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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE GOIÁS UNIDADE UNIVERSITÁRIA DE CIÊNCIAS SÓCIO-ECONÔMICAS E HUMANAS DEPARTAMENTO DO CURSO DE HISTÓRIA A SOBREVIVÊNCIA DO DIREITO ROMANO EM BIZÂNCIO Andrey Borges Pimentel Ribeiro Anápolis (GO) 2009

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE GOIÁS UNIDADE UNIVERSITÁRIA DE CIÊNCIAS SÓCIO-ECONÔMICAS E HUMANAS

DEPARTAMENTO DO CURSO DE HISTÓRIA

A SOBREVIVÊNCIA DO DIREITO ROMANO EM BIZÂNCIO

Andrey Borges Pimentel Ribeiro

Anápolis (GO)

2009

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Andrey Borges Pimentel Ribeiro

A SOBREVIVÊNCIA DO DIREITO ROMANO EM BIZÂNCIO

Anápolis (GO)

2009

Trabalho de Conclusão de Curso

apresentado à Coordenação do Curso de

História da Universidade Estadual de

Goiás para obtenção do grau de

Licenciatura em História.

Professora Orientadora:

Dra. Renata Cristina de Sousa

Nascimento M

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Aos meus pais e aos pais de meus pais. Sem eles, minha história e minhas histórias jamais seriam possíveis.

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AGRADECIMENTOS

À professora e orientadora desta monografia,

Renata Cristina de Sousa Nascimento, pela paciência,

compreensão, dedicação e ensinamentos.

Aos meus professores e professoras, os quais

serão sempre lembrados, pela sua dedicação e

profissionalismo.

Aos meus amigos que sempre me

acompanharam durante a graduação.

Mais uma vez, o agradecimento à Fernanda de

Sousa Fernandes cujo tempo só aumentou o carinho.

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“A majestade imperial deve ser ornada não só com as armas, mas também com as leis, para que possa reger com justiça nos tempos de paz e nos tempos de guerra, e para que o príncipe romano fique vitorioso não só nos combates com os inimigos, mas também no expurgo das injustiças que se ocultam sob fórmulas legais, e para que seja, ao mesmo tempo, religiosíssimo cultor do direito e vencedor dos inimigos.”

(Imperador Justiniano)

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SUMÁRIO

RESUMO ................................................................................................................. 07

ABSTRACT ............................................................................................................. 08

INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 09

1 BIZÂNCIO: CONTINUIDADE DO IMPÉRIO ROMANO ...................................... 12

1.1 A queda livre .................................................................................................... 12

1.2 A divisão .......................................................................................................... 15

1.2.1 Bizâncio (Constantinopla) e os imperadores ........................................... 16

1.2.2 Justiniano ................................................................................................ 18

2 O DIREITO ROMANO EM BIZÂNCIO ................................................................. 23

2.1 O direito e o direito romano .............................................................................. 23

2.2 Direito romano em Bizâncio ............................................................................. 27

2.3 A empreitada jurídica de Justiniano ................................................................. 29

2.4 O Corpus Juris Civilis ....................................................................................... 31

2.4.1 O Código (Lei) .......................................................................................... 32

2.4.2 O Digesto (Jurisprudência) ......................................................................... 33

2.4.3 As Institutas (Doutrina) .............................................................................. 35

2.4.4 As Novelas (Emendas) ............................................................................. 35

3 A SOBREVIVÊNCIA ............................................................................................ 37

3.1 Concepção geral do direito romano em Bizâncio ............................................ 40

3.2 Estrutura do direito romano em Bizâncio ......................................................... 42

3.2.1 Divisão geral ............................................................................................. 42

3.2.1.1 Parte geral .................................................................................... 43

3.2.1.2 Direito de família ........................................................................... 44

3.2.1.3 Direito das coisas ......................................................................... 46

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3.2.1.4 Direito das sucessões ................................................................... 54

3.2.1.5 Direito das sucessões e contratos ................................................ 56

3.2.1.6 Demais institutos constantes do Livro Quarto das Institutas

.................................................................................................................... 62

CONCLUSÃO .......................................................................................................... 67

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 69

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RESUMO

O objeto de estudo da pesquisa é o direito romano compilado pelo Imperador Justiniano no século VI, mais especificamente, uma das obras componentes do Corpus Juris Civilis, as Institutas. A obra é estudada tendo em vista o contexto histórico de formação do Império Bizantino a partir da decadência do Império Romano do Ocidente, com o propósito de vislumbrar a compilação de Justiniano enquanto aspecto cultural romano, sendo que, esse legado se constitui no principal modelo jurídico do mundo, inclusive o Brasil. Portanto, a análise das Institutas é feita de forma comparada com o direito civil brasileiro.

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ABSTRACT

The object of study of the research is the roman law compiled by the Emperor Justiniano in the century VI, more specifically, one of the component workmanships of the Corpus Juris Civilis, the Institutas. The workmanships is studied in view of the historical context of formation of Byzantine Empire from the decay of the Occident Roman Empire, with the intention to glimpse the Justiniano’s compilation while roman cultural aspect, being that, this legacy constitutes in the main legal model of the world, also Brazil. However, the analysis of the Institutas is made of form compared with the Brazilian civil law.

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INTRODUÇÃO

É muito intrigante pensar que o direito romano ainda é a base jurídica da maior

parte das sociedades atuais sendo que Roma perdeu seu vigor no século V. O lapso de

tempo é assaz considerável para permanecerem intactos tantos institutos jurídicos cuja

essência é a mesma desde a Lei das XII Tábuas.

Durante o período da Idade Média o direito romano continuou a ser aplicado no

Império Bizantino (ou Império Romano do Oriente), portanto, sobreviveu fora do

ambiente da Europa Ocidental. Apenas com o Renascimento a cultura romana é

resgatada na Europa Ocidental, e nesse contexto as bases jurídicas romanas começam

a ser vislumbradas.

O direito romano continuou no Império Bizantino graças às compilações

empreendidas pelo imperador, Justiniano (527-565). Justiniano não criou um direito

bizantino independente do direito romano, pois não inovou na ordem jurídica. O que ele

fez foi compilar a confusa e dispersa legislação de Roma em um cânone jurídico

harmônico. Reuniu o direito romano, mas não o modificou em sua essência. Por isso,

como o Corpus Juris Civilis é a obra de Justiniano que resgata a cultura jurídica

romana, o estudo dessa obra consiste, logicamente, no estudo do direito romano.

No presente estudo, o direito romano é analisado a partir de uma das obras

componentes do Corpus Juris Civilis, as Institutas, que é um manual feito pelos juristas

escolhidos por Justiniano destinado aos estudantes do direito. Ou seja, é um estudo a

partir de uma fonte histórica.

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A tese da pesquisa é no sentido de que Roma continuou culturalmente viva

mesmo que fora da cidade de Roma. Como a obra jurídica romana mais completa é do

período bizantino, nada mais salutar do que explorar a sobrevivência do direito romano

a partir de Bizâncio. E, refletindo acerca do direito romano enquanto aspecto cultural da

sociedade romana credita-se ao direito uma parcela de responsabilidade pela própria

sobrevivência de Roma enquanto referência de sociedade.

A presente pesquisa compreende três capítulos. O primeiro capítulo aborda o

contexto histórico em que o Império Bizantino surgiu, a partir da decadência do Império

Romano do Ocidente. Neste capítulo a figura de Justiniano é abordada como o

imperador que marca a história do Império Bizantino em diversos setores: religião,

arquitetura, artes, política, expansão militar e relações sociais aplicadas através do

direito.

O segundo capítulo aborda o direito enquanto produção cultural de Roma. Nesse

sentido, o direito bizantino é reflexo social da tradição jurídica romana, tendo Justiniano

como o responsável por compilar a produção jurídica romana de forma sistêmica. E, o

empreendimento de Justiniano possibilitou a permanência dos institutos jurídicos

através do tempo.

E, o terceiro capítulo trabalha um dos livros componentes do Corpus Juris Civilis,

as Institutas, ressaltando a concepção geral do direito, a estrutura e a divisão da obra

bem os institutos jurídicos previstos. Cada instituto jurídico romano das Institutas é

analisado tendo em vista sua situação atual na legislação brasileira, de forma

comparada.

A proposta da pesquisa é aliar a obra jurídica à importância histórica de

manutenção da cultura romana, sendo tão importante quanto a língua latina e o

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Cristianismo. Aliás, o latim mesmo se extinguiu e o Cristianismo em Bizâncio foi

completamente modificado se comparado a Roma. O direito, por outro lado, manteve

sua essência.

E mais, depois do Renascimento houve uma disseminação da cultura romana

pela Europa Ocidental, chegando aos países ibéricos os quais foram pioneiros na

expansão marítima europeia e também na colonização de grande parte da Ásia, África

e América.

No caso da América, a América Latina sofreu influência majoritária de Espanha e

Portugal. O Brasil, em especial, herdou o direito lusitano como forma de regulamentar

as relações sociais. O direito lusitano tem por base o direito romano, logo, o direito

brasileiro, até hoje, é um direito de base romana e diversos institutos jurídicos

pertinentes à sociedade romana continuam vigentes, em especial no ramo do direito

civil.

Estudar o direito brasileiro e as bases sociais pertinentes a esse componente

cultural implica em um estudo a respeito de institutos jurídicos romanos cuja

permanência se deve, em grande medida, ao período bizantino, em especial sob o

governo do imperador Justiniano.

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1 BIZÂNCIO: CONTINUIDADE DO IMPÉRIO ROMANO

O estudo a respeito do Império Bizantino não pode ser feito de forma isolada.

Isto porque há um “cordão umbilical” que une Bizâncio a Roma. Sem os problemas

conjunturais pelos quais passavam o Império Romano do Ocidente que vão desde as

invasões bárbaras até as crises internas, talvez não houvesse a mudança do centro

gravitacional do Império Romano do Ocidente para o Oriente.

1.1 A queda livre

O século III marcou Roma de forma negativa, sendo caracterizado como um

período de intensas crises internas que demonstravam a fragilidade do Império:

As dificuldades que o império enfrentou no século III resultaram, em grande parte, de deficiências nas instituições culturais, sociais e políticas. Foram estas deficiências inatas, mais do que o poderio das nações bárbaras, que prostraram o Estado e o ameaçaram de destruição em meados do século que precedeu o reinado de Diocleciano. (VRYONIS, s.d., p. 11).

O Império Romano que até então parecia inabalável, no século III dava claras

mostras de um ambiente instável. Num cenário imperial, os exércitos sobrepunham o

Senado nas tomadas de decisões. Aliás, a importância do Senado nesse contexto, se

não era nula, também já não era a mesma dos tempos republicanos.

Vale ressaltar que os exércitos tinham cada um, seu general. Cada general, por

sua vez tinha suas pretensões políticas. A isso se soma o contexto romano de vaidades

em que a conciliação era algo bastante complicado. O resultado é a dispersão do

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poderio romano. Como não havia unidade, o exército era também um epicentro de

instabilidade em que diversas vezes os generais romanos mobilizavam suas tropas,

romanos contra romanos, acentuando a crise institucional.

Ademais, não havia, no século III, uma norma reguladora da sucessão imperial.

Tal fato acentuava a disputa pelo poder do governo. E, como visto, os generais

aproveitavam disto para ascender ao poder.

A economia romana também passava por problemas graves, assim, com a falta

de estabilidade política, a crise econômica se agravava:

A falta de estabilidade política mais agravou, sem dúvida, o mal-estar econômico que afligiu o império durante o século III. As causas que a determinaram eram muito mais complexas do que as que provocaram as agitações políticas. (VRYONIS, s.d., p. 11).

Considerando que a principal fonte de riqueza do Império eram os tributos

cobrados dos povos dominados:

O grande defeito da economia romana é não ter sabido criar novas fontes de riqueza. Durante o período das conquistas, Roma viveu dos tributos que impunha aos povos vencidos, a partir do século III vive das suas reservas, no século IV esgotou-as. (RICHÉ, s.d., p. 26).

Como o Império não estava em suas melhores condições, houve significativa

diminuição dos créditos provenientes dos impostos. Não havia estrutura para viabilizar a

cobrança. Os próprios povos bárbaros, não só deixavam de pagar os tributos devidos

como também, por vezes, assaltavam os domínios romanos.

No século III também ocorreram lutas civis que deixavam a economia interna

mais fraca. Sem o movimento econômico dentro do próprio território, e, mais, se

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tratando de uma cidade importadora de quase todos os produtos (Roma não se

preocupou em estruturar uma produção própria forte), em especial do Oriente, a

balança comercial do Império tornou-se extremamente desfavorável: “O Estado compra

aos comerciantes sírios, gregos ou egípcios, mas, em troca, não pode vender nada,

não tendo nenhuma grande indústria”. (RICHÉ, s.d., p. 26).

Outra questão que traduz a crise econômica é o alto gasto para a manutenção

da máquina administrativa, ainda mais sendo um Império. E, por ser um Império, o

exército é um anexo de suma importância, sendo assim, os subsídios para manter o

mesmo eram cada vez maiores. O somatório dessa conta era pago pela população.

A irresponsabilidade administrativa era tamanha que, em meio a crise, uma das

medidas foi o aumento na produção da moeda. Naturalmente, a moeda perdeu seu

valor gerando uma inflação meteórica. A sociedade deixa de confiar na moeda e volta à

prática da economia a base de troca, o que, não deixa de ser, em termos econômicos,

um retrocesso.

Com toda essa instabilidade, os limites do Império Romano estavam sendo

postos à prova constantemente pelas invasões bárbaras. Os limites do Império

modificavam constantemente bem como novas capitais vinham sendo escolhidas:

Convém notar, no entanto, que, nesse belo conjunto, o despertar das nacionalidades e a escolha de novas capitais criaram outras linhas de força cujos pontos de chegada são Trèves, Milão, Sírmio e Constantinopla. Roma já não tem a preponderância de outrora e o Império, ao defender-se contra os Bárbaros, corre o risco de se dividir se a sua organização política não se adaptar à nova situação. (RICHÉ, s.d., p. 21).

A crise dentro do Império, nesse diapasão, é conjuntural. Vários fatores

interligados desencadearam problemas, em especial dentro de Roma, que importarão

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na queda do poder romano. Roma já não é a mesma. O Império precisa de uma nova

organização política para conseguir se manter. A divisão administrativa do Império

torna-se uma necessidade.

1.2 A divisão

Para tentar resgatar a força do Império, algumas mudanças estruturais,

principalmente na forma de governo, deveriam ser realizadas. As figuras de dois

governantes ficaram marcadas por empreenderem reformas:

Foram, no entanto, Diocleciano e Constantino que mediram a gravidade do declínio e levaram a bom termo a operação regeneradora por meio de reformas institucionais em grande escala. As suas medidas não foram promulgadas e postas em vigor em todo o império de uma só vez; apareceram a pouco e pouco durante as cinco décadas e meia que separam a ascensão de Diocleciano da morte de Constantino. (VRYONIS, s.d., p. 18).

Não cabe no presente trabalho dissertar sobre as reformas, mas apenas

contextualizar que a partir de um momento de crise geral no Império, medidas foram

tomadas cujo precursor foi Diocleciano.

Em comum, esses governantes patrocinaram uma mudança no regime

administrativo:

A manifestação mais clara da mutação do regime administrativo foi o abandono de Roma como capital do império. Embora Milão a tenha substituído como centro imperial do Ocidente, a principal residência do imperador veio a ser fixada no Oriente. Diocleciano escolheu Nicomedia; Constantino, Constantinopla. A escolha destas duas cidades gregas mostra que o centro de gravidade político do império se deslocara para o Oriente. (VRYONIS, s.d., p. 27-28).

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É perceptível que há uma movimentação do Ocidente para o Oriente.

Diocleciano já vislumbrava essa tendência, mas foi Constantino quem a promoveu, e

Teodósio a efetivou.

Não por acaso. O Oriente era a parte mais rica do mundo até então conhecido,

com maior quantidade de pessoas, de produtos, com um comércio intenso. Manter a

estrutura imperial no Ocidente improdutivo e constantemente ameaçado pelas invasões

bárbaras não era algo salutar. Na realidade, Roma estava desgastada pelas crises e

não havia soluções aparentes dentro da extensão local.

Quando Constantino consegue reunir para si todo o poder imperial, ele decide

inaugurar Constantinopla:

Constantino é senhor do Império. No mesmo ano, decidiu criar uma segunda capital. Para tal, escolheu Bizâncio, que indicava a rota estratégica, indo da Ásia até ao Ocidente, e evitava um longo trajecto marítimo. Daqui resultava que o eixo do Império já não passava por Roma. (GRIMAL, s.d., p. 140).

Constantinopla é continuidade de Roma. Ao escolher a nova capital, para lá são

transportadas a cultura e identidade romana.

De 378 a 395 Teodósio governou Roma e, em 395 concretiza a separação entre

Oriente e Ocidente ao repartir o Império Romano entre seus dois filhos, Arcádio, que

ficou com as províncias orientais e Honório, que ficou com as províncias ocidentais.

1.2.1 Bizâncio (Constantinopla) e os imperadores

Localizada às margens do Bósforo, a cidade de Bizâncio era uma antiga cidade-

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estado grega. Apesar de seu ponto estratégico, na antiguidade não exercia papel

chamativo, só adquirindo importância inegável a partir do governo de Constantino.

Em termos de geografia, Bizâncio é o meio termo entre o Oriente e o Ocidente:

Constantinopla era o lugar ideal para a capital de um Estado que devia a sua aliança tripla à geografia. A cidade ergue-se nas margens da Europa e da Ásia. E a Trácia, por um lado, e a Ásia Menor Ocidental, por outro, constituíram, do princípio ao fim do apogeu do Império, as partes mais vitais do seu território. (RICE, 1970, p. 30).

Batizada de Constantinopla pelo imperador Constantino como forma de se auto-

homenagear, a cidade foi inaugurada como capital do Império em 11 de maio de 330:

Constantino promove a consagração da nova capital em 330. Esta solenidade marca o fim de meio século de reformas importantes. Com raízes nas desordens do século III, as reformas realizadas institucionalizaram os esforços isolados para modificar a sociedade romana. (VRYONIS, s.d., p. 30).

Constantino ficou no poder de 324 a 337 tendo construído algumas obras como o

foro, por exemplo. Quando morreu, assumiu seu filho, Constâncio, que deu

continuidade aos anseios de seu pai entre 337 e 361. Fundou um senado aos moldes

do Senado Romano e equivalente ao mesmo. Isso reforça a ideia de Bizâncio continuar

Roma.

Depois de Constâncio, foram os seguintes os imperadores bizantinos: Juliano

(361-363), Joviano (363-364), Valente (364-378), Teodósio (379-395), Arcádio (395-

408), Teodósio II (408-450), Marciano (450-457), Leão I (457-474), Leão II (474), Zenão

(474-475), Basilisco (475-476), novamente Zenão (476-491), Anastásio I (491-518),

Justino I (518-527), até chegar a Justiniano (muitas vezes recebe o título de Justiniano I

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por ser o primeiro imperador bizantino com o nome de Justiniano, tendo seguido outros

sem sucessão a ele que continuam a numeração do título).

Justiniano é o imperador que mais se notabiliza no sentido de resgatar o

passado romano e é através dele que um aspecto muito importante da cultura romana

vai ganhar sobrevida, o direito, e mais do que isso, continuará ainda depois de Roma e

Bizâncio, sendo o escopo do trabalho: demonstrar a sobrevivência do direito romano

em Bizâncio. Sem Justiniano e os juristas que gravitavam na corte bizantina seria difícil

o direito romano ter o mesmo êxito.

1.2.2 Justiniano

O Império Bizantino consolida-se com Justiniano. Com Justiniano, Bizâncio

torna-se referência arquitetônica, urbanística, organizacional e bélica. Construções são

erguidas, a cidade ganha contornos próprios ao mesmo tempo em que a postura do

Império modifica a partir das políticas implantadas por Justiniano.

É impossível afirmar com precisão se Justiniano pretendia restabelecer o Império

Romano. As suas realizações sugerem uma forte influência de Roma. Enquanto

imperador demonstrava ser romano. Um império se justifica pela política de expansão

territorial. Nesse sentido, Justiniano moveu grandes esforços na tentativa de recuperar

territórios ocidentais antes romanos, em guerras travadas principalmente contra os

bárbaros:

Apesar de enormes dificuldades, Justiniano conseguiu em grande parte pôr as províncias ocidentais – pelo menos aquelas em torno do Mediterrâneo – sob seu controle. Criara um novo Império Romano – em termos assim tão literais, porque era governado a partir da nova Roma. (ANGOLD, 2002, p. 32).

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Um “novo Império Romano”, mas ainda assim, romano. A zona do Mediterrâneo

sob controle de Bizâncio é significativa. O Mediterrâneo é o começo da sociedade

romana, sua fonte primeira de comércio com outros povos. A partir do Mediterrâneo,

Roma conseguiu expandir sua influência. Controlar o Mediterrâneo é uma constante na

antiga sociedade romana, mesmo antes do período imperial. O exemplo foi seguido à

risca pelo imperador Justiniano.

Devido à localização de Bizâncio, o contato com o Oriente era dinâmico, e isso

era algo que ao mesmo tempo em que significava um comércio intenso, representava

maior proximidade com inimigos poderosos. Justiniano não almejou qualquer expansão

territorial rumo ao Oriente, o êxito de tal empreendimento era pouco provável. O

imperador preferiu, portanto, uma neutralidade defensiva:

Explorando o isolamento diplomático dos seus inimigos no Ocidente, e assumindo uma atitude defensiva no Oriente, Justiniano conseguiu converter, mais uma vez, o Mediterrâneo em lago imperial e dar ao seu nome um brilho temporário, mercê da destruição dos reinos bárbaros. (VRYONIS, s.d., p. 52).

Fica evidente que Justiniano implantou uma política imperial aos moldes

romanos, que, muito embora comedida com relação ao Oriente, não deixa de ser

expansionista. Reconquistar territórios outrora romanos perdidos para os bárbaros

deixa transparecer uma atitude passional, tentativa de retomar o orgulho da sociedade

romana ferido pelas invasões bárbaras.

No que diz respeito à política interna, interessante notar a presença da

tradicional política do “pão e circo” de Roma. Em Roma as arenas de gladiadores

ficaram famosas por ser uma distração popular patrocinada pela administração

governamental. Em Bizâncio ficaram marcados os hipódromos, também conhecidos por

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circos, locais destinados à realização de jogos. A ideia é semelhante à de Roma:

realizar espetáculos direcionados ao povo, essa forma de lazer importava uma

promoção do próprio imperador patrocinador dos jogos nos hipódromos. Não foi

Justiniano quem criou os hipódromos, mas deu continuidade ao espetáculo que seguia

o padrão romano de distrair a sociedade em troca do apoio da mesma.

Seguindo a política imperial romana, também em Bizâncio havia um senado que,

praticamente era simbólico frente ao poder do imperador. Isso também ocorreu em todo

o período de Roma enquanto Império, sendo que o Senado servia apenas para

legitimar os atos do imperador. No governo de Justiniano essa condição permanece,

mas é demasiada romana porque Justiniano ditou as regras de seu governo como bem

entendeu, afirmando ainda mais a política imperial romana.

Aliás, Justiniano imperou sob seus domínios de forma muito unilateral. Seu poder

imperial foi consolidado a partir de 532 com a Sedição de Nica. Os hipódromos tinham

duas facções esportivas responsáveis pelos jogos, os Azuis e os Verdes. Esses

organismos desportivos existiam bem antes de Justiniano. Acontecia, com certa

frequência, de as facções extrapolarem os limites desportivos e promoverem arruaças

urbanas. Em 532 houve uma série de revoltas promovidas pelas facções e ficou

conhecida como Sedição de Nica a retaliação promovida pelo imperador:

Essas revoltas foram desencadeadas pelas facções do circo, que se opuseram às medidas tomadas por Justiniano para discipliná-las. Os adversários do Imperador na aristocracia senatorial usaram a insatisfação das facções como encobrimento para suas ambições políticas. Fizeram um dos sobrinhos de Anastácio ser proclamado imperador. Justiniano sentira-se inclinado a aplacar os membros das facções, mas então, incitado por sua imperatriz, Teodora, partiu para a repressão brutal. Mandou seus guardas, sob o comando de Belisário, ao hipódromo, onde dizem que eles massacraram 30 mil pessoas. Mandou executar seus mais destacados adversários políticos e confiscou a propriedade de outros senadores. Em conseqüência da Sedição de Nica, Justiniano teve não apenas o controle total de sua capital, mas também uma esplêndida oportunidade de construir. (ANGOLD, 2002, p. 33).

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Depois da Sedição de Nica, Justiniano governou sem a presença do Senado e

demais opositores.

Em relação à estrutura física da cidade, seu governo é marcado por grandes

obras e monumentos. Claro que há inovações que marcam as construções bizantinas.

Exemplo disso são as abóbadas, em especial a da Igreja de Santa Sofia construída

após a Sedição de Nica. Essas peculiaridades não fazem com que a influência romana

dilua. A própria suntuosidade das obras é uma herança romana: “Seus monumentos –

colunas que exibiam seus feitos em relevo, arcadas triunfais, foros – eram todos de

inspiração romana. Até as igrejas correspondiam ao tipo da basílica romana”.

(ANGOLD, 2002, p. 32).

Na posição de imperador, Justiniano ainda tinha a questão religiosa como

preocupação. Aliás, foi pauta essencial de seu governo e logo de início acaba com esse

problema de isolamento da Igreja de Constantinopla:

Sob Justiniano, linhas claras substituíram a deriva característica do reinado de Anastácio. Sua primeira ação importante foi liquidar o cisma que isolara a Igreja de Constantinopla do papado. A restauração da unidade eclesiástica era uma condição essencial para a restauração da unidade política. (ANGOLD, 2002, p. 31).

Até aqui é perceptível que há, em Justiniano, uma forte referência às tradições

romanas, explicitadas pelas suas ações governamentais. É um compromisso com

Roma e suas instituições mais evidentes:

Perfeitamente cônscio dos seus deveres, decidiu reconstruir territorialmente o império, unificar as facções que dividiam a Igreja e simplificar o acúmulo de matéria legal dos últimos séculos. Destes elevados ideais, das inesgotáveis energias de Justiniano (os súditos chamavam-lhe o imperador que não dorme), proveio a reconquista da maior parte do Ocidente, a codificação do Direito e uma extraordinária produção artística. (VRYONIS, s.d., p. 46).

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O direito romano, que é o cerne do trabalho, será abordado nos capítulos

seguintes, evidenciando que a compilação das leis romanas empreendida por

Justiniano bem como as demais obras jurídicas se constituem em um legado que

atravessou séculos e fez com que o direito romano não só sobrevivesse, mas se

firmasse como base jurídico-legal para grande parte do mundo, não só Ocidental.

Seguindo o título da obra de Michael Angold sobre o Império Bizantino:

“Bizâncio: a ponte da antiguidade para a Idade Média”, em que Bizâncio é vislumbrada

como uma forma de viabilizar a passagem da antiguidade para o mundo medieval,

sugerimos que Bizâncio, mais notadamente no período de Justiniano (527-565), é a

ponte que possibilita a permanência da cultura romana sob o aspecto jurídico.

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2 O DIREITO ROMANO EM BIZÂNCIO

2.1 O direito e o direito romano

A definição de direito, assim como de história, é bastante variável e não

definitiva. Diferentes abordagens levam a conceitos distintos. Todavia, há uma forma de

considerar o direito como um fenômeno social peculiar, pois é condição de existência

da própria sociedade. O direito não pode ser vislumbrado como algo extrínseco à

sociedade.

Um antigo brocardo sempre renova a noção de direito enquanto parte inerente à

sociedade: ubi societas, ibi ius (onde está a sociedade está o direito). É como se um

não existisse sem o outro, porque a partir do momento em que houve qualquer relação

social, existiu também uma relação jurídica:

De “experiência jurídica, em verdade, só podemos falar onde e quando se formam relações entre os homens, por isso denominadas relações intersubjetivas, por envolverem sempre dois ou mais sujeitos. Daí a sempre nova lição de um antigo brocardo: ubi societas, ibi ius (onde está a sociedade está o Direito). A recíproca também é verdadeira: ubi jus, ibi societas, não se podendo conceber qualquer atividade social desprovida de forma e garantia jurídicas, nem qualquer regra que não se refira a sociedade. (REALE, 2002, p. 02).

O entendimento acima transposto é pautado no brocardo transcrito e não por

acaso está em latim. Desde Roma antiga essa percepção do direito enquanto parte

integrante da condição de existência da sociedade é válida. A relação entre as pessoas,

a alteridade, importa num mínimo de organização social que os romanos entendiam por

direito. Dessa maneira, para entender muitos dos institutos do direito romano e, em

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especial, as Institutas do imperador Justiniano no Império Bizantino, a noção de que

para o romano a sociedade é inconcebível sem o direito é muito importante.

Como condição de existência da sociedade romana e, por conseguinte, da

sociedade bizantina, o direito romano será considerado no presente estudo sob seu

aspecto cultural.

Essa ressalva é importante porque o direito pode ser estudado sob a perspectiva

predominantemente jurídica, social, ou ainda econômica. “Produto cultural, o direito é,

sempre fruto de uma determinada cultura. Por isso não pode ser concebido como um

fenômeno universal e atemporal” (GRAU, 2008, p. 20). O enfoque a partir da cultura

serve para demonstrar que o direito possui também essa característica de forma de

expressão cultural de uma sociedade.

A tradição romana de organizar a sociedade através do direito tem por base a

codificação e a legislação, ou seja, são as leis e os códigos que orientam a convivência

entre as pessoas. Pessoas, não somente cidadão, porque cidadão em Roma é apenas

uma parte da população, principalmente se considerarmos o Império Romano e toda

sua extensão territorial. Tanto é verdade que o direito romano é dividido de acordo com

a destinação em função das pessoas: “Todos os povos que se regem por leis e

costumes usam, em parte, do seu próprio direito, e em parte de um direito comum a

todos os homens”. (INSTITUTAS, p. 23).1 O “seu próprio direito” é o direito civil,

destinado aos cidadãos romanos. “Direito comum” é o direito das gentes.

1 A referência às Instituas do Imperador Justiniano será sempre por INSTITUTAS com a relativa página, obra

traduzida para o português por J. Cretella Jr. e Agnes Cretella, e segue dessa forma no restante do capítulo.

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As leis ou códigos são formas positivadas escritas, ou seja, há uma previsão

legal reduzida a termo do que pode ou não ser feito. Por outro lado, nem todas as

formas de organizar uma sociedade a partir do direito são escritas.

Não foi em Roma que surgiu o direito escrito. Se considerarmos o Código de

Talião ou mesmo os Dez Mandamentos previstos na Bíblia, podemos afirmar que

formas escritas de organizar a sociedade já existiam. Todavia, em Roma o direito não

era apenas uma forma de organizar a sociedade. O direito romano se constituiu em

uma verdadeira expressão da cultura, uma peculiaridade, sendo objeto de estudos e

muitos trabalhos. Sendo assim, podemos afirmar que o legado jurídico romano é o mais

importante:

Não existe, doutra parte, nenhuma legislação antiga tão conhecida como a romana. Os monumentos legislativos e doutrinários que chegaram até nós permitem um seguimento das variações do Direito Romano, de suas origens até a época moderna e, raramente, tais variações deixam de afetar o direito que ora aplicamos. (VENOSA, 2004, p. 56).

O fato de ser um direito baseado em leis escritas possibilitou a permanência

dessa forma de organização. Também existiram e existem maneiras de estipular o

direito baseado não em leis escritas, mas em costumes, chamado direito

consuetudinário. Contudo, parece um tanto lógico que algo escrito sobreviva mais

tempo do que algo baseado em costumes. A escrita tem maior possibilidade de se

tornar uma fonte histórica. É o que aconteceu com o direito romano. Ainda que muitas

leis tenham sido elaboradas baseadas em costumes, elas foram feitas de forma escrita

em sua maioria: “O nosso direito divide-se em escrito e não escrito, como o dos gregos,

cujas leis são algumas escritas e outras não-escritas”. (INSTITUTAS, p. 24). Quando

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escrito é como se reduzisse o costume a um tratado, conservando o mesmo, o que

corrobora para a permanência de uma cultura, nesse caso, a partir do diploma jurídico.

O direito romano pode ser entendido de formas distintas de acordo com a

classificação de cada autor, é o que diz José Cretella Júnior em seu Curso de Direito

Romano: “A expressão direito romano é tomada em diferentes sentidos pelos autores”.

(CRETELLA JÚNIOR, 2000, p. 07).

Uma forma de perceber o direito romano é a partir do período em que de fato ele

existiu:

Num primeiro sentido, a referida expressão designa o conjunto de regras jurídicas que vigoraram no império romano durante cerca de 12 séculos, ou seja, desde a fundação da Cidade, em 753 a.C., até a morte do imperador Justiniano, em 565 depois de Cristo (para outros de 753 a 1453). (CRETELLA JÚNIOR, 2000, p. 07).

Partilhamos da ideia de que a cronologia mais correta seja de 753 a.C. até 1453,

ano em que o Império Bizantino é dominado pelos Turcos Otomanos e marca o fim do

Império Romano do Oriente. A explicação está na própria existência das estruturas de

Bizâncio que só foi modificado de forma contundente com a dominação turca. Ademais,

o direito bizantino inaugurado por Justiniano não morreu com ele.

Outra definição de direito romano que merece destaque porque define bem a

tendência privada de encarar o direito pelos romanos:

Num segundo sentido, direito romano é expressão que designa um ramo apenas daquele direito, isto é, o direito privado romano, com exclusão do direito público, que não atingiu, em Roma, o mesmo grau de desenvolvimento e perfeição que aquele outro ramo (...). (CRETELLA JÚNIOR, 2000, p. 07).

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De fato, o direito romano propriamente dito cujos institutos jurídicos permanecem

até os dias de hoje sendo base de vários modelos jurídicos é o direito civil.

E, outra forma de interpretar o direito romano que merece destaque, e que nos

interessa bastante no cerne do trabalho é a partir do direito bizantino:

A expressão direito romano é empregada ainda para designar as regras jurídicas consubstanciadas, no Corpus Juris Civilis, conjunto ordenado de leis e princípios jurídicos, reduzidos a um corpo único, sistemático, harmônico, mas formado de várias partes, planejado e levado a efeito no VI século de nossa era por ordem do imperador Justiniano, de Constantinopla, monumento jurídico da maior importância, que atravessou os séculos e chegou até nossos dias. (CRETELLA JÚNIOR, 2000, p. 07).

Esse direito romano compilado pelo Imperador Justiniano é o objeto central da

pesquisa. A partir do Corpus Juris Civilis, torna-se perceptível a sobrevivência do direito

romano em Bizâncio. Por ter sido elaborado em um período em que o próprio direito

romano já estava bastante estruturado, o direito bizantino consiste no direito romano

amadurecido, de grande envergadura. Para tanto, a noção de que direito romano é

essencialmente direito civil bem como a cronologia apontada acima também são

importantes para delimitar o estudo do tema.

O direito bizantino é, portanto, continuidade do direito romano. É forma de

expressão cultural de Roma em Bizâncio.

2.2 Direito romano em Bizâncio

Como visto, o Império Romano foi dividido definitivamente em duas sedes

administrativas pelo imperador Teodósio, o qual dividiu as províncias romanas para

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seus dois filhos, Honório (parte Ocidental) e Arcádio (parte Oriental).

A finalidade dessa divisão de poder é a própria manutenção do poder de Roma.

Bizâncio foi uma tentativa de restabelecimento do vigor romano cuja localização é de

suma importância para continuar a ter influência junto ao Oriente.

A tentativa de restabelecer o Império Romano em seus próprios domínios não

poderia ser feita apenas a partir do poderio bélico. Mesmo porque Roma não tinha mais

o mesmo porte militar de antes devido às invasões bárbaras e ao esfacelamento do

Ocidente. Nesse sentido, mais importante do que qualquer imposição através da força

foi a importação da própria cultura romana para a região da Ásia Menor, e nela,

Bizâncio. A opinião é no sentido de que o latim, a religião e o direito foram os maiores

responsáveis pela manutenção da cultura, mas é o direito que nos interessa mais,

mesmo porque o modelo jurídico romano encontra amparo na maior parte do mundo.

Vale consignar que o direito romano sofreu alterações significativas através dos

séculos, mesmo dentro da própria vigência de Roma antiga. Entretanto, a essência

permaneceu intacta, em especial se pensarmos no direito romano enquanto direito civil

que regulava as condutas dos cidadãos romanos e majoritariamente dentro de Roma,

e, no mesmo diapasão, o direito bizantino: “Chama-se direito civil o direito de cada

cidade, como, por exemplo, o direito dos atenienses (...). Todas as vezes que

dissermos direito, sem especificar de que povo se trata, queremos aludir ao nosso

próprio direito...”. (INSTITUTAS, p. 24). Esse trecho demonstra a importância dada ao

direito do próprio local, o direito civil, utilizado dentro da cidade de Bizâncio. A

expressão direito conota o direito da cidade, o direito civil, e não a qualquer direito.

Como a maior parte dos institutos jurídicos no âmbito civil foi importada de Roma para

Bizâncio, a tese de que Roma sobrevive em Bizâncio começa a ganhar tona.

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Se o direito civil é o direito da cidade, e o direito civil bizantino é praticamente o

direito civil romano, então é como se a própria Roma fosse refletida em Bizâncio,

afirmando a ideia de sobrevivência do direito romano em Bizâncio.

O grande responsável por essa sobrevida do direito romano em Bizâncio foi o

Imperador Justiniano.

2.3 A empreitada jurídica de Justiniano

A produção jurídica romana foi uma constante durante o período em que Roma

teve seu esplendor. Mesmo nos períodos cuja força de Roma era menos evidente, o

direito teve um papel de destaque na cultura da sociedade.

Por outro lado, não havia uma compilação jurídica que refletisse o direito

romano. O direito não era sistematizado, abrindo margem a várias dúvidas e

manifestações díspares dos magistrados: “Há, na realidade, um intervalo de três

séculos entre os juristas clássicos e o trabalho a ser realizado por Justiniano”.

(VENOSA, 2004, p. 77). Claro que havia jurisconsultos, constituições e obras

doutrinárias de direito, mas, como continua o mesmo autor, “... até o aparecimento do

trabalho de Justiniano (...), a codificação realizada no século V mostra-se incompleta e

insuficiente”. (VENOSA, 2004, p. 77).

A figura do Imperador Justiniano já foi trabalhada no capítulo anterior, contudo, é

digno ressaltar que tal imperador é o responsável por erguer o Império Bizantino de

uma forma muito particular. O objetivo dele não era somente fazer de Bizâncio uma

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cidade importante e forte junto ao mundo Oriental, ou mesmo erguer um novo império

distinto de Roma. O intuito de Justiniano era afirmar a cultura romana:

Justiniano (527-565) pretendeu restaurar o prestígio do Império e o fez em todos os campos. Subiu ao trono do Império Romano do Oriente, em Constantinopla, a 1º-8-527. Era natural de Ilíria, Tauresium. Fez grandes conquistas militares, pretendendo que o Império Romano retornasse a sua grandeza. (VENOSA, 2004, p. 77-78).

Claro que existem posicionamentos contrários à tese de que Justiniano tenta

resgatar o passado romano:

A contribuição de Justiniano para a divisão definitiva foi considerável. Embora ele se orgulhasse de falar latim e admirasse muito o passado romano, ele fez mais do que qualquer outro imperador para transformar Bizâncio na sede de uma cultura política destacada. Um aspecto dessa política foi o combate à enorme confusão e complicação das leis, em parte originárias do início da República. (ROBERTS, 2001, p. 256).

É razoável considerar que após Justiniano, o Império Bizantino firmou bases

autônomas e criou uma identidade própria. Mas, as atitudes de Justiniano sempre

consideraram a cultura romana, em especial a questão jurídica.

Nesse viés, o combate à confusão e consequente complicação das leis resultou

em um compêndio legal, doutrinário e jurisprudencial que recebeu o nome latim de

Corpus Juris Civilis:

A expressão Corpus Juris Civilis não foi lançada por Justiniano, mas pode ser creditada ao estudioso do direito romano Denis Godefroy, a que atribuiu à compilação de quatro livros, Institutas, Pandectas, Digesta, e Codex, feita por uma comissão de juristas dirigidas por Triboniano, jurista de Beirute, a serviço do Império Romano do Oriente. Essa comissão foi designada para compilar o direito do período clássico romano feito pelos jurisconsultos antigos do período clássico (Digesta e Pandectas). Queriam também compilar as constituições imperiais (Codex) e criar o material didático acessível ao direito romano para o estudante de direito (Institutas). (VÉRAS NETO, 2009, p. 129).

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O Corpus Juris Civilis não recebeu esse nome de Justiniano, mas foi

empreendido pelo imperador bizantino. A nomenclatura Corpus Juris Civilis, como se

extrai da citação acima foi dado por um romanista, estudioso do direito de base romana.

Da leitura dos textos compilados, em especial das Institutas, que foi a obra de

maior porte jurídico por se tratar de um manual próprio ao estudante do direito, é

perceptível a visão romanista dispensada ao direito enquanto área do conhecimento.

2.4 O Corpus Juris Civilis

Os nomes das obras de Justiniano podem variar de acordo com o autor

pesquisado, pois alguns conservam os nomes em latim. Contudo, a preferência da

presente pesquisa é utilizar a nomenclatura em português, portanto, as obras são as

seguintes: Código, Digesto, Institutas e Novelas. Sobre Justiniano e sua obra:

Esse imperador bizantino, já no segundo ano de seu governo, dá início a sua obra legislativa. Remaneja as fontes de direito conhecidas, e seu trabalho de compilação e correição compreende quatro obras monumentais para a cultura jurídica universal: o Código, o Digesto, as Institutas e as Novelas. Ao conjunto dessas obras juristas mais modernos chamam Corpus Juris Civilis, como até hoje é conhecido. (VENOSA, 2004, p. 78).

O romanista José Cretella Júnior acrescenta ao Corpus Juris Civilis “as 50

decisões (Quinquaginta Decisiones) a respeito de pontos controvertidos entre antigos

jurisconsultos”. (CRETALLA JÚNIOR, 2000, p. 51). Não concordamos com essa visão

porque essas decisões não tiveram a mesma natureza das demais compilações as

quais foram elaboradas pelo poder oficial do Império.

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Apenas a título de esclarecimento tendo em vista afastar qualquer dúvida, deve

estar claro que não foi o próprio Imperador Justiniano que elaborou as obras jurídicas.

O trabalho jurídico para o romano não era uma simples edição de leis e textos. Havia

verdadeira preocupação com a técnica do trabalho:

O trabalho de Justiniano foi atribuído a uma comissão, em que despontava o jurista Triboniano, que ele não se cansa de elogiar. Esse jurista, principal colaborador, era professor de direito da escola de Constantinopla. Triboniano cerca-se de juristas, professores, e advogados, com os quais inicia enorme trabalho de compilação. Foi eficazmente auxiliado nessa missão por Teófilo, outro professor da mesma escola. (VENOSA, 2004, p. 79).

A importância da obra de Justiniano não consiste em criar um direito novo, um

direito posto casuístico, mas em sistematizar a cultura romana a partir do direito. Cada

obra tem um conteúdo específico conforme será demonstrado em seguida.

2.4.1 O Código (Lei)

O Código que sobreviveu foi feito em 16 de novembro de 534. É a primeira obra

jurídica de Justiniano em sua segunda edição. A edição anterior, com o mesmo formato,

publicado em 07 de abril de 529, não chegou até nós. Como o segundo Código é uma

segunda edição com novas constituições, o entendimento é no sentido de que o Código

se trata da primeira obra justiniana. Todavia, “o Código Antigo se perdeu, não tendo

chegado a nossos dias”. (CRETELLA JÚNIOR, 2000, p. 51). Por isso alguns autores

chamam o Código de 534 de Código Novo. A preferência é por utilizar simplesmente o

nome Código.

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Mesmo assim, é consenso que o segundo Código, ou Código Novo, ou

simplesmente Código, de 534, tem o mesmo teor do Código de 529, modificado apenas

o necessário para ser considerada uma obra reeditada e ampliada.

A respeito da estrutura do de tal obra jurídica:

O Código redigido de acordo com o sistema das compilações anteriores é dividido em 12 livros, subdivididos em títulos. As constituições estão ordenadas em cada título por ordem cronológica, como nos códigos anteriores. (VENOSA, 2000, p. 79).

As constituições presentes no Código de Justiniano já existiam em Roma. O

trabalho de Triboniano e os juristas da comissão que desenvolveu a compilação era no

sentido de reunir todas as constituições de forma sistemática e harmônica. Em outras

palavras, o trabalho dos juristas foi uma compilação, não uma criação. Ou seja,

continua a cultura jurídica originária de Roma, tanto que o “mérito da compilação,

colocando todas as constituições no Código, é torná-lo obrigatório como lei do Império”.

(VENOSA, 2000, p. 80).

Nesse contexto, interessante ainda refletir sobre a divisão do Código em 12

livros, significativo se for comparado à Lei das XII Tábuas cuja estrutura era similar,

mantendo a tradição romana.

2.4.2 O Digesto (Jurisprudência)

Digesto é o nome em latim dessa obra, e Pandectas é o nome grego, ambos têm

o mesmo significado prático para o direito romano.

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É a obra mais densa empreendida pelos jurisconsultos bizantinos e levou cerca

de 03 (três) anos para ser concluída, tendo sido iniciada em 15 de dezembro de 530 e

publicada em 16 de dezembro de 533. O tempo foi relativamente curto, já que o

trabalho era assaz árduo:

A organização do Digesto foi confiada a uma comissão de 16 juristas, entre os quais se inscreviam os professores Teófilo, Cratino, Doroteu e Anatólio dirigidos por Triboniano.

Esperava o imperador que a obra terminasse em 10 anos, mas os esforços dos organizadores abreviou o tempo, entregando-se o trabalho concluído em menos de três anos. (CRETELLA JÚNIOR, 2000, p. 52).

O Digesto consiste na compilação de jurisconsultos clássicos. O significado para

o português é digerido, organizado, classificado. Como se tratava de organizar todo o

entendimento clássico, seriam mais de 1.000 anos de produção jurídica a serem

pesquisados:

A tarefa era enorme. Cerca de 1.400 anos de cultura jurídica deveriam ser pesquisados, requerendo o exame de aproximadamente 1.500 livros. São citados 38 ou 39 jurisconsultos no Digesto, desde o século II a. C. até o final do século III de nossa era. (VENOSA, 2004, P. 81).

Essa compilação de Justiniano é o que hoje é conhecido por jurisprudência (aqui

o entendimento consolidado dos órgãos do Judiciário, e não o termo Jurisprudência no

sentido de ciência do direito como era conhecido no direito romano clássico). O Digesto

é o entendimento dos magistrados acerca dos institutos jurídicos, a aplicabilidade das

normas (abstratas e genéricas) ao caso concreto e específico.

A estrutura do Digesto consiste em 50 livros divididos em títulos cujos

fragmentos são atribuídos aos juristas.

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2.4.3 As Institutas (Doutrina)

Publicada em 21 de novembro de 533, esta obra trata-se de verdadeira doutrina

destinada aos estudantes do direito romano:

As Institutas ou Institutiones ou Elementa são um Manual de Direito Privado Romano, elementar, para uso dos estudantes de direito de Constantinopla. Foram organizados por ordem de Justiniano, quase paralelamente na época da elaboração do Digesto, orientando o trabalho o mesmo Triboniano auxiliado por Teófilo e Doroteu. (CRETELLA JÚNIOR, 2000, p. 52).

Essa é a obra mais difundida por ser mais simples do que as demais. É muito

prática vez que condensa diversas noções do direito de forma didática e explicativa,

trazendo noções gerais, definições e classificações.

Como foi muito difundida e chegou até os dias atuais com o texto original e

seguras traduções do latim para o português, permanece sendo fonte histórica do

direito.

Ademais, traz conceitos que traduzem a cultura jurídica romana, sendo material

importante para o cerne do trabalho no sentido de abordar a sobrevivência do direito

romano em Bizâncio, e, por essa razão, será trabalhado de forma mais precisa no

capítulo seguinte.

2.4.4 As Novelas (Emendas)

Como visto o direito enquanto produto cultural da sociedade acompanha a

dinâmica da mesma. Como o direito romano é positivado de forma escrita, com o lapso

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do tempo, novas leis devem ser feitas atendendo aos anseios sociais.

Sendo assim, mesmo com a edição do Código em 534, a atividade legislativa

empreendida por Justiniano não parou:

As Novelas ou Autênticas são um conjunto de novas constituições imperiais, decretadas por Justiniano, nos últimos anos de seu reinado, para atender aos novos casos que surgiam. Essas constituições, escritas em grego umas, em latim outras, em redação bilingüe outras, foram registradas e conservadas nos arquivos do palácio, sendo divulgadas, mais tarde, em coleções sem cunho oficial. (CRETELLA JÚNIOR, 2000, p. 53).

Nada mais natural. O imperador Justiniano organizou o legado jurídico romano,

e, a partir de um direito sólido e estruturado, na condição de imperador pôde dar

continuidade ao direito romano.

Após a morte de Justiniano, outras Novelas continuaram a ser editadas e

publicadas, mas, geralmente, em coleções sem cunho oficial. Porém, mesmo que não

fosse um imperador editando as Novelas, o que importa é saber que a base jurídica e a

tradição romana do direito continuaram presentes.

O direito bizantino, que é praticamente baseado no Corpus Juris Civilis, é

continuidade do direito romano.

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3 A SOBREVIVÊNCIA

O Renascimento costuma ser um dos indicadores da Idade Moderna e é

caracterizado como uma volta ao passado greco-romano. Formas arquitetônicas e

artísticas foram retomadas assim como a filosofia. Quer dizer, há um renascimento da

cultura greco-romana. Em especial da cultura romana que absorvera estruturas gregas

durante o período de dominação de Roma em continente europeu.

Claro que essa retomada ao passado não é plena. Toda uma cultura medieval

havia sido estabelecida na Europa. A Igreja Católica dominara o cenário social

influenciando os aspectos políticos. Sob monarquias teocráticas, o apoio da Igreja era

condição para legitimar a divindade do rei. Em suma, a Idade Média é um período em

que a Igreja Católica é preponderante e na Idade Moderna isso continua.

No que diz respeito ao direito, e é nessa perspectiva que defendemos a

sobrevivência romana, a Europa estava sob jurisdição eclesiástica, tendo sido formado

um compêndio legal conhecido como direito canônico.

A partir do Renascimento, o direito canônico e o direito romano vão se encontrar.

Aliás, o próprio direito canônico e o direito romano, em questão de estrutura são

similares, ambos positivados de forma escrita, afastando a aplicação pelos costumes.

O que diferencia ambos são os institutos. Enquanto o direito canônico regula a

conduta a partir do plano imaterial e abstrato, o direito romano, até mesmo por ser um

direito civilista, preocupado com as relações entre os indivíduos, regula a conduta a

partir do plano material e concreto.

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Com o Renascimento houve o resgate da cultura jurídica romana. Nesse viés as

compilações de Justiniano foram essenciais para manter vivo o direito romano em

Bizâncio, sendo que este Império foi a ponte que possibilitou o direito romano

atravessar os séculos e vingar na Europa.

Num período subsequente ao Renascimento, a Europa iniciou a expansão

marítima que culminou em um processo de colonização, da Ásia, África e da América.

Os países colonizados adotaram os respectivos modelos de Estado, e, nesse contexto,

o modelo jurisdicional.

Países colonizados pela Inglaterra, signatária do direito consuetudinário,

costumeiro, adotaram tal padrão jurídico. Países colonizados por Portugal, Espanha e

França adotaram o padrão romanístico, do direito positivado escrito, não-costumeiro em

essência.

E isto tem ligação direta com o Renascimento. A região da Itália foi o epicentro

do Renascimento. Mas a região da Itália também era a sede máxima do catolicismo. A

partir da Itália, portanto, as regras eram ditadas para quase todo o continente europeu.

Por mais que o Renascimento implique uma ruptura com alguns parâmetros medievais,

não houve uma ruptura com a Igreja que importasse na perda de influência da mesma

no continente europeu, tanto que um dos mais consagrados renascentistas,

Michelangelo Buonarroti (1475-1564), escultor e pintor, foi o autor dos afrescos da

Capela Sistina, em Roma. Portanto, o Renascimento foi responsável por trazer novos

elementos à cultura europeia, e na medida em que eram recepcionados, em especial

pela Igreja Católica, eram também disseminados pelo continente europeu.

A Inglaterra não sofria o mesmo grau de influência por algumas razões tais como

se constituir em uma ilha extracontinental. O acesso era um pouco tardio na Inglaterra.

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Na realidade, essa ilha passa por uma série de situações históricas muito peculiares

que a afasta de Roma. Culmina com a cisão religiosa promovida por Henrique VIII em

1534.

A pretensão do trabalho não é expor as razões da Reforma Religiosa inglesa ou

tratar da história da Inglaterra, mas, apenas a título de esclarecimento ressaltar o

porquê de o direito ter essas duas acepções: consuetudinária (Inglaterra) e escrita

(Romana). As causas têm conexão com esse período renascentista, expansão marítima

e colonização.

Como os países pioneiros na expansão marítima, e, consequentemente, na

colonização, foram Portugal e Espanha, e estes influenciados diretamente pela Igreja

Católica, grande parte do mundo hoje é signatário do modelo jurídico romano. E isto só

foi possível graças ao empreendimento de Justiniano e seu legado jurídico: o Corpus

Juris Civilis.

A título de ilustração, e por ser o exemplo mais tangível, a colonização da

América condensa todo esse processo histórico. Portugal e Espanha colonizaram a

América e o continente ficou dividido em América Espanhola e América Portuguesa. As

regiões hoje conhecidas como Estados Unidos da América e Canadá, que foram

colonizadas pela Inglaterra, utilizam o modelo jurídico costumeiro. Toda a América

Latina, colônias ibéricas, utilizam o modelo jurídico romano que é utilizado em Espanha

e Portugal. E assim permanece. Logo, os países latino-americanos, dentre eles, o

Brasil, são adeptos do direito romano, claro que adaptados à realidade de cada Estado.

Desde a concepção geral do direito romano até a forma de viabilizar o direito

através do processo, o legado jurídico de Roma se faz presente através das Institutas.

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3.1 Concepção geral do direito romano em Bizâncio

O direito, para o romano, é mais do que a organização social baseada em

regras. O romano enxergava o direito como ciência, isto é perceptível na produção

jurídica romana, inclusive em Bizâncio, mais notadamente com Justiniano. Os romanos

se dedicavam muito ao direito, o estudavam e era ferramenta de trabalho.

Isso é bastante claro no Título I das Institutas do Imperador Justiniano. No § 1º

do Título I está escrito que a “Jurisprudência é o conhecimento das coisas divinas e

humanas, a ciência do justo e o injusto”. (INSTITUTAS, p. 21).2

Jurisprudência, portanto, é ciência do direito. Atualmente, o uso da palavra

Jurisprudência designa, em geral, o direito entendido pelos magistrados, juízes,

entendimento que conforme se repita torna-se uma fonte do direito denominado

jurisprudência. Todavia, essa concepção de Justiniano desde Roma, de Jurisprudência

enquanto ciência do direito ainda permanece viva: “A Ciência do Direito, ou

Jurisprudência – tomada esta palavra na sua acepção clássica –, tem por objeto o

fenômeno jurídico tal como ele se encontra historicamente realizado”. (REALE, 2002, p.

16).

As Institutas, de acordo com o capítulo anterior, consistem em um manual

destinado aos estudantes do direito romano em Bizâncio. Essa tradição de expor o

direito em tratados, doutrinas, é corriqueira até hoje em cursos jurídicos. Mas foi

Justiniano que inaugurou essa forma de trabalhar o direito, doutrinando-o. Sobre a

finalidade das Institutas, o próprio imperador escreve no Proêmio:

2 Da mesma forma do capítulo anterior continua a referência às Instituas do Imperador Justiniano por

“INSTITUTAS” com a relativa página, obra traduzida para o português por J. Cretella Jr. e Agnes Cretella, e segue

assim durante o resto do capítulo.

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(...) para que possais aprender as leis nas próprias fontes a partir do esplendor da glória imperial e não em obras antigas, e para que aos vossos ouvidos e à vossa alma nada parecesse inútil ou demasiado, mas apenas necessário. E também para que tivésseis estas Institutas como primeiro estudo, já que, antigamente, mal bastavam quatro anos, sendo grande a vossa honra e felicidade para ouvirdes as primeiras e as últimas lições da ciência do direito que provenham da boca do príncipe. (INSTITUTAS, p. 16).

O próprio Imperador Justiniano diz que são as Institutas o manual primeiro do

estudante de direito. E interessante ressaltar ainda o caráter da oficialidade do direito.

O direito só é direito quando emanado a partir de quem o é legítimo para versar sobre o

mesmo. No caso, a “boca do príncipe”, o próprio imperador é o legitimado para dizer o

direito. Essa concepção, por mais que tenha mudado e o direito de matriz romana

aceite modificações a partir dos costumes que se repetem, em última instância é o

direito escrito, a lei, que tem maior força. Tanto que o costume, repetido e consagrado

através do tempo, acaba se tornando uma lei escrita também. Então, guardadas as

proporções, essa forma romana de entender as relações jurídicas ainda persiste. No

caso do Brasil em que o processo legislativo deve acontecer para que a lei seja

promulgada, essa oficialidade permanece. Por mais que o legislador represente o povo,

o Legislativo é um poder oficial, e apenas a partir dele a lei é processada.

Justiniano considerava sua obra perfeita e acabada. A obra mais importante foi

as Institutas justamente por condensar todo o universo do direito. E, para o romano isso

é significativo, mesmo porque, a doutrina era mais importante, na técnica de aplicar o

direito do que a própria lei:

Jamais, em Roma, a lei, como pura abstração racional, representou papel decisivo no sistema geral do Direito. A doutrina, como o demonstram os estudos dos romanistas contemporâneos, desempenhou, ao contrário, uma função primordial, fornecendo aos pretores as diretivas teórico-práticas essenciais à decisão dos litígios. (REALE, 2002, p. 149).

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A estrutura das Institutas é feita de forma a considerar os principais institutos

jurídicos romanos. O direito romano era dividido em Livros, os quais eram divididos em

Títulos, e cada Título com caput e parágrafos, divisão esta ainda usual. As leis

brasileiras mantêm essa formatação.

Didaticamente, o direito civil hoje é dividido em parte geral, direito de família,

direito das coisas, direito das sucessões, direito das obrigações e contratos. Isso é uma

nítida sobrevivência do direito romano cuja organização, dessa maneira, já estava nas

Institutas do Imperador Justiniano.

3.2 Estrutura do Direito Romano em Bizâncio

3.2.1 Divisão geral

O Livro Primeiro das Institutas compreende a parte geral do direito civil e o direito

de família. O Livro Segundo dispõe sobre direito das coisas, dispondo também a

respeito de testamentos, legados, heranças e codicilos. Atualmente, testamento,

legado, herança e codicilo são institutos do direito das sucessões, todavia, por serem

formas de aquisição de coisas, os juristas bizantinos escolhidos por Justiniano os

colocaram no Livro Segundo das Institutas. O direito das sucessões é tratado no Livro

Terceiro. A posse, instituto que costuma ser estudado no direito das coisas (embora a

posse não seja um direito real), está no Livro Terceiro. Também faz parte do Livro

Terceiro o direito das obrigações e contratos. Já o Livro Quarto disciplina questões

penais e processuais, que, no fundo, eram tratados como parte do direito civil.

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Analisaremos as Institutas, comparando a referida obra com o direito civil

brasileiro atual, na sequência estipulada por Justiniano.

3.2.1.1 Parte geral

Do Título I ao Título VIII do Livro Primeiro, temos as seguintes denominações:

“Da justiça e do direito”, “Do direito natural, das gentes e civil”, “Do direito das pessoas”,

“Dos ingênuos”, “Dos libertos”, “Os que não podem ser manumitidos, e por quais

motivos”, “Da ab-rogação da Lei Fúfia Canínia”, “Dos que são sui juris ou alieni juris”.

Todos estes institutos jurídicos são gerais, por isso, denominamos parte geral do direito

civil, servem para aplicar em qualquer campo jurídico. Como o direito romano é o direito

civil, essa parte geral do direito civil disposta nas Institutas é a parte geral do próprio

direito.

Os institutos dos títulos que tratam sobre os ingênuos, os libertos, manumissão,

sui juris e alieni juris, não têm mais aplicabilidade, pois versavam sobre escravidão. A

Lei Fúfia Canínia já naquela época, também tratava de escravidão. Mas, o fato que

chama atenção quando trata da Lei Fúfia Canínia é no sentido de ab-rogar essa lei,

prática ainda usual no direito.

O instituto da ab-rogação, que consiste em revogar, total ou parcialmente uma lei

era muito utilizado no direito romano. E foi, justamente, o que aconteceu com a Lei

Fúfia Canínia, foi ab-rogada, revogada, deixando de ter vigência e eficácia na esfera

jurídica da sociedade bizantina.

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Os demais institutos permanecem até os dias de hoje e são objetos de parte

geral de direito civil: justiça, direito, direito civil, direito natural, direito das gentes

(atualmente sob a denominação de direito internacional). Até mesmo o conceito de

Jurisprudência enquanto ciência do direito, na definição clássica, era previsto nas

Institutas de Justiniano.

3.2.1.2 Direito de família

No Livro Primeiro, do Título IX ao Título XXVI está disciplinado o direito de

família. Começa com o instituto do pátrio poder. O pátrio poder é o poder sobre os

filhos, que entre os romanos era o poder do pai sobre os filhos. No Brasil, essa forma

social permaneceu até a Constituição da República de 1988, quando os direitos entre

homens e mulheres foram igualados e ambos têm o mesmo poder sobre os filhos, não

havendo superposição do poder do pai sobre o da mãe. É o teor do art. 5º, I da

Constituição da República Federativa do Brasil: “homens e mulheres são iguais em

direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”.3

A definição de pátrio poder, atualmente, conforme Vocabulário Jurídico é o

“conjunto ou a soma de poderes legalmente outorgados aos pais sobre a pessoa e os

bens dos filhos”. (SILVA, 2004, p. 1015). O sentido é o mesmo, o que mudou dada à

transformação natural da sociedade, é que tanto homem quanto mulher participam do

processo de tutela dos filhos.

3 BRASIL. Constituição Federal, de 05 de outubro de 1988. Constituição da República Federativa do Brasil, Brasília,

1988.

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No mesmo Título é tratado o matrimônio que ainda persiste com a mesma

roupagem, união entre homem e mulher. Muito embora tenham tido decisões de

Tribunais no sentido de reconhecer união entre pessoas do mesmo sexo, o matrimônio

ainda é conceituado como união entre homem e mulher.

Casamento e adoções também são institutos jurídicos que ainda existem de

forma muito similar ao que acontecia no direito romano disciplinado pelas Institutas e

estão tratados nos Títulos X e XI do Livro Primeiro do cânone jurídico citado.

Sobre os modos que se extinguem o poder sobre outrem, são tratadas diversas

questões como a manumissão que conforme visto é instituto extinto.

Do Título XIII ao Título XXII do Livro Primeiro é tratado o instituto da tutela.

Diversas circunstâncias próprias da sociedade romana e bizantina estão previstas, até a

forma de extinguir a tutela, e, claro, não são aplicáveis na sua integralidade hoje.

Contudo, o que interessa é a permanência do instituto. A tutela, de acordo com as

Institutas é “o direito e o poder com autoridade sobre pessoa livre, dada e permitida

pelo direito civil, para proteger aquele que pela idade não se pode defender”.

(INSTITUTAS, p. 55).

Descartada a qualidade de pessoa livre, porque no nosso direito não há

escravos, portanto, não há que se falar em pessoa livre em contraposição à pessoa

escravizada, o teor da tutela ainda é o mesmo. Tutelar é cuidar de alguém incapaz em

função da idade ou outro tipo de limitação que não permite à pessoa tomar suas

próprias decisões.

Da mesma forma o instituto da curatela, que é a forma de administrar os bens de

outra pessoa, já era prevista no Título XXIII do Livro Primeiro permanecendo com a

mesma destinação: “encargo que é conferido a uma pessoa para que, segundo os

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limites determinados juridicamente, fundados em lei, cuide dos interesses de alguém

que não possa administrá-los”. (SILVA, 2004, p. 405).

E, nos Títulos restantes, XXIV ao XXVI do Livro Primeiro, continua a explanação

a respeito de tutela e curatela, caracterizando o direito de família.

3.2.1.3 Direito das coisas

O direito das coisas, ou direito real, é o direito que regula a relação das pessoas

com as coisas, que na definição do Vocabulário Jurídico “é o complexo de normas

reguladoras das relações jurídicas referentes às coisas suscetíveis de apropriação pelo

homem”. (SILVA, 2004, p. 465). No mesmo sentido:

O direito real é exercido e recai diretamente sobre a coisa, sobre um objeto basicamente corpóreo, embora não se afaste a noção de realidade sobre bens imateriais, enquanto o direito obrigacional tem como objeto as relações humanas Sob esse aspecto, embora essa noção deva ser aprimorada, afirma-se ser o direito real absoluto, exclusivo, exercitável erga omnes. (VENOSA, 2006, p. 05).

Nas Institutas do Imperador Justiniano, o direito das coisas está previsto no Livro

Segundo. A divisão do direito civil em pessoas e coisas era bastante clara no direito

romano, e o Título I do Livro Segundo expõe da seguinte maneira:

No livro anterior, expusemos o direito das pessoas. Passamos agora às coisas que se acham no nosso patrimônio ou fora do nosso patrimônio. Algumas coisas por direito natural são comuns a todos, outras são públicas, outras pertencem a corporações, outras a ninguém, e, a maior parte, aos particulares, coisas adquiridas de vários modos como exporemos oportunamente.(INSTITUTAS, p. 89).

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Nessa citação está o teor da ideia de propriedade. A coisa que pertence ao

particular é sua propriedade. Adentra a seara de pertences do particular a partir de uma

forma prevista, estipulada. Todavia, o direito romano não trata diretamente desse

instituto conceituando-o como o faz com outros institutos jurídicos. O conceito está

implícito na relação do ser humano com a coisa ou bem. Essa relação permanece, mas

o conceito de propriedade sofreu alterações com o processo histórico. Com a

Revolução Francesa o conceito de propriedade se modificou sendo que o que é do

particular é intocável, em hipótese alguma pode ser questionado. Hoje, já é distinto

mesmo da Revolução Francesa, pois há a previsão, no caso do Brasil, da função social

da propriedade prevista na Constituição da República de 1988 ao dispor que a ordem

econômica tem como princípio a “função social da propriedade” (art. 170, III,

Constituição Federal de 1988).4 Função social da propriedade é uma terminologia

própria do século XX inimaginável na Revolução Francesa ou à época de Justiniano ou

da sociedade romana tradicional. Contudo, mais uma vez, apesar das mudanças

conceituais, a estrutura da relação jurídica básica, ser humano/coisa, é a mesma.

Tratar dos bens, dos materiais, das coisas, é uma das principais necessidades

do direito de forma geral. A sociedade romana foi pioneira em tratar das coisas e em

Bizâncio foi seguida a mesma linha de tratamento à matéria.

Atualmente, muitas são as formas de classificar o direito das coisas. Justiniano

preferiu uma divisão simples conforme exposto no Título II do Livro Segundo, dividindo

as coisas em corpóreas e incorpóreas. Essa classificação ainda é utilizada. No caso, de

acordo com o § 1º do Título II, “são corpóreas as que, por natureza, se podem tocar...”.

4 BRASIL. Constituição Federal, de 05 de outubro de 1988. Constituição da República Federativa do Brasil, Brasília,

1988.

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(INSTITUTAS, p. 101). Nesse raciocínio, naturalmente, “são incorpóreas as que não se

podem tocar...”. (INSTITUTAS, p. 101).

Em seguida, Justiniano traz os institutos das servidões (Título III do Livro

Segundo), do usufruto (Título IV do Livro Segundo), do uso e da habitação (Título V do

Livro Segundo). Estes eram, portanto, os direitos reais então conhecidos.

As Institutas preveem as servidões dividindo-as em servidões de prédios rústicos

(de passagem, de caminho, de estrada e de aqueduto) e as de prédios urbanos.

Servidão é a utilização de um bem a partir de outro. Essa noção não mudou. O que

mudou foi a quantidade de servidões que existem hoje, tornando o instituto mais

extenso, todavia, a complexidade é a mesma pois a essência não mudou:

No sentido jurídico, comportando a significação etimológica, servidão representa o encargo ou o ônus, que se estabelece sobre um imóvel em proveito e utilidade de um outro imóvel, pertencente a outro proprietário.

Este encargo, ou este ônus, a que se sujeita o imóvel alheio, em favor de outrem, constitui para esse um direito real, que lhe assegura uso e gozo da serventia, que se constitui em servidão. (SILVA, 2004, p. 1291).

O usufruto está definido no Título IV do Livro Segundo das Institutas da seguinte

forma: “usufruto é o direito de usar e gozar de coisa alheia, respeitada a substância da

coisa. É um direito sobre coisa corpórea, extinguindo-se com a extinção da coisa”. Não

houve qualquer alteração no instituto, estando conservado ainda com o mesmo

substrato:

O usufruto, assim, revela-se o direito real sobre coisa alheia (jus in re aliena), atribuindo ao usufrutuário o direito de a usar temporariamente, percebendo os frutos que produzir, ou retirando dela as utilidades que não lhe destruam a substância. (SILVA, 2004, p. 1450).

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Quando o instituto do usufruto prevê a possibilidade de usar e gozar, aumenta a

possibilidade em relação ao uso. O uso não permite ao usuário gozar do bem, por

exemplo, na questão de alugar um imóvel alheio na condição de usufrutuário, ou seja, o

instituto do uso é mais restrito de acordo com o § 1º do Título V do Livro Segundo das

Institutas:

§ 1º – Há menos direitos no uso do que no usufruto, por que quem tem, por exemplo, o uso de um terreno, tem o direito de colher nele hortaliças, frutos, flores, forragens, palha e lenha para as necessidades cotidianas. Pode também habitar nele, contanto que não incomode o dono, nem os trabalhadores que o cultivarem.

Não pode, entretanto, alugar, vender ou ceder gratuitamente, ao passo que o usufrutuário pode fazê-lo. (INSTITUTAS, p. 107)

Não teve também sua estrutura jurídica alterada conforme se desprende da

seguinte definição:

Assinala a utilização de coisa alheia, em virtude de concessão ou ajuste com o respectivo proprietário. Uso, neste aspecto, revela-se propriamente, o direito de usar, ou de utilizar-se de coisa alheia, conforme as próprias necessidades da pessoa, a quem foi conferido. É direito que se destaca da propriedade, para ser objeto de uma relação jurídica autônoma. (SILVA, 2004, p. 1447).

Já a habitação é uma forma especial de uso, um direito especial, que de acordo

com o § 5º do Título V do Livro Segundo das Institutas se manifesta da seguinte

maneira:

§ 5º – Se, por legado, ou por outro modo, se deu a alguém a habitação, não há uso nem usufruto, mas um direito especial. A quem recebeu esse direito, por uma de nossas Constituições, de acordo com a opinião de Marcelo, demos a faculdade de morar ele mesmo ou de alugar a outrem. (INSTITUTAS, p. 108).

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Essa definição de direito especial enquanto instituto da habitação ainda

permanece com o mesmo sentido, “quando o uso recai sobre casa alheia, para que

alguém a ocupe pessoalmente e com a sua família, é propriamente denominado de

habitação”. (SILVA, 2004, p. 1447).

Atualmente, os direitos reais, de acordo com o Código Civil brasileiro de 2002,

em seu art. 1.225 e incisos, são os seguintes: propriedade, superfície, servidões,

usufruto, uso, habitação, direito do promitente comprador do imóvel, penhor, hipoteca,

anticrese, concessão de uso especial para fins de moradia, e concessão de direito real

de uso. (Código Civil de 2002, art. 1225, I ao XII)5. Os direitos reais hoje são mais

extensos, mas aqueles que existiam nas Institutas ainda persistem.

Ao tratar do direito das coisas, o direito não trata apenas dos direitos reais em si,

mas de institutos correlatos. Exemplos disso é o tratamento da posse e da usucapião. A

posse é tratada por Justiniano na parte em que são tratadas as sucessões. Todavia, a

usucapião, que é um dos efeitos da posse, é tratada na parte do direito das coisas. Isto

se justifica porque a usucapião é forma de aquisição das coisas, assim como as

doações e testamentos. Contudo, a usucapião costuma ser tratada até hoje dentro do

direito das coisas ao passo que doações e testamentos não. As Institutas tratam dos

testamentos dentro do Livro Segundo, o que sugere que era visto como uma forma de

aquisição de coisas e por isso é parte do direito das coisas no direito romano. Mas, tão

logo finaliza o Livro Segundo tratando de codicilos, o Livro Terceiro vem tratando das

heranças e sucessões. Atualmente, testamento, legado, codicilo, são institutos do

direito das sucessões. Muito embora haja essa diferença na didática da matéria, a

5 BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Vade Mecum, São Paulo: Saraiva, 2008.

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sequência dos institutos no manual de Justiniano possibilita deduzir que os romanos

inauguraram a lógica jurídica dos institutos seguida até agora.

A usucapião, tratada no Título VI do Livro Segundo das Institutas, é forma de

aquisição da coisa. O instituto da usucapião privilegia aquele que parece ser o dono de

algo, ainda que não seja seu o domínio (propriedade) sobre a coisa. A finalidade disso

é estabelecer a segurança jurídica. Aliás, a segurança jurídica é algo bastante próprio

do direito romano, preocupado em ter o direito positivado de forma escrita. Nas

Institutas essa segurança jurídica torna-se mais clara:

Nós, adotando como melhor alvitre não serem os proprietários tão logo despojados de seus bens, nem de se circunscrever o benefício de usucapião a determinado lugar, promulgamos uma Constituição, segundo a qual ordenamos que prescrevem as coisas móveis pela posse de três anos, e as imóveis pela de longo tempo, isto é, de dez anos entre os presentes e de vinte anos entre ausentes. Deste modo, em todo o nosso Império, e não somente na Itália, se adquire o domínio quando ocorrer posse com justo título. (INSTITUTAS, p. 109).

A ideia de prescrever em favor de quem possui garante ao possuidor, pelo

decurso do tempo, o direito de pedir o domínio sobre a coisa. O prazo mais curto para

coisas móveis é justificado porque são coisas com menor valor pecuniário. Quanto às

coisas imóveis, o prazo é maior, sendo dilatado em relação ao ausente. É porque o

ausente não tem como se defender na usucapião, por não estar presente, logo, o prazo

é dobrado para que não se cometa injustiça contra quem não pode se defender.

Os requisitos, de acordo com a citação, para a usucapião são: coisa hábil (bem

que seja possível usucapir, tanto que nas Institutas são tratados os bens impossíveis de

serem usucapidos, como é o caso das coisas do Fisco), posse (possuir a coisa, não se

confunde com o domínio, porque domínio refere-se à propriedade), decurso do tempo,

justo título e boa-fé. São os mesmos requisitos ainda presentes. Todavia, hoje existem

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outros tipos de usucapião, da mesma forma que outros institutos jurídicos já

trabalhados sofreram modificações durante o processo histórico. Mas, a essência de

possuir algo em razão da posse, do decurso do tempo, para garantir uma situação

jurídica que se estabeleceu é um legado do direito romano. A forma como as Institutas

trata a respeito da usucapião, em geral, é exemplificando o que pode e o que não pode

ser usucapido, porém, como são casos específicos daquela sociedade, não cabe aqui

analisá-los, mas o dispositivo geral, conforme dito tem o mesmo sentido.

O Título VII do Livro Segundo trata das doações, que podem ser feitas entre os

vivos (doação simples), alguém quer doar coisa a outrem e transfere ou, na presunção

da morte, deixar algo para outra pessoa. A pessoa ou doador faz um documento

prevendo quem será o donatário de uma coisa sua quando acontecer sua morte (do

doador). Justiniano deixa claro que o instituto dessa última doação em tudo se

assemelha ao legado, tratado no Título XX do Livro Segundo: “§ 1º – Legado é a

espécie de doação deixada pelo de cujus”. (INSTITUTAS, p. 157). O legado em si não é

instituto que receba esse nome, é utilizado apenas doação, tratado em direito de

sucessões. Mas, como o legado é a própria doação do de cujus, o instituto ainda

permanece, e as doações ainda são bastante utilizadas no direito atual.

Os Títulos VIII e IX do Livro Segundo das Institutas tratam, respectivamente, de

“Quem pode e quem não pode alienar” e “Das pessoas por meio das quais adquirimos”.

Atualmente existem restrições quanto a quem pode ou não pode alienar ou mesmo das

pessoas por meio das quais adquirimos as coisas. Mas, os exemplos utilizados por

Justiniano são diametralmente opostos à nossa realidade, exemplo: “Adquirimos não só

por nós mesmos, mas também por aqueles que temos sob o nosso poder, pelos

escravos de que somos usufrutuários (...)”. (INSTITUTAS, p. 118). Não temos mais

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escravos, mas podemos adquirir uma coisa através dos ascendentes, por exemplo,

Portanto, o caso específico difere, mas a ideia de tratar o dispositivo genérico de que

existem pessoas que nos possibilitam adquirir alguma coisa ou quem pode ou não

alienar persiste. Nesse caso de poder alienar, o exemplo de Justiniano é que “o marido

não pode, pela lei Julia, sem o consentimento da mulher, alienar o imóvel dotal, embora

seja dele, por lhe ter sido dado em dote”. (INSTITUTAS, p. 117). Não existe mais o

dote, mas existem situações semelhantes restritivas de alienação da coisa. Exemplo

disso é quando o marido quer alienar um bem, mesmo que seja apenas seu, uma vez

casado deve ter a assinatura de concordância da esposa.

A seguir, do Título X ao Título XXV, são tratados o testamento, herança e

herdeiros e os codicilos. Muitos capítulos tratam de formas especiais aplicáveis à

sociedade romana e consequentemente bizantina, não servindo, dessa forma, o

exemplo, mas sim o formato do instituto jurídico.

O testamento está definido nas Institutas como “atestação da vontade”

(INSTITUTAS, p. 123), e como tal permanece: “ato jurídico revogável e solene,

mediante o qual uma pessoa, em plena capacidade e na livre administração e

disposição de seus bens, vem instituir herdeiros e legatários” (SILVA, 2004, p. 1392).

Herança como é usual é o que se deixa a outrem (ns). Era assim e continua da

mesma forma, é, portanto, o objeto do testamento. Herdeiro é o destinatário do

testamento. E, por fim, codicilo “serve para designar o escrito ou memorandum de

última vontade”. (SILVA, 2004, p. 302). A ideia era a mesma nas Institutas. Os codicilos

serviam como forma de a pessoa expressar para quem deixaria seus bens, não

substituindo o testamento. Caso este já existisse, continuava valendo, mas, como nem

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sempre a pessoa se prepara para deixar sua herança, os codicilos serviam para

expressar a vontade do de cujus.

De acordo com a própria definição a seguir de direito das sucessões é que tal

ramo jurídico abrange os testamentos e as heranças, contudo, conforme dito, Justiniano

classificou tais institutos jurídicos como parte das coisas por serem maneiras de

aquisição de propriedade.

3.2.1.4 Direito das sucessões

O direito das sucessões é definido da seguinte maneiro no Vocabulário Jurídico:

Parte integrante do Direito Civil, por Direito das Sucessões, em sua acepção objetiva, entende-se o conjunto de regras e normas que governam a transmissão de direitos (bens e obrigações) da pessoa, que morre (de cujus) para aquelas que se dizem suas herdeiras.

No sentido subjetivo, direito de sucessão ou direito de suceder é aquele que assiste à pessoa de receber o acervo hereditário, que lhe compete, seja por herdeiro legítimo ou por ser herdeiro testamentário. (SILVA, 2004, p. 466).

Mais uma vez, os institutos da herança e testamento estão presentes. O direito

das sucessões bizantino preocupa-se mais em estabelecer as linhas de parentesco, de

relação entre os herdeiros, para que não haja dúvida sobre a pessoa. Então, ao passo

que as formas de aquisição das coisas, ainda que por hereditariedade, estejam

previstas no Livro Segundo das Institutas, as linhas de sucessões cujo objeto é “as

pessoas” estão previstas no Livro Terceiro, dos Títulos I ao XII.

Já o Título I do Livro Terceiro traz a figura do intestado (abintestado): “Morre

intestado quem não fez testamento, quem o fez ilegalmente, ou quem fez testamento,

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tornado depois roto, irríto ou sem herdeiro”. (INSTITUTAS, p. 183). Intestado, dessa

forma, é a pessoa que não deixou testamento válido. Segue, portanto, às sucessões

naturais de acordo com o pátrio poder, linhas de sucessões, como ocorrem até hoje

com as devidas diferenças. É muito comum que as pessoas morram sem deixar

testamento. Sendo assim, a lei traz a sucessão natural: descendentes, cônjuge,

ascendentes, entre outros que não cabem aqui serem explanados. O que importa é a

figura da falta de testamento que desde a época romana era prevista e foi seguida em

Bizâncio: “§ 1º – Pela Lei das XII Tábuas a herança dos intestados pertence em

primeiro lugar aos herdeiros seus”. (INSTITUTAS, p. 183).

No Terceiro Livro, as Institutas trazem as figuras dos agnatos e dos cognatos,

Título II e Título V, respectivamente. Na própria definição de Justiniano (INSTITUTAS,

p. 192): “Agnatos são, como já no primeiro livro dissemos, os parentes pela linha

masculina, isto é, os cognatos ou parentes pelo pai”. Essa terminologia não encontra

mais respaldo jurídico porque não há mais a discriminação negativa em função do

gênero, ou seja, tanto homem quanto mulher têm o mesmo direito à herança, o que não

acontecia em Roma e nem em Bizâncio. Já a figura do cognato, ainda permanece, pois

o termo “designa todo aquele parentesco natural sem direitos civis, sendo aquele, no

sentido romano, que se formava independentemente das regras da religião doméstica”.

(SILVA, 2004, p. 303). Então, cognato, no direito bizantino é o parentesco, e, os graus

de parentesco ou de cognação são abordados no Título VI do Livro Terceiro. Ainda são

imprescindíveis os graus de parentesco ao direito no caso de sucessão dos bens e

obrigações deixados pelo de cujus.

O Título III (Do senatusconsulto Tertuliano), o Título IV (Do senatusconsulto

Orfistiano), o Título VII (Da sucessão dos libertos), o Título VIII (Da assignação dos

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libertos), o Título X (Da aquisição por ad-rogação), o Título XI (Daquele a quem são

adjudicados os bens em favor da liberdade) e o Título XII (Da revogação das sucessões

que ocorriam pela venda dos bens e pelo senatusconsulto Claudiano), todos os

referidos títulos pertencentes ao Livro Terceiro das Institutas, não são remanescentes

jurídicos amparados pelo nosso direito. A maior parte deles por serem temáticas de

aplicação exclusiva naquela sociedade. Em especial, os Títulos VII, VIII, X e XI porque

tratam de assuntos relativos à temática da escravidão.

A posse dos bens, ou simplesmente, posse, que é tratada no Título IX do Livro

Terceiro, hoje é matéria de direito das coisas e tem muita intimidade com o instituto da

usucapião. Conforme dito, a posse é um dos requisitos para usucapir e constituir uma

coisa em propriedade do particular que a ocupa, requerendo o domínio sobre a coisa.

No direito bizantino, a posse tem o mesmo sentido que tem atualmente: o possuidor é

quem aparenta ser o dono da coisa, estando de posse da mesma. Não há grandes

controvérsias. A questão de ser a posse dos bens tratada no direito das sucessões é

plausível porque o sucessor evoca em sua defesa o fato de o seu antecessor estar de

posse da coisa, e, a morte deste (antecessor) não interrompe o decurso do prazo para

usucapir a coisa em favor daquele (sucessor). A morte do de cujus transfere a posse ao

sucessor, dando continuidade ao tempo necessário para usucapir a coisa.

3.2.1.5 Direito das obrigações e contratos

O direito das obrigações é inaugurado pelo Título XIII do Livro Terceiro. Definida

como “um vínculo de direito, formado segundo o nosso direito civil, que nos coage a

pagar alguma coisa” (INSTITUTAS, p. 225), a obrigação se constitui em um vínculo que

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condiciona alguém a dar algo. Não há definição legal, ou seja, o Código Civil brasileiro

não conceitua o que seja obrigação, mas o deduz através dos vínculos jurídicos que se

estabelecem entre as pessoas e as obrigam entre si. E isso é interessante porque a

legislação não deve estabelecer conceitos, mas sim a doutrina, o estudo. A lei acaba

enrijecendo uma situação. Estabelecer um conceito doutrinário significa que foi

acertada a posição do imperador ao estabelecer o conceito de obrigações nas

Institutas, pois não se trata de leis, mas sim um manual de direito.

No Título XIV está o elemento que transparece a obrigação: a tradição da coisa.

Tradição, no direito, consiste em entregar. “A obrigação se contrai pela tradição da

coisa (re), como, por exemplo, na dação em mútuo. O mútuo recai sobre coisas que

podem ser pesadas, contadas e medidas, como o vinho, o óleo, o trigo, o dinheiro, o

cobre, a prata, o ouro”. (INSTITUTAS, p. 227). Então, nesse sentido, a partir da entrega

de uma coisa, a pessoa que recebeu, fica obrigada a restituir algo de valor similar,

equivalente. O § 3º do Título XIV do Livro Terceiro ilustra: “§ 3º – Aquele que recebe

coisa em depósito fica obrigado pela tradição, respondendo pela ação de depósito,

porque fica obrigado a restituir a coisa que recebeu”. (INSTITUTAS, p. 228). Então, a

tradição estabelecia a obrigação. Hoje, é o contrário que se estabelece:

No conceito jurídico, propriamente, é a entrega material da coisa adquirida, para lhe transferir a propriedade, ou a entrega material da coisa devida, para que se cumpra a obrigação assumida, na intenção de dela se liberar, ou quitar. (SILVA, 2004, p. 1417).

Atualmente, a obrigação finda com a entrega do objeto ou tradição. No direito

romano, a obrigação era contraída pela entrega do objeto ou tradição. No entanto, o

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instituto da obrigação, se mantém inalterado, o que modificou foi o momento de um dos

elementos que estabelece o compromisso mútuo.

O Título XV do Título Terceiro traz o instituto da obrigação verbal, que na

realidade é uma forma de instituir um acordo baseado na palavra, ou seja, é um

contrato verbal ou oral, assim definido: “Contrai-se obrigação verbal por pergunta e

resposta, quando estipulamos que se nos dê ou se nos faça alguma coisa”.

(INSTITUTAS, p.231). Ainda hoje é possível que o simples acordo estipulado oralmente

entre as pessoas gere obrigações jurídicas que enseje ação judiciária caso não seja

cumprido. Comprar um jornal na banca de revistas, por exemplo, é feito através de um

contrato verbal.

A relação jurídica, por mais que tenha por objeto alguma coisa, nas obrigações,

ela se estabelece entre as pessoas:

A polaridade da relação obrigacional apresenta, de um lado, o sujeito ativo (credor) e, de outro, o sujeito passivo (devedor). O sujeito ativo tem interesse em que a prestação seja cumprida. Para que a tutela de seu direito protegido tenha eficácia, o credor pode dispor de vários meios que a ordem jurídica lhe conceda. (VENOSA, 2005, p. 38).

No direito romano as figuras eram as mesmas, de credor e devedor, mas como

as obrigações se fazem mediante estipulações e promessas, o credor era conhecido

por estipulante e o devedor por promitente. É dedicado o Título XVI do Livro Terceiro à

esses sujeitos de direito.

O Título XVII do Livro Terceiro dispõe sobre obrigações envolvendo os escravos,

instituto não amparado pelo direito atualmente.

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A nomenclatura “estipulações”, prevista nas Institutas, são hoje denominadas

cláusulas. Cláusula do contrato é justamente o que está combinado, estipulado,

obrigado pelas partes a ser cumprido. Nesse diapasão, o Título XVIII trata dos tipos de

estipulações possíveis e o Título XIX das estipulações nulas. São tratados de formas

específicas através de exemplos. Também existem atualmente diferentes tipos de

cláusulas possíveis e cláusulas impossíveis, ou seja, nulas. No entanto, essas cláusulas

variam de acordo com o que a sociedade considera juridicamente importante, não

cabendo comparações. O que vale consignar é a presença dos referidos institutos.

Para garantir um contrato, muitas vezes a pessoa precisa de uma garantia de

que o mesmo será cumprido satisfazendo a obrigação. O direito bizantino traz a figura

do fiador no Título XX do Livro Terceiro das Institutas para que maior seja essa garantia

de quitação da obrigação: “O promitente encontra muitas vezes outras pessoas que se

obrigam por ele, e que têm o nome de fiadores, as quais são aceitas pelos credores

para aumentar-lhes as garantias”. (INSTITUTAS, p. 247). O fiador ainda persiste no

direito, sendo muito comum em quase todas as operações jurídicas que envolvam

garantias.

O Título XXI do Livro Terceiro das Institutas traz a “obrigação literal” que é a

mesma obrigação verbal reduzida a termo, ou seja, forma escrita de estipular a

obrigação e a promessa de cumprimento da mesma. Ideia semelhante ao contrato

escrito cuja utilização, no direito atual, sobrepõe ao oral devido a maior segurança que

confere aos negócios jurídicos. Interessante que a obrigação verbal tinha maior força

entre os romanos do que a obrigação literal: “Contraía-se antigamente por escrito uma

obrigação nominibus por nomes, como então se dizia, os quais não são hoje usados”.

(INSTITUTAS, p. 247).

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A obrigação consensual ou contrato, tratado a partir do Título XXII do Livro

Terceiro, inaugura o direito contratual, que é parte das obrigações. Existiam quatro tipos

de contratos que ensejavam o acordo entre partes, aliás, contrato é justamente o

consenso de vontade entre os contratantes:

Na venda, na locação, na sociedade, e no mandato, as obrigações formam-se somente pelo consenso das partes. Nesses casos, diz-se que se formam só pelo consenso, porque não se exige escrito, nem a presença das partes. (INSTITUTAS, p. 251).

Além de reforçar a tese de que o contrato escrito não era tão valorado quanto

hoje, privilegiando a força da palavra, essas obrigações exigiam o consenso porque o

negócio jurídico era travado entre os particulares incumbidos unicamente de decidirem

entre si a respeito do objeto contratado e do valor a ser pago.

O contrato de compra e venda bem como o de locação são tratados de forma

similar desde o direito romano. Não há inovações nessa seara quanto à base do

negócio jurídico. São tratados nos Títulos XXIII e XXIV do Livro Terceiro das Institutas.

A sociedade disciplinada pelo Título XXV do Livro Terceiro é interessante porque

é um dos institutos jurídicos do direito civil que mais evoluíram e atualmente se constitui

em ramo jurídico autônomo, com todo um sistema de funcionamento que, embora

esteja dentro do Código Civil brasileiro, obedece a um padrão peculiar de

comportamento. Portanto, aquele contrato de sociedade: “Forma-se sociedade, ou de

todos os bens, o que os gregos chamam koinopraxian, ou para um negócio especial,

por exemplo, para comprar e vender escravos, óleo, vinho, trigo”; (INSTITUTAS, p.

259), hoje é uma ciência específica do direito privado conhecida como direito

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empresarial. Mas, a ideia básica vem desde o conceito de Justiniano inspirado em um

arranjo social grego: constituir uma sociedade de pessoas para fins econômicos.

E, a última obrigação consensual é o mandato, previsto no Título XXVI do Livro

Terceiro das Institutas, mais conhecido como procuração, que serve para que uma

pessoa represente a outra.

Os títulos seguintes tratam “Das obrigações quase-contratuais” e “Das pessoas

pelas quais adquirimos obrigação”. Dentre as pessoas pelas quais adquirimos

obrigação, os escravos não mais existem, mas ainda persiste a obrigação para a

pessoa a partir dos filhos. Isto porque os pais respondem pelos atos dos filhos

enquanto estes não têm plena capacidade, e no direito bizantino essa situação estava

prevista no Título XXVIII do Livro Terceiro das Institutas. Já as obrigações quase-

contratuais são situações jurídicas em que não há o acordo de vontades, contudo, cria-

se uma obrigação. O § 1º do Título XXVII do Livro Terceiro traz uma situação ainda

corriqueira que configura em obrigação: “§ 1º – Assim, quando alguém administrou os

negócios de um ausente, originaram-se para ambos ações recíprocas, chamadas

gestão de negócio”. (INSTITUTAS, p. 267). Isso ainda acontece no caso de a pessoa

estando ausente, o juiz nomeia alguém para que seja curador de seus negócios. Não

há um consenso tendo em vista a ausência de um dos sujeitos, mas a situação gera

obrigações para os dois, por isso é um quase-contrato.

O Livro Terceiro é encerrado com as formas de extinção da obrigação. O que

extingue a obrigação é a satisfação da mesma no direito romano. Aquilo que foi

estipulado deve ser cumprido por quem prometeu quitar:

Toda obrigação se extingue com o pagamento da coisa devida, ou de outra em seu lugar, desde que o credor o consinta. Pouco importa que o pagamento seja

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feito pelo próprio devedor, ou por outrem em seu lugar, pois o devedor, ou fica exonerado pelo pagamento que outrem o faz, quer com o seu consentimento, quer sem ciência sua, quer contra a sua vontade. O devedor, que paga, libera os que se obrigaram por ele, e, reciprocamente, o fiador, que paga, libera a si próprio e ao devedor. (INSTITUTAS, p.273).

Nada diferiu no que tange à forma principal de se extinguir uma obrigação.

Cumpri-la é o modo jurídico de desvincular a obrigação e satisfazer as partes

envolvidas. Os institutos jurídicos da obrigação e do contrato permanecem praticamente

inalterados ao longo de tantos séculos.

3.2.1.6 Demais institutos constantes do Livro Quarto das Institutas

O Livro Quarto das Institutas do Imperador Justiniano trata de delitos e

processos. O direito romano, conforme visto no capítulo anterior, era o direito civil. O

âmbito do particular era sempre o mais ressaltado e objeto das disposições legais

construídas em Roma e, consequentemente, em Bizâncio.

Com o passar do tempo, o direito deixou de ser tratado exclusivamente no

âmbito do particular. Hoje, o direito penal, que trata dos delitos, e o direito processual,

que trata dos processos, são ramos jurídicos autônomos. Inclusive, o cunho de tais

ramos do direito é público, não há mais a visão privada dessas matérias como o

romano as percebia.

Os delitos tratados pelas Institutas estão previstos do Título I ao Título V do Livro

Quarto. São tratados do furto, do roubo, do dano e da injúria. O direito romano

disciplina tais institutos tendo em vista a obrigação de reparar o que foi furtado, o que

foi roubado, o que foi danificado e quem foi injuriado. Ou seja, há uma nítida relação

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obrigacional formada entre os particulares que consiste em restituir o prejuízo causado

por uma pessoa à outra. Os institutos jurídicos do furto, do roubo, do dano, da injúria

ainda existem, mas a disposição legal dispensada a eles difere em muito da romana,

pois não se cria essa obrigação de restituir vinculando os sujeitos envolvidos. O papel

de punir, atualmente, é de exclusividade do Estado, Estado de Direito, por isso o direito

penal é um direito público. Em Roma ou Bizâncio não podemos falar em Estado de

Direito, pois seria anacrônico. A figura jurídica do Estado de Direito é fruto da Idade

Moderna.

Da mesma forma, o direito processual romano tem caráter privado e é

inaugurado nas Institutas a partir do Título VI, com as ações: “Ação nada mais é do que

o direito de pedir em juízo o que nos é devido”. (INSTITUTAS, p. 301). O conceito ainda

é o mesmo: “O termo, ainda, designa o próprio processo intentado em juízo para se

pedir alguma coisa...”. (SILVA, 2004, p. 13).

Muito embora hoje o direito processual seja direito público, o conceito de ação

permanece com o mesmo teor desde a época de Roma. Quando o autor entra com um

pedido em juízo, uma ação, ao demandado, réu, cabe defesa cujo nome jurídico é

exceção, esta prevista no Título XIII das Institutas. Depois disso, ao autor são cabíveis

as alegações finais, instituto jurídico da réplica, para contrapor a exceção construída

pelo réu. A réplica está prevista no Título XIV do Livro Quarto das Institutas. Não é mais

usado esse nome no direito processual, embora seja de conhecimento geral no direito,

pois a réplica do autor é a alegação final.

Depois dessa trama processual que consiste na ação do autor, combatida pela

exceção do réu e continuada pela réplica do autor, cabe a decisão ao pretor

(magistrado ou juiz):

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Do latim praetor (chefe), originariamente, era a denominação dada, em Roma, ao magistrado, eleito pelas centúrias, para administrar a justiça, além de outras atribuições que lhe eram deferidas, decorrentes do imperium, de que era investido pela lei curiata. (SILVA, 2004, p. 1091).

Essa decisão do pretor era denominada interdito, porque é como se o magistrado

interditasse a situação material através do processo: “Os interditos eram fórmulas ou

palavras solenes, pelas quais o pretor ordenava, ou proibia ao réu que fizesse alguma

coisa, sendo, principalmente utilizados em questão sobre a posse ou quase-posse”.

(INSTITUTAS, p. 334). Isso ocorre até hoje, em especial no que tange à resolução das

posses. Toda ação intentada em juízo requer uma resposta do magistrado. Essa

decisão gera efeitos tanto para o réu quanto para o autor da ação, dependendo da

decisão. Os Interditos são tratados no Título XV do Livro Quarto.

O Título XVI do Livro Quarto das Institutas trata de um dispositivo de suma

importância ao processo jurídico que o romano denominava “Da pena aplicada aos

litigantes temerários”. O caput do Título diz o seguinte:

Observemos, aqui, que os criadores do direito sempre trataram de impedir que houvesse litígios facilmente, sendo também essa a nossa preocupação. O melhor meio de conseguir isso é reprimir a temeridade dos autores e réus, quer com penas pecuniárias, quer com juramentos, quer com temor da infâmia. (INSTITUTAS, p. 338).

A razão desse instituto é porque o tempo para resolver um litígio (ou lide, ambos

consistem em conflito assistido pelo direito) é demasiado e o acordo deve sempre ser a

primeira tentativa na resolução dos problemas. Apenas em última instância deve o

direito ser evocado em juízo. Um exemplo que ilustra a situação: uma pessoa deve

quantia certa ao credor e não quer saldar sua dívida. Ao invés de saldá-la, o devedor

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entra com uma ação em juízo e todo um processo será instaurado. A finalidade é

apenas protelar a satisfação da obrigação pelo devedor. Por essa razão o Título XVI

prevê pena ao litigante temerário. Essa lógica jurídica hoje é conhecida como litigância

de má-fé, e no art. 18 do Código de Processo Civil brasileiro está previsto sanção ao

litigante de má-fé:

Art, 18. O juiz ou tribunal, de ofício ou a requerimento, condenará o litigante de má-fé a pagar multa não excedente a 1% (um por cento) sobre o valor da causa e a indenizar a parte contrária dos prejuízos que esta sofreu, mais os honorários advocatícios e todas as despesas que efetuou.

6

O Título XVII trata “Do ofício do juiz” cujo “dever é julgar conforme as leis, as

Constituições e os costumes”. (INSTITUTAS, p. 341). Essa é a ideia e razão do

magistrado até hoje, decidir de acordo com o padrão jurídico pertinente à sociedade.

O Título VIII do Livro Quarto das Institutas trata das ações noxais. O objeto são

os escravos, logo, não encontram mais amparo em nosso direito. O Título IX dispõe

sobre dano causado por quadrúpede, também impossível atualmente. O Título VII,

sobre contratos com os alieni juris em sua maior parte não encontra respaldo, por

serem, em sua maioria, ações de escravos contra os senhores.

O Título X do Livro Quarto trata das representações em juízo. Merece atenção a

diferença com o que ocorre hoje. No direito romano não era comum a figura do

advogado, pois a sociedade romana de uma forma geral se dedicava bastante às

questões jurídicas. O cidadão, tendo algum problema dessa ordem, ele mesmo

pleiteava em juízo, não sendo necessário constituir representante processual. Todavia,

o Título X prevê o procurador constituído, hoje, advogado, o qual pleiteia em juízo em

6 BRASIL. Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973. Institui o Código de Processo Civil. Vade Mecum, São Paulo:

Saraiva, 2008.

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nome do autor ou do réu. Nisso houve uma diferença drástica. Não se pode mais

ajuizar ações em nome próprio a não ser que a pessoa seja advogada. Apenas nos

juizados especiais o cidadão pode entrar com uma ação sem constituir procurador

judicial.

A fiança prevista no Título XI do Livro Quarto das Institutas ainda guarda o

mesmo sentido e é instituto muito utilizado no âmbito do direito processual. Já o Título

XII que trata do tempo das ações não encontra hoje os mesmos prazos, mas a base é a

mesma: as ações possuem prazos para que sejam propostas, algumas sendo inclusive,

imprescritíveis, o que no direito romano era chamada de ação perpétua, ou seja, o

prazo não corre em desfavor de quem possui o direito de ação e não o exerce de

imediato.

E, finalmente, o Título XVIII do Livro Quarto das Institutas traz os processos

públicos que conforme o § 1º “chamam-se processos públicos, porque em geral,

qualquer cidadão pode propô-los”. (INSTITUTAS, p. 345). Em outras palavras, não

precisa ser exatamente o sujeito envolvido na relação jurídica a propor a ação. Este é o

único traço de publicidade processual no direito romano, e, no mesmo sentido, no

direito bizantino, em que há um interesse comum, maior do que o do particular que

permite a qualquer um do povo representar em juízo. É uma exceção dentro do direito

romano clássico. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 traz ação

semelhante em que qualquer cidadão pode propor uma ação, chamada de ação

popular, prevista no art. 5º, LXXIII, da Constituição Federal7, sendo que o objeto

interessa ao povo de forma geral.

7 BRASIL. Constituição Federal, de 05 de outubro de 1988. Constituição da República Federativa do Brasil, Brasília,

1988.

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CONCLUSÃO

As Institutas do Imperador Justiniano transmitiram o legado jurídico desde Roma

antiga. O estudo destas Institutas permite vislumbrar bases jurídicas remanescentes do

período romano, o que possibilita, ao mesmo tempo, entender melhor as relações

sociais de Roma, e, consequentemente, de Bizâncio.

O direito é uma relação social específica, mas não deixa de ser uma relação

social. Muito do que está escrito nas leis de Roma reflete a própria sociedade romana.

O fato de as Institutas trazerem dispositivos jurídicos compilados, que na

realidade são de origem romanesca, permitiu que a cultura romana sobrevivesse em

Bizâncio, fora dos limites territoriais da cidade de Roma. Ademais, o direito romano é o

direito civil, ou seja, o direito da cidade, do local. Importar toda uma cultura social, ou

seja, o direito, de uma cidade para outra, em última instância, demonstra o modelo ideal

de sociedade e cidade para o bizantino, que era o modelo romano. Não por acaso o

Império Bizantino é o Império Romano do Oriente. Existe uma continuidade.

Alguns autores pesquisados sugerem que o governo de Justiniano foi

responsável por efetivar uma cisão entre o Oriente do Ocidente de forma irreversível. É

bastante plausível e indubitável que, com Justiniano, o Império Bizantino se reveste de

características próprias. Todavia, o Imperador Justiniano teve como referência o padrão

romano de organização sócio-jurídica. Isto é nítido nas referências utilizadas no texto

das Institutas. Vale consignar que essa obra tem cunho oficial, por ser documento

produzido pelo próprio imperador e seus juristas.

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Da análise das Institutas, de forma comparada com o direito civil brasileiro, é

perceptível que a maioria dos institutos jurídicos permanece com a mesma roupagem

desde Roma. Nosso direito, aliás, utiliza o modelo romano cuja positivação jurídica é

feita de forma escrita.

Obviamente que alguns institutos ou deixaram de existir ou foram modificados,

afinal, o direito é forma de relação social, e como a sociedade, é passível de mudanças.

Contudo, tendo em vista a mutabilidade das relações sociais, podemos afirmar que o

direito romano teve êxito, pois a sua essência conserva-se praticamente inalterada. E,

como a fonte principal de direito romano foram as compilações de Justiniano, dentre

elas, as Institutas, podemos afirmar que esse imperador bizantino foi o maior

responsável por esse legado jurídico romano.

É muito intrigante pensar que o direito romano ainda é a base jurídica da maior

parte das sociedades atuais, sendo que Roma perdeu seu vigor no século V. Todavia,

Roma não perdeu seu vigor de fato, porque continuou viva no Oriente. A sobrevivência

de Roma em Bizâncio importou na disseminação do direito pelo mundo.

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