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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS – IFCH
Igor Vinicius Basilio Nunes
“In-Between” – o mundo comum entre Hannah Arendt e Karl Jaspers: da existência
política ao exemplo moral
CAMPINAS
2018
2
IGOR VINICIUS BASILIO NUNES
“In-Between” – o mundo comum entre Hannah Arendt e Karl Jaspers: da existência
política ao exemplo moral
Tese apresentada ao Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Estadual de
Campinas como parte dos requisitos exigidos para
a obtenção do título de Doutor em Filosofia.
Orientadora: YARA ADARIO FRATESCHI
ESTE TRABALHO CORRESPONDE À
VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA
PELO ALUNO IGOR VINICIUS BASILIO
NUNES, E ORIENTADA PELA PROFA.
DRA.YARA ADARIO FRATESCHI.
CAMPINAS
2018
3
4
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS – IFCH
A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos Professores
Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 10 de setembro de 2018, considerou
o candidato Igor Vinicius Basilio Nunes aprovado.
Profa. Dra. Yara Adario Frasteschi (Presidente da Comissão Examinadora)
Profa. Dra. Monique Hulshof
Profa. Dra. Bethania de Albuquerque Assy
Prof. Dr. Helton Machado Adverse
Prof. Dr. José Sérgio Fonseca de Carvalho
A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de
Fluxo de Dissertações/Teses e na Secretaria do Programa de Pós-Graduação em Filosofia do
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
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DEDICATÓRIA
A Antônio José Nunes, meu pai, que, como canta a antiga moda caipira, é o “‘carreiro’ [ou bancário] que de mim fez um doutor”. E,
igualmente, a Elizabeth Batista Machado, minha mãe, que, pelo menos em meu reinado, não tem apenas o nome de rainha.
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AGRADECIMENTOS
Por cidades,
A Campinas e Barão Geraldo, agradeço pela estadia durante os sete meses iniciais do meu doutorado
e pela Unicamp – Universidade que me senti em casa desde a primeira visita (e espero continuar a visitar), muito por conta do meu feliz encontro com a professora Yara Frateschi, orientadora que
conheci no dia da entrevista do processo seletivo no final do ano de 2012. Naquele dia não tive
apenas uma entrevista, mas um intenso diálogo filosófico que se estenderia por todos esses anos. À
Yara agradeço, portanto, o trabalho, a leitura, a parceria e a confiança empenhados e depositados
em minha pesquisa. Agradeço imensamente pela pergunta imperativa em uma de nossas reuniões: “Igor, vamos ler o Jaspers?!”. Sem ela, não haveria Karl Jaspers em meus estudos. Para além do
papel de professora, agradeço pelo exemplo de mulher que ela é – e se tornou para mim –, pela ação
e subversão dentro do mundo acadêmico filosófico – uma pessoa em quem espero mirar na criação das minhas futuras filhas, ou filhos.
Em Campinas, agradeço também ao Grupo de Filosofia Política do IFCH, sem o qual esse texto
não teria sequer estrutura digna de Tese. Agradeço a prática e a disposição de leitura que todos cultivam no grupo. É uma honra, e uma raridade, pertencer a grupos de pesquisa assim e ter o texto
lido e relido por todos os colegas. Em especial, agradeço à Renata, ao Paulo e à Anita, pelas caronas,
conversas, hospedagens, textos compartilhados, críticas, cervejas e amizade. Agradeço também ao Otávio, à Nathalia, ao Johnny, ao Leo e à Laissa. Agradeço também à professora Monique Hulshof, pela participação nas bancas de defesa e de qualificação deste trabalho, cuja leitura sei muito bem “meu Kant” não estar à altura. Agradeço ao trabalho e ajuda das secretárias do IFCH, especialmente
Maria Rita, Daniela e Sônia.
Em Campinas, por fim, agradeço à Hulda, que me salvava de mim mesmo ao me visitar.
A São Carlos, cidade do apito do trem, cidade na qual escrevi a Introdução e a parte final da
qualificação deste trabalho, agradeço pela vista do entardecer interiorano que me inspirava do
décimo andar de um apartamento gentilmente oferecido por Vanice Sargentini. Agradeço à Lívia
pelas inúmeras hospedagens. Agradeço também ao Pedro, pelas conversas e pelos duetos de voz e violão.
Em São Carlos, por fim, agradeço à Hulda, pela companhia de sempre, pela revisão de todo o texto
e por ter cuidado de mim.
A Berlim, onde o outono, o inverno e os corvos faziam sentir-me em um conto de Allan Poe, cidade
na qual escrevi o primeiro tópico deste trabalho, agradeço pela experiência do primeiro lar no
exterior e pela belíssima biblioteca de filologia da Freie Universität. Em Berlim, agradeço a
Wolfgang Heuer, pela recepção e pelas dicas de leituras. Agradeço a Kirima, pelos incentivos e pelo curso intensivo de alemão. Agradeço também à família amiga do restaurante italiano que, além de nos salvar da comida alemã, nos salvou do inverno ao oferecer carona para a estação de trem num
domingo deserto e gelado.
7
Em Berlim, por fim, agradeço à Hulda, que viveu comigo toda essa aventura.
A Paris, cidade que não sei dizer se é mais charmosa à noite ou pelo dia, onde escrevi sobre o amor
mundi, agradeço pela experiência única de viver na majestosa Cidade Universitária Internacional e pelo absurdo e inspirador catálogo da BNF. Em Paris, agradeço ao Pedro Labaig pela bela
companhia, pelo apê emprestado durante um mês e pelo “brunch” dominical. Agradeço pela
companhia de seus colegas parisienses, especialmente à Fantine. À Casa do Brasil em Paris,
agradeço por ter conhecido Gui e Mari, um casal que me tocou o coração.
Em Paris, por fim, agradeço à Hulda, que viveu o sonho dela ao lado do meu.
A Goiânia, cidade natal, cerrado no qual o horizonte se põe mais avermelhado, agradeço por me
esperar e me acolher de todos os meus regressos, com cheiro de feijão, pequi, frango caipira e jiló. Em Goiânia, agradeço a todos os meus familiares, meus pais, meus irmãos, minhas avós, meus primos – meu lugar nesse mundo. À família da Hulda, pelo apoio. Agradeço ao Adriano Correia, pois sem ele não me haveria Hannah Arendt, e por sua valiosíssima participação na qualificação
desta Tese. Agradeço à UFG, ao IFG e ao Instituto Santa Cruz, pelas experiências como docente
nesses anos. Agradeço também aos amigos João, Thiago e Zé, pois sem eles o caminho seria mais
árduo e mais sóbrio. Ao Samuel, agradeço pelas inúmeras cópias. Não poderia deixar de fazer menção ao Barack (in memoriam), fiel companheiro, encarnação do melhor amigo do homem.
Em Goiânia, por fim, agradeço à Hulda, por nosso casamento.
Em Brasília, cidade das conexões, agradeço à Nádia pelo companheirismo na vida e na academia, e por tudo o mais.
Em Belo Horizonte, de onde partiam meus “amigos azuis”, agradeço ao André por me fazer pensar
de outras perspectivas. Também em Belo Horizonte, agradeço à Marcela pelos livros do Jaspers
emprestados por quase dois anos, por nossas conversas e pelo carinho de sempre.
Em São Paulo, outra cidade de conexões, agradeço à Eveline, por me reconhecer nela.
Por todo o Brasil e por algumas cidades na Argentina, agradeço pelo intenso diálogo e amizade
arendtianos que travei e criei nesse período, nossos encontros deram ânimo ao meu estudo. Em
particular, Lucas Barreto, Mariana Rubiano, Thiago Dias, Alexandrina, Samuel Dias, Tony, Aline Soares, Paula Hunziker, Ricardo George, Odílio Aguiar. Agradeço também à professora Bethania
Assy, ao professor Helton Adverse, ao professor José Sérgio, por aceitarem participar da banca de defesa e por suas produções sobre Arendt.
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Sua vida e sua filosofia nos oferecem um modelo do tipo de diálogo que os seres
humanos podem travar, apesar das condições dominantes do dilúvio.
(Hannah Arendt, Dedicatória a Karl Jaspers).
Uma filosofia chega a ser objetivamente clara somente por sua obra (escrita). Mas seu
humor e seus motes talvez se façam notar unicamente por meio de um informe pessoal.
(Karl Jaspers, Mein Weg zur Philosophie).
Quando você for para o céu – e se as coisas lá são tais como Sócrates as pintou, com
todos nós continuando nossas conversas, só que agora com as melhores mentes de todos os
tempos – então, o velho Kant vai se levantar do seu assento para honrá-lo e abraçá-lo.
Ninguém o compreendeu como você. (Carta de Hannah Arendt a Karl Jaspers).
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RESUMO
Este trabalho reestrutura os principais conceitos políticos e morais do pensamento de Hannah Arendt
ao aproximá-los argumentativamente da filosofia existencial de Karl Jaspers. A tese se divide em dois
eixos que formam a sua centralidade problemática. No primeiro eixo, defendo que a formação política
de Arendt, a partir dos anos de 1930, bem como a consequente criação de seus próprios termos teóricos
e filosóficos na década de 1950, entram em comunicação privilegiada com as reflexões jasperianas
para a definição do que representaria, para a autora, por exemplo, a existência política dos homens no
mundo. Nesse contexto, destaco e desenvolvo os significados das experiências humanas e mundanas
da pluralidade, da natalidade, da liberdade e as disposições afetivas envolvidas e caracterizantes do
emblema político arendtiano do amor mundi. No segundo eixo, defendo que os conceitos morais
utilizados por Arendt a partir de 1960, desde o julgamento e a punição do burocrata nazista Adolf
Eichmann, podem ser iluminados por meio da figura pessoal de Jaspers. Assim, apresento Jaspers
como um modelo exemplar nos textos arendtianos, sobretudo nos escritos em que a figura pessoal e a
filosofia jasperianas aparecem vinculadas às categorias do pensamento subversivo e da mentalidade
alargada, tais como são definidas por Arendt com recorrência a Sócrates e a Kant, respectivamente.
Durante as discussões presentes nos dois eixos, faço interligações entre o âmbito da ética e o da política
na teoria arendtiana, além de debater os motivos pelos quais Jaspers é um legítimo kantiano para ela.
Dessa maneira, a hipótese cardeal elaborada e disposta nesta tese de doutorado é a de que, tendo em
conta a comprovação do diálogo contínuo entre as filosofias de Jaspers e de Arendt – isso somado à
constatação da escassa produção bibliográfica de fontes secundárias sobre esse tema –, seria possível
demarcar novas perspectivas de interpretação e novos contornos de sentidos e significados às
preocupações políticas e morais arendtianas. De modo geral, portanto, proponho explicar de quais
maneiras e em quais medidas a teoria existencial de Jaspers preparou Arendt para os temas políticos e
a provocou para imaginar exemplos éticos, sem, no entanto, fazer dela uma simples discípula dele. De
modo mais específico, num primeiro momento, o trabalho rastreia a gênese da preocupação com a
pluralidade humana nas obras de Arendt e, ao discutir sobre isso, revela uma semelhante noção de
humanidade nas teorias de ambos os autores. Essa concepção peculiar de humanidade, por sua vez,
orienta o trabalho até a tese sobre o conceito de amor em Agostinho, de Arendt, e se finca como um
elemento central para interpretar esse escrito de 1929. Uma vez inserido nos temas da tese de doutorado
de Arendt, sustento em sequência que as filosofias de Jaspers e de Arendt são teorias sobre o tempo
presente, tempo no qual se atualizam a natalidade e a liberdade humanas, seja esta última interpretada
quer pelo espectro político quer pelo espectro existencial. Num segundo momento, argumento que
existe um circuito de afetos vinculado a essas filosofias que lidam com o tempo presente, com o agora,
e, não obstante, discuto e repenso o termo amor mundi pela via das disposições afetivas retiradas das
obras de Arendt. Por fim, num terceiro momento, o trabalho estabelece uma conexão entre as reflexões
morais e políticas arendtianas: que seria o método do pensamento vicário, ou seja, o modo de pensar
sobre as experiências mundanas fazendo as vezes de um “quem”, de um alguém, visitando perspectivas
alheias e diversas.
Palavras-chave: Política; Ética; Existência; Arendt; Jaspers.
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ABSTRACT
This work restructures the main political and moral concepts of Hannah Arendt's thinking by
approaching them argumentatively to the existential philosophy of Karl Jaspers. The thesis is divided
into two axes that form its problematic centrality. In the first axis, I argue that Arendt's political
formation beginning in the 1930’s, as well as the consequent creation of her own theoretical and
philosophical terms in the 1950’s, enter into a privileged communication with the Jasperian reflections
for the definition of what would represent, for Arendt, for example, the political existence of men in
the world. In this context, I highlight and develop the meanings of the human and worldly experiences
of plurality, natality, freedom and the affective dispositions involved and characterizing the Arendtian
political emblem of amor mundi. On the second axis, I argue that the moral concepts used by Arendt
since 1960, from the trial and punishment of the Nazi bureaucrat Adolf Eichmann, can be enlightened
through the personal figure of Jaspers. Thus, I present Jaspers as an exemplary model in the Arendtian
texts, especially in the writings in which the Jasperian personal figure and philosophy appears linked
to the categories of subversive thinking and the enlarged mentality, as defined by Arendt with
recurrence to Socrates and Kant, respectively. During the discussions in the two axes, I make
interconnections between the scope of ethics and politics in Arendtian theory, as well as discussing the
reasons why Jaspers is an authentic disciple of Kant for her. In this way, the cardinal hypothesis
elaborated and arranged in this doctoral thesis is that, given the proof of the continuous dialogue
between the philosophies of Jaspers and Arendt – this added to the fact of the scarce bibliographical
production of secondary sources on this subject –, it would be possible to demarcate new perspectives
of interpretation and new contours of meanings to Arendtian political and moral concerns. In general,
therefore, I propose to explain in which ways Jaspers' existential theory prepared Arendt for political
subjects and provoked her to imagine ethical examples, without, however, making her a mere disciple
of him. More specifically, in the first place, the work traces the genesis of concern about human
plurality in Arendt's works, and in discussing it, reveals a similar notion of humanity in the theories of
both authors. This peculiar conception of humanity, in its turn, guides the work up to the thesis on
Arendt's concept of love in Augustine, and is considered as a central element to interpret this writing
of 1929. Once inserted in the themes of the doctoral thesis of Arendt, I maintain in sequence that the
philosophies of Jaspers and Arendt are theories about the present time, at which time natality and
human freedom are updated, whether the latter is interpreted either by the political spectrum or by the
existential spectrum. Secondly, I argue that there is a circuit of affection linked to these philosophies
that deal with the present time, with the “now”, and yet I discuss and re-think the term amor mundi
considering the affective dispositions taken from the works of Arendt. Finally, in a third moment, the
work establishes a connection between the Arendtian moral and political reflections: which would be
the method of vicarious thinking, that is, the way of thinking about worldly experiences from the
perspective of a "who", of a someone, visiting different and diverse perspectives.
Keywords: Politics; Ethics; Existenz; Arendt; Jaspers.
11
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... p. 12
O Karl Jaspers de Hannah Arendt: do diálogo filosófico à exemplaridade moral e pessoal ............ p. 12
Parte I: O terreno político da Existenz: pluralidade, natalidade, liberdade e amor mundi ...... p. 19
Parte II: “Lieber Verehrtester”: o caráter exemplar do “bloco de gelo do Norte alemão”...... p. 25
Partes I e II: O mentor e amigo kantiano da garota trácia – a disputa por uma anedota ......... p. 34
PARTE I – A EXISTÊNCIA POLÍTICA:
(“quão bem a sua filosofia me preparou para a política”) .................................................... p. 44
CAPÍTULO 1: A GÊNESE DA PREOCUPAÇÃO ARENDTIANA COM A PLURALIDADE HUMANA – AS
REFLEXÕES DOS ANOS 1950 EM RETORNO À TESE SOBRE AGOSTINHO ............................................ p. 45
1.1: O diferencial político e filosófico da noção de “humanidade” em Karl Jaspers ......................... p. 53
1.1.1: O significado político de um “Período Axial” na história dos homens ........................... p. 69
1.1.2: A “humanidade” em Jaspers como concretização de uma ideia kantiana ....................... p. 81
1.2: A Filosofia da Existenz na estrutura do texto doutoral de Arendt: as situações-limite como modo de
resolução de uma contradição agostiniana ............................................................................................. p. 98
1.3: O radical ontológico da natalidade como uma filosofia do presente ........................................ p. 118
CAPÍTULO 2: O SIGNO DO AMOR MUNDI – O FENÔMENO POLÍTICO REPENSADO PELA VIA DAS
DISPOSIÇÕES HUMANAS ...................................................................................................................... p. 140
2.1: A disposição humana para a política ........................................................................................ p. 142
2.1.1: Dois Noés e os anéis de Natã: amizade e respeito como abertura política de amor pelo
mundo interpretados nas relações teóricas e pessoais de Arendt e Jaspers ......................................... p. 153
2.1.2: “Ser mais do que a si mesmo”: coragem, abnegação e a defesa do sensus communis.. p. 169
PARTE II – O EXEMPLO MORAL:
(“alguém que realiza a existência humana exemplarmente”) ............................................. p. 184
CAPÍTULO 3: O PENSAMENTO VICÁRIO DE/EM HANNAH ARENDT: A EXEMPLARIDADE MORAL DE
KARL JASPERS COMO AÇÃO SUBVERSIVA E COMO “MENTALIDADE ALARGADA” ......................... p. 185
3.1: Treinar o pensamento a sair em visita do “quem” político ...................................................... p. 188
3.2: O daímon jasperiano na esteira do daímon socrático: o “dizer não” como exemplaridade ..... p. 198
3.3: Kant entre Eichmann e Jaspers: mentalidade alargada versus obediência cadavérica ............. p. 220
CONCLUSÃO .................................................................................................................................. p. 248
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................................... p. 252
12
INTRODUÇÃO
O Karl Jaspers de Hannah Arendt: do diálogo filosófico à exemplaridade moral e pessoal
A disposição dos movimentos argumentativos desenvolvidos neste trabalho possui sua gênese
carimbada em um conjunto de três afirmações de Hannah Arendt que dizem respeito à pessoa e à
filosofia existencial de Karl Jaspers. A primeira declaração selecionada da autora salienta, logo após o
fim da II Guerra, que a teoria jasperiana a preparou para interpretar politicamente os acontecimentos
do mundo contemporâneo1; a segunda frase é laudatória, consiste no enaltecimento moral e exemplar
que não poucas vezes, durante toda a sua vida intelectual, Arendt revela sobre o caráter de seu antigo
professor; e a terceira compreende o condicionamento necessário que a pensadora estabelece à filosofia
de Jaspers em relação às obras de Kant. Reúno, desse modo, uma tríade esquemática e metodológica
que sustenta as duas partes estruturais desta tese de doutorado e que estão organizadas a partir dessas
proposições e de suas recorrentes discussões nas produções teóricas de Arendt – amiudadas também
tanto em entrevistas concedidas publicamente como em suas correspondências privadas –, mas que, a
rigor, não foram elaboradas conceitualmente em uma obra específica da autora nem tratadas com
sistematicidade ao longo de suas reflexões. Ainda assim, cada um dos núcleos frasais e investigativos
apresentados aqui ocupa o lugar de epicentro dos problemas a seguir ordenados. Parte I do trabalho: a
demonstração da vitalidade do legado jasperiano no pensamento político de Arendt, rastreado desde a
juventude da pensadora, antes mesmo da assunção do partido nazista ao poder na Alemanha, até às
formulações de seus termos próprios, sobretudo nas obras de 1951 a 1963, com enfoque em A Condição
Humana. Parte II do trabalho: a elevação da personalidade de Jaspers como modelo exemplar nas
concepções morais arendtianas. Característica esta que é revelada principalmente após o caso Adolf
Eichmann e as subsequentes controvérsias sobre o assunto, na década de 1960, de tal modo que a
diferença qualitativa de perfis concretos e singulares, de uma perspectiva ética, proporcionariam uma
revisão da filosofia prática da autora com bases nas atividades mentais do julgar, do querer e do pensar.
E, em ambas, Parte I e Parte II da tese: o estabelecimento de um nexo entre Arendt e Jaspers por meio
de uma mútua apropriação das teorias kantianas, uma vez que os dois autores contemporâneos se
utilizam, em sentidos similares e paralelos, das expressões de Kant (com e contra o filósofo de
Königsberg, como no caso específico do critério da “comunicabilidade” humana) para compreenderem
as relações existenciais, morais e políticas que envolvem os homens no mundo.
1 Cf. KOHLER, L.; SANER, H. Hannah Arendt Karl Jaspers Correspondence 1926-1969, Carta 87, p. 133.
13
A primeira das três vias interpretativas, de modo mais preciso, encontra o seu enunciado
emblemático na forma de uma carta de Arendt, endereçada a Jaspers e datada de 11 de março de 1949,
na qual a pensadora diz, após ter lido um artigo dele dedicado a Sólon2, o seguinte: “tornou-se muito
claro para mim novamente – ainda que eu estivesse completamente não consciente disso à época –
quão bem a sua filosofia me preparou para a política”3. Em posse dessa menção autorreferente de
Arendt, na Parte I deste trabalho (composta pelo capítulo 1 e capítulo 2), desmembro aspectos basilares
e cruciais do pensamento existencial de Jaspers, sobretudo os divulgados em quatro obras que cobrem
os anos de 1919 a 1949 (Psychologie der Weltanschauungen, Philosophie, Die Geistige Situation der
Zeit, e Vom Ursprung und Ziel der Geschichte), que fomentaram diretamente a formação política e
filosófica de sua ex-orientanda de doutorado. O ponto inicial assumido nesse contexto é de fazer
dialogar a noção de “humanidade” em Jaspers com o significado político da “pluralidade humana” na
teoria arendtiana – aspecto nevrálgico às concepções políticas da autora desde os anos 1950, mas que,
como desenvolvo no primeiro capítulo, vem a lume inclusive durante o processo de redação da tese
sobre O Conceito de amor em Santo Agostinho, finalizada e publicada por Arendt em 1929. Neste olhar
retrospectivo ao trabalho doutoral arendtiano, duas outras categorias conceituais muito caras a Arendt
são recuperadas em abordagem junto aos termos da psicologia de Jaspers: a natalidade e a liberdade
humanas. Pretendo com isso, na passagem para o segundo capítulo deste trabalho, demonstrar que tais
conceitos recebem significados políticos no interior da obra de Arendt em consonância com a
proposição de disposições humanas necessárias para o convívio plural e político entre os homens. Não
obstante, há um manejo teórico semelhante de ambos os autores no debate com a tradições filosóficas
sobre essas disposições humanas, a ponto de as duas filosofias terem a noção de “amor” como a sua
insígnia maior – seja o amor mundi arendtiano, seja o amor comunicativo jasperiano.
Nesse percurso, portanto, tem-se como horizonte apontar a lucidez com a qual tanto Arendt
quanto Jaspers constatam a insuficiência de se refletir sob a tutela dos conceitos e dos padrões
tradicionais, erigidos pela história do pensamento ocidental, para lidar com o ineditismo dos
fenômenos políticos e dos acontecimentos que marcariam as situações culturais e espirituais do século
2 Cf. JASPERS, K. “Solon”. In: HANS. E.F. Existentialism and Humanism: three essays, pp. 19-33; cf. também
JASPERS, K. “Solon”. In: Balance y Perspectiva (discursos y ensayos), pp. 55-63. Texto escrito por Karl Jaspers em
1948 em homenagem aos oitenta anos de Alfred Weber (irmão de Max Weber e professor em Heidelberg, coetâneo
de Jaspers na Universidade), originalmente publicado em Synopsis: Festgabe fur Alfred Weber, Ed: Edgar Salin, pp.
177-190. Nesse texto, em resumo, Jaspers toma a figura de Sólon como exemplar de um modo de vida político, ou de
um ethos político, para se pensar a noção de liberdade na pólis grega e, consequentemente, a importância da liberdade
para as democracias ocidentais. O texto será abordado de modo mais detido posteriormente nesta Tese. 3 KOHLER, L.; SANER, H. Hannah Arendt Karl Jaspers Correspondence 1926-1969, Carta 87, p. 133. Tradução e
grifos meus.
14
XX. Com isso em vista, em resumo, o primeiro exame aqui realizado acompanha o esforço intelectual
arendtiano, em consonância e confronto com Jaspers, na tentativa de ressignificar a existência humana
à luz do prisma de determinadas noções teóricas, com ênfase no “amor pelo mundo”, na humanidade
enquanto condição política real, na capacidade livre dos homens de gerarem algo novo mundanamente
e também na dignificação do pluralismo ativo e comunicacional constitutiva do espaço público.
A Parte II deste trabalho, composta pelo capítulo 3, ancora-se em uma passagem retirada do
discurso fúnebre que Arendt pronunciou por ocasião da morte de Jaspers, na Universidade da Basiléia,
no dia 4 de março de 1969, um dia após o enterro de seu ex-professor. Ali, na última vez que a autora
comentou publicamente sobre o pensador alemão, ela expressa que Jaspers seria a “encarnação
corporal” de algo que se conhece apenas enquanto conceito e ideal: “ele queria e pode ser um exemplo
para os outros. Mas, por isso, eu não me refiro a escrever livros. Os livros [dele] são expressão e
símbolo de um modo único de ser no mundo, de ser um homem entre homens. De vez em quando
alguém que realiza a existência humana exemplarmente emerge entre nós”4. Ressalta-se que mesmo a
um oceano Atlântico de distância, o intenso contato com Jaspers, reatado e reinventado com o fim da
Segunda Grande Guerra e a consequente derrocada do hitlerismo, fez com que a refugiada judia
encontrasse um “oásis” de humanismo em meio às falências das integridades individuais na realidade
desértica de uma Europa devastada política e moralmente. Nesse contexto, as questões morais
trabalhadas por Arendt, temática que a absorve principalmente durante os quinze últimos anos de sua
vida, podem ser interpretadas a partir da exaltação da figura pessoal de Jaspers à posição de uma
exemplaridade humana. Em outras palavras, Jaspers influencia e interessa às mobilizações e
preocupações teóricas arendtianas não apenas enquanto um filósofo, não apenas mediante suas obras
e pensamentos, mas também enquanto uma pessoa, enquanto uma aparência pública, um “cidadão do
mundo” capaz de juízo e pensamento representativo, ou seja, não menos por sua biografia de vida do
que por sua bibliografia filosófica produzida. A reboque dessa discussão encontra-se aqui o argumento
de que os âmbitos da ética e da política em Arendt dificilmente estão em divórcio definitivo, sobretudo
se analisados pela abertura da atividade humana de julgar, traduzida nesse caso por “alargamento
espiritual”. Tal atividade se define como a particular capacidade de levar os demais seres humanos em
conta, em potencial ou real comunicação com os outros, sempre que alguém se põe a tomar uma
determinada decisão individual – tema, contudo, que fora deixado incompleto em seus desdobramentos
devido à morte de Arendt, em 1975.
4 KOHLER, L; SANER, H. Hannah Arendt Karl Jaspers Correspondence 1926-1969, p. 684. “Speech given by
Hannah Arendt at the public memorial service for Karl Jaspers, University of Basel”. Tradução e grifos meus.
15
Antecipo que essa posição de leitura se coloca em contraste com a recepção dessa fase
inacabada da obra de Arendt feita por alguns intérpretes, estes que estabelecem uma divisão de
contornos rígidos entre a ação especificamente política e a ação moral, nos argumentos da autora.
Talvez a formulação mais recorrente dessa visão interpretativa um tanto incômoda esteja no exame
fenomenológico proposto por Seyla Benhabib, em Situating the Self, que confunde a justificada
ausência de uma teoria ética em Arendt com uma suposta ausência de valor moral conferido à faculdade
do juízo pela autora alemã5. Para Benhabib, em resumo, o peso político do juízo se confirma, nas
proposições de Arendt, em detrimento do peso ético desta capacidade humana. No quarto capítulo da
primeira parte de sua obra, de 1992, com o pano de fundo dos debates da filosofia prática entre
neoaristotélicos e neokantianos, Benhabib se propõe a discutir, “com e contra Arendt”6, sobre os
enigmas da faculdade de julgar nos termos arendtianos. A autora turca parte de dois pontos principais
em seus argumentos, um que seria crítico e outro que seria sequencial ao pensamento de Arendt: este
se refere ao desenvolvimento de uma análise fenomenológica do juízo com ênfase em seu aspecto
moral; aquele se refere à conjectura de que haveria uma problemática disjunção entre moralidade e
política, ou “uma radical separação entre considerações morais e ação política”7, por parte de Arendt.
De todo modo, a par dessa dificuldade, é importante chamar atenção para a contramão deste último
argumento, pois no mapa conceitual arendtiano, embora os critérios do cuidado humano com a
moralidade sejam realmente distintos dos critérios do cuidado político, não há uma radical e nem
permanente ruptura entre essas duas esferas de considerações. Nesse contexto, concordo com a posição
de Bethania Assy: “Em direção contrária a vários intérpretes da obra de Arendt, que asseveram uma
cisão no pensamento da autora entre a vida do espírito e as noções de ética, ação e responsabilidade
[...] argumento que há uma dimensão ética fundamental na produção intelectual de Arendt pós-1960,
estreitamente articulada a seus escritos políticos”8. Ao colocar Jaspers como exemplo prático da
mentalidade alargada, percebo ser possível relacionar, inclusive em suas tensões, o respeito com o self
moral e o cuidado com o mundo político a partir dos textos arendtianos9, como será observado em
5 Cf. BENHABIB, S. Situating the Self: Gender, Community and Postmodernism in Contemporary Ethics. Assume-
se aqui que o intuito sequencial oferecido por Benhabib é de extrema valia não só para a discussão e compreensão da
atividade do juízo nessa querela entre Arendt e Kant, mas também para a interessante apropriação que Benhabib
realiza atualmente a respeito da noção de “pensamento alargado” em suas últimas obras, válida, segundo a autora,
para um papel crucial de alteração procedimental daquilo que se entende tradicionalmente por princípio de
universalização na ética. Cf. também BENHABIB, S. The Claims of Culture: Equality and Diversity in the Global
Era, p. 142, e sobretudo capítulo 5. Do outro ponto de vista, contudo, é possível ponderar a crítica de Benhabib. 6 BENHABIB, S. Situating the Self: Gender, Community and Postmodernism in Contemporary Ethics, p. 123. 7 BENHABIB, S. Situating the Self: Gender, Community and Postmodernism in Contemporary Ethics, p. 139. 8 ASSY, B. Ética, responsabilidade e juízo em Hannah Arendt, p. XXIX. 9 Cf. ARENDT, H. “Responsabilidade Coletiva”. In: Responsabilidade e Julgamento, p. 220.
16
Algumas questões de filosofia moral – texto cuja edição é de 2003 e que Benhabib provavelmente não
teve acesso antes da publicação de Situating the Self, nem esteve presente como aluna na época em que
Arendt o ministrou na New School for Social Research em 1965.
Por fim, subjazem a esses dois momentos de análises, que serão realizados neste trabalho,
alguns breves e despretensiosos apontamentos de Arendt sobre o fato de ser Jaspers o seguidor legítimo
e “convicto de Kant”10, “o único discípulo de Kant”11, “o único sucessor que Kant teve até hoje”12.
Embora jamais desenvolvidas em seus pensamentos, as questões que se impõem diante de tais
afirmações são basilares e imediatas: cumpre entender por qual ou quais motivos, segundo a autora,
coube a Jaspers a sucessão genuína do intento filosófico de Kant e, além disso, por que esse testamento
se daria de forma singular, exclusiva, como se nenhum outro pensador fosse merecedor do mesmo
papel. Se há alguma direção privilegiada de respostas para isso, portanto, ela transita pelo exercício de
desvelar o que permanece implicitamente a essas alegações. A saber, se Kant só encontrou um herdeiro
teórico com o raiar do século XX, isso denota que a leitura jasperiana, para Arendt, possui algum tipo
de diferencial em relação tanto às denominações pós-kantianas anteriores a Jaspers – cujo exponencial
se apresenta nas vertentes tardias do “idealismo alemão” – quanto uma certa originalidade distinta do
neokantismo despontado e presente nas academias alemãs na época de Arendt. Sem a pretensão de
fazer uma defesa desse elogio dispensado pela pensadora ao seu ex-orientador, interessa-me
simplesmente trazer à tona a visão política que Jaspers apresenta sobre a totalidade do pensamento
kantiano. Eis o que chama atenção e é tão caro a Arendt: a força política do filósofo de Königsberg
não se restringe aos textos que tratam especificamente sobre temas políticos, mas se espalha e se deixa
entrever continuamente em seus textos considerados maiores. Segundo a autora, Jaspers reconhece isso
muito bem. E essa postura jasperiana pode ser constatada em alguns dos seus comentários sobre Kant,
como em Die grossen Philosophen: “Uma filosofia na qual a primeira e a última questão tratam dos
homens, é uma filosofia profundamente preocupada com política [...] que aspira ensinar aos homens
como ocupar o lugar atribuído a eles no universo”13. Nesse sentido, se Arendt retirou e reelaborou
elementos kantianos, presentes sobretudo na Crítica da Faculdade do Juízo, em suas próprias
10 ARENDT, H. “O interesse pela política no recente pensamento filosófico europeu. In: A Dignidade da Política, p.
84. In: Compreender: formação, exílio e totalitarismo, p. 457. Ver também: ARENDT, H. “O que é a filosofia da
existência?”. In: Compreender: formação, exílio e totalitarismo, p. 200. 11 ARENDT, H. Lições sobre a filosofia política de Kant, p. 13. 12 ARENDT, H. “Karl Jaspers: uma laudatio”. In: Homens em tempos sombrios, p. 90. 13 JASPERS, K. Kant, tradução minha. Para utilizar os termos arendtianos, uma proveitosa interpretação da filosofia
política de Kant deve começar por perceber que “os ensaios que compõem On History ou a recente coletânea chamada
Kant’s Political Writings não se comparam aos outros escritos kantianos quanto à qualidade e à profundidade [...]
certamente não constituem uma quarta crítica” (ARENDT, H. Lições sobre a filosofia política de Kant, p. 13.).
17
reflexões, há contribuição de Jaspers para o modo pouco ortodoxo como isso foi efetivado. No interior
dessas discussões, não se pode perder de vista a alegação crucial de Arendt em um dos seus primeiros
artigos de posição filosófica, O que é a filosofia da Existenz?, no qual ela diz que, de todos os filósofos
modernos que seguiram o caminho aberto pela teoria kantiana, nenhum conseguiu dar um passo além
de Kant. A autora afirma: “Na verdade [...] eles até ficaram alguns passos atrás, pois todos, com a única
e grande exceção de Jaspers, em algum momento abriram mão do conceito kantiano básico da liberdade
e dignidade humana”14. A partir de fortes declarações como a selecionada acima, esta tese de doutorado
se ocupa, durante as suas duas partes centrais, como pano de fundo de todos os seus três capítulos, de
características do empenho teórico jasperiano fundamentais para essas interações pretendidas com
Kant. Destaco cinco aspectos pelos quais Jaspers pode ser considerado um kantiano único para Arendt,
sendo que cada um desses aspectos se relaciona e se remete diretamente a um conceito específico do
pensamento prático arendtiano. Apenas os anuncio aqui em sequência.
Primeiro: a adição de um procedimento comunicativo e intersubjetivo à razão prática kantiana
realizada por Jaspers, aqui destacada pelo diagnóstico jasperiano de que o gênero humano se tornou
uma realidade política unificada e globalizada contemporaneamente – vinculo isso, então, ao fato da
pluralidade humana em Arendt (tópico 1.1, especificamente o 1.1.2). Segundo: a assunção do filosofar
de Jaspers como compreensão do “presente”, do “agora”, do “hoje”, do contemporâneo, o que se
aproxima de uma leitura política do texto kantiano Was ist Aufklarüng – conecto esse desdobramento
à noção da natalidade dos homens como radical ontológico da teoria política arendtiana (tópico 1.3).
Terceiro: a tentativa de tornar público os temas filosóficos e, na mesma medida, tornar filosófico os
temas públicos – tomo isso, na perspectiva de Arendt, como uma postura de ruptura com os modelos
tradicionais de pensamento ocidental a partir da defesa do senso comum (parte final dessa Introdução,
e também tópico 2.1.2). Quarto: a aposta de Jaspers na liberdade do homem diante do fracasso e dos
limites de seus conhecimentos em relação à existência, que é inspirada na aposta de Kant, depois de
ter investigado os limites do conhecimento metafísico, sobre a liberdade enquanto um postulado ao
sujeito da ação prática – coloco isso em paralelo com a dignidade da política e a dignidade do homem
livre nos termos de Arendt (tópico 1.3). E quinto: a defesa por parte da filosofia da Existenz de uma
necessária justaposição entre teoria e prática, que seria concretizada por meio de uma vivência (um
ethos15, como o próprio Jaspers afirma) livremente escolhida e, ao mesmo tempo, filosófica, política e
14 ARENDT, H. “O que é a filosofia da existência?”. In: Compreender: formação, exílio e totalitarismo, p. 200 15 Cf. JASPERS, K. “Mi camino a la filosofia”. In: Balance y Perspectiva (discursos y ensayos), p. 241. Cf. também:
JASPERS, K. “On my philosophy”. In: Existencialism form Dostoyevsky to Sartre.
18
existencial – desenvolvo essa questão por meio da exemplaridade comunicativa e da mentalidade
alargada nos termos de Arendt (tópico 3.2).
Diante disso, no modo da apresentação, este trabalho parte da procura pela voz da filosofia de
Jaspers nos textos e nas obras políticas arendtianas, e caminha, enfim, para o exame da importância da
pessoa de Jaspers no pensamento de cunho moral produzido pela autora. Em uma palavra: lanço luz à
filosofia de Arendt com recurso à fonte existencial jasperiana. Embora a teoria de Jaspers apareça
fragmentada nessas discussões, não sistematizada, não se trata de um problema grave para um autor
que coloca o seu modo de “pensar” explicitamente contrário a sistemas totalizantes. Nesse contexto, o
fio condutor que acompanha toda essa tese de doutorado é justamente a cronologia das publicações de
Arendt. A saber, do período que pode ser entendido como pré-político da pensadora, entre o fim dos
anos 1920 e início dos 1930, com atenção especial ao ensaio sobre Agostinho; passando pela formação
política de Arendt nas décadas de 1940 e 1950, com destaque sobretudo à Condição Humana; até
chegar ao enfoque das questões morais que, apesar de não estarem de modo algum desconectadas de
seu pensamento político, são compreendidas tardiamente, entre 1960 e 1975. Durante esse trajeto,
torna-se nítido que a personalidade e a filosofia de Jaspers se justapõem, ou melhor, que a concepção
existencial do autor se realiza ética e politicamente nele mesmo e que, da perspectiva de Arendt, isso
se daria por Jaspers ser um seguidor teórico e prático da concepção de mentalidade alargada kantiana.
Em outros termos, pretendo desenvolver o que Paul Ricoeur apenas indica na abertura à edição francesa
de A Condição Humana, no sentido de que “somente em K. Jaspers ela reconhece o homem cuja
coragem no plano ético e no político se iguala ao poder de concentração no plano do pensamento”16.
Em linhas gerais, este é o esboço apresentado nas duas partes que compõem esta tese de doutorado,
intitulados respectivamente de “A Existência Política” e de “O Exemplo Moral”.
O título da tese, “In-between” – o mundo comum entre Hannah Arendt e Karl Jaspers: da
existência política ao exemplo moral, a propósito, toma de empréstimo um conceito arendtiano que
representa, para ela, o espaço que o mundo coloca entre nós, homens e mulheres, espaço que nos afasta
e nos aproxima a um só tempo e que possibilita, por conseguinte, as relações políticas e éticas entre
dois ou mais indivíduos. É nessa esfera mundana que são afirmadas e narradas a si e aos outros as
singularidades políticas e as personalidades morais dos homens; é nessa esfera também que estórias
são entrelaçadas e que as amizades políticas são constituídas. Interessa-me apresentar, de acordo com
essa imagem, o mundo intersubjetivo criado e cultivado entre esses dois amigos, pensadores do século
XX, cujas teorias e conceitos filosóficos se comunicam em nome desse domínio público. De maneira
16 RICOEUR, P. Abertura de ARENDT, H. Condition de l’homme moderne, p. 07, tradução minha.
19
propositadamente ambígua, também utilizo dessa concepção de “espaço-entre” para sugerir que, no
meio dessa relação, de modo algum encerrada apenas na intimidade dos dois envolvidos, como
veremos, insere-se e pulsa um outro autor: Kant.
Parte I: O terreno político da Existenz: pluralidade, natalidade, liberdade e amor mundi
As definições de “homem” e de “humanidade” oferecidas por Jaspers em sua teoria existencial
representam o ponto inicial para uma reflexão que pretende abarcar as relações entre ele e Arendt.
Mesmo que o pensador alemão se expresse majoritariamente através do singular, “o homem”, o que
seria um ponto negativo aos olhos de Arendt, vale ressaltar que a pluralidade humana é, para Jaspers,
sempre antecipada e presente para qualquer realização individual, pessoal e existencial no mundo.
Segundo ele, nenhum homem e nenhuma mulher bastam a si mesmos nem diluem o seu ser em algum
tipo de conhecimento, objetivado ou não. Cada um de nós “ultrapassa o estado em que é dado a si
mesmo. O homem nasce em condições novas”17. No artigo O que é a filosofia da Existenz?,
originalmente publicado por Arendt em 1946, em uma idiossincrática interpretação que mais parece
um acerto de contas com as raízes de sua formação filosófica desde a década de 1920, Arendt considera
que contemporaneamente somente o escopo do pensamento existencial jasperiano se abre às
preocupações políticas, porquanto sua noção de Existenz, “que em Jaspers é tão somente uma outra
palavra mais explícita para ser um homem”18, faz-se dependente do convívio e da comunicação com
os outros seres humanos. É justamente isso que é destacado no tópico 1.1 do primeiro capítulo deste
trabalho. Isto é, a apropriação de teor político que Arendt realiza em praticamente todos os seus textos
que retratam ou dialogam com a teoria jasperiana – diálogo cuja gênese se encontra na tese arendtiana
sobre Agostinho. Nesse sentido, antes de trazer a público os seus estudos sobre as origens e os
elementos cristalizadores do totalitarismo, em 1951, e antes de reconsiderar a condição humana
moderna à luz da dignidade própria do espaço público mundano, em 1958, a autora já admitia
textualmente a perspectiva de que a Existenz em Jaspers é fortemente política. Ora, apresento a partir
disso uma hipótese interpretativa: durante os anos de elaboração de suas obras políticas magnas, a
filosofia da existência de seu ex-professor estava reavivada e reatualizada nas leituras, nas palestras
oferecidas em Universidades e nas discussões de Arendt feitas com o próprio Jaspers por
correspondências ou pessoalmente, fatos que deixariam as suas marcas nos textos da autora. O primeiro
17 JASPERS, K. Introdução ao pensamento filosófico, p. 47. 18 ARENDT, H. “O que é a filosofia da Existenz?”. In: A Dignidade da Política, p. 37.
20
capítulo desta tese, particularmente, apresenta a gênese do interesse arendtiano pela questão da
pluralidade humana em debate prioritário com a noção de humanidade em Jaspers – por meio desse
conceito jasperiano, ademais, é possível vincular as preocupações políticas inicias de Arendt em olhar
retrospectivo ao seu trabalho doutoral sobre Agostinho, cujos desdobramentos são apresentados no
tópico 1.2.
Que essa exposição não possa evitar uma órbita que entre em rota de colisão com algumas
leituras interpretativas que aproximam Arendt de Martin Heidegger19, é um efeito colateral do próprio
teor do escrito arendtiano sobre a filosofia da Existenz, bem como de outros textos dela que se situam
no mesmo período, como, por exemplo, Dedicatória a Karl Jaspers, de 1948; A imagem do Inferno,
de 1946; Heidegger, a Raposa, de 1953; e Karl Jaspers: uma laudatio, de 1958. Não se pode negar a
relevância de que nesse conjunto de artigos, sobretudo depois do fim da Segunda Grande Guerra até
meados de 1950, o trato arendtiano em relação ao seu ex-professor de Freiburg se pauta por críticas
mordazes e agudas ao pensamento ontológico heideggeriano. A autora chega a afirmar que a filosofia
de Heidegger seria o tipo mais genial – leia-se mais ingênuo20 – de armadilha contra a responsabilidade
política e que, ironicamente, só poderia ser levada a sério pelo perigo de corroborar a antiga hostilidade
do modo de ser filosófico frente à suposta “inautenticidade” do convívio plural no domínio público.
Ainda que esse criticismo arendtiano seja suavizado com o passar dos anos, como bem nota André
Duarte em O pensamento à sombra da ruptura21, os elogios que a autora presta a Heidegger no texto
em homenagem ao octogésimo aniversário dele, datado de 1969, continuam carregados com a visão
tragicômica dele como o exemplo moderno de uma deformação profissional típica dos filósofos, qual
seja: uma queda pela tirania, a de recorrer a ditadores quando se engajam nos afazeres mundanos22.
Nesse sentido, em qualquer “duplo movimento de aproximação e distanciamento crítico”23 entre as
reflexões arendtianas e as obras heideggerianas, não se pode descuidar do fato de que, praticamente a
cada censura que ela faz em relação a Heidegger, subjaz aí um elogio público a Jaspers, e vice-versa;
mas quase nenhuma crítica a Jaspers significa um elogio a Heidegger. Afinal, para ela, “Jaspers não
19 Nessa linha de interpretação, mencionam-se as excelentes contribuições de: VILLA, D. Arendt and Heidegger: The
fate of the political (sobretudo o capítulo IV); DUARTE, A. O pensamento à sombra da ruptura: política e filosofia
em Hannah Arendt (In: apêndice I); CANOVAM, M. Socrates or Heidegger? Hannah Arendt’s reflections on
philosophy and politics; e TAMINIAUX, J. The Thracian maid and the professional thinker: Arendt e Heidegger. 20 Cf. ARENDT, H. “Heidegger a Raposa” e nota 2 de “O que é a filosofia da existência”. In: Compreender: formação,
exílio e totalitarismo, pp. 381 e 465. 21 Cf. DUARTE, A. O pensamento à sombra da ruptura: política e filosofia em Hannah Arendt, p. 321. 22 Cf. ARENDT, H. “Martin Heidegger faz oitenta anos”. In: Homens em tempos sombrios, p. 196. Ela diz na última
página do texto: “Pois a tendência ao tirânico pode se constatar nas teorias de quase todos os grandes pensadores (Kant
é a grande exceção)”. Arendt poderia adicionar Jaspers, nessa passagem, como outra grande exceção. 23 DUARTE, A. O pensamento à sombra da ruptura: política e filosofia em Hannah Arendt, p. 321.
21
reagiu aos acontecimentos políticos desse tempo (que não previra, como ninguém os previu, e para os
quais talvez estivesse ainda menos preparado do que muitas outras pessoas) nem refugiando-se na sua
filosofia, nem negando o mundo, nem soçobrando na melancolia”24. Não que Arendt não tenha
restrições ou reticências também com a filosofia jasperiana, e isso precisa ser devidamente demarcado,
mas o recorte temático proposto nesta tese é fazer ouvir o filósofo de Heidelberg, Jaspers, mesmo que
em detrimento do contato pontual com Heidegger, e depreender disso rupturas e continuidades que
Arendt estabelece com essa referência da filosofia existencial.
Para evitar confusões, não se coloca aqui a questão de medir a importância de cada tradição
professoral para o conjunto do pensamento de Arendt25. No livro The Hidden philosophy of Hannah
Arendt, de certo modo, Margaret Betz faz essa comparação ao dizer que, no geral, a balança penderia
para a influência de Jaspers26. Contudo, acredito que a pensadora judia jogava concomitantemente em
diferentes tabuleiros filosóficos e, justamente por isso, a sua teoria se constrói de modo independente
e a partir de contrastes, sem signatário único. Todavia, tem-se em conta que as graduais divergências
de perspectivas entre Jaspers e Heidegger, instigadas com o aparecimento de Ser e Tempo em 1927 e
que apenas se intensificam com os anos nazistas, também são realocadas nas produções da autora. Por
exemplo, no percurso metodológico da tese arendtiana sobre o conceito de amor em Agostinho é latente
a pretensão da autora em discutir um modo de ser do homem que não exclua, por definição e por
princípio, a autenticidade existencial contida nas relações interpessoais, na interação de cada homem
com os seus próximos. Nesse sentido, inspirada por uma suposta contradição das obras agostinianas,
ao tentar resolver o problema da paradoxal intenção cristã de amor ao próximo – que deve se dar entre
pares no mundo concomitante ao imperativo abandono das coisas mundanas e terrestres em prol da
relação do fiel com Deus –, não bastou a Arendt lançar mão unicamente da definição heideggeriana de
ser-no-mundo (In-der-Welt-sein). À autora coube também expor um rico diálogo com a filosofia do
24 ARENDT, H. Karl Jaspers: uma laudatio. In: Homens em tempos sombrios, p. 94. 25 Trata-se aqui de um problema de pesquisa similar a um dos problemas da própria Arendt em sua tese de doutorado
sobre O Conceito de amor em Santo Agostinho, uma vez que a autora se vê entre a disputa das interpretações
neoplatônicas e as puramente cristãs referentes à obra agostiniana. Arendt afirma na introdução de sua tese: “À
primeira vista, grosso modo, nunca pusemos aqui a questão de saber quem surge primeiro, se helenismo ou o
cristianismo. As diferentes análises mostrarão não tanto quem levou a melhor, mas sim em função de quem se orientou o interesse original” (op cit., p. 12). De modo análogo, portanto, o enfoque nas influências jasperianas ao pensamento
político de Arendt não representa, necessariamente, a refutação das alegadas e cabíveis influências de Heidegger à
pensadora, ainda que contrastes estejam envolvidos nesse trajeto. Nesse sentido, ao apresentar o problema nesses
termos, esta tese se reveste de um método ao estilo de Nietzsche: “[...] que tenho eu a ver com refutações! – mas sim,
como convém num espírito positivo, para substituir o improvável pelo mais provável, e ocasionalmente um erro por
outro” (NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral, p. 10). 26 BETZ-HULL, M. The Hidden philosophy of Hannah Arendt, p. 76. A autora da obra defende que o anti-solipsismo
arendtiano vem da leitura de Jaspers e Sócrates, estes que ajudaram-na a combater alguns problemas que a pensadora
percebia na fenomenologia de Heidegger, embora fosse devedora deste último também.
22
englobante (das Umgreifende) jasperiana que estava no prelo naquele momento, na qual o
esclarecimento da multidimensionalidade do ser que nós somos abre espaço para uma autenticidade
existencial do homem propositadamente distinta da concepção de Heidegger. “Através de nossas obras,
nosso estranhamento oculto saiu à luz”27, afirma Jaspers sobre a ontologia fundamental heideggeriana.
Será possível retirar dessas contradições assumidas, no contexto pré-1930, a gênese das preocupações
arendtianas com os conceitos de pluralidade, de natalidade e de amor mundi, que mais tarde
receberiam uma feição carregadamente política nas obras teóricas da autora. É nesse diapasão que o
tópico 1.2 do primeiro capítulo desta tese se constrói. Espero tornar claro que, em sua pontual
interpretação de Agostinho, ao cindir a condição de ser dos homens em uma dupla origem – uma
proveniente de sermos criaturas criadas por/em Deus; e outra como co-pertença ao gênero humano no
mundo (generatione), pelo nascimento, em função de um passado histórico adâmico em comum –
Arendt começa a conceder propostas teóricas para a vinculação semanticamente política entre o
mundo, a esfera pública/comum e a natalidade humana.
Com efeito, a precoce concepção arendtiana de que o convívio entre os homens está submetido
“ao constrangimento do parentesco que partilhamos [...] e ao seu irrevogável encadeamento pelo
nascimento”28, mesmo a partir de uma visão cristã, possibilitaria à pensadora a rearticulação das
disposições afetivas humanas relevantes para se refletir sobre as experiências políticas. Em poucas
palavras, a interação do homem com o mundo não deveria se sustentar pelo medo ou pela angústia
diante da incontornável mortalidade existencial, nem tampouco pela expectação em uma vida eterna
pós-mundana, mas fundamentalmente pela esperança intrínseca ao caráter da natalidade humana e pela
coragem de afirmar a novidade, o imprevisível e a impresciência que subjazem à liberdade de ação e
escolha dos homens. Exatamente como interpreta Adriano Correia, em uma tentativa de não ignorar o
valor político/romano da contribuição teológica agostiniana, “o que Hannah Arendt encontra em
Agostinho, com e contra ele, é um modo de compreensão da existência humana que desloca a
centralidade da relação do homem com o mundo da mortalidade para a natalidade”29. Todavia, é
importante não ignorar também que durante esse deslocamento operado por Arendt, que se traduziria
sob o signo de amor pelo mundo, a autora está em diálogo com a definição jasperiana do “amor”
enquanto abertura comunicacional ao próximo, nas palavras dele, “[...] abertura total, da exclusão de
27 YOUNG-BRUEHL, E. Hannah Arendt: por amor ao mundo, p. 101. 28 ARENDT, H. O Conceito de amor em Santo Agostinho, pp. 170-171. 29 CORREIA, A. “O significado político da natalidade: Arendt e Agostinho”. In: CORREIA, A (org). Hannah Arendt:
Entre o Passado e o Futuro, p. 17.
23
qualquer poder ou superioridade, da liberdade (Selbstein) do outro tanto quanto da própria”30. Seja pelo
nome de “atitude entusiástica”, “comunicação”, “luta”, “amizade” ou “abertura”, é importante trazer à
reflexão que desde a obra Psicologia das Visões de Mundo, publicada em 1919, o pensamento de
Jaspers reveste o amor como uma força vital que perfaz a existência possível humana não apenas em
um sentido transcendente, mas explicitamente em sentidos políticos e morais. Para o filósofo alemão,
que nesse contexto também está em um ponto junto a Agostinho (embora suas conclusões sejam
distintas), entre os afetos básicos da vida humana “o amor não reconhece instância que lhe esteja
acima”31. O amor, para Jaspers, seria o eixo principal de julgamento a respeito de como os seres
humanos se singularizam em razoabilidade e convivência política e moral com os outros, mas isso não
quer dizer que seja critério para justificar condutas e ações pessoais. “Por ignorarmos o que é o amor,
não podemos empregá-lo para a realização de operações racionais. E, apesar disso, toda justificação
racional e qualquer vida conforme à lei moral [...] nada serão se não se realizarem através do amor e
no amor irão encontrar o melhor apoio”32. Tanto em Jaspers quanto em Arendt, tratar desse tema é
lidar com ambivalências e paradoxos, pois, embora o amor não seja um fenômeno objetivamente
mundano, ambos os autores tentam liberá-lo do ranço místico e da reclusão religiosa em prol de um
simbolismo político e comum que capacite contemplar a pluralidade humana. A questão é que o amor
é uma disposição humana integradora, e não segregadora ou individualizante. Não é sem isso em
mente, portanto, que Arendt se utilize da filosofia jasperiana como ferramenta conceitual para
compreender as disposições afetivas e espirituais humanas que são condições de possibilidade para a
existência dos fenômenos políticos e que, não obstante, tenha escrito em 1957 o seguinte a Jaspers:
“Eu comecei muito tarde, apenas nos últimos anos, de fato, a amar o mundo verdadeiramente. Por
gratidão, quero denominar Amor Mundi meu livro sobre teorias políticas”33. Tal gesto nunca fora
efetivado, uma vez que o livro apareceu sob o título de A Condição Humana, mas o mote da
importância do amor pelo mundo – em certa medida tão alheio a Agostinho quanto a Heidegger –
permaneceu como marca de suas reflexões. A partir disso, já no segundo capítulo deste trabalho,
investigo por meio de quais disposições afetivas, nos termos arendtianos, abrimo-nos ao mundo e aos
outros, por meio de quais disposições o amor pelo mundo pode ser afirmado e realizado publicamente.
Ou seja, exploro a política nos termos de Arendt pelo espectro crítico da questão das disposições
subjetivas que podem ser comunicadas entre os homens, daquilo que mobilizaria internamente o
30 JASPERS, K. Philosophie II, p. 467. 31 JASPERS, K. Introdução ao pensamento filosófico, p. 91. 32 JASPERS, K. Introdução ao pensamento filosófico, p. 91. 33 KOHLER, L; SANER, H. Hannah Arendt Karl Jaspers Correspondence 1926-1969, p. 264, Carta 169.
24
engajamento em ações públicas, e, para esse intuito, estabeleço assim eventuais aproximações com a
denominada “psicologia” jasperiana.
No horizonte da prioridade política que Arendt passou a conceder à vida ativa e às disposições
afetivas condicionantes da existência dos homens, grosso modo, jamais se perde de vista a certificação
da autora de que a sua época seria herdeira de um movimento de ruptura entre aquilo que liga o passado
e o futuro. Ou seja, de que a sua realidade histórica seria determinada factualmente pela crise profunda
dos modos de pensar constituídos pelas tradições greco-romanas no mundo ocidental. A pensadora
indica de forma tímida em alguns trechos argumentativos, como no texto Karl Jaspers: cidadão do
mundo?, que o seu ex-orientador a antecipou nesse diagnóstico crítico da situação espiritual e política
moderna. Mas, na verdade, uma aproximação um pouco mais generosa nos detalhes, para além do que
Arendt deixa entrever, revela que os termos e as referências que os dois autores utilizam são
praticamente as mesmas. No início de Razão e Existência, por exemplo, a proposta jasperiana é
trabalhar de que modo Kierkegaard e Nietzsche foram filósofos que promoveram, no plano do
pensamento, uma verdadeira rebelião contra a tradição ao perceberem a urgência de não mais se operar
com as antigas palavras e doutrinas, “pois, na realidade do homem ocidental se operou, ainda que
silenciosamente, algo monstruoso: a desintegração de todas as autoridades”34. Arendt, trinta anos
depois, no início de Entre o Passado e o Futuro, retoma Kierkegaard e Nietzsche e complementa essa
lista de filósofos com o nome de Marx ao afirmar que esses três pensadores “são para nós como marcos
indicativos de um passado que perdeu sua autoridade”35. Trata-se de uma das etapas do que Arendt
denomina de esfacelamento sem precedentes das categorias tradicionais do pensamento político e
moral. Algo que pode ser traduzido e medido tanto no plano intelectual quanto, sobretudo, a partir das
experiências retiradas dos próprios acontecimentos mundanos. Seria o caso específico do totalitarismo,
que, para ela, escaparia a quaisquer metragens compreensivas usuais, uma vez que a novidade de tal
dominação é o fato acabado de que “a corrente subterrânea da história ocidental veio à luz e usurpou a
dignidade de nossa tradição. Essa é a realidade em que vivemos”36.
Esta tese acompanha, no tópico 1.3 de seu primeiro capítulo, o matiz da influência de Jaspers
para esse debate que atravessa toda a obra arendtiana, com o seguinte enfoque: uma filosofia política
centralizada na concepção da “natalidade humana” é, visceralmente, preocupada com a discussão do
“presente”, pois não sobrevaloriza nem o futuro nem o passado, mas o instante atual, o contemporâneo,
34 JASPERS, K. Reason and Existenz: five lectures, p. 23; JASPERS, K. Razon y Existencia, p. 13.Tradução minha. 35 ARENDT, H. “A tradição e a época moderna”. In: Entre o Passado e o Futuro, p. 44. 36 ARENDT, H. Origens do Totalitarismo, p. 13.
25
as ações do agora que fazem nascer sempre algo novo. Perante o silêncio e a lacuna de significados
que desconectariam o presente do passado, Arendt assume já na epígrafe de sua primeira obra, frase
retirada de um trabalho de Jaspers, que não se deve “almejar nem os que passaram nem os que virão.
Importa ser do seu próprio tempo”37. Essa tentativa de viver, pensar e compreender o próprio tempo,
sobre “o que estamos fazendo” aqui e agora, envolve não apenas o grande esforço teórico arendtiano
de mobilizar e ressignificar os conceitos políticos e filosóficos com os quais trabalhava, mas o esforço
jasperiano de entender o homem na atualidade, pois, como o próprio autor afirma, a filosofia é levada
pela “preocupação com nós mesmos, pelo homem atual”38.
Parte II: “Lieber Verehrtester”: o caráter exemplar do “bloco de gelo do Norte alemão”
Karl Jaspers nunca foi um filósofo por formação clássica e nem pretendia ter seu nome incluído
“entre aqueles que Kant, não sem ironia, chamou de Denker von Gewerbe (pensadores
profissionais)”39. Ainda que seu interesse pelos temas filosóficos o acompanhasse desde os seus anos
no ginásio de humanidades em Oldenburgo40, no norte da Alemanha, cidade em que nasceu em 1883,
o jovem Jaspers não se dedicou posteriormente a um grau estudantil em filosofia, ou qualquer ciência
do espírito, como ele mesmo denominava. “Minha trajetória não foi a normal dentre os professores de
filosofia. Não aspirava o doutorado nesta disciplina pelo estudo de filosofia nos cursos universitários
[...] e um certo temor me vedava fazer dessa área minha profissão [...] a decisão de querer ser um
filósofo me parecia tão absurda como a de querer ser poeta”41. Em vez disso, ao ingressar na
Universidade em 1901, decidiu pelo bacharelado em direito com vistas à carreira de advogado. Três
semestres depois, insatisfeito com a jurisprudência, transferiu-se para as classes de medicina e, sem
mais interrupções, formou-se como médico. Dedicando bastante tempo à prática laboratorial e clínica,
então assistente em um hospital psiquiátrico em Heidelberg, a partir de 1909 já era reconhecido por
37 JASPERS, K. apud ARENDT, H. Origens do Totalitarismo, epígrafe. 38 JASPERS, K. “Condiciones y possibilidades para um nuevo humanismo”. In: Balance y Perspectiva (discursos y
ensayos), p. 187. 39 ARENDT, H. A Vida do Espírito, p. 17. Cf. também KANT, I. Crítica da Razão Pura, B871, p. 676. 40 Em relação ao seu caminho de “pesquisa filosófica, cujo o germe estava presente desde os anos de escola“
(JASPERS, K. “Texto Necrológico escrito por Karl Jaspers”. In: HERSCH, J. Karl Jaspers, p. 105), ver também
JASPERS, K. “On my philosophy”. In: Existentialism from Dostoyevsky to Sartre“; e “Mi camino a la filosofia”. In:
Balance y Perspectiva (discursos y ensayos), p. 237. 41 JASPERS, K. “Sobre mi filosofia”. In: Balance y Perspectiva (discursos y ensayos), p. 245, tradução minha.
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suas investigações em psicopatologia42. Após doutorar-se com uma tese em psiquiatria, conseguiu
habilitação como Privatdozent em psicologia na Faculdade de Letras da Universidade de Heidelberg,
em 1913. Sua chegada até à produtividade filosófica, portanto, aconteceu pela via indireta das
inquirições científicas sobre a psique humana e, não obstante, seus passos não foram guiados pelo
contato direto com algum mentor teórico, nem foram tão convencionais como os de muitos outros
pensadores e acadêmicos ilustres que lhe eram contemporâneos, como Martim Heidegger, Heinrich
Rickert, Ernst Cassirer, Franz Brentano, Edmund Husserl43, entre outros. Certamente, esse histórico
mestiço de Jaspers explica um pouco da reação suspeitosa e negativa de parte do metiê filosófico
alemão da época diante de sua candidatura à cátedra de filosofia em Heidelberg. Teve, afinal, de
“vencer uma oposição formidável”44. Como confessa Jaspers em um texto de 1951, trinta anos após
ocupar de fato uma cadeira de filosofia: “Era inevitável que, desta maneira, entrasse em conflito com
a filosofia profissional e de que em seu círculo me sentiria como um estranho e, para muitos, sigo
42 Cf. JASPERS, K. Psicopatologia Geral. Como resultado de artigos publicados em revistas e pesquisas realizadas
em grupo na Clínica Psiquiátrica de Heidelberg, da qual Jaspers fez parte entre 1908 e 1915, e com recomendação do
chefe da equipe, o neuropatologista Franz Nissl, Jaspers lança a obra Allgemeine Psychopathologie (Psicopatologia
Geral), em 1913. Grosso modo, apenas a título de comentário, trata-se, segundo o próprio autor, de uma visão completa
dos fatos psicológicos e dos pontos de vista metodológicos multifacetados que compõem a área da psicopatologia – o
estudo do homem em sua enfermidade psíquica e psiquicamente condicionada. Na época, Jaspers se sentia
incomodado sobretudo com os critérios de objetividade científica impostos pelos diagnósticos psiquiátricos, no sentido
de que se estabelecia prioridade às “conexões causais” mensuráveis e quantitativas que explicavam os fenômenos
psíquicos a partir de leis e categorias às quais vincular e estudar os dados coletados em cada caso. “A intenção da
minha obra era liberar [a psicopatologia] do pseudoconhecimento dogmático para fomentar a aberta visão
investigadora [...] dos métodos e dos seus limites” (JASPERS, K. “Sobre mi filosofia”. In: Balance y Perspectiva –
discursos y ensayos, p. 270, tradução minha). Nesse sentido, por um lado, Jaspers expõe (sem sistematicidade unitária) todos os sistemas de métodos e teorias desenvolvidas na área psicopatológica, sem se prender a nenhum desses
sistemas; e, por outro lado, defende a importância de se contrapor a “psicologia explicativa” com ajuda da “psicologia
compreensiva”. Sobre isso, cf. TEIXEIRA, J. A (org). 100 anos da ‘Psicopatologia Geral’ de Karl Jaspers; Também:
HERSCH, J. Karl Jaspers, pp. 11 e 57; também: CARVALHO, J. M. Filosofia e Psicologia: o pensamento
fenomenológico existencial de Karl Jaspers. BORMUTH, M. Freedom and mystery: An intellectual history of Jaspers’
General Psychopathology. 43 Embora Husserl tenha se doutorado com uma tese em matemática, a sua carreira filosófica foi abertamente
influenciada pelo contato e pelas aulas tidas com Brentano. Foi nesse contexto histórico que Jaspers conheceu as obras
de Husserl, em 1909, mas, mesmo tendo aplicado o método fenomenológico para descrever as vivências dos enfermos
mentais, não se considerava um discípulo da teoria fenomenológica. Como ele mesmo narra: “[...] nos encontramos
pessoalmente em 1913. Como psiquiatra eu havia publicado alguns trabalhos fenomenológicos sobre ilusões sensoriais
e alucinações. Husserl se inteirou de que eu estava em Gotinga e me fez um convite para que o visitasse. Fui recebido
amavelmente, com lisonjeio e – para minha grande surpresa – tratado como seu discípulo. Perguntei-o, com alguma impertinência, o que era realmente a fenomenologia, porque eu não sabia com claridade. Husserl me replicou: ‘você
realiza excelente fenomenologia em seus escritos. Você não precisa saber o que [a fenomenologia] é quando a realiza
tão bem. Siga você adiante’. Depois disse [...] de como [se] deprimia quando lhe comparavam com Schelling;
Schelling não era um filósofo para ser tomado a sério. Calei-me e mais tarde pensei: o homem maravilhoso sabe tão
pouco o que é filosofia que sente como uma ofensa que seja comparado a um grande filósofo”. JASPERS, K. “Mi
camino a la filosofia”. In: Balance y Perspectiva (discursos y ensayos), p. 241, tradução minha. 44 YOUNG-BRUEHL, E. Hannah Arendt: por amor ao mundo, p. 79. Há um erro de cronologia nessa passagem da
obra de Elisabeth Young-Bruehl, pois a cátedra de Filosofia foi assumida por Jaspers apenas em 1921, e não em 1913
como a autora afirma. Em 1913, na verdade, como já dito, ele assume uma cadeira de Psicologia.
27
sendo até hoje”45. A despeito dos percalços já esperados, ao deixar para trás uma carreira já consolidada
e com quase quarenta anos de idade, Jaspers inicia uma nova jornada que seria marcada, como se sabe,
pela orientação do doutorado de Hannah Arendt, ainda nos anos de 1920. Principiava-se, assim, um
contato entre professor e aluna que se desenvolveria em uma sólida amizade, de imensa cumplicidade
e de influência recíproca no pós-guerra.
Quando se mudou para a cidade de Heidelberg com a finalidade de dar sequência aos seus
estudos doutorais em filosofia, a então estudante Arendt vinha do convívio com os seminários e com
a pessoa de Heidegger em Marburgo, entre os anos de 1924 e 1925. O contato de Arendt com Jaspers,
inclusive, que a aceitou como orientanda, fora intermediado por Heidegger. Os dois professores mais
velhos já se conheciam desde uma festa na casa de Husserl, em 1920, na qual se comemorava o
aniversário do filósofo pai da fenomenologia. Ainda que Jaspers tenha afirmado em sua autobiografia
filosófica que “havia algo de pequeno burguês, algo mesquinho no ar”46 nesse seu primeiro encontro
com Heidegger, à época o reconhecimento intelectual mútuo e o respeito pessoal entre eles fora
declarado em subsequentes cartas trocadas e em algumas visitas familiares realizadas. Nas seis
primeiras correspondências escritas entre os dois, a título de exemplos, Jaspers tratava Heidegger como
“estimado colega” e este se utilizava da forma pronominal “querido professor” para se referir àquele,
até que em uma nota de rodapé presente na carta de 28 de junho de 1921 Jaspers solicita menos
formalidade ao seu interlocutor: “Queria não me dar o título de professor? Desde quando embarcamos
em uma relação ‘filosófica’? Ou tem tão pouca confiança comigo?”47. É neste solo que Heidegger pôde
confidenciar que sentia que eles dois trabalhavam “a partir da mesma situação fundamental na
revitalização da filosofia”48 e que esperava a compreensão profunda de Ser e Tempo somente por parte
de Jaspers e de Karl Bultmann. Por seu turno, Jaspers pôde confessar, ao recém amigo, que nenhuma
das críticas dos jovens filósofos alemães lhe interessavam como as de Heidegger e que este tinha se
aprofundado na raiz de seus pensamentos sobre a psicologia das visões de mundo49. Foi durante esses
anos, de extrema e profícua produção intelectual por parte de duas vertentes protagonistas da filosofia
alemã contemporânea, em “status nascendi”50, que Arendt se formou com os dois mestres. A fortuna
sorriu à jovem aluna nos dois casos. Afinal, ela presenciou os cursos de Heidegger no momento de
45 JASPERS, K. “Mi camino a la filosofia”. In: Balance y Perspectiva (discursos y ensayos), pp. 243-244, tradução
minha. 46 JASPERS, K. Apud YOUNG-BRUEHL, E. Hannah Arendt: por amor ao mundo, p. 101. 47 BIEMEL, W; SANER, H. Martin Heidegger / Karl Jaspers: Correpondencia (1920-1963), p. 20. 48 BIEMEL, W; SANER, H. Martin Heidegger / Karl Jaspers: Correpondencia (1920-1963), p. 15. 49 Cf. BIEMEL, W; SANER, H. Martin Heidegger / Karl Jaspers: Correpondencia (1920-1963), p 21. 50 KOHLER, L.; SANER, H. Hannah Arendt Karl Jaspers Correspondence 1926-1969, p. xvii.
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escrita de Ser e Tempo, publicado em 1927; e, sob supervisão de Jaspers até 1929, acompanhou as
aulas em Heidelberg que eram inspiradas pela produção dos três volumes de Philosophie, finalizada e
editada em 1931. Em um olhar retrospectivo, feito em 1964, Arendt expressaria que “[Jaspers] tem
uma concepção de liberdade ligada à razão que me era totalmente estranha quando fui para Heidelberg.
Não sabia nada a respeito daquilo, embora tivesse lido Kant. Vi essa razão em ação, por assim dizer
[...] se alguém conseguiu me instilar algum senso das coisas, foi ele”51. Sob as lentes arendtianas, é
essa imagem particular do pensamento vivo de Jaspers que emprestaria uma carga significativa não
apenas política às produções dela, mas também uma rara personificação moral. Como diz Elisabeth
Young-Bruehl, em Freedom and Karl Jaspers Philosophy: “Jaspers não apresenta programas, ele
apresenta espaços, possibilidades – e o exemplo de suas próprias escolhas, a sua própria vida”52. A
Parte II deste trabalho, desenvolvida pelo terceiro capítulo, examina e lida ao mesmo tempo com a
passagem e a mescla das preocupações políticas arendtianas às questões éticas, datadas da década de
1960, sendo aqui mobilizadas, todavia, não somente pela constatação usual do impacto que a figura de
Adolf Eichmann53 proporcionou à autora, mas sobretudo pelo caminho do reconhecimento da própria
importância pessoal de Jaspers às teorias dela.
Das mais de quatrocentas cartas que restaram na volumosa compilação das correspondências
trocadas entre Jaspers e Arendt, um dos pontos auge é quando, com o fim da guerra, os dois voltam a
ter notícias um do outro após mais de sete anos de silêncio e afastamento forçado. Isso acontece em
uma missiva escrita pelo pensador alemão em outubro de 1945 e, na sequência das cartas vizinhas, o
teor que a autora judia adota com o seu antigo mestre é sobretudo de gratidão moral e respeito pessoal.
51 ARENDT, H. “O que resta? Resta a língua: uma conversa com Gunter Gaus”. In: Compreender: formação, exílio e
totalitarismo, p. 52. Em outra tradução: “Mas se um homem me deu acesso à razão, foi justamente ele” (ARENDT,
H. “Só permanece a língua materna”. In: A Dignidade da Política, p. 143. Na tradução em inglês: “[...] but if anyone
succeeded in instilling some sense in me, it was he” (ARENDT, H. Essays in Understanding, p. 22). Nessa passagem
da entrevista, feita em alemão, Arendt está respondendo sobre a principal influência que ela via em Jaspers sobre si
mesma. Ao começar a resposta, ela sorri e diz algo que não foi transcrito nas traduções: “espero que ele [Jaspers] ouça
essa entrevista” e continua ao afirmar que o contato inicial com Jaspers teria lhe rendido senso das coisas e, logo após
uma nova intervenção do entrevistador, confirma que Jaspers lhe deu acesso à razão vinculada à noção de liberdade. Entrevista disponível no youtube: (https://www.youtube.com/watch?v=dsoImQfVsO4), tal passagem se inicia a partir
do minuto 56 da entrevista. 52 YOUNG-BRUEHL, E. Freedon and Karl Jaspers Philosophy, p. xiii. 53 Oficial da SS (polícia secreta do partido nazista), considerado um dos principais responsáveis pela “Solução Final” ao comandar a logística de transporte dos judeus aos campos nazistas de extermínio – foi capturado por agentes
israelenses num subúrbio de Buenos Aires, Argentina, “na noite de 11 de maio de 1960, voou para Israel nove dias
depois, foi levado a julgamento na Corte Distrital de Jerusalém [...] [foi] objeto de cinco acusações: ‘entre outros’,
cometera crimes contra o povo judeu, crimes contra a humanidade e crimes de guerra” (ARENDT, H. Eichmann em
Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal, p. 32). Dentre inúmeros espectadores que acompanharam o
julgamento no tribunal, estava presente a professora judia Hannah Arendt que, ao tomar conhecimento do caso,
conseguira o contrato para atuação como repórter na cobertura do fato.
29
“Eu estava mais convicta de ti do que de mim mesma”54; “você está presente para mim assim como
nos anos de minha juventude”55; “que seus livros tragam novamente o toque de ordem dentro desse
mundo perdido”56. O conteúdo de todas essas cartas passava pela leitura de censores, por conta de um
período de suspeitas diplomáticas. Além disso, Jaspers estava expressamente proibido de publicar
desde 1943, por imposição do derrotado governo nacional-socialista, e tinha acabado de reassumir sua
cadeira de filosofia na Universidade de Heidelberg (com anuência das autoridades americanas de
ocupação na Alemanha), da qual fora afastado em 1937. Com a reabertura das caixas postais alemãs
ao mundo, portanto, reacende-se em um grau exponencial de crescimento as conexões intelectuais e
pessoais entre o psiquiatra alemão e a autora pária, de modo que isso pode ser verificado também nos
textos e nas obras publicadas por Arendt e nas treze visitas que ela fez a ele na Basiléia até 1969, ano
da morte de Jaspers. Depois de uma dessas visitas, por exemplo, Arendt se mostra bastante satisfeita
por eles assumirem o “Du” como tratamento adequado à proximidade que mantinham. Algo que
marcava o distanciamento da formalidade inerente à relação professor e aluna, como quando nas
primeiras cartas, até 1938, Arendt o tratava como “Sehr verehrter Herr Professor” (algo como “muito
estimado professor”) e, a partir de 1946, aborda-o carinhosamente apenas como “Lieber Verehrtester”
(mais ou menos como “amado querido”). É impressionante como a confiança permitiu a ambos a livre
expressão de pensamentos, a exposição de contrariedades argumentativas sem reservas, as mudanças
de opiniões, a enorme sinceridade de seus respectivos posicionamentos a respeito de acontecimentos
políticos e até certa indiscrição ao comentarem sobre figuras públicas reconhecidas
contemporaneamente. Nas cartas, “eles se revelam de uma maneira mais pessoal, espontânea, calorosa
e, ao mesmo tempo, de um modo mais implacável do que em seus trabalhos”57, pois, como afirma
Arendt, “a confiança na amizade é tão grande que você sabe que nada pode magoar”58. É nesse sentido
que o montante dessas correspondências, sempre em análise que não perde de vista os textos publicados
por ambos os pensadores, coloca-se como um arquivo fundamental para a ancoragem das duas partes
deste trabalho de doutorado e, sobretudo, para o desenvolvimento da metáfora da luminosidade em
tempos sombrios que a postura de Jaspers diante do regime nazista representa a Arendt.
Com senso de autoironia, Jaspers refere a si mesmo, para Arendt, como o “bloco de gelo do
Norte alemão” (Norddeutsche Eisklotz)59, definição que remete literalmente à sua formação campesina
54 KOHLER, L; SANER, H. Hannah Arendt Karl Jaspers Briefwechsel 1926-1969, Carta 34, p. 66. 55 KOHLER, L; SANER, H. Hannah Arendt Karl Jaspers Briefwechsel 1926-1969, Carta 31, p. 59. 56 KOHLER, L; SANER, H. Hannah Arendt Karl Jaspers Briefwechsel 1926-1969, Carta 34, p. 66. 57 KOHLER, L; SANER, H. Hannah Arendt Karl Jaspers Correspondence 1926-1969, p. vii. 58 ARENDT, H. “Sobre Hannah Arendt”. In: Revista Inquietude, p. 162. 59 KOHLER, L.; SANER, H. Hannah Arendt Karl Jaspers Briefwechsel 1926-1969, Carta 159, p. 282.
30
cultural e familiar nas terras frias próximas ao mar do Norte, mas que também conota a pintura do seu
autorretrato a partir da imagem de alguém pouco afeito a “ismos passageiros” e solidamente cônscio
da liberdade humana, da independência do juízo racional para além de imposições exteriores. Ao
remontar a sua infância em diversos textos autobiográficos, o autor alemão comenta o quanto sempre
pautou a relação com os outros e consigo mesmo com bases nos valores da dignidade e do respeito.
Algo que se refletiria mesmo sob a ameaça dos anos do nacional socialismo, nos quais se manteve
“livre interiormente, sem ter cedido a nenhuma pressão”60, mas também sem se orgulhar de que isso
poderia ser heroico. Na verdade, diz ele: “em meu ser dominava a modéstia que depois penetrou minha
filosofia posterior em forma de reconhecimento da finitude e da culpa do homem livre”61. Na
interpretação arendtiana, Jaspers era – em pensamento reflexivo, ação pública e caráter subversivo – o
encontro que fundia em si mesmo razão, liberdade e comunicação. Desse modo, ele foi o que restou
de humanitas, da qualidade de ser humano, nos doze anos de exceção na Alemanha. Arendt atesta:
Há qualquer coisa de fascinante no fato de um homem ser inviolável, inabalável,
imune à tentação. Se quiséssemos explicá-lo em termos psicológicos e
biográficos, poderíamos talvez pensar no lar em que Jaspers nasceu. O seu pai e
a sua mãe ainda estavam fortemente ligados a esse campesinato frísio, orgulhoso
e decidido, que possuía um sentido de independência absolutamente invulgar na
Alemanha. Pois bem, a liberdade é mais do que a independência, e coube a Jaspers
desenvolver, a partir da independência, a consciência racional da liberdade na qual
o homem se experimenta como tendo sido dado a si próprio. Mas a soberana
naturalidade – uma certa temeridade alegre (Übermut), como ele próprio por vezes diz – com que gosta de se expor às correntes da vida pública, embora
conservando, ao mesmo tempo, a independência em relação às tendências e
opiniões que porventura estejam em voga, também se deve, provavelmente, a essa
segurança originária, ou pelo menos teve nela a sua raiz. Bastava-lhe deixar-se
levar pelo sonho, por assim dizer, de regresso às suas origens pessoais, e depois
novamente de volta à amplitude da humanidade, para se convencer de que, mesmo
isolado, não representava uma opinião particular, mas sim um ponto de vista
público diferente, ainda oculto – um ‘carreiro’, como dizia Kant, ‘que um dia sem
dúvida se alargará, transformando-se numa grande estrada’62.
Em consonância com essas e outras discussões, este modo de abordagem das questões morais
nas reflexões arendtianas, aqui introduzido, coopera para a defesa de uma dupla função da alegada
exemplaridade de Jaspers desenvolvida no terceiro capítulo desta tese: uma de potencial subversão
individual aos domínios totais; e outra de prática que alimenta o processo e a cultura democráticos.
60 JASPERS, K. “Mi camino a la filosofía”. In: Discursos y Ensayos, p. 238. 61 Idem. 62 ARENDT, H. “Karl Jaspers: uma laudatio”. In: Homens em tempos sombrios, pp. 93-94, grifos meus.
31
O primeiro ponto, então, quer demonstrar que o intenso diálogo da autora com o dois-em-um
platônico, no sentido de compreender a atividade humana do pensamento enquanto engajamento
reflexivo interno e silencioso de si para consigo mesmo, de modo a capacitar os homens a elegerem a
companhia que querem ser para si mesmos, remete-se instantânea e explicitamente ao daímon
socrático, mas, se analisado mais de perto, liga-se também à pessoa de Jaspers. Isto porque, diante do
espaço público organizado pela legalização dos crimes hitleristas, a “emigração interna”63 jasperiana
encontrou na vida oculta do pensar um esconderijo contra os ataques ideológicos nazistas e, dessa
forma, ele encarna o papel subversivo e ético que a capacidade de pensamento possui nos termos
arendtianos – que seria o de “dizer não” a determinadas condutas que colocariam em risco o não
contradizer a si mesmo, ou a convivência harmoniosa consigo mesmo. Jaspers simboliza, para ela, a
luminosidade em tempos sombrios, pois a recusa em aderir ao regime nazista se tornou patente e,
assim, pelo mero contraste, a sua moralidade foi forçada a aparecer aos outros mesmo sem realizar
nada publicamente. O resultado desse primeiro apontamento também é duplo. Por um lado, além de
Sócrates, Jaspers é um modelo ideal do “pensar” não filosófico, não profissionalizado, que aparece em
público pela concepção arendtiana de liberação do juízo, ou seja, através da imagem da boa
deliberação. A exemplaridade jasperiana oferece elementos para a compreensão daquilo que conecta
as capacidades do pensar e do julgar em Arendt, pois em “situações-limite”, “em tais emergências,
resulta que o componente depurador do pensamento [...] é necessariamente político”64. De quebra, por
outro lado, por ser a expressão antípoda das ações totalitárias, esse modelo diminui o fôlego das críticas
que enxergam em Arendt certa nostalgia helênica ou determinada relutância moderna65, pois, afinal,
não é preciso voltar necessariamente à democracia grega para encontrar exemplos de virtudes públicas
não totalitárias nos textos da autora. Contudo, esse primeiro momento, em que trato da exemplaridade
de Jaspers, vincula-se e se orienta apenas ao que Arendt denomina por “resultados negativos”66 de sua
discussão moral centrada no self, ou na condição do impedimento de praticar o mal – algo que ela
detecta no critério de funcionamento da consciência daquelas pessoas que disseram “não” aos crimes
63 JASPERS, K. apud KOHLER, L.; SANER, H. Hannah Arendt Karl Jaspers Correspondence 1926-1969, p. vii. 64 ARENDT, H. A Vida do Espírito, p. 215. 65 Cf, por exemplo, SULLIVAN, O’. “Hannah Arendt: a nostalgia helênica e a sociedade industrial”. In: Filosofia
Política Contemporânea; BENHABIB, S. The reluctant modernism of Hannah Arendt; e HABERMAS, J. “Hannah
Arendt’s Communications Concept of power”. In: Hannah Arendt: Critical Essays. No caso específico de Habermas,
a crítica se dá via o conceito arendtiano de poder, o qual, segundo o autor alemão, não consegue se desprender
historicamente da constelação grega clássica (p. 214). Benhabib, por seu turno, não compartilha da noção que atesta
a suposta melancolia de Arendt diante de uma modernidade que representa a perda de um passado arquétipo; mas a
autora turca não deixa de salientar que a herança dos cursos e das aulas heideggerianas deixaram a marca da Grécia
Clássica nas preocupações da autora judia, o que faria Arendt ser “relutante” com determinadas pautas mais modernas. 66 ARENDT, H. “Algumas questões de filosofia moral”. In: Responsabilidade e Julgamento, p. 188.
32
nazistas. Será possível afirmar, no fim das contas, que o “dois-em-um” jasperiano só foi
procedimentalmente realizado por ter sido acompanhado da mentalidade alargada. Ou seja, sugiro de
modo geral que toda escolha de companhia de si consigo mesmo – ainda que seja em condições
políticas cujos espaços públicos estejam obscurecidos – depende o mínimo que seja de alargamento
espiritual, pois ninguém tem acesso a modelos de escolha, para julgar sobre, caso a imaginação
individual já não esteja povoada por tipos de conduta específicos. Em 1965, no curso mais completo
que já ministrou sobre o assunto, Algumas questões de filosofia moral, Arendt diz: “Julgamos e
distinguimos o certo do errado por termos presentes em nosso espírito algum incidente e alguma
pessoa, ausentes no tempo ou no espaço, os quais se tornaram exemplos. Há muitos desses exemplos.
Podem estar no passado remoto ou entre os vivos [...]”67. É na discussão sobre a escolha de exemplos
– “o ‘andador’ (go-cart) de todas as atividades de julgamento”68 – que as capacidades do pensamento
e do juízo se cruzam, para Arendt, e se revestem de valor não apenas político, mas fortemente ético,
de condutas morais individuais. Nesse aspecto, faço coro a um incômodo de Bethania Assy, em Ética,
Responsabilidade e Juízo em Hannah Arendt, que diz: “Ainda não tomada devidamente a sério por
parte substancial de seus comentadores, essa reiterada indagação da autora nos escritos de 1960 nos
confronta com o constante pleito acerca da escolha de nossa ‘companhia entre homens, entre coisas e
entre pensamentos, tanto no presente quanto no passado’”69. Trabalho a questão por meio de Jaspers.
A partir disso, o segundo ponto desta proposta interpretativa expande-se para além do critério
da negatividade na moral arendtiana e, por meio da atividade da mentalidade alargada da pessoa de
Jaspers, discuto a importância de um procedimento espiritual afirmativamente político. Isto é, de como
o exercício do pensamento representativo em Arendt se relaciona com a realização existencial de seu
ex-professor e ganha contornos com a postura cidadã jasperiana, de modo que a abertura mental e
dialógica com os outros também constitui uma prática indispensável à manutenção da convivência
cotidiana no contexto político. E, tendo isso em conta, em uma via de mão-dupla: de como para o autor
alemão somente a afirmação da liberdade democrática propiciaria o desenvolvimento de um domínio
existencial e espiritual digno ao ser humano. “[...] só a liberdade política pode fazer, de nós, homens
autênticos [...] a democracia [...] continua sendo a única via possível para a liberdade”70. À luz disso,
há um ganho duplo em se pensar o sentido da política para Arendt com recorrência a Jaspers. Não só
porque ambos os autores a ancoram cada um a seu modo na concepção de liberdade, mas
67 ARENDT, H. “Algumas questões de filosofia moral”. In: Responsabilidade e Julgamento, p. 211. 68 ARENDT, H. “Algumas questões de filosofia moral”. In: Responsabilidade e Julgamento, p. 210. 69 ASSY, B. op. cit., p. xxxv. 70 JASPERS, K. Introdução ao pensamento filosófico, pp. 50 e 105
33
principalmente por essa via propiciar o aprofundamento e a delimitação dos papéis que Kant
desempenha na filosofia prática arendtiana. Com isso, o debate se encaminha para as implicações
políticas e éticas das atividades espirituais do pensar, do querer e do julgar nas reflexões da autora.
Em termos mais precisos, Jaspers é um exemplo – que jamais deixa de ser kantiano aos olhos de Arendt
– de condição espiritual humana necessária para a animação da liberdade existencial e política (ou
cidadã de um ponto de vista cosmopolita), singular e em convivência com a pluralidade.
O tópico 3.3 desta tese coloca em contraste dois modos da recepção arendtiana sobre os
conceitos morais de Kant. O primeiro modo é de afastamento crítico e se dá a partir da figura de
Eichmann; a segunda forma de leitura é de concessão crítica e se oferece a partir de Jaspers. Afinal,
tanto o ex-oficial nazista quanto o psiquiatra alemão se autodeclararam, em vida, “kantianos”. No
interrogatório policial que foi referência para Arendt durante a reportagem sobre Eichmann em
Jerusalém, o então réu do processo afirma em sua defesa “de repente, com grande ênfase, que tinha
vivido toda a sua vida de acordo com os princípios morais de Kant”71. Ora, apesar do absurdo
incontestável dessa afirmação, Arendt a utiliza para colocar em xeque a hipótese kantiana da
radicalidade do mal juntamente com grande parte do aparato conceitual que a reveste, como o valor do
“dever” – ou da obrigação moral – nas relações humanas e, ainda, a influência das inclinações naturais
dos homens enquanto móbeis que explicam a existência da maldade a partir da lógica da tentação. Em
um ponto oposto, contudo, Jaspers diz ser um daqueles kantianos que não se limitam às categorias do
autor de Königsberg, mas “que, após refletirem, continuam o caminho com Kant”72. Nesse sentido,
almejo compreender de que modo Arendt, por meio da análise das atividades espirituais, posiciona-se
nessa discussão ética ao combater o que se poderia denominar de excessos racionalistas das filosofias
morais em um contexto pós-metafísico. O debate se concentra nas seguintes definições arendtianas
sobre “Thinking, Willing and Judging”: o princípio de não-contradição da atividade do pensamento
humano; o vínculo da faculdade da vontade como fonte da espontaneidade e da ação humanas; e o
critério geral da comunicabilidade exemplar da atividade do juízo.
71 ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal, p. 153. 72 Apud KOHN, J. “Evil and Plurality: Hannah Arendt’s way to the life of the mind”. In: Hannah Arendt twenty years
later, p. 161. Cf. também: DUARTE, A. “A dimensão política da filosofia kantiana Segundo Hannah Arendt”, p. 109.
34
Partes I e II: O mentor e amigo kantiano da garota trácia – a disputa por uma anedota
No segundo capítulo de A Vida do Espírito, com finalidade crítica e imagética, Hannah Arendt
recupera a famosa anedota que conta sobre o tombo de Tales no poço: enquanto o antigo filósofo grego
observava os movimentos celestes, caiu no buraco e, ao propiciar tal cena, restou-lhe apenas ouvir a
consequente e inevitável gargalhada de uma camponesa trácia que o acompanhava em sua caminhada.
Muito ansioso por ser conhecedor dos mistérios das coisas dos céus, a Tales “permaneciam escondidas
as que se encontravam diante do seu nariz e sob os seus pés”73, teria dito a criada ao seu senhor. Essa
singela historieta, ao ser relatada pela primeira vez por Platão, no diálogo Teeteto, passa a escancarar
o medo secreto e enrustido dos filósofos de serem expostos ao ridículo em função de suas preocupações
pouco naturalizadas ao senso comum, afinal, na frase do personagem Sócrates: “Qualquer pessoa que
dedique sua vida à filosofia está vulnerável a esse tipo de escárnio (...). Toda a ralé se juntará à
camponesa, rindo dele. (...) pois, em seu desamparo, ele parece um tolo”74. Para Arendt, a seriedade
com a qual Platão comenta essa atitude da “decidida e espirituosa rapariga da Trácia”75, justamente por
aquele temer “o ridículo que há em todo o riso”76, ecoou na tradição do pensamento ocidental como
uma pretensa necessidade que os filósofos têm de abandonar o campo dos assuntos humanos a fim de
evitar constrangimentos públicos – mesmo que isso lhes custe o senso de humor. Assim instaurava-se,
sobretudo após o evento emblemático do julgamento e da morte de Sócrates, diz a autora, uma
acentuada demarcação entre o modo de vida dos homens em comunidade e o modo de vida do filósofo
em solitude, este que passa a compreender o âmbito político como um hospício ao qual impor ordem77.
Contudo, nessa linha de raciocínio exemplificada pelo conto sobre Tales, o mais curioso é que Arendt
apresenta Kant como uma exceção a essa e várias outras posturas tradicionais que caracterizam a
história da filosofia. “[...] singularmente livre de todos os vícios especificamente filosóficos [...] Kant
parece ter sido um caso único entre os filósofos: revelou-se suficientemente seguro para juntar-se ao
riso do homem comum”78. A partir dessas discussões é possível colocar em disputa argumentativa
algumas fronteiras significativas e ressignificativas dessa anedota, com o esclarecimento dos motivos
73 PLATAO apud HEIDEGGER, M. Que é uma coisa? Doutrina de Kant dos princípios transcendentais, p. 15. 74 PLATAO apud ARENDT, H. A Vida do Espírito, p. 101. 75 PLATAO apud HEIDEGGER, M. Que é uma coisa? Doutrina de Kant dos princípios transcendentais, p. 15. 76 ARENDT, H. A Vida do Espírito, p. 101. 77 Cf. ARENDT, H. “O recente interesse pela política no pensamento filosófico europeu”. In: A dignidade da política,
p. 74. 78 ARENDT, H. A Vida do Espírito, p. 101.
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pelos quais Arendt pode ocupar, metaforicamente, a posição da garota trácia perante a tradição
filosófica, num sentido não pejorativo, ao lado de Kant e, por tabela, junto à teoria jasperiana.
Na introdução do livro The Thracian maid and the professional thinker, como o próprio título
já deixa claro, Jacques Taminiaux estabelece uma criativa reconfiguração dessa estória que envolve os
confins da filosofia. Ao narrar sobre a “história de uma ironia”, o autor aproxima a imagem de Tales à
postura do “pensador profissional”, que também seria representada por Heidegger e, por conseguinte,
demarca a posição de Arendt com bases na relação ao mesmo tempo conflituosa e irônica que ela
possui com o seu mestre de Freiburg. Segundo a leitura de Taminiaux, dois pontos são fundamentais.
Primeiro, o fato de que Heidegger, no curso Que é uma coisa?, ministrado em 1935 e publicado em
1962, o qual Arendt não menciona diretamente, retoma a anedota de Tales na mesma esteira da
interpretação platônica, com condescendência ao personagem do filósofo “que não necessita da ‘ralé’
para informá-lo sobre sua tolice”79. E, além disso, o fato de que o eventual senso de humor arendtiano
sobre essa temática é melhor compreendido pela constatação de uma gradual alteração no trato
individual da autora com Heidegger, que se alterna de uma fascinação intelectual para um sentimento
subsequente de amargura80, e isso refletiria o panorama maior da autocrítica da autora com a própria
atividade filosófica. Sem tornar o processo analítico dessa anedota muito rigoroso, a recepção de
Taminiaux permite avançar um pouco mais nessas interconexões, para além daquilo que ele próprio
delineia. Afinal, reverter as perspectivas do modo de contar a estória e colocar Arendt, enquanto uma
pensadora, no lugar da outra personagem (a garota que ri), faz com que a empatia sobrevalorizada
desde Platão ao personagem Tales seja deslocada à camponesa Trácia, que, ao contrário do famoso
pensador de Mileto, nem nome e nem história parece possuir e cuja voz foi originalmente hostilizada
pela tradição filosófica. Ora, esse exercício se reveste de importância na medida em que se percebe
que uma vertente da educação filosófica de Arendt a preparou para lidar muito mais com a perspectiva
da Trácia do que propriamente com a da Grécia. Isto é, não apenas o descompasso diante das teorias
heideggerianas é crucial para ressignificar o papel de Arendt nesse contexto, mas também a persistente
afirmação que a autora faz da defesa jasperiana de que há necessidade de comunicação filosófica com
o senso comum, pois, para Jaspers, por mais claudicante que possa parecer esse contato, “é notório que
não se pode filosofar sem conviver na realidade do mundo, sem fazer algo”81. Quando resenha sobre a
vida do Papa João XXIII, em Homens em Tempos Sombrios, a título de curiosidade, Arendt comenta
79 ARENDT, H. A Vida do Espírito, p. 101. 80 Cf. TAMINIAUX, J. The Thracian maid and the professional thinker: Arendt e Heidegger, p. 02. 81 JASPERS, K. “Mi camino a la filosofía”. In: Balance y Perspectiva (discursos y ensayos), p. 239.
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que foram as perguntas simples de uma “criada romana”82 que inspiraram-na a compreender e escrever
a respeito da importância política daquele personagem, que ocupara o Trono de S. Pedro de 1958 a
1963. Desse ponto de vista, se Kant é a única exceção à regra de incompreensão filosófica a respeito
da serva Trácia, como afirma Arendt, é importante dizer que a legitimidade kantiana de Jaspers começa
nesse aspecto. Discuto a respeito disso a seguir, para além do que realizou Taminiaux, a partir de um
breve comentário sobre a utilização da anedota de Tales por parte de Heidegger.
Ao iniciar o curso Que é uma coisa?, Heidegger diz que esta antiga pergunta, repetidamente
colocada no caminho fundamental do pensamento metafísico, “deve determinar-se como uma daquelas
de que as criadas se riem”83. Logo em seguida, com o pano de fundo da anedota sobre a camponesa
Trácia enquanto origem histórica dessa interrogação filosófica em particular, o autor alemão adiciona
o seguinte trocadilho: "E uma verdadeira criada deve ter sempre qualquer coisa de que se possa rir”84.
É inevitável que pulse nesta passagem alguma coisa similar com o livro X da República e com o livro
VII das Leis de Platão, nos quais a comédia e o riso são rechaçados pela seriedade da verdade filosófica,
à qual caberia estabelecer os critérios para a constituição de “uma cidade bem governada”85. Isto é,
nenhum desses dois pensadores profissionais citados se juntam à gargalhada da garota. Em termos
mais precisos, como antecipa Taminiaux, a leitura heideggeriana da estória entre o filósofo e a pessoa
comum frisa ainda mais a distância entre os personagens envolvidos, principalmente no sentido de que
à sobriedade taciturna filosófica não se misturam a indiscrição e o falatório da cotidianidade. Heidegger
complementa sua apresentação ao afirmar agora que a “filosofia é aquele modo de pensar [...] acerca
do qual as criadas necessariamente se riem”86; e, não obstante, para evitar muitos risos com a sua
própria ironia, faz questão de finalizar assim: “Esta determinação conceitual da filosofia não é uma
mera brincadeira, mas deve ser meditada. Oportunamente, faremos bem em nos recordarmos de que,
no decurso do nosso trajeto, talvez nos aconteça cair num poço, de que não consigamos, durante muito
tempo, encontrar o fundo”87. Pois bem, ainda que Heidegger contextualize sua abordagem a partir das
diferenças entre a atitude própria da mentalidade científica (que acessa seus objetos imediatamente e
que está ligada ao modo de pensar cotidiano), por um lado, e a atitude própria da filosofia (que sempre
opera deslocamentos e desorientações, colocando em pauta questões como “que é uma coisa?”), por
82 ARENDT, H. “Angelo Giuseppe Roncalli: um Cristão no Trono de S. Pedro de 1958 a 1963”. In: Homens em
Tempos Sombrios, p. 73. 83 HEIDEGGER, M. Que é uma coisa? Doutrina de Kant dos princípios transcendentais, p. 15. 84 Idem., grifo meu. 85 PLATÃO. A República, p. 469. 86 HEIDEGGER, M. Que é uma coisa? Doutrina de Kant dos princípios transcendentais, p. 15. 87 HEIDEGGER, M. Que é uma coisa? Doutrina de Kant dos princípios transcendentais, p. 15.
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outro lado, restaria talvez questionar com Arendt “se a filosofia de Heidegger não tem sido geralmente
levada muito a sério, simplesmente porque lida com as coisas mais sérias”88. Ao advertir sobre o perigo
de “cair no poço” que todo filosofar possui intrinsecamente à sua própria atividade, talvez Heidegger
estaria admitindo, também, com autocrítica, o perigo da adesão política e ideológica por parte daqueles
que filosofam. De qualquer modo, parece haver uma pequena – porém importante – distinção entre a
recepção heideggeriana da anedota em questão e a precursora recepção platônica. No Teeteto, a
aparente cólera de Platão inverte o sentido do gracejo da mulher comum: o que era para ser um
comentário inocente, transforma-se em um insulto pessoal que se estende a uma determinada classe e,
consequentemente, a estória é esvaziada do seu caráter humorístico. No caso de Heidegger não há
irritação, cólera, e nem inversão de sentido do fato: a metáfora é explicada ao ser submersa nos próprios
conceitos teóricos do pensador e, desse modo, o senso de humor (comum) mais original e palpável da
narrativa também se perde, justamente por ser teorizado.
É importante ressaltar que quando Arendt narra essa anedota em A Vida do Espírito o que está
em jogo para ela é demonstrar que há uma luta interna a todo filósofo, que se traduz em uma disputa
entre pensamento e senso comum, pois é “o fato de ser ele ‘um homem como você e eu [...] que o torna
consciente de estar ‘fora de ordem’ quando se empenha em pensar. Ele não está imune à opinião
comum, pois, afinal, compartilha a ‘qualidade do ser comum’ [commonness] a todos os homens”89.
Isto quer dizer que a mania persecutória que os filósofos têm em relação à comunidade e às mais
diversas opiniões componentes do espaço público, como se fosse necessário levantar uma vigília
suspeitosa perante as reais intenções da multidão de infamar e prejudicar a atividade filosófica, não
encontra sustentação na realidade histórica. Do ponto de vista arendtiano, assim como do ponto de
vista jasperiano, o senso comum não é, e nem será, exterior ao próprio homem que reflete
filosoficamente. É por isso que a autora, ao contar a estória da garota trácia, não assume os preconceitos
platônicos, pois os exercícios de pensamento político arendtiano, como ela mesma diz, não prescindem
“da concretude de acontecimentos [...] e meu pressuposto é que o próprio pensamento emerge de
incidentes da experiência viva e a eles deve permanecer ligado, já que são os únicos marcos por onde
pode obter orientação”90. Existe, portanto, um paralelo (que se tornará uma imbricação) entre o modo
como Arendt narra uma estória e o modo como ela compreende um fenômeno político, de sorte que
em ambos os casos permanece a expectativa de reconciliação dos homens com a realidade, para que se
88 ARENDT, H. “O que é a filosofia da Existenz”. In: A Dignidade da Política, p. 180 (nota de rodapé 9). 89 ARENDT, H. A Vida do Espírito, p. 100. 90 ARENDT, H. “Prefácio: A quebra entre o passado e o futuro”. In: Entre o passado e o futuro, p. 41.
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sintam em casa e em paz com o mundo. “Todas as mágoas são suportáveis se as colocamos em uma
estória [story] ou contamos uma estória sobre elas”91 diz a epígrafe que abre o principal capítulo de A
Condição Humana e que indica o caráter narrativo, espontâneo, intersubjetivo e plural das ações
humanas, bem como a função redentora daquilo que pode ser comunicado entre os homens. Como uma
boa “contadora de estórias”, ao estilo da escritora dinamarquesa Isak Dinesen (cujo significado do
nome é: “aquele que ri”92), Arendt percebe que “o contar estórias revela o sentido sem cometer o erro
de o definir, suscita o assentimento e a reconciliação com as coisas tais como são na realidade”93. Ou
como ela diz em A Condição Humana: “Aquilo que o contador de estórias narra deve necessariamente
estar oculto para o próprio ator, pelo menos enquanto este último estiver empenhado no ato ou enredado
em suas consequências, pois, para o ator, a significação do ato não está na estória que dele decorre [...]
não é o ator, e sim o contador de estória que percebe e ‘faz’ a estória”94. É também desse aspecto
específico que a prosa filosófica de Arendt está a um mesmo tempo distante tanto de Platão quanto de
Heidegger95, pois o ato de compreender em Arendt é profundamente devedor não apenas da faculdade
de pensamento – esta que os filósofos tomaram como profissão –, mas também da estreita relação com
as capacidades humanas da imaginação e do juízo. Diferentemente da fantasia, diz a autora, “A
imaginação, ao contrário [...] ‘não passa de um novo nome para... a visão mais clara, a amplidão de
espírito, / e para a Razão em seu humor mais exaltado”96. A seguinte passagem depõe sobre a leveza
do modo de pensamento, de narrativa e de compreensão por parte de Arendt:
Somente a imaginação nos permite ver as coisas em suas perspectivas próprias;
só ela coloca a uma certa distância o que está próximo demais para que possamos
ver e compreender sem tendências ou preconceitos; e só ela permite superar os
abismos que nos separam do que é remoto, para que possamos ver e compreender
tudo o que está longe demais como se fosse assunto nosso. Esse ‘distanciamento’
de algumas coisas e aproximação de outras pela superação de abismos faz parte
do diálogo da compreensão, para cujas finalidades a experiência direta estabelece um contato próximo demais e o mero conhecimento ergue barreiras artificiais.
Sem esse tipo de imaginação, que na verdade é compreensão, jamais seríamos
capazes de nos orientar no mundo. Ela é a única bússola interna que possuímos97.
91 ARENDT, H. A Condição Humana, p. 219. 92 ARENDT, H. “Isak Dinesen”. In: Homens em tempos sombrios, p. 115. 93 ARENDT, H. “Isak Dinesen”. In: Homens em tempos sombrios, p. 126. Alteração na tradução minha. 94 ARENDT, H. A Condição Humana, p. 240. 95 É interessante notar que no §2 de Ser e Tempo (em um contexto diferente, portanto, mas que vale apenas a menção)
Heidegger cite O Sofista de Platão para afirmar que “o primeiro passo filosófico na compreensão do ser consiste em
não contar estórias” (HEIDEGGER, M. Ser e Tempo, p. 41). 96 ARENDT, H. “Compreensão e política”. In: A Dignidade da Política, p. 53, grifo meu. 97 ARENDT, H. “Compreensão e política”. In: A Dignidade da Política, p. 53, grifo meu.
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Qualquer juízo de sentido retirado de uma estória deveria emergir da própria narrativa,
portanto, que jamais se encerra em uma perspectiva apenas. Pois, para Arendt, política e narrativamente
falando, a realidade mundana “só vem a ser se existem perspectivas; só existe como ordem de coisas
mundanas se é vista ora de um jeito, ora de outro, a qualquer dado momento”98, e que, nesse contexto,
dissolve-se quando apreendida somente sob um aspecto ou quando não se torna objeto de diálogo e de
imaginação. “Nenhuma filosofia, nenhuma análise, nenhum aforismo, por muito profundos que sejam,
podem comparar-se, na intensidade e na riqueza de sentidos, a uma história bem contada”99; ou, em
outra passagem: “Todo relato feito pelos próprios atores, ainda que, em raros casos, constitua versão
fidedigna de suas intenções, finalidades e motivos [...] nunca se equipara à sua estória em significância
e veracidade”100. Seguindo esse raciocínio, esta tese de doutorado incide no pensamento político e
moral arendtiano sob o ângulo da filosofia da existência de Jaspers; e, nesse movimento específico,
acrescenta-se aqui um novo personagem – ou um novo olhar imaginativo – à anedota-narrativa guia
desses apontamentos e também ao enfoque dos estudos sobre a obra de Arendt, que seria: o professor
kantiano da garota Trácia. Em algumas entrevistas publicadas e em várias correspondências distintas
enviadas a Jaspers, por exemplo, a autora reitera que ele era o único professor que ela reconhecia, “o
maior educador de todos os tempos”101, alguém que, nas expressões dela, retirou-a filosófica,
intelectual e paternalmente da qualidade de órfã102. Sem quaisquer possibilidades de dúvidas, o que
mais impressionava Arendt era a capacidade da razão comunicativa jasperiana, o fato de que ele se
expressava “sem reservas”, com desenvoltura e liberdade hábeis para fazer do pensamento algo
experimental103, sem procurar por determinados resultados, mas de modo a esclarecer os mais variados
temas e objetos de exame em seus sentidos também variados.
No primeiro capítulo do texto intitulado Einführung in die Philosophie, traduzido como
Iniciação Filosófica, Jaspers é mais um dos autores que se apropriam da anedota da garota trácia ao
afirmar que a única moral dessa estória, que resta à filosofia compreender, seria: a necessidade de
comunicação, sem quaisquer discriminações, com todos os homens e todas as mulheres. Em outras
palavras, mesmo que diante dos valores da vida cotidiana, diante do equilíbrio do senso comum, a
98 ARENDT, H. “Introdução na política”. In: A promessa da política, p. 237. 99 ARENDT, H. “A Humanidade em tempos sombrios: sobre Lessing”. In: Homens em tempos sombrios, p. 33. 100 ARENDT, H. A Condição Humana, p. 240. 101 KOHLER, L; SANER, H. Hannah Arendt Karl Jaspers Correspondence 1926-1969, Carta 69. Cf. também cartas
número 140 e número 216. 102 Cf. “O que resta? Resta a língua: uma conversa com Gunter Gaus”. In: Compreender: formação, exílio e
totalitarismo, p. 52. “E, se posso dizer assim – cresci sem pai –, aquilo [a razão em Jaspers] me educou”. 103 Cf. “Sobre Hannah Arendt”. In: Revista Inquietude, p. 162.
40
filosofia não consiga justificar-se pelo espectro de sua utilidade, ainda assim não compete aos filósofos
lutar para impor, provar ou demonstrar a importância do pensamento filosófico, mas, para Jaspers, a
filosofia “pode comunicar-se”104. O desafio, portanto, para usar os termos arendtianos, é abandonar a
torre de marfim enquanto morada do pensador profissional e compartilhar da linguagem e do diálogo
com os outros. Segundo Arendt, é justamente a linguagem popular que dá início ao processo de
compreensão humana, seja uma compreensão preliminar ou filosófica. O senso comum “deve sempre
permanecer como conteúdo da verdadeira compreensão, para não se perder em meio às nuvens da mera
especulação – um perigo sempre presente”105. Para Jaspers, a filosofia “não opõe resistência quando é
repudiada, não triunfa quando é atendida. Vive equânime no fundo de humanidade que permite que
todos se liguem com todos”106. Não se trata de fazer o método filosófico aprazível a todos os ouvidos,
mas, o que é diferente, realizar filosofia em comunicação. “A razão que não quer comunicar-se já não
é ‘racional’”107. Há dois pontos que merecem destaque nesses comentários entre Arendt e Jaspers.
Primeiramente, a perda do senso comum atestada por Arendt em diferentes textos, sobretudo em
Compreensão e Política, desemboca na perda da capacidade mínima de compreensão entre os homens,
aí incluso os filósofos, e na completa desorientação diante dos fenômenos mundanos que não são mais
subsumidos em significados gerais, o que gera uma realidade não mais diluída em nossos sentidos
comuns. Isso explica por que Arendt diz, então, que “sob muitos aspectos, isso ganhou a aparência de
uma crescente estupidez”108. Na ausência da atividade de julgamento, em seu modo determinante, que
nada mais é do que a subsunção de algo particular compreendido sob uma regra geral, o que ocupa o
seu espaço é o que Kant “definiu com tanta eloquência como ‘estupidez’, ‘uma doença incurável’”109.
No lugar de senso comum, tem-se, em um mundo desordenado à capacidade compreensiva, estupidez
em comum – “e isto não significa que se trata de um sintoma da sociedade massificada ou que as
pessoas ‘inteligentes’ estejam poupadas dessa doença”110. À postura kantiana de que não é raro
encontrar, entre a erudição, homens obtusos aos quais falte o grau conveniente de juízo111, Arendt
104 JASPERS, K. Iniciação Filosófica, p. 21. 105 ARENDT, H. “Compreensão e política”. In: A Dignidade da Política, p. 43. 106 JASPERS, K. Iniciação Filosófica, p. 21. 107 ARENDT, H. “O interesse pela política no recente pensamento filosófico europeu”. In: A Dignidade da Política,
p. 86. 108 ARENDT, H. “Compreensão e política”. In: A Dignidade da Política, p. 45. 109 ARENDT, H. “Compreensão e política”. In: Compreensão: Formação, exílio e totalitarismo, p. 336. Cf. também
KANT, I. Crítica da Razão Pura, B 172-3, na parte sobre “A faculdade de julgar transcendental em geral”, na qual
Kant diz que a faculdade de julgar é um talento especial, um dom da natureza, que não pode ser ensinado, mas apenas
exercido. “Eis porque ela é o cunho específico do chamado bom senso, cuja falta nenhuma escola pode suprir”. 110 ARENDT, H. “Compreensão e política”. In: A Dignidade da Política, p. 45. 111 Cf. KANT, I. Crítica da Razão Pura, nota de rodapé B 173.
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adiciona que a estupidez articulada é ultrajante e que, “em meio à intelligentsia, pode-se até mesmo
dizer que quanto mais inteligente um indivíduo vem a ser, mais irritante é a estupidez que compartilha
com todos os outros”112. Segue-se disso o segundo ponto de relevância aqui elencado. O apelo
jasperiano à comunicabilidade, como critério de realização da racionalidade filosófica e das relações
existenciais, é uma tentativa de dizer não apenas que os homens existem em comunicação, mas que
não há processo de significação intelectual à realidade sem aliança com o senso comum. E, ao mesmo
tempo, tal apelo é uma releitura da maiêutica socrática. De acordo com Arendt, Jaspers retira o caráter
pedagógico e a prioridade questionadora do filósofo presentes no método de Sócrates, e, desse modo,
prepara o terreno para horizontalizar a importância de todos os participantes em um diálogo e inibe a
necessidade de se encontrar resultados no processo do filosofar. “A comunicação é a forma
extraordinária da inteligência filosófica”113 e esta, sem se firmar por aquilo que conecta e concerne a
todos os homens, não passa de “tolice elaborada”. Na introdução de sua primeira obra que lida com
temas explicitamente filosóficos, Psicologia das Visões de Mundo, de 1919, Jaspers já se afirmava
distante das expressões de pensamentos que se colocam superiores a outras, pois “com isso não temos
nada em comum”114. O autor alemão assumia que o filosofar era uma via de acesso à realização
existencial humana, mas somente na medida em que favorecesse o processo dialógico entre os homens.
Nesse sentido, o filosofar não poderia almejar a posição do educador, do professor, pois na relação
professor-aluno já estaria presumida a superioridade ou autoridade de uma parte em relação à outra.
Compreendo a relação filosófica entre Jaspers e Arendt a partir dessa chave de leitura. Primeiro:
relaciono-os sem negar-lhes autonomia de pensamento, sem sugerir qualquer reducionismo de uma
teoria à outra, e, no caso específico arendtiano, para não estabelecer um paralelo (sequer de oposição)
com Richard Wolin, sem a intenção de apresentá-la como uma mera discípula ou suposta “criança de
Jaspers”115, como se Arendt dependesse de alguma filiação para alcançar a maioridade intelectual. E,
segundo: pretendo delinear o senso comum como a força provocativa e o interlocutor privilegiado das
reflexões filosóficas de ambos os autores, seja de caráter político ou existencial.
Na tônica dessa introdução até o momento, é possível contextualizar, por fim, a concepção de
Arendt de que o diálogo humano necessita do prazer e da alegria de compreender o outro, de se abrir
a outrem, de oferecer ouvidos – algo que não pode ser confundido com empatia generalizada ou
entusiasmo sentimental ubíquo. “A alegria, ao invés da tristeza, é faladora [...] Poderíamos dizer que
112 ARENDT, H. “Compreensão e política”. In: A Dignidade da Política, p. 45, grifos da autora. 113 ARENDT, H. “O que é a filosofia da Existenz”. In: A Dignidade da Política, pp. 33-34. 114 JASPERS, K. Psicología de las concepciones del mundo, p. 22. 115 Cf. WOLIN, R. Heidegger’s children: Hannah Arendt, Karl Löwitt, Hans Jonas, Herbert Marcuse.
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o diálogo se afina pelo diapasão da alegria”116. O interesse pela comunicação é obviamente carregado
por afetos ou sentimentos, como a amizade política e o respeito humano, que envolvem o espaço entre
(in-between) os homens e que não são fomentados pela solidão ou pela completa hostilidade a alguém.
Ao comentar a respeito do escritor e pensador Lessing, em um texto que dá início à obra Homens em
Tempos Sombrios, a autora assume que o riso é também uma forma que os seres humanos têm de
encontrar um lugar no mundo, um modo de se reconciliarem com os acontecimentos mundanos, até
mesmo quando os fatos são trágicos, pois é objeto de diálogo e humaniza o mundo em significados
intercambiáveis. “Tudo quanto não possa ser objeto de diálogo – o verdadeiramente sublime [...]
horrível ou o misterioso – poderá encontrar uma voz humana através da qual se manifesta no mundo,
mas não é exatamente humano. Só falando daquilo que se passa no mundo e em nós próprios é que o
humanizamos”117. É no mínimo estranho que dentre a maioria dos filósofos, como diz Arendt, seja
justo Kant (autor acusado de abstração insensível em prol da firme racionalização do dever moral
humano, por exemplo) quem dialogue filosoficamente também do ponto de vista do senso comum. No
segundo capítulo do escrito Sonhos de um visionário explicados por sonhos da metafísica, em sintonia
com a história da camponesa trácia, Kant dispensa bastante ironia ao afirmar que não inveja os
metafísicos que, segundo ele, saberiam narrar coisas maravilhosas sobre as regiões mais longínquas,
mas que teme por eles não perceberem que “aqui na terra [são] bobo[s]”118 – característica que o
simples cocheiro do astrônomo dinamarquês Tycho de Brahe já havia testemunhado119.
Para autores como Kant e Jaspers, exceções à tradição do pensamento ocidental da perspectiva
arendtiana, em suma, o trabalho filosófico deve ser suscetível de realização e comunicação em público
e, do mesmo modo que os assuntos políticos não podem ser relegados somente aos pretensos “políticos
profissionais”, a capacidade de pensar não é uma exclusividade da filosofia que estaria resguardada a
116 ARENDT, H. “A Humanidade em tempos sombrios: sobre Lessing”. In: Homens em tempos sombrios, p. 25. 117 ARENDT, H. “A Humanidade em tempos sombrios: sobre Lessing”. In: Homens em tempos sombrios, p. 36. 118 KANT, I. “Sonhos de um visionário explicados por sonhos da metafísica”. In: Escritos pré-críticos, p. 176. No
final da introdução de seu livro sobre Arendt e Heidegger, já citado nesta seção, Taminiaux conta a respeito de uma
curiosa experiência pessoal que teve com Heidegger e, à luz dessa recordação, coloca-o em oposição às teorias
kantianas. O autor comenta sobre um seminário de Heidegger, em 1973 na cidade de Freiburg, ao qual tinha sido
convidado e que estava presente junto a outros ouvintes franceses. Em uma determinada exposição argumentativa, Heidegger, que estava completamente absorvido em seus pensamentos, disse repentinamente que “o turismo deveria
ser proibido” – justamente a uma plateia de turistas. Em sua digressão, Taminiaux evoca o projeto de paz perpétua de
Kant para dizer, contra o insight de Heidegger, que o direito de visitar e permanecer em um país no exterior, por um
determinado tempo, deve pertencer a todos os cidadãos do mundo (Cf. TAMINIAUX, J. The Thracian maid and the
professional thinker: Arendt e Heidegger, p. 22). 119 A história narrada por Kant nessa passagem é a seguinte: o astrônomo Tycho de Brahe, ao acreditar que conseguiria
encontrar à noite o caminho mais curto por orientação estrelar, ouviu a seguinte resposta de seu cocheiro: "Bom senhor,
podeis por certo entender muito do céu, mas aqui na terra sois um bobo” (KANT, I. “Sonhos de um visionário
explicados por sonhos da metafísica”. In: Escritos pré-críticos, p. 176).
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“pensadores profissionais”. No final das contas, é como se a reação de Jaspers ao dilema da anedota
entre Tales e a garota comum se resumisse nas suas seguintes palavras: “a filosofia da existência não
pode encontrar uma solução, senão realizar-se, segundo o impulso ocasional, na comunicação de um
ao outro”120. Essa frase pretende sintetizar, aqui, que o pensar existencial de Jaspers é a própria
realização da existência (Existenz), que se dão ambos em comunicação. Ou melhor, de que, para ele,
não há separação entre filosofar e realizar-se existencialmente no mundo entre os homens e em abertura
comunicativa universal. As duas partes desta tese, por fim, analisam tal aspecto da reflexão jasperiana
por meio da força educativa, comunicativa e democrática que se pode extrair do trato com as categorias
exemplares nas obras dos dois autores. Num primeiro plano, examino a guinada comunicativa que a
filosofia jasperiana impõe à razão prática kantiana (pois “‘o que devo fazer’ supõe como é possível a
comunicação?”121), assim, avanço para uma discussão sobre a noção de “filosofia comunicativa” que
Jaspers possui e sua relação com a formação educacional e existencial dos homens. Para Jaspers, “o
pensamento filosófico é práxis, mas uma práxis peculiar [...] não significa que se limite ao útil e
aplicável [...] a práxis é a ação interior em que chego a ser eu mesmo, é fazer patente o Ser, é a atividade
do ser si mesmo”122. Num segundo plano, por fim, coloco em prática o próprio método de pensamento
político e ético arendtiano, isto é, a metodologia de assumir o ponto de vista da representação e/ou o
ponto de vista da escolha de casos exemplares para se refletir sobre um tema123, sobre uma determinada
realidade, algo que denomino, junto a Arendt, de “método do pensamento vicário”124. Desse modo,
ainda que a pensadora não defenda o mesmo conceito de “filosofia” que Jaspers enuncia ao longo de
suas obras, entender a práxis filosófica jasperiana como um modelo exemplar de realização do
pensamento representativo – este sim que é defendido e aplicado por Arendt – transforma-se em uma
inesperada aproximação em relação à teoria arendtiana a fim de compreender as maneiras pelas quais
a autora interpreta os critérios intersubjetivos de validade dos juízos morais e políticos entre os homens.
120 JASPERS, K. Ambiente espiritual de nuestro tempo, p. 160, tradução minha. 121 JASPERS, K. Sobre mi filosofia, p. 255. 122 JASPERS, K. Sobre mi filosofia, pp. 252-253. 123 Cf. ARENDT, H. “Verdade e Política”. In: Entre o Passado e o Futuro, p. 299. 124 The Hannah Arendt Papers at the Library of Congress. Courses – New School for Social Research, New York, N.Y
– "Political Experiences in the Twentieth Century," lectures, 1968 (Series: Subject File, 1949-1975, n.d.), imagens 1
e 2 de 59. Arendt fala de “vicariously” para se referir ao seu modo de abordagem dos temas políticos.
44
PARTE I: A EXISTÊNCIA POLÍTICA
(“[...] Quão bem a sua filosofia me preparou para a política”)
45
CAPÍTULO 1: A GÊNESE DA PREOCUPAÇÃO ARENDTIANA COM A PLURALIDADE HUMANA – AS
REFLEXÕES DOS ANOS 1950 EM RETORNO À TESE SOBRE AGOSTINHO
Em um diálogo de correspondência com Heinrich Blücher, em 1º de agosto de 1952, Hannah
Arendt questiona retoricamente ao marido se caberia a Karl Jaspers a tarefa fundamental e urgente de
reestruturação da relação entre filosofia e política na contemporaneidade do pós-guerra. Ela mesma
responde à indagação em sequência: “Não, Jaspers seria esmagado entre os velhos cabeças duras [die
Plattköpfe] e os embusteiros modernos”125. Ora, o questionamento arendtiano em si já denuncia o que
viria a ser a maior preocupação da autora durante esse período estrutural de sua teoria política. A saber:
ao ter em conta que as recentes findadas dominações totalitárias – nazista e stalinista – demonstraram
o esfacelamento e a insuficiência completa dos modos tradicionais de se pensar os fenômenos políticos
e os valores morais no Ocidente, como textualmente assume Arendt desde a escrita de The Origins of
Totalitarianism126, em 1951, restaria tentar compreender tais temas sem recorrer a corrimões
conceituais. Isto significa, portanto, exercitar a capacidade de compreensão a partir de um pensamento
original e desdoutrinado que se desvencilhasse da tutela e do testamento filosóficos usuais. Para tanto,
com efeito, seria imprescindível redefinir a importância da reflexão filosófica para os assuntos políticos
à luz constante das experiências mundanas que marcaram o mundo no qual foi possível a existência do
horror totalitário, por exemplo. Desse modo, com o mesmo teor da dúvida sobre o papel de Jaspers
nesse projeto de pensamento político contemporâneo, porém formulada de maneira mais estendida,
encontra-se a interrogação final de Arendt ao se referir sobre “o atual interesse pela política”127 por
parte da filosofia produzida na Europa durante a primeira metade do século XX. Trata-se de um texto
de conferência ministrada pela autora em 1954 na American Association of Political Science, que
125 Apud YOUNG-BRUEHL, E. Hannah Arendt: por amor ao mundo, pág. 364. Alterações minhas. 126 No prefácio à primeira edição de Origens do Totalitarismo, Arendt já anuncia os desafios epistemológicos e
históricos que os elementos constitutivos e cristalizados na dominação totalitária deixaram como herança para os filhos
do pós-guerra. Ela afirma nesse contexto: “A análise histórica e o pensamento político permitem crer, embora de modo
indefinido e genérico, que a estrutura essencial de toda a civilização atingiu o ponto de ruptura [...] essa estrutura não
autoriza antever a futura evolução do que resta do século XX, nem fornece explicação adequada aos seus horrores [...]
Este livro [...] foi escrito com a convicção de serem passíveis de descoberta os mecanismos que dissolveram os tradicionais elementos do nosso mundo político e espiritual num amálgama, onde tudo parece ter perdido seu valor
específico, escapando de nossa compreensão e tornando-se inútil para fins humanos” (op. cit., pp. 11 e 12). Essa
constatação arendtiana a respeito da ruptura totalitária com todas as tradições de pensamento ocidentais pode ser
remontada a textos anteriores, ainda que preparatórios, à publicação de Origens do Totalitarismo. Cf, por exemplo,
Abordagens sobre o problema Alemão, de 1945, In: ARENDT, H. Compreender: formação, exílio e totalitarismo, p.
137, em que Arendt alega que, desde o seu início, o totalitarismo originalmente não deve em nada a nenhuma tradição,
seja esta católica, protestante, cristã, grega ou romana. Com isso, Arendt pretende chamar atenção para o completo
caráter de novidade, sem paralelos, que os governos totais impuseram ao nosso mundo. 127 ARENDT, H. In: A dignidade da Política; In: Compreender: formação, exílio e totalitarismo.
46
discutia, entre outros assuntos, em primeiro plano, a viabilidade do pensamento filosófico naqueles
tempos. Arendt resume o seguinte desfecho nessa ocasião:
[...] o interesse pela política se tornou uma questão de vida ou morte para a própria filosofia [...] a filosofia política só pode nascer de um gesto original de
thaumadzein, cujo impulso de curiosidade e, portanto, de questionamento agora
(isto é, ao contrário dos ensinamentos dos antigos) deve se dedicar diretamente ao
âmbito dos assuntos e das ações humanas. Sem dúvida, os filósofos, com seu
consagrado interesse em não ser perturbados e sua experiência profissional com
a solidão, não estão propriamente muito bem preparados para esse gesto. Mas,
se eles nos faltarem, quem mais haveria de conseguir?128.
Neste ensaio citado, Arendt comenta que entre os pensadores alemães como Jaspers e Martin
Heidegger, ao contrário do que acontece com os nomes do existencialismo francês, o interesse pelos
assuntos públicos se mostra sutil e de difícil rastreamento. Para a autora, que vinha de uma recente
visita a Paris e a algumas cidades na Alemanha durante a primavera de 1952129, as principais vertentes
do pensamento filosófico francês (“Malraux e Camus, de um lado, Sartre e Merleau-Ponty, de
outro”130) expressavam sentido ao engajamento ativista político na medida em que, para eles, as
perplexidades filosóficas só seriam respondidas no campo da prática política. A consequência positiva
dessa postura é o tratamento explícito dado às questões políticas no cerne das obras desses autores.
Impulsionados pelas experiências do ambiente pós Segunda Grande Guerra, nas quais interpretam
severas crises humanas no seio de civilizações bem-educadas, eles refletem uma radical separação com
a filosofia acadêmica e, por conseguinte, renunciam o papel de sábio que o filósofo costuma ocupar
apartado da vida comum. Por outro lado, ao focar no contexto alemão, ainda que a ruptura dos
pensadores com o academicismo também esteja presente em menor grau pelo menos desde os anos
vinte do século passado, Arendt diz que qualquer contribuição de Heidegger ou de Jaspers à filosofia
política deveria ser procurada muito menos “nos livros ou artigos em que assumem posições explícitas
diante de acontecimentos contemporâneos”131, e mais propriamente em suas teorias filosóficas como
um todo. Isto porque, para ela, a produção eminentemente teórica deles trabalha aspectos e conceitos
politicamente mais importantes e ricos do que os textos de engajamento público de tais autores.
Todavia, de todos esses nomes, quando se pergunta sobre quem de seus coetâneos seria um pensador
128 ARENDT, H. “O interesse do atual pensamento filosófico europeu pela política”, In: Compreender: formação,
exílio e totalitarismo, pp. 460 e 462, grifos meus. 129 Cf. YOUNG-BRUEHL, E. Hannah Arendt: por amor ao mundo, pág. 339. 130 ARENDT, H. “O interesse do atual pensamento filosófico europeu pela política”, In: Compreender: formação,
exílio e totalitarismo, p. 452. 131 ARENDT, H. “O interesse do atual pensamento filosófico europeu pela política”, In: Compreender: formação,
exílio e totalitarismo, p. 456.
47
minimamente hábil para erguer uma nova filosofia política, não é sem importância que apenas o nome
de Jaspers seja cogitado realmente por Arendt, ainda que a resposta dela não seja positiva. Young-
Bruehl comenta que “por seu turno, Karl Jaspers sabia que a filosofia deveria ser reavivada e
reorientada, não cedendo mais a argumentações infrutíferas; ele tomou essa necessidade como um
desafio”132. Embora os frutos do caso específico jasperiano não fossem suficientes para alimentar todo
o âmbito filosófico, como aponta a perspectiva de Arendt, importa ao desenvolvimento desta tese de
doutorado discutir o quanto a autora considera que há uma aguda potência política nos estudos de seu
ex-orientador a respeito do “esclarecimento da existência humana”133, precisamente por se tratar de
uma existência que é realizada somente em meio à pluralidade de outros homens no mundo.
Ao introduzir suas lições sobre a Existenzphilosophie, em um curso de 1937, Jaspers afirma
que o objetivo geral dessa matéria é agarrar a realidade “por meio do caminho no qual eu, em
pensamento, lido comigo mesmo – em ação interior”134. Para começar a perscrutar o filosofar
jasperiano, é imprescindível notar que essa “ação interior”, não relegada somente aos filósofos, é a
própria prática de acesso à Existenz (Existência), este modo de ser que é pessoal e intrasferível, mas
que não é empírico, uma vez que não está dado no mundo acessível aos sentidos humanos. Pelo menos
desde 1931, na obra Philosophie, as reflexões de Jaspers se apresentam a partir de uma distinção entre
aquilo que existe empiricamente (como os mais diversos objetos e animais; o mundo e os homens135)
e aquilo que possui outras formas de existir (como a Existenz, própria a cada um de nós, homens e
mulheres, que recebe esse nome para se diferenciar da “existência empírica” à qual também
pertencemos enquanto criaturas aparentes). Dessa distinção vêm as noções jasperianas de “orientação
no mundo” e de “existência possível”: a primeira se refere à ordem dos fatos que nos circundam, à
realidade factual à qual pertencemos enquanto seres valorativos e de conhecimento; a segunda se refere
a algo inobjetivo que só pode ser esclarecido e atualizado pelo pensamento humano. A enorme empresa
teórica que Jaspers propõe, portanto, em resumo, tenta esclarecer o que seria esse existir não empírico
dos homens. Contudo, isso não seria possível sem o exame das relações entre os dois âmbitos, pois
eles não são senão na dependência um do outro. Não há acesso a uma Existenz humana isolada do
mundo sensível e sem contato com o que compõe este mesmo mundo. Não é incorreto afirmar que,
para Jaspers, as coordenadas iniciais através das quais se pensa a Existenz são: ela é no mundo e ela é
132 YOUNG-BRUEHL, E. Freedon and Karl Jaspers Philosophy, p. ix, tradução minha. 133 Apud ARENDT, H. “O que é a filosofia da Existenz”, In: A Dignidade da Política, p. 34. 134 JASPERS, K. Philosophy of Existence, p. 03, tradução minha. 135 Jaspers nomeia esse modo de ser empírico de “Dasein”. Esse tema será retomado duranteo texto desta tese. Cf, por
exemplo, o tópico 2 deste capítulo.
48
com os outros136, embora ela não seja empírica, pois, sem os fatos mundanos e sem vínculo com os
outros homens, não haveria conteúdo algum para a atualização dessa personalidade existencial. Diz o
autor: “Pois o homem se transforma em uma personalidade somente ao se ocupar das coisas e ao
produzir algo no mundo com suas atividades e atos”137. Isso significa que a Existenz é um modo
possível de ser dos homens que, somente a partir do campo de experiência mundano, encarna-se na
existência empírica que nós somos – sem se confundir com esta138. O que interessa reter, no momento,
é que as principais exigências empíricas que possibilitam o vislumbre e a realização do que o autor
denomina por Existenz se encontram nos fatos advindos e retirados das relações humanas, isto é, da
vida em distintas culturas e sociedades, das formulações e dos limites de saberes e crenças, além do
“inevitável trato político”139 entre concidadãos. Para Young-Bruehl, “política, nos termos de Jaspers,
é parte da orientação no mundo, por assim dizer, na qual nós agimos no mundo. É o espaço onde a
Existenz aparece, onde os homens se encontram e se comunicam [...] onde um mundo é criado”140.
Arendt, por certo, tinha plena consciência desse aspecto da filosofia jasperiana.
Na literatura secundária sobre a obra de Arendt é muito comum o reconhecimento da grandeza
jasperiana como uma das fontes sustentadoras da teoria arendtiana. Como exemplos, Adriano Correia
comenta de passagem que Arendt “pensava que a filosofia da comunicação de Jaspers anuncia uma
profunda abertura para a dignidade da política”141. Margaret Canovan desenvolve pontos de encontros
entre os dois autores a fim de demonstrar um “existentialism politicized”142 em Arendt, cujo modo de
refletir foi “profundamente influenciado por Karl Jaspers”143. Jerome Kohn diz que Jaspers nunca
deixou de ser um mentor a Arendt, “quer concordassem ou não sobre determinada questão”144. Gerson
Brea, em seus estudos sobre Jaspers, defende que o pensamento arendtiano é também fruto da
confrontação com a filosofia existencial e comunicativa jasperiana, e sugere sem desenvolvimentos
posteriores: “e isso desde sua tese de doutorado sobre O conceito de amor em Santo Agostinho?”145.
As editoras de Love and Saint Augustine, Joanna Scott e Judith Stark, afirmam que na trajetória
intelectual arendtiana “a orientação [de Jaspers] de afirmação da vida se sobrepõe à visão ‘rumo-à-
136 Cf. PERDIGAO, A. “A Filosofia Existencial de Karl Jaspers”. In: Análise Psicológica, p. 545. 137 JASPERS, K. Razon y Existencia, p. 118; JASPERS, K. Reason and Existenz, p. 122 e 123. 138 Cf. JASPERS, K. Filosofia, livro I, pp. 391-393. 139 JASPERS, K. Filosofia, livro I, p. 505. 140 YOUNG-BRUEHL, E. Freedon and Karl Jaspers Philosophy, p. 37. 141 CORREIA, A. Hannah Arendt e a Modernidade: política, economia e a disputa por uma fronteira, p. XIV. 142 CANOVAN, M. Hannah Arendt: a reinterpretation of her Political Thought, p. 190. 143 CANOVAN, M. Hannah Arendt: a reinterpretation of her Political Thought, p. 179. 144 In: ARENDT, H. Compreender: formação, exílio e totalitarismo, p. 18. 145 BREA, G. “Amizade e comunicação: aproximações entre Karl Jaspers e Aristóteles”. In: Revista Archai: Revista
de estudo sobre as origens do pensamento ocidental, p. 78.
49
morte’ do Dasein heideggeriano”146. Todavia, em maior ou menor grau, essas constatações e insights
interpretativos são esparsos e, por assim dizer, eclipsados pelo volume de produções que abordam no
detalhe a relação Arendt e Heidegger. Com isso em vista, a contribuição pretendida neste capítulo é
apresentar a apropriação de sentido político que Arendt faz de Jaspers em três vieses cruciais. No
primeiro tópico (1.1), ao aproximar a definição de humanidade jasperiana à progressiva centralidade
teórica que a pluralidade humana passa a receber no pensamento arendtiano do pós-guerra, o que a
colocaria em posse de um critério para refletir politicamente. No segundo tópico (1.2), ao voltar a
discussão à estrutura e aos conceitos extraídos da tese de doutorado de Arendt, de modo a destacar
como a filosofia da existência jasperiana, de feição política, cooperou para que ela encontrasse
respostas a uma suposta contradição interna no conceito de amor em Agostinho. No terceiro e último
tópico (1.3), ao compreender o eixo da filosofia da natalidade de Arendt enquanto pensamento radicado
politicamente no tempo presente, no “agora”, assim como o filosofar existencial jasperiano.
Para voltar às reflexões arendtianas em Concern with politics in recent european philosophical
thougth, então, tal escrito está em consonância com grande parte da produção teórica arendtiana
durante a década de 1950. Logo após a publicação de Origens do Totalitarismo, Arendt se envolveu
com dois projetos textuais que permaneceram inacabados, mas que deram fôlego a diversos cursos
ministrados em universidades, artigos publicados em jornais e revistas, além de amparo à escrita de
futuros livros, como A Condição Humana, Entre o Passado e o Futuro, e Sobre a Revolução,
terminados entre 1958 e 1962. O primeiro projeto não findado dessa época procurava respostas aos
motivos pelos quais o stalinismo totalitário pôde se apropriar do pensamento de Marx, e se intitulava,
inicialmente, como “Elementos totalitários no Marxismo”, mas que posteriormente se desenvolveu sob
a designação geral de Karl Marx e a tradição do pensamento político ocidental147. Nesse percurso,
Arendt assume como pressuposto que as obras de Marx marcariam o fim do modo tradicional de se
refletir sobre a política no Ocidente e, por essa razão, para compreendê-lo seria necessário definir o
seu lugar histórico na nossa tradição filosófica, iniciada desde os ensinamentos de Platão e Aristóteles
– estes autores que pautaram a primazia do abandono do filósofo diante da cidade148. Arendt se
146 SCOTT, J; STARK, J. “Jaspers, Arendt and Existenz philosophy”. In: ARENDT, H. Love and Saint Augustin, p.
198. 147 Cf. CORREIA, A. “Apresentação à nova edição brasileira”, In: ARENDT, H. A Condição Humana, pp. XX e XXI.
Cf. também KOHN, J. “Introdução”, In: A Promessa da Política, p. 07. 148 Cf. ARENDT, H. “A Tradição e a época moderna”. In: Entre o Passado e o Futuro, p. 43. Em resumo, quando
Marx, por exemplo, articula algumas proposições-chave que acompanham toda sua obra, desde os primeiros escritos
até o último volume de O Capital, para Arendt, ele está desafiando e contradizendo conscientemente algumas verdades
aceitas a partir da tradição de pensamento político ocidental. Arendt elenca e oferece como exemplos certas frases
atribuídas a Marx ou presentes em suas obras aqui e ali em diversas variantes. A começar: “O trabalho criou o homem”
50
empenha, a partir daí, a compreender a relação usualmente combativa entre o modo de ser político e o
modo de ser filosófico, isto é, em averiguar as consequências e os limites teóricos da oposição entre
pensamento e ação, ou da postura do espectador ao confrontar o palco público de atores. Assim, ela já
poderia concluir que “[n]ossa tradição [...] começou quando Platão descobriu que, de alguma forma, é
inerente à experiência filosófica repelir o mundo ordinário dos negócios humanos; ela terminou [em
Marx] quando nada restou dessa experiência senão a oposição entre pensar e agir”149. É na esteira
dessas preocupações que surge o outro projeto inconcluso da autora judia nos anos de 1950. Tratava-
se de um texto a respeito do campo de experiência básico da percepção política e que versaria, entre
outros temas, sobre a pluralidade, a liberdade e a ação humanas enquanto realidades e fenômenos
dignos do interesse e da admiração filosóficos, ainda que para isso fosse preciso prescindir da tradição
filosófica. Em suma, a proposta era comunicar às pessoas, familiarizadas ou não com o debate político,
os significados mais elementares da vida pública entre-os-homens. Daí vinha o título, originalmente
escrito em alemão, de Einführung in die Politik (Introdução na Política)150, cuja inspiração latente era
oferecer sequência ao já publicado Einführung in die Philosophie de Jaspers, uma série de doze
conferências radiofônicas pronunciadas pelo pensador alemão, em 1950, a fim de divulgar a filosofia
aos mais diversos círculos sociais. Pelo menos desde as lições sobre Razão e Existência, de 1935,
Jaspers explicitava que o seu modo de filosofar só se legitimaria se fosse “capaz de ser traduzido à
– que desafia o Deus tradicional, uma vez que pressupõe que não foi uma força divina que teria criado o homem, mas,
sim, uma atividade humana que teria proporcionado ao homem a criação de si mesmo; que também desafia o juízo
tradicional sobre o trabalho e a tradicional glorificação da razão humana, visto que o que passa a distinguir o homem dos outros animais não é mais a característica de ser definido como um animal rationale, mas como um animal
laborans, ou seja, a razão perde seu estatuto de capacidade máxima e a atividade outrora desprezada, o trabalho, passa
a conter a humanidade do homem em si mesma. Outra proposição: “A violência é a parteira de toda velha sociedade
prenhe de uma nova”, isto é, a violência seria a parteira da História, e toda a esfera da ação política seria caracterizada
pelo uso e posse de meios violentos – isso representa uma negação do logos, do discurso, como forma tradicional de
relacionamento da pólis antiga e, não obstante, transpõe a violência do posto de “último recurso vergonhoso” nos
assuntos públicos para o posto de elemento constituinte do Estado, este que seria o instrumento de uma classe
dominante opressora e exploradora. A última frase se refere à tese final sobre Feuerbach: “Os filósofos têm apenas
interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo”, que, em outros termos, para Arendt,
quer dizer que a filosofia só pode ser abolida na sua realização – isso seria uma contradição em termos para a filosofia
tradicional que, de Platão a Hegel, separa teoria, de um lado, e mundo comum, de outro lado; ou melhor, coloca o próprio plano filosófico como sendo distinto e separado da realidade comum a todos. Desse modo, portanto, “realizar
a filosofia” seria um absurdo, uma vez que isso seria como identificar o senso comum que nos guia no plano real com
o domínio das ideias no qual o filósofo se movimenta. Por essas questões determinantes, Arendt diz crer que a tradição
de nosso pensamento político, além de um começo, também possui um fim completamente definido: fim este que viria
com as teorias de Karl Marx. 149 ARENDT, H. “A Tradição e a época moderna”. In: Entre o Passado e o Futuro, p. 52. Complemento meu. 150 Datam desse período, por exemplo, as seguintes palestras e textos: “The problem of Action and Thought after the
French Revolution”, pronunciada na Notre Dame University em 1954, da qual foram extraídos os textos editados
“Filosofia e Política” (ARENDT, H. A Dignidade da Política, p. 91) e “Sócrates” (ARENDT, H. A Promessa da
Política, p. 45); History of Political Theory, de 1955; “Compreensão e Política (as dificuldades da compreensão)”;
“Religião e Política”, entre outros.
51
realidade de muitos”151, pois “a filosofia se destina ao homem e a todos diz respeito”152. Arendt
admirava bastante a tentativa jasperiana de comunicar os assuntos filosóficos ao público leigo em geral
e, não obstante, passou a acompanhá-lo na defesa de que tanto a filosofia quanto a política deviam
interessar a todos os homens. Ela diz, em um discurso sobre Jaspers em 1958: “A afirmação do domínio
público por parte de Jaspers é única porque vem de um filósofo e porque nasce na convicção
fundamental que subjaz a toda a sua atividade de filósofo: a de que tanto a filosofia como a política
dizem respeito a toda a gente”153. Ou de maneira mais específica em outro texto da autora de 1957:
As numerosas declarações de Jaspers depois da guerra, os seus artigos,
conferências, programas de rádio, obedeceram sempre a um esforço deliberado de
popularização, de falar de filosofia sem recorrer a uma terminologia técnica, ou
seja, à convicção de que é possível apelar à razão e à inquietação ‘existencial’ que há em todos os homens154.
Enredada, enfim, com esses dois trabalhos que se entrecruzam, para Arendt pairava nessa época
a indagação crucial sobre a possibilidade de “uma nova filosofia política – que, com toda a
probabilidade, irá consistir na reformulação da atitude do filósofo diante do âmbito público”155. Arendt
não apelava apenas por um novo método de pensamento, mas por um novo tipo de atitude por parte de
um novo tipo de pensadores. Todavia, diz ela, por mais que alguns dos pré-requisitos para que isso
acontecesse fossem comuns tanto aos existencialistas franceses quanto aos alemães representados por
Jaspers e Heidegger, no início dos anos 1950, não se poderia criar muitas esperanças e expectativas de
que a preocupação pela política em tais pensadores tivesse condições de reinventar e refundar
completamente as reflexões filosóficas sobre o objeto político. Arendt pondera que não eram as causas
sociais ou as inconveniências das desigualdades econômicas e materiais que impulsionavam
propriamente os intelectuais franceses às ruas, ao engajamento humanista no cotidiano e aos projetos
revolucionários veiculados em jornais de grande circulação. “[...] A revolução deles nunca se dirige
151 JASPERS, K. Razón y Existencia: cinco lições, p.126. 152 JASPERS, K. Introdução ao pensamento filosófico, p. 11. 153 ARENDT, H. “Karl Jaspers: uma Laudatio”. In: Homens em Tempos Sombrios, p. 91. Na verdade, como Arendt
aponta em diversas ocasiões, trata-se de uma postura jasperiana que pode ser vinculada a Kant, que dizia: “todo
trabalho filosófico deve ser suscetível de popularidade; pois, se não, trata-se provavelmente de disparates escondidos
sob a roupagem de sofisticação” (Apud. JASPERS, K. “Kant”. In: Die Grossen Philosophen II). As várias publicações
de Kant em revistas abertas ao público leitor são provas da prática dessa intenção – como as revistas Berlinische
Monatsschrift e Allgemeine Literaturzeitung, nas quais publicou os textos “O que é Esclarecimento”, “Ideia de uma
história universal de um ponto de vista cosmopolita”, “Sobre o uso dos princípios teológicos em filosofia” etc. 154 ARENDT, H. “Karl Jaspers: Cidadão do Mundo?”. In: Homens em Tempos Sombrios, p. 105. 155 ARENDT, H. “O interesse do atual pensamento filosófico europeu pela política”, In: Compreender: formação,
exílio e totalitarismo, p. 461. Tal tema também é discutido no texto editado em português sob o nome de “Filosofia e
Política”, In: ARENDT, H. A Dignidade da Política.
52
primariamente contra condições sociais e políticas, mas sim contra a condição humana como tal”156.
Ou seja, as questões estritamente políticas, assim como determinadas virtudes públicas, eram ainda
segundo plano e funcionavam como parte de um interesse maior: o exercício filosófico de desafiar o
absurdo da existência humana em meio ao caos incoerente e incompreensível que é estar “lançado
dentro do mundo”157. Para a autora, “o que atrai a filosofia moderna para o âmbito político é que seus
problemas teóricos assumiram uma realidade palpável no mundo moderno”158. Isso seria verdadeiro
também para a filosofia contemporânea alemã, mas, em resumo, para ela, a política nunca fora o centro
das investigações heideggerianas. E mesmo as mais influentes contribuições filosóficas de Heidegger,
seja o conceito de historicidade (Geschichtlichkeit) ou o de ser-no-mundo, para Arendt, continuam a
representar um escape em relação ao “ponto fulcral da política: o homem como ser de ação”159. Isto é,
por mais que Heidegger ajude a compreender o mundo moderno a partir de termos históricos – por
exemplo, ao levar em conta a força da tecnificação sobre individualidades atomizadas e massificadas
– seus pensamentos não seriam suficientes para “lançar os alicerces de uma nova filosofia política”160.
Assim, apesar da desconfiança crítica perante toda essa atmosfera que Arendt diagnostica em suas
primeiras viagens de retorno ao velho continente, ela detecta um diferencial em Jaspers. Era ele o único
a tratar a humanidade (mankind/humanity) como uma realidade (actuality) política e, a partir disso,
156 ARENDT, H. “O interesse do atual pensamento filosófico europeu pela política”, In: Compreender: formação,
exílio e totalitarismo, p. 455. 157 Uma noção de Sartre tomada de empréstimo de Heidegger. Contudo, para Arendt, havia outro grande problema
limitador do pensamento político francês nessa época, que seria o insistente e acentuado hegelianismo subjacente a
essas teorias no que se refere a uma visão da História como sendo processual. Arendt era extremamente crítica à
recorrência de Hegel a uma suposta “Providência” que, segundo ele, ofereceria uniformidade compreensível à
História, mas que, segundo Arendt, conferiria apenas aparente racionalidade retrospectiva à ação política. Diz ela:
“Como os homens não detêm o controle das ações que iniciaram e nunca podem realizar plenamente suas intenções
originais, a história tem necessidade de ‘astúcia’” (ARENDT, H. “De Hegel a Marx”, In: A Promessa da Política, p.
125), tal astúcia no plano hegeliano consiste no “grande mecanismo que obriga os outros a serem o que são em e para
si mesmos” (HEGEL, F. Jenenser Realphilosophie, edição Meiner, vol. XX, p. 199), ou uma substância na qual,
somente através dela e nela, toda realidade encontra subsistência (Cf. HEGEL, F. A Razão na história, p. 53.). Contudo, essa visão histórico-global de Hegel era projetada para o passado, de modo que a sua consumação se dava
no presente, ou seja, tratava-se de um modo de pensamento desenvolvido para compreender o presente como sendo
necessário, como sendo o “fim da história”. Em relação a isso, Arendt diz: “Quem ousaria [...] brincar com o jogo da
tese-antítese-síntese até que sua dialética desvende um ‘sentido’ no trabalho escravo? Sempre que encontramos
argumentos parecidos na filosofia atual, continuamos céticos devido à sua falta de senso de realidade ou começamos
a suspeitar de sua má-fé” (ARENDT, H. “O interesse do atual pensamento filosófico europeu pela política”, In:
Compreender: formação, exílio e totalitarismo, p. 460). 158 ARENDT, H. “O interesse do atual pensamento filosófico europeu pela política”. In: Compreender: formação,
exílio e totalitarismo, p. 447. 159 ARENDT, H. “O interesse do atual pensamento filosófico europeu pela política”. In: Compreender: formação,
exílio e totalitarismo, p. 449. 160 ARENDT, H. “O interesse do atual pensamento filosófico europeu pela política”. In: Compreender: formação,
exílio e totalitarismo, p. 449.
53
como um critério orientador do juízo político161. Isto é, ele assumia que para se refletir filosoficamente
na contemporaneidade era urgente não apenas o exercício de se pensar do ponto de vista de todos os
homens, ou, pelo menos, do maior número plural possível de indivíduos, mas também que era preciso
desvincular a noção de humanidade de um significado meramente abstrato, exposta a toda sorte de
teorizações e como se fosse algo determinado por leis naturais ou manejável por ideais totalizantes.
1.1: O diferencial político e filosófico da noção de “humanidade” em Karl Jaspers
Essa alusão distinta à “humanidade” nos termos de Jaspers é importante na medida em que a
primeira metade dos anos 1950 é marcada por uma Arendt que ansiava por encontrar, em suas
referências filosóficas principais, elementos teóricos que fossem capazes de compreender aquilo que
ela passaria a denominar, já a partir dos curtos ensaios que produzira nessa época, de “pluralidade
humana”. Os primeiros registros da posição arendtiana sobre “der Tatsache der Pluralität der
Menschen (o fato da pluralidade humana)”162, enquanto aspecto basilar da política, encontram-se em
fragmentos de 1950, tanto em suas anotações privadas no Denktagebuch, que foram aproveitadas
literalmente no início do texto Was ist Politik, quanto também em uma página avulsa datilografada sob
o título de “Pluralität”, presente no espólio intelectual inédito de Arendt163. Em uma nota feita em seu
diário de pensamento, datada de 1952 e feita durante a estadia de Arendt em Paris, por exemplo, a
autora demarca que a noção de pluralidade não se origina da multiplicidade das coisas, mas da carência
dos homens no sentido de a vida humana sempre depender de uma segunda outra vida humana, e esta
outra necessitar de uma terceira, e assim sucessivamente. Não é irrelevante que a autora não opte pelo
termo “alteridade” para representar a existência de outros a um sujeito, a qualidade da alteritas – que
significa desde as filosofias antiga e medieval o caráter de que todo ser existente é distinto de outro,
ou de que algo pode ser definido apenas pela distinção com as outras coisas. Arendt começa a delimitar
com isso que a alteridade pode abarcar a relação dos objetos inorgânicos, como diz mais tarde em A
Condição Humana164, mas reserva o termo “pluralidade” para lidar com a singularidade do modo de
161 Cf. ARENDT, H. “O interesse do atual pensamento filosófico europeu pela política”. In: Compreender: formação,
exílio e totalitarismo, p. 457. 162 ARENDT, H. Was ist Politik, p. 09. 163 Cf. The Hannah Arendt Papers at the Library of Congress. Essays and lectures, "Pluralität," fragment, -n.d. (Series:
Speeches and Writings File, 1923-1975, n.d.) Imagem 1 de 1. Embora não esteja datada, essa breve página de anotação
foi certamente feita por Arendt entre 1950 e 1954. Pelo número impresso no alto da página, 022858, muito
provavelmente se trata de uma anotação feita entre o inverno de 1950 e a primavera de 1951, uma vez que o número
se encontra muito próximo à numeração dos arquivos da escrita de Einführung in die Politik, iniciada no meio do ano
de 1950, que compõem o bloco de 022304 a 022389. 164 Cf. ARENDT, H. A Condição Humana, p. 220.
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aparição dos homens a si mesmos. O caráter plural da existência humana no mundo passaria a ser,
então, um problema filosófico de primeira grandeza para a autora e a porta de entrada para a sua teoria
política, que, por condicionar todas as atividades humanas165, seria expressada da seguinte maneira nas
páginas iniciais de sua obra magna de 1958:
[...] a vida humana, na medida em que está ativamente empenhada em fazer algo,
está sempre enraizada em um mundo de homens ou de coisas feitas pelos homens,
um mundo que ela jamais abandona ou chega a transcender completamente [...]
esse ambiente, o mundo no qual nascemos, não existiria sem a atividade humana que o produziu, como no caso de coisas fabricadas; que dele cuida, como no caso
das terras de cultivo; ou que o estabeleceu por meio da organização, como no caso
do corpo político. Nenhuma vida humana, nem mesmo a vida do eremita em meio
à natureza selvagem, é possível sem um mundo que, direta ou indiretamente,
testemunhe a presença de outros seres humanos166.
Em um curso intitulado A História da Teoria Política, ministrado em 1955, a autora já colocava
a questão da seguinte maneira: “E das condições específicas de nosso mundo contemporâneo [...] talvez
surja a pergunta: por que existe alguém em vez de ninguém?”167. Ou como ela formula no mesmo ano
em seus diários de pensamento: “o que há na condição humana que torna a política possível e
necessária? Ou: por que há alguém e não ninguém? (a dupla ameaça da nadidade [nothing-ness] e da
ninguém-dade [nobody-ness].) Ou: por que somos no plural e não no singular?”168. Nesse mesmo
diapasão, na parte final do texto Philosophy and Politics: the problem of action and thought after the
French Revolution, de 1954, é justamente a preocupação séria com a “pluralidade” que a autora elege
como o caminho central para se pensar politicamente no mundo contemporâneo, ou seja, a necessidade
de se deslocar a atenção filosófica para o fato de que ninguém existe sozinho no mundo, de que cada
um de nós pertence a um contexto que compartilhamos, sem chances de escolha prévia, com todos os
outros seres da nossa espécie. Arendt afirma nesse momento: “Se os filósofos, apesar de seu
afastamento necessário do cotidiano dos assuntos humanos, viessem um dia a alcançar uma filosofia
política, teriam que ter como objeto de seu thaumadzein a pluralidade do homem, da qual surge – em
sua grandeza e miséria – todo o domínio dos assuntos humanos”169. Mesmo que Jaspers não fosse
capaz de fazer emergir uma nova filosofia política por si mesmo, ainda assim, entretanto, é do interior
do debate com o pensamento jasperiano que Arendt começa a expressar as suas primeiras defesas de
que a pluralidade, além de ser fator condicionante da vida política dos homens, deve ser a pedra de
165 Cf. ARENDT, H. A Condição Humana, p. 26. 166 ARENDT, H. A Condição Humana, p. 26. 167 ARENDT, H. Epílogo de A Promessa da Política, p. 269. 168 ARENDT, H apud CORREIA, A. “Apresentação à nova edição brasileira”. In: A Condição Humana, p. XXII. 169 ARENDT, H. “Filosofia e Política”. In: A Dignidade da Política, p. 115.
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toque das discussões filosóficas que pretendem compreender a existência humana. Isso pode soar
estranho quando se percebe que o nome de Jaspers está longe de ser central e explicitamente
reivindicado pela a autora em A Condição Humana ou em Sobre a Revolução, provavelmente suas
obras de maior fôlego político; mas, em contrapartida, Jaspers é um nome registrado com peso na
maioria dos artigos e nos textos de apoio a essas obras. A questão de fundo para ela, pois, nesse
contexto, era encontrar um modo de refletir sobre a política sem reafirmar ou reverberar uma velha e
problemática hostilidade entre o filósofo e o âmbito público, tensão que remontaria, segundo Arendt,
ao fatídico julgamento de Sócrates pela pólis ateniense170. Assim, não haveria lugar melhor para essa
inspiração que no pensamento filosófico de alguém que nunca se sentiu em casa na posição de filósofo,
que jamais assumira a solitária torre de marfim como sua morada. Afinal, ela expõe nessa época que
“Jaspers é o único filósofo que protestou contra a solidão, o único para quem a solidão parece
‘perniciosa’ [...]”171. De fato, no texto Sobre minha Filosofia, escrito que Arendt diz ser uma excelente
introdução à totalidade da obra jasperiana172, Jaspers diz que a tese geral de sua filosofia é a de que “o
indivíduo não pode tornar-se homem por si mesmo [...] Solitário, afundo-me em sombrio isolamento;
unicamente em comunidade com os outros eu posso me revelar, no movimento pelo qual nos abrimos
uns aos outros [...] A existência [Existenz] isolada ou que se isola permanece mera potencialidade ou
desaparece em nada”173. Em diversos momentos o pensamento de Jaspers coloca a pergunta “o que é
170 Assim como Arendt começa por descrever o escritor e romancista austríaco Hermann Broch, em Men in Dark
Times, como um poeta à sua própria revelia, pode-se dizer que Arendt foi uma filósofa que relutava em não querer sê-
la. Em uma famosa entrevista, datada de 28 de outubro de 1964, concedida a uma emissora de televisão alemã, Arendt
inicia sua conversa com o jornalista Günter Gaus apresentando duas convicções interligadas: de que não se
considerava uma “filósofa” e de que o trabalho com o qual sempre lidou não poderia ser chamado de “filosofia
política”. Para além de observações meramente pessoais e/ou caprichos idiossincráticos, essa resistência de Arendt
em se enquadrar ao círculo e aos temas tratados pelos filósofos possui uma justificação teórica, pois, para ela,
“inevitavelmente, a tradição do pensamento político contém, antes de mais nada, a atitude tradicional [e hostil] dos
filósofos para com a política” (ARENDT, H. “O fim da tradição”. In: A Promessa da Política, p. 131). E isso significa que no início, “não de nossa história política ou filosófica, mas de nossa tradição de filosofia política está o desprezo
de Platão pela política, sua convicção de que ‘os assuntos práticos e as ações dos homens não são merecedores de
grande seriedade’” ARENDT, H. “O fim da tradição”. In: A Promessa da Política, p. 131). Arendt é taxativa na
concepção de que, definitivamente, a tradição mais influente de nosso pensamento político ocidental teve seu início
nos ensinamentos de Platão e Aristóteles. Em inúmeros textos a autora comenta que o julgamento e a consequente
condenação de Sócrates (evento, para ela, tão emblemático para a história da filosofia política quanto o julgamento de
Jesus Cristo foi para a história da religião) fizeram abrir um abismo entre filosofia e política, pois a partir de então os
receios platônicos em relação ao domínio dos assuntos dos homens ganharam forma com o desencanto do filósofo
pela pólis e pelo modo de vida político, estes que sempre o julgariam por sua forma distinta de pensar. 171 ARENDT, H. “O interesse pela política no recente pensamento filosófico europeu”, In: A Dignidade da Política,
p. 85. 172 Cf. KOHLER, L; SANER, H. Hannah Arendt Karl Jaspers Correspondence 1926-1969, Carta 123. 173 JASPERS, K. On my Philosophy, p. 20; JASPERS, K. Sobre mi filosofia, p. 262. Adição minha.
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o homem?”174 , mas ao tentar esclarecer essa questão, sem a pretensão de definições últimas e fechadas,
o autor alemão não toma o ser humano como um objeto cuja existência possa ser possível em solidão,
apartado do mundo e dos outros homens que o rodeiam, e que, por isso, não poderia ser isolado em
uma amostragem para ser totalmente conhecido. Em outros termos, isto quer dizer que, em todas as
esferas que os homens podem ser pensados, a realidade da existência da humanidade sempre antecede
a própria noção de homem. Com bases nisso, segundo Arendt, Jaspers é um dos poucos teóricos a
orientar toda a sua investigação filosófica existencial segundo a premissa de que cada homem
representa mais do que a si mesmo, representa em si – em suas escolhas e em suas ações, mesmo que
à revelia de sua própria vontade – a humanidade. Pois, para o autor alemão, “seja de onde for que
tenhamos vindo, estamos aqui [...] Encontramo-nos no mundo, em meio a outros homens”175 e
dependemos deles, do nascimento à morte, para nos definirmos e nos afirmarmos enquanto seres
humanos. A rigor, desse modo, para Jaspers não há experiência existencial humana, singular e única,
na ausência dos outros. Do mesmo modo, para Arendt, o espaço da singularidade humana seria o
domínio público: o lugar onde as ações e os discursos dos homens aparecem aos seus pares, ao contexto
próprio da pluralidade, num jogo de atores e espectadores que delineia as narrativas de personalidades
históricas que todos nós somos. É por isso que, em A Condição Humana, Arendt dirá que a capacidade
humana da ação seria correspondente à condição humana da pluralidade, pois é “a única atividade que
ocorre diretamente entre os homens, sem a mediação das coisas da matéria”176 Nas produções políticas
arendtianas, dizer que os seres humanos se singularizam num espaço de aparência pública é dizer, ao
mesmo tempo, que esse espaço contém também a aparição da liberdade. Em Sobre a Revolução a
autora atestaria, em concordância com o pensamento grego, que “a vida de um homem livre exigia a
presença de outros. A própria liberdade, portanto, exigia um lugar onde as pessoas pudessem se reunir
– a ágora, a praça ou a pólis, o espaço político propriamente dito”177.
Quando resume alguns pontos centrais de sua teoria em Kleine Schule des Philosophischen
Denken, Jaspers reafirma: “O homem acha-se sozinho em meio a uma natureza de que, não obstante,
é parte. Somente com seus companheiros de destino ele se transforma em homem, em si mesmo, e
deixa de estar solitário”178. Para utilizar as palavras de André Duarte ao interpretar esse mesmo aspecto
do pensamento de Arendt, mas que também valeria para os termos jasperianos: “Existir é existir no
174 Cf. JASPERS, K. Iniciação Filosófica; Introdução ao pensamento filosófico; Sobre o Espírito Europeu; Ambiente
Espiritual de nuestro tempo. 175 JASPERS, K. Introdução ao Pensamento Filosófico, p. 45. 176 ARENDT, H. A Condição Humana, p. 08. 177 ARENDT, H. Sobre a Revolução, p. 59. 178 JASPERS, K. Introdução ao Pensamento Filosófico, p. 46.
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plural, significa ser-em-comum e ser-com outros, ser “entre” os outros (inter homines esse), os quais
são simultaneamente singulares e irrepetíveis, pois somente ali onde há pluralidade pode haver
singularidade”179. De acordo com Jaspers, portanto, as experiências e as organizações políticas são
caminhos privilegiados para se compreender a autenticidade do modo de ser dos homens sempre em
carência de relação com o restante da humanidade, pois é no âmbito da vida histórica e pública que as
relações humanas são instigadas ou negadas em número exponencial, em que vias de contatos e
comunicações culturais são propiciados ou dificultados a diferentes tipos de pessoas. Afirmar ou negar
esse âmbito é o mesmo que afirmar ou negar a possibilidade e a liberdade da Existenz humana.
Nesse sentido, este trabalho doutoral assume neste capítulo um ponto de partida totalmente
distinto, embora não necessariamente contraposto, da leitura que Dana Villa defende no quarto capítulo
de Arendt and Heidegger: The Fate of the Political. Também baseado no texto arendtiano sobre o
então recente interesse pela política na filosofia europeia dos anos 1950, nesta parte da obra o autor
perscruta as raízes heideggerianas da teoria política arendtiana. Para Villa, o artigo de Arendt de 1954
refletiria uma posição definitiva da autora para o prosseguimento das suas próprias reflexões que se
dobrariam sobre o domínio político. Qual seria: de que o modelo dialógico jasperiano possuiria
“deficiências fatais”180 para Arendt e de que, portanto, o conceito de mundo de Heidegger deveria ser
tido como um ponto inicial mais frutífero para compreender “a investigação fenomenológica da esfera
política”181 que ela passaria a empreender a partir dali. De fato, nessa ocasião Arendt aponta limitações
da filosofia jasperiana em sentido político, particularmente por Jaspers trabalhar com a expressão
“homem” (man) no singular, não se distanciando o suficiente do modo tradicional de pensamento
ocidental aos olhos dela, enquanto que Heidegger, para evitar o mesmo termo em seus escritos, preferia
utilizar a expressão “os mortais”. Arendt afirma, então: “O que aqui importa não é a ênfase na
mortalidade, e sim o emprego do plural”182. Todavia, mesmo que não cite isso, Villa tem plena
consciência da ponderação restritiva que Arendt impõe ao pensamento heideggeriano logo em
sequência nos seus argumentos: “visto que Heidegger nunca expôs as implicações de sua posição a
esse respeito, talvez seja presunçoso atribuir demasiada importância a esse seu uso da forma plural”183.
Ou seja, para a autora judia, como ela tenta deixar claro ao longo de todo esse texto, Heidegger não
179 DUARTE, A. “Hannah Arendt e o pensamento ‘da’ comunidade: notas para o conceito de comunidades plurais”.
In: O que nos faz pensar?, p. 31. 180 VILLA, D. Arendt and Heidegger: The Fate of the Political, p. 120, tradução minha. 181 VILLA, D. Arendt and Heidegger: The Fate of the Political, p. 120, tradução minha. 182 ARENDT, H. “O interesse do atual pensamento filosófico europeu pela política”, In: Compreender: formação,
exílio e totalitarismo, p. 459. 183 ARENDT, H. “O interesse do atual pensamento filosófico europeu pela política”, In: Compreender: formação,
exílio e totalitarismo, p. 459.
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empregava e nem escolhia seus conceitos por meio de critérios políticos. Essa já não é uma objeção
que possa ser feita a Jaspers, autor que em sua autobiografia diz: “Não existe filosofia sem política,
nem sem efeitos sobre a política”184. Ou como afirma Jeanne Hersch sobre as reflexões de Jaspers:
“[...] a política representava para ele um teste, talvez o teste por excelência, da autenticidade das ideias
e da coragem que as avigora”185. Arendt jamais desconsiderou isso, pois o próprio Jaspers sempre
repetia que o Homem em totalidade única não existia, e tampouco existirá186, e, não obstante a isso,
aconselhava-a metodologicamente em uma carta de 1946 o seguinte: “A filosofia tem de ser concreta
e prática, sem esquecer a sua origem nem por um momento”187. Essa origem filosófica nada mais é do
que a realidade na qual vivemos. Para Jaspers, “uma filosofia que teme o contato com a realidade não
tem fundamento”188; para Arendt, “qual o objeto de nosso pensamento? A experiência! Nada mais!”189.
E ambos concordam que nessa realidade não há experiência com o Homem singular ou qualquer
possibilidade de apreensão do ser do homem. Em Sobre a Revolução, Arendt diz que, a despeito da
ingenuidade das teorias e das constituições políticas modernas, o “homem qua homem [...] como
realidade terrena e tangível, evidentemente não existia em lugar algum”190. Para Jaspers, “o homem é
‘o animal que jamais se define’”191, e qualquer tentativa de definição última aniquila a própria condição
de ser humano. Para Arendt, “[...] a realização do ‘absoluto’ abole o absoluto do mundo. E assim,
finalmente, a realização ostensiva do homem simplesmente abole os homens”192, como intentou a
dominação totalitária nazista. Para esta tese, portanto, a crítica que Arendt faz à forma de expressão
jasperiana sobre o “homem” no singular, embora não possa ser desmerecida, pode ser facilmente
contrabalanceada pelas reiteradas afirmações do significado político que a autora faz a respeito do
pensamento de seu ex-orientador, e, mais do que isso, nesse contexto específico, sobre o conceito de
“humanidade” em Jaspers. No interior de A Condição Humana há uma pequena nota de rodapé que
também autoriza essa aproximação, na qual Arendt diz: “Emprego aqui e no que se segue o termo
‘espécie humana’ [man-kind] como distinto de ‘humanidade’ [mankind], que indica a soma total dos
seres humanos”193. Ora, isso indica que essa humanidade não deve ser vista como um dado biológico
184 JASPERS, K. apud HERSCH, J. Karl Jaspers, p. 08. 185 HERSCH, J. Karl Jaspers, p. 48. 186 Cf. JASPERS, K. Iniciação ao Método Filosófico. 187 KOHLER, L; SANER, H. Hannah Arendt Karl Jaspers Correspondence 1926-1969, Carta 44. 188 JASPERS, K. Freiheit und Wiedervereinigung, apud HERSCH, J. Karl Jaspers, p. 96. 189 ARENDT, H. “Sobre Hannah Arendt”. In: Revista Inquietude, p. 131. Debate sobre a obra de Arendt no Canadá. 190 ARENDT, H. Sobre a Revolução, p. 85. 191 JASPERS, K. Introdução ao Pensamento Filosófico, p. 46. Concepção inspirada por Nietzsche. 192 ARENDT, H. apud KOHN, J. In: A Promessa da Política, p. 44. 193 ARENDT, H. A Condição Humana, p. 28, nota 4.
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unitário, mas considerada em suas particularidades infinitamente plurais. Nesses termos, a humanidade
pode ser entendida como uma condição humana tal qual a pluralidade. Isto é, trata-se de uma condição
dos homens contemporâneos que também corresponde à ação humana. Assume-se aqui, destarte, além
disso, que para Jaspers, tanto quanto para Arendt, esse caráter plural dos homens no mundo não é uma
mera formalidade conceitual, mas uma realidade factual intransponível.
O argumento se torna mais vigoroso e consistente com o auxílio da seguinte afirmação
arendtiana presente no artigo Karl Jaspers: Cidadão do Mundo, que foi encomendado à autora para
uma compilação de estudos sobre a obra jasperiana, escrito por ela em 1957:
Uma filosofia da humanidade distingue-se de uma filosofia do homem pela sua
insistência no fato de a Terra não ser habitada pelo Homem, falando consigo
mesmo no diálogo da solidão, mas por homens que falam e comunicam uns com
os outros. É claro que a filosofia da humanidade não pode ditar qualquer ação política concreta, mas pode compreender a política como um dos grandes
domínios da vida humana, por oposição a todas as filosofias anteriores que, desde
Platão, encaram a bios politikos como uma forma inferior de vida e a política
como um mal necessário194.
Dessa perspectiva, é possível entender por que Arendt enxerga o modo jasperiano de tratar a
humanidade como “uma realidade política premente sempre presente”195. Primeiramente porque, para
Jaspers, a humanidade não seria um mero conceito ou um projeto teórico, mas, sim, uma factualidade
global, um presente comum a todos os povos que hoje coabitam o mundo, composta pelas inúmeras
histórias singulares de cada um dos homens que vivem ou já viveram, e que se atualiza em uma rede
de relações a cada novo nascimento humano. Em uma palestra de 1955, denominada “Statelessness”196,
assim como no escrito “The Rights of Man: What are they?”, Arendt comenta que vivemos em um
mundo único, de tecido internacional, no qual os espaços civilizatórios já foram todos reivindicados
por uma humanidade globalizada. Ela afirma, ao interpretar Jaspers, que o desenvolvimento técnico
do mundo ocidental possibilitou a existência desta humanidade, de tal forma que “[c]ada país tornou-
se vizinho quase imediato de todos os outros países, e cada homem sente o choque dos acontecimentos
que ocorrem do outro lado do globo. Mas este presente factual comum não se baseia num passado
comum e está muito longe de garantir um futuro comum”197. De saída, isso significa um distanciamento
perante qualquer noção de humanidade entendida como um suposto ente abstrato que seria autor da
194 ARENDT, H. “Karl Jaspers: Cidadão do Mundo?”. In: Homens em Tempos Sombrios, p. 110, grifo meu. 195 ARENDT, H. “O interesse do atual pensamento filosófico europeu pela política”. In: Compreender: formação,
exílio e totalitarismo, p. 457. 196 Cf, ARENDT, H. The Hannah Arendt Papers at the Library of Congress Essays and lectures, "Statelessness,"
lecture, 1955, Image 3 of 5. 197 ARENDT, H. “Karl Jaspers: Cidadão do Mundo?”. In: Homens em Tempos Sombrios, p. 101.
60
História198. A intepretação jasperiana tem o mérito de não confundir a humanidade com uma
“existência puramente espiritual, como sonho utópico ou princípio orientador”199 que abarcaria em si
todas as ações humanas particulares. Tanto Arendt quanto Jaspers deixam bastante claro desde muito
cedo suas discordâncias em relação a argumentos que visam fornecer um sentido necessário ao
processo histórico humano. Em 1931, na obra Die geistige Situation der Zeit (Situação Espiritual de
Nosso Tempo), Jaspers chama atenção para a importância de não se categorizar os homens sob
expressões de caráter unificante e anônimo, como a “massa” e/ou a “Humanidade abstrata”, tão
recorrentes nos pensamentos tradicionais do século XIX e XX, que teriam a função de velar a realidade
plural e intelectualmente inapreensível que compõe a história e o mundo humanos. “Cada ser humano,
como existência possível, é, enquanto indivíduo, mais do que somente um membro da massa,
experimenta por si mesmo anseios intransferíveis e não pode se perder na massa, porque, com isso,
perderia seu ser humano”200. Segundo Jaspers, embora a massificação humana seja de fato uma
experiência contemporânea, a dignidade do homem está em sua indefinição objetiva, que extrapola
qualquer apelação “sofística” que pretenda encontrar um sentido subjacente ao caminho humano na
história. Para ele, as inúmeras e pequenas ações e decisões dos homens é a prova de que a experiência
sempre corrige e altera a imagem que temos do futuro, pois “predizer o futuro do homem seria já
realizá-lo. Aqui predizer significa produzir”201. Arendt, quatorze anos depois, em um artigo intitulado
Abordagens sobre o problema alemão, explicita suas primeiras indisposições com relação às crenças
teóricas de que a humanidade estaria conglomerada e vinculada a um destino previsível que não seria
198 Em diversos momentos, Arendt se opõe categoricamente à noção de humanidade como um “ente” autoral de
projetos e histórias. A pensadora se posiciona contrariamente a algumas argumentações mais conhecidas – como o
“ardil da natureza” de Kant, a “astúcia da razão de Hegel”, o “materialismo dialético” de Marx etc. – que conjuraram
a suposta totalidade da História como remédio para as particularidades mundanas e que apostaram na necessidade dos
fatos no sentido de minorar a aborrecida, persistente e literalmente ilimitada contingência componente da cabal
factualidade humana. De maneira mais específica, nesse rol criticado por Arendt, ela inclui desde a “dialética de um
espírito universal ou de condições materiais às necessidades de uma pretensamente imutável e conhecida natureza
humana, com vistas a apagar os derradeiros vestígios do manifestamente arbitrário ‘poderia ter sido de outra forma’” (ARENDT, H. “Verdade e Política”, In: Entre o Passado e o Futuro, p. 301), o qual, segundo ela, constitui o preço
da liberdade, “do único domínio em que os homens são verdadeiramente livres” (Idem). Em outras palavras, essas
tentativas expressas na crença kantiana de que poderia haver algo de verdade na “melancólica causalidade” dos
eventos, ou na metafísica onto-histórico-lógica hegeliana que procurava por uma veracidade na própria passagem
temporal, representariam, na concepção de Arendt, a negação da política mediante a afirmação da necessidade
histórica (característica de toda consciência histórica moderna). De acordo com a autora, a “liberdade só existe no
singular espaço intermediário da política. E nós queremos escapar dessa liberdade na ‘necessidade’ da história. Um
total absurdo” (ARENDT, H. “Introdução na Política”, In: A Promessa da Política, p. 147). 199 ARENDT, H. “O interesse do atual pensamento filosófico europeu pela política”, In: Compreender: formação,
exílio e totalitarismo, p. 457. 200 JASPERS, K. Die gestige Situation der Zeit, p. 68. Tradução minha, do original, com alterações em relação à
edição espanhola: JASPERS, K. Ambiente Espiritual de nuestro Tiempo, p. 71. 201 JASPERS, K. Apud. Panorama das Ideia Contemporâneas, p. xx.
61
outro senão algum tipo de progresso. Nesse texto, de 1945, Arendt assume que revestir de causalidade
necessária os acontecimentos que compõem a história humana, de tal modo a tentar dispor do futuro,
é não apenas um refúgio confortável e pseudocientífico contra a realidade dos fenômenos, mas também
um discurso pronto que funciona perfeitamente para a sustentação de ideologias vazias, como a cortina
de fumaça teórica à qual a dominação nazista recorria e que servia de argumentos aos seus feitos e
propósitos. “Os nazistas [...] perceberam que não há melhor esconderijo do que o grande playground
da história e nenhum melhor guarda-costas do que as crianças desse playground, os ‘experts’
facilmente usados e facilmente iludidos”202. As filosofias de Arendt e Jaspers se tocam em um ponto
inicial comum nesse aspecto: a afirmação da pluralidade política e existencial humana significa, ao
mesmo tempo, a recusa e o abandono obrigatório da noção de um “progresso ilimitado” – este
acalentado artigo de fé presente na “feira de superstições de nosso tempo”203 – que reduz a humanidade
a uma generalidade homogênea e nega qualquer fagulha de espontaneidade do agir em conjunto. No
limite, os dois partilham da crítica às filosofias políticas que interpretam o âmbito da práxis, ou a vida
histórica humana, a partir da mentalidade de meios e fins própria da poiésis, da fabricação204.
É com essa concepção que, após o fim da II Grande Guerra, com a visão sombria de uma
iminente guerra nuclear, tanto o pensamento jasperiano quanto o arendtiano insistem que a visão do
progresso humano deve reconhecer que este sempre caminha ao lado da própria ruína dos homens.
Arendt diz que o símbolo mais específico da unidade do gênero humano se radica na “possibilidade
remota de que as armas atômicas usadas por um país, em função da sabedoria política de uma minoria,
venham a representar o fim de toda a vida humana na terra”205. Em Introdução ao Pensamento
Filosófico, Jaspers, por sua vez, diz: “Em nosso tempo, tornou-se realidade, sob uma nova forma, a
visão de Dante (ruína precipitada pela temeridade de quem pode e quer conhecer). Com efeito, o
avanço técnico atingiu um ponto em que não se exclui a possibilidade de que a humanidade se destrua
a si mesma”206. Ao evocar a personagem de Ulisses de Dante, Jaspers quer simbolizar que aos homens
cabe perceber que onde residem as potencialidades criativas humanas também pode residir aquilo que
202 ARENDT, H. “Approaches to the ‘German Problem’. In: Essays in Understanding, p. 108. Tradução minha. 203 ARENDT, H. “Da Violência”. In: Crises da República, p. 114. 204 Sobre isso, Cf. por exemplo, DUARTE, A. O Pensamento à Sombra da Ruptura, p. 168. “Segundo Arendt, a
filosofia política ocidental se origina de duas concepções fundamentais do pensamento de Platão, as quais teriam
implicações duradouras no contexto da tradição: a substituição da opinião (doxa) pelo conhecimento da verdade como
atributo para a melhor forma de governo político; e a concepção da ação (práxis) política a partir do modelo da
fabricação (poiésis) por meio da aplicação da doutrina das ideias ao âmbito da política, transformando-os em
parâmetros de medida tendo em vista garantir maior previsibilidade aos assuntos humanos. A política passava assim
a ser concebida como uma ‘arte’ ou como uma ‘técnica’ (techné) capaz de produzir artefatos duradouros e estáveis”. 205 ARENDT, H. “Karl Jaspers: Cidadão do Mundo?”. In: Homens em Tempos Sombrios, p. 101. 206 JASPERS, K. Introdução ao pensamento filosófico, pp. 51 e 52.
62
lhe é fatal, e que, portanto, limitações existenciais não representam uma desgraça, mas, pelo contrário,
participam das condições às quais os homens se encontram no mundo. Em termos bastante
semelhantes, no prefácio de Origens do Totalitarismo, Arendt afirma que o progresso e a ruína
compõem as duas faces de uma mesma moeda, sendo ambas noções que ignoram as possibilidades
circunstanciais, imprevisíveis e inerentes das ações humanas que constituem a temporalidade histórica.
Poucos anos mais tarde, no texto Que é Autoridade?, de 1954, a autora ironiza qualquer futurologia
sobre a história em curso dos seres humanos: “caso admitamos [...] que existe algo semelhante a um
processo histórico com uma direção definível e um fim predizível, obviamente ele nos pode conduzir
somente ao paraíso ou ao inferno”207. Dessa forma, o que cumpre destacar é que o interesse arendtiano
pelo caráter político da humanidade, que ela detecta no trato jasperiano desse tema, jamais aventa a
hipótese da formação de uma totalidade humana em detrimento das particularidades, como se os
homens fossem meios para uma suposta finalidade maior. É exatamente nesses termos que aparece a
primeira anotação de Arendt sobre o assunto em seu Denktagebuch, em julho de 1950: “Na política
não se aplica ‘o todo é maior do que suas partes’, pois a humanidade [Menschheit] é um ‘todo’ em que
suas partes sempre são maiores do que ela mesma”208. Isto é, para Arendt começava a se desenhar uma
noção de espaço público definida pela reunião dos homens em pluralidade em um mundo comum, na
companhia um dos outros, mas que propicie, ao mesmo tempo, distinções singulares que os separem,
de modo a evitar “que caiamos uns sobre os outros, por assim dizer”209. Quando observada por esse
espectro, A Condição Humana é um ataque a toda sorte de teorias políticas e econômicas modernas,
pretensamente científicas, que almejam encontrar uma unidade na sociedade ao reduzir os homens a
um sujeito único, com interesses também únicos e harmônicos, sem conflitos – seja em nome de um
“bem-estar comum”, seja em nome de uma “mão invisível” como ator de bastidor que guiaria toda a
vida mercantil do “homem econômico”210, ou seja, em nome de uma “humanidade socializada”211
207 ARENDT, H. “Que é Autoridade?”, in: Entre o Passado e o Futuro, p. 138. 208 ARENDT, H. Denktagebuch, p. Tradução e grifos meus. 209 ARENDT, H. A Condição Humana, p. 64. 210 Sobre isso, Arendt comenta em um parêntese o seguinte: “De fato, nada denota mais claramente a natureza política
da história – o fato de que é uma estória de atos e feitos, mais que de tendências e forças ou de ideias – que a introdução
de um ator invisível nos bastidores que encontramos em todas as filosofias da história, e que constitui razão suficiente
para que as reconheçamos filosofias políticas disfarçadas. Pelo mesmo motivo, o simples fato de que Adam Smith
tenha precisado de uma ‘mão invisível’ a guiar as transações econômicas no mercado de trocas mostra claramente que as relações de troca envolvem algo mais que a mera atividade econômica, e que o ‘homem econômico’, ao fazer seu
aparecimento no mercado, é um ser atuante e não exclusivamente um produtor ou um negociante e mercador”
(ARENDT, H. A Condição Humana, p. 232). 211 Vale citar Hannah Arendt nesses momentos da obra: “Uma sociedade de massas de trabalhadores, tal como Marx
tinha em mente quando falava de uma ‘humanidade socializada’, consiste em espécimes sem mundo da espécie
humana, quer sejam escravos domésticos, levados a essa infeliz situação pela violência de outrem, quer sejam livres,
exercendo voluntariamente suas funções” (A Condição Humana, p. 146). E também: “Uma das principais teses da
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inativa, como a autora encontra em Marx. Diante disso, demarco que a cisão da humanidade em suas
diferenças e particularidades, que ganha vida nas obras políticas arendtianas, permeia textualmente os
interesses teóricos de Arendt desde os artigos sobre as questões judaicas, de 1940, em um dos quais
ela afirma haver “guarita filosófica para um conceito político de humanidade”212.
Para reafirmar em outras palavras: a humanidade deve ser vista justamente em sua pluralidade,
em suas infinitas e incontáveis perspectivas que, mesmo nas diferenças intrínsecas, carregam a
potência de representar algo em comum, ou seja, com “o significado de multiplicidade, de variedade
infindável de uma multidão cuja grandeza [reside] em sua própria pluralidade”213. Com isso, Arendt e
Jaspers, em suma, chamam atenção para uma condição peculiar dos homens no pós-guerra: o fato de
que a humanidade se tornou um conjunto real. Não obstante, o âmbito público não é o lugar da
exigência da comunhão e do pleno consenso, mas é justamente o lugar em que os homens se relacionam
a partir dos binômios, como diz André Duarte, proximidade e distanciamento, ação em conjunto e
singularidades pessoais – daí viria a metáfora da “mesa”, do “espaço-entre” (in-between), que Arendt
se utiliza para explicar como o mundo deve, de maneira concomitante, unir e separar os homens. Em
A Condição Humana, Arendt comenta sobre um duplo “espaço-entre” os homens: um físico, o mundo
que relaciona os homens entre si; e um subjetivo, ou intersubjetivo, constituído por atos e palavras,
advindos do contato direto dos homens uns com os outros, que não se reificam em nenhuma matéria.
“Mas, a despeito de toda a sua intangibilidade, o espaço-entre é tão real quanto o mundo das coisas
que visivelmente temos em comum. Damos a essa realidade o nome de ‘teia’ de relações humanas,
indicando pela metáfora sua qualidade de certo modo intangível”214. O mundo, portanto, é como uma
mesa que, ao resguardar um lugar individual e singular a cada um de nós, coloca-nos em um conjunto
comum, compartilhando um espaço físico que, não obstante, é recoberto por uma teia relacional que
brilhante obra de Myrdal (The political element in the development of economic theory, p. 54 e 150) é que o utilitarismo
liberal, e não o socialismo, é ‘forçado a manter uma ‘ficção comunista’ insustentável acerca da unidade da sociedade’, e que a ‘ficção comunista [está] implícita na maioria das obras sobre economia’. Myrdal demonstra categoricamente
que a economia só pode ser uma ciência se presumir que um só interesse permeia a sociedade como um todo. Por trás
da ‘harmonia de interesses’, está sempre a ‘ficção comunista’ de um interesse único, que pode então ser chamado de
‘bem-estar’ [welfare] ou de ‘bem-comum’ [commonwealth] [...] O ponto crucial do argumento é que isso ‘equivale à
asserção de que a sociedade deve ser concebida como um único sujeito. E isto, não obstante, é precisamente o que não
pode ser concebido. Se tentarmos fazê-lo, seremos tentados a ignorar o fato essencial de que a atividade social é o
resultado das intenções de vários indivíduos” (A Condição Humana, p. 53, nota 36). E ainda: “O motivo pelo qual o
sistema econômico de Marx é mais consistente e coerente, e, portanto, aparentemente muito mais científico que seus
predecessores, reside primordialmente na construção do ‘homem socializado’, que é um ser ainda menos ativo que o
‘homem econômico’ da economia liberal” (A Condição Humana, p. 51, nota 35). 212 ARENDT, H. “The Jewish War that isn’t happening”. In: The Jewish Writings, p. 161. 213 ARENDT, H. Sobre a Revolução, p. 132. 214 ARENDT, H. A Condição Humana, p. 228.
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se movimenta a cada troca de palavras e de ações entre os participantes ali envolvidos e entrelaçados.
Uma vez inseridos no mundo, todos nós participamos dessa trama.
Na apresentação do curso Contemporary Issues, oferecido por Arendt em 1955 na
Universidade de Berkeley, a autora se utiliza dessa metáfora: “The table between us [...] That is the
meaning of ONE world. (A mesa entre nós [...] este é o significado de UM mundo)”215. Nesse contexto,
Arendt quer chamar a atenção de seus alunos para o fato de que não é possível pensar politicamente
sem assumir que os significados das experiências públicas dependem das perspectivas que cada ser
humano ocupa em um mundo comum, e que, assim, o mundo é aquilo que nos diz respeito, que nos
interessa, em conjunto e a cada um separadamente. Em A Condição Humana, nessa mesma tonalidade,
ela formula um dos modos pelos quais os homens podem vir a sentir a ausência mundana:
O que torna a sociedade de massas tão difícil de ser suportada não é o número de
pessoas envolvido, ou ao menos não fundamentalmente, mas o fato de que o
mundo entre elas perdeu seu poder de congregá-las, relacioná-las e separá-las. A
estranheza de tal situação assemelha-se a uma sessão espírita na qual determinado
número de pessoas, reunidas em torno de uma mesa, vissem subitamente, por
algum truque mágico, desaparecer a mesa entre elas, de sorte que duas pessoas
sentadas em frente uma à outra já não estariam separadas, mas tampouco teriam qualquer relação entre si por meio de algo tangível216.
Jaspers, em Die geistige Situation der Zeit, também já havia relacionado a crescente formação
de uma sociedade de massas à incapacidade dos homens modernos de construírem um mundo em
comum. Ressalto aqui que Arendt é profundamente marcada e devedora desse argumento, pois o
reflexo imediato e mais característico de um regime existencial massificado, para Jaspers, é a paulatina
transformação dos homens em seres consumidores e, por conseguinte, a constituição de um modo de
vida baseado na máxima do consumo. Ou seja, o desenvolvimento de um modo de vida sustentado
pela redução de todos os interesses humanos àquela atividade que trata todos os objetos e todos os
seres mundanos enquanto produtos descartáveis e sem finalidade durável para além da própria
satisfação momentânea e fugaz que define o ato de consumir. “A transformação da existência humana
em um processo de produção e consumo resulta em uma aceleração crescente da troca de bens. Todas
as coisas – habitação, vestuário, mobiliário, economias – assumem caráter efêmero. Vemo-nos
compelidos a viver o instante que passa”217. Diz ainda o autor alemão, nesse mesmo tom, já na década
de 1930:
215 ARENDT, H. The Hannah Arendt Papers at the Library of Congress. Courses, University of California, Berkeley,
Calif, "Contemporary Issues," undergraduate seminar, 1955 (Series: Subject File, 1949-1975, n.d.). Image 3 of 12. 216 ARENDT, H. A Condição Humana, p. 64. 217 JASPERS, K. Introdução ao pensamento filosófico, p. 28.
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O limite do regime existencial está dado por um conflito moderno específico: o
regime de massas exige um aparato existencial universal, que destrói o verdadeiro
mundo existencial humano [...] Mas se, no fim das contas, no mundo que
realmente me rodeia nada pudesse ser produzido, modelado e transmitido por
mim, senão que tudo deve ser tomado como satisfação momentânea de nossas necessidades, se somente deve se consumir e vender, mecanizando-se inclusive a
própria habitação, se não há de se conservar o espírito do mundo que nos rodeia,
se o trabalho tivesse somente o valor da produção diária e nada contribuísse para
formar uma vida, então o homem acabaria, por assim dizer, sem mundo218.
Assim como sustenta Jaspers, a crítica de Arendt ao processo moderno de massificação da
humanidade, que ganha contornos vigorosos em sua obra política de 1958, também é de alerta para o
perigo de se perder a criação e a durabilidade do mundo em nome do ideal do animal laborans de mera
manutenção da vida orgânica, o que, por meio da atividade do trabalho, desemboca na produtividade
abundante de bens de consumo para saciar as necessidades biológicas humanas. Em resumo, a
atividade do trabalho, de acordo com Arendt, teria a função de manter ativo o próprio processo
metabólico com vistas à sobrevivência individual e da espécie dos homens219. Nesse sentido, Arendt
irá dizer que trabalhar e consumir nada mais são que estágios do recorrente ciclo biológico e “seguem-
se um ao outro tão intimamente que quase constituem um mesmo movimento, o qual, mal termina, tem
de começar tudo de novo”220. Em outras palavras, a produção do trabalho é reabsorvida praticamente
218 JASPERS, K. Ambiente Espiritual de Nuestro Tiempo, pp. 39 e 40. Grifos meus. 219 O trabalho, além de se transformar em uma necessidade de subsistir a qual partilhamos com todos os outros seres
vivos, acompanha o movimento cíclico natural, isto é, repetindo-se infinitamente, “move-se sempre no mesmo círculo
prescrito pelo processo biológico do organismo vivo, e o fim de suas ‘fadigas e penas’ só advém com a morte desse
organismo” (ARENDT, H. A Condição Humana, p. 121). Do ponto de vista etimológico, relembra Arendt, a conotação de “trabalho” sempre esteve ligada às noções de experiências corporais, dor, atribulação, tortura, servidão etc., como
nos exemplos da palavra grega ponein e da latina laborare que dão origem, respectivamente, às palavras arbeiten, do
alemão, e travailler, em francês. É significativo perceber que os termos a respeito do trabalho, desde a antiguidade
grega, são empregados para designar a manutenção individual a partir do “trabalho” do homem em oferecer sustento
à família, bem como para aludir à sobrevivência da espécie mediante o “trabalho” da mulher no parto. Portanto, que
a labuta diária dos homens, enquanto seres biológicos, tenha no lar (oikia), ou na família, ou no domínio privado o
centro de sua realização é algo assumido por Arendt e expresso historicamente mediante o pensamento grego de que
“a comunidade natural do lar nascia da necessidade, e a necessidade governava todas as atividades realizadas nela”
(ARENDT, H. A Condição Humana, p. 36). Definitivamente, o trabalho jamais se desprende da força compulsiva que
é a vida. É exatamente pelo que foi delineado até aqui que Arendt atesta que “se deixarmos de lado todas as teorias
[...] e seguirmos unicamente esta evidência etimológica e histórica, é óbvio que o trabalho é uma atividade que corresponde aos processos biológicos do corpo” (ARENDT, H. Trabalho, obra, ação, p. 180). O trabalho é um fardo,
um peso natural não sujeito à deliberação, pois assim como ninguém escolhe vir ao mundo, assim como é imposição
da natureza as leis de funcionamento orgânico inerentes a qualquer indivíduo, nesses termos, também, ninguém
escolhe trabalhar. Percebe-se, nesse ponto, o esforço de Arendt em demarcar o trabalho como o metabolismo inflexível
do homem com a própria natureza. De qualquer forma, analisados por esse viés elementar, os homens não passam de
mais um (quiçá o mais desenvolvido) dentre os animais que povoam e circulam pelo planeta Terra. Este animal,
denominado por Arendt de animal laborans, é apenas mais um membro da espécie humana e possui exatamente no
trabalho o denominador comum para onde tendem todas as suas possibilidades ativas. 220 ARENDT, H. Trabalho, obra, ação, p. 36.
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de imediato para que o corpo humano se sustente e continue não só trabalhando, mas produzindo –
isso se segue indefinidamente, até a morte do organismo. O resultado final desse processo do trabalho,
além da conservação da vida, é que os bens de consumo nunca permanecem tempo necessário para
constituir algo duradouro no mundo, pois, ao fim, a vida é o único produto restante. A despeito de
serem as coisas tangíveis mais necessárias à existência, são as mais fúteis e efêmeras do ponto de vista
da durabilidade e, assim, impedem os homens de criarem algo que permaneceria para além de si
mesmos. O grande problema de uma mentalidade exclusivamente consumista, cujo denominador
comum é a atividade humana do trabalho, é justamente a perda do mundo político em função do
alargamento extensivo da preocupação com o âmbito restrito à natureza de nossas vidas – o que
enfocaria apenas o aspecto natural da humanidade. Está em jogo para a autora nesse momento, num
contexto maior, como bem discute Adriano Correia no livro Hannah Arendt e a Modernidade, uma
“progressiva imbricação histórica de dois âmbitos que notavelmente não são idênticos – o político e o
econômico”221, cujo liame máximo se traduz na redução da liberdade política à liberdade individual de
saciar interesses privados e consumistas. Ao mesmo tempo em que Arendt elencava esses problemas
políticos de seu tempo, Jaspers escrevia o seguinte: “No mundo ocidental, o econômico predomina
sobre o político. E isso equivale a dizer que o Ocidente está cavando a sua própria cova. Nele, a
liberdade política se reduz constantemente. É, com frequência, incompreendida”222. Em uma carta de
Arendt a seu ex-orientador, em novembro de 1931, por exemplo, ela comenta o seguinte sobre a obra
recém-lançada de Jaspers, Situação Espiritual de Nosso Tempo: “que este livro me faz perceber, mais
uma vez, quão profundamente estou em débito com você”223. Anos depois, a seguinte explicação
arendtiana em A Condição Humana recorre a termos muito parecidos aos expressos por Jaspers neste
seu livro, cuja passagem foi citada anteriormente. Afirma Arendt:
Em nossa necessidade de substituir cada vez mais depressa as coisas mundanas que nos rodeiam, já não podemos nos permitir usá-las, respeitar e preservar sua
inerente durabilidade; temos de consumir, devorar, por assim dizer, nossas casas,
nossa mobília, nossos carros, como se estes fossem as ‘coisas boas’ da natureza
que se deteriorariam inaproveitadas se não fossem arrastadas rapidamente para o
ciclo interminável do metabolismo do homem com a natureza. É como se
houvéssemos rompido à força as fronteiras distintivas que protegiam o mundo, o
artifício humano, da natureza, tanto o processo biológico que prossegue dentro
dele quanto os processos naturais cíclicos que o rodeiam, entregando-lhes e
abandonando-lhes a sempre ameaçada estabilidade de um mundo humano224.
221 CORREIA, A. Hannah Arendt e a Modernidade: política, economia e a disputa por uma fronteira, p. 43. 222 JASPERS, K. Introdução ao Pensamento Filosófico, p. 147. 223 KOHLER, L; SANER, H. Hannah Arendt Karl Jaspers Correspondence 1926-1969, Carta 19. 224 ARENDT, H. A Condição Humana, pp. 155 e 156.
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A “desmundanidade” (worldlessness) provocada pela vitória do modo de vida da sociedade de
consumidores em massa é a representação, para Arendt, de uma pluralidade humana que sucumbe à
igualdade naturalizada sem distinções pessoais, que se resume ao padrão comportamental, uma vez
que não alimenta a possibilidade da imprevisibilidade de ações únicas. Em sua discussão sobre a
invasão do problema social durante o processo revolucionário francês, Arendt também chama atenção
para a situação nefasta da tentativa de “reduzir a política à natureza”225, uma vez que, segundo ela, a
Revolução Francesa teria desembocado no objetivo político único e exclusivo da necessidade de
manter, satisfeito e vivo, o corpo biológico da população miserável. Interessa-me destacar que Arendt
estabelece, inclusive nesse contexto, uma importante distinção entre humanidade (no sentido político)
e gênero humano (no sentido biológico): a primeira clama por vozes livres e plurais; a segunda é
massificada numa voz uníssona em nome da manutenção da vida. “[...] o grito pelo pão sempre será
uníssono [...] E tais foram, e continuaram a ser por muito tempo, as visões e as vozes não da
humanidade, mas da espécie humana”226. Diante disso, em suma, Arendt conclui que sem a
constituição de um mundo entre os homens não há política, pois não há condições para a existência da
vida em pluralidade. Afinal, o caráter plural dos homens para a autora comporta dois aspectos: a
igualdade genérica, natural, pois somos todos humanos e, se não fosse assim, “os homens não poderiam
compreender uns aos outros e os que vieram antes deles”227; e, também, a distinção particular atingida
apenas na vida política, apenas na vida em alguma comunidade, por meio das ações e dos discursos
que singularizam cada um de nós. Nessa crítica tanto arendtiana quanto jasperiana à modernidade,
portanto, entra o diagnóstico em comum sobre a formação de uma sociedade planetária como resultado
da combinação das seguintes intervenções conjuntas: o desenvolvimento técnico científico e o
alastramento do consumo como modo de vida existencial, possibilitado pelo mercado acósmico da
abundância.
Ora, é exatamente isso que Arendt reconhece como diferencial político no pensamento
filosófico jasperiano. Isto é, a capacidade de compreender que a noção de humanidade não faz sentido
sem estar acompanhada da noção de mundanidade, ou da vivência plural cotidiana em contextos,
culturas e formações de comunidades as mais variadas possíveis. Não há uma simples humanidade
natural, mas ela é sempre bipartida e diluída entre aquilo que se compõe pela nossa igualdade e, ao
mesmo tempo, pelas nossas distinções singulares. Ou seja, por aquilo que nada mais é do que a
225 ARENDT, H. Sobre a Revolução, p. 151. 226 ARENDT, H. Sobre a Revolução, p. 134. 227 ARENDT, H. A Condição Humana, pp. 219 e 220.
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pluralidade de homens iguais em pertença à espécie humana, mas únicos e irrepetíveis em suas
singularidades e identidades pessoais, cuja potencialidade para esta realização não se encontra em outro
âmbito senão na reunião pública com outras pessoas – algo que, na prática, por sua vez, se dá
processualmente via institucionalizações políticas, cidadania, vínculos nacionais, contatos culturais,
garantias mínimas de direitos e algum tipo de formação política228. Como assinala Yara Frateschi, por
exemplo, em sua leitura de Sobre a Revolução, obra que vê como uma abertura arendtiana a uma
possível discussão política para além da democracia ou da representatividade formais: “Uma das teses
centrais da obra de 1963 é a de que a redução do espaço público e da cidadania não se resolvem se não
houver instituições que comportem a participação”229. Arendt, em seus escritos, para aqui acompanhar
a defesa de Frateschi de que a radicalidade da participação cidadã carrega potenciais de radicalidade
democrática nos termos da autora, mostra-se consciente da importância de arranjos institucionais e de
canais comunicativos a fim de evitar a perniciosa “concentração de poder nas mãos de uma elite de
políticos profissionais”230, mas, sobretudo, a fim de abrir espaços políticos por meio dos quais a
humanidade, fragmentada em suas comunidades plurais e nacionais, apresente as singularidades
pessoais que a compõem. Sem sombra de dúvidas, é assim que se pode interpretar a insistência de
Arendt em Sobre a Revolução de que o conteúdo da liberdade política é “a participação nos assuntos
públicos ou a admissão na esfera pública”231, e, como adição, ao contexto próprio da humanidade, que
humaniza a cada um de nós.
Por fim, não custa esclarecer também que o termo “humanidade”, nesses momentos, tampouco
se refere especificamente ao termo alemão Humanität, que Arendt vai se utilizar em outros textos para
dizer a respeito da qualidade daquilo que é humano, como na abertura de Homens em Tempos
Sombrios, em um teor que se refere mais a um âmbito moral e ao caráter humano. No aspecto político,
entretanto, esta expressão – mankind – se liga ao conjunto representativo daquilo que Arendt, talvez
para evitar confusões, à sombra da tradição da filosofia da História, começaria a denominar em sua
obra política mais marcante de “a condição – não apenas a conditio sine qua non, mas a conditio per
228 Cf. ARENDT, H. A Condição Humana, p. 249, na qual a autora diz: “Onde quer que as pessoas se reúnam, esse
espaço existe potencialmente, mas só potencialmente, não necessariamente e nem para sempre. A ascensão e a
decadência de civilizações, o declínio e o desaparecimento de impérios poderosos e de grandes culturas sem o
concurso de catástrofes externas – e, na maioria das vezes, essas ‘causas’ externas são precedidas por uma
degenerescência interna que é um convite ao desastre – devem-se a essa peculiaridade do domínio público que, pelo
fato de repousar, em última instância, na ação e no discurso, jamais perde inteiramente seu caráter potencial”. 229 FRATESCHI, Y. “Liberdade política e cultura democrática em Hannah Arendt”. In: Cadernos de filosofia alemã,
dez, 2016, p. 35. 230 FRATESCHI, Y. “Liberdade política e cultura democrática em Hannah Arendt”. In: Cadernos de filosofia alemã,
dez, 2016, p. 35. 231 ARENDT, H. Sobre a Revolução, p. 61.
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quam – de toda vida política”232. Em poucos termos, é a admissão de que a humanidade, enquanto o
conjunto de seres humanos que vivem entre si, é concomitantemente a condição de possibilidade da
experiência política e a razão pela qual a política se faz necessária: no sentido de oferecer um outro
modo de vida aos homens, não apenas natural e biológico, e no sentido de ser o único domínio
mediador das relações e dos conflitos humanos.
1.1.1: O significado político de um “Período Axial” na história dos homens
Para reforçar os argumentos até aqui desenvolvidos é importante salientar que o registro de
referência a Jaspers nesses contextos em que aparecem o termo “pluralidade” pode ser remetido aos
textos arendtianos escritos antes mesmo do uso explícito, por parte de Arendt, da expressão
“pluralidade humana”, que se remete aos artigos anteriores a 1950. Com isso quero dizer que um dos
principais pilares que sustentariam a teoria política arendtiana pode ser incialmente delineado em seus
comentários e diálogos de juventude teórica com a filosofia de Jaspers. Em uma palestra de 1948,
denominada Rand School Lecture, por exemplo, a autora elogia a conspícua postura política nada
nacionalista de Jaspers nos anos seguintes ao fim da II Guerra e, assim, indica aos seus ouvintes a
leitura do então recente artigo jasperiano The Axial Age of Human History: A Base for the Unity of
Mankind. Sobre esse texto, na mesma época, Arendt envia uma carta a Jaspers afirmando que o ensaio
“fornece uma base sólida para o conceito de humanidade e é conciliador na melhor acepção do termo.
O principal aqui, me parece, é esse elemento de conciliação [...]”233. O vínculo que Arendt estabelece
ao ler o seu ex-orientador é o de que o pluralismo inerente à concepção de humanidade de Jaspers
jamais caberia em nacionalismos exacerbados, de maneira tal que a humanidade não pode ser reduzida
a uma grande família de nacionalidades distintas em disputas de soberania. De fato, da perspectiva
jasperiana, por mais que as diferenças particulares humanas – em povos e culturas distintas – devam
ser mantidas e instigadas politicamente, haveria “algo comum a toda humanidade” 234, algo que une
todos os homens, para além da simples igualdade natural, algo que, como veremos adiante, pode ser
comunicado entre todos, mas sem conglomerar todos homens em uma multidão sem faces. É isso que
Jaspers defende nesse texto que é o primeiro capítulo de Vom Ursprung und Ziel der Geschichte (Da
origem e meta da História), de 1949. Para ele, a história humana nos oferece um momento factual
empírico, que nos possibilita um juízo de valor (sempre em disputa argumentativa) na tentativa de
232 ARENDT, H. A Condição Humana, p. 09. 233 Apud ARENDT, H. Essays in Understanding, p. 222, grifo meu. In: Compreender: formação, exílio e totalitarismo,
p. 250. 234 JASPERS, K. The Origin and Goal of History, p. 19.
70
significá-lo, capaz de representar e colocar em comunicação toda a humanidade existente até os tempos
de hoje, sem que, com essa análise, deixe-se cair em pontos de vistas e posicionamentos nacionalistas,
etnocêntricos, ou simplesmente eurocêntricos.
Jaspers inicia o seu raciocínio ao dizer que o grande problema da filosofia da história ocidental,
de Agostinho a Hegel, os quais tentaram estabelecer um sentido universal à consciência histórica
humana, é que sua fundação se encontra exclusivamente na fé cristã. Desse modo, obviamente, uma
visão histórica que tem no nascimento de Cristo o seu ponto determinante “sofre do defeito de que só
pode ser válida para cristãos”235, o que deixaria grande parcela da humanidade à margem do foco,
inclusive no próprio mundo ocidental. O que Jaspers procura, portanto, é um novo eixo para entender
a formação dos homens a partir de eventos históricos que possam ser universalizados por dizerem
respeito àquilo que denominamos de “humanidade”, mas sem marco inicial em “particulares artigos
de fé”236. É isso que o autor quer representar com a expressão “Período Axial”, ou seja, um momento
central, um ponto principal, a determinação de um eixo situado na história que não sublima as
particularidades de cada ser humano no mundo, mas que ao mesmo tempo “deu nascimento para tudo
aquilo que, desde então, o homem foi capaz de ser [...] um quadro de auto-compreensão histórica para
todas as pessoas – para o Ocidente, para a Ásia e para todos os homens na Terra”237. Arendt comenta
que essa é a grande descoberta histórica jasperiana, “que veio a tornar-se a pedra angular da sua
filosofia da história [de Jaspers], da origem e da meta da história”238. Jaspers demarca esse período
entre os anos 800 a.C e 200 a.C, mais especificamente por volta dos anos 500 antes da vinda de Cristo.
A principal justificativa para essa data é o fato de que simultaneamente, mesmo que por vias
completamente distintas, para o autor, tanto na China quanto na Índia e no oriente médio, assim como
na Grécia enquanto principal representante do mundo ocidental, aconteceram eventos independentes
uns dos outros que delineariam os modos pelos quais nós conhecemos os homens atualmente. Para ele,
essa época é caracterizada pela constituição de categorias tradicionais de pensamento a todos os
homens, pelo surgimento de crenças religiosas que perduram ainda hoje em todo o mundo e pelo
aparecimento de impérios civilizatórios que desenvolveriam paulatinamente a educação cultural, as
condições para a sociabilidade e o espírito humano aos quais ainda pertencemos ou compartilhamos.
Jaspers elenca, a título de exemplos, que o desenvolvimento da racionalidade humana em oposição às
explicações místicas do universo não foi uma exclusividade grega e, portanto, ocidental, mas que está
235 JASPERS, K. The Origin and Goal of History, p. 01, tradução minha. 236 JASPERS, K. The Origin and Goal of History, p. 01, tradução minha. 237 JASPERS, K. The Origin and Goal of History, p. 01, tradução minha. 238 ARENDT, H. “Karl Jaspers: Cidadão do Mundo?”. In: Homens em Tempos Sombrios, p. 107.
71
presente também nos insights decisivos da filosofia chinesa de Confúcio e Lao-Tsé, e ainda no
pensamento indiano de Buda ou asiático de Zaratustra. O autor também enumera que a dinastia Qin
Shi Huang Di chinesa e o Império Máuria indiano possuem significados políticos e sociais aos seus
povos paralelos ao helenismo e ao Império Romano para o mundo ocidental. Na explicação de Arendt
sobre esse assunto:
[...] é o tempo em que [...] o homem descobre o Ser como um todo e descobre-se
a si próprio como radicalmente diferente de todos os outros seres; em que, pela
primeira vez, o homem se torna (nas palavras de Agostinho) uma interrogação
para si próprio, toma consciência da consciência, começa a pensar sobre o
pensamento; em que por toda a parte surgem grandes personalidades que já não
aceitam ser, nem querem ser aceitos, como simples membros das suas respectivas
comunidades, antes, se consideram como indivíduos e concebem novas formas de
vida individuais – a vida do sábio, a vida do profeta, a vida do eremita que se
retira da sociedade para uma interioridade e uma espiritualidade inteiramente
novas [...] Foi o tempo em que a humanidade descobriu a condição humana no
mundo, pelo que a partir de então a simples sequência cronológica dos
acontecimentos pode tornar-se uma história, e as histórias puderam conjugar-se numa História, um objeto relevante de reflexão e compreensão239.
Apesar das críticas ou das desconfianças em relação a quais critérios Jaspers lança mão para
demarcar esse suposto “Período Axial” da humanidade, ou mesmo se se trata de paralelos factíveis
entre realidades históricas tão distintas – objeções possíveis que o próprio autor antecipa em suas
discussões240 – interessa sobretudo ao pensador alemão destacar duas hipóteses interpretativas centrais.
A primeira, que esse período se comporta como um turbilhão histórico, no sentido de alterar toda a
realidade anterior a ele e também no sentido de transformar praticamente tudo aquilo que viria a ser
posteriormente. Isto quer dizer, civilizações antigas e a denominada pré-história chegaram ao fim com
o despontar desse período; além disso, quaisquer outros tipos de civilizações ou povos permaneciam
considerados “primitivos” até o momento em que tiveram contato – ou foram colonizados à força –
pela expansão territorial do que foi construído cultural, política e socialmente durante esse eixo
histórico. Assim, Jaspers conclui que “ainda hoje a humanidade vive de acordo com o que aconteceu
durante o Período Axial, de acordo com o que foi pensado e criado durante esse período”241. A segunda
239 ARENDT, H. “Karl Jaspers: Cidadão do Mundo?”. In: Homens em Tempos Sombrios, pp. 107-108. 240 Cf., sobre isso JASPERS, K. The Origin and Goal of History, pp. 08-11. Jaspers elenca e discute sobre três
prováveis objeções à sua própria tese: 1) a de que esse elemento comum seria apenas aparente; 2) o período axial não
seria um fato, mas um produto de juízo de valor; 3) o paralelo que ele realiza não teria caráter histórico. 241 JASPERS, K. The Origin and Goal of History, p. 07. No quinto capítulo de Vom Ursprung und Ziel der Geschichte
Jaspers reafirma: “Uma vez que a ruptura do Período Axial tenha tomado lugar, uma vez que o espírito que ali cresceu
tenha sido comunicado, por meio de ideias, obras e construções, a todos que foram capazes de ouvir e compreender,
uma vez que essas possibilidades infinitas tenham se tornado perceptíveis, todos os povos que vieram depois se
tornaram históricos pela virtude da intensidade com a qual eles se agarraram a essa ruptura e pela profundidade com
a qual sentiram a si mesmos ao se comunicarem com ela” (p. 55).
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hipótese é a de que há uma compreensão mútua e profunda entre as três áreas representantes desse
período. Tanto é assim que, segundo Jaspers, a despeito de línguas, culturas, “verdades” e experiências
completamente distintas e afastadas umas das outras, quando esses mundos se encontraram
factualmente o estranhamento não se sobrepôs ao possível reconhecimento recíproco de que aqueles
homens lidavam com os mesmos problemas e as mesmas questões. Isso só aconteceu porque, como
resultado profícuo dessas transformações, havia ali solo comum comunicacional para a humanidade.
Trata-se de perceber e interpretar o curioso fato de que esses distintos povos não se fecharam em seus
próprios sistemas de operações sociais e de conhecimento, pois as próprias “verdades” às quais se
apegavam (fossem religiosas, dogmáticas, filosóficas, políticas ou culturais) eram comunicativas e
compreensivas a estranhos, homens de outras regiões. Arendt ilustra que, nesse sentido, a unidade do
gênero humano não pode consistir “num acordo universal em torno de uma religião, ou de uma
filosofia, ou de uma forma de governo, mas sim na fé em que o múltiplo aponta para uma Unidade que
a diversidade ao mesmo tempo oculta e revela”242. A defesa jasperiana, portanto, é de que a grande
ruptura desse período foi acompanhada pela possibilidade de comunicação entre diferentes povos e,
assim, tal ruptura “foi como o começo da humanidade. Todo contato posterior com ela é como um
novo começo”243. O que o autor alemão denomina por realidade da humanidade em geral, então, e que
certamente é o ponto a receber destaque para Arendt, não faz sentido sem essa capacidade potencial
de comunicação entre as mais diferentes pessoas e épocas.
É interessante notar que praticamente todos os cursos e palestras ministrados por Arendt nas
academias norte-americanas durante os anos de 1950, que diziam respeito a temas políticos
contemporâneos, possuíam essa obra de Jaspers como bibliografia básica. Ou seja, o pensamento vivo
de Arendt, a consciência da autora em relação à sua própria época, passava pela leitura dos escritos
jasperianos. Em uma carta de 1951 a Jaspers, a autora comenta que iria oferecer uma palestra sobre a
totalidade da filosofia existencial jasperiana, ao que Jaspers responde: “eu adoraria estar na plateia”244.
Embora Arendt não assuma a concepção de um “Período Axial” na história humana em suas obras, o
elogio que ela faz a esse aspecto do pensamento jasperiano se liga muito menos às causas ou defesas
para a existência desses eventos, e se orienta muito mais para os significados que Jaspers retira dessas
hipóteses, a fim de compreender, nas palavras dele, a “nossa consciência histórica atual, assim como a
consciência da nossa situação presente [...] independentemente se essa tese seja aceita ou rejeitada.
242 ARENDT, H. “Karl Jaspers: Cidadão do Mundo?”. In: Homens em Tempos Sombrios, p. 109. 243 JASPERS, K. The Origin and Goal of History, p. 55, tradução minha. 244 KOHLER, L; SANER, H. Hannah Arendt Karl Jaspers Briefwechsel 1926-1969, p. 208, Carta 112.
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Trata-se da maneira pela qual a unidade da humanidade se tornou uma realidade concreta para
nós”245. Segundo Jaspers, aventar a hipótese desse desenvolvimento histórico da humanidade (não
biológico e nem pré-determinado) é também enfrentar o desafio da necessidade de uma comunicação
ilimitada, sem fronteiras (“challenge to boundless communication”; “grenzenlose Kommunikation”)
entre os homens. Com isso ele quer afirmar: somente a comunicabilidade entre esses povos possibilita
abrir espaço para compreender o outro, ver e escutar da perspectiva dos outros, de tal modo que
diferenças culturais ou religiosas não sejam fronteiras intransponíveis ou pontos iniciais
incontornáveis. Arendt diz que essa é a ideia central do pensamento de Jaspers, e sua pertinência está
no fato de que a comunicação ilimitada “significa ao mesmo tempo a fé na compreensibilidade de todas
as verdades e a disposição para revelar e para ouvir como condição primeira de toda e qualquer relação
humana”246. É tendo em vista esse projeto teórico de Jaspers que Arendt comenta, em uma carta de
1950 ao seu ex-orientador, que a obra jasperiana teria a função de “desprovincializar” a filosofia, isto
é, retirá-la de um caráter exclusivamente europeu, pois era ele quem daria a última palavra sobre a
filosofia ocidental e, num mesmo movimento, a primeira palavra sobre uma filosofia mundial
(“Weltphilosophie”)247. Ou como ela se expressa em um texto de 1958 que compõe a obra Homens em
Tempos Sombrios, “[...] Jaspers, pelo menos em todos os textos posteriores a 1933, escreveu sempre
como se tivesse de responder por si perante a humanidade inteira”248. O autor alemão expõe essa visão
pelo menos desde quando se mudou de Heidelberg para a Basiléia, em 1948, ano no qual ofereceu seu
primeiro seminário sob o título de Probleme einer Weltgeschichte der Philosophie (“Problemas de uma
história mundial da filosofia”), até o fim de sua vida, como afirma em seu texto necrológico sobre sua
contribuição intelectual: “encontrar o caminho que conduz, do termo da filosofia europeia, à futura
filosofia mundial”249. Isso só foi possível, como diz Arendt, porque a comunicação constitui o centro
existencial do pensamento de Jaspers. Ora, de um lado, se os homens necessitam dos outros para vir a
ser aquilo que são, logo, o que permite e constitui esse processo é sobretudo a capacidade de
comunicação entre eles. “Razão pela qual a comunicação existencial integra a condição original do
ser-no-mundo”250. Por outro lado, se é possível assumir uma unidade histórica da humanidade, como
realidade e com significados políticos, a comunicação desempenha esse mesmo papel conciliador de
245 JASPERS, K. The Origin and Goal of History, p. 21, tradução e grifos meus. 246 ARENDT, H. “Karl Jaspers: Cidadão do Mundo?”. In: Homens em Tempos Sombrios, p. 104. 247 Cf. KOHLER, L; SANER, H. Hannah Arendt Karl Jaspers Correspondence 1926-1969, Carta 105. 248 ARENDT, H. “Karl Jaspers: uma laudatio”. In: Homens em Tempos Sombrios, p. 91. 249 JASPERS, K. “Texto necrológico escrito por Karl Jaspers”. In: HERSCH, J. Karl Jaspers, p. 105. 250 PERDIGÃO, A. “A Filosofia Existencial de Karl Jaspers”. In: Análise Psicológica, p. 550.
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todas as diferenças que, jamais descartadas, definem individualmente, singularmente, cada um de nós.
É o que Arendt sintetiza nos seguintes comentários:
É sobre este pano de fundo de realidades políticas e espirituais, de que Jaspers tem, provavelmente, mais consciência do que qualquer outro filósofo do nosso
tempo, que devemos entender a sua nova concepção do gênero humano e as
propostas de sua filosofia [...] O que agora começa [...] é a história da humanidade.
O que essa história virá a ser, não o sabemos. Podemos preparar-nos para ela
através de uma filosofia da humanidade cujo conceito central seria o conceito
jasperiano da comunicação. Uma tal filosofia não abolirá, nem criticará sequer,
os grandes sistemas filosóficos do passado na Índia, na China e no Ocidente, mas
despojá-los-á das suas dogmáticas pretensões metafísicas, dissolvendo-as, por
assim dizer, em correntes de pensamento que se encontram e se cruzam entre si,
comunicam umas com as outras e em última análise apenas retêm aquilo que for
universalmente comunicativo251.
Para dizer de acordo com Jaspers, “uma coisa é enxergar a unidade da história a partir da sua
própria perspectiva e à luz da sua própria fé, outra coisa é pensar nisso em comunicação com a
perspectiva de todos os outros seres humanos, conectando sua própria consciência à consciência
alheia”252. Com a mesma denotação que Jaspers se utiliza da palavra “grenzenlose”/“boundless”, para
se referir à comunicação não fronteiriça e sem limites entre os homens, Arendt também, em A Condição
Humana, refere-se à ilimitabilidade – “boundlessness” – componente da ação política em geral. Ela
diz: “[...] seja qual for o seu conteúdo específico, a ação sempre estabelece relações, e tem, portanto, a
tendência inerente de romper todos os limites e transpor todas as fronteiras”253. Isto é, a autora diz que
as ações e as palavras humanas participam de uma rede de relacionamentos global que se comporta
como uma reação em cadeia: as consequências das ações se tornam ilimitadas na medida em que um
novo processo iniciado por uma ação, por exemplo, é causa de outros processos e assim
sucessivamente, bastando um único ato ou uma única palavra para mudar e reiniciar todo o conjunto.
Todavia, o que interessa principalmente desse argumento é a relação que Arendt realiza entre a
ilimitabilidade das ações e o significado usual da palavra “lei”, que tradicionalmente foi definida em
termos de fronteiras, muros e limitações. É como se as leis nacionais, por exemplo, fossem as fronteiras
que tentassem conter internamente o caráter ilimitado das ações de seus cidadãos e de seu próprio
corpo político. Esse fato, para Arendt, deve ser analisado de modo duplo: por um lado, seria legítimo
e necessário tentar encontrar estabilidade institucional em meio à ilimitabilidade do agir humano, de
tal modo que “a antiga virtude da moderação, de se manter dentro dos limites, é realmente uma das
251 ARENDT, H. “Karl Jaspers: Cidadão do Mundo?”. In: Homens em Tempos Sombrios, pp. 102 e 110. 252 JASPERS, K. The Origin and Goal of History, p. 21, tradução minha. 253 ARENDT, H. A Condição Humana, p. 238.
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virtudes políticas por excelência”254; por outro lado, contudo, as limitações legais e as fronteiras
territoriais não conseguem (e nem devem) contornar por completo esse caráter ilimitado das ações.
“Os limites e fronteiras existem no domínio dos assuntos humanos, mas eles jamais chegam a constituir
estrutura capaz de resistir de modo confiável ao assalto por meio do qual tem de se inserir nele cada
nova geração”255. Em termos mais diretos: mesmo as leis constituídas pelos homens devem ter em
conta que o seu objeto de limitação – as ações e as palavras humanas – traz em seu âmago uma semente
de ilimitabilidade, de transposição, de contato e de comunicação para além de qualquer fronteira, que
jamais pode ser cortada pela raiz. Do ponto de vista do fato da realidade da humanidade na globalização
contemporânea, dessa forma, Jaspers aposta nessa força comunicativa ilimitada – inerente à natalidade
humana nos termos de Arendt – entre os homens.
Para voltar à definição arendtiana de “pluralidade” em A Condição Humana, nas primeiras
páginas do V Capítulo da obra, nota-se que os elementos da igualdade e da diferença humanas
implicam, ambos, na capacidade de comunicação entre os homens. Sendo assim, esses dois aspectos
são constitutivos da experiência política; ou melhor, pode-se dizer que, para a autora, é no domínio
público que igualdade e diferença encontram formas convenientes de expressão. Primeiramente,
porque de acordo com a perspectiva arendtiana somos iguais apenas na medida em que somos capazes
de nos compreender, como já explanado, e sem isso os homens não teriam capacidade de “fazer planos
para o futuro, nem prever as necessidades daqueles que virão depois deles”256. Ao escrever sobre A
Revisão da Tradição em Montesquieu, na década de 1950, Arendt explica que essa “igualdade” não
pode ser confundida com a ideia comum da igualdade de todos os homens perante Deus, muito menos
com qualquer visão que diminua a possibilidade das distinções humanas. A igualdade, segundo Arendt,
é simplesmente a comprovação de que não somos solitários no mundo, pois confirmamos por meio
dela a existência de outros como nós. “Estar só significa não ter iguais [...] É somente na medida que
estou entre iguais que não estou só”257. O fato de que “nascemos iguais na absoluta diferença e distinção
em relação aos outros”258 ganha dimensão política ao passo que essa condição dada a todos os homens
deve ser radicalmente resguardada pelo próprio âmbito da ação humana, pelo próprio âmbito no qual
se perfazem as diferenças humanas particulares, com tal força que sempre reste algo que conecte
diferentes homens de distintas nações, povos e culturas. Em uma anotação desse mesmo movimento
254 ARENDT, H. A Condição Humana, p. 239. 255 ARENDT, H. A Condição Humana, p. 238-239. 256 ARENDT, H. A Condição Humana, p. 219 e 220. 257 ARENDT, H. “A Revisão da Tradição em Montesquieu”. In: A Promessa da Política, p. 115. 258 ARENDT, H. “A Revisão da Tradição em Montesquieu”. In: A Promessa da Política, p. 114.
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reflexivo, Arendt diz: “Assim como não existe o ser humano como tal, mas somente homens e mulheres
que em sua absoluta distinção são iguais, ou seja, humanos, essa indiferenciação humana comum é a
igualdade que, por sua vez, só se manifesta na diferença absoluta de um igual em relação ao outro”259.
Nesse sentido, mesmo com os inúmeros contextos históricos e pessoais que acabam por participar dos
discursos e dos atos únicos que formam uma identidade humana diferente de todos os outros homens
existentes, esta identidade particular jamais é ensimesmada, uma vez que também só se faz
compreensível no diálogo em comunidade, mesmo em sua unicidade. Um pouco mais à frente nesse
mesmo argumento, ela finaliza: “Se, por conseguinte, ação e discurso são as duas atividades políticas
por excelência, diferença e igualdade são os dois elementos constitutivos dos corpos políticos”260. Isto
é, os seres humanos, iguais enquanto espécie, necessitam da política para se fazerem iguais e, por mais
que isso possa soar paradoxal, necessitam da política e do âmbito público também para serem
diferentes. É isso que Arendt diz em passagens como em A Condição Humana: “A igualdade presente
no domínio público é necessariamente uma igualdade de desiguais que precisam ser ‘igualados’ sob
certos aspectos e para propósitos específicos. Como tal, o fator igualador não provém da ‘natureza’
humana, mas de fora [...]”. Em vista disso, assim como o conceito de humanidade jasperiano, a
pluralidade em Arendt permite um espaço compreensivo que trate dos homens seja pelo prisma de suas
condições existenciais comuns – que os generaliza sem recorrer a definições últimas –, seja também
pelo viés das inescapáveis contingências às quais cada ser humano e cada reunião política enfrenta em
suas realidades particulares. Ou como afirma Renata Brito: “Arendt delineia uma noção de pluralidade
(ou de humanidade plural) que é mais do que homens singulares e diferentes entre si, incluindo nessa
noção a ideia de que eles partilham algo em comum que lhes possibilita, em conjunto, serem plurais”261.
Esse algo em comum é o mundo, não uma suposta natureza humana; e, portanto, é só politicamente
que a humanidade, enquanto realidade histórica, pode ser experenciada. Arendt comenta:
Nesta perspectiva, a nova unidade do gênero humano poderia adquirir um passado
próprio através de um sistema de comunicações, por assim dizer, em que as
diferentes origens da humanidade se revelassem na sua própria identidade. Mas
esta identidade está longe de ser uniformidade; tal como o homem e a mulher só
podem ser idênticos, ou seja, humanos, sendo absolutamente diferentes um do
outro, também o natural de cada país só pode entrar nesta história universal da
humanidade permanecendo e agarrando-se obstinadamente àquilo que é. Um
cidadão do mundo, vivendo sob a tirania de um império mundial, falando e
259 Apud KOHN, J. Introdução de A Promessa da Política, p. 30. 260 Apud KOHN, J. Introdução de A Promessa da Política, p. 30. 261 BRITO, R. Direito e Política na Filosofia de Hannah Arendt, pp. 87-88.
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pensando numa espécie de Esperanto solene, seria tão monstruoso como um
hermafrodita262.
Para avançar um pouco mais, cumpre dizer que, em ambos os autores trabalhados, o ponto de
vista existencial acaba por determinar o ponto de vista político. Pois, em Arendt, sendo os homens
simultaneamente plurais e singulares, iguais a todos e distintos de todos, a interpretação da existência
humana jamais concede espaço para uma concepção ontológica que encontra substancialidade nos
homens. Em A Condição Humana a discussão a respeito de como alguém aparece enquanto uma pessoa
no domínio público, de como um homem se revela qua homem, ou uma mulher qua mulher, é
destituída de quaisquer argumentos de teor quididativo que pretendam atribuir uma natureza aos
homens. O “quem” individual de cada um de nós se atualiza e reatualiza publicamente a cada aparição
aos outros e, por isso, não se trata de um “quê” que possa ser propriamente definido, seja pelos
espectadores seja introspectivamente. Essa espécie de antiontologia fundamental subjaz a defesa
arendtiana da dignidade da ação e do discurso em patamar hierárquico superior às outras atividades da
vita activa (trabalho e obra), pois uma vida sem a unicidade de atos e palavras seria, para ela, a rigor,
“literalmente morta para o mundo; deixaria de ser uma vida humana, uma vez que já não é vivida entre
os homens”263. Jaspers também, em diversas de suas produções intelectuais, sobretudo naquelas que
são introdutórias aos temas filosóficos, refere-se ao homem como o ser que é “fundamentalmente mais
do que o que pode saber acerca de si próprio”264. Para ele, muito embora o homem seja estudo de si
mesmo por meio de diversas objetividades científicas, e mesmo que isso nos ofereça conhecimentos
sobre nós mesmos, o homem sempre escapa à compreensão completa de si mesmo. Afinal, diz o autor,
como já antecipei, estamos dispostos a nós mesmos em duas modalidades de existência. Primeiro,
enquanto pertencentes corporalmente ao mundo (enquanto Dasein, um sujeito empírico, ser-aí,
localizado espaço-temporalmente em uma vida entre outros homens), suscetíveis, portanto, de
investigações de conhecimento. E, segundo, enquanto a “existência [...] inacessível a qualquer
estudo”265. Nesse sentido, ao discutir algumas objeções a esse pressuposto de sua filosofia existencial
em Razão e Existência, Jaspers diz que a investigação de algo não objetivado, como a Existenz, não se
equivale a um “intento de saltar sobre a própria sombra”266, justamente porque o autor alemão não
trabalha na esfera da produção de conhecimento. Em Jaspers, discípulo de Kant, não se trata de
conhecer (Verstand) a existência, mas de penetrá-la e esclarecê-la a partir de um pensamento (Vernunft)
262 ARENDT, H. Karl Jaspers: Cidadão do Mundo?. In: Homens em Tempos Sombrios, p. 109. 263 ARENDT, H. A Condição Humana, p. 221. 264 JASPERS, K. Iniciação Filosófica, p. 65. 265 JASPERS, K. Iniciação Filosófica, p. 65. 266 JASPERS, K. Razon y Existencia, p. 145.
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que não se confunde com qualquer tipo de cientificismo267. Nas palavras de Jaspers: “Assim, minha
filosofia [...] não é ontológica, senão penetrativa”268. Nesse contexto, é importante perceber que, ao
iniciar sua principal obra política, Arendt se utiliza da mesma metáfora jasperiana do “pulo sobre a
sombra” para explicar aquilo que a análise da condição humana no mundo não assume: “É altamente
improvável que nós, que podemos conhecer, determinar e definir as essências naturais de todas as
coisas que nos rodeiam e que não somos, sejamos capazes de fazer o mesmo a nosso próprio respeito:
seria como pular sobre nossas próprias sombras”269. Para seguir com o paralelo entre os autores, então,
do ponto de vista existencial jasperiano não é possível conceber um homem imutável, pois estamos
sempre em mutação, submetidos a escolhas e ações contínuas, em condicionamentos que acabam por
nos alterar de maneira individual, social, política e culturalmente. Para ele também não há uma
essência, não há um “quê” a ser desvendado quando o assunto se resume à existência dos homens, pois
toda imagem do homem já é uma limitação imposta a uma gama ilimitada de espontaneidade.
Ao analisar a gênese da teoria política arendtiana à luz de pontuais aproximações da autora ao
pensamento de Jaspers, portanto, é necessário dar razão a uma observação de Seyla Benhabib presente
267 Tanto Arendt quanto Jaspers se vinculam à notória distinção kantiana entre pensamento (“razão” – Vernunft) e
conhecimento (“intelecto” – Verstand). Isso se faz crucial em suas empreitadas teóricas. Arendt afirma que Kant não
percebeu que com esta diferenciação – que tinha o objetivo de traçar os limites do conhecimento sobre coisas que a
razão, no entanto, continuava a pensar (como as questões metafísicas sobre Deus, liberdade e imortalidade) – ele não
abria espaço para a fé, mas, sim, para o pensamento. Isto é, ela concorda que o conhecimento se liga àquilo que se dá
na cognição, trata-se da comprovação da existência de algo, de uma busca pela verdade ao passo que produz resultados
específicos e precisos. O pensamento, por sua vez, como faculdade distinta do conhecimento, caracteriza-se pela
reflexão, pelo interrogar; questiona o sentido de tudo o que acontece, busca pelo significado de alguma coisa, trata-se da “necessidade da razão” da qual Kant tanto comentava. Portanto, o “pensar” é especulação que nunca irá oferecer
os mesmos resultados precisos, verificáveis e supostamente universais dos processos cognitivos, pois lida com
invisíveis, com algo que não está à mão. Junto a Arendt: “a necessidade da razão não é inspirada pela busca da verdade,
mas pela busca do significado. E verdade e significado não são a mesma coisa. A falácia básica que preside a todas as
falácias metafísicas é a interpretação do significado no modelo da verdade” (ARENDT, H. A Vida do Espírito, p. 30).
Os filósofos antigos que fizeram nascer a metafísica, bem como aqueles modernos que seguiram o mesmo caminho
da tradição, segundo Arendt, ao interpretarem o fruto de seus próprios pensamentos como resultados do conhecimento
(como verdade comprovada) não perceberam que a filosofia talvez seria uma atividade apenas para “amigos da
sabedoria”, e não para detentores do saber universal e imutável. Desse modo, ao formularem as irrespondíveis questões
de significado, os homens se mostram como seres interrogadores, seres que possuem uma faculdade que não se ocupa
de nada a não ser de si mesma – a razão pura, atestada por Kant, que não pode possuir qualquer vocação além de si, mas que também não pode evitar com que continue perguntando indefinidamente. Para Arendt, uma autocrítica
filosófica deveria perceber que “se o pensar fosse um empreendimento cognitivo, ele teria que seguir um movimento
retilíneo que partisse da busca de seu objeto e terminasse com sua cognição” (ARENDT, H. A Vida do Espírito, p.
144.). Segundo a autora, “quando distingo verdade e significado, conhecimento e pensamento, e quando insisto na
importância dessa distinção, não quero negar a conexão entre a busca de significado do pensamento e a busca de
verdade do conhecimento [...] Esperar que a verdade derive do pensamento significa confundir a necessidade de pensar
com o impulso de conhecer. O pensamento pode e deve ser empregado na busca de conhecimento; mas no exercício
desta função ele nunca é ele mesmo; ele é apenas servo de um empreendimento inteiramente diverso” (ARENDT, H.
A Vida do Espírito, p. 79). 268 JASPERS, K. “Sobre mi filosofía”. In: Balance y Perspectiva (discursos y ensayos), p. 271. 269 ARENDT, H. A Condição Humana. p. 12.
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no sexto capítulo de The Reluctant Modernism of Arendt. Para a autora turca, Arendt “não foi apenas
uma pensadora da ação política; ela também foi uma pensadora da cultura e instituições humanas, dos
partidos e movimentos políticos, das identidades individuais e coletivas, das tendências históricas e
das possibilidades futuras”270. Ora, parece claro, pelo exposto até aqui, que a ênfase na característica
da pluralidade humana deve ser entendida para além de um fato dado e acabado em si mesmo, mas,
antes, como uma condição alimentada, realizada e radicalizada por meio de canais políticos e nas
diversas relações intersubjetivas e em comunidades humanas. A força disso no pensamento arendtiano
pode ser constatada desde o último tópico da II Parte de Origens do Totalitarismo, a título de exemplo,
quando Arendt discute sobre “as perplexidades dos Direitos dos Homens” e identifica a situação de
perda da condição política (cidadã) à expulsão da humanidade271, ou do contexto da pluralidade
humana, nesse contexto analisadas como sinônimos.
Por meio da análise da realidade dos apátridas do século XX, de um só golpe a autora
demonstra as entranhas mortas da noção de “direitos humanos naturais e inalienáveis” e afirma que é
unicamente o pertencimento a algum tipo de comunidade politicamente organizada – e jamais
formulações abstratas pretensamente universais – que garantiria quaisquer tipos de direitos aos
homens272. “The only given condition for the establishment of rights is the plurality of men; rights exist
because we inhabit the earth together with other men [a única condição oferecida para o
estabelecimento de direitos é a pluralidade dos homens; direitos existem porque nós habitamos a terra
juntos de outros homens]”273. Assim, da mesma maneira que Jaspers enxerga a humanidade como um
fato concreto, regulamentada e concebida politicamente – posição que rende elogios por parte de
Arendt –, a pensadora judia também diz em sua obra de 1951 que, após o extermínio de milhões de
pessoas a quem foi negado o direito de pertencimento a um tipo de comunidade, a humanidade tinha
alcançado um papel factualmente político, anteriormente atribuído à natureza ou à história humana.
“[...] A humanidade, que para o século XVIII, na terminologia kantiana, não passava de uma ideia
reguladora, tornou-se hoje de fato inelutável [...] significaria nesse contexto que o direito a ter direitos,
ou o direito de cada indivíduo pertencer à humanidade, deveria ser garantido pela própria
270 BENHABIB, S. The Reluctant Modernism of Arendt, pp. 197-198, tradução minha. 271 Cf. ARENDT, H. Origens do Totalitarismo, p. 330. 272 Arendt diz em seus argumentos: “Como se afirmava que os Direitos do Homem eram inalienáveis, irredutíveis e
indeduzíveis de outros direitos ou leis, não se invocava nenhuma autoridade para estabelecê-los; o próprio Homem
seria a sua origem e seu objetivo último [...] Desde o início, surgia o paradoxo contido na declaração dos direitos
humanos inalienáveis: ela se referia a um ser humano ‘abstrato’, que não existia em parte alguma, pois até mesmo os
selvagens viviam dentro de algum tipo de ordem social” (Origens do Totalitarismo, p. 324). 273 ARENDT, H. apud CANOVAN, M. Hannah Arendt: A Reinterpretation of her political thought, p. 191.
80
humanidade”274. Com isso ela deseja chamar atenção simplesmente para o caso de que o dilema dos
apátridas é um problema de organização política, que não exclui uma visão geral do que significaria
politicamente a humanidade e que ultrapassa questões geográficas ou estado-soberanas, mas sem
pretender defender uma espécie de “governo mundial”275 como forma de resolução para o descompasso
contemporâneo entre cidadania e nacionalidade. Tal descompasso também não é abordado, por Arendt,
pela alusão a qualquer tipo de “otimismo temerário”276 em relação às propostas humanitárias e
idealistas, por mais bem-intencionadas que estas sejam, na tentativa de acolhimento aos párias; nem
pela defesa da postulação de princípios políticos ou morais que orientariam as relações humanas de
um ponto de vista universal. O ponto é que a discussão sobre os direitos de cidadania dos povos sem
nacionalidade (multiplicados no século XX), ou do direito a ter direitos de cada um dos indivíduos, já
anuncia a necessidade da política em sua prática, circunstanciada em determinadas comunidades e em
um contexto histórico no qual, para Arendt, assim como para Jaspers, a humanidade de tornou uma
unidade factual em um “Mundo Único”, pois “já não há qualquer lugar ‘incivilizado’ na terra”277. É
com isso em mente que se explica a afirmação de Arendt em 1958, no discurso de concessão do
“prêmio alemão da Paz” a Jaspers, no qual a autora relembra que seu ex-orientador “sabia que
cidadania e nacionalidade não precisam coincidir e que a cidadania não é uma simples formalidade”278.
Isso quer dizer que, para Arendt, Jaspers tinha uma concepção que condizia com os seus argumentos
em Origens do Totalitarismo. Isto é, de que a cidadania deveria ser garantida por certas formas de
exercício e prática políticas que, ao ter sempre em consideração a constituição de “uma humanidade
completamente organizada”279 na contemporaneidade, se situasse para além de cartilhas formais,
inspeção da natureza humana ou ideais abstratos. No limite, o argumento parte da seguinte premissa:
se perder a cidadania é o mesmo que perder o pertencimento ao âmbito da pluralidade pública e, desse
modo, ser ausentado da vida política que individualiza e ao mesmo tempo sustenta comunidades,
portanto, assim como a cidadania, a pluralidade (baseada na igualdade e diferença humanas) também
274 ARENDT, H. Origens do Totalitarismo, p. 332, grifos meus. 275 No primeiro parágrafo do artigo “Karl Jaspers: Cidadão do Mundo?”, em Homens em Tempos Sombrios, Arendt
afirma o seguinte: “Independentemente da forma que pudesse tomar um governo mundial com poder centralizado
sobre todo o globo, a própria ideia de uma força soberana que governasse a terra inteira, detendo o monopólio de todos
os meios de coerção, nem limitada nem controlada por outras potências soberanas, não só é um pesadelo medonho de
tirania, como representaria o fim de toda a vida política tal como a conhecemos. Os conceitos políticos baseiam-se na
pluralidade, na diversidade e nas limitações mútuas” (p. 99). 276 Cf. ARENDT, H. Origens do Totalitarismo, p. 12. 277 ARENDT, H. Origens do Totalitarismo, p. 330. 278 Apud COURTINE-DENAMY, S. O cuidado com o mundo: diálogo entre Hannah Arendt e seus contemporâneos,
p.38. 279 ARENDT, H. Origens do Totalitarismo, p. 330.
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não é um dado natural. Antes, trata-se de algo artificial, no sentido de ser constituído e assegurado por
organizações políticas – e o mesmo valeria para a noção de humanidade, que se tronaria mero
agrupamento humano, reunião gregária, caso não existissem os canais políticos necessários. Como diz
Arendt, em Sobre a Revolução, ao fazer um elogio ao conceito e às práticas gregas de “igualdade”:
A igualdade existia apenas neste campo especificamente político, em que os
homens se encontravam como cidadãos, e não como pessoas privadas. Nunca é
demais frisar a diferença entre esse antigo conceito de igualdade e nossa noção de
que os homens são feitos ou nascem iguais e se tornam desiguais em virtude de
instituições sociais e políticas, ou seja, criadas pelos homens. A igualdade da pólis
grega, sua isonomia, era um atributo da pólis e não dos homens, que recebiam sua
igualdade em virtude da cidadania e não do nascimento. A igualdade e a liberdade
não eram entendidas como qualidades inerentes à natureza humana, não eram das pela natureza e brotando por si sós; eram convencionais e artificiais, frutos do
esforço humano e qualidades do mundo feito pelos homens [...] A própria ideia
de igualdade – ou seja, todas as pessoas nascem iguais pelo própria nascimento, e
essa igualdade é um direito nato – era absolutamente desconhecida antes da era
moderna280.
Nesse contexto, a referência arendtiana à “humanidade” nos termos kantianos, citada no
parágrafo anterior, não pode ser desconsiderada, sobretudo por não ser um caso isolado ao contexto de
Origens do Totalitarismo. A própria Arendt diz explicitamente o seguinte na coletânea de Homens em
Tempos Sombrios: “Para apreendermos a relevância filosófica dos conceitos de humanidade e de
cidadania mundial, segundo Jaspers, não será descabido recordar aqui o conceito kantiano de
humanidade”281. A partir disso, faço repercutir no tópico que se segue um dos modos pelos quais, para
Arendt, Jaspers é um “legítimo kantiano”.
1.1.2: A “humanidade” em Jaspers como concretização de uma ideia kantiana
Para voltar ao escrito arendtiano que deu início a este capítulo – o texto dela sobre as
preocupações políticas na filosofia europeia dos anos 1950 –, a autora afirma ali que a essência do
pensamento moral kantiano é política282. Para Arendt, a segunda das quatro perguntas fundamentais e
célebres da filosofia de Kant, “O que devo fazer?”283, não é apenas central na totalidade da obra
280 ARENDT, H. Sobre a Revolução, pp. 59 e 70. 281 ARENDT, H. “Karl Jaspers: Cidadão do Mundo?”. In: Homens em Tempos Sombrios, p. 110. 282 Cf. ARENDT, H. “O interesse do atual pensamento filosófico europeu pela política”, In: Compreender: formação,
exílio e totalitarismo, p. 457. 283 As outras perguntas kantianas poderiam ser resumidas nos seguintes termos: “o que posso conhecer?”; “o que posso
esperar?”; e “o que é o homem?”. Jaspers resume as perguntas de sua própria filosofia de um modo kantiano, que
seriam: “o que podemos saber nas ciências?”; “como conseguir comunicação profunda?”; e “como nos é acessível a
verdade?” (JASPERS, K. Sobre mi filosofía, p. 255).
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kantiana, mas é também carregada de significado político, na medida em que, para ela, “atribui a todos
os homens aquelas capacidades de legislar e julgar que, segundo a tradição, haviam sido prerrogativas
dos estadistas”284. Ou seja, a filosofia moral de Kant se distinguiria do montante do pensamento
tradicional do Ocidente por pressupor capacidades políticas a todas as pessoas que, em pluralidade de
ações, compõem o espaço público. Assim, teria o mérito de não restringir a atividade política julgadora
a determinados “políticos profissionais”. Por mais que Arendt, anos mais tarde, vá dizer que a filosofia
política de Kant se mostra principalmente por meio de sua crítica sobre a faculdade humana do gosto,
pois é só na terceira Crítica que o autor alemão “fala dos homens no plural”285, ainda assim é importante
entender por que, no início dos anos 1950, Arendt faz a ressalva de que subjacente ao Imperativo
Categórico, por trás da atividade moral legisladora presente em todos os seres racionais, haveria um
princípio político: que seria “a ideia de humanidade”286.
Supõe-se que para acompanhar esse raciocínio arendtiano é necessário notar, mais uma vez por
intermédio do pensamento jasperiano, que essa “ideia de humanidade” kantiana, para ela, tornou-se
uma realidade concreta a partir dos eventos históricos, técnicos e políticos do século XX. Não há como
mais pensar politicamente, na realidade atual, sem perceber que as narrativas históricas individuais e
coletivas estão entrelaçadas em uma teia de relações que agora é global, que se entrecruza e afeta outras
histórias num contexto que abarca toda a humanidade terrena. Não é sem motivos, portanto, que Arendt
diz no texto O que é Política? que as interrogações sobre o mundo atual começam a partir da
experiência concreta da bomba atômica, pois a ativação desta pode representar o fim da humanidade
por meios políticos287. Ou, como ela diz ser o pano de fundo da redação de A Condição Humana, no
prólogo da obra: “politicamente, o mundo moderno em que vivemos hoje nasceu com as primeiras
explosões atômicas”288. Isto representa que as principais questões políticas contemporâneas, para
Arendt, nasceram de uma dupla-possibilidade que o avanço técnico propiciou aos homens: por um
lado, a esperança de fuga do aprisionamento terrestre mediante a corrida espacial; por outro lado, o
poder de destruição da própria existência humana pela descoberta da fissão atômica. Essas são as
experiências políticas basilares de nossa época e, para Arendt, “passar ao largo delas é como se não
284 ARENDT, H. “O interesse do atual pensamento filosófico europeu pela política”, In: Compreender: formação,
exílio e totalitarismo, p. 457. 285 ARENDT, H. A Vida do Espírito, p. 512. 286 ARENDT, H. “O interesse do atual pensamento filosófico europeu pela política”, In: Compreender: formação,
exílio e totalitarismo, p. 457. 287 Cf. ARENDT, H. “Introdução na Política”. In: KOHN, J (org) A Promessa da Política, p. 163. 288 ARENDT, H. A Condição Humana, p. 07.
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tivesse vivido no mundo que é nosso”289. Destarte, é justamente por ter essa concepção da
concretização da ideia de humanidade kantiana que ela conclui: “Entre todos os filósofos aqui
considerados, Jaspers ocupa uma posição única, no sentido de ser o único discípulo convicto de Kant,
o que, em nosso contexto, tem um peso todo especial”290. Em Die Atombombe und die Zukunft des
Menschen (A Bomba Atômica e o Futuro dos homens), Jaspers assume a existência contemporânea de
um “novo fato” político, uma “nova realidade”, gerado pelas explosões atômicas e pelo consequente
assombro de uma iminente guerra nuclear mundial. É apenas a partir dessa escala global que se pode
concluir que, diante de sua possível aniquilação, a humanidade tornou-se um fato político para si
mesma. Para colocar nos termos de uma experiência política consumada para Arendt, isso quer dizer
que, após a realidade das bombas, a humanidade “[...] é agora um fato acabado. Não é o resultado
deliberado de ninguém, nem sujeita a decisão ulterior”291. Ao comentar a respeito desse cenário em
Sobre a Revolução, com referência implícita a Kant, a autora diz que a ideia de “liberdade” surge
repentinamente no debate sobre a questão da guerra nuclear justamente como argumento para
contrabalancear o poderio dos meios de destruição dos homens, tal poderio que foi propiciado pelo
estágio avançado do desenvolvimento técnico e que não poderia mais ser usado com base lógica
racional. “Em outras palavras, a liberdade aparece neste debate como um deus ex machina para
justificar o que se tornou injustificável em bases racionais”292. É como se o recurso à ideia de liberdade
fosse a única alternativa para convencer os próprios homens a evitarem o potencial fim da humanidade
pelo aniquilamento total de si mesmos. Somente assim, pergunta-se Arendt, poderia ocorrer “o
desaparecimento da guerra do cenário político, mesmo sem uma transformação radical das relações
internacionais e sem uma mudança interior dos homens? Será que nossa atual perplexidade nesse
assunto não indica nosso despreparo para o desaparecimento da guerra [...] ?”293. De qualquer modo,
foi exatamente um evento mundano, político, feito pelos homens, que não apenas autorizou Jaspers a
interpretar a ideia kantiana de uma humanidade unificada como uma concretude extremamente atual,
mas também a apontar o perigo real do “cemitério da espécie humana” como único caminho possível
para a paz perpétua, como afirma Kant:
[...] uma guerra de extermínio (na que pode ocorrer a destruição de ambas partes
e, portanto, de todo o Direito) somente possibilitaria a paz perpétua sobre o grande
289 ARENDT, H. “Será que a política ainda tem de algum modo um sentido?”. In: A Dignidade da Política, p. 118. 290 ARENDT, H. “O interesse do atual pensamento filosófico europeu pela política”. In: Compreender: formação,
exílio e totalitarismo, p. 457, grifo meu. 291 ARENDT, H. “A Tradição e a época moderna”. In: Entre o Passado e o Futuro, p. 54. 292 ARENDT, H. Sobre a Revolução, p.39. 293 ARENDT, H. Sobre a Revolução, p. 39.
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cemitério da espécie humana e, consequentemente, não se pode permitir nem uma
guerra semelhante, nem o uso dos meios que conduzem a ela. O fato de os citados
meios conduzirem inevitavelmente a ela vem de estas artes infernais, por si
mesmas vis quando utilizadas, não permanecerem por muito tempo dentro dos
limites da guerra, mas se transpõem também à situação de paz, como ocorre, por
exemplo, no emprego de espiões (uti exploratoribus), para o qual se aproveita a indignidade de outros (que não se pode eliminar subitamente); desta maneira se
destruiria por completo a vontade de paz294.
A realidade da humanidade que Jaspers interpreta se difere da ideia kantiana, vinculada à “paz
perpétua”295, entretanto, ao passo que, à sombra do detonador da bomba atômica, não se detectaria
atualmente a realização plena do caráter humano do homem nem uma comunidade politicamente unida,
organizada e pacificada. Da perspectiva de Kant, um futuro corpo político de toda a humanidade estaria
sendo preparado sem precedentes no mundo, a partir de um projeto grosseiro até seu o tempo, mas que
aperfeiçoaria todos os membros dessa comunidade. O filósofo alemão diz: “[...] isso alenta a esperança
de que, após muitas revoluções transformadoras, virá por fim a realizar-se o que a Natureza apresenta
como propósito supremo: um estado de cidadania mundial como o seio em que se desenvolverão todas
as disposições originárias do gênero humano”296. Da parte de Jaspers, contudo, embora a cidadania
mundial seja factual no pós-segunda guerra, a unidade da história não se deixa projetar em formas
claras e ideais sem contradição. Ou seja, o verdadeiro sentido histórico de uma humanidade unificada
jamais é atingido por jamais coincidir em um fim único, uma vez que se realiza como movimento
sempre alocado entre novos começos e novos fins. Jaspers resume o seguinte: “Essa unidade não se
pode atuar nem como homem completo, nem como organização perfeita do mundo, e muito menos
como compreensão recíproca e acordo definitivo entre homens, doravante profundamente abertos uns
aos outros”297. Em suas produções sobre esse assunto no texto Karl Jaspers: cidadão do mundo?,
Arendt afirma: “A Europa, como Kant previra, ditou as suas leis a todos os outros continentes; mas o
resultado, a emergência da humanidade a partir e a par da subsistência da multiplicidade das nações,
assumiu um aspecto inteiramente diferente do que Kant imaginara ao antecipar a unificação do gênero
humano ‘num futuro remoto’”298. Mais para frente sobre o mesmo assunto a autora complementa: “E
a unidade do gênero humano na sua realidade presente está longe de ser, ao contrário do que Kant
esperava, o consolo ou a recompensa por toda a história passada”299. Ainda assim, para Arendt, essa é
294 KANT, I. Para a paz perpétua, p. 61-62. 295 Cf. KANT, I. Para a paz perpétua. Cf. KANT, I. Ideia de uma História Universal com um propósito Cosmopolita. 296 KANT, I. Ideia de uma História Universal com um propósito cosmopolita, p. 17. 297 JASPERS, K. Vom Ursprung und Ziel der Geschichte. Apud HERSCH, J. Karl Jaspers, p. 104. 298 ARENDT, H. “Karl Jaspers: Cidadão do Mundo?”. In: Homens em Tempos Sombrios, p. 100. 299 ARENDT, H. “Karl Jaspers: Cidadão do Mundo?”. In: Homens em Tempos Sombrios, p. 113.
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uma vantagem política do pensamento teórico jasperiano, cuja raiz é explicitamente derivada de Kant
(embora em diagnóstico distinto), no sentido de a filosofia existencial jasperiana também pressupor a
capacidade legislativa a todos os seres humanos, que consistiria em representar toda a humanidade na
singularidade de si mesmo. Isso não quer dizer outra coisa senão que, no entender de Arendt e de
Jaspers, a unidade emergente da humanidade é um critério para se pensar e para se agir politicamente
no mundo moderno, como explicita o mote da escrita de A Condição Humana300. Em outro texto da
mesma época, ela afirma: “Tal como, segundo Kant, nunca deveria acontecer na guerra nada que
impossibilitasse uma paz e uma reconciliação futuras, também segundo os pressupostos da filosofia de
Jaspers não deverá acontecer hoje na política nada que seja contrário à solidariedade efetivamente
existente do gênero humano”301. Diante desses apontamentos, que aproximam ao mesmo tempo em
que distanciam criticamente tanto Jaspers quanto Arendt da filosofia kantiana, não é de se estranhar,
portanto, que sejam recorrentes os debates e as defesas a respeito do fundacionismo ou do
antifundacionismo supostamente presentes na teoria de Arendt, e que hajam posições pouco pacíficas
sobre esse tema entre intérpretes, comentadores e outros autores também leitores da obra arendtiana.
Em outras palavras, grosso modo, as discussões políticas de Arendt abrem margem tanto a leituras que
afirmam quanto a leituras que negam vínculos da autora a teorias filosóficas que encontram justificação
– racional, cognitiva, natural, contratual, teológica, discursiva – às ações humanas, de modo a sugerir
que Arendt também desenvolva ou se afaste conscientemente de fundamentos, regras e/ou princípios
últimos orientadores de condutas para as relações humanas.
No livro Hannah Arendt: a reinterpretation of her political thought, por exemplo, Margaret
Canovan defende que na noção arendtiana de pluralidade, por si mesma, já se encontra a fundação para
a coexistência humana e para a defesa contra o totalitarismo302, o que dispensaria a autora judia de
recorrer a princípios outros para além desse fato dado. Por mais que Canovam perceba que isso não se
dá de forma tão automática, pois sempre está em jogo para Arendt a preocupação com os processos
mantenedores da pluralidade humana e garantidores da liberdade e da ação políticas, o argumento da
intérprete parece ser insuficiente para vincular a obra de Arendt ao antifundacionismo político e moral,
como Canovan pretende, pois deixa lacunas sobre a relação entre intersubjetividade e pluralidade em
Arendt, por exemplo. Seyla Benhabib, ainda que não possa ser representada como uma defensora do
fundacionismo filosófico, por outro lado, já havia desconfiado acertadamente desse posicionamento:
300 Cf. ARENDT, H. A Condição Humana, p. 07. 301 ARENDT, H. “Karl Jaspers: Cidadão do Mundo?”. In: Homens em Tempos Sombrios, p. 100. 302 Cf. CANOVAN, M. Hannah Arendt: a reinterpretation of her political thought, p. 191.
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“Eu não estou convencida, como Margaret Canovan parece estar, que essas observações colocam
Hannah Arendt no campo dos ‘antifundacionistas políticos’, ou se essa é uma posição desejável para
Arendt estar”303. A explicação de Benhabib, que aqui não será devida e totalmente discutida em seus
pormenores304, é a de que a definição da pluralidade arendtiana, por meio das noções de igualdade e
de diferença, realizadas politicamente, conteria um espaço de radical intersubjetividade, que Benhabib
denomina de “gesto ético”, uma vez que tratar uns aos outros como membros da mesma espécie já
seria, em certo sentido, o reconhecimento mútuo e geral de todos como moralmente iguais305. A
despeito da validade ou não do acréscimo conceitual que Benhabib impõe a Arendt, vale dizer que a
autora turca traz elementos produtivos para se refletir sobre a noção de humanidade arendtiana,
debatida até aqui. O ponto que interessa é que, para além da objetividade factual da unidade da
humanidade, Benhabib diz haver sempre um aspecto subjetivo garantidor das relações sociais em
pluralidade humana, que, para ela, seria o insight fundamental de Arendt nesse contexto. Pois, como
aponta Benhabib, as relações com os outros para Arendt “começam com a descentralização do
narcisismo primário”306. Pelo menos duas passagens escritas por Arendt são bastante próximas a isso
e também muito reveladoras nesse contexto. Em 1959, no texto que daria abertura à obra Homens em
Tempos Sombrios, Arendt afirma: “[...] dificilmente podemos deixar de levantar a questão da
303 BENHABIB, S. The Reluctant Modernism of Hannah Arendt, p. 195, tradução minha. 304 Acredito que a posição de Benhabib, nesse aspecto, não deve ser lida descontextualizada de suas obras posteriores,
sobretudo Situating the Self e Claims of Culture – o que extrapolaria o intento desta tese de doutorado. Afinal, a
intenção maior de Benhabib, como ela mesma diz, não é simplesmente reinterpretar a obra de Arendt, mas, sim, revisá-
la, de modo que deveríamos estar preparados a “nos fazer perguntas arendtianas e [...] a fornecer respostas não-arendtianas” (BENHABIB, S. The Reluctant Modernism of Hannah Arendt, p. 198). Ou seja, Benhabib tem seus
próprios problemas filosóficos e, nesse sentido, as reflexões arendtianas apenas a instigam a compreendê-los, mesmo
que por meio de expressões não-arendtianas, por assim dizer. Trata-se de um método completamente legítimo, e o
valor disso não é notado sequer por Canovan, que, ao responder as críticas que recebe de Benhabib, afirma o seguinte
em uma nota de rodapé de seu livro: “A suposição de Benhabib, de que os princípios morais devem ser universalmente
válidos e mutuamente consistentes, impede-a de entender a posição de Arendt” (CANOVAN, M. Hannah Arendt: a
reinterpretation of her political thought, p. 173. Nessa mesma nota, Canovan diz que o pensamento de Arendt se
aproxima muito mais ao de Martha Nussbaum, em A Fragilidade da Bondade, do que ao pensamento de Benhabib.
Acredita-se aqui que a totalidade do pensamento arendtiano não negaria um dos lados em favorecimento do outro
ponto de vista). Ora, seria mais justo dizer que a suposição de Benhabib – de que o domínio da moralidade já está
embutido na compreensão da humanidade enquanto uma realidade inescapável na contemporaneidade – leva a autora a se utilizar de conceitualizações tais que Arendt jamais formulou, e que talvez jamais formularia, como a noção de
“universalismo antropológico” (BENHABIB, S. The Reluctant Modernism of Hannah Arendt, p. 195. Benhabib diz:
“Hannah Arendt's thinking is deeply grounded in a position that I shall call ‘anthropological universalism”) para
explicar o debate geral arendtiano em A Condição Humana. Para Benhabib, Arendt interpreta o ser humano a partir
de um processo que abstrai todo o tipo de diferença contextual e contingencial a fim de chegar a condições comuns
compartilhadas por todos os homens viventes: como a natalidade, a mortalidade, a mundanidade, a pluralidade, a Terra
e a própria vida enquanto experiências condicionantes da existência humana. Mas, ao fazer isso, segundo Benhabib,
Arendt já estaria assumindo um posicionamento moral e político, não explicitado filosoficamente, com bases nessa
antropologia que considera condições universais a todos os homens. 305 Cf. BENHABIB, S. The Reluctant Modernism of Hannah Arendt, p. 196. 306 BENHABIB, S. The Reluctant Modernism of Hannah Arendt, p. 196.
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abnegação, ou antes, a questão da abertura aos outros, que de fato é a condição prévia da ‘humanidade’
em todos os sentidos da palavra”307. Nota-se também que, em 1957, ao interpretar e aparentemente
fazer coro à filosofia de Jaspers, Arendt diz o seguinte: “O laço que une os homens entre si é,
subjetivamente, a ‘vontade de comunicação ilimitada’ e, objetivamente, o fato da compreensibilidade
universal”308. Essas colocações reafirmam, por outras vias, o que foi defendido neste capítulo: que a
realização objetiva da humanidade foi possível por conta da compreensibilidade comunicacional entre
os homens, fato histórico que Jaspers antecipa em suas obras e que subjaz à compreensão da condição
da pluralidade humana em Arendt. E, não obstante, as passagens adicionam ainda que para manter
qualquer corpo político entre os homens, em um contexto no qual o gênero humano se tornou uma
questão/critério político, além de ações em conjunto e medidas públicas institucionais, uma disposição
subjetiva humana é crucial: a abertura à comunicação, que nada mais é do que o desprendimento de si
em prol de relações públicas com os outros. Essas disposições subjetivas, que também possuem papéis
políticos e éticos ao longo das produções arendtianas, é assunto do capítulo II deste trabalho309.
É de valia ressaltar, no momento, que esses apontamentos propiciam extrapolar a querela entre
a leitura fundacionista ou antifundacionista em Arendt. Pois, afinal, há uma confluência importante de
argumentos aqui. Explico: do ponto de vista global, da relação entre povos, culturas e nações distintas,
o espaço da comunicação representa a abnegação individual e coletiva da autoridade de tradições
herméticas em prol de um entendimento mútuo entre os homens na constelação política
contemporânea, de tal modo “que a nova vizinhança universal de todos os países dê origem a algo mais
promissor do que um enorme acréscimo de ódio recíproco e uma irritabilidade praticamente universal
de todos contra todos”310. Ora, não é por acaso que Arendt afirme isso após constituir toda a base de
sua teoria política segundo a hipótese de que o totalitarismo rompeu com todas as nossas tradições,
pois o que está subentendido com a falência da autoridade dos modos tradicionais de se pensar e agir
é, para a autora, nada menos do que novas oportunidades de reconstrução de pensamentos. É por isso
que Arendt definiu o seu próprio método reflexivo metaforicamente como “thinking without a
bannister”, o pensamento sem corrimãos, ou desdoutrinado. Em suma, trata-se de conseguir pensar
sem qualquer apoio, conseguir se movimentar mentalmente sustentado apenas por suas próprias
reflexões e sem amparos imóveis. Assim, o que o rompimento da tradição indicou a ela de modo salutar
307 ARENDT, H. “A Humanidade em Tempos Sombrios”. In: Homens em Tempos Sombrios, p. 25. Embora Arendt
trabalhe nesse texto, primordialmente, a humanidade em um sentido diferente de gênero humano (mankind), nessa
frase em particular ela se refere a todos os significados que essa expressão pode apresentar. 308 ARENDT, H. “Karl Jaspers: Cidadão do Mundo?”. In: Homens em Tempos Sombrios, p. 109. 309 Cf. Capítulo 2 deste trabalho. 310 ARENDT, H. “Karl Jaspers: Cidadão do Mundo?”. In: Homens em Tempos Sombrios, p. 109.
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é que novas formas teóricas de se relacionar com o passado, o presente e o futuro são possíveis, novas
maneiras de ver e ouvir o que os problemas políticos têm para dizer e mostrar são vitais. Para ela:
“Aquilo que tão claramente surge aos nossos olhos como um fim é mais fácil de entender como um
começo cujo sentido profundo ainda não somos capazes de apreender. O nosso presente é
enfaticamente, e não apenas logicamente, o ponto em suspenso entre um já-não e um ainda-não”311.
Nesse sentido, Dana Villa parece se aproximar muito mais das reflexões arendtianas ao dizer que as
perspectivas “fundacionistas e antifundacionistas falham, igualmente, em agarrar a oportunidade
apresentada pela implosão da tradição”312, pois não encontram um outro tipo de vocabulário que não
caia nas armadilhas dualistas extremamente carregadas pelos modos usuais de pensamento. É nesse
contexto que uma frase de Nietzsche, citada por Arendt em diferentes ocasiões, recebe contornos
variados de significância para ela, qual seria: “Abolimos o mundo verdadeiro. O que permaneceu?
Talvez o mundo das aparências? Mas não! Junto com o mundo verdadeiro, abolimos também o mundo
das aparências”313. Ou seja, tanto filosófica quanto politicamente, o que se rompe com o fim da
tradição, para Arendt, são as próprias estruturas sistemáticas que vinculam a uma mesma plataforma
os modelos usuais de pensamento, por mais distintos que eles sejam entre si. A brecha que a ruptura
abre, em função das experiências políticas do século XX, não é de se afirmar um modelo explicativo
das coisas mundanas em detrimento dos outros – idealismo ou materialismo; racionalismo ou
empirismo; esquerda ou direita; republicanismo ou liberalismo; fundacionismo moral ou
antifundacionismo, são todas expressões muito carregadas para a autora. É nesse sentido que se deve
compreender declarações arendtianas como a de um texto em 1954: “Com o surgimento das armas
atômicas [...] perderam qualquer significado na prática todo o vocabulário político e moral que
estávamos acostumados a utilizar nesses assuntos”314. Ou como a de um debate no Canadá já na década
de 1970: “Você sabe que a esquerda pensa que sou conservadora e os conservadores algumas vezes
pensam que sou de esquerda, uma dissidente ou Deus sabe o quê. Devo dizer que não me importo. Não
penso que as verdadeiras questões deste século recebam qualquer tipo de iluminação por esse tipo de
coisa”315. De qualquer forma, se alguma coisa resta da ruptura da tradição, que não coloque Arendt no
rol nem dos céticos, nem dos pessimistas incuráveis, nem dos niilistas, por exemplo, trata-se da
311 ARENDT, H. “Karl Jaspers: Cidadão do Mundo?”. In: Homens em Tempos Sombrios, p. 111. 312 VILLA, D. Arendt and Heidegger: The Fate of the political, p. 117. 313 Apud ARENDT, H. A Vida do Espírito, p. 25. 314 ARENDT, H. “A Europa e a bomba atômica”. In: Compreender: formação, exílio e totalitarismo, p. 437. 315 ARENDT, H. “Sobre Hannah Arendt”. In: Inquietude, p. 157.
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reiterada defesa, por parte dela, da possibilidade de comunicação e de compreensão entre os homens.
É nesse terreno que uma nova relação com a teoria kantiana, via Jaspers, pode ganhar espaço próprio.
Mesmo que o passado tenha deixado de lançar luz explicativa sobre o futuro, mesmo que a
contemporaneidade seja herdeira sem testamento de seus próprios problemas morais e políticos – para
me utilizar das metáforas aderidas por Arendt –, ainda assim a autora jamais desconfiou da capacidade
humana de fazer com que novos significados e novos sentidos fossem comunicáveis. Nenhum
escombro epistemológico, nenhum colapso moral e político, nem a constatação da perda quase
completa do senso comum durante os anos totalitários316, foram eventos e diagnósticos capazes de
fazer com que Arendt colocasse em dúvida essa capacidade comunicativa presente em todos nós. No
artigo Compreensão e Política, de 1954, ao atestar mais uma vez que a originalidade atroz e sem
paralelos do totalitarismo reside na demolição de todos os nossos critérios de julgamento e de
compreensão, Arendt se faz as seguintes perguntas: “Como podemos medir o comprimento se não
temos um metro, como podemos contar as coisas se não temos a noção do número? Talvez seja até
absurdo pensar que possa acontecer algo que nossas categorias não estejam aptas a compreender?”317.
Subjacente a tais indagações não se encontra apenas uma potencial filosofia do juízo e da
compreensão318 na jovem Arendt – que seria levada a cabo somente na década de 1970, com os estudos
sobre A Vida do Espírito. Encontra-se, também, sobretudo, a afirmação resoluta de que a faculdade
discursiva humana (“faculty of speech”319) seria capaz de captar e lidar com a novidade inerente aos
fatos mundanos, oferecendo-lhes significados intersubjetivos, independentemente de verdades
tradicionais, de padrões científicos, de dogmatismos religiosos, de clichês sociais e de doutrinamento
316 Cf, por exemplo, “Compreensão e Política”. In: Compreender: formação, exílio e totalitarismo. 317 ARENDT, H. “Compreensão e Política”. In: Compreender: formação, exílio e totalitarismo, p. 336. 318 Hannah Arendt sempre se referiu ao valor da compreensão sob dois aspectos distintos, embora relacionados: um
particular e um geral. No primeiro aspecto, pessoal (por falta de um termo melhor, ao passo em que pretende ter
validade somente para ela mesma), declarado em debates, correspondências e entrevistas, compreender se impõe a ela
como uma necessidade de vida: “posso viver muito bem sem fazer coisa alguma, mas não posso viver sem tentar ao
menos compreender o que quer que aconteça” (ARENDT, H. “Sobre Hannah Arendt”, p. 125. Cf. também: “Só
permanece a língua materna”. In: A Dignidade da Política; ou “O que resta? Resta a língua: uma conversa com Günter
Gauss”. In: Compreender: formação, exílio e totalitarismo). Já no outro sentido, objetivamente conceitual e expresso
em seus textos, a compreensão é comparada a uma bússola capaz de nos orientar no mundo, na medida em que permite,
ao homem, “aprender a lidar com o que irrevogavelmente passou e reconciliar-se com o que inevitavelmente existe” (ARENDT, H. “Compreensão e Política”. In: A Dignidade da Política, p. 52). Ao comentar que “somos
contemporâneos somente até o ponto em que chega nossa compreensão” (ARENDT, H. “Compreensão e Política”.
In: A Dignidade da Política, p. 53), Arendt justifica o seu interesse pelo que chamou de sintoma mais grave da crise
política do século XX, o totalitarismo, e pode-se dizer que resume as duas concepções de compreensão, aqui expostas,
na sua própria empreitada vital de sentir-se em casa num tempo em que foram possíveis os eventos totalitários,
“mesmo ao preço de adotar como lar este nosso século” (Ibid. In: Compreender: formação, exílio e totalitarismo, p.
346). Como a autora disse em algumas ocasiões, não conhecia qualquer outra reconciliação que não fosse o
pensamento e sua prerrogativa de compreender. 319 ARENDT, H. “Understanding and Politics”. In: Essay in Understanding, p. 308.
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violento ou teórico320. É isso que Arendt expressa: “À luz dessas reflexões, nosso esforço por
compreender algo que destruiu nossas categorias de pensamento e nossos padrões de juízo parece
menos assustador [...] um ser cuja essência é o começo pode trazer dentro de si um teor suficiente de
origem para compreender sem categorias preconcebidas”321. Não por acaso a faculdade da fala teria
extremo valor político para Arendt, pois tem a capacidade de comunicar o novo, concepção da
pensadora com aberta influência da dupla definição aristotélica sobre o homem enquanto zoon logon
ekhon e zoon politikon: “na medida em que é político, ele [o homem] possui a faculdade do discurso,
a capacidade de compreender, de se fazer compreendido e de persuadir”322. Não é por acaso também
que a epígrafe que abre o texto Compreensão e Política, inspirada em Franz Kafka, remeta-se
diretamente à comunicabilidade humana: “É difícil dizer a verdade, pois, por mais que só haja uma,
esta é viva e tem feições vividamente cambiantes”323. Essa mesma frase é citada por Arendt no texto
de abertura de Homens em Tempos Sombrios, de 1959324, na tentativa de demonstrar que, em nome das
relações humanas no espaço público, onde tudo é cambiante e mutável, o processo comunicativo deve
ter força tal que dissolva todo o solo fundando por verdades dogmáticas e todos os tipos de
posicionamentos fincados a uma só perspectiva. Afinal, no âmbito público, ou as verdades são
comunicativas ou elas nada são. É nesse contexto que a filosofia de Jaspers, centrada na equivalência
entre comunicação e verdade, possui grande impacto contemporâneo segundo a perspectiva de Arendt,
pois, para ele, assim como para ela, também “na filosofia a novidade é um argumento contra a
verdade”325. Na leitura da autora:
320 Cf. ARENDT, H. “Compreensão e Política”. In: Compreender: formação, exílio e totalitarismo, p. 331. 321 ARENDT, H. “Compreensão e Política”. In: A Dignidade da Política, p. 52. 322 ARENDT, H. “O interesse do atual pensamento filosófico europeu pela política”. In: Compreender: formação,
exílio e totalitarismo, p. 458, adicionais e grifos meus. Arendt pondera em A Condição Humana, resguardando tanto
a si mesma quanto a Aristóteles de possíveis interpretações que enxergam o homem como um animal político por
excelência, que: “A definição de Aristóteles do homem como zoom politikon não apenas não se relacionava com a
associação natural experimentada na vida doméstica, mas era até oposta a ela; ela só pode ser compreendida inteiramente se se acrescentar a ela a segunda famosa definição aristotélica do homem como zoon logon ekhon. A
tradução latina dessa expressão como animal rationale resulta de uma incompreensão não menos fundamental que a
da expressão ‘animal social’. Aristóteles não pretendia definir o homem em geral nem indicar a mais alta capacidade
do homem (...) Em suas duas mais famosas definições, Aristóteles apenas formulou a opinião corrente da pólis acerca
do homem e do modo de vida político” (p.32), do qual bárbaros e escravos, por exemplo, não poderiam pertencer. Ou
ainda: “para Aristóteles a palavra politikon era um adjetivo aplicado à organização da pólis, não uma designação de
quaisquer formas de vida em comum humana, e ele certamente não pensava que todos os homens são políticos ou que
sempre existe política, ou seja, uma pólis onde quer que vivam as pessoas. Sua definição excluía não apenas os
escravos, mas também os bárbaros dos impérios asiáticos, de cuja humanidade ele nunca duvidou, a despeito de seus
sistemas despóticos de governo” (ARENDT, H. “Introdução na Política”. In: A Promessa da Política, p. 171). 323 ARENDT, H. “Compreensão e Política”. In: Compreender: formação, exílio e totalitarismo, p. 330. 324 Cf. ARENDT, H. “A Humanidade em Tempos Sombrios: pensamentos sobre Lessing”. In: op.cit, p. 39. 325 ARENDT, H. “Karl Jaspers: Cidadão do Mundo?”. In: Homens em Tempos Sombrios, p. 103.
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Foi através de uma ruptura [...] com a autoridade da tradição que Jaspers entrou
na filosofia. A sua Psicologia das Visões de Mundo nega o caráter absoluto de
qualquer doutrina, postulando em seu lugar um relativismo universal, onde cada
conteúdo filosófico particular se converte num meio para o filosofar individual.
A carapaça da autoridade tradicional é forçada a abrir-se e os grandes conteúdos
do passado são livres e ‘ludicamente’ postos em contato uns com os outros, através da prova da comunicação com um filosofar vivo e presente. Nesta
comunicação universal, cuja coesão é garantida pela experiência existencial do
filósofo atual, todos os conteúdos metafísicos dogmáticos se dissolvem em
processos, correntes de pensamento, que, dada a sua relevância para a minha
existência e o meu filosofar presentes, abandonam o seu lugar histórico fixo no
encadeamento da cronologia e entram num reino do espírito onde todos são
contemporâneos. Aquilo que eu penso deve manter-se em comunicação constante
com tudo aquilo que foi pensado [...] porque a filosofia atual não pode ser mais
do que ‘a conclusão natural e necessária do pensamento ocidental até à atualidade,
a síntese imparcial levada a cabo por um princípio suficientemente amplo para
abarcar tudo o que num certo sentido seja verdade’. Este princípio é a própria
comunicação; a verdade, que nunca pode ser apreendida como conteúdo dogmático, surge enquanto substância ‘existencial’ clarificada e articulada pela
razão, comunicando-se a si própria e apelando à existência racional do outro,
compreensível e capaz de compreender tudo o mais326.
A vantagem do posicionamento de Jaspers nesse contexto, de acordo com Arendt, é que a sua
concepção de razão vincula os homens uns aos outros a partir de um espaço comunicativo que só pode
acontecer entre-os-homens, jamais acima deles ou submetido a processos exclusivamente subjetivos327.
Na teoria jasperiana, a comunicação deixa de ser o simples meio de expressão de ideias, pensamentos
e sentimentos, passando a ser um índice existencial, isto é, torna-se o processo que evidencia o próprio
existir pessoal: Jaspers assinala “a comunicação como condição universal do ser homem”328. Assim,
via comunicação, o pensamento se torna uma atividade prática exercida em comunidade, embora não
confundida com pragmatismo, que me faz certificar sobre a minha própria existência em pluralidade.
Em suma, nenhuma existência humana, nenhuma racionalidade humana e nenhum filosofar se realizam
independentemente da pluralidade dos seres humanos, pois nada do que diga respeito ao homem se
realiza no singular. De fato, Jaspers diz em On My Philosophy que toda a sua atitude filosófica se
baseia por um critério exclusivo: se suas hipóteses o levariam ou não à comunicação com a comunidade
de homens à qual pertence. Nas palavras dele, deve-se começar a questionar todo tipo de pensamento
pelas seguintes perguntas: “O que significa isso para a comunicação? É apropriado para fomentar a
comunicação ou para dificultá-la? Leva à solidão ou desperta a comunicação?”329. Para voltar aos
326 ARENDT, H. “Karl Jaspers: Cidadão do Mundo?”. In: Homens em Tempos Sombrios, p. 103. 327 Cf. ARENDT, H. “O interesse do atual pensamento filosófico europeu pela política”. In: Compreender: formação,
exílio e totalitarismo, p. 458. 328 JASPERS, K. Razon y Existencia, p. 72. 329 JASPERS, K. Sobre mi Filosofía, p. 261 Nesse momento Jaspers diz que “o que devo fazer” kantiano necessita de
complemento para a sua resposta: todo saber e todo agir moral deve ser fundamentado na comunicação.
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termos de Jaspers, portanto, o ser-humano além de estar voltado para o mundo, enquanto sujeito
empírico, também está voltado para os outros, enquanto existência não empírica (Existenz). Contudo,
se essa Existenz não pode ser experimentada mundanamente, como já comentado, ela deve encontrar
uma outra via para fazer-se experiência para si mesma: que seria a via da Razão. Ou seja, do ponto de
vista vital, científica ou psicologicamente, o homem é um objeto tangível entre outros no mundo;
existencialmente, por sua vez, o homem é algo para si mesmo apenas pela Razão. Para Jaspers, no
nível da Existenz, o homem se identifica apenas interiormente, enquanto ser racional. O que ilumina a
existência não é o intelecto, mas a razão. Entretanto, não se trata de uma racionalidade monológica,
nem de um solipsismo interno de si consigo mesmo, uma vez que Jaspers assinala a comunicação como
condição de realidade da existência (Existenz) que a razão experimenta e, também, a condição de
compreensão dos conteúdos que atravessam esta mesma existência. “Jaspers não postula o estar-só-
no-mundo, mas o carácter único de todo o sujeito enquanto ser-com-o-outro-no-mundo. Este caráter
de único-em-si-mesmo, que faz parte da individualidade de cada um, torna cada eu solitário ao mesmo
tempo que o mantém circunscrito pelo Outro”330. A frase jasperiana mais marcante das lições sobre
Razão e Existência talvez seja: “A existência não se faz lúcida a não ser por meio da razão; a razão não
tem conteúdo senão por meio da existência”331. Claramente inspirada pelo início da “lógica
transcendental” de Kant na Crítica da Razão Pura332, no duplo-sentido de a razão humana ser vazia
sem a experiência existencial e de que a existência seria cega a vagar pelo mundo sem a fonte racional,
Jaspers indica que há uma articulação originária entre esses dois elementos. Em poucas palavras, a
razão confere luz interna para a reflexão dos homens sobre si mesmos, a razão é caminho pelo qual os
homens esclarecem o seu próprio caráter especificamente humano; por outro lado, a existência oferece
humanidade à própria razão, oferece conteúdos históricos e particulares com os quais a razão deve
sempre lidar. “Em conjunto, constituem e alimentam o horizonte de possibilidades e significação que
garante um con-texto a cada indivíduo enquanto projeto existencial concreto”333. Todavia, é importante
deixar claro que Arendt elenca também limitações relativas a experiências políticas que não seriam
contempladas, ou até mesmo relegadas, pela definição da comunicação existencial jasperiana.
Para Arendt, a tentativa de Jaspers de priorizar uma “comunicação autêntica” entre as
existências possíveis que cada um de nós somos, para além dos diálogos cotidianos e sociais, pecaria
330 PERDIGÃO, A. “A filosofia existencial de Karl Jaspers”. In: Análise Psicológica, p. 550. 331 JASPERS, K. Razon y Existencia, p. 60. 332 Cf. KANT, I. Crítica da Razão Pura, p. 115. “Sem a sensibilidade, nenhum objeto nos seria dado; sem o
entendimento, nenhum seria pensado. Pensamentos sem conteúdo são vazios; intuições sem conceito são cegas”. Seria
possível formular que, para Jaspers, razão sem existência é vazia; existência sem razão é cega. 333 PERDIGÃO, A. “A filosofia existencial de Karl Jaspers”. In: Análise Psicológica, p. 543.
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por ser deficitária em sentido político, pois não teria suas raízes no domínio público, mas em uma
esfera que miraria algo transcendente. Em obras como Philosophie, de fato, Jaspers distingue dois
níveis de comunicação: a empírica e a existencial. O autor denomina a comunicação empírica e objetiva
entre os homens de limitada, de despersonalizada, que massifica a pluralidade em torno de assuntos
quaisquer do cotidiano e da vida comum. Tal comunicação, que orienta os homens em suas ações
rotineiras e práticas, não estaria comprometida com o íntimo existencial de cada ser humano, e, por
isso, seria um entrave à “verdadeira comunicação”, cuja especificidade seria ultrapassar toda a diluição
social a qual os homens pertencem e, assim, alcançar um sentido comunicativo em que esclarecemos
quem somos aos outros e a nós mesmos. Essa comunicação existencial, então, por sua vez, embora
acontecesse na historicidade mundana, propiciaria uma experiência não reduzida a dados objetivos
nem a símbolos gerais de conhecimento, ou seja, seria a atualização da existência possível interior –
de um eu existencial – necessariamente aberta ao outro. O que parece chamar a atenção de Arendt, que
desconsidera essa divisão entre dois tipos comunicativos estabelecida por Jaspers, é que o “quem de
cada um de nós que somos” só pode ser perscrutado por algum tipo de abertura aos outros homens,
como no caso da aparência pública por meio de atos e palavras individuais, de acordo com aquilo que
ela defende pontualmente em A Condição Humana. Em outras palavras, Arendt depura o sentido
existencial da comunicação jasperiana e, não obstante, não nega que os pressupostos filosóficos
jasperianos ajudam-na a compreender o fenômeno político da aparência humana em público enquanto
um modo de ser, enquanto atualização da personalidade de cada um de nós a partir da modalidade da
ação e da fala. Em resumo, a singularidade de quem nós somos é um constante desempenho político
que depende, em última instância, de um contexto plural de pessoas. Para Arendt, por mais que o
“quem” humano não seja o simples resultado de uma identidade construída social e culturalmente,
como se fosse possível cristalizar elementos do convívio geográfico e histórico em determinadas
sociedades e nacionalidades a fim de estabelecer categorias dessas singularidades, ainda assim, estar
com os outros e se fazer singular são eventos inter-relacionados. Inserir-se no mundo, afirma a autora,
é como um segundo nascimento, de caráter narrativo e impresciente, ou seja: uma personalidade é
gerada repetidas vezes a partir dos atos imprevisíveis de um agente inserido em uma teia de
relacionamentos, que acabam por contar a sua própria biografia. É nesse contexto que o encontro plural
de singularidades, sob o nome de pólis, ultrapassa e mesmo precede as institucionalizações político-
jurídicas e não coincide com a busca ativa de interesses pré-determinados, particulares ou egoístas.
Contudo, nesse aspecto específico, Jaspers interessa a Arendt muito mais filosoficamente do que pela
preocupação do autor com o âmbito político. Isto é, nesse processo da virada comunicativa da filosofia
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jasperiana, destaca-se para ela que todas as significações oferecidas – inclusive sobre a afirmação de
personalidades individuais – são comunicáveis entre os homens em suas realidades distintas e
particulares. Ou, na linguagem jasperiana, todo tipo de verdade, de crença, de visão de mundo, de
modo existencial é comunicativo, e só existe na/pela comunicação, pois “a afirmação de uma verdade
universal é o início de uma falta de veracidade”334. Arendt sustenta que, nesse ponto, Jaspers faz com
que a filosofia deixe de vez a morada da verdade eterna e imutável:
Aqui, a filosofia é a mediação entre muitas verdades, não porque detenha a única
verdade válida para todos os homens, mas porque apenas na comunicação racional
aquilo em que cada homem acredita, isolado de todos os demais, se torna humano
e efetivamente verdadeiro. Aqui também – embora de outra maneira –, a filosofia
perde sua arrogância diante da vida comum dos homens; tende a se tornar ancilla
vitae para todos, no sentido outrora concebido por Kant, a saber, ‘carregando o
archote à frente de sua graciosa senhora, e não a cauda de seu vestido atrás”335.
Para finalizar este tópico, vale destacar que toda essa postura arendtiana em diálogo cruzado
com os conceitos jasperianos de humanidade e comunicação já era perceptível, de modo embrionário,
no texto O que é a Filosofia da Existenz?, original de 1946, no qual a autora se utiliza do mesmo
critério comparativo para elogiar a filosofia de Jaspers, por um lado, e criticar a ontologia de Heidegger,
por outro lado. Quando terminou de escrever esse texto, Arendt enviou uma carta a Jaspers dizendo
que aguardava ansiosamente pela resposta dele, “sofrendo, como uma garota de escola”336. No artigo,
a autora expõe que a Existenz nos termos de Jaspers – que nada mais é do que um modo de ser do
homem para além do sujeito empírico ou psicológico que somos e que não é objeto das ciências –, por
se atualizar por meio da consciência dos limites do ser humano diante de situações incontornáveis
durante a vida compartilhada com semelhantes no mundo, é consequentemente dependente das
relações com os outros. Arendt diz que, em Jaspers, “nossos semelhantes não são (como em Heidegger)
um elemento da existência que, embora estruturalmente necessário, é ao mesmo tempo um
impedimento ao ser do Eu”337. Nesse sentido, como já explanado, a existência no mundo, em
comunicação e atividades entre os pares, em aparência pública, é constitutiva da autenticidade do modo
de ser do homem para o pensamento jasperiano, ainda que como uma etapa preliminar, mas jamais
como empecilho. No desenrolar desses comentários, Arendt afirma que no conceito de comunicação
de Jaspers “encontra-se um novo conceito de humanidade, cuja abordagem, mesmo ainda não
334 JASPERS, K. Razon y Existencia, p. 97. 335 ARENDT, H. “O interesse do atual pensamento filosófico europeu pela política”. In: Compreender: formação,
exílio e totalitarismo, p. 458. 336 KOHLER, L; SANER, H. Hannah Arendt Karl Jaspers Correspondence 1926-1969, Carta 36. 337 ARENDT, H. “O que é a filosofia da existência”. In: Compreender: formação, exílio e totalitarismo, p. 215.
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plenamente desenvolvida, postula a comunicação como a premissa para a existência do homem”338.
Mais uma vez a noção de “humanidade” aparece e se mostra fundamental para a interpretação
arendtiana de Jaspers. Interessa destacar aqui que sem processo comunicativo, e, portanto, sem
pluralidade, não há existência humana possível para Jaspers, “os seres humanos vivem e agem entre
si; assim procedendo, não perseguem o fantasma do Ser, nem vivem na ilusão arrogante de constituírem
o próprio Ser”339. O que está subentendido nessa passagem é o malogro de toda e qualquer ontologia
para Jaspers, no sentido crucial de que a totalidade do significado do ser jamais pode ser apreendida
pelo pensamento humano individual, mas que, todavia, a existência humana é realizada entre os
homens. É por isso que nesse mesmo artigo, ao comentar sobre o Eu (Selbst, Self) como Ser e Nada na
filosofia de Heidegger, a autora tece críticas à ontologia heideggeriana que, segundo ela, negaria a
importância política da humanidade na definição do homem singular – algo que um bom leitor de Kant
jamais faria. Chamo atenção para a importância disso no seguinte trecho:
Se a essência do homem, desde Kant, consistia em que cada ser humano singular
representava toda a humanidade, e se o conceito de homem, desde a Revolução
Francesa e a Declaração dos Direitos Humanos, passara a abranger a ideia de que
toda a humanidade poderia ser aviltada ou exaltada em cada indivíduo, então o
conceito do Eu [heideggeriano] é um conceito de homem que deixa o indivíduo
numa existência independente da humanidade, sem representar ninguém afora si
mesmo – nada a não ser seu próprio nada. Se o imperativo categórico de Kant insiste que toda ação humana deveria se responsabilizar por toda a humanidade, a
experiência do nada [...] insiste no exato contrário: a destruição em cada indivíduo
da presença de qualquer humanidade [...]. Se não pertence ao conceito de homem
seu convívio na terra com seus semelhantes, tudo o que lhe resta é uma
conciliação mecânica340.
Essa noção de conciliação do homem com a humanidade – e, por conseguinte, com o mundo
humano – é extremamente importante para averiguar como a filosofia de Jaspers preparou Arendt para
a política e como a acompanhou constantemente na escrita de suas principais obras. Pois, afinal, não é
incorreto e nem difícil perceber que a tarefa de (re)conciliação dos homens com o mundo é um tema
pulsante em praticamente toda a produção teórica arendtiana. Tal assunto recebe inúmeras facetas e
manifestações em suas variadas produções. Seja pelos textos da autora sobre as questões judaicas,
sobre a vida e a condição de ser pária, bem como suas lutas por assimilação em comunidades hostis.
338 ARENDT, H. “O que é a filosofia da existência”, in: Compreender: formação, exílio e totalitarismo, p. 215, grifos
meus. O texto original está na língua alemã. A tradução desse texto para o inglês, é importante dizer, não foi realizada
pela própria Hannah Arendt. 339 ARENDT, H. “O que é a filosofia da existência”. In: Compreender: formação, exílio e totalitarismo, p. 215. 340 ARENDT, H. “O que é a filosofia da existência”. In: Compreender: formação, exílio e totalitarismo, p. 210, grifos
e adições minhas.
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Seja pela compreensão do evento totalitário, uma vez que, segundo ela, “se quisermos superar o
estranhamento e ter uma moradia neste mundo [...] temos de tentar participar do interminável diálogo
com a essência do totalitarismo”341. Seja também na discussão sobre o condicionamento existencial e
espiritual humano, sobre a reconsideração da vita activa e da vita contemplativa constitutivas dos
homens no mundo. Todavia, no caso específico do artigo O que é a Filosofia da Existenz?, este tema
aparece por meio da emblemática afirmação de Arendt: “É preciso heroísmo para viver no mundo tal
como Kant o deixou”342. Ao trazer à baila o debate sobre a desconstrução kantiana do antigo conceito
de Ser e “da identidade entre ser e pensamento e com ela a noção de uma harmonia pré-estabelecida
entre homem e mundo”343, esta frase da jovem Arendt quer chamar atenção para a herança kantiana da
filosofia moderna como um todo, qual seja: a necessidade de reencontrar um novo caminho para
reconciliar o pensamento humano e a realidade mundana. Isto é, para Arendt, a filosofia moderna tem
seus problemas decretados e demarcados quando Kant, por meio da análise das estruturas antinômicas
da razão e dos limites das proposições de juízo sintético, veda a possibilidade de identificar aquilo que
é pensável àquilo que é existente. A partir de então a própria existência humana se transforma em um
absurdo jamais solucionado por completo através do processo cognitivo dos homens.
É por isso que, para ela, “desde Kant toda filosofia traz um elemento de desafio [...] A filosofia
moderna começa com a percepção de que a realidade nunca conseguirá explicar a existência; começa
com a concepção chocante e esmagadora de uma realidade intrinsecamente vazia”344. Por certo, Arendt
não consideraria a sua própria filosofia alheia a este movimento, mas, para a autora, a reconciliação do
homem com o mundo, ou do pensamento com a realidade – na consciência de todos os limites
humanos, inclusive racionais – não era por outra via senão pela perspectiva da compreensão política,
pela afirmação do contingente, do inesperado, do espontâneo, daquilo que escapa ao domínio do Ser e
alcança a relação com os outros e com o mundo. Talvez pelo medo desse desafio deixado por Kant,
diz Arendt, tantos pensadores voltaram a recorrer a lugares seguros em suas filosofias. Como ela
continua a afirmar na Introdução de sua última obra, A Vida do Espírito, sobre o mesmo assunto:
“Libertados por Kant da velha escola dogmática e de seus exercícios estéreis, os especialistas
construíram não apenas novos sistemas, mas uma nova ‘ciência’”, ou seja, continua Arendt, “como se
341 ARENDT, H. “Compreensão e Política”. In: Compreender: formação, exílio e totalitarismo, p. 346. 342 ARENDT, H. “O que é a filosofia da Existenz”. In: A Dignidade da Política, p. 23. 343 ARENDT, H. “O que é a filosofia da Existenz”. In: A Dignidade da Política, p. 22. 344 ARENDT, H. “O que é a filosofia da Existência”. In: Compreender: formação, exílio e totalitarismo, pp. 196 e
200.
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Kant não houvesse existido, eles acreditaram, com toda honestidade, que os resultados de suas
especulações tinham o mesmo tipo de validade que os resultados dos processos cognitivos”345.
Essas generalizações, contudo, não abarcariam o caso de Jaspers, que é considerado, pela
autora, como a única exceção também nesse contexto, por ser aquele que, do interior do pensamento
kantiano, vislumbra na contingência das relações humanas, nas situações contingencias da própria vida
humana, a própria dignidade dos homens. Na interpretação de Arendt, em Jaspers: “o fato de eu não
poder reduzir a realidade ao pensamento se torna o triunfo de minha liberdade potencial. Em termos
paradoxais: somente porque não fiz a mim mesmo é que sou livre. Se eu tivesse me feito, eu poderia
me prever e, portanto, teria me tornado não-livre”346. Isto é, Jaspers encontra no criticismo kantiano
possibilidades que nenhum outro autor encontrou: afirmar a liberdade humana a partir de suas próprias
limitações, no sentido limítrofe de que os homens não decidiram originalmente pelo seu próprio estado
de “seres livres”; e, ainda, afirmar a dignidade do homem por meio do seu próprio “fracasso” em fazer
coincidir Ser e pensamento humano. De acordo com Arendt, essa posição jasperiana é louvável e
produtiva por dois sentidos principais. Primeiro, porque o seu ex-professor não recebe o legado
kantiano com um espírito desanimado, enfadado ou pessimista, como se a liberdade existencial fosse
um fardo, como se fosse um peso a obrigação indelegável de ser livre, pelo contrário, Jaspers diz: “Tal
é a paixão da existência: o não-saber não a mergulha de um sofrimento absoluto, porque, em sua
liberdade, ela quer. Se o não-saber impusesse a ideia de uma não-liberdade irremediável, não haveria
outra saída senão o desespero”347. Segundo, uma vez que o homem fracassa em definir a sua própria
existência, uma vez que o significado de “homem” ultrapassa o próprio “pensar”, qualquer concepção
do que seja esse homem, ou do que seja o “eu”, o “self”, não faz mais sentido sem o abandono de si
mesmo, do seu “ego”, que nada mais é do que uma necessária abertura ao mundo. É dessa forma que
a filosofia da existência jasperiana recebe contornos políticos vigorosos aos olhos de Arendt, pois todos
os outros nomes da filosofia existencial pós-Kant, sobretudo Heidegger, não saíram “do período do
egoísmo”348, não compreenderam que a única saída diante da destruição do conceito de Ser está na
política, ou seja, está no significado da existência humana enquanto uma experiência, não científica e
não ontológica, de ser entre os homens. Arendt resume o seguinte:
É por isso que esses filósofos abandonaram os conceitos kantianos de liberdade e
dignidade humana, bem como suas ideias da humanidade enquanto princípio
345 ARENDT, H. A Vida do Espírito, pp. 30-31. 346 ARENDT, H. “O que é a filosofia da Existência?”. In: Compreender: formação, exílio e totalitarismo, p. 212. 347 JASPERS, K. Philosophie, p. 191. Apud. HERSCH, J. Karl Jaspers, p. 70. 348 ARENDT, H. “O que é a filosofia da Existenz?”. In: A Dignidade da Política, p. 37.
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regulador de toda a atividade política, e isso, em troca, fez surgir aquela distintiva
melancolia que caracterizou todas as filosofias, menos as mais superficiais, desde
Kierkegaard. Parecia ainda mais aceitável estar sujeito à “queda”, como uma lei
inerente à existência humana, do que cair nas mãos de um mundo estranho regido
pela causalidade349.
Não obstante, esse elemento de conciliação do homem com o mundo é um conceito-chave
sobretudo porque também está presente no argumento central da tese de doutorado arendtiana de 1929,
vinculado inclusive e principalmente à expressão “gênero humano”, “dem genus humanum”350 no
alemão original, (humanidade, mankind), que procura por uma origem em comum entre os homens
para explicar os sentidos do amor ao próximo nos mandamentos cristãos. No artigo Karl Jaspers:
Cidadão do Mundo?, Arendt faz uma breve referência retrospectiva ao tema de sua tese, orientada por
Jaspers, e acaba por fornecer uma perspectiva de interpretação para o seu antigo diálogo travado com
o Bispo de Hipona. A autora diz: “A concepção bíblica segundo a qual todos os homens descendem de
Adão e por conseguinte partilham a mesma origem, e de que todos se encaminham para a mesma meta
de salvação e juízo final [...] ao pretender exercer a sua autoridade sobre todos os homens, aponta para
uma unidade do gênero humano”351. Ora, novamente aqui, então, essa denominada unificação da
humanidade pode ser compreendida como um princípio político inescapável no sentido jasperiano
discutido até aqui, isto é, abre-se a possibilidade de demonstrar que Arendt, na escrita de sua tese,
procurava por um princípio ou critério político (não religioso, não transcendente) para dar conta dos
significados do amor ao próximo nos textos agostinianos. Considerando isso, toda a discussão que
empreendi no primeiro tópico deste trabalho de doutorado servirá também para lançar luz ao texto
doutoral de Arendt sobre Agostinho, no tópico seguinte, a fim de interpretar o ensaio arendtiano em
aproximação aos conceitos da filosofia existencial jasperiana.
1.2: A Filosofia da Existenz na estrutura do texto doutoral de Arendt: as situações-limite como
modo de resolução de uma contradição agostiniana
Ao longo do ensaio de interpretação filosófica escrito por Hannah Arendt sobre O Conceito de
Amor em Santo Agostinho, de 1929, há uma gradual alternância de uso do termo “homem” para o
posterior emprego da expressão “homens”. Ou seja, há uma passagem do singular para o plural na
349 ARENDT, H. Essays in Understanding, p. 172, tradução minha. As duas edições em língua portuguesa pecam nos
conceitos utilizados para traduzir essa passagem do artigo arendtiano. 350 ARENDT, H. Der Liebesbegriff bei Augustin: versuch einer philosophischen interpretation, p. 90. 351 ARENDT, H. “Karl Jaspers: Cidadão do Mundo”. In: Homens em Tempos Sombrios, p. 107, grifos meus.
99
referência da autora a respeito do(s) ser(es) humano(s). Arendt inicia os seus estudos – sobre os
sentidos e as contradições da noção de “amor” nas obras agostinianas – com o exame do ser humano
enquanto uma existência isolada, uma criatura em relação somente a Deus (coram Deo) ou a si mesmo,
constatado sobretudo nas primeiras duas partes do texto. Depois disso, ela caminha para um processo
analítico do “gênero humano”, cuja gênese é dependente da convivência entre todos os homens, e que
começa a ganhar destaque a partir do último tópico da parte II e preenche toda a terceira parte da tese
de Arendt. Esse movimento é explicitado pela própria autora em um resumo que ela faz de seu trabalho
no seguinte parágrafo final do texto da tese: “o homem [der Mensch] de início apenas é reconhecido
como isolado e vindo ao mundo por acaso – o mundo como deserto (eremus); depois, ele é
compreendido como pertencendo pelo nascimento (generatione) aos homens [den Menschen], e, assim,
a este mundo”352. Tal mudança terminológica é extremamente significativa e emblemática não apenas
para compreender os fios condutores conceituais e argumentativos constituintes do trabalho de
doutoramento da então jovem aluna, mas também pela carga política que a ênfase na pluralidade
humana recebeu anos mais tarde em praticamente toda a produção intelectual da pensadora, radicada
nos Estados Unidos desde 1941, como visto nos tópicos antecedentes. Evidentemente, no intervalo dos
anos que separam a formação acadêmica de Arendt até a sua ocupação professoral e instalação cidadã
em um novo continente, o amadurecimento do seu pensamento teórico e político é incontestável e, por
isso, extrapola de longe os seus interesses filosóficos debutantes, anteriores ao domínio nazista alemão.
Contudo, o seu trabalho doutoral lançaria determinadas premissas353 que seriam continuadas em suas
principais obras, mesmo que em nuances, tal qual a importância da pluralidade do espaço público como
tema nevrálgico em A Condição Humana, além das noções de amor pelo mundo e de natalidade que
acompanham e norteiam as discussões da pensadora até o fim de sua vida.
Após as experiências limítrofes do desamparo e da solidão humanas como perniciosas
consequências do surgimento e da permanência de eventos totalitários no mundo, Arendt assumiria
que tanto para se agir quanto para se refletir politicamente é indispensável ter em conta que “a
pluralidade é a lei da Terra”354 e de que, como visto anteriormente, “a política se baseia no fato da
352 ARENDT, H. O conceito de amor em Santo Agostinho, p. 170, grifos meus. 353 Sobre temas que permaneceram no horizonte de Hannah Arendt desde a sua tese de doutorado, cf., por exemplo,
as discussões de CORREIA, A. “O significado político da natalidade: Arendt e Agostinho”. In: Hannah Arendt: Entre
o Passado e o Futuro; DUARTE, A. “Hannah Arendt e o pensamento político sob o signo do Amor Mundi”; SCOTT,
J; STARK, J. “Jaspers Arendt and Existez philosophy”. In: ARENDT, H. Love and Saint Augustin; e os apêndices de
YOUNG-BRUEHL, E. Hannah Arendt, por amor ao mundo. 354 ARENDT, H. A Vida do Espírito, p. 35.
100
pluralidade humana”355. Afinal, para a autora, tornou-se claro que estar entre os homens é a condição
pela qual a própria vida política se perfaz e se descreve, uma vez que se ocupa da coexistência e da
associação ativas e discursivas que conectam seres humanos singulares e distintos entre si. É
importante perceber, no entanto, que em diversas vezes Arendt continua a lançar mão da linguagem
religiosa e bíblica, mesmo em contextos temporalmente distantes de seu trabalho sobre Agostinho,
para sustentar a ideia de que o caráter plural que condiciona a estadia dos homens no mundo está
implícito inclusive no livro de Gênesis. “‘Macho e Fêmea Ele os criou’”356; “Deus criou o homem,
mas os homens são um produto humano, terreno”357. Se, para ela, a história da filosofia e da teologia
usualmente pecou em tratar o “homem” no singular358, pode-se dizer que Arendt enfrentou esse
problema desde o âmbito restrito da sua tese sobre o amor em Agostinho. Ali, mesmo que por meio
dos termos do Padre de Hipona, a autora antecipa a percepção política de que os fatos históricos e
mundanos dependem de um contexto plural em um jogo de atores e espectadores, a ponto de isso
condicionar a própria revelação divina em Cristo, por exemplo, pois “o anúncio da salvação chegou
aos homens”359, em pluralidade, e não ao homem em completa existência solitária. Isto é, a boa nova
“revela-se ao mundo, ao ser-conjunto dos homens [...] Cristo não resgatou um homem particular mas
sim o mundo inteiro, o mundus constituído pelos homens”360. Dito de outra forma, a condição plural e
política dos homens se fez importante para Arendt interpretar as reflexões agostinianas sobre um
mandamento tradicional do cristianismo: o “amor ao próximo”. Isso se desenvolve com maior vigor
no capítulo sobre “A Vida em Sociedade (Vita Socialis)” que, ao finalizar a tese arendtiana e lidar com
as implicações da cidade dos homens para o problema do amor ao próximo, guarda em si um modo de
entender a existência humana dependente e determinada pelo estar-com os seus pares em comunidade.
Nesse movimento, contudo, a autora claramente não se limita aos conceitos e ao contexto de produção
355 ARENDT, H. “Introdução na Política”. In: A Promessa da Política, p. 144. A primeira frase de “O que é Política”
no original, em alemão, é: “Politik beruht auf der Tatsache der Pluralität der Menschen” (ARENDT, H. Was Ist
Politik?, p. 09). 356 ARENDT, H. A Condição Humana, p. 09. 357 ARENDT, H. “Introdução na Política”. In: A Promessa da Política, p. 144. 358 Arendt afirma o seguinte nessas ocasiões: “Um dos traços decisivos da filosofia ao lidar com a política sempre foi
falar do homem no singular, como se existisse uma só natureza humana, ou como se originalmente existisse apenas
um homem na Terra. O problema sempre foi que toda a esfera política da vida humana existe somente graças à
pluralidade dos homens, graças ao fato de que um homem só simplesmente não seria humano. Em outras palavras,
todos os problemas da filosofia política começam onde se detém a filosofia tradicional, com seu conceito de homem
no singular” (ARENDT, H.); Afirma também: “A filosofia e a teologia, visto que se ocupam sempre do homem e que
suas afirmações só estariam corretas se existissem um ou dois homens ou apenas homens idênticos, não encontraram
nenhuma resposta válida para a pergunta: O que é política?”. 359 ARENDT, H. O Conceito de Amor em Santo Agostinho, p. 160. 360 ARENDT, H. O Conceito de Amor em Santo Agostinho, pp. 154 e 160.
101
de Agostinho, pois subjaz em suas referências, explícita e implicitamente, a filosofia da Existenz de
Karl Jaspers, seu orientador. Ao apresentar isso neste tópico, portanto, realizo um retorno analítico aos
conceitos jasperianos e também à estrutura do trabalho de doutorado de Arendt.
As noções de espacialidade e de temporalidade atravessam toda a tese arendtiana sobre a
filosofia de Agostinho. Ou seja, para compreender as variâncias do conceito de amor agostiniano, a
autora julgou necessário destacar o papel decisivo do espaço mundano e do tempo (passado, presente
e futuro), que se vinculam a qualquer significação e explicação desse sentimento existencial humano.
Em toda essa escolha e execução metodológica, Arendt não está só. Ao insistir no “amor” como um
fenômeno temporal que envolve o ser-humano, o mundo e a transcendência, ela se apoia bastante no
modo de exposição da Filosofia existencial de Jaspers361. Sem deixar de ter isso em mente, Arendt
divide o seu trabalho em três partes que justapõem argumentos e que fazem entrelaçar inúmeros
escritos de Agostinho, que não procuram por uma sistematicidade que seja alheia a este, mas que se
postam a fim de responder uma indagação pujante em particular. Qual seria: como o ser cristão pode
ter o mínimo interesse pelo “próximo” se a definição e a ordenação do amor, em mandamentos e teorias
da cristandade, inclusive na especificidade do “amor ao próximo”, objetivam o desprendimento de si
e o afastamento das coisas mundanas em nome de um contato autêntico e isolado com Deus? Ora, a
problemática da perspectiva dessa lógica é a de que o “próximo” pareceria fadado a ser negligenciado
e, quando muito, seria apenas um meio (secundário, utilitário e formal), sem interesse genuíno das
partes, para se alcançar o amor divino. Para responder a essa aparente contradição ou incongruência,
Arendt diz ser preciso “penetrar nas profundezas que Santo Agostinho já não deixa aparecer
claramente”362 e, desse modo, sugerir um novo mapa conceitual que reencontre o valor do próximo a
partir também do contexto mundano, do âmbito no qual os homens se mostram em co-pertença e
reciprocidade histórica comuns e oriundas da fundação da espécie humana na figura de Adão.
Para tanto, a autora inicia a sua pesquisa com a observação de que Agostinho definiu o amor
unicamente enquanto appetitus, ou desejo (craving), como aquilo que opera um movimento em busca
de um determinado objeto desejado na esperança futura de o ter possuído, e, quando alcançado, o
desejo se transforma imediatamente em medo de não perder o que já está em posse do indivíduo que
ama. “Do querer possuir e do querer manter o desejo nasce o medo da perda”363. Contudo, nessa tensão
361 Arendt também demarca pontos de influência lexical do então recém-publicado Ser e Tempo de Heidegger, por
outro lado. Sobre isso, Cf. SCOTT, J; STARK, J. “Jaspers Arendt and Existez philosophy”. In: ARENDT, H. Love
and Saint Augustin; e os apêndices de YOUNG-BRUEHL, E. Hannah Arendt, por amor ao mundo 362 ARENDT, H. O Conceito de Amor em Santo Agostinho, p. 09. 363 ARENDT, H. O Conceito de Amor em Santo Agostinho, p. 18.
102
ontológica marcada pelo desejar possuir algo e o temer perder algo, na qual o “amor” desempenha o
próprio modo de ser do homem no mundo, há um processo teleológico na medida em que “todo o amor
enquanto desejo é determinado por um fim”364, e o que todos os homens procuram é a felicidade, ou a
vida feliz, em última instância. Nas palavras de André Duarte: “Em sua análise, Arendt enfatiza a
transitividade do ato de amar, que não é mais que um desejar, pois o desejo é sempre desejo de alguma
coisa que os homens não possuem, e à qual atribuem o estatuto de um bem”365. Nesse sentido, as coisas
desejadas não são meros objetos, mas, antes, um bem (bonnum) conhecido no mundo, um meio que
tenta satisfazer o anseio de cada indivíduo rumo à felicidade, também denominado de amor a si (amor
sui). “A beatitude (beatitudo) consiste na posse (habere, tenere) do bem e mais ainda na segurança da
não-perda”366. Na sequência desse raciocínio, portanto, Arendt comenta que a problemática se instala
quando se percebe que a temporalidade da vida humana está insistentemente sujeita ao maior de todos
os medos, ao maior de todos os males à própria vida, ou seja, sujeita à morte. Isto quer dizer: enquanto
o existir é continuamente ameaçado pela mortalidade humana, “esta vida torna-se um constante
medo”367, um temer incessante determinado pelo desejo às coisas temporais, cambiantes e efêmeras,
que, paradoxalmente, só tem fim com a própria morte. A cada dia que passa, esta vida mundana dá um
passo a mais para o seu aniquilamento na morte e, na consciência disso, não há paz. Em poucos termos,
a vida deve morrer e, desse modo, a felicidade terrena se torna intangível, pois “o presente perde toda
a quietude, toda a possibilidade de prazer e, na mesma medida, a sua significação original”368, uma vez
que a meta do desejo (a ausência de medo na segurança da posse) só é alcançada quando deixamos de
ser mortais – na atualização da morte, por conseguinte.
Em resumo, a I Parte do texto arendtiano sobre Agostinho acompanha essas definições para
apontar como a resolução agostiniana de libertar o homem do medo e de ultrapassar a própria condição
humana da radical perda da vida – resolução que se oferece pela via da afirmação do presente sem
devir (vida eterna) e pela ordenação do amor à luz da relação isolada criatura-Criador (Deus) – acaba
por tornar, por isso, o “amor ao próximo” incompreensível pelo espectro do desejo (appetitus). Ou
seja, a única definição agostiniana sobre o “amor” não é capaz de dar conta, sem contradições, do amor
cristão que os homens devem ter para com os seus próximos. Agostinho demonstra que é só na perene
tranquilidade de uma temporalidade sem devir que se encontra abrigo seguro contra o perigo do amor
364 ARENDT, H. O Conceito de Amor em Santo Agostinho, p. 38. 365 DUARTE, A. Hannah Arendt e o pensamento político sob o signo do Amor Mundi, p. 03. 366 ARENDT, H. O Conceito de Amor em Santo Agostinho, p. 19. 367 ARENDT, H. O Conceito de Amor em Santo Agostinho, p. 19. 368 ARENDT, H. O Conceito de Amor em Santo Agostinho, p. 18.
103
às coisas mutantes e mundanas. A vida eterna deve ser afirmada como redenção ao impasse dos homens
mortais que, mobilizados pelo amor a si, buscam pela vida feliz, pois “onde não há morte, e
consequentemente futuro, é possível viver sem a angústia do cuidado”369. Mas isso representa,
concomitantemente, a negação da própria vida terrena em nome de um futuro absoluto, a negação de
todos os bens terrestres em nome de um bem absoluto eterno (summum), e o abandono de si mesmo e
do contato proximal em direção à origem da criatura na plenitude de Deus.
Na passagem para a segunda parte de sua tese, portanto, Arendt começa a apontar que a
dependência do homem em relação a Deus se estende para duas pontas temporais extremas que
transcendem a existência mundana: o futuro presentificado no amor a Deus, que nos salva da temida
mortalidade; e o passado original, que vincula a criatura à razão criadora divina e oferece um sentido
à vida humana antes mesmo de sua realização. Coube à autora, a partir daí, investigar a necessidade
do amor a Deus (caritas), o amor correto derivado do amor como desejo, que possui nas teorias
agostinianas o seu fundamento em uma espécie de solipsismo no qual o “eu” evita todo tipo de
dispersão e distração mundanas e se torna uma questão para si mesmo (quaestio mihi factus sum). No
amor a Deus, o homem se afasta do amor ao mundo (cupiditas), corruptível – e essa transposição
acontece apenas mediante o exame particular de si mesmo, pois a exterioridade, o mundo e a
temporalidade precisam ser superados para se alcançar a verdadeira meta da vida, de tal forma que
reste apenas esse contato íntimo e interior. Todavia, também nesse amor a Deus, o próprio homem
sofre uma mutação ontológica, “como tal, o humano é ultrapassado”370, na medida em que não mais
vive na mortalidade, não mais habita o contingente, antes, compreende-se como uma criatura (um ser
não mais alterado) que congrega o passado original e o futuro sem morte em seu próprio presente
imutável. “A vida, englobada pela eternidade, toca aí o seu princípio e o seu fim [...] Só somos na
medida em que temos uma relação imediata com o antes de nossa existência e com o seu ainda-não”371.
Assim, no fim das contas, o homem acaba por renunciar a si mesmo por amar a si apenas enquanto
parte da criação, isto é, naquilo que há do Criador na criatura.
Diante de todo esse movimento, aqui condensado, a problemática da terceira e última parte da
tese arendtiana se justifica do seguinte modo: é preciso entender o valor do “próximo” nesse amor a
Deus que, em sua ordenação, gera a renúncia do indivíduo a si mesmo e ao mundo. Nas palavras dela,
“neste contexto, surge uma dupla questão: como é que o próximo reencontra a criatura que renuncia a
369 ARENDT, H. O Conceito de Amor em Santo Agostinho, p. 20. 370 ARENDT, H. O Conceito de Amor em Santo Agostinho, p. 33. 371 ARENDT, H. O Conceito de Amor em Santo Agostinho, pp. 88 e 90.
104
si e o que é o próximo nesse reencontro?”372. A resposta de Arendt parte da ideia de distinguir e separar
a origem do ser da criatura da origem do ser do homem. Enquanto a primeira é determinada pela criação
divina, sendo um princípio; a segunda possui um vínculo inegavelmente mundano, pelo processo
histórico de desenvolvimento da espécie humana que remonta até à figura do primeiro homem, Adão,
sendo um início. Nesse sentido, os homens, no plural, possuem um ancestral comum que os liga à
mesma situação e ao mesmo destino. É por isso, não obstante, que o próximo passa a ter relevância e
deve ser merecedor de amor, isto é, não só pelo fato de representar a nós mundanamente a pertença ao
mesmo gênero, mas por ser o aviso constante de um passado em comum no pecado original e, devido
a isso, o aviso da consequente necessidade da fé.
Para desmembrar essa apresentação em partes mais detalhadas, é importante fazer notar e
esclarecer que a tripartição esquemática da tese de Arendt antecipa a estrutura geral da obra teórica de
maior peso de Jaspers, Filosofia, escrita durante o final dos anos de 1920 e início dos de 1930. Depois
de mais de uma década sem publicar algo na área de filosofia, o que gerou algumas dúvidas e críticas
quanto à sua capacidade para ocupar uma cadeira universitária em filosofia na época, Jaspers lança em
1932 um livro de extremo fôlego disposto em três volumes fundamentais ao escopo geral de seu
pensamento: I. Orientação filosófica no mundo; II. Esclarecimento da existência; e III. Metafísica. Nas
palavras introdutórias do próprio autor, essas são etapas que articulam o filosofar e ajudam a esclarecer
perguntas tais como “o que é o ser?”373, pois esta questão, embora nunca seja totalmente respondida,
faz dirigir o homem a si mesmo de três modos distintos: em sua vida mundana limitada, que, por sua
vez, o leva a refletir racionalmente sobre a autenticidade de seu ser e em abertura à transcendência,
àquilo que escapa da compreensão objetiva da realidade. Esses três modos de auto-percepção dos
homens podem ser resumidos nas nomenclaturas Dasein, Existência (Existenz) e Transcendência
(Tranzendenz), que formam o tripé conceitual no qual se assenta toda a analítica existencial jasperiana.
Esses três âmbitos coexistem em todos nós e formam aquilo que podemos ser; além disso, são aspectos
que sempre se referem uns aos outros em unidade originária, mas que jamais se equivalem. Isto
significa que, para Jaspers, podemos ser compreendidos, primeiramente, como um ser-objeto
pertencente ao mundo, que se apresenta imediata e empiricamente aos outros e a si mesmo. Essa
realidade empírica do ser-do-mundo é denominada por Jaspers de Dasein374 e diz respeito, portanto,
372 ARENDT, H. O Conceito de Amor em Santo Agostinho, p. 113. 373 Cf. JASPERS, K. Filosofia I, pp. XXIX e 09. 374 É importante salientar que esse termo possui uma acepção distinta da heideggeriana. Na tradução espanhola da
obra Philosophie há uma nota de esclarecimento sobre isso: “Na filosofia de Jaspers, o termo Dasein (literalmente,
ser-aí ou estar-aí) tem outra significação que em Heidegger. Para este último, só o homem tem Dasein, e a essência
desse Dasein é a Existenz (existência), ou, dito de outro modo, a existência é o modo de ser do Dasein; pode ser
105
ao caráter de objetividade dos homens, dos objetos e do próprio mundo que os circunda. Não se trata
da mera característica corporal dos seres e nem da mera vida biológica, embora essas questões façam
parte do contexto ao qual o Dasein pertence, inclusive como temas de pesquisas científicas. Contudo,
a situação básica do Dasein é estar no mundo, e, nessa experiência, ele é inevitavelmente impelido
para além de si mesmo, para além do que aparece mundanamente e para além de si: “o homem quer
ultrapassar-se”375, pois, ainda que fundamental, a realidade existencial do Dasein é limitada para a
auto-compreensão humana.
É justamente esse movimento de superação que abre caminho para o esclarecimento da
Existenz. O segundo nível do modo de ser humano, dessa maneira, difere-se do primeiro por não ser
objetivamente verificável e por só poder ser esclarecido como um olhar para o interior de cada um de
nós, para o ser-sujeito que não aparece no mundo. Todavia, não se trata de psicologismo, de um sujeito
psicológico, ou de averiguação de como se comporta o processo de conscientização de si mesmo, mas,
antes, refere-se àquilo que oferece gravidade significativa e histórica ao próprio Dasein. Para Jaspers,
é do contexto situacional em que vive o Dasein – contexto mundano – que se desponta a possibilidade
da Existenz. Como afirma Antônia Perdigão, “[n]a obra de Karl Jaspers não há Existência sem Dasein,
mas o Dasein não é a Existência”376. Ou como Jaspers aponta em Philosophie: “Não é o meu Dasein
que é, portanto, a Existência; o Homem é que é, no Dasein, a Existência possível (Nicht mein Dasein
also ist Existenz, sondern der Mensch ist im Dasein mögliche Existenz)”377. Ou seja, diante dos fatos
que compõem a vida do Dasein, a existência pode se situar, oferecendo aos fatos vividos significados
próprios, conteúdos específicos, historicidade e se comprometendo com as situações de tal forma que
não mais se coloca alheia ou exterior a eles. Nesse sentido, todas as situações são subjetivizadas e
experimentadas por alguém que deve enfrentá-las, mesmo (e sobretudo) aquelas situações que são
limítrofes. É assim que se chega a um conceito fundamental na filosofia jasperiana: as situações-limite.
De acordo com o autor, algumas situações são marcadas pela necessidade de decisões e atos últimos
que tocam no âmago de nosso existir. São precisamente os casos da “morte”, da “culpa”, do
“sofrimento” e também daquilo que Jaspers denomina por “luta”. Nas palavras do pensador alemão:
“Chamo situações-limite àquelas em que me encontro sempre que não posso viver sem luta nem dor,
autêntica ou inautêntica. Contudo, em Jaspers, Dasein é o ser-aí ou estar-aí, tanto das coisas e dos processos naturais
quanto do homem e de seus produtos e criações; em suma, de tudo o que existe empiricamente, o que vulgarmente se
chama realidade” (In: JASPERS, K. Filosofia, livro I, p. xxxi). 375 JASPERS, K. Introdução ao Pensamento Filosófico, p. 50. 376 PERDIGÃO, A. A Filosofia Existencial de Karl Jaspers, p. 542. 377 JASPERS, K. Philosophie, p. 02.
106
em que inevitavelmente assumo a culpa e em que tenho de morrer”378. Trata-se, portanto, de
compreender que a vida humana pressupõe situações que não podem ser literalmente superadas; são
situações fronteiriças para o Dasein, subjacente às quais nada se enxerga, perante às quais as atitudes
humanas sempre fracassarão em contornar, mas que, do plano do esclarecimento da existência,
representam o mote para a superação do nível do Dasein. A consciência e a experiência racional dessas
situações já significam que os homens devem “lutar” com a própria vida, com as próprias decisões,
com o próprio fracasso (Scheitern) em relação aos seus limites e, por consequência, já denuncia os
sofrimentos pelos quais a própria Existenz transita. Afinal, em diversas obras Jaspers sempre reafirma
que ninguém escolhe vir ao mundo, ou que ninguém é criador de si mesmo, por exemplo, mas que, à
revelia disso, deve-se lidar com tais situações com autonomia e culpa pelas suas próprias decisões, ou
ações, em um horizonte de mortalidade inescapável. Entretanto, paradoxalmente, para Jaspers, a
Existenz possível é sempre fruto de escolhas individuais que acabam por oferecer profundeza à
formação de personalidades, subjetividades autênticas. É existência possível, pois não é determinada,
não é ancorada em conhecimentos objetivos (Verstand), não segue cartilhas de comportamentos pré-
determinados, ultrapassa qualquer objetividade e pode vir a não se realizar, caso alguém se recuse a
enfrentar conscientemente as próprias condições do existir mundano. É existência escolhida, pois se
atrela à decisão do sujeito que afirma livremente a si mesmo, as suas particularidades e as suas
situações. Assim, chega-se então a outra noção extremamente significativa para Jaspers: a liberdade
existencial. Não há Existenz sem liberdade, esta é um índice existencial. Ou alguém é livre para decidir,
escolher e querer a si mesmo, ou ele nada é. A existência possível é sempre escolhida, pois é sempre
uma ação, uma vivência. Ou seja, a liberdade existencial não é uma mera ideia, mas uma vivência que
se atualiza na existência. Todavia, para Jaspers, é inegável que haja um processo antinômico nessa
atualização. Por um lado, cada homem possui autonomia e independência para afirmar a si mesmo
existencialmente – a própria existência é essa afirmação da vontade, cuja liberdade lhe define. Por
outro lado, a exterioridade sempre limitará o espaço de controle dessas decisões humanas, pois não
poder escolher definitivamente sobre algumas situações – como o nascimento e a morte – restringe-
nos a não sermos livres para a decisão de não escolhermos num ponto limítrofe.
Pelo exposto, suponho aqui que a primeira parte constitutiva dessas reflexões jasperianas,
apresentadas em primeira mão na obra Philosophie, inspira o enfoque de Arendt no amor pelo mundo
durante o primeiro movimento de sua tese de doutorado (“O amor como Desejo”), o que ajudaria a
autora a abarcar o desejo (appetitus) agostiniano – como experiência vital terrestre – a partir da
378 JASPERS, K. Philosophie, p. 203.
107
objetividade e da relação sujeito e objeto. O segundo tomo do trabalho jasperiano se reflete na solução
que Arendt encontra às contradições do amor ao próximo que ela enxerga em Agostinho, isto é,
sobretudo no capítulo final de seu doutoramento (“A Vida em Sociedade”), no qual se encontra o
argumento de que os homens são “seres-em-situação” e de que, em última instância, o que nos vincula
a um parentesco comum são situações-limite inevitavelmente compartilhadas pela existência humana.
Destacam-se especificamente, nesse movimento, como situações-limite, a morte, o nascimento, a culpa
e o ser-no-mundo em meio à pluralidade humana. A terceira parte, denominada “Metafísica”, por fim,
oferece forma e elementos conceituais para o estudo da transcendência divina e do “amor a Deus” no
segundo momento da tese arendtiana (“Criador-Criatura”). Antecipa-se que o segundo bloco dessas
relações receberá destaque aqui nesse contexto. O propósito é mostrar o quanto as interpretações de
Arendt a respeito de Agostinho representam e fornecem, muito mais do que uma contribuição à exegese
canônica de tais textos medievais, uma releitura da questão do ser e do amor à luz de dilemas centrais
na filosofia existencial contemporânea de raiz alemã. Tanto é que essa característica foi, aliás, a mais
criticada pelos teólogos da época quando da publicação do trabalho da jovem aluna judia sobre o Bispo
de Hipona379. Tratava-se de um estudo menos ortodoxo do que o esperado, mas, sabe-se pelo
depoimento de Hans Jonas (que na mesma época estava produzindo seu primeiro livro, sobre
Agostinho e o problema da liberdade), que o tópico do estudo apareceu para Arendt com as leituras
dela em combinação com o trabalho de Jaspers naquele tempo380. Em 1957, no seu volume dedicado a
Agostinho na obra Die Grossen Philosophen, Jaspers também comenta sobre as típicas contradições
agostinianas em um espírito muito parecido com o de Arendt em 1929:
Nada é mais fácil do que encontrar contradições em Agostinho. Nós as
compreendemos como característica da sua grandeza. Nenhuma filosofia é livre
de contradições – e nenhum pensador pode objetivar contradições. Mas Agostinho
é um dos pensadores que se arriscou em contradições, que desenhou sua vida a
partir da tensão de enormes contradições. Ele não é um daqueles que se esforçam,
de saída, para se libertar de contradições; pelo contrário, ele deixa seu pensamento
ancorado em contradições enquanto quer pensar Deus. Agostinho encara as
contradições. E mais do que isso: ele as pressiona ao máximo de seus limites. Ele
nos faz conscientes da seguinte questão provocativa: há um ponto, um limite, onde nós encontramos as fronteiras das contradições? E como resposta: sim, por toda
parte, movidos pela procura do ser e pela incondicional vontade interna a nós,
perseguimos comunicar a nós mesmos em pensamento, isto é, em palavras. Nesse
domínio, libertar-se de contradições seria a morte existencial e o fim do próprio
pensamento. É por assumir essas contradições essenciais que Agostinho ainda
exerce um poder tão provocativo. E foi também, ao trabalhar com os métodos de
pensamento eclesiástico, por abranger o máximo de contradições – mesmo em
379 Cf. ARENDT, H. Love and Saint Augustin. 380 SCOTT, J; STARK, J. “Jaspers Arendt and Existez philosophy”. In: ARENDT, H. Love and Saint Augustin.
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oposição à razão – que ele foi capaz, dentro da autoridade da Igreja, de encontrar
suas necessidades, tão eminentemente, sem inventar um sistema381.
A atitude de Agostinho em relação ao mundo envolve uma radical contradição. O
mundo é uma criação de Deus, é bom, é belo como uma obra de arte, as
desarmonias acrescentadas são belas. Até o mal é, em geral, um elemento da bondade. Sem a queda de Adão nós não teríamos a glória do Salvador, o Deus que
se tornou homem. Mas, por outro lado: é da mais alta sabedoria desprezar o mundo
e ambicionar o reino dos céus – o qual transcende toda temporalidade. Para aqui,
embaixo, como temos ouvido, a nossa única paz é a consolação na miséria382.
Para voltar à obra jasperiana Philosophie de modo mais preciso, Jaspers lida na primeira parte
de seu trabalho especificamente com o ser-humano em sua condição situacional mundana. De acordo
com o pensador alemão, para a realidade do homem, qualquer tomada de consciência de si mesmo
envolve imediatamente aquilo que o circunda: o mundo, no qual e a partir do qual é preciso encontrar
orientação, seja por meio dos sentidos ou da elaboração de conhecimentos objetivos por meio das
ciências. É fundamentalmente mediante a espacialidade que o homem percebe que há algo fora dele e,
ao denominar esse fora como “mundo”, percebe a si mesmo em relação às coisas mundanas. Nesse
aspecto, como já apresentado, o homem se define como uma existência empírica, Dasein (ser-aí), um
sujeito vital que nasce e morre e que só existe com outros seres materiais e outros Dasein que lhe
impõem resistência e que lhe mobilizam desejos e interesses. Trata-se de um âmbito de objetividade
ontológica, no duplo sentido de que apenas mediante os outros é que chegamos a ser conscientes de
nós mesmos, e, ao mesmo tempo, de que a existência externa a nós sempre se determina, apresenta-se,
de maneira cognoscível através de um “eu”. Jaspers afirma: “Não há mundo sem eu e nem eu sem
mundo [...] como vida, estou em trato recíproco com o meu contorno, mas como consciência eu apenas
sou ao passo que, dirigido a outro, me faço consciente de mim mesmo devido a isso”383. Por mais que
este modo de ser do homem esteja inevitavelmente submetido às perspectivas únicas e às
particularidades que nos situam imediata e individualmente no mundo, e que se acumulam tantos
quantos são os sujeitos empíricos dotados de consciência, cabe também ao homem a produção de
conhecimentos racionais e verificáveis que se fazem reconhecidos a todos por meio daquilo que Jaspers
denomina de “consciência geral” (Bewusstsein überhaupt). Isto é, se há qualquer possibilidade de
conhecimento universal dos objetos do mundo, isso se deve à consciência em geral que é capaz de
abstrair as particularidades, às quais está submetida a nossa realidade mundana, em função de
categorizações e leis acessadas impessoalmente por processos científicos. “Como ‘consciência em
381 JASPERS, K. The Great Philosophers, vol I, p. 111, tradução minha. 382 JASPERS, K. The Great Philosophers, vol I, p. 110, tradução minha. 383 JASPERS, K. Filosofia I, pp. 77 e 78.
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geral’ sou substituível por qualquer outro, que não é numericamente idêntico a mim, mas que é idêntico
pela espécie”384. É por isso que Jaspers investiga o sentido e a sistemática das ciências em grande parte
de seus trabalhos, pois o saber dos objetos existentes equivale à orientação intramundana, inclusive
quando o próprio homem se torna o objeto de estudo científico, como na psicologia, na antropologia,
na biologia, na anatomia e em outras ramificações. Contudo, o que interessa destacar aqui é que, para
Jaspers, essa etapa da orientação no mundo é sempre inconclusa, infinita, não consegue abarcar todas
as possibilidades de ser, pois nem tudo aquilo que nos define é imanente e propício à objetivação. O
homem é mais do que um ser social, psicológico, cultural e biológico. Nesse sentido, a orientação
filosófica no mundo teria a tarefa lúcida e crucial de apontar os limites da construção de uma imagem
totalizante das coisas mundanas. Ou seja, por ser consciente da incapacidade humana de produzir e
acessar conhecimento absoluto e único sobre as existências objetivas, todo filosofar representa a
autocrítica aos métodos sensitivos de orientação no mundo, inclusive às ciências.
Ora, com esse espelho da teoria jasperiana delineado, cumpre destacar que o primeiro ponto
que Arendt elege como problema a ser desenvolvido no conjunto dos argumentos agostinianos sobre
o amor, em suma, é o de que o esperado contato do cristão com Deus, no amor como caritas, não mais
se prende às perspectivas e contextos temporais, e, assim, acaba por totalizar a objetividade mundana
aos olhos do ser humano, pois se posta em um âmbito que ultrapassa o mundo. Nas palavras dela: “A
vida determinada pela caridade tem um fim que se situa por princípio fora do mundo e, portanto,
também fora da própria caridade”385. É como se, no amor a Deus e na consequente experiência do
futuro absoluto vivificado no presente da criatura, o homem pudesse ordenar o modo de seus
relacionamentos com as coisas e os seres mundanos como se fosse a própria divindade, a partir de uma
perspectiva fora do tempo – imutável e eterna. Assim, o mundo se torna um objeto completamente
disponível ao homem, totalmente apreendido, e, tendo em conta que a existência humana pertence ao
contexto mundano, Arendt conclui que:
[...] a própria existência do homem torna-se uma coisa objetivamente disponível,
o correlato do desejar. É através desta projeção no futuro, que lhe dá uma
permanência que foge ao tempo, que esta ‘coisificação’ da existência do homem
é ratificada. Para aquele que regressa do futuro absoluto e ordena o mundo, a
existência concreta torna-se ela própria uma coisa que deve encontrar o seu
lugar na permanência das coisas disponíveis386.
384 JASPERS, K. Filosofia I, p. 9. 385 ARENDT, H. O Conceito de Amor em Santo Agostinho, p. 37. 386 ARENDT, H. O Conceito de Amor em Santo Agostinho, p. 40, grifos meus.
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Em outros termos, Arendt salienta que para o ser-cristão não há como fugir do medo de perder
a vida, não há outro meio para atingir felicidade, senão encontrar em Deus um modo de lidar com a
própria existência de maneira objetivada. Ao chamar atenção para isso, na tese da jovem aluna não está
em questão prioritariamente o debate epistemológico, mas, pelo contrário, “a projeção da beatitude no
futuro absoluto, a impossibilidade de perfeição no presente, fazem ressurgir o problema do ser no
mundo”387, ou seja, há uma preocupação ontológica sobre o ser no mundo que, julgo aqui, remete-se
diretamente aos argumentos contemporâneos de Jaspers. Isto pode ser notado em passagens nas quais
o autor alemão, em Filosofia, afirma que a angústia do ser humano no mundo se liga à obscuridade em
que ele se encontra quanto à origem e ao fim de seu existir, isto é, faz-se presente quando o homem se
interroga a respeito dos tempos em que não existia (no ainda-não) e em que não mais existirá (no não-
mais). Nesse contexto, Jaspers assume que o ser só poderia ser apreendido e conhecido em sua
completude se fosse possível, ao homem, abstrair-se de sua situação inevitavelmente histórica e, dessa
maneira, objetivar a si mesmo. Em suma, diz ele, “se quisesse me ater a algo que se pretende ser o ser
cognoscível como objetividade, somente poderia fazê-lo esquecendo de mim mesmo. Eu teria me
convertido em um objeto entre objetos [...] no qual posso me conduzir propriamente porque conheço o
princípio e o fim”388. Ora, a leitura arendtiana sobre Agostinho destaca o esquecimento de si enquanto
uma finalidade existencial ao ser humano cristão. No desejo da eternidade e na necessidade de amar a
Deus, chegamos a esquecer de nós mesmos, de nossa vida humana e da nossa história particular,
elementos que nos situam individualmente no mundo. Diz ela ao interpretar Agostinho: “Neste
esquecimento, ele deixa de ser ele próprio, um ser particular. Perde a sua modalidade ontológica de ser
mortal, sem ser Deus ou eterno. Ele está na modalidade ontológica do ‘desde-para’, onde o ‘para’, a
direção, faz esquecer o ‘desde’. Neste esquecimento [...] o passado também é esquecido”389. Deste
ponto de vista, a apresentação que Arendt realiza se mostra enviesada pelas reflexões jasperianas na
medida em que ambos acabam por apontar para os limites da visão objetivada do homem na tentativa
de compreender as dimensões existenciais humanas. A proposta agostiniana retiraria o peso da
historicidade para a existência particular dos seres humanos. A historicidade, nos termos jasperianos,
é também um índice existencial. A Existenz se radica em um Dasein historicamente, temporalmente,
em um presente concreto. Isto é, a historicidade é o horizonte no qual se encontra a unidade entre
Dasein e Existenz. Mais do que isso: é o horizonte no qual as situações-limite, necessidades impostas
387 ARENDT, H. O Conceito de Amor em Santo Agostinho, p. 43. 388 JASPERS, K. Filosofia I, p.xxx. 389 ARENDT, H. O Conceito de Amor em Santo Agostinho, p. 32.
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ao existir, transformam-se em possibilidades de liberdade de escolha individualizante. Enfim, é na sua
historicidade que o homem une a necessidade à liberdade.
Para Jaspers, a via do esquecimento de si seria ilusória e jamais atingiria completude, uma vez
que o modo de ser histórico e situacional do homem sempre se impõe, inclusive à consciência que
pretende esquecer de si mesma em nome de algo transcendente. No caso da tese de Arendt, o
esquecimento de si, em caritas, ainda não resolveria o problema do “amor ao próximo”, o que a levou
a procurar o sentido desse amor a partir de outra origem. Na verdade, diz ela, seria impossível deduzir
o amor ao próximo do amor desejante, principalmente porque a totalidade objetivada anula o contato
do homem com o mundo e com os outros. Arendt atesta: “Regressando de um futuro absoluto, o homem
pôs-se fora do mundo e ordenou-o. Vivendo no mundo, ele tem o amor ordenado, ama como se não
estivesse no mundo mas como se fosse o ordenador do mundo [...] o que o torna objetivo. Esta
objetividade vira contra ele próprio e contra os outros”390. A necessidade de interação do homem com
os seus próximos e com sua historicidade, por meio do amor segundo o cristianismo, abriu para Arendt
a hipótese de que o estudo ontológico não prescinde do modo de ser plural e político dos homens.
Adriano Correia formula do seguinte modo: “Sem concepção alguma do amor mundi, compreendido
o mundo também como a comunidade dos homens, não é possível pensar sem incongruências a
relevância do próximo”391. Para trocar em miúdos, sem uma espécie de amor que não seja
minimamente mundano, o próximo não adquiriria dignidade própria. Ou como Arendt formularia nos
rascunhos de Introdução na Política, na década de 1950, que para Agostinho “o motivo de assumir-se
o ônus da política terrena é o amor ao próximo, não o temor a ele”392. Nesse âmbito, a alternativa
argumentativa que a autora escolhe para afirmar a relevância do “próximo” no amor agostiniano se
envolve com os conceitos de existência possível e de ser-em-situação de Jaspers, e, justamente por
isso, vincula-se a um modo de ser em conjunto, aberto aos outros e politicamente condicionado, para
além da percepção objetivada dos homens, regulada pela separação epistêmica entre sujeito e objeto.
Isto é, Arendt parte da ideia de que os homens estão em igualdade de situação originária, esta que faz
relacionar toda a humanidade a duas experiências parentais: o dever morrer e a descendência comum
em Adão. A seguinte passagem é extremamente valiosa e contundente para a discussão aqui:
Existe igualdade porque em Adão o gênero humano é instituído radicalmente.
Existe igualdade radical (radicaliter) porque ninguém do gênero humano pode
subtrair-se a esta proveniência e porque, para mais, nela a determinação mais
390 ARENDT, H. O Conceito de Amor em Santo Agostinho, p. 44. 391 CORREIA, A. “O significado político da natalidade: Arendt e Agostinho”. In: Hannah Arendt: entre o passado e
o futuro, p. 18. 392 ARENDT, H. “Introdução na Política”. In: KONH, J. (org.). A Promessa da Política, p. 197.
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essencial da existência humana é constituída e fixada de uma vez por todas. Não
é portanto uma semelhança acidental (similitudo) que liga os homens: ela está
necessariamente fundada e fixada historicamente na descendência comum, a qual
determina um parentesco que excede toda a simples semelhança. Este parentesco
cria a igualdade, que não é uma igualdade das propriedades ou das aptidões, mas
a igualdade da situação. Todos têm o mesmo destino. O ser particular não está só no mundo, tem companheiros de destino (consortes), e, aqui, não apenas nesta ou
naquela situação, mas durante toda a sua vida. A vida inteira é considerada como
uma situação particular submetida a um destino, o dever morrer. É sobre ela que
se funda o parentesco dos homens e, ao mesmo tempo, a sua ligação num mesmo
conjunto (societas)393.
Arendt se utiliza da reconhecida expressão jasperiana “companheiros de destino”394 para
apresentar que o nascimento (generatione) de cada um dos seres humanos o conecta a uma comunidade
plural, de origem adâmica, que se define existencialmente por compartilhar a mesma situação com
vistas a um futuro incontornável. Nos termos de Jaspers: “a situação vem do anterior e tem
profundidade histórica; nunca está terminada, senão que abarca em si o futuro como possibilidade e
inevitabilidade. É a única maneira que a realidade se apresenta a mim, na forma da minha existência
nela”395. A tese arendtiana sobre Agostinho, desse modo, assume essa perspectiva para defender que o
significado do amor ao próximo cristão depende de um contato individual com todas as gerações
humanas que antecedem ou são coetâneas de um ser particular. Por um lado, pela força ontológica do
nascimento, que seria denominada posteriormente de natalidade por Arendt, a importância do mundo
é reinterpretada a partir de um ponto de vista histórico. Por outro lado, o peso ontológico da mortalidade
é tido como uma situação-limite, da qual temos consciência de não podermos escapar literalmente, que
só podemos enfrentar no existir em conjunto. Para Jaspers, como desenvolvido no segundo volume de
Filosofia, nenhum homem é capaz de se livrar de ser-em-situação – esta é uma característica da
existência empírica, do Dasein vital. Todo existir se defronta com uma “situação singular, hic et
nunc”396. Algumas situações particulares podem até mesmo ser alteradas ou ultrapassadas, mas “eu
não posso nunca sair de uma situação sem entrar imediatamente em outra”397, pois o estar em situação
do homem nunca é suprimido. Como diz o comentador Mario Presas: “Foi precisamente Jaspers um
dos primeiros, senão absolutamente o primeiro, que chamou atenção acerca do homem entendido como
‘ser-em-situação’”398. Todavia, não custa reafirmar: determinadas situações e condições humanas são
393 ARENDT, H. O Conceito de Amor em Santo Agostinho, pp. 154 e 155. 394 Cf., por exemplo, JASPERS, K. Introdução ao Pensamento Filosófico, pp. 46, 49, 71, 117. 395 JASPERS, K. Filosofia I, p. 65. 396 HERSCH, J. Karl Jaspers, p. 21. 397 JASPERS, K. Filosofia II, p. 66. 398 PRESAS, M. Situación de la filosofía de Karl Jaspers: com especial consideración de su base kantiana, pp. 05-06.
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limítrofes, últimas e absolutas; só mudam no modo de suas manifestações, jamais são contornadas por
completo. Estas são as denominadas “situações-limite”, como a morte e a culpa, nas quais e pelas quais,
para o autor alemão, realizamos e esclarecemos autenticamente nossa existência. Assim, Jaspers faz a
seguinte distinção: “Como existência empírica estou em situações; como existência possível, na
existência empírica, estou em situações-limite [...] chegamos a ser nós mesmos entrando nas situações-
limite com os olhos bem abertos [...] Experimentar as situações-limite e existir são uma e mesma
coisa”399. Isto quer dizer, é na consciência ou na experiência de limites situacionais próprios da vida
que a existência possível afirma o seu desígnio: a própria liberdade, a possibilidade da escolha. Em
outras palavras, as situações-limite oferecem o ensejo para que os homens escolham e decidam encarar
livremente as possibilidades últimas, incognoscíveis e intransponíveis de suas existências, mesmo
sabendo dos seus recursos limitados e que fracassarão em superá-las. Trata-se, em suma, de não ter
uma postura passiva em relação às suas próprias situações, mesmo que estas estejam para além do
domínio científico ou decisório do homem. Antes, diz Jaspers, tais situações implicam em assumir
aquilo que é dado, o próprio destino, como se o sujeito tivesse feito a escolha de querer que essas
condições fossem como são. É nesse momento que se atualiza a existência possível, um modo de ser
do homem, como já dito, que não pode ser confundido nem com o Dasein (sujeito vital) e nem com a
consciência geral, nem com o espírito400.
De acordo com Jaspers, a existência possível não está disponível empiricamente, ela não é
derivada de dados objetivos propícios ao conhecimento – “sou existência na medida em que não me
torno objeto de mim mesmo”401 –, pois ela é pura liberdade, não é um mero estar-aí no mundo, mas
uma decisão obrigatória (e que é livre, paradoxalmente) que oferece gravidade e decifra os sentidos do
existir no mundo. “E é tendo consciência bem clara daquilo que ela não pode mudar, e opondo-se à
resistência das situações-limite e graças a elas, reconhecidas como condições primordiais, que a
liberdade se pode concretizar”402. É importante ressaltar que está em jogo para Jaspers que a existência
que se afirma em liberdade não está fechada às outras existências possíveis, nem é realizada de maneira
descontextualizada, solitária ou a-histórica. Isto é, a existência é situada, encarnada em um sujeito
empírico e concreto, e isso a faz dependente das relações mundanas como campo de experiência para
a atualização da liberdade. Afinal, não é senão da realidade vivida que surgem as situações. Não é sem
399 JASPERS, K. Filosofia II, p. 67 e 72. 400 Trata-se de um terceiro modo de ser dos homens que Jaspers trabalha, entretanto, não importante para o
desenvolvimento deste argumento em específico. 401 JASPERS, K. Filosofia II, p. 402 HERSCH, J. Karl Jaspers, p. 22.
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ter isso em conta que Arendt, nos últimos movimentos de sua tese sobre Agostinho, comenta que a
situação social do ser do homem não é apenas necessária, provinda de um passado remoto do gênero
humano, mas é também uma escolha livre que deve ser feita por cada um de nós. Em outros termos, se
Arendt empresta o conceito de ser-em-situação jasperiano para compreender o vínculo mundano entre
os homens e para dar sentido ao amor ao próximo, ela não poderia deixar de trabalhar a questão da
liberdade, pois, embora amar o próximo contenha a necessidade de um mandamento, nada valeria se
não fosse fruto de uma decisão livre de todos com todos. Arendt afirma em seu trabalho: “[...] o ser-
conjunto dos homens na comunidade, de necessário e evidente que era, torna-se um ser-conjunto
livremente escolhido e constringente para cada um. Constringente devido a esta situação comum que
se torna, se se a explicita, um ser-no-pecado comum. Esta comunidade no pecado faz com que cada
um pertença a cada um”403. Veja que há aqui, anacronicamente por parte de Arendt, uma interpretação
do livre-arbítrio agostiniano aos moldes da liberdade existencial jasperiana. Ou seja, os seres humanos
assumem que podem escolher a respeito de uma situação já dada, a respeito de uma situação-limite. É
o momento quando a necessidade se torna uma possibilidade existencial. Arendt não está mais apenas
nos registros das obras de Agostinho. Como visto, esta decisão diante de situações limítrofes é a própria
realização da Existenz para Jaspers. Contudo, embora seja uma escolha individualizada, jamais é
fechada internamente no eu. Trata-se de uma escolha particular, em igualdade de situação (“Gleichheit
der Situation”404) que leva em conta e que afirma a historicidade e a comunidade humanas.
Para melhor explicar essas relações, nota-se que a gênese histórica do ser-humano em Adão é
concomitantemente o pertencimento de cada homem que nasce, por natureza, no pecado original. O
ser-cristão, diz Arendt, é o ser-em-perigo no pecado comum devido à sua origem pela nascença.
Todavia, interessa ressaltar dois aspectos desse contexto. Primeiro, por mais que participemos do
pecado antes mesmo da liberdade de escolha, uma vez que estamos constrangidos nesse vínculo
anteriormente à vida individual, a vinda e a revelação de Cristo ao mundo representam a livre escolha
pela graça divina, esta que pode ser imitada por cada indivíduo à luz da passagem histórica do redentor
pela Terra. Ou seja, é isto que Arendt atesta em seu ensaio, a historicidade do fato de Cristo no mundo
o fez participar do ser-em-conjunto dos homens e, ao mesmo tempo, a redenção nele representa a
possibilidade de escolha do homem sobre sua própria situação. O segundo ponto a destacar é de que
essa situação dos homens no pecado traz consigo a noção de culpa – uma mácula moral cristã, mas que
é trabalhada como uma situação limite por Jaspers. De propósito, Arendt sintetiza e mistura esses dois
403 ARENDT, H. O Conceito de Amor em Santo Agostinho, p. 157, grifos meus. 404 ARENDT, H. Der Liebesbegriff bei Augustin: versuch einer philosophischen interpretation, p. 79.
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sentidos. Explico: ao viver no mundo, fazemos escolhas para nos colocar em ação ou não. No
pensamento jasperiano, somos responsáveis por assumirmos a culpa das consequências daquilo que
decidimos e empreendemos, contudo, ainda que isso nos imponha uma pressão constante, assumir a
culpa reafirma a própria liberdade existencial. Arendt demonstra que pela estadia de Cristo na Terra,
nos termos agostinianos, a culpa no pecado humano ganha outros sentidos: o da escolha livre pela fé
e, não obstante, o de cada homem ser para o próximo o exemplo da salvação diante do perigo da
natureza pecadora de todos nós. Este é o impulso concreto que liga os homens aos seus próximos, pois
é o passado em comum que nos leva a agir, pela crença, em consideração com os outros companheiros
de destino. A teoria jasperiana se esconde e subjaz à totalidade desses argumentos, que versam, na
verdade, sobre as contradições internas das obras de Agostinho. Como diz Adriano Correia: “[...]
ligamo-nos ao mundo como estranhos pelo nascimento, como criaturas, e sentimo-nos em casa no
mundo pela generatio que historicamente nos remete ao delito originário. Por conseguinte, dividimos
também com Adão a condição de criaturas e com ele partilhamos a capacidade de instaurar no mundo
possibilidades novas, ainda que de queda”405. Anos depois de sua tese, em Sobre a Revolução, Arendt
irá comentar que, pela via agostiniana, é possível interpretar a vinda de Jesus Cristo à Terra de maneira
política, como um início único e particular na esfera dos negócios humanos:
A filosofia cristã realmente rompeu com a concepção temporal da Antiguidade,
pois o nascimento de Cristo, ocorrendo no tempo secular dos homens, constituiu um novo início, bem como um acontecimento único e irrepetível. E ainda mais a
concepção cristã da história, tal como foi formulada por Agostinho, só podia
conceber um novo início em termos de um acontecimento transcendente
irrompendo e interrompendo o curso normal da história secular. Como frisou
Agostinho, tal acontecimento ocorreu uma vez, e nunca mais voltaria a ocorrer
até o final dos tempos406.
A concepção de uma comunidade dos homens conduziu os estudos doutorais arendtianos, com
recursos retirados da filosofia de seu então orientador, à defesa de uma dignidade própria ao contexto
mundano e, por conseguinte, à noção de que o caráter plural da vida humana era uma situação limite
que antecipava qualquer outra situação na vida de cada indivíduo. Ela diz que a cidade terrestre “não
é assentida arbitrariamente e não é, pois, suscetível de ser suprimida arbitrariamente [...] A comunidade
dos homens que, remontando a Adão, forma o mundo (mundus) é sempre anterior a qualquer cidade
de Deus (civitas Dei) [...]”407. O homem torna-se, então, “dependente dos outros homens, não de Deus
[...] A comunidade dos homens, fundada sobre o seu parentesco, é portanto uma comunidade (societas)
405 CORREIA, A. “O significado político da natalidade: Arendt e Agostinho”, p. 29. 406 ARENDT, H. Sobre a Revolução, pp. 54 e 55. 407 ARENDT, H. O Conceito de Amor em Santo Agostinho, pp. 154 e 158.
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a partir dos mortos e com os mortos. Isto significa que é histórica”408. Não é por acaso, tendo isso em
vista, que o texto da tese arendtiana é constantemente revestido pelo caráter limítrofe e existencial
dessas situações que possuem viés político. Afinal, Jaspers comenta o quanto os aspectos históricos
não apenas são condições de possibilidade para a experiência existencial de situações-limite, mas
também se constituem na primeira situação limite do ser empírico que comporta a potencial Existenz.
A saber: “A primeira situação limite surge quando eu [...] estou neste tempo histórico, nesta posição
social; sou homem ou mulher, jovem ou velho, sou levado pela ocasião e pelas oportunidades”409.
Assim como Jaspers discute em sua teoria existencial, a estrutura da tese de Arendt caminha com a
seguinte finalidade analítica: até mesmo a relação humana com a transcendência (Deus, nos termos
agostinianos), não verificável ao conhecimento humano, está submetida e imbricada na condição
mundana da pluralidade. A sociedade dos crentes, formada pelo suposto abandono do mundo por parte
do cristão, acaba por não se desvencilhar de um passado histórico em comum. O ser não se conhece,
mas rememora um passado em comum a partir de uma fé comum. Assim, em resumo, a leitura
arendtiana transforma o ser-no-mundo cristão em uma existência possível, tal qual descrita nos termos
de Jaspers, consciente de sua situação e que se atualiza na liberdade de afirmar o seu próprio
pertencimento ao gênero humano, o seu próprio passado e o seu próprio destino.
A dependência recíproca dos homens, que determina de forma essencial o ser-
conjunto dos homens na comunidade mundana, é inteligível pela igualdade que na cidade terrestre permanece implícita. Esta dependência recíproca mostra-se na
troca, no gesto de dar e de tomar, graças ao qual os homens vivem uns com os
outros. A atitude de cada um para com os outros é aqui caracterizada pelo fato de
crer (credere), por oposição a todo o saber real ou potencial. Tudo o que é
histórico, todos os atos humanos e temporais são compreendidos pela mediação
desta fé que é ao mesmo tempo confiança e nunca pela mediação da inteligência
[...] O passado mantém o seu direito na subsistência do mundo, contra o qual (mas
não sem o qual) o anúncio da salvação chegou aos homens. ‘Cristo não teria
vencido o mundo se o mundo vencesse os seus membros’ [...] O passado continua
a agir porque é impossível para cada um chegar ao isolamento total. Separado
(separatus), o indivíduo é impotente, não pode agir senão com os outros ou contra
eles410.
Por mais que Arendt afirme, em mais de uma ocasião411, que na década de 1920 ainda não se
interessava e não lidava com a política em seus estudos, os temas políticos aparecem nessa época pela
via da recorrência teórica a Jaspers, mesmo que à revelia da própria autora. Pois, afinal, a filosofia
408 ARENDT, H. O Conceito de Amor em Santo Agostinho, p. 158. 409 JASPERS, K. Filosofía II, p. 73. 410 ARENDT, H. O Conceito de Amor em Santo Agostinho, p. 155. 411 Cf, por exemplo, “Só permanece a língua materna. In: A Dignidade da Política. Cf. também: ARENDT, H. “A
Daughter of our People: a response to Gershom Scholem”. In: BAEHR, P. The Portable Hannah Arendt, p. 392.
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jasperiana já era política. A noção de “ser-em-situação”, carregadamente preocupada com a história e
com as ações comuns entre os homens, à qual Arendt recorre, como discutido, está presente nos textos
de Jaspers desde o capítulo “Die Grenzsituationen” em A Psicologia das Visões de Mundo, de 1919.
Nesse sentido, tanto na tese de Arendt quanto na teoria nascente de Jaspers, o âmbito existencial aberto
pelas situações únicas que definem os homens em comunidade não é passível de intelecção e
conhecimento plenos. Tanto em um como no outro o terreno atingido é o da liberdade: esta escolha
humana obrigatória de assumir-se e perfazer sua própria existência sem ter a si e ao mundo como um
objeto, existência que nada seria sem a pertença ao gênero humano. Arendt interpreta esse espaço
existencial, como diz a citação acima, a partir da crença cristã, que uniria os homens a um passado e a
um destino com significado para além dos saberes humanos, cuja materialidade histórica constituiria
horizonte propício ao amor ao próximo. Jaspers, por sua vez, também interpreta esse espaço existencial
a partir da denominada “fé filosófica”, distinguindo-a de quaisquer saberes reais e precisos. Para o
autor, uma vez que a existência possível não se circunscreve a nenhum tipo de conhecimento, o que
resta ao pensamento filosófico – enquanto caminho privilegiado de acesso e realização da Existenz
pessoal – é transcender os limites racionais e cognitivos, é se fazer perguntas não restritas pelos limites
da razão, o que em outras palavras, para Jaspers, significa adentrar no âmbito da fé, da certeza da
liberdade que define os homens. Contudo, não se trata para ele da fé religiosa e revelada, muito menos
de dogmatismo baseado em alguma fonte incontestável, mas de “fé filosófica, viva desde que existem
homens que pensam [...] A fé não pode ser imposta pelo raciocínio, nem ser exposta e transmitida
como um simples conteúdo. A fé é a força pela qual me reconheço certo, a partir de um fundamento
que eu posso certamente preservar, mas não estabelecer”412. Com essa concepção de fé filosófica,
Jaspers inaugura um novo modo de vínculo entre o filosofar e as disposições afetivas humanas, ou, se
preferirem, um novo olhar a respeito de como as maneiras pelas quais os indivíduos sentem o mundo
também participam dos significados e das visões de mundo que as mais diversas teorias oferecem em
seus estudos. Discuto, no próximo tópico e em todo o capítulo subsequente, que a teoria política de
Arendt, jamais reduzida ao contexto específico da tese sobre Agostinho, sustenta-se, contudo, em
determinadas disposições humanas que se relacionam a dois conceitos que já figuram no texto de 1929
412 JASPERS, K. Der philosophische Glaube angesichts der Offenbarung, p. 08, apud. HERSCH, J. Karl Jaspers, p.
88. Jaspers abre esse texto, que pode ser traduzido como “A fé filosófica frente a revelação”, dizendo que não se opõe
à fé revelada, nem tem o intento de encontrar algo superior a esse tipo de fé, mas, simplesmente, pretende chamar
atenção para a diferença da fé filosófica em relação às crenças religiosas, não obstante a capacidade de aquela
conseguir englobar esta, nas suas mais variadas facetas.
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e que carregaram consigo, no passar do tempo, diálogos com a psicologia filosófica de Jaspers, quais
sejam: a natalidade dos homens e o signo do amor mundi.
Não é por acaso que Arendt escreva a Jaspers, em 1966, dizendo que, depois de tantos anos,
não perdera o vínculo teórico com seu escrito sobre Agostinho. A autora diz: “estou reescrevendo meu
Agostinho, em inglês, não em latim, e de um modo que as pessoas que não tenham aprendido a
taquigrafia filosófica possam compreendê-lo. É estranho – esta obra está tão distante no passado, por
um lado; mas, por outro, ainda sou capaz de me reconhecer, por assim dizer”413. Pretendo debater o
quanto as noções de natalidade e de amor mundi caracterizam a Arendt, também, um modo de sentir,
não apenas de significar, o mundo humano, oferecendo teor político a disposições humanas como a fé,
a esperança, a amizade, o respeito, a coragem, a abnegação, o perdão e a promessa, especificamente.
O parágrafo que fecha o capítulo sobre a “Ação”, em A Condição Humana, é crucial nesse sentido e
aponta para algumas dessas questões que serão desenvolvidas no próximo tópico:
O milagre que salva o mundo, o domínio dos assuntos humanos, de sua ruína
normal, ‘natural’ é, em última análise, o fato da natalidade, no qual a faculdade
da ação se radica ontologicamente. Em outras palavras, é o nascimento de novos
seres humanos e o novo começo, a ação de que são capazes em virtude de terem
nascido. Só a plena experiência dessa capacidade pode conferir aos assuntos
humanos fé e esperança, essas duas características essenciais da existência
humana que os gregos antigos ignoravam por completo por depreciarem a fé
como uma virtude muito incomum e pouco importante, e computarem a esperança
entre os males da ilusão contidos na caixa de Pandora. É essa fé e essa esperança
no mundo que encontram sua expressão talvez mais gloriosa e mais sucinta nas
breves palavras com as quais os Evangelhos anunciaram sua ‘boa-nova’: ‘Nasceu uma criança entre nós’414.
1.3: O radical ontológico da natalidade como uma filosofia do presente
Hannah Arendt e Karl Jaspers são pensadores em cujo cerne de suas filosofias, de maneiras
muito similares, encontram-se os fenômenos políticos de seus tempos, quais sejam, os acontecimentos
que marcaram a “fisionomia”415 do mundo político da primeira metade do século XX. Cada um dos
autores, a seu modo característico, declara e explicita a força com a qual a realidade contemporânea
assume centralidade de significado e de importância reflexiva para eles, de tal forma que é como se,
por meio de eventos factuais mundanos, tivessem sido despertados do “sonho dogmático” dos filósofos
413 ARENDT, H. Apud. CORREIA, A. “O Significado político da natalidade: Arendt e Agostinho”. In: Hannah
Arendt: Entre o passado e o futuro, p. 17, grifos meus. 414 ARENDT, H. A Condição Humana, p. 308, grifos meus. 415 ARENDT, H. Sobre a Revolução, p. 35.
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que acreditavam ser possível começar a filosofar sem pensar sobre política. Tanto Jaspers quanto
Arendt recordam, seja em entrevistas ou em textos de caráter autobiográfico, que no início de suas
juventudes viviam e pensavam intelectualmente sem maiores preocupações políticas, até que Guerras
Mundiais, com suas causas e consequências, instalaram-se sem cerimônias no contexto de suas
histórias de vida e de seus intentos compreensivos. Jaspers diz que até 1914, mesmo suspeitando de
perigos possíveis na arena dos negócios humanos, trabalhava e se comportava “isento de toda
consciência política”416. Arendt, por seu turno, diz que até à eleição de Hitler na Alemanha, e o
subsequente ano de 1939, não se interessava pelos temas políticos. Desse modo, a I Grande Guerra
está para a produção de Jaspers assim como a II Grande Guerra está para a de Arendt. Em outras
palavras, na mesma medida em que os problemas da I Guerra emergem concomitantes à nascente do
pensamento existencial jasperiano, os problemas da II Guerra formam, por sua vez, a primeira peça
que constitui o quebra-cabeça de toda a teoria política arendtiana, fincada na obra Origens do
Totalitarismo.
Em Sobre minha filosofia, Jaspers afirma que o ano de 1914 representou uma ruptura com o
modo de vida europeu que levava, pois era um ponto sem retorno, perante o qual não haveria mais
recuo possível, posto que, a partir de então, jamais poderia imaginar um filosofar alheio à política,
jamais “poderia voltar àquela vida paradisíaca, ingênua, dentro de sua sublime espiritualidade, que
existia antes daquela guerra. A filosofia, com toda a sua seriedade, fez-se então mais importante do
que nunca”417. Essa impressão jasperiana permaneceria em seus textos de maturidade, nos quais ainda
pulsam críticas ao modo de vida ocidental de não se preocupar com o alastramento dos vícios públicos,
de não se preocupar o bastante com a sombra de futuras guerras nucleares, de não se responsabilizar
pelo cultivo da dignidade da existência humana, entre outras características. Ele diz: “É escandalosa a
tranquilidade do mundo ocidental, tranquilidade baseada na presunção de que essa agradável maneira
de viver terá duração indefinida. As consequências das ilusões voluntárias de antes e após 1914 não
nos terão ensinado ao que leva essa irresponsabilidade política e moral?”418. Isto é, para Jaspers, a
Primeira Guerra representava um ponto limite determinante para entender a condição existencial dos
homens de seu tempo, qual seja: a falência da dignidade humana na vida em sociedade, a impotência
– e subsequente frustação – do homem em controlar as consequências de suas próprias criações, como
aquilo que advém do âmbito político. É com isso em vista que o autor alemão, ao introduzir a obra
416 JASPERS, K. Sobre mi filosofía, p. 246. 417 JASPERS, K. Sobre mi filosofía, p. 246, tradução minha. 418 JASPERS, K. Introdução ao pensamento filosófico, p. 147.
120
Situação Espiritual de Nosso Tempo, em 1933, elenca a seguinte questão como a mais fundamental de
um período entre guerras: como o homem se coloca diante de tal estado de coisas e como o homem
deve se erguer diante de tal estado de coisas419, de colapsos morais e políticos completos na esfera dos
negócios humanos. Embora sempre apontasse esperançoso para a possibilidade de novos começos, ou
para a possibilidade da constituição plural da dignidade humana, em olhar retrospectivo pode-se
afirmar que Jaspers parecia prever o caos que tragaria o mundo ocidental com a erupção da ideologia
e do terror totalitários nos anos seguintes a esse seu escrito.
Não obstante, foram justamente os fenômenos originários do totalitarismo hitlerista,
aparentemente desprovidos de significância para a política mundial, “como a questão judaica e o
antissemitismo”420, que desviaram o caminho de Arendt rumo aos assuntos políticos, uma vez que a
sua própria condição de nascimento se transformaria num “agente catalisador, primeiro, do movimento
nazista; segundo, de uma guerra mundial; e, finalmente, da construção dos centros fabris de morte em
massa”421. Do ponto de vista da experiência de Arendt, portanto, sabe-se pela entrevista concedia a
Günter Gaus que a pensadora data suas preocupações políticas, tanto de um ponto de vista teórico
quanto de uma perspectiva prática, a partir do dia “27 de fevereiro de 1933, o incêndio do Reichstag e
as prisões ilegais que se seguiram. A chamada prisão preventiva [...] Foi um choque imediato para
mim, e daquele momento em diante eu me senti responsável”422. Nesse mesmo debate, Arendt afirma
que, para ela, desde quando desconfiou que os nazistas alcançariam o poder na Alemanha, que eles
tomariam os lemes do país, constatação que permeia o intervalo entre 1931 a 1933, era impossível ser
indiferente e desinteressada pela política. A autora comenta que já possuía opiniões sobre os assuntos
públicos naquele momento, mas que as sistematizou somente diante de sua inevitável emigração do
solo alemão. Ao relembrar desse assunto na década de 1970, Arendt diz que permaneceu ingenuamente
política “até que, finalmente, alguém bateu em minha cabeça [com um martelo] e, podemos dizer, isto
me despertou para a realidade (schliesslich schlug mir [einer mit einem] Hammer auf den Kopf und
ich fiel mir auf)”423. Ou seja, os eventos factuais de seu tempo passaram a ser incontornáveis para o
pensamento incipiente da autora, e Arendt logo percebeu que “os fatos são teimosos”424, não costumam
419 JASPERS, K. Ambiente Espiritual de nuestro tiempo, p. 11, tradução minha. 420 ARENDT, H. Origens do totalitarismo, p. 12. 421 ARENDT, H. Origens do totalitarismo, p. 12. 422 ARENDT, H. “‘O que resta? Resta a Língua’: uma conversa com Günter Gaus”. In: Compreender: formação, exílio
e totalitarismo, p. 34. 423 ARENDT, H. Sobre Hannah Arendt, p. 128. 424 ARENDT, H. Sobre a Revolução, p. 52.
121
desaparecer por nenhum tipo de truque teórico e, além do mais, insistem em ser devidamente ouvidos
em suas particularidades.
Por mais que os tempos vivenciados por ambos os pensadores fossem assombrosos, hostis e
perigosos, não foi sem ironia e sem bom humor que Jaspers e Arendt encararam a missão desafiadora
de viver, interpretar e sobreviver ao século XX, tão marcado por guerras e revoluções. O caráter
adversativo que eles imprimiam ao próprio peso de uma época se dava também pela leveza espiritual
que cada um deles demonstrava ter. Jaspers, por exemplo, com ironia, chega a agradecer a Hitler
textualmente pelas longas “férias” concedidas longe das Universidades e da aparição pública, sem as
quais não teria tido tanta produção escrita. O autor alemão encarou os períodos durante e pós-guerras
– determinados pela perda de amigos e familiares, além de escassez de alimentos, remédios e outras
dificuldades materiais – a partir do agravamento de uma doença rara e sem cura que o acometia desde
o nascimento: a bronquiectasia, uma dilatação dos brônquios resultante de lesões nas vias aéreas.
Devido à doença, Jaspers foi tido por muito tempo como tuberculoso e, não por acaso, teve a morte
anunciada por muitos diagnósticos apressados. O médico que o diagnosticou em seus primeiros anos
de vida, por exemplo, afirmou que o menino Jaspers não chegaria à fase adulta. Contudo, Jaspers só
faleceu logo após completar 86 anos. Em sua vida, interpretava a guerra e a própria doença como
situações-limite que testavam a sua existência possível e que estavam na fonte de seu filosofar425, no
sentido de que não escolhera por tais contingências, mas que deveria se afirmar por meio delas,
clarificar o seu próprio ser na compreensão delas, tomá-las como ensejo para se realizar pessoalmente
com consciência premente da própria morte e diante do sofrimento dos limites corporais, como casos
que a séria doença não lhe deixava esquecer. Young-Bruehl afirma que a ironia também contribuiu
para o projeto filosófico jasperiano “de construir algo para depois destruir”426, sempre em diálogo com
Nietzsche e Kierkegaard – autores que, a propósito, também desempenham interlocuções frutíferas às
reflexões arendtianas.
É curioso notar que tanto Jaspers quanto Arendt se referiam às experiências e situações-limite
pelas quais passaram, principalmente aquelas consequentes da Segunda Guerra, com recorrência a
provérbios chineses irônicos e em tom de gracejo com situações trágicas. Quanto a isso, Jaspers
costumava dizer junto à sabedoria chinesa que: “É preciso ser doente para se chegar a ser velho”,
remontando à debilidade de seu próprio corpo e de sua saúde em condições externas também extremas,
embora diga em um autorretrato, gravado em imagens com o nome de Karl Jaspers: ein Selbstportrait,
425 Cf. JASPERS, K. Mi camino a la filosofía, p. 243. 426 YOUNG-BRUEHL, E. Freedom and Karl Jaspers Philosophy, p. 167.
122
que tinha tanto ânimo em seu interior a ponto de sempre enxergar o futuro com enorme entusiasmo,
apesar da enfermidade427. Em significado paralelo, os acontecimentos políticos do século XX também
atravessaram a subjetividade de Arendt e, tendo isso em vista, nos seus últimos anos de vida, com um
estilo pesaroso e paradoxal, a autora relembrava uma antiga máxima chinesa que reza: “É uma
maldição viver em tempos interessantes”428. Ora, os tempos sombrios, que açoitaram Arendt em sua
individualidade, eram interessantes para o pensamento, para a reflexão política, para a compreensão
humana – aqui reside não apenas a ironia paradoxal da frase, mas uma corajosa proposta teórica. Afinal,
ao longo de toda sua trajetória intelectual, Arendt enfrentou seu próprio tempo à luz de uma passagem
do prefácio de Origens do Totalitarismo: ao “examinar e suportar conscientemente o fardo que o nosso
século colocou sobre nós – sem negar sua existência, nem vergar humildemente ao seu peso.
Compreender significa, em suma, encarar a realidade sem preconceitos e com atenção, e resistir a ela
– qualquer que seja”429. A teoria política arendtiana nasce, portanto, do seu declarado contraste em
relação aos fatos públicos contemporâneos.
Nesse contexto de contrastes, aliás, é necessário pontuar bem que, apesar de ser amplamente
reconhecida pela metáfora dos “tempos sombrios” – como expressão que transita facilmente por aí –
ou seja, pelo uso da imagem da escuridão a fim de representar os domínios totais que tomaram de
assalto os ambientes públicos alemão e russo em sua época, Arendt é uma pensadora cujas reflexões
políticas se vinculam fundamentalmente muito mais à metáfora da claridade, e da luz, do que à noção
das trevas. O elogio arendtiano à luz do âmbito público, por exemplo, permeia grande parte da escrita
de A Condição Humana, sobretudo nos momentos em que Arendt define a aparição pública em
oposição à ausência de claridade de tudo aquilo que tem sua existência na privacidade. “As palavras
gregas e latinas que designam o interior da casa, megaron e atrium, têm forte conotação de escuridão
e treva”430, ao passo que o domínio público denota qualquer tipo de fenômeno que “pode ser visto e
ouvido por todos e tem a maior divulgação possível”431, ou seja, que aparece, que possui transparência,
em plena luz do dia a todos quantos forem possíveis. Até mesmo no prefácio de Homens em Tempos
Sombrios Arendt diz que se orienta pela esperança de enxergar alguma luz432 num tempo em que a
luminosidade do domínio público – cuja função é proporcionar aos homens “um espaço de aparências
427 Cf. https://www.youtube.com/watch?v=0WR1k6Ti_fE. Entre os minutos 19 e 20. 428 Apud KOHN, J. Introdução a ARENDT, H. Compreender: formação, exílio e totalitarismo, p. 07. 429 ARENDT, H. Origens do Totalitarismo, p. 12. 430 ARENDT, H. A Condição Humana, p. 87, nota 78. 431 ARENDT, H. A Condição Humana, p. 61. 432 CF. Homens em Tempos Sombrios, p. 10.
123
onde eles podem mostrar, em palavras e atos, para o melhor e o pior, quem são e o que sabem fazer”433
– foi então apagada. Também na teoria existencial de Jaspers o uso de expressões que remetem à
claridade, à luz, ao iluminar, é de fundamental importância para compreendê-lo, sobretudo na leitura
que Arendt faz dele. Como já debatido anteriormente, Jaspers afirmava que a existência humana
deveria ser esclarecida e iluminada não por uma certeza científica autoinvestigadora, mas pela
possibilidade que todos nós temos de atualizarmos a nossa liberdade de maneira prática, isto é, por
meio de ações e de escolhas no mundo. A existência pertenceria à ordem da liberdade, e não à ordem
dos fatos; portanto, a certeza sobre ela não é teórica ou ontologicamente demonstrável, mas prática, ou
seja, atualiza-se na realização de si mesma. Ao dizer, por exemplo, que “[...] onde Jaspers chega e toma
a palavra tudo se esclarece”434, Arendt faz um jogo de palavras com a expressão “esclarecimento da
existência”, tão cara a Jaspers. Como uma intérprete não ingênua de seu ex-orientador, a autora faz um
elogio à capacidade comunicativa de Jaspers e deixa perceber também que o filósofo alemão acentua,
propositadamente, a importância não do “conhecimento” da existência, mas do esclarecimento da
existência, da iluminação da existência por meio da razão comunicativa humana.
Em todo caso, é por meio da defesa da natalidade como conceito central a todo e qualquer
pensamento político que a metáfora da luz se revigora no interior da teoria arendtiana. Isto é, para
Arendt, todo novo nascimento humano é concomitantemente uma potencialidade para a novidade, para
um novo começo, para um novo acontecimento, para uma nova ruptura com o status quo, para o
surgimento do imprevisível. Para afirmar isso, de acordo com a autora, basta perceber que os recém-
chegados ao mundo possuem a capacidade de agir em geral, e de agir em concerto com os seus pares
cidadãos, pois a ação é justamente a atividade humana que dá origem ao inesperado, que faz nascer
aquilo que interrompe o mais do mesmo ou o automatismo histórico. Ora, residem aqui dois sentidos
de natalidade. Em primeiro lugar, naturalmente, o caráter natal dos homens representa cada novo
nascimento individual, representa uma criança, que recebe sua feição e conotação política não pela via
da manutenção da espécie humana, mas por ter estreita relação com a atividade da ação – no sentido
de se fazer sentir no mundo por meio das ações espontâneas de cada ser humano que chega como um
estranho ao mundo. Em segundo lugar, o caráter natal dos homens representa o fato de que, a cada
instante que uma ação particular acontece, uma novidade no palco da história humana também é gerada
e nascida como fruto milagroso da liberdade dos homens. A potência da natalidade, assim, está no
ventre de uma mãe e no ventre da história dos homens, enquanto que a parteira dessas ações jamais
433 ARENDT, H. Homens em Tempos Sombrios, p. 08. 434 ARENDT, H. “Só permanece a língua materna”. In: A Dignidade da Política, p. 142.
124
pode ser a violência entre a natureza e os homens ou dos homens entre si mesmos, senão a esperança
do novo. No mais, em quaisquer de seus significados, a natalidade se relaciona com a metáfora da
luminosidade, pois, afinal, nascer é vir à luz; “dar à luz” a uma criança ou a um evento – que antes de
nascerem não pertenciam a esse mundo, não pertenciam à ordem das coisas – é uma maneira de sempre
renovar e recomeçar a história humana e de criar mundos potenciais.
Adriano Correia, talvez quem melhor comente sobre a relação da natalidade com a política em
Arendt, capta poeticamente essa mensagem arendtiana por meio de João Guimarães Rosa: “Um menino
nasceu – o mundo tornou a começar”435. E é de fato a “boa nova” do menino na manjedoura que Arendt
tem em mente ao fazer coro a Agostinho, inúmeras vezes e em diversos escritos, e afirmar que
“[Initium] ergo ut esset, creatus est homo, ante quem nullus fuit (‘para que houvesse um início, o
homem foi criado, sem que antes dele ninguém o fosse’”436). Há na interpretação arendtiana dessa frase
uma distinção conceitual crucial entre “princípio” e “início”, pois, diferentemente do primeiro verso
bíblico que narra sobre o “princípio verbal do mundo”, o início (initium) que os homens representam
e são em si mesmos traz novidades constantes, contínuas e temporais ao contexto mundano por meio
da nossa faculdade de agir. Segundo Arendt, as próprias raízes gregas da palavra “ação”, ou do verbo
“agir”, archein e prattein, representam esse início ou começo do qual apenas os homens são capazes.
Todavia, ao contrário de Agostinho, que advoga a favor da necessidade cristã de alienação em relação
ao mundo e abandono da vida presente em nome da fé em uma vida futura e eterna ao lado de Deus,
Arendt aproveita e se beneficia da concepção de natalidade para constituir e defender uma filosofia do
presente, de interpretação da realidade que atualizava o presente de vida dela. No livro Entre o Passado
e o Futuro, por exemplo, como o próprio título já deixa entender, Arendt diz que apresenta seis ensaios
para exercitar o pensamento a se locomover na região temporal do presente, de modo a compreender
as experiências e os fenômenos dessa “lacuna entre o passado e o futuro”437. Os artigos arendtianos
escritos em jornais e revistas entre 1930 e 1950, sobretudo, também demonstram claramente a
preocupação da autora em filosofar sobre os problemas políticos de seu tempo, não só sobre o
totalitarismo, mas a respeito da questão judaica, do comunismo e dos ex-comunistas, da república
norte-americana, das querelas do contexto da guerra fria, entre outros fatos.
Inspirada por uma parábola de Franz Kafka, tanto na introdução de Entre o Passado e o Futuro
quanto no capítulo final do primeiro volume de seu último livro, A Vida do Espírito, Arendt diz ter
435 CORREIA, A. “Apresentação à nova edição brasileira” de ARENDT, H. A Condição Humana, p. XIII. 436 ARENDT, H. A Condição Humana, p. 222. 437 ARENDT, H. Entre o Passado e o Futuro, p. 41.
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encontrado a metáfora perfeita para descrever a sensação temporal constituinte do ego pensante, ou
seja, a imagem que simboliza a preocupação com o tempo presente para uma pensadora como ela. Essa
parábola kafkaniana teria o poder de desvelar a estrutura íntima dos processos recônditos da mente
humana enquanto exercício do “pensar” e, não obstante, faz-se relevante para a autora por se ajustar
ao que seria pretendido e requerido em uma época marcada por uma interrupção do fio condutor que
ligava o futuro às raízes sólidas de um passado. Ao recuperar esse debate de Arendt com Kafka,
apresento uma conexão das reflexões teóricas dela com o modo de pensamento de Jaspers e, por tabela,
de Kant. Sugiro que a maneira como Arendt caracteriza o “lugar” temporal e fenomênico onde o ego
pensante se encontra, já o pressupõe como uma condição de possibilidade para compreensão desses
períodos intermediários que se inserem no contínuo histórico em que vivemos, até porque essa lacuna
entre o passado e o futuro nunca deixa de ser a própria morada desta atividade viva do espírito. Desse
modo, não se torna apenas lícito e necessário recorrer ao pensamento nesses momentos, mas também
se torna conveniente, assim como também faziam as filosofias de Jaspers e de Kant. Para ilustrar
melhor essa situação, cabe apresentar a interpretação arendtiana da parábola de Kafka que compõe
uma coleção de aforismos intitulada “ELE”. É a seguinte:
Ele tem dois antagonistas: o primeiro empurra-o de trás, a partir da origem. O
segundo veda o caminho à frente. Ele luta com ambos. Na verdade, o primeiro lhe
dá apoio na luta contra o segundo, pois ele quer empurrá-lo para frente; e, da
mesma forma, o segundo apoia-o na luta contra o primeiro, pois ele empurra-o
para trás. Mas isso é assim apenas teoricamente. Pois não são somente os dois
antagonistas que estão lá, mas também ele; e quem conhece realmente suas intenções? Todavia o seu sonho é que, em um momento de desatenção – e isso, é
preciso admitir, exigiria uma noite tão escura como nenhuma já foi – ele pulasse
para fora da linha de batalha e, graças à sua experiência em lutar, fosse promovido
à posição de árbitro da luta de seus adversários entre si438.
De acordo com Arendt, a linguagem tipicamente metafórica desta parábola analisa, de modo
poético, o encontro de uma atividade interna mental com ela mesma – encontro do qual se retira, por
sua vez, a sensação interna do tempo. Em outras palavras, ao invés de dirigir a atenção reflexiva aos
conteúdos invisíveis presentes ao espírito pensante, dirige-se atenção para a própria atividade de
reflexão e, assim, a relação com o tempo se mostra em destaque. Para contextualizar melhor a situação:
é importante afirmar que o pensamento lida com ausências por conta de sua retirada das coisas
presentes que estão à mão. Isso não quer dizer que o pensamento se realize em outro mundo, mas
aponta para o fato de que esta faculdade espiritual suspende, enquanto ativa, a realidade que
438 Apud ARENDT, H. A Vida do Espírito, p. 224-225.
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concebemos espaço-temporalmente e, por conseguinte, o que sobra ao pensamento são produtos
dessensorializados e desespacializados, ou seja, extratos que outrora os filósofos chamavam de
“essências”. Disso se deduz que pensar é generalizar, é mover-se entre universais e “essências” não
aparentes, é comprimir todos os particulares em algo que não pode ser localizado; desse modo, o ego
pensante não se encontra estritamente em lugar algum. O seu lar, portanto, é o “lugar nenhum”, uma
vez que não se submete às condições do espaço e do tempo que o “eu”, presente no mundo e com idade
determinada, nunca consegue abandonar. Mas essa característica intrínseca ao ego pensante pode ser
considerada como um “estar em toda parte”, de tal forma que pode tomar para si qualquer coisa que
esteja o mais ausente dos sentidos. “O ‘em-toda-parte’ do pensamento é de fato uma região do lugar
nenhum”. Ao perguntar por “onde estamos quando pensamos?”439, Arendt reprime a ideia de procurar
apenas por um “topos” espacial para esta atividade, pois o sentido temporal dessa questão não pode ser
deixado de lado, “como se tivéssemos esquecido o famoso insight de Kant de que ‘o tempo nada mais
é do que a forma do sentido interno, isto é, da intuição de nós mesmos e de nosso estado interno’”440.
A questão é que o “lugar nenhum”441 pode ser entendido em termos temporais, ou seja, como um
presente intemporal, um agora permanente, o “nunc stans”, onde é experimentada a atividade de pensar
– esta que reúne para si os tempos ausentes do passado e do futuro, “o ainda-não e o não-mais”,
precisamente porque ambos estão de igual modo distantes de nossa percepção. O que importa aqui
nessa digressão é que não há outro modo de se fazer contemporâneo, de acordo com Arendt, senão ao
se alocar nesse intervalo temporal e refletir sobre aquilo que constitui o seu próprio presente, sempre
atormentado por dois polos opostos. É exatamente isso o que a teoria política dela representa.
Como diz a parábola, o cenário em que as forças do passado e do futuro entram em constante
choque uma com a outra, é um cenário de batalha no qual o “Ele”, o ego pensante de alguém, tem de
enfrentar ambas as forças para manter a sua própria posição e não ser engolfado por elas. Contudo,
sem “Ele”, ou essas forças não entrariam em conflito ou já teriam se destruído mutuamente, pois são
equipotentes. Isto é, por se colocar no “meio” delas, colocando-lhes resistência, transformando-as em
seus “antagonistas”, o “Ele” representa a causa para que haja não só a luta entre uma e outra, mas do
“Ele” com ambas. Como se fosse um “porto”, no qual chegam tanto o caminho que vem quanto o
caminho que vai, o “Ele” é o ponto de encontro que pode ser chamado de “agora”. Atrás do “agora” se
estende um caminho até o infinito, à sua frente se estende outro caminho também ao infinito. Não se
439 ARENDT, H. A Vida do Espírito, p. 223. 440 ARENDT, H. A Vida do Espírito, p. 223. 441 Cf. ARENDT, H. A Vida do Espírito.
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sabe de onde esses caminhos partem, mas sabe-se que eles se encontram ao pé do pórtico; aliás, esses
caminhos seriam apenas um, caso não houvesse uma cisão ocasionada por “Ele” no meio deles. Ou
seja, a colisão entre as duas forças só é real para aquele que é, ele mesmo, um agora. Dessa perspectiva
kafkiana, o ego pensante do homem, lutando com dois fluxos eternos e constantes, segundo Arendt,
“produz uma ruptura que, por ser defendida em duas direções, abre uma lacuna, o presente definido
como um campo de batalha. Esse campo de batalha é, para Kafka, uma metáfora do lar do homem
sobre a Terra”442. Para evitar muitas dificuldades de compreensão, não é demais ponderar que o ego
pensante não é o “eu” que aparece e se move no contexto mundano. Tendo isso em vista, à luz de
Kafka, o verdadeiro antagonista do ego pensante é a mudança inexorável que o próprio tempo implica,
de tal modo que este ego se torna prisioneiro do devir, impossibilitado de ter um presente que não seja
fluido. Em todo caso, o que se quer colocar em relevo é que: “A lacuna entre passado e futuro só se
abre na reflexão, cujo tema é aquilo mesmo que está ausente – ou porque já desapareceu ou porque
ainda não apareceu. A reflexão traz essas ‘regiões’ ausentes à presença do espírito; dessa perspectiva,
a atividade de pensar pode ser entendida como uma luta contra o próprio tempo”443. Uma filosofia da
natalidade, como a de Arendt, preza por esse “agora”, por esse “Ele”, pelo instante atual que sempre é
reatualizado por meio das ações contínuas daqueles que vivem no mundo marcados pela temporalidade
fugidia e inescapável do hoje. Compreender esse “agora” é prescindir de qualquer tradição ou de
qualquer profecia. Mais do que isso, a teoria de Arendt denomina esse “agora” – seja o próprio
pensamento, o próprio sujeito ou as próprias ações humanas – de milagre, retirando a carga religiosa
usualmente imposta a essa palavra. No texto Será que a política ainda tem de algum modo um sentido,
Arendt afirma que esperar por milagres, em seus próprios termos, não seria leviandade supersticiosa
ou frivolidade pseudo-religiosa, pois o instante em que vivemos e no qual pensamos, aqui e agora, já
é um milagre que é fruto de uma história terrestre e de uma história do gênero humano que não possuem
causalidades necessárias. Ou seja, não há uma cadeia causal que explique o motivo pelo qual estamos
aqui nesse exato instante e, a cada novo ato desencadeado por qualquer indivíduo, novos instantes são
gerados. Assim, para a autora, “o próprio homem é, de um modo extremamente milagroso e misterioso,
manifestamente dotado para fazer milagres. Em nossa linguagem comum e bem usual, chamamos a
esse dom de agir”444. Em outras palavras, o “agora” é um momento milagroso feito por pessoas que
são milagres e milagrosas por si mesmas, justamente porque são livres para iniciar algo novo no
mundo. “O milagre da liberdade está inserido nesse poder iniciar, que, por sua vez, está inserido no
442 ARENDT, H. A vida do espírito, p. 227. 443 ARENDT, H. A vida do espírito, p. 228. 444 ARENDT, H. op. cit. In: A Dignidade da Política, p. 121.
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fato (Faktum) de que todo homem, ao nascer, ao aparecer em um mundo que estava aí antes dele e que
continuará a ser depois dele, é, ele mesmo, um novo início”445.
A insistência de Arendt na importância da natalidade ao pensamento político – como radical
ontológico da ação e como milagre que renova o mundo –, completamente desenvolvida em A
Condição Humana, representa uma contrariedade em relação ao pensamento filosófico metafísico
tradicional e, sobretudo, também à filosofia de Heidegger, que possuem a mortalidade humana como
força motriz filosófica. Platão, por exemplo, dizia que se não morrêssemos não haveria filosofia446;
inspirado por isso Montaigne chegaria a afirmar que “filosofar é aprender a morrer”447; mas é ao “ser-
para-a-morte”448 de Heidegger que Arendt endereça mais veementemente o seu afastamento. Ao
afirmar que somente “a natalidade, e não a mortalidade, pode ser a categoria central do pensamento
político”, Arendt demarca que a característica ontológica humana muda a cada instante em que nasce
um novo ser humano e a cada instante em que alguma ação é praticada. É desse modo que o “quê” do
homem se transforma em um “quem” para as investigações arendtianas. Em outras palavras, se em
Heidegger a morte, como finitude radical de todo o ser humano, ocupa papel decisivo na compreensão
da possibilidade mais própria do Dasein, do ser-aí, pois “o ser para essa possibilidade abre ao Dasein
o seu poder-ser mais próprio, em que sempre está em jogo o próprio ser do Dasein”449; em Arendt, o
nascimento destrona a morte em importância existencial, pois o que está em jogo são os homens como
potenciais seres políticos, criadores de novidades e milagres, e não seres para a morte.
Em suma, para Arendt, os seres humanos acabam por se tornar os “natais”, e não os “mortais”
como se expressa Heidegger. Concordo com a leitura de Taminiaux nesse momento, que diz ser
possível interpretar A Condição Humana como a primeira constituição sistemática da teoria e dos
conceitos arendtianos que nasceriam em contraste com o esquema maior da ontologia fundamental
heideggeriana delineada em Ser e Tempo450. Afinal, uma coisa é escrever breves artigos para criticar a
postura política e a filosofia geral de Heidegger, como Arendt fez durante a década de 1940 até meados
de 1950; outra coisa bem diferente é desenvolver conceitualmente um pensamento teórico que preza e
prioriza pela fé e pela esperança na política e na natalidade humana, e não no medo e na angústia como
humores que singularizam o ser humano diante da morte. Enquanto o modo de fazer filosofia de
Heidegger o leva a compreender a angústia como uma abertura privilegiada do Dasein, no sentido de
445 ARENDT, H. op. cit. In: A Dignidade da Política, p. 121. 446 Cf. ARENDT, H. “Que é autoridade”. In: Entre o Passado e o Futuro. 447 Cf. MONTAIGNE, M. Os ensaios, livro I. 448 HEIDEGGER, M. Ser e Tempo, p. 336. 449 HEIDEGGER, M. Ser e Tempo, p. 340. 450 Cf. TAMINIAUX, D. The Thracian Maid and the Professional Thinker, p. 11.
129
que o motivo pelo qual a angústia se angustia abre possibilidade para o homem se singularizar e
compreender originariamente a si mesmo; o modo de refletir de Arendt, por outro lado, leva a autora
a retomar humores humanos completamente distintos das filosofias da mortalidade. A autora confere
fé, esperança e alegria aos assuntos humanos, “(e, por conseguinte, na política)”451, como ela diz em A
Condição Humana: “fé que já não existia quando foram formuladas as primeiras filosofias
políticas”452. O que recebe destaque nesse contexto é que, por meio da importância de se pensar sobre
o presente, dois aspectos subterrâneos das obras de Arendt podem vir a lume, dois aspectos que não
formam a primeira sedimentação da teoria política dela, mas que não deixam de ser importantes para
a sustentação de seu edifício teórico. O primeiro aspecto é que a relação com o presente traz
invariavelmente um novo circuito de afetos, de disposições humanas, vinculado às reflexões políticas
de Arendt, pois, como já adiantei aqui, pensar o “agora” não se relaciona nem à nostalgia de um passado
arquétipo nem à angústia da expectativa por um futuro, por exemplo. Trato dessa questão pela via do
amor mundi no próximo capítulo desta Tese (Capítulo 2). O segundo aspecto, que trabalho na
sequência deste tópico, é que a relação filosófica com o tempo presente aproxima Arendt ainda mais
das filosofias de Jaspers e de Kant, pelo menos por esse ângulo, na medida em que os dois autores
alemães também flexionam suas filosofias para os seus respectivos “agoras”.
Em 1919 Heidegger escreveu uma resenha crítica à obra então recém-lançada Psicologia das
Visões de Mundo de Jaspers. A resenha de Heidegger não chegou a ser publicada na época, pois o
jornal que a aceitou exigiu inúmeras alterações que, no final das contas, não foram acatadas pelo autor,
mas, mesmo sem a divulgação, Jaspers recebeu e teve acesso ao texto escrito por Heidegger sobre o
seu primeiro livro de teor filosófico. Quando estava prestes a terminar a resenha, Heidegger escreveu
a Heinrich Rickert o seguinte: “Em minha opinião, esse livro precisa ser combatido da maneira mais
severa possível, precisamente porque tem muito a oferecer, coisas que Jaspers aprendeu em todos os
lugares, e porque se apropria de um importante traço de nossos tempos”453. Um certo mal-estar entre
os dois filósofos começaria a partir daí, tendo em vista que Jaspers achou a resenha um tanto injusta454
e não respondeu com o entusiasmo que Heidegger esperava, nem tampouco retribuiu a mesma
aplicação de leitura, anos depois, em 1927, ao famoso livro heideggeriano Ser e Tempo – o que deixou
Heidegger ainda mais decepcionado. Jaspers confessou mais tarde, algumas vezes, inclusive em uma
451 ARENDT, H. A Condição Humana, p. 256. 452 ARENDT, H. A Condição Humana, p. 256. 453 HEIDEGGER, M. Apud GOLDMAN, S. The Psychology of Worldviews: Jaspers/Heidegger, p. 01. 454 Cf. YOUNG-BRUHEL, E. Freedom and Karl Jaspers Philosophy, p. 169.
130
carta a Arendt, que tinha preguiça de ler Heidegger para discutir mais a fundo com ele455. Em uma
compilação intitulada Notizen zu Martin Heidegger, Jaspers anota que a filosofia heideggeriana era:
“Kommunikationlos [sem comunicação] – Gottlos [sem Deus] – Weltlos [sem mundo]”456. Em todo
caso, a resenha de Heidegger, apesar de criticar a falta de método de Jaspers e dizer que o autor falha
incoerentemente em criar uma nova filosofia457, afirma que o grande mérito de tal livro jasperiano seria
o fato de ter encontrado a psicologia fundamental da filosofia. Ou seja, segundo o resenhista, o cerne
da obra consiste no trabalho inaugural de discutir a fundo a visão psicológica subjacente ao pensamento
filosófico como um todo. No início de seus comentários, Heidegger afirma que “a abordagem básica
dessa resenha reside na tentativa de libertar as reais intenções do trabalho de Jaspers”458, e, assim, o
autor pinça e delineia o “medo” como a característica psicológica que Jaspers descobriu fundamentar
a filosofia. É interessante notar como Heidegger já interpretava a obra jasperiana a partir dos termos
que viriam a compor Ser e Tempo, chamando atenção, por exemplo, para o primado de uma volta à
questão do ser, para a angústia e para o medo como humores diante da experiência e da consciência
humana sobre a morte. Não é por acaso que Heidegger cite a Psicologia das Visões de Mundo algumas
vezes em sua obra de 1927. Em uma nota de rodapé no parágrafo 49 de Ser e Tempo, o autor diz:
“Jaspers apreende a morte sob o fio condutor do fenômeno da ‘situação limite’ por ele descrito, e cuja
importância fundamental ultrapassa toda tipologia das ‘atitudes’ ou das ‘concepções de mundo’”459.
De fato, a obra jasperiana trata a morte como uma situação-limite que define e que influencia
determinadas atitudes e variadas crenças e imagens de mundo constituídas pelos seres humanos,
inclusive visões filosóficas, como diz Heidegger em sua resenha sobre a obra. Contudo, o que de mais
fundamental se retira disso, para a filosofia de Jaspers, não é simplesmente uma psicologia da filosofia,
mas, sim, a noção de “liberdade” vinculada ao ser do homem, ou melhor, a equação entre Existenz e
liberdade, que ganharia contornos rígidos no pensamento jasperiano e que acaba por escapar dos olhos
de Heidegger. Ou seja, o escrito sobre a Psicologia das Visões de Mundo tinha a pretensão “juvenil”,
segundo o próprio autor do livro, de apresentar os diversos fatores psicológicos envolvidos na
construção de sistema de pensamentos, valores e atitudes humanas, mas que, na realidade, acabou por
encontrar uma “verdade do ser do homem”460. Qual seria: que no meio de uma enxurrada de desvios,
vazios, deturpações, rupturas e continuidades de visões de mundo, os homens se realizam pelo modo
455 Cf. Correspondence, Carta 149. 456 Apud YOUNG-BRUHEL, E. Freedom and Karl Jaspers Philosophy, p. 31. 457 Cf. GOLDMAN, S. The Psychology of Worldviews: Jaspers/Heidegger, p. 10. 458 GOLDMAN, S. The Psychology of Worldviews: Jaspers/Heidegger, p. 09. 459 HEIDEGGER, M. Ser e Tempo, p. 324. 460 JASPERS, K. Sobre mi Filosofía, p. 270.
131
como encaram as situações mundanas que lhes são postas e dadas, e esse modo de existir é chamado,
por Jaspers, de liberdade. Nesse sentido, Jaspers diz anos depois que seu livro “era filosofia disfarçada,
que se passava equivocadamente por psicologia objetiva”461. Mais do que isso, em uma resposta
indireta a Heidegger, em um texto intitulado Sobre minha Filosofia, Jaspers diz que seu pensamento
“está desde o seu começo contra o sistema entendido como um todo, no qual o Ser e a Verdade se
apresentam diante dos olhos e se expõem em um livro. Mas, ao mesmo tempo e também desde o
princípio, fui sistemático na maneira de pensar”462. Para Jaspers, “o sistema pretende apreender
falsamente o Ser, mas a sistemática pretende, ao contrário, ter à disposição todos os meios alcançados
para aplicá-los ao processo posterior do filosofar”463. Ou como diz Arendt em O que é a filosofia da
Existenz: “Uma Weltanschauung [visão de mundo] que pretenda ter apreendido o sentido do Ser,
sistemas como ‘doutrinas formuladas do Todo’, são, para Jaspers, apenas conchas que ‘drenam a
experiência das situações-limite’ e conferem uma paz de espírito que é fundamentalmente
antifilosófica”464. Diante do absurdo da existência e do fracasso do pensamento humano em dominar
o que seria o Ser, Jaspers encontra justamente a experiência da liberdade, pois “que eu não possa
determinar o real como objeto do pensamento torna-se o triunfo da liberdade possível. Nesse contexto
a questão relativa ao sentido do Ser pode ser suspensa de tal forma que a resposta a ela formula-se
assim: ‘O Ser é tal que esta realidade humana é possível’”465. O fato é que a concepção da existência
qua liberdade – e como fracassada em se reconhecer ontologicamente cognoscível – não só afasta
bastante Jaspers de Heidegger, mas leva a discussão jasperiana para o momento do aqui e agora, do
presente, no qual a existência se atualiza, no qual a existência faz suas escolhas, age e toma suas
decisões, uma vez que, para o autor, a liberdade não é um vir a ser no futuro nem qualquer sorte de
vínculo ao passado, mas um ato contínuo afirmativo do e no seu próprio momento. Como diz Young-
Bruehl em Freedom and Karl Jaspers Philosophy, é justamente por isso que Jaspers não fornece
nenhuma definição de liberdade, pois esta é um espaço aberto no qual a existência se afirma e se realiza,
sempre enfatizando o “agora” e o “se tornar contemporâneo”466.
A mero título de comentário, parece indubitável que haja uma relação – de fé filosófica – da
liberdade da existência em Jaspers com a liberdade que “é provada por uma lei apodítica”467 na Crítica
461 JASPERS, K. Sobre mi Filosofía, p. 270. 462 JASPERS, K. Sobre mi Filosofía, p. 272. 463 JASPERS, K. Sobre mi Filosofía, p. 272. 464 ARENDT, H. op. cit. In: A Dignidade da Política, p. 33. 465 Ibid., p. 34. 466 YOUNG-BRUHEL, E. Freedom and Karl Jaspers Philosophy, p. xi. 467 KANT, I. Crítica da Razão Prática, p. 34.
132
da Razão Prática de Kant, uma vez que ambas escapam à perspiciência especulativa, ou seja, não são
conhecidas total e conceitualmente pela razão humana, mas são tomadas como axiomas. A propósito,
a própria Arendt também irá assumir que, em matéria de política, a liberdade humana é “uma verdade
evidente por si mesma”468, um fato incontestável, embora impossível de averiguação interna por meio
da faculdade da vontade. No início do texto Que é Liberdade, a autora diz que é “sobre essa suposição
axiomática [liberdade] que as leis são estabelecidas nas comunidades humanas, que decisões são
tomadas e que juízos são feitos”469. Por certo, se Kant irá assumir na segunda Crítica que a liberdade
efetivamente existe por se manifestar na “lei moral”, deixando de ser assim somente uma ideia à qual
não era assegurada a realidade objetiva correspondente, Jaspers, por seu turno, irá dizer que a liberdade
efetivamente existe na realização existencial dos seres humanos diante das situações-limite; e Arendt,
por fim, irá afirmar a liberdade como um fato político. Jaspers não deixa de ser um kantiano também
nesse aspecto, portanto. Aliás, em uma carta escrita por Blücher a Jaspers, o marido de Arendt diz ao
professor dela, elogiando a sua distinção perante os idealistas alemães: “o que te separa dos alemães é
sua preocupação com a ‘liberdade’”470. Contudo, mais importante é salientar que, no texto O que é a
filosofia da Existenz, Arendt vincula a liberdade existencial dos termos de Jaspers à espontaneidade
dos seres humanos – característica que, mais tarde, seria crucial à concepção da personalidade política
nos termos da própria Arendt, sobretudo em A Condição Humana. Ela afirma em 1946 que a existência,
para Jaspers, não é uma forma de Ser, mas uma forma de liberdade, que, por sua vez, representa “a
forma em que ‘o homem como espontaneidade potencial rejeita a concepção de si mesmo como mero
resultado’ [...] A palavra ‘existência’, aqui, significa que o homem alcança a realidade à medida que
age a partir de sua liberdade radicada na espontaneidade e ‘se conecta, por meio da comunicação, com
a liberdade dos outros”471. Ora, a existência possível de Jaspers está em íntima contiguidade ao “quem”
político proposto por Arendt em suas obras, isto é, à personalidade revelada pela espontaneidade dos
atos e discursos individuais, radicada na liberdade e na participação em uma teia plural de relações
humanas, e que não possui resultados previsíveis. A existência possível é o “quem” nós somos aqui e
agora, no presente, em meio a inúmeros espectadores no mundo472.
Enfatizo que as filosofias de Arendt e de Jaspers são teorias sobre a liberdade, seja política seja
existencial, erigidas para pensar sobre o tempo presente. Ou melhor, é na tentativa de pensar o próprio
468 ARENDT, H. “Que é Liberdade”. In: Entre o Passado e o Futuro, p. 189. 469 ARENDT, H. “Que é Liberdade”. In: Entre o Passado e o Futuro, p. 189. 470 In: Correspondence Hannah Arendt Karl Jaspers, Carta 132. 471 ARENDT, H. “O que é a filosofia da Existenz”. In: Compreender: formação, exílio e totalitarismo, p. 212. 472 Cf, sobre isso, por exemplo, HINCHMAN, L; HINCHMAN, S. “Existentialism politicized: Arendt’s debt to
Jaspers”. In: Hannah Arendt: Critical Essays.
133
presente que ambos os autores se deparam com a problemática central da liberdade. Arendt afirma que
os homens, somente porque receberam os dons da liberdade e da ação, estabelecem uma realidade que
lhes pertence de direito. “Porque é um começo, o homem pode começar; ser humano e ser livre são
uma única e mesma coisa. Deus criou o homem para introduzir no mundo a faculdade de começar: a
liberdade”473. Se Arendt afirma em alguns momentos que o sentido da política é a liberdade, nada mais,
Jaspers, por sua vez, afirma que o sentido da existência humana é a liberdade, nada mais. Contudo,
essas constatações recebem carga ainda mais decisiva diante dos problemas constituintes do século em
que os autores viveram, pois, da perspectiva arendtiana, o desastre sem paralelos que o totalitarismo
foi capaz de empregar provocou a experiência da completa eliminação da liberdade no âmbito público.
Por isso, segundo ela, “nossa questão soa de um modo muito mais radical, mais agressivo e também
mais desesperado: será que a política ainda tem de algum modo um sentido?”474. Recuperar a
experiência da liberdade pública seria vital à política moderna. Do mesmo modo, para Jaspers,
recuperar a experiência da liberdade seria vital à existência autêntica dos seres humanos. Tal liberdade
existencial depende de condições políticas propícias para se realizar, pois, ora, em um mundo que
elimina o poder de decisão individual, em um sistema político que proíba a livre comunicação e o
engajamento mútuo entre os homens, por exemplo, a dignidade existencial humana se torna solapada.
Talvez o modo de pensamento empregado por Jaspers na obra Die Grossen Philosophen (Os
Grandes Filósofos) represente ainda melhor esse exercício espiritual dele e de Arendt com o tempo
presente, que nada mais é do que o significado do próprio “pensar” para eles. Mesmo em diálogo
contínuo com filósofos do passado e mesmo que o tempo futuro também esteja na mente de Jaspers,
ele introduz essa obra dizendo que pretende colocar grandes figuras históricas da filosofia em um
debate que ocupará um espaço-tempo específico: o presente, a atualidade. Ou seja, Jaspers revisita as
obras, os escritos e as reflexões de nomes como Buda, Cristo, Sócrates, Platão, Agostinho e Kant, de
modo a colocá-los todos numa mesma sala em uma conversa que, ao mesmo tempo em que conserva
as peculiaridades de cada um deles, possibilita uma ressignificação atualizada dos conceitos deles em
um conjunto que oferece ânimo e vida ao próprio pensamento jasperiano. É como se Jaspers fizesse
todos os filósofos comentados no livro como contemporâneos de si mesmos, mesmo com a distância
histórica, e, num mesmo golpe, contemporâneos da realidade presente de Jaspers. No final do texto
Karl Jaspers: Uma Laudatio, Arendt comenta que Jaspers estabelece com esses grandes pensadores
mundiais um “reino do espírito” de presente eterno, no qual a temporalidade cronológica é quebrada,
473 ARENDT, H. “Que é Liberdade”. In: Entre o Passado e o Futuro, p. 216. 474 ARENDT, H. In: A Dignidade da Política, p. 117.
134
e, assim, o modo tradicional de pensamento ocidental é colocado em xeque justamente pela via
temporal, pois não se assume mais que cada filósofo transmita uma verdade ao filósofo, na linha
histórica, seguinte. Em outras palavras, se os conteúdos do pensamento tradicional já eram colocados
em dúvida após o que Arendt denomina por fim da tradição, Jaspers dá um passo além e refaz o modo
de relacionar o passado com o presente, ou seja, encontra outra orientação na tradição passada que não
mais o fio de Ariadne que conecta os temas filosóficos cronologicamente. Arendt diz: “Gostaria de
conseguir dar-vos uma ideia da liberdade, da independência do pensamento que foi precisa para
estabelecer este reino do espírito. Pois para isso era fundamental, acima de tudo, abandonar a ordem
cronológica consagrada pela tradição”475. A filosofia de Jaspers é capaz de fazer implicar uma
justaposição espaço-temporal, segundo Arendt, de modo que a distância de séculos que separam
diferentes problemáticas filosóficas seja suplantada do ponto de vista daquele que acolhe o presente
como a sua própria morada intelectual. Para entrar nesse “reino espiritual”, possível a qualquer ser
humano, basta escolher livremente a sua própria atualidade como porta de entrada. “Este reino, onde
Jaspers está como que em casa e para o qual nos desbravou os caminhos, não está no além e não é
utópico; não é de ontem nem de amanhã; é do presente e deste mundo. Criado pela razão, nele reina a
liberdade [...] Os que entram nele reconhecem-se uns aos outros, pois são ‘como centelhas [...]
revezando-se em constante movimento”476. Nesse sentido, por mais que a metáfora do “catador de
pérolas” – tal qual a autora indica na figura de Walter Benjamin – seja precisa para representar a relação
de Arendt com o passado que não mais ilumina o presente devido à ruptura do fio processual da
tradição, o diálogo com Jaspers não pode ser negligenciado também nesse aspecto. A reflexão
jasperiana ocupa um lugar central na reformulação dos conteúdos filosóficos do passado para a autora,
pois, com Jaspers, além de Arendt abrir os significados conceituais dos antigos ao desmembrá-los de
seus sentidos tradicionais, evita-se que ela caia também na espera por uma brecha estreita messiânica
no “agora”, tal como Benjamin formula nas Teses sobre o conceito de História. O diálogo com Jaspers,
entretanto, é mais produtivo para a conclusão de Arendt de que “tradição e passado não são a mesma
coisa [...] Poderia ocorrer que somente agora o passado se abrisse a nós com inesperada novidade e nos
dissesse coisas que ninguém teve ainda ouvidos para ouvir”477. Pois o “agora” em Jaspers e Arendt é
o espaço para a compreensão da própria realidade, do seu próprio presente, que, nos termos dela,
475 ARENDT, H. “Karl Jaspers: uma laudatio”. In: Homens em Tempos Sombrios, p. 96. 476 ARENDT, H. “Karl Jaspers: uma laudatio”. In: Homens em Tempos Sombrios, p. 97. 477 ARENDT, H. “Que é autoridade”. In: Entre o Passado e o Futuro, p. 130.
135
relaciona-se muito mais ao “milagre” de novos começos do que com qualquer conotação que se
aproxime do olhar messiânico. Ao analisar as obras de Jaspers, a autora diz que nelas:
A carapaça da autoridade tradicional é forçada a abrir-se e os grandes conteúdos do passado são livres e ‘ludicamente’ postos em contato uns com os outros,
através da prova da comunicação com um olhar vivo e presente. Nesta
comunicação universal, cuja coesão é garantida pela experiência existencial do
filósofo atual, todos os conteúdos metafísicos dogmáticos se dissolvem em
processos, correntes de pensamento, que, dada a sua relevância para a minha
existência e o meu filosofar presentes, abandonam o seu lugar histórico fixo no
encadeamento da cronologia e entram num reino do espírito onde todos são
contemporâneos. Aquilo que eu penso deve manter-se em comunicação constante
com tudo aquilo que foi pensado478.
Do ponto de vista de Arendt, é como se a luta expressa por Kafka na metáfora, citada
anteriormente, começasse depois de transcorrida qualquer ação, e também quando o curso da estória
desta ação esperasse ser completada nas mentes daqueles que querem compreendê-la. São nos tempos
em que há grandes interferências na continuidade entre passado e futuro, tempos de crises transitórias,
que o espírito pensante deve se voltar ainda mais para esse presente enquanto verdadeiro campo de
batalha. Para Arendt, “a descoberta de que, por alguma razão misteriosa, a mente humana deixou de
funcionar adequadamente, forma, por assim dizer, o primeiro ato da estória que aqui nos interessa”479.
E quanto mais o pensamento consegue se mover nesse intervalo, no qual se encontra hoje
obrigatoriamente instalado pela perda da tradição, mais chances o mundo tem de voltar a ter
estabilidade e sentido; não obstante, mais chances possuem os indivíduos de darem conta de seu
próprio “presente”. É justamente nessa cisão que o pensamento se vê forçado a reexaminar criticamente
os eventos, as experiências, os conceitos, os significados, tanto tradicionais quanto aqueles
abandonados pela tradição, de modo a confrontá-los com a sua própria realidade presente, a qual está
ligado de maneira inescapável e em relação a qual necessita formular compreensão e juízos. Melhor
explicando, o exercício do pensar, ao mesmo tempo em que opera um recuo perante a realidade – recuo
que lhe oferece a oportunidade de reatualizar passado e futuro –, também se encontra permanentemente
ligado à historicidade do presente, pois é sempre municiado pelos assuntos mundanos e pelas forças
resultantes do devir histórico. Até porque o ego pensante é posto em prática por alguém que está no
mundo desde seu nascimento até sua morte. É que este pequeno e estranho espaço intemporal sentido
no âmago mesmo do tempo, para Arendt, “ao contrário do mundo e da cultura em que nascemos, não
pode ser herdado e recebido do passado, mas apenas indicado; cada nova geração, e na verdade cada
478 ARENDT, H. “Karl Jaspers: Cidadão do Mundo?”. In: Homens em Tempos Sombrios, p. 103. 479 ARENDT, H. “A quebra entre o passado e o futuro”. In: Entre o passado e o futuro, p. 35.
136
novo ser humano, inserindo-se entre um passado infinito e um futuro infinito, deve descobri-lo e,
laboriosamente, pavimentá-lo de novo”480. Em tais momentos, torna-se patente que Arendt se refere a
uma realização ativa espiritual, portanto, que não se resume aos “pensadores profissionais”, aos
filósofos, mas que concerne a todos os homens. Mais uma vez, aqui, Kant é uma referência para ela e
para Jaspers, por sua defesa da popularização do pensamento filosófico.
Essa preocupação em comum entre as reflexões de Arendt e de Jaspers só encontra paralelo e
postura similares, na história da filosofia tradicional anterior a eles, no pensamento de Kant. O texto
kantiano sobre o esclarecimento, Was ist Aufklarüng, é uma forte representação disso, pois demarca
uma ruptura com um modo tradicional de pensamento filosófico até então empregado na medida em
que anuncia um filosofar que é atualizado por um acontecimento coetâneo ao próprio filósofo, no caso,
um fato político que constituía o próprio tempo de Kant – que era o despontar e as consequentes
alterações sociais provocadas pelo iluminismo. A pergunta de Kant sobre o “que é esclarecimento”
pode ser traduzida, nesse contexto, como “o que é o nosso presente”, “o que significa viver nesse tempo
presente”, o que significa viver nesse momento em que nós vivemos, o que significa o lugar de fala do
filósofo que interpreta o tempo que compartilha com os seus coetâneos. Não é por acaso que Kant se
coloca como ator, além de mero espectador, desse momento. Com esse texto, publicado em uma revista
na época, Kant traz uma originalidade ao modo de se filosofar que não passa despercebida aos olhos
de Jaspers. No texto sobre Kant da obra Os Grandes Filósofos, Jaspers afirma que, antes de Kant, há
mais de 200 anos, nenhuma filosofia se radicou tanto em sua própria temporalidade histórica. Ou seja,
é como se Kant quebrasse com uma tradição filosófica que, quando não tomava seus problemas de
forma totalmente descontextualizada historicamente, apenas se inspirava no presente para trabalhar
questões filosóficas genéricas. A questão de Kant é diferente, portanto. A pergunta dele era sobre a
constituição do próprio presente, sobre o coração de seu tempo, o que abriria, segundo Jaspers, uma
visão de mundo “sobre a sua própria época”481. Anos depois da obra jasperiana, por exemplo, Michel
Foucault chamaria esse pensamento kantiano de “ontologia do presente”, “ontologia da atualidade”482.
Em todo caso, dos autores do início do século XX que seguiram pela porta aberta por Kant, Jaspers se
destaca pelo menos desde 1931, quando lançou o livro Situação Espiritual de Nossa Época, no qual o
autor elabora um consciente diagnóstico temporal e uma profunda crítica à sociedade de massas
contemporânea, por exemplo. Jaspers deixou de ser psiquiatra para se tornar um médico de seu próprio
480 ARENDT, H. “A quebra entre o passado e o futuro”. In: Entre o passado e o futuro, p. 40. 481 Cf. JASPERS, K. Kant. 482 FOUCAULT, M. O governo de si e dos outros, p. 22.
137
tempo. Posteriormente à segunda Grande Guerra, outras duas produções jasperianas são simbólicas
para essas constatações: A Bomba atômica e o futuro da Humanidade e A questão da culpa alemã.
Nesses textos, Jaspers narra filosoficamente sobre o presente, pois o pensamento filosófico o auxilia a
pensar sobre a constituição do seu “agora”. Nesse sentido, seus temas versam sobre os dilemas trágicos
de sua geração: “liberdade política ou totalitarismo, paz jurídica ou guerra atômica, fé ou niilismo”483.
Vale ressaltar, entretanto, que o método de análise jasperiano sobre a história do presente não admite
nem a compreensão sintética totalizante – que eclipsa os limites cognoscíveis dos seres humanos sobre
a sua própria história – nem a visão dogmática da explicação histórica a partir apenas de uma
perspectiva. Sendo assim, Jaspers também não se coloca como um mero espectador alheio aos
acontecimentos à sua volta, que percebe a história a partir de um ponto arquimediano, fora do mundo.
E é exatamente com esse viés, da filosofia do presente que não se coloca fora do mundo, que Arendt
finaliza sua leitura sobre a metáfora de Kafka.
Arendt sugere certa alteração na maneira como a parábola de Kafka termina. A pensadora julga
que com essa sugestão, com esse final alternativo, poderia dar um passo à frente. Afinal, para ela,
quando Kafka finaliza o aforismo dizendo que o “Ele” sonha com um momento de desatenção das
forças temporais, que o “Ele” sonha com isso para poder pular fora da linha de combate e, na fuga, ser
promovido à posição de árbitro, esse sonho seria o mesmo do sonho da metafísica – esta que, de
Parmênides a Hegel, definiria a região do pensamento como “uma presença eterna em total quietude,
completamente além dos calendários e relógios humanos”484. O que Arendt sugere, então, é outro tipo
de imagem final. Primeiramente, pelo motivo básico de que, ainda que seja comum o refúgio na
liberdade do pensamento por parte de indivíduos que se veem privados do espaço público em “tempos
sombrios”, esse refúgio não pode ser confundido com uma introspecção que se aparta totalmente do
mundo. Não se trata da troca da esfera pública em crise por uma vida interior que cultive a nostalgia
e/ou a criação de mundos imaginários, como se a trivialidade desse mundo real devesse ser abandonada
de uma vez. Segundo Arendt, “a fuga do mundo nos tempos sombrios de impotência pode sempre
justificar-se desde que a realidade não seja ignorada, mas antes constantemente reconhecida como
aquilo a que é necessário fugir”485. De acordo com a concepção arendtiana, o problema da imagem
proposta por Kafka é que, “ao pular fora da linha de combate, ‘ele’ pula totalmente fora desse mundo,
483 ROBINET, Jean-François. Jaspers et son temps, p. 83. In: Germanica. Edição: “Culture et violence dans la
philosophie allemande du XXe siècle”, pp. 83-101. 484 ARENDT, H. A Vida do Espírito, p. 229. 485 ARENDT, H. Homens em tempos sombrios, p. 33.
138
e o julga de fora, embora não necessariamente do alto”486. Uma vez que sem “Ele” não haveria
diferença entre passado e futuro e, portanto, nada haveria a oferecer significados historicamente
sustentados, não faz muito sentido que o homem arranje no pensamento uma rota de fuga desses
confrontos colocados de forma metafórica. Arendt propõe, no lugar dessa imagem, a concepção de que
as linhas infinitas do passado e do futuro, ao se chocarem, formam um ângulo, de tal forma que uma
nova força aparece posicionando-se como uma diagonal que tem início a partir do encontro das duas
retas anteriores. Ou seja, o resultado imagético disso é um “paralelogramo de forças”. Sem tentar
explicar isso no sentido físico e matemático, o que se deduz filosoficamente é o seguinte: a região do
pensamento não se situa além ou acima do mundo e do tempo humanos, pois a própria batalha oferece
a “Ele” uma região onde se possa trilhar e descansar quando estiver exausto. “Em outras palavras, a
localização do ego pensante no tempo seria o intervalo entre passado e futuro, ou seja, o presente, agora
misterioso e fugidio, uma mera lacuna no tempo em direção ao qual, não obstante, passado e futuro se
dirigem”487. Mas, se as duas forças que demonstram ser o passado e o futuro não possuem uma origem
determinada (pois vêm do infinito e se encontram no presente), a diagonal resultante tem sua origem
determinada no presente e parte para um fim indeterminado; representando, destarte, a perfeita
metáfora para a atividade do pensamento nas concepções de Arendt.
Se o ‘ele’ pudesse caminhar sobre essa diagonal, perfeitamente equidistante das
forças prementes do passado e do futuro, ele não pularia para fora da linha de
batalha, como exige a parábola, nem acima e além da confusão. Pois essa diagonal, embora aponte na direção de algum infinito, é limitada, encerrada, por
assim dizer, pelas forças do passado e do futuro, estando assim protegida contra
o vazio. Ela tem sua raiz no presente e permanece ligada a ele – um presente
inteiramente humano, embora só realizado completamente no processo do
pensamento e não durando além dele. Ela é a quietude do Agora na existência
humana, pressionada e agitada pelo tempo. Para mudar a metáfora, ela é a
calmaria que reina no centro do furacão, que ainda pertence a ele, embora dele
seja totalmente diferente. Nessa lacuna entre o passado e o futuro, encontramos o
nosso lugar no tempo quando pensamos, isto é, quando estamos distantes o
suficiente do passado e do futuro. Estamos aí em posição de descobrir o seu
significado, de assumir o lugar de ‘árbitro’ das múltiplas e incessantes ocupações
da existência humana no mundo, do juiz que nunca encontra uma solução definitiva para esses enigmas, mas respostas sempre novas à pergunta que está
realmente em questão488.
É a partir dessa experiência do pensamento que Arendt salienta o primado do presente, ou seja,
a importância de tentar compreender, com a ajuda do passado e sem perder de vista o futuro, a sua
própria contemporaneidade, ainda mais em momentos nos quais a real ligação entre passado e futuro
486 ARENDT, H. A Vida do Espírito, p. 230. 487 ARENDT, H. A Vida do Espírito, p. 230. 488 ARENDT, H. A Vida do Espírito, p. 232.
139
se rompeu, como resultado de um evento político desastroso. Dito de outra forma, ao cultivar o recuo
do espírito humano sobre si mesmo, os homens possibilitam a si próprios a problematização da
atualidade em que vivem, e fazem isso mediante uma atividade que não deixa de ser anacrônica, uma
vez que foge do “presente real” para um “presente intemporal”, mas o fazem também sem deixar de
ter em conta a realidade atual invariavelmente submetida a uma batalha temporal de onde o pensamento
sempre reatualiza as suas potencialidades de significações gerais. Contudo, pondera Arendt, no
contexto em que aparentemente perdemos nossos instrumentos para compreender, em que não se
parece mais encontrar estímulos para a produção de significados, um problema emerge: “não
parecemos estar nem equipados nem preparados para esta atividade de pensar, de instalar-se na lacuna
entre o passado e o futuro”489. Para Arendt, desde o começo do século XX, a crescente falta de sentido
que se abateu sobre a mente dos homens e sobre o mundo foi acompanhada pela perda do senso comum.
Da perspectiva da autora, toda compreensão se inicia obrigatoriamente com o senso comum, pois, além
de ser aquilo que nos familiariza com o mundo que dividimos com os outros, o senso comum também
é uma forma de sabedoria, de pensamento preliminar que dá condições à capacidade de compreender
– esta que pode ser aprofundada pelo pensamento reflexivo. A nomeação popular de alguma coisa, por
exemplo, é uma forma de compreensão preliminar (foi justamente a linguagem popular que nomeou o
próprio “totalitarismo” a partir de uma expressão nova para tentar dar conta de um novo evento). O
caso é que nenhum especialista político, ou especialista em pensar, pode desprezar a compreensão
popular por completo, sob a pena de correr o risco de perder o fio de Ariadne do senso comum: perder-
se em um labirinto de divagações e especulações sem resultados compreensíveis. Em poucas palavras,
a filosofia política arendtiana intenta jamais perder a ligação com o senso comum no desenvolvimento
de seus conceitos específicos e, dessa forma, o diagnóstico do seu tempo presente não se torna uma
simples aventura intelectual solitária e individualista, mas uma procura por significados plurais que
façam sentido a todas as pessoas, isto é, significados que se comuniquem intersubjetivamente. O que
se pode retirar disso é que o tipo de pensamento requisitado tanto por Arendt quanto por Jaspers, ao
terem consciência da ruptura da tradição, é eminentemente um pensamento que não se desprenda da
compreensão do senso comum, embora tenha condições de transcendê-la. Assim, fazer evitar com que
“nós, que somos criaturas ligadas à Terra e nos pusemos a agir como se fôssemos habitantes do
universo, jamais sejamos capazes de compreender, isto é, de pensar e de falar sobre as coisas que, no
entanto, somos capazes de fazer”490.
489 ARENDT, H. “A quebra entre o passado e o futuro”. In: Entre o Passado e o Futuro, p. 40. 490 ARENDT, H. A Condição Humana, p. 04.
140
CAPÍTULO 2: O SIGNO DO AMOR MUNDI – O FENÔMENO POLÍTICO REPENSADO PELA VIA DAS
DISPOSIÇÕES HUMANAS
Uma das frentes subversivas de Hannah Arendt em oposição à tradição do pensamento político
ocidental, por assim dizer, se dá pela maneira como a pensadora interpreta a linguagem teológica e de
como faz questão de não negligenciar, em suas reflexões teóricas, os acontecimentos históricos de
cunho religioso – sobretudo cristão. Em A Condição Humana, a autora diz: “É da natureza de nossa
tradição (...) ser altamente seletiva e excluir da conceitualização articulada grande variedade de
experiências políticas autênticas”491. Em algumas de suas obras e textos editados, sobretudo aquelas
de cunho exclusivamente político, a seriedade com que Arendt se refere a passagens da escritura bíblica
pode incomodar alguns de seus leitores em virtude do suposto estatuto ético-político que a autora
entrevê em certos aspectos dos ensinamentos de Jesus de Nazaré e na comunidade religiosa de seus
seguidores492. Contudo, como em grande parte de seus estudos, as interações e, principalmente, as
apropriações de Arendt em relação a suas referências bibliográficas não são pacíficas nem passivas.
Pelo contrário, o contato da pensadora com materiais alheios, que lhe serviam para intertextos, é
usualmente marcado pelo desarranjo (que não é confusão) e pela posse (que não é necessariamente de
direito). Em outros termos: as leituras de Arendt são vivas, críticas e, mais do que meramente
interpretativas, são antropofágicas, no sentido de reter o que bem entender daquilo que deglute. Já diria
Jaspers, em uma carta a Heidegger em 20 de junho de 1929, que a senhorita Arendt recém-doutorara
com um trabalho que assumia “citações historicamente arriscadas”493. Talvez por isso também o
diagnóstico final do orientador tenha sido: “ela, simplesmente, não reuniu tudo o que Agostinho disse
sobre o amor (...) Alguns erros surgem nas citações (...) O método exerce alguma violência sobre o
texto (...) Não merece, infelizmente, a mais alta menção”494. Bem ou mal, em todo caso, pelo menos
uma característica da aluna permaneceu posteriormente nas obras da professora/pensadora renomada:
que seria a capacidade de refletir, ao mesmo tempo, com e contra alguns autores – Agostinho, entre
491 ARENDT, H. A Condição Humana, pp. 297-298. 492 Em Sobre A Revolução, por exemplo, ao comentar a respeito do vínculo entre a violência e a capacidade humana
de dar início a novidades no mundo, isto é, ao se referir à instituição criminosa de todas as fraternidades e fundações
humanas, Arendt confere aplicabilidade política à narrativa bíblica e metafórica de Caim e Abel e, nesse contexto,
filia aos negócios dos assuntos humanos o autoevidente ato de fala fundador “no início há um crime” em comparação
com a força religiosa da frase de São João, “No princípio era o Verbo”, sobre o criador dos céus e da terra. Além desse
exemplo, em várias passagens de suas obras, de A Condição Humana até o livro A Vida do Espírito, postumamente
publicado, pode-se afirmar que uma das frases mais utilizadas por Arendt na tentativa de enfatizar a importância da
pluralidade no espaço público é “Deus criou os homens”, e não o homem no singular. 493 BIEMEL, W; SANER, H. Martin Heidegger / Karl Jaspers: Correpondencia (1920-1963), p. 99. 494 Apud KRISTEVA, J. O gênio feminino: a vida, a loucura e as palavras, p. 41.
141
eles, também Kant, Platão, Marx e outros –, não poucas vezes se utilizando de argumentos internos às
obras destes para criticá-los, colocando determinado pensador contra ele mesmo. Desse modo, com os
assuntos religiosos a atitude de Arendt não poderia ser diferente. Ainda que esses temas representassem
parte intensa de sua formação e lhe acompanhassem enquanto registro de fontes às quais lançar mão
sem preconceitos, sua leitura não deixava de ser, de certa forma, profana e libertadora. É como se a
chave de compreensão do método de abordagem arendtiano desses assuntos religiosos, como um todo,
estivesse resguardada na “Introdução” de sua tese sobre o conceito de amor em Agostinho, no
momento em que Arendt justifica o segundo ponto de dificuldades que limitariam a sua pesquisa de
doutoramento. Naquele contexto, afirma ela: “as nossas análises manter-se-ão em grande parte alheias
à submissão do ponto de vista do dogma (...) à autoridade das Escrituras e da Igreja, porque por
princípio são livres em relação ao dogma na sua essência e no seu sentido”495. Creio que isso valeria
até mesmo para interpretar vários aspectos da sua obra de maturidade.
Com isso em mente, é possível legitimar o que pretendo desenvolver no segundo capítulo deste
trabalho de doutorado. A saber: rastrear alguns esparsos e poucos sistematizados momentos em que
Arendt trata direta ou indiretamente da expressão “amor mundi”, ponderando de saída que são
momentos nos quais as referências a Jaspers e ao léxico religioso permanecem, de uma forma ou de
outra, pelo menos como denominador comum das diversas discussões apresentadas. Especificamente,
são quatro momentos pontuais abordados aqui durante todo o capítulo e, vale ressaltar, retirados de
preocupações temporais distintas e não necessariamente convergentes nas reflexões arendtianas,
embora o núcleo duro da discussão seja estrutural para a concepção das obras políticas de 1958 a 1963.
O primeiro momento lida, portanto, com passagens específicas de A Condição Humana e de Sobre a
Revolução. O segundo ponto recupera um argumento presente em uma carta que Arendt enviou ao seu
amigo Gerschom Scholem, em julho de 1963. O terceiro aspecto se adianta no tempo e vai até o
segundo volume de A Vida do Espírito, “o querer”, obra póstuma de Arendt. E o quarto aspecto é
destacado do artigo intitulado Compreensão e Política, da década de 1950. Ressalta-se também, pelo
exposto, que a tese de Arendt sobre Agostinho não mais figura aqui entre os principais momentos
examinados, ainda que tal tema se remeta à gênese da preocupação política arendtiana discutida nos
tópicos anteriores. Tendo isso em conta, dois objetivos são centrais para este capítulo. No primeiro
tópico, 2.1, que abarca as duas primeiras citações, trata-se de perceber como o termo “amor” aparece
em relação especificamente ao conceito de “mundo” e, assim, constatar o que pode significar o símbolo
do “amor mundi” nas obras de Arendt. Não obstante, realizo essa análise por meio de dois modos: pelo
495 ARENDT, H. Sobre o Conceito de amor em Santo Agostinho, p. 09.
142
mapeamento das disposições humanas às quais a autora confere significados políticos entre os homens;
e pelo paralelo com os termos jasperianos, que acabariam por auxiliá-la a repensar o âmbito político
em confronto com modelos tradicionais. No tópico 2.2, que contém as duas últimas referências, trata-
se de sugerir uma via de interpretação não só política dessas expressões, mas, de maneira concomitante,
aproximá-las ao pensamento ético da autora, uma vez que, assumo aqui, há sempre uma decisão de
responsabilidade moral embutida na afirmação do amor pelo mundo.
2.1: A disposição humana para a política
O primeiro ponto em apreciação, aqui, encontra-se em A Condição Humana – obra que, como
se sabe, teve como título provisório justamente o binome Amor Mundi, o qual foi alterado pelo editor,
no entanto, na procura de um nome mais acessível e comercializável. Em duas passagens específicas
desse livro, Arendt afirma a irrelevância do amor ao âmbito público, ao âmbito das aparências. Não
que o amor seja irrelevante por si mesmo, mas ele simplesmente não é capaz de tolerar a luz implacável
da cena pública e nem de suportar de modo digno a constante visibilidade perante a presença dos
outros, pois ao ser exposto continuamente suscita desconfiança em relação à genuinidade do próprio
sentimento. Assim como é impossível, para nós, ter acesso à intensidade da dor física que uma outra
pessoa sente, também não há como conhecer e nem confiar plenamente no sentimento alheio, que tem
no amor um exemplo extremo. Em tais casos, o acesso a esses sentimentos é intrinsecamente privado.
Devido a isso, na seção que explica o que seria o “domínio público” e o que seria o “comum” em sua
reestruturação dos fenômenos da vita activa, Arendt considera que algumas forças internas
prementemente individuais – como a vida do espírito, as paixões do coração e os deleites dos sentidos
– não são próprias a compor a realidade do mundo aparente. Ser algo automaticamente privado não
significa ser algo rebaixado a um âmbito inferior ao público; significa apenas que cada atividade
assinala sua melhor localização conveniente, ou seja, que há coisas que devem ser ocultadas e outras
coisas que devem ser expostas para receber existência adequada, e que isso se altera de acordo com
contextos históricos e culturais diferentes. Dessa forma, diz Arendt: “O amor (...) em contraposição à
amizade, morre ou, antes, se extingue assim que é trazido a público. Dada a sua inerente não
mundanidade, o amor só pode ser falsificado e pervertido quando utilizado para fins políticos, como a
transformação ou a salvação do mundo”496. É como se, para a autora, o sentimento amoroso fosse um
intruso quando publicitado, muito pouco ambientado à prática e aos diálogos políticos. Páginas adiante,
496 ARENDT, H. A Condição Humana, p. 63, grifos meus.
143
ainda na obra A Condição Humana, quando discute a respeito da redenção das vicissitudes ocasionadas
pela irreversibilidade das ações humanas, ou melhor, quando discute sobre a envergadura política do
perdão, característica que teria sido descoberta pelo Nazareno, Arendt volta à questão do amor, uma
vez que perdoar e amar são indissociáveis na doutrina cristã. Diz ela: “Por natureza, o amor é não
mundano, e é por essa razão, mais que por sua raridade, que é não apenas apolítico, mas antipolítico,
talvez a mais poderosa das forças humanas antipolíticas”497. Ora, nesses dois contextos, a partir de
diferentes justificativas, subjaz a mesma argumentação em Arendt que parte da seguinte premissa: o
amor não suporta barreiras e distâncias, ele abole todo espaço-entre existente, segundo a pensadora,
em qualquer constituição política organizada humanamente. Daí vem o aspecto antipolítico e não
mundano do amor, pois é um sentimento que elimina todo tipo de espaço criado entre aquele que ama
e aquilo que é amado; politicamente, isso quer dizer que, por seu caráter passional, o amor destrói
aquilo que, ao mesmo tempo, nos une e nos separa uns aos outros. Ou seja, o amor é cego a
perspectivas, uma vez que só mira o objeto amado, e, ao mesmo tempo, o amor é mudo, uma vez que
não cumpre a tarefa básica de se expressar sem reservas e desconfianças. Nesse sentido, o amor
definitivamente não é um bom critério para ações políticas, é fonte equivocada para guiar anseios
revolucionários, como ela diz em Sobre a Revolução, e não deve fazer parte argumentativa ou
persuasiva no diálogo e debate políticos, até porque a pluralidade teria de ser sacrificada em nome da
experiência de um tipo de sentimento que é íntimo e que requer exclusividade, o que geraria um âmbito
de intolerância e suspeita com aqueles que, por acaso, não compartilhassem de tal sentimento.
Em um capítulo dedicado ao sentimento humano do amor em Introdução ao Pensamento
Filosófico, Jaspers, por seu turno, enumera alguns usos semânticos da expressão “amor” e orienta sua
discussão sobre essa temática ao assumir, de partida, que significações últimas escapam a quaisquer
intentos nesse contexto. “Os sentidos da palavra são vários. Fala-se de amor a Deus, ao sexo oposto,
aos pais, aos filhos, aos companheiros de destino, à humanidade, ao homem, aos gregos, à pátria, a
Kant, a Espinosa. Gostaríamos de saber e explicitar o que seja o amor. Não o conseguiremos.
Tentemos, não obstante”498. Na tentativa de abstrair todas as particularidades desses tipos de amor em
prol de um significado que congregaria a generalidade desse termo, portanto, também na concepção
jasperiana o que resta é algo não mundano, pois, diz explicitamente o autor, “não está no mundo a
origem do amor”499. É devido a isso que Jaspers o denomina de “amor metafísico”, algo sem existência
497 ARENDT, H. A Condição Humana, p. 302. 498 JASPERS, K. Introdução ao Pensamento Filosófico, p. 117. 499 JASPERS, K. Introdução ao Pensamento Filosófico, p. 119.
144
empírica, que escapa tanto às matérias científicas e técnicas quanto às operações racionais que podem
se direcionar às ações políticas, por exemplo. Na obra Psicologia das visões de mundo Jaspers
argumenta que o amor, enquanto atitude entusiástica humana, por se remeter a uma intimidade tão
profunda entre sujeito e objeto, acaba por abolir de modo peculiar a dissociação entre esses dois
elementos. Ou seja, abole o espaço entre sujeito e objeto. Desse modo, mais do que apontar o
desenraizamento ontológico do amor perante o mundo, assim como Arendt realiza, os argumentos de
Jaspers caminham para problematizar que tal sentimento, por não ser concreta e objetivamente
acessível aos sentidos humanos, sempre suscitará dúvidas a respeito de sua própria autenticidade.
“Ninguém pode saber se ele existe e se, hic et nunc, é real entre dois seres humanos”500; “[n]em é
possível demonstrar a existência do amor quando ele é posto em dúvida. O amor não leva um sinal
inconfundível. Não pede reconhecimento [...]”501. Pode-se expandir essa constatação jasperiana para o
fato de que nenhum corpo político, formado por diferentes homens e mulheres, seria capaz de possuir
expedientes legítimos para reclamar, averiguar ou sustentar-se no sentimento do amor entre seus
membros. O próprio Jaspers comenta rapidamente sobre essa consequência (a)política da característica
não mundana do amor:
Esse amor, se perfeito e puro, seria razão exclusiva e suficiente de nossa vida. Um
amor perfeito dispensaria a lei moral e a ordem pública, porque a elas daria
surgimento em cada situação concreta e implicaria observância de seus preceitos
[...] Se houvesse alguém capaz de viver na clarividência do amor, ser-lhe-ia
aplicável o dito de Santo Agostinho: ‘ama e faze o que quiseres’. Como, porém,
somos todos homens, sujeitos ao engano e à cegueira, expostos à ação de forças hostis ao amor, não podemos viver sem restrições [...] Tal o motivo por que não
podemos recorrer ao amor para justificar uma conduta, uma atitude, um juízo502.
Trata-se, nessas perspectivas, de uma encruzilhada análoga àquilo que tragou violentamente a
maioria das revoluções modernas, sobretudo a francesa e a russa, segundo Arendt, no sentido de se
instaurar contextos marcados pelo “terrorismo da virtude”, pelo “reinado do terror”503, e pela punição
de supostos vícios – como a hipocrisia, “porque a caça dos hipócritas é por natureza ilimitada”504 – que
não são de modo algum bem definidos e objetivamente apontáveis em público. Na leitura de Arendt
em Sobre a Revolução, quando Robespierre, influenciado por Rousseau e movido pela paixão da
compaixão, vinculou a força virtuosa dos revolucionários franceses a um sentimento de piedade para
500 JASPERS, K. Introdução ao Pensamento Filosófico, p. 119. 501 JASPERS, K. Introdução ao Pensamento Filosófico, p. 119-120. 502 JASPERS, K. Introdução ao Pensamento Filosófico, p. 126, grifos meus. 503 ARENDT, H. Sobre a Revolução, p. 140. 504 ARENDT, H. Sobre a Revolução, p. 140.
145
com o povo (le peuple, os desgraçados, os sofredores, os menos abastados), perdia-se então a
capacidade de representar o povo em uma causa comum em prol de um distanciamento entre
representantes (os piedosos) e representados (os que merecem caridade). Para Arendt, “se foi Rousseau
quem introduziu a compaixão na teoria política, foi Robespierre quem a levou à praça pública com o
vigor de sua grandiloquência revolucionária”505, e o resultado disso foi uma caça às bruxas a
determinadas depravações humanas que começavam com o fim da compaixão. Mais do que isso,
inaugurava-se uma constante suspeita por parte daqueles que se sentem piedosos em relação àqueles
que, por acaso, não se sentem compadecidos com o povo. De acordo com a autora, “o coração humano
é, sem dúvida, um local de sombras que nenhum olhar humano pode devassar (...) fez com que
Robespierre e seus seguidores, depois de igualarem a virtude às qualidades do coração, vissem intrigas
e calúnias, traições e hipocrisias por todas as partes”506. Há, nesse argumento, um sentido de
comprovação do “caráter apolítico e antipolítico” do amor comentado anteriormente em A Condição
Humana, pois o coração humano, que contém os sentimentos mais privados de cada indivíduo, também
não se destina a aparecer à luz do público. Para Arendt, essa fatídica faceta da desconfiança não estava
presente na Revolução Americana, pois os revolucionários americanos não tomaram o coração – onde,
segundo ela, mora o sentimento do amor – como fonte da virtude política e nem como fonte do caráter
moral daqueles que governam. Tais revolucionários se incluíam entre os oprimidos, uma vez que
também eram destituídos de poder político por conta de um antigo regime, e, desse modo, legitimaram-
se por se erguerem contra a tirania e a opressão sem precisarem recorrer ao sentimento de caridade
face à pobreza e à contínua exploração dos povos. “Se se tornaram porta-vozes do povo, não foi no
sentido de que fizeram algo pelo povo, fosse por amor ou por desejo de obter poder sobre ele; falaram
e agiram como seus representantes numa causa comum”507. Assim colocadas, as discussões arendtianas
parecem expor uma aporia retórica no sentido de que a expressão amor mundi poderia ser contraditória
por definição ou de que, no limite, não se vincularia com clareza aos significados que a autora confere
às ações políticas humanas, à constituição de corpos políticos, ao “espírito revolucionário”, como
exemplos de temas recorrentemente caros a Arendt.
Nessa mesma direção, para finalizar o primeiro bloco das citações aqui selecionadas, cabe
ressaltar que no último parágrafo da parte sobre o poder de perdoar em A Condição Humana, Arendt
defende, contra a concepção cristã, que para perdoar não é preciso amar. Afinal, para ela, o perdão
505 ARENDT, H. Sobre a Revolução, p. 119. 506 ARENDT, H. Sobre a Revolução, p. 136. 507 ARENDT, H. Sobre a Revolução, p. 110, grifo meu.
146
possui um papel político por ser, justamente, uma espécie de ação, ou melhor, um reinício em resposta
a um determinado ato anterior que o provocou, mas trata-se de um reinício que não reage simplesmente,
pois não está preso a este ato único. Para Arendt, perdoar seria uma das maiores capacidades humanas
“e, talvez, a mais ousada das ações do homem, já que tenta alcançar o aparentemente impossível –
desfazer o que foi feito”508, libertando tanto aquele que perdoa quanto aquele que é perdoado, pois
instaura um novo começo em uma situação que parecia infinda. Em outras palavras, perdoar é agir
novamente, é desligar tanto o credor quanto o devedor das consequências de um ato que poderiam ser
intermináveis, mas não teria uma força política se estivesse necessariamente vinculado ao amor – este
entendido como força de grandeza antipolítica. Posso muito bem conceder perdão a alguém que me
tenha feito uma falta, sem, contudo, amá-lo. Desse modo, afirma Arendt: “o que o amor é em sua esfera
própria e estritamente delimitada, o respeito é no domínio mais amplo dos assuntos humanos. Como a
philia politiké aristotélica, o respeito é uma espécie de amizade sem intimidade ou proximidade; é uma
consideração pela pessoa desde a distância que o espaço do mundo coloca entre nós”509. Com isso a
autora quer dizer, apenas, que o respeito – e não o amor – é o bastante para que possamos perdoar uns
aos outros. Antes de discutir mais um pouco sobre isso, a questão do “respeito” abre espaço para a
segunda passagem aqui destacada na qual Arendt comenta sobre o amor no contexto mundano.
Em uma carta de resposta às críticas dispensadas pelo teólogo judeu Gerschom Scholem ao seu
livro Eichmann em Jerusalém, correspondência na qual Arendt rebate a acusação de ter poucos traços
de “amor ao povo judeu”510, a pensadora escreve que Scholem estava absolutamente correto em seu
diagnóstico. Por duas razões principais, segundo ela: primeiro porque o amor a coletividades nunca a
tinha comovido; e, segundo, porque seria suspeito ela, enquanto ‘judia’, declarar amor aos judeus. “De
fato, eu amo ‘apenas’ os meus amigos e o único tipo de amor que conheço e no qual acredito é o amor
pelas pessoas [...] Em segundo lugar, não posso amar a mim mesma nem nada que eu saiba ser parte e
parcela de minha própria pessoa”511. Arendt reitera essa sua posição em uma entrevista concedida a
uma emissora de TV alemã, em 1964, ao dizer que acredita ser politicamente estéril fundamentar uma
organização mundana entre homens pelo emblema do amor512, conforme, de acordo com ela, os judeus
supostamente esperavam que fosse este o sentimento que deveria unir todos os membros pertencentes
ao seu povo. O amor como fundamento político de um povo ou de uma nação, nas palavras de Arendt,
508 ARENDT, H. “Compreensão e Política”. In: A Dignidade da Política, p. 39. 509 ARENDT, H. A Condição Humana, p. 303. 510 ARENDT, H. “A Daughter of our People: a response to Gershom Scholem”. In: BAEHR, P. The Portable Hannah
Arendt, p. 392 511 ARENDT, H. The Jew as Pariah: jewish identity and politics in the modern age, p. 246-247. 512 ARENDT, H. Cf. “Só permanece a língua materna”. In: A Dignidade da Política, p. 138.
147
é fatal, desastroso, acósmico e apolítico. “Eu admito que o povo judeu é um clássico exemplo de um
povo acósmico que se mantem há milhares de anos”513. Nesse sentido, Arendt continua dizendo que
em uma organização política a relação central dos homens é com o mundo, e não simplesmente relações
pessoais diretas. Para ela, em uma organização política o que as pessoas têm “em comum é aquilo que
ordinariamente chamamos de interesses. A relação pessoal direta, na qual podemos falar de amor,
existe obviamente [...], mas, se você confunde essas coisas, se você traz o amor para a mesa de
negociações, para falar sem rodeios, eu acho isso fatal”514. Pelo exposto nestes dois momentos em que
Arendt relaciona os conceitos de amor e de mundo, ora em alguns testemunhos e ora em sua principal
obra de teor político, é interessante que a pensadora insista na expressão “amor mundi” sem se dar ao
trabalho de esclarecer precisamente o que compreende com isso. Por se tratar de Arendt, presume-se
que a escolha conceitual não é mera trivialidade. É instigante que a autora persista em dizer que a
relação dos homens com o mundo tenha de ser pautada pelo “amor”. Por que não “amizade mundi” ou
“respeito mundi”, “por amizade ao mundo” ou “por respeito ao mundo”, já que, como discutido até
aqui, ela confere papel político e mundanidade a tais sentimentos? Na década de 1950, a própria Arendt
se mostra intranquila com esse tema em seu Denktagebuch ao escrever: “Amor Mundi – por que é tão
difícil amar o mundo?”515. Talvez valha a pena notar que, quando trabalha especificamente desse amor
ao mundo em suas anotações de pensamentos, Arendt sempre utiliza a grafia no latim, ao passo que o
sentimento usual do “amor” íntimo entre duas pessoas, ou do “amor” do fiel a Deus, ou do “amor” do
cidadão a uma nação, enquanto puro sentimento, em suas obras, é grafado ou pelo “love” em inglês
ou, em alemão, pelo “liebe”. Ou seja, pode-se afirmar que há um marcador que diferencia o amor
mundi de uma interpretação que o vincule simplesmente a um sentimento, como uma paixão privada e
intimista, que não poderia jamais se tornar comum a todos os homens. Por certo, então, o que Arendt
entende por “amor”, nesse conceito, não pode se confundir com uma noção romantizada entre duas
pessoas ou com qualquer sorte de sentimentalismo que nos remeta somente a nós mesmos ou que
misture todos os homens numa indistinção patriótica cega rumo a um nacionalismo ufanista.
Grosso modo, defendo que o amor mundi arendtiano pode ser lido enquanto uma disposição
humana para a política. Parece-me claro que essa disposição continua sendo sentimental, mas sem se
resumir a isso. Trata-se de algo não natural, diferentemente de um sentimento (que, para a autora, não
se diferencia muito das emoções, do pathos, das paixões que afetam a alma, daquilo que nos toma,
513 ARENDT, H. Cf. “Só permanece a língua materna”. In: A Dignidade da Política, p. 138, tradução alterada. 514 ARENDT, H. Cf. “Só permanece a língua materna”. In: A Dignidade da Política, p. 138, tradução aletrada. 515 ARENDT, H. op. cit. p. 522.
148
como dados biológicos, a despeito de nós mesmos516), uma vez que o amor ao mundo necessita de
desenvolvimento e de cultivo regular e cotidiano. O amor mundi simboliza uma disposição própria dos
homens em partilhar com os outros – de maneira discursiva e ativa – das coisas, dos fatos, dos
interesses comuns e mundanos. É a disposição para um modo de vida, modo político, que se opõe
frontalmente tanto à vida do filósofo ermitão quanto à vida dedicada ao consumismo que nos prende
ao nosso próprio corpo. Ou seja, é sair de si mesmo, sair da “morada do ser” individual, ou do
meramente biológico, em busca da ação em conjunto. Mais do que tomar o mundo como um objeto,
significa se responsabilizar por ele sem nunca perder o vínculo de pertencimento que une os homens
ao mundo, pois só somos humanos, só desenvolvemos uma vida humana, no sentido estrito do termo,
para Arendt, se coabitamos o espaço mundano517. Nas anotações de um curso de 1963, a autora escreve:
“Amor Mundi: amor ou o máximo de dedicação possível ao mundo no qual nascemos”518. Em suma,
significa “cuidado”: cuidado com aquilo que existe antes de nós e que deve permanecer para além de
nós mesmos, cuidado que se baseia pela salvaguarda em conjunto da pluralidade, do poder e da
liberdade humanos. Com isso em vista, pode-se dizer que só existe política, nas palavras de Arendt, se
há homens disponíveis para a ação sob o signo do cuidado com o mundo. No interior de Sobre a
Revolução, por exemplo, a fundação da liberdade por meio da constituição de um novo corpo político,
que sustenta e ao mesmo tempo é sustentado pelo poder, “o único atributo humano que se aplica
exclusivamente ao entremeio mundano onde os homens se relacionam entre si”519, como no caso da
Revolução Americana, sem recorrência a nenhuma esfera além da política, é um sintoma de amor pelo
mundo. Em uma nota de 1955 presente nos seus registros de pensamento, Arendt diz: “Amor mundi:
aspecto do mundo que se forma como espaço-tempo na medida em que os homens existem no plural
– não com os outros, não uns-perto-dos-outros, a pluralidade pura basta!”520. E esse termo não poderia
ser “amizade mundi” ou “respeito mundi”, a propósito, porque, senão, seria algo que requereria
reciprocidade. Não existe amizade sem que ambas as partes concordem com o sentimento; e até o mais
egoísta dos homens reconheceria que deve respeito a quem o respeita, pelo menos no sentido de
respeitar aquela parte do outro que o respeita. Como diz uma frase de Nietzsche, que Arendt cita em
algumas ocasiões, “quem despreza a si próprio não deixa mesmo assim de se respeitar como
desprezador”521. Enfim, com o amor é diferente. O mundo não precisaria amar o homem de volta para
516 Cf. ARENDT, H. A Vida do Espírito. 517 Cf. ARENDT, H. A Condição Humana, p. 221. 518 ARENDT, H. apud ASSY, B. Ética, responsabilidade e juízo em Hannah Arendt, p. XXXVI. 519 ARENDT, H. Sobre a Revolução, p. 228. 520 ARENDT, H. apud CORREIA, A. “Apresentação à nova edição brasileira”. In: A Condição Humana, p. XXII. 521 NIETZSCHE, F. Para além do bem e do mal: ou o prelúdio de uma filosofia do futuro, p.78.
149
que o cuidado político humano se sustente pelo e no amor mundi – podemos, sem equívocos, nesse
caso, amar o que é inanimado. Todavia, é justamente pelo amor mundi humano que o próprio mundo
ganha ânimo e passa a ser constituído enquanto lar histórico e político da humanidade. Esse amor que
inspira Arendt, como ela diz em uma nota de rodapé em A Condição Humana, possuiria uma faculdade
de criar mundos. A autora se refere a isso ao se valer de uma fábula mitológica que sugere o espaço
mundano como sendo fruto do amor entre o céu e a Terra, no sentido de que o mundo seria o espaço-
entre o céu e a Terra. “A seguinte fábula mitológica vai [...] buscar suas imagens claramente na
experiência do amor: o céu é visto como imensa deusa que ainda se debruça sobre o deus terra, do qual
está sendo separada pelo deus ar, que nasceu entre eles e que agora começa a erguê-la”522. Nessa
metáfora, o mundo é filho de um relacionamento amoroso, uma criança que significa em si mesma a
novidade política e o potencial de criação de novos mundos. Para compreensão dessa imagem, segundo
Arendt, não se deve associá-la à noção de fertilidade entre homens e mulheres, como se a reprodução
humana estivesse vinculada ao amor pelo mundo, mas ao fato de que agir no mundo é fazer nascer o
novo a cada instante, pois agir representa justamente a faculdade de iniciar.
Para Arendt, a tarefa de amar o mundo ganharia contornos de urgência em vista do que o
domínio totalitário foi capaz de realizar em seus últimos estágios durante o fim da II Guerra, leia-se: a
desumanização e a desmundanidade. Ou seja, houve a fabricação de uma superfluidade dos homens,
na medida em que, segundo a pensadora, os nazistas foram capazes de provar que até mesmo a
“natureza” humana poderia ser destruída por meio da supressão da espontaneidade humana e da
erradicação da pluralidade da face da Terra, o que se passaria desumanizando os seres humanos e
tornando-os descartáveis ou completamente intercambiáveis. Nas palavras de Wolfgang Heuer: “o
‘cuidado pelo mundo’ não é um pathos [...], mas uma necessidade que aparece, nos escritos de Hannah
Arendt, quando ela antepõe totalitarismo e liberdade, acosmismo e mundanidade”523. Assim, não se
pode alegar que o símbolo do amor mundi arendtiano possa ser interpretado como uma fuga romântica
ou utópica por parte da autora diante da realidade catastrófica dos acontecimentos do seu tempo. Pelo
contrário, amar o mundo traz o sentido de enfrentá-lo em seus mais terríveis desafios, sem “negar nos
fatos o chocante, eliminar deles o inaudito”524, pois “é fundamentalmente uma consciência mais intensa
da realidade”525, e, ainda que na expectativa de ter o mundo como um lar acolhedor, tal postura jamais
522 ARENDT, H. A Condição Humana, p. 302. 523 HEUER, W. “Amizade política pelo cuidado com o mundo: sobre política e responsabilidade na obra de Hannah
Arendt”. In: História: questões e debates, p. 93. 524 ARENDT, H. Origens do Totalitarismo, p. 12. 525 ARENDT, H. “A Humanidade em tempos sombrios: pensamentos sobre Lessing”. In: Homens em Tempos
Sombrios, p. 15.
150
deixa de ser um fardo que requer coragem por parte dos homens. Para se referir a esse aspecto do
pensamento arendtiano, pode-se valer da descrição que a autora faz de Lessing: “A sua atitude em
relação ao mundo não foi positiva nem negativa, mas sim radicalmente crítica [...] Mas foi também
uma atitude que permaneceu em dívida para com o mundo, que nunca abandonou a terra firme do
mundo, e nunca caiu nos extremos do utopismo sentimental”526. Nesse mesmo diapasão, é possível
retornar à obra Psicologia das Visões de Mundo de Jaspers, na qual o autor diz que a autenticidade da
atitude entusiástica amorosa – enquanto força psicológica que participa dos valores humanos
subjacentes aos significados que eles oferecem à objetividade mundana e à subjetividade individual –
deve ser necessariamente vinculada à realidade. “A atitude entusiástica não pode nunca, de modo
algum, flutuar no ar, por assim dizer, mas precisa de uma esfera concreta como matéria na qual pode
ser efetiva”527. Para o autor alemão, a realidade se torna opaca e fugidia quando o amor é confundido
com misticismo, com embriaguez da alma ou com qualquer tipo de sentimento imaginário. Diz ele: “O
entusiasmo real somente é possível em compreensão penetrante e vivência das realidades mesmas”528.
Ou seja, ao lado de Arendt, ao recorrer ao sentimento do amor, Jaspers também é um pensador que não
o faz simplesmente como um truísmo abstrato, mas na tentativa de conectá-lo às experiências que nos
definem enquanto homens no mundo.
Do mesmo modo que não é uma resposta utópica aos problemas políticos, o amor mundi
tampouco se enquadra em uma resposta pragmática ou de orientação racional para a convivência
harmoniosa entre os seres humanos. Analisar a vida política dos homens por meio de uma disposição
de amor pelo mundo, nesse sentido, não é algo que possa sugerir equivalência conceitual de Arendt à
tentativa kantiana de fundamentar um “princípio supremo”529 das condutas e das ações humanas a
partir da eliminação completa de todas as inclinações particulares e pessoais em nome de um único
sentimento passível de universalização entre os homens, que seria o amor ou o respeito à lei moral,
esta que estaria presente, segundo o autor, internamente a cada um dos seres racionais. Ora, na
Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant estabelece uma importante diferença entre “amor
patológico” e “amor prático” que merece ser retomada rapidamente nesse contexto. O primeiro tipo de
amor, vinculado ao pathos, destituiria o valor moral de qualquer ação empreendida individualmente,
pois refere-se a um sentimento que estaria sempre ligado a intenções e inclinações particulares e
526 ARENDT, H. “A Humanidade em tempos sombrios: pensamentos sobre Lessing”. In: Homens em Tempos
Sombrios, p. 14. 527 JASPERS, K. Psicología de las concepciones del mundo, p. 168. Tradução minha. 528 JASPERS, K. Psicología de las concepciones del mundo, p. 168. Tradução minha. 529 KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes, pp. 20 e 36.
151
privadas, o que, por sua vez, na concepção kantiana, anularia qualquer pretensão de universalização e
transformação em lei de uma máxima – ou do princípio subjetivo do querer – que orienta uma
determinada ação. O segundo tipo de amor, por seu turno, vincula-se ao conceito de “dever” na teoria
do filósofo alemão, uma vez que não deixa mais as ações humanas se orientarem pelas inclinações ou
por aquilo que mobiliza alguém em seus sentimentos particulares, mas, antes, abstrai-se de todos os
propósitos ulteriores do agir e de toda a objetividade mundana para, aí sim, encontrar um norte de
conduta com valor moral necessário, qual seja: o bem fazer por obrigação, por pureza de respeito ao
imperativo da lei moral530. É à luz dessa distinção que Kant interpreta o mandamento bíblico do “amor
ao próximo”, por exemplo. Nas palavras de Kant: “É sem dúvida também assim que se devem entender
os passos da Escritura em que se ordena que amemos o próximo, mesmo o nosso inimigo. Pois que o
amor enquanto inclinação não pode ser ordenado, mas o bem-fazer por dever [...] é amor prático [...]
que pode ser ordenado”531. Em todo caso, ainda que o amor mundi arendtiano não se conecte a um
sentimento patológico, é importante afastá-lo também da noção de um dever prático, seja civil, cidadão
ou moral. Amar o mundo não é uma regra ou um imperativo categórico com finalidade de ordenar às
consciências de todos os homens modos de agir politicamente. Arendt trabalhava com menor rigor
normativo, mas, ao pretender analisar as experiências pelas quais o amor mundi se atualiza entre os
homens, não há como negar que tal conceito, tal disposição, funcionava como critério para a defesa
arendtiana dos afetos salutares à convivência no domínio público e político.
No XI capítulo de Introdução ao Pensamento Filosófico, Jaspers indaga sobre as maneiras que
o amor metafísico, “não podendo ser apontado como se aponta uma realidade”532, manifesta-se no
mundo, visto que só pode se manifestar em experiências reais533. Desloco, a partir de agora, essa
questão jasperiana para o contexto específico do amor mundi nos termos de Arendt: como essa
disposição para a política, como esse tipo pontual de amor, declara-se mundanamente entre os homens?
Ao discutir sobre as múltiplas formas do amor em seus textos, Jaspers perpassa pelos temas da paixão
erótica, do desejo sexual, da instituição do casamento, da fraternidade, da lealdade, da fidelidade, a
título de exemplos, como experiências humanas que remetem a esse sentimento em diversas faces, mas
que não o encerram em si mesmas. Arendt, por seu turno, em um ensaio escrito em alemão em 1950,
530 “Dever é a necessidade de uma ação por respeito à lei”; “pois que aquilo que deve ser moralmente bom, não basta
que seja conforme à lei moral, mas tem também que cumprir-se por respeito à essa mesma lei [...]” (KANT, I.
Fundamentação da Metafísica dos Costumes, pp. 31 e 32. Em algumas traduções, a palavra “respeito” é substituída
também por “amor”, “amor à lei moral”. 531 KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes, p. 31. 532 JASPERS, K. op. cit, p. 120. 533 Cf. JASPERS, K. Psicología de las concepciones del mundo, p. 175.
152
intitulado Liebe und Ehe (“amor e casamento”), ao trabalhar o amor enquanto um sentimento passional
e extramundano, também afirma que a forma institucional do casamento não apreende o amor, mas,
antes, tritura-o. Nos termos dela: “[...] o casamento se transformou na instituição do amor, tornando-
se assim ainda mais obsoleto do que a maioria das instituições do nosso tempo. Já o amor, por sua vez,
ficou completamente sem lar e sem proteção desde sua institucionalização”534. Ora, parece correto
assumir que, para ambos os autores, para cada tipo de amor existem modos exclusivos de
manifestações. Assim, vale ressaltar que o mandamento cristão de amor a Deus, ou a noção de Eros
institucionalizada pelo casamento, ou o imperativo kantiano de amor à lei moral se expõem, no mundo
fenomênico, distintamente do amor ao mundo arendtiano. Na teoria política de Arendt, sobretudo nas
discussões que deram ensejo e volume às obras A Condição Humana, Homens em Tempos Sombrios e
Sobre a Revolução, é possível selecionar os sentimentos humanos da amizade, do respeito, da
abnegação e da coragem para começar a dar conta desse problema sobre a “abertura apaixonada ao
mundo, do amor ao mundo”535, este que sustenta o espaço público na concepção arendtiana e que deve
ser institucionalizado e fundado por meios políticos. O que Arendt assume é que, para que não vivamos
no deserto, temos de habitar e conviver no mundo com amor e gratidão pela responsabilidade que
temos por ele: e isso se demonstra inclusive pela interação com os nossos pares através do respeito e
da amizade, pela capacidade de se fazer promessas e compromissos mútuos e pela coragem de tomar
decisões em comum, seja para revolucionar, inovar ou estabilizar o âmbito mundano. É à luz desse
amor pelo mundo que o espírito revolucionário536, do qual Arendt trata em Sobre a Revolução, pode
ganhar significado a partir de dois elementos quase irreconciliáveis: por um lado, a preocupação com
a estabilidade e a durabilidade do novo corpo político; e, por outro lado, a afirmação sempre
revigorante do nascimento de algo novo na Terra. Isto é, o ato de fundação levado a cabo pelas
revoluções modernas está dependente, de modo concomitante, da anunciação da novidade e da
esperança da estabilidade. Nesse contexto, o espírito revolucionário só pode ser aquele que se mostra
capaz de conciliar tais posturas contraditórias para aquém, ou além, das divisões binárias,
contemporâneas e ideológicas entre “direita e esquerda, reacionário e progressista, conservadorismo e
liberalismo, para citar apenas alguns ao acaso”537. Enfim, o espírito revolucionário é também uma
534 ARENDT, H. “Amor e casamento”. In: Revista Direito e Práxis, vol. 2, p. 1683. 535 ARENDT, H. “A Humanidade em tempos sombrios: pensamentos sobre Lessing”. In: Homens em Tempos
Sombrios, p. 15. 536 Não é por acaso, então, que Arendt enxerga em Maquiavel o pai espiritual das revoluções modernas. Foi Maquiavel
o primeiro autor a se interessar seriamente pelo dilema da fundação de um corpo político duradouro e de sua dupla
perplexidade: o estabelecimento de um novo início e a necessidade de uma autoridade mantenedora. 537 ARENDT, H. Sobre a Revolução, p. 284.
153
expressão plena do amor mundi nos termos de Arendt e, afirma a autora, o próprio legado
revolucionário deu origem a um dos sintomas da perda desse espírito, que está declarada no modo
como atualmente a terminologia e o funcionamento políticos solidificaram a contraposição e o
completo afastamento entre esses dois tipos de atos e pensamentos: o da defesa da permanência e o da
defesa da alteração via novidade. “Afinal, hoje em dia, nada compromete mais seriamente o
entendimento e o debate significativo das questões políticas do que os reflexos mentais automáticos e
condicionados pelas trilhas batidas das ideologias nascidas, todas elas, nas pegadas e na esteira da
revolução”538. De uma perspectiva mais abstrata, Arendt está colocando em pauta que um mundo sem
quaisquer tipos de autoridades, conservação, estabilidade, instituições permanentes, tradição e,
inclusive, preconceitos, seria também completamente indissolúvel em nossas capacidades
compreensivas e totalmente inóspito aos seres humanos que chegam, como plenos estrangeiros, ao
contexto mundano pelo milagre renovador do nascimento. Reconhecer que não meramente estamos,
mas que somos inescapavelmente do mundo – e que isso implica assumir todas as suas contradições e
tensões em nossos atos e espírito – é amar o único habitat, o único lar, possível aos homens.
Argumento assim, prioritariamente, a partir de agora, que amizade, respeito, abnegação e
coragem são, cada um à sua maneira, modos pelos quais o amor mundi se transfigura publicamente
entre os homens. Dessa forma, não haveria contradição na escolha de Arendt ao sustentar o amor como
o signo de suas reflexões políticas, pois este amor jamais pode ser explicitado publicamente e
contextualmente pelos homens senão mediante transfigurações contingenciais.
2.1.1: Dois Noés e os anéis de Natã: amizade e respeito como abertura política de amor pelo
mundo interpretados nas relações teóricas e pessoais de Arendt e Jaspers
Contra o pano de fundo do apelo de Arendt à importância da amizade política, nos escritos da
autora encontra-se a desconfiança dela diante de forças antipolíticas tipicamente modernas, como,
principalmente, a solidão (loneliness) e a massificação dos homens, isto é, o paradoxal desamparo dos
indivíduos modernos que vivem em meio a uma multidão de semelhantes sem faces e amontoados
entre si no interior das sociedades contemporâneas. Desde Origens do Totalitarismo, Arendt afirma
que a solidão é estar “numa situação em que, como pessoa, me sinto completamente abandonado por
toda companhia humana”539, inclusive de mim mesmo, mesmo que não isolado do contexto social. Diz
538 ARENDT, H. Sobre a Revolução, p. 283. 539 ARENDT, H. Origens do Totalitarismo, p. 527.
154
ela: “Solidão não é estar só. Quem está desacompanhado está só, enquanto a solidão se manifesta mais
nitidamente na companhia de outras pessoas”540. É importante ressaltar que, em toda a sua obra teórica,
Arendt se utiliza de três palavras distintas para representar formas humanas de não estar na companhia
dos outros. O que ela denomina de solidão, ou desamparo, é a característica típica da interrupção do
contato com as coisas do mundo e com o “eu” interior; trata-se de um modo de estar sozinho que a
autora atrela às sociedades de massa, àquilo que os eventos totalitários conseguiram impor e difundir
entre os homens, o estar completamente solitário – sem nenhum tipo de relação, nem com as coisas,
nem com os seres, nem consigo próprio – mesmo em meio a bilhões de sua espécie. Outro tipo é a
isolation, ou seja, o isolamento em que não há presença de outros e nem de mim mesmo para mim,
mas que se atualiza em prol da preocupação com as coisas mundanas – trata-se de uma singularidade
prévia para a produção de objetos, para a fabricação de coisas, por exemplo, ou refere-se também à
isolação advinda do ócio político forçado, do ostracismo público etc. Em todo caso, apenas o estar-só,
a solitude, seria um processo em que falamos conosco mesmos, em pensamento reflexivo, sobre aquilo
que nos diz respeito. Tendo em mente essas distinções, Arendt afirma que “os movimentos totalitários
são organizações maciças de indivíduos atomizados e isolados [desamparados]”541, isto é, são
movimentos que, para se transformarem em dominação total da vida pública e privada dos homens,
encontram solo fértil justamente nessas organizações políticas apáticas aos interesses comuns da
sociedade e cujo sustentáculo se dá exclusivamente na experiência da solidão humana. Sendo assim, é
por considerar a negação de mundanidade inerente à solidão – uma vez que esta implode o espaço
público entre os homens – que Arendt tanto se empenha em evocar afetos ou disposições humanas
constituintes de mundo e, por conseguinte, profundamente políticas.
A amizade seria uma dessas disposições políticas na medida em que, como diz Odílio Aguiar,
“apresenta-se dotada de ampla possibilidade de resistência às potências destruidoras inerentes aos
processos de naturalização, massificação e solidão contemporâneas, atuais arautos da dominação”542.
Mais do que isso, para Arendt a amizade nada teria a ver com um fenômeno de proximidade íntima,
“em que os amigos abrem o coração uns aos outros, alheados do mundo e das suas exigências”543 e só
conseguem se relacionar verdadeiramente no círculo da privacidade. Em direção contrária a essa, a
noção de amizade nos termos da autora deve sempre envolver e favorecer o espaço mundano, o qual
540 ARENDT, H. Origens do Totalitarismo, p. 528. 541 ARENDT, H. Origens do Totalitarismo, p. 373. 542 AGUIAR, O. “A amizade como amor mundi em Hannah Arendt”. In: O que nos faz pensar, n.28, p. 137. 543 ARENDT, H. “A Humanidade em tempos sombrios: pensamentos sobre Lessing”. In: Homens em Tempos
Sombrios, p. 35.
155
possibilita o contato de uma pessoa com outras ao mesmo tempo em que as separa. Em um paralelo
com o sentimento do respeito entre as pessoas, afirma Arendt em A Condição Humana, a amizade “é
uma consideração pela pessoa [...] que independe de qualidade que possamos admirar ou de realizações
que possamos ter em alta conta”544. Trata-se, assim, de uma amizade que tem outra função que não o
apreço particularizado, pessoal e sentimental, mas o apreço pela relação entre homens a partir do
espaço de distinção que há entre eles. Para usar das expressões de Wolfgang Heuer, tal amizade política
representa engajamento em cidadania, a formação de cidadãos. “Seguramente não é a amizade de
políticos [...] seguramente não significa a ‘amizade’ entre o chanceler alemão Gerhard Schröder e o
presidente russo Vladimir Putin, porque esta se parece mais com uma cumplicidade [...] Amizade
política pelo cuidado do mundo significa ser consciente da comunidade comum”545. Odílio Aguiar, ao
recuperar o debate de Francisco Ortega em Para uma política da Amizade: Arendt, Derrida e Foucault,
percebe muito claramente que a posição arendtiana nessa questão parte de uma forte crítica à ideia
moderna de fraternidade – ou sobretudo ao sentimento natural da compaixão filantrópica que a autora
vincula a Rousseau. O texto de Odílio Aguiar ajuda a compreender como Arendt conecta a revolta
rousseauniana contra a razão humana à Revolução Francesa, de tal modo que o apelo compassivo de
Rousseau à “alma dilacerada” dos homens teria culminado em uma virtude apolítica com enorme
influência nos assuntos públicos pós-revolucionários. A partir daí, Arendt defende que fraternidade e
compaixão corromperiam a dimensão política da amizade, transformando-a em um afeto de patrulha
igualitária, que passa por cima da pluralidade de personalidades públicas possíveis entre os homens.
Nesse sentido, é interessante notar que, do mesmo modo que o amor mundi não se revela pela
compaixão, o amor nos termos jasperianos não é tampouco compaixão. O autor alemão dedica um
verbete da obra Psicologia das visões de mundo para evitar a confusão corrente que se faz na
modernidade entre amor e atitude compassiva. Jaspers diz que a compaixão é inativa e está sempre
carregada de uma posição de superioridade por parte daquele que a sente, diferentemente do amor, que
abriria espaço ativo em condições igualitárias. Para ele: “não se ama por ser compassivo”546. Também
nos argumentos arendtianos, a compaixão aparece como sentimento passivo, pouco digna de louvor
público, portanto, pois torna “a ação impossível”547. Em uma passagem esclarecedora de Sobre a
Revolução, Arendt diz que a compaixão não é política porque é “incapaz de estabelecer ‘instituições
544 ARENDT, H. A Condição Humana, p. 303. 545 HEUER, W. “Amizade política pelo cuidado com o mundo: sobre política e responsabilidade na obra de Hannah
Arendt”. In: História: questões e debates, p. 92. 546 JASPERS, K. Psicología de las concepciones del mundo, p. 175. 547 ARENDT, H. “A Humanidade em tempos sombrios: pensamentos sobre Lessing”. In: Homens em Tempos
Sombrios, p. 25.
156
duradouras’”548, uma vez que não possibilita o diálogo sobre o mundo, não possibilita espaço para o
argumento contraditório, mas faz-se ouvir apenas o sofrimento do sofredor. Nas palavras da autora:
“A compaixão, que nisto se assemelha ao amor, abole a distância, o intervalo que sempre existe nos
contatos humanos [...] Como a compaixão abole [...] o espaço terreno entre os homens onde se situam
os assuntos políticos, ou seja, toda a esfera dos assuntos humanos, ela não tem pertinência nem
importância em termos políticos”549. É nesse mesmo sentido que Odílio Aguiar argumenta que,
diferentemente da atitude compassiva, a amizade arendtiana é uma disposição política, ao passo que
se conecta com aquilo que intermedeia o contato humano:
A amizade relaciona-se a esse intermediário (in between), visto que propicia a
participação em algo comum enquanto possibilita a diferenciação dos partícipes
através da comunicação e do agir. Os amigos acolhem-se como seres falantes e
capazes de tomar iniciativa. Ao contrário da tirania narcísica da amizade intimista
e especular, a amizade perpassada pelo mundo acolhe a diferença e a distância
inerentes àqueles que se relacionam a partir de algo que está entre eles (inter-
essa)550.
Ao discursar sobre Lessing, no texto que escolheu para introduzir a obra Homens em Tempos
Sombrios, Arendt se utiliza da palavra “humanidade” – no sentido de “qualidade do que é humano” e
que só aparece em público – para estabelecer um profundo descompasso entre a noção de amizade, de
um lado, e a noção de fraternidade, por outro lado. O critério da autora para essa avaliação é justamente
a potência política que a amizade carrega em si, enquanto que, como já comentado, a autora nega isso
ao contato fraternal. Em relação à discussão desse último sentimento (a fraternidade), Arendt retoma a
sua condição pessoal de pária, retoma discursivamente a sua pertença a um grupo de judeus expulsos
da Alemanha no início do século XX e salienta que, a partir desse fato, isolados em outro continente,
esses grupos passaram a experimentar um tipo de convivência humana fraternal e de irmandade entre
si mesmos, na qual encontraram um resquício de “humanidade” diante de um mundo desarticulado,
mas que, segundo ela, por estranho que possa parecer, não representava algo político. Em significação
diametralmente oposta a essa realidade fraterna entre os párias, Arendt sublinha o afeto da amizade
“entre um alemão e um judeu nas condições do Terceiro Reich”551, que pode ser facilmente imaginado
entre ela e Jaspers, como um exemplo de “humanidade” com raízes políticas, por se tratar de uma
relação de pessoas que, mesmo em situações distintas, não negam nem o mundo nem a própria situação
548 ARENDT, H. Sobre a Revolução, p. 124-125. 549 ARENDT, H. Sobre a Revolução, p. 124. 550 AGUIAR, O. “A amizade como amor mundi em Hannah Arendt”. In: O que nos faz pensar, n.28, p. 138. 551 ARENDT, H. “A Humanidade em tempos sombrios: pensamentos sobre Lessing”. In: Homens em Tempos
Sombrios, p. 34.
157
dada entre elas. De modo mais preciso, nesse texto Arendt expõe criticamente que o século XVIII
entendeu tradicionalmente o diferencial da natureza humana a partir do sentimento universal da
compaixão, e que, na tradução da autora, isto queria dizer que a atualização da humanidade comum a
todos os homens se daria, sobretudo, pela ligação fraterna que temos de todos com todos. “[...] [E]
historicamente o mais eficaz defensor desse tipo de condição humana foi Rousseau, para quem a
natureza humana comum a todos os homens se manifestava, não na razão, mas na compaixão, numa
repugnância inata, como dizia, ao ver sofrer um outro ser humano”552. É diante dessas definições que
Arendt interpreta a sua condição de apátrida, principalmente ao fato de ter se vinculado a um grupo de
amigos apátridas iguais a ela, pois, para a autora, “é nos ‘tempos sombrios’ que a humanidade mais
frequentemente se manifesta sob a forma da fraternidade [...] aparece sempre, historicamente, entre os
povos perseguidos e os grupos escravizados”553. Essa autointerpretação biográfica é, antes de tudo,
uma autocrítica política, ou seja, Arendt interpreta o círculo de amizade ao qual pertencia, por ser judia,
como um círculo fraterno, que se fecha ao mundo, e não como um círculo de amizade no sentido
público e potencialmente político. Não que a autora desmerecesse o privilégio de conviver nessa
amizade privativa – como com Hans Jonas, Heinrich Blücher, Bertold Brecht, Walter Benjamin e
tantos outros –, mas ela percebia que por “um tal privilégio paga-se caro; muitas vezes acompanha-o
uma perda do mundo tão radical, uma atrofia tão terrível de todos os órgãos com que a ele reagimos
[...] que nos casos mais extremos [...] podemos falar de uma verdadeira ausência de mundo. E a
ausência de mundo, infelizmente, é sempre uma forma de barbárie”554. Por mais que fosse uma legítima
representante daqueles aos quais Brecht denominava de “mensageiros do infortúnio”555, daqueles que
foram vítimas do acaso e de situações de sofrimento, que traziam marcas de estórias sobre um mundo
desarranjado, sobre expatriação e ausência de refúgios, sobre catástrofes políticas e desastres pessoais,
ainda assim Arendt procurou defender disposições afetivas que lhe obrigassem para com o mundo,
para além do sentimento compassivo mútuo que compartilhava com os seus companheiros de destino.
A pensadora se demora sobre esse tema na seguinte passagem que me permito citar na íntegra:
Nesta humanidade que se desenvolve, por assim dizer, organicamente, é como se,
sob a pressão das perseguições, os perseguidos se aproximassem tanto uns dos
outros que o espaço-entre a que chamamos mundo (e que naturalmente existia
552 ARENDT, H. “A Humanidade em tempos sombrios: pensamentos sobre Lessing”. In: Homens em Tempos
Sombrios, p. 22. 553 ARENDT, H. “A Humanidade em tempos sombrios: pensamentos sobre Lessing”. In: Homens em Tempos
Sombrios, p. 22. 554 ARENDT, H. “A Humanidade em tempos sombrios: pensamentos sobre Lessing”. In: Homens em Tempos
Sombrios, p. 22-23. 555 Cf. apud BRUEHL-YOUNG, E. Hannah Arendt: por amor ao mundo, ver prefácio.
158
entre eles antes da perseguição, mantendo-os a uma certa distância uns dos outros)
pura e simplesmente desaparecesse. Isto confere às relações humanas um caráter
caloroso que poderá surgir aos olhos de quem já tenha tido uma certa experiência
de tais grupos como um fenômeno quase físico. Não quero com isto dizer, é claro,
que este relacionamento caloroso dos povos perseguidos não seja uma boa coisa.
Quando plenamente desenvolvido, pode dar origem a uma benevolência e a uma bondade de que os seres humanos, de um modo geral, raramente são capazes. É
também, frequentemente, fonte de uma vitalidade, de uma alegria pelo simples
fato de se estar vivo, que nos faz pensar que a vida só floresce plenamente entre
aqueles que são, em termos do mundo, os insultados e os oprimidos. Mas ao dizer
isto não podemos esquecer que o encanto e a intensidade da atmosfera que assim
se cria se deve também ao fato de os párias deste mundo beneficiarem do grande
privilégio que é não terem de carregar o fardo de cuidar do mundo [...] Tudo isto
é uma forma de dizer que o humanitarismo da fraternidade dificilmente convém
aos que não pertencem ao grupo dos humilhados e ofendidos, e que só podem
partilhar dele através da compaixão. A relação calorosa que se estabelece entre os
povos párias não pode de pleno direito estender-se àqueles cujo lugar diferente no
mundo lhes impõe uma responsabilidade pelo mundo e não lhes permite partilhar a alegre despreocupação do pária. Mas é verdade que ‘nos tempos sombrios’ o
calor que é para os párias o substituto da luz exerce um grande fascínio sobre
todos quantos, envergonhados do mundo tal como é, gostariam de poder refugiar-
se na invisibilidade. E na invisibilidade, nessa obscuridade em que um homem,
ele próprio escondido, também já não precisa de ver o mundo visível, só o calor e
a fraternidade de seres humanos em fileiras cerradas pode compensar a estranha
irrealidade que as relações humanas assumem quando se desenvolvem em uma
absoluta ausência de mundo, sem relação com um mundo comum a todas as
pessoas. Num tal estado de ausência de mundo e irrealidade, é fácil concluir que
o elemento comum a todos os homens não é o mundo, mas este ou aquele tipo de
‘natureza humana556.
A questão que mais interessava a Arendt nesse contexto, como ela mesma diz, era: mesmo que
expulsos ou retirados à força do convívio mundano, até que ponto a obrigação com o mundo deveria
permanecer para esses povos? A resposta, extremamente arendtiana, é que a realidade jamais pode ser
ignorada, a despeito de quaisquer situações. Ou seja, mesmo diante de um mundo tornado inumano
pelas dominações totalitárias, por exemplo, agarrar-se à realidade seria a única alternativa “para que a
humanidade não se reduza a uma palavra oca ou a um fantasma”557. Em outras palavras, a humanidade
que se encontra na compaixão e nos grupos fraternais, para Arendt, não passaria de ilusão e fuga diante
de fatos maiores. A noção de amizade política da autora vem oferecer um sentido de humanidade entre
os homens completamente diferente dessa irmandade fraternal que seria experenciada e louvada pelos
homens modernos, “tão conforme à atitude básica do indivíduo moderno [...] na sua alienação em
556 ARENDT, H. “A Humanidade em tempos sombrios: pensamentos sobre Lessing”. In: Homens em Tempos
Sombrios, pp. 23 e 26. 557 ARENDT, H. “A Humanidade em tempos sombrios: pensamentos sobre Lessing”. In: Homens em Tempos
Sombrios, p. 33.
159
relação ao mundo”558. É por isso que a autora, para sustentar a sua concepção de amizade, retorna aos
gregos antigos, ou, mais precisamente, às noções políticas e éticas de Aristóteles. Segundo Arendt, o
que importa ressaltar da philia aristotélica não é apenas o fato de ela ser vista como um requisito para
o bem-estar e bom funcionamento da pólis, mas o fato de que ela se realizaria apenas no diálogo, no
constante intercâmbio da comunicação e da conversação entre os cidadãos. Ela afirma: “No diálogo
manifestavam-se claramente a importância política da amizade e a humanidade que lhe é própria”559.
Tal diálogo a que ela se refere é político na medida em que não diz respeito prioritariamente às próprias
individualidades e à empatia situacional, mas refere-se ao mundo comum, trata-se do discurso através
do qual os homens compartilham o espaço mundano e suas diferenças. Como diz Odílio Aguiar: “O
verdadeiro amigo respeita a alteridade, aceita a distância, sustenta a posição do outro no mundo, mesmo
quando ela se mostra diferente da sua. Essa igualação possui a capacidade de assimilar a diferenciação
própria aos seres que se associam em atos e em palavras e não mudamente”560. Posto isso, o exemplo
que Arendt escolhe para representar esse tipo de amizade é a imagem de um alemão e de um judeu
que, durante o período nazista, dissessem um ao outro o seguinte: “‘um alemão e um judeu, e
amigos’”561, sem obstruírem em momento algum a realidade da diferença entre eles naquelas
condições.
A humanidade presente nesse tipo de amizade, para Arendt, reside justamente no peso do
respeito às distinções, àquilo que separa os amigos. Nas palavras dela: “seria tudo menos um sinal de
humanidade da parte dos amigos que dissessem: ‘Pois não somos os dois seres humanos?’. Seria uma
simples fuga à realidade e ao mundo comum a ambos nesse momento; não estariam assim a resistir ao
mundo tal como era”562. Isto é, a procura pelo critério do denominador biológico comum entre os
homens é de força política irrelevante para Arendt. Não necessitamos nos igualar genericamente para
ter respeito um com o outro, ou para cultivar amizade política com os outros partícipes de um discurso
público. Politicamente, para a autora, o respeito e a amizade públicos não necessitam de um ponto de
partida comum, além do próprio mundo, que iguale as pessoas nessa interação. “A lei que proibia as
relações entre judeus e alemães podia ser desafiada, mas não por pessoas que negassem a realidade da
558 ARENDT, H. “A Humanidade em tempos sombrios: pensamentos sobre Lessing”. In: Homens em Tempos
Sombrios, p. 35. 559 ARENDT, H. “A Humanidade em tempos sombrios: pensamentos sobre Lessing”. In: Homens em Tempos
Sombrios, p. 22-23. 560 AGUIAR, O. “A amizade como amor mundi em Hannah Arendt”. In: O que nos faz pensar, n.28, p. 139. 561 ARENDT, H. “A Humanidade em tempos sombrios: pensamentos sobre Lessing”. In: Homens em Tempos
Sombrios, p. 22-23. 562 ARENDT, H. “A Humanidade em tempos sombrios: pensamentos sobre Lessing”. In: Homens em Tempos
Sombrios, p. 22-23.
160
distinção”563. Na mesma lógica, uma sociedade histórica e culturalmente patriarcal, machista e racista,
por exemplo, pode ser desafiada a partir dessa noção de humanidade desenvolvida no respeito mútuo
– ou na disposição da amizade política – entre homens e mulheres, ou entre brancos e negros, mas não
negando a diferença entre eles nem as condições próprias de singularização entre uns e outros. É claro
que essa postura não criaria novo âmbito legal, mas pelo menos diminui a força de modos vigentes.
Além disso, para Arendt, a força da amizade e do respeito ainda teria valor para os corpos políticos por
evitar a ameaça da luta de facções e das guerras civis, como ela faz ao interpretar pontualmente a philia
aristotélica em passagens de Sobre a Revolução564.
No caso específico do exemplo oferecido por Arendt, de “uma humanidade em plena realidade
da perseguição”565 dos judeus na Alemanha, não custa lembrar que Jaspers, além de permanecer casado
até o fim da vida com uma judia, Gertrud Jaspers, continuou a se afirmar insistentemente como um
“alemão” para Arendt, mesmo sabendo de toda a indisposição que Arendt passara a nutrir por sua terra
natal e, consequentemente, por sua própria nacionalidade. Enquanto ele se afirmava “alemão”, tanto
para ela quanto para sua esposa, pois isso nunca tinha sido um problema, de acordo com ele, até 1933;
Arendt se afirmava enquanto “judia”, pois, segundo ela, só se poderia “resistir nos termos da identidade
que é alvo de ataque”566, mesmo que ela já mantivesse distância do sionismo e do Estado de Israel. Em
algumas cartas trocadas entre os dois pensadores, antes e depois da Guerra, Jaspers comenta a respeito
de uma “essência alemã” que defendia, um suposto caráter ético vinculado ao “ser alemão” – posição
a respeito da qual Arendt se afasta e contesta veementemente. Jaspers pergunta a ela em 1954: “O que
é um alemão? [...] Ou não sei ou terei de escrever livros inteiros para poder responder. De qualquer
modo, é algo que nos une”. Ao que Arendt respondia já não ser possível, para ela, sentir-se alemã e
judia ao mesmo tempo. “Para mim, Alemanha significa minha língua materna, filosofia e literatura [...]
Eu posso e devo manter tudo isso. Mas sou obrigada a manter minha distância”567. É justamente nesse
distanciamento, nessas diferenças que jamais perdem a capacidade de comunicação, que o espaço
político da amizade entre os dois pensadores foi constituído. Provavelmente não foi sem ter Jaspers
em mente que Arendt concluiu a sua interpretação sobre a possível amizade de um alemão e um judeu
na realidade da Alemanha hitlerista: “[...] onde quer que uma tal amizade tenha subsistido nesse tempo
563 ARENDT, H. “A Humanidade em tempos sombrios: pensamentos sobre Lessing”. In: Homens em Tempos
Sombrios, p. 22-23. 564 Cf. ARENDT, H. Sobre a Revolução, p. 63. 565 ARENDT, H. “A Humanidade em tempos sombrios: pensamentos sobre Lessing”. In: Homens em Tempos
Sombrios, p. 22-23. 566 ARENDT, H. “A Humanidade em tempos sombrios: pensamentos sobre Lessing”. In: Homens em Tempos
Sombrios, p. 29. 567 KOHLER, L.; SANER, H. Hannah Arendt Karl Jaspers Correspondence 1926-1969, Carta 22.
161
[...] e tenha se mantido em toda a pureza, ou seja, sem falsos complexos de culpa de um lado e sem
falsos complexos de superioridade ou inferioridade do outro, ter-se-á conseguido um pouco de
humanidade num mundo tornado inumano”568. O significado dessa amizade é, antes de qualquer amor
entre indivíduos, o amor pelo espaço do mundo. Para me utilizar das expressões de Odílio Aguiar,
“[a]ssim entendida, a amizade é um modo especificamente humano de associação, propiciadora de um
espaço onde os homens participam como um ‘quem’ (Who), e não como coisas (What), tornando-se
seres capazes de reagir e de pensar por conta própria”569. O espaço que o mundo coloca entre nós,
segundo a teoria de Arendt, como já dito, representa a própria possibilidade da ação humana e,
portanto, a própria possibilidade da novidade, do nascimento de coisas novas e imprevisíveis.
Não parece ser por acaso, em razão disso, que Arendt escolha a metáfora de Noé para se referir
à amizade entre ela e Jaspers. Assim os dois se assumiriam no final da década de 1940, como Noés,
em suas correspondências privadas570, ou seja, como sobreviventes da provação e do horrendo dilúvio
que o totalitarismo nazista perpetrou em seus doze anos de dominação. Ora, a riqueza e produtividade
dessa imagem reside em sua potencial aproximação aos termos políticos arendtianos. O pacto que Deus
faz com Noé em Gênesis, no contexto bíblico, objetivava o recomeço mundano e o resguardo da
pluralidade na Terra após prevalecerem “as águas sobre a terra cento e cinquenta dias”571. A amizade
entre Jaspers e Arendt é um pacto entre Noés, é um pacto plural entre homens, sem mediação. Tal
amizade é como se fosse uma arca construída pelos dois de modo a atravessar e prevalecer sobre os
tempos sombrios, e que, depois de ancorada em terra firme, estava pronta para recomeços, para afirmar
o mundo e as distinções inerentes à pluralidade humana. Como dizem Hans Saner e Lotte Kohler,
nesses tempos de dilúvio, “Jaspers e Arendt confiaram na amizade”572. A dedicatória impressa na
abertura de Sobre a Revolução não poderia ser mais clara, e se remete a essa postura arendtiana: “A
Gertrud e Karl Jaspers, em sinal de respeito, amizade e amor”573. Em uma carta de 1947 Jaspers diz a
Arendt: “Tem razão quando se refere ao passado como dilúvio. Esse deve ser o nosso ponto de
referência. Mas algo emerge do dilúvio. A vida continua. E devemos pelo menos buscar a estrela que
nos guia [...] Sem os judeus não se pode trilhar esse caminho”574. Essa imagem da “estrela guia” é mais
568 ARENDT, H. “A Humanidade em tempos sombrios: pensamentos sobre Lessing”. In: Homens em Tempos
Sombrios, p. 34. 569 AGUIAR, O. “A amizade como amor mundi em Hannah Arendt”. In: O que nos faz pensar, n.28, p. 139. 570 Cf. KOHLER, L.; SANER, H. Hannah Arendt Karl Jaspers Correspondence 1926-1969, cartas 58, 59 e 60. 571 Cf. Livro de Gênesis, Capítulo 7, versículo 24. 572 KOHLER, L.; SANER, H. Hannah Arendt Karl Jaspers Correspondence 1926-1969, p. xxiv. 573 Cf. ARENDT, H. Sobre a Revolução, grifos meus. 574 KOHLER, L.; SANER, H. Hannah Arendt Karl Jaspers Correspondence 1926-1969, carta 60.
162
uma das metáforas religiosas que os autores utilizam para se referir ao plano político. Tanto para
Jaspers quanto para Arendt a exigência da novidade se equaciona com a exigência da política entre os
homens. É também por terem essa concepção em comum que ambos os autores, logo após o “dilúvio”
que teve seu fim em 1945, investiram suas filosofias diretamente para compreender os temas políticos.
Em uma dedicatória a Jaspers, Arendt expõe o seguinte pensamento:
Se esses indivíduos que hoje existem em todos os povos e em todas as nações do
mundo pretendem alcançar um entendimento entre si, é essencial que aprendam a
não se agarrar freneticamente a seus passados nacionais – passados que, de
qualquer maneira, não explicam nada, pois, assim como Auschwitz não pode ser
explicado da perspectiva da história judaica, tampouco pode sê-lo da perspectiva
da história alemã –, que não esqueçam que são apenas sobreviventes casuais de
um dilúvio que, de uma forma ou de outra, pode novamente recair sobre nós a
qualquer dia, e que, portanto, são como Noé em sua arca; e finalmente não se
entreguem ao desespero nem ao desprezo pela humanidade, mas que deem graças
que existam alguns Noés flutuando pelos mares do mundo, tentando aproximar
suas arcas o máximo possível575.
Em uma conferência intitulada Condições e Possibilidades para um Novo Humanismo, Jaspers
toca praticamente nas mesmas inquietações de Arendt ao também citar a “arca de Noé”:
Se, em um mundo naufragado, inundado por massas esquecidas de si mesmas,
existem homens que se salvam, por assim dizer [...] como em uma arca de Noé, na esperança de encontrar outros indivíduos sobre as ondas, como se encontram
uns com os outros ao saírem da arca, como estabelecer um regime público que
não seja um acidente oco, senão que sustente e erija finalidades comuns da vida
comum? Como ganhar, depois do dilúvio, o solo da autêntica comunidade
humana?576.
Para voltar ao texto arendtiano sobre Lessing, a autora não o finaliza com uma simples
recorrência aos gregos antigos de modo a lidar com o tema da amizade. Arendt compreendia que os
problemas políticos vividos contemporaneamente extrapolariam o escopo conceitual aristotélico, que
é o autor antigo ao qual ela faz referência explícita. Primeiramente, o afastamento de Aristóteles se dá
no sentido basilar de que a realidade política de Arendt lhe apresentava questões de conflitos culturais,
religiosos e nacionais que não poderiam ser equacionados a uma “unanimidade” de interesses e de
ações tal qual o pensador grego imaginava a amizade política577 em uma pólis. Além disso, Arendt
caminha para uma conclusão em seus pensamentos notadamente anti-aristotélica, qual seja: a de que
575 ARENDT, H. “Dedicatória a Karl Jaspers”. In: Compreender: formação, exílio e totalitarismo, p. 243. 576 JASPERS, K. Condiciones y Possibilidades para un Nuevo humanismo, p. 204. 577 Cf. ARISTOTELES. Ética a Nicômaco, in: Os Pensadores, Livro IX, 1167b. “A unanimidade parece, pois, ser a
amizade política, como, de fato, é geralmente considerada; pois ela versa sobre coisas que são de nosso interesse e
que têm influência em nossa vida”, p. 205.
163
nenhuma concepção e/ou nenhum conceito de “verdade” poderiam se sobrepor à amizade entre as
pessoas, pois a amizade é política; e a verdade nega o pluralismo. Faço menção aqui à famosa
declaração aristotélica no livro I de Ética a Nicômaco, no momento em que Aristóteles discute com o
formalismo platônico, qual seria: “a piedade exige que honremos a verdade acima de nossos
amigos”578. Em seu diálogo com Lessing, por outro lado, Arendt caminha para a afirmação de que,
caso a verdade existisse, deveria ser sacrificada em nome da possibilidade da amizade entre pessoas
diferentes, em nome da humanidade, em nome do diálogo e da liberdade humana, e, por fim, em nome
da dignidade da política.
Nesse sentido, portanto, a temática da amizade política nos termos arendtianos é atravessada
pela figura de Lessing, que é interpretado por ela “como se de um contemporâneo se tratasse”579 e “que
queria ser amigo de muitos homens, mas não ser irmão de nenhum”580. Pois, nessas movimentações e
passagens entre os temas clássicos e os temas modernos a respeito de afetos humanos tipicamente
políticos, Arendt diz que no texto de Lessing, intitulado Natã, o Sábio, há elementos que caminham e
auxiliam para a defesa de que “a humanidade deva ser sóbria e fria em vez de sentimental; que a
humanidade se manifeste não na fraternidade, mas na amizade; que a amizade não seja íntima e pessoal,
antes implique uma exigência política e mantenha a ligação ao mundo”581. Mais precisamente, no
terceiro ato do drama Natã, o Sábio existe uma parábola que muito interessa a Arendt nesse contexto.
Trata-se de uma parábola que versa sobre o quanto a verdade religiosa é indemonstrável entre os
homens. No escrito de Lessing, um sultão muçulmano pede para se encontrar com o personagem Natã
– um judeu rico e sábio – de modo a tratar de algumas dívidas e negócios. Porém, para espanto do
próprio Natã, o Sultão não queria tratar de dinheiro, mas pergunta-lhe sobre qual a verdade das
religiões: “[...] eu sou muçulmano. Entre nós está o cristão ... Destas três religiões só uma pode ser a
verdadeira [...] dize-me então que crença, que lei te pareceu melhor”582. Para responder ao Sultão, o
personagem sábio, que tinha sua própria religião, vale-se de uma estória, e o rei se põe a escutá-lo, uma
vez que “sempre foi um grande amigo das estórias quando são bem contadas”583. A estória, que
interessa muito a Arendt no contexto da discussão sobre o conflito entre verdade e amizade, é a
578 ARISTOTELES. Ética a Nicômaco, livro I, capítulo 6, p. 52. 579 ARENDT, H. Homens em Tempos Sombrios, p. 07. 580 ARENDT, H. “A Humanidade em tempos sombrios: pensamentos sobre Lessing”. In: Homens em Tempos
Sombrios, p. 22-23. 581 ARENDT, H. “A Humanidade em tempos sombrios: pensamentos sobre Lessing”. In: Homens em Tempos
Sombrios, p. 36. 582 LESSING, G. Natã, o sábio. 583 LESSING, G. Natã, o sábio.
164
seguinte: um anel pertencia a uma família durante gerações. O anel possuía um poder misterioso: o de
tornar quem o usasse em uma pessoa agradável a Deus e aos homens; além disso, cada pai de família,
possuidor do anel, antes de encontrar a morte, deveria deixar o anel para o filho mais querido, e assim
sucessivamente. Todavia, em um determinado momento, o anel parou na mão de um pai que tinha três
filhos igualmente bons. Ao não poder escolher um dos filhos para o qual deixaria o anel, este pai
resolve fazer duas cópias perfeitas do anel original. Assim, ao morrer, ele deixa três anéis idênticos aos
filhos, de tal modo tão iguais que nem mesmo o pai poderia mais diferenciar o original. Depois da
morte do pai, os filhos entram em disputa para comprovar qual deles tinha o anel verdadeiro. Mas todo
tipo de tentativa era em vão, restava-lhes apenas acreditar que possuíam o anel verdadeiro e agirem de
acordo com o poder misterioso do anel (independentemente de ser o original ou não), isto é, sendo
agradáveis a Deus e aos homens, fazendo jus ao amor que o pai tinha indiscriminadamente por eles.
Diante disso, Natã tira uma moral da estória: com as religiões acontece a mesma coisa, pois, em seus
fundamentos, as crenças não são distintas. Caberia, portanto, aos crentes, acreditar na verdade de sua
religião, mesmo sem comprovar sua autenticidade e sem que, com isso, queiram destruir as outras
crenças.
A partir dessa estória, Arendt conclui: “[s]e o anel verdadeiro existisse, a sua existência
representaria o fim do diálogo, e por conseguinte o fim da amizade, e por conseguinte o fim da
humanidade”584. Para Arendt, os escritos de Lessing apresentam-no como um homem absolutamente
político por este não pretender evitar os conflitos públicos – sobretudo aqueles conflitos causados pelas
inúmeras “verdades” que cada indivíduo, marcado por suas crenças e culturas, carrega consigo;
verdades que, quando expostas, devem sempre ser sacrificadas em nome de um diálogo contínuo. Ela
diz: “Nenhuma concepção sobre a natureza do Islão, do judaísmo ou do cristianismo, o teria impedido
de estabelecer amizade e entabular o diálogo da amizade com um muçulmano convicto, um devoto
judeu ou um cristão piedoso. A sua consciência livre e imperturbável teria rejeitado qualquer doutrina
que negasse por princípio a possibilidade da amizade entre dois seres humanos”585. Arendt defende
que Lessing não discutia a “verdade” do cristianismo, mas, antes, “o lugar do cristianismo no mundo,
ora receoso de que este tentasse de novo fazer valer as suas pretensões dominadoras, ora temendo que
desaparecesse por completo”586. Leio a caracterização que Arendt faz de Lessing como se fosse uma
584 ARENDT, H. “A Humanidade em tempos sombrios: pensamentos sobre Lessing”. In: Homens em Tempos
Sombrios, p. 37. 585 ARENDT, H. “A Humanidade em tempos sombrios: pensamentos sobre Lessing”. In: Homens em Tempos
Sombrios, p. 41. 586 ARENDT, H. Homens em Tempos Sombrios, p. 16.
165
caracterização do espírito da filosofia de Jaspers. Arendt continua a dizer que entre a verdade e a
amizade, “Lessing teria imediatamente tomado o partido dos homens e não perderia tempo com a
discussão, mais ou menos erudita, fosse qual fosse o campo em que esta se processasse”587. Nesse
momento, a figura de Lessing interessa a Arendt exatamente em um mesmo aspecto que Jaspers
importa a ela: para ambos os autores mais velhos, ou a verdade é dialógica e mutável em opiniões
diversas, ou ela aniquila a própria possibilidade da política e das relações entre os homens. A questão
basilar para Arendt, portanto, seria compreender a política como o espaço aberto para múltiplas
verdades se manifestarem, de tal modo que nenhum tipo de postura ou pensamento subjugue aquelas
que lhes são diferentes. E isso, segundo a autora, “tem muito pouco a ver com a tolerância no sentido
vulgar do termo [...], mas tem muito a ver com o dom da amizade, com a abertura do mundo, e por fim
com o verdadeiro amor à humanidade”588. Para medir um pouco da importância política dos afetos que
se envolvem com a amizade para Arendt, basta ler com atenção o elogio que a autora presta a Thomas
Jefferson em Sobre a Revolução, no sentido de que o homem de ação e pensamento políticos imagina
um céu paradisíaco rodeado de amigos e de eternas deliberações públicas.
Para entender como era realmente extraordinário, no contexto de nossa tradição,
ver na felicidade pública e política uma imagem da bem-aventurança eterna,
talvez caiba lembrar que para Tomás de Aquino, por exemplo, a perfecta
beatitudo consistia exclusivamente numa visão, a visão de Deus, para o qual não
era preciso ter a companhia de amigos [...] o que, aliás, ainda está de pleno acordo
como os conceitos platônicos da vida de uma alma imortal. Jefferson, ao contrário,
só conseguia pensar numa melhoria possível dos momentos mais felizes de sua
vida se houvesse uma ampliação do círculo de amigos, para se sentar em
‘Congresso’ com seus mais ilustres ‘colegas’. Para se encontrar uma imagem
semelhante da quintessência da felicidade humana expressa numa antevisão da vida no além, teríamos de voltar a Sócrates, que, numa famosa passagem da
Apologia, admitiu franco e risonho que a única coisa que podia querer era, por
assim dizer, mais do mesmo – isto é, não uma ilha dos bem-aventurados, não a
vida de uma alma imortal totalmente diversa da vida do homem mortal, e sim a
ampliação do círculo de seus amigos no Hades [...]589.
Em diversas passagens de Sobre a Revolução, por exemplo, Arendt cita o prazer, o júbilo, a
alegria, o gosto, a embriaguez dos revolucionários com as ações públicas, “‘a paixão pela liberdade
pública’”590, a felicidade de participar da coisa pública, das decisões em comum, como demonstrações
da importância dos afetos na política. Uma das epígrafes que abrem o V Capítulo de A Condição
587 ARENDT, H. “A Humanidade em tempos sombrios: pensamentos sobre Lessing”. In: Homens em Tempos
Sombrios, p. 41. 588 ARENDT, H. “A Humanidade em tempos sombrios: pensamentos sobre Lessing”. In: Homens em Tempos
Sombrios, p. 38. 589 ARENDT, H. Sobre a Revolução, pp. 177-178. 590 ARENDT, H. Sobre a Revolução, p. 162.
166
Humana, inspirada em Dante, diz que, se todo ato revela a própria imagem do agente, então “daí resulta
que todo agente, na medida em que age, sente prazer em agir; como tudo o que é, deseja sua própria
existência, e como na ação a existência do agente é de certo modo intensificada, resulta
necessariamente o prazer (...). Assim, nada age, a menos que [ao agir] torne patente seu si-mesmo
latente”591. O amor mundi, portanto, nada mais é do que a transformação desses afetos e desses prazeres
em uma experiência concreta, como, de acordo com a autora em Sobre a Revolução, fizeram os
revolucionários americanos com os seus próprios atos. O seguinte trecho da obra de Arendt é
fundamental para essa compreensão:
A questão é que os americanos sabiam que a liberdade pública consistia em
participar de assuntos públicos e que as atividades ligadas a esses assuntos não
constituíam de maneira alguma um fardo; ao contrário, proporcionavam aos que
se encarregavam delas um sentimento de felicidade que não encontrariam em
nenhum outro lugar. Sabiam muito bem, e John Adams teve coragem suficiente
de repetir várias vezes essa percepção, que as pessoas iam às assembleias de suas
cidades, assim como seus representantes depois iriam às famosas convenções, não
só por obrigação e menos ainda para atender aos próprios interesses, mas acima
de tudo porque gostavam de discutir, de deliberar e de tomar decisões. O que os
unia era ‘o mundo e o interesse público da liberdade’ [...], e o que os movia era ‘a
paixão pela distinção’ que John Adams dizia ser ‘mais essencial e admirável’ do que qualquer outra faculdade humana: ‘Onde quer que se encontrem homens,
mulheres ou crianças, velhos ou jovens, ricos ou pobres, importantes ou humildes,
sábios ou tolos, ignorantes ou instruídos, vê-se que todo indivíduo é fortemente
movido por um desejo de ser visto, ouvido, comentado, aprovado e respeitado
pelas pessoas ao redor e ter conhecimento disso’. À virtude dessa paixão ele dava
o nome de ‘emulação’, ‘desejo de ser melhor do que o outro’, e ao respectivo vício
dava o nome de ‘ambição’, porque esta ‘visa ao poder como meio de distinção’.
E, falando em termos psicológicos, tais são de fato as principais qualidades e
defeitos do homem político. Pois a sede e vontade de poder como tal, sem
qualquer paixão pela distinção, embora seja característica do homem tirânico, já
não é um vício tipicamente político, mas constitui aquela qualidade que tende a
destruir toda a vida política, tanto em seus vícios quanto em suas virtudes. É exatamente porque o tirano não tem nenhum desejo de sobressair nem qualquer
paixão pela distinção que lhe é tão agradável se colocar acima da companhia de
todos os semelhantes; inversamente, é o desejo de sobressair que faz os homens
amarem o mundo, apreciarem a companhia de seus pares e ingressarem na esfera
dos assuntos públicos592.
De modo paralelo, em um breve texto de 1948, intitulado Sólon – escrito que Arendt diz ser
extremamente político –, Jaspers diz que as características de um grande político, estadista, são
marcadas por “suas ações, suas reações, seus afetos e seu caráter exemplar”593, que, em conjunto,
formam um “ethos” necessário para a vida política. Jaspers afirma que Sólon representa não apenas o
591 ARENDT, H. A Condição Humana, p. 219. 592 ARENDT, H. Sobre a Revolução, p. 163. 593 JASPERS, K. Solon, p. 55.
167
espírito político dos “Sete Sábios” da Grécia Antiga, mas o espírito político dos seres humanos em
geral, que consiste em um alegre “dizer sim” ao mundo, em uma confiança consagrada à vita activa.
O importante a ressaltar aqui é que a dedicação à vida pública é “serene” e “alegre” para Jaspers, ou
seja, há também a percepção do prazer envolvido nas figuras desses homens públicos, como ele detecta
em Sólon, apesar das “sombrias profundidades” da existência humana e dos perigos das ações. Sólon
representaria, para o autor alemão, o ethos da liberdade, da dignidade e da nobreza humana, que, por
experiência de amor ao âmbito comum e à humanidade, renuncia até mesmo o seu poder de tirano.
Para finalizar este tópico: o amor à humanidade, do qual fala Arendt por intermédio de Lessing
e Jaspers, resguardado pela amizade e pelo respeito públicos, nada mais é do que o amor à pluralidade,
o próprio amor mundi. Arendt relembra que os gregos davam a esse tipo de amor o nome de
philantropia, “amor do homem”, que, para ela, deve ser entendido de modo afastado dos significados
da “compaixão” ou da “piedade”, pois apenas “se manifesta numa vontade de partilhar o mundo com
os outros homens”594. Nesse sentido, o misantropo seria justamente aquele que não possui nenhum tipo
de afeto próprio à abertura ao mundo e aos outros homens, que não encontra desejo em gozar e partilhar
do espaço público com ninguém, pois não encontra dignidade para tal empreendimento entre os seus
semelhantes. Em uma passagem de Homens em Tempos Sombrios, Arendt salienta que a “filantropia”
grega foi traduzida como “humanitas” para os romanos, passando a ter uma significação ligeiramente
modificada. A principal e exclusiva característica da humanitas, para a autora, seria decorrente do fato
político de que, em Roma, grupos étnicos de origens diferentes poderiam adquirir cidadania e participar
do diálogo culto e público com os romanos de nascimento. Ou seja, a humanitas era mais abrangente
e mais cosmopolita do que a filantropia. No final do texto Crise da Cultura, a autora retoma a
humanitas romana para afirmar que essa palavra se relacionava a uma “integridade da pessoa como
pessoa”595, que se referia a uma pessoa livre de qualquer coerção – seja a coerção externa, seja a
coerção das verdades filosóficas, científicas ou religiosas –, isto é, trata-se de uma pessoa que se
vincula ao mundo por meio da liberdade. “Esse humanismo é o resultado da cultura animi, de uma
atitude que sabe como preservar, admirar e cuidar das coisas do mundo [...] Enquanto humanistas [...]
podemos [nos] elevar em liberdade acima das especialidades que todos aprendemos e exercemos”596.
Ora, diante desses significados, não é de pouco valor a constatação arendtiana no texto Karl Jaspers:
uma laudatio, portanto, de que Jaspers seria o que restou de humanitas na Alemanha nazista. De um
594 ARENDT, H. “A Humanidade em Tempos Sombrios: pensamentos sobre Lessing”. In: Homens em Tempos
Sombrios, p. 36. 595 ARENDT, H. op. cit., p. 279. 596 Ibid, p. 280.
168
só golpe, ela quer dizer que a integridade da personalidade de Jaspers reside na “crença secreta no
homem, na humanitas do gênero humano”597, ou seja, que ele não abandonou o amor à pluralidade, e
que, livre e independente de qualquer coerção, na segurança de si mesmo, algo tão distante da
característica da nossa “ère du soupçon” (“era da suspeita”), Jaspers ainda cultivava um espaço pessoal
de amor ao mundo. Nas palavras dela: no espaço da humanitas, “Jaspers sente-se como que em casa;
é a casa do seu espírito porque é um espaço no sentido literal da palavra [...] O pensamento de Jaspers
é espacial porque se mantém sempre em referência ao mundo e às pessoas que o habitam, e não porque
esteja ligado a qualquer espaço existente”598. Para Arendt, a filosofia e o pensamento jasperianos criam
um espaço no qual a humanitas do homem pode se manifestar em pureza e profundidade, em sua
solidariedade universal. Pois, como diz Arendt em Sobre a Revolução, ao contrário da piedade e do
pathos da compaixão, “falando terminologicamente, a solidariedade é um princípio capaz de inspirar
e guiar a ação”599, uma vez que a solidariedade é desapaixonada e visa o interesse comum, qual seja,
segundo a autora: “‘a grandeza do homem’, ‘a honra da humanidade’ ou a dignidade humana. Pois a
solidariedade, na medida em que participa da razão e, portanto, da generalidade, é capaz de abranger
uma multidão em termos conceituais, não apenas a multidão de uma classe, uma nação ou um povo,
mas até toda humanidade”600. Não custa lembrar, todavia, que essa expressão, humanitas, diz respeito
a uma realidade que não é “um simples efeito da educação”, ou uma reunião de talentos e dons inatos,
mas um livre cultivo que supera o “filisteísmo educado”, por exemplo, bem como os modismos de
quaisquer seitas. Trata-se, antes de tudo, de uma sensibilidade para julgar, para escolher livremente,
para cultivar algo de maneira “pessoal” sem perder a generalidade humana de vista, pois esse sentido
de “humanismo” se liga ao significado de “cultura”, segundo Arendt, desde suas raízes latinas. Arendt
diz: “podemos recordar aquilo que os romanos – o primeiro povo a encarar seriamente a cultura, à
nossa maneira – pensavam dever ser uma pessoa culta: alguém que soubesse como escolher sua
companhia entre homens, entre coisas e entre pensamentos, tanto no presente quanto no passado”.
Assim, para bem compreender o amor mundi em Arendt, talvez devesse ser melhor não o conceituar,
mas apontar pessoas que, segundo ela, amaram o mundo. E Jaspers – por suas escolhas, amizades,
condutas, filosofia e cultura da humanitas – é um exemplo do que possa significar esse amor ao mundo.
597 ARENDT, H. op. cit., p. 94. 598 ARENDT, H. “Karl Jaspers: uma laudatio”. In: Homens em Tempos Sombrios, p. 96. 599 ARENDT, H. Sobre a Revolução, p. 128. 600 ARENDT, H. Sobre a Revolução, p. 129.
169
2.1.2: “Ser mais do que a si mesmo”: coragem, abnegação e a defesa do sensus communis
Em alguns de seus textos de preocupações morais, posteriores ao contato de Arendt com o
burocrata nazista Adolf Eichmann, no julgamento que culminou no enforcamento deste em Jerusalém,
a autora vai defender que na relação de si para si mesmo – uma tal relação que, segundo a teoria dela,
é realizada pelo dois-em-um característico da atividade de pensar e que vai se postar no hiato entre a
consciência moral e a conduta moral de um indivíduo – o que deve prevalecer é outro tipo de
sentimento nesta relação: é justamente o respeito; não é o amor a si mesmo. Não pratico o mal, diz
Arendt, para adiantar a discussão, pois respeito a companhia que sou para mim mesmo e não gostaria
de ser condenado a conviver ao lado de um malfeitor – eu mesmo. O respeito a si mesmo é um modo
de resguardar a pluralidade, ou a “lei do mundo”, até mesmo no processo interno mental. Assim como
posso respeitar, concordar e discordar dos outros homens, é possível também entrar em concórdia ou
discórdia comigo mesmo: o dois-em-um possibilita-nos uma relação plural em que trato a mim mesmo
enquanto outro, orgulhando-me ou desprezando-me pelos meus próprios feitos. Não obstante, pode-se
avançar nisso e dizer que o respeito a mim mesmo resguarda um dos aspectos mundanos dentro de
mim. Caso a orientação ética, que, segundo Arendt, funda-se subjetivamente pela capacidade do
pensamento, fosse suplantada pelo “amor próprio”, todo espaço-entre seria abolido por conta da
própria característica acósmica do amor, como já discutido, e o “eu” seria então ensimesmado e sem
abertura para o mundo. Enfim, é justamente porque o dois-em-um preza pela harmonia e pelo respeito,
e não pelo amor, que o espaço-entre é afirmado no próprio interior do self; é este espaço que me une e
que também me separa de mim mesmo, bipartindo minha identidade.
Deste modo, tem-se que se a preocupação política se constitui pelo amor ao mundo, a
preocupação moral, por sua vez, constitui-se primariamente pelo respeito a uma concordância consigo
mesmo, pois, diz Arendt: “não é uma questão de humildade, mas de dignidade humana e até de orgulho
humano. O padrão não é nem o amor por algum próximo, nem o amor por si próprio, mas o respeito
por si mesmo”601. Todavia, pretendo discutir a partir deste tópico até o fim da II Parte desta tese que
essas definições não implicam total contrariedade entre o político e o ético nas reflexões de Arendt,
não só porque o dois-em-um do pensamento pressupõe a pluralidade humana, mas sobretudo pela
afirmação da autora de que o “desprendimento de si mesmo” é o critério crucial para a escolha de um
modo de conduta positivo, para além da negação de um modo de conduta aferido pelo critério do
diálogo interno que tenho comigo mesmo a partir do processo do pensamento. Nesse contexto, Arendt
601 ARENDT, H. “Algumas questões de filosofia moral”. In: Responsabilidade e Julgamento, p. 131.
170
sugere que o “desprendimento de si”, no sentido da afirmação de outros e não de mim mesmo, traz
consigo a análise das faculdades da vontade e do juízo. Assim, uma vez inserido nos temas da vida do
espírito, para finalizar, neste tópico da tese pretendo sugerir o caminho dos últimos dois momentos nos
quais se pode relacionar a expressão “amor” à política – e à ética – nas reflexões arendtianas. O
primeiro desses momentos se encontra no escrito sobre “O querer”, no segundo volume de A Vida do
Espírito; e o outro momento, talvez o mais ousado aqui pretendido, enfoca e se localiza em um artigo
intitulado Compreensão e Política, de 1953.
Quando dedica uma parte de seu último livro para dialogar com Agostinho a respeito da
vontade, essa faculdade humana que teria tido seu descobrimento realizado pelos medievais, Arendt
alega que em todo ato da vontade há uma tensão envolvida entre um “eu-quero” e um “não-quero”.
Este conflito, que é permanente na vontade, segundo Arendt, só tem seu fim com a ação; ou seja, só
quando o ego-volitivo cessa de querer, e se põe a agir, que há redenção para esse contraste interno ao
espírito. A dinâmica da faculdade da vontade não é um diálogo harmonioso e silencioso (como o é o
pensamento), mas uma luta constante que precisa chegar a um fim que não se esgota no mero processo
de querer. Ou seja, nenhuma vontade é cessada apenas mentalmente, é preciso que alcance algo
objetivo por meio da própria ação individual, esta que delibera por um lado [velle] ou pelo outro [nolle].
O importante nesse argumento é que Arendt parece concordar com Agostinho no sentido de que essa
solução na ação se dá juntamente com o transformar da vontade em “amor”. Assim, se se relembra que
a vontade é uma espécie de “fonte da ação”, o órgão mental da liberdade, fonte por meio da qual
tentamos decidir como desejamos aparecer publicamente, que ela é o árbitro do juízo – que diz “sim”
ou “não” a determinadas coisas ou a determinadas formas de conduta –, o amor, então, enquanto
vontade redimida, torna-se precondição para a ação (o que é diferente de critério). No texto A Revisão
da Tradição em Montesquieu, Arendt define o amor da seguinte maneira: “‘amor’, ou, como diríamos,
a experiência fundamental da qual brotam os princípios da ação”602, e, pode-se completar,
experimentado também pela faculdade da vontade. Por conseguinte, o amor torna-se também
necessário à sustentação de uma ética da aparência, porque mediante a vontade, ou o amor, no caso,
afirmamos não só nosso desejo de permanência do mundo, mas também nossa conduta em função da
permanência das outras pessoas pelos limites intersubjetivos do bom convívio. A pedra de toque da
vontade não é o próprio self, mas a responsabilidade para com os outros seres humanos e para com o
próprio mundo, uma vez que a vontade sempre se redime no agir. A seguinte passagem é crucial: “Não
há maior afirmação de algo ou alguém do que amar este algo ou alguém, isto é, do que dizer: quero
602 ARENDT, H. op. cit. In: A Promessa da Política, pp. 113-114.
171
que sejas – Amo: Volo ut sis”603. Agir e amar significam, a cada instante de acontecimento, um dizer
“sim” por parte da vontade em relação ao mundo (mesmo podendo dizer “não”, “não entrarei em ação”)
– é dizer: eu quero afirmar a liberdade e me responsabilizar pelas consequências inerentes a ela e, dessa
maneira, conectar-me aos homens pela ação. O que também pode ser interpretado e descrito como: eu
quero desprender de mim mesmo, transcender o conflito do meu diálogo volitivo interno e solitário,
rumo ao convívio com os outros, por amor a isso, ou seja, por radical gratidão à nossa vida humana.
Essa discussão sobre “depreender de si mesmo” é importante nesse contexto porque há um
mínimo necessário da postura, ou sentimento, da abnegação misturada àquilo que Arendt denominava
por aventura humana no espaço público e por amor mundi. Isto é, o aparecimento e o engajamento dos
homens em público requerem, por meio das ações, uma abertura aos outros e, consequentemente, uma
abertura ao imprevisível, ao contingencial, ao acaso, à fortuna, ao trágico e à grandeza, àquilo que foge
e escapa do domínio do “eu”. Sair do domínio privado, sair de casa em direção ao âmbito comum, em
direção à rua, significa sempre assumir algum tipo de risco. Agir em meio a uma teia de relações,
associar-se aos pares para ações em concerto, é arriscar-se ao desconhecido, ao imprevisível e ao
irreversível, assim, é abrir o próprio caráter pessoal a vicissitudes exteriores que acabam por atravessar
e transformar a subjetividade individual e particular, bem como as consequências e os significados das
ações de cada agente. É devido a isso Arendt dizer que uma das virtudes políticas é a coragem, como
em A Condição Humana: “virtude da coragem como uma das atitudes políticas mais elementares”604,
no sentido básico de que é preciso coragem para enfrentar o mundo, essa virtude é a ponte para transpor
o abismo entre o lar e o público. Ou melhor, é preciso ser corajoso para desprender de si mesmo e se
enveredar em uma aventura pública que, a princípio, cobra abnegação e não possui resultados
calculáveis nem prescientes.
Contudo, vale muito ponderar, não é que seja preciso ser um mártir ou um guerreiro grego para
se agir politicamente – por mais que a política exija um sacrifício do “eu”, não se trata do sacrifício do
mártir; e, por mais que a política exija coragem, não se trata de uma coragem exclusiva de grandes atos
heroicos. Em termos mais técnicos, a ação política em Arendt não pode ser reduzida ao aspecto
agonístico, combatente, como se agir fosse simplesmente guerrear ou apenas procurar pelos grandes
feitos humanos que se tornariam imortais à luz dos espectadores. Contraponho-me, nesse aspecto, às
sugestões de leituras críticas realizadas por Dana Villa e Mary McCarthy, por exemplo, que questionam
a proficuidade do significado de ação política em Arendt. Sobre isso, Dana Villa indaga se Arendt não
603 ARENDT, H. A Vida do Espírito, 368. 604 ARENDT, H. A Condição Humana, p. 42.
172
reduziria a ação política a uma performance estética com fim em si mesma605, ou seja, com o único
objetivo de revelar o agente ao público, este que seria capaz de conferir imortalidade de memória
àquele. Em um debate no Canadá, Mary McCarthy, por sua vez, interroga à própria Arendt o seguinte:
“Parece-me que [...] a única coisa que resta a fazer para o homem político é o que os gregos fizeram:
guerrear! Mas isto não pode estar certo!”606. Ora, essas perspectivas diminuem o alcance da ação
política na filosofia de Arendt em duas pontas extremas e distintas. De um lado, fazem vistas grossas
aos aspectos institucionais e constitucionais vinculados às ações humanas, segundo a autora discute
principalmente em Sobre a Revolução, no sentido de o poder humano encontrar guarita em instituições
e leis constituídas pelos próprios seres humanos. De outro lado, que mais interessa nesse momento,
tais críticas não abrem espaço para a importância das ações cotidianas, do indivíduo comum, do
cidadão que não é político profissional nem membro público oficial, nem guerreiro, no sentido de que
obliteram o fato de que as ações e os discursos constituem narrativamente a história pessoal de cada
uma das pessoas existentes no mundo. Todas as identidades pessoais são adquiridas no interior de uma
teia de multiplicidade e diversidade, na qual há o autossacrifício de abandonar qualquer primazia de
interesses próprios e privados. É nesse contexto que a virtude da coragem ganha sentido, pois,
paradoxalmente, singularizamo-nos no desprendimento e no abandono de nós mesmos, e, assim, a
coragem se torna uma capacidade de todos os homens livres, sejam eles heroicos ou covardes, porque,
na perspectiva arendtiana, ser corajoso é simplesmente atualizar e experimentar a própria liberdade
política. As seguintes passagens de A Condição Humana e de Que é Liberdade?, respectivamente, são
muito precisas e importantes para evitar qualquer má compreensão em relação a isso:
O herói desvelado pela história não precisa ter qualidades heroicas; originalmente,
isto é, em Homero, a palavra ‘herói’ não era mais que um nome dado a qualquer
homem livre que houvesse participado da aventura troiana e do qual se podia
contar uma história. A conotação de coragem, que hoje reconhecemos ser uma
qualidade indispensável a um herói, já está, de fato, presente na disposição para
agir e falar, para inserir-se no mundo e começar uma estória própria. E essa
coragem não está necessariamente, nem principalmente, associada à disposição
para arcar com as consequências; a coragem e mesmo a audácia já estão presentes
no ato de alguém que abandona seu esconderijo privado para mostrar quem é, desvelando-se e exibindo-se a si próprio. A dimensão dessa coragem original,
sem a qual a ação, o discurso e, portanto, segundo os gregos, a liberdade seriam
impossíveis, não é menos se o ‘herói’ for um covarde – pode ser até maior607.
Contudo, do mesmo modo como acreditamos, a despeito de todas as teorias e
‘ismos’, que dizer que ‘a liberdade é a raison d’être da política’ não passa de um
605 VILLA, D. Beyond Good and Evil: Arendt, Nietzsche and the Aestheticization of Political Action. In: Political
Theory. 606 MCARTHY, M. “Sobre Hannah Arendt”. In: Revista Inquietude, p. 138. 607 ARENDT, H. A Condição Humana, p. 233.
173
truísmo, sustentamos também, como algo evidente por si mesmo – a despeito de
nossa aparente exclusiva preocupação com a vida –, que a coragem é uma das
virtudes políticas cardeais, embora – se tudo fosse uma questão de coerência, o
que não é o caso – devêssemos ser os primeiros a condenar a coragem como tolo
e perverso menosprezo pela vida e seus interesses, isto é, o chamado ‘bem
supremo’. Coragem é uma bela palavra, e não tenho em mente aqui o arrojo da aventura, que de bom grado arrisca a vida para ser tão total e intensamente vivo
como somente se pode ser face ao perigo e à morte. A temeridade não diz menos
respeito à vida do que a covardia. A coragem, que ainda acreditamos ser
indispensável para as ações políticas, e que Churchill chamou certa vez de ‘a
primeira das qualidades humanas, pois é aquela que garante todas as outras’, não
recompensa nosso senso individual de vitalidade, mas nos é demandada pela
própria natureza do círculo público [...] É preciso coragem até mesmo para deixar
a segurança protetora de nossas quatro paredes e adentrar o âmbito político, não
devido aos perigos específicos que possam estar à nossa espreita, mas por termos
chegado a um domínio onde a preocupação para com a vida perdeu sua validade.
A coragem libera os homens de sua preocupação com a vida para a liberdade do
mundo. A coragem é indispensável porque, em política, não a vida, mas sim o mundo está em jogo608.
Ao recorrer a Jaspers, algumas passagens de Psicologia das Visões de Mundo podem ajudar a
interpretar Arendt nesse contexto. Jaspers afirma, por exemplo, que a atitude entusiástica dos homens
– entendida como amor – gera uma autoentrega ou uma autorrenúncia, por parte do indivíduo que ama,
que sempre se conecta ao agir humano. Nesse tipo de atitude, para ele, “o sacrifício da própria
individualidade [...] chega a ser natural”609. Contudo, segundo o autor alemão, esse tipo de autoentrega
não pode representar a negação do mundo nem o abandono do processo ativo, pois deve ser
diferenciada das atitudes do “santo”, do “artista”, do “guerreiro”, do “niilista” e da “autoconsciência
da boa vontade”. Em termos mais detalhados, o santo sacrifica a si mesmo em nome de algo que se
encontra para além do nosso mundo, em nome de estados superiores de consciência que negam o agir
humano – nem o amor em Jaspers nem o amor mundi em Arendt se ligam a esse caso. O artista sacrifica
a si mesmo na busca de um “eu” que jamais toma alguma forma concreta de expressão, trata-se sempre
de uma performance que também não apreende completamente o significado da atitude entusiástica
nem do amor mundi. O guerreiro também não é o modelo exemplar da coragem da autorrenúncia para
Arendt, como já dito, nem para Jaspers, pois o guerreiro coloca em risco sua vida conscientemente,
enquanto que na vida rotineira esse risco não é assumido na mesma proporção. O abandono de si do
niilista gera um abandono do mundo e do sentido do próprio amor, portanto, é um tipo que não se liga
à coragem do agir por amor ao mundo em Arendt, ou, como diz Jaspers, “o puro niilismo não é
608 ARENDT, H. “Que é Liberdade”. In: Entre o Passado e o Futuro, p. 203. 609 JASPERS, K. op. cit., p. 187.
174
entusiástico[amoroso], senão desesperado”610. E, por fim, o sacrifício de si do homem de boa vontade
– que age seja por dever moral seja por caridade aos outros – é uma coragem ligada a formalidades ou,
segundo Arendt, a uma ação que não teria valor político por não se tornar personalizada, por não se
ambientar no mundo das aparências no qual vivemos. Em relação a esse último caso, é importante
dizer que o “desprendimento de si”, intrínseco ao agir político, para Arendt, não pode ser confundido
com “bondade”, “boa ação”, ou entrega total ao outro, doação de si à alteridade. Não se trata da defesa
da alteridade, mas da antecedência da pluralidade em relação à subjetividade de um “eu”. Isto é, um
“eu” se forma, ganha feição e história pessoais, somente na relação plural com os outros seres humanos
– o que, em outras palavras, quer dizer que um “eu” se forma não por meio de si mesmo, mas por meio
da interação narrativa de um emaranhado histórico que escapa à função do autor, pois ninguém possui
autoria sobre a própria vida. Nesse sentido, o amor mundi se encontra ligado à coragem de afirmar esse
aspecto da vida humana que é denominado, por Arendt, de vida política. Praticamente no mesmo tom,
Jaspers afirmava que “o paradoxo da entrega entusiástica é que, nesta entrega, o homem, ao mesmo
tempo, chega a ser sempre, pela primeira vez, um ‘si mesmo”’, ou seja, um “eu”611. Em versos poéticos,
Jaspers diz o seguinte: “A vida se estremece diante da morte, assim se estremece o coração diante do
amor, como se estivesse ameaçado pela morte, pois onde o amor desperta, morre o eu, o déspota
obscuro [...] E como não pode o eu morrer e fazer-te, sobre a terra obscura, serás um triste hóspede”612.
Pela linguagem poética empregada por Jaspers, percebe-se que o “eu”, chamado de “déspota obscuro”,
não possui controle nem segurança de si mesmo, sendo apenas um hóspede de si na medida em que
está ativo no amor. Em seu texto sobre Sólon, Jaspers retoma essa característica da superação de si
mesmo, vinculada ao amor, e diz que essa experiência afetiva cria um modo de vida não privado, mas
um modo de vida preenchido “de natural sentido coletivo. O seu ethos o faz superar a si mesmo na
renúncia do poder que, como tirano, ele tinha nas mãos”613.
Com bases nessas discussões, é possível entender melhor uma passagem um tanto enigmática
de A Condição Humana, na qual Arendt afirma, por meio do exemplo de Jesus Cristo, que as
denominadas "boas ações” humanas não devem ser tornadas públicas nem sequer testemunhadas pelo
próprio benfeitor, a preço de perderem a sua característica ao serem expostas tanto aos outros quanto
a si mesmo. “Pois é claro que, no instante em que uma boa obra se torna pública e conhecida, perde o
610 JASPERS, K. Psicología de las concepciones del mundo, p. 139. 611 Ibid., p.140. 612 Ibid., p. 141. 613 JASPERS, K. Solon, p. 63.
175
seu caráter específico de bondade, de não ter sido feita por outro motivo além do amor à bondade”614.
É isso que Jesus Cristo, o maior amante e agente da bondade, extremamente cônscio da característica
não pública desse amor à bondade, afirma no Sermão da Montanha: “Guardai-vos de fazer a vossa
esmola diante dos homens, para serdes vistos por eles [...] Quando, pois, deres esmola, não faças tocar
trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas [...] Mas, quando tu deres esmola, não saiba a tua mão
esquerda o que faz a tua direita, para que a tua esmola seja dada ocultamente”615. Arendt se vale dessas
mesmas passagens citadas para dizer que o amor à bondade se opõe ao domínio público, pois a pessoa
que ama a bondade não pode aparecer e ser visto, deve viver privado de luz pública, deve encontrar
esconderijo diante dos outros e até de si mesmo, em função da sua atividade. “[...] As boas ações não
podem ser companhias para ninguém; devem ser esquecidas no instante em que são praticadas, porque
até a memória delas destruiria sua ‘bondade’”616. Em termos hiperbólicos, isto quer dizer que a boa
ação não pode ser sequer pensada, ou seja, para fazer o bem não podemos pensar no que fazemos, pois
a atividade de pensar gera a companhia de mim comigo mesmo e, dessa forma, eu seria testemunha
dos meus bons atos. Além de Cristo, Arendt cita um trecho de Nietzsche para expor esse paradoxo do
amor à bondade, que me interessa aqui por se opor frontalmente às características do amor ao mundo.
Nietzsche diz, como num eco tardio das palavras do Nazareno, o seguinte:
Há eventos de natureza tão delicada, que faríamos bem em soterrá-los e torná-los
irreconhecíveis através de uma grosseria; existem atos de amor e extravagante grandeza, após os quais é aconselhável tomar de um bastão e surrar a testemunha,
para lhe turvar a lembrança. Alguns conseguem maltratar e turvar a própria
memória, para vingar-se ao menos desse cúmplice – o pudor é criativo. Não são
as coisas mais ruins aquelas de que mais nos envergonhamos [...] Posso imaginar
que um homem, tendo algo precioso e frágil a esconder, rolasse pela vida, tosco e
redondo, como um velho tonel de vinho fortemente guarnecido617.
A autoentrega do amante do mundo é diferente da autoentrega do amante da bondade. Mas isso
não quer dizer que, nos termos de Arendt, ética e política estão sempre em conflito. O que Arendt
entende por questões morais não se equivale ao ato de fazer “boas obras” e, mais do que isso, o
desprendimento de si mesmo ligado à faculdade da vontade ganha uma dimensão de auto-constituição
pessoal tanto política quanto ética em algumas passagens das obras arendtianas de maturidade, no
sentido de se relacionar não só às ações humanas, mas também ao potencial caráter dos homens. Afinal,
614 ARENDT, H. A Condição Humana, p. 91. 615 Evangelho segundo Mateus, capítulo 6, versículos 2 e 3. 616 ARENDT, H. A Condição Humana, p. 93. 617 NIETZSCHE, F. apud ARENDT, H. “Algumas questões de filosofia moral”. In: Responsabilidade e Julgamento,
p. 190.
176
diz a autora, “a volição é a capacidade interna pela qual os homens decidem sempre quem eles vão ser,
sob que forma desejam se mostrar ao mundo das aparências. Em outras palavras, é a vontade, cujo
tema é sempre um projeto, e não um objeto, que, em certo sentido, cria a pessoa que pode ser reprovada
ou elogiada”618. Ao menos duas características da faculdade humana da vontade são cruciais para a
autora: a vontade é o órgão espiritual da espontaneidade humana, da capacidade de dar início a alguma
coisa nova; e a vontade se liga à deliberação livre, às livres escolhas. Em ambos os casos, a vontade
está conectada, de algum modo, à liberdade dos homens. E me parece claro que, quando Arendt
trabalha o “querer” em A Vida do Espírito, o que está em jogo não é apenas uma liberdade metafísica
e interiorizada vinculada à vontade, mas também uma liberdade que se liga ao agir político humano.
É só por isso que Arendt pode inferir que a vontade é a atividade mental correspondente à ação, pois é
justamente a partir dos atributos dela que os homens possuem espontaneidade espiritual e poder de
livre escolha, isto é, a vontade reafirma as capacidades da deliberação individual e da renovação por
meio de um ato inicial. Trata-se de uma precondição para o amor mundi em dois aspectos distintos e
relacionados: político e moral. Ela diz: “Nesse sentido, o mundo seria dilectores mundi. Ou seja, o
amor do mundo constitui o mundo para mim, [a minha vontade determina] a forma como eu me ajusto
no mundo. Assim, das minhas afirmações e negações dependerá a quem e a que eu pertenço”619. Ou
seja, há sempre uma personalidade, uma singularidade, passível de caráter público, subjacente na
volição de cada ato e fala pelos quais aparecemos no mundo. A vontade, diz Arendt, sempre mira o
porvir, o “ainda não”, é sempre o sustentáculo da promessa humana de responder por si mesmo no
amanhã. Não custa lembrar que o ato da fundação revolucionário, tal como Arendt estuda, coincide
com o olhar para o futuro, com o olhar preservador, como que uma “memória da vontade” de um
espírito fundante de querer manter a liberdade enquanto um fato no espaço público. Enfim, a volição
é capaz de conservar o quem aparece, decidir com que forma o quem pretende aparecer ao público e
de conferir prosperidade espiritual às fundações políticas humanas. Bethania Assy analisa as relações
entre a capacidade de prometer dos homens e a faculdade da vontade com as seguintes palavras:
A faculdade de querer ‘claramente não [é] possível em solidão. Uma vontade não
atendida (broken-will) é uma vontade exercida em solitude, e não diz respeito aos
outros. Eu prometo e aceito uma promessa necessariamente com os outros;
nenhuma promessa feita apenas a mim mesma implica realmente em
comprometimento’. Quiçá na promessa esteja contido um dos mais significativos
sentidos do amor mundi arendtiano, pois ela é o ‘modo exclusivamente humano
de ordenar o futuro’, sendo uma dimensão indispensável da liberdade
618 ARENDT, H. A Vida do Espírito, p. 162. 619 ARENDT, H. “Basic Moral Propositions”. In: Lectures, 1966. Chicago: University of Chicago, Hannah Arendt’s
Papers, The Manuscript Division, Library of Congress, container 46, p.024560.
177
compartilhada: fornece durabilidade à nossa liberdade política, uma espécie de
estabilidade, da qual se necessita para garantir o futuro. As asseverações e
negações no domínio público, nossas filiações, nossas promessas, nossos atos e
falas, nossa singularidade (uniqueness), permitem que esse órgão mental da
liberdade exprima uma dimensão da ética da responsabilidade pessoal620.
Ora, a teoria existencial jasperiana, tal como aparece nos volumes da obra Philosophie, também
tem nos conceitos de “liberdade” e de “vontade” dois pilares cruciais para a sua própria sustentação.
Jaspers afirma ao longo de toda a sua produção intelectual que a liberdade, assim como a existência,
não pode ser conhecida, não se torna objeto empírico propício à racionalidade humana. Contudo, a
liberdade é real na sua própria atualização, certificamo-nos dela atuando-a, e não refletindo sobre ela.
Isso quer dizer, nos termos de Jaspers, que a liberdade é real existencialmente. Mais do que isso, como
já explanado anteriormente, a existência é pura liberdade, a existência se faz por sua liberdade de
escolhas, de juízos, de decisões diante das mais diversas situações. Fazer isso é existir. Por seu turno,
a liberdade está contida no ato humano de dizer “eu quero”, no sentido do: eu quero tomar minhas
próprias decisões e me responsabilizar pessoal e existencialmente por elas. Para a filosofia de Jaspers,
esse “querer” possui o sentido de “obrigação” (“Ich Muss”), eu quero, eu sou obrigado, obrigo-me a
escolher e afirmo que quero fazer isso por meio da minha própria vontade. Conforme Jaspers: “Nas
duas expressões a existência se certifica do seu ser original na medida em que este difere da realidade
empírica, e ela poderia então dizer ‘eu sou’, atingindo assim o ser que é próprio da liberdade. Todas
essas expressões – eu sou, eu sou obrigado, eu quero, eu escolho – não se referem à liberdade senão
tomadas conjuntamente”621. A existência, para Jaspers, portanto, é afirmar por escolha e obrigação o
seguinte: “eu quero ser”, “eu posso, pois sou obrigado (Ich kann, denn ich muss)”. O autor alemão
continua: “a escolha não existe sem a decisão, a decisão não existe sem a vontade, a vontade não existe
sem a obrigação (müssen), a obrigação não existe sem o ser”622. Contudo, esse “eu quero ser” traz
embutido consigo mesmo o “eu quero que os outros sejam”, do mesmo modo que a vontade em Arendt
afirma a existência do outro para haver amor ao mundo. De todo modo, é por isso que Jaspers insiste
na ideia de que a existência equivale à comunicação, pois afirmar e querer a existência dos outros seres
humanos passa, necessária e inequivocamente, pelo ato de comunicação no nível existencial (entendida
aqui como uma comunicação distinta dos diálogos cotidianos, distinta da comunicação que transmite
saberes entre os homens, por exemplo, mas sim como um abrir-se ao outro existencialmente sem jamais
evitar a sua presença). Somos seres em comunicação, segundo a proposta jasperiana, e isso significa,
620 ASSY, B. Ética, responsabilidade e juízo em Hannah Arendt, p. 135. 621 JASPERS, K. apud. HERSCH, J. Karl Jaspers, p. 69. 622 JASPERS, K. apud. HERSCH, J. Karl Jaspers, p. 69.
178
mais uma vez, que só alcançamos a gravidade existencial daquilo que ultrapassa o mero ser empírico
por meio do contato comunicacional com os outros seres humanos. O que mais interessa aqui é que,
em alguns momentos, como no segundo volume de Philosophie, Jaspers denomina esse tipo de
comunicação de “amor”. O autor diz: “Esta comunicação é amor, mas não um amor cego, indiferente
[...] Esta comunicação é a luta que o ser humano singular trava pela existência, ao mesmo tempo pela
sua e pela do outro”623. Com isso em mente, o paralelo entre os dois autores, Arendt e Jaspers, aparece
e emerge justamente pelos termos e conceitos que ambos tornam centrais em suas respectivas
filosofias. O “amor ao mundo” arendtiano guarda a gratidão e a vontade pelo mundo e pela vida política
dos homens – categorias estas que incluem em seus significados as ações e a comunicação entre os
homens; e o “amor comunicativo” jasperiano guarda a luta e a vontade pela existência humana, a qual
só pode ser concebida no mundo e nas interações entre os homens, mesmo sabendo que essa existência
nunca tomará forma concretizada nem será, por isso, conhecida completamente.
Para finalizar este capítulo, discuto e abordo a faculdade do juízo nos termos arendtianos, pelo
simples motivo de que esta capacidade humana, a meu ver, também se relaciona ao amor mundi pela
via do desprendimento de si mesmo, característica esta que Arendt confirma no seguinte trecho do
texto sobre a crise moderna da cultura em Entre o Passado e o Futuro:
A eficácia do juízo repousa em uma concórdia potencial com outrem, e o processo
pensante que é ativo no julgamento de algo não é, como o processo de pensamento
do raciocínio puro, um diálogo de mim para comigo, porém se acha sempre e
fundamentalmente, mesmo que eu esteja inteiramente só ao tomar minha decisão,
em antecipada comunicação com os outros com quem sei que devo afinal chegar
a algum acordo. O juízo obtém sua validade específica desse acordo potencial (...) Que a capacidade para julgar é uma faculdade especificamente política,
exatamente no sentido denotado por Kant, a saber, a faculdade de ver as coisas
não apenas do próprio ponto de vista, mas na perspectiva de todos aqueles que
porventura estejam presentes (...) a compreensão disso é virtualmente tão antiga
como a experiência política articulada. Os gregos davam a essa faculdade o nome
de phrónesis624.
Nessa passagem, Arendt aglutina algumas das principais características da sua concepção sobre
o juízo. Primeiramente, há um profundo e conhecido diálogo da autora com a terceira crítica kantiana,
ou seja, com a teoria do gosto-estético de Kant, no sentido de que, para ela, um juízo político-ético
(“isto é bom”; “isto é errado”) teria o mesmo modo de operação e de validação que os juízos estéticos
dos homens (“isto é belo” “isto é feio”) possuem, para o autor alemão. Em um segundo plano, há
também um diálogo de Arendt com a prudência, ou a sabedoria prática, tal qual desenvolvida por
623 JASPERS, K. Philosophie II, p. 65. 624 ARENDT, H. op. cit., 274.
179
Aristóteles, no sentido de que qualquer deliberação judicativa nunca é feita em completa solidão. Por
fim, há a convicção arendtiana de que a faculdade de julgar sempre demanda uma pré-comunicação
com os outros seres humanos, e isto significa, ao mesmo tempo, um abandono do egoísmo ou do
diálogo silencioso do pensamento em prol do uso da imaginação. Em outros termos, para julgar, o
homem necessita da companhia potencial e/ou real dos seus pares e, ao tentar contemplá-los por meio
do processo imaginativo denominado “mentalidade alargada”, é preciso desprender de si mesmo.
Tendo isso em vista, não vou trabalhar aqui o cerne do pensamento arendtiano sobre a capacidade
humana de julgar, que se encontra nas Lições sobre a filosofia política de Kant, elaboradas por Arendt
em 1970 em função de um curso ministrado por ela na New School for Social Research; mas, antes,
pinço a discussão sobre essa faculdade humana a partir do artigo intitulado Compreensão e Política.
Em um dos últimos parágrafos de Compreensão e Política, Arendt relembra a velha prece do
rei Salomão que roga a Deus o maior dos dons que qualquer homem poderia ter, qual seja: um “coração
compreensivo”625. Arendt, não só confere sabedoria prática a Salomão por esse pedido, mas traduz o
“coração compreensivo” como sendo a faculdade da imaginação. De fato, não haveria melhor tradução.
Um “coração compreensivo”, muito além do sentimentalismo (que nada tem a ver com expor em
público emoções e sentimentos privados como se fossem virtudes morais), está ligado diretamente à
mentalidade alargada, à amplitude do espírito, ou seja, à capacidade de treinar o pensamento a sair em
visita de outros pontos de vistas que não o seu, à formulação de juízos próprios sem deixar de ter em
conta possíveis juízos alheios. Em resumo, sem a capacidade da imaginação não haveria o juízo
reflexionante, nem em Kant nem em Arendt, pois o processo de “percepção de outras perspectivas” e
o abandono das próprias idiossincrasias dependem do modo funcional do poder imaginativo – de ter
presente espiritualmente algo que está ausente dos sentidos, por exemplo. É ainda mais considerável
que nessa passagem bíblica, em I Reis, a prece de Salomão seja justificada perante Deus para que
houvesse juízo reto do rei sobre seu povo. Assim, ao fazer uma análise da expressão “coração
compreensivo”, sob as lentes conceituais arendtianas, é muito difícil não vincular “coração” a “amor”;
e “compreensivo” à reconciliação com o mundo (reconciliação que, por acaso, em Arendt, possui uma
conotação religiosa, de religar, religare – cujo sentido romano original significa ligação de volta a um
início, consistia em voltar a se vincular ao início da história, à fundação da cidade, à fundação de
Roma). Enfim, pode-se apontar, primeiro, que só se sente em casa no mundo quem o ama, diz Arendt:
“o coração humano é a única coisa no mundo que toma a si o fardo que nos é atribuído pela divina
625 ARENDT, H. op. cit., In: A Dignidade da Política, p. 53.
180
dádiva da ação”626. Pode-se afirmar também que o poder de um coração compreensivo, a rigor, é o de
levar o outro em conta, de reverter perspectivas, de deliberar entre pares, do esforço consciente também
dos homens da revolução, como ela diz em Sobre a Revolução, de lidarem com as perplexidades do
início recorrendo ao “espírito da antiga prudência”, capacidades provindas do juízo humano tal qual,
diz Arendt, “o curso da Revolução Americana conta uma história inesquecível e pode ensinar uma
lição sem igual”627. Ora, o elogio que Arendt presta aos revolucionários americanos se justifica por
eles terem tido, de fato, a capacidade de compartilhar não apenas um ideal, mas um mundo mediante
a faculdade de julgar. Uma célebre frase de Arendt nesse contexto afirma que o “julgamento é uma, se
não a mais importante atividade em que ocorre esse compartilhar-o-mundo”628. E a sustentação desse
compartilhamento do mundo se dá precisamente pela abertura e pelo vínculo da faculdade de julgar
com sentimentos e afetos públicos na obra de Arendt. Ao lado principalmente de Bethania Assy,
defendo que, no modo como Arendt interpreta o julgar, “os afetos comuns protagonizam substancial
contribuição”629, como diz a comentadora, de modo a “conduzir-nos a uma dimensão afetiva comum
[...] como uma espécie de face estético-política de amor mundi”630. Mais especificamente, compreendo
que o solo fértil por onde a capacidade humana de julgamento caminha, denominado por Arendt de
sensus communis, é o que possibilita o cultivo das disposições políticas caracterizadoras do amor ao
mundo, como a amizade, o respeito, a coragem, a abnegação, que foram discutidas até o momento com
bases nos exemplos históricos selecionados por Arendt, como as revoluções, a pólis grega e o
totalitarismo.
É exatamente a partir do aprendizado de uma lição histórica, da força educativa das
exemplaridades, que o juízo humano recebe e provê a sua marca ética distintiva. Em Algumas questões
de filosofia moral, Arendt comenta que os exemplos também constituem sinais de orientação para todo
tipo de pensamento moral e, de certo modo, ajudam na decisão sobre o certo e o errado. Pois, para ela,
é possível julgar e distinguir o certo do errado ao fazermos presente em nosso espírito algum
acontecimento, alguma pessoa, algum fato que se tornaria exemplo para nós mesmos. Tais exemplos
são variados e podem pertencer ao passado remoto, ao presente e talvez nem serem realidade histórica.
Ao contrário de um esquema geral, a exemplaridade nos ofereceria uma diferença qualitativa com a
qual se espelhar e por meio da qual basear nossas ações de conduta. É justamente aqui que a questão
626 ARENDT, H. “Compreensão e Política”. In: A Dignidade da Política, p. 52. 627 ARENDT, H. Sobre a Revolução, p. 273. 628 ARENDT, H. “A Crise na Cultura: sua importância social e política”. In: Entre o Passado e o Futuro, p. 276. 629 ASSY, B. Ética, responsabilidade e juízo em Hannah Arendt, p. 151. 630 ASSY, B. Ética, responsabilidade e juízo em Hannah Arendt, p. 149.
181
sobre a escolha de companhia se faz mais saliente: podemos escolher com quem conviver, ao
pensarmos na nossa própria conduta moral, mirando em exemplos de personalidades, bem como em
exemplos de experiências aprendidas, ocorridas ou imaginadas. Mas é claro que esse tipo de decisão,
pondera Arendt, não possui a validade das proposições cognitivas. Nunca podemos compelir alguém
a concordar com esse tipo de juízo particular – isto é belo, isto é feio, isto é certo, isto é errado –;
apenas podemos cortejar ou pretender o acordo de todos os demais, até porque são juízos que
reivindicam a aprovação dos outros por tê-los levado em consideração pela própria mentalidade
alargada e, por isso, é de se esperar que o julgamento contenha certa validade geral. Segundo Arendt,
esta validade pode se estender a toda comunidade da qual nosso sensus communis nos torna membros.
É a interação com as outras pessoas que faz validar esse tipo de sensus communis, que, por sua vez,
vai garantir comunicabilidade aos juízos formulados na ausência de um padrão universal reconhecido
por todos. Em outras palavras, o sensus communis traz em si a ideia de um sentido comum a todos,
mas que também é particularidade de cada um. Trata-se de algo, portanto, que é ao mesmo tempo
privado e comum, pois é somente através dele que compartilhamos sentimentos comuns, somente
através dele podemos representar e comparar nossos juízos com uma suposta razão coletiva. Em suma,
a subjetividade exposta nos juízos que versam sobre sentimentos em relação ao que agrada ou o que
desagrada moralmente, por exemplo, é compensada por esse senso público que não enfoca somente o
objeto, mas que diz respeito eminentemente aos outros. O sensus communis nos ajusta à pluralidade,
“e não a um consenso coletivo ou a uma decisão política unânime”631, não quer dizer uma inteira
conformidade de juízos e nem uma empatia com todos os outros. Assim, afirma Arendt, “ainda falo
com a minha própria voz e não conto os votos para chegar ao que penso ser certo”632; apenas julgo de
modo não inteiramente subjetivo, uma vez que não levo só a mim mesmo em consideração.
É também na defesa do sensus communis que o amor mundi deixa de ser apenas um conceito
filosófico, pois, além de dizer respeito a todos os indivíduos que pertencem a uma determinada
comunidade, representa a capacidade humana de “comunicar um sentimento” e, assim, torná-lo
público. Em contextos de debate com Kant e Cícero, Arendt toma por empréstimo a expressão latina
sensus communis para designar uma espécie de sexto sentido – para além dos nossos cinco sentidos –
ao mesmo tempo privado e público, que, por isso mesmo, conseguiria tornar comuns sentimentos que
são privados. Ou seja, Arendt se vale do sensus communis para representar a capacidade dos seres
humanos de serem afetados, em suas singularidades e subjetividades, por sentimentos públicos, uma
631 ASSY, B. “Faces privadas em espaços públicos: por uma ética da responsabilidade”. Introdução à edição brasileira
de Responsabilidade e Julgamento, p. 49. 632 ARENDT, H. “Algumas questões de filosofia moral”. In: Responsabilidade e Julgamento, p. 207.
182
vez que, mais importante ainda, tais sentimentos podem ser comunicados e compartilhados. Trata-se,
como diz Bethania Assy, da constituição de uma sensibilidade subjetiva “cuja validade é geral”, pois
é uma sensibilidade cultivada a partir de disposições afetivas comuns e públicas. O importante nesse
contexto é que o “senso extra” que possuímos não é simplesmente uma capacidade cognitiva
determinada, mas deve ser nutrido de modo a nos incutir sociabilidade, “comunalidade” e
comunicabilidade, o que, por sua vez, oferece sentido comum à realidade em que nós vivemos. “Aqui
está um dos elementos mais políticos das apropriações do juízo estético kantiano feitas pela faculdade
de julgar arendtiana: o cultivo sensível dos afetos ou desafetos comuns”633. É como se as
particularidades e os interesses privados, pelos quais se acessa um determinado sentimento, fossem
abandonados em prol da criação de um espaço afetivo intersubjetivo, o qual se tem prazer em
compartilhar. Esse exercício “de se liberar das condições, circunstâncias e interesses meramente
privados é uma das formas mais efetivas de cultivo deste éthos de civilidade”634. Como desenvolve
Bethania Assy:
Essa é uma das razões pelas quais Arendt insiste em nomear a Crítica da
Faculdade do Juízo de a verdadeira obra política e ética de Kant. Sensus
communis é um sentido ‘que torna pública as sensações ou sentimentos’, não
meramente por incidir em um sentimento que pode ser comunicado, mas sim, primeiramente, por garantir uma espécie de concordância e deleite sobre
determinadas sensações, comprazimentos socialmente produzidos por meio do
reconhecimento recíproco entre os sujeitos; e segundo, por se tratar de uma
condição intersubjetiva que atinge graus mais desenvolvidos de interação por
meio da prática. Em suma, a partir desse vocabulário, é possível aludir que
aprendemos a sentir satisfação por aquilo que interessa apenas em sociedade. Tal
qual ‘satisfação adicional’, o sensus communis é retratado como a capacidade de
eleger uma determinada reflexão mental635.
Em um texto de 1947 bastante elogiado por Arendt, A questão da Culpa, Jaspers, ao defender
a necessidade urgente dos alemães de discutir sobre culpabilidades e responsabilidades pessoais
durante o período da Segunda Grande Guerra, diz que uma das características da culpa moral dos
homens se vincula à “ausência de imaginação do coração”636, pois um coração obtuso, por assim dizer,
seria insensível e indiferente à infelicidade dos outros seres humanos e, devido a isso, poderia ser
julgado moralmente. No livro, o autor elenca e distingue quatro tipos de culpa: a culpa criminal; a
culpa política; a culpa moral; e a culpa metafísica. Jaspers faz isso com a intenção de demarcar
diferentes instâncias de julgamento, com suas respectivas causas e consequências, bem como de evitar
633 ASSY, B. Ética, responsabilidade e juízo em Hannah Arendt, p. 166. 634 ASSY, B. Ética, responsabilidade e juízo em Hannah Arendt, p. 169. 635 ASSY, B. Ética, responsabilidade e juízo em Hannah Arendt, p. 166. 636 JASPERS, K. The question of the German Guilt, p. 64.
183
a falácia da “culpa coletiva”, tão recorrente nas desculpas utilizadas no período pós-guerra alemão.
Nesse contexto, Jaspers afirma que a culpa moral representa o fato de que cada testemunha da tragédia
alemã “deve questionar se ela fez, diante das duras condições em que se encontrava, o melhor que
podia”637. Ora, para concluir, interessa destacar que Jaspers está chamando atenção nessa passagem,
assim como Arendt realizou em algumas de suas obras, para a importância de se colocar no lugar dos
outros, de visitar perspectivas – não apenas mentalmente, mas emotivamente também, no sentido de
alargar a imaginação do coração. Um coração compreensivo, como diz Arendt, é um coração
imaginativo, como diz Jaspers. Enfim, há um circuito afetivo indexado à imaginação humana nos dois
autores, que centraliza os modos de sermos capazes de “ser afetados por”. Para Jaspers, portanto, o
indivíduo que não se sente responsabilizado por essa sensibilidade capaz de constituir um mundo de
afetos comum entre os homens, que não se engaja ao senso comum, possui culpa moral por qualquer
desastre que o ambiente público possa vir passar.
No mais, é curioso notar que uma filosofia marcada pelas expressões “fracasso” e “malogro”,
como a de Jaspers, tenha força fundamental no sentimento da esperança humana. Do mesmo modo,
uma filosofia que analisa tempos sombrios e criminosos, como a de Arendt, também é marcada pelo
mesmo sentimento esperançoso. Como diz Jaspers em uma carta a Arendt: “não podemos viver só com
negações”, insistindo que algo novo deve ser esperado e construído sempre. E essa esperança é sempre
mais forte do que a descrença da destruição.
637 JASPERS, K. The question of the German Guilt, p. 64.
184
PARTE II: O EXEMPLO MORAL
“alguém que realiza a existência humana exemplarmente”
185
CAPÍTULO 3: O PENSAMENTO “VICÁRIO” DE/EM HANNAH ARENDT: A EXEMPLARIDADE
MORAL DE KARL JASPERS COMO AÇÃO SUBVERSIVA E COMO “MENTALIDADE ALARGADA”
Nas anotações de abertura ao seminário Contemporary Issues, oferecido por Hannah Arendt
em 1955 na Universidade de Berkeley, a professora afirma que o objetivo geral do curso seria
desenvolver a imaginação política dos seus alunos (“The aim of the course is to develop your political
imagination”638). Para realizar isso, Arendt expõe um método – prática incomum em seus escritos em
geral ou mesmo em suas intervenções orais. Ela diz que, para treinar a imaginação a compreender os
eventos de seu tempo, seria preciso cobrir e pensar “na biografia de um homem singular nascido,
digamos, em 1890”639. Ou seja, tratava-se do exercício de se colocar no lugar de um indivíduo que veio
ao mundo na virada do século XIX para o século XX. Assim, tanto ela quanto seus alunos assumiriam
a posição daquele que não apenas assistiu a todas as transformações políticas acontecidas no século
passado, mas que, mais do que isso, teve seu destino alterado por estas experiências na medida em que
se encontrou envolvido em duas guerras mundiais, que participou ativamente de revoluções científicas
e sociais, além de ter, por fim, presenciado e sucumbido moralmente diante da enorme maquinaria de
campos concentracionários de mortes em massa. A intenção com essa proposta, segundo a própria
autora, seria capturar as experiências a partir do prisma do efeito que causaram sobre as pessoas da
época, o que, de um só golpe, poderia oferecer significados em múltiplas perspectivas aos fatos
transcorridos e, não menos importante, desobrigaria Arendt de adotar apenas teorias políticas para
explicar os fenômenos que se encontram na gênese dos problemas políticos e morais do século XX.
Contudo, esse gesto de evitar a perspectiva exclusiva dos “pensadores profissionais”, dos filósofos,
não quer dizer tampouco um enfoque de Arendt aos denominados “políticos profissionais”, àqueles
que foram peças principais em decisões estatais ou participantes internos ao jogo político. Certamente,
por meio disso, Arendt queria dizer não menos que o seguinte: é produtivo avaliar as circunstâncias
políticas contemporâneas através “daqueles que não estavam no comando” (“those who were not in
charge”640), através daqueles que são os únicos capazes de oferecer um diagnóstico sobre os fatos,
pois, nesse viés, representam a parte mais afetada de um corpo político. Para me utilizar da metáfora
638 ARENDT, H. The Hannah Arendt Papers at the Library of Congress. Courses, University of California, Berkeley,
Calif, "Contemporary Issues," undergraduate seminar, 1955 (Series: Subject File, 1949-1975, n.d.). Image 2 of 12. 639 ARENDT, H. The Hannah Arendt Papers at the Library of Congress. Courses, University of California, Berkeley,
Calif, "Contemporary Issues," undergraduate seminar, 1955 (Series: Subject File, 1949-1975, n.d.). Image 2 of 12. 640 ARENDT, H. The Hannah Arendt Papers at the Library of Congress. Courses - New School for Social Research,
New York, N.Y.- "Political Experiences in the Twentieth Century," lectures - 1968 (Series: Subject File, 1949-1975,
n.d.), Image 3 of 59.
186
da autora, fazer isso era tomar a postura de inquirir os eventos por meio daqueles que se viram “sem
guarda-chuvas” e molhados “em meio à tempestade” dos acontecimentos. Talvez seja por isso que a
autora nunca tenha oferecido grande centralidade a nomes como Hitler, Stalin ou mesmo Lenin em
seus escritos políticos, mas tenha preferido discorrer sobre Rosa Luxemburgo e Adolf Eichmann, por
exemplo, que são figuras mais secundárias e marginais em relação àqueles citados anteriormente. De
qualquer modo, Arendt repetiria a tônica desse curso em pelo menos outras duas ocasiões posteriores
à década de 1950: na Universidade de Cornell, em 1965, e na New School for Social Research, em
1968, anos nos quais ministrou um mesmo seminário, homônimo, intitulado Political Experiences in
the Twentieth Century. A propósito, tais seminários foram presenciados por alguns dos então futuros
estudiosos do legado intelectual de Arendt, como Jerome Kohn, Elisabeth Young-Bruehl e o brasileiro
Celso Lafer. Por meio dos depoimentos desses intérpretes, além dos próprios rascunhos das aulas, é
possível perceber que nesses contextos era uma regularidade a súplica arendtiana para que seus alunos
esquecessem todas as teorias (“No theories, forget all theories”641), justamente porque a autora
desejava confrontar as próprias experiências passadas “para reviver esse período de modo vicário”642,
ou seja, fazendo as vezes daquele personagem que vivenciou e foi afetado de uma forma ou de outra
por todos esses eventos e fatos de seu tempo. Alguns trechos das anotações de Arendt resumem os
fenômenos políticos que incomodavam as suas reflexões:
O homem nascido em 1890 foi à I Guerra Mundial e se tornou o Soldado
Desconhecido. Ele saiu disso com a intenção de mudar o mundo, de fazer uma
revolução, pela esquerda ou pela direita, e ele se tornou um revolucionário
profissional. Isso o levou a uma forma totalitária de governo, seja do tipo Nazi ou
do bolchevique, e ele aprendeu tudo sobre campos de concentração. Mas ele
também estava atraído por isso. Ainda, vamos supor, o horror dos campos de
concentração superou todo o restante, então ele foi à II Guerra Mundial, a qual
não era menos destituída de sentido para ele quanto a I Guerra643.
É interessante constatar que Arendt tenha assumido, nos cursos, um ponto de partida histórico
anterior à sua própria geração. Ela comenta aos alunos: “tais experiências não são nossas; talvez em
641 ARENDT, H. The Hannah Arendt Papers at the Library of Congress. Courses - New School for Social Research,
New York, N.Y.- "Political Experiences in the Twentieth Century," lectures - 1968 (Series: Subject File, 1949-1975,
n.d.), Image 2 of 59. Celso Lafer comenta sobre essa preocupação de Arendt em alguns textos nos quais rememora o
tempo em que foi aluno da pensadora judia. 642 ARENDT, H. The Hannah Arendt Papers at the Library of Congress. Courses - New School for Social Research,
New York, N.Y.- "Political Experiences in the Twentieth Century," lectures - 1968 (Series: Subject File, 1949-1975,
n.d.), Image 2 of 59. 643 The Hannah Arendt Papers at the Library of Congress. Courses---University of California, Berkeley, Calif,
"Contemporary Issues," undergraduate seminar, 1955 (Series: Subject File, 1949-1975, n.d.). Image 2 of 12.
187
parte minhas [...]”644. Isso significa que ela mesma não vivenciou todos os eventos políticos abarcados
pelas aulas, e que, dessa forma, ela mesma treinaria sua imaginação a visitar perspectivas na tentativa
de compreender as ações políticas e as responsabilidades morais e pessoais de vários de seus coetâneos.
Pode-se dizer: não se trata de apreender os sentimentos pessoais desses indivíduos, mas de apreender
imagens de como o mundo era. “O ponto não é: como você se sentiu, ou como a outra pessoa se sentiu,
mas como aparece o mundo”645. Young-Bruehl, em sua biografia sobre Arendt, comenta que o
personagem escolhido para inspirar tais cursos seria o último marido e companheiro de reflexões da
pensadora judia, Heinrich Blücher. Mas bem poderia se referir também a nomes como Jaspers ou
Heidegger, nascidos em datas muito próximas a 1890. Contudo, a meu ver, seria diminuir o alcance da
metodologia arendtiana vincular essa biografia imaginária apenas a uma pessoa, a um perfil específico,
a um suposto espectador ou a apenas um participante contextual conhecido da autora. Arendt se
interessava pelos anônimos também. Talvez por isso a obra de Willian Faulkner, Uma Fábula, era
parte da bibliografia desses cursos arendtianos e ainda seria citada em A Condição Humana: “O livro
[...] supera em discernimento e clareza quase toda a literatura sobre a Primeira Guerra Mundial pelo
fato de que o seu herói é o Soldado Desconhecido”646. Parece-me menos incorreto, portanto, apontar
que essa figura imaginária é multifacetada, que responde a inúmeros chamados, que comporta os mais
variados contextos, olhares, ouvidos, vozes e lugares de vidas possíveis, nascidas no final do século
XIX no continente europeu e que testemunharam presencialmente os fatos em meio a situações
diversas.
Num primeiro momento deste capítulo do trabalho defendo que esse modo operante do
pensamento arendtiano, de pensar se colocando na perspectiva do outro, da “vicarieadade”, não é uma
exclusividade pontual desses cursos ministrados por ela, estando presente em praticamente toda a
produção intelectual da autora e tornando-se um modo de pensamento que é político em si mesmo.
Nesse sentido, no interior dessa discussão, chamo atenção para dois critérios fundamentais
constitutivos do modo de reflexão da autora: a mentalidade alargada e a exemplaridade. Nos outros
tópicos deste capítulo apresento, então, como a figura pessoal de Karl Jaspers é um exemplo para as
concepções de pensamento subversivo moral e de mentalidade alargada na teoria política arendtiana.
644 ARENDT, H. The Hannah Arendt Papers at the Library of Congress. Courses - New School for Social Research,
New York, N.Y.- "Political Experiences in the Twentieth Century," lectures - 1968 (Series: Subject File, 1949-1975,
n.d.), Image 3 of 59. 645 The Hannah Arendt Papers at the Library of Congress. Courses---University of California, Berkeley, Calif,
"Contemporary Issues," undergraduate seminar, 1955 (Series: Subject File, 1949-1975, n.d.). Image 3 of 12. 646 ARENDT, H. op. cit., p. 226.
188
3.1: Treinar o pensamento a sair em visita do “quem” político
O aspecto vicário do pensamento de Arendt pode ser reconhecido explicitamente desde a sua
narrativa biográfica sobre Rahel Varnhagen, no livro sobre “a vida de uma judia alemã na época do
romantismo”647, que começou a ser escrito no período de juventude intelectual da autora, no início dos
anos de 1930, logo após Arendt ter terminado sua tese de doutorado sobre Agostinho. Nas primeiras
páginas dessa obra, Arendt diz que deseja contar a história de Rahel – não expondo uma suposta
personalidade psicológica – do modo como a própria biografada poderia ter contado. “Narrar a história
da vida de Rahel como ela própria poderia ter feito”648. Trata-se de um empreendimento bastante
ousado, por sinal, vale dizer. Contudo, a proposta revela o modo arendtiano de se colocar no lugar do
outro para reconstituir não só fatos e eventos históricos, mas também pensamentos e narrativas
particulares envolvidas no tecido de uma realidade histórica singular, como, por exemplo, a experiência
de uma judia em tentar negar desesperadamente sua origem judaica e assimilar-se socialmente no
contexto alemão europeu dos séculos XVIII e XIX. Não é por acaso, portanto, que alguns intérpretes
dessa obra específica arendtiana, como Seyla Benhabib, dizem, com razão, haver um reconhecimento
de si mesma por parte de Arendt na figura de Rahel. Afinal, as questões da identidade judaica, bem
como a sombra da situação do pária em meio ao âmbito cultural alemão, também formaram os dramas
existenciais da vida de Arendt649. Interessa notar aqui que a figura de Rahel é um exemplo para Arendt
por, justamente, auxiliar a pensadora a treinar sua própria imaginação a visitar problemas sociais de
uma época que se comparam e espelham os seus próprios problemas históricos. Assim, por meio de
uma biografia, Arendt não deixa de fazer conscientemente teoria política, pois acaba por iluminar uma
realidade, qual seja: um modo de vida individual que atravessa e que é atravessado por uma situação
política maior. Mais do que isso, Arendt põe em prática o exercício de que, de alguma forma, ao se
colocar no lugar do outro, nós também somos atravessados subjetivamente, constituídos em nossa
subjetividade. Com esse exercício, Arendt não se separa totalmente da biografada, não a toma como
um objeto de estudo, simplesmente – ela faz as vezes daquela personagem. Assim, o pensamento
vicário não é apenas um método de reflexão, mas também um exercício político, uma vez que se narra
sobre alguém ao mesmo tempo em que se participa da constituição da personalidade e da subjetividade
do próprio narrador, na tarefa de compreensão e de internalização mental de perspectivas distintas. Ou
647 Subtítulo do livro. 648 ARENDT, H. Rahel Varnhagen: a vida de uma judia alemã na época do romantismo, p. 11. 649 Cf; por exemplo, ADVERSE, H. Arendt e a crítica ao romantismo na biografia de Rahel Varnhagen. In:
Argumentos, ano 5, n. 9 - Fortaleza, jan. /jun. 2013
189
seja, narrar a estória de alguém passa a ser um exercício que lida com dois “quem”: o do narrador e o
do personagem.
Ora, na mesma esteira desse tipo de exposição biográfica se encontram, pelo menos, duas
outras obras da maturidade de Arendt. Num primeiro plano, Homens em Tempos Sombrios, que reúne
curtas biografias e pequenos textos de homenagem que a pensadora escreveu “ao longo de um lapso
de tempo de doze anos, ao sabor da ocasião e da oportunidade”650, a respeito de nomes que ela julgava
importantes para a compreensão do seu próprio tempo histórico; e, em menor medida, num segundo
plano, Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal, um livro-reportagem que mescla
a narrativa sobre a vida, o julgamento e a morte de um dos maiores burocratas nazistas e sobre a
consequente participação dele no extermínio dos judeus durante a Segunda Guerra. Diante disso, ao
invés de trabalhar os pormenores de cada um desses livros, interessa-me apenas apontar o método
reflexivo de Arendt como um denominador que permanece comum à abordagem dessas obras – algo
inclusive que já se despontava em artigos biográficos que a autora publicava na década de 1940, como
os intitulados Soren Kierkegaard; Agostinho e o protestantismo; Franz Kafka: uma reavaliação;
Heidegger, a raposa; entre outros.
Em Homens em Tempos Sombrios, portanto, Arendt desenha perfis que acabam por nos
oferecer uma paisagem com significados de uma época. Tais perfis são como pontos de orientação em
um mapa que forma o terreno da compreensão política arendtiana sobre o século XX. No prefácio da
obra, a autora expressa que sua coletânea de ensaios “ocupa-se principalmente de pessoas – como
viveram as suas vidas, como andaram pelo mundo e de que modo foram afetadas pelo tempo histórico
[...] [eles] compartilham a época em que suas vidas se situaram, o mundo da primeira metade do século
XX, com suas catástrofes políticas [...]”651. A ideia de Arendt é não só oferecer um rascunho com a
feição de um tempo histórico por meio dessas personalidades, mas apresentá-las como perfis
subversivos dos “tempos sombrios” que viviam, como modelos exemplares de luz em uma época de
colapsos morais e políticos. O livro é como um caleidoscópio que combina belas (kalos) imagens
(eidos) para observar (skopeo) diferentes personalidades. Não é de se estranhar que Jaspers possua dois
artigos dedicados a ele nessa obra. Seja na literatura, na poesia, na filosofia, nas ciências, na religião,
na política, na crítica literária, Arendt seleciona homens e mulheres que marcaram, para ela, a sua
contemporaneidade. Contudo, os modelos exemplares de Arendt, que permeiam o pensamento dela
para além das biografias e dos textos biográficos, não são escolhidos apenas por critérios positivos à
650 ARENDT, H. Homens em Tempos Sombrios, p. 07. 651 ARENDT, H. Homens em Tempos Sombrios, p. 07.
190
vida dela. Isto é, existem os contraexemplos também. Adolf Eichmann é um desses tipos, uma vez que
Arendt o toma como o perfil exemplar para se pensar a “banalidade do mal”, ou seja, para se pensar
sobre a maldade irrefletida, sobre os potenciais perigos morais da ausência de pensamento entre os
seres humanos. No livro Eichmann em Jerusalém, a título de curiosidade, Eichmann é apresentado, de
uma perspectiva conceitual-filosófica e não psicológica, como o contraexemplo do pensamento
vicário, pois, segundo Arendt, o burocrata nazista seria incapaz “de pensar do ponto de vista de outra
pessoa”652. Nesse sentido, Arendt recupera inúmeros eventos da vida do acusado para sustentar a tese
de que ele, em nenhum momento, sentiu-se responsabilizado por tomar qualquer decisão baseado num
pensamento autônomo. Em resumo, considerando essa discussão, o que pretendo destacar é que os
conceitos filosóficos de Arendt, normalmente, ganham vida por meio de exemplaridades, isto é, fatos
históricos ou personalidades exemplares, para se erigir, a partir deles, significados gerais. A pólis grega
é um dos exemplos para se pensar o fenômeno político em A Condição Humana. As revoluções
francesa e americana são casos exemplares para se refletir sobre a experiência e o significado moderno
da ação revolucionária em Sobre a Revolução. Os campos de concentração são o exemplo máximo da
dominação totalitária em Origens do Totalitarismo. Não obstante, subjacente a todos esses casos
citados – Rahel, Eichmann, outros homens e outras mulheres em tempos sombrios, a pólis, as
revoluções modernas, os campos concentracionários – está a preocupação arendtiana em delinear e
desvelar um “quem”, não um “quê”, na tentativa de compreender a política. Por trás da pólis grega,
que nada mais era do que a reunião de pessoas em público e que não dependia de um lugar específico
para se realizar, interessa a Arendt os cidadãos e a noção de cidadania grega que constituía um “quem”
aos agentes públicos. Por trás da revolução americana, por seu turno, interessa a Arendt a participação
cidadã e o “quem” dos pais fundadores. Por trás dos campos de concentração, enfim, interessa a Arendt
a ausência do “quem” dos judeus internados em tais fábricas da morte. Ou seja, a política se constitui,
aparece e só é algo por meio da narrativa sobre o “quem” (who), de vários “quens”, para Arendt. E,
por isso, insistir que o pensamento arendtiano é um constante exercício de se colocar no lugar de outro
alguém, de alguma pessoa, parece ser mais vantajoso do que qualquer outra denominação
metodológica para a compreensão da filosofia da autora, muito embora ela não assuma a terminologia
“pensamento vicário” em suas obras. Enquanto uma storyteller, Arendt narra politicamente sobre e da
perspectiva de um alguém. A compreensão política, o oferecer sentido aos eventos políticos, passa pela
narrativa desses alguéns.
652 ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal, p. 62.
191
Arendt se utilizava bastante de relatos, narrações, poemas, historietas pessoais – reais ou
fictícias – como estratégia para se fazer mais compreensível quando o assunto era o horror advindo,
para ela, do total “colapso moral que os nazistas provocaram na respeitável sociedade europeia – não
apenas na Alemanha, mas em quase todos os países, não só entre os perseguidores, mas também entre
as vítimas”653. Assim, ainda que não desse muito crédito aos testemunhos de sobreviventes dos campos
de concentração, por exemplo, ou que acreditasse que a maioria das discussões sentimentalistas a
respeito desse tema não era de calibre muito alto654, a pensadora deixava com que passagens
exemplares falassem por ela, como “Ó Alemanha... Ouvindo as falas que vêm da tua casa, rimos. Mas
quem te vê corre a pegar a faca” (de Bertolt Brecht, um dos personagens de Homens em Tempos
Sombrios, citado na epígrafe de Eichmann in Jerusalem). Talvez esse tenha sido o único recurso
encontrado por uma legítima storyteller, uma contadora de estórias, diante de acontecimentos que lhe
desafiavam ao ponto da mudez (como ela mesma chegou a supor), mas não ao ponto de esquecer a
frase da poetisa Isak Dinesen, a qual fizera referência na abertura do V capítulo de A Condição
Humana: “todas as mágoas são suportáveis se as colocamos em uma estória [story] ou contamos uma
estória sobre elas”655. Nesse sentido, no fogo-cruzado entre tentar não se render à mera comoção da
dor, tão privada quanto incomunicável, e ao mesmo tempo tentar combater todos os impulsos rumo a
uma impronunciável mitologização dessas questões horríveis, a pensadora/narradora articulava os
fatos intrinsecamente caóticos em breves momentos narrativos que apontavam para algumas direções
e figuras pessoais por meio das quais poderiam ser retirados alguns vieses de compreensão do que
aconteceu como um todo. A título de exemplo, mais de uma vez Arendt citou o seguinte depoimento,
conseguido em 1944, mediante interrogatório de uma testemunha/partícipe de um campo de extermínio
(realizado por um jornalista correspondente norte-americano):
P.: Vocês matavam gente no campo? R.: Sim.
P.: Vocês usavam gás para envenená-las? R.: Sim.
P.: Vocês as enterravam vivas? R.: Aconteceu algumas vezes.
P.: As vítimas vinham de toda a Europa? R.: Acho que sim.
P.: Você pessoalmente ajudou a matar alguém? R.: De jeito nenhum. Eu era só o
funcionário que fazia os pagamentos no campo.
P.: O que você achava sobre o que estava acontecendo? R.: No começo foi ruim,
mas depois a gente se acostumou.
653 ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal, p. 142. 654 Ao comentar sobre o livro Under two dictators, de Margarete Buber-Neumann, que traz considerações a respeito
da vivência em campos de concentração nazista e soviético, diz Arendt que é impressionante a banalidade, a
trivialidade e a esterilidade da literatura correspondente ao choque diante de absurdos políticos-morais: “A questão é
que o oportunismo, o compreensível receio de enunciar qualquer ideia que alguém possa julgar ‘sentimental ou
‘emocional’, às vezes parece ser uma tela para esconder... nada” (ARENDT, H. “Os ovos se manifestam”. In:
Compreender: formação, exílio e totalitarismo, p. 303). 655 ARENDT, op. cit., p. 219.
192
P.: Você sabe que os russos vão enforcá-lo? R.: (explodindo em lágrimas) Por que
fariam isso? O que que eu fiz?656
Em um texto intitulado Auschwitz em julgamento, no qual Arendt discute a respeito do processo
que colocou um “punhado de casos intoleráveis” no banco dos réus na cidade de Frankfurt, em 1965,
a autora comenta que “o mesmo homem que com razão recebeu uma das sentenças mais severas –
perpétua mais oito anos – distribuía de vez em quando salsichas para as crianças”; que “o mesmo
policial médico que entregara dezenas de milhares à morte também podia salvar uma mulher que tinha
estudado na sua antiga escola e, assim, lembrava-lhe a juventude”; ou que “flores e chocolates
poderiam ser enviados a uma mulher que dera à luz, embora ela devesse ser gaseada na manhã
seguinte”657. Em outro contexto, Arendt comenta que “certa vez, um judeu libertado de Buchenwald
viu, entre os homens da SS que lhe deram os documentos de soltura, um antigo colega de escola; fitou-
o, mas não lhe dirigiu a palavra [...] o ex-colega disse: ‘Você precisa entender, eu estava desempregado
fazia cinco anos. Eles podem fazer o que quiserem comigo’”658. Arendt observa que, diante de diálogos
como os transcritos acima, é curioso perceber que a realidade do que de fato aconteceu era digna da
imaginação e criação fantasiosa de grandes poetas, escritores e, poder-se-ia acrescentar, tragediógrafos.
Com extrema acidez, Arendt alega que o material humano que os nazistas passaram a procurar
(principalmente para compor a organização geral sob o comando de Heinrich Himmler), acima de tudo,
não era composto basicamente por sádicos, tarados sexuais ou fanáticos de qualquer ordem, mas, na
verdade, por trabalhadores e bons homens de famílias, por aqueles indivíduos que mantinham
aparência de respeitabilidade, que tinham dedicação e cuidado com os seus entes queridos, que não
traíam as esposas, e que ansiavam por uma vida melhor aos familiares. O resultado disso é que, para
ela, o “pai de família” viria a ser o grande criminoso do século XX, pois essa figura dócil, esse tipo de
homem preocupado com a garantia privada e submetido às condições econômicas e sociais caóticas
dos nossos tempos (sobretudo na Alemanha), “para defender sua aposentadoria, o seguro de vida, a
segurança da esposa e dos filhos, se disporia a sacrificar suas convicções, sua honra e sua dignidade
humana [...] A única condição que ele apresentava era ficar totalmente isento da responsabilidade por
656 ARENDT, H. “Culpa organizada e responsabilidade universal”. In: Compreender: Formação, exílio e totalitarismo,
p. 156. 657 Esta citação e as duas anteriores estão em: ARENDT, H. “Auschwitz em Julgamento”. In: Responsabilidade e
Julgamento, p. 323. 658 ARENDT, H. “Culpa organizada e responsabilidade universal”. In: Compreender: Formação, exílio e totalitarismo,
p. 158.
193
seus atos”659. A crítica de Arendt não é injusta: refere-se ao modelo típico do homem de massa
moderno. Para ela, um fenômeno internacional de nossa época seria a transformação do socialmente
respeitável pater familias, antes preocupado com assuntos públicos, em “burguês” (por falta de uma
denominação melhor, segundo Arendt). “Burguês” ou “homem de massa” que, ao contrário do citoyen
que clamava por virtudes cívicas, estaria interessado apenas em sua existência privada e, para atender
a tais exigências, não obstante, poderia se converter em instrumento para qualquer tipo de horror,
qualquer tipo de loucura, qualquer tipo de função – até mesmo a de carrasco, como de fato acontecera.
Esse tipo de homem leva “tão longe a dicotomia entre funções públicas e funções privadas, entre
profissão e família, que não consegue mais encontrar, em sua própria pessoa, nenhuma ligação entre
ambas”660. Isto quer dizer que, quando foi obrigado a assassinar pessoas como parte da tarefa cotidiana
realizada em seu ambiente de trabalho, não se considerava um assassino, “pois não [tinha feito] isso
por inclinação pessoal, e sim em seu papel profissional. Por ele mesmo, jamais faria mal a uma
mosca”661. Contudo, além do “pai de família”, Arendt comenta a respeito de diferentes tipos de homens
que, por suas características próprias, contribuíram de um modo ou de outro para o fluir do governo
totalitário, e que não podem ser confundidos. Por exemplo, em Origens do Totalitarismo, ela faz
menção geral aos membros da elite e aos membros da ralé que, a despeito de suas enormes distinções,
foram atraídos por tal movimento por perceberem uma chance de mudança da estagnação social
vigente ou por não quererem perder um “assento” no trem da História. Em Eichmann em Jerusalém,
como já dito, a autora chama atenção para o indivíduo incapaz de pensar e de julgar por si mesmo.
Além disso, ela não deixa de mencionar sobre os verdadeiros adeptos ao regime e daqueles tipos
sádicos que encontraram no nazismo uma oportunidade para se aliviarem. Por fim, não se pode
esquecer o quanto Arendt não poupa críticas às posições tomadas pela maioria dos intelectuais e do
“quem” dos doutores acadêmicos – alguns “ingênuos” que, para ela, caíram em suas próprias
armadilhas (como Heidegger, “a raposa”); e outros nauseados com o cotidiano que optaram por fazer
algo, fosse heroico ou criminoso.
Muito se discute, entre comentadores e intérpretes da obra de Arendt, uma vez que a própria
autora jamais se importou em deixar isso muito claro, qual seria a filiação metodológica e filosófica
da pensadora. Em três raras ocasiões, pelo menos, Arendt se pronunciou vagamente nesse sentido, isto
659 ARENDT, H. “Culpa organizada e responsabilidade universal”. In: Compreender: Formação, exílio e totalitarismo,
p. 157. 660 ARENDT, H. “Culpa organizada e responsabilidade universal”. In: Compreender: Formação, exílio e totalitarismo,
p. 159. 661 ARENDT, H. “Culpa organizada e responsabilidade universal”. In: Compreender: Formação, exílio e totalitarismo,
p. 159.
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é, sobre a sua posição filosófica e o seu método. Em A Vida do Espírito, a autora diz juntar-se
“claramente às fileiras daqueles que, já há algum tempo, vêm tentando desmontar a metafísica e a
filosofia, com todas as suas categorias, do modo como as conhecemos, desde o seu começo, na Grécia,
até hoje”662, referindo-se provavelmente, sobretudo, a um legado nietzschiano no século XX. Em uma
carta a Gerschom Scholem, Arendt afirma que se “se pode ser dito que ‘eu vim de algum lugar’, foi da
tradição da filosofia alemã”663, referindo-se obviamente a Jaspers e Heidegger, principalmente. E, por
fim, em uma carta à Fundação Rockefeller, datada de 7 de abril de 1956, Arendt se afirma como uma
“espécie de fenomenóloga”664, pelo seu modo de rastrear palavras que revelavam não a essência do
fenômeno com o qual lidava, não aos moldes de Hegel e Husserl, mas o registro das percepções e
noções iniciais de cada conceito que se refere aos fenômenos estudados. Diz a autora que tentava
refazer “o caminho dos conceitos políticos até as experiências históricas concretas e geralmente
políticas que davam origem a tais conceitos”665. Consciente de todas essas passagens citadas, Adriano
Correia afirma que Arendt “cultivava uma fenomenologia genealógica na qual eram decisivos os
eventos históricos e as experiências deles decorrentes, notadamente no âmbito da linguagem, mas
também no das configurações das formas de vida [...]”666. Talvez, todavia, Arendt não se sentiria muito
à vontade ao se ver vinculada a denominações carregadas de significados que extrapolam o intento
teórico dela, estas que receberiam uma carga tão tradicional na contemporaneidade. Para romper um
pouco com essas amarras conceituais e categoriais sobrecarregadas, acredito que praticamente todo o
pensamento arendtiano segue um procedimento que ela mesma denominou de “mentalidade alargada”,
ou seja, ela treina o pensamento a visitar perspectivas pessoais e, dessa forma, ela se mostra apta a
recuperar os significados políticos presentes na origem de determinadas palavras. Dizer que Arendt
exercia o método da “mentalidade alargada” não faz dela uma kantiana, contudo. Pelo contrário, ela
toma o alargamento espiritual como um método de reflexão política que se tornou próprio dela mesma
– algo que, por conta dos temas que ele trabalhava, Kant não fazia. A ocasião mais explícita em que
Arendt emprega o procedimento da mentalidade alargada se encontra talvez no artigo intitulado
Reflexões Sobre Little Rock, no qual a pensadora se imagina nas posições de uma mãe negra e de uma
mãe branca para pensar o caso do racismo nas escolas norte-americanas em 1959. “O que eu faria, se
662 ARENDT, H. A Vida do Espírito, p. 234. 663 ARENDT, H. “The Eichmann Controversy: a letter to Gershom Scholen”. In: The Jewish Writings, p. 466, tradução
minha. 664 ARENDT, H. Apud. YOUNG-BRUEHL, E. Hannah Arendt: por Amor ao Mundo, p. 356. 665 Apud. YOUNG-BRUEHL, E. Hannah Arendt: Por Amor ao Mundo, p. 286. 666 CORREIA, A. Hannah Arendt e a Modernidade: política, economia e a disputa por uma fronteira, p. xxii.
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fosse uma mãe negra? [...] O que eu faria, se fosse uma mãe branca no Sul?”667, pergunta a si mesma
a pensadora. Assim, quando afirma que fazia uma “espécie de fenomenologia”, Arendt relaciona isso
ao “caráter de regresso”668 que o pensamento possui, mas evita utilizar a palavra “coisa”, pois seu
objeto não são as coisas, o “quê”, mas os homens, o “quem”. Não se trata de uma “volta às coisas
mesmas”, mas, antes, de “fazer as vezes de alguém”, ou melhor, de “voltar à perspectiva de quem
vivenciou um determinado momento”. Nesse contexto, o pensamento arendtiano acaba por ser não
apenas um “regresso” no sentido fenomenológico e genealógico dos fenômenos políticos, mas um ir e
vir e voltar no tempo ao imaginar diferentes perspectivas às quais visitar, sempre em busca de
experiências perpetradas e sentidas por alguém em diferentes temporalidades. Concordo com Edson
Teles ao dizer o que seria o modo de problematização arendtiano: “não se trata do que podemos falar
do passado, mas de quem pode evocar o acontecido. Se a história é o resultado comum de uma
abordagem objetiva dos eventos ocorridos, a memória somente é possível por meio da elaboração
subjetiva e sua expressão política, ou seja, na ação, se realiza através da narrativa”669. O ponto a se
ressaltar aqui é que, para pensar e compreender os fenômenos e as experiências políticas e históricas,
Arendt recorre a exemplaridades que sempre envolvem figuras pessoais. Se há qualquer tipo de
genealogia ou de fenomenologia é por meio da imaginação das experiências de uma figura pessoal.
Em outros termos, qualquer emergência histórica e/ou discursiva, ou emergência de modos de vida
específicos, não pode ser desconectada das ligaduras formadoras de um “quem”. Até mesmo a crítica
arendtiana à estagnação contemporânea de uma sociedade de massas, realizada sobretudo em A
Condição Humana, focaliza um perfil – ainda que seja um perfil sem face própria, tendo em conta a
crescente substituição da ação humana pelo comportamento em massa –, que seria o animal laborans,
o trabalhador-consumidor. Aliás, nesse contexto, a grande preocupação de Arendt em relação à
sociedade massificada é exatamente a incapacidade de encontrar e de se falar sobre um “quem”, sobre
uma singularidade individual e espontânea que se afirma no mundo. Em A Crise na Cultura: sua
importância social e política, por seu turno, Arendt diz que “o derradeiro indivíduo que restou na
sociedade de massas foi o artista”670. O que intento destacar é que muito se discute sobre a importância
das experiências particulares e da narrativa para o processo de compreensão de Arendt, como bem
667 ARENDT, H. op. cit. In: Responsabilidade e Julgamento, pp. 261 e 263. 668 ARENDT, H. apud. CORREIA, A. Hannah Arendt e a Modernidade: política, economia e a disputa por uma
fronteira, p. xxii. 669 TELES, E. Pensar e Agir: Narrativa e História na filosofia de Hannah Arendt, p. 01. 670 In: Entre o Passado e o Futuro, p. 252.
196
fazem Julia Kristeva671, Seyla Benhabib672, Melvin Hill673 e Celso Lafer, por exemplo, mas pouco se
chama atenção para o modo como a autora faz com que seu pensamento visite e imagine perspectivas
exemplares a fim de retirar memórias de um tempo, memórias significativas e subjetivas que se
comuniquem com aquele que julga os acontecimentos políticos.
Por certo, ao erigir seu pensamento filosófico em um contexto histórico marcado pela
denominada era pós-metafísica, Arendt intenta não simplesmente superar a metafísica, ou se fixar a
tudo o que veio depois da metafísica, mas refletir de modo autônomo, sem amparos tradicionais,
refazendo tanto significados quanto novas perguntas para questões já velhas. Nesse sentido, ao pensar
sobre política e ética sem recorrer a respostas engessadas e consagradas, Arendt opera uma
desconstrução de conceitos e sistemas usuais, desafia os padrões comumente aceitos para balizar
determinados assuntos e, em troca disso, trabalha com aquilo que, segundo ela, Kant chamou de
“pensamento representativo” ou “pensamento exemplar”674. Ou seja, Arendt escolhe exemplos para
orientar as suas reflexões e produções teóricas. É por isso que o passado continua a falar com a autora,
pois ali, mesmo com a ruptura da tradição, escondem-se pérolas exemplares às quais recorrer para
compreender o tempo presente. Ela afirma: “a maioria das virtudes e vícios políticos são pensados em
termos de indivíduos exemplares: Aquiles pela coragem, Sólon pela perspicácia (sabedoria) etc”675.
Ou em outra passagem: “Os exemplos [...] constituem também, e de maneira especial, os sinais de
orientação de todo pensamento moral”676. O “exemplo” traz um traço qualitativo e uma validade geral
ao senso comum, ainda que esta validade seja mais restrita do que a dos conceitos universais
tradicionalmente criados pela filosofia. Assim, ao escolher um exemplo, Arendt alarga a sua
mentalidade para pensar da perspectiva de algum “quem”, ou para imaginar as inúmeras perspectivas
envolvidas em algum fato ou algum ato. Não é por acaso que a autora respeitava o modo de pensamento
político de Maquiavel, aliás. E é isso que ela elogia em Nietzsche, em Algumas questões de filosofia
moral, ao citá-lo pelo seguinte comentário: “É uma desnaturação da moralidade separar o ato do agente,
dirigir o ódio ou o desprezo contra o ‘pecado’ [o ato em vez do agente], acreditar que uma ação poderia
ser boa ou má em si mesma [...] tudo depende de quem a pratica [...]”677. Ainda que Arendt esteja se
671 KRISTEVA, J. Hannah Arendt, life is a narrative. 672 BENHABIB, S. “Hannah Arendt and the redemptive power of narrative”. In: HIRCHMAN, L. P.; HIRCHMAN,
S. K. (Ed.) Hannah Arendt critical essays. 673 HILL, M. A. The fictions of mankind and the stories of men. In: Hannah Arendt: the recovery of the public world. 674 ARENDT, H. “Algumas questões de filosofia moral”. In: Responsabilidade e Julgamento, p. 209. 675 ARENDT, H. “Algumas questões de filosofia moral”. In: Responsabilidade e Julgamento, p. 210. 676 ARENDT, H. “Algumas questões de filosofia moral”. In: Responsabilidade e Julgamento, p. 210-211. 677 ARENDT, H. “Algumas questões de filosofia moral”. In: Responsabilidade e Julgamento, p. 211.
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referindo somente ao âmbito da moralidade nessa referência a Nietzsche, é possível estender essa
primazia do “quem” também ao pensamento político da autora. Todo significado político depende da
análise de quem o pratica, de quem o vivenciou, de quem esteve presente.
Em seus argumentos sobre uma suposta metodologia arendtiana de pensamento, Adriano
Correia comenta que mesmo em A Vida do Espírito, obra que não lida diretamente com fatos e
acontecimentos políticos em seu cerne, a propósito, Arendt reconstrói fenomenologicamente as três
atividades mentais que interessam a ela: o pensar, o querer e o julgar. Ora, isso abre espaço para afirmar
e relembrar que, também no trato com a abstração das atividades mentais, uma experiência pessoal se
faz extremamente importante para a autora apreender e oferecer significados à própria atividade de
“pensar”: que seria a figura de Sócrates. No primeiro capítulo de A Vida do Espírito, Arendt afirma
que, para compreender o significado do pensamento humano, ao invés de se procurar por doutrinas
filosóficas, é preciso que se procure por “experiências de pensamento”. Ou seja, trata-se de uma
tentativa de evitar certa instrumentalização do pensamento e encará-lo, no lugar disso, enquanto sendo
uma experiência, percebê-lo do modo como ele se faz sentir a partir de um perfil pessoal. Buscar por
uma “experiência de pensamento” representou para Arendt a procura por um tipo ideal, a procura por
um modelo exemplar para a atividade de pensar, de modo que o exercício do pensamento se revelasse
na vida de um determinado personagem. No entanto, Arendt não se contenta com os exemplos dos
“pensadores profissionais”, dos filósofos tradicionais, até porque o que ela procura é alguém que
represente “o todo mundo” capaz de pensar, e não apenas a típica reflexão técnica, teórica, erudita e
elevada. Em outras palavras, o que a autora procura é um tipo que reflita certo modus vivendi capaz de
implicar relações entre os âmbitos agonísticos da filosofia e da política, enfim, alguém que não se
importava em ser um sábio e que jamais pretendeu formular qualquer doutrina que devesse ser ensinada
ou aprendida. “Em suma, proponho usarmos como modelo um homem que tenha de fato pensado sem
tornar-se um filósofo, um cidadão entre os cidadãos, alguém que não tenha feito nada além do que, a
seu ver, qualquer outro cidadão pudesse ou devesse fazer ou reivindicar”678. Este homem seria a
experiência da reflexão por excelência: Sócrates – aquele que jamais evitou a praça pública e que não
se dedicou a escrever nenhum dos seus pensamentos, embora tenha decidido levar a vida examinando
as opiniões alheias, pensando sobre tudo o que escutava e pedindo para que seus interlocutores
fizessem a mesma coisa. Em outro contexto Arendt diz que “Sócrates deu um exemplo e, assim, tornou-
se exemplo para um certo modo de conduta e um certo modo de decidir entre o certo e o errado”679.
678 ARENDT, H. “Pensamento e Considerações morais”. In: A Dignidade da Política, p. 152. 679 ARENDT, H. “Algumas questões de filosofia moral”. In: Responsabilidade e Julgamento, p. 211.
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Considerando isso, apresento, a seguir, a discussão que Arendt trava a partir do exemplo socrático,
com enfoque, entretanto, para uma outra figura pessoal que aparece nas entrelinhas, nos engasgos, nas
vírgulas presentes nessa discussão, que seria: Jaspers como um modelo exemplar do pensamento
subversivo na teoria de Arendt.
3.2: O daimon jasperiano na esteira do daimon socrático: o “dizer não” como exemplaridade
Em A Vida do Espírito, para além da figura histórica, Sócrates interessa a Arendt como um
modelo exemplar. Pode-se dizer que o exemplo não é escolhido aleatoriamente, principalmente porque
as metáforas que o próprio Sócrates atribui ao seu modo de atuação em público, ou as metáforas que
lhe foram conferidas por outras pessoas, ajudam Arendt a criar cenas imagéticas que auxiliam na
compreensão do que ela pretende apresentar como o que seria a própria atividade de “pensar”. Sócrates
se autodenominava de parteira e de moscardo; além disso, fora chamado por seus contemporâneos de
arraia-elétrica. Um moscardo no sentido de ser o inseto que sabe ferroar as pessoas para despertá-las
de um sonho, para despertá-las para o pensamento e para a investigação, sem os quais a vida não valeria
a pena, segundo Sócrates. Não é por acaso que os diálogos platônicos sejam quase todos aporéticos,
nos quais a maiêutica socrática se exerce fazendo perguntas para as quais nem quem questiona conhece
as respostas, o que faz com que a argumentação gire em círculos e não vá a lugar nenhum (não gera
conceitos e nem definições sobre o objeto analisado), mas coloque todos os envolvidos em movimento.
Trata-se do movimento de reflexão como efeito de uma ferroada do moscardo. Contudo, Sócrates
sempre dizia que não ensinava nada, que nada tinha a ensinar, sua propensão filosófica se distingue da
maioria dos filósofos posteriores que se outorgaram solucionadores de enigmas e propagadores de
verdades. Sócrates afirmava também ser “estéril” como as parteiras da Grécia Antiga, “a divindade me
incita a partejar os outros, porém me impede de conceber”680. Ele traria à luz os pensamentos alheios,
cuidaria da “alma” ao invés do corpo e, justamente por sua esterilidade, teria a arte obstétrica de saber
com que tipo de gravidez e feto estava lidando – real ou ilusório. Até mesmo quando foi acusado de
nunca emitir o seu próprio ponto de vista, em seu julgamento em Atenas, Sócrates não negou que não
tinha nenhuma verdade para divulgar, não negou que o pensamento, em geral, não produziria um saber
capaz de aperfeiçoar alguém. O pensamento apenas desperta, mas também pode ser visto como
paralisia. Isso não é uma contradição. Melhor explicando, aqueles que se engajam no pensamento estão
em alto grau de atividade interna, de atividade espiritual; contudo, de um ponto de vista exterior, do
680 PLATÃO. Teeteto. VII.
199
ponto de vista do mundo comum dos negócios humanos, aqueles que pensam se mostram paralisados
por interromperem todas as outras atividades enquanto ativos reflexivamente. Daí Sócrates ser visto,
ainda, como uma arraia-elétrica – aquele que paralisa e entorpece pelo contato com outrem. “Não é
que eu deixe os outros perplexos, já conhecendo as respostas. A verdade é que eu lhes transmito a
minha própria perplexidade”681. Enquanto procura pelo sentido das coisas, a faculdade de pensar atua
movendo e “degelando” conceitos, pois lida com aquilo que não é tangível na tentativa de significá-
los não de uma forma perene. Em outras palavras, o “pensar” é como um vento, como algo invisível,
que coloca tudo fora de lugar. “É da natureza desse elemento invisível desfazer e, por assim dizer,
degelar o que a linguagem, o veículo do pensamento, congelou como pensamentos-palavras (conceitos,
frases, definições, doutrinas)”682. Assim, a perplexidade do pensamento atordoa no sentido de
inevitavelmente destruir e corroer critérios, valores, padrões e verdades estabelecidas. Os atenienses
julgaram Sócrates justamente por considerarem o seu tipo de pensamento subversivo (algo que o
acusado não nega), sem perceberem que a própria atividade de pensar é, em si, um furacão que carrega
consigo sinais estabelecidos e que coloca em dúvida tudo aquilo que ordena e orienta o mundo comum.
Em termos morais, segundo Arendt, ao colocar tudo em movimento (como num baile conceitual), o
pensamento tem o poder de “desalojar os indivíduos de seus dogmas e de suas regras de conduta; [...]
[os coloca] diante de uma tela vazia, sem bem nem mal, sem certo nem errado, mas simplesmente lhes
ativa a condição de estabelecer um diálogo silencioso consigo próprios”683 e, desse modo, funciona
como fundamento para que os homens reflitam e emitam juízos sobre quaisquer eventos e valores. É
de suma importância não perder de vista aqui o fato de que Arendt entra na discussão sobre as
atividades mentais, esses “temas espantosos”, precisamente por meio de uma pergunta ética: seria o
pensamento capaz de evitar a prática da maldade? Ou, nos termos dela: “A questão que se impunha
era: seria possível que a atividade do pensamento como tal – o hábito de examinar o que quer que
aconteça ou chame a atenção, independentemente de resultados e conteúdo específico – estivesse entre
as condições que levam os homens a abster-se de fazer o mal, ou mesmo que ela os ‘condicione’ contra
ele?”684. Em alguns de seus textos da década de 1960, a pensadora enumera algumas ponderações
iniciais quanto a essas questões, as quais não podem ser desconsideradas para início de discussão.
681 SÓCRATES apud ARENDT, H. A Vida do Espírito, p. 194. 682 ARENDT, H. A Vida do Espírito, p. 197. 683 ASSY, B. “Eichmann, Banalidade do mal e pensamento em Hannah Arendt”. In: Hannah Arendt: diálogos,
reflexões, memórias, p. 147. 684 ARENDT, H. A Vida do Espírito, p. 20.
200
Primeiramente, se existe um mínimo de conexão interna entre o “pensar” e o problema do mal,
deve-se pressupor que a capacidade de pensamento seja acessível a todos os homens, e não privilégio
de poucos filósofos solitários em suas torres de marfim. Num segundo plano, caso se aceite, como
Arendt o faz, que nenhum resultado do pensamento seja um “axioma sólido”, seria uma contradição
esperar que essa atividade nos fornecesse regras de conduta ética, ou que nos conduzisse às proposições
morais por meio de uma definição última sobre o que é o bem e o que é o mal. Nada disso seria da
alçada de uma faculdade que não tem o poder de desencadear substratos concretos, que trabalha como
a teia de Penélope: desfazendo toda manhã o que foi terminado na noite anterior. Por isso, todo pensar
é um repensar, é um incansável e infindável voltar e refazer o mesmo caminho que, talvez, já fora
realizado mentalmente inúmeras vezes. O que já foi pensado só volta a ter sentido quando o
pensamento é ativado novamente e se debruça mais uma vez sobre o objeto pensado; quando a
atividade cessa, nada permanece objetivamente, tudo é “desfeito” e só se refaz a cada novo “pensar e
repensar”. Diante disso, portanto, Arendt procura por experiências, por perfis de pensamento, pois se
haveria algo no pensamento que impediria os homens de fazerem o mal, “esse algo deve ser alguma
propriedade inerente à própria atividade, independentemente dos seus objetos”685, uma vez que a
ventania do pensamento desloca constantemente os seus próprios objetos reflexivos. Nesse sentido,
além de Sócrates, o modelo de pensamento de Jaspers também é uma experiência que chama a atenção
de Arendt desde muito cedo em sua vida intelectual. Ela afirma que Jaspers “tem uma franqueza, uma
confiança, um discurso sem concessões que eu jamais encontrei em qualquer pessoa. Tudo isso já me
impressionara quando eu era muito jovem”686. Arendt teoriza, então, a experiência reflexiva jasperiana.
No artigo O que é a filosofia da Existenz, Arendt estabelece uma primeira relação possível
entre Sócrates e Jaspers. Em sua perspectiva, a autora diz que Jaspers apela para um pensamento em
comunicação com os outros seres humanos, fazendo do pensamento um exercício para se alcançar a
possibilidade da existência autêntica de alguém, esta que não evita o contato e o enfrentamento com as
situações-limite da vida de cada pessoa. É a isso que Jaspers denominava “filosofia”. Isto é, a filosofia
nada mais é do que um “filosofar”, na realidade, um exercício existencial que pode ser atualizado por
todo e qualquer ser humano. A filosofia não é um sistema de pensamento conceitual, não é uma
disciplina de estudo, não é um conjunto sistemático de reflexões aglomeradas ao longo da história
humana, mas um modo de se fazer Existenz, um modo de existir. Dessa maneira, Jaspers desvincula a
palavra “filosofia” das figuras tradicionais dos grandes sábios e, assim, apela para o pensamento de
685 ARENDT, H. A Vida do Espírito, p. 202. 686 ARENDT, H. “Só permanece a língua materna”. In: A Dignidade da Política, p. 142.
201
todos os homens como etapa para se chegar ao “eu” existencial. Arendt afirma: “Em Jaspers, tal como
em Sócrates, não há um filósofo que, desde Aristóteles, levaria uma existência diferente da dos outros
homens. Jaspers nem mesmo preserva a prioridade socrática do indagador, pois na comunicação, por
uma questão de princípio, o filósofo se move entre seus iguais”687. É por isso que Arendt afirma no
mesmo artigo que Jaspers nunca dará uma palavra final sobre a questão da existência, pois ele não
comunica resultados herméticos de seu pensamento. De fato, Jaspers apresenta “certos processos do
pensamento de maneira sempre experimental”688, de modo a abrir uma realidade ao sujeito pensante –
sempre em comunicação com os outros homens –, que seria: o fracasso do próprio pensamento em dar
conta significativamente de si mesmo e do mundo em que vivemos. “Para Jaspers, o pensar tem a
função de levar o homem a certas experiências em que o próprio pensar (mas não o homem pensante)
falha. No fracasso do pensamento (mas não do homem), o homem”689 encontra a sua existência. Reside,
então, nesse pensamento experimental jasperiano uma possibilidade aberta a todos os seres humanos,
que é a necessidade da passagem do pensar para o agir. Para melhor explicar, o fracasso, o insucesso,
o malogro e a incapacidade são marcas distintivas do pensamento humano para Jaspers, mas isso não
pode vir acompanhado do niilismo, do desespero ou da passividade. Pelo contrário, quando o homem
toma consciência de que perdeu o domínio daquilo cuja posse nunca teve – o ser transcendente –, o
único modo de suportar isso se daria pela ação, pelo agir, pela realização daquilo que ainda pode ser
realizado, mesmo que consciente dos limites da compreensão do todo. Trata-se, segundo Jaspers, de
uma “maneira ativa de suportar o malogro universal”690, ou como ele diz no terceiro volume de
Philosophie: “na experiência do injustificável [des Undeutbaren], o não-saber torna-se ativo em
presença do ser enquanto origem de toda a autêntica consciência de ser, através da riqueza inesgotável
da experiência do mundo e da atuação da existência”691. Isto é, o não-saber do pensamento deve
desembocar na decisão da ação dos homens, o que acaba por constituir a existência possível.
Para voltar a Sócrates, que, nas palavras de Martin Heidegger citadas por Arendt, permaneceu
no meio da ventania do pensamento durante toda a sua vida, que não se refugiou desta correnteza em
nenhum abrigo nem para começar a escrever suas reflexões, tornando-se, assim, o “pensador mais puro
do Ocidente”692, o ateniense continua a interessar a Arendt por ter defendido duas proposições das
quais a autora deriva uma relação básica entre a ética e a experiência do pensamento.
687 ARENDT, H. “O que é a filosofia da Existenz”. In: Compreender: formação, exílio e totalitarismo, p. 212. 688 ARENDT, H. “O que é a filosofia da Existenz”. In: Compreender: formação, exílio e totalitarismo, p. 212. 689 ARENDT, H. “O que é a filosofia da Existenz”. In: Compreender: formação, exílio e totalitarismo, p. 212. 690 HERSCH, J. Karl Jaspers, p. 33. 691 JASPERS, K. Philosophie III, p. 234. 692 Cf. ARENDT, H. A Vida do Espírito.
202
Arendt recorre, portanto, ao diálogo platônico Górgias para elencar duas sentenças socráticas
afirmativas: “é melhor sofrer o mal do que o cometer”693; e “Eu preferiria que minha lira ou um coro
por mim dirigido desafinasse e produzisse ruído desarmônico, e que multidões de homens
discordassem de mim do que eu, sendo um, viesse a entrar em desacordo comigo mesmo e a
contradizer-me”694. Para Arendt, essas não são proposições morais no sentido estrito, mas a chave de
interpretação dessas frases, desses insights que seriam subprodutos incidentais do próprio pensamento,
encontra-se justamente no “eu”, no “self”, no dois-em-um socrático que definiria a essência do pensar
– essa disposição interna que é em si e para si mesma. Em um dos seus cursos ainda não traduzidos,
Basic Moral Propositions [Proposições Morais Básicas], Arendt expressa: “Always the Self – even in
Kant who quite aware of the problem. Even in Socrates (Self-contradiction, self-contempt). Is the self
the standard for morality?” [Sempre o “eu” – mesmo em Kant, que foi tão consciente do problema.
Mesmo em Sócrates (autocontradição, autodesprezo). Seria o “eu” o parâmetro para a moralidade?]695.
Para começar a analisar as sentenças socráticas junto a Arendt, portanto, é preciso entender que todo
ato de reflexão instaura uma dualidade metafórica em nosso ser, instala uma diferença em nossa
unicidade, segundo a autora, o que pressupõe a possibilidade de desacordo comigo mesmo. Ora,
quando apareço e sou reconhecido pelos outros, sou um; contudo, embora quase nunca apareça para
mim mesmo, eu posso ser para mim mesmo assim como sou para os outros – a isso se chama
comumente de “consciência”, ou seja, para Arendt, “conhecer comigo mesmo”.
A segunda proposição de Sócrates citada acima chama atenção justamente para o fato de que
a não-contradição pode ser um dos principais atributos para o bom funcionamento dessa consciência
de si consigo mesmo. Em outros termos, mesmo que não imbuída do respeito a uma máxima imutável,
tal noção socrática reclama a confiança no pensamento a partir do princípio da consistência dialógica,
de tal modo que “o não querer se contradizer” possa significar certa integridade pessoal ao criar
obstáculos para determinadas condutas indevidas. Fica patente certa semelhança com a razão prática
de Kant, uma vez que o “não se contradiga” pode ser visto como algo subjacente ao Imperativo
Categórico. Aliás, Arendt inicia suas discussões sobre esses temas, em Algumas questões de filosofia
moral, com referências ao fato de que Kant coloca os deveres que os homens têm para consigo mesmos
à frente dos deveres para com os outros. Contudo, as similitudes param por aí. As diferenças se
693 SÓCRATES apud ARENDT, H. A Vida do Espírito, p. 203. 694 SÓCRATES apud ARENDT, H. A Vida do Espírito, p. 203. 695 Tradução minha. ARENDT, H. op. cit. In: The Hannah Arendt papers at the Library of Congress. Courses,
University of Chicago, Chicago, Ill. “Basic Moral Propositions”, lectures, 1966, p. 01. (Series: Subject file, 1949 –
1975).
203
destacam, na verdade, sobretudo no que diz respeito à relação entre consciência moral e conduta moral.
Arendt não trabalha com imperativos. Para ela, o que liga o espaço vazio existente entre a conduta
humana precedida por uma consciência moral não seriam leis internas ou fórmulas gerais que falariam
a todos os seres racionais, mas simplesmente um sentimento: o respeito por si mesmo, o orgulho de
não desprezar a si próprio. Ora, é claro que existe fragilidade em sustentar a ética humana nesse
sentimento de respeito de mim para comigo mesmo, mas Arendt leva isso em consideração, até porque
não se trata de um sentimento obrigatório e presente em cada um dos homens, não se trata de algo que
solucionaria todos os problemas morais. A fragilidade nesse caso não pertence exclusivamente à teoria,
mas compõe a própria contingência dos assuntos humanos. Até porque, também, ainda se afastando de
Kant nesse aspecto, Arendt não nega a possibilidade do mal pelo mal, ou a existência de uma vontade
diabólica, nem deixa de conceber exemplos de sadismo, enfim, de casos em que se nota a escolha
deliberada pela maldade, bem como casos em que haja a não preocupação da convivência com um
assassino, por exemplo. De qualquer forma, Arendt aposta que a maioria dos indivíduos não pretende
pagar o preço de não conseguir ou suportar conviver com eles mesmos. Isso quer dizer que o homem
que pratica o dois-em-um não faria o mal, em primeira instância, por não querer viver na companhia
de um malfeitor. “Se discordo de outras pessoas posso me afastar; mas não posso me afastar de mim
mesmo”696, assim, sou testemunha do meu pensar e do meu agir, condenado a viver sempre junto do
agente, que acaba por ser eu mesmo.
Pode-se retirar uma primeira conclusão disso: nas formulações arendtianas, o pensamento tem
implicação ética porque a moralidade tem a ver com o indivíduo na sua singularidade e com a escolha
de companhia para si mesmo, no sentido da questão “com que outro quero viver junto”. Afinal, a
responsabilidade se torna pessoal no momento em que você deve decidir com quem conviver e com
quem dialogar o resto de sua vida. Ou seja, a moral dependeria do que se decide fazer com o próprio
“eu”, mas não numa acepção egoísta, e, sim, pelo fato de que o meu relacionamento com os outros
pode e deve se basear, em primeira mão, pelo relacionamento que tenho comigo mesmo. “Não é
certamente uma questão de preocupação com o outro, mas de preocupação consigo mesmo, não é uma
questão de humildade, mas de dignidade humana e até de orgulho humano”697. Apesar de não ser
“egoísmo”, também não se trata de altruísmo barato. Uma outra conclusão pode ser deduzida, então,
da anterior: se a capacidade de “pensar” não nos conduz a um dever, não prescreve regras e nem pode
impulsionar a ação, não aponta muito menos o que é a bondade em si; então, essa ética centrada no
696 ARENDT, H. “Algumas questões de filosofia moral”. In: Responsabilidade e Julgamento, p. 154. 697 ARENDT, H. “Algumas questões de filosofia moral”. In: Responsabilidade e Julgamento, p. 131.
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“self” só pode produzir resultados negativos. Isto é, pode indicar na direção do que não fazer. “No
âmbito da política a capacidade de pensar conduz a uma ‘ética da impotência’. Retém implicações
morais, ainda que permaneça uma atividade inteiramente amoral”698. Em outras palavras, apesar de
nunca dizer de modo absoluto “o que fazer”, a atividade de pensar pode impedir que o agente faça
certas coisas, pois fixa limites apresentando perguntas como “o que eu suportaria fazer?”; dessa
maneira, pode evitar que o indivíduo entre em conflito mental com os próprios atos, pode evitar um
auto-desacordo, pode evitar as “febres” de culpa moral de Raskólnikof699, por exemplo. Cabe citar
Arendt para contextualizar a questão:
O critério do diálogo espiritual não é mais a verdade, que exigiria respostas para as perguntas que me coloco, esteja ela sob a forma da Intuição que compele com
a força da evidência sensorial, ou sob a forma das conclusões necessárias de um
cálculo de consequências, como o raciocínio matemático ou lógico, cuja força de
coerção repousa sobre a estrutura do nosso cérebro com seu poder natural. O único
critério de pensamento socrático é a conformidade, o ser consistente consigo
mesmo, homologein autos heauto. O seu oposto, o estar em contradição consigo
mesmo, enantia legein autos heauto, de fato significa tornar-se seu próprio
adversário700.
Diante do exposto, é possível entender a primeira das duas frases socráticas que deram início
a essa discussão: de que seria pior cometer o mal a sofrê-lo. Tal proposição revela um exemplo de que
o homem devotado ao pensamento, no plano moral, começa por preocupar-se com a relação de si
consigo mesmo antes de qualquer coisa, pois ao sofrermos um mal somos objeto da ação de um outro
(a responsabilidade por aquilo que foi feito recai sobre um agente que não nós mesmos); contudo, ao
cometer um mal somos os próprios agentes e, assim, a responsabilidade recai sobre o “eu” que pode
padecer muito mais pelo que faz do que pelo o que sofre. “É melhor sofrer uma injustiça do que cometê-
la, porque se pode continuar amigo de um sofredor; quem gostaria de ser amigo e de ter de conviver
com um assassino? Nem mesmo outro assassino”701. Ora, aqui se destaca um problema que pode gerar
inúmeras discussões a respeito dos contornos da teoria política e da filosofia moral de Arendt. Afinal,
diz ela, do ponto de vista do mundo “o que conta é que o mal foi feito; e aí é irrelevante saber quem se
saiu melhor – o autor ou a vítima. Na qualidade de cidadãos, nós devemos evitar que o mal seja
698 ASSY, B. “Faces privadas em espaços públicos: por uma ética da responsabilidade”. Introdução à edição brasileira
de Responsabilidade e Julgamento, p. 43. 699 Personagem clássico do romance Crime e Castigo, de Dostoievski. Representa o sujeito que, por pensar, é incapaz
de conviver com a imoralidade de seus próprios atos. Em alguns trechos isso fica claro: “Estremeceu. Um pensamento
que na véspera lhe viera, apresentava-se de novo ao seu espírito. Sabia já, ou antes pressentia, que infalivelmente
voltaria” e “Julgou que enlouquecia. Percorria-lhe todo corpo uma terrível sensação de frio” (DOSTOIEVSKI, F.
Crime e Castigo, p. 59). 700 ARENDT, H. A Vida do Espírito, p. 208. 701 ARENDT, H. A Vida do Espírito, p. 210.
205
cometido, porque está em jogo o mundo em que todos nós – o malfeitor, a vítima e o espectador –
vivemos”702. A problemática é que, em termos básicos, a política trata do cuidado para com o mundo,
enquanto a ética representa um cuidado com o “eu”. Quando Arendt examina a obra de Maquiavel, por
exemplo, ela insiste nessa diferença, qual seja, de que o cidadão deve se preocupar em agir no mundo
para além da ideia de “bondade”. Para ela, as reflexões de Maquiavel demonstram verdadeiro
compromisso com a política, verdadeiro amor ao mundo, portanto. Pois Maquiavel ensinaria não a ser
bom, mas a agir politicamente no mundo das aparências, no qual nada conta a não ser o que aparece;
ou seja, o que cada um é, moralmente falando, teria valia para outro plano. Arendt afirma: “Para
Maquiavel, o padrão pelo qual julgamos não é o eu, mas o mundo, é exclusivamente político, e isso é
o que o torna tão importante para a filosofia moral”703. Daí torna-se mais claro o significado da famosa
afirmação maquiavélica, tão elogiada por Arendt, de que ele amaria mais Florença do que a salvação
de sua própria alma. Arendt quer chamar atenção para o fato de que alguém pode ser um verdadeiro
cristão, com uma bondade pura e estimável, mas isso não garante que esse mesmo indivíduo seja um
bom cidadão; nesse caso, seria o contrário, aliás, pois a doutrina de conduta cristã sempre pregou que
o homem deve ser um peregrino sobre a Terra, de que nada seria mais estranho aos cristãos do que os
assuntos públicos, como diz Cícero. Para Arendt, isso é a prova de que alguns caminhos em busca da
bondade podem representar a irresponsabilidade política. Da forma como se coloca, alguns pontos
interrogativos se apresentam: seria então a política incompatível com a ética, por princípio? Estaria
aberta, nas teorias arendtianas, uma divisão entre esses dois planos, uma vez que a preocupação com
o “eu” não interfere necessariamente na construção de uma coisa pública, de uma textura componente
de imaginário comum, por assim dizer, como a cidade?
Como indícios para formulação de algumas respostas concernentes a essas questões, pode-se
sugerir que, apesar de a orientação ética se fundar de modo subjetivo e, de fato, cindir-se do
funcionamento de orientação da política, Arendt apresenta essas diferenças de maneira didática
justamente para evitar confusões entre ambas as partes, como se não existisse política sem ética, ou
vice-versa. Contudo, as explanações de Arendt não são marcadas por se basearem em fundamentos
estritamente lógicos. O que quero dizer é que a autora não pretende sustentar uma contradição em
termos entre moral e self, de um lado, e política e mundo, de outro, pelo modo como as define
conceitualmente. Conforme já dito, ao constatar a situação sem amparos na qual o totalitarismo foi
capaz de deixar os homens, ao constatar a possibilidade de o mundo ter perdido seu sentido, e notar
702 ARENDT, H. A Vida do Espírito, p. 204. 703 ARENDT, H. “Algumas questões de filosofia moral”. In: Responsabilidade e Julgamento, p. 145.
206
que, não obstante, isso teve consequências terríveis para os aspectos morais, o que Arendt percebe é a
necessidade de apoiar a moralidade na consciência, ou melhor, no respeito próprio que cada homem
deve ter consigo mesmo. A ideia para justificar isso seria não depender de nenhum valor moral
construído mundana e historicamente; dessa forma, a ética se refugiaria na atividade de pensamento
enquanto possibilidade de todos os indivíduos. Isso não significa, todavia, que Arendt admita em seus
vieses teóricos uma fuga para a interioridade do “eu” em prol da chamada “desmundanidade”
(worldlessness). Seria um absurdo pensar que a ética se encerra na relação do homem com ele mesmo;
na verdade, a ética apenas parte desse relacionamento dialógico silencioso, mas não faria nenhum
sentido se não envolvesse outras pessoas, se não envolvesse a ação entre uma pluralidade de homens.
Em palavras rápidas: em um mundo que se resumiria a um “eu”, não haveria necessidade de qualquer
virtude moral, não haveria sequer significação para as palavras “bem”, “mal”, “certo”, “errado” etc.,
pois não haveriam outros aos quais fazer algo que causasse peso na consciência individual. O ponto
parece ser que no mundo tal qual vivemos, onde a pluralidade é uma condição praticamente
irrevogável, agimos em meio a outros e as questões morais são consequências desse fato primário.
Tendo isso em vista, para Arendt, aqueles que se preocupam em ter uma conduta ética devem se
conduzir por um sentimento subjetivo que será requerido toda vez que a atividade de pensar for
colocada em funcionamento e ativar, assim, a consciência de si mesmo. Isso pode até não trazer
qualquer benefício ao mundo, pode até não gerar aperfeiçoamentos nos contatos típicos do espaço
público, mas o que se tentará mostrar a seguir é que a preocupação com o “self” traz embutida em si a
noção de mundo e, mais do que isso, em tempos extremos, para Arendt, o pensamento revela possuir
implicações políticas exatamente por ser a pedra de toque da consciência moral. Isso será melhor
explicado a partir dos exemplos que se seguem.
Primeiramente, cabe dizer que a escolha por Sócrates como modelo da experiência de pensar
não se justifica apenas por este assimilar uma consciência ético-espiritual que teria no “eu” a sua maior
valoração, mas também porque, concomitantemente, a concepção ética que ele sustenta diz respeito à
coletividade de cidadãos. Concordo com Bethania Assy nesse contexto: “O self socrático pode ser
inscrito como a transposição da ideia política de cidadão para a interioridade do homem [...] Na
perspectiva de Arendt, Sócrates pode ser definido como o cidadão da polis e, ao mesmo tempo, o
precursor da noção tardia de ética da consciência”704. Em suma, tendo em vista que aqueles que pensam
são dois-em-um, eles experimentam uma pluralidade sob a forma da dualidade. E isso resguarda um
704 ASSY, B. “Faces privadas em espaços públicos: por uma ética da responsabilidade”. Introdução à edição brasileira
de Responsabilidade e Julgamento, p. 42.
207
resquício de caráter político ao próprio pensar. Para Arendt, o estar-só como precondição para a
atividade do pensamento, na verdade, transforma a consciência de si em uma dualidade na qual um
mesmo indivíduo realiza e responde as perguntas que coloca a si mesmo. Essa dualidade do estado
mental seria a indicação mais convincente de que os homens existem, de fato, essencialmente no plural.
Essa realização tipicamente humana de pensar consigo mesmo “sugere que a diferença e a alteridade,
características tão destacadas do mundo das aparências tal como é dado ao homem, seu habitat em
meio a uma pluralidade de coisas, são também as mesmas condições do ego mental do homem, já que
ele só existe na dualidade”705. Para finalizar, o dois-em-um socrático deixa entrever que a condição
política da pluralidade também é a condição para a solitude do pensamento. O resultado moral dessa
consciência de si mesmo, consciência esta que sem a qual não haveria a faculdade de pensar, pode ser
analisado mais uma vez por uma metáfora de Sócrates: dizia ele que quando voltava para casa, após
suas atribulações no espaço público, havia alguém a esperá-lo, um sujeito muito irritante que viveria a
interrogá-lo, seu daímon. E, já que viviam sob o mesmo teto, não seria prudente entrar em desacordo
com aquele que seria forçado a ter como companhia para sempre, uma vez que preferiria desavir com
o mundo todo a parar de pensar. Assim, pensando com Sócrates, afirma-se que esse indivíduo que me
interroga quando volto para casa, que não deixa de ser eu mesmo, que cria um constante tribunal de
explicação ao qual devo comparecer sem reservas, esse sujeito receberia o nome de “consciência
moral” em épocas posteriores. Tal consciência moral é como alguém que exige prestação de contas,
que aponta sobre o que se arrepender, que deixa os homens cientes de si e cheios de embaraços, o
sujeito que lembra de seus feitos. “O que faz um homem temê-la é a antecipação da presença de uma
testemunha que o aguarda apenas se e quando ele voltar para casa”706. Para simplificar a discussão,
Arendt oferece o exemplo de um diálogo de Shakespeare, sobre Ricardo III, no qual se notaria a
desarmonia entre o homem e sua consciência moral:
What do I fear? Myself?/ De que estou com medo? De mim mesmo?
There’s none else by / Não há mais ninguém aqui
Richard loves Richard: that is, I am I / Ricardo ama Ricardo: isto é, eu sou eu
Is there a murderer here? No. Yes, I am / Há um assassino aqui? Não. Sim, eu
Them Fly: what! From myself? / Então fujamos! Como? De mim mesmo?
Great reason why/ Boa razão essa
Lest I revenge. What! / Por medo de que me vingue. Como?
Mysel upon myself?/ Eu de mim mesmo? Alack! I Love myself / Ora! Eu me amo.
Wherefore? For any good / Por quê? Por algum bem
That I myself have done unto myself?/ Que possa ter feito a mim mesmo?
Oh! No: Alas! I rather hate myself / Mas não, ai de mim! Eu deveria me odiar
705 ARENDT, H. A Vida do Espírito, p. 209. 706 ARENDT, H. A Vida do Espírito, p. 213.
208
For rateful deeds committed by myself / Pelos atos execráveis cometidos por mim
I am a villain. Yet I lie, I am not / Sou um canalha. Não, minto; eu não sou.
Fool, of thyself speek well / Idiota, fales bem de ti mesmo.
Fool, do not flatter / Idiota, não te adules.707
Arendt estabelece que a consciência moral é um efeito colateral acessório da experiência do
ego pensante. Dessa forma, seu critério de ação não seguirá regras usuais, códigos reconhecidos e
acordados pela sociedade, mas, como já exposto, seguirá apenas a possibilidade de viver ou não em
paz consigo mesmo quando chegar a hora de examinar e repensar sobre cada um dos seus atos e
palavras. Só que não se envolve aqui nenhum conteúdo específico, nenhum dever especial, nada senão
a pura capacidade de pensamento e da lembrança, pois essa moralidade surge do próprio processo de
reflexão, e não como um resultado do ato reflexivo. E como isso se realiza? Justamente pelo fato de
que, ao invés de dar origem a novos credos, ao invés de se conformar com diretrizes de conduta, o
pensamento as dissolve, ele altera a ordem comum das coisas e se torna perigoso para quaisquer credos
e dogmas. “Na prática, pensar significa que temos de tomar novas decisões cada vez que somos
confrontados com alguma dificuldade”708. É por isso que se pode dizer que pensar exige reflexão
autônoma, bem como juízo autônomo, quando confrontado com as coisas do espaço público. Contudo,
do mesmo modo que Arendt defende a possibilidade de pensar presente em todos os indivíduos, a
autora não esquece que a inabilidade para tal atividade também se mostra como um fenômeno potencial
em qualquer homem. O problema disso é que, como no caso de Adolf Eichmann, essas pessoas voltam
para suas casas literalmente sozinhas, pelo simples fato de estarem desacompanhadas de si mesmas. E,
desse modo, sem ter ninguém a quem prestar contas; a companhia a se escolher para toda a vida se
torna indiferente. Nesses casos, a ausência de pensamento demonstra seus riscos políticos e morais
peculiares. De acordo com Arendt, esse é o caminho da ausência de pensamento:
Ao proteger contra os perigos da investigação, ela [ausência de pensamento]
ensina a aderir rapidamente a tudo o que as regras de conduta possam prescrever
em uma determinada época para uma determinada sociedade. As pessoas
acostumam-se com mais facilidade à posse de regras que subsumem particulares
do que propriamente ao seu conteúdo, cujo exame inevitavelmente as levaria à
perplexidade. Se aparecer alguém, não importa com que propósitos, que queira
abolir os velhos ‘valores’ ou virtudes, esse alguém encontrará um caminho aberto,
desde que ofereça um novo código. Precisará de relativamente pouca força e nenhuma persuasão – isto é, de provas de que os novos valores são melhores do
que os velhos – para impor o novo código. Quanto maior é a firmeza com que os
homens aderem ao velho código, maior a facilidade com que assimilarão o novo.
Na prática, isso significa que os mais dispostos a obedecer serão os que foram os
mais respeitáveis pilares da sociedade, os menos dispostos a se abandonarem aos
pensamentos – perigosos ou de qualquer outro tipo –, ao passo que aqueles que
707 Apud ARENDT, H. A vida do Espírito, p. 211-212. 708 ARENDT, H. A Vida do Espírito, p. 199.
209
aparentemente eram os elementos menos confiáveis da velha ordem serão os
menos dóceis709.
Quando discute a respeito dos colapsos morais atribuídos a uma abrupta mudança estrutural do
âmbito político na Alemanha por conta do nazismo em 1933, Arendt se faz uma pergunta sobre o modo
como agiu uma pequena parcela da população, na época, e tenta respondê-la ao mobilizar os seus
próprios termos teóricos acima expostos sucintamente. A pergunta é: o que diferiria aqueles poucos
que não colaboraram com o regime e se recusaram a participar da vida pública nazista? Para Arendt,
estava claro que os não-participantes simplesmente ousaram pensar e julgar por si mesmos. E isto quer
dizer: foram aqueles em quem a consciência não funcionava de modo automático, “como se
dispuséssemos de um conjunto de regras aprendidas ou inatas que aplicamos caso a caso, de modo que
toda nova experiência ou situação já é prejulgada, e precisamos seguir o que aprendemos ou o que
possuímos de antemão”710. Ou seja, eles não tinham outros padrões de certo e errado para além
daqueles que já tinham sido destruídos, eles também não trocaram um sistema de valores por outro
sistema oferecido, como diz a citação acima. O fato é que a consciência de tais indivíduos funcionava
por um outro critério, diz Arendt: a convivência harmoniosa consigo mesmos. Ao se perguntarem se
seriam capazes de continuar convivendo em paz consigo mesmos após a realização de determinados
atos, preferiram nada fazer, preferiram se ausentar e, no extremo, preferiram morrer quando forçados
a tomar parte do que estava acontecendo. “Em termos francos, recusavam-se a assassinar, não tanto
porque ainda se mantinham fiéis ao comando ‘Não matarás’, mas porque não estavam dispostos a
conviver com assassinos – eles próprios”711. Em outras palavras, o critério fundamental para essas
posições repousa na atividade do pensamento – esse diálogo silencioso que nos coloca em companhia
de um outro que somos nós mesmos e que só pode ser levado adiante entre amigos, com o princípio
supremo de não se contradizer. Esse tipo de constatação possibilitou a Arendt um considerável
aprofundamento no que diz respeito à provável relação entre a atividade do pensamento e o problema
de se evitar o mal; bem como à concepção de que, se a ética depende de algum modo do “pensar”,
então, deve ser algo centrado no “eu”, pois o pensamento não faz parte da ordem natural do mundo,
não possui relação direta com o mundo, trata-se de uma atividade que articula o estar só e que
impulsiona a conduta moral a partir de seu próprio modo de operação ao estabelecer um relacionamento
do homem com ele mesmo.
709 ARENDT, H. A Vida do Espírito, p. 199. 710 ARENDT, H. “Responsabilidade pessoal sob a ditadura”. In: Responsabilidade e Julgamento, p. 107. 711 ARENDT, H. “Responsabilidade pessoal sob a ditadura”. In: Responsabilidade e Julgamento, p. 107.
210
Em vista disso, é correto dizer que a preocupação de Arendt em toda essa incursão pela vida
do espírito é ainda com o impacto dos eventos totalitários na história política dos homens e, por
conseguinte, é uma tentativa teórica de lidar com eles. Assim, ainda que Sócrates assimile uma
consciência ético-espiritual que interesse a Arendt, que teria no “eu” a sua maior valoração sem deixar
de ter em conta uma coletividade de cidadãos, como já explicado, quem encarna o “pensamento” de
conduta moral que recusa, de fato, o escurecimento da vida política, nesses “tempos sombrios”, é
Jaspers. Arendt sustenta suas reflexões morais ao lado de Sócrates porque lhe interessa sobretudo
explicar a posição pessoal de figuras alemãs como Jaspers durante o período nazista. O maior exemplo
para ela, nesse momento, não é o filósofo antigo, não é a nostalgia de uma experiência de pensamento
supostamente desaparecida na modernidade, mas o seu ex-professor – alguém que vivenciou e
experimentou os desastres e os sintomas morais e políticos do mesmo período que ela.
De acordo com Arendt, quando quase todos se deixaram levar impensadamente pelos
movimentos totalitários, aqueles que se negaram a atender às exigências exteriores por refletirem
consigo mesmos sobre o que não podiam fazer, apesar de renunciarem ao contexto político,
simbolizaram a luz do pensamento em tempos de escuridão, simbolizaram um tipo de ação. Em outros
termos, eles foram forçados a aparecer mesmo sem realizarem nada publicamente, pois a recusa se
tornou patente, o pensar por si próprio se mostrou como aqueles sinalizadores de fogo que indicam a
existência de algo diferente ou que apontam para saídas de emergências em determinadas situações.
“Em tais emergências, resulta que o componente depurador do pensamento (a maiêutica de Sócrates,
que traz à tona as implicações das opiniões não examinadas e portanto as destrói – valores, doutrinas,
teorias e até mesmo convicções) é necessariamente político”712. É crucial notar que, antes mesmo
desses escritos sobre o “pensar” e o “julgar”, em uma laudatio a Jaspers, Arendt já tinha fornecido
fisionomia a essa metáfora, pois, para ela, era como se só Jaspers, “na sua inviolabilidade, pudesse
iluminar esse espaço que a razão cria e preserva entre os homens, e como se a luz e a amplitude desse
espaço subsistissem mesmo que nele só restasse um único homem”713. Enfim, aqui se deixa entrever
algo que merece atenção, uma vez que o conceito de “claridade”, de necessidade de “trazer à luz” as
verdades comunicativas, perpassa quase toda filosofia existencial de Jaspers e uma vez que, para
Arendt, “como a paixão pela luz em si mesma dominou toda a sua existência, ele [Jaspers] pode ser
como uma luz nas trevas, irradiando a partir de uma fonte oculta de luminosidade”714.
712 ARENDT, H. A Vida do Espírito, p. 215. 713 ARENDT, H. “Karl Jaspers: uma laudatio”. In: Homens em tempos sombrios, p. 93. 714 ARENDT, H. “Karl Jaspers: uma laudatio”. In: Homens em tempos sombrios, p. 93.
211
O “esclarecimento da existência” nas teorias de Jaspers está intimamente relacionado à
liberdade humana e almeja alcançar, como o próprio autor afirma, escolhas, decisões, possibilidades e
condutas. Pois quanto mais realizo algo que não condiz ou que não garante o meu próprio existir em
meio à liberdade dos seres humanos e a uma pluralidade de outras existências, mais me afasto de mim
mesmo. Em poucas palavras, só há existência possível onde há também abertura para se empreender
atitudes e decisões no campo da liberdade, isto é, a existência nada mais é do que a atualização da
liberdade no sentido de afirmar, querer e vivenciar em comunidade, muito mais do que simplesmente
pensar em solitude, a própria existência e a própria liberdade de si e dos outros homens. Em todo caso,
o que interessa aqui é ter em conta que a consciência e a decisão de encarar a própria existência, a
partir de escolhas livres, coincidem com a noção jasperiana de personalidade. No artigo Karl Jaspers:
uma laudatio, Arendt afirma categoricamente que o que fez Jaspers ser inviolável, de uma perspectiva
ética e política, foi o seu apreço pela liberdade existencial. Não obstante, é como se, do ponto de vista
arendtiano, Jaspers tivesse colocado em prática o seu próprio sentido de “existência”, com toda a carga
moral que a reveste, ao ser confrontado com a realidade totalitária. Isso é o que o próprio filósofo de
Heidelberg admite explicitamente em um curso ministrado em 1937, intitulado Filosofia da Existência:
“Pessoalmente, para mim, a única possibilidade que restou foi a escondida vida do pensamento, na
qual podíamos estabelecer um álibi para a essência alemã, ainda que no espírito. Eu me tornei alemão
de um modo tal que eu nunca tinha tido consciência, não de um modo nacional, mas em um sentido
ético”715. Ou seja, Jaspers também concorda que se refugiou na vida espiritual durante o regime nazista.
Ele mesmo chamou esse período de “migração interna”, migração para o interior do pensamento, que,
no fim das contas, teve um papel político para além da ética de si mesmo. Arendt defende que ele
exemplificou uma moralidade que age, pois em “situações limite” – para usar a expressão de Jaspers
– a consideração interna de que eu tenho que poder conviver comigo mesmo se torna política por
implicação, ou seja, o “eu” como critério fundamental da conduta moral se torna uma espécie de
medida de emergência para crises políticas. De modo muito sarcástico, Arendt expressa:
E isso implica que a invocação de princípios supostamente morais para questões
da conduta cotidiana é em geral uma fraude; quase não precisamos de experiência
para saber que os moralistas estreitos, que apelam constantemente para os
elevados princípios morais e padrões estabelecidos, são em geral os primeiros a
aderir a quaisquer outros padrões que lhes sejam oferecidos, e que a sociedade
respeitável, o que os franceses chamavam les bien-pensants, está mais sujeita a se
tornar nada respeitável e até criminosa do que a maioria dos boêmios e beatniks.
Tudo o que estivemos considerando até agora é importante apenas em
circunstâncias excepcionais; e os países em que essas circunstâncias excepcionais
715 JASPERS, K. Epílogo de Philosophy of Existence, p. 98.
212
se tornaram a regra da nação, e a questão a respeito de como se comportar em tais
condições se tornou o problema mais urgente, são acusados, por esse mesmo fato,
de mau governo, para usar palavras brandas. Mas aqueles que em condições
perfeitamente normais apelam para padrões morais ambiciosos são muito
parecidos com aqueles que pronunciam o nome de Deus em vão716.
No elogio que faz à pessoa de Jaspers em Homens em Tempos Sombrios, pois uma laudatio é
um “louvor cujo o propósito é elogiar o homem e não a sua obra”717, Arendt gasta algumas páginas
para defender um sentido público de personalidade. Nesse contexto, a autora diz que ao levar em
consideração a grandeza e a dignidade da pessoa em causa na ocasião, Jaspers, “na medida em que ele
é mais do que tudo aquilo que faz ou cria”718, uma personalidade pública vem à luz e se torna uma
realidade muito distinta das meras características subjetivas e individuais, pois aquilo que é “pessoal”
não é necessariamente sinônimo de “subjetividade”. Pessoa e indivíduo não representam a mesma coisa
nesse contexto, para Arendt. À pessoa estão vinculados o mérito da vida, os atos e a voz vivos que
fazem-na uma personalidade pública, esta que o indivíduo não consegue controlar por si mesmo; ao
indivíduo, de modo geral, vinculam-se elementos subjetivos e o processo criador de algo, estes que
não são, todavia, quesitos de importância pública. Mas nem toda subjetividade é privada. “Presas dos
nossos preconceitos modernos, pensamos que só a ‘obra objetiva’, distinta da pessoa, pertence ao
público; que a pessoa por trás dela e a sua vida são assuntos do domínio privado, e que os sentimentos
ligados a essas coisas ‘subjetivas’ deixam de ser autênticos [...] ao olhar público”719. Para Arendt, o
domínio público é o domínio da aparição da personalidade, e não o foro privado. Assim, “é
precisamente a pessoa humana, em toda a sua subjetividade, que precisa aparecer em público para
alcançar uma realidade plena”720. Ao criar o terreno para expor ao público a pessoa de Jaspers, portanto,
Arendt nos deixa perceber que o filósofo alemão encarna todas as características morais potenciais da
atividade do pensamento. Ou seja, Jaspers manteve sua integridade diante dos ataques ideológicos e
do terror totalitário, tal integridade e consistência que são explicadas por ela como sendo o dois-em-
um socrático, que preza, no fim das contas, por não tomar atitudes que contradigam as suas próprias
escolhas. Trata-se, antes de tudo, da integridade pessoal, que não é fincada nem abalada pela moda ou
pela troca de padrões de conduta, pois o pensamento jasperiano é indiferente àquilo que se faz como
convenções. Para ela, Jaspers possuía uma “alegre indiferença àquilo que as pessoas dizem e
716 ARENDT, H. “Algumas questões de filosofia moral”. In: Responsabilidade e Julgamento, pp. 169-170. 717 ARENDT, H. “Karl Jaspers: uma laudatio”. In: Homens em Tempos Sombrios, p. 87. 718 ARENDT, H. “Karl Jaspers: uma laudatio”. In: Homens em Tempos Sombrios, p. 88. 719 ARENDT, H. “Karl Jaspers: uma laudatio”. In: Homens em Tempos Sombrios, p. 88. 720 ARENDT, H. “Karl Jaspers: uma laudatio”. In: Homens em Tempos Sombrios, p. 88.
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pensam”721. De fato, em seu autorretrato que foi televisionado, Jaspers conta uma conhecida história:
desde criança, desde o colégio primário, postava-se contra convenções e regras aceitas, chegando a ser
duramente repreendido pelo diretor do colégio certa vez por conta dessa sua postura rigidamente
autônoma, que acabaria por não se curvar nem a Hitler, diferentemente de muitos outros “pensadores
profissionais”. Ainda no texto Karl Jaspers: uma laudatio, Arendt comenta que aquilo que ela
denomina por personalidade pública se assemelha bastante ao daimon grego, ao daimon socrático, pois
é mais facilmente reconhecido e descrito pelo olhar público do que pela própria pessoa que o possui.
Novamente aqui há uma relação entre Sócrates e Jaspers nos textos arendtianos. “Esse daimon – que
nada tem de demoníaco – esse elemento pessoal de cada homem, só pode manifestar-se onde exista
um espaço público, nisto reside o significado mais profundo do domínio público, que ultrapassa em
muito aquilo que normalmente designamos como vida política”722. Segundo Arendt, o daimon
jasperiano era político em primeira grandeza, era de uma dignidade à altura daquilo que os romanos
denominavam por humanitas, pois nunca se desenvolveu em completa solidão, sempre enfrentou as
dificuldades do mundo e nunca se escondeu somente na concha do seu pensamento. Humanitas, para
Arendt, é “precisamente o que Kant e depois Jaspers entenderam por Humanitat, a personalidade válida
que, uma vez adquirida, o homem nunca mais perde, mesmo que todos os outros dons do corpo e do
espírito sucumbam ao poder destruidor do tempo”723. Nesses trechos é possível perceber que Arendt
está desenhando uma figura inspiradora e exemplar, uma “inviolabilidade”, “que para quantos o
conheceram significou muito mais do que resistência e heroísmo. Significou uma confiança que não
necessitava de confirmação, uma certeza de que nesses tempos em que tudo podia acontecer havia uma
coisa que não podia acontecer”724. Anos depois, a autora diria o seguinte: “Essas pessoas não são nem
heroínas nem santas, e se acabam se tornando mártires, o que claro, pode ocorrer, isso acontece contra
a sua vontade”725. Se os domínios totalitários provaram que tudo era possível, como ela diz na obra
Origens do Totalitarismo, Arendt abre uma exceção nessas passagens, qual seja: quebrar a confiança
em Jaspers não era possível.
Para expor a exemplaridade de Jaspers como aquele que disse não ao totalitarismo e
representou a luz em tempos sombrios, cabe citar o seguinte paragrafo de Arendt: “Para ele, a
responsabilidade não é um fardo e não tem nada a ver com imperativos morais. Brota naturalmente de
721 ARENDT, H. “Karl Jaspers: uma laudatio”. In: Homens em Tempos Sombrios, p. 94. 722 ARENDT, H. “Karl Jaspers: uma laudatio”. In: Homens em Tempos Sombrios, p. 89. 723 ARENDT, H. “Karl Jaspers: uma laudatio”. In: Homens em Tempos Sombrios, p. 90. 724 ARENDT, H. “Karl Jaspers: uma laudatio”. In: Homens em Tempos Sombrios, pp. 92-93. 725 ARENDT, H. “Algumas questões de filosofia moral”. In: Responsabilidade e Julgamento, p. 143.
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um prazer inato em tornar manifesto, em clarificar o obscuro, em iluminar as trevas. Jaspers amou
durante tanto tempo a luz que esta marcou toda a sua personalidade”726. Contudo, pelo modo como
Arendt pinta Jaspers em momentos como esses, com uma diferença qualitativa tão grandiosa e
marcante, a impressão que pode passar é a de que tais tipos de pessoas são raros acasos da natureza,
ou de que esse tipo de pensamento seria um dom adquirido por um número ínfimo de indivíduos, de
que seria um talento para poucos. Ora, é justamente essa imagem que a própria filosofia de Jaspers
tenta combater com todas as suas forças. Arendt se mostra consciente disso no discurso fúnebre em
memória de Jaspers quando diz: “o que foi real em uma pessoa pode também ser possível para todo
mundo”727. Como já expressado várias vezes, para Jaspers, esse exercício da atividade de pensar não é
um privilégio de poucos, e Arendt concorda com essa concepção – a potencialidade do pensamento é
de todos, a escolha de ativá-lo é que diferencia uns dos outros. Infelizmente, dirá Arendt, de 1933 a
1945 a porcentagem de indivíduos que ousaram pensar por si mesmos foi bem baixa na Alemanha.
Além disso, como defendo no último tópico deste capítulo, essas figuras pessoais exemplares
dependem de determinadas condições para se formarem e serem constituídas, condições estas que se
resumem a uma prática política, um ethos político, num contexto de democracia e de liberdade, para
usar das palavras do próprio Jaspers. Ou seja, não são simplesmente pessoas com dádivas e talentos
especiais, como se fossem gênios morais, colocadas acima do restante da humanidade.
Arendt discute isso ao tratar do pensar como atualização da personalidade moral. Ela diz em
Algumas questões de filosofia moral: “a qualidade de ser uma pessoa, distinta de ser meramente
humano, não está entre as propriedades, dons, talentos e defeitos individuais congênitos e dos quais é
possível usar e abusar. A qualidade pessoal de um indivíduo é precisamente a sua qualidade
‘moral’”728. Para a pensadora, no registro da terminologia moral, a qualidade pessoal de um indivíduo
coincidiria com sua qualidade “moral”, pois a moral parte do sujeito, da relação dele com ele mesmo,
ou melhor, de um diálogo, de uma fala consigo mesmo que se chama pensamento. No exercício do
pensamento, portanto, realiza-se aquilo que, desde Aristóteles, distingue o meramente humano da
qualidade de ser uma pessoa, qual seja, a capacidade da fala – e é esta que vai caracterizar realmente o
que se denomina de personalidade. Trata-se de uma espécie de atualização, portanto. Aliás, Arendt
relembra em alguns dos seus textos que a palavra “pessoa” tem origem no termo “persona” – esta que
era um tipo de máscara que cobria o rosto dos atores antigos, de modo que, na altura da boca da
726 ARENDT, H. “Karl Jaspers: uma laudatio”. In: Homens em Tempos Sombrios, p. 91. 727 ARENDT, H. “Speech given by Hannah Arendt at the public memorial service for Karl Jaspers, University of
Basel, March 4, 1969”. In: Correspondence Hannah Arendt Karl Jaspers, 1926-1969, p. 684. 728 ARENDT, H. op. cit., In: Responsabilidade e Julgamento, p. 143.
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máscara, havia uma abertura larga pela qual soava a voz individual do ator; per-sonare, “soar por”,
pessoa. Assim, para Arendt, se alguém, a si mesmo, nega o exercício de pensar, nega também,
automaticamente, a sua qualidade de ser uma pessoa, pois nega o dom da fala que teria a “finalidade
de indicar o conveniente e o nocivo, e, portanto, também o justo do injusto”729. Ao lançar luz à
personalidade de Jaspers, portanto, no fim das contas, o que faço aqui é destacar a sua qualidade moral
aos olhos arendtianos.
Essa imagem quase sem retoques constantemente atribuída a Jaspers, por parte de Arendt, foi
justamente o que levaria a autora a endossar e requisitar formalmente, em parceria com a Universidade
da Basiléia, o prêmio Nobel da Paz ao filósofo alemão durante a década de 1960. Mesmo que não
exista o prêmio Nobel de filosofia, alguns filósofos já foram condecorados com nomeações ao Nobel
de literatura, como Sartre, Camus e Henri Bergson, mas não era o prêmio de literatura que Arendt
acreditava ser Jaspers merecedor. Era o Nobel da Paz, uma vez que esse prêmio tem um valor e um
significado político – e isso faz toda a diferença nesse contexto. “O prêmio da Paz é, na realidade, o
prêmio Nobel da Política, e, no caso de Jaspers, isso seria inteiramente apropriado, pela significância
do homem e de suas intenções mais íntimas”730. Arendt justifica esse pedido do Nobel da Paz a Jaspers
em uma carta de 1966 endereçada à Universidade de Chicago, pedindo o apoio da intelectualidade
norte-americana nessa causa. Ela se expressa da seguinte maneira: em todos os momentos decisivos
de 1930 até a década de 1960, Jaspers não foi apenas um filósofo, mas um cidadão do mundo
extremamente comprometido com a política mundial, que interveio no âmbito público com seus livros
e suas ideias quase sempre em confronto com poderes estabelecidos, sem medo de ir contra à opinião
pública de uma época catastrófica. Arendt cita as obras políticas principias de Jaspers, aos moldes do
que ela faz em Homens em Tempos Sombrios, como livros decisivos de uma época. Seriam tais as
obras, de acordo com ela: Situação Espiritual de Nosso Tempo; A questão da Culpa Alemã; e A Bomba
Atômica e o futuro da Humanidade. Arendt diz: “em 1931, dois anos antes de Hitler ascender ao poder;
em 1945, no momento da derrocada; e agora novamente, no fim da era Adenauer, Jaspers pisou dentro
da arena política, levantou a sua voz, analisou o que estava acontecendo e o que estava prestes a
acontecer com um enorme montante de inteligência política e fervor moral”731. Segundo ela, conceder
o prêmio a Jaspers representaria dois aspectos importantes de significância política: primeiro, o
729 ARISTÓTELES. Política, p. 15. 730 The Hannah Arendt Papers at the Library of Congress Jaspers, Karl, Nobel Prize, 1966 (Series: Subject File, 1949-
1975, n.d.) Image 2 of 7. 731 The Hannah Arendt Papers at the Library of Congress Jaspers, Karl, Nobel Prize, 1966 (Series: Subject File, 1949-
1975, n.d.) Image 2 of 7.
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reconhecimento da importância da filosofia para a política; depois, significaria entregar o prêmio para
um alemão que se contrastaria à imagem da Alemanha dos séculos XIX e XX. No pedido original feito
pela Universidade da Basiléia aos membros da Academia, e subscrito por Arendt, Jaspers é
recomendado pelo pesquisador cientista em psiquiatria que era, por ser grande intérprete filosófico,
pela característica de pensador sistemático, por ser pensador político, pela mente universal que possuía
e, por fim, pela exemplaridade pessoal. O documento afirma: “para o homem que, por meio de sua
integridade, tornou-se o exemplo paradigmático do que o filósofo pode fazer em serviço da razão, da
verdade e da liberdade em nossos tempos, e a quem a honra significaria pagar homenagem à filosofia
em si mesma”732. Em sua carta, Arendt adiciona os seguintes comentários sobre o homenageado:
“Jaspes é, em muitos sentidos, uma figura única; ele é hoje o único grande europeu que fala sobre os
problemas políticos sem comprometimento com partidos ou causas específicas. Suas convicções
políticas são consequência natural de sua filosofia e estão concentradas sobre liberdade e razão”733. Em
resumo, o “dizer não” de Jaspers ao nazismo, a sua subversividade exemplar, segundo Arendt, merecia
um prêmio político, um reconhecimento mundial e público. Ou seja, é indubitável que a figura de
Jaspers é um dos exemplos que Arendt utiliza, de modo vicário, para o desenvolvimento de seus
conceitos morais, ou para se pensar as questões morais – seus, dilemas, dificuldades e colapsos –
envolvidas na Alemanha do século XX, onde 80 milhões de pessoas de uma sociedade culturalmente
desenvolvida foram testemunhas e cúmplices de um dos maiores crimes da história contra a
humanidade. Assim, cumpre destacar que Jaspers encarna não apenas a negatividade moral do
pensamento nos termos arendtianos, mas encarna também o que ele próprio denominava de
“existência”, por meio do que o autor acreditava ser o processo de filosofar. Dessa forma, é possível
concluir que o filosofar de Jaspers, que esclarece a sua própria existência, é também moralmente
exemplar para Arendt. Isso pode ocorrer porque, como ela sabia muito bem, não há no pensamento de
Jaspers uma separação entre teoria e práxis.
O pensamento jasperiano é profundamente marcado pela tensão e pela interação entre dois
termos: razão e existência – que dão título a uma conferência que o autor ministrou, inclusive. A razão
esclarece a existência, confere-lhe significados limitados; a existência confere agudez histórica à razão,
materialidade oferecida pelo ser do homem. Razão e existência são imprescindíveis uma a outra,
realizam-se plenamente em dependência e interação uma com a outra. “No filosofar, tal como entende
732 The Hannah Arendt Papers at the Library of Congress Jaspers, Karl, Nobel Prize, 1966 (Series: Subject File, 1949-
1975, n.d.) Image 5 of 7. 733 The Hannah Arendt Papers at the Library of Congress Jaspers, Karl, Nobel Prize, 1966 (Series: Subject File, 1949-
1975, n.d.) Image 2 of 7.
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Jaspers, não é possível separar theoria e práxis, termos que envolvem quiçá a máxima tensão interna
de sua própria obra, razão e existência”734. Nos termos de Jaspers, a razão nada mais é do que a
capacidade de filosofar, seria o lugar do desenvolvimento teórico; e a existência nada mais é do que
uma práxis que se acessa pelo filosofar. Nesse sentido, o autor defende que o significado último do
pensar filosófico é uma vida filosófica, mas não a bíos theorétikos dos gregos antigos, e sim a prática
de afirmar a própria existência. Em poucas palavras, o filosofar não é um meio para se atingir
conhecimentos, mas uma ação interior que nos faz chegar a nós mesmos. A distinção tradicional entre
vita activa e vita contemplativa é definitivamente abandonada, portanto. O pensamento é uma ação
interior como forma de consciência de si mesmo que se experimenta a partir das decisões e escolhas
pessoais. Embora Arendt não acreditasse que o pensamento fosse uma “ação interior”, assim como
Jaspers, mas sim uma “atividade” – que não é um ato que busca atingir um fim conscientemente –, a
autora diz que a concepção jasperiana do que significa “pensar” tem uma enorme vantagem em relação
à metafísica tradicional. Para ela, Jaspers não interpreta a natureza do pensamento como contemplação,
e, dessa forma, coloca-se junto a ele na defesa de que o pensamento é “uma atividade que tem certos
resultados morais, isto é, uma atividade em que aquele que pensa se constitui em alguém, em uma
pessoa ou uma personalidade”735. Nesse contexto, para Jaspers, não há mais uma separação entre os
objetos da pesquisa filosófica, de um lado, e a formação pessoal subjetiva, de outro – o que resta é o
filosofar como experiência ética de si mesmo. É por isso que Paul Ricoeur e Mikel Dufrenne dizem o
seguinte sobre Jaspers: em sua amplitude e na vertical de si mesma, “toda a filosofia de Jaspers é uma
ética: não há descrição que não seja ao mesmo tempo um chamado à criação de si mesmo, à amizade,
à coragem cotidiana; a doutrina da verdade é menos uma epistemologia do que uma ética da veracidade.
Em uma palavra: a consciência é menos um espetáculo do que uma ação”736. Jaspers comenta sobre
uma práxis filosófica, não técnica, não utilitária. A filosofia retira suas questões da vida prática
humana, das situações mundanas que aparecem aos homens (como podemos conhecer algo
cientificamente? Como é possível a comunicação? Como nos é acessível a verdade?), e acaba não por
construir um saber sobre essa vida, mas por ser a prática de uma ação interior que encontra cifras do
ser em si mesmo. Por esses motivos, portanto, suponho que Jaspers só pode ser uma exemplaridade
pessoal – moral e política – à filosofia arendtiana porque o pensamento filosófico jasperiano é
734 PRESAS, M. Situacion de la filosofia de Karl Jaspers: con especial consideracion de su base kantiana, p. 02. 735 ARENDT, H. “Algumas questões de filosofia moral”. In: Responsabilidade e Julgamento, p. 171. 736 Apud PRESAS, M. Situacion de la filosofia de Karl Jaspers: con especial consideracion de su base kantiana, p. 09.
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empregado como um exercício de sua própria personalidade. Se sua pessoa é ética, isso se relaciona à
hipótese de que seu filosofar o fez assim.
Nas conferências sobre Algumas questões de filosofia moral, Arendt discute sobre dois grandes
paradoxos envolvidos em algumas das principais proposições morais, centradas no self, que a história
filosófica e religiosa produziu – como o “Ama a teu próximo como a ti mesmo”; “não faça aos outros
o que não queres que façam a ti”; “Aja de tal modo que queiras que a máxima de sua ação se torne uma
lei universal”. O primeiro paradoxo é que, a despeito de evitarem o egoísmo e de incentivarem o
desprendimento de si que supostamente ensinam, a partir de figuras exemplares como Jesus Cristo, as
proposições ainda tomam o eu, o self, como o padrão de julgamento ético. O segundo paradoxo é que,
segundo Arendt, as proposições são sustentadas por obrigações e punições que procuram por uma
validade geral de si mesmas, mas que, na prática, tais obrigações e punições acabam por ser
desnecessárias. Por exemplo, de acordo com a autora, Kant adiciona sorrateiramente uma noção de
“obediência” ao Imperativo Categórico, e insere o desprezo a si próprio como punição a quem não o
obedece, para então validá-lo de modo universal. As proposições religiosas transferem à figura de Deus
a obrigatoriedade de seus preceitos e se valem da imagem punitiva do purgatório para serem validadas
de uma perspectiva geral. Contudo, diz Arendt, para as pessoas que seguem de fato essas proposições
morais, não é nenhum tipo de dever ou de punição que os faz agir de acordo com elas. Para Arendt, as
proposições morais são axiomáticas, e isso quer dizer simplesmente que não podem ser provadas,
demonstradas, nem retiram seu convencimento de outros lugares a não ser da evidência de si mesmas.
“E aqueles que [...] acham as proposições morais evidentes em si mesmas, não precisam de
obrigação”737. Ou seja, a força desses preceitos morais não se encontra em um “deves” ou “não deves”
fazer algo, mas em um “posso” ou “não posso” fazer alguma coisa, pois quem escolhe por não cometer
um crime não precisa ser obrigado a isso. “O lado positivo desse ‘não posso’ é que corresponde à
evidência por si própria da proposição moral. Significa não posso matar pessoas inocentes assim como
não posso dizer: ‘dois mais dois são cinco’”738. É por essa razão que a proposição de Sócrates é mais
interessante para Arendt, ele afirma sem recursos a uma obrigação: “é melhor sofrer o mal do que o
cometer, e não: deves antes sofrer o mal do que praticá-lo”739. Assim, dirá Arendt, a consciência
daqueles que negaram o nazismo não tinha um caráter obrigatório, pois eles diziam: “isso não posso
fazer”, em vez de “isso não devo fazer”. Jaspers, por conseguinte, não seguia um dever, mas enxergava
737 ARENDT, H. “Algumas questões de filosofia moral”. In: Responsabilidade e Julgamento, p. 142. 738 ARENDT, H. “Algumas questões de filosofia moral”. In: Responsabilidade e Julgamento, p. 142. 739 ARENDT, H. “Algumas questões de filosofia moral”. In: Responsabilidade e Julgamento, p. 141.
219
como evidência o fato de que um crime continua sendo um crime mesmo quando legalizado pelo
Estado. Arendt apresenta essas relações de modo mais específico:
Um exemplo de nossas experiências recentes ilustra esse aspecto. Se examinamos os poucos, os muito poucos, que no colapso moral da Alemanha
nazista permaneceram completamente intactos e livres de toda culpa, vamos
descobrir que eles nunca passaram por nada semelhante a um grande conflito
moral ou a uma crise de consciência. Não ponderaram as várias questões, a
questão do mal menor ou da lealdade para com a sua pátria, seu juramento ou
qualquer outra coisa que pudesse estar em jogo. Nada parecido. Talvez tivessem
debatido os prós e os contras da ação, e havia sempre muitas razões que falavam
contra as chances de qualquer sucesso nessa direção; talvez também tivessem
sentido medo, e havia muitas razões para tal. Mas nunca duvidaram que os
crimes permaneciam sendo crimes mesmo se legalizados pelo governo, e que era
melhor não participar desses crimes em qualquer circunstância. Em outras palavras, não sentiam uma obrigação, mas agiam de acordo com algo que lhes
era evidente por si mesmo, mesmo que já não fosse evidente por si mesmo para
aqueles ao seu redor740.
Contudo, há uma diferença crucial entre Sócrates e Jaspers nessas discussões. A exemplaridade
subversiva de Jaspers, e de todos os outros que disseram “não” naquele momento, foi forçada a
aparecer não só porque representa a atividade de pensar, mas porque o próprio processo de reflexão os
fez tomar uma decisão, mesmo que deles com eles mesmos, a partir de um efeito liberador da faculdade
de julgar, de acordo com Arendt. Isto acontece porque, em primeiro lugar, é como se o pensamento
preparasse o terreno para o juízo reflexivo atuar: ao destruir todos os tipos de credos e de regras gerais,
o que resta para analisar caso a caso é o único árbitro que pode lidar com tais situações particulares,
ou seja, o juízo. Assim, Arendt realiza algumas conexões: se a consciência moral é derivada da própria
consciência, uma vez que aquela se realiza por meio da dualidade desta, como se mostrou, então, o
juízo é derivado do pensamento e, além disso, por aquele decidir sobre o certo e o errado, ele é capaz
de manifestar, no mundo das aparências, aquilo que foi refletido anteriormente. Nesses momentos
extremos, as concepções éticas de Arendt se mostram mais enrijecidas, pois foram formuladas
justamente para dar conta de tempos críticos, “tempos sombrios”. O pensar, que libera o julgar, talvez
não previna catástrofes mundanas (o que depende de inúmeros fatores e vetores), mas ao menos previne
catástrofes para o “eu”; e, não obstante, em “situações-limite”, isso pode resguardar a pluralidade do
espaço público no dois-em-um socrático, isto é, pode resguardar a política mediante a própria
moralidade, evitando a banalidade do mal, por exemplo. Fora isso, um outro ponto a se dar valor é que
para a formulação desse tipo de juízo reflexivo, é preciso pensar (com a ajuda da faculdade da
740 ARENDT, H. “Algumas questões de filosofia moral”. In: Responsabilidade e Julgamento, p. 142.
220
imaginação) no lugar das outras pessoas, é preciso que se leve a posição alheia em consideração, é
preciso que se alargue a mentalidade subjetiva e que se pressuponha a presença dos outros para estar
preparado para uma interação plural na aventura do espaço público. Tendo isso em conta, no último
tópico desta tese, apresento Jaspers como o pensador e o cidadão da “mentalidade alargada” por
excelência e, ao mesmo tempo, como o exemplo da personalidade anti-Eichmann.
3.2: Kant entre Eichmann e Jaspers: mentalidade alargada versus obediência cadavérica
Na década de 1970, enquanto escrevia o primeiro volume de The life of the mind, enquanto
tentava entender “esse negócio de pensar”, nas palavras dela, Hannah Arendt apresentava suas
concepções e conclusões parciais em inúmeras conferências pelos Estados Unidos e também pela
Europa (a mais famosa, Gifford Lectures, foi realizada na Escócia, na Universidade de Aberdeen). Em
uma dessas conferências, Arendt expressa:
Assim, acho que esse ‘pensar’, sobre o qual escrevi e estou escrevendo agora –
pensar no sentido socrático –, é uma função maiêutica, um parto. Isto é, expomos
todas as nossas opiniões, preconceitos, o que for; e sabemos que nunca, em
qualquer dos diálogos (platônicos), Sócrates jamais descobriu qualquer filho [da
mente] que não fosse um ovo sem gema. Que se permanece de certo modo vazio
após pensar... e uma vez que estamos vazios, então, de um modo que é difícil de
dizer, estamos preparados para julgar. Isto é, sem ter qualquer livro de regras nas quais você possa subsumir um caso particular, você deve dizer ‘isto é bom’, ‘isto
é mau’, ‘isto é certo’, ‘isto é errado’, ‘isto é belo’, ‘isto é feio’. E a razão pela qual
acredito tanto na Crítica do Juízo, de Kant, não é porque esteja interessada em
estética, mas porque acredito que o modo pelo qual dizemos ‘isto é certo, aquilo
é errado’ não é muito diferente do modo pelo qual dizemos ‘isto é belo, isto é
feio’. Ou seja, estamos agora preparados para encarar os fenômenos, por assim
dizer, de frente, sem qualquer sistema preconcebido. E, por favor, incluindo o meu
próprio741.
Arendt comenta que seria um equívoco tentar estabelecer uma ordem hierárquica entre as
atividades que ela concebe como formadoras da vida do espírito – o pensar, o querer e o julgar. Ou
seja, não haveria graus comparativos de importância entre essas denominadas “faculdades humanas”,
até porque cada uma tem o seu próprio espaço de atuação, cada uma tem a sua própria autonomia e
influência para o funcionamento interno mental. Contudo, ao mesmo tempo, a autora confessa a
inegabilidade de que exista certa ordem de prioridade para que essas próprias capacidades espirituais
sejam colocadas em movimento. Isto porque todas elas possuem como denominador comum a
741 ARENDT apud YOUNG-BRUEHL, E. Hannah Arendt: por amor ao mundo, p. 394.
221
representação de objetos dessensorializados que é feita de modo a preparar o espírito para refletir, isto
é, todas elas são atividades reflexivas, uma vez que lidam com o que escapa à percepção sensível. Para
que a vontade se remeta a alguma coisa que ainda não é, e para que o juízo regresse a algo que já não
é mais, é preciso que a operação universalizante da reflexão se antecipe a todo processo e conceba o
conteúdo “querido” ou “julgado” mentalmente. Ora, mas a reflexão já é, em si mesma, a própria
realização do “pensar” – o próprio lidar mental com objetos ou fenômenos ausentes espaço-
temporalmente que se fazem vivamente presentes ao e pelo espírito. Assim, o pensamento é
indispensável na decisão do que será e na avaliação do que já foi. “Em outras palavras, aquilo que
geralmente chamamos de ‘pensar’, embora incapaz de mover a vontade ou de prover o juízo com regras
gerais, deve preparar os particulares dados aos sentidos, de tal modo que o espírito seja capaz de lidar
com eles na sua ausência”742. Diante disso, pretendo destacar aqui as principais relações entre o
“pensar” e o “julgar”, mediante a figura de Jaspers, sobre as quais Arendt passou tanto a insistir nos
últimos anos de sua vida e tão pouco desenvolveu por função de sua morte, em 1975.
Mesmo que Arendt mal tenha iniciado a escrever o capítulo sobre o “julgar” de A Vida do
Espírito, no qual só deixou duas epígrafes datilografadas, suas reflexões a esse respeito foram reunidas
a partir de uma conferência publicada sob o título de Lectures on Kant’s political philosophy (Lições
sobre a filosofia política de Kant). Em uma carta a Jaspers, de 29 de agosto de 1957, logo após ler o
capítulo sobre Kant do livro jasperiano sobre Os Grande Filósofos, Arendt diz que sempre amou a
terceira crítica acima de todas as outras, mas que o livro nunca falou tão fortemente a ela depois de ter
lido o Kant de Jaspers. Nessa época, Arendt já oferecia indicações da apropriação que faria sobre a
Crítica da Faculdade do Juízo. Com bases em comparações sobre esses textos e fragmentos que
restaram do espólio intelectual arendtiano, é possível defender que a moralidade nos termos de Arendt,
a capacidade de distinguir o certo do errado, depende do pleno funcionamento tanto da atividade do
pensamento quanto do juízo. Mais do que isso, com bases na preocupação arendtiana de entender –
sob a perspectiva das atividades espirituais – como se daria a ação moral e responsável no mundo plural
das aparências, é possível perceber até que ponto as faculdades de pensar e de julgar se estendem ao
domínio estritamente político, no qual a companhia dos outros é sempre uma realidade objetiva para
os homens. Tais atividades mentais relacionam-se com elas mesmas e, simultaneamente, com os
âmbitos da ética e da política, ou seja, possuem importância quando analisadas em relação ao campo
da ação prática, mesmo sabendo que, para Arendt, o plano moral e o plano político não são algo que
se identificam e nem são algo que encontraria redenção para os seus problemas próprios na fuga de um
742 ARENDT, H. A Vida do Espírito, p. 95.
222
para o outro, por assim dizer, como na subordinação hierárquica dos problemas políticos à ética. Assim,
apesar de examinar esses assuntos durante alguns anos, Arendt não escreveu nenhum tratado ético ou
nenhuma obra sistemática contendo doutrinas e princípios morais, por exemplo. Pelo contrário, o que
a inflexibilidade e a intransigência política dos eventos totalitários lhe mostraram foi que os hábitos e
os costumes típicos da construção da moralidade em uma determinada sociedade podem ser
desaprendidos e esquecidos conforme a circunstância, ou seja, que os padrões de comportamento,
embora possam ser ensinados de geração em geração, não estão imunes a qualquer tipo de experiência
e, portanto, também estão sujeitos a mudanças e colapsos. Isso só demonstra que aquilo ao que
chamamos de “ética” e “moral” – assuntos ligados ao problema do bem e do mal, do certo e do errado
– não são resolvidos simplesmente por uma fundamentação geral (ou universal) que seria infalível e
válida para qualquer tipo de problema que envolva tais questões. A vantagem do ponto de partida
teórico de Arendt é que ela toma consciência disso e começa por defender a inexistência de sistemas
morais fechados em si mesmos. O que não quer dizer, evidentemente, que a autora não apresente
maneiras de lidar com os problemas éticos, ou modos de resolver na medida do possível a própria
problemática da flexibilidade que constitui, por definição, esses temas; evitando, assim, a total
relativização estéril das argumentações que alegam a falta de sentido ou a negação da existência de
valores e virtudes humanas. Para Arendt, a perda de parâmetros característica do mundo moderno em
sua facticidade, que não pode ser revertida nem pela construção de novos valores nem pela volta aos
bons tempos dos parâmetros anteriores, só se torna uma situação sem saídas para o mundo moral se se
supõe a incapacidade das pessoas de julgarem as coisas por si mesmas, se se supõe que efetivamente
os homens não são aptos para formar juízos originais, e que o máximo que se pode exigir da faculdade
do juízo humana é a correta aplicação de regras já conhecidas e derivadas de padrões já estabelecidos.
É nesse contexto que Arendt recorre a Kant para expor dois significados distintos para o que
se entende geralmente por “juízo”. Primeiro, juízo pode ser a organização e a subsunção do particular
ao universal, do individual ao geral, baseado na aplicação de parâmetros conceitualizados mediante os
quais se tem identificação de casos concretos e com os quais se pode tomar decisões. Ou seja, um caso
particular é julgado à luz de algo já estabelecido, à luz de um pré-conceito, de um pré-julgamento.
Nessas circunstâncias, os parâmetros não são colocados em questão, eles já são admitidos como a
medida adequada do objeto em julgamento. Contudo, o juízo pode ter outro sentido quando os homens
se encontram confrontados com algo nunca antes visto (não no sentido da novidade ou do ineditismo,
mas como algo que sempre será um novo a cada vez que se dispõe ao juízo) e com o que não se tem
parâmetros à disposição. Nesses momentos, não há qualquer regra ou conceito geral ao qual recorrer,
223
e o que resta é o simples funcionamento da própria faculdade de julgar que deve encontrar modos de
lidar com a situação. Para Arendt, esses juízos são os mesmos que Kant exemplificou ao tratar de
questões estéticas e de gosto, que não podem ser “discutidos”, mas em relação aos quais é lícito
concordar ou discordar. “Na nossa vida cotidiana isso se verifica sempre que dizemos, em face de uma
situação desconhecida, que fulano ou beltrano fez um juízo correto ou equivocado”743. Ou seja, grosso
modo, trata-se de juízos valorativos.
De maneira mais próxima a Kant pode-se dizer que, de fato, o filósofo alemão caracteriza o
juízo de duas formas: determinante e reflexionante. O juízo, então, pode ser considerado como uma
faculdade determinante no sentido de definir um conceito a partir de uma representação empírica dada,
ou seja, partindo de uma percepção sensível (em que a faculdade da imaginação apreende, sintetiza e
relaciona os dados do diverso da intuição; e o entendimento cria uma unidade sintética desse diverso
num conceito do objeto), o juízo determinante trataria de subsumir o objeto a conceitos ou princípios
correspondentes, ou melhor, conseguiria subsumir o particular ao universal determinado, sendo assim
um juízo lógico, pois produz conhecimento objetivo. Não obstante, um juízo pode ser também uma
mera faculdade de refletir sobre uma representação dada, a partir de certo princípio dado. Este é
chamado de juízo reflexionante, pois, apesar de se originar de uma percepção sensível, é pré-
conceitual, ou seja, não pode subsumir o particular ao universal determinado, mas, antes, encontra o
universal de um particular dado a partir da própria situação e da própria reflexão: é como um voltar-se
a si mesmo diante do objeto dos sentidos. Todavia, a intenção kantiana com essa distinção era não só
procurar por uma faculdade humana que decidisse sobre o gosto – sobre o “belo” e o “feio”, sobre o
sublime da natureza ou da arte –, mas também encontrar um princípio a priori ligado a isso e, segundo
ele mesmo, finalizar a sua “tarefa crítica”744. O juízo reflexionante seria aquele que se encaixaria ao
juízo do gosto-estético, um termo médio entre o entendimento e a razão, em resumo. Sem entrar em
muitos detalhes, cabe dizer que nos termos de Kant as proposições morais não eram da competência
da faculdade do juízo, e, sim, fundamentadas a partir de prescrições práticas derivadas de princípios
743 ARENDT, H. “Introdução na Política”. In: A promessa da política, p. 155. 744 Cf. KANT, I. Crítica da Faculdade do Juízo, p. 23. Kant afirma que a crítica da faculdade do juízo se colocará como meio de ligação das duas partes da filosofia como um todo, que quer dizer: que a terceira crítica medeia uma
relação entre o abismo que existia entre a Crítica da Razão Pura, dos conceitos da natureza sensível fornecidos pelo
entendimento, e a Crítica da Razão Prática, do conceito da liberdade suprassensível fornecido pela razão. Ora, e se é
verdade que “entre a faculdade de conhecimento e a de apetição está o sentimento de prazer, assim como a faculdade
de juízo está contida entre o entendimento e a razão”, diz ele, deve-se supor que a faculdade do juízo contenha
princípios a priori para o sentimento de prazer e desprazer, enquanto uma das faculdades gerais do ânimo, aplicados
à arte.
224
da razão que diriam o que fazer e o que não fazer e que forneceriam a lei da liberdade, esta lei que seria
idêntica à vontade e que nos falaria por imperativos.
Ora, o que Arendt realiza é uma transposição do juízo reflexionante do plano da estética para
os assuntos políticos e morais. Alguns estudiosos de Kant não enxergam com bons olhos essa
apropriação arendtiana que, certamente, ultrapassa as pretensões e as indicações do próprio filósofo
alemão, este que talvez jamais aprovasse a colocação de um juízo que se admite como universal (ainda
que de caráter subjetivo) na esfera contingente dos assuntos humanos. De qualquer maneira, diz Arendt
que uma vez que Kant não escreveu uma filosofia política, a melhor forma de saber o que ele pensava
sobre o assunto é averiguando o que ele entende por “faculdade do juízo”. De tal forma que, de acordo
com Arendt, ao discutir sobre produções de arte e formulações de gosto, que podem afirmar que algo
é belo imputando concordância aos demais homens como num caso de regra, embora seja um juízo
subjetivo, Kant estaria lidando com algo análogo às formulações judicantes típicas das ações do espaço
público, de que “isto é certo; isto é errado”, por exemplo, que não possuem um conceito universal ao
qual vincular cada caso específico e que, portanto, dependem de juízos que trabalhem somente no
plano dos particulares. Enfim, Arendt encontra nesse contexto uma válvula de escape para defender a
concepção de que os homens são capazes de julgar, de modo original, mesmo em situações extremas,
mesmo em momentos nos quais faltam quaisquer tipos de padrões e parâmetros, mesmo submetidos a
crises políticas. De qualquer modo, a incapacidade de formular um juízo determinante, por exemplo,
para Kant, seria uma deficiência incurável, seria estupidez enquanto não funcionamento do aparelho
de cognição, uma falha original por jamais conseguir subsumir um objeto particular a um conceito
geral, enfim, uma incapacidade de conhecer. Essa problemática se torna ainda mais complicada quanto
aos julgamentos reflexionantes: pois diz respeito àquelas questões em que o “geral” deve ser percebido
como que contido no próprio particular, uma vez que não haveria regras ou padrões aos quais subsumi-
lo. Tratam-se daqueles julgamentos referentes ao gosto (para Kant) e ao campo prático (para Arendt);
e a falta dessa capacidade implicaria, portanto, no que chamamos de “falta de gosto” em assuntos
estéticos e insensatez ou imprudência no que se refere à conduta. O ponto nevrálgico da problemática
é que ninguém pode definir a “Beleza”, assim como ninguém pode definir a “Bondade”. Substantivos
abstratos como estes escapam a toda sorte de definição e a todo tipo de conhecimento experiencial.
Quando se diz que “uma orquídea é bela”, “que uma pintura é bonita”, “que uma atitude é boa”,
portanto, não se pode aplicar um conceito de beleza ou de bondade que valeria para todos esses tipos
de objetos. Não se chega a tais conclusões pelo caminho seguinte: toda orquídea é bela, isso é uma
orquídea, portanto ela é bela; ou toda mentira é má, isso é uma mentira, portanto é má. Mas, ainda
225
assim, a existência da bondade e da beleza é indicada por aquilo que meus sentidos percebem, embora
essas coisas mesmas não façam parte da percepção sensorial. Isso quer apontar para o quão
estranhamente curioso, segundo Arendt, é o fato de que os homens possam julgar algo como sendo
bom ou belo, ou possam até realizarem atos que sejam bons e produções que sejam belas, sem ao
menos poderem explicar ou conhecer o que são a bondade e a beleza, por exemplo.
Por querer evitar discussões sobre a “bondade em si” e por querer evitar a sugestão de que o
reconhecimento do que seria um ato moral seja algo inerente à “natureza do homem”, Arendt trabalha
com a atividade de julgar como um “dom” que nossa mente possui para se localizar entre os
particulares. Justamente por isso, e por pressupor a pluralidade dos homens, para ela, essa atividade
seria política por excelência. Mas tendo em vista o que foi debatido até o momento, algumas
indagações se apresentam antes de qualquer explicação: como compensar a subjetividade do juízo
individual? Como evitar a conclusão de que a decisão sobre o certo e o errado seja algo completamente
arbitrário, de tal forma que o que reconheço como mal poderia não se figurar necessariamente como
mal para outra pessoa? Enfim, como nos pautar para afirmar sobre o que seria virtuoso e o que seria
vicioso para os homens na esfera do que é público? Para tentar responder a tais perguntas de modo
bastante esquemático, lança-se mão do trabalho da faculdade da imaginação.
Arendt concebe a capacidade humana de imaginar não só como o tornar presentes, em conteúdo
espiritual, os objetos ausentes dos nossos sentidos (como no caso da lembrança), mas também como a
capacidade de representar mentalmente o ponto de vista dos outros que habitam no mundo, como
precondição para a fórmula de um juízo que leva os outros em consideração ao torná-los virtualmente
presentes. Para além da função epistemológica da imaginação da Crítica da Razão Pura, o que se quer
destacar aqui é sua participação no funcionamento de uma máxima crucial da faculdade de julgar
kantiana, chamada “mentalidade alargada”. Isto é: a capacidade de poder pensar como se estivesse no
lugar de outras pessoas, de comparar nossos juízos com os potenciais juízos de outros homens, de
colocar a si próprio entre parênteses ao adotar um alargamento do espírito e buscar assumir um ponto
de vista geral, para além de limitações idiossincráticas. Em suma, trata-se de treinar a imaginação para
sair em visita a pontos de vista outros, treinar a imaginação a mover-se em um espaço potencialmente
público, que não diz respeito a uma só perspectiva. “Esse ponto de vista geral foi mencionado como
sendo a imparcialidade (ou desinteresse); é um ponto de vista a partir do qual podemos considerar,
assumir, formar nossos juízos, ou, como diz o próprio Kant, em que podemos refletir sobre os assuntos
humanos”745. No texto Karl Jaspers: uma laudatio, Arendt afirma que o pensamento de Jaspers é
745 ARENDT, H. A Vida do Espírito, p. 514.
226
político por princípio exatamente por ser um pensamento alargado. Nas palavras dela: “Este tipo de
pensamento, sempre ´estreitamente relacionado com os pensamentos dos outros’, não pode deixar de
ser político, mesmo quando lida com coisas que nada têm a ver com a política; pois confirma sempre
essa ‘mentalidade alargada’ kantiana que é a mentalidade política por excelência”746. Com isso, a
autora quer dizer simplesmente duas coisas: que o pensamento jasperiano encontra validade geral para
si mesmo ao cotejar as perspectivas alheias; e que os juízos de Jaspers, guiados pela capacidade
imaginativa, estendem-se ao maior número de pessoas em uma comunidade. Por isso é um pensamento
político. “Kant, que se julgava um cidadão do mundo, esperava que se estendesse à comunidade de
toda a humanidade. Kant dá a isso o nome de ‘mentalidade alargada’, querendo dizer que sem esse
acordo o homem não está preparado para a interação civilizada”747. Jaspers é um kantiano nato também
nesse aspecto, pois também tenta pensar do ponto de vista de toda a humanidade. Nesse aspecto, o
pensamento de Jaspers não é apenas subversivo moralmente, mas é construtivo de uma postura cidadã,
democrática, que se prepara para convivência em pluralidade, que se prepara para a civilidade, não
levando só a si mesmo em consideração. Denomino aqui de democrática a possibilidade de
participação nos assuntos públicos como forma de atualização da liberdade política e existencial, que
garanta o máximo de pluralidade humana, e cujo órgão mental respectivo, segundo Arendt, é a
faculdade de julgar. Para ela, “a validade desses julgamentos não seria nem objetiva, nem universal,
nem subjetiva, dependendo do capricho pessoal, mas intersubjetiva ou representativa”748. Em suma,
Jaspers tem um pensamento que mostra consideração para com os outros, que os leva em conta, que
compartilha o mundo e que supera o egoísmo, como ela já dizia na última frase de O que é a filosofia
da existência, de 1946, e volta a dizer em um curso de 1965: “O egoísmo só pode ser contraposto pelo
pluralismo, que é uma estrutura do espírito em que o eu, em vez de ficar envolto em si mesmo, como
se fosse o mundo inteiro, considera-se um cidadão do mundo”749. Ao dizer que a postura de Jaspers é
da mentalidade alargada e, portanto, representativa, acredito que acontece nesse momento um efeito
espelho em relação ao próprio pensamento arendtiano, que, como já defendi no início desse capítulo,
constrói-se também pelo método da mentalidade alargada. Nesse sentido, Jaspers é também escolhido
por Arendt como o “quem” que exemplifica o pensamento representativo e alargado. Ele não diz
apenas “não” ao nazismo; ele diz ‘sim” ao convívio democrático ao afirmar em seus juízos, pelo modo
procedimental de seu pensamento, a pluralidade, a liberdade e a espontaneidade humanas. Em outras
746 ARENDT, H. Homens em Tempos Sombrios, p. 96. 747 ARENDT, H. “Algumas questões de filosofia moral”. In: Responsabilidade e Julgamento, p. 206. 748 ARENDT, H. “Algumas questões de filosofia moral”. In: Responsabilidade e Julgamento, p. 207. 749 ARENDT, H. “Algumas questões de filosofia moral”. In: Responsabilidade e Julgamento, p. 209.
227
palavras, mais do que a exemplaridade subversiva, ele é, antes disso, a exemplaridade do juízo cidadão,
do ethos político ou da disposição humana para a vida em comunidade. Uma pessoa que faz confluir o
juízo do “eu” com o juízo do “mundo”, que pauta as escolhas de seu self com uma preocupação
mundana, nada mais é do que um cidadão, nos termos de Arendt. Ou, como ela chamava Jaspers,
utilizando-se de um termo kantiano, um “cidadão do mundo”. No discurso que fez por ocasião da morte
de Jaspers, Arendt diz que é importante analisar o valor que Jaspers dava ao título de cidadão suíço,
que ele tinha recebido, e, assim, a autora tece os seguintes comentários: “Por quase um quarto de
século, ele foi a consciência da Alemanha, e o fato dessa consciência ter residido em solo suíço, em
uma república e uma cidade que era uma espécie de pólis, não é certamente uma mera coincidência.
Ele nasceu para os caminhos da república democrática”750. Para ela, Jaspers tinha um espírito
democrático e, relacionado a isso, uma dignidade humana invejável.
Por meio da figura pessoal de Jaspers, portanto, é possível distinguir claramente ao menos dois
momentos em que os âmbitos da ética e da política se cruzam na teoria de Arendt. O primeiro momento
é quando a negatividade do pensamento subversivo, em tempos de crises, mostra-se politicamente
implicada por mostrar em público um juízo que não desemboca em uma ação, mas no negar a agir de
acordo com os parâmetros estabelecidos. Ou seja, a ética do self se torna política por implicação em
circunstâncias emergenciais. O segundo momento é quando a mentalidade alargada se torna critério de
validação para os juízos e para as ações morais e políticas, que têm na escolha subjetiva o seu início,
mas que almejam a comunicação intersubjetiva e plural entre os seres humanos pertencentes a uma
mesma comunidade.
Fora isso, a imaginação possui outra característica nesse contexto de formulação de um juízo
reflexivo: a de fornecer exemplos para as atividades de julgamento, e os exemplos seriam os andadores
(go-cart) desse tipo de juízo em que os elementos particulares escapam a um conceito geral. A
capacidade de julgar, tal qual Arendt entendia, utiliza-se do elemento do exemplo para se agarrar a
algo que a ajude na orientação sem padrões estabelecidos. Os exemplos são casos particulares, objetos
particulares, que se alçam como genéricos em determinadas circunstâncias. Nesse momento, o que
fazemos é “escolher, eximere, um caso particular que então se torna válido para outros casos
particulares”751. Arendt está dizendo que a escolha de como agir no mundo passa pelo julgamento que,
por sua vez, passa pela escolha de exemplos. Desse modo, posso aferir que o procedimento mental que
750 ARENDT, H. “Speech given by Hannah Arendt at the public memorial service for Karl Jaspers, University of
Basel, March 4, 1969”. In: Correspondence Hannah Arendt Karl Jaspers, 1926-1969, p. 684. 751 ARENDT, H. “Algumas questões de filosofia moral”. In: Responsabilidade e Julgamento, p. 210.
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traz exemplos à mente e ao espírito humanos, presentes ou ausentes no tempo atual, é justamente a
imaginação em sua atividade da mentalidade alargada. Em outras palavras, ao percorrer mentalmente
por vários exemplos na escolha de um deles, estamos colocando em prática a mentalidade alargada,
visitando perspectivas, factuais ou não. O que se pode retirar disso é que, na escolha de companhia que
pauta o dois-em-um socrático, como já discutido, no diálogo silencioso de mim comigo mesmo, a
mentalidade alargada já está antecipada nesse processo, uma vez que é ela que traz os exemplos para
a escolha do sujeito pensante. Mesmo quando apenas digo “não” a um determinado modo de conduta,
por escolher não conviver com uma pessoa que teria dito “sim” a essa conduta, tenho que visitar e
imaginar ao menos duas possibilidades de ação, para, então, negar a agir de determinada maneira. A
importância da escolha de companhia nos pensamentos éticos de Arendt é tão forte que pode ser
medida por duas frases as quais a autora recorre, de Cícero e de Meister Eckhart, respectivamente:
“Por Deus, prefiro me extraviar com Platão a defender visões verdadeiras com aquelas pessoas
[pitagóricos]”; e “Oh, sim, preferiria estar no inferno com Deus a estar no céu sem Ele”752. Há um
aspecto otimista e um aspecto pessimista nessa discussão sobre exemplaridades políticas e morais. O
aspecto otimista é que é difícil negar a força educativa dos exemplos, e que eles auxiliam na
constituição de um ethos público como condição de um processo político democrático. Nesse sentido,
as virtudes cívicas e a aprendizagem democrática, como diz Benhabib753, ao se valer de Arendt, podem
752 ARENDT, H. “Algumas questões de filosofia moral”. In: Responsabilidade e Julgamento, p. 176. 753 Ao introduzir sua obra Situating The Self, publicada em 1992, Seyla Benhabib sintetiza uma das principais
propostas do escrito em termos de reformulação procedimental e teórica que, a ser realizada no âmbito do
universalismo ético e político, teria ancoragem no “insight” de Hannah Arendt a respeito do “juízo reflexionante” tal
qual retirado da filosofia estética de Kant. Cabe notar que uma década após a produção de Situating The Self, quando
a autora turca direciona suas reflexões para as reivindicações e as tensões culturais sentidas em escala global, ela já
pressupõe estabelecido um modo “arendtiano” de funcionamento da atividade de julgar, sem o qual não haveria
sustentação para o modelo de “democracia deliberativa” estruturado em The Claims of Culture. Com a afirmação de que “a faculdade do ‘pensamento alargado’ tem um papel crucial” ao longo de suas formulações em Situating The
Self, a ideia primária de Benhabib é vincular isso a uma alteração na forma de procedimento daquilo que se entende
tradicionalmente por princípio de universalização na ética. Cabe esclarecer que, para Benhabib, em questões éticas –
e também políticas –, é imprescindível a consideração de que todo indivíduo humano seja digno de respeito moral
universal; ou seja, é necessário assumir de saída, para tais assuntos, um comprometimento universalista baseado no
princípio de respeito por cada pessoa em virtude de sua humanidade. Todavia, ao saber que os ideais universais caíram
em desuso após diversas e severas críticas na modernidade pós-iluminista, e uma vez que esses ataques não podem
ser negligenciados, a pensadora turca confessa a urgência de uma reestruturação endereçada a tais ideais para a defesa
séria de uma posição universalista, como a que ela adota em sua filosofia prática. Para antecipar o conjunto dos
problemas, Benhabib diz apresentar concepções ampliadas de razão, de self e de sociedade se comparadas às restritas
“ilusões metafísicas do Esclarecimento”, estendidas desde o expoente kantiano até, mais contemporaneamente, chegar
a nomes como Jurgen Habermas. Por exemplo, na tentativa de evitar a recorrência a uma racionalidade substancialista, que pressupõe a “verdade” como um dado evidente e alcançado por uma razão que fundamentaria a si mesma,
Benhabib apresenta uma racionalidade discursiva, por meio da qual é possibilitado um reexame epistemológico das
condições de pretensão de veracidade, esta que seria justificada e validada, então, pelo contínuo processo de
comunicabilidade intersubjetiva entre os homens. Além disso, no lugar de um suposto ideal abstrato e masculino de
sujeito, sugere-se um self racional, porém contextualizado, encarnado, situado, enredado narrativamente na
229
ser garantidas por meio do processo de ouvir a voz do outro e compreender a perspectiva de todos os
envolvidos em um contexto prático. Além disso, ter vários exemplos à disposição já significaria treinar
o pensamento a sair em visita; um suposto ensinamento para se operar a “mentalidade alargada” deve
se pautar pela apresentação de “exemplos”. Afinal, a exemplaridade possui uma linguagem universal:
Aquiles pode ser considerado a personificação da “coragem” seja para um grego antigo ou para um
chileno contemporâneo; Dom Quixote pode ser um exemplo de “aventura” seja para um espanhol
moderno ou um japonês do século XXI; jovens turcos que vão à rua e lutam por seus direitos são
exemplares para jovens no Brasil e no Egito, etc. E assim pode-se pensar em vários outros casos, ao
exercitar a imaginação. Agora, o aspecto pessimista dessa questão, por outro lado, seguindo as noções
arendtianas, é o de que pode acontecer que alguém prefira basear suas próprias ações, e seus próprios
julgamentos, seguindo o modelo do Barba Azul a Madre Tereza de Calcutá, do Hannibal Lecter a Jesus
Cristo, ou seja, pode ser que alguém prefira ter Adolf Hitler como companhia no lugar de Mahatma
Gandhi, ou pode ser que alguém se mantenha indiferente a essa escolha – como seria o caso de
Eichmann. Ora, diz Arendt, nesses últimos casos, “a única coisa que poderíamos fazer é nos
assegurarmos de que eles jamais chegassem perto de nós”754. Enfim, há sempre um limite para a força
inescapável contingência mundana e, sobretudo, sensível às diferenças de gênero. Junta-se a isso um terceiro aspecto:
o abandono de um “ponto de vista moral” considerado arquimediano e atemporal, que teria sido erguido por teorias
filosóficas que encontravam na razão uma legisladora inequívoca e incontestável, em prol de uma razão com
habilidade e atenção práticas. É essa última questão, agora contextualizada, que merece um cuidado mais demorado.
Nesse ínterim de reestruturações, Benhabib declara que a despeito de acompanhar, até certo estágio, o deslocamento
habermasiano de uma razão legisladora rumo a uma razão interativa e comunicativa, como se deixa entrever nas
colocações acima, a noção de mentalidade alargada entraria em suas equações enquanto modo estratégico de evitar
resquícios de exacerbação racionalista ainda presentes, de acordo com ela, no próprio universalismo da ética do
discurso. Com isso, a pensadora não só deixa transparente sua principal discordância com Habermas (ainda que as premissas da ética do discurso sejam fundamentais para Benhabib), mas também se esforça por conciliar a moralidade
principista e universalista com certa fenomenologia do juízo moral. Este projeto, inspirado em Arendt, focaria em
construir um modelo de conversação moral baseado na “capacidade de reverter perspectivas”, isto é, na disposição de
cada homem e mulher em cultivar o seu próprio pensamento a sair em visita de outros pontos de vista e, assim,
formular juízos particulares tendo em conta a potencial voz dos outros; mais do que isso, o chamado “pensamento
representativo”, uma vez ativado, seria o modo procedimental de respeito moral por cada ser humano. Essa breve
digressão se justifica por delimitar os contornos nos quais a figura de Arendt se faz mais patente no projeto teórico de
Situating The Self, principalmente na pretensão de Benhabib em coexistir o ideal universalista em questões práticas
com um juízo moral sensível ao contexto particular. E, como já dito, essa proposta de Benhabib condensa sua
importância ao reaparecer de forma contundente em The Claims of Culture, obra de 2002, ainda que não mais centrada
na perspectiva do self, senão na preocupação de circunstanciar, e praticar, “diálogos culturais complexos” no âmago das controvérsias ocasionadas por múltiplas identidades surgidas, e alimentadas, no interior da maioria das
democracias liberais e ocidentais. Nas palavras da autora: “Sustento que um enfoque modernista das culturas enquanto
criações de sentidos controversos e um enfoque universalista de democracia deliberativa complementam um ao outro”;
e continua reafirmando que “[...] o universalismo moral e político não é irreconciliável com o reconhecimento, o
respeito, e a negociação democrática com certas formas de diferença [...] Neste livro, examino formas de diferença
originadas principalmente de modos de vida e práticas culturais compartilhadas”. Dessa maneira, a postura
universalista de Benhabib, exposta nestes livros citados, pode suscitar acréscimos, disparidades e semelhanças de
pensamento em relação à compreensão de Arendt sobre a faculdade espiritual do juízo humano. 754 ARENDT, H. “Algumas questões de filosofia moral”. In: Responsabilidade e Julgamento, p. 212.
230
que os exemplos podem ter na formação de qualquer ethos público, limite propiciado pela própria
liberdade de escolha.
Contudo, é preciso retomar um pouco do pano de fundo dessas considerações sobre o “julgar
por si próprio” em Arendt. Principalmente porque se, como diz o próprio nome, se trata de um “juízo
reflexionante”, torna-se indispensável voltar a atenção para o “refletir”, para a atividade do
pensamento. Aliás, em Responsabilidade pessoal sob a ditadura, Arendt atesta que a precondição para
esses tipos de julgamentos não é possuir uma inteligência altamente desenvolvida ou ser bastante
sofisticado quanto a assuntos morais, mas apenas ter “disposição para viver explicitamente consigo
mesmo, isto é, estar envolvido naquele diálogo silencioso entre mim e mim mesmo que, desde Sócrates
e Platão, chamamos geralmente de pensar”755. Segundo a autora, aqueles que querem pensar preparam-
se não apenas para fazer companhia para si mesmos, mas também para julgar por si mesmos. A linha
divisória que os separa daqueles que não desejam pensar, ou daqueles que não se importam em colocar
tal atividade em funcionamento, ignora todas as diferenças culturais, sociais ou educacionais. Ao
vincular a decisão sobre o certo e o errado a um juízo reflexivo, Arendt já nega de antemão a conclusão
de que a moralidade teria dependência do “conhecimento”, ou de uma espécie de inteligência
intelectual. Concomitantemente, ela nega que os profissionais do pensamento, os filósofos, teriam
maior propensão a saber agir de modo mais rente ao bem e se distanciarem do mal. Conseguir distinguir
o certo do errado nada tem a ver com a erudição ou a ignorância, pois não tem a ver com a posse
acumulativa de conhecimento científico ou cognitivo, como se o estudo e a sabedoria teórica fizessem
desenvolver um senso moral; afinal, se assim fosse, a maldade seria um mero efeito da ignorância e,
desse modo, seria possível concluir que ninguém praticaria o mal voluntariamente – o que é fácil
comprovar que não é o caso. Enfim, Arendt abriu espaço entre essas noções para destacar a
possibilidade de pessoas cultas serem incapazes de julgar corretamente, serem incapazes até de pensar
no sentido do dois-em-um; abriu espaço para indagar sobre o mal pelo mal; e também para comentar a
respeito da triste constatação de que “a maior parte do mal é feita por pessoas que nunca decidiram ser
boas ou más”756, como na ausência de juízo autônomo, exemplificada por Adolf Eichmann.
O livro Eichmann in Jerusalém: a report on the Banality of evil, publicado em 1963, está entre
as obras mais vendidas de Arendt (caso se verifique algum ranking nesse sentido) e, certamente, trata-
se de um dos escritos mais lidos da autora, pois é o que alcançou maior variedade e heterogeneidade
de público, tais como críticos, intelectuais para além das academias, estudiosos em diversas áreas,
755 ARENDT, H. op. cit. In: Responsabilidade e Julgamento, p. 107. 756 ARENDT, H. “Pensamento e Considerações Morais”. In: Responsabilidade e Julgamento, p. 247.
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curiosos etc. Muito disso se deve ao formato do texto: uma reportagem veiculada em primeira-mão na
revista The New Yorker, em uma série de cinco artigos, meses antes da publicação alterada e editada
em forma livresca, cujos primeiros exemplares se esgotaram quase instantaneamente; além da atraente
e quase sensacionalista, na época, pauta da matéria: o julgamento de um ex-nazista e criminoso de
guerra. Não por acaso, portanto, Eichmann em Jerusalém, além de ter sido catalogado entre os escritos
mais citados em textos alheios publicados principalmente nos Estados Unidos, na Europa e em Israel
até o ano de 1969, também foi considerado o livro mais controvertido e polêmico de sua década em
língua inglesa757. Mais do que isso, Arendt foi considerada persona non grata no Estado de Israel,
sendo atacada e ameaçada em sua privacidade, e sua obra foi, por bastante tempo, proibida de ser
publicada ou de circular pela região. Isto porque não só trata da comprovada participação da cúpula e
do conselho judaicos na denominada “Solução Final”, como também já traz em seu subtítulo um termo
amplamente discutido e extremamente contestado por uma fileira de pessoas que se estende muito além
da comunidade judaica. O termo em questão, a “banalidade do mal”, é uma adjetivação a um tipo de
maldade que a autora supostamente relata ao longo de sua narração, mas que aparece explicitamente
grafado apenas no último parágrafo do último capítulo do texto, referindo-se a algo que “desafia as
palavras e os pensamentos”758, nos termos dela, uma vez que também aponta para a inépcia dos
conceitos tradicionais em lidar com os fatos trazidos pelo totalitarismo.
Em uma resenha publicada no periódico Partisan Review, em 1945, traduzida para o português
com o título de Pesadelo e Fuga, Arendt conjectura, quase predizendo para si mesma, que “o problema
do mal será a questão fundamental da vida intelectual europeia no pós-guerra – assim como a morte
tinha sido o problema fundamental após a Primeira Guerra”759. Não vem ao caso discutir se a pensadora
estava correta ou equivocada em seu prognóstico, mas, de todo modo, já no final da década de 1940,
ao examinar os principais elementos constituintes do domínio total, Arendt não pôde escapar da
tentativa de compreender a maldade imposta nos campos de concentração ou nos estágios finais do
totalitarismo, por exemplo. Contudo, pode-se dizer que a profundeza e a maturidade teóricas em
relação a essa questão se deram a partir do contato de Arendt com Eichmann, em 1961, no julgamento
penal que culminou no enforcamento deste.
757 Sobre essas questões Cf. ASSY, B. “Eichmann, Banalidade do Mal e Pensamento em Hannah Arendt”. In: Hannah
Arendt: diálogos, reflexões, memórias, p. 156 (nota 2); e cf. BRAHAM, Randolph. The Eichmann Case: A Source
Book. Anson Rabinbach, norte-americano estudioso da história europeia do séc. XX, comenta que em torno de
Eichmann em Jerusalém ocorreu a mais amarga disputa pública intelectual sobre o holocausto. 758 ARENDT, H, Eichmann em Jerusalém, p. 274. 759 ARENDT, H. op. cit. In: Compreender: Formação, exílio e totalitarismo, p. 163.
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Entremeio a dúvidas e discussões, envolvendo as Nações Unidas e aspectos do direito
internacional sobre a legalidade e a legitimidade de todo o processo, Eichmann – considerado um dos
principais responsáveis pela “Solução Final” ao comandar a logística de transporte dos judeus aos
campos nazistas de extermínio – foi capturado por agentes israelenses num subúrbio de Buenos Aires,
Argentina, “na noite de 11 de maio de 1960, voou para Israel nove dias depois, foi levado a julgamento
na Corte Distrital de Jerusalém [...] [foi] objeto de cinco acusações: ‘entre outros’, cometera crimes
contra o povo judeu, crimes contra a humanidade e crimes de guerra”760. Dentre inúmeros espectadores
que acompanharam o julgamento no tribunal, estava presente a professora judia Hannah Arendt que,
ao tomar conhecimento do caso, conseguira o contrato para atuação como repórter na cobertura do fato
(enviada especial de uma revista norte-americana, como já dito). Arendt justificou seu interesse em
viajar a Israel não só para o seu então editor, William Shamn (que teria ficado muito satisfeito com a
ideia), mas também em algumas correspondências da época, como quando escreveu à Fundação
Rockefeller para ampliar o prazo de uma bolsa: “Compreenderão, penso, por que devo cobrir esse
julgamento. Perdi os julgamentos de Nuremberg. Nunca vi essas pessoas em carne e osso e esta,
provavelmente, é minha única oportunidade”761. Ou quando em outra carta, endereçada a Vassar
College, na qual se desculpava por cancelar uma palestra: “Comparecer a esse julgamento é de certa
forma, sinto em mim, uma obrigação que devo ao meu passado”762. Ou, ainda, em resposta a uma
entrevista que nunca fora publicada, na qual Arendt argumentava: “Eu venho pensando há muitos anos
[...] sobre a natureza do mal. E o desejo de me expor – não aos feitos os quais, depois de tudo, eram
bem conhecidos, mas ao próprio perpetrador do mal – foi provavelmente o motivo mais convincente
para a minha decisão de ir a Jerusalém”763. Esses três pontos citados, analisados de forma retrospectiva,
combinam-se para bem explicar o que viria a acontecer à filosofia arendtiana no momento em que ela
começa a refletir a respeito daquele “homem dentro da cabine de vidro construída para sua proteção”764
e acusado de crimes tidos como desumanos, mas que, ao desenrolar do processo, não lhe pareceu nem
um pouco demoníaco, funesto, frio ou sórdido, “nem ao menos amedrontador”, dizia ela. Antes, a
figura de Eichmann simplesmente não correspondia à magnitude das ações criminosas pelas quais
respondia. Havia um descompasso merecedor de atenção em todo aquele caso, pois, para a pensadora,
“apesar de todos os esforços da promotoria, todo mundo percebia que esse homem não era um
760 ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém, p. 32. 761 Apud YOUNG-BRUEHL, E. Hannah Arendt: por Amor ao Mundo, p. 296. 762 Apud YOUNG-BRUEHL, E. Hannah Arendt: por Amor ao Mundo, p. 296. 763 Apud ASSY, B. Eichmann, Banalidade do mal e pensamento em Hannah Arendt, in: Hannah Arendt: diálogos,
reflexões, memórias, p. 137. 764 ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém, p. 15.
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‘monstro’, mas era difícil não desconfiar que fosse um palhaço”765. A quebra de expectativa foi
tamanha que, para quem julgava ser Eichmann “um dos mais inteligentes do bando”, como a própria
Arendt admitia, deve ter sido estranhamente cômico voltar para casa afirmando que não poderia dizer
quantas vezes riu às gargalhadas ao ler os depoimentos do réu à polícia.
Em correspondência com Meier-Cronemeyer, já em 1963, Arendt confessa que ter escrito a
respeito de Eichmann, que ter tido contato com aquele homem, tinha sido uma espécie de cura posterior
para ela mesma. Por ter vivido e ter sido exposta às consequências das ações de um dos regimes mais
severos e assassinos do século XX, pode-se entender essa expressão a partir de um duplo aspecto. Em
primeiro lugar, a cura de Arendt se dá pelo contraste da irrupção de um novo significado para a maldade
em relação ao que ela imaginava e deduzia a respeito das práticas infames e dos criminosos daquele
período; e, tendo isso em vista, a pensadora revolveria suas pesquisas sobre a moralidade ocidental,
desenvolvendo uma nova vertente para as suas preocupações com a filosofia prática, de modo a chegar,
como ela mesma diz, a um “alicerce para criar uma nova moral política – ainda que eu jamais, tolhida
pela modéstia, usasse tal formulação”766. Invariavelmente, em segundo lugar, o acerto de contas de
Arendt com o seu próprio passado se realiza por meio da tentativa de compreender uma singular
característica da maldade que poderia não só romper com a perspectiva ético-política tradicional, mas
alertá-la para o fato de que a forma como tinha se expressado sobre o assunto, a partir do termo “mal
radical” em Origens do Totalitarismo, poderia ser alterada concomitante ao manejo teórico
concernente ao modo como classificar as condutas humanas e os valores, os usos, os costumes morais.
No prefácio à primeira edição de Origens do Totalitarismo, Arendt faz referência a um “mal
absoluto” que nos teria feito conhecer a “natureza realmente radical do Mal”. Esse termo “radical”,
não por acaso, no final do terceiro capítulo da última parte do livro, é remetido pela própria autora a
Kant, em A religião nos limites da simples razão, embora ela o interprete para combatê-lo e sem muita
preocupação em seguir o sentido do conceito original. Diz ela que a crença totalitária de que “tudo é
possível” provocou uma espécie de ação má que não poderia ser compreendida nem explicada pelos
conhecidos motivos malignos da ganância, da inveja, do egoísmo, da cobiça, do ressentimento etc. Ou
seja, era algo que escapava não só à tradição filosófica, mas também à teologia cristã, uma vez que os
crimes cometidos se situavam para além dos limites da cartilha de pecados humanos. Não obstante,
para ela, o único filósofo que teria vislumbrado a existência desse tipo de maldade (Kant, a saber), que
765 ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém, p. 67. 766 Apud YOUNG-BRUEHL, E. Hannah Arendt: por amor ao mundo, p. 331. Tradução alterada com bases no original.
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mesmo o nomeou, logo tentou racionalizá-lo na noção de “rancor pervertido” e não teria seguido com
as indagações pertinentes a essa possibilidade.
Contudo, nos termos kantianos, em resumo, o mal radical pode ser caracterizado como a
propensão dos homens a abrirem exceções na lei moral em nome do amor próprio, isto é, por
experiência, pode-se supor certo pendor subjetivamente necessário em todo homem no sentido de
admitir, em sua própria máxima, um afastamento da lei moral (da qual nunca deixa de ter consciência)
em determinadas ocasiões, nas quais se nota a preferência pela felicidade em detrimento do dever. Por
seguir suas próprias inclinações, que não são ruins por excelência, o homem seria levado a agir
erroneamente e a se afastar dos ditames de sua Razão. “Esse mal é radical porque corrompe o
fundamento de todas as máximas e mais, enquanto pendor natural, não pode ser extirpado pelas forças
humanas”767. Embora essa propensão ao mal esteja enraizada nos homens, isso não significa
simplesmente que estes são maus por natureza, ou que a qualidade da maldade poderia ser deduzida
do conceito “gênero humano”. Kant nunca deixa de afirmar que podemos contrariar essa tentação
inextirpável, contrariar essa tendência deliberativa que se dá em um contexto contingente em si mesmo,
porque, caso contrário, nenhum homem poderia ser imputável por suas ações nem poderia se falar em
livre-arbítrio. Além disso, ainda com Kant, pondera-se que o princípio do mal não pode ser
fundamentado nem na sensibilidade do homem, o que excluiria tudo o que possa nascer do plano da
liberdade, e nem na suposição de uma razão maligna, absolutamente má, que contrariaria a lei moral
de modo independente, como se se pudesse escolher o mal pelo mal. No primeiro caso, o homem seria
“bestial” (animalesco); no segundo caso, seria “diabólico” – ambas as alternativas, para o filósofo
alemão, não se aplicariam aos homens.
Ainda que não ignorasse a terminologia kantiana, até porque chega a discuti-la de modo rente
em Algumas questões de filosofia moral, Arendt se apropria do conceito de “mal radical” na tentativa
de caracterizar um “sistema no qual todos os homens se tornaram igualmente supérfluos”768. Não se
trata, portanto, de uma mera interpretação a respeito de Kant. Para ela, de alguma forma, este mal seria
absoluto, seria extremo (nota-se que o termo “radical” assumiria para Arendt não o sentido de
“inseparado”, de “radicado”, mas se identificaria com o “excessivo”, com a “radicalidade”, com o
“não-tradicional”). O mal radical se liga à noção de superfluidade à medida que os nazistas tentaram
provar que até mesmo a “natureza” humana poderia ser destruída por meio, justamente, da supressão
da espontaneidade humana e da erradicação da pluralidade da face da Terra, o que se passaria
767 KANT, I. A Religião nos limites da simples razão, p. 41. 768 ARENDT, H. Origens do Totalitarismo, p. 510.
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desumanizando os seres humanos e tornando-os descartáveis, intercambiáveis etc. “O que o mal radical
realmente é eu não sei, mas parece-me que ele de algum modo tem a ver com o seguinte fenômeno:
tornar os seres humanos, enquanto seres humanos, supérfluos”769. É assim que Arendt se expressa em
uma carta a Jaspers, e continua: “(não os usando [os homens] como meios para um fim, o que deixaria
intocada sua essência enquanto humanos, atingindo apenas sua dignidade humana; mas, mais
propriamente, tornando-os supérfluos enquanto seres humanos)”770.
A incompreensibilidade humana em relação a este mal extremo é o que Arendt passa a destacar.
Ela chega a defender que os crimes e as ofensas nazistas, nessa conjuntura, seriam caracterizados por
demolirem os limites da lei, por transcenderem a esfera dos negócios públicos e as potencialidades do
pensamento humano – fatos que em conjunto constituiriam a sua monstruosidade. Mais precisamente,
para Arendt, este mal encarnado pelo domínio totalitário já representava uma ruptura com a tradicional
compreensão do mal tanto do ponto de vista teórico quanto do religioso; no entanto, ao denominá-lo
de mal radical, além de querer chamar atenção para esse rompimento, ela também quer firmar posição
em relação a algo que iria além do que o homônimo kantiano podia simbolizar. Se, ao procurar por
uma disposição humana para o mal em contraposição à disposição para o bem, Kant conseguiu se
afastar um pouco da tradição filosófica de pensamento que, quase sem nenhuma exceção, considerava
o mal como sendo o “não-ser” – definindo-o apenas por sua suposta fraqueza ontológica, como um
modus privativo do bem, ausência de bem, ou até como a manifestação temporária de algo que viria a
ser um bem – por sua vez, para Arendt, as concepções kantianas não abririam espaço para se imaginar
um mal ininteligível, uma vez que, segundo ele, todo mal poderia ser relacionado à natureza egoísta
do homem. Concordo com a interpretação de Adriano Correia nesse aspecto, em oposição à leitura de
769 Apud CORREIA, A. O significado do mal em Hannah Arendt, p. 01 770 Apud CORREIA, A. O significado do mal em Hannah Arendt, p. 01. Essa concepção de “mudança da própria
natureza humana” não foi pouco criticada e ainda gera discussões em torno do primeiro livro editado de Arendt; ainda
mais quando se relembra que em A Condição Humana, obra posterior a Origens do Totalitarismo, a autora evita
definir uma suposta “natureza” para os homens, dizendo que a única coisa que se pode retirar disso é que os homens
são seres “condicionados”. Talvez se possa dizer que a superfluidade do homem enquanto ser humano seja a
capacidade de se alcançar um patamar, como o realizado pelo totalitarismo, em que ninguém responda a mais
“condições” algumas, em que o homem se encontre estagnado em apenas uma condição (que seria a de animal
laborans) de tal forma que isso lhe transformasse em um ser “incondicionado”, com reações previsíveis
independentemente das variáveis do meio que porventura o cerque – isso, de fato, nos termos de Arendt, seria uma alteração da própria natureza humana (mesmo que não se possa defini-la). Aliás, o conceito de animal laborans pode
ser visto como uma chave que liga algumas questões de Origens do Totalitarismo a algumas preocupações de A
Condição Humana, ao contrário do que alegam alguns críticos quanto a uma suposta falta de conexão entre essas duas
primeiras obras arendtianas (como diz Giorgio Agamben na introdução de Homo Sacer I). Pode-se dizer que a mais
forte constatação em A Condição Humana se refere ao fato de que as sociedades contemporâneas e a política moderna
como um todo fizeram com que a noção de animal laborans não fosse algo exclusivo da produção dos campos
concentracionários.
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Nádia Souki771, pois “na medida em que identifica mal radical com mal absoluto ou extremo, Hannah
Arendt se distancia da compreensão kantiana do mal radical como uma propensão a inverter a ordem
das motivações que estaria na raiz de todo mal moral e seria universal”772. Em todo caso, Kant
permanece como um dos principais interlocutores de Arendt na discussão desses assuntos éticos,
embora a autora mais se afaste do que se aproxime dele na caracterização da maldade humana.
Enquanto Jaspers representa um exemplo de mentalidade alargada e, assim, ilumina uma aproximação
que Arendt possui em relação a Kant; por outro lado, Eichmann representaria um distanciamento de
Arendt em relação a Kant, uma vez que aquele personifica o papel do “dever” nas atitudes morais.
Assim, colocar Jaspers versus Eichmann, nesses termos, é apontar para a posição ao mesmo tempo
com e contra Kant que a pensadora assume nesses assuntos. Em outras palavras, para criticar o dever
moral kantiano, Arendt propõe uma postura moral aos seres humanos baseada em outro conceito de
Kant, que não o dever: a mentalidade alargada. O remédio para a obediência cadavérica de Eichmann
está no pensamento e no juízo autônomos, bem como no exercício cidadão da mentalidade alargada.
Tendo essas questões em vista, três acontecimentos (tomados aqui como hipóteses e sem
cronologia retilínea) viriam fazer Arendt ponderar algumas de suas posições morais, a saber: uma troca
de correspondência com Jaspers; suas discussões teóricas com o marido Blücher; e a viagem que ela
fez a Jerusalém para acompanhar o julgamento de Eichmann. No que se refere a esse terceiro caso, ao
relatar o que tinha visto, Arendt censura a si mesma por ter descrito os tipos de crimes cometidos sob
o terror totalitário adotando o termo “mal radical” na obra de 1951. Segundo ela, defrontar com
Eichmann tinha lhe estalado um impulso inteiramente diferente a respeito do fenômeno da maldade.
“O que me deixou aturdida”, diz ela, “foi que a conspícua superficialidade do agente tornava
impossível rastrear o mal incontestável de seus atos, em suas raízes ou em seus motivos, em níveis
mais profundos”773. Para ela, apesar de os atos serem monstruosos, ao menos aquele homem que estava
em julgamento não era monstruoso, ao menos Eichmann não era demoníaco, antes: era bastante comum
e banal e “nele não se encontrava sinal de firmes convicções ideológicas ou de motivações
especificamente más”774. Essas constatações foram suficientes para Arendt investir numa espécie de
estudo de caso, num exame particular, que não tinha a pretensão de se transformar num tratado sobre
771 Cf. SOUKI, N. Hannah Arendt e a banalidade do mal. Em rápidas palavras, no livro Hannah Arendt e a banalidade
do mal, Souki defende que existem inúmeros pontos de convergência entre o mal radical kantiano e a banalidade do
mal arendtiana, chamando atenção, principalmente, para a hipótese de que ambos os conceitos prezam, ética e
politicamente, pelo fato de que o ser humano nunca poder ser tratado como um meio, mas um fim em si mesmo. 772 CORREIA, A. O significado do mal em Hannah Arendt, p. 05. 773 ARENDT, H. A Vida do Espírito, p. 18. 774 ARENDT, H. A Vida do Espírito, p. 18.
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a natureza maligna, mas que, ainda assim, como a pensadora comentara com a amiga Mary McCarthy,
entraria em conflito com algumas de suas posições em Origens do totalitarismo. A partir desse novo
posicionamento, em uma carta de resposta às críticas dispensadas pelo teólogo judeu Gerschom
Scholem ao seu livro sobre Eichmann, por exemplo, Arendt não nega que realmente teria mudado de
ideia e abandonado o conceito de “mal radical” para assumir o termo “banalidade do mal”, uma vez
que julgara que o mal com o qual lidava, a partir de então, era completamente sem profundidade. Tem-
se a expressão: No Radical Evil – o que significa “que o mal não é radical indo até as raízes (radix),
que não tem profundidade, e que por esta mesma razão é tão terrivelmente difícil pensarmos sobre ele,
visto que a razão, por definição, quer alcançar raízes”775. Nesse contexto, também são determinantes
as colocações de Jaspers e de Blücher que, não poucas vezes, representavam a Arendt pontos de vista
que deveriam ser levados em conta e que certamente a influenciaram na escolha do termo “banalidade”,
como se pode perceber em um conselho que Jaspers lhe oferece em 19 de outubro de 1946, num
momento em que ela ainda tentava organizar tudo aquilo que entendia até então por “mal radical”:
Você diz que o que os nazistas fizeram não pode ser compreendido como ‘crime’
– eu não estou completamente à vontade com sua opinião, porque uma culpa que
vai além de toda culpa criminal invariavelmente assume um traço de ‘grandeza’
– de grandeza satânica – que é, para mim, tão inapropriado para os nazistas quanto
todo o discurso sobre o elemento ‘demoníaco’ em Hitler e assim por diante. Parece-me que temos de ver essas coisas em sua total banalidade, em sua
prosaica trivialidade, porque isso é o que verdadeiramente os caracteriza.
Bactérias podem causar epidemias que destruam nações, mas elas permanecem
meramente bactérias776.
A despeito de Arendt não se referir a esta carta quando, anos mais tarde, relata sobre uma
suposta “banalidade do mal”, ainda assim se presume que nesta passagem está previsto um risco que
seria coexistente à noção de mal extremo/absoluto e que deveria ser evitado, segundo ela: a
sublimização ou mitologização do horrível. Tanto é que, logo em seguida, ela responde a Jaspers
dizendo que o achou convincente, e diz ainda: “do modo como eu tenho expressado isso até agora
chego perigosamente perto daquela ‘grandeza satânica’ que eu, como você, rejeito totalmente [...] e na
medida que não sou capaz de evitar tais formulações, eu não compreendi o que realmente se passou”777.
Isso vai ao encontro do que Blücher comunicava a Arendt a respeito das impressões que ela lhe
775 ARENDT apud ASSY, B. “Eichmann, Banalidade do Mal e Pensamento em Hannah Arendt”. In: Hannah Arendt:
diálogos, reflexões, memórias, p. 145. 776 JASPERS, K. apud CORREIA, A. “Uma nova face do mal”. In: CHAVES, R. A capacidade de julgar: um diálogo
com Hannah Arendt, p. 187. Grifos meus. 777 Apud CORREIA, A. “Uma nova face do mal”, in: CHAVES, R. A capacidade de julgar: um diálogo com Hannah
Arendt, p. 188. Também Cf. BERNSTEIN, R. “From Radical Evil to the Banality of Evil: from Superfluousness to
Thoughtlessness”. In: Hannah Arendt and the Jewish Question.
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transmitia sobre Eichmann enquanto estava em Israel, de certo modo que o companheiro de Arendt
ensejava pensar, sustentado sobretudo por Brecht, a possibilidade de que o mal talvez fosse um
fenômeno superficial: “Os grandes criminosos políticos devem ser expostos, principalmente ao riso.
Eles não são grandes criminosos políticos, mas pessoas que permitiram grandes crimes políticos, o que
é algo inteiramente diferente”778. Para Brecht, que influenciaria as convicções de Blücher nesse
contexto (e, por conseguinte, também as de Arendt), “pode-se dizer que a tragédia se ocupa dos
sofrimentos da humanidade de uma maneira menos séria do que a comédia”779.
Não se trata, absolutamente, de desmerecimento ou diminuição do que aconteceu. Pelo
contrário, a expressão utilizada por Arendt desde essa mudança de ênfase parece adjetivar muito mais
o caráter do indivíduo criminoso e os motivos de realização da maldade do que o próprio mal ou os
próprios crimes. Interessava-lhe o “quem”. Ao se atentar para o sentido kantiano de “radical”, ela
afirma: “com efeito, minha opinião é de que o mal nunca é ‘radical’ [...] o pensamento [...] que se
ocupa do mal é frustrado porque não há nada. Essa é sua ‘banalidade’. Apenas o bem tem profundidade
e pode ser radical”780. Em outros termos, o mal ainda era extremo e de magnitude inimaginável, mas o
executor era superficial, e isso sustentava a banalidade elementar de crimes que continuavam sendo
hiperbólicos, mas que não deveriam ser percebidos sob o signo de nenhuma espécie de “aura”, como
se fossem resultado de uma força sobre-humana. Uma coisa não contradiz a outra. Como expressa
Richard J. Bernstein, em Hannah Arendt and the jewish question: quando pensava em termos de mal
radical, a autora já descartava a ideia de que monstros e demônios tinham arquitetado a morte de
milhões e, assim, o contato com Eichmann representa não apenas uma nova chance para tentar ser mais
precisa do que havia sido em Origens do Totalitarismo quanto a isso, embora não se contradiga
completamente, mas também uma oportunidade de destacar suas divergências com Kant. Afinal, para
ela, o sujeito a quem recaía a responsabilidade pelo mal era banal, era comum, não detinha a estatura
dos grandes vilões, era um burocrata “normal” que apenas procurava obedecer às ordens superiores,
mesmo que isso significasse “embarcar milhões de homens, mulheres e crianças para a morte, com
grande aplicação e o mais meticuloso cuidado”781. Todas essas impressões a respeito de Eichmann se
relacionam com uma característica fundamental mediante a qual Arendt iria explicar o que entendia
por “banalidade” nesse contexto, qual seja: a irreflexão, thoughtlessness, a ausência de pensamento
778 BRECHT apud YOUNG-BRUEHL. Hannah Arendt: por amor ao mundo, p. 297. 779 BRECHT apud YOUNG-BRUEHL. Hannah Arendt: por amor ao mundo, p. 297. 780 ARENDT apud YOUNG-BRUEHL, E. Hannah Arendt: por amor ao mundo, p. 327. 781 ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém, p. 37.
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que imbricaria num mover-se na superfície, num fazer-se raso, isto é, no sentido de que apenas a
capacidade de pensar nos possibilitaria atingir profundidade.
Ao longo dos primeiros capítulos de Eichmann em Jerusalém, sobretudo no II, no III e no VIII
tópicos do livro, Arendt realiza uma espécie de biografia e elenca algumas características que, de
acordo com ela, definiriam o personagem acusado no tribunal. Dentre essas características, pode-se
dizer que Arendt considerou Eichmann uma pessoa banal por duas justificativas. Primeiro, por ele ter
se mostrado alguém sem qualquer traço distintivo, alguém comum, sem muita vocação ou talento e
que não conseguira formação sequer na escola secundária por não ser exatamente um dos alunos mais
estudiosos e nem ser um dos mais dotados das turmas que frequentou782, a despeito de não ser um
estulto que teria inabilidade para compreender algo. Seria um típico filho de uma família de classe
média, sem muita perspectiva de ascensão como profissional, e que se envaidecia por ter conseguido
passar de caixeiro viajante a oficial da SS. Ora, apesar de curiosas, algumas dessas informações não
acrescentam em nada para as formulações teóricas de Arendt a respeito desse assunto e, não obstante,
o tom irônico usado pela pensadora não deixa de oferecer motivos para que alguns de seus críticos
afirmassem que essas considerações são frutos de certa arrogância intelectual por parte dela. Como se
por meio de Eichmann a autora quisesse demonstrar que os assassinos do Terceiro Reich não passavam
de filisteus, pouco cultos, ou burgueses bem-educados e incapazes, no entanto, de produzir cultura783.
Mas, para além dessas discussões, talvez estimuladas pela própria Arendt, o outro sentido que ela
oferece à expressão “banal” é de extrema valia e se refere à normalidade de Eichmann, atestada até por
“meia dúzia de psiquiatras” que lhe testaram a sanidade. ‘“Pelo menos, mais normal do que eu fiquei
depois de examiná-lo’, teria exclamado um deles, enquanto outros consideravam seu perfil psicológico,
sua atitude quanto a esposa e filhos, mãe e pai [...] ‘não apenas normal, mas inteiramente desejável”’784.
Era um homem de “ideias muito positivas”, segundo um sacerdote que o visitou na prisão. Ou seja,
tratava-se de alguém comum, não de um homem psicopata ou insano nem moral nem legalmente. E,
segundo Arendt, que acompanhou o sumário de culpa e o inquérito policial de todo o julgamento, a
única característica notória que se podia perceber no comportamento de Eichmann era algo
completamente negativo: “não era estupidez, mas uma curiosa e totalmente autêntica incapacidade de
782 Cf. ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém, p. 39-40. 783 Até mesmo quando comenta sobre a possibilidade de nazistas realmente cultos (diferentes dos filisteus e dos
pequenos burgueses), ainda assim, a autora não pensa que eles sejam dignos de qualquer nota. Cf., por exemplo:
ARENDT, H. “Algumas questões de filosofia moral”. In: Responsabilidade e Julgamento, p. 162. “O ponto importante
sobre esses assassinos altamente cultos é que nem um único deles compôs um poema digno de ser lembrado, uma
música digna de ser escutada, ou pintou um quadro que alguém gostaria de dependurar nas suas paredes”. 784 ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém, p. 37.
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pensar”785. Não é por acaso que Arendt insista em evitar a sugestão de que Eichmann fosse um néscio
ou um demente, pois a questão da banalidade se liga não só à experiência da irreflexão tão
potencialmente presente no cotidiano dos homens, mas também ao fato de que justamente uma pessoa
mediana, que não seria burra, nem doutrinada, nem completamente mentirosa, nem cínica, pudesse se
mostrar inteiramente incapaz de distinguir o certo do errado e de, assim, realizar maldades de
proporções gigantescas, sem ao menos sequer deliberar de fato pelo mal.
Arendt chega a afirmar que Eichmann tomou parte do regime, entrando para a SS,
simplesmente (mas não ingenuamente) porque não possuía uma resposta plausível à pergunta “e por
que não?”786. Para Yaacov Lozowick, escritor judeu e crítico de Arendt, nada haveria de “banal”
quando se trata de questões sobre a natureza maligna e, nesse sentido, portanto, o ponto de partida
arendtiano sobre Eichmann estaria equivocado. Lozowick alega que nem Eichmann nem seus
comparsas eram homens comuns, pois todos tinham plena consciência do que era a SS e, tomar o que
eles fizeram como trivialidade, como sendo common-place, seria procurar por saídas reconfortantes
onde elas não existem787. Ora, essa crítica parece não perceber nem ao menos o ponto fundamental do
que Arendt pretendia expor. Primeiramente, a pensadora pondera e distingue “lugar-comum” de
“banal”: “Para mim [...] ‘lugar-comum’ é o que acontece frequentemente, o que acontece comumente,
porém algo pode ser banal sem ser comum”788. Ou seja, há uma diferença substancial nesse caso, o
termo “banal” não pressupõe a ocorrência frequente e cotidiana que trivializaria o fenômeno estudado;
o termo “banal” quer representar algo que ocuparia o espaço do “comum” num determinado momento,
mesmo que seja apenas por um momento. Como Karl Jaspers comenta: “o ponto é que este mal, não o
mal per si, é banal”789, isto é, até tamanha maldade pode ocupar o lugar daquilo que é comum, embora
não seja algo trivial. Dando continuidade, o assustador era que uma pessoa que escapava a toda prova
de anormalidade e patologia não conseguia ter consciência da natureza de seus próprios atos. “O cerne
dessa questão, tão simples, criou um dilema para os juízes. Dilema que eles não souberam nem
785 ARENDT, H. “Pensamento e Considerações Morais”. In: Responsabilidade e Julgamento, p. 226. 786 Em Eichmann em Jerusalém, Arendt escreve: “De toda forma, não entrou para o Partido por convicção nem jamais
se deixou convencer por ele – sempre que lhe pediam para dar suas razões, repetia os mesmos clichês envergonhados
sobre o Tratado de Versalhes e o desemprego; antes, conforme declarou no tribunal, ‘foi como ser engolido pelo
Partido contra todas as expectativas e sem decisão prévia. Aconteceu muito depressa e repentinamente’. Ele não tinha
tempo, e muito menos vontade de se informar adequadamente, jamais conheceu o programa do Partido, nunca leu
Mein Kampf. Kaltenbrunner disse para ele: Por que não se filia à SS? E ele respondeu: Por que não? Foi assim que
aconteceu, e isso parecia ser tudo”, pp.44-45. 787 Cf. LOZOWICK, Y. “Malicious Clerks: The Nazi Security Police and the banality of evil. In: Hannah Arendt in
Jerusalem, pp. 216-222. 788 ARENDT, H. apud ASSY, B. “Eichmann, banalidade do mal e pensamento em Hannah Arendt”. In: Hannah
Arendt: Diálogos, reflexões, memórias, p. 143. 789 JASPERS, K. apud CORREIA, A. O significado do mal em Hannah Arendt, p. 05 (grifos no original).
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resolver, nem evitar”790. Na opinião de Arendt, Eichmann não era movido em suas ações por “motivos
torpes”, nem por qualquer outro motivo aparente, aliás. Para a pensadora, ele não era um sádico, nem
um antissemita fanático, nem qualquer tipo de extremista ideológico; sua suposta maldade não possuía
nenhum objetivo, nem sequer estímulos particulares ao interesse próprio.
Do ponto de vista de nossas instituições e de nossos padrões morais de
julgamento, essa normalidade era muito mais apavorante do que todas as
atrocidades juntas, pois implicava que [...] esse era um tipo novo de criminoso,
efetivamente hostis generis humani, que comete seus crimes em circunstâncias
que tornam praticamente impossível para ele saber ou sentir que está agindo de
modo errado791.
Isso abriu espaço para que Arendt percebesse a possibilidade de que não haveria condições
absolutamente necessárias para se realizar o mal. Em outros termos: a maldade não existiria só por
meio daqueles que estão determinados a ser vilões. A figura de Eichmann evidenciava ali o abismo
entre os princípios não-volitivos de um agente e os danos absurdos que isso ainda pode causar. A
factualidade desse caso, diz Arendt, colocou-a ainda mais em contradição com o que geralmente se
entende pelo fenômeno do mal mediante a literatura, a teologia e a filosofia, por exemplo.
Aprendemos que o mal é algo demoníaco; sua encarnação é Satã, ‘um raio caído
do céu’ (Lucas 10:18), ou Lúcifer, o anjo decaído (‘O demônio também é um
anjo’, Unanimo), cujo pecado é o orgulho (‘orgulho-se como Lúcifer’), isto é,
aquela superbia de que só os melhores são capazes: eles não querem servir a Deus,
mas ser como Ele. Diz-se que os homens maus agem por inveja; e ela pode ser
tanto ressentimento pelo insucesso, mesmo que não se tenha cometido nenhuma falta (Ricardo III), quanto propriamente a inveja de Caim, que matou Abel porque
‘o Senhor teve estima por Abel e por sua oferenda, mas por Caim e sua oferenda
ele não teve nenhuma estima’. Ou podem ter sido movidos pela fraqueza
(MacBeth). Ou ainda, ao contrário, pelo ódio poderoso que a maldade sente pela
pura bondade (‘Odeio o Mouro: o que me move é o coração’, de Iago; o ódio de
Claggart pela ‘bárbara’ inocência’ de Billy Budd, um ódio que Melville
considerou ‘uma depravação com relação à natureza humana’); ou pela cobiça, ‘a
raiz de todo mal’ (Radix omnium malorum cupiditas)792.
Como já dito, Arendt foi bastante alvejada por aquilo que ela mesma chamou de
“desencadeamento controverso e furioso” a respeito de seu livro sobre Eichmann. De modo ácido, mas
ao mesmo tempo com certa sutileza, Arendt comenta que grande parte da polêmica se dirigia a um
livro que jamais fora escrito, de tal modo que os mal-entendidos geraram um extremo ruído de
comunicação entre autora e leitores, mas que sua “primeira reação foi desconsiderar toda a questão
790 ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém, p. 38. 791 ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém, p. 299. 792 ARENDT, H. A Vida do Espírito, p. 18.
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com as famosas palavras de um espirituoso austríaco: ‘Não há nada tão divertido quanto a discussão
de um livro que ninguém leu”’793. De qualquer forma, enquanto as discussões permaneciam, torna-se
visível o desconforto e a preocupação da pensadora em relação às interpretações sobre o que ela quis
dizer com o mal banal. Percebe-se que, a partir de 1964, sobretudo quando passou a ser não só atacada,
mas defendida por aquilo que ela nunca tinha afirmado, Arendt volta a esse ponto na tentativa de
melhor explicá-lo, afirmando e reafirmando que não queria sustentar nenhuma tese ou doutrina com
esse conceito, mas que tinha sido apenas defrontada com um fenômeno que, invariavelmente, impôs a
expressão banalidade do mal. Após ter sido atingida por uma quaestio facti, que lhe serviu de metáfora
para uma formulação conceitual, Arendt decidiu levantar a quaestio júris e se perguntar com que direito
se utilizava de Eichmann como modelo exemplar do conceito “banalidade”.
Para ela, Eichmann não era hábil para pensar sem uma espécie de regulamento, ou seja, era
incapaz de pensar por si mesmo, incapaz de reflexão crítica e independente. Era como se ao longo de
toda a sua vida, tão bem refletida em suas falas judiciais, Eichmann estivesse completamente apartado
da realidade, não por decisão própria, mas por uma característica pessoal de basicamente nunca atender
a exigência que temos de refletir e tentar oferecer sentido aos acontecimentos que nos acometem;
exigência constatada em virtude de nossa mera existência no mundo. Corroboram a tese de Arendt,
nesse caso, alguns fatos: a alegação por parte do réu que se defendia como um “cidadão respeitador
das leis”, um cumpridor de deveres, um funcionário que realizava suas obrigações com uma
“obediência cadavérica”, como ele próprio argumentou; a sua dificuldade para a fala comum, no
sentido de se valer de frases feitas, de clichês e do “oficialês” para qualquer tipo de discussão e para
qualquer tipo de momento; e uma memória muito pouco confiável, segundo Arendt. Essas questões
serão trabalhadas a partir deste momento.
Eichmann orgulhava-se de ser temente às leis, de raciocinar somente dentro dos limites das
normas e de seguir à risca as ordens do Führer. “Minha honra é minha lealdade”, dizia a frase, cunhada
por Himmler, que Eichmann costumava repetir. Seu desejo de obedecer parecia ser tão forte que, além
de requerer diretrizes para nunca se encontrar em situações em que teria de tomar decisões por si
mesmo, ele chegou a afirmar, em seu próprio testemunho, que só ficava com a consciência pesada
quando não conseguia fazer o que lhe ordenavam, não importando o que fosse, pois enviaria o próprio
pai à morte caso lhe fosse exigido. Aqui se encontra um dos principais motivos por Eichmann se
considerar “inocente no sentido da acusação”, afinal, como dizia, e que aparentemente não deixava de
793 ARENDT, H. “Responsabilidade pessoal sob a ditadura”. In: Responsabilidade e Julgamento, p. 79. As palavras
citadas são do escritor e poeta Karl Kraus, a saber.
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ser verdade, nunca tinha assassinado um judeu sequer, pelo menos não com as próprias mãos – talvez
somente porque não fora ordenado a fazê-lo. Eichmann não se sentia culpado, mas traído por aqueles
que aproveitaram de sua dedicada lealdade. Em uma das passagens de seu depoimento no processo
penal, ele afirma em um diálogo:
‘em minha opinião, romper um juramento de lealdade é o pior crime e a pior
afronta que o homem pode cometer’. É então indagado: ‘Um crime maior que o
assassinato de seis milhões de judeus, entre eles um milhão e meio de crianças?’;
ao que ele responde: ‘É claro que não. Mas eu não estava ocupado no extermínio.
Se eu tivesse ocupado no extermínio, se eu fosse ordenado a lidar com o extermínio, creio que teria cometido suicídio dando-me um tiro794.
Para muitas pessoas que discordam de Arendt, Eichmann construiu um personagem que teria
encenado durante todo o processo de acordo com o que os advogados de defesa solicitavam para tentar
o impedimento de sua condenação. A maioria dos juízes o considerara mentiroso e dissimulado. A
narração arendtiana não adota essa perspectiva. Apesar de considerá-lo um “palhaço”, Arendt não
comunga com a ideia de que o réu apresentava um “número”. De qualquer forma, as várias implicações
morais, jurídicas e políticas dessas concepções de ser apenas “um cidadão respeitador das leis”, de
obedecer sem reservas, provocaram o pensamento arendtiano. O que interessa destacar é que, para
espanto da audiência e de alguns juízes, Eichmann declarou repentina e enfaticamente que teria vivido
toda a sua vida em consonância com os princípios morais de Kant, sobretudo segundo a definição
kantiana de “dever”, muito embora ele tenha citado, nesse contexto, a Crítica da Razão Pura,
provavelmente confundindo o livro ao qual se referia. Esse fato, por si só, pode-se dizer, além de
demonstrar a falta de tino do acusado, pode funcionar em prol da hipótese de Arendt, de que não se
tratava de uma encenação, no sentido de que haveria um quê de “seriedade” naquilo que Eichmann
estava fazendo e afirmando na ocasião, afinal, é bem improvável que recorrer a Kant também fizesse
parte de um plano de dissimulação consciente.
Ao ser interrogado sobre essa questão, o réu apresentou aquilo que chamou de versão de Kant
“para uso doméstico do homem comum” e se defendeu definindo o imperativo categórico: ‘“O que eu
quis dizer com minha menção a Kant foi que o princípio de minha vontade deve ser sempre tal que
possa se transformar no princípio de leis gerais”’795. Apesar de ser uma definição quase correta, o caso
demonstra uma clara distorção do pensamento kantiano. Não é difícil destacar o absurdo dessa
referência a Kant e, para não demorar nisso, vale ressaltar apenas que o filósofo alemão defendia que
todo homem passa a ser um legislador a partir do momento em que começa a agir e, por conseguinte,
794 Processo de Eichmann apud CORREIA, A. “O significado do mal em Hannah Arendt”, p. 12 (nota 42). 795 ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém, p. 152.
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a partir do uso de sua razão prática – esta que encontra princípios de ação necessários a toda
humanidade. Contudo, é presumível que o roubo, o assassinato e a mentira não possam se tornar
princípios para nenhuma ação, pois é inconcebível que o ladrão, o mentiroso e o assassino queiram
viver sob um sistema que ofereça a outros o direito de roubá-los, enganá-los e assassiná-los, por
exemplo. Além disso, Eichmann comenta que quando declarada a “Solução Final”, no momento em
que se sentiu como Pôncio Pilatos (livre de toda culpa ao lavar as mãos), deixara de viver segundo o
imperativo kantiano, pois deixara de ser senhor de seus atos, e, diz Arendt, passou a agir “como se o
princípio de suas ações fosse o mesmo do legislador ou da legislação local – ou, na formulação de
Hans Frank para o ‘imperativo categórico do Terceiro Reich’, que Eichmann deve ter conhecido: Aja
de tal modo que o Führer, se souber de sua atitude, a aprove”796.
Ainda que Arendt levasse em consideração o interesse de Kant em preservar a autonomia
humana no domínio prático, o fato de Eichmann se defender como um kantiano lhe rendeu
oportunidade para uma crítica que não poupou nem o próprio filósofo alemão: pois, ao menos no ponto
intransigente de que “uma lei é uma lei, sem exceções”, Eichmann e Kant se aproximavam. E isso,
muito longe de ser uma ponderação em relação à filosofia prática kantiana, quer indicar o perigo de se
colocar o “dever” acima de qualquer inclinação ou pendor pessoal, pois a cega devoção à lei pode ter
como resultado a produção de cadáveres, como o comando de extermínio dos judeus coordenado por
alguém que nem sequer nutria qualquer ódio por aqueles que mandava à morte diariamente, por alguém
que dizia jamais ter abrigado no peito qualquer mau sentimento por suas vítimas. “Se fôssemos
hiperbólicos, poderíamos concluir com Nietzsche e dizer que ‘o imperativo categórico cheira a
crueldade’. De qualquer modo, podemos concluir que aquilo que fundamentalmente separa o conceito
arendtiano de banalidade do mal do kantiano de mal radical”797, seguindo Adriano Correia, é
justamente o apreço pela moral compreendida enquanto obediência e devoção ao dever. Isto é, colocar
uma regra, ou uma máxima, a ser seguida acima de todo tipo de ocorrência particular mundana pode
significar não só a ausência de reflexão e de reto juízo para casos específicos, mas também o
alastramento de uma espécie de maldade que extrapola a própria previsibilidade da regra, uma vez que
pode não ser fruto de uma convicção.
Fora isso, Arendt comenta ainda a respeito da memória “desregulada” que Eichmann
demonstrava ter. Era como se ele não pudesse mergulhar nas profundezas nem de suas próprias
recordações, nem de seus próprios pensamentos; afinal, rememoração também é profundidade. Sua
796 ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém, p. 153. 797 CORREIA, A. “O Significado do mal em Hannah Arendt”, p. 12.
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memória era como uma fita que tocava em outra frequência que não à da História oficial, assim, pouco
se lembrava dos momentos decisivos da II Grande Guerra, embora nunca esquecesse de suas conquistas
profissionais e dos clichês que enchiam o seu repertório frasal. O acusado em Jerusalém, em muitos
momentos, só conseguia se expressar por meio de frases feitas, slogans, provérbios etc. Quando
Eichmann se via em situações nas quais nenhuma frase feita parecia caber, ficava totalmente perdido
e embaralhado, de tal forma que era impossível manter comunicação com ele. Para Arendt, tratava-se
não apenas de um caso brando de afasia, mas também de uma “comédia macabra”. Em certa ocasião
do processo, o réu “pediu desculpas, dizendo: “Minha única língua é o oficialês [...] Mas a questão é
que o oficialês se transformou em sua única língua porque ele sempre foi genuinamente incapaz de
pronunciar uma única frase que não fosse um clichê”798. Quanto mais escutava Eichmann, mais ela
acreditava que a dificuldade de fala que o acometia se relacionava à ausência de pensamento do
burocrata nazista. Assim, ao aderir a códigos de expressão e a condutas convencionais padronizadas,
Eichmann se resguardava ainda mais da realidade, esta que vai muito além das convenções sociais. O
maior exemplo disso se encontra nas “grotescas tolices” de suas últimas palavras, já em cima do
cadafalso, uma vez que nem na hora da morte suas principais características lhe abandonaram:
Começou dizendo enfaticamente que era um Gottglaubiger, expressando assim da
maneira comum dos nazistas que não era cristão e não acreditava na vida depois
da morte. E continuou: ‘Dentro de pouco tempo, senhores, iremos encontrar-nos
de novo. Esse é o destino de todos os homens. Viva a Alemanha, viva a Argentina,
viva a Áustria. Não as esquecerei. Diante da morte, encontrou o clichê usado na
oratória fúnebre. No cadafalso, sua memória lhe aplicou um último golpe: ele
estava ‘animado’, esqueceu-se que aquele era seu próprio funeral799.
Caso se tenha interesse pelo mero viés psicológico desse assunto, de certo modo, é preciso
confiar na interpretação e no julgamento que Arendt faz a respeito da suposta personalidade de
Eichmann (apesar de não se poder falar exatamente de uma “pessoa”, no caso), afinal, o contato direto
e testemunhal coube a ela. O que resta, aos estudiosos das obras da autora ou interessados no assunto,
são informações processuais, o interrogatório do réu realizado pela polícia, vídeos do caso, documentos
factuais, outros inúmeros materiais jornalísticos e biografias escritas a respeito de quem foi Eichmann
que talvez ofereçam discordâncias e novos posicionamentos. No entanto, do ponto de vista teórico e
filosófico, não se faz necessário acreditar piamente no juízo arendtiano sobre o réu nazista para que a
noção de “banalidade do mal” faça sentido e tenha alguma relevância – pelo menos de maneira a
oferecer ensejo para que se pense a probabilidade e as consequências, tanto morais como políticas, da
798 ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém, p. 61. 799 ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém, p. 274.
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existência de uma maldade nesses termos. Na verdade, para ir mais longe, Arendt poderia estar até
equivocada na determinação do seu tipo ideal, isto é, na equiparação de Eichmann com a imagem do
mal banal, mas, ainda assim, o que ela alega permanece: dependendo da situação, pessoas “normais”
e obedientes, bons funcionários, podem representar potenciais criminosos; esse tipo de gente, sem
qualquer sinal de perversidade, sem qualquer motivo especial, não muito diferente de nossos
desconhecidos e educados vizinhos que nos desejam “bom dia” toda manhã, esse tipo de gente de boa
família e longe de qualquer suspeita pode não ser tão inofensivo quanto se imagina. É como se a
imagem de Eichmann viesse corroborar o que a epígrafe da terceira parte de Origens do Totalitarismo
já indicava: “Homens normais não sabem que tudo é possível”. O ponto é que, para Arendt, nas
condições do terceiro Reich, era de se esperar que somente as “exceções” agissem normalmente e, com
isso, ocasionou-se o total colapso moral da civilização alemã.
Segundo Arendt, com a Alemanha submetida às leis de Hitler e condenada à banalidade do mal
de figuras como Eichmann, uma lógica tradicional da tentação ao mal havia sido invertida. Se, por um
lado, como em Kant ou como nas explicações da filosofia medieval, a maldade era comumente
classificada como uma queda, um pecado, uma falta ocasionada por algum desejo do qual o homem
(apesar de sua boa natureza) não consegue escapar – embora as leis de qualquer civilização
pressuponham e trabalhem como uma voz da consciência geral no intuito de impedir tentações
assassinas, por exemplo –, nessa nova configuração nazista, por outro lado, sucumbir aos pendores
assassinos que às vezes possuímos já não significava uma carência da natureza humana e muito menos
um desvio perante alguma lei. Na realidade, afirma Arendt, fazer o bem se tornou uma tentação:
No Terceiro Reich, o Mal perdera a qualidade pela qual a maior parte das pessoas
o reconhecem – a qualidade da tentação. Muitos alemães e muitos nazistas,
provavelmente a esmagadora maioria deles, deve ter sido tentada a não matar, a não roubar, a não deixar seus vizinhos partirem para a destruição (pois eles sabiam
que os judeus estavam sendo transportados para a destruição, é claro, embora
muitos possam não ter sabido dos detalhes terríveis), e a não se tornarem
cúmplices de todos esses crimes tirando proveito deles. Mas Deus sabe como eles
tinham aprendido a resistir à tentação800.
Em Algumas questões de filosofia moral, Arendt afirma que Kant tendia a igualar “tentação” e
“inclinação”, pois ele via em toda inclinação uma tentação que desviaria os homens de seu caminho
moral. Ao serem tentados a fazer o mal, os homens precisam de esforço para fazer o bem e não caírem
em tentação. Nesse contexto, Arendt contesta essa concepção ao dizer que as pessoas também são
800 ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém, p. 167.
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tentadas a fazer o bem e precisam de esforço para praticar o mal. A autora comenta: “Maquiavel sabia
disso muito bem, quando disse em O Príncipe que os governantes devem ser ensinados a ‘não ser
bons’, e ele não queria dizer que eles deviam ser ensinados a ser ruins e malvados, mas simplesmente
a evitar as duas inclinações e agir de acordo com princípios políticos”801. Assim, quando Arendt diz,
em Homens em Tempos Sombrios, que Jaspers era imune à tentação, algumas relações significativas
surgem entre esses contextos. Jaspers era imune à tentação, nos termos dela, não porque era totalmente
fechado aos eventos mundanos, àquilo que nos atinge do exterior, mas por ser uma pessoa que
exemplifica também uma quebra com essa lógica moral da tentação. Talvez, para finalizar, posso dizer:
não era por dever moral ou por mera inclinação subjetiva que Jaspers negava ou não certos modos de
conduta, mas por agir segundo e em nome de critérios para a manutenção de um ethos político e
cidadão, critérios “distintos dos morais e religiosos, bem como dos criminosos”802, na leitura da autora.
801 ARENDT, H. “Algumas questões de filosofia moral”. In: Responsabilidade e Julgamento, p. 144. 802 ARENDT, H. “Algumas questões de filosofia moral”. In: Responsabilidade e Julgamento, pp. 144-145.
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CONCLUSÃO
Em um texto traduzido como Dedicatória a Karl Jaspers, escrito em 1947, Hannah Arendt
confessa abertamente o seguinte ao seu mestre, mentor e amigo: “sem sua filosofia e sem sua
existência, que para mim adquiriram uma intensidade ainda maior nos longos anos em que a loucura à
solta pelo mundo nos afastou completamente, eu nunca conseguiria ter adotado uma deliberada
independência de julgamento, uma distância consciente de todos os fanatismos [...]”803. E a autora
prossegue: “O que aprendi com você é que a pessoa tem de viver e pensar em campo aberto, e não
dentro de sua pequena concha, por mais confortável que seja [...]”804. Instigado por essas e outras
declarações de Arendt a seu ex-orientador de doutorado, como as que abrem a Parte I e a Parte II desta
Tese, extraí aqui conceitos, discussões e significados das obras filosóficas arendtianas e jasperianas
que justificassem, textual e teoricamente, a importância da filosofia e da pessoa de Jaspers para o
desenvolvimento do pensamento político e moral de Arendt. Desde os seus primeiros contatos com o
professor de Heidelberg, Arendt foi provocada a pensar de uma maneira que até então lhe era
desconhecida, como ela afirma em uma famosa entrevista de 1964. Tratava-se de um modo de pensar
que se fundia em uma trindade entre “liberdade, razão e comunicação”805. Nesse sentido, para
estabelecer e costurar um diálogo que relacionasse as filosofias de Arendt e de Jaspers, este trabalho
operou um vai e vem constante entre as obras dos dois autores, de modo a debater, junto a eles, como
a criação e os sentidos dos conceitos políticos e éticos arendtianos podem ser iluminados também por
meio da teoria jasperiana. Contudo, o trabalho não seguiu apenas uma linha de raciocínio ou apenas
um único fio condutor argumentativo que ligasse esses dois autores. Isto porque o diálogo Arendt-
Jaspers é multifacetado, indireto, sutil, pouco óbvio, nem um pouco sistematizado, fraturado,
abrangente e plural. Por isso, entre outras formas, expressei que os autores possuem diálogos cruzados,
comunicações conceituais, concordâncias políticas, influências mútuas e que são exemplos pessoais e
de pensadores um para o outro. A pretensão foi criar um mosaico de problemas que formasse uma
imagem significante da potência interpretativa que se pode retirar da interação entre Jaspers e Arendt,
sobretudo para a compreensão da obra arendtiana – “da existência política à exemplaridade moral”.
De certo modo, as duas partes desta tese podem ser vistas como interpretações expandidas e
ampliadas dos dois textos arendtianos dedicados a Jaspers em Homens em Tempos Sombrios. O artigo
803 ARENDT, H. “Dedicatória a Karl Jaspers”. In: Compreender: formação, exílio e totalitarismo, p. 241. 804 ARENDT, H. “Dedicatória a Karl Jaspers”. In: Compreender: formação, exílio e totalitarismo, p. 241. 805 ARENDT, H. “Speech given by Hannah Arendt at the public memorial service for Karl Jaspers, University of
Basel, March 4, 1969”. In: KOHLER, L; SANER, H. Correspondence Hannah Arendt Karl Jaspers 1926-1969, p. 685.
249
Karl Jaspers: cidadão do mundo?, primeiramente, foi desmembrado em seus sentidos a fim de
explicitar conceitos da filosofia existencial jasperiana que, na leitura de Arendt, carregavam carga
eminentemente política. Já o texto Karl Jaspers: uma laudatio, por seu turno, serviu como cerne para
a discussão da exemplaridade moral de Jaspers, pela forma como o pensador se posicionou durante o
período do domínio nazista, posição esta admirada e teorizada por Arendt. Dessa maneira, vale dizer,
este trabalho se postou e se movimentou num contratempo rítmico em relação à grande parcela das
bibliografias secundárias sobre Arendt que se interessam pelos diálogos da autora com os seus
contemporâneos – sem, contudo, desmerecê-los –, uma vez que estes normalmente priorizam o debate
da pensadora com Martin Heidegger. Por certo, não obstante, um dos pontos determinantes do ganho
de se aproximar Arendt a Jaspers, um pouco a contrapelo das leituras por demais heideggerianas da
obra da teórica judia, está na forma como a pessoa e a filosofia de Jaspers podem se comunicar com
os conceitos arendtianos de “mentalidade alargada” e de “pensamento subversivo”, e, assim, podem
ajudar na compreensão dos assuntos éticos trabalhados pela autora. Pois é justamente isso o que a Parte
II desta tese apresentou: um estudo sobre as questões morais em Arendt, desenvolvidas na década de
1960, com enfoque na personalidade de Jaspers – o que me levou primeiramente a uma discussão sobre
o conceito de personalidade nos dois autores. Concluí, então, que o “quem” ético para Arendt está
ligado às atividades espirituais do pensamento e do juízo; e que o “quem” ético em Jaspers está ligado
ao processo de filosofar como “ação interna” delineadora de uma pessoa. Diante disso, apresentei que
os significados de ambos, portanto, comunicam-se.
Inicialmente, o trabalho acompanhou o fato de que durante as décadas de 1940 e 1950, à
sombra e em contraste com a filosofia da história marcante dos séculos XVIII e XIX, Jaspers chama
atenção para uma noção de “humanidade” que interessaria bastante a Arendt, a ponto de a autora citá-
lo em alguns de seus textos publicados e em algumas palestras que ela ministrou na época. Para Arendt,
a noção de humanidade jasperiana teria o mérito de evitar caminhar ao lado da noção de “progresso”
e da conjectura de uma unidade sistemática ativa e volitiva, que comporia supostamente o gênero
humano. Ou seja, a humanidade não é interpretada por Jaspers nem como um “ser” agente, nem como
uma unidade racionalmente fadada a progredir historicamente. É por isso que Arendt atesta:
“Comparado com o de Kant, o conceito jaspersiano de humanidade e cidadania mundial é histórico;
comparado com o de Hegel, é político. Combina, de certa forma, a profundidade da experiência
histórica hegeliana com a grande sabedoria política de Kant. E no entanto o que distingue Jaspers de
qualquer um deles é decisivo”806. Ora, o que distingue Jaspers é que ele formula essa concepção de
806 ARENDT, H. “Karl Jaspers: cidadão do mundo?”. In: Homens em Tempos Sombrios, p. 112.
250
humanidade não a partir de suas ideias, afastado da realidade, mas a partir da análise de um fato político
de seu tempo: o desenvolvimento e o uso da bomba atômica pelos homens. Com bases nesse
acontecimento, pode-se dizer que a humanidade é agora, pós Segunda Grande Guerra, uma realidade,
uma concretude, uma emergência política, para além de uma mera “ideia de humanidade”, em função
do seu possível aniquilamento. Diante desse argumento jasperiano, este trabalho relacionou o conceito
de pluralidade de Arendt com a noção de humanidade em Jaspers e, dessa forma, apresentou momentos
em que essa mesma noção de humanidade aparece também nos textos políticos arendtianos, como um
critério para se pensar e para se agir politicamente, segundo a autora. Não intentei com isso encontrar
nenhum fundamento ou princípio político para as reflexões de Arendt, mas, no lugar disso, interessava-
me apontar para a hipótese de que a noção de humanidade aparece como mais uma condição da
existência dos homens nos dias atuais, inclusive conforme citado, mas não totalmente desenvolvido,
na obra A Condição Humana, de 1958. Ou seja, além da natalidade, da mortalidade, da pluralidade, da
mundanidade, da Terra e da Vida, afirmo que há um significado de humanidade, nos próprios termos
de Arendt, que é também uma condição humana. Contudo, trata-se de uma condição humana
exclusivamente contemporânea, iniciada pós-1945 e em relação à qual nenhuma existência humana
pode atualmente escapar, pois a pluralidade hoje está submetida à realidade da humanidade.
A preocupação de Arendt com a pluralidade humana no mundo pode ser assumida, entre tantas
outras perspectivas, como a chave que faz ligar praticamente todos os conceitos políticos criados e
desenvolvidos pela pensadora na década de 1950. Assim, ao procurar pela gênese da pluralidade como
um elemento político de primeira grandeza nas obras de Arendt, além de nos depararmos com um
diálogo com a noção de humanidade em Jaspers, é possível encontrar o embrião dessa preocupação na
tese de Arendt sobre o conceito de amor em Agostinho, de 1929. Com o cuidado necessário para não
pecar muito anacronicamente, foi possível desenvolver duas problemáticas centrais. Primeira: debater
como o trabalho de doutorado de Arendt interpela supostas contradições agostinianas a partir de
concepções que a autora retira da filosofia de Jaspers, o ser-em-situação e as situações-limite
sobretudo. Segunda: discutir como as noções de humanidade e de pluralidade já estão presentes no
primeiro escrito da jovem e estudante Arendt, como que em um aviso prévio de que o mundo político
não pode ser abandonado nem aviltado em qualquer tentativa filosófica de compreender as relações
humanas, mesmo no caso do amor ao próximo cristão.
Ao oferecer destaque ao espaço-entre (in-between) as teorias e as personalidade de Arendt e
Jaspers, espaço onde acontecem as relações políticas e éticas, foi realçado também o tempo presente a
eles – o tempo histórico que eles dividiam –, bem como as disposições afetivas que eles valorizavam
251
para dar conta dessa temporalidade constituinte do “agora”, dessa temporalidade que nasce a cada novo
acontecimento. Em outras palavras, ao analisar “o mundo comum” entre os autores, notei que o que
também permanecia em comum a eles era o desafio de se pensar e teorizar sobre o presente, assim
como o apego comum a afetos para sentir esse tempo presente. “Interessa ser do seu próprio tempo”,
dizia Jaspers. Arendt confessa que adorava essa máxima jasperiana e que adotou essa postura desde
Origens do Totalitarismo. Por essa perspectiva, em suas obras, Jaspers e Arendt faziam pulsar
semelhantes humores e afetos próprios aos seres humanos para lidar com o mundo comum que ambos
compartilhavam. Enfrentar a realidade histórica do presente exigiria certas disposições afetivas que,
na teoria política de Arendt, resumem-se na famosa expressão amor mundi. Especificamente, chamei
atenção para a coragem, o respeito, a amizade, a abnegação, a esperança e o sensus communis como
disposições propícias para o cultivo de sentimentos públicos em Arendt que, em seus significados
peculiares, entram em contato com a filosofia ou a pessoa de Jaspers.
Nesse movimento constante entre a filosofia e a pessoa de Jaspers, que na teoria do próprio
autor alemão entram em processo de fusão, desenvolvi argumentos para sustentar o Jaspers de Arendt
como um discípulo único de Kant. Essa característica jasperiana, defendida por Arendt, dar-se-ia por
dois motivos maiores: primeiro, Jaspers se utilizou de conceitos kantianos para pensar politicamente a
existência humana, algo que nenhum outro autor havia feito até então; segundo, na junção de teoria e
prática, Jaspers pensava por meio do procedimento da mentalidade alargada kantiana, o que fazia dele
um cidadão com personalidade ética exemplar. Imbuído em desvendar os sentidos dessa hipótese de
trabalho, por fim, defendi que pensar por meio de exemplos pessoais era uma característica marcante
de toda a filosofia política e moral de Arendt. Dessa forma, vicariamente, a pensadora refletia sobre os
seus temas de pesquisa visitando e imaginando perspectivas pessoais. Karl Jaspers, portanto, é um dos
“quem” que Hannah Arendt visita e sobre o qual ela acaba por tecer uma narrativa.
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