeto que fortaleceu e deu vida à pesquisa. Sou grata
principalmente porque fizeram que um processo tão rígido, e às vezes doloroso, se
transformasse em um momento suave, intenso e recheado de carinho.
RESUMO
Em Campinas/SP, as práticas corporais foram institucionalizadas na atenção primária para a prevenção e tratamento de dores e patologias. De caráter coletivo, essas atividades de saúde cumprem um propósito terapêutico, mas, também, propiciam encontro e interação entre os praticantes. Nestes termos, é possível inquirir as práticas corporais em uma perspectiva que empreenda uma reflexão sobre a construção de novas sociabilidades. A pesquisa foi realizada através de metodologia qualitativa, com o recurso da observação participante e de entrevistas como técnicas de coleta de dados. Frequentei como pesquisadora-praticante dois grupos de Movimento Vital Expressivo e de Lian Gong semanalmente e as entrevistas foram realizadas com profissionais de saúde (coordenadores dos serviços e instrutores das práticas investigadas) e usuários de duas Unidades Básicas de Saúde. O objetivo desta pesquisa é investigar as práticas integrativas corporais institucionalizadas na rede de atenção primária do Sistema Único de Saúde em Campinas, compreendendo-as não apenas como produtoras de saúde, mas enquanto facilitadoras de sociabilidade. De acordo com a análise dos dados empíricos da pesquisa, verificamos que a participação no grupo de práticas corporais contribui para um processo de produção de saúde (individual e coletiva), de cuidado (consigo e com o outro), de construção de laços de amizade, de conhecimento, de compartilhamento de saberes, descobertas, transformações e engajamento social através da interação e convivência entre praticantes e instrutores. Essas relações são desinstitucionalizadas e estão orientadas pela solidariedade e pela reciprocidade, incentivando o apoio social, uma potente ferramenta que proporciona acolhimento e o rompimento com o isolamento social, estimulando a autonomia e o empoderamento dos praticantes. Além disso, as práticas corporais estimulam a apropriação das práticas corporais pelos atores sociais, permitindo-lhes um contato mais próximo com o próprio corpo e que atribuam sentidos, percepções e significados de acordo com suas vivências e experiências com as atividades realizadas. Sendo assim, o Lian Gong e o Movimento Vital Expressivo são práticas corporais com grande potência na atenção primária em saúde, se orientadas pelo princípio da convivialidade e para a produção de encontros e cuidado emancipador. No entanto, observou-se sua identidade com o imaginário biomédico, reforçando rótulos e comportamentos associados ao discurso do risco. Apesar disso, por se estabelecerem como fenômeno social e serem constituídas por uma pluralidade de significados, valores, funções e sentidos, essas práticas não se encerram no caráter utilitarista da racionalidade biomédica, apresentando, ao mesmo tempo, aspectos terapêuticos, de sociabilidade e de atividade física, por exemplo.
Palavras-chave: Terapias Complementares. Terapias Mente-Corpo. Atenção
Primária à Saúde. Apoio Social. Rede Social. Relações Interpessoais. Grupo Social.
ABSTRACT
In Campinas, bodily practices were institutionalized in primary health care for the prevention and treatment of pains and diseases. Of a collective nature, these health activities meet a therapeutic purpose but, also, provide meeting and interaction between practitioners. In these terms, you can inquire bodily practices in a perspective that embark on a reflection on the construction of new social sociabilitys. The survey was conducted using qualitative methodology, with the use of participant observation and interviews as data collection techniques. I went as a researcher-practitioner two groups of Movimento Vital Expressivo and Lian Gong weekly and the interviews were conducted with health professionals (engineers and instructors investigated practices) and users of two basic health units. The objective of this research is to investigate the integrative body practices institutionalized in primary care network of Sistema Único de Saúde in Campinas, understanding them not only as producers, but as facilitators of sociability. According to the analysis of empirical data of the survey, we see that the participation in the Group of bodily practices contributes to a process of production of health (individual and collective), careful (and with each other), to build bonds of friendship, knowledge, sharing of knowledge, discoveries, transformations and social engagement through interaction and coexistence among practitioners and instructors. These relationships are desinstitucionalizadas and are guided by solidarity and reciprocity, encouraging social support, a powerful tool that provides host and the breakup with social isolation, encourage the autonomy and empowerment of practitioners. In addition, bodily practices encourage ownership of bodily practices by social actors, allowing them a closer contact with the own body and assign meanings, perceptions and meanings according to their experiences with the activities carried out. Thus, the Lian Gong and the Movement Vital Expressive are bodily practices with great power on primary health care, if guided by the principle of user-friendliness and for producing meetings and careful emancipator. However, if your identity with biomedical imagery, reinforcing labels and associated behaviors to the speech of the risk. Nevertheless, by establishing themselves as a social phenomenon and are constituted by a plurality of meanings, values, functions and senses, these practices do not enclose in the utilitarian character of biomedical rationality, showing at the same time, therapeutic aspects of sociability and physical activity, for example. Keywords: Complementary Therapies. Mind-Body Therapies. Primary Health Care. Social Support. Social Networking. Interpersonal Relations. Social Group.
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 - Cronograma do trabalho de campo ..................................................................................... 30
Tabela 2 - Entrevistas realizadas ........................................................................................................... 30
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Modelo de cuidado das práticas corporais .......................................................................... 76
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO .................................................................................................... 12
Estrutura da dissertação ........................................................................................ 14
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 16
As práticas corporais na Atenção Primária em Saúde ........................................ 16
Lian Gong em 18 Terapias (LG) ............................................................................. 19
Movimento Vital Expressivo (MVE) ........................................................................ 21
Práticas Corporais e Sociabilidade ....................................................................... 23
OBJETIVOS .............................................................................................................. 26
METODOLOGIA ....................................................................................................... 27
CAPÍTULO 1 – As Práticas Corporais: descrição densa e construção de um
modelo de cuidado .................................................................................................. 32
Movimento Vital Expressivo no Centro de Saúde I .............................................. 33
Movimento Vital Expressivo Centro de Saúde II .................................................. 43
Lian Gong no Centro de Saúde I ............................................................................ 55
Lian Gong no Centro de Saúde II ........................................................................... 67
Práticas Corporais e o Modelo de Cuidado de Intersociabilidades .................... 75
CAPITULO 2 – Os sentidos e significados da sociabilidade ............................... 88
Sociabilidade como forma de desenvolver apoio social ..................................... 88
Sociabilidade como forma de criar vínculos entre praticantes e instrutores .... 93
Sociabilidade e participação nas atividades de lazer extra-prática .................... 98
Considerações Finais ........................................................................................... 102
CAPITULO 3 – Os sentidos e significados das mudanças físicas, psíquicas e
sociais com a prática de Lian Gong ou Movimento Vital Expressivo .............. 105
Os sentidos e significados das mudanças ......................................................... 105
Considerações finais ............................................................................................ 114
CONCLUSÃO ......................................................................................................... 117
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 120
APÊNDICES ........................................................................................................... 126
Apêndice A – Caracterização dos entrevistados ................................................ 126
Movimento Vital Expressivo CS I ......................................................................... 126
Movimento Vital Expressivo CS II ........................................................................ 127
Lian Gong CS I ....................................................................................................... 128
Lian Gong CS II ...................................................................................................... 129
Profissionais CS I .................................................................................................. 130
Profissionais CS II ................................................................................................. 130
Apêndice B – Roteiro de entrevista (praticantes) ............................................... 131
Apêndice C – Roteiro de entrevista (instrutores/profissionais de saúde) ....... 132
Apêndice D – Roteiro de entrevista (coordenadores) ........................................ 133
ANEXOS ................................................................................................................. 134
Anexo A – Autorização da Secretaria Municipal de Campinas ......................... 134
Anexo B – Parecer do Comitê de Ética em Pesquisa – FCM/UNICAMP (página 1
de 3) ........................................................................................................................ 135
Parecer do Comitê de Ética em Pesquisa – FCM/UNICAMP (página 2 de 3) .... 136
Parecer do Comitê de Ética em Pesquisa – FCM/UNICAMP (página 3 de 3) .... 137
Anexo C – Cartão de Controle de Hipertensão/Diabetes personalizado MVE CS I
138
Anexo D – Narrativa: “Movimento com João”. Autora: Claudelina Pereira da
Silveira, praticante de MVE do CS I. .................................................................... 139
Anexo E– Narrativa “9º Aniversário do Grupo de Lian Gong” (frente). Autora:
Miriam Brasilino de Carvalho Miatto, praticante de LG e MVE do CS I. ........... 140
Anexo E– Narrativa “9º Aniversário do Grupo de Lian Gong” (verso). Autora:
Miriam Brasilino de Carvalho Miatto, praticante de LG e MVE do CS I. ........... 141
Anexo F – Narrativa “Movimento Vital Expressivo” (frente). Autora: Miriam
Brasilino de Carvalho Miatto, praticante de LG e MVE do CS I. ........................ 142
Anexo F – Narrativa “Movimento Vital Expressivo” (verso). Autora: Miriam
Brasilino de Carvalho Miatto, praticante de LG e MVE do CS I. ........................ 143
Anexo G – Nota de Esclarecimento Centro de Saúde I ...................................... 144
12
APRESENTAÇÃO
Como cientista social, sempre tive interesse pela temática da
sociabilidade, conceito trabalhado principalmente pelo sociólogo Georg Simmel no
começo do século XX. Em 2011, quando pratiquei Lian Gong pela primeira vez, eu
observei a interação entre o grupo, as pessoas chegando mais cedo para conversar,
cumprimentando uns aos outros com muita cordialidade, perguntando sobre a
família e até mesmo marcando encontros fora do horário da prática corporal. Era
notável em suas falas a ênfase não apenas na melhora da condição física e de
saúde, mas, sobretudo na possibilidade de estar junto, nas relações estabelecidas
entre o grupo, na importância de não “ficar parado” em casa. Isso me despertou não
só curiosidade, mas também interesse sobre a interação social que emergia de uma
atividade que, a princípio, era prescrita pelo médico do serviço de saúde para tratar
alguma patologia.
Ao ingressar no Aprimoramento em Ciências Sociais em Saúde, entrei em
contato pela primeira vez com políticas de saúde e uma diversificada leitura da área
de Saúde Coletiva, cujas problematizações percorrem várias áreas de
conhecimento. Foi neste momento que também conheci o Laboratório de Práticas
Alternativas, Complementares e Integrativas em Saúde (LAPACIS), onde tive
contato com uma vasta produção teórica sobre a Sociologia da Saúde e também
sobre as Práticas Integrativas e Complementares em Saúde. Assim, foi possível
empreender um recorte sobre o potencial das práticas corporais enquanto
produtoras não só de saúde, mas de convivência e interação entre os indivíduos
praticantes. E foi essa a motivação para elaborar um projeto de pesquisa e ingressar
no Mestrado em Saúde Coletiva.
Esta pesquisa dedica-se à investigação das práticas corporais no âmbito
da atenção primária em saúde numa perspectiva socioantropológica. Em
Campinas/SP, as práticas corporais foram institucionalizadas na atenção primária
para a prevenção e tratamento de dores e patologias. Tais práticas têm origens
diversas, como Índia (Yoga), Argentina (Sistema Rio Abierto/Movimento Vital
Expressivo) e China (Lian Gong), variando tanto em seus fundamentos conceituais e
filosóficos quanto em detalhes técnicos e objetivos, trabalhando em geral a
13
musculatura, os tendões, as articulações, o controle do fluxo sanguíneo, os órgãos,
as glândulas e aspectos emocionais.
De caráter coletivo, essas atividades de saúde cumprem um propósito
terapêutico – cuja finalidade é a prevenção de doenças e o tratamento das dores –
mas, também, propiciam encontro e interação entre os praticantes. Nestes termos, é
possível inquirir as práticas corporais em uma perspectiva que empreenda uma
reflexão sobre a construção de sociabilidades. Não são raros artigos e reportagens1
que apresentam os benefícios dessas atividades de saúde e trazem depoimentos
que enfatizam e afirmam a importância dos laços sociais desenvolvidos nos grupos,
que contribuem principalmente para a permanência do indivíduo na atividade e para
a autonomia no cuidado de si. Apesar de esses aspectos serem reconhecidos
também pela literatura científica (1, 2, 3, 4), as relações sociais não são abordadas
em profundidade.
Durante o trabalho de campo e discussões sobre os achados, emergiu
uma nova questão para a pesquisa: a convivialidade (ou convivencialidade, no termo
em português, traduzido do original), conceito formulado pelo pedagogo e filósofo
Ivan Illich. A convivialidade apresenta um sentido de liberdade, igualdade e
autonomia, contestando valores impostos pela sociedade industrial, onde tudo está
institucionalizado, até mesmo a vida, através, por exemplo, do domínio da medicina
sobre os corpos e a sabedoria popular, onde os pacientes são transformados em
clientes dóceis (5).
As vivências e experiências do trabalho de campo estão atravessadas por
encontros e afetos com os interlocutores da pesquisa – praticantes, instrutores e
coordenadores – que me receberam como pesquisadora-praticante em seus grupos,
sem resistências ou desconfianças, abertamente, amigavelmente e afetuosamente.
Foram cinco meses intensos de encontros semanais para a prática de Movimento
Vital Expressivo e Lian Gong, aprendizado, trocas e participação em eventos
1 Para citar algumas:
* “Novos saberes e práticas em saúde coletiva: estudo sobre as racionalidades médicas e atividades corporais” – Madel Luz, Revista Brasileira Saúde da Família: https://www.nescon.medicina.ufmg.br/biblioteca/imagem/2481.pdf; * “Programa Insight - Práticas Corporais na Atenção Primária à Saúde” – Yara Carvalho: https://www.youtube.com/watch?v=eyvC1OcXlZo; * “Liang Gong promete alívio de dores e é oferecido de graça em BH” – Site Uai: http://sites.uai.com.br/app/noticia/saudeplena/noticias/2013/05/14/noticia_saudeplena,143365/liang-gong-promete-alivio-de-dores-e-e-oferecido-de-graca-em-bh.shtml.
14
comemorativos, como viagens, festas de aniversário e comemoração de dia das
mães. Essa imersão no campo foi fundamental para compreender como as práticas
corporais estão instituídas e subjetivadas nos dois serviços de saúde escolhidos
para a realização da pesquisa.
No caminho percorrido até aqui – desde a elaboração da pergunta de
partida até a coleta de dados – “a tarefa não é ver aquilo que ninguém viu ainda,
mas pensar aquilo que ninguém pensou a respeito daquilo que todo mundo vê.” (6).
Entretanto, tal tarefa não foi apenas um exercício individual, pois se constituiu das
narrativas e diálogos estabelecidos em campo, articuladas ao referencial teórico que
norteia a pesquisa.
Estrutura da dissertação
A dissertação está dividida em três capítulos. O capítulo 1 “As Práticas
Corporais: descrição densa e construção de um modelo de cuidado” traz a
elaboração da descrição densa, onde são caracterizados detalhadamente os quatro
campos da pesquisa, além de apresentar uma discussão teórica sobre a constituição
das práticas corporais na atenção primária em saúde, que fundamentou a
construção de um modelo de cuidado nomeado como “intersociabilidades”.
O capítulo 2 “Os sentidos e significados da sociabilidade” trata-se da
análise temática de conteúdo das entrevistas realizadas com praticantes, instrutores
e coordenadoras dos serviços de saúde, onde identificamos os sentidos atribuídos à
sociabilidade nas práticas corporais, quais sejam: criação de vinculo, apoio social e
estímulo para a participação em atividades de lazer. O objetivo deste capítulo,
portanto, é analisar as seguintes categorias analíticas que emergiram das
entrevistas: a) sociabilidade como forma de desenvolver apoio social; b)
sociabilidade como forma de criar vínculos entre praticantes e instrutores; c)
sociabilidade e participação nas atividades de lazer extra-prática.
O capítulo 3 “Os sentidos e significados das mudanças físicas, psíquicas
e sociais com a prática de Lian Gong ou Movimento Vital Expressivo” apresenta a
análise temática do conteúdo dos textos produzidos por duas praticantes de LG e
MVE e das entrevistas realizadas com praticantes, instrutores e coordenadoras de
serviços de saúde de Atenção Primária em Saúde, identificamos os temas
relacionados e a forma como cada um experimenta as práticas corporais. O objetivo
15
deste capítulo é analisar os sentidos e significados atribuídos por estes diferentes
atores às mudanças físicas, psíquicas e sociais, experienciadas com as práticas
corporais.
16
INTRODUÇÃO
As práticas corporais na Atenção Primária em Saúde
Diversas questões atravessam as temáticas da Atenção Primária em
Saúde (APS) e das Práticas Integrativas e Complementares (PIC) no âmbito da
Saúde Coletiva, principalmente no que diz respeito, por exemplo, à discussão sobre
a Racionalidade Médica, à relação médico-paciente, ou à implantação e gestão
desses serviços. Contudo, é possível empreender um recorte sobre o potencial das
práticas corporais enquanto produtoras não só de saúde, mas de convivência e
interação entre os praticantes:
“de fato, as práticas corporais podem ter na Atenção Básica e na Estratégia Saúde da Família um espaço interessante para compor com o cuidado e a atenção em saúde. Elas ampliam as possibilidades de encontrar, escutar, observar e mobilizar as pessoas adoecidas para que, no processo de cuidar do corpo, elas efetivamente construam relações de vínculo, de co-responsabilidade, autônomas, inovadoras e socialmente inclusivas de modo a valorizar e otimizar o uso dos espaços públicos de convivência e de produção de saúde que podem ser os parques, as praças e as ruas.” (7) (p. 33).
Em tese, a APS se constitui como a porta de entrada no sistema de saúde
e “aborda os problemas mais comuns na comunidade, oferecendo serviços de
prevenção, cura e reabilitação para maximizar a saúde e o bem-estar” (8) (p. 28).
Barbara Starfield afirma que o serviço de APS:
“(...) não é um conjunto de tarefas ou atividades clínicas exclusivas; virtualmente, todos os tipos de atividades clínicas são características de todos os níveis de atenção. Em vez disso, a atenção primária é uma abordagem que forma a base e determina o trabalho de todos os outros níveis dos sistemas de saúde” (8) (p. 28).
Ao tratar a morbidade, a autora aborda conceitos da condição de saúde,
buscando propor uma caracterização que dê conta de lidar com as manifestações de
saúde e doença em sua diversidade, com foco no indivíduo e na comunidade e não
somente em diagnósticos e enfermidades. Sendo parte de um sistema maior de
cuidados com a saúde, a APS trabalha com um conceito amplo de saúde, tendo
como pressuposto que a condição de saúde tem como determinantes não só fatores
biológicos e genéticos, mas também sociais e ambientais: questões culturais,
nutricionais, condições sanitárias, ocupação, escolaridade, recursos disponíveis
17
(acesso aos serviços de saúde e medicamentos, por exemplo), situação de estresse,
sedentarismo, dentre outros (8).
Avaliar o indivíduo em seus múltiplos contextos de interação facilita a
compreensão sobre seu estado de saúde, origem da enfermidade e sobre as
eventuais dificuldades em administrar as prescrições médicas ou manter o cuidado
de si. Além disso, com a perspectiva de que há “(...) uma maior familiaridade dos
profissionais de atenção primária tanto com o paciente como com seus problemas”
(8), a atuação desta equipe não deve se limitar apenas ao espaço onde está
localizada sua sede física: interagindo com o indivíduo, com a comunidade e com o
seu entorno, os profissionais precisam identificar os problemas e deficiências que
atingem aquela localidade, através de uma organização regionalizada que atenda às
demandas reais da comunidade.
As atividades preventivas são citadas por Starfield como uma das
obrigações deste nível de atenção. Formuladas originalmente para atender às
características gerais de cada grupo populacional, as ações preventivas devem ir
além de campanhas de imunização da população contra doenças mais gerais: as
campanhas precisam estar voltadas para a prevenção/diagnóstico de enfermidades
ou orientadas para a promoção da saúde.
As Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (PICS) têm-se
desenvolvido nos serviços de atenção primária, ampliando as abordagens
terapêuticas (9) e colocando o indivíduo no centro do cuidado à saúde e qualidade
de vida, estimulando os fluxos energéticos e os mecanismos naturais de
reestabelecimento e manutenção da saúde, através da combinação de movimentos
corporais e ritmos respiratórios. Estas práticas atendem às propostas de cuidado
continuado, humanizado e integral em saúde do SUS e às diretrizes de fidelização
do vínculo terapêutico e a integração do ser humano com o meio ambiente e a
sociedade, estabelecidas pela Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), Portaria
nº 2.488, de 21 de outubro de 2011, e pela Política Nacional de Práticas Integrativas
e Complementares no SUS (PNPIC), publicada pelas Portarias Ministeriais nº 971,
em 03 de maio de 2006, e nº 1600, de 17 de julho de 2006 (10).
O National Center for Complementary and Integrative Health (NCCIH)
utiliza o termo “Complementary Health Approaches” (Abordagens Complementares
de Saúde) para se referir às práticas não convencionais, sejam produtos naturais,
18
como plantas medicinais e suplementos dietéticos, ou práticas mente-corpo, que
abrangem procedimentos como acupuntura e massagens, e práticas de ioga,
meditação, pilates, tai chi, técnicas de Qi Gong (como o Lian Gong, por exemplo),
entre outras. Além disso, as abordagens complementares ainda compreendem
racionalidades médicas como a homeopática, a ayurvédica, a chinesa e as práticas
dos curandeiros tradicionais2.
O Ministério da Saúde institucionalizou a PNPIC como forma de incluir
outras racionalidades médicas ao Sistema Único de Saúde, potencializando as
ações de promoção da saúde na atenção primária. Na rede pública de serviços de
saúde do SUS as PIC compreendem a homeopatia, a medicina tradicional chinesa, a
medicina antroposófica, a utilização de plantas medicinais e fitoterapia e o
termalismo social/crenoterapia (11). As PIC são práticas e saberes que se diferem
da biomedicina, em sua abordagem terapêutica, tendo como princípios a visão
holística sob o indivíduo, a busca pelo equilíbrio energético, o foco na saúde e não
na doença e a transformação do paciente em produtor de saúde, conferindo-lhe
autonomia no processo saúde-doença-cuidado (12).
Na rede pública de serviços de saúde de Campinas/SP as PIC vêm sendo
implantadas desde a década de 1980 e implementadas no ano de 2002, a partir da
formação do Grupo de Estudos e Trabalho em Terapias Integrativas (GETRIS) em
2001 (13). Dentre as ações desenvolvidas pelo Grupo está o Projeto Corpo em
Movimento, que foi desenvolvido a partir da verificação da deficiência de serviços
para diagnóstico, prevenção, e tratamento de doenças relacionadas ao grupo
musculoesquelético. O projeto institucionalizou práticas corporais como: Lian Gong,
Ioga, Movimento Vital Expressivo (antiga Ginástica Harmônica), Tai Chi Chuan e Qi
Gong, enquanto recursos terapêuticos na prevenção e tratamento de dores e
patologias nas unidades de saúde do município (13).
De acordo com o censo do IBGE de 20143, os serviços de saúde do SUS
somam 131 estabelecimentos. Além dos serviços de Vigilância Sanitária, Pronto
Atendimento, Centros de Apoio Psicossocial, Ambulatórios de Especialidades, entre
outros, Campinas conta com sessenta e quatro Unidades Básicas de Saúde4 (UBS),
divididas em cinco Distritos de Saúde: Norte, Sul, Leste, Noroeste e Sudoeste.
2 https://nccih.nih.gov/health/integrative-health#cvsa
3 http://www.cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang=&codmun=350950
4 Dados do Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde (CNES)
19
Segundo dados do mapeamento realizado pela pesquisa “As Racionalidades
Médicas e Práticas Integrativas e Complementares nos Serviços de Atenção
Primária em Saúde na Região Metropolitana de Campinas/SP”, no município todas
as UBS oferecem grupos de Lian Gong e o Movimento Vital Expressivo é ofertado
em nove centros de saúde (15).
As práticas corporais são definidas pela Política Nacional de Promoção da
Saúde (PNPS), Portaria nº 687 de 30 de março de 2006, como:
“expressões individuais e coletivas do movimento corporal advindo do conhecimento e da experiência em torno do jogo, da dança, do esporte, da luta, da ginástica. São possibilidades de organização, escolhas nos modos de relacionar-se com o corpo e de movimentar-se, que sejam compreendidas como benéficas à saúde de sujeitos e coletividades, incluindo as práticas de caminhadas e orientação para a realização de exercícios, e as práticas lúdicas, esportivas e terapêuticas, como: a capoeira, as danças, o Tai Chi Chuan, o Lien Chi, o Lian Gong, o Tui-ná, a Shantala, o Do-in, o Shiatsu, a Yoga, entre outras.” (16).
No contexto da APS, as práticas corporais encontram-se atreladas à
atividade física, e estão voltadas, sobretudo, para a prevenção e o tratamento das
doenças não-transmissíveis. Inseridas no Programa Academia da Saúde e na
PNPS, as práticas corporais/atividade física têm como objetivo ações relacionadas à
melhora na qualidade de vida e que “favoreçam a redução do consumo de
medicamentos, que favoreçam a formação de redes de suporte social e que
possibilitem a participação ativa dos usuários na elaboração de diferentes projetos
terapêuticos”. (16).
Para a realização desta pesquisa, as práticas escolhidas foram o Lian
Gong em 18 Terapias e o Movimento Vital Expressivo por serem as mais difundidas
nos serviços de atenção primária do município de Campinas. Em geral, para
participar dos grupos de LG e MVE não é necessário encaminhamento médico e
nem uma pré-avaliação feita por algum profissional de saúde, não existindo, de
forma institucionalizada, um protocolo para a prescrição destas práticas e nem um
instrumento para acompanhar e avaliar seus efeitos na saúde do praticante.
Lian Gong em 18 Terapias (LG)
O Lian Gong Shi Ba Fa (ou Lian Gong em 18 Terapias) foi desenvolvido
em 1974 pelo médico ortopedista chinês Zhuang Yuan Ming e trata-se de uma
ginástica terapêutica individualizada baseada em conceitos da Medicina Tradicional
20
Chinesa (MTC), em artes guerreiras milenares e em exercícios terapêuticos
chineses (17). Em aspectos gerais, os exercícios dissolvem aderências e
inflamações dos tendões e contribuem para a circulação sanguínea5.
No Brasil, esta prática corporal foi introduzida pela professora de filosofia
e artes corporais chinesas Maria Lucia Lee, em 1987 (2). Em 1994, ela criou a
Associação Brasileira de Lian Gong em 18 Terapias – Vida em Harmonia (17), filiada
ao Shangai Municipal Lian Gong in 18 Exercises Association e, em 1996, difundiu a
prática através de um programa televisivo exibido pela TV Cultura, onde ensinava os
exercícios em um parque público da cidade de São Paulo.
Na China, o LG é uma técnica bastante difundida entre a população,
institucionalizada pelo Governo Central e Ministério da Saúde como um serviço de
saúde pública, sendo também reconhecida pelo Ministério dos Esportes da
República Popular (2). Além disso, destaca-se o reconhecimento científico da
prática, que obteve prêmios de Progresso Científico e Pesquisa Científica com
Resultados Relevantes em Medicina Tradicional Chinesa e Medicina Ocidental,
concedidos pelo Governo da cidade de Shangai (18).
Em chinês, a palavra Lian Gong é composta por dois ideogramas que
significam “treinar, exercitar” (lian) e “trabalho persistente e prolongado que atinge
um nível elevado de habilidade (gong)” (17). É uma prática corporal que associa
medicina terapêutica e cultura física6, se caracterizando como uma alternativa à
fisioterapia ao atuar na prevenção e no tratamento de síndromes músculo-
esqueléticas (17), além de trabalhar o sistema cardio-respiratório, os distúrbios do
sistema gastrointestinal e o stress (2). Sendo assim, constitui-se como uma
importante prática de promoção da saúde (2).
O LG é realizado ao som de uma música tocada por instrumentos
musicais chineses e é composto por uma sequência de 54 movimentos, com
contagens de 1 a 8, dividido em três partes, com duração de aproximadamente 12
minutos cada parte. Os movimentos são amplos, firmes e ao mesmo tempo suaves,
trabalham a respiração (inspiração e expiração) e a coordenação motora através de
exercícios como: rodar a cintura com as mãos nos rins; soltar os braços e girar a
5 http://www.liangongbrasil.com.br/sobre-lian-kong/
6 Para a cultura chinesa, cultura física é o “fortalecimento harmonioso do corpo, permitindo o pleno
funcionamento e utilização dos músculos, tendões e ossos, diferente da ideia no Ocidente, de cultura física como aumento de massa muscular e modelagem física” (17).
21
cintura; esticar os braços levantando os calcanhares; massagear o peito e o
abdômen; abrir o peito e fazer fluir o Qi (17, 18).
Conforme descrito por Lee (17):
Primeira Parte – Anterior.
1a série: seis exercícios para a prevenção e tratamento de dores no pescoço
e ombros;
2a série: seis exercícios para a prevenção e tratamento de dores nas costas e
região lombar;
3a série: seis exercícios para a prevenção e tratamento de dores nos glúteos
e nas pernas.
Segunda Parte – Posterior.
4a série: seis exercícios para a prevenção e tratamento de articulações
doloridas das extremidades;
5a série: seis exercícios para a prevenção e tratamento de tenossinovites;
6a série: seis exercícios para a prevenção e tratamento das desordens de
órgãos internos.
Terceira Parte – I Qi Gong (Continuação do Lian Gong).
Os movimentos deste grupo formado por dezoito exercícios buscam o fortalecimento
da resistência do organismo, trabalhando as doenças crônicas ligadas diretamente
ao coração e aos pulmões, como a bronquite (18).
Movimento Vital Expressivo (MVE)
O MVE é uma prática corporal que integra o Sistema Rio Aberto, técnica
terapêutica psico-corporal criada na Argentina em 1966 pela psicóloga Maria Adela
Palcos (4). O Rio Aberto desenvolve técnicas de massagem, meditação, artes
plásticas, dramatização e trabalho sobre si com a finalidade de convidar “o sujeito a
experimentar, a vivenciar novas possibilidades de ser e estar no mundo, através do
encontro consigo e com o outro” (4). Segundo Palcos apud 4 (p.11), esses recursos
são “[...] ferramentas para expandir a consciência e facilitar esse contato de cada um
com sua essência.”.
22
Geralmente o Movimento Vital Expressivo é realizado em roda e,
diferentemente do Lian Gong, instrutores e praticantes exploram o ambiente e
interagem o tempo todo, através da imitação e do contato físico (mãos dadas,
toques, abraços, olhos nos olhos), visual e também da verbalização. O MVE trabalha
múltiplos aspectos: postura, emoções (sentidos e percepções), biomecânica
(respiração, articulações e músculos) e os centros de energia vital (chakras) por
meio de movimentos conduzidos por instrutores, utilizando músicas dos mais
variados ritmos e gêneros7. O instrutor também pode convidar os praticantes a
conduzirem o grupo, incentivando-os a explorar a criatividade e o ambiente onde a
prática é realizada. (4, 19).
Os movimentos seguem os ritmos e melodias da música e são
improvisados e espontâneos, trabalhando as expressões não só do corpo físico, mas
também as energias do corpo espiritual e mental8. Baseia-se nos conhecimentos do
Hatha Yoga e trabalha a experimentação, percepção e conscientização do corpo a
partir de movimentos variados (gestos, expressões faciais e vocais) e estimula a
conexão dos praticantes com seus sentimentos e emoções, com o prazer, a alegria,
a vitalidade e outras sensações de relaxamento e bem-estar. Para Mello (4):
“A necessidade de criar consciência sobre o corpo que se move, de devolver a ele flexibilidade, força, vitalidade e expressão decorre do fato de que estamos inseridos numa cultura e numa sociedade que historicamente impõe limites, regras, criando disciplinas que acabam por reduzir significativamente o potencial expressivo/criativo do corpo, tornando-o mecanizado em seus gestos e distanciado dos aspectos afetivos, emocionais, psíquicos e espirituais que compõem tal unidade”. (4) (p. 12).
Ao trabalhar a abertura de si para o coletivo e para o mundo através do
corpo em movimento, as práticas do Rio Aberto estão na contramão de visões
normativas que enquadram e fixam os indivíduos em conceitos e imagens, que
limitam não somente suas ações subjetivas, mas também encerram o indivíduo ao
seu próprio corpo, desconectando-o do mundo coletivo (19). Assim, “as práticas
visam uma ressonância (sintonia) entre aquilo que pensamos, sentimos e fazemos
(...).” (19) (p. 20).
7 http://www.rioabiertocampinas.com.br/home-page
8 http://www.movimentoesaude.com.br/clinicacampinas/index.php/rio-abierto/sobre-rio-aberto
23
Práticas Corporais e Sociabilidade
A partir de uma discussão sobre as novas formas de saúde, Luz (20)
conceitua “práticas terapêuticas” e as “práticas de saúde” (20) (p.151). A primeira
destina-se “a atender indivíduos ou grupos, tendendo ao modelo de medicinas
voltadas para o sujeito (como a homeopatia, ou a medicina chinesa, ou aiurveda),
que buscam a recuperação de identidade de pessoas, sua autonomia em face da
doença (...)” (20) (p. 156). Já a segunda, denominada também como “atividades de
saúde”, assumem um paradigma de vitalidade (20) (p. 158), que está associado
tanto com um sentido valorativo de fitness (onde a saúde está ligada com a tríade
beleza, vigor e juventude) como de wellness (onde a saúde está ligada
principalmente com uma ideia de harmonia e equilíbrio) (20). Segundo a autora:
“alguns desses valores estão nitidamente associados à cultura capitalista hegemônica e seus valores, como o culto individualista à beleza corpórea, ao consumo de bens materiais como forma de diferenciação, à competição como norma de vida e forma de alcançar o sucesso, considerado um valor fim. Outros se associam a formas de sociabilidade e a maneiras de estar consigo mesmo e com outros, se não solidárias, ao menos cordiais e amigáveis.” (20) (p.164).
Diante disto, é pertinente então abrir uma reflexão sobre a dimensão
socializadora que abarca essas práticas. Segundo Luz (20), “há uma diversidade de
sentidos, significados e valores associados à multiplicidade das práticas e
praticantes atuais em saúde coletiva”. (20) (p. 164). Embora nasçam na saúde, as
práticas corporais apresentam um caráter coletivo que estimula a interação e
incentiva a convivência entre os praticantes, transformando o momento da atividade
de saúde em um momento de encontro e sociabilidade.
A sociabilidade pode ser entendida como o “modo como se organiza a
sociedade através de uma associação básica” (21) (p. 9), livre de propósitos e
interesses, desprovida de formalidades e objetivos concretos; a sociabilidade
também não exige do indivíduo engajamento ou conhecimento das regras, nem seu
cumprimento. A necessidade de estar junto, de pertencer a algo e de estar em
sociedade dá origem à sociabilidade entre os indivíduos da sociedade. Assim,
Simmel define a sociabilidade como uma das formas de sociação, onde:
“O que é autenticamente “social” nessa existência é aquele ser com, para e contra com os quais os conteúdos ou interesses materiais experimentam uma forma ou um fomento por meio de impulsos ou finalidades. Essas formas adquirem então, puramente por si mesmas e por esse estímulo que delas irradia a partir dessa liberação, uma vida própria, um exercício livre de
24
todos os conteúdos materiais; esse é justamente o fenômeno da sociabilidade”. (22) (p. 63 e 64).
A interação entre os indivíduos diferentes da sociedade, entretanto, é uma
dinâmica que permite recusa ou aceitação, sendo mais uma escolha do que uma
condição ou imposição. A interação, espontânea e recíproca, exige do indivíduo
sociável que se comporte como tal, que tenha atitudes em sociedade e não
individualmente, para que sejam, de fato, semelhantes no momento da
sociabilidade. Pode-se propor a sociabilidade como um jogo de interação conduzido
pela comunicação, verbal ou não verbal, cuja finalidade não é apenas falar, pois,
vista como uma arte pelo autor, a conversa (comunicação) é um suporte desta
interação social, cuja finalidade é entreter (22).
O conceito de sociabilidade cunhado por Simmel (22) adquiriu
reformulações pela Escola de Chicago, ganhando novas dimensões e significados
ao propor uma concepção espacializada do social e socializada do espaço (21),
compreendendo então estudos empíricos no contexto urbano sobre relações de
vizinhança, guetos, comunidades estrangeiras e sobre outras organizações sociais
emergentes das primeiras décadas do século XX. Essa releitura pode ser “entendida
como uma consideração de modos, padrões e formas de relacionamento social
concreto em contextos ou círculos de interação e convívio social” (Eufrasio apud 21)
(p. 17), de forma que “as conexões estabelecidas por Simmel entre sociabilidade e
cidade moderna vieram assim a adquirir contornos, digamos, mais concretos – como
convivência, interação, socialização e associação – e localização espacial mais
precisa”. (21) (p.18).
A Escola de Chicago vê a cidade como lócus estratégico e privilegiado
para se observar e refletir sobre as dinâmicas sociais; com seus múltiplos espaços, é
possível “tomar a cidade como um laboratório de análise da mudança social” (21)
(p.17) com o foco voltado para a sociabilidade nascida de “um encontro público,
ligado à capacidade de cada sociedade de fazer com que os vínculos sociais
ganhem consistência.” (21) (p. 48).
Deste modo, ao compreender as práticas corporais em uma perspectiva
de interação e coletividade, e de valorização da autonomia e das subjetividades (ou
singularidades), é possível acrescentar ao debate uma perspectiva de convivialidade
(5). De acordo com Illich (5): “uma sociedade convivencial é uma sociedade que
25
oferece ao homem a possibilidade de exercer uma ação mais autônoma e mais
criativa, com auxílio das ferramentas menos controláveis pelos outros” (5) (p. 37).
Assim, o autor apresenta a convivialidade como a “desinstitucionalização” da
sociedade, possibilitando a independência, o livre acesso ao conhecimento e à
participação dos indivíduos na construção de saberes e sentidos (5).
Qualificando a sociabilidade e a convivialidade não como finalidade, mas
uma consequência das práticas corporais cabe então levantar algumas perguntas de
partida: Como essas práticas se caracterizam no âmbito da atenção primária em
saúde no município de Campinas? O que advém dos encontros semanais? Que
tipos de relações se desenvolvem nos grupos de Lian Gong e Movimento Vital
Expressivo?
26
OBJETIVOS
Objetivo Geral
Investigar as práticas integrativas corporais institucionalizadas na rede de atenção
primária do Sistema Único de Saúde na cidade de Campinas/SP, compreendendo-
as não apenas como produtoras de saúde, mas enquanto facilitadoras de
sociabilidade.
Objetivos específicos
- Verificar as formas de sociabilidade estabelecidas entre os praticantes e com os
profissionais de saúde;
- Conhecer o perfil dos praticantes e instrutores de práticas corporais em duas
Unidades Básicas de Saúde;
- Compreender as práticas corporais em seu potencial de promoção de saúde e
sociabilidade;
- Compreender e analisar os sentidos atribuídos por praticantes, instrutores e
coordenadores dos serviços para a prática do Lian Gong e Movimento Vital
Expressivo nos serviços de Atenção Primária no Sistema Único de Saúde em
Campinas/SP.
27
METODOLOGIA
A pesquisa foi realizada através de metodologia qualitativa, com o recurso
da observação participante e de entrevistas semi-estruturadas como técnicas de
coleta de dados. Frequentei como pesquisadora-praticante dois grupos de
Movimento Vital Expressivo e de Lian Gong semanalmente e as entrevistas foram
realizadas com profissionais de saúde (coordenadores dos serviços e instrutores das
práticas investigadas) e usuários das UBS escolhidas. A opção por essas técnicas
de coleta de dados se justifica pelo fato de permitirem uma maior proximidade com
esses agentes institucionais e sociais que fazem parte do campo da pesquisa, além
de possibilitar uma melhor compreensão sobre a dinâmica social que ocorre em
cada grupo de prática corporal.
Os trabalhos de campo foram orientados com o objetivo de investigar as
formas de sociabilidade entre os praticantes LG e MVE nos serviços de atenção
primária na cidade de Campinas/SP. Associado a esta investigação, também guiei
minhas observações e entrevistas para analisar os sentidos atribuídos por
praticantes, coordenadores dos serviços e instrutores, para as práticas do Lian Gong
e Movimento Vital Expressivo nos serviços de APS, bem como a relação dessas
práticas corporais com a convivialidade.
O trabalho de campo foi desenvolvido em dois Centros de Saúde (CS),
que chamarei de CS I e CS II, em localidades distintas de Campinas. A fim de
preservar a identidade das pessoas que participaram desta pesquisa, não só os
seus nomes foram trocados, como também se optou por substituir os nomes dos
serviços de saúde (ou qualquer outra característica que pudesse identificá-los). O
Centro de Saúde I pertence à Coordenadoria Distrital de Saúde Leste, atendendo
uma população de aproximadamente 22.000 habitantes9. Já o Centro de Saúde II
pertence à Coordenadoria Distrital de Saúde Norte6 e atende uma população de
aproximadamente 15.000 habitantes10.
A escolha dos serviços levou em conta alguns fatores. O primeiro foi
verificar que as duas práticas corporais eram ofertadas em cada serviço. O segundo
ponto levou em consideração a disponibilidade e identificação da coordenadora do
9 Dados da Secretaria Municipal de Saúde: http://2009.campinas.sp.gov.br/saude/
10 Dado não oficial, passado pelo educador social do CS II durante a entrevista.
28
CS I11 com as práticas integrativas, além da minha proximidade com o instrutor de
MVE do CS II. Sem dúvidas, esses contatos prévios facilitaram a entrada em campo,
contribuindo para que os demais profissionais me aceitassem em seus grupos. Cabe
mencionar que eu não residia na área de cobertura de nenhum desses serviços, e,
portanto, usava o transporte coletivo para chegar aos locais das práticas, cujo
percurso durava, em média, quarenta minutos.
A pesquisa foi autorizada pela Secretaria Municipal de Saúde de
Campinas (SMS), sob o parecer nº 008/2015 (ANEXO A) e aprovada pelo Comitê de
Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Estadual de Campinas (ANEXO B), sob o
parecer nº 981.177. Todos os entrevistados participaram de forma voluntária das
entrevistas, mediante a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
(APÊNDICE B) e, antes do início das entrevistas, foram informados pela
pesquisadora sobre os objetivos do trabalho e os procedimentos da coleta e
tratamento dos dados. Foi assegurada a confidencialidade das informações, que
serão mantidas em sigilo e utilizadas apenas para fins acadêmicos.
As idas a campo tiveram início em novembro de 2014, com visitas
exploratórias ao grupo de MVE do CS I. Em março de 2015, após a retomada dos
grupos, foram iniciadas as atividades com os grupos de LG e MVE do Centro de
Saúde II e com o grupo de LG e MVE do Centro de Saúde I. Para todos os
instrutores e coordenadores, foi entregue uma pasta com cópias do projeto de
pesquisa, da autorização da SMS de Campinas e do Parecer Consubstanciado do
CEP, momento no qual foi feita uma conversa para apresentação da pesquisa e
esclarecimento de possíveis dúvidas, formalizando o início do trabalho de campo. No
primeiro dia em cada campo eu me apresentei ao grupo como estudante de
Mestrado em Saúde Coletiva da Unicamp, esclarecendo sobre minha condição como
pesquisadora-praticante e sobre a coleta de dados, pedindo autorização para
acompanhá-los. Quando um novato chegava ou se algum praticante voltasse para o
grupo após um período de ausência, eu fazia a apresentação novamente,
reafirmando a proposta da pesquisa.
11
Eu já havia tido contanto anteriormente com a coordenadora Silvana, na ocasião da realização de entrevistas para a pesquisa “As Racionalidades Médicas e Práticas Integrativas e Complementares nos Serviços de Atenção Primária em Saúde na Região Metropolitana de Campinas/SP”, coordenada pelo Prof. Dr. Nelson Filice de Barros.
29
No contexto da pesquisa qualitativa, que fornece uma compreensão
profunda acerca da complexidade dos fenômenos sociais (23), a observação
participante é uma técnica de coleta de dados que requer “um envolvimento, um
compartilhar, não somente com as atividades externas do grupo, mas com os
processos subjetivos – interesses e afetos – que se desenrolam na vida diária dos
indivíduos e grupos” (23) (p. 67). Entretanto, a observação não é apenas olhar o que
está acontecendo: ela é direcionada e tem como foco os objetivos da pesquisa.
Segundo Malinowski (24), é através da imersão em campo – do contato
direto do pesquisador com a realidade “nativa” – que é possível apreender os
imponderáveis da vida real12, uma série de fenômenos que não podem ser
registrados apenas através de questionários ou documentos quantitativos (24). Em
acréscimo, podemos tomar também como referência o antropólogo Roberto Cardoso
de Oliveira, que afirma que os dados empíricos não estão prontos e nem são
estáticos – são construídos não somente a partir dos pressupostos teóricos do
pesquisador, mas também a partir do “encontro etnográfico” (25) (p.21), onde a
intersubjetividade entre o pesquisador e os atores sociais se constitui como um
aspecto importante da pesquisa.
De caráter interacional, a observação participante permite identificar e
acompanhar as dinâmicas sociais de perto e de dentro (26), partindo das
experiências subjetivas para construir narrativas e reflexões não sobre os sujeitos
pesquisados, mas com os atores sociais que participam da pesquisa (27),
descentralizando os discursos institucionais e colocando em perspectiva as
representações subjetivas e individuais.
A observação participante foi realizada durante cinco meses e foi
organizada de modo que eu pudesse frequentar cada grupo uma vez por semana,
acompanhando-os em atividades extras, como passeios e datas comemorativas. Os
dados empíricos foram registrados em um diário de campo, onde eu anotava
acontecimentos, relatos dos interlocutores, descrições de algumas atividades e
também minhas reflexões e percepções sobre esses momentos. Sem dúvida, a
elaboração dos relatos sobre a observação participante foi permeada pelas leituras
12
“Pertencem a essa classe de fenômenos: as rotinas do trabalho diário...; os detalhes dos seus cuidados
corporais; o modo como prepara a comida e se alimenta; o tom das conversas e da vida social...; a existência de
hostilidade ou de fortes laços de amizade, as simpatias ou aversões momentâneas entre as pessoas; a maneira
sutil, porém inconfundível, como a vaidade e a ambição pessoal se refletem no comportamento de um indivíduo
e nas reações emocionais daqueles que o cercam.” (24) (p. 29).
30
teóricas realizadas no decorrer do Mestrado. O trabalho de campo seguiu o seguinte
cronograma:
Tabela 1 - Cronograma do trabalho de campo
Prática Corporal Centro de Saúde Dia e Horário
MVE I *2ºf, 18h-19h
LG I 3º e *5ºf, 8h-9h
MVE II *3º e 5ºf, 8h-9h
LG II 2º e *4ºf, 8h-9h *dias de trabalho de campo
No total, foram realizadas 27 entrevistas, com duas coordenadoras de
serviço, quatro instrutores e vinte e um praticantes. O critério de inclusão para as
entrevistas com os praticantes era que o tempo mínimo de participação no grupo
fosse de dois meses e que não tivesse nenhum tipo de comprometimento mental ou
cognitivo que os impedisse de responder às questões da entrevista. O critério de
exclusão foram pessoas que não tinham disponibilidade ou se negaram a participar
da pesquisa. De maneira geral, a escolha pelos praticantes considerou uma maior
abertura destes em relação à pesquisa, já que algumas pessoas sempre vinham
conversar comigo para contar sobre sua relação com o grupo ou sobre a importância
da prática corporal em suas vidas. Também contei com a ajuda dos instrutores, que
em alguns casos me ajudaram indiciando e convidando praticantes para serem
entrevistados. Dessa forma, as entrevistas ficaram assim distribuídas (verificar
quadro de caracterização completa dos entrevistados no Apêndice A):
Tabela 2 - Entrevistas realizadas
Entrevistas CS I CS II
Coordenadoras Silvana Cláudia
Instrutores Carlos e Teresa Milton e Helena
Grupo LG Sílvia, Denise,
Rubens, Heloísa Odete, Olímpia, Rosa e
Célia
Grupo MVE Janete, Anselmo, Nívea, Val, Vitória, Carmem, Osvaldo
Lúcia, Raimunda, Conceição, Zilda, Ivone
e Beth
Inicialmente, o objetivo era entrevistar quatro praticantes de cada grupo,
mas, pela demanda espontânea que surgiu nos grupos de MVE do CS I e alguns
imprevistos que aconteceram no CS II, acabei entrevistando mais que o pretendido,
31
pois seria indelicado negar uma entrevista àquelas pessoas que me procuraram
espontaneamente. As entrevistas foram marcadas de acordo com a disponibilidade
do interlocutor (planejadas antecipadamente, de modo a não atrasar as tarefas de
casa, que são muitas, no caso das praticantes), geralmente ao final da prática (nos
grupos cujas atividades são no período da manhã), sendo realizadas no próprio
espaço onde a prática corporal era realizada ou no entorno (uma praça e um centro
comercial).
Todas as entrevistas foram gravadas em um gravador digital de voz e
foram transcritas posteriormente. Para cada tipo de participante – coordenador,
instrutor e praticante – foi elaborado um roteiro de perguntas (APÊNDICES B, C e
D), que era adaptado conforme a dinâmica da conversa. Tanto com os praticantes
quanto com instrutores e coordenadores de serviço não houve dificuldades para a
realização do trabalho de campo e das entrevistas, com uma grande participação
nas entrevistas e nas conversas informais.
As entrevistas foram submetidas à análise de conteúdo proposta por
Laurence Bardin, que consiste em três etapas: pré-análise, exploração do material e
definição das categorias e tratamento dos resultados (28). Durante a análise
flutuante das entrevistas, identificamos os temas e as questões principais que,
posteriormente, foram organizados e categorizados de acordo com os núcleos de
sentido. Finalmente, a partir do tratamento desses dados, foram feitas inferências e
interpretações das falas mais significativas a partir do referencial teórico que norteia
a pesquisa.
Assim, de acordo com as análises das entrevistas, elegemos as seguintes
categorias: sociabilidade como forma de desenvolver apoio social; sociabilidade
como forma de criar vínculos entre praticantes e instrutores; sociabilidade e
participação nas atividades de lazer extra-prática; os sentidos e significados das
mudanças.
32
CAPÍTULO 1 – As Práticas Corporais: descrição densa e
construção de um modelo de cuidado
No contexto desta pesquisa, o envolvimento nas atividades de campo
contribuiu para verificar e compreender as dinâmicas desenvolvidas entre os
praticantes durante os encontros de cada grupo, proporcionando maior proximidade
e interação com os praticantes e instrutores. Deste modo foi possível identificar, por
exemplo, que os praticantes determinam seus lugares nos espaços onde as práticas
são realizadas (e essa escolha não é aleatória) e como que cada instrutor conduz o
grupo e como organiza seu trabalho.
Tal proximidade permitiu conversas, confidências, convites (como do Seu
Osvaldo, que me chamou para conhecer sua horta orgânica; ou como Seu Anselmo
e Sílvia, que me convidaram para visita-los aos finais de semana) e até presentes
(fotos de arquivo pessoal, uma pulseira e uma revista). Além disso, três textos foram
produzidos por duas praticantes de LG e de MVE, de forma espontânea: dois relatos
que ressaltam as transformações vividas pela Dona Heloísa por causa das práticas
corporais; e o relato feito pela praticante Val, no qual fala sobre como é o Movimento
Vital Expressivo, segundo suas próprias impressões. Mesmo após o fim do trabalho
de campo, a interação com algumas pessoas segue acontecendo por meio das
redes sociais, por telefone e até mesmo por correspondência.
As narrativas revelaram o lugar da prática corporal na vida das pessoas, tanto
dos praticantes, como dos próprios instrutores. O primeiro contato com a prática
corporal, a convivência no grupo, a construção de uma identidade no e com o grupo
e o significado dessas relações em suas vidas foram algumas das questões trazidas
pelos interlocutores, em conversas informais e nas entrevistas. A importância do
grupo e da convivência – os ganhos sociais, como alguns referem – são
mencionados como os principais benefícios trazidos pelas práticas corporais. Os
relatos sobre as melhoras na saúde não se associam exclusivamente com aspectos
físicos, mas principalmente com bem-estar emocional, disposição, alegria e
animação.
Desse processo de imersão em campo e dos registros no diário de campo
suscitou a descrição densa, um empreendimento científico que apreende e
interpreta as estruturas de significação social, que são complexas e não estão
33
claramente acessíveis, sendo estranhas, irregulares e inexplícitas (29). Nesse
sentido, podemos compreender a descrição densa como produto da observação
participante – é uma caracterização do trabalho de campo que relata, em
profundidade, não apenas o contexto da pesquisa, mas também as dinâmicas
sociais do grupo observado e as “emoções e as nuances de relacionamento social a
fim de evocar o sentimento de uma cena e não apenas seus tributos superficiais”
(30) (p. 33).
Movimento Vital Expressivo no Centro de Saúde I
As idas a campo no grupo de MVE do CS I tiveram início em novembro de
2014, após contato prévio por e-mail com Silvana, coordenadora do serviço, para
apresentar a pesquisa e perguntar sobre a possibilidade de conhecer os grupos de
práticas corporais oferecidos pelo CS. Disso surgiu o convite para conhecer o grupo
de MVE que é realizado no Centro de Convivência (CECO)13 do território, às 2º
feiras, das 18 às 19h.
O grupo acompanhado foi formado em fevereiro de 2013 e a prática é
realizada em uma sala equipada com espelhos, colchonetes e aparelho de som,
além de outros objetos como ventilador de teto, armários, mesas e cadeiras. A turma
é composta, em média, por quinze praticantes, com idades entre 35 e 70 anos. A
maioria participa do grupo desde o início e, de acordo com o instrutor Carlos, quase
todos os praticantes são pacientes do CS I, embora poucos tenham sido
encaminhados pela equipe de profissionais do serviço. Em geral, os praticantes
ingressam no grupo por “demanda espontânea”, ou seja, por meio de convite de
amigos, vizinhos ou parentes, ou porque frequentam outras atividades oferecidas
pelo CECO e ficaram sabendo da prática através da programação mensal (que fica
disponível na recepção do CECO) ou simplesmente por passarem pelo corredor e
verem o grupo fazendo a atividade.
As mulheres eram maioria e três homens integravam a turma, sendo que
dois eram frequentadores assíduos e tinham mais de 65 anos. Eu sempre chegava
13
O Centro de Convivência é um dispositivo de saúde que integra a rede de atenção à Saúde Mental de Campinas. O CECO I é aberto à comunidade e oferece diversas atividades gratuitas como aulas de variados trabalhos artesanais, movimento vital expressivo, capoeira, yoga, meditação, oficinas culinárias, grupos de aconselhamento nutricional, aulas de consciência corporal, além de turmas da Educação de Jovens e Adultos (EJA) da Fundação Municipal para a Educação Comunitária (FUMEC).
34
meia hora antes do início da atividade e nunca ficava sozinha: Seu Osvaldo e Seu
Anselmo já estavam lá conversando. À medida que outros praticantes iam
chegando, todos se cumprimentavam com abraços e beijos no rosto, e logo eram
incluídos nas conversas. Quando chegava um novato, era imediatamente acolhido
pelo grupo e também pelo instrutor, que explicava o objetivo do trabalho com o MVE.
O instrutor é formado em Enfermagem, mas oficialmente trabalha como
Auxiliar de Enfermagem no CS I. Iniciou sua formação em MVE por volta de 2011,
tendo tido seu primeiro contato com a prática em 2008, como colaborador em outro
grupo do mesmo serviço de saúde. Sua atuação como instrutor de MVE faz parte da
rotina de trabalho e quinzenalmente participa de supervisão conduzida por
capacitadoras de Sistema Rio Aberto, junto com instrutores que atuam em outros
serviços de saúde do território onde se localiza o CS em que trabalha. Em julho de
2015, Carlos também assumiu outro grupo de MVE que era ofertado por uma
profissional de saúde da sua equipe, que entrou de licença médica.
Na minha primeira ida a campo, o instrutor Carlos já estava informado
sobre a visita. Eu já era esperada como “uma estudante da Unicamp”. Ao nos
encontrarmos na hora marcada pela coordenadora, conversamos sobre a pesquisa e
expliquei como seria o trabalho de campo. O instrutor foi muito atencioso e me
contou como desenvolve o trabalho com o grupo e explicou a finalidade da prática
corporal. No decorrer da conversa, as pessoas foram entrando no salão onde a
prática é realizada e, como já estava na hora do grupo, a roda logo tomou forma e
Carlos anunciou minha presença apenas como “gente nova” e pediu para que todos
se apresentassem. Quando chegou a minha vez, eu apenas disse meu nome, já que
o instrutor não havia mencionado nada sobre a minha pesquisa e fiquei na dúvida se
eu poderia revelar, de imediato, a minha identidade como pesquisadora. Entretanto,
ao final da prática, Carlos me apresentou como estudante da Unicamp e pediu que
eu contasse sobre a pesquisa. Quando falei sobre o objetivo e a forma da coleta de
dados, dona Vitória, uma senhora que participa do grupo com duas filhas e uma
nora, exclamou: “Nossa, que legal! Você vai pesquisar a gente? Que honra!”.
Agradeci a receptividade e pedi permissão ao grupo para que eu pudesse
acompanhá-los, fazendo o convite para participarem das entrevistas. Ao final, Carlos
agradeceu por ter escolhido o grupo e disse que a pesquisa contribuirá para dar
35
visibilidade ao grupo e ao Movimento Vital Expressivo, e que eu poderia ficar à
vontade.
Essa recepção fez com que eu realmente me sentisse acolhida, além de
ter contribuído para uma grande participação dos praticantes nas entrevistas, pois ao
final da minha apresentação as pessoas vieram me cumprimentar e se colocaram à
disposição para as entrevistas, que começaram a ser feitas em maio de 2015.
Durante a permanência em campo e nas conversas com os praticantes, pude
conhecer melhor a dinâmica do grupo e estabelecer uma relação de proximidade
com a turma antes de partir para as entrevistas. Assim, foi possível verificar, por
exemplo, o melhor horário e local para a marcação das entrevistas: sempre em torno
de uma hora antes do início da prática, nas dependências do próprio CECO.
A primeira praticante entrevistada foi Janete. Ela foi convidada para
conhecer o grupo através de Simone, outra praticante de MVE. As duas se
conheceram na terapia em grupo, que é feita no CS I e, segundo Janete, se
aproximaram por terem passado pelo mesmo problema familiar. A entrevista foi
realizada no quintal do CECO, onde acontecem as aulas de mosaico toda segunda-
feira à tarde. Durou cerca de meia hora e depois que encerramos, ainda ficamos
alguns minutos conversando sobre nossas famílias e sobre as músicas que o
instrutor geralmente selecionava e que agradavam bastante ao grupo.
Em outro momento, entrevistei Seu Anselmo, que se mostrou muito
contente com o convite, pois ele estava aguardando que eu fizesse as convocações
para as entrevistas. Durou cerca de 40 minutos e ele aproveitou para me contar que
gosta muito de sair e conversar com as pessoas, mas que às vezes prefere ficar
mais quieto, impressionando até os motoristas de ônibus da linha que atende seu
bairro, pois todos os conhecem por ser bastante “falador”. Além disso, se declarou
feliz com a minha presença no grupo, pois era uma oportunidade de aprender coisas
novas.
Quando marquei a entrevista com Dona Vitória e Nívea, mãe e filha, a
ideia inicial era fazer uma entrevista dupla, mas acabamos realizando em dias
separados. Ao chamá-las para entrevista, sorriram e disseram que estavam só
esperando a vez delas, pois desde o início queriam participar da pesquisa. A
entrevista com cada uma durou cerca de 40 minutos, e a conversa também
aconteceu no quintal do CECO.
36
Em seguida, entrevistei Val, que frequenta o grupo desde 2013. Quando
iniciei o trabalho de campo fazia alguns meses que ela não estava frequentando o
grupo, e, quando ela voltou, em maio de 2015, se interessou pela pesquisa e veio
pedir que eu marcasse uma data para a entrevista, pois queria falar-me sobre as
amizades no grupo. A entrevista durou cerca de 40 minutos, e a conversa
aconteceu na sala onde o MVE é realizado, mesmo local onde entrevistei Carmem,
que parecia ser uma das praticantes mais quietas, apesar de sempre conversar com
todos do grupo. Carmem foi umas das praticantes que me chamou a atenção para
refletir sobre a importância das práticas corporais como “um momento pra não
pensar em nada”, apenas para cuidar de si.
Por fim, entrevistei seu Osvaldo, que foi o primeiro praticante com quem
conversei quando comecei a acompanhar o grupo. Ele me contou sobre seu ofício
de benzedor e me ensinou a fazer um remédio natural para dor no estômago feito
com manjericão roxo, mas, apesar de ter um vasto conhecimento com plantas
medicinais, se sente obrigado a tomar os remédios que o médico do Centro de
Saúde passa, temendo ser repreendido por não seguir a prescrição do profissional
caso tenha algum “piripaque”. Foi interessante que, em momentos diferentes da
entrevista, atribuiu tanto à prática de MVE, quanto à prática de benzedor, as
mesmas sensações: “eu fico mais legal, eu fico bem”. A conversa aconteceu no
quintal do CECO e durou trinta e cinco minutos.
Durante a prática, o instrutor habitualmente falava sobre a proposta do
Movimento Vital Expressivo/Sistema Rio Abierto e explicava o que estava
trabalhando, a intenção de cada movimento e sua relação com os centros
energéticos do corpo (chakras), sobre a importância em olhar nos olhos14 e interagir
com o ambiente e com os outros praticantes, afirmando que o objetivo do trabalho
não era a execução perfeita e precisa dos movimentos, mas sim deixar o corpo se
expressar e fazer o movimento fluir, para não tornarmos tudo mecanizado,
desenvolvendo, desta forma, consciência de si através do trabalho corporal.
Também sempre destacava a potência do grupo e do convívio, ressaltando que
cada ser é único e especial. Além disso, eventualmente passava alguns informes
relativos ao serviço de saúde, como as campanhas de vacinação e também sobre a
14
Quando passava a consigna para a troca de olhares, Carlos sempre perguntava: “cadê o sorriso?” – e então aproximava a roda para que o grupo pudesse tocar nas mãos uns dos outros.
37
função do Conselho Local de Saúde e as reuniões deste grupo, reforçando a
importância da participação social.
Dentre os grupos que participaram da pesquisa, foi o único instrutor a
falar mais abertamente sobre Deus e sobre o valor que temos enquanto grupo e
enquanto pessoa. Porém, também era o único instrutor que fazia avaliações de
saúde para o controle de peso, do índice de massa corpórea (IMC), da
circunferência abdominal, da glicemia e da pressão arterial de cada praticante,
sempre orientando sobre a importância do cuidado com a saúde através de
atividades preventivas como a prática de atividades físicas e da alimentação
equilibrada. Assim, ao mesmo tempo em que nos perguntava sobre o final de
semana, também perguntava se alguém estava com alguma dor ou se precisava de
algum serviço do centro de saúde. De modo geral, os praticantes aproveitavam para
perguntar sobre a marcação de consultas e a retirada de exames realizados em
outros serviços da rede pública.
Frequentemente abordava temas como: os perigos do colesterol HDL
elevado; sintomas, prevenção e tratamento da depressão; cuidados com a chegada
do inverno; sensibilização sobre a reciclagem do lixo; orientação sobre alimentação
saudável; cuidados com a dengue; prevenção e identificação da síndrome de
Burnout entre outros cuidados. A partir destas questões, ele fazia uma roda de
conversa com os praticantes e lançava perguntas pra turma, estimulando a
participação coletiva na construção do conhecimento.
Antes do início da atividade, Carlos me informava sobre a temática que
abordaria com o grupo e perguntava se eu queria fazer alguma colocação ou se
tinha algo a acrescentar, mas eu apenas agradecia e dizia que não tinha nada a
dizer, principalmente por não ter uma formação em saúde e, por isso, não ter
conhecimento técnico nesta área. Nos dias em que as avaliações eram realizadas,
eu era convocada como “assistente” para anotar os resultados tanto no “Cartão de
Controle de Hipertensão/Diabetes” individual (ANEXO C) – que foi personalizado
com mensagens escritas à mão pelo instrutor para cada um dos praticantes – e
também no prontuário do grupo15.
15
Em uma dessas ocasiões, Val veio me dizer que antes de eu assumir este posto, era ela quem fazia as anotações e que a tarefa a fazia sentir-se importante. Fiquei um pouco sem graça por ter “tomado” seu lugar, mas pedi desculpas e, de forma descontraída, falei que então poderíamos nos revezar nessa função.
38
Entretanto, apesar de não querer fazer nenhum comentário adicional aos
temas abordados pelo instrutor, na primeira vez que fui escalada para auxiliar em
tais anotações, acabei interferindo na forma como a avaliação estava sendo
conduzida, já que o instrutor quase não divulgava os resultados para os próprios
praticantes avaliados. Então, ao perceber a curiosidade destes em relação às suas
medidas, eu comecei a passar-lhes essas informações, perguntando ao instrutor se
havia alguma informação adicional sobre os resultados para compartilhar
individualmente ou com o grupo. Assim, caso o resultado não estivesse de acordo
com os padrões biomédicos de normalidade, Carlos orientava sobre os cuidados
necessários e sobre os riscos envolvidos nos resultados alterados.
Ainda que com alguma frequência o instrutor reforçasse a importância dos
alongamentos e da prática de exercícios físicos para evitar problemas de saúde e
combater o sedentarismo – relacionando, precipitadamente, uma prática corporal
com a prática de exercícios físicos – ele também afirmava que o MVE não era como
“uma academia de ginástica”, onde as pessoas se exercitam individualmente, pois,
“além de valorizar o trabalho em grupo e a interação”, o MVE também trabalhava
“outras coisas”, definindo a atividade como um momento de “amizade,
companheirismo e comunhão” 16. Portanto, é possível perceber que essas definições
híbridas atribuídas pelo instrutor ao Movimento Vital – aparentemente contraditórias
– se caracterizam pela sua formação e experiência profissional, que são marcadas
pela racionalidade biomédica. Duas conversas ilustram bem essa condição:
“Carlos comentou comigo sobre meu projeto e as autorizações do Comitê de Ética em Pesquisa e da Secretaria Municipal de Saúde, ressaltando a alegria por eu ter escolhido o grupo (...). Além disso, falou que achou interessante minha abordagem “e que não tinha percebido algumas coisas” e que iria “trazer pra sua visão e pra dentro do grupo de MVE” e, ao ler meus argumentos, pensou em sua formação, que foi sempre “muito objetiva” e focada na doença e em procedimentos técnicos”
17.
“Hoje conversei com Carlos sobre minha preferência pelo tratamento homeopático, contando que curei crises alérgicas somente com homeopatia e que atualmente estava fazendo tratamento com acupuntura para uma lesão que surgiu na pele. Ele ficou meio pensativo (desconfiado, provavelmente) e me disse: “trabalho em unidade de saúde desde os 20 anos de idade e só ouço falar em dipirona, voltarem e agora ibuprofeno, que é um anti-inflamatório de última geração que não afeta o fígado e isso é bom pra quem tem problemas de gastrite (...)” e que por isso ainda
16
Ou ainda, como uma vez afirmou que “o que faz do grupo ser um grupo não é só a interação entre a gente, é o amor também” (Diário de Campo, 01/06/2015).
17 Diário de Campo, 13/04/2015.
39
estranhava a minha opção por tratamentos onde não se utilizam “esses tipos de medicamento”
18.
Durante a aferição de pressão e os testes de glicemia, a conversa se
estendia e os resultados eram compartilhados entre os praticantes, que comparavam
seus resultados e brincavam pra ver quem tinha as melhores taxas. Era um
momento de descontração e de muita conversa, além de confissões sobre a
ansiedade por doces e os exageros cometidos no final de semana, ao mesmo tempo
em que, a meu ver, denunciava como o discurso biomédico do risco é facilmente
incorporado19. Já durante a prática, a proximidade entre os praticantes também era
reforçada quando, ocasionalmente, Carlos finalizava a atividade pedindo para que
formássemos duplas para trabalhar os sentidos através da massagem, quando os
pares aproveitavam então para se conhecerem melhor ou até mesmo para fazer
alguns desabafos sobre as situações que estavam vivenciando.
Outro momento identificado como oportuno para a sociabilidade era ao
término da prática do Movimento Vital Expressivo, quando era servido um lanche da
tarde com café, suco e bolachas. Apesar de ser o único grupo que não organizava
passeios ou outros tipos de encontro fora do horário, a “hora do lanche”, embora de
curta duração, proporcionava uma forte interação social não só entre os praticantes,
mas entre o instrutor e o grupo, reforçando o vínculo do profissional com todos os
integrantes da turma. A maioria permanecia no local por pelo menos quinze minutos
após o fim da atividade para conversar, comentando sobre alguma música que tocou
e que fez relembrar alguma vivência pessoal, tirando dúvidas (tanto com o grupo
como com o Carlos) ou então compartilhando alguma informação. É interessante
notar a importância desse momento para que as pessoas – incluindo o instrutor e a
própria pesquisadora – expusessem suas rotinas, contassem sobre passeios e
viagens, seus eventuais problemas emocionais ou conflitos pessoais, falassem
sobre sua família, sobre sua melhora de saúde ou também sobre um remédio
prescrito pelo médico que estava fazendo mal.
18
Diário de Campo, 15/06/2015. 19
Embora a avaliação de saúde esteja na ordem do controle e mantenha relação com o discurso do risco, essa situação sempre também me remetia às práticas de saúde wellness (31), pelo jeito que a interação do grupo se dava neste momento. Apesar de essa questão ser nebulosa, nestas conversas não verifiquei uma competição ou preocupação mais “dura” com o culto ao corpo segundo os padrões vigentes, pelo menos não no sentido de haver julgamentos ou punições.
40
Durante uma dessas conversas, onde o tema era amor e afeto, Seu
Osvaldo, um praticante muito conhecido pela comunidade por causa de sua horta
orgânica e por ser benzedor, ficou ouvindo, calado, o que cada um falava sobre
como era o relacionamento com suas famílias. Até que, emocionado, falou que sua
esposa o tratava com frieza, que nunca tinha ouvido “eu te amo” dela e o quanto
isso o deixava triste e sem conseguir ter uma relação mais afetuosa, perguntando
para Carlos o que ele poderia fazer. O grupo o acolheu, deixando-o desabafar e
sugerindo algumas estratégias para que ele pudesse se aproximar mais da
companheira, desejando-lhe palavras de incentivo e apoio. O instrutor então o
aconselhou a abraçar a esposa, defendendo a importância deste gesto e contando
sobre seu pai, que também não era uma pessoa muito aberta para isso. Em seguida,
Nívea, uma praticante que tem formação em Psicanálise, comentou sobre o fato das
pessoas se abrirem com o grupo por se sentirem confiantes a ponto de contarem
suas intimidades, revelando até mesmo suas fragilidades e pontos fracos, sem medo
de julgamentos ou punições. Com isso, ressaltou que havia um forte sentimento de
solidariedade e de respeito entre os praticantes e o instrutor, visíveis através da
escuta, do acolhimento e do cuidado.
Val, Carmem e Janete também declararam a importância do grupo em
suas vidas. Ao voltar a frequentar o grupo depois de um tempo afastada por causa
dos seus horários no trabalho como babá, Val comentou com a turma: “estou muito
feliz por voltar pra cá, claro que exercício físico é bom, mas o que senti falta mesmo
foi a companhia aqui, das pessoas, dos nossos encontros.”. Já para Carmem, o
grupo era “bom para dar risada”20, afirmando que o Movimento Vital Expressivo
propiciou uma mudança em sua vida, já que antes “era só aquela coisa de ficar entre
o trabalho e a casa, no automático” e que sair dessa condição era “importante, pois
agora eu tenho uma hora só pra mim, aqui eu esqueço mesmo das coisas e consigo
ficar com a cabeça só na prática e em mim mesma”. Do mesmo jeito, Janete afirmou
“voltei a sorrir e voltei a ser eu mesma”, ao relatar o seu “antes e depois” do MVE,
relacionando a melhora no seu quadro emocional ao acolhimento do grupo e ao
trabalho desenvolvido pela prática corporal21.
20
Diário de Campo, 28/06/2015. 21
Nessa ocasião, o instrutor havia organizado uma festa surpresa para ela e fiquei responsável por levar o bolo, que eu mesma fiz. Janete ficou emocionada e agradeceu ao grupo pela surpresa e pelo carinho do Carlos e da turma, relatando como o acolhimento contribuiu para que ela conseguisse
41
O próprio instrutor também comentava com a turma sobre os efeitos do
Movimento Vital Expressivo em sua vida pessoal e profissional, enfatizando como
que a prática o ajudou a diminuir sua timidez e contribuiu para “descarregar a
cabeça de preocupação e de outras coisas que causam ansiedade”, melhorando a
concentração no desenvolvimento das suas tarefas cotidianas no centro de saúde, já
que, para ele, esta é uma capacidade imprescindível em sua profissão. Além disso,
disse que o trabalho com a prática o ajudou a sair da mecanicidade do atendimento
no acolhimento e nos procedimentos que realiza, tornando-se mais atencioso com
as pessoas que atende no serviço.
Estes momentos também revelaram talentos artísticos. Após fazer a
entrevista com Val22, ela me contou sobre seu caderno de anotações, onde
transcreve algumas frases que gosta e também faz composições que narram seus
sentimentos e vivências, como é o caso do “Rap das Domésticas” e a “Música de
Amor Romântico”. Ao saber disso, falei que gostaria de ver seu caderno, caso ela
concordasse. Na semana seguinte, levou-o e, ao final da prática, compartilhou com a
turma. Intuitivamente a incentivei a escrever sobre o grupo, já que tem a escrita
como hobby. Após duas semanas ela veio toda contente me mostrar sua
composição e quando terminamos a prática, Val apresentou ao grupo e presenteou
Carlos, que pediu permissão para tirar uma cópia e afixar no mural do CS e do
CECO. Recebi como missão – a pedido da autora – que, antes da exposição,
“passasse a limpo” no computador, ganhando permissão para usar em meu trabalho,
desde que eu revelasse a autoria (ANEXO D).
Seu Anselmo também revelou seus talentos, tanto com o violão, quanto
com duas composições. Convidado por Carlos, algumas vezes levou seu violão e
tocou algumas músicas para o grupo. Além disso, Seu Anselmo gostava de contar
suas histórias e mostrar suas habilidades físicas (alongamentos, agachamentos,
movimentos ágeis) que, de acordo com ele, atestavam os efeitos do MVE em sua
vida: inclusive, aprender a tocar violão, que era seu sonho de menino, foi um
incentivo feito pelo próprio instrutor, que viu potencial terapêutico nessa atividade,
como uma possibilidade do praticante recuperar os movimentos dos dedos das
mãos, membros que estavam afetados por anos de trabalho pesado na roça.
“mudar de vida” e “sair do lugar de tristeza onde estava há um ano e quatro meses”. (Diário de Campo, 08/06/2015).
42
Durante a minha permanência em campo e com as “prosas” estabelecidas
com Seu Anselmo, pude perceber como os estímulos dos profissionais de saúde
com quem desenvolveu um vínculo maior (uma Terapeuta Ocupacional e o
profissional que conduz o MVE) e também do grupo contribuíram para que ele
seguisse firme em seu propósito e compartilhasse seu processo de aprendizado com
a turma, inclusive, gravando vídeos caseiros tocando algumas de suas músicas
sertanejas preferidas e mostrando, bastante orgulhoso, o material produzido. Além
disso, inspirado em Val, também escreveu duas narrativas que relatavam algumas
memórias sobre as paisagens de sua infância e de sua vida profissional, que foram
marcadas pelo trabalho pesado no campo (e confessou-me que pretendia
transformar em modas de viola, mas que ainda precisava arrumar algumas “letras
que não estavam combinando”, pedindo minha opinião sobre alguns versos).
Com alguma frequência, Carlos selecionava músicas para explorar a letra
durante o trabalho em roda. Uma delas era a música “Só eu sou eu”, de Marcelo
Jeneci, onde aproveitava para falar sobre que cada um tem sua importância no
mundo e também no grupo. Em uma das atividades, ele chamou a atenção para um
trecho da música23 e comparou a identidade com uma digital, afirmando que “cada
um tem a sua, cada um tem seus talentos”. Frequentemente o instrutor passava a
condução da prática para o grupo, durante o período de uma ou duas músicas, para
que cada um se expressasse com seus próprios movimentos. Era o momento
preferido da Suzana, uma praticante muito animada, que também era aluna da
FUMEC e sempre precisava deixar o grupo no meio da atividade, para seguir para
sua aula. Seus movimentos eram amplos e quase sempre nos levavam ao chão,
onde ela gostava de rolar e tatear o piso, esticando bem os braços, mexendo as
mãos e os dedos.
Sem dúvidas, essa maneira de Carlos conduzir o grupo – que incentiva
talentos e permite que os praticantes expressem suas subjetividades ao mesmo
tempo em que toma o discurso do risco para legitimar a importância da prevenção
de doenças – emerge um modelo de cuidado que ora se aproxima do paradigma da
vitalidade (20), ora se aproxima da lógica biomédica, tornando porosas as fronteiras
entre as perspectivas de sociabilidade e de biossociabilidade.
23
Só eu sou eu/Só eu sou eu/Além de mim não tem ninguém que seja eu. (Compositor: Marcelo Jeneci. Álbum: De Graça).
43
Por fim, o encerramento do trabalho de campo foi dedicado a dar um
feedback para o grupo, contando sobre a qualificação e a apresentação da pesquisa
em um congresso científico da área. Agradeci ao instrutor e aos praticantes pela
acolhida e pelo envolvimento no meu trabalho, que também me agradeceram por ter
escolhido o grupo e participado do MVE junto com a turma. A despedida foi muito
produtiva, pois formamos uma roda e cada praticante reafirmou a importância da
prática para si, contribuindo para minhas reflexões sobre o campo. Para cada
entrevistado, entreguei cartões de agradecimento pela participação na pesquisa.
Movimento Vital Expressivo Centro de Saúde II
As idas a campo no grupo de MVE do CS II tiveram início em março de
2015, após contato inicial com Milton, educador social do serviço e instrutor de MVE,
que posteriormente me apresentou à coordenadora do CS para que eu pudesse
apresentar a pesquisa e formalizar minha entrada em campo. A prática é ofertada às
terças e quintas-feiras, às 8 horas da manhã, no Centro de Convivência II24,
equipamento integrado ao CS II. O CECO funciona de segunda à sexta, em uma
pequena casa cedida pela prefeitura e apresenta inúmeros problemas estruturais,
sobretudo por falta de verba destinada ao serviço.
A sala onde as atividades em grupo são realizadas apresenta goteiras e
infiltrações, necessitando de uma reforma no telhado e também de uma revitalização
na pintura das paredes internas. O espaço é pequeno, não sendo possível oferecer
atividades que comportem muitas pessoas, limitando assim o acesso da
comunidade. Além disso, as dificuldades financeiras enfrentadas pelo serviço
repercutem também na aquisição de materiais para a realização das aulas de pintura
em tela, na compra de novos colchonetes para as práticas corporais, na manutenção
dos equipamentos eletrônicos (como ventiladores, aparelho de som, computadores
da lan house e da secretaria) e no número insuficiente de profissionais que ali
trabalham, sendo necessário contar com a cooperação de alguns voluntários para a
oferta de algumas atividades. Como apontado por Milton, essa situação reduz a
capacidade do serviço e impossibilita o trabalho com os jovens da comunidade, pois
24
O Centro de Convivência é aberto à comunidade e oferece atividades gratuitas como aulas de pintura, de dança, movimento vital expressivo, yoga, terapia comunitária, lan house, biblioteca, além de turmas da Educação de Jovens e Adultos (EJA) da Fundação Municipal para a Educação Comunitária (FUMEC), entre outras atividades.
44
inexistem profissionais habilitados para desenvolver, voluntariamente, oficinas de
grafite ou de computação, por exemplo. Diante deste contexto, uma estratégia para
ter dinheiro em caixa e manter minimamente o espaço é arrecadar verba a partir dos
passeios e excursões realizados pelo CECO e também contar com a doação de
materiais.
O CECO II está localizado em frente a uma praça pública equipada com
aparelhos de ginástica e de um pequeno centro comercial de compras. É próximo a
pontos de ônibus, da praça municipal de esportes do bairro e do centro de saúde. A
proximidade com o comércio é importante, pois observei que ao final da prática era
comum que algumas mulheres fossem juntas ao supermercado ou ao varejão para
comprarem alguns itens para o almoço. A interação e a conversa seguiam para além
do momento da prática, principalmente porque, na maioria das vezes, elas faziam o
percurso até suas residências a pé e moravam próximas umas das outras.
O grupo foi formado em 2008 e a prática é realizada em uma sala
equipada com aparelho de som, ventiladores, climatizadores de ar, colchonetes,
quadro de avisos com cartazes sobre excursões e cursos, lousa, telas de pintura
com variadas paisagens, cadeiras de plástico e uma mesa de madeira que é
montada e desmontada conforme a necessidade das atividades desenvolvidas neste
espaço. A turma é composta em média por 12 praticantes mais assíduos, mas a
presença variava de acordo com o dia, principalmente por causa das condições
climáticas e da proximidade com feriados. Homens eram apenas três e
frequentavam o grupo esporadicamente. Um deles, Seu Marcos, se aproximou mais
de mim ao saber que eu estudava na Unicamp, pois trabalhou na construção do
CAISM25 e sempre me perguntava como as coisas estavam por lá. Depois de um
longo período ausente, Seu Marcos retornou por alguns dias e me contou que
estava em tratamento no Centro de Atenção Psicossocial do território e que às vezes
as oficinas que participava coincidiam com os dias do MVE, o que inviabilizava sua
presença no grupo. As mulheres predominavam o grupo, com idades de 27 a 91
anos e muitas me relataram que conheceram o grupo por convite de amigas ou
vizinhas e também por convite da Helena, que é Agente Comunitária de Saúde e
instrutora de outro grupo de MVE no local.
25
Hospital da Mulher Prof. Dr. José Aristodemo Pinotti, localizado na área da saúde da Unicamp.
45
Algumas das praticantes também frequentavam o grupo de Lian Gong
e/ou de Yoga. Inclusive, participar de algum desses grupos de prática corporal
facilitava que as praticantes tivessem acesso, em primeira mão, às informações
sobre novas atividades oferecidas pelo CECO, como massagem, passeios, festas
comemorativas, cursos, viagens, entre outras oportunidades. Dessa forma, as
informações circulavam muito mais no “boca-a-boca” entre as pessoas que
frequentavam as atividades no Centro de Convivência do que em quadros de avisos
ou por orientações dos profissionais alocados apenas no CS.
Realizei entrevistas com seis praticantes, que foram realizadas nas
dependências do CECO, sempre após a prática de MVE. Apenas Lúcia se
disponibilizou espontaneamente para uma entrevista. A entrevista com Raimundinha
acabou virando uma narrativa sobre sua vida, pois em quarenta minutos de conversa
ela me contou sobre vários momentos de sua vida, desde a viagem da Bahia pra
São Paulo em um pau de arara, as dificuldades que passou em seus empregos até
a chegada em Campinas, já aposentada, cidade onde aprendeu a ler e foi acolhida
“sem discriminação” (já que, segundo ela, lhe era permitido visitar instituições como
o Palácio da Justiça e a Sede da Prefeitura sem ser expulsa, como acontecia em
outras cidades). Para não ser indelicada (e não comprometer nossa relação), eu
achei melhor não interferir em sua narrativa, pouco conduzindo a entrevista de
acordo com o meu roteiro de perguntas.
Quando convidei Dona Zilda e Dona Conceição, disseram-me que
preferiam marcar a entrevista pro mesmo horário, pois eram vizinhas e iam juntas
não só ao grupo, mas também nos passeios e viagens. Por várias vezes tentei
marcar uma entrevista com Dona Leila, uma das praticantes com quem eu mais
conversava, mas por causa da sua rotina atribulada, não foi possível marcar uma
horinha para uma conversa mais formal. Como estava com dificuldade em marcar as
entrevistas, pedi ajuda à Helena, que convidou Beth e Ivone, amigas que
“emendam” o MVE com as aulas de ginástica que são oferecidas pela Secretaria de
Esportes e realizadas em um espaço público próximo ao CECO. Mesmo interferindo
em suas aulas, as duas aceitaram o convite e foi uma oportunidade para eu me
aproximar destas praticantes, pois antes nós só nos cumprimentávamos
rapidamente no início da prática.
46
Chegar com antecedência era quase uma obrigação: as rodinhas de
conversa eram formadas e à medida que as praticantes iam chegando, todas se
cumprimentavam com beijos e abraços, sempre perguntando como estavam se
sentindo, como tinha sido o final de semana, ou sobre algum parente ou amigo em
comum. Quando alguma colega faltava, elas logo perguntavam aos instrutores se
sabiam o motivo da ausência. As conversas giravam em torno de notícias lançadas
pela mídia, de comentários sobre programas de TV como o Bem-Estar26 e de
reclamações sobre o Centro de Saúde e sobre as prescrições médicas, que muitas
vezes eram classificadas pelas praticantes como absurdas ou inadequadas.
Normalmente a conversa também acabava se estendendo por vários
momentos durante a prática, onde até a música virava pretexto pra “puxar” assunto.
Nos momentos de maior “burburinho”, Milton explorava a própria letra da música – e
o assunto da conversa – como estratégia para interagir com a turma e retomar a
concentração do grupo na atividade: em um dia de muita agitação, o instrutor então
lançou mão da meditação para que nós nos voltássemos ao grupo, para que
naquele momento e instante percebêssemos a amorosidade que permeava o
espaço e as pessoas. Fechamos os olhos e então ele desligou o som para trabalhar
o silêncio, o nosso próprio corpo e nossos pensamentos. Minutos depois, colocou
um samba para que pudéssemos nos expressar em movimentos livres e
experimentar, alternadamente, o silêncio e o barulho, a calmaria e a movimentação,
perguntando para cada praticante sobre as sensações vivenciadas com aquela
prática.
O Movimento Vital é conduzido por dois profissionais do centro de saúde:
Milton e Helena. Milton é formado em Psicologia e trabalha com o Sistema Rio
Aberto desde 1996. Oficialmente exerce o cargo de Educador Social e é o único
funcionário do Centro de Saúde alocado diretamente no CECO, com carga horária
total de trinta e seis horas semanais. Helena é Agente Comunitária de Saúde e
terminou a formação em Rio Aberto em 2015. Possui outras formações em práticas
integrativas como Shiatsu e em alguns tipos de Qi Gong, como o Lian Gong e o
Treinamento Perfumado. Atua também como instrutora de LG e monitora em outras
atividades no CECO, além de desenvolver atribuições de seu cargo diretamente na
unidade de saúde. Apesar de querer oferecer outras práticas corporais para a
26
Programa matinal sobre saúde exibido pela TV Globo.
47
comunidade, sua agenda no centro de saúde não permite que a instrutora
desenvolva essas atividades. Ambos são constantemente procurados pelas
praticantes e por outros usuários do CS com demanda bem variada: esclarecer
dúvidas, pedir informações sobre serviços públicos ou benefícios sociais, marcação
de consultas, renovação de receituários médicos, contar sobre problemas pessoais e
pedir conselhos, relatar melhoras na saúde, ou simplesmente pra conversar. Os
instrutores possuem um forte vínculo com a comunidade, reconhecidos como
profissionais de referência dentro do serviço pelos próprios usuários.
Em especial, dois episódios que presenciei em campo ilustram bem o tipo
de vínculo que se desenvolve entre estes profissionais e a comunidade:
O primeiro é a relação entre Milton e Cris, uma praticante de 27 anos, filha
da Lúcia, que está no grupo desde 2000. Em decorrência de complicações na hora
do parto, Cris apresenta algumas limitações em seus movimentos e em sua visão.
Ela frequenta o grupo uma vez por semana, quando tem liberação da escola onde
estuda pra praticar alguma atividade extracurricular. Assim que chegava ao CECO,
imediatamente procurava pelo Milton, e era perceptível a confiança que sente nele
(e claro, também o carinho mútuo), que a acompanha e a auxilia na execução dos
movimentos durante a primeira parte da prática, que é conduzida pela Helena.
Quando Milton assume condução do grupo, é Helena quem acompanha Cris, que
entre um movimento e outro, sempre chamava pelo instrutor. Ao final da prática,
quando normalmente era feita a meditação/relaxamento, Milton novamente ficava ao
lado da praticante, que em pouco tempo entrava no clima.
A segunda situação ocorreu durante minha entrevista com Helena,
quando Raimundinha chegou aflita, procurando pela instrutora para resolver um
problema: aluna da FUMEC há quatro anos em uma escola estadual do bairro, ela
foi avisada que precisaria trocar de turma, pois seu nome não estava mais na lista
de alunos. Estava preocupada com a mudança, pois sua professora – a Bia – além
de muito atenciosa, foi quem lhe ensinou a ler e a escrever, sempre paciente. Disse
que não queria trocar de professora e que se fosse assim, preferia parar de
frequentar as aulas. Então resolveu procurar Helena para perguntar sobre as aulas
que ocorrem no CECO, para saber sobre a professora, se poderia fazer essa troca
com segurança, já que, apesar de não conhecer a professora, achava que ela não
seria tão boa quanto à outra. Helena a abraçou e conversou calmamente, pedindo
48
que ela fosse um dia pra conhecer a turma e a professora, fazendo boas
recomendações. Raimundinha ficou pensativa e perguntou sobre o passeio que teria
para Itu. Helena mostrou a data no calendário, explicando-lhe que faltavam algumas
semanas. Um pouco mais calma, Raimundinha comparou a situação da mudança de
turma com sua preferência por fazer passeios com a instrutora, ao invés de fazer
com uma moradora do bairro que organiza excursões: “É que nem com passeio.
Passeio eu só vou com a Helena”27.
Embora o Centro de Saúde II e o Centro de Convivência II sejam
equipamentos integrados, com a mesma coordenação, no imaginário dos
usuários/praticantes e até mesmo de alguns funcionários, são espaços distintos: não
só por estarem em prédios diferentes, mas principalmente pela diferença no
acolhimento e no cuidado produzido nesses lugares. A proximidade e a
pessoalidade que ocorre no CECO, na relação profissional de saúde/usuário, são
bem diferentes da impessoalidade que predomina as relações estabelecidas dentro
do CS. Conversando com os instrutores, uma queixa recorrente foi que os serviços
de atenção primária estão funcionando como um pronto atendimento, não
conseguindo priorizar atividades preventivas e de promoção à saúde. Além disso, o
próprio espaço físico do CS não favorece o trabalho com grupos, já que o prédio
está projetado para atendimentos individualizados, como consultas, vacinação e
outros procedimentos biomédicos.
Tais características corroboram para a desvalorização das práticas não
convencionais, que muitas vezes não são visibilizadas em seu potencial de cuidado
e de produção de saúde. Como relatado pelos próprios instrutores, suas atividades
muitas vezes são apontadas como “uma simples dancinha” por alguns profissionais
do CS. Desta forma, para eles, o baixo número de encaminhamento do centro de
saúde para as atividades oferecidas no CECO se dá principalmente por
desconhecimento do profissional, pois, ou eles não conhecem a grade de
programação das atividades oferecidas pelo serviço, ou simplesmente porque não
reconhecem as práticas corporais enquanto recurso terapêutico. Além disso, Helena
e Milton afirmaram ainda não ser incomum a marcação de reuniões durante os
horários dos grupos e até mesmo a suspensão das atividades em épocas de
27
Diário de Campo, 07/07/2015.
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epidemias de dengue ou outras doenças: as práticas corporais (e qualquer outra
atividade não convencional) não são priorizadas pelo serviço.
No campo das práticas corporais, o cuidado não se limita à atenção
biomédica, focada apenas na saúde física. Esta outra forma de cuidar acolhe e cuida
da pessoa e não da doença, deixando ver os limites do modelo biomédico de
cuidado, que fragmenta o indivíduo e assenta-se em um discurso do risco,
direcionado pela lógica da prevenção riscológica. Em um dos encontros, Milton
afirmou o CECO como um espaço de integração e que o MVE “não é atividade
física, é outra coisa”, pois a atividade estimula a harmonia. Completando sua
narrativa, falou então sobre os chakras e explicou o que era, afirmando que cada um
tem sua função – quando desalinhados e ocupando o lugar do outro, ocasiona um
desequilíbrio emocional que reflete diretamente na saúde.
No grupo de MVE do CSII/CECO não havia qualquer tipo de registro em
prontuários do serviço e os instrutores não faziam nenhum tipo de avaliação de
saúde dos praticantes. Havia apenas uma lista de presença, que era preenchida por
Helena, e um cadastro com informações pessoais de cada praticante, com dados,
por exemplo, sobre uso de medicação ou problema de saúde. Os instrutores
habitualmente explicavam para a turma sobre a proposta do MVE como uma
atividade preventiva, ressaltando a importância dos movimentos e de sair um pouco
do padrão do dia a dia, trabalhando a concentração, equilíbrio e lateralidade, a
coordenação motora, a percepção, a consciência de si, a interação com outras
pessoas e com o meio ambiente (natural e social), sentindo e experimentando o
próprio corpo. Em uma das práticas, Milton conduziu um trabalho onde explorou a
sensação de plantar os pés no chão “para adquirirmos consciência e percebemos
nossa energia, nosso amor e sabedoria”, passando esse exercício como “lição de
casa”.
O instrutor Milton procurava explorar as letras das músicas, trabalhando
tanto as emoções (medo, ansiedade, alegria, autoestima), como temas relacionados
a fatos históricos, cidadania e política, estimulando a autonomia, a participação
social e refletindo sobre o lugar que ocupamos no mundo. Uma vez, após um
período de greve dos servidores municipais, o instrutor usou este contexto para
conduzir uma reflexão – tanto mental, como corporal – sobre a música
“Guantanamera”, para falar sobre as mudanças no quadro socioeconômico do Brasil
50
nos últimos vinte anos, as conquistas de movimentos populares e também sobre o
retrocesso na política atual. Com isso, afirmou nossa integração com o meio em que
vivemos e reforçou nossa capacidade enquanto coletividade e indivíduo. Em outro
momento, durante a meditação final, Milton falou para tomarmos consciência do
nosso corpo e, a partir disso, irradiarmos “luz para proteção das árvores das nossas
ruas e da nossa comunidade”, ressaltando nosso lugar no mundo.
Interessante notar que, quando o MVE era encerrado com relaxamento,
algumas praticantes iam embora nesse momento e algumas não se deitavam nos
colchonetes que eram distribuídos pelo espaço, ficando apenas sentadas na mureta,
em silêncio. Eu sempre fiquei curiosa sobre o motivo da “não adesão” ao
relaxamento, e aos poucos, durante a interação ao longo da permanência em
campo, fui descobrindo o motivo de não aproveitarem um momento que, para mim,
era tão gostoso: não perder hora pra arrumar o filho pra ir pra escola; aproveitar a
última meia hora da ginástica localizada, oferecida pela Prefeitura na praça de
esporte; ou simplesmente por terem dificuldade para realizar o movimento de
deitar/levantar por causa da labirintite ou de problemas na coluna.
Ao longo da pesquisa de campo, comecei a notar diferença na maneira
como os dois instrutores conduziam a prática e achei interessante perceber isso
através da intensidade dos movimentos, que refletia nas sensações que eu sentia no
meu corpo. Enquanto as músicas escolhidas pelo instrutor seguiam pelos gêneros
da MPB, New Age e Instrumental, a instrutora Helena selecionava principalmente
músicas do pop internacional. Tais escolhas diferenciavam o trabalho corporal
desenvolvido pelos instrutores: ao passo que os movimentos conduzidos pela
instrutora Helena tinham mais força e rapidez, os movimentos executados por Milton
eram mais leves e suaves. Ocasionalmente as praticantes também comentavam a
diferença entre os instrutores, pontuando que os movimentos da instrutora eram
mais cansativos e as músicas eram mais agitadas, enquanto que as músicas que o
instrutor escolhia eram mais calmas. Contudo, identificar esse padrão no trabalho
corporal de cada um dos instrutores não se trata de diferenciar de maneira
classificatória, mas diz respeito à oportunidade de poder experimentar e expressar o
que está incorporado e é trazido à consciência no movimento.
Geralmente eu era a primeira praticante a chegar e ficava conversando
com Helena sobre assuntos variados. Raimundinha também chegava cedo e sempre
51
contava algo sobre sua infância e juventude no interior da Bahia, além de
costumeiramente pegar algum livro na biblioteca do CECO, pois dizia que, como
começara a estudar há pouco tempo, aproveitava para treinar sua leitura em livros
de História – de preferência aqueles que tinham “figuras de personagens famosos”,
segundo ela – e também de livros de orientação católica, que é a sua fé. Por duas
vezes me chamou para ajudá-la com a leitura e mostrar suas fotos favoritas,
justificando suas escolhas e relembrando lugares da Bahia por onde andou e
contando sobre os preconceitos que sofreu ao querer entrar em prédios históricos e
institucionais em Salvador. Dona Consuelo, outra praticante, também chegava cedo
e conversava bastante com Helena e comigo, seja para falar sobre suas dores no
pescoço e coluna (sempre apontando a região dolorida e mostrando o calombo em
seu ombro), reclamar dos motoristas de ônibus que servem o bairro ou para contar
fatos engraçados (principalmente sobre sua netinha ou sobre as fofocas dos
famosos que via na TV).
Conversando com as praticantes – informalmente ou durante as
entrevistas – não foi raro ouvi-las falar sobre o que aprenderam assistindo ao
programa “Bem-Estar”. Dona Consuelo, por exemplo, descobriu “o que era” sua dor
– nevralgia – ao ver um episódio onde um médico descrevia os sintomas, mostrando
as regiões afetadas. Ela mostrou confiança na descrição feita pelo profissional e me
demonstrou como sua dor irradiava e quais eram as consequências em seu corpo.
Contudo, mesmo se identificando com a explicação do especialista na TV e levando
sua queixa ao médico do Centro de Saúde, este não concordou com o diagnóstico e
continuou com o mesmo tratamento, recomendando ainda que ela parasse suas
atividades costumeiras (como o próprio MVE e as tarefas domésticas) para seguir
repouso absoluto. Isso a deixou contrariada, pois discordou do “não diagnóstico” do
médico e da prescrição, já que, para ela, “ficar deitada e entocada dentro de casa”
só faria a dor piorar. Assim, mesmo relatando alguma dor ou dificuldade para fazer
as tarefas domésticas e até mesmo para fazer o percurso até o Centro de
Convivência e realizar alguns movimentos, seguiu frequentando o grupo, fazendo a
prática no seu limite, muitas vezes apenas ficando sentada até o término da
atividade.
Dona Leila também ocasionalmente compartilhava o que aprendia com o
programa e contestava a recomendação médica de “repouso absoluto” por conta de
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um problema na coluna e seguia seu próprio tratamento, com base naquilo que ela
mesma sentia que lhe fazia bem ou mal. Numa de nossas conversas, disse que o
médico a proibiu de sair da cama, mas, para ela, isso só piorava sua dor e ficar
dentro de casa fazia com que ficasse “doente também da cabeça”, principalmente
porque sempre teve uma “vida ativa”. Então, para ocupar a cabeça e “continuar na
ativa”, fazia crochê. Além disso, resolveu, por conta própria, voltar para o MVE
depois de seguir a orientação médica por alguns dias. Neste dia, inclusive,
mencionou para Milton que ainda estava com dor na coluna, e por isso o instrutor
adaptou a prática para trabalhar apenas respiração, alongamento e relaxamento,
aliviando as dores que ela estava sentindo.
Durante o trabalho de campo eu tive duas lesões na pele que
comprometeram os movimentos dos meus braços, e por isso não consegui realizar a
prática durante um bom tempo. Nesse período, comuniquei aos instrutores e
praticantes que ficaria apenas sentada, pois eu não conseguia mexer os braços e
nem fazer nenhum tipo de força. Em um de nossos encontros, Dona Leila veio me
contar que tinha visto em um programa da TV Canção Nova sobre um problema de
pele parecido com o meu, e que então sabia o que era e o que eu deveria fazer pra
tratar: disse que se tratava de herpes, e que a neta também tinha tido. Recomendou-
me, então, um tratamento “bem simples”: passar tinta de caneta tinteiro no local da
lesão, pois isso faria o “cobreiro” desaparecer. Mais praticantes se juntaram a nós e
começaram a trocar simpatias e outros saberes, comprovando a eficácia através de
suas próprias experiências e argumentando sobre suas desconfianças acerca de
medicamentos industrializados.
Em minha entrada neste campo, Lúcia foi a primeira praticante que se
aproximou pra conversar comigo e se disponibilizar pra uma entrevista. Ela me disse
que no dia anterior estava justamente falando com sua irmã sobre a importância do
grupo para não ficar só em casa e conhecer outras pessoas, manter outros contatos
e que isso também era bom pra saúde, que a interação com o grupo era saúde. Os
passeios e as festas comemorativas organizadas pelo CECO eram datas muito
esperadas pelas praticantes, que sempre me falavam sobre os lugares pra onde já
tinham ido com o grupo. Durante a pesquisa de campo, foram organizados dois
passeios – o primeiro para o Hotel Fazenda Solar das Andorinhas, localizado em
Campinas, e o outro para Itu – além de uma festa para comemorar o dia das mães,
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que foi realizada no próprio centro de convivência. Além disso, acompanhei um
pouco os preparativos da excursão para a Praia Grande, que foi realizada em
novembro de 2015. Estive com a turma em dois destes momentos.
O primeiro foi na comemoração do dia das mães, num animado chá da
tarde com bingo, onde as convidadas levaram uma prenda e também algum quitute
para contribuir com a mesa da festa. Durante as duas semanas que precederam o
evento, os instrutores fizeram o convite para todas as praticantes, inclusive para mim
(mesmo não sendo mãe), pedindo que convidassem outras colegas de grupo que
não estavam presentes e que também contribuíssem com a doação de itens para as
premiações do bingo. Como eu estava na dúvida do que levaria, acabei perguntando
para Dona Cândida e pra Dona Cida, do grupo de Lian Gong, o que as meninas
costumavam levar e o que elas achavam mais interessante, para eu não errar na
escolha. As prendas sugeridas foram principalmente itens de cozinha, como
conjunto de potes plásticos, panos de prato e também coisas para uso pessoal,
como sabonetes e porta-moedas. Com base nas sugestões, acabei levando um par
de brincos e uma carteira artesanal, feita com um tecido estampado. Cerca de
quinze mulheres participaram do evento e Milton foi o locutor das rodadas do bingo,
“cantando” os números sorteados de maneira animada. Foi uma tarde divertida e
acabei sendo escalada pela Laura – Agente Comunitária de Saúde do CS II e que
também desenvolve atividades no CECO – para marcar a cartela de bingo de
Raimundinha, que se sentou ao meu lado e acabou me dando sorte, já que ganhei
três prêmios, fato que rendeu brincadeiras e vibrações das colegas de MVE e LG,
que acharam graça em minha animação, pois era a primeira vez que ganhava
prêmios em um bingo. Por fim, dividi os prêmios com Raimundinha, pois foi uma
forma que encontrei para expressar meu carinho por ela e retribuir sua companhia,
confiança e amizade.
O segundo momento “extra-prática” que acompanhei foi uma excursão,
realizada no final de julho, para o Camping Casarão e para a Casa de Chocolate, em
Itu/SP. Milton, Helena e Laura começaram a organizar o passeio dois meses antes,
com o planejamento da viagem, marcação da data e informes sobre valores e
condições de pagamentos. Aproximadamente quarenta pessoas participaram desse
passeio que durou o dia inteiro, com direito a três refeições, bingo, baile de
confraternização e uma animada quadrilha junina. Nessa viagem, minha
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companheira foi Raimundinha, que me convidou pra ir porque eu iria gostar, pois o
Casarão era “um lugar muito legal pra passar um dia diferente”. Porém, o mais
aguardado pela minha companheira era o baile, motivo principal para nunca perder
esse passeio – “Eu estou velha, mas estou bem. Não é porque eu tô com 89 anos
que não faço as coisas, eu vou porque eu gosto é de dançar”. Foi um dia bem
agradável e pude, de fato, aproveitar para conhecer lugares novos e reconhecer que
eu realmente não tenho muito jeito para dançar (sendo até repreendida por
Raimundinha).
A aproximação com o grupo, tanto na participação na festa de dia das
mães, quanto nos encontros semanais pra realização do MVE e também durante as
entrevistas, contribuiu para conhecer e compreender os significados e sentidos
atribuídos pelas praticantes para a prática corporal e para o grupo em si. Algo que
diz respeito, sobretudo, às escolhas e à permanência no grupo, e que se ligam ao
empoderamento e ao cuidado emancipador que são estimulados pela própria
prática: como por exemplo, o autodiagnostico de Dona Consuelo e sua discordância
com a prescrição médica; ou então Raimundinha, que mesmo achando que estava
muito magra e sua filha pedindo que então parasse de “fazer ginástica”, não quis
abrir mão de continuar praticando o MVE, afirmando: “eu venho porque tem as
meninas e eu me divirto”.
Isso também se expressava na insistência de Benê em continuar no
grupo, apesar de se mostrar incomodado com o fato de ser o único homem que
frequentava o MVE (o que às vezes o fazia pensar em desistir de ir), assim como em
afirmações de algumas praticantes como “música traz muita mudança, já melhorei
muito desde que comecei aqui” ou “se não fosse bom, a gente não viria aqui”, que
foram feitas durante uma das minhas apresentações sobre a pesquisa no grupo, no
momento em que eu convidei as pessoas para participarem das entrevistas,
explicando qual era o meu propósito com o roteiro de perguntas. Houve, também, o
dia em que Dona Leila não poderia ter ido ao MVE por que sua filha estava recém-
operada e sua neta estava passando por uma cirurgia naquele momento, mas,
mesmo preocupada com a situação, foi pra prática, a contragosto até mesmo do
marido. Escolher continuar a prática, mesmo com as recomendações contrárias a
isso feitas pelos profissionais ou por membros das suas redes sociais, é uma forma
de demonstrar autonomia e que o próprio praticante também é agente de promoção
55
de saúde, desfazendo a ideia de que é apenas o médico que promove saúde. Afinal,
ninguém melhor do que a própria pessoa pra sentir o que lhe faz bem ou não.
Na finalização do trabalho de campo, fiz uma breve conversa com a
turma, agradecendo aos instrutores e praticantes por me aceitarem no grupo e por
compartilharem comigo suas histórias. Reafirmei a importância da oferta das práticas
integrativas no SUS, como algo que vai além dos aspectos físicos e entreguei
cartões de agradecimento às praticantes que participaram das entrevistas.
Lian Gong no Centro de Saúde I
As idas a campo no grupo de LG do CS I tiveram início em março de
2015, após o grupo retornar de um período de férias. A entrada no grupo ocorreu
com mediação de Silvana, coordenadora do serviço de saúde, que comunicou à
instrutora sobre minha pesquisa de mestrado, marcando um dia para acompanhar a
prática. Neste momento, me apresentei à Teresa, Agente Comunitária de Saúde e
instrutora de LG, que, posteriormente, me apresentou ao grupo e abriu um espaço
para que eu falasse sobre os objetivos da pesquisa e a forma como seria realizada.
O grupo tem acesso livre e a prática é realizada duas vezes por semana, às 3ºf e às
5ºf, das 08:00h às 09:00h no galpão de um clube particular, que está localizado
próximo ao CS. O espaço também é utilizado em outros horários para aulas
particulares de zumba fitness, de treinamento funcional e de ioga, além de festas,
bingos beneficentes e gravação de um programa sertanejo de uma emissora de TV
local.
A instrutora fez sua primeira capacitação em LG em 2005, assim que
começou a trabalhar no CS I28. Teresa me contou que, naquela época, o serviço
oferecia vários grupos desta prática corporal e que ao longo dos anos “eles foram se
perdendo”, restando apenas o seu, apesar de o CS ter outros profissionais de saúde
com capacitação em Lian Gong. O grupo tem em média 50 praticantes, sendo que a
maioria eram mulheres acima dos 45 anos. Sete homens frequentavam o grupo, e
cinco deles iam acompanhados de suas esposas. O grupo tem um perfil
socioeconômico bastante diferenciado dos outros grupos da pesquisa: um número
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A instrutora explicou que, desde então, participou de alguns encontros para reciclagem de instrutores. Relatou também que no primeiro semestre de 2015 o curso de formação para novos instrutores foi suspenso pela Secretaria Municipal de Saúde por causa da epidemia de dengue na cidade.
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expressivo de praticantes tem formação superior completa, moram em condomínios
fechados de médio e alto padrão e possuem plano de saúde privado. Outra
diferença refere-se ao tipo de roupa usada pelos praticantes, que normalmente
vestiam roupa de ginástica, comuns em academias – tênis de marca, calça legging,
cabelo amarrado e tops que transpareciam através das camisetas (mulheres) e calça
de tactel (homens). Esse traje era bem distinto dos outros grupos, sobretudo o de LG
do CS II, onde a maioria das praticantes, geralmente as mais idosas, usava calça de
malha, saia (no caso das praticantes evangélicas), bermudão e calçavam sandálias
anatômicas, do tipo Usaflex.
Na minha primeira ida a campo, fui direto para o salão comunitário da
paróquia local, pois a coordenadora do CS havia me dito que era lá que o LG
acontecia. Entretanto, ao chegar, achei estranho o espaço estar vazio, pois faltavam
poucos minutos para o início da prática. Então, fui até a secretaria, onde me
informaram sobre a mudança de local. Chegando ao clube, identifiquei vários
praticantes, pois muitos deles estavam uniformizados com camisetas estampadas
que faziam alusão ao Lian Gong. Confirmei com eles se o local estava correto e
perguntei pela instrutora, que estava chegando e cumprimentou a todos, chamando-
os pelos nomes, abraçando um por um.
Esperei as pessoas falarem com Teresa e então me apresentei como
“aluna da Unicamp” e disse que havia marcado a visita com a coordenadora do CS.
Conversamos sobre a pesquisa e pedi autorização para realizar o trabalho de campo
enquanto pesquisadora-praticante. Teresa foi muito atenciosa e me perguntou se eu
conhecia o LG, apresentando-o resumidamente, e entregou uma cópia de uma
apostila com informações sobre a história e os objetivos da prática, bem como
desenhos que ilustram as três séries de movimentos do LG. Num primeiro momento,
Teresa ficou preocupada com a execução dos movimentos, achando que eu estava
ali para analisar e avaliar a prática em si29. Fiquei um pouco sem graça por ter
causado tal preocupação, mas ao final do encontro consegui contornar a situação e
explicar mais claramente a minha presença e como seria o trabalho de campo.
29
Durante a prática, Teresa se confundiu com um dos movimentos e pediu desculpas pra turma, dizendo que eu daria “nota 0” na minha avaliação. A turma riu, e eu disse que eu não tinha como avaliar, pois não era especialista no assunto e nem uma praticante experiente, reforçando meu objetivo com a dimensão social dos grupos de práticas corporais.
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Ao me apresentar para o grupo e contar os objetivos da pesquisa e forma
da minha participação, oito senhoras me olharam e vieram em minha direção falando
que eu estava no lugar certo, pois naquele pedaço (próximo ao palco) era o “canto
das festeiras” e contaram que adoravam uma boa conversa e que ali todas eram
amigas. Por esta receptividade, acabei ficando perto delas, o que não me impediu
completamente de me aproximar de outros praticantes. Nessa ocasião, Sílvia, uma
das praticantes “festeiras” espontaneamente me procurou para conversar sobre a
pesquisa e se colocou à disposição para uma entrevista, pois queria me contar sobre
a sua história com o Lian Gong (e não foi à toa que foi a primeira entrevistada).
Ao longo dos meses que passei com o grupo, Teresa foi muito solícita,
principalmente com a questão das entrevistas com os praticantes, sempre me
perguntando se eu já tinha entrevistado alguém, me recomendando algumas
pessoas e também me ajudando a convidar alguns homens para participarem da
pesquisa. Além disso, ela aceitou participar prontamente da entrevista, que foi
realizada no quintal do CS e durou uma hora.
Desenvolvi uma relação mais próxima com algumas praticantes, com as
quais me senti a vontade para conversar assuntos variados e também perguntar
sobre questões relacionadas ao grupo, assim como os efeitos do LG em suas vidas.
Entretanto, apesar de sentir afinidade com essas praticantes, esse não foi o único
requisito para escolher os entrevistados, tanto porque sabia de suas rotinas e
compromissos pós-prática (e não quis marcar um horário sabendo que isso poderia
atrapalhar suas atividades), como também percebi que o convite poderia causar
certo desconforto. No total, entrevistei quatro praticantes, sendo dois deles – Rubens
e Denise – indicados pela instrutora.
A entrevista com Rubens quase não aconteceu. Mesmo ele já tendo
aceitado o convite feito primeiramente pela Teresa, quando fui marcar o dia, ele ficou
reticente, pois não tinha entendido muito bem o motivo da entrevista e o porquê da
minha escolha (e insistência em entrevistá-lo). Expliquei pra ele sobre a pesquisa e
falei que seria interessante entrevistá-lo, já que ele representaria a ala masculina do
grupo. Algumas datas foram desmarcadas em cima da hora, mas na última tentativa
– que eu pensei que fosse fracassar por causa da chuva forte que caía e porque ele
teria um compromisso após a prática – o próprio Rubens sugeriu que fizéssemos a
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entrevista durante o LG. Fomos então para a portaria do Clube, onde foi possível
conversar sem que o som atrapalhasse a gravação da entrevista.
Quando Teresa me indicou Denise, disse que seria interessante
entrevistá-la, pois, além de estar no grupo há muito tempo, a praticante também
acabara de ser selecionada pela prefeitura para integrar um grupo de dança de
salão para representar a cidade no JORI - Jogos Regionais do Idoso. Além disso,
como ela é bem ativa no grupo – é uma das “assistentes” da instrutora, auxiliando os
praticantes novatos na execução dos movimentos – decidi entrevistá-la. A entrevista
durou cerca de meia hora e foi realizada na praça em frente ao Clube, já que o lugar
é fechado assim que a prática termina.
As outras duas entrevistas foram realizadas com Sílvia e Heloísa, duas
praticantes com quem desenvolvi uma relação mais próxima, já que desde o início
do trabalho de campo elas vieram conversar comigo, achando interessante o foco da
pesquisa. No caso de Sílvia, ela pediu para ser entrevistada já no primeiro dia, me
deixando bastante entusiasmada com sua espontaneidade e identificação com o
objetivo da minha pesquisa. Como eu ainda queria sentir o campo e compreender
um pouco mais sobre a dinâmica do grupo, esperei cerca de um mês para dar início
às entrevistas. A entrevista foi feita na praça em frente ao Clube e durou cerca de
uma hora. Após o fim da entrevista, ela me convidou para comer um pastel na feira,
onde conversamos por mais um tempo.
Convidei Heloísa, uma senhora que, logo no início do meu trabalho de
campo, puxou conversa comigo para perguntar sobre a pesquisa e minha formação.
Na ocasião, descobri que ela também é praticante de Movimento Vital Expressivo e
se mostrou muito sensível com as PICS, falado das suas experiências com médicos
que só sabem diagnosticar a doença e medicar, sem considerar as “emoções das
pessoas”. Relatou que precisou ficar em repouso por um período, por causa de um
problema de saúde, mas não aguentou ficar longe do grupo e voltou só pra ver o
pessoal. Falou também sobre seu marido – Seu José – que a acompanha no LG e
que se tornou praticante por causa dela, depois de muita insistência. Para ela, o
marido desenvolveu muita autonomia e confiança no grupo, tanto que, mesmo
durante sua ausência, ele não deixou de ir para a prática. A entrevista durou cerca
de uma hora e foi feita na copa do CECO, onde, nas tardes de segunda-feira,
Heloísa participa de duas atividades no local. Além disso, ela me presenteou com
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duas narrativas (ANEXOS E e F) que fez sobre sua relação com o MVE e o LG,
além de fotos que marcam momentos importantes junto a esses grupos.
Houve também uma “não entrevista”, que acho interessante mencionar
porque diz muito sobre a importância do grupo na vida dos praticantes. Durante a
entrevista com Teresa, ela me contou sobre a história de algumas praticantes,
explicando como “estar com o grupo” era importante para elas, e falou sobre Dora,
que começou a praticar Lian Gong após a morte do filho. Teresa sugeriu que eu
entrevistasse essa praticante, mas, sabendo dessa história, achei que seria algo
muito delicado e não me senti a vontade para fazer o convite à Dora. Passados
alguns dias, ela me procurou e disse que Teresa havia feito o convite para que
fizesse a entrevista comigo, mas se desculpou e disse que não conseguiria, pois sua
relação com o grupo tem a ver com perda e com luto. Então me contou sua história e
chorou, falando sobre a força e o acolhimento que encontrou no grupo e como que
isso a ajudou a amenizar o sofrimento. Eu apenas a abracei e disse que
compreendia e que não queria causar nenhum desconforto.
A interação entre o grupo – inclusive com a instrutora – é muito forte,
sobretudo porque muitos moram no mesmo condomínio e/ou frequentam os mesmos
lugares (clubes, igrejas, centro cultural, festas, academias, entre outros). Não era
raro ouvir algumas praticantes fazendo convites para festas da comunidade,
apresentações de dança, exposições de arte e até mesmo chamando uma às outras
para um café da manhã na padaria ou para comerem pastel na feira, que funciona
às quintas-feiras na praça em frente ao Clube. Eu mesma fui convidada em algumas
ocasiões, e em uma delas me aproximei de um casal de praticantes para perguntar
se eles conheciam meu pai, pois numa conversa com outra praticante, fiquei
sabendo que Gilson e Nadir haviam trabalhado na mesma empresa que ele. Foi uma
grata surpresa e pudemos conversar um pouco sobre esse ponto em comum.
Teresa aproveitava os momentos pré e pós-prática para passar informes
pontuais sobre vacinação ou outra ação de saúde pública do CS, eventos e
campanhas de entidades assistenciais da comunidade, além de comunicar sobre os
“passeios culturais” para cidades da região e outras viagens que ela promovia como
guia de turismo aos finais de semana. Durante o aquecimento, convidava
aleatoriamente alguns praticantes para fazer a contagem das repetições dos
exercícios, chamando-os pelos nomes, de modo que todos pudessem se
60
(re)conhecer. Quando um novato chegava, ela apresentava para o grupo e
mencionava em qual bairro a pessoa morava, para que os praticantes se
identificassem também por este quesito.
Durante o período de trabalho de campo, foram realizados dois passeios
culturais – o primeiro, uma viagem com paradas em Socorro, Monte Alegre do Sul e
Morungaba; o segundo, para São Paulo. Além disso, também teve três festas: uma
feijoada para comemorar o Dia das Mães, o aniversário de sessenta anos da
instrutora e um café da manhã para celebrar o Dia dos Pais. Essas ocasiões
ajudaram a me aproximar mais de Teresa e também de outros praticantes, que se
mostraram interessados não apenas em saber mais sobre a pesquisa ou perguntar
se eu estava precisando de ajuda, mas em conversar assuntos diversos. Tive a
oportunidade de participar de três destes momentos.
Segundo um ofício do CS estes passeios e reuniões têm como objetivo
“estimular a convivência saudável entre os praticantes”, sendo momentos
importantes para a interação e sociabilidade entre eles. Em datas comemorativas
como aniversário do grupo, dia das mães e festas de final de ano, Dona Heloísa
sempre é convidada por Teresa para escrever alguma mensagem sobre a data, pois
ela é poetisa. Embora Heloísa geralmente não participasse desses eventos por
causa de um problema de saúde, ela sempre se engajava na missão, como uma vez
me contou: “eu faço isso como uma forma de retribuir todas as coisas boas que o
grupo me trouxe”.
A primeira viagem marcou a comemoração de dez anos do grupo de LG
do CS I e foi organizada a partir de sugestões dos praticantes, que escolheu fazer
paradas nas três cidades para aproveitar algum de seus pontos turísticos. Foram
passadas uma lista de presença e uma Nota de Esclarecimento (ANEXO G)
assinada pela coordenadora do CS, autorizando o passeio e isentando a
responsabilidade do serviço em caso de acidentes. Fui convidada por Teresa a
sentar-me com ela e ajudá-la a servir pacotes de biscoito salgado para a turma. Ela
me falou sobre sua relação com o LG e como foi terapêutico fazer essa formação e
poder desenvolver um trabalho em grupo, pois isso a ajudou a lidar com um
momento delicado de sua vida, quando seus filhos saíram de casa. Também me
contou sobre sua vinda pra Campinas e a trajetória profissional de seu marido, além
da sua preocupação e cuidados com sua filha, que mora no exterior. No vai e vem
61
da conversa, também falei sobre algumas experiências pessoais, contando sobre
como fui parar na área da Saúde Coletiva e o meu interesse pelas práticas
integrativas e complementares em saúde.
Ao chegarmos a Socorro, fiquei pensando como faria minha observação
participante, pois o grupo se dispersou para fazer compras. Além disso, me senti um
pouco deslocada – eu ainda era novata na turma – já que não fazia nem um mês
que eu havia começado o trabalho de campo. Fiquei alguns minutos andando
sozinha, mas, já a caminho da primeira loja, algumas praticantes me abordaram,
perguntando se eu já conhecia a cidade e se eu estava gostando do passeio e da
turma. Sílvia me parou para conversar, pedindo que eu marcasse um “horário mais
tranquilo pra conversar”, sugerindo que eu preparasse um roteiro de perguntas, pois
queria que eu a entrevistasse. Combinamos então que faríamos a entrevista na
semana seguinte ao passeio.
Durante a viagem fui sabatinada pelo grupo. As pessoas me pararam para
perguntar se eu estava gostando dos lugares, para pedir opinião sobre compras, se
eu estava gostando da turma (até mesmo se estavam se “comportando bem”), do
que se tratava a minha tese, se eu tinha bolsa FAPESP, qual era a minha área de
formação, se o passeio estava sendo produtivo e se eu estava anotando tudo em
meu relatório. Inês, Regina e Amélia foram algumas dessas praticantes que se
aproximaram para saber mais sobre a pesquisa. Já Rosana e Cláudia passaram a
me chamar de colega e queriam saber o que eu estava achando do passeio.
Regina me chamou pra conversar e contou sobre sua carreira como
professora titular da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Unicamp e me falou
sobre sua atuação como pesquisadora. Além disso, me perguntou se eu conhecia a
região por onde estávamos passando – o distrito de Visconde de Soutelo – e me
contou a história de sua família, que é daquela região. Na hora do almoço, Cíntia fez
um brinde e falou sobre a importância do grupo e dos vínculos de amizade, que são
difíceis de serem mantidos atualmente. Para ela, “o grupo virou extensão da família”.
Para não ficar sozinha, acabei me convidando para sentar junto com Sílvia e Regina,
que não recusaram o convite. A conversa se estendeu e me contaram sobre seus
netos.
A comemoração do Dia das Mães foi realizada na casa de Cíntia, uma
professora aposentada que está no grupo desde 2013, e foi cobrado um valor para
62
custear os ingredientes da feijoada e o cozinheiro que foi contratado para cuidar do
almoço. Fui de carona com Denise e Rosana, já que a casa fica em um condomínio
fechado de difícil acesso para quem utiliza transporte público. O bingo não podia
faltar. Cada praticante levou uma prenda para contribuir com as premiações das
rodadas do bingo, e acabei levando um mini vaso de flor, já que não fazia ideia do
que levar. Como o ambiente estava dividido por mesas, interagi mais com Rosana e
Telma, com quem dividi uma mesa durante o almoço. Durante a festa, Teresa
demonstrou preocupação comigo, cuidando para que eu não ficasse deslocada,
perguntando se estava à vontade e se eu precisava de alguma coisa.
Conversei bastante com Rosana, que carinhosamente me apelidou como
“adolescente do grupo”, quando Rubens veio brincar comigo, dizendo que não
entendia porque estava no meio de tantos “velhos” e que eu deveria fazer pesquisa
no museu, já que gostava de coisa antiga. Ela me falou sobre as festas do grupo e
que às vezes não consegue participar de todos os eventos, pois geralmente cuida
da sua netinha. O assunto rendeu, e ela ainda contou que começou a desenvolver
ataques de ansiedade por causa desta tarefa, e que por isso precisou procurar
alguns médicos especialistas e passar por alguns exames. Entretanto, após o
cardiologista lhe receitar um ansiolítico, resolveu experimentar a acupuntura, pois,
ao ler a bula do medicamento, não concordou com a prescrição médica,
principalmente por causa dos efeitos colaterais.
Por fim, não ganhei nenhum prêmio no bingo, mas não saí da festa com
as mãos vazias. Mesmo eu não sendo mãe, fui presenteada – juntamente com as
praticantes que são mães – com uma rosa artificial e uma poesia escrita por Heloísa,
em homenagem ao dia. Também levei pra casa duas marmitas de feijoada, que
foram oferecidas pela dona da casa. Mas o mais importante do evento foi ter me
aproximado de Rosana, com quem ainda não tinha tido muito contato. Depois desse
dia, passamos a conversar com mais frequência, além de trocar figurinhas sobre
acupuntura, sobretudo depois que eu também comecei a fazer um tratamento com
Medicina Tradicional Chinesa na mesma clínica que ela, por causa das suas boas
referências.
Estive presente também na festa de aniversário da instrutora, que
aconteceu em julho. A comemoração ocorreu ao final da prática, no próprio Clube.
Muitos praticantes a presentearam, inclusive eu, que dei um vaso de flores. Além
63
disso, Teresa foi homenageada com uma mensagem escrita por Heloísa, que
assinou em nome do grupo. Como já havíamos ultrapassado o horário do LG,
dividimos o espaço com uma aula particular de treinamento funcional, sem que isso
atrapalhasse a atividade ou impedisse que o grupo permanecesse no local para
aproveitar a festinha. Teresa serviu bolo aos que estavam no local e algumas
praticantes levaram comes e bebes para complementar a mesa. Foi uma
comemoração breve, pois a instrutora precisava voltar ao CS para cumprir suas
outras tarefas no serviço.
Como o Clube não possui convênio com o Centro de Saúde ou com a
Secretaria Municipal de Saúde, é cobrado uma taxa pelo uso e manutenção do local,
valor que é dividido entre os praticantes de maneira voluntária. Embora a
contribuição não fosse obrigatória, tal situação gerava algumas discussões no grupo,
já que durante muitos anos a prática foi realizada no salão paroquial e, por causa da
reforma no final de 2014, foi transferida para o Clube, para que a atividade não fosse
suspensa. Mesmo com o término da reforma, a maioria dos praticantes se declarou
contrária a voltar para o salão paroquial, por vários motivos. O que eu mais ouvi
falar, entre alguns praticantes, era que o espaço do Clube era maior e acomodava
melhor o grupo, que tinha em média 60 pessoas. Já para Dona Lia – uma senhora
por volta dos 70 anos, praticante habitual de Lian Gong – a decisão tinha a ver com
o padre: “Ninguém gosta do padre porque ele é bravo e fala muita coisa que as
pessoas não querem ouvir durante a missa, por isso não querem voltar lá pro salão.
Mas isso não tem nada a ver, a pessoa tem que ter religiosidade independente do
padre.”.
Durante o trabalho de campo, esse impasse adquiriu novos contornos –
mais conflituosos e delicados – quando Teresa recebeu a notícia de que havia sido
denunciada no CS por uma mulher que a acusou de estar cobrando R$10 dos
praticantes. No dia seguinte à denúncia, a instrutora reuniu os praticantes para
contar o caso, se defendendo e alegando que havia explicado ao grupo que a
condição para a permanência no Clube seria pagar a taxa de manutenção, o que foi
consentido mediante votação. Esse episódio causou um grande rebuliço30, onde
30
Comentários como “tem que ter pena dessa pessoa!”, “que ignorância!”, “então vai fazer lá na chuva!”, “que falta de espírito!”, “o centro de saúde tem que entender que não tem outro jeito” e “eu fico muito revoltada, vai pagar uma academia por mês então” se destacaram em meio às reações sobre a denúncia.
64
todos saíram em defesa de Teresa, embora alguns comentassem, reservadamente,
que divergiam da escolha em continuar no Clube31. Apesar de uma das praticantes
ter sugerido que redigissem um ofício para formalizar a concordância do grupo com
o rateio da taxa, Teresa preferiu não levar a questão adiante, “para não criar mais
confusão”.
Neste contexto, vale a pena debruçar sobre esta situação e apresentar
algumas questões que surgiram a partir desta tensão sobre o espaço. Segundo
Teresa, muitas pessoas do grupo são católicas (inclusive ela) e frequentavam
assiduamente as missas e outras atividades da paróquia, o que justificaria alguns
praticantes preferirem voltar para o salão paroquial, que durante muitos anos abrigou
o grupo. Ou, até mesmo sair do grupo, como fez sua denunciante. Entretanto, para a
instrutora, a mudança do local contribuiu para desvincular o LG da igreja – pois tinha
praticantes que achavam que a paróquia que oferecia a prática – e para que não se
sentisse mais cobrada em convocar o grupo para ajudar nos eventos organizados
pela igreja, como retribuição pelo uso do espaço. Além disso, afirmou que ouvia
muita reclamação por causa do gasto com energia, água e limpeza, já que nada era
cobrado pela utilização do salão32. Diante deste impasse, a instrutora concluiu: “a
pessoa tem que vim pra prática, independente do espaço, independente da religião”.
Mas, embora Teresa considerasse que a mudança de local da prática
contribuíra para desassociar a ideia de que o LG era oferecido pela paróquia, isso
também não contribuiu para que o LG fosse visualizado como uma atividade do CS.
Conversando com algumas pessoas, verifiquei uma situação bem curiosa (e um
tanto quanto ambígua). Apesar de a instrutora ter feito o Cartão SUS para cada
praticante e destes terem que assinar a Nota de Esclarecimento em todo passeio
com o grupo, muitos não sabiam claramente que o Lian Gong era um serviço do CS
31
Uma das praticantes sugeriu então dar “tipo um dinheiro de dízimo” para que o grupo pudesse voltar para o salão paroquial. Teresa respondeu: “Pela votação nós vamos continuar aqui. A gente pode até ver, mas eu não acho justo, sabe por quê? A maioria aqui é católica, já contribui com o dízimo, então a comunidade já ajuda de alguma forma”. 32
No dia desta confusão, eu esperei Teresa sair do clube para ir com ela até o Centro de Saúde e conversar mais sobre a situação. Ela confessou que se sentia pressionada por funcionárias da igreja a contribuir com as festas da comunidade, como uma moeda de troca por utilizar o salão sem pagar aluguel. Mesmo sendo católica – “apesar de não frequentar mais as missas” – pra evitar tal desconforto, Teresa relatou que “se sentia melhor” conduzindo o grupo no Clube, mesmo que fosse cobrado. Para ela, a cobrança não interferia no grupo porque muitos deles tinham “boas condições financeiras”. Perguntei então se havia algum convênio do CS com a Paróquia ou se havia algum acordo para o uso do salão. Ela disse que sempre houve essa parceria, pois a instituição religiosa está localizada no território do serviço e também é considerada um espaço comunitário. (Diário de Campo, 02/07/2015).
65
e nem a profissão de Teresa. Um dos praticantes, inclusive, me falou que admirava
o trabalho da “líder do grupo”, pois acreditava que a instrutora realizava o grupo de
forma voluntária. Essa confusão acerca do funcionamento do serviço se deve
principalmente por um distanciamento entre o grupo e o CS, já que a maioria dos
praticantes eram usuários do sistema privado de saúde e desconheciam a dinâmica
do serviço público.
Mas outras questões também afetavam o grupo: segundo Teresa, para a
prática do LG, o ideal seria que tivesse um instrutor para cada 12 alunos. Como a
turma é muito grande, seria preciso ao menos mais duas pessoas prestando apoio à
instrutora, que me revelou que já tinha feito essa reinvindicação à coordenadora do
serviço e também nas reuniões do Distrito de Saúde Leste, mas que nenhuma
solução fora tomada. Segundo ela, embora não fosse a única funcionária capacitada
em LG, os outros profissionais habilitados não demonstravam mais interesse pela
formação de novos grupos. Essa foi uma queixa recorrente em nossas conversas,
principalmente porque ela se sentia responsável pelo grupo e pela execução correta
dos movimentos, para que os benefícios da prática fossem realmente alcançados.
Como medida alternativa, Teresa contava com o apoio de “assistentes de solo” – em
média cinco praticantes que estavam no grupo pelo menos cinco anos orientavam
novos praticantes com as posturas e com as séries de exercícios. Além disso, havia
também três “assistentes de palco” que ficavam ao lado da instrutora durante a
prática, ficando de costas para o grupo, de modo que os praticantes não
confundissem pra qual direção (esquerda/direita) os movimentos deveriam seguir.
Ainda assim, durante a prática do LG Teresa descrevia-os passo a passo, ficando
atenta principalmente aos praticantes novatos, para auxiliá-los quando necessário.
Outro problema era o aparelho de som, que apresentou muitos defeitos
no seu funcionamento, mas, embora fosse um instrumento de trabalho essencial
para a condução da prática, não estava previsto como material de consumo do
serviço de saúde, impedindo a compra de um novo aparelho. Inclusive, o rádio que
estava em uso tinha sido adquirido através de uma “vaquinha” feita pelos
praticantes, já que o anterior foi roubado dentro do salão paroquial, onde ficava
guardado na época em que a atividade era realizada neste espaço. Tanto Carlos,
instrutor de MVE do CS I, quanto Teresa, me falaram que a falta de verba era um
problema comum a outros grupos de práticas corporais. Assim, já houve casos em
66
que a compra de novos aparelhos de som dependeu da venda de rifas de pizza,
fabricadas voluntariamente pelos praticantes, instrutores e outras pessoas da
comunidade. Assim, também era comum a realização de bazares para a aquisição
de novos materiais para os outros grupos do CS e do CECO.
No meu último dia em campo, o aparelho de som queimou, pois havia
sido ligado na tomada errada, já que a que era utilizada, não estava funcionando
corretamente. Esse foi o maior “mico” que eu paguei durante a pesquisa de campo.
Como eu havia sido nomeada pela instrutora como “ligadora” oficial do rádio, mas só
ia a este grupo uma vez por semana, não sabia que teria que utilizar outra tomada
de 110v para ligar o aparelho. Pela tomada não estar funcionando e por achar que o
som era bivolt, liguei na tomada de 220v e imediatamente a música começou a
tocar. Como Teresa ainda não havia chegado, eu pausei o CD e fui conversar com o
pessoal. Quando ela chegou, fui dar o play, mas o rádio já estava desligado.
Estranhei e falei que estava funcionando quando liguei, mas ao mostrar a tomada,
Teresa me contou que o aparelho era 110v. No mesmo instante, duas praticantes
correram até suas casas – próximas ao clube – e trouxeram aparelhos para que a
atividade não fosse suspensa. Eu pedi desculpas, assumi meu erro e me
comprometi a pagar pelo conserto (ou por um novo), mas o grupo entendeu que não
era minha culpa, dizendo que eu não deveria arcar com a despesa sozinha e me
isentaram até mesmo de participar de uma vaquinha para arrecadar o valor
necessário, já que eu estava encerrando o trabalho de campo naquele dia.
Apesar do incidente, o encerramento foi um momento de expressões de
carinho e apoio. Ao final da prática, muitas pessoas ainda ficaram por mais alguns
minutos para nos despedirmos e para me ouvirem falar sobre o andamento da
pesquisa, onde contei sobre minha participação no Congresso de Saúde Coletiva e
sobre a importância das práticas corporais serem oferecidas no serviço de saúde
como uma atividade de promoção à saúde. Teresa completou minha fala, afirmando
que a amizade era um dos principais benefícios do Lian Gong, além de ser uma
forma de cuidar da saúde e de promover bem-estar. Algumas praticantes interagiram
comigo, reafirmando a importância da prática para elas e sobre a autonomia em
relação às prescrições médicas. Aproveitei também para convidar a turma para a
defesa do Mestrado e me pediram para avisar quando marcasse a data, pois
gostariam de prestigiar e conhecer os resultados da pesquisa. Por fim, agradeci o
67
acolhimento do grupo e presenteei as pessoas que participaram das entrevistas com
um cartão artesanal, em gratidão à participação no meu trabalho.
Alguns meses depois, encontrei Teresa no ônibus e perguntei sobre o
novo aparelho e se o antigo tinha sido consertado. Ela me respondeu que na
semana seguinte ao incidente, Seu Duda – mais um dos praticantes – comprou um
rádio para doar ao grupo, mas que a turma acabou decidindo dividir a despesa. Já o
aparelho antigo foi consertado e deixado como reserva, caso algum outro aparelho
viesse a parar de funcionar. Nessa ocasião, aproveitei para me desculpar
novamente e perguntar como o grupo estava. Teresa então me pediu para aparecer
e “dar um oi pro pessoal” e me convidou para ir ao último passeio do semestre, que
novamente seria em São Paulo, e também para a confraternização de final de ano,
na casa de uma das praticantes.
Lian Gong no Centro de Saúde II
As idas a campo no grupo de Lian Gong (LG) do Centro de Saúde II
(CSII) tiveram início em março de 2015, após contato prévio com Helena, Agente
Comunitária de Saúde e instrutora de LG e Movimento Vital Expressivo. O grupo foi
formado em 2003 e se encontra às 2ºf e 4ºf, das 08:00 às 09:00, e para participar
não é necessário que a pessoa seja encaminhada por um profissional de saúde. A
instrutora não faz nenhum tipo de avaliação de saúde, apenas marca o registro da
presença e mantém um cadastro das praticantes, onde são registrados dados para
contato e o número do cartão SUS.
A prática é realizada no galpão do Centro de Convivência Integrado de
Cultura, Esportes e Lazer do bairro, equipamento público de lazer da Secretaria
Municipal de Esportes e Lazer, e está localizado próximo ao Centro de Saúde, do
Centro de Convivência e do centro comercial. As praticantes se referem ao local
como “sede de esporte” ou apenas “sede”. O espaço é bem arborizado e tem
também um campo de futebol e um pequeno jardim, com bancos de concreto e
alguns canteiros de flores. É nessa praça que as praticantes ficam até o galpão ser
aberto, aproveitando para colocar o papo em dia.
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Helena inicia a prática com o “Treinamento Perfumado”, um tipo de Qi
Gong33 (pronuncia-se Ti Kun) e em seguida executa as partes 1 e 2 do LG. Durante
a prática não há nenhuma interação entre as praticantes e é realizada em silêncio:
salvo no pequeno intervalo entre uma seção e outra, onde as praticantes saem do
centro do salão para sentarem nas cadeiras que ficam próximas às paredes do
galpão para descansarem e conversarem um pouco mais. Helena pouco fala durante
a execução dos movimentos, tentando ser fiel ao que foi ensinado no curso de
formação – deixar o corpo reconhecer e compreender o movimento, sem que se
fique falando ou ditando as sequências. Possui formação em LG desde 2003 e
periodicamente participa de encontros de supervisão com a equipe que capacita os
profissionais de saúde do SUS. Sua principal preocupação, tal como da instrutora
Teresa do CS I, é quanto à execução correta dos movimentos e das posturas das
praticantes, reclamando também sobre a falta que faz uma profissional do CS que
desempenhe papel de assistente, auxiliando, sobretudo, na correção dos exercícios.
Além dos grupos de MVE e LG, e de outras funções como Agente
Comunitária de Saúde, Helena também participa como monitora na aula de dança e
no grupo de violão, ambas as atividades realizadas no Centro de Convivência do
território do CS II. Possui também capacitações em vários tipos de Qi Gong
(obesidade, lavagem da medula), meditação, Shiatsu, além da formação completa
no Sistema Rio Abierto. Apesar de suas formações e de querer oferecer outras
práticas corporais para a comunidade, sua agenda no centro de saúde não permite
que a instrutora desenvolva mais atividades. Além da falta de tempo para ofertar
outras técnicas, afirmou que falta estrutura para aplicar algumas práticas, apontando
essas limitações como negativas para seu trabalho com a comunidade, que deixam
de ter acesso a outros serviços para o cuidado com a saúde. Para Helena, a busca
por tais formações se justifica pela possibilidade de poder trabalhar com grupos, pois
vê muito potencial neste tipo de trabalho.
Apenas mulheres frequentam o grupo, embora seja aberto também para
os homens. Tem muitas senhoras com mais de 70 anos no grupo, e elas são as que
chegam mais cedo, para “ver as meninas e conversar um pouco, se divertir”, como
33
Segundo Helena, existem mais de dois mil tipos de Qi Gong. O treinamento perfumado regula o Qi (sopro vital) e fortalece as funções dos órgãos e dos meridianos, cultivando a harmonia entre o homem e a natureza. São trinta movimentos simples, suaves, coordenando movimentos entre os membros superiores (mãos e braços), com os membros inferiores (quadril e joelhos).
69
me disse uma vez Raimundinha, de 89 anos. A convivência e a amizade se
estendem para além dos momentos da prática, seja na ida ao mercado após a
prática, ou nos encontros em festas comemorativas, bingos comunitários, excursões
e passeios promovidos pelo CECO. Esses eventos foram constantemente apontados
pelas próprias praticantes como essenciais pra fazer amizades (ou fortalecê-las) e
sair da rotina, sempre com muita animação34. Além disso, me foi revelado durante
algumas conversas que é comum que as amigas “mais chegadas” frequentem as
casas uma das outras para um café da tarde, quando a dura rotina de casa dá uma
brecha.
É interessante notar que as praticantes – inclusive eu – sempre ocupavam
o mesmo lugar no salão durante a prática. Geralmente a escolha pelo lugar era por
afinidade com as pessoas ao redor ou por se sentirem mais confortável para a
execução dos movimentos (ou perto do palco, para que Helena pudesse corrigir os
movimentos, ou distante do palco, por vergonha de ficar próximo da instrutora e na
linha de frente do grupo). Isto também ocorria em outros grupos da pesquisa, mas foi
neste grupo que percebi de maneira mais marcante. Desde o meu primeiro dia no
grupo, observei que a escolha não era aleatória: ao início da atividade, as
praticantes iam se encaminhando aos seus lugares de acordo com os grupinhos de
conversa que eram formados ainda nos momentos “pré-prática”. Por causa disso, eu
esperava que todas as praticantes ocupassem seus lugares, para só depois
escolher o meu, de modo que eu não interferisse na dinâmica espacial. Sendo
assim, mantive um lugar fixo durante toda minha permanência no grupo.
A minha localização e o fato de chegar cedo contribuíram para minha
interação com algumas praticantes e serviram de estratégia para convidá-las para as
entrevistas. Helena também contribuiu com essa etapa, principalmente quando
informou ao grupo que eu havia iniciado as entrevistas “sobre as amizades no
grupo”, momento no qual fui cercada por dez mulheres, interessadas em contribuir
ou saber mais sobre a entrevista. Não foi possível entrevistar todas as praticantes
que me procuraram neste dia, pois já tinha entrevista marcada com a Dona Odete,
mas achei esse retorno significativo, já que seria uma forma de poderem falar sobre
34
Como o Lian Gong e o Movimento Vital Expressivo são oferecidos pelo mesmo serviço de saúde, os eventos
contemplavam os dois grupos. Durante a pesquisa de campo, foram organizados dois passeios – o primeiro para o Hotel Fazenda Solar das Andorinhas, localizado em Campinas, e o outro para Itu – além de uma festa para comemorar o dia das mães, que foi realizada no próprio centro de convivência. Estive com a turma em dois destes momentos.
70
aquilo que ninguém pergunta e que foge dos objetivos clínicos da racionalidade
biomédica. Por fim, eu convidei cinco praticantes para a entrevista, mas foram
realizadas quatro entrevistas.
A primeira entrevistada foi Dona Odete. Foi com ela que eu puxei papo
logo no primeiro dia em campo e foi muito receptiva comigo, sempre disposta a
conversar. A entrevista foi feita após a prática, e aconteceu em dois ambientes: a
primeira parte foi realizada no galpão da Sede, e precisou ser interrompida, pois o
funcionário teria que sair e fechar o espaço. Dona Odete então sugeriu que
fôssemos até o centro comercial, pois ali havia alguns bancos de concreto onde
também poderíamos ficar a vontade. Durou cerca de meia hora e depois que
encerramos, ainda ficamos alguns minutos conversando, pois ela me contou sobre o
casamento da sua neta e me perguntou se eu tinha planos para casar.
Dona Olímpia foi a segunda entrevistada. Eu a convidei depois de uma
conversa que tivemos no momento pré-prática, quando ela me perguntou se eu
havia me inscrito para o grupo de yoga, que começaria naquele mesmo dia, na parte
da tarde. Como eu não sabia sobre o grupo, perguntei onde seria realizado e se ela
participaria. Ela me explicou sobre a professora voluntária e disse-me que, embora
não conhecesse os exercícios, faria yoga porque tinha visto na TV que a prática era
indicada para tratar dores nas costas e que era boa para relaxar, mas o que
importava mesmo era “trabalhar a mente”. A entrevista foi feita em duas etapas: a
primeira, no momento pré-prática, no jardim da Sede e, posteriormente, ao final do
LG, dentro do galpão. Durou pouco mais que vinte minutos e, quando terminou, nós
fomos embora juntas. Quando chegamos a sua casa, elogiei o jardim e ficamos mais
alguns minutos conversando sobre as flores e sobre a festa em comemoração ao
Dia das Mães do Centro de Convivência, cuja data estava próxima.
A terceira entrevista foi com a praticante Rosa, que é mãe da instrutora.
Nós sempre chegávamos juntas, cerca de quinze minutos antes da prática, e
conversámos bastante. Os assuntos geralmente variavam sobre a situação da
política atual, as dificuldades que ela geralmente enfrentava para sacar o dinheiro da
sua aposentadoria, algumas lembranças da sua infância, além de costumeiramente
me ensinar algumas receitas de chás para todas as ocasiões. A entrevista foi feita
dentro do galpão, após a prática e durou cerca de meia hora. Dessa vez, teve uma
pequena participação do Zecão, funcionário da Prefeitura que trabalha na Sede e
71
que conhecia bem as praticantes de LG: como ele estava por perto, Dona Rosa o
chamou enquanto me contava sobre o grupo de caminhada que era oferecido por
um professor de educação física que realizava algumas atividades na Sede. Ele deu
risada e disse que era o time das “maritacas”, pois as senhoras que participavam
dessa atividade não paravam de falar. Quando terminamos a entrevista, Dona Rosa
e eu fomos conversando até o centro comercial, onde acabei descobrindo que ela
também já tinha sido do time de vôlei adaptado da prefeitura, que era oferecido na
sede de esportes.
A última entrevista foi com Célia, que, embora não tivesse muita
proximidade, me chamou atenção não só por causa da sua animação e simpatia,
mas também por ser uma das praticantes mais novas da turma. Ao final da
entrevista, ela disse que achou a forma como a entrevista foi feita interessante, pois
no início pensou que o Termo de Consentimento fosse um questionário que
responderia em casa, de forma individual. Eu agradeci sua disponibilidade e disse
que com a entrevista eu me sentia mais próxima das pessoas e que era uma forma
de interagir e trocar ideias com as praticantes. Para ela, a entrevista “foi melhor
assim”, comigo fazendo as perguntas e explicando algumas questões, pois, desse
jeito, ficava “mais fácil de entender”.
Mesmo após ter realizado as quatro entrevistas, eu convidei também
Dona Jussara, que é amiga de longa data da Dona Rosa. Eu fiquei curiosa para
saber mais sobre sua história depois que Dona Rosa me disse que as duas jogaram
vôlei juntas e que eram companheiras nos passeios e viagens organizadas pelo
Centro de Convivência. Como a pesquisa de campo já estava entrando na fase final,
não conseguimos combinar uma data boa para a entrevista. Mesmo assim, o convite
ajudou a me aproximar mais dela, já que no começo eu não sentia muita abertura
por parte da Dona Jussara. Depois disso, ela passou a me tratar carinhosamente,
me abraçando bem forte e fazendo algumas brincadeiras comigo. Foi a partir deste
momento que eu me senti, de fato, pertencente ao grupo, embora eu já tivesse um
forte vínculo com outras praticantes.
Durante conversas com a instrutora e com as praticantes – e também
durante minhas observações – foi notável o seu envolvimento e vínculo com as
praticantes, estabelecendo assim uma relação de proximidade e confiança, tanto
que muitas praticantes frequentam o grupo desde sua formação e disseram estar ali
72
por causa da Helena. Observei esse envolvimento em diversas situações, mas uma
delas me chamou mais a atenção: foi quando Helena, mesmo com dengue, assumiu
o grupo para não deixar as praticantes desassistidas, já que não havia nenhuma
profissional para substitui-la. O seu comprometimento não era apenas com a
atividade em si, mas com o grupo, com as praticantes. Esse envolvimento ficou
evidente também quando Helena comunicou o falecimento de uma praticante, que
havia se afastado do grupo há quase um ano, por causa de um problema de saúde.
A instrutora estava muito emocionada e pediu para que nós fizéssemos uma prece
para essa senhora, falando que ela tinha virado um espírito de luz que olharia pelo
grupo. Nessa ocasião, algumas praticantes relembraram os bons momentos que
tiveram com essa pessoa, inclusive Marta, que veio me contar que essa senhora
tinha ensinado a fazer arroz de um jeito mais fácil, compartilhando a receita comigo.
Outra situação que expressou essa relação da instrutora com o grupo foi
quando Helena justificou algumas ausência por causa de uma série de reuniões
marcadas pelo Distrito de Saúde, bem no horário da prática, onde falou, de maneira
muito afetuosa, sobre o quanto gostava de estar ali, com as praticantes, e o quanto
sentia falta do grupo quando precisava se ausentar. Aproveitou para falar sobre o
início da greve dos servidores municipais, e que iria aderir ao movimento, pois as
Agentes Comunitárias de Saúde estavam com suas tarefas aumentadas, tendo que
realizar funções de zoonose, como caçar ratos e baratas e subir em caixas d’água
para fazer controle de dengue. A turma a apoiou, compreendendo a situação e a
incentivou a reivindicar seus direitos, manifestando insatisfação em relação à gestão
municipal.
Apesar de não morar no mesmo bairro ou que eu fosse muito mais nova
que as praticantes, esses fatores nunca chegaram a causar um estranhamento ou
ser um impedimento para que nos aproximássemos e conversássemos sobre
diversos assuntos, tanto sobre os problemas do Centro de Saúde, receitas de
remédios caseiros, a relação entre a prática corporal e a melhora na saúde física e
emocional, na bagunça que a reforma numa importante avenida do centro da cidade
estava causando aos pedestres, sobre o conteúdo do programa da TV Globo “Bem
Estar” e até mesmo sobre questões mais delicadas e pessoais, como lutos, filhos,
netos e tarefas de casa.
73
Dona Odete, por exemplo, começou a me falar sobre seu problema na
coluna, o qual a fez ficar internada por muito tempo e que agora exigia que fizesse
acompanhamento médico e tratamento com fisioterapia. No começo, ela tentou
negociar a necessidade de fazer fisioterapia com a médica, já que fazia o Lian Gong
regularmente, mas a profissional negou essa possibilidade, alegando que o LG era
“apenas uma ginastiquinha”. Apesar de aderir ao tratamento e “tentar fazer aquele
monte de repetição chata”, Odete contestava os exercícios e fazia ressalvas em
relação ao fisioterapeuta, que sempre media sua pressão ao fim das sessões:
“Ah, aquele fisioterapeuta não sei não, parece que não sabe das coisas. Acabo de fazer aqueles exercícios e fico cansada, ele já vem tirar pressão e é claro que vai dar alta. Na próxima vez eu vou falar pra ele esperar. Porque não é, menina? No postinho quando a gente vai, eles esperam a gente descansar um pouquinho”.
Mesmo tendo esclarecido minha identidade de pesquisadora desde o
primeiro dia, isso não impediu a aproximação de uma senhora que, uma vez,
conversou comigo por mais de uma hora, desabafando sobre sua situação. Antes da
prática, ela me contou sobre seu cardiologista, um médico “muito humano e
sensível”, que a cercava de muitos cuidados e que a compreendia mais do que seus
próprios filhos. Conversamos tanto que quase perdemos o começo da prática, e eu
precisei avisar que o LG já tinha começado. Quando terminou, eu esperei pela
minha interlocutora para me despedir com um abraço. Fomos embora juntas, e
conversamos por quase uma hora em um dos corredores do centro comercial. Eu
fiquei muito comovida com seu desabafo, e, como ela me pediu, acabei dando
alguns conselhos, mas principalmente a empoderando para resolver seus conflitos
com a filha, que não queria mais que a mãe morasse sozinha por causa da idade.
Além disso, relatou que se sentia muito isolada em casa, pois tinha dificuldades no
relacionamento com as vizinhas e que por isso começou a praticar o Lian Gong, pois
era um ambiente onde se sentia acolhida, sem julgamentos. Nesse dia, fui embora
pensativa, realmente tocada pela conversa.
Como eu tive duas lesões na pele que comprometeram os movimentos
dos meus braços, não consegui realizar a prática durante um bom tempo. Nesse
período, comuniquei que apenas ficaria sentada, pois não podia fazer força.
Aproveitei então para observar minhas colegas realizando os movimentos,
concentradas, sempre em silêncio. Era gostoso ouvir a música do Treinamento
Perfumado e do Lian Gong e sentir a calmaria e a harmonia do ambiente. Mas
74
algumas senhoras ficaram curiosas, querendo saber se eu já tinha um diagnóstico
médico e o que eu estava fazendo para tratar, demonstrando preocupação com as
dores que sentia e com a limitação dos meus movimentos. Expliquei que não havia
um diagnóstico, apesar de ter feito vários exames, e falei que estava fazendo
tratamento com acupuntura e que isso estava me fazendo muito bem, pois eu estava
menos ansiosa.
Dona Olímpia foi uma das senhoras que se identificou com o tratamento,
falando que também já tinha feito e gostado muito do resultado. Outras me
perguntaram onde eu fazia acupuntura e como era, pois também queriam
experimentar (“é aquela das agulhinhas, né?”). Uma vez Marta se aproximou e pediu
para ver a mancha. Disse que era muito parecido impingem, e que na roça era
curada apenas com uma simpatia, que aprendera com sua tia. Ensinou-me passar
caneta tinteiro em volta da lesão (e Dona Olímpia acrescentou que junto deveria
fazer uma oração que sua vó ensinou-lhe) ou então encostar um palito de fósforo
com a cabeça queimada em cima da impingem. Falei que eu já havia experimentado
a simpatia da caneta tinteiro e que não tinha dado certo, e me afirmaram que então
eu deveria estar com outro tipo de problema, já que essas simpatias nunca falharam
quando moravam na roça.
No meu último dia em campo, pedi um espaço para Helena, para que eu
pudesse falar sobre a etapa da pesquisa e finalizar o trabalho em campo. Despedi-
me das praticantes e entreguei cartões de agradecimento pelo acolhimento e
participação na pesquisa para as minhas interlocutoras. Quando estava me
preparando para ir embora, uma senhora, que pela primeira vez tinha ido ao LG,
veio conversar comigo, me perguntando sobre a prática, pois queria falar para seu
filho sobre a atividade para a qual o médico do CS a encaminhou. Pediu então que
eu escrevesse em seu celular a palavra “lian gong” e como era a pronúncia, para
que o filho pudesse procurar na internet. Ao falar um pouquinho mais sobre a origem
e os fundamentos da prática, ela perguntou se mexia também com as emoções e
começou a chorar, falando que estava com depressão e que durante os movimentos
havia sentido “algo muito bom” em seu coração e em sua mente, “como se fosse
uma energia gostosa”. Eu a abracei e incentivei a seguir no Lian Gong, contando
sobre os benefícios que eu tive com a prática em si e com o acolhimento do grupo.
75
É impossível não se envolver e desenvolver afeto com as pessoas que
conhecemos no trabalho de campo. São senhoras que interagiram
espontaneamente comigo e que trouxeram suas histórias para alguém que mal
conheciam. Ao me relacionar com elas, pensava principalmente na minha avó
materna, com quem convivi durante minha infância e adolescência. O carinho que eu
sinto pelas praticantes, reativava o carinho que eu tenho pelas minhas avós. O
campo pode nos afetar de várias maneiras.
Práticas Corporais e o Modelo de Cuidado de Intersociabilidades
Embora o que organize a racionalidade da medicina ocidental
contemporânea seja a classificação binária, fundamentalmente, orientada pela lógica
do “normal e patológico”, as práticas corporais desenvolvidas na Atenção Primária
em Saúde reorientam este modelo, a partir da introdução de elementos de outras
racionalidades de cuidado. Assim, é possível afirmar que o modelo de cuidado das
práticas corporais é de intersociabilidades, criado a partir de polos de significação,
como “tipos ideais”, porém operacionalizado na ambivalência como novo lugar de
produção de saúde em que situam tanto um como outro aspecto dos pares de
opostos.
De maneira sintética, pode-se afirmar que o modelo de cuidado das
práticas corporais na Atenção Primária em Saúde é formado por um conjunto de
oposições formadas entre as noções de prática corporal e exercício físico, sobretudo
identificadas com os princípios de wellness e fitness, orientados pelas lógicas da
convivialidade-utilitarismo, amorosidade-medicalização e sociabilidade-
biossocibilidade. Esquematicamente, o modelo de cuidado das práticas corporais
pode ser representado, portanto, de acordo com a Figura 1.
76
Figura 1 – Modelo de cuidado das práticas corporais
As práticas corporais apresentam sentido educativo que diz respeito “à
descoberta e à consciência do corpo, ao significado do cuidar e estar atento aos
desconfortos e às diversas maneiras de perceber e exercitar a sua potência” (7) (p.
34). Ao trabalhar um conceito ampliado de atenção ao corpo (7) (p. 36), as práticas
corporais não restringem o cuidado às constantes biológicas e naturais
estabelecidas pela racionalidade biomédica e nem se fixam no controle de doenças.
Por não classificar e separar os praticantes de acordo com suas patologias, idade ou
outras características físicas, essas práticas orientam-se pela diversidade e criam
grupos heterogêneos, estimulando “o aprendizado voltado para a construção de
vínculos, de responsabilidades, para a autonomia (individual e coletiva) e para a
capacidade de provocarem a mudança do pensar e agir em saúde”. (7).
De acordo com Carvalho (7), a definição de práticas corporais parte,
principalmente, das Ciências Humanas e Sociais e compreende o indivíduo em
movimento, em sua gestualidade e em sua subjetividade-diversidade, ou seja, em
“seus modos de se expressar corporalmente” (7) (p.34). Em complemento,
Calstellani e Filho e Carvalho (apud 31) (p.144) afirmam que as práticas corporais
contemplam vivências lúdicas e operam “segundo a lógica do acolhimento, aqui no
77
sentido de estar atento às pessoas, de trabalhar ouvindo seus desejos e
necessidades”.
Neste contexto, podemos compreender as práticas corporais “não apenas
como uma possibilidade de atividade física, e sim como uma prática social de
cuidado da saúde”. (32) (p.136). Ao demarcar as características e propósitos de
cuidado de diferentes tipos de práticas corporais, Fernando Gonzalés (32) traz a
definição de “práticas corporais introspectivas” para se referir às práticas que são
“caracterizadas por movimentos suaves e situações de aparente imobilidade, como é o caso de uma determinada postura ou de um exercício respiratório consciente, voltadas para a obtenção de uma maior consciência corporal, como consequência da atenção prestada às sensações somáticas produzidas por essas ações. Exemplos: biodança, bioenergética, eutonia, antiginástica, método feldenkrais, Yoga, tai chi chuan, liang gong/ginástica chinesa.” (32) (p.142).
Entretanto, por serem práticas não convencionais, a compreensão sobre
as práticas corporais “introspectivas” muitas vezes acaba se misturando ao conceito
de exercício físico, quando visualizadas por profissionais da saúde e praticantes
como uma atividade que combate o sedentarismo (um dos maiores pecados capitais
contemporâneos) e é indicada para determinados problemas de saúde ou sintomas
de alerta: é imperativo cuidar do corpo e não adoecer! Um exemplo disto é a
prescrição médica das práticas corporais para a prevenção ou tratamento de
doenças crônicas não transmissíveis (DANTs) como a obesidade, a diabetes, o
colesterol alto e hipertensão, ou para depressão e dor crônica (33, 16). Ao assumir
um caráter prescritivo, surge uma questão que vai de encontro com a
medicalização35 (34)
“[...] de um lado, as orientações se restringem às técnicas, à ideia de que o gasto de energia - fazer atividade física - é suficiente para prevenir ou remediar a doença; de outro, os grupos ainda se organizam a partir das doenças (atividade física para diabéticos, hipertensos) ocasionando a exclusão dos demais, ou seja, quem não é diabético ou hipertenso não pode participar.” (7) (p.35-6).
Conceitualmente, exercício físico pode ser definido, sobretudo, em
relação ao condicionamento físico, que só é atingido através da repetição de uma
série de movimentos encadeados e sequenciados, realizados com intensidade e de
35
O fenômeno da medicalização – ou a iatrogênese social – conceituado por Ivan Illich em “A expropriação da saúde” cabe
bem nessa questão ao refletir sobre como as intervenções médicas conduzem e reorientam as experiências pessoais, tornando os indivíduos dependentes da prescrição profissional e reduzindo-lhes a capacidade de escolha e sua autonomia em relação aos seus próprios cuidados. (34).
78
maneira regular (7, 35). Muitas vezes, relaciona-se com a ideia de atividade física,
que orienta a “atenção ao corpo vinculando-o à saúde, alimentação e nutrição”,
fundamentada na “física clássica, newtoniana, atividade física como sinônimo de
gasto de energia, diretamente associada à ideia de ingestão de calorias” (7) (p.36).
Além disso, geralmente se associa ao alto rendimento (é preciso estar apto), à
exaustão física e superação de limites, levando à “instrumentalização” do corpo (7)
(p.44). É imprescindível então controlar a doença, se submeter aos treinos físicos e
aos protocolos da boa saúde (alimentação adequada, eliminação de todo e qualquer
fator de risco)36.
É importante salientar que o próprio Ministério da Saúde reforça a ideia de
prática corporal relacionada à atividade física, ao formular o termo “práticas
corporais/atividade física” (PCAF) e incorpora-lo nas políticas públicas de saúde (31)
(p.141), como a Política Nacional de Promoção de Saúde. Apesar de um dos
objetivos específicos da PNPS visar o “entendimento da concepção ampliada de
saúde” (33) (p.17) e estar voltada para ações coletivas de saúde, essa política
também se associa ao “paradigma dos “fatores de risco”” (31) (p.146), quando utiliza
este discurso para recomendar o uso das PCAF para o controle e a redução de
doenças não transmissíveis (33) (p.34 e 35), sem propor, de fato, uma ação que
contemple, especificamente, o desenvolvimento de autonomia ou de vínculos entre
praticantes e instrutores, por exemplo. Além disso, também reitera a dicotomia
saúde-doença ao separar “grupos vulneráveis” de “comunidade como um todo”37
inserindo as PCAF numa lógica prescritiva.
Seguindo essa discussão, a cultura fitness – ou a ideia de adequação
(36)38 – é central no comportamento imposto pela bioascese moderna39 que
estabelece a força, a longevidade e a saúde como critérios que devem condicionar
36
Entretanto, diferentemente da atividade física, na prática corporal os praticantes não precisam estar
“aptos” pra realizar a atividade, já que os instrutores afirmam constantemente que cada um deve fazer os movimentos respeitando o seu limite. 37
“ofertar práticas corporais/atividade física como caminhadas, prescrição de exercícios, práticas lúdicas, esportivas e de lazer, na rede básica de saúde, voltadas tanto para a comunidade como um todo quanto para grupos vulneráveis” (33) (p.34). 38
Segundo Bauman (36), atravessamos a era da sociedade de consumidores, onde o que interessa são a aptidão (fitness) e a maleabilidade dos corpos-sujeitos para o consumo de imagens, ideais e produtos, custe o que custar Então, "quase se poderia dizer que, se a saúde diz respeito a "seguir as normas", a aptidão diz respeito a quebrar todas as normas e superar todos os padrões." (36) (p.92). 39
Francisco Ortega denomina a sociedade contemporânea em termos de moderna bioascese, onde
saúde e forma física se tornam um valor único, praticamente uma virtude, já que a doença é considerada fracasso pessoal (37).
79
os indivíduos em suas ações (37). O discurso do risco é o pressuposto que orienta a
busca dos sujeitos por condutas saudáveis e seguras, que os resguardem dos
perigos iminentes, responsabilizando-os pela sua saúde (ou pela falta dela).
Portanto, ocorre aqui um desdobramento daquela norma investigada inicialmente
por Canguilhem (38) – pra além da definição de normal e patológico, a discussão
contempla o helthism (37) (p.31), que nada mais é do que aquela saúde (e corpo)
ideal que se deve atingir, fundamentada a partir de constantes biológicas.
Diante dessas categorias, temos as marcas de individualização e a
responsabilização dos indivíduos pelos cuidados com o corpo, devendo assumir
todas as consequências em casos de não cumprimento com as normas vigentes.
Típica da bioascese, o caráter individual sobressai o coletivo e fragiliza os laços
sociais e cria uma nova forma de sociabilidade: a biossociabilidade (37) (p. 31). Para
Ortega (39), essa nova forma de sociabilidade é apolítica e desenvolve-se a partir da
repolitização da saúde, e, ao contrário da biopolítica estatal clássica, cujos grupos se
organizam segundo critérios de classe ou orientação política, a biossociabilidade
organiza os grupos
“conforme a critérios de saúde, desempenho físico, doenças específicas, longevidade etc. [...]. Na biossociabilidade, todo um vocabulário médico-fisicalista baseado em constantes biológicas, taxas de colesterol, tônus muscular, desempenho corporal, capacidade aeróbica populariza-se e adquire uma conotação ‘quase moral’ ao fornecer os princípios de avaliação que definem a excelência do indivíduo (...). Ao mesmo tempo todas as atividades sociais, lúdicas, religiosas, esportivas, sexuais são resignificadas como práticas de saúde (Luz em 2000, 2001).” (39) (p.14).
Na contramão da convivialidade, a biossociabilidade assume um caráter
de controle e impessoalidade ao objetificar e tomar os corpos como alvos de poder e
manipulação, anulando seus sentidos e subjetividade (40). Quando as relações nas
atividades de saúde são reguladas exclusivamente por essa lógica, a doença
transcende a identidade do sujeito e o enquadra, de maneira estigmatizante, como o
hipertenso, o obeso, o diabético (7) (p.36), reforçando a ordem do controle e da
impessoalidade que permeia as relações no campo da saúde.
Mauss (41) afirma a necessidade de se compreender a complexidade da
vida social e que existe uma relação entre os aspectos social, fisiológico e
psicológico dos indivíduos que só são revelados através da observação da conduta
humana (Lévi-Strauss apud Mauss) (p. 24), ou seja, na subjetividade que é
manifestada através das experiências individuais (e também coletivas). Enquanto
80
fenômeno social (41), os grupos de práticas corporais inseridos no contexto da
atenção básica não se encerram no caráter utilitarista da racionalidade biomédica,
apresentando, ao mesmo tempo, aspectos terapêuticos, de sociabilidade e de
atividade física, por exemplo.
Outro ponto observado nos grupos de práticas corporais foi o
desenvolvimento de relações horizontais entre os profissionais de saúde que
conduzem os grupos e praticantes, que reafirmam o caráter dialógico das “práticas
não biomédicas” (42), bem como o comprometimento destas com a vida coletiva.
Para Madel Luz (20), essas atividades de saúde apreciam as relações sociais e
“favorecem a solidariedade e a amizade como valores consequentes” (20) (p.163).
Assim, pode-se afirmar que as práticas corporais assumem um lugar significante na
composição do cuidado e da atenção em saúde por possibilitarem o encontro, a
escuta, o vínculo e a autonomia do paciente (7).
É possível identificar nestas práticas de saúde o princípio de
amorosidade, incorporado pela Política Nacional de Educação Popular em Saúde no
âmbito do Sistema Único de Saúde (PNEPS-SUS) como “a ampliação do diálogo
nas relações de cuidado e na ação educativa pela incorporação das trocas
emocionais e da sensibilidade, propiciando ir além do diálogo baseado apenas em
conhecimentos e argumentações logicamente organizadas.” (43). Á medida em que
esse princípio se estabelece, reorienta as relações que são constituídas no âmbito
dos serviços de saúde, gerando não apenas um melhor acolhimento e uma escuta
qualificada, mas também uma relação de reciprocidade entre o profissional e o
paciente. Para Vasconcelos e Cruz (44), a profundidade desse ângulo societário,
muito mais que um conceito sociológico, permite afirmar que a amorosidade
“não se cristaliza somente como importantes emoções pessoais (que motivam, animam, dão sentido à luta). (...) [pois] ao ler Freire, descobrimos que amorosidade é sinônimo de fé “no outro”, ou seja, crença absoluta de que todas aquelas pessoas, em sua humildade e simplicidade, possuem uma significativa sabedoria de como lidar com a vida, o que as guiará numa busca por ser mais. A amorosidade se configura, por meio do vínculo, na confiança mútua, na parceria, na esperança de que juntos conseguiremos conquistar os sonhos almejados coletivamente”. (44) (p.183)
Entra em questão, dessa maneira, o conceito-proposta de convivialidade
(5), que denuncia e reflete sobre as assimetrias de poder que prevalecem nas
estruturas sociais e sobre os efeitos perversos da tendência quantitativa da ordem
capitalista, que traz consigo a proliferação de indicadores, rankings e avaliações
81
(45). A desinstitucionalização das relações em saúde nos grupos de práticas
corporais também vai ao encontro da convivialidade ao promover o cuidado
emancipador (15), que prioriza e valoriza o “princípio da aprendizagem mútua da
interculturalidade” (15) e coloca o praticante no centro do cuidado (afinal, ele
também é cuidador!), estimulando a “produção de autoconhecimento, autonomia e
autocuidado.” (15).
O cuidado emancipador está expresso, por exemplo, na narrativa construída
pela praticante Heloísa, do grupo de Lian Gong do CS I, que recorre a movimentos
da prática sempre que precisa aliviar suas dores, causadas por um problema no
estômago ou pela sinusite. Tais movimentos correspondem a segunda e terceira
parte do LG, que trabalham, entre outros aspectos, desordens de órgãos internos e
também doenças que afetam os pulmões. Nas suas palavras, "não esqueço da
professora, nem a noite durante o sono, às vezes vem algumas cólicas, então faço a
massagem abdominal que nos ensinou. Quando ataca a sinusite à noite me lembro
dos pontos na face que tenho que apertar". (Anexo E - verso).
Para Ivan Illich (5), os modelos institucionais da escola e da saúde, por
exemplo, são ferramentas da lógica capitalista de produção industrial, que estão
pautadas, sobretudo, no controle e dominação da sociedade por grupos detentores
de conhecimento e na dependência dos sujeitos em máquinas e outras tecnologias
(5). Para o autor, a convivialidade é, então, uma poderosa ferramenta no combate
ao individualismo e competitividade típicos desta sociedade, proporcionando assim
maior e mais efetiva participação social, liberdade e autonomia (5). Baseada na
cooperação – na construção compartilhada (5) (p. 26) – o recurso da convivialidade
está orientado para lutar “contra os instrumentos e as instituições que ameaçam ou
ignoram o direito das pessoas a utilizar a sua energia de forma criativa”. (5). A
expressão da convivialidade pode ser observada, por exemplo, quando diferentes
praticantes declaram a importância do grupo em suas vidas, com afirmações como
“estou muito feliz por voltar pra cá, claro que exercício físico é bom, mas o que senti
falta mesmo foi a companhia aqui, das pessoas, dos nossos encontros.” (Val); ou
ainda na afirmação de Janete de que “voltei a sorrir e voltei a ser eu mesma”, ao
relatar o seu “antes e depois” da participação no grupo de MVE.
Dialogando com a obra de Marcel Mauss, é possível visualizar nos grupos
de práticas corporais também a experiência da dádiva, um sistema de trocas
82
simbólicas por onde circulam bens materiais e imateriais, cuja dinâmica se constitui
através da tríplice obrigação de dar, receber e retribuir e tem como principio o
estabelecimento e a manutenção de vínculos e laços sociais (41). Longe de ter valor
de mercado, essas trocas envolvem palavras, afeto, abraços, comida, carinho,
comunhão e gentilezas (41, 46) e caronas, como sempre acontecem no grupo de LG
do CS I. Guiado pela proposta da ambivalência, o engajamento na dádiva, ao
mesmo tempo em que é uma obrigação, é voluntário e se pauta na liberdade (42),
estando “acima de interesses contratuais e obrigações legais” (46) (p. 53).
Numa leitura contemporânea sobre a teoria da dádiva, Paulo Henrique
Martins acrescenta que a confiança é um dos pilares da dádiva, estimulando práticas
comunitárias e imprimindo um sentido associacionista na constituição das relações
sociais (46, 47). Complementarmente, para Alain Caillé (48) a interação originada
pela dádiva como uma força que se opõe ao individualismo, fomentando a criação
de redes, que podem ser entendidas como o “conjunto das pessoas em relação às
quais a manutenção de relações interpessoais, de amizade ou de camaradagem,
permite conservar e esperar confiança e fidelidade” (p.14).
O envolvimento nesse sistema de trocas serve tanto como estratégia para
combater a solidão e tirar o indivíduo do isolamento social (49), quanto para, através
da potência criada no interior das redes sociais, promover o engajamento político
dos indivíduos na descentralização das ações utilitaristas governamentais e na sua
própria emancipação (50), sendo reconhecidos, efetivamente, como agentes sociais.
Assim, é possível fazer uma relação com a participação nos grupos de práticas
corporais, que pode propiciar outra maneira de inserção e participação social no
campo da saúde, na medida em que as práticas corporais estimulam outras formas
de cuidar, onde o indivíduo não é apenas paciente, mas agente promotor de saúde.
Um exemplo de como participar de um grupo de prática corporal pode
estimular a participação social é a história contada pela Sílvia, praticante de Lian
Gong do CS I e artista plástica. Apesar de usar um serviço ofertado pelo Centro de
Saúde, ela nunca havia entrado no prédio da unidade, mas, certa vez, por causa da
venda de pizzas para arrecadar verba para a reforma do CS I, acabou entrando lá
para buscar sua pizza. Ao se deparar com as condições precárias da estrutura do
local, sobretudo com a pintura das paredes de um dos ambientes de espera, logo na
83
entrada, se propôs a revitalizar a área fazendo um mosaico na parede40. Segundo
Sílvia, seu objetivo com o trabalho foi
“mostrar para as pessoas que a gente pode ajudar e pode colaborar para um espaço melhor (...). E com isso a minha intenção era que as pessoas cuidassem, não jogassem lixo no chão e que as pessoas da coordenadoria lá fizessem cartazes pra ajudar a educar né, o público. Manter o ambiente gostoso pra eles mesmos, né?”. (trechos da entrevista)
Também é possível perceber características das “organizações
convivenciais” (5) (p.31) nos grupos de Movimento Vital Expressivo e Lian Gong, que
não se fixam apenas em uma proposta puramente terapêutica de cura e/ou
prevenção de doenças, que seria o valor utilitário da saúde para Illich. Disso ocorrem
benefícios derivados (51), como a interação social, a construção de novos sentidos e
o estímulo à autonomia criadora (5), à diversidade e à pluralidade. Desta forma,
evidencia-se a potência das práticas corporais enquanto ferramenta convivencial, na
medida em que se abre para sentidos de grupalidade e coletividade, na qual
“o estilo individualista de interação social dominante entre nós fica culturalmente deslocado. Essas práticas (...) nos levam ao conhecimento da existência de um outro padrão de interação entre os sujeitos, no nível individual e coletivo que rompe com o isolamento individualista. (...). Em vez do “uso da máquina” ou do “controle da máquina”, temos um padrão de contato prazeroso com o corpo, motivado pelos movimentos rítmicos e pelo contato de um corpo com o outro. A harmonia aqui é sinônimo de integração, interna e externa”. (20) (p.125).
Contudo, não podemos esquecer que as práticas integrativas e
complementares em saúde estão inseridas em um campo predominantemente
biomédico, com um baixo grau de institucionalização nas unidades de saúde e com
poucos encaminhamentos feitos pelos profissionais de saúde (52). Por isso, apesar
de o instrutor Milton ter afirmado durante uma conversa que o “grupo promove
saúde”, para ele as práticas corporais ainda não são consideradas como uma
política oficial da Secretaria de Saúde, ocorrendo em paralelo, de forma subalterna,
em relação aos atendimentos individuais realizados pelos serviços de saúde.
Essa condição também foi verificada por Gualhardi (53) e Mello (4) (p.44)
em suas pesquisas, respectivamente, sobre a oferta da Homeopatia e do Movimento
40
É interessante pontuar também que durante a entrevista, Sílvia afirmou que essa aproximação com o CS I possibilitou que ela conhecesse melhor o serviço e os atendimentos ali realizados, como acupuntura, dentista e médicos de várias especialidades. Passou então a ter uma imagem mais positiva sobre o SUS e a recorrer à unidade em casos esporádicos, como contou que uma vez levou uma amiga que estava passando mal para ser atendida pelos profissionais, elogiando o acolhimento feito pelo enfermeiro, que a tratou com “carinho e atenção”. (trechos da entrevista).
84
Vital Expressivo na Atenção Primária em Saúde, quando observaram importante
falta de informação e conhecimento sobre as práticas em si e sobre a Política
Nacional de Práticas Integrativas e Complementares por parte dos gestores,
profissionais e usuários de diferentes UBS. Além disso, de acordo com Mello, a
inexistência de um sistema de encaminhamento de referência e contra-referência
também afeta a institucionalização das PICS nos serviços de saúde.
Outros instrutores e coordenadores entrevistados também relataram que,
por causa da alta demanda ambulatorial por atendimentos e procedimentos clínicos
(consultas, exames de sangue, vacinação e curativos) – potencializados pela falta
de recursos humanos – e os frequentes casos de pronto atendimento, as atividades
de prática corporal (ou qualquer outra prática instituinte, como de educação em
saúde) não são uma prioridade para o serviço. Assim, nos períodos de grandes
epidemias como a de dengue, quando os profissionais de saúde são mobilizados
para realizar tarefas relativas a este problema, a realização dos grupos e as
capacitações para atualização ou formação de novos instrutores ficam
comprometidas, sendo até mesmo suspensas. Conforme Helena: “estava tendo a
supervisão [...], mas parou por causa do surto de dengue que teve. Então as
pessoas que estavam alocadas para fazer a avaliação, parou por causa disso”.
Milton também fez ressalvas sobre esta questão:
“Qualquer emergência que acontece, qualquer, surgiu uma coisa da gripe, pára o grupo e vamos correr atrás da gripe, da dengue, seja lá o que for. Primeiro então é essas, vamos dizer, essa atenção, esses programas de saúde, depois é que vem os grupos, as práticas integrativas. E com o Movimento acontece a mesma coisa. Tem uma reforma, a primeira coisa que pára é o grupo, depois, então infelizmente esta é a política mesmo de saúde que o município prioriza, deixando [suspensas] então as práticas integrativas, eu acredito que não é só o Movimento, são as práticas de modo geral.”
Se, por um lado, a baixa institucionalização é apontada como negativa
pelos instrutores, que afirmam que isso é um reflexo do desconhecimento dos
profissionais sobre as atividades oferecidas pelo CS, por outro, há que se destacar
que dos vinte e um praticantes entrevistados, quinze se caracterizam como
“demanda espontânea” e procuraram o Movimento Vital Expressivo e o Lian Gong
por indicação ou convite de amigos e familiares ou apenas por ouvirem falar. Assim,
os praticantes não estão necessariamente doentes e, em alguns casos, não são
nem mesmo pacientes do Centro de Saúde. Tais características contribuem para a
85
constituição de grupos heterogêneos, já que não dividem os praticantes em
“doentes” e “não doentes” e estão abertos para a participação de pessoas de
variadas idades.
Em diversos momentos da pesquisa – durante a observação, nas
entrevistas, nas conversas informais e na análise – ficou evidente a existência de
uma polissemia de discursos dos agentes institucionais e dos praticantes sobre o
que é saúde e o que são as práticas corporais, ora associados à qualidade de vida e
bem-estar (que pode ser físico e emocional), ora relacionados a uma ideia de
prevenção e controle de doenças e eliminação de fatores de risco (estímulo à
mudança de hábitos alimentares e prática de atividade/exercício, por exemplo), ou
as duas coisas ao mesmo tempo. Expressão disso pode ser observada quando seu
Osvaldo, benzedor com vasto conhecimento em plantas medicinais, se sente
obrigado a tomar os remédios que o médico do Centro de Saúde passa, temendo
ser repreendido por não seguir a prescrição do profissional caso tenha algum
“piripaque”.
Predominantemente, os grupos de Lian Gong e Movimento Vital
Expressivo que participaram da pesquisa apresentam um forte caráter coletivo que
estimula a interação e incentiva a convivência entre os praticantes, transformando o
momento da atividade de saúde em um momento de convivência e sociabilidade.
Deste modo, apesar do LG ser caracterizado como uma ginástica terapêutica
individualizada (17), nos grupos acompanhados observou-se fortes características
grupais. Entretanto, apesar dos dados empíricos apontarem que o Lian Gong e o
Movimento Vital Expressivo estão voltados para o paradigma de vitalidade,
favorecendo a construção de solidariedades focais (31) entre os praticantes e
instrutores, no grupo de MVE do CS I, por exemplo, também é possível enxergar
traços de biossociabilidade e sua identidade com o imaginário biomédico, já que há
um grupo onde o instrutor realiza avaliações de saúde para o controle da
hipertensão, IMC, glicemia e peso dos praticantes.
Sendo assim, é possível afirmar que, embora assumam significados
distintos, as características de sociabilidade (wellness) e de biossociabilidade
(fitness) coexistem em práticas e representações que os agentes sociais e
institucionais fazem acerca dos benefícios das práticas corporais. Embora isso
ocorra, é equivocado afirmar que o trabalho desenvolvido pelo Lian Gong ou pelo
86
Movimento Vital Expressivo é, por isso, descaracterizado ou enfraquecido,
comprometendo seus objetivos.
Não é pertinente pensar as diversas esferas que constituem a realidade
social de forma isolada ou fragmentada, em termos de pares de oposição (saúde x
doença; normal x patológico; sagrado x profano; sociedade x indivíduo; atividade de
saúde x sociabilidade). Para Marcel Mauss, a vida social se caracteriza pela
ambivalência nas maneiras de fazer, pensar e sentir41, (tanto dos indivíduos, quanto
das instituições) e segue um movimento dinâmico, onde as diversas esferas do real
estão constantemente em interação (46).
Podemos compreender esta ambivalência enquanto uma expressão da
pluralidade de sentidos, práticas, saberes e experiências que constitui a área da
saúde e então pensar sobre o lugar que as práticas corporais ocupam dentro do
Sistema Único de Saúde, que se constitui como um campo poroso, permeado pelo
controle e padronização dos corpos, porém fortalecido pela existência do grupo, de
um sentimento de coletividade que orienta a condução destas práticas. Como alerta
Madel Luz (20):
“o que é importante ressaltar é o papel da ressignificação da saúde, do adoecimento e da cura que representam as atividades de saúde ou práticas terapêuticas para seus doentes, e a contribuição que efetivamente representam para retirá-los do isolamento social que significam, em nossa sociedade, a pobreza, o envelhecimento e a doença. (20) (p.119).
Pode-se afirmar que as práticas corporais desenvolvidas na Atenção
Primária em Saúde reorientam o modelo de cuidado orientado pela biomedicina e
preconizado pelo Ministério da Saúde brasileiro. Sobretudo, na medida em que
introduz elementos de outras racionalidades de cuidado, que convidam para a
produção de bem-estar, mais do que para a produção de performances corporais em
relação a um evento patológico, e que, além disso, estimulam o encontro inicial,
possivelmente a partir da bioascese contemporânea e sua biossociabilidade,
expandindo, no entanto, horizontes de transgressão e resistência orientados para a
convivialidade.
41
O antropólogo francês Marcel Mauss faz uma ressignificação do conceito de “fato social” formulado pelo sociólogo Emile Durkheim, que o afirma como maneiras de fazer, sentir e pensar que são coercitivas e exteriores aos indivíduos (Giddens, 2005. p. 29). Para Mauss, o fato social total é um sistema simbólico que permeia as experiências individuais e coletivas (interligando assim sociedade e indivíduo, sociedade e instituições). Apesar de esse sistema estar fundamentado na obrigação, os indivíduos tem liberdade para cumprir ou não com as obrigações da vida social, assumindo as consequências que isso pode ter. (41, 46).
87
Indubitavelmente, o modelo de cuidado das práticas corporais não deve
ser identificado como um modelo alternativo, uma vez que não substitui práticas de
cuidado específicas do modelo biomédico, nem tampouco um modelo
complementar, cujas práticas não convencionais servem de maneira subalterna à
estrutura ortodoxa do cuidado na atenção primária. Trata-se, portanto, de um modelo
integrativo, construído e mantido entre a biossociabilidade do modelo convencional
mais instituído e a sociabilidade propositiva da convivialidade instituinte. Nessa
“inter-sociabilidade”, pode-se afirmar, assenta a potência da Medicina Integrativa
como paradigma pluralista do campo da saúde, criado a partir de polos de
significação e operacionalizado, todavia, na ambivalência, como novo lugar de
produção de saúde em que situam tanto um como outro aspecto dos pares de
opostos.
Porém, este modelo de cuidado das intersociabilidades produzido pelas
práticas corporais é um grande desafio para o campo da saúde, pois abrange tanto
ações pautadas no disciplinamento e na prevenção e controle de doenças, típicos de
uma prática biomédica, como também nas ações voltadas para o indivíduo e para a
saúde, promovendo um cuidado coletivo, emancipador, com um olhar singular,
aberto para a diversidade e que confere autonomia aos praticantes, o convívio e
novas amizades. Assim, o desafio está, entre outras coisas, em fundar-se na
ambivalência em detrimento das certezas artificiais dos protocolos, evidências,
prescrições e reificações.
No capítulo a seguir, a partir da análise de conteúdo das entrevistas
realizadas com os praticantes, os instrutores e as coordenadoras dos serviços de
saúde, aprofundaremos sobre a característica da sociabilidade “wellness”, que se
manifesta, principalmente, através das relações de amizade que se desenvolvem no
interior desses grupos e que propiciam o apoio social, a formação de vínculos entre
o profissional e o praticante e também a participação dos praticantes nas atividades
de lazer promovidas pelos grupos de práticas corporais.
88
CAPITULO 2 – Os sentidos e significados da sociabilidade
Embora o Lian Gong e o Movimento Vital Expressivo estejam inseridos na
rede de atenção primária em saúde de Campinas com um propósito terapêutico,
preventivo e promotor de saúde, no entanto, estas práticas apresentam um caráter
coletivo que estimula a interação e incentiva a convivência entre os praticantes e os
instrutores. Dessa maneira, transforma o momento da prática em um momento de
encontro e construção de laços de amizade, porque prevalece o caráter de
convivialidade (autonomia e cooperação) e de amorosidade (vínculo e confiança).
A partir da análise temática de conteúdo das entrevistas realizadas com
praticantes, instrutores e coordenadoras dos serviços de saúde, identificamos os
sentidos atribuídos à sociabilidade nas práticas corporais, quais sejam: criação de
vinculo, apoio social e estímulo para a participação em atividades de lazer. O
objetivo deste capítulo, portanto, é analisar as seguintes categorias analíticas que
emergiram das entrevistas: a) sociabilidade como forma de desenvolver apoio social;
b) sociabilidade como forma de criar vínculos entre praticantes e instrutores; c)
sociabilidade e participação nas atividades de lazer extra-prática.
Sociabilidade como forma de desenvolver apoio social
As práticas corporais na APS, segundo Luz (20) e Carvalho (7), atuam na
lógica do acolhimento e se voltam para a construção de vínculos de amizade
baseados na solidariedade. Essas características contribuem para o
desenvolvimento do apoio social, que também foi observado por Mello (4) em sua
pesquisa sobre grupos de MVE na atenção primária em saúde de Campinas.
Em definição, o apoio social42 “refere-se aos aspectos das relações
sociais que proporcionam uma sensação de autoestima e que oferecerem recursos
na luta contra problemas da vida.” (54 p. 41, tradução nossa). Para Dona Heloísa,
professora aposentada, o acolhimento do grupo trouxe sentimentos de valorização e
de companheirismo:
“Ah, eu tinha muita timidez, baixa-estima, autoestima baixa, essa coisas assim, as pessoas parece que não valorizavam a gente assim, né? E aqui não. E eu mesmo descobri a beleza dentro de mim, que eu mesma desconhecia. “Mas eu sou tudo isso?”. É possível e tal e aí eu fui indo pra frente, tomei coragem e fui indo pra frente, nunca deixei a peteca cair não. E
42
O termo em inglês é “social support”.
89
os amigos né? É gostoso, se um tá caindo o outro levanta, então a gente tem essa solidariedade, né?”
De acordo com o verbete trazido no livro Key Concepts in Medical
Sociology (54) (p. 42 e 43), o apoio social pode ser compreendido como uma
potente ferramenta que serve como um mediador para ajudar as pessoas a
resolverem ou lidarem com seus problemas pessoais, sejam conflitos pessoais ou
um quadro de adoecimento, e também para a promoção da saúde e de bem-estar,
na medida em que essa ajuda torna-se um fator protetivo, evitando um adoecimento
por causa do estresse, por exemplo, e também curativo, quando o apoio ajuda a
diminuir sintomas causados pelas adversidades vividas.
Um bom exemplo disso é o momento em que Carlos, instrutor do grupo
de MVE do CS I, abre a roda para que os praticantes contem sobre seu final de
semana ou falem se estão passando por algum problema. Numa dessas ocasiões, o
grupo manifestou forte apoio ao desabafo feito pelo senhor Osvaldo, que contou
sobre a dificuldade de relacionamento com sua esposa e de como isso o afetava
negativamente. Na entrevista feita com Carmem, integrante do mesmo grupo, é
narrado o convívio com o grupo: “a gente troca bastante ideias, a gente conta o que
acontece com a gente, desabafa, pede conselhos, aprende as receitas, aprende
muita coisa aqui também, além dos exercícios.”
Nos grupos de práticas corporais há uma troca intensa de saberes e emoções
(55), que conforma o apoio social como uma potente ferramenta ou “forma de
cuidado” (54) (p. 44) advindo das redes sociais (56) (p.196). Nelas encontra-se
suporte emocional, afetivo, material, instrumental ou informacional, manifestados em
uma conversa, estímulo, esclarecimento ou compartilhamento de informações sobre
serviços públicos. No contexto dessa pesquisa, por exemplo, observei a orientação
dos instrutores aos praticantes sobre o acesso aos serviços dos diferentes níveis de
atenção em saúde ou a serviços e benefícios sociais, de forma que o acesso das
pessoas a esses recursos, portanto, estava diretamente ligada ao nível de
integração social e participação do indivíduo na comunidade (54) (p.42).
Além disso, a participação em um grupo de prática corporal é um fator
que contribui para romper com o isolamento social e promover a participação social,
e também, é claro, de receber (e oferecer!) apoio social. O rompimento com a
solidão foi um assunto que se apresentou durante as entrevistas, explicitado pelos
90
quatro instrutores. Assim, praticar MVE ou LG, não diz respeito apenas à melhora da
saúde em seus aspectos clínicos, pois, segundo Helena, “às vezes a pessoa não
tem uma doença específica é mais solidão, falta de sociabilidade. Então é um
caminho também, uma oportunidade de tá participando da sociedade como um todo.
É uma forma de participação social”. Para Teresa a prática do LG também traz
“essa coisa da vivência. (...) A gente percebe, pessoas já fizeram comentários. Eu só ficava em casa, agora eu mudei, não sou mais aquela pessoa que só fica dentro de casa, tenho esse compromisso, então a gente tem um motivo pra sair de casa, participar das coisas que acontecem no grupo”.
Como a grande maioria dos praticantes de LG e MVE são pessoas acima
dos 60 anos43 é interessante refletir sobre a importância da convivência em grupo e
a formação de redes de apoio social e suas relações com a saúde, especialmente
para os idosos. Como apontado por Wichmann et al. (55) e também Canesqui e
Barsaglini (57), há uma relação intrínseca entre a participação nesse sistema de
trocas e a melhora da saúde e da qualidade de vida. Assim, destacam Canesqui e
Barsaglini (57), que “a frequência e a intensidade dos contatos sociais expressam o
maior grau de integração social e o sentimento de pertencimento, beneficiando o
bem estar social, a saúde e a proteção [social]”. (p. 1108).
Em uma visão centrada no discurso biomédico, para Wichmann et al. (55),
“inicialmente os idosos buscam, nesses grupos, melhoria física e mental, por meio
de exercícios físicos”, mas, posteriormente, os benefícios dessas atividades também
contemplam “(...) a interação, a inclusão social e uma maneira de resgatar a
autonomia, de viver com dignidade e dentro do âmbito de ser e estar saudável.” (p.
823). Afirma Dona Odete, praticante de LG que “a gente não tem que ficar parada
porque dói aqui e dói ali. (...) chega uma idade que você tem que ter uma atividade,
principalmente ficar junto com as pessoas, participar todo mundo junto”.
Em uma revisão sistemática sobre o apoio social na literatura científica,
Canesqui e Barsaglini (57 p. 1109) fazem uma importante consideração ao
observarem que “o apoio tende a ser analisado como instrumento e não como
componente das relações face a face que envolve os sujeitos, nas situações
cotidianas, na intersubjetividade e nos significados simbólicos que as permeiam” e
43
Entretanto, não se trata aqui de discutir sobre o envelhecimento, fazendo uma relação causal com o adoecimento, por exemplo.
91
que os recursos imateriais mobilizados para o enfrentamento de circunstâncias
adversas não devem ser compreendidos como abstratos ou de menor valor.
É através do convívio social nos grupos de práticas corporais – onde se
“participa todo mundo junto”, como disse Dona Odete – que os praticantes podem
perceber e sentir a potência do grupo, perceber sua “própria energia” e
compartilharem seus saberes, experiências, vivências pessoais, incertezas e
angústias, ressignificando sua própria história (55) (p. 828) e até mesmo seus
problemas de saúde, seus conflitos, suas carências ou necessidades. Dessa
maneira, o apoio social não precisa ser necessariamente material ou formalmente
prestado, pois pode ser prestado sutilmente. Milton traz uma visão bastante
importante sobre a perspectiva coletiva que orienta o trabalho em grupo de MVE que
conduz:
“o grupo influencia conforme você pertence ao grupo, o quanto que ele te constitui, como ele te ajuda a você a se constituir. E é isso, então você tem a força do grupo, você tem a interação no grupo, com o grupo, para poder ajudar as pessoas a tomar consciência e não ficar só em cima do seu, em cima da sua personalidade, em cima das suas questões, então a pessoa tem a oportunidade de ver o grupo e ajudar o outro, a pessoa ajuda o grupo e o grupo ajuda a pessoa, assim falando individualmente.
Diante destas colocações é correto afirmar que o apoio social se associa
à convivialidade, pois a cooperação é um componente essencial para o combate ao
individualismo e, portanto, essencial para o desenvolvimento do apoio social.
Associada à convivialidade, a dádiva também está presente, já que o apoio social se
pauta na solidariedade e na reciprocidade desinvestida de obrigatoriedade (54) (p.
42 e 44). Para o instrutor Carlos, a pessoa, ao praticar o MVE vai “ter chance de
participar de um grupo, que sempre vai te fortalecer”. E o instrutor Milton ressalta
essa ideia afirmando que
“quando a pessoa tem essa consciência, fica mais fácil de lidar com os problemas e fica também mais objetivo e tem uma atuação maior, que aí ela não vai ficar “ah sou eu sozinha e tenho que dar conta disso”. Não, aí ela vai buscar os recursos que tem na sua comunidade, no seu grupo, para poder se estruturar, pra poder se equilibrar”.
Nesse sentido entra em cena a autonomia e o empoderamento dos
indivíduos (54, 57), por meio “das redes sociais [que] não favorecem somente o
apoio, mas o tecido social e a construção das capacidades pessoais e sociais,
através do empowerment que é processo e resultado da ação social favorável ao
92
controle pelos indivíduos de suas próprias vidas, à interação com os demais e a
construção da ação coletiva”. (57) (p. 1111)
O engajamento dos indivíduos na rede de apoio social derivada dos
grupos de práticas corporais inseridos no contexto da atenção primária em saúde
pode ser compreendido, também, como um importante “ativo em saúde”, que é
definido, segundo Hernán e Morgan (58), como "qualquer fator ou recurso que
potencialize a capacidade de indivíduos, grupos, comunidades e populações para
manter ou melhorar a saúde e o bem-estar.” (p. 17, tradução nossa). Nessa
perspectiva, os ativos em saúde são ferramentas que contribuem para fortalecer a
autoestima e incentivar os indivíduos na busca por soluções para resolverem seus
problemas (58) (p.17), de forma autônoma e criativa, estimulando o empoderamento
e a participação social dos indivíduos (58) (p.18) e mobilizando as pessoas para
atuarem enquanto agentes promotores de saúde. Trata-se de um ativo em saúde
também porque a participação estimula “o caráter público e coletivo e não apenas os
aspectos das obrigações e dos elos interpessoais que unem os membros de uma
rede e seus interesses”. (57) (p. 1111)
A importância do apoio social como ativo em saúde foi identificada em
diferentes entrevistas e observada em vários momentos do trabalho de campo,
como, por exemplo, na busca de Seu Anselmo para recuperar o movimento de seus
dedos da mão. Ele relatou que além de incorporar em seu cotidiano os exercícios
que havia aprendido nas aulas de alongamento que fazia, resolveu, com incentivo
do instrutor de Movimento Vital Expressivo, acrescentar outra forma de reabilitação:
“Aí eu falei: - o que eu vou fazer? Eu gosto muito de música e eu vou comprar um violão e eu vou estudar o violão. Aí eu comecei e entrei na aula de violão também, me ajudou ainda mais o dedo a chegar no lugar e hoje, graças a Deus, aqueles problemas eu não tenho mais. Cada dia que passa, aprece que meu dedo tá ficando mais solto, ele pula na corda, pode tá pensando em outra coisa que o dedo pula na corda certinho”.
Assim, além do trabalho desenvolvido pela própria prática corporal44 é
com a força que emerge do grupo – ou da sinergia, como bem colocado pelo
instrutor Milton – que as pessoas constroem relações e podem se fortalecer e
transformar suas vidas. Dessa forma “é nesse contexto de trabalho grupal que se
44
Como já colocado na introdução (p. 22) o trabalho desenvolvido pelo Movimento Vital Expressivo estimula “o sujeito a experimentar, a vivenciar novas possibilidades de ser e estar no mundo, através do encontro consigo e com o outro” (4) (p.11)
93
constroem sentimentos de solidariedade, união, de ajuda mútua, de
comprometimento, que fazem com que o grupo sirva também como agente de apoio
social aos seus participantes”. (4) (p.60).
Sociabilidade como forma de criar vínculos entre praticantes e instrutores
De forma geral, segundo as entrevistas, a participação no grupo e outras
atividades (passeios, viagens e festas comemorativas) contribuiu para o aumento
dos círculos sociais dos praticantes e a convivência está atrelada às melhoras dos
aspectos físicos e emocionais. Para Silvana, coordenadora do Centro de Saúde I, o
convívio “é um aspecto que é muito relevante e que eles [praticantes] gostam” e,
além de ser uma atividade física, a prática corporal influencia positivamente na
saúde mental, que “termina sendo um fator muito importante que caracteriza esses
grupos”.
Na entrevista com Denise, praticante de LG, ela afirmou que faz a prática
“porque eu gosto, alongamento, tudo, eu acho que é bem legal e também porque eu
encontro as pessoas”, e enfatizou que considera “bem importante ter contato com
outras pessoas (...) [porque] o Lian Gong te dá essa condição” e isso “acaba
aumentando seu círculo de amigos”. Em complemento, para Seu Pedro, “a gente
passa a conhecer muita gente, muita gente passa a conhecer a gente”. Já Sílvia
destacou que “além de todo benefício de saúde, ele [o LG] tem também essa coisa
do social, de agregar as pessoas, aí diminui o tempo de ficar pensando nas
dorzinhas de cabeça, nas dorzinhas não sei de que. Risos”.
Em um estudo sobre grupos de caminhada nos EUA, Copelton (59)
corrobora com essa questão ao concluir que a sociabilidade é um componente que
está presente nos grupos e é essencial para a manutenção da saúde dos praticantes
e para sua permanência no grupo (59) (p. 304, tradução livre). Segundo Dona
Heloísa, praticante de MVE e LG, a “interação [é] muito gostosa e é muito importante
pra gente”. Em sintonia com essa colocação, Dona Rosa, ao ser questionada sobre
o que achava da interação social no grupo, falou sobre o companheirismo,
afirmando que “é bom porque é uma coisa que a gente pega amizade com pessoas
que a gente nunca viu. (...) É gostoso viu. A gente fica feliz de ter umas colegas boas
que ficam com a gente. Que acompanha junto”.
94
A “parte social” foi apontada por muitos entrevistados como uma
qualidade dos grupos de práticas corporais que, além de “fazer bem para a saúde,
tem a amizade também, o pessoal é tudo gente boa” (Val). O grupo, dessa forma,
torna-se um espaço-momento de encontro “muito bacana e agradável” (Nívea) ideal
para “conversar, escutar a conversa dos outros, participar da conversa com as
pessoas” (Janete). Diante dessas afirmações, é válido relembrar que a conversa
está a serviço de inúmeros assuntos e finalidades das relações humanas, tendo na
sociabilidade o caráter de entretenimento sociável (22) (p.75); além de constituir-se
como um elemento social significativo que reforça os benefícios de saúde,
aumentando o prazer e a adesão ao exercício (Tucker e Mortell apud 59 p. 307,
tradução livre).
Durante o trabalho de campo observei que as conversas estabelecidas no
grupo (e que eu também participava) versavam sobre viagens, passeios, filhos
(muitas praticantes falando mal sobre a “não paciência” dos filhos para lhes ensinar
a mexer nos recursos do celular novo, sobretudo por parte das mulheres que
aparentavam ter por volta dos 45-55 anos de idade), a delícia de cuidarem dos netos
(e a experiência de serem avós/avôs), programas de TV, as músicas favoritas e os
diagnósticos e prescrições médicas com as quais geralmente discordavam. Em
geral, eram conversas agradáveis, que operavam como canal para os praticantes
trocarem experiências, compartilharem saberes, reivindicarem, reclamarem,
desabafarem, acolhendo uns aos outros.
A escolha dos assuntos para a condução da conversa é uma questão
importante, assim temas como política ou discussões mais sérias devem ser
evitadas para não causarem atritos desnecessários, desarmonia no grupo e não
comprometam a sociabilidade entre os praticantes (59) (p. 310, tradução livre). Para
Nívea, a harmonia é um elemento presente no relacionamento do grupo de
Movimento Vital Expressivo do CS I, no qual “não tem aquela coisa: - “não vou com
a cara de fulano”, etc. (...). é muito tranquilo, eu acho isso muito agradável, não tem
atritos, é bem harmonioso, é bem agradável”.
Como bem advertiu Madel Luz (20), as atividades de saúde orientadas
pelos “wellness” priorizam a cordialidade, a cooperação e a solidariedade como
estratégia de relação social, estimulando, assim, a
“renovação da sociabilidade, [a] constituição de “novos amigos”, de “trocas sociais” (de informações, experiências, conselhos, orientações) que vão
95
pouco a pouco formando um tecido social comunicativo, com criação e extensão de atividades para fora do âmbito das práticas de saúde. O isolamento é aos poucos vencido e ressurgem nos indivíduos o otimismo e a esperança, com o reestabelecimento da confiança no outro, mesmo que no restrito grupo e no curto espaço de tempo onde a atividade é exercida”. (20) (p.120).
No contexto investigado, o Movimento Vital Expressivo e o Lian Gong
podem ser considerados como práticas “wellness” de baixa complexidade por
valorizaram o uso de tecnologias leves (60) (p. 5) no seu processo de trabalho em
saúde. O termo “tecnologia leve” diz respeito às relações que se estabelecem no
encontro entre o profissional de saúde e a pessoa acolhida, marcado por uma
relação intersubjetiva que favorece
“momentos de falas, escutas e interpretações no qual há a produção de uma acolhida ou não das intenções que estas pessoas colocam neste encontro; momentos de cumplicidades, nos quais há a produção de uma responsabilização em torno do problema que vai ser enfrentado; momentos de confiabilidade e esperança, nos quais se produzem relações de vínculo e aceitação”. (60) (p. 5).
O recurso da “tecnologia leve” marca um “processo de relações
intercessoras, surgido no encontro com o usuário e com as suas necessidades de
expressão de si, de produção de um corpo para si, mediada pela prática corporal e o
contexto que a envolve”. (32) (p.145) Dessa forma, podemos afirmar que este
enfoque “possibilita e potencializa a aproximação e interlocução entre profissionais
de saúde e usuários, reconfigurando relações médico-centradas em relações que
preservam (e até resgatam) as histórias de vida e os saberes dos indivíduos” (61)
(p.1502), estabelecendo, assim, a construção de relações horizontais entre instrutor
e praticante.
Para Lúcia, o instrutor de MVE e LG é um tipo de “profissional que se
preocupa com o social, que realmente enxerga uma pessoa”. Na percepção de
Claudia, coordenadora do CS II, um dos aspectos positivos das práticas corporais,
para o profissional que conduz o grupo, é a possibilidade de se aproximar dos
praticantes, pois o instrutor “acaba conhecendo o outro, no aspecto do ser humano,
às vezes uma dor no Lian Gong às vezes nem é tanto física né, às vezes se mistura
muito com a dor mental, não física. Então acho importante por causa disso”.
Milton, instrutor de MVE, apontou diferenças entre as relações que se
estabelecem no CS e no espaço do CECO, onde as práticas são realizadas,
justificando que
96
“a gente tem um vínculo afetivo aqui que é prazeroso, ele é motivante. [...]. Então esse negócio de trabalhar em grupo ele é motivante, porque a gente tem um vínculo que é diferente. [...]. A relação com os profissionais do centro de saúde é meio tensa, e varia de profissional pra profissional, é tensa de verdade, porque as pessoas não conseguem estabelecer um vínculo com os usuários entendendo as suas problemáticas”.
Para Milton, a criação de um vínculo afetivo entre usuários do serviço de
saúde e profissionais passa pelo exercício da compaixão, que segundo ele é
“uma coisa que a gente aprende no Rio Aberto. [...] é compaixão mesmo, de se colocar no lugar do outro, as pessoas tem dificuldade em fazer isso, de - “olha, porque a dona Mariazinha vem aqui todo dia reclamar da mesma coisa? Porque aquele usuário vem pra cá fedido, malcheiroso, às vezes sujo?”. As pessoas não conseguem se colocar no lugar daquela pessoa que vê que se o seu Joaozinho chega aqui sujo é porque ele trabalha na reciclagem, ele lida com lixo, o trabalho dele é aquele trabalho humilde, então as pessoas não conseguem entender e se colocar no papel daquela”.
Desta forma, voltamos ao princípio da amorosidade que se configura na
construção de um vínculo baseado no diálogo, na alteridade, na confiança e na
reciprocidade entre o profissional de saúde e o “paciente”. Assumir essa postura é
essencial para os instrutores que conduzem os grupos de práticas corporais, pois,
além de ser tornarem referência para o grupo, a maneira como o grupo é conduzido
reflete em como a prática corporal é compreendida (e sentida) pelo praticante.
É certo que a condução da prática corporal está muito associada ao
habitus45 (62) da escola em que se formou o instrutor e pode ser desenvolvida de
uma forma completamente técnica, mecanicista e instrumental, ou então num
contexto humanizado de acolhimento, estimulando o protagonismo dos praticantes e
respeitando a diversidade do grupo e os limites de cada um, sem implantar
mecanismos que incitem a competitividade (e, consequentemente, a desarmonia),
como por exemplo, o estabelecimento de metas a serem atingidas (59)46. A
instrutora Helena ressalta a importância dessa sensibilidade na condução do grupo,
afirmando que
“a gente não pode também estar exigindo, a gente vai e arruma os movimentos tudo, mas cada um faz no seu limite. Então é uma coisa que a
45
Segundo Pierre Bourdieu, a noção de habitus pode ser definida como “como sistema das disposições socialmente constituídas que, enquanto estruturas estruturantes, constituem o principio gerador e unificador do conjunto das práticas e das ideologias características de um grupo de agentes”. (62) (p.191). 46
Denise Copelton (59) fala sobre a importância da natureza não competitiva em um grupo de caminhada, no
qual os “caminhantes” não aceitaram o uso de pedômetros para o monitoramento do desempenho individual, sendo percebido pela enfermeira responsável pelo grupo como um dispositivo inútil, já que, além dos caminhantes não aderirem ao aparelho, ainda afastou algumas pessoas do grupo (p. 309 e 312).
97
gente tem que prestar bastante atenção, não ficar exigindo aqueles movimentos retos, fazer o melhor que pode no limite de cada um. [...]. Porque tem pessoas que ficam sentidas, acaba não indo, então eu tomo muito cuidado neste ponto, de não ficar muito em cima”.
Apesar de o instrutor Carlos realizar avaliações periódicas e
monitoramento clínico dos praticantes, pude observar que isso não se constituiu
como um controle negativo que afastasse as pessoas do grupo. As falas a seguir
confirmam meus registros sobre a maneira como Carlos conduz o grupo de
Movimento Vital Expressivo estimulando a permanência dos praticantes na atividade
e a harmonia no grupo
“o [Carlos] é agradável, ele sabe levar a gente (...) pra frente. (Seu Osvaldo). “[Carlos] é uma pessoa muito receptiva [...]. Ele vem com prazer, porque se ele não viesse com prazer, ele não ia passar essa harmonia para gente, alguma coisa ia ficar ruim no grupo”. (Nívea). “o [Carlos] é uma pessoa muito gente boa, então você curte a fazer. Eu acho que você tem que ser bem acolhida num lugar que você está frequentando. Você vai fazer um exercício com uma pessoa mal humorada? Não dá, aí fica chato, você acaba ficando estressada”. (Val).
Outras entrevistas também reportaram o papel dos instrutores na
permanência das pessoas nos grupos de LG e MVE. Para Rubens, “a presença da
[Teresa] atrai muita gente, ela dá toda assistência, e ela se tornou assim uma líder
para nós”. Lúcia também expressa essa questão, afirmando que os instrutores Milton
e Helena são “a alma do grupo” e
“o que te segura mesmo são os bons profissionais. Bons profissionais seguram na área de saúde, principalmente esses paramédicos, esses alternativos. [...]. Se você entrevistar o pessoal antigo, tanto aqui do Movimento quanto do Lian Gong, é uma ligação com o profissional, acaba sentindo bem, acaba formando aquele elo que você sente falta. [...]. Então o profissional, principalmente nessa área de alternativa, tem que ser muito bom para conseguir levar adiante a coisa. E nesse decorrer precisa ter um bom profissional atrás, aquele que te segura, que te faz vir”.
O contato semanal entre praticantes e instrutores, assim como o tempo de
participação nos grupos de MVE e LG, são fatores que favorecem maior proximidade
entre eles, e consequentemente, segundo Helena, uma maior abertura e liberdade
para que os praticantes procurem os instrutores para fazerem desabafos e/ou
pedirem conselhos sobre questões particulares. Dessa forma, o próprio grupo se
configura como um espaço-momento para “ouvir”, e, de acordo com a instrutora,
98
bem distinto do espaço do Centro de Saúde, pois o próprio cotidiano do serviço não
oportuniza o desenvolvimento desse tipo de relação.
No processo de trabalho em saúde, o estabelecimento de vínculo por
meio do diálogo permanente e do respeito às diversidades contribui para a
construção de modelos de atenção voltados para qualidade de vida dos indivíduos
(63) e também para “reconstrução do encontro terapêutico” (64). Assim, a formação
de vínculo no trabalho em saúde não deve focar apenas a adesão e/ou a eficácia do
tratamento, mas sim a construção de uma relação verdadeiramente pautada na
interculturalidade47.
Nesse sentido, a formação de vínculos entre instrutores e praticantes nos
grupos de práticas corporais investigados orienta-se pelo princípio da convivialidade,
que contribui para romper com as assimetrias de poder e com relações autoritárias
nas instituições do campo da saúde. De acordo com Val e Dona Olímpia, tal
reorientação no relacionamento entre praticantes e profissionais permite uma
relação de amizade com os instrutores. Assim, afirma a primeira que “é uma relação
de amizade; não é só ir lá e ver a enfermeira no postinho, a gente encontra “oi tudo
bom?”, cumprimenta”. (Val) E a segunda reafirma este ponto de vista explicitando
efusivamente que “onde a gente tiver eles vêm cumprimentar, eles vêm conversar
com a gente. Então fica a amizade, além das aulas que eles dão para a gente, fica a
amizade”. (Dona Olímpia).
Assim, conforme as práticas corporais favorecem o desenvolvimento de
relações não institucionalizadas, decorre uma possibilidade de verdadeiro
comprometimento do profissional de saúde com o outro enquanto proposta política
(64), através do enfrentamento à racionalidade científica que permeia o processo de
trabalho em saúde e impõe objetividade no atendimento e distanciamento do outro.
Sociabilidade e participação nas atividades de lazer extra-prática
Para além do momento da realização das práticas corporais, há outras
formas de encontro que contribuem para a sociabilização do grupo, como:
excursões, passeios, almoços e outros tipos de reuniões organizadas pelos
47
Sumariamente, de acordo com Carrons (2004), a interculturalidade se constitui como uma relação de interlocução entre agentes e grupos sociais de culturas distintas, orientadas para uma perspectiva descolonizadora.
99
instrutores e apontadas pelos praticantes entrevistados como um dos principais
benefícios de participar do grupo.
Tanto no grupo de LG do CS I, quanto no grupo de LG e MVE do CS II, os
praticantes participam da escolha do local e data da atividade, por meio de votações
que são realizadas em pequenas reuniões coordenadas pelos instrutores da prática.
Nessas reuniões, além de ter uma previsão do número de interessados é colocado
em pauta o valor estipulado da atividade (que habitualmente é acessível, de acordo
com as condições financeiras dos praticantes), os possíveis lugares e roteiros, a
data e a forma de pagamento. Quando o evento é finalmente definido é passada
uma lista entre os praticantes para que confirmem sua presença (ou fiquem na fila
de espera, como aconteceu nos dois passeios realizados pelo grupo de LG do CS I,
que tem em média 60 praticantes). Em geral, os passeios não são restritos aos
praticantes, que podem levar acompanhantes.
Além dos passeios, em datas comemorativas como dia das mães, dia dos
pais e aniversário do grupo são feitas reuniões – almoço, lanche da tarde ou café da
manhã – que podem ocorrer no local onde é feita a prática ou na casa de algum
praticante (como é o caso do grupo de LG do CS I, onde uma praticante sempre
cede sua casa para essas confraternizações). É interessante notar como o bingo
ocupa lugar de destaque nesses encontros, já que em nossas conversas informais
muitas vezes foi mencionado pelas praticantes como uma parte obrigatória da
comemoração, ressaltando os prêmios que já ganharam. Dona Olímpia
frequentemente participa das comemorações organizadas pelo CECO II e me falou
sobre as “festinhas”: “vai ter a festinha de dia das mães, ela [a instrutora Helena]
sempre faz, final de ano ela faz uma confraternização. O pessoal reúne, joga bingo,
se diverte, passa a tarde, é gostoso.”
Nas duas festas de dia das mães que participei (do LG do CS I e do CS II)
pude perceber que realmente o bingo é bem animado e rende boas risadas, e o
mais importante: aproxima as pessoas, não transformando o momento em uma
competição ou rivalidade. Quem participa vibra com a pontuação alheia, comemora
com quem ganha o prêmio, torce por quem ainda não marcou nada e também pede
ajuda pra encontrar o número sorteado na cartela. Inclusive, as condições opostas
de “azarada” (bingo do dia das mães do LG/CS I) e de “pé quente” (bingo do dia das
100
mães do CS II) ajudaram-me a aproximar mais dos grupos e conversar com
praticantes que eu ainda não conhecia.
Dos quatro grupos acompanhados, apenas o MVE do CS I não oferece
qualquer tipo de atividade extra-prática, mas durante minha permanência no campo,
essa questão foi levantada quando o mural da sala onde a prática é realizada foi
preenchido com fotos de um passeio organizado por outros grupos do Centro de
Convivência. Nesse momento, os praticantes fizeram alguns comentários sugerindo
ao instrutor que o grupo também se organizasse para isso. Durante as entrevistas,
perguntei sobre esse assunto e o instrutor Carlos me disse que era uma proposta
interessante, e que gostaria de planejar algum passeio para oferecer ao grupo, mas
que precisaria ser um dia em que todos pudessem participar, já que a maioria das
pessoas do grupo trabalhava em tempo integral durante a semana. Para a praticante
Val “uma viagem pra fazer todo mundo junto, passar o dia, ia ser uma coisa boa”.
De acordo com o antropólogo José Magnani, o lazer não pode ser
entendido simplesmente como uma atividade marginalizada oposta ao trabalho,
ligada ao ócio ou ao escapismo, pois liga-se ao prazer e pode ser compreendido
como uma prática social que revela identidades (individuais e coletivas), relações
sociais, noções de pertencimento, grupos, padrões de comportamento, códigos e
regras sociais, etc. (65, 66). Para Gutierrez (67), o lazer é uma atividade social, livre
de controle e regras institucionais e
“caracteriza-se por uma liberdade relativa de opção, pela percepção individual e subjetiva da expectativa do prazer e pela autonomia e responsabilidade do agente sujeito da ação social. Isto coloca grande parte das manifestações do objeto lazer no campo da sociabilidade espontânea ou informal, compreendida aqui como espaço de interação distinto dos sistemas organizados formalmente, ou burocratizados, a exemplo das dimensões políticas e econômicas, definidas por Habermas como sistemas dirigidos pelos meios de poder e moeda”. (67) (p.88).
Complementando essa ideia, para a coordenadora Silvana, a atividade de
lazer
“favorece o convívio fora do espaço institucional e são relevantes para as pessoas de mais idade, que no caso é o grupo que faz lá com a [Teresa], são pessoas que já não tem uma atividade laboral, não tem uma ocupação certa e então isso vira um estímulo de vida, de objetivo e é um momento muito aguardado pela equipe, pelos participantes”.
Em geral, nos passeios e festas que participei, a grande maioria dos
participantes é de pessoas aposentadas, mas, mesmo assim, para participar destes
101
eventos, precisavam de planejamento prévio (principalmente as mulheres),
sobretudo por causa dos afazeres domésticos e dos cuidados com os netos ou
companheiros adoecidos. Mas, apesar da dificuldade em ter um tempo realmente
livre por causa da sua rotina puxada com os trabalhos domésticos e o cuidado com
seu filho que necessita de alimentação especial, Dona Rosa, de 88 anos, afirmou:
“tem que seguir, porque a vida é essa. Risos. Ainda assim mesmo eu me divirto viu.
Risos. Eu passeio, vou fazer viagem, que nem quando vai por aí eu vou também, eu
não paro. Risos.”.
A oferta de atividades de lazer extra-prática pelos grupos de práticas
corporais contribuem também para aproximar as pessoas e reforçar o vínculo e a
interação social no grupo, aumentando o círculo de amizades. Foi através da
participação nessas atividades que Célia, praticante de LG, pegou “mais amizade
com a turma, assim, convivendo, de excursão. Tem excursão em tal lugar, daí você
gosta de viajar, então a gente vai aumentando o círculo de amizade, (...) a partir
desse grupo aqui uma vai falando pra outra.”. De encontro com essa declaração
afirma Lúcia, praticante de MVE e LG do CS II, que:
“são passeios que você fica 3 ou 4 dias na praia (...).. Se conhece mais e depois, às vezes, liga quando a gente some. A pessoa que realmente você conviveu mais nesses passeios, acaba tendo um elo maior. Às vezes não dá tempo de você ir até a casa, mas de vez em quando liga -“Oi, tá tudo bem com você?” Então algum contato sempre acaba tendo e exatamente com esses grupos que a gente ficou mais dias juntas”.
Nessa mesma perspectiva, para a instrutora de Lian Gong Teresa, os
passeios possibilitam “que o grupo fique cada vez mais unido, mais interessante e
eles [praticantes] gostam disso”. Além de promover união e aproximação do grupo, e
também de serem “muito importante e fazer bem pra saúde” (Lúcia), os passeios são
vistos por Raimunidinha, praticante de MVE, também como uma oportunidade para
fazer o que mais gosta: dançar – “eu saio, eu vou nas festas, vou dançar por aí,
quem leva é a [Helena, a instrutora]. Ela faz excursão e leva nós. Eu gosto, eu vou
dançar”.
Nos passeios e festas que acompanhei não observei qualquer tipo de
controle ou vigilância feita pelos instrutores – profissionais de saúde – no sentido de
advertências sobre alimentação saudável, comportamentos de risco ou então a
realização de atividades físicas ou recreativas monitoradas. Apesar de, por exemplo,
102
o Casarão de Itu oferecer uma infraestrutura de hotel fazenda, com trilhas, piscinas e
outros ambientes para jogos e esportes, as únicas atividades que reuniram o grupo
(mas voluntariamente) foram o bingo (esse não podia faltar), o baile (com música ao
vivo) e a quadrilha junina, onde os “passeantes” foram convidados a participar das
brincadeiras realizadas pela recreadora do local. O propósito desses passeios é,
segundo Milton, “passar happy days” e são “sucesso, sucesso total. Por quê? As
pessoas vem pra falar, para jogar o bingo, socializar, enfim, para brincar (...). Então
faz muito sucesso por conta dessa convivência que é fundamental.”.
Assim, a integração dessas atividades de lazer aos grupos de Lian Gong
e Movimento Vital Expressivo segue um propósito que vai de encontro com o
objetivo das práticas corporais e proporciona a “vivência lúdica” (68) (p.125), a
criação de um vínculo maior de amizade entre os praticantes, enfatizando “a
capacidade que esses conteúdos têm de possibilitar o exercício da solidariedade, da
sociabilidade” (7) (p.39) ao invés de valorizar a cultura “fitness” da biossociabilidade,
que prioriza a melhora fisiológica, o ganho de força e resistência muscular, a
agilidade e outras capacidades físicas.
Considerações Finais
A partir da análise das entrevistas identificamos que a sociabilidade nos
grupos de práticas corporais investigados está fortemente ligada aos sentidos do
desenvolvimento de apoio social e formação de vínculos de confiança entre
praticantes e instrutores, que reorientam as relações estabelecidas no processo de
trabalho em saúde. Além disso, verificamos que dessas formas de encontro, a
sociabilidade no grupo expande-se para além do momento-espaço da realização do
MVE ou do LG, suscitando outras maneiras de “estar com o grupo”, através da
participação das atividades de lazer extra-prática, que ao mesmo tempo em que
reforçam os laços de amizade que se formam nos grupos, promovem aproximação e
a criação de novas amizades entre os praticantes e também com os instrutores.
Em consonância com os achados de Copelton (59), os dados empíricos
da pesquisa apontam que praticar Movimento Vital Expressivo e/ou Lian Gong não
diz respeito apenas à oportunidade de se exercitar regularmente para manter ou
recuperar a saúde, mas envolve um importante aspecto social, que contribui,
sobretudo, para a permanência do indivíduo nos grupos de práticas corporais. Nesse
103
sentido, podemos compreender a participação nos grupos enquanto uma
“experiência social” e as próprias práticas como uma “atividade sociável” (59) (p. 306
e 312).
Dos vinte e um praticantes entrevistados, apenas seis acessaram o grupo
através de indicação de algum profissional de saúde. Destes, apenas um foi
encaminhado pelo médico do serviço, enquanto os outros cinco foram convidados
pelos próprios instrutores, que consideraram que a prática corporal seria apropriada
para a pessoa. A maioria, quinze pessoas, é “demanda espontânea” e soube do
grupo através da busca por informações sobre as atividades oferecidas pelos
serviços de saúde, por verem o grupo reunido ou por convite de parentes e amigos.
A divulgação das práticas corporais pelos próprios praticantes torna-se uma
importante forma de acesso às atividades, muito mais difundida do que entre os
profissionais de saúde, que pouco orientam os usuários do serviço sobre a oferta
das práticas não convencionais.
A adesão ao MVE ou ao LG através do boca-a-boca (4) ou, mais
especificamente, por causa da influência da experiência positiva de alguém que já
faz a prática (69), tem uma forte relação com o aspecto social das práticas corporais,
pois é uma característica comumente reforçada e compartilhada por quem convida
outras pessoas para conhecerem o grupo. As experiências pessoais com a prática
corporal e seus benefícios para a saúde estão associadas com o convívio, com as
novas amizades, com a diversão e com as atividades de lazer promovidas pelos
grupos. Afirmações como “faz bem”, “é uma oportunidade para fazer amigos”, “tem
música”, “descontrai”, “faz alongamento”, “se diverte”, “brinca e dá risada”, “passa
uma hora mais descontraído”, “o instrutor é bem legal”, “tem festa”, “encontra as
meninas” são as recomendações mais comuns dos praticantes para os seus
convidados.
Por outro lado, cabe destacar também que as práticas corporais colocam
em perspectiva outros saberes através do protagonismo dos praticantes e,
sobretudo, dos profissionais de saúde que conduzem os grupos, fazendo um
enfrentamento aos saberes tecnológicos legitimados pela ciência. A possibilidade de
agentes comunitários de saúde, enfermeiros e educadores sociais desenvolverem
trabalhos em grupo fora do espaço institucional do serviço de saúde, de forma mais
livre e autônoma, pode até não significar um rompimento total com o saber
104
dominante da racionalidade biomédica, mas com certeza é um avanço rumo à “des-
profissionalização” da medicina e dos cuidados médicos (34), que, para Ivan Illich,
implica em revelar
“o mito de que o progresso técnico exige especialização constante das tarefas, das manipulações sempre mais abstrusas e de uma permanente e crescente demissão do homem obrigado a se tratar à revelia em instituições impessoais, em vez de depositar sua confiança em si mesmo e em seus semelhantes”. (34) (p. 131).
Finalmente, a partir dos relatos dos entrevistados e das observações
realizadas no campo cabe-nos então “re-pensar” a saúde e os benefícios das
práticas corporais em seus sentidos e significados para além daqueles estabelecidos
por instituições ou agentes institucionais, que tendem a instrumentalizar a saúde e
reduzi-la em seu valor utilitário. Assim, discutir as práticas corporais numa
perspectiva socioantropológica que envolva a sociabilidade, o prazer ou a satisfação
(20, 7, 59) permite colocar em evidência aspectos subjetivos, como por exemplo, as
sensações sentidas no momento da prática e as percepções dos praticantes sobre
as mudanças proporcionadas pelo Movimento Vital Expressivo e pelo Lian Gong.
105
CAPITULO 3 – Os sentidos e significados das mudanças físicas, psíquicas e
sociais com a prática de Lian Gong ou Movimento Vital Expressivo
Apesar do Lian Gong e o do Movimento Vital Expressivo terem objetivos e
técnicas fundamentadas em conceitos próprios e de estarem institucionalizadas em
partes do Sistema Único de Saúde de acordo com diretrizes definidas pela Política
Nacional de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde e pela Política
Nacional de Promoção da Saúde, contudo coordenadores de serviços, profissionais
de saúde e usuários de práticas corporais têm suas próprias vivências e
experiências, atribuindo-lhes sentidos e significados positivos associados a
diferentes aspectos, como: relaxamento, melhora da postura, descontração,
desenvolvimento de equilíbrio e coordenação motora, qualidade do sono e aspectos
relacionados à sociabilidade.
A partir da análise temática do conteúdo dos textos produzidos por duas
praticantes de LG e MVE e das entrevistas realizadas com praticantes, instrutores e
coordenadoras de serviços de saúde de Atenção Primária em Saúde, identificamos
os temas relacionados e a forma como cada um experimenta as práticas corporais.
O objetivo deste capítulo é analisar os sentidos e significados atribuídos por estes
diferentes atores às mudanças físicas, psíquicas e sociais, experienciadas com as
práticas corporais.
Os sentidos e significados das mudanças
Segundo o dicionário de português Michaelis, a palavra “sentido” diz
respeito às representações, ao entendimento, à razão ou ao modo particular de
entender algo. Assim, as representações sobre o LG e o MVE feitas pelos
interlocutores trazem relatos sobre suas experiências com as práticas, onde as
descrevem segundo seus próprios sentidos, percepções e sensações. De acordo
com Carvalho e Luz (70),
“atribuir sentidos faz parte do universo simbólico e das relações sociais construídas pelo homem nas suas vivências. [...]. Construímos sentidos e significados sem termos obrigatoriamente consciência disso. Os sentidos nem sempre são enunciáveis, nem sempre cabem em palavras, pois residem também nos gestos, na expressão e nas formas de comunicação entre os corpos, não são redutíveis ao que de imediato pode ser percebido. A percepção também não é “natural” no homem, é socialmente construída, [...], é parte de uma estrutura construída subjacente ao sujeito [...]”. (70) (p.319).
106
Embora o Lian Gong em 18 Terapias seja definido por Lee (17 p.14) como
“uma prática corporal especificamente projetada para a prevenção e tratamento de
dores no corpo [realizada através de movimentos] elaborados de acordo com as
características anatômicas e fisiológicas de cada região afetada (pescoço, ombros,
costas, região lombar, glúteos e pernas)”, no entanto, para Dona Heloísa, além de
ser um alongamento, o LG desenvolve a coordenação motora e estimula a
concentração. E ela destaca a importância deste estímulo: "a concentração durante
uma hora parece pouco, mas nesta vida agitada onde queremos fazer tudo ao
mesmo tempo, esta uma hora é preciosa e faz a diferença no nosso dia" (ANEXO
E). Já para Sílvia, a sensação provocada pela respiração trabalhada pelo LG é o que
mais lhe atrai nesta prática: “você respira [e aí ela demonstra, puxando o ar] e
parece que você sente, entra aquele ar no organismo com energia, boa energia.”.
Quanto ao MVE, além dele ser descrito por Maria Adela Palcos (71) como
uma técnica que desenvolve trabalhos de relaxamento, respiração e consciência de
si para promover uma transformação energética em nível individual (71), para Dona
Heloísa a prática promove “uma interação gostosa” (ANEXO F) envolvendo, para
Val, a troca de abraços entre os praticantes e diversão (ANEXO D). O resultado
disso, para seu Osvaldo, é que ele se sente “ótimo pra caramba, bonito, gostoso”.
Para Milton, o MVE provoca um “estímulo ou uma alegria, um bem-estar físico ou
emocional [...] por conta da música, por conta da própria, não é dança, mas a própria
dança, a ginga, dá essa alegria, dá uma descarga de adrenalina e as pessoas ficam
mais alegres, mais felizes”. Além disso, a música também compõe esse cenário:
“gosto da hora que coloca a música, aí eu sinto bem porque mexe os músculos.”
(Val).
Ao contrário da cultura fitness que apela ao discurso do risco, artificializa
o cuidado e força a adesão dos indivíduos ao consumo de uma variada gama de
produtos como um caminho seguro para a preservação da saúde, não permitindo
aos sujeitos estabelecer relações de sentido (72), as práticas corporais, por causa
das suas características e conceito ampliado de atenção ao corpo (7) (p.34),
permitem a apropriação pelos agentes sociais, contribuindo, assim, para o
deslocamento do discurso científico-normativo sobre o que é saúde, cuidado e
doença. De acordo com Alves e Carvalho (72)
107
“Quando se dobra a atenção sobre uma prática corporal e se força a incuti-la como exercício regular de cuidado, tal movimento pode ser estimulado pela força imperativa dos ideais vigentes na esfera pública, ou por um movimento original de cuidado que não abre mão de si mesmo frente à presença insondável do ideológico. Enquanto no primeiro caso a prática não passa pelos crivos da adesão, no segundo o sujeito realmente se apropria da prática que realiza e faz deste movimento um exercício de cuidado consigo e com o outro”. (72) (p. 234).
As falas de Carmem, Lúcia e Heloísa representam bem a dinâmica da
apropriação da prática corporal e o movimento de cuidado consigo e com os outros.
Elas não só incorporaram em seus cotidianos o que aprenderam com as práticas,
como também compartilham com seus familiares.
“Eu não sabia, agora eu faço bastante, estou parada e estou fazendo os movimentos, sentada, esperando o ônibus, estou fazendo os movimentos com pés também. E falo pro meu marido: “enquanto você está sentado, vai mexendo os dedos, vai fazendo movimento com o pé” e eu faço pra ele ver”. (Carmem, praticante de MVE). “Em casa, às vezes, ela [Cris, sua filha] está muito nervosa, então eu falo assim pra ela, porque às vezes tem uns minutos dela que dá uma agitação, eu falo “calma, respira”, falo as coisas do Movimento [MVE], quando vai ver ela já está mais calma, já tranquilizou”. (Lúcia, praticante de MVE e LG). “minha irmã tá com começo de mal de Alzheimer, então eu tô levando pra ela o que aprendo e posso ensinar [do Lian Gong], de coordenação motora e essas coisas, então tudo o que eu aprendo eu vou levando pra ela”. (Heloísa, praticante de LG e MVE).
Segundo Alves e Carvalho (72) (p. 241), as práticas corporais permitem
aos praticantes experimentarem a “grande saúde”48, já que também podem propiciar
um movimento criativo, de abertura a diferentes “modos de querer, sentir e pensar”
e, assim, “a descoberta de diferentes pontos de vista” (p. 239), evidenciando o que o
corpo vivencia, por ele próprio, destituído do discurso ideológico normativo. Para os
autores, “este movimento de criação de si mesmo é o fôlego da grande saúde, no
qual opera o curso de uma vontade que direciona o ser nos caminhos de um vir a
ser em constante prorrogação.” (p. 237). Ao conhecer o CECO I e começar a praticar
o MVE, Dona Heloísa pôde vivenciar a grande saúde e se (re)descobrir, abrindo-se
para outras experiências:
48
Nietzsche, apud Carvalho e Filho, discute a “grande saúde” em termos de: “Nós [...] rebentos prematuros de um futuro ainda não provado, nós necessitamos, para um novo fim, também de um novo meio, ou seja, de uma nova saúde, mais forte alerta alegre firme audaz que todas as saúdes até agora. [...] aquele que quer, mediante as aventuras da vivência mais sua, saber como sente um descobridor [...] e também um artista, [...], um sábio [...]: para isto necessita mais e antes de tudo uma coisa, a 'grande saúde' - uma tal que não apenas se tem, mas constantemente se adquire e é preciso adquirir, pois sempre de novo se abandona e é preciso abandonar [...]. (Nietzsche, 2001, p. 286).”.
108
“Antes de entrar aqui eu nem sabia que existia essas coisas boas da vida, foi uma felicidade. Deu chance pra eu declamar as minhas poesias, eu era muito tímida, então me soltei, eu me descobri artista, nossa, demorou mais de cinquenta anos pra descobrir minha vocação, um dom que Deus me deu de artista, poetisa, de dançarina”.
Podemos acrescentar a esse debate a ampla noção de saúde da
perspectiva xamânica em diferentes culturas, qualificada como
“estar em harmonia com a visão de mundo. Saúde é uma percepção intuitiva do universo e de todos seus habitantes como seres de um único estofo. É conhecer morte e vida, e não ver entre elas diferença alguma. É misturar e fundir, procurando o isolamento e o companheirismo para compreender nossas múltiplas identidades. Ao contrário das noções mais "modernas", na sociedade xamânica, saúde não significa sentir nada; nem ausência de dor. Saúde é buscar todas as experiências da Criação e vivenciá-las, sentindo sua textura e seus múltiplos significados. Saúde é expandir-se para além do próprio estado de consciência para experimentar os sussurros e vibrações do universo”. (73) (p. 25)
Criticar os limites de explicação do modelo biológico, que predomina a
prática biomédica, não significa desconsiderar seu conhecimento científico ou seus
avanços tecnológicos, mas sim questionar seus conceitos e o “plano de operação
nas práticas de atenção à saúde (...) o modo como o discurso da doença monopoliza
os repertórios disponíveis para o enunciado dos juízos acerca da saúde, a ponto de
jogar na sombra todos os discursos da saúde que não se estruturem pelo raciocínio
causal-controlista” (64) (p. 48). Assim, o que se critica é a tendência do discurso
biomédico em deslegitimar e desqualificar todas e quaisquer
sensações/expressões/saberes que não sejam consideradas oficiais.
De acordo com Baarts e Pedersen (52) (p. 720), os cuidados em saúde
propiciados pelas práticas integrativas e complementares permitem aos seus
usuários uma experiência mais próxima com o próprio corpo, possibilitando também
que signifiquem suas experiências junto às práticas. Em consonância com essa
proposição, Claudia, coordenadora do CS II, afirma que um dos principais benefícios
das práticas corporais “é o conhecimento do seu corpo, dos seus limites. Acho que
fazendo a prática você se conhece, conhece como corpo físico, conhece suas
limitações, você conhece um pouco mais do seu corpo”.
Compreendidas enquanto “práticas corporais introspectivas” (32) (p.142),
o MVE e o LG desenvolvem um trabalho corporal orientado para a superação da
dualidade mente-corpo e para a produção de consciência corporal, ampliando a
109
atenção do praticante para as sensações que surgem com a realização da prática.
Dessa forma, para Carvalho e Luz (70 p. 315)
“Uma análise interpretativa nesses termos não constrói uma verdade única nem implica cisão corpo/mente, ao contrário, permite romper com a concepção de corpo fracionada. Esta, apesar de ter sido útil na modernidade, hoje, na cultura contemporânea, representa um reducionismo a ser superado. Embora tenha representado um grande impulso para a ciência moderna, hoje a representação desta cisão imprime um caráter fragmentário e mecanicista à totalidade humana”.
Para a coordenadora do CS I, Silvana, essas práticas levam “à reflexão, à
interiorização, à questão do corpo integrado com a mente, ao processo de saúde-
doença, do autoconhecimento, do autocuidado”. E é no envolvimento do praticante
com a atividade que ele vai percebendo a proposta das práticas corporais, como
afirmam abaixo Beth, Lúcia e Dona Conceição
“no início [era] pra mexer o corpo e depois foi ficando bem gostoso, a cabeça foi ficando bem legal” (Beth). “Eu acho que tem que se soltar, se entregar, voltar para si, pro teu corpo, com você mesma, de repente, tem esses momentos que a gente volta para a consciência” (Lúcia). “É uma coisa boa que a gente tá fazendo com o corpo né, a cabeça fica boa, a gente tá pensando só na gente naquele horário, né?” (Dona Conceição).
Neste contexto e com base em uma compreensão socioantropológica
podemos associar o conceito de corporeidade, ou embodiment, que se refere ao
“corpo vivido, ao nosso corpo ser-no-mundo, como o local onde se inscrevem
significados, experiências e expressões”. (54) (p.73, tradução nossa). Sonia Maluf
segue essa discussão e contribui para a abordagem sobre o corpo “não apenas
como objeto da cultura, mas também dotado de agência própria, não apenas como
receptáculo de símbolos culturais, mas como produtor de sentido” (74) (p. 88). Ao
afirmar o corpo como produtor de valores e sentidos, não apenas como objeto da
cultura, a autora enriquece o debate com a noção de agência (74) (p. 96), pontuando
que ora somos sujeitos, ora agentes das representações sociais.
Sendo assim, sem excluir o corpo como dado biológico e sua dimensão
física, a corporeidade diz respeito à construção social do corpo a partir de sua
inserção e interação no e com o meio ambiente e com outros corpos (74, 54). De
acordo com Luz (20), as atividades wellness podem ser visualizadas enquanto um
meio privilegiado onde o corpo encontra a possibilidade de sentir, se expressar e se
110
relacionar. A partir da participação nos grupos de práticas corporais, os indivíduos
podem entrar em contato com seus próprios corpos e interagirem com outros,
estabelecendo, assim “uma relação com o outro e com o mundo” passando “a
experimentar uma nova maneira de estar presente” (4) (p. 56). Dessa oportunidade
do encontro consigo e com os outros, podem decorrer mudanças relativas à
aceitação da diferença e também para a convivência, como se pode observar nas
narrativas que seguem de Beth e Janete
“Eu acho que eu fiquei mais receptiva para pessoas um pouco mais simples, me deu um status de ver [...].”. (Beth, praticante de MVE). “Para mim fez super bem, fiz bastante amizade, parece que eu voltei a sorrir de novo, coisa que eu estava me trancando dentro de mim [...]. No começo quando eu cheguei, eu cheguei bem fechadinha, encalhada. Depois eu fui me soltando e hoje tenho uma convivência ótima com todo mundo [...].”. (Janete, praticante de MVE).
As percepções de mudanças também se associam à diminuição de dores,
na melhora do sono e também na diminuição no consumo de remédios. Para Dona
Vitória, o MVE “ajudou muito na artrose [...]. Eu me senti muito bem, bem melhor,
que, por exemplo, antes eu acho que tinha mais dor, dormia mais agitada. Hoje já
não tenho mais isso, melhorou bastante”. Durante a entrevista com Carmem, ela
relatou perceber que não sente mais as dores causadas pela tendinite, atribuindo a
melhora aos exercícios que aprendera com o MVE. Além disso, comemorou a
redução nos medicamentos que toma para controlar a pressão
“antes eu tomava três remédios de pressão e às vezes iam medir minha pressão e estava dezesseis e agora a médica tirou um remédio, só estou com dois e a minha pressão está sempre boa. Então eu estou atribuindo que é por causa do exercício que eu estou fazendo, o Movimento. [...]. Um remédio a menos já é muito bom. É muito ruim tomar remédio, eu não gosto.”
Segundo os instrutores Carlos e Milton e a instrutora Helena, as
mudanças com as práticas de MVE e LG refletem também na diminuição de idas ao
CS e na dispensação de medicamentos pelo serviço. Para Milton, essa mudança é
empiricamente percebida, entretanto, não há um registro oficial que comprove isso.
Helena explica o motivo da diminuição dessa demanda afirmando que se deve
“porque [as pessoas] está se cuidando mais. Estão vendo uma outra coisa que não
só a doença, não só a medicação. Tomam sim a medicação que é necessária, mas
não estão todo dia na porta do centro de saúde”. E Milton completa essa afirmação
narrando que “[as pessoas que frequentam aqui] reclamam pouco da vida, de dores,
111
mesmo falando que tem doença, que vão, que enfim, tem lá seus agravos de saúde,
não reclamam tanto da vida”. A prática corporal além de ser uma forma de cuidado
desmedicalizado, para Carmem significa, também, a oportunidade restauradora de
ter uma hora só para si.
“só trabalho de casa, uma coisa para mim eu não tinha. Eu quero ter uma hora para mim, uma coisa minha e por isso que eu largo tudo e venho mesmo, porque é uma coisa minha, um horário meu. Não preocupo com a casa, com nada, com trabalho e nada. Uma hora minha mesmo. Um horário que ‘não conte comigo para nada’, porque é sagrado”. (Carmem)
É interessante destacar as relações com as práticas que os próprios
instrutores estabeleceram, pois perceberam que o LG e MVE provocaram mudanças
em suas vidas, contribuindo, principalmente em questões pessoais e profissionais,
como afirmam Tereza e Carlos abaixo.
“Depois que eu formei esse grupo, eu fiquei tão conhecida, como eu falei, eu ficava dentro de casa, tive depressão, eu agora sou outra, eu sinto o quanto isso para mim foi bom. Melhorou muito minha autoestima [...]”. (Teresa) “O impacto é que trouxe bastante beneficio pessoalmente para mim, porque eu sempre também me senti uma pessoa meia fechada, meia tímida e o Movimento me ajudou a trabalhar melhor isso, trabalhar essa coisa da timidez, eu era um pouco mais quieto, então na minha vida pessoal ele ajudou bastante, tanto profissionalmente como familiar nas relações”. (Carlos)
As mudanças proporcionadas pelas práticas corporais também refletem
diretamente na qualidade de vida dos praticantes e, em alguns casos, na
recuperação não só dos movimentos, mas da autonomia. Essa transformação
proporciona, além de liberdade e independência, também, “a retomada de confiança
no próprio corpo e a recuperação da autoestima” (4) (p.56). Na entrevista com Dona
Conceição e Dona Zilda, ao serem perguntadas sobre quais mudanças sentiram
com a prática de MVE, a segunda respondeu que “sente [o corpo] gostoso e parece
que se desenvolve um pouco mais” e ambas falaram sobre o processo de
reabilitação de certos movimentos.
“Eu tinha colocado a prótese, então não dava pra deitar, pra levantar, não conseguia no começo e eles que precisavam me levantar e tudo. Depois foi indo comecei a fazendo a ginástica e agora eu levanto e deito, não dói mais. A ginástica ajudou bastante”. (Conceição) “Eu penso que primeiro eu senti que antes eu não abaixava. Se caísse alguma coisa no chão, não dava pra abaixar pra catar. Então tinha muita coisa que eu não fazia, mas depois que comecei mesmo na ginástica mesmo aqui e lá na água, aí melhorou bem, nossa, eu não agachava e agora eu abaixo. Eu não levantava, que nem no começo quando eu vim a
112
gente deitava no chão e era preciso eles [os instrutores] me ajudarem, agora, eu já fui levantando, foi uma boa melhora.” (Zilda).
Do mesmo modo, os trabalhos corporais desenvolvidos pelo MVE e LG
resultaram também no ganho de maior agilidade, conferindo, junto com isso, mais
disposição para que os praticantes possam “começar um dia muito animado” (Sílvia)
e desempenhem suas tarefas diárias, como afirmam Dona Olímpia, Ivone e Rubens.
“Eu senti mudança no meu corpo, a gente fica melhor para fazer o serviço e as atividades da gente. Na mente também a gente sente melhor porque a gente faz amizade, chega em casa mais alegre até para conversar com o marido porque a gente fica mais extrovertida”. (Dona Olímpia, praticante de LG). “Isso ajuda a gente a ficar mais solta, você sai mais leve, mais disposta para você continuar fazendo as tarefas do dia a dia. Se eu não fizesse isso, eu não ia conseguir fazer o que eu faço, que não é pouca coisa.” (Ivone, praticante de MVE). Como eu tenho problema de coluna e ombros devido ao trabalho, o meu trabalho não era leve, esses alongamentos, postura, tudo isso aí influencia que a gente se sente bem. Tanto é que eu saio daqui do Lian Gong e eu tô pronto pras minhas atividades, que eu não paro né? “Então eu saio alongado, aquecido, pronto pro que der e vier.” (Rubens).
Além disso, os praticantes também se referiram ao ganho de flexibilidade
e equilíbrio, além de uma melhor postura, já que as práticas corporais, de forma
geral, estimulam movimentos diferentes daqueles do cotidiano de trabalho, fugindo
do padrão de mecanicidade do corpo (4) (p. 47). Como afirma Denise, “eu acho que
eu melhorei bastante o equilíbrio, porque a gente vai ficando mais velha, então fica
difícil”. E os relatos do Seu Osvaldo e de Dona Rosa complementam sua visão
“antes eu não fazia exercício nenhum, eu só fazia exercício no trabalho só. Mudou. Tá melhor, ficou melhor. [Faz o movimento pra me mostrar]. Era durinho, agora consigo fazer [coloca o braço pra trás]. Essa mão vai sem fazer força. Não conseguia fazer isso antes. Eu tinha dificuldade de fazer. Depois que entrei aqui deu uma melhora”. “Cê vê, eu com a idade que eu tenho eu faço, o corpo fica tudo assim [mostra uma postura torta], assim pra trás, fico ó. É uma coisa que tá me ajudando é um verdadeiro remédio isso. [...]. Deixa o corpo em forma. Não fica aquela coisa. A costela, risos, tem gente que fica assim né [mostra uma postura “caída”], o meu não, fico retinha”.
Diante dos relatos trazidos pelos interlocutores, podemos afirmar que a
educação em saúde está diretamente associada às práticas corporais, devido,
sobretudo, às mudanças significativas originadas pelas práticas. A coordenadora
Silvana apontou para essa questão: “eu acredito que a nossa parte educativa, hoje,
está bem identificada com as práticas integrativas, porque tá muito mais na questão
113
da educação, do que do condicionamento físico, do que uma prática técnica que a
gente faz no dia a dia”. A coordenadora continua e exemplifica afirmando que “existe
um momento sempre pra falar de alguma questão de saúde, mesmo que não
aconteça todas as vezes, mas se escolhe alguma questão voltada ao tema da
saúde”.
Apesar das questões abordadas nos grupos de práticas corporais do CS I
geralmente partirem muito mais da prevenção de doenças do que realmente sobre a
saúde, o jeito como essas questões são passadas pelos profissionais que conduzem
os grupos assegura a construção de uma relação dialógica entre os instrutores e os
praticantes. Rubens dá um exemplo sobre as orientações passadas pela instrutora
Teresa, que o ajudam a “manter também com certos cuidados, porque não é só o
Lian Gong, têm certas orientações que também a gente recebe, sem fazer bobagem,
ao invés de fazer coisa errada, a gente faz, a gente procura fazer certo”. Já para Seu
Anselmo, as conversas estabelecidas entre o instrutor e o grupo o ajudaram a
conseguir pedir desculpas quando sente que deixou alguém chateado: “eu já sabia,
mas não sabia, e não olhava, não tinha coragem de olhar na cara da pessoa e falar
‘muito obrigado’ ou ‘descurpa, não foi a minha intenção’”.
De acordo com essa ideia, Milton considera que o próprio trabalho em
grupo apresenta um sentido educativo e é uma oportunidade para trabalhar com a
comunidade questões sobre “reeducação alimentar, postural, de vida, de visão de
vida, de saúde, de atividades físicas” e salienta que através da participação nos
grupos, ocorre uma importante mudança, pois “aqueles usuários que frequentam
aqui com mais frequência, de uma forma mais sistemática, eles tem claramente qual
é o papel do centro de saúde, que é questão de agendar consulta, de fazer de uma
forma de promoção de saúde, de não ir lá só quando está no bico do corvo, com
aquelas dores”, compreendendo melhor, também, sobre o funcionamento dos outros
níveis de atenção em saúde.
O trabalho em grupo, sobretudo o que é desenvolvido a partir dos grupos
de práticas corporais investigadas, pode se afirmar, interliga-se com os princípios
estabelecidos pela Política Nacional de Educação Popular em Saúde, como o
diálogo e a construção compartilhada de conhecimento (44), que favorecem a troca,
a efetivação da intersubjetividade, a construção coletiva de saberes, o
desenvolvimento da autonomia e do cuidado emancipador, bem como do princípio
114
da convivialidade. Nestes termos, as ações voltadas para a educação em saúde
contribuem amplamente para a participação dos indivíduos na construção de um
conceito ampliado de saúde (75) a partir de suas próprias referências e experiências,
descentrado da lógica normativa da racionalidade biomédica. Assim, alcança o que
propõe Vasconcelos (76) (p.114) para a educação em saúde, que deve se pautar,
portanto, em um “diálogo mais profundo que inclua a emoção, a razão e as
percepções simbólicas”.
Considerações finais
A partir da análise das entrevistas foi possível perceber uma polifonia de
sentidos atribuídos às práticas corporais investigadas. Em termos gerais, as
percepções de mudanças apontadas principalmente pelos praticantes e instrutores
se associam à melhora nos aspectos emocionais, físicos e sociais, resultando, por
exemplo, no relaxamento, na melhora da postura, na descontração, no
desenvolvimento de equilíbrio e coordenação motora, melhora na qualidade do sono
e também com aspectos relacionados à sociabilidade. Inerente a essas percepções,
os significados positivos da realização da prática corporal estão relacionados, por
exemplo, ao trabalho respiratório e aos movimentos desenvolvidos pelas práticas,
como também às músicas utilizadas na condução do Movimento Vital Expressivo.
Ao perguntar aos praticantes sobre as mudanças e sensações que eles
sentiam com a prática de MVE ou LG foi interessante observar suas expressões, ora
de estranhamento, ora de reflexão, ou de surpresa com a pergunta. Às vezes a
resposta já estava na ponta da língua, mas em algumas ocasiões a pessoa
entrevistada ficava pensativa e aos poucos ia construindo sua resposta, como Dona
Odete, que disse que, além de não ficar parada em casa, fica mais animada e sente
o corpo mais leve ao praticar o LG. Ou como Dona Olímpia, que tem uma “sensação
de alegria e contentamento por estar participando”. Sendo assim, não se trata de
medir ou comprovar a eficácia das práticas e analisar clinicamente esses resultados,
nem tampouco quantificar e classificar as mudanças relatadas em categorias, mas
sim compreender como os agentes sociais e institucionais se apropriam e qualificam
as práticas corporais.
Em um estudo sobre as motivações individuais para a escolha das PIC
como recurso terapêutico, Baarts e Pedersen afirmam que os resultados dos
115
tratamentos com as práticas corporais vão além da cura instrumental de males
físicos ou psicológicos e incluem a possibilidade das pessoas explorarem e
conhecerem seu próprio corpo. Para as autoras, os “efeitos positivos do tratamento”
estão relacionados, principalmente, aos “benefícios derivados” (p. 729), que se
caracterizam como o processo de aprendizagem com as práticas corporais e a
experiência de saúde e de cuidado vivenciados pelos praticantes. Assim como os
dados empíricos desse estudo, os participantes daquela pesquisa refletiram sobre o
tratamento e relataram diversas sensações, como: maior controle das emoções,
relaxamento, felicidade, energia, entre outras percepções (p. 722 e 726).
Os sentidos das sensações e mudanças percebidas pelos interlocutores
trazem em si tudo aquilo que o corpo vivencia por ele próprio, não se fixando apenas
em padrões de comportamentos impostos por ideologias hegemônicas (77, 72). É
neste descentramento que se verifica a manifestação da grande saúde e “os
movimentos de criação e experimentação da vida” (72) (p. 239). Dessa forma, é
possível perceber que o encontro consigo, com os outros praticantes e com os
instrutores, promovido pelas práticas corporais investigadas contribui para “ampliar a
compreensão sobre as relações, os desejos, os interesses, as necessidades e as
distintas maneiras de viver a vida” (77) (p. 609), permitindo que cada um atribua
sentidos e significados próprios às práticas corporais e construa narrativas sobre si
(78, 52).
O discurso sobre os benefícios derivados das práticas corporais, sobre o
que é saúde ou como se caracteriza um corpo saudável, pode ser revisitado e “re-
formulado” a partir de construções subjetivas atravessadas por ideologias, normas e
percepções, que são elaboradas com as experiências dos agentes com o LG ou o
MVE e sua inserção em variados contextos sociais e institucionais. Para Baarts e
Pedersen (52), disso decorre a percepção individual sobre o que é bem-estar, pois
“Ao buscarem terapias alternativas, os clientes não estão interessados
apenas no alívio de uma doença ou na redução da dor. [...]. A procura de
bem-estar se articula em uma variedade de contextos sociais, contribuindo
assim para uma transformação nas nossas ideias de como a saúde é
alcançada. Para os entrevistados em nosso estudo, o bem-estar está
fundado tanto em um sentido de consciência que se concentra
simultaneamente nos níveis mental, emocional e físico e no domínio de si e
do corpo em relação a todas as esferas da vida.” (p. 730, tradução nossa).
116
Para que as experiências sejam positivas, no entanto, é essencial que a
condução das práticas corporais esteja comprometida com os desafios epistémicos
das PIC para o campo da saúde, tais como: o foco na criação do vínculo; a
integração do ser humano com a sociedade e o meio ambiente; a visão
emancipadora do processo saúde-doença-cuidado; a promoção do autocuidado;
entre outros (10) (p.10). Assim, para que as práticas corporais contribuam para
ampliar a visão sobre o trabalho com o corpo é necessário que os instrutores
desenvolvam dinâmicas que permitam colocar em perspectiva outros saberes,
olhares, ideias e entendimentos sobre o que é saúde, doença e cuidado, ao invés de
simplesmente reproduzirem o discurso protocolar sobre a relação entre a prática de
atividade física e a prevenção de doenças.
117
CONCLUSÃO
Inicialmente, ao elaborar o projeto de pesquisa, a sociabilidade parecia
ser algo restrito aos praticantes (vivenciada e valorizada somente por eles), sendo
apenas observada pelos profissionais de saúde que conduzem os grupos como uma
consequência da participação dos pacientes nas atividades do Cento de Saúde. Ao
conversar com os instrutores e acompanhar os grupos de LG e MVE, foi possível
perceber o quanto que a sociabilidade está presente e corporificada nas relações
desenvolvidas não só entre os praticantes, mas entre estes e os instrutores. Os
profissionais não apenas conduzem os grupos, de maneira instrumental, mas se
relacionam e se envolvem com os praticantes e com suas histórias. Dessa forma,
nota-se que a sociabilidade é um fator intrínseco e constituinte do grupo,
contribuindo para sua existência e permanência (e porque não resistência) em meio
a tantos protocolos e procedimentos biomédicos realizados pelos serviços de saúde.
Entretanto, observou-se que a sociabilidade vem acompanhada de outros fatores,
como a convivialidade e a amorosidade. Seus efeitos não são apenas o contato
social ou o aumento do círculo de amizades, mas o cuidado emancipador, a
cooperação e a possibilidade dos praticantes e profissionais de saúde ampliarem e
re-significarem seus entendimentos sobre o que é saúde, através de suas próprias
experiências com as práticas corporais.
Sendo assim, o Lian Gong e o Movimento Vital Expressivo são práticas
corporais com grande potência na atenção primária em saúde, se orientadas pelo
princípio da convivialidade e para a produção de encontros e cuidado emancipador.
No entanto, observou-se sua identidade com o imaginário biomédico, reforçando
rótulos e comportamentos associados a uma ideia de controle de doenças e
eliminação de fatores de risco. Apesar disso, por se estabelecerem como fenômeno
social e por serem constituídas por uma pluralidade de significados, valores, funções
e sentidos, essas práticas não se encerram no caráter utilitarista da racionalidade
biomédica, apresentando, ao mesmo tempo, aspectos terapêuticos, de sociabilidade
e de atividade física, por exemplo. Dessa forma, o modelo de cuidado produzido
pelas práticas corporais está fundamentado na ambivalência e é nomeado como
“intersociabilidade”.
118
De acordo com a análise dos dados empíricos da pesquisa, verificamos
que a participação no grupo de práticas corporais contribui para um processo de
produção de saúde (individual e coletiva), de cuidado (consigo e com o outro), de
construção de laços de amizade, de conhecimento, de compartilhamento de
saberes, descobertas, transformações e engajamento social através da interação e
convivência entre praticantes e instrutores. Essas relações são
desinstitucionalizadas e estão orientadas pela solidariedade e pela reciprocidade,
incentivando o apoio social, uma potente ferramenta que proporciona acolhimento e
o rompimento com o isolamento social, estimulando a autonomia e o
empoderamento dos praticantes. Além disso, as práticas corporais estimulam a sua
apropriação pelos atores sociais, permitindo-lhes um contato mais próximo com o
próprio corpo e que atribuam sentidos, percepções e significados de acordo com
suas vivências e experiências com as atividades realizadas.
Finalmente, cabe uma reflexão sobre a institucionalização das práticas
corporais nos serviços de saúde no âmbito do SUS. Para que o princípio da
convivialidade se consolide no processo de trabalho em saúde, é essencial que os
instrutores conduzam uma reflexão sobre as práticas junto aos praticantes, através
de rodas de conversa, de modo que a atividade não vire um mero movimento,
instrumentalizado, focado simplesmente em uma proposta da atividade física como
forma de combate ao sedentarismo. Nos grupos acompanhados, os instrutores e
coordenadoras afirmaram que percebem a importância do convívio e as mudanças
que são proporcionadas pelo Lian Gong e pelo Movimento Vital Expressivo, mas
relataram que inexiste uma forma de registro e acompanhamento dessas
informações, não permitindo que seja feita uma avaliação para comprovar a eficácia
das práticas corporais. Diante disto, é importante pensarmos e desenvolvermos junto
com os praticantes, instrutores e gestores de saúde um instrumento qualitativo que
permita que os benefícios derivados das práticas corporais sejam dados tão
importantes quanto os indicadores valorizados pela cultura fitness.
Associada a essa problematização, podemos refletir sobre as formas de
acesso ao grupo. Será que o fato de haver um baixo número de encaminhamento
médico em comparação com a maioria dos praticantes serem “demanda
espontânea” indica simplesmente que há baixa institucionalização dessas práticas
nos serviços de saúde? Ampliando o olhar para essa questão, podemos visualizar a
119
importância da agência dos praticantes, que recomendam e convidam outras
pessoas por causa de suas próprias experiências com as práticas corporais.
Entretanto, é imprescindível que haja maior divulgação e sensibilização sobre
práticas não convencionais entre os profissionais de saúde, que muitas vezes
desconhecem as atividades ofertadas pelo centro de saúde onde trabalham. A
missão-desafio que se segue é que as práticas corporais não sejam
institucionalizadas nos serviços de saúde de acordo com protocolos e prescrições,
mas que sejam, de fato, compreendidas pelos profissionais de saúde em sua
potência integrativa e enquanto práticas de cuidado e promotoras de saúde,
encontro e de bem-estar.
120
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126
APÊNDICES
Apêndice A – Caracterização dos entrevistados
Movimento Vital Expressivo CS I
Nome Cor Idade Escolaridade Religião Tempo de residência no bairro
Forma de acesso ao
grupo
Tempo no grupo
Participação em outras
atividades do CS/CECO
Profissão
Janete Negra 38 Primeiro Grau
Incompleto Católica 20 anos
Convite da amiga
2 meses Terapia em
Grupo Empregada doméstica
Anselmo Branco 70 Primário Completo Católico 25 anos Ficou sabendo
no CECO 2 anos
LG, Terapia em Grupo, Roda de
Música
Lavrador aposentado
Nívea Branca 46 Pós-graduação Não tem 46 anos Convite da irmã 1 ano Nenhuma Psicanalista
Val Branca 51 Primeiro Grau
Incompleto Evangélica (Nazareno)
39 anos Orientação do
instrutor de MVE
2 anos Nenhuma Empregada
doméstica/Babá
Vitória Branca 69 Primário
Incompleto Assembleia
de Deus 40 anos Convite da filha 1 ano
Outro grupo de MVE do CS
Dona de Casa
Carmem Negra 56 Primário Completo
(EJA I) Católica 8 anos
Orientação do instrutor de
MVE
1 ano e 9 meses
Nenhuma Empregada doméstica
Osvaldo Branco 68 Primário
Incompleto (EJA I) Católico 50 anos Encam. médico 6 meses Nenhuma
Benzedor e Agricultor
127
Movimento Vital Expressivo CS II
Nome Cor Idade Escolaridade Religião Tempo de residência no bairro
Forma de acesso ao
grupo
Tempo de participação
no grupo
Participação em outras atividades
do CS/CECO
Profissão
Raimundinha Sarará 89
anos* Cursando o EJA Católica 22 anos
Informação no CS e boca
a boca Mais de anos Não
Faxineira e cozinheira
aposentada
Lúcia Branca 59
anos
Médio Completo e curso técnico
em instrumentação
cirúrgica
Católica 40 anos Boca a boca 7 anos LG Instrumentadora
cirúrgica aposentada
Conceição Branca 73
anos Primário Completo
Católica 46 anos Convite da
Zilda 3 anos Não
Costureira aposentada
Zilda Marrom 86
anos Primeiro Grau
Incompleto Católica
Há muitos anos
Indicação da instrutora de
MVE/LG 4 anos Não
Empregada doméstica
aposentada
Beth Branca 54
anos
Médio Completo e formação em ballet clássico
pelo Royal Ballet
Católica 25 anos Boca a boca 2 anos Não Autônoma
Ivone Negra 57
anos Médio Completo
Católica, mas aberta
a outras religiões também
22 anos Convite da
Beth 2 anos Não
Empregada doméstica
aposentada
* Entretanto, conversando com o instrutor Milton, ele relatou que, na verdade, ela tem 91 anos.
128
Lian Gong CS I
Nome Cor Idade Escolaridade Religião Tempo de residência no bairro
Forma de acesso ao
grupo
Tempo de participação
no grupo
Participação em outras atividades
do CS/CECO
Profissão
Sílvia Branca 72
anos Superior
Completo (Artes) Protestante -
Convite de uma amiga
Pouco mais de um ano
Não Funcionária
pública aposentada
Denise Branca 67
anos
Superior Completo
(Pedagogia) Espírita 17 anos
Convite de uma amiga
8 anos Não Bancária
aposentada
Rubens
Acha que é branco
62 anos
Médio Completo e Técnico Industrial
Católico 62 anos Boca a boca 3 anos Não Mecânico
ferramenteiro aposentado
Heloísa Branca 70
anos
Superior Completo
(Química-Física) Católica 20 anos
Foi conhecer as atividades
do CECO 3 anos
MVE, Coral, Dança, Música,
Grupo de Autoestima
Professora aposentada
129
Lian Gong CS II
Nome Cor Idade Escolaridade Religião Tempo de residência no bairro
Forma de acesso ao
grupo
Tempo de participação
no grupo
Participação em outras atividades
do CS/CECO
Profissão
Odete Morena 74
anos Primário Completo
Católica 45 anos
Orientação do médico do CS e convite da instrutora
Aprox. 5 anos
Não Copeira
aposentada
Olímpia
Branca
73 anos
Primário Completo
Católica 30 anos Convite de uma amiga
8 anos Não Aposentada
Rosa Morena 87
anos Alfabetizada Católica 46 anos
É mãe da instrutora
10 anos Não Lavradora
aposentada
Célia Amarela
(descendente de japonês)
62 anos
Pós-graduação (Psicopedagogia)
Católica 22 anos Boca a boca 8 meses Dança e
Massagem Professora aposentada
130
Profissionais CS I
Nome Cor Idade Escolaridade Função no CS Profissão Religião
Claudia Branca 39
anos Superior Completo
Coordenadora Médica
Sanitarista Evangélica
Milton Negro 58
anos Superior Completo
Educador Social, terapeuta
comunitário e instrutor de MVE
Psicólogo Ateu
Helena Branca 56
anos Médio Completo
Agente Comunitária de
Saúde; monitora na aula de
dança; instrutora de LG e MVE
Agente Comunitária de Saúde
Espírita
Profissionais CS II
Nome Cor Idade Escolaridade Função no CS Profissão Religião
Silvana Morena Clara 43
anos Superior Completo
Coordenadora Enfermeira Católica
Carlos Branco 51
anos Superior Completo
Aux. de Enfermagem e
instrutor de MVE Enfermeiro
Evangélico (Assembleia
de Deus)
Teresa Branca 60
anos Médio Completo
Agente Comunitária de
Saúde e instrutora de LG
Agente Comunitária de Saúde
Católica
131
Apêndice B – Roteiro de entrevista (praticantes)
Identificação e dados gerais Data da entrevista/Centro de Saúde/Nome do entrevistado/Sexo/Idade/Cor/Local de nascimento/Religião/ Escolaridade/ Profissão/ Tem algum problema de saúde que precisa de tratamento ou algum tipo de acompanhamento? Quais práticas corporais você pratica? Há quanto tempo? Participa de outros grupos do serviço de saúde? Quais? Com qual frequência passa por consultas médicas? Houve indicação do profissional de saúde? Qual? Quem indicou? (amigo, vizinho, parente). Por que resolveu praticar? Está satisfeito/a com os resultados? Por quê? Sentiu algo diferente desde que começou a fazer a prática? O que? Sentiu mudanças no corpo/ mudanças físicas? E mudanças no aspecto emocional? Quais? Quais sensações você sente ao praticar a atividade? Quais são os benefícios das práticas corporais? Opinião geral sobre as práticas corporais integrativas. Você tem amizades dentro do grupo? Costumam se encontrar fora dos horários da prática? Há quanto tempo mora no bairro? Me conta um pouquinho sobre sua rotina. Como você vai até o espaço onde a prática é realizada? O que você acha do grupo? Conte um pouco sobre como é o convívio com as pessoas do grupo e com os profissionais de saúde. Tem algum (a) amigo (a) de longa data no grupo? Quem é? Como se conheceram? Fale-me sobre os passeios. Você participa? Pra onde já foi? Como é a sua relação com o/a instrutor(a)?
132
Apêndice C – Roteiro de entrevista (instrutores/profissionais de saúde) Identificação e dados gerais
Data da entrevista/Centro de Saúde/Nome do profissional/Sexo/Idade/Cor/Local de nascimento/Religião/Profissão/Tipo de contratação Ofertas de serviços de práticas integrativas corporais - Quais as práticas integrativas ofertadas pelo serviço? - dias e horários - local - média de participantes - acesso - faz alguma avaliação de saúde periódica do grupo? - início da prática - profissão do instrutor que realiza a prática - Há algum praticante ou profissional da equipe que assume o grupo na sua ausência? - Quais são os principais problemas de saúde atendidos no serviço? - Como é a relação dos praticantes com o CS, com a equipe? - Como os médicos e demais profissionais de saúde lidam com as PIC? Existe encaminhamento por protocolo? Existe aceitação ou algum conhecimento? Conhecimento sobre práticas integrativas - Especialização/ treinamento em práticas integrativas corporais Experiência com práticas integrativas corporais; - Conhecimento sobre a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde; - Pra você, quais são os benefícios das práticas integrativas? Percepções sobre as práticas corporais - Me fala um pouco sobre os praticantes religiosos e a relação com o corpo. Como lidam? Já teve que resolver algum “problema” em relação a isso? - Quais as mudanças mais visíveis nos praticantes? - Quais são suas motivações para o uso das práticas corporais? - Como é a sua relação com os praticantes? - Os praticantes fazem amizade aqui? - Me conte sobre como são os passeios. - Pra você, quais os aspectos positivos e negativos da realização das atividades para a equipe? E pros praticantes? - O que você acha do grupo? - Como é pra você poder trabalhar com as práticas?
133
Apêndice D – Roteiro de entrevista (coordenadores)
Identificação e dados gerais
Data da entrevista/Centro de Saúde/Nome do profissional/Função no CS/Idade/Cor/Local de nascimento/Religião/Profissão/Tipo de contratação Ofertas de serviços de práticas integrativas - práticas ofertadas - dias e horários - espaço físico - média de participantes - acesso - avaliação - início da prática - profissão do instrutor que realiza a prática - profissão do coordenador do serviço - principais problemas de saúde atendidos no serviço - No serviço, além dos instrutores que estão participando da pesquisa, tem mais algum profissional de saúde capacitado com alguma PIC? Você trabalha com as PIC? - Como os médicos lidam com as PIC? Tem aceitação, existe algum protocolo para encaminhamento? Conhecimento sobre práticas integrativas corporais Conhecimento sobre a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde; Conhecimento sobre os benefícios das práticas integrativas corporais. Quais são as suas motivações para a implantação das práticas integrativas corporais? Você implantaria mais alguma prática integrativa na unidade? Percepções sobre as práticas corporais Pra você, o que o LG ou o MVE promove? Você já praticou? O que achou? Quais as principais mudanças com a prática dessas atividades? Pra você, quais são os aspectos positivos e negativos da realização das atividades para a equipe? E pros praticantes? Como é a relação dos praticantes com o CS, com a equipe e com os instrutores? Você vê diferença entre os usuários que fazem alguma prática corporal e os que não fazem na relação aqui com os funcionários do serviço?
134
ANEXOS
Anexo A – Autorização da Secretaria Municipal de Campinas
135
Anexo B – Parecer do Comitê de Ética em Pesquisa – FCM/UNICAMP
(página 1 de 3)
136
Parecer do Comitê de Ética em Pesquisa – FCM/UNICAMP (página 2 de 3)
137
Parecer do Comitê de Ética em Pesquisa – FCM/UNICAMP (página 3 de 3)
138
Anexo C – Cartão de Controle de Hipertensão/Diabetes personalizado
MVE CS I
139
Anexo D – Narrativa: “Movimento com João”. Autora: Claudelina Pereira
da Silveira, praticante de MVE do CS I.
140
Anexo E– Narrativa “9º Aniversário do Grupo de Lian Gong” (frente).
Autora: Miriam Brasilino de Carvalho Miatto, praticante de LG e MVE do
CS I.
141
Anexo E– Narrativa “9º Aniversário do Grupo de Lian Gong” (verso).
Autora: Miriam Brasilino de Carvalho Miatto, praticante de LG e MVE do
CS I.
142
Anexo F – Narrativa “Movimento Vital Expressivo” (frente). Autora: Miriam
Brasilino de Carvalho Miatto, praticante de LG e MVE do CS I.
143
Anexo F – Narrativa “Movimento Vital Expressivo” (verso). Autora: Miriam
Brasilino de Carvalho Miatto, praticante de LG e MVE do CS I.
no “CECO I”.
do “CECO I”
144
Anexo G – Nota de Esclarecimento Centro de Saúde I