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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO – ESCOLA DE DANÇA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS PPGAC Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas MARISE BERTA DE SOUZA ABC DE NELSON DO SERTÃO AO MAR DA BAHIA OU QUEM É ATEU E VIU MILAGRES COMO EU SALVADOR 2008

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA ESCOLA DE TEATRO – ESCOLA DE DANÇA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

PPGACPrograma de Pós-graduação em Artes Cênicas

MARISE BERTA DE SOUZA

ABC DE NELSON DO SERTÃO AO MAR DA BAHIA OU QUEM É ATEU E VIU MILAGRES COMO EU

SALVADOR 2008

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MARISE BERTA DE SOUZA

ABC DE NELSON DO SERTÃO AO MAR DA BAHIA OU QUEM É ATEU E VIU MILAGRES COMO EU

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutora em Artes Cênicas.

Orientadora: Professora Antonia Bezerra Pereira

SALVADOR 2008

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MARISE BERTA DE SOUZA

ABC DE NELSON DO SERTÃO AO MAR DA BAHIA

OU QUEM É ATEU E VIU MILAGRES COMO EU

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutora em Artes Cênicas.

Salvador, 29 de fevereiro de 2008.

Banca examinadora:

__________________________________________________________ Profa. Dra. Antonia Bezerra Pereira (PPGAC/UFBA) - Orientadora __________________________________________________________ Profa. Dra. Ângela Reis (PPGAC/UFBA) - Examinadora __________________________________________________________ Profa. Dra. Sônia Lúcia Rangel (PPGAC/UFBA) - Examinadora __________________________________________________________ Profa. Dra. Rosa Maria Berardo (UFG) - Examinadora __________________________________________________________ Prof. Emérito Guido Antonio Sampaio de Araújo (FACOM/UFBA) - Examinador __________________________________________________________ Prof. Dr. Mahomed Bamba (UEFS) - Examinador

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Para Umbelino, o meu amor, pela ventura de juntos viver o cotidiano e o cinema.

Para Hildo e Yeda, os meus pais, pelo exercício do afeto.

Para Janaína, a filha bem-vinda, por me deixar enxergar minhas

pegadas nos seus passos.

Para Nelson Pereira dos Santos, pela motivação e incondicional admiração.

Para Babalu (in memoriam), por guiar os caminhos da fé.

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AGRADECIMENTOS

Mesmo correndo o risco de incorrer em alguma exclusão das muitas contribuições efetivas e afetivas que recebi, dar o crédito às pessoas que contribuíram para atravessar o percurso até a conclusão desta tese é tarefa necessária.

À professora Antonia Bezerra Pereira, de quem tive o apoio imprescindível de orientação, pela confiança, disponibilidade e atenção, traduzidas numa interlocução freqüente, ágil e prestativa.

Ao PPGAC, que desenvolve com êxito um trabalho pioneiro na área de artes no Nordeste do País, o meu reconhecimento ao empenho de todos: coordenação, professores e funcionários.

Aos professores Sônia Lúcia Rangel e Claudio Luiz Pereira, pelas suas importantes intervenções e sugestões no Exame de Qualificação, que motivaram a experimentação neste trabalho.

À Faculdade de Tecnologia e Ciências, pelo apoio institucional.

Aos bolsistas de Iniciação Científica do curso de Cinema e Vídeo da FTC/FAPESB, Fábio Espírito Santo e André Macedo, pela ajuda no levantamento de dados sobre o objeto. Aos funcionários da TV FTC, alunos egressos do curso de Cinema e Vídeo, Júlia Centurião, Luciano Santana e Luana Mellado; e aos estagiários da TV FTC, Rafael Jardim, André Macedo, Daniel Carvalho e Filipe Mateus Duarte, pela produção, edição das entrevistas e finalização do vídeo.

Aos professores André França, Guilherme Maia e Cristina Zebral, pelo apoio à condução dos cursos de Cinema e Vídeo, Moda e da TV FTC, neste semestre de reta final. Agradeço, ainda, à Cristina Zebral pelo apoio hipermidiático.

Aos professores Guido Araújo (UFBA), Juarez Paraíso (UFBA) e José Tavares de Barros (UFMG) pelos depoimentos clarificados pela emoção e materiais disponibilizados, importantes peças de composição do jogo de armar proposto neste trabalho.

Aos professores do curso de Cinema da Universidade Federal Fluminense, Tunico Amâncio, José Marinho e Hilda Machado (in memoriam), pela disponibilidade de materiais e informações.

Ao professor Umbelino Brasil (UFBA), pela interlocução da primeira leitura.

A Fernando Birri, Orlando Senna, Rudá de Andrade, Arnaldo Carrilho, Emanuel Cavalcanti, Geraldo Moraes, Maria do Rosário Caetano e Braulio Tavares pelos depoimentos e lembranças.

A Dona Lúcia Rocha, sempre Mãe.

A Luís Orlando (in memoriam), por generosamente abrir o baú das suas relíquias.

Ao amigo Vital Péricles Amorim, arquiteto das emoções, pelo empenho fiel com que apoiou a consolidação do trabalho nas traduções, pesquisa, texto e revisão.

Ao professor Marcos Bulhões pela energia e pistas fundamentais em um momento de falta de fé.

A Marcos Pierry, pela presteza na primeira remessa de teses da ECA/USP e a Inês Figueiró, pela continuidade na remessa e mensagens de estímulo.

A Carlinhos Cor das Águas e Ângela Franco, pela amizade, zelo fraterno e pela possibilidade de dividir as angústias da criação de uma tese em condições especiais de temperatura e pressão.

A Eneas Guerra e Valéria Pergentino, pela afetuosa torcida.

A Braulio Tavares, pela inspiração do ABC.

À profa. Adriana Telles, pela disponibilidade e afeto com que aceitou a tarefa de revisar os textos.

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RESUMO

Esta tese, escrita na forma de um ABC, busca estabelecer a relação entre os filmes, os textos e a performance de Nelson Pereira dos Santos na cena político-cultural de seu tempo, de modo a demonstrar a sua atuação e a posição estratégica que ocupa na constituição do moderno cinema brasileiro, conformando a figura do artista-intelectual em diálogo com as questões nacionais no âmbito da política e da cultura. A investigação se dá especialmente pela abordagem de sua relação com a Bahia e pelo estudo dos três filmes que realizou no Estado: Mandacaru Vermelho (1960/1961), Tenda dos Milagres (1975/1977) e Jubiabá (1985/1987), tomados como síntese da sua autoria cinematográfica. Palavras-chave: Nelson Pereira dos Santos; Cinema Brasileiro; Criação; Autoria.

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RESUMÉE

Cette étude, écrite sous la forme d’un abecedaire, cherche a établir des rapports entre les filmes, les textes et la performance de Nelson Pereira dos Santos dans la scène politique-culturel de son temps, démontrant ainsi la force de son action et la position stratégique que le cinéaste occupe dans la constitution du moderne cinéma brésilien. Tout en plaçant la personne de l’artiste-intelectuel en dialogue avec les questions nationalles emergentes dans le cadre de la politique et de la culture, la présente investigation se concrétise surtout par l’approche des rapport du réalisateur avec l’État de Bahia. Ceci est particulièrement frappant lors que l’on analyse les trois filmes réalisés à Bahia: Mandacaru Vermelho (1960/1961), Tenda dos Milagres (1975/1977) et Jubiabá (1985/1987), pris ici comme une sorte de synthèse de son investigation en tant qu’auteur cinématographique. Mots Clés: Nelson Pereira dos Santos; Cinéma Brésilien; Création, Auteur.

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ABSTRACT

This thesis, written in the form of an ABC, searchs to establish the relation between the films, the texts and the performance of Nelson Pereira dos Santos in the politician-cultural scene of his time, in order to demonstrate the way he works and the strategical position that he occupies in the constitution of the modern Brazilian cinema, bringing about the figure of the artist-intellectual in dialogue with the national questions in the scope of the politics and the culture. The research is carried through especially by the approach of his relationship with the State of Bahia and according to the study of the three films accomplished by him at Bahia: Mandacaru Vermelho (1960/1961), Tenda dos Milagres (1975/1977) and Jubiabá (1985/1987), taken as synthesis of his inquiry as cinematographic author. Key Words: Nelson Pereira dos Santos; Brazilian Movie; Criation; Author.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................. 10

AUTOR .............................................................................................. 12

BAHIA ............................................................................................... 24

CINEMA NOVO ............................................................................... 41

DRAMA ............................................................................................. 53

ENSINO ............................................................................................. 61

FORMAÇÃO .................................................................................... 70

GUIDO ............................................................................................... 79

HISTÓRIA ...................................................................................... 90

INVENÇÃO .................................................................................... 96

JORGE/JUBIABÁ ............................................................................ 105

LITERATURA .................................................................................. 118

MANDACARU VERMELHO ......................................................... 125

NACIONAL-POPULAR .................................................................. 138

OBRA ................................................................................................ 149

PARAISO JUAREZ ........................................................................ 186

QUADRO DE PRODUÇÃO ........................................................... 194

REALISMO ...................................................................................... 202

SINCRETISMO ................................................................................ 213

TENDA DOS MILAGRES .............................................................. 221

UTOPIA ............................................................................................. 235

VIDA .................................................................................................. 248

X DA QUESTÃO .............................................................................. 262

ZOOM ............................................................................................... 267

REFERÊNCIAS ................................................................................ 269

FILMOGRAFIA DE NELSON PEREIRA DOS SANTOS .......... 281

APÊNDICE: Apontamentos para o ABC de Nelson Pereira dos Santos (vídeo-documentário) ...........................................................

290

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INTRODUÇÃO

PARA A LEITURA DOS MILAGRES

A tese de doutoramento O ABC de Nelson do sertão ao mar da Bahia ou quem é

ateu e viu milagres como eu busca estudar o percurso de Nelson Pereira dos Santos na cena

político-cultural do cinema brasileiro, percorrendo o grande espectro formado por sua

filmografia, tomando-se como contraponto os filmes que realizou na Bahia.

Este projeto constitui-se em um processo de continuidade na minha trajetória

profissional, tanto de realização audiovisual como de pesquisa. No curso que realizei no

Mestrado em Artes Visuais da EBA/UFBA1, estabeleci a minha primeira aproximação com o

autor e sua obra, dentro do projeto delineado na pesquisa que investigou as representações de

identidade no moderno cinema brasileiro.

Assim, esta tese é um desdobramento desse estudo preliminar e se configura como

uma oportunidade de aprofundamento das questões substanciais que resultaram no seu recorte

final.

Quanto ao seu formato, trata-se de uma resposta às questões discutidas durante o

exame qualificação, quando foi sugerido que o material levantado na pesquisa fosse

aproveitado criativamente, inclusive sendo mencionada a possibilidade de uma configuração

hipertextual e um espírito rizomático. Foi nessa perspectiva que, tentando dar conta dos

requisitos acadêmicos e do processo criativo, a tese foi estruturada sob a forma de um

abecedário.

O ABC é um poema típico da literatura de cordel nordestina, composto de estrofes

que se iniciam sucessivamente pelas letras do alfabeto. Na literatura de cordel, o ABC

geralmente homenageia uma personalidade relevante ou trata de feitos extraordinários. Castro

Alves já foi glosado em um ABC pela prosa de Jorge Amado, que, em recorrência

metanarrativa, usa do recurso no romance Jubiabá, em que faz o “ABC de Antônio

Balduíno”, que, por sua fez, enquanto personagem, faz o “ABC de Zumbi dos Palmares”.

Recentemente, Ariano Suassuna teve o seu perfil biográfico traçado sob a forma de um ABC,

por Bráulio Tavares. Deleuze deixou suas imagens perenizadas em um vídeo no qual as idéias

1 Marise Berta de SOUZA. Quando o cinema virou samba – a identidade no moderno cinema brasileiro. Dissertação apresentada ao Mestrado em Artes Visuais da EBA/UFBA. Salvador, 1999

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centrais do seu pensamento filosófico são organizadas sob a forma de um ABC. Glauber

Rocha também expôs o seu pensamento cinematográfico através do filme O ABC de Glauber.

Dessa forma, o universo formal dos ABCs pareceu-me uma bela peleja a ser travada

em uma tese que discute as recorrências e temas principais, da obra de Nelson Pereira dos

Santos em sua relação com a Bahia. Com oito décadas de vida e uma intensa produção, o

cineasta tem sua história imbricada com a própria história do cinema brasileiro e com a

insistência em colocar o povo brasileiro no primeiro plano da sua cena narrativa.

Este ABC, em sua síntese, faz com que cada letra leve a uma palavra, cada palavra a

uma idéia e cada idéia abra para uma janela que se revela e se exprime por meio da prosa e

das idéias em torno da obra de Nelson Pereira dos Santos. Pela mediação dessas idéias,

pretendeu-se compreender as concepções do cineasta e do seu processo de criação,

envolvendo as diversas dimensões que lhe são subjacentes.

Assim, na escolha das letras, levou-se em consideração o contexto de inserção social

do autor, tomado como significativo para a compreensão de sua produção cultural, em que a

sua potência criativa é exposta através das linhas de força essenciais que conformam as idéias,

as sensibilidades, as permanências, as mudanças, as utopias, os limites e os avanços do artista

no seu tempo.

Em que pese o seu formato, os procedimentos metodológicos do estudo foram

acionados para a sua realização e obedeceram a convenção: leitura de bibliografia existente,

entrevistas e análise dos filmes mencionados.

A bibliografia utilizada guardou, por conseqüência, grande proximidade com os

procedimentos metodológicos utilizados e referiu-se às áreas temáticas dos materiais e dos

temas estudados: textos dedicados ao cinema, suas teorias, sua linguagem, seu

desenvolvimento, com destaque para a vida e criação cinematográfica de Nelson Pereira dos

Santos; trabalhos de artes, história, literatura e cultura, que auxiliam na compreensão de

contextos socioculturais nos quais estão instalados seus autores e suas obras e, por fim, os

estudos teórico-metodológicos voltados para a interpretação da imagem e do filme de diversas

orientações teóricas, assim como várias incursões em estudos de história e de sociologia geral

e da cultura em diversas de suas ramificações.

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dededede AutorAutorAutorAutor

O autor no cinema brasileiro se define em Nelson Pereira dos Santos.

Glauber Rocha2 No caso brasileiro, o autor de filme é quem tem dado estrutura a todo o cinema brasileiro ao longo dos anos. Tendo nascido do projeto cultural, o cinema não nasceu com o objetivo de ganhar dinheiro, os grandes autores do passado como Mário Peixoto, Humberto Mauro, Gonzaga, outros, eles tinham realmente a visão de autores de filmes, embora na época não estivesse em voga esta expressão.

Nelson Pereira dos Santos3

A noção de autor em cinema não é matéria pacífica; sempre esteve envolta em

esferas de questionamentos. O mesmo não ocorre em outros campos artísticos, nos quais

conceituar a noção de autoria é tarefa menos complexa, sendo o autor aquele que assina uma

tela, escreve um livro, compõe uma partitura. O cinema confere complexidade e problematiza

a noção de autor ao interpô-la no arco de possibilidades demandadas por um tipo de arte de

expressão coletiva.

Essa especificidade própria do cinema fez com que a noção de autor passasse a se

constituir a partir da marcha histórica das cinematografias e apresenta alternâncias de acordo

com o desenvolvimento e os modos de produção de cada país. Conforme observa Jacques

Aumont e Michel Marie, “o status do autor no cinema está sempre ameaçado pela relação de

forças entre o cineasta e as instâncias de produção e difusão”4.

2 Glauber ROCHA. Revisão crítica do cinema brasileiro. São Paulo: Cosac & Naif, 2003, p.104. 3 Apud Giselle GUBERNIKOFF. O cinema Brasileiro de Nelson Pereira dos Santos – Uma contribuição ao estudo de uma personalidade artística. Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade de São Paulo/ECA. São Paulo, 1985, vol II, p.43. 4 Jacques AUMONT e Michel MARIE. Dicionário teórico e crítico de cinema. Campinas, SP: Papirus, 2003, p. 26.

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No Brasil, a noção de autor ganha inflexão ao ser vinculada aos novos rumos

assumidos pelo cinema brasileiro, ao se fazer moderno, isto é, quando reivindicou uma forma

própria, endógena, de produzir filmes que fotografassem, sem retoques, a realidade do País,

assumindo um papel de sujeito na produção cultural. É nesse contexto que deve ser entendida

a argumentação que fundamenta o moderno cinema brasileiro.

A identificação da produção desse nosso moderno cinema foi indicada por Paulo

Emílio Salles Gomes5, em sua defesa da necessidade de se construir uma “cara própria” nos

filmes brasileiros:

Não somos europeus nem americanos do norte, mas destituídos de cultura original, nada nos é estrangeiro, pois tudo o é. A penosa construção de nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro6.

Acatando-se os argumentos de fundamentação do cinema moderno brasileiro, a

trajetória crítica pavimentada por Paulo Emílio remete, necessariamente, à obra de Nelson

Pereira dos Santos, por entender ser ele o autor que, com meio século de produção, é o mais

representativo da aventura do cinema brasileiro e que, em seu caminho pessoal, expôs as suas

mazelas e os seus acertos com mais intensidade. Fundindo-se à historiografia do nosso

cinema, coloca-se em simbiose com as suas experiências: presenciou o surgimento da Vera

Cruz, assistiu ao apogeu das chanchadas, participou do Cinema Novo, mergulhou na

contracultura, adaptou Nelson Rodrigues, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos e Jorge Amado,

buscando encontrar um cinema popular autêntico nas representações do povo brasileiro.

Outro aspecto fundamental para qualquer abordagem que se faça à cinematografia

deste cineasta, principalmente se a tentativa é progressiva, indicando o início da sua atuação, é

extraído também do texto de Paulo Emílio: o sentido de independência do nosso cinema que

na cronologia demarcadora do seu desenvolvimento é apresentado como antecessor e pista

luminosa da noção de autoria. Chamou-se “independente” o movimento cinematográfico

surgido no Rio de Janeiro e em São Paulo, na década de 1950.

Para compreender a configuração que o termo “independente” suscita, e como Nelson

Pereira dos Santos7 vincula-se a ele, é necessário recuperar, com a brevidade própria de um

atalho, a trilha percorrida pelo cinema brasileiro.

5 Crítico, ensaísta e professor de Cinema da USP que teve intensa atuação em defesa do cinema brasileiro. 6 Paulo Emílio Salles GOMES. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, p.88. 7 Cf. Marília da Silva FRANCO. Rio, 40 Graus e o Cinema Independente. Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade de São Paulo/ECA. São Paulo, 1979, 145p.

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O cinema chegou ao Brasil no fim dos oitocentos, imediatamente após a sua

instauração nos centros de maior progresso, perdurando até hoje o seu esquema de

sustentação baseado na dinâmica da relação entre produção, distribuição e exibição. Apenas

na primeira década do século passado houve uma certa integração desses pontos e a

triangulação faz-se equilibrada. A partir de 1912, com a instalação, em maior escala e

definitiva, de distribuidoras e exibidoras estrangeiras, os vértices desse triângulo sofrem uma

rachadura, nunca mais corrigida, descaracterizando a imagem triangular perfeita. A produção,

sem conexão com a distribuição e exibição, que, paralelamente, progridem e se fortalecem,

tenta a sua afirmação sem a sustentação dos outros dois vértices e é entregue a sua própria

sorte.

À margem do circuito comercial, a produção cinematográfica continuou, seguindo

duas tendências na sua forma de consolidação, estruturando-se em pequenas e grandes

empresas. A pequena é decorrência da atomização que resulta da ocupação do mercado pelo

filme estrangeiro e é perpetuada até hoje. O outro modelo é o da grande empresa e teve na

Vera Cruz8 o seu ponto de inflexão dessa tendência. Diferentemente da pequena empresa,

cujo formato resulta da situação do mercado, esse empreendimento não está colado à

realidade brasileira e volta-se para um modelo de importação fundado na mimese, em que o

modelo ideal vem de fora e o padrão é fornecido pelo cinema internacional.

Jean Claude Bernardet promove uma síntese, contribuindo para entender o fenômeno:

A Vera Cruz, estudada por Maria Rita Galvão, é o ponto máximo dessa trajetória. Ela chega a produzir 17 filmes, mas já para acabar o primeiro, ela precisa de auxílio financeiro do Banco do Estado de São Paulo, pois suas disponibilidades foram gastas na infra-estrutura, na contratação de técnicos estrangeiros (para dar o tal padrão internacional). E os filmes prontos, ela não tem outra saída senão entregá-los às distribuidoras que dominam o mercado, quer dizer, às americanas9.

Com esses problemas, a Vera Cruz e as outras grandes empresas exaurem seus

modelos no início dos anos 1950. É nesse contexto que emerge o Cinema Independente, um

movimento de ruptura, que se insurge contra a glorificação do cinema de estúdio e tem como

8 A COMPANHIA CINEMATOGRÁFICA VERA CRUZ (1949-1954), empresa que tinha como propósito fazer de São

Paulo o maior centro de cinema da América Latina, dirigida por Alberto Cavalcanti, foi a principal tentativa de implantar uma indústria cinematográfica no Brasil, baseada no sistema dos estúdios. Há tentativas anteriores, como a CINÉDIA e a ATLÂNTIDA , mas a VERA CRUZ é a empresa mais ambiciosa e moderna que conta com os recursos da burguesia paulista. Cf. Maria Rita GALVÃO. Burguesia e cinema: o Caso Vera Cruz. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981. 9 Jean Claude BERNARDET. Cinema Brasileiro; proposta para uma história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 89.

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seus grandes articuladores Alex Viany e Nelson Pereira dos Santos. É Viany quem esclarece

as diretrizes desse movimento:

Os primeiros vagidos desse movimento de renovação começaram a ser entreouvidos no início da década de 1950, quando um grupo de cineastas jovens desfechou uma ofensiva em duas frentes: numa contra o cosmopolitismo oco das produções mais pretensiosas, que procuravam tardiamente importar os padrões de uma Hollywood em decadência; noutra, contra o populismo falso das desleixadas comédias musicais a que se deu o nome de Chanchadas10.

É a partir da compreensão do quadro do cinema brasileiro da época, naquele momento

em que a aplicação do padrão importado desmorona, que se chega a um entendimento acerca

do Cinema Independente. Fundamentalmente, é o cinema feito pelos pequenos produtores, em

oposição ao cinema das grandes empresas. Porém, cabe uma ressalva: nem todo pequeno

produtor é, necessariamente, independente. Para adquirir o estatuto de independente, um filme

deve ser qualificado por um conjunto de características que, via de regra, não têm a ver com o

seu modelo de produção. Essas características que lhe conferem tal distinção são,

basicamente, temática brasileira, visão crítica da sociedade e aproximação da realidade

cotidiana do homem brasileiro.

Quem oferece a versão mais resumida da definição de Cinema Independente é Nelson

Pereira dos Santos, em entrevista concedida a Maria Rita Galvão, publicada em Burguesia e

Cinema: o caso Vera Cruz:

No fundo, resumindo, o que a gente propunha era um cinema livre das limitações do estúdio, um cinema das ruas que tivesse um contato com o povo e seus problemas11.

Ele é tomado como encarnação do próprio Cinema Independente, na ocasião em que

Roberto Santos complementa o seu conceito, em entrevista no livro acima citado, na qual

atribui a Rio, 40 Graus as características que lhe confere a condição de filme emblemático do

movimento:

Falar em cinema independente é falar em Rio, Quarenta Graus. Porque foi o primeiro filme daquela fase que teve na sua origem mais um componente fundamental do que seja a independência na produção cinematográfica: o fato de se achar a pena correr o risco de concretizar uma idéia sem que a

10 Alex VIANY. Introdução ao Cinema Brasileiro. Rio de Janeiro: Alhambra: Embrafilme, 1987, p.149. 11 Cf. Maria Rita GALVÃO. Op. Cit. p.205.

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coisa esteja de algum modo assegurada [...] O Nelson não tinha dinheiro, nem estúdio, nem equipamento, nem financiador, não tinha nada [...] O equipamento foi cedido [...] Os atores foram contratados para receberem quotas de participação no hipotético rendimento que o filme desse [...] isso é o cinema independente em estado puro 12.

Distinguem-se, nessas citações, diferentes eixos de definições cabíveis ao Cinema

Independente. São eles de ordem econômica, política e estética. Na esfera econômica, a

realização de filmes liberta-se do esquema tradicional da grande indústria, buscando a solução

alternativa na pequena produção.

Esse pensamento reflete-se em um trecho da tese apresentada por Nelson Pereira dos

Santos no I Congresso Paulista do Cinema Brasileiro, em 1952:

Mas que quer dizer cinema brasileiro livre e independente? Significa, principalmente, a superação dos problemas de ordem econômica, originados pela situação de dependência da economia brasileira; significa o rompimento desses liames; significa a liberdade de produção, a remoção de todos os obstáculos que impedem a indústria cinematográfica brasileira de solidificar-se; significa, enfim, que a maior produção para o mercado interno seja a produção nacional. O cinema brasileiro tornar-se-á livre e independente no dia em que, ao invés de um filme brasileiro para oito programas de fitas estrangeiras, se faça a colocação, em mercado, da proporção inversa13.

Pode-se extrair da fala de Nelson o sentido da necessidade de superação da limitação

econômica para se chegar à conquista do mercado, já criado e voltado para o filme estrangeiro.

As afirmações de ordem política e estética são imbricadas, justapõem-se e dão conta da

ânsia de se ver na tela a realidade do País, numa abordagem artística crítica e original,

12 Id, ibid., p.214. 13 Desde a década de 1930, congressos, mesas-redondas, encontros se constituíram importantes fóruns de discussão e reivindicação no cinema brasileiro. O I CONGRESSO PAULISTA DO CINEMA BRASILEIRO teve sua sessão de abertura em 15/04/1952, motivado pela movimentação no âmbito do ambiente cinematográfico que ocorre naquele período, principalmente pela encomenda feita pelo Estado ao cineasta Alberto Cavalcanti para o estudo e redação de uma proposta de criação de um Instituto Nacional de Cinema (INC). “Foram apresentadas 36 teses no segundo dia do Congresso. Desse conjunto, algumas delas trataram da distribuição e financiamento do filme brasileiro. Um segundo bloco reuniu teses variadas sobre o trabalho do ator, o argumento no cinema brasileiro, a formação de mão-de-obra técnica nacional e a criação de escolas de cinema. Num terceiro grupo estavam as propostas de definição de filme brasileiro, obtenção de medidas protecionistas e sindicalização. A tese vitoriosa sobre a definição do filme brasileiro afirmava que ele deveria ter 100% de capital nacional, respeito à lei dos dois terços dos trabalhadores nacionais em cada produção, diálogos, roteiro, estúdios e processamento em laboratórios brasileiros. A discussão da sindicalização fez surgir imediatamente a ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE CINEMA, de vida efêmera. O conteúdo do filme brasileiro deveria ser eminentemente nacional, com a criação de histórias que tocassem de perto o espectador, sendo a parte técnica menos importante nesse setor” (RAMOS e MIRANDA, 2000, p.151-152). Sobre o assunto, conferir também Fernão RAMOS. História do Cinema Brasileiro. São Paulo: Art Editora, 1987, p.278-280.

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perseguindo a tentativa de aproximação do autor cinematográfico ao cotidiano do homem

brasileiro.

O termo “autor” originalmente foi introduzido no Brasil pelo teórico francês Henri

Agel, através do artigo intitulado Qual é o autor do filme? publicado na Cena Muda n°40, Rio

de Janeiro, 04/10/1949, no qual ele afirma: “um filme é feito para ser visto, como um livro é

feito para ser lido [...] O autor só pode ser aquele que faz as imagens”.

A idéia de autoria fora difundida no Brasil a partir dessa época, mas não houve

nenhuma discussão a respeito das posições lançadas por Agel. O assunto não interessou a

críticos nem a cineastas. A palavra autor era empregada para designar o roteirista e muito

raramente surgia como sinônimo de diretor, realizador ou cineasta14.

Na ambiência desta temática, não se permite esquecer que a conceituação de autor15

foi revigorada pelos jovens críticos da revista francesa Cahiers du Cinema 16 que conferiram

ao conceito uma conotação política que resultou na expressão “política de autor”17. Através

dos Cahiers du Cinema, essa proposição torna-se célebre nos anos 1950, provocando uma

imensa repercussão mundial, pela primeira vez, alguns diretores foram considerados os

responsáveis absolutos pelos seus filmes. Esses críticos, que em seguida assumem a condição

de realizadores, disseminam por diversos países, a partir da matriz francesa, um debate acerca

do cinema, no qual postulam para o autor cinematográfico um lugar diferenciado dentre as

atividades que edificam a construção fílmica. Sobrepondo-se aos demais membros da equipe,

o autor conformava-se na figura do diretor e conferia ao cinema a condição de arte.

Na França, onde foi desenvolvida a concepção contida na expressão “política de

autor”, o autor “é um cineasta que se expressa, que expressa o que tem dentro dele”18. No

entanto, não é somente no âmbito da subjetividade que se dá a definição desse termo. Os

14 Ver Jean Claude BERNARDET. O autor no cinema – a política dos autores: França, Brasil anos 50/60. São Paulo: Brasiliense; Edusp, 1994, p.68. 15 Na fase anterior, nos anos 1940, a palavra “autor” era relativamente encontrada em revistas e jornais franceses especializados em cinema, e ainda estava em busca de si mesma. O crítico Marcel L´Herbier, no artigo O papel essencial do autor de filme (1943), tenta esclarecer que o autor não é quem escreve a história (argumento e roteiro do filme), mas sim quem realiza: o diretor. Segundo o crítico, o roteiro não passava de uma bússola, pois se o realizador não inventar a imagem, a palavra fica palavra e o filme não nasce. Era o prenúncio do conceito de mise-en-scéne, que se tornaria um dos pilares da política dos autores nos anos 1950. 16 A mais influente publicação crítica do cinema. Lançada por André Bazin e Jacques Doniel-Valcroze em 1951, deu a Bazin a base que ele precisava para criar uma corrente crítica do cinema. Agrupou ao seu redor os jovens críticos responsáveis, a seguir, pela criação da Nouvelle-Vague: Truffaut, Godard, Pierre Kast, Eric Rohmer, Claude Chabrol, entre outros. 17 Os “Jovens Turcos”, como eram chamados por André Bazin, movimentaram a área cinematográfica ao difundirem o polêmico manifesto sobre a “política de autores”. 18 Jean Claude BERNARDET. Op.cit. p.23.

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adeptos dessa política, apadrinhados pelo teórico André Bazin19, vão buscar também a

expressão pessoal em filmes de produtores, usando o conceito de autor como uma forma de

apoio partidário aos realizadores americanos, num claro mecanismo de oposição ao tradicional

cinema europeu.

No Brasil, este debate chegou pouco tempo depois e o conceito de política de autor

será adicionado ao de Cinema Independente, complementando-o, com maior ou menor

clareza. Mais uma vez, Nelson Pereira dos Santos está à frente dessa empreitada. É o que se

pode inferir na colocação de Roberto Santos quando acrescenta um componente fundamental

à equação do Cinema Independente, componente esse também fundamental para a expressão

cinematográfica de Nelson Pereira dos Santos, a autoria:

Produção independente, não mais em estado puro, mas associada a diferentes esquemas de produção que garantissem a sua viabilidade econômica e no mesmo tempo a autonomia autoral num grau suficientemente grande para que se pudesse falar em cinema de autor20.

Autonomia autoral que é imediatamente confirmada por Glauber Rocha, que afirma:

Muitos jovens se libertaram do complexo de inferioridade e resolveram que seriam diretores de cinema brasileiro com dignidade, descobriram também, naquele tempo, que podiam fazer cinema com uma câmera e uma idéia21.

Com essa afirmação, Glauber pretendia que fosse inaugurado um novo momento

para o filme brasileiro que não poderia estar atrelado a outros modelos de cinematografias,

pois não precisávamos permanecer no patamar inferior, sendo necessária uma tentativa de

prática contrária a tudo o que se processou em outros países. Essa era a sua preconização para

que saíssemos o mais breve possível da trágica condição colonial em que estávamos, e que

nos fragilizava no embate com outras cinematografias.

Dois artigos publicados no espaço do exercício crítico, em jornais em 1961, com

intervalos de um mês entre eles, respectivamente, por Paulo Emílio Salles Gomes22 e por

Glauber Rocha23, contextualizam a discussão no âmbito da cinematografia brasileira.

19 André Bazin (1918-1958), teórico mais importante do cinema francês foi o primeiro a questionar a tradição formativa do cinema e a defender uma teoria e uma tradição cinematográfica baseadas na crença e no poder das imagens mecanicamente registradas e não no poder aprendido do controle artístico de tais idéias. Não há um livro seu sistemático sobre teoria. As idéias de Bazin, sob forma de ensaios, biografias, ocorreram in loco, ou seja, da experiência junto aos realizadores e críticos como parte de um diálogo implícito com este cineasta ou crítico. 20 Maria Rita GALVÃO. Op.cit. p.215. 21 Glauber ROCHA. Op. Cit., 2003, p.106.

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Paulo Emílio Salles Gomes, em Artesãos e autores, usa como exemplo dois cineastas

brasileiros: Carlos Coimbra (A morte Comanda o Cangaço, 1960) e Trigueirinho Neto (Bahia

de Todos os Santos, 1960) para ilustrar as suas considerações sobre as possíveis diferenças

entre os conceitos, mostrando a existência de um distanciamento no sentido de cada

expressão. A partir do reconhecimento da arbitrariedade contida na classificação, mas que

oferece certas vantagens expositivas, apesar de extremamente simplificadoras, e se usadas

com devidas precauções, poderiam instaurar uma ordem hierárquica nas funções

cinematográficas. Quais seriam, então, as diferenças entre autor e artesão? Segundo Paulo

Emílio,

O artesão – mesmo quando possui autoridade no esquema de produção –, é um homem com profundo espírito de equipe, modesto participante de uma obra de expressão coletiva, ao contrário do autor, que procura dar relevo a sua personalidade. Este último é mais moderno, pois participa da concepção individualista, relativamente recente, da obra de arte. O artesão aproxima-se mais dos fabricantes de epopéias e catedrais24.

Nesse sentido, seria o artesão mais próximo do consenso coletivo da criação

cinematográfica, enquanto o autor conservaria a sua privacidade criativa construindo

isoladamente: a idéia, o argumento, o roteiro e a direção, e concluiria o produto montando o

seu filme.

Ainda é Paulo Emílio quem fortalece o entendimento sobre a noção de artesão, ao

clarificar que essa denominação não se restringe somente aos que exercem, no cinema, a

função de diretor, mas tem um sentido mais abrangente e elástico; esse termo é perfeitamente

aplicável a produtores, roteiristas, fotógrafos e montadores, entre outros encarregados de

tarefas técnicas, e, nesse caso, “a associação automática entre o filme e o nome do diretor

significaria apenas uma convenção”, embora ressalte que “em qualquer caso, certo tom do

filme depende da predominância do artesão e do autor”. Dessa forma, a distinção, entre o

artesão e o autor, transparece muito mais na forma e no conteúdo do produto fílmico:

A obra de artesão tende a ser social, não no sentido de crítica revolucionária ou reivindicadora, mas como expressão de idéias coletivas já estruturadas. A

22 Artesãos e autores, publicado originalmente no Suplemento Literário do Estado de São Paulo em 14 de abril de 1961 e posteriormente em Crítica de cinema no suplemento literário, vol. II. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, p.333-340. 23 O processo cinema, publicado originalmente no Diário de Notícias, em 6 de maio de 1961, e posteriormente reeditado em Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac & Naif, 2004, p. 43-50. 24 Op. cit. p. 333.

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autoral tem uma inclinação psicológica e sugere uma natureza humana de conflito. O filme artesanal coaduna-se melhor nos moldes clássicos, ou acadêmicos, o de autoria é romântico ou vanguardista25.

Segundo Glauber, o artesão encarregado de elaborar a mercadoria visual no modelo

clássico ou acadêmico seria o indivíduo dotado da possibilidade de manusear um rol de

elementos capazes de imprimir diferentes graus de valores às criações artísticas, pelo emprego

dos meios apropriados de expressão, tendo em vista determinados padrões estéticos. Esse

“artesão é um objeto de atração pública”, e quando ligado diretamente à indústria

cinematográfica, em que produtores investem milhões, há necessidade de “convertê-lo em

monstro sagrado”.

No trânsito das operações próprio ao cinema, o sistema de produção incorporou não

somente artesões, mas, também, autores, mesmo os ligados as correntes de vanguarda. Na

França os jovens cineastas atrelados a Nouvelle Vague passaram a ser os astros. Na Itália, os

neo-realistas Federico Fellini. Michelangelo Antonioni, Roberto Rossellini, Vitório De Sica e

Luchino Visconti ascenderam à fama e alcançaram prestígio e popularidade, antes concedidos

somente aos atores. Os diretores americanos Hitchcock, Ford, Welles, Wyler, entre outros,

foram elevados à categoria de autores, causando muitas controvérsias e conferindo estatuto à

“política de autores”, que se tornou uma corrente do pensamento cinematográfico dos anos

1960, traduzindo um “novo modo de fazer os filmes e, simultaneamente, uma nova atitude de

fazer frente ao cinema”, afirma o historiador Antonio Costa26.

Diante da plêiade de nomes tão díspares ordenados pelo sistema de produção,

desfigurando, em parte, o conceito de autor Glauber se contrapôs a “política dos autores”

proposta pelos teóricos franceses através do Cahiers du Cinéma, afirmando:

Desde o Neo-Realismo, e mesmo antes, o cinema francês [...] vem substituindo a vedete do programa publicitário. Com o advento da Nouvelle-Vague, todo um plano tradicional foi subvertido [...] Estava oficialmente estabelecida à corrupção social do criador de filmes, artesão que se antes era obscuro, agora passava ao exagero do compromisso com as bilheterias.27

De acordo com Glauber a industrialização cinematográfica era fator de impedimento à

criação e a liberdade poética que fora proposta de início, agora o que se via era o sistema

25 Id. p. 334. 26 Cf. Antonio COSTA. Compreender o cinema. Rio de Janeiro: 1987, p.116. 27 Glauber ROCHA. O processo cinema. In: Op. Cit., p.44.

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produtivo, segundo a sua ótica, corrompendo os autores e seriam poucos os que lutavam para

manter a completa independência.

Hitchcock, Samuel Fuller, Richard Brooks, Nicholas Ray, Martin Ritt, Richard Quine e quase todos os diretores americanos da moda, diretores que a exceção de Hitchcock, não possuem o menor sentido criativo (ou não podem demonstrá-lo). São apenas artesões contratados sem idéias, mas, lucrativamente, portadores de certas características pessoais capazes de servir para melhor faturar novos padrões. Este mínimo de dignidade permitido significa muito dentro do complexo industrial. Qual o autor moderno americano livre do pecado, se mesmo a esperança Stanley Kubrick mergulhou numa superprodução como Spartacus?28

Qual seria então o conceito de autor moderno, se o crítico Glauber considerava a

atitude como a de Stanley Kubrick de realizar uma superprodução uma ação totalmente

negativa. Essa indagação aponta para a inegável modificação que a política de autor sofreu, a

partir da sua origem francesa ao ser inserida por Glauber Rocha, no contexto contemporâneo

do cinema brasileiro.

Passado alguns anos do calor da discussão inaugural, Glauber Rocha metodiza o

conceito de autor para situar o “cinema brasileiro como expressão cultural transformadora”,

tendo o intuito de evidenciar os seus impasses e incorporações:

Se o cinema comercial é a tradição, o cinema de autor é a revolução. A política de um autor moderno é uma política revolucionária: nos tempos de hoje nem é mesmo necessário adjetivar um autor como revolucionário, porque a condição de autor é um substantivo totalizante29.

Sustenta-se nesta proposição o fato de que a “política de autores” não foi elaborada

de forma pragmática nem programática, não apresentando um manifesto ou uma declaração

coletiva dos seus criadores e pode ser perfeitamente reapropriada, acrescida ou reciclada por

contextos e linhas de pensamentos, diversos dos seus heterogêneos formuladores. Glauber ao

perceber a estrutura porosa e fluida do conceito estabelece a sua própria construção da política

de autor, não se limitando à fácil aclamação do realizador como autor principal de um filme,

implica, antes de tudo numa operação de decifrar e revelar esse autor quando ele exerce,

principalmente, um papel antagônico ao sistema produtivo tradicional.

28 Id. ibid., p. 45. 29 Id. ibid., p.36.

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Dentro do quadro de formação de um cinema que se pretende moderno30, uma

diversidade de ações ocorre simultaneamente, no mais completo espelhamento da montagem

proposta por Eisenstein31, resultando no movimento do Cinema Novo, elaborado sob o sopro

da bruma dos novos cinemas que indicam uma pluralidade de tendências na sua base e a

filiação primeira, já presente na manifestação inicial do Cinema Independente, o remete ao

neo-realismo32.

O Cinema Novo, que será objeto de um verbete nesta tese, ficou reconhecido como o

movimento de renovação do cinema brasileiro que surgiu no início dos anos 1960, quando

estavam em vigor as promessas de transformações sociais e de construção democrática

geradas com o fim da Segunda Guerra. Naquele momento, não só no Brasil, estava em pauta

uma agenda que contemplava uma diversidade de questões, impulsionando a investigação

cinematográfica acerca de todo um universo antes praticamente excluído das telas. Trata-se do

momento em que a história do cinema demandava o estabelecimento de uma modalidade de

representação na qual começam a ser definidos diferentes encaixes, para demarcar os termos

de uma cinematografia que acolhe tanto o neo-realismo italiano quanto os cinemas

emergentes dos países periféricos, todos ligados por um fio condutor da pedagogia de uma

nova percepção, em constituição, disposta a reelaborar os pressupostos da imagem

cinematográfica nas suas repercussões com o mundo contemporâneo.

É nesse cenário que se reivindica para Nelson Pereira dos Santos uma noção de autoria

alinhada com a precisa definição de Bazin, segundo a qual:

A política dos autores consiste, resumidamente, em eleger dentro da criação artística o fator pessoal como critério de referência para em seguida postular sua permanência e incluir o progresso de uma obra à seguinte33.

30 Posteriormente, Ismail Xavier irá balizar o conceito do cinema brasileiro moderno, em que, a partir de uma reflexão feita em 1995, no Festival do Cinema Jovem em Turim, tendo como referência três textos formulados anteriormente, imprime a visão do conjunto do cinema brasileiro pautado pela experiência do Cinema Novo. Cf. Cinema Brasileiro Moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001. 31 Serguei Eisenstein (1898-1948), cineasta-teórico. No fim do período mudo do cinema, desenvolve um tipo de montagem que dá acesso na forma sensível, visual, a idéias abstratas, tornando-as complexas e carregadas de sentido evocativo. 32 “Movimento cinematográfico italiano surgido durante a Guerra e oriundo, a um só tempo, das escolas realistas francesa (Renoir, Clair, Grémillon) e, de modo mais amplo, européia (Pabst), e da reflexão crítica, na própria Itália, notadamente em torno de Pasinetti, Bárbaro, De Sanctis, do Centro Sperimentale e da revista Cinema”. Cf. Jacques AUMONT e Michel MARIE. Op. Cit. p.212. 33 “La politica de los autores consiste, em resumidas cuentas, em eleger dentro de la creación artística el factor personal como critério de referencia, para después postular su permanência e incluso su progreso de uma obra a la siguiente”. Cf. Antoine de BAECQUE, (org). La política de los autores - Manifestos de una generación de cinéfilos. Barcelona: Buenos Aires: Paidós, 2003, p.101.

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Essa definição confere a marca da autoria que aponta para um estilo e uma linha de

atuação que rompem com injunções impostas, justapõem-se à dinâmica da história e acatam a

intervenção do cineasta enquanto parte atuante dessa história, em sua alimentação e

transformação.

Enfatiza-se que a sua atuação precede a agenda do Cinema Novo, vindo desde o

início dos anos 1950 quando assumiu a bandeira da independência e denúncia da invasão

indiscriminada do nosso mercado pelo produto estrangeiro.

Em consonância com a bruma anunciadora das mudanças, Nelson Pereira dos Santos

afirmou-se como autor propondo duas frentes inovadoras no cinema brasileiro: a luta contra a

presença do mimetismo em nossas películas e o compromisso expresso com a realidade do

País, com a “verdade brasileira” em estado de revelação. Transformando o cinema em campo

de luta ideológico e estético, apropriou-se da história e exerceu a política de autor com uma

“visão livre, não-conformista”, com a pretensão de criar “mundos próprios e originais”34.

34 Glauber ROCHA. O processo cinema. In: Op. Cit.

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de Bahiade Bahiade Bahiade Bahia

Do comecinho, do comecinho?... Eu conheci a Bahia com Jorge Amado. É bom lembrar que eu era paulistinha. Do Brasil, o máximo que eu conhecia era o rio Tietê, onde eu aprendi a nadar. E você veja tive um excelente professor de português, que abriu a minha cabeça para a literatura brasileira, a literatura de língua portuguesa. Mas, o Jorge Amado é que tinha uma coisa especial, que era o seguinte. O Jorge Amado era proibido na família, porque tinha cenas de sexo, as maravilhosas cenas de amor. Muito liberal o livro. Vamos lembrar que isso é nos anos 40. Seus pais ainda não tinham nascido... E, além disso, ele era proibido pela polícia, porque os heróis do Jorge Amado e o happy-end do livro de Jorge Amado eram do Partido Comunista. Os jovens iam parar no Partido Comunista e tava tudo resolvido, todo mundo feliz. Então, a Bahia que eu conheci primeiro foi essa, a Bahia de Jorge Amado. Uma vez eu disse isso pra ele aqui, caminhando pelo Mercado Modelo, que ele era meio dono, né? Ficava fiscalizando se as coisas estavam no lugar, se tava tudo certinho... Como é Jorge, você inventou tudo isso? – ele disse – a minha Bahia nunca existiu. A Bahia que o Jorge Amado escreveu, ele idealizou [...] mas enfim.

Agora, essa Bahia eu fui conhecer diretamente com os meus próprios olhos na campanha nacional pela liberação do Rio 40 Graus.

Nelson Pereira dos Santos 35.

Ao ser indagado sobre como se deu a sua aproximação com a Bahia, Nelson revelou

que o seu primeiro contato se deu pela via da literatura de Jorge Amado. Esse é o registro

simbólico do seu imaginário. No entanto, seu primeiro contato efetivo com a cena cultural

baiana ocorre na campanha de liberação de Rio, 40 Graus. O filme foi liberado em agosto de

1955 pela Censura Federal e interditado por ato arbitrário do Coronel Geraldo de Menezes

Cortes, Chefe do Departamento Federal de Segurança Pública, sob a acusação de que, em

razão de sua técnica perfeita, havia sido feito por comunistas tchecos36. A técnica, a ausência

de trabalhadores, a temperatura alta, a organização espacial do Rio de Janeiro, foram

questionadas e resultaram na censura do filme.

35 Entrevista concedida a Marise Berta, em set./2004. 36 Helena SALEM, em Nelson Pereira dos Santos, o sonho possível do cinema brasileiro, relata com detalhes o episódio em que Nelson, sem a presença de seus advogados, apresenta o filme a Cortes.

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O processo do filme acompanhava a movimentação e o agravamento da situação

política do País (eleição de Juscelino e a tentativa de golpe da direita). A censura ao filme

provocou uma campanha em sua defesa, capitaneada pelo jornalista Pompeu de Sousa, líder

da comissão de defesa composta por jornalistas, escritores, artistas e intelectuais. A campanha

para liberar o filme se constituiu numa das mais amplas e importantes mobilizações da

intelectualidade já realizados no Brasil. Saindo do Rio de Janeiro, sua maior caixa de

ressonância, após ato organizado por Pompeu de Sousa na Associação Brasileira de Imprensa

(ABI), o movimento resultou em um memorial endereçado ao Chefe de Censura e Diversões

Públicas e se estendeu a outros estados. A defesa de Rio, 40 Graus tornou-se uma bandeira da

frente antigolpista. Sobre a atuação de Pompeu de Souza e o momento político, Nelson

esclarece:

Ele tava empenhado na campanha eleitoral do Juscelino. 1955 é um ano político por excelência, muitos acontecimentos em pouco tempo. [...] essa campanha que o Pompeu de Souza começou foi contra o chefe de polícia, foi ele que foi repreender o filme. O Pompeu organizava praticamente todos os dias, um dia sim, um dia não, uma sessão do filme. E convidava intelectuais, políticos, pessoas com poder de comunicação grande, pra dar opinião sobre o filme. Saía na primeira página do Diário Carioca. [...] Além disso, os governadores do PSB, que era o partido que apoiava o Juscelino, convidaram o filme37.

No jornal Imprensa Popular, editado pelo PCB, Jorge Amado publicou um artigo

contundente intitulado “O caso de Rio, 40 Graus”, onde debatia a situação política do País,

inserindo a proibição do filme em um quadro mais amplo, apontando “o desejo de liquidar

definitivamente nosso cinema”. Em seu argumento, Amado chamava a atenção para a falta de

filmes nacionais, o que permitia aos produtores americanos “pôr abaixo” a lei que obrigava a

exibição de “uma película nacional para oito estrangeiras”, assim como reiterava o propósito

de “reduzir ao silêncio os homens da cultura”, a fim de impedir que eles fossem “os

intérpretes da vida do país”.

Na Bahia, a circulação do filme censurado foi articulada por Guido Araújo38, que

compunha a equipe de produção, e pelo Clube de Cinema da Bahia, sob a liderança de Walter

da Silveira39, resultando em sua exibição no final de novembro de 1955, nos dias que se

seguiram ao contragolpe liderado pelo General Lott, que abortou, naquele momento, o golpe

37 Entrevista concedida a Marise Berta, em set./2004. 38 Guido Araújo, cineasta e professor universitário, a quem é dedicada a letra G deste trabalho. 39 Advogado, crítico de cinema, fundador do Clube de Cinema da Bahia.

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de direita que, no entanto, se efetivaria em 1964. A memória de Nelson nos ajuda a compor

esse quadro:

Então eu vim pra Bahia a pedido do governador da Bahia. E era o filme proibido pelo chefe de Polícia Federal. Aqui teve uma sessão organizada pelo Walter da Silveira, com a presença do governador, de deputados, desembargadores [...] Teve a tentativa de golpe, teve o contragolpe, aquelas tentativas todas e o Rio 40 Graus misturado a essas histórias. Tanto assim que quando veio o contragolpe do general Lott, um jornal do Rio botou em primeira página assim: ‘Cortes a 40 graus’. O Cortes era o chefe de polícia que proibiu. Mas enfim, aí eu conheci a Bahia, aqui, nessa época. Guido Araújo, que era assistente no filme, articulou muito. O filme foi também exibido no Distrito Naval. É muito curioso isso, o filme sendo exibido ali. Era uma coisa curiosa.

E eu me lembro do cineclube do Walter da Silveira. Aliás, eu já conhecia o Walter dos Congressos de Cinema Brasileiro, em 52, no Rio; depois em 53, em São Paulo [...] trabalhamos juntos nos Congressos. Era ele e Alex Viany, os dois motores, as duas pessoas que mais faziam intervenções, que mais propostas apresentavam. E aqui, o Walter, eu nunca me esqueço do primeiro vatapá que eu comi na casa do Walter. Se eu não me engano foi o primeiro vatapá de verdade que eu comi. Nossa Senhora, inesquecível aquilo40.

O fato de Guido Araújo ser baiano, ter atuação na cena cinematográfica e

freqüentado as sessões do Clube de Cinema da Bahia favoreceu a movimentação em torno das

exibições do filme em Salvador. Nelson não conseguiu chegar a tempo da primeira exibição

devido à interdição dos aeroportos – ele viajaria exatamente no dia em que o contragolpe foi

dado. Essa é a informação colhida em depoimento de Guido Araújo. Nelson reforça, em seu

depoimento, que naquele dia, sob a expectativa de a direita assumir o comando político do

País, que ele estava mobilizado para garantir a própria segurança e a de sua família, pois havia

recebido uma ligação telefônica informando que a sua prisão seria imediata.

Afastada a ameaça golpista, as sessões ocorreram sob a euforia da distensão. O filme

foi exibido em várias sessões, para os diversos segmentos da sociedade baiana. A Câmara de

Vereadores de Salvador e o Clube de Cinema da Bahia pronunciaram-se em favor da

liberação do filme.

Em matéria de 19/11/55, o Diário Carioca estampou a seguinte manchete: “Confirma

sucesso em Salvador o Rio, 40°”, em que se relata a repercussão da campanha de

solidariedade em protesto contra a proibição e em prol da liberação do filme na cidade:

O filme foi apresentado, em quatro sessões seguidas, a “representantes dos três ramos das Forças Armadas, deputados, vereadores e intelectuais baianos

40 Entrevista concedida a Marise Berta, em set./2004.

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[...], confirmando todo o sucesso anterior”. O Sr. Lafaiete Coutinho, Secretário de Segurança da Bahia, ficou tão entusiasmado que decidiu estudar as leis da censura, chegando à conclusão preliminar de que elas são inconstitucionais”. A Câmara de Vereadores de Salvador “votou moção solicitando a liberação do filme para as telas baianas, e o Clube de Cinema lançou um manifesto com o mesmo fim”. Um debate entre os críticos, intelectuais e deputados, realizado na Rádio Cultura da Bahia, resultou na fundação da ADCB baiana41.

O envolvimento da intelectualidade e da crítica especializada de Salvador na

campanha é reiterado por Orlando Senna42, ao relatar como se deu a sua aproximação com

Nelson Pereira dos Santos:

Devido à proibição do Rio, 40 Graus. Porque todo mundo se envolveu nisso e etc... Eu já estava metido nessa época em jornalismo, já era jornalista, um jovem jornalista. E essa foi a primeira aproximação43.

Seguindo a cronologia imposta pelos fatos e relembrada pelo próprio autor, após a

realização de Rio, 40 Graus, produzido entre 1954-55 e lançado em 1956, e Rio, Zona Norte,

produzido e lançado em 1957, ele envolveu-se em atividades jornalísticas no Jornal do Brasil

e na realização de filmes documentais de caráter institucional. Documentou a construção da

estrada Rio-Bahia, ocasião em que conhece a cidade de Milagres, seus beatos e suas crianças

famélicas, cobertas de poeira, que irá reconhecer, posteriormente, na representação fílmica de

Glauber em Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro. Documentou, também, a seca

nordestina na região do São Francisco:

Fiz muita coisa, muitos documentários, e fiz um também que foi sobre a pavimentação da Rio-Bahia. Veja só, eu e o Hélio Silva descemos a estrada, parando em todas as obras de pavimentação. Era tudo igual, mas só que mudava o empreiteiro, tinha que filmar tudo de novo. E foi aí que nós descobrimos Milagres, tivemos a primeira visão de Milagres. As cavernas habitadas por pobres, aleijadinhos, cegos... Uma coisa incrível. Eles desciam pra pedir esmola. Era um ponto de parada naquela época. Hoje você imagina? A Rio-Bahia era sem asfalto. De Vitória da Conquista até Milagres não tinha nada. Era tudo terra. Milagres era uma parada de beber água, as pessoas desciam dos ônibus, sem falar nos paus-de-arara. Era terra pura. Você só via os olhinhos, quando sorria apareciam os dentes, tanta terra que era. Foi quando nasceu a idéia do Vidas Secas...44

41 Cf. Giselle GUBERNIKOFF. Op. Cit., p. 95. 42 Orlando Senna, Secretário do Audiovisual, cineasta e crítico de cinema. 43 Entrevista concedida em 10/07/2007. 44 Cf. Entrevista, Op. Cit.

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Circulando no Estado, mobilizado pela forte movimentação que alterava o ambiente

da região, vivencia o seu projeto de atualização histórica. Documentando a seca, constatava

que o Nordeste não poderia viver eternamente à mercê da formação de nuvens mais densas e

que uma intervenção estatal se fazia necessária. Documentando a construção da Rio-Bahia,

experimentava o vento anunciador das mudanças que alterariam o panorama do Estado e o

ritmo do seu crescimento.

A Bahia, a partir da década de 1950, está ingressando de forma “– progressiva, mas

decisivamente – na dança do capitalismo moderno”45. Pesquisadores46 têm dito que o Estado

afastou-se, de forma considerável, dos processos dinâmicos da economia nacional e mundial

no período que compreende o último quartel dos oitocentos até os meados do século passado.

Esse quadro começaria a ser revertido, afastando-se a ambiência depressiva e estagnada da

economia e indústria baianas, quando o movimento industrial brasileiro alcança o nordeste do

Brasil. Antônio Risério oferece a síntese da mudança na região indicando os seus vetores:

Resumindo, a expansão do capitalismo brasileiro para a região nordestina engendrou uma nova realidade baiana. A Petrobrás, a BR-324 (estrada Rio-Bahia), a construção da usina hidrelétrica de Paulo Afonso e a Sudene foram as peças fundamentais dessa transformação47.

Nessa travessia, vivendo experiências que o instigam a desvendar uma realidade

diferente da sua, Nelson Pereira dos Santos retorna à Bahia em 1959, dessa vez para filmar

Vidas Secas, baseado na obra de Graciliano Ramos. Inicia-se, então, a sua relação mais

efetiva com o contexto cultural baiano.

Nesse momento, não se pode deixar de levar em conta o movimento de renovação

cultural que a Bahia atravessava, destacando-se a existência de um surto de cinema, que ficou

conhecido como Ciclo do Cinema Baiano (1959-1962).

Esse movimento de agitação cultural, que fez com que a então província da Bahia

fosse transformada em um pólo de vanguarda modernista na cena cultural do país, foi

abordado em estudos de diversos autores48 cada um a partir da sua perspectiva e recorte.

45 Cf. Antônio RISÉRIO. Uma história da Cidade da Bahia. Rio de Janeiro: Versal Editores, 2004, p.513. 46 Cf. Paulo Fábio DANTAS NETO. Espelhos na penumbra: o enigma soteropolitano. Dissertação de mestrado apresentada à Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia. Salvador, Bahia, 1996. Em seu trabalho, o autor pontua a discussão através de um rico levantamento bibliográfico sobre a questão. 47 Apud Antônio RISÉRIO, Op. Cit., p.518. 48 Glauber ROCHA. Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac & Naif, 2004; Antônio RISÉRIO. Avant-garde na Bahia. São Paulo: Instituto Lina Bo e P.M.Bardi, 1995; Maria do Socorro SILVA CARVALHO. Imagem de um tempo em movimento: Cinema e Cultura na Bahia nos anos JK (1956-1961). Salvador: EDUFBA, 1999 e Nova onda baiana: cinema na Bahia (1958-1962). Salvador: Edufba, 2003; e Walter da SILVEIRA.

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“Avant-garde”, “Renascença Baiana”, “Nova Onda” são algumas das definições extraídas

desses estudos para nomear o período que temporalmente é situado entre os anos cinqüenta e

sessenta na “Cidade da Bahia”, antiga capital do Brasil.

Salvador se estabeleceu na década de 1950 como um dos extratos mais significantes

da vida cultural do País, vivendo um momento transformador. Foi ponto estratégico de novas

proposições culturais, a cidade como a quer Giulio Carlo Argan49, revelando o lócus

modelado pelo espírito daqueles que nela vivem.

Os elementos mais predominantes na concretização da afirmação dessa

sensibilização cultural baiana foram marcados por algumas frentes que se constituíram em

variados campos da cultura. Nessa perspectiva, destacam-se a atuação do Clube de Cinema da

Bahia, tendo à frente Walter da Silveira, e o papel assumido pela Universidade Federal da

Bahia como “abrigo e celeiro do ideário de uma cultura cosmopolita”50; referendada pela

presença de ilustres visitantes como, por exemplo, o filósofo Jean-Paul Sartre, o cineasta

italiano Roberto Rossellini51, entre outros.

Marco de entrada para a compreensão do período contemporâneo da Cidade da Bahia é

a agitação modernizante e modernista promovida pela Universidade da Bahia, no reitorado de

Edgar Santos. De modo destacado no cenário universitário brasileiro, a Universidade da Bahia,

entre os anos 1950 e 60, abre-se a um representativo fluxo de informações, processando uma

fina sintonia entre os movimentos culturais nacionais e internacionais que irão repercutir

vigorosamente sobre a sociedade e desembocarão, adiante, em movimentos que alterariam de

forma definitiva o panorama cultural brasileiro, a exemplo do Cinema Novo e da Tropicália.

O reitor Edgard Santos engendrou a criação da Universidade da Bahia a partir de

uma articulação entre os poderes econômico e cultural. Suas ações, imantadas por uma

concepção de vanguarda, apontam para o reposicionamento da Bahia no cenário brasileiro.

Era preciso revigorar a Bahia, instância primeira da nacionalidade, alimentá-la material e

espiritualmente através de uma ambiência universitária inovadora e criativa que se

História do cinema vista da província. Coleção Walter da Silveira, Vol. 1. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1978. 49 Argan concebe a cidade como um organismo que concentra em sua dinâmica diferentes esferas que possibilitam o seu desenvolvimento e que em meio às modificações conservam a sua essência. Cf. Giulio Carlo ARGAN. História da arte como história da cidade. Martins Fontes: São Paulo, 1998, p. 73/74. 50 Cf. Lindinalva Silva Oliveira RUBIM. O feminino no cinema de Glauber Rocha. Tese de doutorado apresentada à Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1999, p.25. 51 “A Bahia recebe, nesse período, visitantes ilustres. Em agosto de 1958, Roberto Rossellini, acompanhado pelo pintor Di Cavalcanti, vem conhecer a cidade do Salvador, para decidir se poderia incluí-la em filme que preparava sobre o Brasil. Seria um documentário ‘em cores’, baseado na obra de Josué de Castro, Geografia da fome, [...] Segundo o Estado da Bahia, Rossellini ficou ‘maravilhado’ com o que viu em suas visitas ao Sul e Nordeste do País. E mais: afirmava que o cineasta italiano ‘confessara’ seu desejo de ‘morar e morrer na Bahia’ ”. Cf. Maria do Socorro SILVA CARVALHO. Op. Cit. 1999, p.204-205.

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incorporasse ao desenvolvimento econômico regional em curso. No seu processo de

reinvenção, era bem-vinda a retomada da posição avançada da Bahia no horizonte da

sociedade brasileira.

Atuando como dínamo, abrindo caminho para o acesso da informação cosmopolita, a

Universidade da Bahia, através da atuação do seu reitor, abre suas portas e acolhe a avant-

garde européia em um franco diálogo com as linguagens artísticas. Promove experiências

singulares e únicas como a primeira Escola de Dança de nível superior no Brasil, importando

o talento da dançarina polonesa Yanka Rudzka, que orienta o curso sob a perspectiva da

dança moderna; projeta os Seminários de Música da Bahia, tendo convidado o músico

austríaco Koellreutter para organizá-lo e inaugura uma das primeiras escolas de Teatro de

nível universitário, para a qual convida Martim Gonçalves para assumir a direção. “As três

pupilas do senhor reitor, como se tornam conhecidas as escolas de arte, realizam uma grande

agitação artística na cidade”52. A bruma modernizante também sopra na direção das estruturas

acadêmicas já consolidadas no seio da Universidade Federal da Bahia, promovendo a

mudança e quebrando o rigor da prática acadêmica clássica. Esta é a situação que ocorre, por

exemplo, na Escola de Belas Artes, segundo o relato de Juarez Paraíso53: “A

internacionalização da arte moderna ocorre no final dos anos 1950 e início de 1960 na Bahia e

foi fundamental para a mudança da mentalidade na área artística”.

Corroborava para a consolidação da paisagem modernista no Estado a presença da

arquiteta italiana Lina Bo Bardi, convidada pelo governador Juracy Magalhães para dirigir o

Museu de Arte Moderna da Bahia. Dando as costas para o fascismo italiano, Lina Bo Bardi

vislumbrou naquele ambiente a possibilidade de processar a dialética entre a informação

cosmopolita e a realidade local, tendo como inspiração a utopia socialista.

A discussão cinematográfica foi capitaneada pelo Clube de Cinema da Bahia54,

fundado 1950. Seguindo o modelo francês, sua receita era gerada a partir de cota estipulada

entre associados. Sua agenda contemplava projeção de filmes artísticos, instalação de uma

biblioteca especializada, filmoteca, publicação de um periódico, promoção de cursos, debates

e conferências. Walter da Silveira atuava como provocador cultural – para ele a crítica era

uma forma de acesso ao cinema, e, em geral, antes de cada sessão, em princípio nas manhãs

de domingo, às vezes também sábado à noite, fazia um comentário sobre o filme exibido,

52 Cf. Antonio Albino Canelas RUBIM. Comunicação, mídia e cultura na Bahia contemporânea. Bahia Análise & Dados, v. 9, nº. 4. Salvador, BA: SEI, 2000, p.76. 53 Entrevista concedida a Marise Berta em 11 de ago./2007. 54 Para maior aprofundamento ver Walter da SILVEIRA. Repensar o Cinema. In: José Humberto DIAS (org.). História do cinema vista da província. Fundação Cultural do Estado da Bahia, Salvador, 1978, p. 4.

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informando a platéia e alimentando o debate. Seu desempenho era respaldado pelo exercício

constante com que se dedicava à crítica cinematográfica em periódicos locais e nacionais.

Sobre a atuação de Walter da Silveira, Orlando Senna se pronuncia oferecendo o

testemunho de sua geração:

Walter da Silveira, um ensaísta e crítico de cinema, que organizou e manteve durante anos o Clube de Cinema da Bahia e mostrou para a minha geração tudo que alguém interessado por cinema naquela época deveria ver, analisando, discutindo e polemizando cada estilo, cada corrente, cada filme. No Clube de Cinema vimos toda a filmografia francesa, toda a filmografia soviética dos anos 1920 e 1930, toda a filmografia espanhola, a filmografia americana dos anos 1940 e 1950, o melhor que se fez de cinema nos Estados Unidos. O neo-realismo italiano, o cinema japonês, Ingmar Bergman. Um banho cascateante de cultura cinematográfica, um privilégio que não me canso de agradecer a Oxumaré, o orixá das artes55.

Esses aportes, entre outras manifestações culturais soteropolitanas, são alguns dos

pilares de sustentação do cinema moderno brasileiro. No contexto soteropolitano dos anos 1950,

são engendrados vários movimentos essenciais que articulam cineclubismo, crítica e realização,

em busca de um desenvolvimento cinematográfico local e nacional, que se projeta cosmopolita

no sentido de compreender o cinema como instrumento da vida moderna contemporânea.

Entender o significado desse agente mecânico que modificava a realidade, influindo no

comportamento das pessoas, alterando o cotidiano das cidades, materializando a civilização das

imagens através de filmes, é compreender o cinema como resultado direto da cultura da

modernidade56.

O cinema foi um fator determinante na expansão da modernidade ao se instalar, a

partir do final do século XIX, nos grandes centros, França, Inglaterra, Alemanha, Estados

Unidos, e nos países periféricos da Ásia e da América Latina. A sua disposição como

elemento emblemático do mundo moderno nos núcleos urbanos proporcionou amplas

transformações sociais, econômicas, culturais, e os efeitos dessas alterações são aferidos no

surgimento e na consolidação de uma cultura cinematográfica.

55 Catálogo do II Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual. Organização Geral: Walter LIMA; coordenação Diana GURGEL; coordenação editorial Zilah AZEVEDO. Salvador: EDUFBA; VPC, 2006, p.116-117. 56 Leo CHARNEY, Vanessa R. SCHWARTZ. O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2001, p.20.

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Salvador, a primeira capital do Brasil, foi inserida no quadro da globalização

visual57, apesar da principal urbe baiana ter sido considerada por quase todos os pensadores

do passado e até pelos mais contemporâneos como uma mera província58. Embora periférica,

a base econômica baiana contradizia a sua própria definição, já que não era totalmente

excluída do cenário econômico nacional e internacional, como afirmava a sua

intelectualidade, uma vez que havia uma tradição no manejo do capital financeiro e as

condições proporcionadas pelo seu acúmulo eram suficientes para enfrentar os obstáculos do

chamado “enigma baiano”59.

A circulação do capital possibilitou, entre outros processos, o da modernização60,

trazendo conseqüências práticas, que aos poucos se fizeram vigentes na chamada expansão

moderna. Tal processo pode ser demonstrado com exatidão na implantação dos equipamentos

de exibições e na produção dos filmes que redundaram, de certa forma, num cinema que não

forneceu simplesmente um original elemento no qual os dados da modernidade podiam

apenas abrir espaços, mas,

57 O cinema chegou à Cidade da Bahia no final do século XIX, precisamente no dia 4 de dezembro de 1897. As fitas ocuparam a tela do Teatro Polytheamma, há um ano e meio depois da histórica exibição de 8 de julho de 1896, que acontecera na Rua do Ouvidor no Rio de Janeiro; o evento baiano não ficou tão distante da primeira apresentação cinematográfica de 25 de dezembro de 1895, ocorrida na França, organizada pelos irmãos Lumière. Por essa descrição, observa-se a quase simultaneidade entre as capitais mundiais e a capital da Bahia. A apresentação cinematográfica baiana é descrita desta maneira por Walter da Silveira: “Havia terminado a guerra de Canudos, os soldados baianos desembarcavam naquele dia, na estrada de ferro, entre flores, confetes e foguetes. Os bondes na Cidade Alta eram puxados por burros. A eletricidade entrara, unicamente, em poucas casas, apesar da escassa energia elétrica, temos sala de projeção. A escassez de energia elétrica não foi empecilho no surgimento das salas de projeções, já que os teatros existentes na época foram adaptados ao cinematógrafo. O Teatro Polytheamma era palco da primeira exibição e o Diário de Notícias divulgou, A convite do Sr. D. Costa e do Sr. Feliciano Batista, fomos ontem à noite, no Polytheamma, assistir ao funcionamento desses aparelhos trazidos de Paris [...] O cinematógrafo, que produz efeitos, geralmente conhecidos, das lanternas mágicas, tem sobre estas a grande novidade do aperfeiçoamento de serem fotografias ou desenhos projetados que reproduzem cenas da vida, representadas como seus personagens fossem pessoas vivas e em movimento.” Cf. Walter da SILVEIRA. Op. Cit., p. 8. 58 Segundo Antonio Risério, a denominação de província teve a sua origem ligada à inércia ou à paralisação do desenvolvimento da cidade da Bahia, e teria sido incluída no vocabulário baiano desde a época em que o Rei D. João VI cruzou a cidade com a sua corte e transferiu a capital para o centro-sul do país, deixando Salvador relegada a estado periférico. Afirma Risério: “a mudança da capital colonial para o Rio de Janeiro, bem como a instalação ali da sede da monarquia lusitana – e, a partir de 1822, da do ‘império’ –, atestam a significância progressivamente secundária da velha cidade da Bahia. A província assistirá marginalmente a meridionalização da economia e da política brasileiras”. Mas esse isolamento político e econômico da cidade da Bahia são vistos, também, por Antonio Risério de maneira produtiva, pois, de acordo com o poeta e antropólogo a cidade teria sido levada a ter uma maturidade que pode ser traduzida como uma nova forma de cultura, procedente da vida orgânica e oriunda das experiências vividas por gente lusa, banto e ioruba, o que hoje chamamos de ‘cultura baiana’. Antonio RISÉRIO. Uma teoria da cultura baiana. In: Caymmi: uma utopia de lugar. São Paulo; Salvador: Editora Perspectiva; Copene, 1993, p.158. 59 Expressão usada por Pinto de Aguiar para justificar as condições de desenvolvimento econômico na Bahia. Cf. Pinto de AGUIAR. Notas sobre o enigma bahiano. Salvador: CPE e Livraria Progresso, 1958. 60 Sobre a superação dos obstáculos econômicos na Bahia, ver Francisco de OLIVEIRA. O elo perdido – classe e identidade de classe na Bahia. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003, p.32-33.

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ao contrário, ele foi produto e parte componente das variáveis interconectadas da modernidade: tecnologia mediada por estimulação visual e cognitiva; a representação da realidade possibilitada pela tecnologia; e um procedimento urbano, comercial, produzido em massa e definido como a captura do movimento contínuo.[...] Ele deve ser repensado como um componente vital de uma cultura mais ampla da vida moderna que abrangeu transformações políticas, sociais, econômicas e culturais61.

O aparato cinematográfico em Salvador, ou seja, o conjunto de instrumentos e

equipamentos necessários à sua efetivação começou a ser formado num processo de trocas

comerciais entre as matérias-primas produzidas e os manufaturados. A troca economicamente

desvantajosa, segundo a compreensão de teóricos econômicos, dava a estruturação do que se

pode chamar de formação de um mecanismo cinematográfico endógeno62.

Desse modo, foram significativos os contatos imediatos, ocorridos logo a partir dos

primórdios do cinema, entre os detentores do capital baiano e produtores europeus,

particularmente os franceses. Nas trocas, ocorreram a fomentação e a criação de um sistema

proveniente da transformação da tecnologia exógena em fator produtivo endógeno, portanto,

não se desenvolveu somente um mercado exibidor de filmes, mas, particularmente, uma

produção esporádica de películas63.

Por outro lado, a permanente exibição de filmes caracterizou uma apropriação dos

comportamentos estrangeiros por parte dos públicos baiano e brasileiro, que sem nenhum

estranhamento adotaram a conduta e a moda estrangeira como se fossem costumes próprios.

Essas foram as peculiaridades trazidas através do acesso ao cinematógrafo, “o fato de o

ocupante ter criado o ocupado aproximadamente à sua imagem e semelhança, fez deste

último, até certo ponto, o seu semelhante”64.

Com essa digressão em que o cinema é colocado como decorrente da modernidade

demonstra-se a preocupação de mapear o ambiente de constituição da história social do

cinema na Bahia. Walter da Silveira, responsável pela introdução em Salvador das mais

diversas escolas da cinematografia mundial, condutor do debate cultural provocado por essa

assistência, que não apenas embasou a formação cosmopolita, mas levou ao nascimento da

61 Leo CHARNEY e Vanessa R. SCHWARTZ. Op. Cit., p.31-32. 62 A respeito desse processo de troca de matéria-prima por tecnologia cinematográfica, ver Jean-Claude BERNARDET. Cinema brasileiro propostas para uma história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. 63 Sobre a produção de filmes na Bahia nesse período ver Walter da SILVEIRA. Op. Cit., p. 26-28; e Angeluccia Bernardes HABERT. A Bahia de outr’ora, agora – leitura de ‘Artes & Artistas’, Revista de Cinema da década de 20. Salvador: Academia de Letras da Bahia e Assembléia Legislativa do Estado da Bahia, 2002, p.190. 64 Paulo Emílio SALLES GOMES. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. 2. ed. São Paulo: Editora Terra e Paz, 1986, p. 88.

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produção cinematográfica, traduz essa atmosfera cultural cinematográfica moderna e

universalizante ao afirmar:

Aqui há uma atmosfera propícia para o cinema, talvez a mais propícia do universo. Não acontece por acaso desembarcarem, em nossos portos, estrangeiros e nacionais para a realização de filmes Se vêm de longe é porque em nossas ruas e ladeiras, em nossos sertões e praias, deve existir um ambiente favorável. Havendo indústria cinematográfica baiana, cineastas baianos, incorporação da Bahia, à história universal do cinema, iremos ter filmes da Bahia e não filme na Bahia65.

Em um contexto de intenso trânsito, onde a cultura cinematográfica é potencializada,

Nelson Pereira dos Santos no final de 1959, chega à Bahia para filmar Vidas Secas, em

Juazeiro, no sertão baiano. Em Salvador, hospedou-se na pensão de Lúcia Rocha66, onde

afirmou nunca ter visto “gente tão bonita”. O contato com os jovens realizadores e o

engajamento desses na produção se concretiza.

Nesse período, integra-se à equipe como assistente de direção Luís Paulino dos

Santos, que pertencia ao grupo de jovens cineastas baianos. Será Paulino, também jornalista,

quem reforça os contatos da pré-produção feitos por Guido Araújo, fazendo a ponte para que

a produção consiga apoio oficial, efetivado com a liberação de um jeep da Companhia de

Navegação Baiana, bem como garantia de hospedagem e alimentação. Paulino, ainda seria

ator, escalado para interpretar o soldado Amarelo. Uma vez levantada a produção, a equipe

parte para Juazeiro, é um domingo de carnaval, em 1960, com toda a estrutura pronta para

rodar o primeiro fotograma. As forças da natureza conspiram: em Juazeiro/Petrolina, em

pleno perímetro da seca, chove durante dias. A paisagem nordestina assume nova

configuração. A caatinga muda de cor e Nelson Pereira dos Santos acaba por transformar a

história que iria contar. Mandacaru Vermelho é o projeto que emerge da mudança. Nele, a

pesquisa social cede lugar à imposição dramática de contar a história de uma luta fratricida e

o próprio diretor interpreta o mocinho de seu filme.

Em Mandacaru Vermelho, com exceção de Hélio Silva, responsável pela fotografia –

que a partir desse momento cria fortes vínculos com o cinema baiano estendidos até os anos

1990, quando fotografa Heteros, de Fernando Belens – e Leonardo Bartucci, seu assistente, a

equipe é local. Confirma-se a participação de Luís Paulino, de José Telles de Magalhães e

65 Walter da SILVEIRA. Op. Cit., p. X. 66 Mãe de Glauber, Lúcia Rocha era proprietária de uma pensão na Rua General Labatut, Barris, que acolhia os jovens que vinham estudar na capital. A pensão tornou-se uma espécie de embaixada do cinema brasileiro na Bahia, hospedando os que aqui chegavam ou que lá passavam para fazer uma simples refeição.

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Olney Alberto São Paulo. Sônia Pereira e Jurema Penna são atrizes que vêm da Escola de

Teatro da UFBA. A música e orquestração também estão a cargo de Clodoaldo Brito e do

jovem regente Carlos Lacerda.

Duas matérias assinadas por Glauber Rocha67 ajudam a contextualizar a produção. A

primeira refere-se às produções realizadas por Nelson (Vidas Secas e Mandacaru Vermelho) e

Trigueirinho Neto (Bahia de Todos os Santos) que inauguram na Bahia nova fase para o

cinema brasileiro: “Como não existe mesmo cinema no Brasil, como são mínimas as

possibilidades, tanto faz se filmar no sul como no norte” “os planos de ambos são fabulosos e

muito valerá para a seqüência de produções”.

Glauber ressalta ainda o fato de Juracy Magalhães, então governador da Bahia,

incentivar a atividade cinematográfica no Estado: “através da disposição positiva de ajuda do

secretário e escritor Ruy Santos, um homem de cultura que tem sabido da importância de uma

expressão fílmica nacional”. Termina o artigo asseverando o compromisso de Nelson e de

Trigueirinho com a construção dessa nova ordem cinematográfica e do papel da Bahia nesse

processo: “Nelson e Trigueirinho têm trabalhado no pensamento de se construir uma

produção normal e progressiva. A Bahia deve colaborar com isto. Vamos lutar”.

Na segunda matéria, Glauber qualifica Mandacaru Vermelho “como um romance

segundo sua raiz popular: prólogo e epílogo, epopéia com o máximo de ação e o mínimo de

psicologia, mas ao mesmo tempo retrato violento do nordeste, vertical e sem retoques”.

Mandacaru Vermelho, junto às demais produções do Ciclo Baiano de Cinema, ajuda

a projetar nacionalmente os atores baianos e a promover a troca de informação em torno do

ambiente cinematográfico.

Outra ação de Nelson que pontua a sua relação com a produção baiana é a sua

disposição para montar Barravento68, quando Glauber chega ao Rio de Janeiro trazendo o

copião, em uma ação de reconhecimento da importância do filme e esforço de vencer os

entraves que marcaram essa produção.

Nesse período, Nelson retoma o projeto de Vidas Secas, de extrema significação no

conjunto de sua obra, com a decisão de realizar as locações em Palmeira dos Índios, terra de

Graciliano Ramos e de seus personagens. Mandacaru Vermelho havia sido um croqui, um

primeiro contato com o Nordeste.

67 Glauber ROCHA. Trigueirinho e Nelson abrem novos caminhos. Diário de Notícias, Salvador, 1961; Mandacaru Vermelho. Jornal do Brasil, 1961. A esse respeito, ver Umbelino BRASIL. As críticas do jovem Glauber: Bahia 1956/1963. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura Contemporâneas da UFBA, 2007. 68 Primeiro filme em longa-metragem dirigido por Glauber Rocha. Inicialmente dirigido por Luís Paulino dos Santos que, após desentendimentos com o produtor, abandona o projeto.

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Entre Mandacaru Vermelho (1960-61) e o seu próximo filme a ser realizado na

Bahia, Tenda dos Milagres (1975-77), Nelson apresenta uma intensa produção e transita por

vários universos: Boca de Ouro (1963), Vidas Secas (1962-63), El Justiceiro (1966-67), Fome

de Amor (1967-68), Azyllo Muito Louco (1969-71), Como era Gostoso o meu francês (1970-

72), Quem é Beta (1972-73) e Amuleto de Ogum (1973-75).

Esse último, apesar de não estar circunscrito em território baiano, pode ser indicado

aqui por outras aproximações. Primeiro, o argumento, inicialmente intitulado Amuleto da

Morte, partiu de Chico Santos, baiano do sul do estado, motorista e amigo de Tenório

Cavalcanti69. Baseado em sua experiência de vida, a história tratava dos nordestinos que

migram para o Sul. Segundo, as seqüências de iniciação e fechamento do corpo são sugeridas

e ambientadas como ocorridas na Bahia. E, finalmente, por apresentar uma recusa ao processo

linear de fazer evoluir do relato cinematográfico, que o diretor irá ampliar no filme seguinte,

Tenda dos Milagres, realizado na Bahia. O Amuleto de Ogum opera em dois tempos: o do

contador (no prólogo e no final) e o da trajetória de Gabriel, tempos que podem ser

justapostos e fundidos pelo espectador.

Nelson credencia o mergulho no imaginário religioso da umbanda da Baixada

Fluminense, presente na realização de O Amuleto de Ogum, à indicação dada por Laurita, sua

esposa, que chamou a sua atenção para o fato. Ele também revela que o seu método de

pesquisa não foi o didático preconizado pelos padrões sociológicos e acadêmicos, e sim os do

caminho da vivência:

Eu não posso esquecer também a contribuição da minha mulher, a Laurita. Ela estava estudando exatamente as religiões de conversão. E mais a leitura do Tenda dos Milagres... é um novo caminho e é riquíssimo. E lembrava do Barravento de Glauber, do candomblé. O Glauber tinha outra postura, né? Era exatamente o oposto. Ela acreditava na inclusão do pensamento místico na realidade. Eu só via a relação entre as classes. Mas aí eu evitei o caminho acadêmico, de procurar especialistas. Fui buscar o pai de santo e ele que me conduziu com as explicações, com os contatos todos, andando pela área da Umbanda.70

Para pesquisar a religião afro-brasileira, ele se cercou das suas fontes primeiras, os

pais e mães de santo. Em O Amuleto de Ogum seguiu a rota de pai Erley. Em Tenda dos

Milagres, o Bogun, o Terreiro do Gantois e o de Mirinha de Portão são suas referências.

69 Tenório Cavalcanti, alagoano radicado na Baixada Fluminense, onde exerce liderança política com base na sua herança nordestina. 70 Entrevista concedida a Marise Berta, em set./2004.

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Verifica-se em O Amuleto de Ogum a superação do que Nelson deixou em

Mandacaru Vermelho, em que o autor, como ator, coloca-se à margem para dizer que não

acredita naquela história. Não acredita no mito. Em O Amuleto de Ogum é o violeiro cego

quem diz: “Vou contar uma história que aconteceu de verdade e que eu inventei agorinha”. O

mito encarna a verdade da sociedade.

A partir desse enunciado, O Amuleto de Ogum promove o rito de passagem e aponta

para elementos de um cinema de abertura popular, que Tenda dos Milagres, o seu segundo

filme feito na Bahia, dará continuidade. Em Tenda dos Milagres, adaptação do romance de

1969 de Jorge Amado, tal como no livro, no filme os tempos se interpenetram numa narrativa

não-linear, aproximando-se da fragmentação da tradição de nossos espetáculos populares.

Nelson introduz novos elementos, funde personagem e enfatiza outros, além de ter a

chancela de Jorge Amado para isso. O escritor declara, em Jorjamado no cinema, filme de

Glauber Rocha (1977), que em Tenda dos Milagres tudo está correto e lhe agrada. A

colaboração de Jorge Amado também será decisiva no andamento da produção.

Torna-se importante referenciar que a Bahia após o golpe militar entrou em

movimento de refluxo. A sua exuberância cultural foi deprimida, desfazendo-se o momento

de invenção de sua renascença. O centro sul assumiu a posição privilegiada promovendo o

desenvolvimento de uma cultura midiatizada, organizada em padrões de indústria cultural71. É

no final dos anos 1970 que a Bahia vai iniciar o seu processo de reinvenção a partir de uma

“participação negromestiça fundada na afirmação enfática da negritude”, como afirma

Antônio Risério72. Também se faz necessário referenciar e apontar as reflexões dos estudos73

que tratam da entrada de Salvador no circuito da produção e consumo das mídias,

recuperando a combinação de duas forças, a força do passado e a emergência da novidade,

forjadas através de uma longa história de resistência e dos sinais de consciência da

comunidade negromestiça, que tece uma rede de relações sócio-culturais e religiosas, cuja

capilaridade perpassa toda a “Cidade da Bahia”.

Para compreender melhor esse cenário, não se pode deixar de fora a atuação do

Estado da Bahia no período. O estudo de Jocélio Teles dos Santos74 esclarece que, dos anos

71 Cf. Antônio Albino Canelas RUBIM. Comunicação, mídia e cultura na Bahia contemporânea. Bahia Análise & Dados. Salvador, BA: SEI, v.9, n.4. Mar./2000, p.74-89. 72 Antonio RISÉRIO. Op. Cit.,2004, p.568. 73 Cf. Antônio Albino CANELAS RUBIM. Op. Cit.; Milton MOURA. Quem quer comprar a cara desta cidade? Bahia Análise & Dados. Salvador, BA: SEI, v.8, n.1. jun./1998, p.25-32; Goli GUERREIRO. Um mapa em preto e branco da música na bahia: territorialização e mestiçagem no meio musical de Salvador. Bahia Análise & Dados. Salvador, BA: SEI, v.8, n.1. jun./1998, p. 33-49. 74 Jocélio Teles dos SANTOS. Nação corretamente política? As políticas oficiais e os afro-brasileiros. Relatório para exame de qualificação. São Paulo: Departamento de Antropologia Social da USP, agosto de 1997 apud

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1970 até meados dos anos 1980, houve um revival da década de 1930: o regime militar

consolidou sua hegemonia simbólica através do controle da produção cultural. O fato novo

residia na conciliação de valores tradicionais com o desenvolvimento econômico das regiões

através do turismo. Na Bahia, essa posição resultou em uma apropriação dos elementos

presentes no cotidiano da cultura afro-baiana para construir uma imagem de baianidade que

passou a ser acionada na publicidade como modo de “viver baiano”.

É com esse espírito que mais uma vez Salvador acolhe Nelson Pereira dos Santos

que, sensível à história das relações sócio-raciais no Brasil, acompanha o fluxo do movimento

da cidade. Em Tenda dos Milagres, investe no diálogo e na atualização da questão: França

Teixeira e o poder da mídia, Mestre Curió e a capoeira, o emergente e a tradição – cenas do

cotidiano da cidade integram-se às personagens da ficção.

As filmagens de Tenda dos Milagres foram iniciadas no dia 27 de setembro de 1975

e encerradas em 2 de fevereiro de 1976, seguindo assim o calendário de festas populares da

cidade. É a festa de Nelson. Os ritos foram seguidos e D. Minininha referenciou Exu, indicado

por ela como orixá protetor do cinema, para abrir os caminhos do filme. Ao rememorar os

ritos e as festas Nelson afirma:

No dia 27 de setembro nós começamos com o primeiro dia de filmagem. Fizemos uma festa com caruru, como manda o regulamento baiano. A aceitação foi boa, mas infelizmente não rodamos nenhum plano, porque a equipe fez muitas homenagens aos santos, e não teve condições. Enfim, era um filme totalmente protegido75.

Há um grande envolvimento das camadas intelectuais baianas, conclamadas por

Jorge Amado a participarem da produção. Atores do teatro e da Escola de Teatro da UFBA,

cineastas como Guido Araújo e Tuna Espinheira, marcam presença. O professor e diretor da

Escola de Artes Plásticas da UFBA, Juarez Paraíso, faz o papel de Pedro Arcanjo. Ele afirma:

Eu encarnei um pouco de Pedro Arcanjo. Tinha uma coincidência grande entre a minha vida em muita coisa que ele faz. Senti facilidade por eu ter costume de ler, ser professor, não tinha que interpretar nada, era mais um lado de tecnologia de cinema que o Nelson resolvia76.

Ilana Seltzer GODSTEIN. O Brasil Best seller de Jorge Amado: literatura e identidade nacional. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2003. p.74-75. 75 Entrevista concedida a Marise Berta, em set./2004. 76 Apud Helena SALEM. Op. Cit., p 313.

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Na produção há uma mistura de técnicos vindos com Nelson e a presença dos

baianos Agnaldo Azevedo (assistente de direção) e Rino Marconi (fotografia de cena), Arnold

da Conceição (eletricista). A música é composta por Gilberto Gil.

É novamente Jorge Amado quem traz Nelson à Bahia, em 1985, para filmar Jubiabá,

após ter feito um especial sobre a Bahia para a TV Manchete. Em Jubiabá as recorrências

temáticas se apresentam: representações da realidade social, representações da cultura

negromestiça, luta de classes, relação de puro amor, relação inter-racial, política e sexo como

extensões da vida.

A realização deste filme irá apresentar uma situação bastante diferenciada de

produção. Produção franco-brasileira, a demora da Embrafilme em liberar o dinheiro retardou

o começo das filmagens. Nelson chega a Salvador em outubro. As filmagens começam em

dezembro, em plena vigência do verão baiano. No final de dezembro decide pela mudança da

locação para Cachoeira, cidade histórica a uma hora de Salvador, visando a continuidade do

filme. Lá ele consegue dar prosseguimento às filmagens: “Pressenti o abismo, que não ia ser

possível. E aí resolvi mudar”77.

Na ficha técnica a composição já feita anteriormente, presenças vindas com ele,

acrescidas das presenças locais. A singularidade de sua relação com a cultura baiana

apresenta-se na opção de incluir Batatinha no elenco do filme, resgatando o samba como valor

do território negro.

O Jubiabá de Nelson resulta na história de amor entre a jovem branca Lindinalva e o

negro Antonio Balduíno. Dessa vez, Jorge Amado não participou da adaptação nem das

filmagens.

Ao finalizar a montagem de Jubiabá, em maio de 1986, Nelson retoma uma idéia

antiga78 e começa a pensar na produção de Castro Alves, um de seus possíveis projetos ainda

hoje79, e mais uma vez apresenta vínculos com a Bahia. Dessa vez o movimento é inverso, é a

ação do jovem poeta baiano na cidade de São Paulo que desperta o interesse do diretor:

77 Apud, Helena Salem, p. 347. 78 Há registro (cópia do arquivo de Guido Araújo, sem data e sem referência) de nota com o seguinte teor: Enquanto aguarda o pronunciamento da justiça a equipe de Nelson Pereira dos Santos só pensa em duas coisas: (a) descansar quando o filme for realmente lançado) e (b) preparar a produção de seu segundo trabalho, “Rio, Zona Norte”. Eufóricos diante do entusiasmo que seu primeiro filme vem provocando entre as sumidades que o têm visto, os rapazes às vezes até avançam mais pelo futuro, falando num Castro Alves que nada teria a ver com a lamentável obra de Leitão de Barros. Dizem mesmo que Jece Valadão, a grande revelação de “Rio, 40 Graus”, estuda desde já a vida e as obras do poeta baiano: sua candidatura ao papel é das mais fortes. 79 Quando indaguei a Nelson sobre os seus projetos futuros, ele me falou longamente sobre Castro Alves e de como esse projeto foi se atualizando ao longo de muitos anos de pesquisa e de desejo latente de realização

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como você vai filmar um filme sobre o Castro Alves e não tem cena na Bahia? O Castro Alves não era só baiano. O Castro Alves é brasileiro, é nacional. E eu sou paulista. Eu entrei na Faculdade de Direito de São Paulo e a primeira coisa que eu vi assim foi Castro Alves. Depois tinha Fagundes Varela, depois Álvares de Azevedo. Não tinha nome de nenhum juris consulto, nenhum sábio do direito, só tinha o nome de três poetas. E o primeiro e mais querido, Castro Alves. O que tem mais história pra contar. A relação dele com São Paulo, os poemas, a sua história de amor. É uma linha do filme80.

A realização deste filme marcará o seu retorno a várias origens: à cidade de São

Paulo, onde nasceu; à Faculdade de Direito do largo de São Francisco, onde estudou e militou

pelo Partido Comunista; e à literatura e à história, suas permanentes e declaradas fontes de

inspiração.

80 Entrevista concedida a Marise Berta, em set./2004.

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dededede CineCineCineCinema Novoma Novoma Novoma Novo

Já entrei no cinema novo, não fiz o cinema novo. O cinema novo foi mostrado diferentemente por vários criadores, cada um com o seu potencial de linguagem de influência. Foi um cinema muito misturado, de muitas tendências, muito rico.

Nelson Pereira dos Santos81 Nelson precede Godard, cujo À bout de souffle é de 58, o neo-realismo e Rolyud fundidos na vangardismo francês do estruturalismo leninista num barato joyceano popista. Nelson e Godard criaram o cinema novo. As contradições européias montadas às contradições brasileiras.

Glauber Rocha 82 Há quem diga, jocosamente, que o Cinema Novo é o Glauber Rocha no Rio de Janeiro. Quando o Glauber aparece no Rio, fala-se, discute-se, combate-se, funda-se, liqüida-se o Cinema Nôvo.

Nelson Pereira dos Santos 83 É um grupo heterogêneo em formação. E todo o mundo pergunta: a ideologia do Cinema Novo? Não existia a ideologia do Cinema Novo, cada um tinha a sua formação [...] Não era uma coisa sólida, um pensamento só. E ninguém tinha obrigação de fazer cinema com visão social. Isso não existia. A idéia era fazer filmes, os melhores.

Nelson Pereira dos Santos84

O esboço de uma manifestação opositora ao modelo dominante de projeto

cinematográfico vai encontrar a sua demarcação por volta da década de 1960, quando passou

a ser constatado o aparecimento de agrupamentos em torno do cinema com o registro da

81 Entrevista concedida a José Geraldo COUTO e Alcino LEITE NETO. Folha de S. Paulo, Caderno Mais!. São Paulo, 21/03/99. 82 Glauber ROCHA. Op. Cit., 2004, p.308. 83 Cinema Nôvo: Origens, ambições e perspectivas. Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha e Alex Viany Revista Civilização Brasileira, nº1. Março 1965. p.185. 84 Entrevista editada por Tunico Amâncio no catálogo da Mostra de Filmes e Vídeos Plano Geral Nelson Pereira dos Santos, 14 a 24 de outubro de 1999, Centro Cultural Banco do Brasil, p.34.

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novidade, os chamados “jovens”, ou “novos”85. Essa constelação de cinemas novos se

engendrou dentro de um quadro marcado pela afirmação de cinematografias nacionais e

formou escolas que tiveram destinos diversos. Não tendo as mesmas condições de

desenvolvimento, umas logo se desviaram do seu presumido percurso, outras resistiram

melhor às dificuldades no seu estabelecimento.

O aparecimento dos cinemas novos flagrou o desenvolvimento de uma expressão

cinematográfica autônoma e flexível, que não se descolava da cultura de cada país em

conexão com a experiência social vivida. Ao contrário, quanto mais a linguagem do filme se

definia, mais o cinema se voltava para a tradição da cultura dos diferentes povos. Essa é a tese

que os cinemas novos vão demonstrar. A ideologia dominante nos novos cinemas é

progressista, visava expressar uma nova subjetividade individual ou coletiva e instaurar uma

nova linguagem que assimilasse as mudanças, produzindo ou acelerando processos de

transformação estético, social e político, tomando-se o cinema como meio canalizador da

representação sensível de uma geração, que com motivações existenciais e políticas variadas,

assumiu-o como expressão plasmadora de sua sensibilidade e relação com o mundo.

A imagem de unidade do movimento de renovação dos anos 1960, apesar das

significativas diferenças de culturas nacionais, de tradições cinematográficas, de ambiências

políticas, torna-se possível através da determinação de características comuns entre os

diversos movimentos86.

Seguindo a ordem dessa conjunção de fatores que propiciaram manifestações

vigorosas da arte cinematográfica reativa ao modelo dominante, surgiu no Brasil, com formas

particulares de evidência, o movimento Cinema Novo:

Inspirados pelo despojamento do neo-realismo italiano, pelas inovações da Nouvelle Vague francesa e, mais proximamente, pelo cinema independente brasileiro dos anos 1950, os cinemanovistas não queriam – nem poderiam – fazer filmes nos padrões do tradicional cinema narrativo de ‘qualidade’, americano em sua maioria, que o público brasileiro estava acostumado a ver87.

85 Guy Henebelle coteja as novas correntes que surgiram no cinema mundial a partir da década de 60. Cf. Os cinemas nacionais contra Hollywood. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. 86 Cf. Antonio COSTA. Compreender o cinema. São Paulo: Globo, 1989. O autor cita Miccichè, crítico italiano dedicado ao conhecimento e à difusão do novo cinema, que sintetiza em quatro pontos as inovações do movimento, que em graus variados incidiu sobre o cinema do mundo inteiro: a) estrutura narrativa – abandono do enredo tradicional e adoção de fórmulas mais próximas das novas tendências literárias, b) – linguagem fílmica – abandono de formas sintáticas tendentes a ocultar o procedimento de encenação e adoção de técnicas antinaturalistas e destinadas a evidenciar a subjetividade do autor, c) – ideologia – em vez de evidenciar uma mensagem ideológica unívoca, surgiram formas mais fluidas e indiretas, baseadas em procedimentos metafóricos ou alegóricos, d) – estruturas de produção – manifesta-se sempre uma exigência de mudança variando de um circuito de distribuição radicalmente alternativo à conquista de um mínimo controle sobre o sistema de produção e distribuição. 87 Id. Ibid.

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Em franca oposição ao cinema vigente, e partindo em busca de uma expressão

própria, Glauber Rocha expõe as bases desse cinema, libertador da linguagem

cinematográfica, vigoroso e original, que se anuncia como novo no conteúdo e na forma e que

se identifica com o próprio jeito de ser de uma cultura híbrida, miscigenada, cuja principal

característica é reelaborar os influxos sobrevindos de campos diferentes da expressão artística,

produzindo um contínuo movimento de deslocamento e de renovação, pois seus temas

impõem uma nova postura, um novo modo de filmar:

A partir deste conceito de imitação e de cinema original que se criou no Brasil o termo Cinema Novo. Mas sobre o Cinema Novo, que fez uma opção de enfrentar a verdade brasileira, surge um segundo desafio: que linguagem original usar desde que já se recusou a linguagem de imitação?88.

As questões apontadas por Glauber Rocha constituíram o desafio deste movimento e

razão do seu desenvolvimento. Como afirmar-se enquanto expressão própria quando o padrão

é dado de fora para dentro, seguindo a um modelo de imitação? Como propor um novo

modelo? É nessa aventura que se lançaram os ideólogos desse novo cinema, que ajustou o seu

foco direcionando-o para as entranhas do Brasil por meio de uma linguagem de ruptura em

que imprimiu no celulóide e projetou na tela a nossa paisagem física e humana.

Jean Claude Bernardet também responde às indagações de Glauber Rocha ao referir-

se à Aruanda, filme de Linduarte Noronha, cineasta paraibano, realizado em 1961:

No caso, a insuficiência técnica tornou-se poderoso fator dramático e dotou a fita de grande agressividade. Aruanda é a melhor prova da validade, para o Brasil, das idéias que prega Glauber Rocha: um trabalho feito fora dos monumentais estúdios que resultam num cinema industrial e falso, nada de equipamento pesado, de rebatedores, de luz, de refletores, um corpo a corpo com uma realidade que nada venha a deformar, uma câmara na mão e uma idéia na cabeça, apenas89.

Dessa forma, o professor, crítico e teórico do cinema brasileiro infere que a

insuficiência técnica presente na produção inicial do Cinema Novo poderia resultar em função

dramática e até mesmo em expressão estética, respondendo às questões vitais do cinema

brasileiro daquele momento: o que deveria dizer o cinema do Brasil e como fazê-lo com

88 Glauber ROCHA. Revolução do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Alhambra e Embrafilme, 1981, p.99. 89 Jean Claude BERNARDET. Brasil em tempo de cinema: ensaio sobre o cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, p.27.

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insuficiência de recursos. O status e o papel assumido por esse movimento emergente é o de

ser o outro, o avesso ao instituído.

Alguns estudiosos do cinema antecipam o surgimento do Cinema Novo à produção

de Rio, 40 Graus. Esta é a opinião defendida por Luís Carlos Borges que credencia a Nelson

Pereira dos Santos a origem imediata de toda uma nova concepção sobre como fazer cinema

no Brasil:

Tudo, na verdade, começou com Nelson Pereira dos Santos, que em 1955 realiza Rio Quarenta Graus, o deflagrador, sem dúvida, de um cinema no Brasil, e que em seguida ainda produz, em São Paulo, O Grande Momento (1958), estréia na direção de Roberto Santos90.

Outros fazem a opção por destacá-lo nos fins dos anos 1950, início dos 1960 quando

é realizado um conjunto de filmes com marcas distintas do espetáculo até então apresentado

em nossas telas.

É ainda Jean-Claude Bernardet que, optando por não mencionar uma data para o

nascimento do movimento, o distingue através de suas características constitutivas, dispostas

na seguinte ordem: “primeiro, os jovens diretores ascendem à direção, segundo, a rejeição de

conceitos estilísticos dos anos 1950 e terceiro, a posição diante da sociedade”91.

No detalhe dessas características constata-se que, na primeira, a ascensão dos jovens

diretores já representava a primeira ruptura, ou seja, o jovem realizador não percorria mais os

procedimentos necessários dos anos 1950, quando era preciso praticar outras funções antes da

direção. Em muitos casos, ele partia da crítica – ensaiada por quase todos os jovens que se

transformaram em autores – para a autoria de seus filmes, situação semelhante à dos

realizadores da Nouvelle-Vague francesa – referência obrigatória para todos eles – esboçando

uma Politique des Auteurs. A segunda característica diz respeito diretamente à construção de

uma nova linguagem e a terceira à abrangência e alcance do Cinema Novo, deixando para trás

a representação do cotidiano das comédias de costumes das chanchadas existente no cinema

brasileiro. Mais do que algum problema social isoladamente, é visto o conjunto da sociedade.

Tratava-se de fazer emergir algo diferente daquilo que nos representava como cópia

canhestra, banalizada pela reprodução mal feita e estereotipada de outros modelos industriais

de cinema. Procurava-se encontrar o equivalente em imagens, do que já estava sendo

esboçado na literatura, na música e nas artes plásticas, mas que ainda não tinha encontrado

90 Luís Carlos BORGES. O cinema à margem 1960-1980. Campinas, SP: Papirus, 1984, p.24. 91 Jean Claude BERNARDET. Entrevista concedida ao jornal Folha de S. Paulo, 7 de março de 1993.

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forma cinematográfica, com exceção de poucos e desconhecidos pioneiros do cinema

brasileiro, de quem os cinemanovistas tiraram suas primeiras lições92.

Outras indagações somaram-se àquelas iniciais colocadas por Glauber. O que deve

dizer o cinema brasileiro? Como fazer cinema sem equipamento, sem dinheiro, sem circuito

de exibição? E as respostas vieram em forma de filmes que conformavam o Cinema Novo,

movimento dotado de uma peculiar unidade, que apesar de conter momentos distintos, teve

discursos e obras marcantes mantendo traços estruturais comuns entre si.

O Cinema Novo foi estética e intelectualmente um período de extrema consistência.

As idéias que gerou, as polêmicas que suscitou, formaram um movimento plural e diverso de

estilos e pensamentos com algumas aproximações e similaridades ao visto anteriormente nos

outros movimentos de renovação. Aqui, o movimento de renovação – o Cinema Novo –

realizou a convergência entre a “política de autores”, a feitura de filmes de baixo orçamento, a

opção pela temática social e a inovação da linguagem, prova do seu distanciamento com o

cinema acadêmico tradicional.

Essas aproximações com os cinemas modernos vão demonstrar a sintonia e a

contemporaneidade do Cinema Novo que, inserido na ordem do moderno, traçou percursos

paralelos à experiência desses cinemas.

No final dos 1950, as experiências de Rio, 40 Graus (1954-56) e Rio, Zona Norte

(1957), processadas no bojo do debate político e do nacionalismo crítico cultivados pelo clima

intelectual do momento, deram pistas do caminho a seguir, direcionando-o para a

compreensão sociológica e política da sociedade brasileira ao estampar a sua realidade. O

diálogo maior desses filmes travava-se com a problemática do realismo, o que nos remete ao

contexto italiano, filiação primeira de Nelson Pereira dos Santos. Se o neo-realismo93 italiano

preconizava como recurso uma apropriação direta do real, onde a paisagem e a vida se

qualificavam na matéria fílmica, apresentando ao espectador o aviltamento do humano, nessa

situação o aprendizado brasileiro do neo-realismo começava com a recusa aos estúdios,

filmava-se em locação, com a câmera sem filtros, sem tripé, livre para capturar a nova

realidade que se oferecia para ela.

92 A referência aqui diz respeito a Humberto Mauro, Mário Peixoto, Carmem Santos, entre outros, que indicaram as possibilidades inventivas do cinema. 93 Movimento cinematográfico italiano, surgido durante a Guerra e oriundo, a um só tempo, da influência das escolas realistas francesas (Renoir, Clair, Grémillon) e, de modo mais amplo, européia (Pabst), e da reflexão crítica, na própria Itália, notadamente em torno de Pasinetti, Barbaro, De Santis, do Centro Sperimentale e da revista Cinema. O princípio foi, incialmente, “filmar com estilo uma realidade não estilizada” (Panofsky). Jacques Aumont e Michel Marie. Dicionário teórico e crítico do cinema. Campinas, São Paulo: Papirus, 2003, p. 212.

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Ao longo da década de 1960, outros traços estilísticos dos cinemas vão estar

presentes na produção de idéias do cinema novo brasileiro junto à idéia de câmara na mão e

apropriação do “cinema de autor” – oriundo da Nouvelle Vague francesa – que assumiu a

condição de elemento característico que permeará todo o discurso cinemanovista. Ismail

Xavier assim comentará a opção pelo autor e os seus efeitos:

Com a perspectiva autoral, houve espaço para a expressão pessoal e a invenção de soluções que, embora problema para a comunicação mais imediata, conferiram aos filmes uma densidade poética e uma dimensão de ambigüidade, interrogação, responsável por sua maior consistência94.

Se na França a “política de autor” correspondeu a uma vontade de expressão do

realizador cinematográfico, no Brasil, Glauber Rocha considerou que o cinema de autor era

necessariamente revolucionário, por ser de autor. Não há restrição, não há tema que seja

proibido ao cinema que, naquele momento, tornou-se vigoroso, deixando de ser um veículo

exclusivo de contar histórias para se tornar um campo de pensamento político, estético, ético e

social, revelador da experiência humana. O cinema, como elemento da história, é vivenciado

por uma geração que não aceitava separações impermeáveis. A vida, a arte, a poesia e a

intervenção no debate político transcorriam veloz e simultaneamente.

Ao introduzirem novas formas de apreensão sensível do mundo pela imagem e som,

os cineastas do Cinema Novo alteraram a relação entre temas de ponderação e potencialidades

estéticas através do aspecto libertador da linguagem cinematográfica, fio condutor para a

emergência de um pensamento audiovisual vigoroso e original. No anseio de entender o

quadro de afirmação desse cinema Glauber observa: “O cinema novo deu contribuição afetiva

para o conhecimento do Brasil, pois discutiu ao vivo da imagem e do som o que antes era

apenas estatística”95.

O cinema assim entendido resultaria em uma linguagem própria que se identificava

com a cultura híbrida produzida no país, cuja característica principal é reelaborar as

influências que a definem, advindas dos mais diferentes campos de expressão, produzindo um

movimento de mudança e renovação.

Raquel Gerber compreende o Cinema Novo como um momento de busca das origens

nacionais e irá relacionar o cinema de autor com a manifestação de seu inconsciente:

94 Cf. Ismail XAVIER. Do golpe militar à abertura: a resposta do cinema de autor. In: O desafio do cinema – A política do Estado e a Política dos Autores. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985, p.15. 95 Glauber ROCHA. Op. Cit., 2004, p.147.

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E neste caminho o Cinema Novo faz aquilo que chamo de uma arqueologia do sujeito, na tentativa de abordar o “ser colonizado” culturalmente. Essa é a essência do cinema de autor, manifestação do inconsciente do autor. Não submetido aos esquemas limitadores da grande produção industrial, o autor poderia mergulhar em si e em sua cultura e tentar criar uma poesia liberadora do inconsciente96.

Busca, dessa forma, a pesquisadora do cinema brasileiro, verificar o entrelaçamento

da busca da identidade pessoal com a busca da identidade nacional, relacionando a liberdade

de criação autoral com objetivos coletivos. Para Raquel Gerber, os diretores dos filmes do

Cinema Novo partiram da premissa de que o cinema é uma ciência do conhecimento do

homem e da história que com a sua alta capacidade de condensação simbólica pode traduzir a

cultura de um país em seus “processos cumulativos e multifacetados, cambiantes a todo

instante”.

É certo que os filmes do Cinema Novo mobilizaram seu público pela temática que

apresentaram na tela sobre os mais variados assuntos da realidade brasileira e pela linguagem

a que recorreram, diferenciando-os, nitidamente, do espetáculo convencional que o cinema

brasileiro vinha apresentando. Cenários exteriores, configuração de novos espaços, uso de

planos longos, câmera na mão, estouro de luz, intensa luminosidade – essa é a luz dos

trópicos97 –, atores naturais, tudo isso é experimentado até as últimas conseqüências no

Cinema Novo, fazendo parte da inscrição de sua linguagem.

Regina Mota em artigo em que reflete sobre alguns aspectos do registro do

pensamento brasileiro impresso nos filmes, artigos e manifestos do movimento, afirmará:

No processo de reelaboração era necessário olhar para dentro de si para fazer emergir algo distinto daquilo que nos representava classicamente em clichês e estereótipos de uma nação exótica, paradisíaca e tropical...Ali começamos a difícil tarefa de vermos a nós mesmos no pequeno, pobre e limitado mundo do dia a dia do brasileiro: como vestimos, como divertimos, como comemos e trabalhamos, sem o folclore amenizador das chanchadas da Atlântida98.

Marcado pela multiplicidade de seus temas e diferentes visões, o Cinema Novo

agregou os mais significativos autores cinematográficos brasileiros. De Nelson Pereira dos

96 Cf. Raquel GERBER. O mito da civilização atlântica -Glauber Rocha, Cinema, política e estética do inconsciente. Petrópolis. RJ: 1982, p.25. 97A experiência do uso da luz natural é inaugurada em Vidas Secas, e se estende a outros filmes como Deus e diabo na terra do Sol (Glauber Rocha, 1964) e Os fuzis (Ruy Guerra, 1964). 98 Regina MOTA. Cinema e Pensamento Brasileiro. Eptic on line. Revista de Economia Política de las Tecnologias de La Información y Comunicación. Dossiê Especial Cultura e Pensamento, Vol. II – Dinâmicas Culturais, Dec. 2006, p.51-52.

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Santos, Glauber Rocha, Ruy Guerra, Joaquim Pedro, Leon Hirzsman, Cacá Diegues, Paulo

Cesar Saraceni, Arnaldo Jabor, Walter Lima, Luís Carlos Barreto, Zelito Viana a David

Neves, entre outros. Estes autores cinematográficos, apesar da diferenças de estilos, fundiram

experiências estéticas com novidades técnicas, característica que faz a mediação entre o

técnico e o estilístico, fundamental para a constituição da moderna dramaturgia do cinema

brasileiro. Começaram a realizar a desafiadora tarefa de nos projetar através de lentes que nos

configuram e ampliam, revelando nosso cotidiano com paisagens, pessoas e cenários que

ilustram a existência de diversos brasis e o mosaico que o constitui – da favela ao sertão. Cacá

Diegues de dentro do movimento promove a sua síntese:

O que caracteriza essa geração da qual me orgulho de ter feito parte, que foi a geração que fundou o cinema moderno no Brasil, são duas coisas muito simples: a primeira foi a modernização da linguagem – tanto na forma de fazer, produção barata, equipamento leve, etc.– quanto na abordagem de problemas brasileiros. O outro aspecto, que eu chamaria de a única unidade ideológica do grupo, da geração, era a idéia de fazer um cinema brasileiro no Brasil99.

Seguindo diferentes percursos, o cinema brasileiro partiu para a sua prática narrativa,

exuberante em plasticidade na conformação de suas imagens diversas, posicionando a sua

câmera com a coerência apropriada a um cinema que indaga a composição da forma e do

equilíbrio clássicos.

Com essa atitude, o Cinema Novo ocupou papel de destaque tanto no Brasil como

fora dele, repercutindo internacionalmente. Movimento seminal, reposicionou o nosso

cinema, colocando-o em uma rede de estratégia precisa, que lhe conferiu novo estatuto,

passando a ser observado pelas elites, que começaram a ver o cinema como força cultural

expressiva de suas inquietações políticas e estéticas. Essa situação lhe conferiu visibilidade e

legitimou os seus valores. Isto se deu em razão do trabalho em sincronia articulado pelos seus

pares, seguido de um enorme empenho que resultou na ampliação do seu reconhecimento. O

Cinema Novo teve destacada repercussão internacional, ganhando prêmios significativos em

festivais internacionais, o que motivou a produção de artigos e teses, gerando uma fortuna

crítica a seu respeito, em todo o mundo100.

99 Carlos DIEGUES. Cinema Brasileiro: Idéias e imagens. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS; MEC/SESU/PROED, 1988, p.31. 100 Cf. Alexandre FIGUEIRÔA. Cinema Novo. A onda do jovem cinema e sua recepção na França. Campinas, SP: Papirus, 2004.

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Jean-Jacques Camelin101, ao tratar da repercussão do Cinema Novo visto pela crítica

francesa, no momento de sua descoberta na Europa, mais particularmente em Cannes, afirma:

Foi no século passado, há quatro décadas desse ano 2004, no Festival de Cannes de maio de 1964, que o jovem cinema brasileiro, chamado de “novo” marcava época, propondo quatro filmes: Vidas Secas de Nelson Pereira dos Santos e Deus e o Diabo na Terra do Sol de Glauber Rocha, em competição; Ganga Zumba de Carlos Diegues, que quase fora escolhido para a Semaine de la Critique: e, para completar, Os Fuzis de Rui Guerra, que havia recebido o Urso de Prata no Festival de Berlim, em fevereiro.

Outro aspecto a ser destacado no Cinema Novo diz respeito à logística que adotou:

poucas pessoas em colocações essenciais, revezando-se nas funções (produção, direção,

distribuição, agitação e articulação teórica) formaram uma rede que potencializou esforços

isolados. Refletindo sobre o alcance do movimento Nelson enfatiza a dimensão do trabalho

coletivo:

Por que o Cinema Novo foi um avanço de cem anos na história do cinema e provavelmente da cultura brasileira? Porque era um grupo aguerrido, era uma tropa de choque. Com individualidades completamente diferentes entre si, mas havia um trabalho coletivo, de dentro para fora, internamente102.

A partir da perspectiva de Nelson Pereira dos Santos de que não fez o Cinema Novo

já o encontrou, constata-se a sua presença e atuação nos mais significativos momentos do

cinema brasileiro. Rio, 40 Graus mostrava que o cineasta devia se voltar para uma

compreensão sociológica e política da sociedade brasileira e contém os germes do Cinema

Novo, movimento que se afirmaria alguns anos mais tarde, de que Vidas Secas seria uma

tradução emblemática e a trilogia El Justicero, Fome de Amor e Azyllo Muito Louco,

sinalização para a mudança de seu rumo e exaustão.

Da posição assumida por Nelson pode-se deduzir também sobre o caráter

polissêmico presente no cinema brasileiro: a constatação de que são muitas as suas referências

e que derivam de vários estilos e perspectivas. Na sua firme declaração é reiterada a

permanente defesa que faz à liberdade do autor para criar e experimentar linguagens,

arriscando-se sempre a novos e imprevistos resultados, sem no entanto abrir mão do diálogo

permanente com o outro, com o seu público, traço que o persegue durante toda a sua trajetória

artística.

101 Jean-Jacques CAMELIN. Fragments pour un anniversaire. Cinémas d’Amerique Latine nº 12, p. 52-66, Presses Universitaires du Mirail Toulouse, 2004. p.52 102 Apud Giselle GABERNIKOFF. Op. Cit., vol II, p.340.

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Cacá Diegues posiciona com acuidade o papel de Nelson na cena do movimento:

O Cinema Novo tem como característica: nós sempre nos influenciamos muito uns aos outros, mesmo que isso não apareça nitidamente. Como de certo modo os próprios filmes de Nelson estão presentes em Barravento. Agora, não acontece o mesmo com os filmes do Nelson. Eles são nitidamente anteriores a essa espécie de interpretação que se faz no cinema brasileiro na década de 60. Como são anteriores, vêm sempre por um caminho inesperado103.

Da mesma forma, Glauber reforça o entendimento de Cacá alargando a importância

de Nelson:

Ele é a consciência do nosso grupo. Foi ele que fez o primeiro filme independente do ponto de vista de produção, Rio, 40 graus, e aí encontramos as primeiras posições políticas frente à situação colonial do Brasil. Ele tornou-se um líder, uma espécie de inspirador e, ainda hoje, mediador entre os contrários104.

Compete, ainda, a Glauber resumir a posição de Nelson no Cinema Novo ao mesmo

tempo em que situa historicamente o movimento:

No caso de Nelson, naturalmente, o movimento muito mais se aproveitou dêle do que êle do movimento. Mas, de qualquer modo, veio a integrar-se no Cinema Nôvo, como o próprio Alex e outros. Se se procurasse situar o Cinema Nôvo històricamente, poder-se-ia dizer que é mais um problema de geração: os novos diretores que surgiam queriam fazer filmes, e, por uma contingência tôda especial, que ocorria pela primeira vez, puderam estabelecer algo assim como um programa comum105.

David Neves106 em um dos seus textos mais conhecidos detalha a poética do Cinema

Novo entendendo-a como um “universo específico em seus diversos setores”, referindo-se

assim à unidade encontrada pelo movimento a partir da diversidade de estilos e posiciona

Nelson na base do movimento ao indicar suas correntes:

Nelson Pereira dos Santos, usando recursos de todo um cinema que lhe antecedeu, traça as bases de uma nova escola: a da autenticidade...Assim, Nelson Pereira dos Santos influencia Glauber Rocha que influencia Carlos Diegues, que se exercita. O universo de Nelson, seus conceitos dramáticos

103 Helena SALEM. Op. Cit., p.160. 104 Glauber ROCHA. Op. Cit., 2004, p.111. 105 Cinema Nôvo: Origens, ambições e perspectivas. Op. Cit., p.186. 106 Crítico e cineasta carioca falecido em 1994, exercitou a militância pelo cinema brasileiro – informando, comentando e argumentando em torno dos filmes realizados no País.

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agem sobre Joaquim Pedro, que também se estimula com a retórica de Glauber107.

Nessa perspectiva, cabe a Nelson Pereira dos Santos a tintura de inspirador do

movimento e anunciador do debate sobre autenticidade, dependência e colonialismo cultural,

tão caro ao ideário do Cinema Novo, uma vez que ocupou o centro do debate no Brasil nos anos

1950-1970. Seus filmes tanto indicavam as marcas da invenção como a da materialidade da

produção, demonstrando a viabilidade de um cinema esboçado nas franjas do

subdesenvolvimento, descolado do modelo da matriz industrial. Tal preocupação, traduzida no

duplo esforço de criação artística e posicionamento político, definiu a prática de Nelson e se

estendeu como marca do Cinema Novo, momento em que se registrou uma posição de extremo

avanço no cinema brasileiro, tanto no arranjo e composição dos filmes como na política

cinematográfica.

Será de Nelson Pereira dos Santos o local da fala mais autorizado para situar e

sintetizar o movimento a partir de suas inscrições contextuais e históricas:

O que eu acho é que os diretores do cinema novo e eu, todos bebemos na mesma fonte. O cinema não vive só do cinema, vive de um contexto cultural mais amplo. Nós todos estávamos embebidos daquela geração anterior dos escritores, dos romancistas, da Semana de Arte Moderna, dos grandes pintores, Di Cavalcanti, Pancetti, de Villa-Lobos, tudo isso estava na cabeça da gente, sem falar em Euclides da cunha, Gilberto Freyre etc. Era a permanente busca dessa identidade brasileira.

O cinema novo cumpriu uma função histórica, que foi a de juntar essa herança cultural com o domínio da linguagem universal do cinema. Quer dizer, de um jeito ou de outro, cada um de nós sabia usar a linguagem, de uma forma moderna, original [...]. O cinema novo é o modernismo no cinema. Em outras palavras também significa descolonização em todos os sentidos108.

Se na árvore genealógica do Cinema Novo Nelson Pereira dos Santos recusa o local

reservado à paternidade, e se declara cooptado e acolhido pelo movimento, na genealogia de

todo o cinema brasileiro Glauber Rocha, ao rastrear o seu DNA, indica a sua procedência

genética a partir da metodologia do Cinema Novo e insiste em perfilar Nelson na base do

grande tronco da sua matriz:

O cinema novo fez a pesquisa, descobrimos o Pai, a semente, a raiz, o tronco que se nutre das raízes de Mário Peixoto, Alberto Cavalcanti, Lima Barreto:

107 David E. Neves. Telégrafo Visual: crítica amável de cinema. Organização e introdução de Carlos Augusto Calil. São Paulo: Ed. 34, 2004, p. 214-215. 108 Nelson Pereira dos SANTOS. Entrevista concedida a José Geraldo COUTO e Alcino LEITE NETO. Op. Cit.

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são os três que parem Nelson, nossos queridos avós de uma Mãe/Avó: CARMEM SANTOS A MÂE E O CINEMA BRAZYLEYRO MAURO / PEIXOTO / BARRETO OS PAIS DO CINEMA BRAZYLEYRO. NELSON O FILHO DO CINEMA BRAZYLEYRO109.

109 Glauber ROCHA. Santos dos Pereira Nelson 80. In: Op. Cit., 2004, p.426.

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dededede DramaDramaDramaDrama

Para mim, o cinema tinha que mostrar uma realidade e encontrar uma solução, que fosse uma solução jogada para o futuro. O cara fodido que mora na favela, explorado, deve ter uma perspectiva. O happy end é a solução, o que se precisa fazer para sair daquilo. Afinal, o cinema americano também fazia o condicionamento do comportamento humano dentro da sociedade americana. E, se formos mais atrás, no teatro grego, por exemplo, toda representação organizada do comportamento social, a tragédia, ou a comédia, tem uma moral, uma solução. O que eu propunha era uma solução a favor da libertação do homem, do povo brasileiro.

Nelson Pereira dos Santos110

A expressão drama carrega uma carga semântica muito forte e apresenta, em certos

contextos, usos ambíguos ou zonas limítrofes, podendo ser tomada em vários sentidos. Dessa

forma, ao empregá-la se faz necessária uma reflexão preliminar sobre as suas possibilidades

de significação e contextualização.

No teatro, a expressão drama perpassa fronteiras tênues entre o “dramático”, ao ser

empregada no campo de pertencimento do “jogo dramático”, e o “literário”, ao ser empregada

em referência à “literatura escrita”.

Cleise Mendes, ao abrir as janelas que o termo projeta, irá ampliar o seu arco de

cobertura e relações, incluindo a arte cinematográfica:

Existe uma arte do drama e uma arte do teatro. Se durante séculos o palco foi o lugar privilegiado para uma leitura produtiva dos textos dramáticos, no presente o drama tem íntimas e inquietantes relações com outras linguagens, entre as quais, a grande arte cinematográfica111.

110 Cf. Helena SALEM. Op. Cit. p.77. 111 Cleise Furtado MENDES. As estratégias do drama. Salvador: Centro Editorial e Didático da UFBA, 1995, p.30.

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Ainda no âmbito do teatro, pode-se inferir que a teoria do drama moderno112 ao

efetuar a reflexão sobre as transformações da estética teatral, admite a diversidade de

contextos e propósitos das novas formas teatrais, apontando para a dissolução de suas normas,

conciliando novos conteúdos e acatando a mescla e a interseção dos gêneros.

No cinema, quando se fala em drama, convenciona-se a aceitação de um gênero

narrativo que serve para qualificar os temas não-cômicos e não-documentários. Designa-se

uma ação, na qual se enfrentam personagens construídas em um espaço crível. Tanto a

palavra quanto o gênero atravessam toda a história do cinema, adquirindo múltiplas

aplicações, conforme o termo foi se qualificando.

Assim, como ocorreu na literatura e no teatro, linguagens que o precedem, o drama no

cinema comportou subdivisões. As conotações dadas ao termo acompanham, ao longo da

formação da teoria dos gêneros, o desenvolvimento das diversas tendências e rumos que a arte

assume na sua relação com o corpo social. Ao amadurecer com o próprio cinema, o drama talvez

tenha sido o gênero que mais tenha incorporado e refletido o estado de coisas de cada época.

Para se impor como arte, num período em que o conceito de arte é questionado, o

cinema teve que atingir tal estatuto para reivindicar seu pertencimento a uma derivação das

artes – a um sistema das artes. Antes de se tornar o que nós conhecemos hoje, o cinema reunia

em sua base de celulóide várias modalidades de espetáculos derivadas das formas populares

de cultura, quando ele se misturava as outras formas de diversão113. Os primeiros críticos – se

assim é possível denominar aqueles que inicialmente escreveram sobre cinema, quase todos

oriundos da base literária – tratavam-no com dureza, classificando-o como divertimento sem

futuro, raso, rebaixado, perigoso para a inteligência e para a moralidade. No entanto, há toda

uma vertente de experiências na sociedade moderna originadas da perspectiva do olhar, da

cena e da teatralização do cotidiano, que incorporam na dinâmica do cinema formas que

encontram uma expressão técnica, material e comercial no seu dispositivo, instância não

exclusiva do consumo de imagem, mas que pode ser considerada como a mais paradigmática,

ao tempo em que abriu espaço para idéias, técnicas e estratégias de representação já presentes

em outros campos114.

112 Peter SZONDI. Teoria do Drama Moderno (1880-1950). São Paulo: Cosac & Naif, 2001; e Teoria do Drama Burguês. São Paulo: Cosac & Naif, 2005. 113 Flávia Cesarino Costa situa esse momento histórico ao tratar do surgimento do cinema como nova forma de percepção e expressão visual. Cf. O primeiro cinema – espetáculo, narração, domesticação. São Paulo: Scritta, 1995. 114 O livro O cinema e a invenção da vida moderna, organizado por Leo Charney e Vanessa Schwartz, evidencia como no final do século XIX se instituiu socialmente uma forma de olhar que encontrou no cinema sua vigência normativa. Cf. O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: Cosac & Naif, 2001.

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Entre a pluralidade de elementos, expectativas, projeções, negações e resgates que o

advento do cinema mobilizou destacam-se dois tipos de reação para essa novidade. Na

primeira, o cinema é entendido como um êxito derivado da tradição na esfera da

representação; na segunda, observa-se o cinema enquanto evento inaugural, detentor de

possibilidades expressivas ainda não identificadas, destinado a provocar uma ruptura na esfera

da representação. Aqueles que o exaltam conferem-lhe em enorme poder na composição do

drama como experiência visual, inserindo-o na tradição do espetáculo dramático mais

popular, responsável pelo vigor das artes, pois concede maior dimensão aos recursos da

representação, fazendo o espectador mergulhar no drama com profundidade.

Ao apresentar uma história, constituindo-se assim enquanto narrativa, o cinema

movimenta a ação no espaço e no tempo; e a diegese, a autonomia da história na sua

representação do mundo, materializa-se aos olhos da platéia com uma força ainda não

postulada em outras formas de representação. Ao conferir visibilidade, a mediação do olhar

cinematográfico potencializa o efeito da ficção. O “olho sem corpo” cerca a encenação, torna

tudo mais claro, enfático e expressivo115.

As teorias do cinema, como todas as escrituras, exibem traços de teorias que as

precedem e o impacto dos discursos das áreas vizinhas. Dessa forma, devem ser vistas como

parte de uma longa tradição de reflexão teórica sobre as artes em geral116.

Certas afinidades entre o cinema, o teatro e a literatura permitem trabalhar uma

noção clássica de representação válida nesses domínios artísticos para subsidiar e estabelecer

relações sobre o papel social do espetáculo cinematográfico. A “impressão de realidade” ou

da “cena montada”, que se disponibiliza para o olhar como uma fatia “da vida como ela é”,

cristaliza-se no cinema, tomando empréstimos da visualidade do espetáculo teatral, assim

como do mundo imaginário que é convocado pela construção literária. Isso ocorre,

particularmente, quando deixa de ser uma expressão pessoal, como era no Renascimento e no

Barroco, e passa a privilegiar o “ponto de vista” como a categoria central na descrição da

forma literária. Dessa maneira, o processo de representação literária vai promovendo

adaptações nas suas expressões, valorizando o poder da cena; a idéia de autonomia da cena

confere ao “ponto de vista” uma aproximação entre narração e olhar, inserindo a literatura no

115 Ismail Xavier trata da potência do olhar cinematográfico como um momento de aposta no cinema, assegurando na exaltação desse momento em que o cinema se mostra eficiente dentro da continuidade de princípios e funções que se definiu originalmente na representação teatral. Cf. O olhar e a cena – Melodrama, Hollywood, Cinema Novo, Nelson Rodrigues. São Paulo: Cosac & Naif, 2003, p.37-44. 116 Henri Agel assevera que Bela Balazs e Eisenstein consideram o cinema o corolário de todos os meios de expressão anteriores a ele. Cf. A estética do cinema. São Paulo: Cultrix, 1982, p.49.

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domínio da representação visual clássica, estabelecendo um liame entre o texto e a

materialidade de um quadro ou da cena teatral117.

No que diz respeito às relações entre cinema e teatro, é possível destacar

continuidades e não só rupturas. Isso foi feito por alguns teóricos que estabeleceram o

balizamento das diferenças e os possíveis pontos de convergência no sentido de garantir e

marcar as especificidades. Essas especificidades são asseguradas, mas é possível explorar os

seus pontos de intersecção, pois o cinema narrativo quase sempre traz o teatro dentro de si,

atualiza gêneros dramáticos, envolve mise-en-scène118. Até mesmo a experiência dos diretores

que se possam considerar indeléveis reafirma a convergência e similaridade entre palco e tela.

É considerável o rol de artistas que atuaram nos dois campos, além de ser possível a

constatação da mestiçagem dos elementos desses dois domínios artísticos.

Nesse sentido, Edgar Morin afirmará:

Há, pois, um cinema secreto no teatro, e, de igual modo, uma grande teatralidade a envolver qualquer plano de cinema. No primeiro caso, a visão psicológica cinematomorfiza o teatro; no segundo caso, racionalização e objectivação teatralizam o cinema119.

Com essa formulação, Morin constata a influência das convenções teatrais no cinema

e a absorção, por parte do teatro, de novos recursos adquiridos mediante inspiração subtraída

do cinema. Entende o filósofo que os quadros racionais e objetivos são fornecidos pelo teatro,

por meio das unidades de lugar e de tempo, e a visão psicológica advém do cinema.

Roland Barthes, em artigo intitulado Diderot, Brecht, Eisenstein120, trata do sentido

de representação em que a oposição cena-espectador oferece o eixo que permite ressaltar uma

continuidade cuja caracterização envolve um conjunto de elementos que atestam a inscrição

do cinema numa tradição bem definida de espetáculo, em que o jogo instituído pelo binômio –

o olhar e a cena – supõe regras que se recriam e invenções que admitem permanências, pelo

menos como este é entendido a partir do Barroco e, de forma mais específica, desde os

postulados do drama sério burguês que Denis Diderot elaborou no séc. XVIII, diluindo o

formato de teatro para ser notado, exibicionista e escancarado, substituindo-o pela autonomia

117 Em relação ao posicionamento do narrador, Ronaldo Costa Fernandes explicita a questão da narração e do seu contexto de produção. Cf. O narrador do romance: e outras considerações sobre o romance. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996, p.13-21. 118 André Bazin, crítico de cinema francês, criador da revista Cahiers du Cinéma, dedica um capítulo à relação entre cinema e teatro, no qual trata do sistema de convenções a que está subordinado o teatro, estabelecendo as relações com o cinema. Cf. O Cinema. São Paulo: Brasiliense, 1991, p.123-139. 119 Edgar MORIN. O cinema ou o homem imaginário. Lisboa: Moraes Editores, 1970, p. 150. 120 In: Roland BARTHES. O óbvio e o obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira: 1990.

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da representação. A quarta-parede, como queria Diderot implica uma cena auto-suficiente,

delimitada em seu próprio universo, em franca oposição aos “golpes de teatro” que

denunciam a condição de espetáculo. Nesse mundo autônomo, os elementos do teatro clássico

– em que a palavra era hierarquicamente superior ao gesto – iam se diluindo e a dimensão

visual da representação convocava outros princípios segundo os quais a reprodução dos

detalhes ganhava destaque. Se no teatro a quarta-parede estancava a ficção da realidade,

aprisionando-a, no cinema esse distanciamento torna aguda essa situação, pois a

imaterialidade da sua composição declara essa separação. No entanto, outros dispositivos são

acionados e o espectador, pelo efeito psicológico das emoções, pelo dinamismo da imagem e

pelos mecanismos de identificação, é mobilizado a colocar-se dentro da cena cinematográfica.

Ao preconizar um teatro em que o mundo se dava a ver por emoções e gestos,

Diderot instituía o ilusionismo como forma de identificação e entendimento da experiência

humana. No andamento da roda da história, essa demanda vai resultar no teatro popular pós-

revolução francesa, quando se consolida o gênero dramático destinado às massas: o

melodrama. Altamente impregnado pela abundância, é o gênero por excelência das grandes

revelações, desvendamentos, pistas falsas e vilania; as fronteiras do bem e do mal são bem

demarcadas e o espectador é chamado a um posicionamento imediato.

Nada mais natural do que a emergente técnica cinematográfica passar a ocupar o

lugar do melodrama teatral no atendimento da solicitação de representação ficcional da

sociedade, passando a se desenvolver na perspectiva de criar ilusão e assim atingir a

sensibilidade do espectador através do seu “realismo espiritual”121.

Divididos pelo falso problema – de que a arte imagética nova e muda insurgia-se

contra a cena teatral dominada pela palavra – os defensores da autonomia cinematográfica

ajudaram a montar um quadro que defendia a perspectiva da supremacia do cinema com o

argumento de que a nova arte continha formas mais completas de representação, mostrando-se

mais apta ao enfrentamento dos desafios da modernidade.

Peter Szondi concebe o cinema como uma mera descoberta da técnica. O professor,

nascido em Budapeste, com carreira acadêmica na Alemanha, enfatiza que o cinema como

representação mecânica de uma representação teatral podia ser chamado de dramático e que,

ao adquirir independência, obteve possibilidades expressivas específicas, a partir das

descobertas ocorridas entre 1900 e 1920, nas quais ele destaca: 1) a mobilidade da câmera,

121 Henri Agel cunha essa expressão ao tentar caracterizar a essência do cinema e colocá-lo no campo de pertencimento de “tudo que desmaterializa o mundo”. Cf. O cinema tem alma? Belo Horizonte: Itatiaia, 1963, p.93.

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isto é, a da mudança de plano; 2) o close; e 3) a montagem, a composição das imagens. O

cinema, com a criação desses recursos, deixa de ser teatro filmado, passando a ter

configuração independente, com narrativa imagética própria: “Ele já não é mais a reprodução

técnica de um drama, mas uma forma artística épica autônoma”122.

Pode-se inferir, da afirmação de Szondi, o fato de que o cinema, assim como o

personagem épico que não morre no final da trama e dessa forma não realiza o seu destino

trágico, perpetua-se para além do horizonte do palco. O cinema entendido como “forma

artística épica autônoma” se coaduna com as determinações que lhe conferem estrutura, forma

e linguagem próprias, atingindo o patamar que o teatro já tinha conquistado – de admitir a

existência de algo a ser mostrado além daquilo que está ao seu redor, além daquilo que a

platéia acredita ver ou escutar. O cinema assim entendido deixa a passividade que lhe é

conferida a priori e opera também na esfera da produção da ilusão de sentidos,

desestabilizando o real, sendo capaz também de estabelecer um acordo cúmplice com a

platéia assegurando-lhe a liberdade de criar ilações. Os laços que atam o filme a seu

espectador impõem-se no âmbito da experiência comunicacional. A fruição estética permite

ao espectador, imerso na experiência cinematográfica, dialogar com o filme. A condição de

participante do jogo faz o espectador acatar os apelos narrativos, visuais e sonoros do filme,

aderindo ao seu universo diegético, admitindo a ilusão, consciente da supressão da realidade.

Outra interpretação possível a partir da afirmação de Szondi é a de que, além da

técnica, que coloca o cinema e o teatro em dois blocos homogêneos de expressão – que às

vezes se tocam, noutras se distanciam –, estão as formas de se conceber o espetáculo, seja no

palco, seja na tela, que definem a relação do espetáculo com o teor da experiência social e

com o seu tempo. Para além do aparato técnico que lhe deu base, o que define a inscrição de

uma peça ou de um filme dentro de um movimento estético é o que constitui. Sendo meios de

expressões diferentes, só podem exprimir diferentemente as mesmas coisas. Em síntese, há de

se tomar cinema e teatro no plural para tratar com pertinência as suas relações, admitindo-se

também demarcações, atentando-se às especificidades, tanto de um quanto de outro, e à

perspectiva histórica em que estão inseridos.

Para resgatar essas observações que tratam da trajetória do cinema a partir de um

delineamento do conceito de drama, em que as suas relações com o teatro e a literatura foram

apontadas, opera-se um corte seco e as considerações de Szondi indicam o percurso a ser

122 Peter SZONDI. Op. Cit., 2001, p.131.

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seguido: o cinema como expressão autônoma, detentor de linguagem própria dentro de uma

perspectiva histórica que o configure.

É nesse sentido que a discussão levantada torna-se necessária para expor o quadro

constitutivo do cinema de Nelson Pereira dos Santos, como referência para abordar a

fundação de uma cinedramaturgia, no contexto do cinema moderno brasileiro, tomando-o

como um dos mais caros representantes de uma linhagem de artistas que assumiu uma atitude

combativa e posicionada na luta pelo direito exclusivo de representar um povo e uma

realidade, sufocados pelos condicionamentos impostos por uma situação histórica de

dependência e exploração. Seu cinema se propunha a mostrar uma realidade e encontrar uma

solução, a partir da observação de que “toda representação organizada do comportamento

social, a tragédia, ou a comédia, tem uma moral, uma solução. O que eu propunha era uma

solução a favor da libertação do homem, do povo brasileiro”.

Quando se fala em povo, no âmbito do cinema, é possível imaginar a conotação

empregada nos termos definidos por Gilles Deleuze para caracterizar o papel político do

cinema do Terceiro Mundo: “Terceiro Mundo e minorias faziam surgir autores que teriam

condições de dizer em relação a sua nação: o povo é o que está faltando”123.

Com esta afirmação, Deleuze convoca o intelectual do Terceiro Mundo a fundar uma

nova base para o cinema político, não mais voltada para o que se supõe ser povo, o que já está

presente. A tarefa para a qual Deleuze quer o compromisso do artista é a que requer a sua

contribuição para a invenção de um povo.

Corrobora com esse entendimento a formulação de Benedict Anderson, autor que

hoje corresponde a uma das referências mais recorrentes nos estudos sobre a nacionalidade.

Em Nação e consciência nacional, Anderson conceitua a nação como uma comunidade

política imaginada:

Ela é imaginada porque nem mesmo os membros das menores nações jamais conhecerão a maioria de seus compatriotas, nem os encontrarão, nem sequer ouvirão falar deles, embora na mente de cada um esteja viva a imagem de sua comunhão124.

A idéia de nação como “comunidade política imaginada” é a que mais se afina com a

concepção da nação como imagem, como invenção política. Pontua-se que esse entendimento

123 Gilles DELEUZE. A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990, p.259. 124 Benedict ANDERSON. Nação e consciência nacional. São Paulo: Ática, 1989, p.14.

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ratifica a afirmação deleuziana sobre a necessidade de invenção do povo em uma perspectiva

de resistência política:

É preciso que a arte, particularmente a arte cinematográfica, participe dessa tarefa: não se dirigir a um povo suposto, já presente, mas contribuir para a invenção de um povo. No momento em que o senhor, o colonizador proclama ”nunca houve povo aqui”, o povo que falta é um devir, ele se inventa nas favelas e nos campos, com novas condições de luta, para as quais uma arte necessariamente política tem de contribuir125.

A construção da imagem de um povo, “a invenção de um povo”, convoca a

construção de um cinema nacional libertário. Esse foi o projeto dos cineastas do Cinema

Novo126, projeto prospectado por Nelson Pereira dos Santos, que surge diretamente vinculado

à preocupação de transformar o cinema em instrumento de descoberta e local de exercício de

pensamento crítico sobre a realidade nacional, cujas realizações, em grande parte, revisitaram

as tradições artísticas e culturais do País, ajudando a moldar as feições de uma nação e de um

povo.

Nelson Pereira dos Santos percebe que para a fundação de imagens da nação

brasileira é necessário um cinema fecundado pelos signos que traduzem a cultura do País,

alimentando-se não apenas da cultura popular, mas também do imaginário que participa da

formação da cultura do País. Cultura designando todas as práticas de saber e conhecimento,

como as artes de descrição, comunicação e representação, que têm relativa autonomia perante

os campos econômico, político e social, e que com freqüência configuram-se sob formas

estéticas conformadoras do reservatório do melhor de cada sociedade.

Com tal atitude, o cineasta visa o desmonte da hierarquia imposta pelo colonialismo

cultural, afinando-se com a “leitura em contraponto” proposta por Edward Said, ao tratar dos

textos literários dos impérios ocidentais modernos dos séculos XIX e XX que legitimaram a

supremacia européia sobre os povos colonizados:

Devemos, pois, ler os grandes textos canônicos, e talvez também todo o arquivo da cultura européia e americana pré-moderna, esforçando-nos por extrair, entender, enfatizar e dar voz ao que está calado, ou marginalmente presente ou ideologicamente representado127.

125 Cf. DELEUZE. Op. Cit., p.259-260. 126 “No Brasil, o cinema novo é uma questão de verdade e não fotografismo. Para nós, a câmera é um olho sobre o mundo, o travelling é um instrumento de conhecimento, a montagem não é demagogia mas pontuação do nosso ambicioso discurso sobre a realidade humana e social do Brasil” (ROCHA, Op. Cit., 1981, p.17). 127 Edward SAID. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.104.

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Dessa forma, as imagens dos seus filmes, ao agenciarem demandas e forças

existentes na sociedade, encarnam o espírito das diversas representações de identidade e

materializam a criação desse espírito. Forja-se, assim, a imagem de uma nação para que um

povo reconheça-se no espelho da tela, protagonizando a sua história e espraiando-se para o

resto do mundo, indo à procura dos complexos fenômenos que dão corpo ao fato humano, e o

seu exame torna-se constante indagação, torna-se drama.

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dededede EnsinoEnsinoEnsinoEnsino

Minha relação sempre foi muito fácil com os jovens alunos. Estabeleci uma

forma diversa de relacionamento: ser amigo do aluno. De vez em quando

encontro alguns nos festivais em que passo

Nelson Pereira dos Santos128

Em 1965, Nelson afastou-se do jornalismo, desligando-se do Jornal do Brasil, após a

realização de dois curtas-metragens feitos sob encomenda para a empresa: Um moço de 74

anos, documentário comemorativo do aniversário do jornal, e O Rio de Machado de Assis,

que recupera, através de rico material iconográfico, a trajetória do escritor. O motivo que

leva Nelson a abandonar o JB deve-se ao atendimento do convite feito por Pompeu de Sousa

para ensinar cinema na recém-criada Universidade de Brasília (UnB). Foi o mesmo Pompeu

que, após o episódio da liberação de Rio, 40 Graus, ligou-se afetiva e profissionalmente a

Nelson e o inseriu no universo jornalístico:

[...] eu verifiquei que, além de fazer cinema, ele sabia escrever e fiz dele um jornalista. Em função de participar desse trabalho de liberação do filme, passei a conviver com ele e saber dos problemas dele. Então o admiti como copy-desk do Diário Carioca, que era um jornal pequeno, pobre e boêmio, e ele trabalhou com tanto êxito que acabou sendo roubado pelo Jornal do Brasil depois. [...] Eu adotei o Nelson quase como filho [...] Quando eu fui fundar a Universidade de Brasília chamei o Nelson para fazer justamente a parte prática do curso de cinema, e o Paulo Emílio para a parte teórica129.

O ensino de cinema no Brasil está pautado, pelo menos, desde o início dos anos

1950. Com os primeiros Congressos de Cinema, constatava-se a importância de estudos

128 Cf. Rodrigo FONSECA. Meu compadre cinema – sonhos, saudades e sucessos de Nelson Pereira dos Santos. Brasília: M. Farani Editora, 2005, p.32. 129 Cf. Giselle GUBERNIKOFF. Op. Cit., p.255-257.

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sistematizados em cinema, pensados primeiramente para atender a necessidade de quadros

para uma produção que se mostrava então em ascensão, como indicava a existência, entre

outras, da companhia cinematográfica Vera Cruz130. Seminários e cursos livres organizados

por Museus, cinematecas, cineclubes e instituições afins demonstravam que o problema da

formação constituía uma lacuna sócio-cultural que os diversos setores da sociedade

procuravam supri-la da melhor maneira possível131. Nelson, nesse período, acompanhou como

protagonista essa discussão. Nada mais natural e legítimo do que a sua presença na fundação

da experiência pioneira de ensino de cinema na universidade pública brasileira132.

Brasília tinha apenas dois anos quando ganhou oficialmente sua universidade federal.

Inaugurada em 21 de abril de 1962, a UnB abrigou um projeto inovador e revolucionário que

teve como principais idealizadores o educador baiano Anísio Teixeira e o antropólogo mineiro

Darcy Ribeiro, ambos partidários de uma concepção de educação que priorizava a pedagogia

crítica inserida no contexto econômico, social e cultural de seu tempo. Entendiam que boa parte

dos problemas do sistema educacional brasileiro se devia ao modelo de universidade vigente,

tradicional, conservador e descomprometido com a sociedade.

Assim, o projeto da UnB constitui-se em uma experiência singular na história da

universidade brasileira – a oportunidade de se experimentar um modelo alternativo para a

educação superior brasileira, voltado para as transformações, procurando eliminar ao máximo

os formalismos e investir na criação de uma instituição livre, na qual o ensino, a pesquisa e a

extensão se voltassem para a resolução dos problemas nacionais, acompanhando as mudanças

de valores e as novas perspectivas que se colocavam para a sociedade brasileira. Se o País

passava por mudanças, era preciso que a escola preparasse o novo homem, o homem

moderno, para integrar-se à nova sociedade, que deveria ser essencialmente democrática.

A UnB foi a primeira no Brasil a ser dividida em institutos centrais, faculdades com

cursos integrados e formação interdisciplinar. E, nessa perspectiva, foram criados os cursos-

troncos, nos quais os alunos tinham a formação básica e, depois de dois anos, seguiam para os

institutos e faculdades.

Pompeu de Sousa coordenava o curso de Jornalismo e passou a conduzir a

formatação da Faculdade de Comunicação de Massas, que abrigava também o curso de

Cinema. Atendendo ao convite, portanto, Nelson tornou-se professor de técnica e prática

130 É importante salientar que, desde os anos 1940, figuras como Vinícius de Moraes e B. J. Duarte apontavam o ensino formal de cinema como a única maneira de superar o atraso estético e econômico da produção brasileira. 131 Cf. Luciana Rodrigues SILVA. A Formação em Cinema em Instituições de Ensino Superior Brasileiras. Dissertação de Mestrado apresentada à USP/ ECA, 2004, p. 41-74. 132 Torna-se necessário o registro das experiências até então conhecidas: Escola Superior de Cinema da Universidade Católica de Minas Gerais e a Escola Superior de Cinema São Luiz, em São Paulo.

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cinematográfica do curso de cinema da UnB. Sobre a concepção do curso de Cinema, Pompeu

de Sousa esclarece:

Quando nós criamos a Universidade [...] a idéia era essa [...], fundar uma produtora cinematográfica para produzir filmes de todos os tipos, documentários, ficção, produzir filmes para o mercado cinematográfico. Criamos o núcleo da Escola de cinema, que era uma das escolas que compunham a Faculdade de Comunicação de Massas, para construir o embrião em torno do qual se formariam alunos, não só a nível de graduação, mas a nível de pós-graduação, se formaria, inclusive, toda a equipe da escola de cinema133.

A composição inicial do quadro de professores foi minimalista. Respondendo pela

parte teórica, Paulo Emílio Salles Gomes, que levou dois jovens assistentes: Jean Claude

Bernardet e Lucila Bernardet. A demanda prática foi atendida por Nelson Pereira dos Santos.

Como proposta pioneira, o curso de Cinema atraiu alunos de vários estados do País.

Djalma Limongi Batista, diretor de Asa Branca, um sonho brasileiro (1980), Brasa

Adormecida (1987) e Bocage, o triunfo do amor (1998) relembra sua vivência na UnB:

Brasília, 1965. Curso de Cinema da PEV – Práticas Educativas Vocacionais do CIEM – Centro Integrado de Ensino Médio da UnB – Universidade de Brasília. Eu tinha então dezesseis anos, vindo de Manaus para Brasília para terminar o 3° ano clássico, visando depois cursar cinema no seu primeiro curso oficial ao nível universitário do Brasil. A universidade idealizada por Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro permitia que os alunos do secundário do CIEM já pudessem fazer matérias dentro da Universidade, sem vestibular, e contando pontuações depois de nela se ingressar. Não se pagava. Nós inauguramos suas instalações, as salas de aula abriam para jardins internos perfumados – tudo cheirava a novo, como a própria cidade ainda em construção134.

A implantação do projeto contou com as dificuldades e os desafios inerentes ao

novo, mas a organicidade da proposta, que vinculava a Universidade à vida, fazia o projeto

avançar. A instituição nascia praticamente com a cidade e se espalhava sobre ela. Filmes eram

exibidos para a comunidade, palestras e seminários aconteciam com periodicidade. Os

professores assumiam a tarefa especificamente universitária, mas não exclusivamente

universitária – davam aula para o nível médio, contribuindo para a formação de uma cultura

mais ampla do estudante.

133 Cf. Giselle GUBERNIKOFF. Op. Cit., p.257. 134 Cf. Maria Dora MOURÃO, Maria do Rosário CAETANO e Laure BACQUÉ (Org.). Jean-Claude Bernardet: uma homenagem. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Cinemateca Brasiliera, 2007, p.90.

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Havia, assim, uma circulação e um movimento em torno do cinema. Nelson

acompanhava essa dinâmica, mas não rompia seus vínculos com outros projetos, não

efetivando sua mudança para Brasília. Jean Claude Bernardet relata que:

Ele não conseguia se fixar lá. Dava umas aulas, ia embora para voltar daí a uns dois dias e, em realidade, voltava três semanas depois. Eu me lembro do meu desespero, do Pompeu, do Paulo Emílio, para não deixar que o reitor soubesse [...] Tínhamos alguns momentos de irritação, inclusive por parte do Paulo, quando o Nelson não voltava e a gente nem sabia se estava no Rio, Belo Horizonte ou São Paulo. [...] Mas como ele era uma pessoa, não só de prestígio, também muito amada, assim que regressava todas essas tensões ficavam diluídas, os estudantes não se queixavam, achavam tudo maravilhoso135.

O depoimento de um ex-aluno, Luís Carlos Ripper, que terá seu nome associado a

vários filmes de Nelson, confirma a afirmação de Jean Claude Bernardet em relação à diluição

das tensões ocasionadas pela sua ausência e indica o estabelecimento dos laços de cooperação

e aprendizado entre aluno e professor:

Para um estudante de cinema, um diretor importante como ele era sempre uma incógnita. Mas Nelson não entrou muito como um professor. Era um pouco o irmão mais velho da turma. O desempenho dele como professor era idêntico ao de diretor: a integridade com o cotidiano, as relações de afeto. Ele é extrema e constantemente didático. Você senta com ele num bar, na conversa aprende bastante, uma relação bem fora dos parâmetros, direta. Mas ele também é muito curioso, então é uma convivência boa, porque há a troca136.

Na instalação do curso, a escassez de recursos e a precariedade de equipamentos para

as aulas práticas instigaram Nelson e seus alunos a encontrarem saídas com grau zero de

ortodoxia e potência máxima de imaginação. A partir de um argumento do poeta francês

Jacques Prévert, desenvolveu com os alunos um roteiro, filmou um filme sem película, sem

estúdio e sem atores – Cinema Imaginário. Impossível pensar essa situação em outro cenário

que não seja o de instauração de um projeto inovador.

Seguindo as proposições do projeto da UnB, o de gerar conteúdos interdisciplinares,

foi produzido o Fala Brasília, documentário que utiliza a técnica de som direto para registrar

as várias maneiras de se falar português na cidade. O curta-metragem teve como base a

pesquisa feita por Nelson Rossi, professor de filologia portuguesa, especialista em

dialectologia, que procurava demonstrar que Brasília, povoada por migrantes de todas as

135 Apud Helena SALEM. Op. Cit., p.192-193. 136 Apud SALEM, Ibid. p.193-194.

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regiões do País, era o receptáculo de todas as fonéticas, constituindo uma síntese dos modos

de falar do Brasil. O filme foi realizado nas favelas, sons e imagens foram captados com

muita intensidade, seguindo a ordem apregoada por Nelson em outras produções que realizou,

em que a aplicação das idéias se afirmaram num campo de conhecimento e experimentação de

linguagem. A finalização ocorreu posteriormente no Rio de Janeiro, pois mudanças

institucionais desviaram a rota do projeto da UnB.

A experiência do curso de cinema foi breve, abortada ainda na fase de implantação.

A ditadura instalada com o golpe militar de 1964 atingiu o projeto que se vislumbrava. Na

verdade, a instituição brasiliense já era tida por setores extra-universitários como um foco do

pensamento esquerdista, visão que só se acirrou com os militares.

Em 1965, o campus foi invadido e cercado por policiais militares e do Exército,

várias vezes durante o ano. No dia 18 de outubro, depois da demissão de 15 docentes,

acusados de subversão, 209 professores e instrutores assinaram demissão coletiva, em

protesto contra a repressão sofrida na Universidade. De uma só vez, a instituição perdeu 79%

de seu corpo docente. Sobreveio a crise. A Universidade se desagregou. Alunos e mestres

retornaram aos seus estados.

Nelson sintetiza a sua participação no projeto fundador da escola de cinema na

Universidade de Brasília, dimensionando-a numa perspectiva de resistência:

O Paulo Emílio já fazia extensão cultural lá em Brasília. Numa apresentação de Vidas Secas, ele me convidou: você não quer vir para Brasília? Era uma proposta tentadora no momento. E havia também uma certa missão política: precisávamos salvar a universidade do Darcy Ribeiro dos militares. Em 1964, o Darcy e mais três professores foram demitidos. Darcy foi embora com o Jango. A idéia era preservar aquela universidade, que era bastante inovadora. Então fui lá fazer o curso de cinema. Mas, em junho, o Pompeu acabou demitido. Daí, mudou o reitor. Com a saída do Pompeu, pedimos demissão em solidariedade137.

A aurora que se entrevira para os estudos de cinema na UnB fez com que Nelson, em

1968, apresentasse uma proposta ao reitor da Universidade Federal Fluminense (UFF),

Manoel Barreto Netto, para a criação de um Curso de Comunicação Social, a partir da

experiência de Brasília. O reitor havia adquirido o antigo cassino Icaraí para sediar as

instalações da UFF, enfrentando a resistência de setores que achavam o local inadequado – no

entanto venceu os seus opositores e deu prosseguimento à iniciativa.

137 Cf. Rodrigo FONSECA.Op. Cit., p.62.

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Tunico Amâncio, pesquisador e professor da habilitação em Cinema da UFF,

relembra a participação de Nelson na fundação do curso:

O Nelson foi o fundador do curso de cinema da UFF, a partir da utilização da Sala de Cinema que foi incorporada pela Universidade e que virou o Cine Arte UFF, em 1968. Nelson fez todas as demarches políticas e foi o aval do desenvolvimento do curso, com incursões periódicas ao INC e depois à Embrafilme para contatos e projetos138.

Helena Salem com exatidão informa sobre as novas atribuições de Nelson na UFF:

Em maio de 1968, Nelson é designado responsável pelo setor de arte cinematográfica da UFF e, junto com outros professores, recebe a tarefa de estudar as diretrizes para o funcionamento do Instituto de Arte e Comunicação. Entre seus futuros alunos, os futuros cineastas Lael Rodrigues e Tizuka Yamasaki, fotógrafo Antônio Luís Soares, produtor Cacá Diniz 139.

Na UFF, Nelson detalha o projeto, leva adiante o seu método e mantém o tom no

relacionamento com os alunos. Como atividade inicial forma equipe e delega tarefas para a

realização de um filme sobre a Universidade, enfocando a reforma universitária, seu alcance e

repercussão na UFF. Precavido, o primeiro entrevistado é o reitor, mecanismo utilizado como

passaporte para assegurar o livre trânsito e a continuidade do projeto.

Em função de sua atividade profissional, entretanto, Nelson nem sempre foi o

professor-padrão, ao menos em sala de aula. Ele encontrava sempre os alunos, os levava para

acompanhar filmagens, foi durante muito tempo o responsável pelo clima profissional da

escola, que nunca foi escola nem curso, tendo sido sempre uma habilitação da Comunicação

Social:

Mas, Nelson sempre foi a figura de respeito que ditava as linhas políticas a serem seguidas por todos. Quando ele não estava em produção, seus contatos com alunos eram mais frequentes, mas nem sempre regulares. O mundo do cinema era parte das aulas, fôsse na produtora dele no Humaitá, fôsse nas instituições cariocas de fomento, fôsse até no botequim140.

Partilha a mesma compreensão José Marinho, ator e professor Emérito da UFF, título

que recebeu pela implantação do curso de Comunicação Social com habilitação em Cinema.

138 Entrevista concedida a Marise Berta em 11/07/2007. 139 Cf. Helena SALEM. Op. Cit., p. 241. 140 Tunico AMÂNCIO. Entrevista concedida em 11/07/2007.

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Segundo Marinho, Nelson esteve presente em todas as frentes que se fizeram necessárias para

a consolidação do projeto de ensino de cinema na UFF:

Nelson sempre emprestou o seu prestígio para lutar por equipamentos, recursos e condições de funcionamento do curso. Batia em todas as portas MEC, Embrafilme, INC...141.

A trajetória de Nelson Pereira dos Santos na UFF é marcada por acontecimentos

tanto de ventura como de provação acadêmica. Alguns episódios são significativos. Merece

menção o concurso que faz para professor titular da cadeira Introdução à Técnica da

Comunicação, em 1970, “no momento em que chegaram os professores que foram dar

consistência ao “curso”, quase todos vindos da filosofia”142. Nelson não sistematizou seus

títulos nem a rica experiência de realização cinematográfica, conforme prescreve as

determinações da academia. Essa inobservância aos princípios da tradição acadêmica o coloca

no limiar de uma reprovação, levando Zuenir Ventura, membro da banca, a advertir Emanuel

Carneiro Leão, que também compunha a banca, das conseqüências de sua reprovação:

Esse aí é o Nelson Pereira dos Santos, com um filme só já teria o suficiente para ele ganhar dez em títulos. A gente corre o risco, se o reprovar, de ficar na história como a banca que conseguiu reprovar por títulos o Nelson Pereira dos Santos!143.

Na aula expositiva seu desempenho garantiu-lhe a vaga. Nelson respondeu

assertivamente aos seus argüidores. Mais uma vez, e não mais pela via da expressão

cinematográfica, declara seus princípios e esteia suas posições a partir de referências críticas e

políticas sobre o Brasil. Prossegue Zuenir Ventura no seu relato:

Fez uma aula brilhantíssima, falando muito da experiência de Brasília. Lembro-me que colocava as coisas com muita simplicidade, sem retórica, falava da alienação dos estudos de comunicação, da importação de teorias. Ele propunha uma visão de comunicação ligada à realidade brasileira, em termos de teoria e prática144.

Nos anos que se seguem, Nelson compatibiliza suas atividades de criação

cinematográfica às de ensino. O período é marcado na história do Brasil pela supressão da

liberdade política, quando ocorre o golpe dentro do golpe, caracterizado pelo endurecimento

141 José MARINHO, entrevista concedida em 10 /09/2007. 142 Tunico AMÂNCIO, entrevista concedida em 11/07/2007. 143 Apud Helena SALEM. Op. Cit., p.242. 144 Id. Ibid., p.242.

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da ditadura, que resulta em prisões, exílio e clandestinidade de políticos, artistas e intelectuais.

Em Parati, cidade cenário de suas produções do fim dos anos 1960 e início dos 1970, Nelson

vive seu produtivo auto-exílio em que realiza três filmes145. Esses filmes contam com a

participação de alunos, uma mistura de egressos do curso de Brasília que seguiram os passos

de Nelson e outros da UFF. Alguns deles, a partir da experiência direta com a produção

cinematográfica e seu mercado, passam a atender as suas demandas, engajam-se na cadeia

produtiva e não concluem a graduação.

Outro episódio que merece registro na sua relação com a academia, se dá quando

Nelson sai do Rio de Janeiro para filmar Tenda dos Milagres na Bahia e o Diretor da

Faculdade rompe acordo feito e encaminha para a Reitoria sua folha constando de 30 faltas

junto à portaria que o nomeia para atuar em uma comissão da Embrafilme, que o liberava da

sala de aula. A atitude do Diretor resulta em processo administrativo e no seu afastamento

temporário da UFF. A conciliação se deu sob a forma de uma licença sem vencimentos e

Nelson prosseguiu na atividade acadêmica, com a qual mantém vínculos até hoje, seja como

professor aposentado da UFF, seja como professor convidado por instituições nacionais e

internacionais146.

Como foi exposto, o desenvolvimento da cultura acadêmica no que se refere à arte

cinematográfica é recente no País e teve em Nelson Pereira dos Santos um de seus pilares, uma

vez que esteve presente na fundação dos primeiros cursos de cinema, dos quais recebeu os

títulos de Notório Saber (Universidade de Brasília) e Professor Emérito por Alta Qualificação

Científica (Universidade Federal Fluminense), Doutor Honoris Causa pela Universidade

Federal da Bahia, além de inúmeros outros títulos acadêmicos em diversas universidades

estrangeiras, como por exemplo, Doutor Honoris Causa pela Universidade de Paris X

(Nanterre).

Dando continuidade ao seu percurso acadêmico e confirmando a sua importância no

panorama do cinema internacional, Nelson atuou como professor convidado na Columbia

University, no início da década de 1990, durante um semestre, lecionando a disciplina de

Direção Cinematográfica:

145 Azyllo muito louco (realização 1969 / lançamento 1971), Como era gostoso o meu francês (realização 1970 / lançamento 1972) e Quem é beta? Pás de violence entre nous (realização 1972 / lançamento 1973). Integram as equipes desses filmes seus ex-alunos Luiz Carlos Ripper, Antonio Luiz Soares e Carlos Alberto Diniz. 146 Essa situação foi narrada por José Marinho, em entrevista concedida em 10/09/2007.

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O tema era o cinema no Terceiro Mundo. Eu passava filmes, passava a minha experiência. Era simples, era falar sobre o meu trabalho. Era o tempo de Collor, eu fui embora 147.

A tradição americana é a de aliar teoria e prática. Lá, Nelson além de acompanhar

duas turmas de direção, em regime de dedicação integral, tanto na formulação como na

execução do projeto audiovisual, conviveu com vários professores que atuam na indústria,

travando contato com a produção intelectual da universidade americana:

Se um cara deu certo no mercado, ele tem uma espécie de obrigação de voltar para a universidade, pelo menos por um semestre, para transferir a experiência que acumulou148.

No Brasil, mantém seus laços com o ensino, eventualmente realiza um curso especial,

como o ministrado a um grupo privilegiado de alunos na UnB em 1995 e “ainda ‘protege’ o

curso de cinema e é a quem se recorre quando se tem problemas institucionais a resolver”,

afirma Tunico Amancio149 a respeito do vínculo atávico de Nelson com a habilitação em

cinema da Universidade Federal Fluminense, vínculo que também é denotado pelo anúncio da

sua presença na abertura do seminário em que alunos e professores da UFF, na primeira

semana de dezembro de 2007, discutirão a mudança das diretrizes do curso que se desvincula

da área de comunicação passando a ser um curso especificamente de cinema e audiovisual.

147 Apud Rodrigo FONSECA. Op. Cit., p. 32. 148 Apud Rodrigo FONSECA, Ibid., p.28. 149 Entrevista concedida em 11/07/2007.

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de Formaçãode Formaçãode Formaçãode Formação

Eu recebi uma porção de influência italiana de minha mãe, que tinha uma maneira clara de pensar, na qual religião não existia. Na vida diária não havia pensamento religioso. Nem pelo lado de meu pai. Meu pai era um homem solitário, de uma família muito pequena; ele era órfão e foi criado por Maçons. Por causa disso, meus irmãos e eu sempre tivemos grande liberdade de pensamento. Não havia códigos no plano do pensamento, mas havia no plano do comportamento – digamos que havia uma visão pragmática do comportamento; não havia explicação religiosa para o comportamento. O único modelo de comportamento que se podia seguir era aquele dado por eles próprios, de tal forma que desde o meu primeiro contato com a literatura na escola e durante o tempo de faculdade, o pensamento político que pôde influenciar os jovens foi sempre a livre escolha. Eu era livre para receber influências e para aceitá-las ou não. O exemplo de meu pai é o de um belo pensador.

Nelson Pereira dos Santos150

Foram os dez anos de minha formação, do ginásio á Faculdade de Direito, uma viagem a Paris, o casamento, serviço militar, cineclubes, Juventude Comunista, primeiro emprego em jornal, primeiro filme, primeiro filho, que nasceu em 1950. Estava impregnado da certeza de que o Brasil encontraria o bom caminho para ter uma sociedade mais rica e mais justa, porque assistia ao fim da ditadura – ninguém imaginava que poderia acontecer outra no futuro. E, no mundo, acabavam para sempre – dizia-se – o fascismo e o nazismo.

Nelson Pereira dos Santos151

150 “I received a lot of Italian influence from my mother, who had a rather clear way of thinking in which religion didn`t exist. In everyday life, there was no religious thought. Nor on my father`s side. My father was a solitary man, from a very small family: he was an orphan and raised by the Masons. Because of this, my brothers and I always had freedom of thought. There was no code on the level of thought, but there was a code on the level of behavior-let`s say there was a pragmatic view of behavior; there was no religious explanation for behavior. The only standard of behavior you would follow was that which they themselves gave, in such a way that from my first contacts with literature in school and throughout high school, the political thought that could influence young people was always a free choice. I was open to receiving influences and to accepting them or not. My father’s example is of a beautiful thinker”. Cf. Interview Gerald O’GRADY (1995). In: Darlene J. SADLIER. Nelson Pereira dos Santos. Urbana and Chicago: University of Illinois Press, 2003 , p. 132 151 Entrevista concedida a Paulo Roberto RAMOS. Estudos Avançados, 21 (59), 2007.

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Nelson Pereira dos Santos foi introduzido na mágica dos filmes pelas mãos dos pais,

cinéfilos declarados, que em um ritual de iniciação levavam a família aos domingos para

assistir a uma maratona de filmes. No programa: um documentário, seguido de comédias – O

Gordo e o Magro, Harold Lloyd, Charlie Chaplin, Buster Keaton – e de ficções

protagonizadas por heróis e estrelas de Hollywood. O Brasil era um grande consumidor de

filmes estrangeiros152, assistia-se, sem limites, a toda a produção americana.

Seu irmão mais velho, Saturnino (Nino), lembra da entrada do cinema na vida do

caçula da família:

Papai alugava um camarote no Cine Teatro Colombo, no Brás, um cinema com ares de Teatro municipal, decorado com arabescos, flores-de-lis, pintura dourada, sensacional. O Nelson ia desde bebê, mamãe levava até a mamadeira dele para o cinema.153.

Nelson confirma as palavras do irmão, credita aos pais o estatuto de cinéfilos

orgânicos154, responsáveis pelo despertar do seu interesse pelo cinema:

Foi toda uma educação que a gente teve [...] Mas tudo é uma construção – quando na realidade, o que aconteceu é que meus pais eram cinéfilos. [...] Eles eram espectadores, consumidores, não eram cinéfilos eruditos não. Eram daqueles que vão ao cinema por prazer, que reconhecem os seus ídolos, os atores155.

No seu aprendizado tanto as matinês, assistidas aos domingos com a família, como

os estudos formais, inicialmente no Colégio Estadual Presidente Roosevelt, posteriormente,

na Faculdade de Direito do Largo do Machado, propiciaram sua aproximação com grupos de

estudantes que se preocupavam com os problemas sociais e econômicos do País. Esse seu

comprometimento levou-o a filiar-se ao Partido Comunista Brasileiro em 1945, ano em que o

PCB retornava legalmente à cena política e eleitoral brasileira.

O clima advindo do pós-guerra e a pressão das forças democráticas criaram um

ambiente propício ao posicionamento e reorganização do Partido Comunista Brasileiro na

152 Em contraponto, o resumo estatístico da produção cinematográfica brasileira do final dos anos 1920 até 1940 é oferecido por Walter da Silveira: “Em 1929, fazíamos cinco filmes; em 1931, avançávamos a dez; em 1932, descíamos a um filme sob o esmagamento do cinema falado, porque o Brasil não tinha condições técnicas de realizar um filme sonoro. Só conseguimos restabelecer dez filmes, em 1944”. Cf. Walter da Silveira. O eterno e o efêmero. José Umberto DIAS (org.). Op. Cit., p.270. 153 Apud SALEM. Op. Cit., p.29. 154 A idéia, aqui, se filia ao conceito de “intelectual orgânico”, formulado por Antonio Gramsci, para quem este tipo de intelectual é aquele criado no interior de sua classe, a partir do seu processo de formação e desenvolvimento. Cf. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1979. 155 Apud SALEM. Op. Cit., p. 29.

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cena política do País. A eleição para a Assembléia Constituinte em 2 de dezembro de 1945,

sentenciou o final da ditadura de Vargas e demonstrou a possibilidade de soerguimento do

PCB, após o partido ter sofrido acirrada perseguição e perda de quadros. Em um universo de 6

milhões de eleitores, o candidato à Presidência, Yedo Fiúza, conquistou 10% dos votos. No

Rio de Janeiro, o PCB formou uma expressiva bancada de 18 vereadores, a maior da Câmara

municipal. Como saldo das eleições ainda contabilizou a eleição de 14 Deputados Federais e

Luís Carlos Prestes, secretário geral do PCB, ganhou uma cadeira no Senado, sendo o senador

mais votado.

Com a ocupação do espaço político o Partido Comunista Brasileiro galvanizou

significativa parcela da intelectualidade brasileira156, atraindo simpatias e adesões em um

cenário de grande movimentação política e cultural. Os comunistas haviam vivido curtos

períodos de legalidade. No ambiente de promessas do pós-Guerra, de oxigenação da

atmosfera política do País pela vigência das liberdades democráticas, o PCB aparecia aos

olhos de muitos como a possibilidade de realização do desejo de mudança, a única coisa

realmente nova, eivada de promessas e não comprometida com o ordenamento político

anterior.

Luís Israel Febrot, advogado e crítico teatral, ex-colega de Nelson no Colégio do

Estado Presidente Roosevelt, responsável por atraí-lo para as hostes do Partido Comunista,

recupera a ecologia do curso clássico, local em que se conhecem e começam a tecer os laços

de amizade que atravessará décadas:

O Colégio do estado era a grande escola do período, propiciava uma excelente formação intelectual, cultural brasileira em geral. [...] Estudava-se muito, lia-se mais ainda. E fazia-se muita política157.

É nessa atmosfera que Nelson adquire discernimento político e segue formatando a

estrutura intelectual que embasará todo o seu desenvolvimento artístico posterior. Febrot

recorda:

Quando ele entrou no colégio, era de direita, reacionário mesmo. Acho que o colégio foi a pedra de toque do Nelson, como foi de muita gente. O Colégio do estado naquela época era um celeiro de politização e de formação cultural das pessoas. Foi onde ele se fez homem, abriu os olhos para a sociedade,

156 Nesse período, os comunistas brasileiros chegam a 200.000, constituindo o maior PC da América Latina. O partido atrai a nata da intelectualidade brasileira, edita um órgão central, A classe operária, e outros diários em vários estados, além de contar com uma importante editora, a Vitória. Cf. Moisés VINHAS. O partidão: a luta por um partido de massas, 1922-1974. São Paulo: Hucitec, 1982. 157 Apud SALEM. Op. Cit., p.36.

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entendeu a estrutura social, compreendeu os seus mecanismos, e fez uma opção. O que ele fez depois é conseqüência e coerência158.

Nelson rememora o tempo de aprendizado na juventude comunista:

Entrei no partido em 45, 46, com cerca de 17 anos. Pertencia à juventude comunista e, em decorrência da convivência com os grupos culturais dentro do partido, fui desenvolvendo afinidades coma as artes, sobretudo o cinema. Logo cinema e comunismo se imbricaram159.

Se na política esse era um tempo de oxigenação no cinema, com o fim da guerra,

começaram a entrar em circulação filmes que quebravam a hegemonia do cinema americano e

do cinema político sobre a guerra, majoritariamente presente nas telas do País. Os cineclubes

também tiveram o seu funcionamento facilitado pela queda da obrigatoriedade de submeter a

programação à censura. A história do cinema conhecida através dos livros começa a se

materializar através dos filmes. Nelson acompanha essa movimentação cinematográfica com

especial interesse:

Era o ano de 1945 ou 1946, acabava a guerra, começaram a aparecer uns filmes diferentes [...] eu vi algumas histórias de amor, mas subordinadas a um princípio político, [...] era um cinema maniqueísta, fechado em uma ética [...]. Havia também alguns filmes de aventura, filmes de western, havia alguns atores, como John Ford [...] Havia um cinema meio escondido que os franceses foram descobrir depois, que era o filme noir. Eram filmes policiais, filmes considerados de segunda categoria do ponto de vista industrial, comercial, mas que revelavam, um pouco as questões políticas da sociedade americana [...] Havia uma outra corrente que era o cinema mexicano e o argentino com uma presença muito forte, especialmente em São Paulo [...] Era realmente isso que se podia ver160.

Febrot, compondo o quadro de formação intelectual de Nelson, assinala ainda que:

A literatura era uma grande paixão de Nelson, que devorava tudo: Dostoievski, José de Alencar, Oswald de Andrade, Shakespeare, Euclides da Cunha (Os Sertões o impressionou muitíssimo), Jorge Amado, José Lins do Rego, livros e aventura, poesias, uma lista interminável161.

158 Apud SALEM. Op. Cit. p.37; e Cinema Nôvo: Origens, ambições e perspectivas. Op. Cit., p.185. 159 Cf. Entrevista concedida a José Geraldo COUTO e Alcino Leite NETO. Op. Cit. Na entrevista, Nelson relata também que sai do Partido Comunista em 1956, quando toma conhecimento do relatório Krushev. 160 Catálogo do II Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual. Op. Cit., p.50. 161 Apud SALEM. Op. Cit., p.37.

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Nelson complementa Febrot e revela que a sua imagem de Brasil foi vislumbrada por

meio da literatura:

Muito da minha descoberta do mundo, nos anos de juventude, passou pela literatura. O Brasil, para um paulista como eu, era um mundo muito pequeno, fechado, de relações familiares, amizades...Era por meio da literatura que a gente tinha uma visão do Brasil 162.

Essas afirmações somam-se a outras indicativas de que, no período de formação,

momento em que o amálgama do seu pensamento estético e político se corporificou, Nelson

foi um ávido leitor, incluindo-se na sua seleção os romances de Jorge Amado e Graciliano

Ramos. Escritores, ambos nordestinos, o primeiro baiano e o segundo alagoano, que

contribuíram para a construção do romance regionalista seguindo a tendência modernista de

construir um discurso da identidade nacional e fazem vir à tona, em forte tom de denúncia, a

extensão dos problemas sociais da região, ao tematizarem as mazelas do nordeste do Brasil.

O modernismo nas artes brasileiras, ao decorrer do século passado, desenrolou-se

atrelado ao processo de consolidação da racionalidade capitalista moderna no Brasil163. O

olhar direcionado à nação e ao povo brasileiro foi característica dos mais diferentes

movimentos estéticos a partir da Semana de Arte Moderna de 1922. O exame da realidade

brasileira, ligado ao enaltecimento do caráter nacional do povo brasileiro, apareceria por volta

de 1930 e 1940 nos romances regionalistas. Alfredo Bosi ao periodizar a história da literatura

brasileira constata a abertura oferecida pelo Modernismo acerca dos problemas da nossa

realidade e aponta para o momento da maturação desse debate:

a compreensão viril dos velhos e novos problemas estaria reservada aos escritores que amadureceram depois de 1930: Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Carlos Drummond de Andrade... O Modernismo foi para eles uma porta aberta164.

Bosi entende que o sistema cultural posterior a 1930 não corta os seus liames com o

Modernismo, resulta apenas em admitir novas configurações históricas que demandaram

novas estruturas artísticas.

Jorge Amado e Graciliano Ramos são autores recorrentes no percurso fílmico de

Nelson, que mais tarde viria a se consagrar através de adaptação das obras literárias desses 162 Entrevista concedida a José Geraldo COUTO e Alcino LEITE NETO. Op. Cit. 163 Florestan Fernandes trata o período e suas implicações sociais, políticas e culturais. Cf. A revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. 164 Alfredo BOSI. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1980, p.432.

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dois escritores também vinculados ao Partido Comunista Brasileiro, sendo que Jorge Amado

chegou a ocupar uma cadeira na Câmara dos Deputados.

Sobre a leitura necessária de Jorge Amado nos seu período de formação, Nelson

afirma:

Para a minha geração paulista, naquela vidinha medíocre de classe média – da escola, do bairro, a chuva, a imitação da Europa – ler Jorge Amado significava descobrir o Brasil. De repente, era o nosso avesso. O grande libertário. No Estado Novo, era proibido pela polícia e pela família. Ele mostrava as lutas de classe e também tinha uma proposta de educação sexual, o sexo livre165.

Também é fundamental para consolidar a sua formação a leitura dos formuladores

que pensaram o Brasil e dissecaram a fisiologia do homem brasileiro: Gilberto Freyre, Sérgio

Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Antônio Candido, entre outros.

É o próprio Nelson Pereira dos Santos que, ao fazer um balanço fundindo as

determinações do momento histórico em que se deu a sua formação e o desenvolvimento do

pensamento intelectual e político do País, reivindica as suas filiações ao afirmar que os seus

filmes contêm influências dos intelectuais que renderam matéria-prima para a cultura

brasileira:

Meus filmes prestam algum tipo de tributo àqueles que fizeram minha cabeça, como Jorge Amado, Graciliano Ramos, os modernistas... O mais importante é que todos esses autores chamavam a atenção para o que significava ser brasileiro. Evidentemente, isso não foi tudo na minha formação intelectual. Eu vivi a juventude muito esperançosa, a juventude do pós-guerra. Acabava a guerra, chegava ao fim o fascismo no mundo, terminava o Estado Novo no Brasil... Diante desse cenário, o pensamento tinha espaço. E a presença dos partidos marxistas apontava um caminho bem luminoso... Então, aquele era um momento de se perguntar. Era um momento de tirarmos da cabeça todas as dúvidas que tínhamos. Por exemplo, era a hora de saber o que aconteceu nos anos 30 para propiciar a revolução liberal do Getúlio. Eu acabei despertando essa curiosidade pela vida brasileira. E aí apareceram respostas na forma das palavras e teorias do Gilberto Freyre, do Sérgio Buarque... Antônio Cândido vinha para nos defrontar com o futuro. Deixar em nossas cabeças a questão mais importante: mas o que é que somos nós, os brasileiros? Não sei se eles tinham as respostas. Mas foram eles que responderam primeiro... Para mim é isto: o pioneirismo. Eles foram nossos grandes mestres que me explicaram o que é ser brasileiro... 166

165 Apud SALEM. Op. Cit, p. 40. 166 Apud Rodrigo FONSECA. Op. Cit., p.17-18.

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Em 1947, Nelson entra para a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco,

tradicional vanguarda política do movimento estudantil, dá prosseguimento ao seu ativismo

político e é eleito presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto, um dos principais núcleos

em torno do qual a vida política universitária paulistana se aglutinava. Apesar de não ter a

hegemonia do Centro Acadêmico a esquerda articulou uma composição política que lhe

assegurou o cargo de Procurador, sempre ocupado por um calouro. Nelson foi eleito

representando o Partido Renovador. Sobre a sua escolha pela Faculdade de Direito afirmará:

Eu não queria ser médico nem engenheiro. A Faculdade de Direito era a escola que tinha o mito da luta pelas liberdades. Ser estudante de direito significava, para mim, estar participando da vida do País, defender as liberdades167.

No ano seguinte fez vestibular para a Escola de Sociologia e Política, que logo

abandonaria. Àquela altura já estava envolvido em muitas atividades relacionadas ao cinema,

às artes e à política. Militância artística e política se imiscuíam imprimindo uma marca

fundamental em sua trajetória em um período de profunda agitação na cidade de São Paulo,

que se industrializava e acelerava a sua expansão. De alguma forma, a substituição de

importações forçada pela guerra fortaleceu o desenvolvimento da indústria nacional. Essa

situação repercute no movimento social. A nova ordem ao priorizar a redemocratização e

reduzir o papel intervencionista do estado fez com que a burguesia paulista emergente, forjada

no meio de prósperos industriais, geralmente imigrantes, seguisse a tendência indicada pela

burguesia de países capitalistas desenvolvidos. Assim, a burguesia local reorientou a

aplicação de sua energia e empenho, direcionando-os para investimentos culturais168.

Esse novo andamento alimentou a vida cultural da cidade. Nelson vivencia com

intensidade o momento e passa a transitar pelos círculos culturais dinamizados. Participa das

sessões do Clube de Cinema de São Paulo169 e das atividades de grupos de teatro amador e

experimental170, integra o Clube de Artistas e Amigos da Arte com os seus amigos artistas

167 Apud SALEM. Op. Cit., p.40. 168 Nos anos imediatos ao pós-Guerra, são criados em São Paulo o Museu de Arte de São Paulo (1947), por Assis Chateaubriand; o Museu de Arte Moderna (1949), por Francisco Matarazzo Sobrinho, que também participaria da criação de outros empreendimentos culturais, como o Teatro Brasileiro de Comédia (1948); e a Companhia Cinematográfica Vera Cruz (1949). 169 O Clube de Cinema de São Paulo foi criado em 1946, por Almeida Salles, Benedito Duarte, Lourival Gomes e Paulo Emílio Salles Gomes, entre outros. Em 1948, Francisco Matarazzo Sobrinho convida a diretoria do Clube para compor o departamento de cinema do futuro Museu de Arte Moderna, e, um ano depois, realiza-se um grande seminário sobre cinema no MASP. Cf. Maria Rita GALVÃO. Op. Cit., 1981, p. 28-39. 170 Sobre o relacionamento entre teatro e cinema em São Paulo, estabelecido a partir das sociedades teatrais de amadores italianos, ver Maria Rita GALVÃO. Crônica do Cinema Paulistano. São Paulo: Ática, 1975, p.29-35.

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plásticos, Luís Ventura e Otávio Araújo. Articulando as diversas linguagens artísticas atuava

em várias frentes e sentia-se cada vez mais atraído pelo espaço de discussão estética:

A grande atividade cultural da época era o clube de Cinema de São Paulo...Eu tinha também uma relação com o teatro. Participei do Grupo de Artistas Amadores, dirigido por Madalena Nicol, que revelou o Paulo Autran, e também do Grupo Experimental de Teatro, de Décio Almeida Prado. Essas eram atividades não ligadas ao partido171.

No final dos anos de 1940, em um ambiente em que a atividade cinematográfica é

ativada172, mas em que a democracia é mais uma vez atingida173 Nelson, motivado pelos ecos

do I Congresso Mundial da Paz174 e pela perspectiva de estudar cinema no IDHEC175,

convence os amigos Otávio Araújo e Luís Ventura a realizarem uma viagem à Europa para

participarem do I Congresso Mundial da Paz. Após muito trabalho e uma “ação entre amigos”

juntaram o necessário para embarcarem em um cargueiro em direção ao destino traçado.

Chegam atrasados, a viagem de mais de um mês não permitiu a participação no Festival, mas

decidem permanecer em Paris, onde são recebidos por Carlos Scliar que apresenta os circuitos

culturais da cidade aos jovens artistas ávidos para aproveitarem as ofertas que Paris poderia

lhes proporcionar176. Sobre o propósito da viagem e seus resultados Nelson esclarece:

Fui para França, em 1949. Na ocasião o Institute d`Hautes Etudes Cinámatographique, o Idhec, já havia fechado as matrículas, pois corria já o mês de agosto. Aí eu fiquei uns meses em Paris freqüentando a cinemateca...foi o grande curso de cinema que eu fiz. O meu professor era um pintor brasileiro residente lá. Era o Carlos Scliar...Conhecia cinema muito bem...O Carlito é que me botou para ver cinema lá. Falava sempre: “Vai na cinemateca, vê os filmes tais e tais”. Com isso, eu acabei fazendo um curso intensivo de cinema francês, com o melhor do realismo francês nos anos 30: Jean Renoir, René Clair, Marcel Carné, Jeacques Becker...enfim, aquele cinema francês realista que assolou o país177.

171 Apud entrevista José Geraldo COUTO e Alcino Leite NETO. Op. Cit. 172 A instalação da Vera Cruz, com a presença de Alberto Cavalcanti (cineasta brasileiro com uma brilhante carreira na França e na Inglaterra) à frente da iniciativa, é indicativa da promessa em torno da atividade cinematográfica. 173 Em 1948 ocorre a cassação dos parlamentares comunistas. 174 Congresso realizado em Paris, organizado pelos comunistas, que contou com a adesão de personalidades artísticas mundiais. Do Brasil registra-se a presença de Jorge Amado, Caio Prado Júnior, Arnaldo Estrela, Carlos Scliar, Vasco Prado, Cláudio Santoro, Israel Pedrosa, Jacques Danon, Zélia Gattai e Branca Fialho. Cf. Zélia Gattai. Senhora dona do baile. Rio de Janeiro: Record, 1985. p, 231-232. 175 Institute dês Hautes Etudes Cinématografique. 176 Apud SALEM. Op. Cit., p.55-60. 177 Apud Rodrigo FONSECA. Op. Cit., p. 26.

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A viagem é curta, mas fundamental para definir o horizonte de um jovem de 21 anos

que decide fazer cinema em um país ao sul do equador. Ao retornar ao Brasil Nelson refaz

seus vínculos com a política, volta à faculdade de Direito e realiza o seu primeiro filme,

primeiro de muitos que se seguiriam e revelaram uma vocação profissional para toda uma

vida.

Helena Salem apropria-se de uma metáfora usada por Nelson para comentar a

dimensão da sua formação e a permanência das referências obtidas nesse período ao longo da

sua trajetória:

Para usar os mesmos termos de uma comparação que ele próprio faz muito – o cinema e a música – , essa sua formação da juventude seria como um conjunto de acordes, com os quais ele desenvolveria futuramente inúmeros temas, em múltiplos arranjos. Mudam as peças musicais, porém aqueles acordes iniciais permitem sempre identificar o som original178.

Da citação acima é possível concluir que o ambiente político e cultural que

consubstanciou a sua formação deu esteio ao seu percurso. A intensidade desse momento em

que formulou a sua cosmovisão, tendo como referente o País, será sempre reelaborada e

revisitada em sua obra nos anos que se seguiram. Novas visadas e outros caminhos também

são percorridos, mas a militância, a cinefilia, a leitura compulsiva são pistas indeléveis para o

jovem inquieto que segue indagando a partir do axioma apresentado pelos seus mestres: O

que é ser brasileiro?

178 Apud SALEM. Op. Cit., p. 46.

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de Guidode Guidode Guidode Guido

Mais tarde, já no Rio de Janeiro, tive a sorte de contar com a companhia de um jovem baiano na aventura de fazer Rio, 40 Graus. Aprendi com ele o jeito baiano, aquele modo de ser que facilita a convivência e faz da amizade uma relação humana imperecível. Refiro-me a Guido Araújo, colega e companheiro de muitas jornadas, além da Jornada cinematográfica que reúne nesta cidade cineastas de todas as partes do mundo, em evento integrante do calendário cultural desta Universidade.

Nelson Pereira dos Santos179

Esse trabalho de Rio, 40° foi uma coisa importantíssima para mim (...) Havia um relacionamento, não só de amizade, mas de confiança no trabalho, naquele projeto muito grande, uma identificação total. Foi muito bom isso, e o Nelson, apesar das diferenças de idade não serem grandes, era um cara assim de fato mais maduro, com maior consciência dos problemas, e então realmente foi uma experiência muito positiva.

Guido Araújo180

Guido Antonio Sampaio de Araújo nasceu em julho de 1933 na pequena cidade de

Castro Alves, sertão da Bahia, antiga fazenda Curralinho, onde também nasceu o poeta que

mais tarde daria nome à cidade. Órfão de pai aos quatro anos. Vem para Salvador adolescente,

já envolvido pela bruma mágica do cinema e passa a estudar no internato do Colégio Maristas.

Antes disso, na pré-adolescência, já se interessa pelas artes em geral, especialmente,

pela literatura. Junto com um pequeno grupo de amigos moradores de Castro Alves, entre os

quais Fernando Cony Campos – que mais tarde se tornaria cineasta por influência de Guido –

cria em 1951 o primeiro núcleo de atividades culturais, chamado Clube Cultural Pedro Barros,

em homenagem àquele que era também um poeta da cidade de Castro Alves e que, como o

poeta famoso, havia morrido ainda jovem, porém, praticamente incógnito.

A casa da família de Guido Araújo ficava em frente ao cinema da cidade. A

freqüência assídua aos filmes que eram exibidos criou no jovem Guido o gosto pelo cinema:

179 Trecho do discurso proferido por Nelson Pereira dos Santos na Reitoria da UFBA, em 2006, ao receber o Título de Doutor Honoris Causa. 180 Cf. Giselle GUBERNIKOFF. Op. Cit., p. 262.

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“Foi o filme Ivan o Terrível, de Eisenstein, que acendeu a chama definitiva no meu interesse

pelo cinema181.

A aproximação maior com o cinema se dá aos 17 anos de idade, já estudante do

Colégio Central, na ocasião em que passa a participar do Clube de Cinema da Bahia, que

ficava no Corredor da Vitória, onde hoje funciona o Museu de Arte da Bahia. Ali, assistiu a

célebre sessão inaugural da sua fundação, quando foi exibido o filme “Os visitantes da Noite”,

do francês Marcel Carné. A partir desse momento o cinema categoricamente se impunha em

definitivo na sua vida.

A paixão despertada então pelo cinema o leva imediatamente a decidir-se pela

carreira de cineasta aos dezenove anos. Entretanto, Salvador não oferecia as condições

necessárias para isso, e Guido resolve mudar-se para o Rio de Janeiro, aonde chega em 1953 e

logo faz contato com Alex Viany que estava rodando o filme Balança Mas Não Cai num

pequeno estúdio no bairro de Jacarezinho.

Foi nesse estúdio que se encontrou pela primeira vez com Nelson Pereira dos Santos,

que tinha deixado a família em São Paulo e vindo para o Rio de Janeiro a convite de Alex

Viany para trabalhar como diretor-assistente nesse filme de Paulo Vanderlei.

Guido logo passou a fazer movimento estudantil, militando na Federação da

Juventude Democrática, onde havia um setor de cinema que ele começou a coordenar,

fazendo parte também de um Clube da Crítica. Praticamente a cada semana ele convidava um

cineasta ou um crítico que passava a conhecer, para discutir com os jovens estudantes

interessados em cinema.

Numa dessas noites convidou Nelson Pereira e o ouviu pela primeira vez falar sobre

seu projeto do Rio, 40 Graus que já estava com todo o roteiro elaborado, faltando, porém, o

mais importante, reunir as condições para produzi-lo. Tudo isso era muito difícil naquela

época, mas Nelson era um batalhador nato que não desistia facilmente de suas empreitadas.

Contextualizando o período Guido afirmará:

[...] isso coincidiu exatamente com aquele período da bancarrota da Vera Cruz e de todos os estúdios de São Paulo. Havia uma certa atmosfera de desânimo no cinema brasileiro; continuava a existir apenas uma produção precária porém permanente, na base daqueles filmes que eram chanchadas...182

O interesse de Guido pelo filme levou Nelson Pereira a convidá-lo, junto com outros

jovens, a participar das reuniões, nas quais o cineasta maturava e desenvolvia a estratégia de

181 Apud entrevista concedida a Marise Berta. 182 Apud Giselle GUBERNIKOFF. Op. Cit., p.260.

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realização do filme, uma vez não havia recursos e que o filme só se viabilizaria pela via da

adesão e do engajamento na proposta. Naquelas reuniões no bar Vermelhinho e no escritório

de um amigo na rua Graça Aranha foi que se estreitou a relação entre Nelson Pereira, Guido

Araújo e os outros colaboradores, dentre os quais o compositor Zé Kéti, autor da música “Eu

sou o samba”, escolhida por Nelson para fazer parte da trilha sonora do filme.

O ator Jece Valadão também se incorporou ao grupo e Nelson resolveu alugar um

apartamento na Lapa onde foram todos morar juntos. O fotógrafo Helio Silva, um jovem

chamado Ronaldo Lucas Ribeiro (assistente de câmara) e Roberto Santos, que teve de retornar

para São Paulo por problemas familiares também foram convidados. No início, as finanças

garantiram a contratação de uma pessoa para os cuidados com a casa, porém, devido à

escassez de recursos, as tarefas domésticas passaram a ser divididas por todos. Uns limpavam

a casa, outros arrumavam e alguns cozinhavam.

Jânio de Freitas, no Diário Carioca de 23/10/1955, relata o dia a dia da república:

A república, “minúsculo apartamento de dois quartos, no qual se encontravam os dez habitantes republicanos, foi a “solução encontrada (...) pela equipe técnica de Rio, 40° para os problemas de ordem econômica”. É “regulada” por uma constituição própria”, com três ministérios: Educação, Higiene e Fazenda”183.

O fato de morarem juntos criou uma forte relação de amizade, cumplicidade e

confiança, uma identificação marcante com aquele projeto dirigido pelo também jovem

Nelson Pereira, que já era, porém, bastante consciente a respeito dos problemas relacionados à

filmagem e maduro o suficiente para extrair resultados positivos daquela situação de grandes

restrições em que a prioridade era a realização do filme, precarizando-se inclusive as

condições de sobrevivência. A respeito da importância da experiência Guido assim se

posiciona:

[...] eu acho que esse filme teve uma importância fundamental. Não só pelo significado do próprio filme, mas particularmente porque abriu uma perspectiva para os jovens – que atingiu, inclusive, o próprio Glauber Rocha – de se fazer cinema com toda a precariedade de recursos. Esta eu acho que foi a contribuição mais importante de Rio, 40°.184

Naquele apartamento eram realizadas constantes reuniões onde se discutia tanto as

tendências estéticas quanto as questões políticas relacionadas ao cinema. De acordo com 183 Id. Ibid, p.84. 184 Id. Ibid., p.262-263.

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Guido, aquela foi a melhor escola de cinema que ele teve. Aquele espaço, diz ele, funcionava

quase como uma “célula”. Guido esclarece que não era filiado ao Partido Comunista185, ao

mesmo tempo em que admite o emprego do conceito dado à palavra célula como um foco de

estudo marxista - com divisão de tarefas e orientação política - o que também é feito nas

reuniões mencionadas:

O que ocorre é o seguinte: Eu na realidade nunca fui de nenhum partido, nem do partido comunista. Nunca fui militante de carteirinha de partido algum. Mas, na época da realização de Rio, 40 Graus, de vez em quando, a gente tinha umas tarefas, e o cara que era digamos uma espécie de responsável pela gente, era uma espécie de nosso orientador político – ainda está vivo e é um grande jornalista e escritor – Moacyr Werneck de Castro, adorava a gente e compreendia certas resistências que a gente fazia. Ele compreendia porque vinha aquela ordem lá de cima de querer que a gente fosse fazer panfletagem e distribuir o jornal do partido nas favelas e esse tipo de coisa. Então, nós protestávamos, achávamos um absurdo a gente com cara de pequeno burguês subir a favela para distribuir jornal comunista.186

As filmagens de Rio, 40 Graus terminaram e a equipe resolveu trocar de moradia.

Nelson Pereira, que já tinha dois filhos, Nelsinho e Ney, morando com a mãe, Laurita, em São

Paulo, trouxe todos para o Rio de Janeiro. Hélio Silva e Zé Kéti, também, levaram as suas

famílias para o novo endereço: uma ampla casa em Botafogo na esquina da Rua Real

Grandeza com a Mena Barreto.

Foi nesse período em que se deu a proibição do filme e o Hélio Silva passou a manter

a todos praticamente sozinho, pois, como fotógrafo, era o único a quem não faltava emprego.

Guido Araújo e Nelson Pereira tinham uma atuação mais política. Nelson, se

deslocando e viajando para apresentar o filme, mobilizar pessoas em todo o Brasil, e Guido

substituindo-o quando Nelson não podia ir, ou acompanhando-o.

No início de novembro de 1955, Nelson e Guido foram convidados pelo governo do

Estado da Bahia e pela Assembléia Legislativa para mostrar no dia 12, o filme que havia sido

proibido. A exibição foi preparada pelo Clube de Cinema da Bahia, e se deveu, sobretudo, ao

esforço de Walter da Silveira187.

185 O Partido Comunista rotulou a iniciativa de Nelson, ao realizar Rio, 40 Graus, como “aventureirismo”, com o argumento de que filme popular só poderia ser feito após a revolução. A desobediência de Nelson lhe custou o rebaixamento da Comissão de Cultura do Partido para a célula da Lapa e Santa Teresa. Cf. Helena SALEM. Op. Cit., p.86. 186 Apud entrevista a Marise Berta 187 As condições em que ocorreu a campanha de liberação e a exibição do filme na Bahia já foram relatadas nesta tese. Cf. p.14-16.

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Logo após a campanha da liberação do filme Guido, assim como Hélio Silva,

conseguiu engajar-se em uma produção como assistente de direção para ajudar nas despesas

da casa. Tratava-se da comédia Sai de Baixo, as locações aconteciam em Marechal Hermes,

no subúrbio carioca e ele saía de casa para trabalhar todos os dias às 5 da manhã, porque tinha

que pegar o trem. Ele rememora as comemorações:

Foram três dias de altas comemorações na chamada mansão, e eu ficava p da vida, porque eu não podia (participar) e os amigos varavam (a noite) até de manhã; os amigos traziam bebidas, ficavam cantando aquelas músicas do Zé Kety até altas horas e quando se aproximava da meia-noite eu tinha que ir dormir. [...] Quando eu acordava, cansava de encontrar o pessoal ainda na farra e eles ficavam me gozando: vai operário,vai trabalhar...188

Guido Araújo, e os que moravam na “mansão”, foram despejados após nove meses

sem pagar o aluguel. Nelson foi morar na praia de Icaraí, em Niterói, levando Guido como

agregado. Helio Silva mudou-se para Copacabana, onde residiu até o final da sua vida, e o

magistral Zé Kéti retornou a Zona Norte do Rio de Janeiro. Mas essa diáspora não desagregou

o grupo, que logo se agregou no mesmo caminho, trabalhando no outro filme de Nelson, Rio,

Zona Norte.

Foram diversas as moradias que Guido teve no Rio de Janeiro. Habitou o mesmo

teto com o ator Jece Valadão e voltou a morar com Nelson, no período em que este foi

convidado a ir a Paris, representando o Brasil junto com Alberto Cavalcanti no I Encontro

Mundial de Cineastas.

Guido não concluiu o seu trabalho em Rio, Zona Norte, pois contraiu uma

tuberculose, doença diagnosticada por uma namorada que era enfermeira, voltando à Bahia

para se tratar. Pelo mesmo motivo, não integrou a equipe de O Grande Momento (Roberto

Santos, 1957), outro filme produzido pela mesma equipe em que Nelson assumiu a produção.

Em 1956, Nelson Pereira foi convidado para mostrar Rio, 40 Graus na

Tchecoslováquia, onde o filme foi premiado no Festival de Karlov Vary como Jovem

Realizador. Essa viagem de Nelson a República Socialista seria um embrião da ligação de

Guido Araújo com aquele país.

Em 1958, Rio, Zona Norte já estava pronto, quando Nelson recebeu outro convite

para o Festival de Karlovy Vary e determinou que, desta vez quem iria era Guido Araújo. Não

havia dinheiro para bancar essa viagem, mas vários amigos e atores se prontificaram a ajudar,

e até os colegas da Faculdade deram a sua contribuição.

188 Apud entrevista Marise Berta.

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Em seu retorno ao Brasil, Guido vem à Bahia, para o lançamento e divulgação na

imprensa local do filme Rio, Zona Norte, também, premiado no Festival de Karlovy Vary.

Vim à Bahia para, na qualidade de ser o elemento baiano da Produtora Nelson Pereira dos Santos assistir o lançamento do filme Rio, Zona Norte em Salvador. [...] Pessoalmente estou suspeito para julgar, pois também sou interessado direto nos resultados que se obtiver. No entanto, dando um parecer sobre o trabalho realizado, sinto que houve um progresso técnico e artístico de Rio, Zona Norte em relação ao anterior Rio, Quarenta Graus 189.

Nesta ocasião reforça a sua crença no cinema brasileiro:

Guido Araujo é um entusiasta do cinema brasileiro... Fala das possibilidades de um cinema sério no Brasil com tanta segurança que faz qualquer descrente como nós ter esperança de um melhor futuro para nosso cinema, no qual, por sua presteza nos trabalhos anteriores, continuará como assistente de direção do talentoso cineasta Nelson Pereira dos Santos190.

Contrariando a previsão do crítico Humberto Correia, a moira reservara outros

planos para Guido, que aproveitou a estadia na Europa para tentar uma bolsa de estudos por lá

e seis meses depois de voltar ao Brasil, recebia a confirmação de uma bolsa na

Tchecoslováquia, para onde partiu pela segunda vez em 1959, conseguindo, além dos estudos

na Faculdade Cinematográfica da Academia de Artes Musicais de Praga, trabalhar como

assistente de direção nos estúdios Barrandov, em Praga, e como repórter e redator da Rádio

Praga, entre 1962 e 1967. No intervalo entre essas duas viagens, a equipe da qual Guido fazia

parte começou a preparar as filmagens de Vidas Secas.

Guido trabalhou na preparação da produção apenas na primeira tentativa de filmar

Vidas Secas, a que resultou em Mandacaru Vermelho, fazendo contatos entre Nelson e

Idelzildo, que havia sido colega seu no Colégio Central, e era naquela época funcionário do

DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra a Seca). Depois disso, Guido viajou para a

Tchecoslováquia, só retornando ao Brasil a passeio e, definitivamente, oito anos depois. O

contato entre Guido e Nelson, entretanto, nunca foi interrompido.

Guido questiona se Nelson teria feito um filme tão bom como é Vidas Secas se as

condições adversas, sobretudo climáticas, não o tivessem obrigado a fazer Mandacaru

Vermelho em seu lugar, e considera que essa postergação permitiu a Nelson um maior

amadurecimento, um conhecimento mais aprofundado dos problemas da região do Nordeste e

189 Glauber ROCHA. Jornal da Bahia, 23.12.1958, Coluna Jornal de Cinema. 190 Hamilton CORREIA. Diário de Notícias, 24.12.1958, Coluna Cinema.

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de seu povo, possibilitando-lhe mostrar a realidade de sofrimento e abandono do nordestino

como em Vidas Secas está retratado de forma tão extraordinária.

A ditadura não havia ainda arrefecido – muito pelo contrário, pois o AI-5 ainda não

havia sido baixado – quando Guido decidiu voltar à Bahia no final do segundo semestre de

1967, julgando considerar-se mais seguro neste Estado onde havia nascido e que, ao contrário

do Rio de Janeiro onde havia sido líder estudantil com reconhecida participação política,

poderia lhe permitir retomar com menos apreensão sua vida ao lado da família que havia

formado na Tchecoslováquia191.

Apesar de haver começado sua carreira de cineasta trabalhando em longas metragens

de ficção, Guido ao retomá-la passa a produzir documentários, sendo o primeiro deles

Maragojipinho, realizado em 1969192.

Na sua volta à Bahia, antes mesmo de se engajar na produção de documentários, foi

contatado, juntamente com Walter da Silveira193, por Romélio Aquino e Nelson Araújo,

professores da Universidade Federal da Bahia, com o intuito de fundarem uma área de

cinema. Naquela época, a UFBA tinha um Departamento Cultural e no interior dessa estrutura

foi criado, em 1968, o Grupo Experimental de Cinema. Este grupo abrigou o Curso Livre de

Cinema com duração de um ano e uma carga horária de quatro horas semanais. Guido Araújo

assumiu as aulas práticas e Walter da Silveira as de teoria e história.

Esse grupo despertou grande interesse. A primeira turma foi enorme, demonstrando o desejo da juventude baiana e dos artistas, de um modo geral de realizar algo nesse sentido. Foi extremamente agradável aquele convívio no ano atípico e transitório194.

Guido e Walter conseguiram do Reitor da UFBA, o entusiasta professor Roberto

Santos, que o salão nobre da reitoria fosse destinado, aos sábados, à exibição de filmes

escolhidos, objetos de observação prévia, sendo distribuídos, na entrada, folhetos contendo

uma análise escrita do filme exibido195. Os filmes exibidos eram na bitola de 16mm com

projetores emprestados pelo Instituto Cultural Brasil-Alemanha. As cópias das películas eram

191 Nesse país, Guido conhece Bohumila, a Mila, com quem se casa e tem dois filhos, Guido André e Milena. 192 Entre as suas variadas produções cinematográficas merecem destaque Feira da Banana, A morte das velas do recôncavo, Festa de São João no interior da Bahia, Exilados em sua própria terra, Ilhas de esperança e Raso da Catarina: reserva ecológica. 193 O crítico e ensaísta sempre desejou que a Universidade Federal da Bahia tivesse um curso de Cinema. 194 Entrevista de Guido ARAÚJO. O Olho da história. Revista da História Contemporânea, V.1, n. 1, (1995). Salvador, Bahia, nov. 1995, p.196-199. 195 Este feito ganha significado especial por traduzir o reconhecimento, por parte da Universidade, da natureza artística do cinema, defendida por Walter da Silveira ao longo de sua vida.

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cedidas pela Cinemateca do Rio de Janeiro, pela Cinemateca Brasileira de São Paulo, ou

ainda, alugados na distribuidora PoliFilmes de São Paulo. As projeções contavam com um

público fiel de cerca de seiscentas a setecentas pessoas. Guido relembra que numa das últimas

projeções, no mês de outubro de 1967, foi apresentado o filme italiano Os companheiros de

Mário Monicelli, ocorrendo uma manifestação durante a exibição. Esse evento trouxe

resultado desagradável na conturbadas relação com a polícia num prenúncio dos anos de

chumbo que se seguiriam no Brasil:

Durante a exibição de Os companheiros, com a Reitoria superlotada, ocorreu uma manifestação lá dentro. Tive que me esconder porque disseram que a polícia estava a minha procura. Como era final de ano, período de férias, suspendemos as atividades196.

Com a implantação do AI-5, torna-se impossível a realização de eventos na

Universidade e as exibições de filmes são suspensas:

Em dezembro de 1968, veio o fatídico AI-5. Mesmo antes, numa das últimas exibições que realizamos já havíamos tido problemas...No ano seguinte, quando nos preparamos para reiniciá-las, sentimos que havia uma grande resistência. Realizamos apenas duas ou três sessões197..

O enfrentamento da questão se dará por meio de uma estratégia de resistência

baseada no lema, recuar para avançar. É quando Guido resolve criar eventos de caráter anual,

com premissas generalistas que não acarretassem em problemas, como a Mostra

Retrospectiva do Cinema Baiano – que completava dez anos. Esta Mostra, apesar de ter sido

realizada no turno matutino no Cine Bahia, conseguiu aglutinar o grupo que fazia cinema na

Bahia e que se encontrava disperso. Este foi o primeiro embrião para o surgimento da Jornada

de Cinema198.

Da Bahia, onde se estabelece desde o seu retorno definitivo ao Brasil em 1967, já

envolvido com as tarefas demandadas pelo seu ingresso na Universidade Federal da Bahia199,

Guido acompanha a trajetória de Nelson e mantém permanente contato com o amigo.

196 Entrevista de Guido ARAÚJO Op. Cit., p. 196-199. 197 Id. Ibid. 198 Principal evento cinematográfico realizado anualmente em Salvador, seja pela longevidade, pelas características de fomento à produção baiana e nacional ou pelo acesso a filmografias emergentes e produções qualificadas. Criada em janeiro de 1972, por Guido Araújo, com o nome de Jornada Baiana de Curta-Metragem, ascendeu a Nordestina em 1973, a Brasileira em 1974, e transformou-se em evento internacional em 1985. Atualmente, é reconhecida como um dos festivais de cinema mais antigos e independentes do Brasil. 199 Na UFBA, esteve à frente do setor de Cinema e Vídeo e fez parte do corpo docente da Faculdade de Comunicação. Em 15 de setembro de 2003, durante a 30ª Jornada Internacional de Cinema da Bahia, recebeu o título de Professor Emérito da UFBA, em reconhecimento “pela sua dedicação à formação de novas gerações de apaixonados pelo cinema e pela sua atividade de intensa pedagogia cultural e política”.

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O vínculo entre os dois novamente irá se estreitar quando Nelson decide filmar

Tenda dos Milagres em Salvador no ano de 1975200, filme em que Guido não chegou a

trabalhar, mas que acompanhou a produção como o “homem de cinema da Bahia” e fez uma

breve aparição (uma ponta, como ele diz) como um “professor progressista que tinha orgulho

do sangue negro que corria em suas veias”.

Guido dá testemunho de como era grande o investimento de Nelson em viver com

vigor a cidade e impregnar-se do seu clima: “Toda a equipe começou a viver intensamente

aquela loucura e cada vez mais tem aquele ambiente baiano dentro do filme”201.

Guido ajuda também a compor a quadro de referências de Tenda ao lembrar como

Nelson relacionava-se com os atores:

O relacionamento de Nelson com os atores era muito bom, sempre espontâneo, sem dar ordens a ninguém, deixando o ator de certa forma bem à vontade, mas por outro lado, com jeito, com habilidade, com a simpatia dele ele levava (as coisas) para onde ele queria202.

Na verdade, Nelson conseguia criar um clima de camaradagem e confiança entre

todo o pessoal de sua equipe, mesmo com todas as dificuldades. E foram muitas durante a

realização do filme, como por exemplo, a crise deflagrada pela saída de Jards Macalé do

elenco e a decisão de optar pela dublagem sem imagem que contemplasse o elenco,

basicamente baiano203. Guido prossegue relatando:

Por uma questão econômica, quer dizer, aqui (na Bahia) não tinha estúdio de som, então deslocar esse pessoal para o Rio de Janeiro ia custar uma nota, não é? Aí, ele (Nelson) partiu para aquela solução de Nagra no Nagra, ou seja, a gravação que foi feita nas filmagens serviu apenas como se fosse um som guia para posteriormente colocar o som definitivo, e isso é uma coisa muito delicada, além, é lógico, de ser mais trabalhoso para os próprios atores. É muito diferente você estar no set de filmagens onde você adquire uma certa naturalidade inerente ao próprio processo de filmagem, [...] mas ali no fundo do palco do Teatro Castro Alves, de maneira totalmente

200 Neste período, mais duas adaptações de livros de Jorge Amado foram filmadas na Bahia, uma brasileira e outra francesa: Dona Flor e seus dois maridos, de Bruno Barreto, e Pastores da Noite, de Marcel Camus. 201 Apud entrevista Marise Berta. 202 Id. Ibid. 203 Sistema aprendido por Juarez Dagoberto da Costa com os ingleses no tempo da Vera Cruz, muito utilizado em todo o cinema internacional – o wild track, son-seul, o som separado. Juarez Dagoberto da Costa esclarece: eu peguei o som-guia um tanto precário, que ele tinha feito durante a filmagem, fiz um levantamento em moviola e transcrevi da moviola para o Nagra. Fizemos toda a gravação de Tenda dos Milagres nesse sistema de Nagra para Nagra, dublagem sem imagem, toda lá no Teatro Castro Alves, e com os atores da Bahia, isto é, conservando o modus falanti do baiano, o jeito, todo aquele troço, e o filme tem esse sabor. Apud Giselle GUBERNIKOFF, Op. Cit., p. 319.

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improvisada, você escutava o que tinha dito durante a filmagem pra tentar repetir aquilo com aquela (mesma) emoção.204

Nesse mesmo depoimento revela que, inúmeras vezes, Jorge Amado esteve presente

no set de filmagens de Tenda dos Milagres, da mesma forma que Nelson Pereira por diversas

vezes ia à casa de Jorge Amado, para fazer anotações, correções, trocar opiniões sobre um ou

outro aspecto dos personagens. Esta informação confirma o espírito de troca e interação com a

paisagem física e humana de Salvador presente na produção que mobilizou o cenário

cinematográfico baiano em um período em que a produção local205 seguia o seu movimento

interno, no qual predominava a realização de filmes em curta-metragem:

No Tenda teve todo um envolvimento, a participação da mocidade, das pessoas daqui, todo mundo numa boa realmente. O Tenda foi dividido praticamente em duas partes. Houve uma primeira fase, que foi aquela das filmagens lá pelo Pelourinho; o Nelson ficou com a equipe morando por ali mesmo, num pardieiro daqueles, um casarão em cima da Galeria Treze, ali na Zona do Meretrício – porque todo o cenário era ali mesmo, então em termos de produção era mais prático. Depois, a segunda fase da purificação, ou seja, a produção transou um lugar genial que tem lá na Cidade Baixa, O orfanato da Ordem 3º de São Joaquim...Eles ficaram por lá filmando a região, e esse próprio orfanato, que no fundo é uma imensidão, passando a ser quase um estúdio, tem muita coisa filmada lá dentro. Então foi uma produção muito legal206.

Quanto à Jubiabá, declara que a sua participação se deu em menor escala, devido ao

deslocamento da produção para a cidade de Cachoeira e de sua posição de direção, à frente da

Jornada de Cinema que a cada ano ampliava o seu escopo e demandava um árduo trabalho:

De Jubiabá Nelson apenas me falava de suas complicações. Fui apenas um dia nas filmagens lá em Cachoeira e atendi alguns pedidos de Nelson para fazer alguns contactos aqui em Salvador. Sei que foi um filme problemático. O problema com os franceses acabou afetando o filme207.

204 Apud entrevista Marise Berta. 205 Ao longo da década de 1970, na Bahia, há uma intensa produção de curtas-metragens na bitola Super-8. Essa produção gerou mais de 200 curtas-metragens e foi o primeiro momento na carreira de muitos realizadores que se firmaram na prática do cinema e do audiovisual, a exemplo de Edgard Navarro, Pola Ribeiro, Fernando Belens, José Araripe e outros. A pequena bitola dividiu a cena com trabalhos em 16mm e 35mm, como O Boca do Inferno (Agnaldo Siri Azevedo, 1974), Comunidade do Maciel (Tuna Espinheira, 1974) e o longa-metragem O Anjo Negro (José Umberto Dias, 1972). É importante ressaltar que a Jornada de Cinema foi uma vitrine para a produção do filme curto local. Foi fundamental não apenas como plataforma para a exibição dos filmes, mas como um fórum para a discussão das questões relacionadas à produção do filme de curta-metragem. 206 Apud Giselle GUBERNIKOFF. Op. Cit., p.267. 207 Apud entrevista Marise Berta.

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Nelson não voltou a filmar mais na Bahia nem Guido no Rio, entretanto Nelson e

Guido mantêm um estreito relacionamento, além de grande identificação, tanto em relação à

visão política quanto à preocupação de ambos em relação ao destino do País e defesa

incessante do cinema brasileiro. Essa convergência de interesses fez com que Nelson

participasse ativamente da Jornada ao longo dos seus 35 anos de existência, estreitando cada

vez mais o seu vínculo afetivo e a parceria cinematográfica com Guido.

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de Históriade Históriade Históriade História

A história, na realidade, já está pronta [...]. Há vários pensamentos também que iluminam a História.

Nelson Pereira dos Santos208

Meu projeto não se prende ao rótulo de filme histórico. Aliás, a Literatura e a História brasileiras são minhas paixões.

Nelson Pereira dos Santos209

A forma orgânica que a sensibilidade humana toma – o meio no qual ela se realiza – não depende somente da natureza, mas também da história.

Walter Benjamin210

Outros tipos de pensamento precisam substituir o ato de ver por outra coisa, apenas a história, entretanto, pode imitar o aprofundamento ou dissolução do olhar.

Fredric Jameson211

O capitalismo transnacional e o empobrecimento do Terceiro Mundo criam as cadeias de circunstâncias que encarceram os/as salvadorenhos ou filipino/as. Em sua passagem cultural, aqui e ali, como trabalhadores migrantes, eles encarnam o “presente” benjaminiano: aquele momento que explode para fora do contínuo da história

Homi K. Bhabha212

Nelson Pereira dos Santos faz parte de uma facção de artistas brasileiros atentos às

interseções entre os universos da cultura e da política, extremamente marcada por uma

consciência histórica aguda que traduz o seu tempo. Nunca é demais acentuar que o momento

de sua inscrição na autoria cinematográfica, em que os parâmetros de sua criação são

208 Entrevista publicada em O Pasquim, n° 106, 10/04/2004, p.13-16. 209 Maria do Rosário CAETANO. Cineastas latino americanos: entrevistas e filmes. São Paulo: Estação Liberdade, 1997, p. 92. 210 Walter BENJAMIN. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In: Sociologia da Arte, IV, organização e introdução de Gilberto Velho. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1969, p. 20. 211 Fredric JAMESON. As marcas do visível. Rio de Janeiro: Graal, 1995, p. 1. 212 Homi K. BHABA. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998, p.28.

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enunciados, ocorre em um período em que a vida política e cultural do País estava sendo

movida pela perspectiva das mudanças advindas do desenvolvimentismo e que se imaginava

desaguar na ampla reforma dos projetos nacionais. Este é o horizonte que circunscreve o

clima político e ideológico do País e que molda o contexto histórico de instauração da sua

trajetória artística.

De Rio, 40 Graus a Brasília 18%, o cinema de Nelson cobre um arco extenso que

abriga os mais variados temas: religião, literatura, política, luta de classes, hibridismo e

descolonização. Do sertão ao litoral o artista cobre o País de imagens balizando a sua história,

virando o cinema brasileiro pelo avesso, indicando a sua vocação. A atmosfera é definida na

obra inaugural em que o povo brasileiro era revelado em primeiro plano, numa terna e

contundente história, evidenciando na tela com extrema dignidade e lirismo a sua realidade

social.

Não se pode desconhecer que nos anos 1960, no Brasil e no mundo, muitos passam a

compreender que, em uma experiência coletiva com vocação revolucionária, a representação

do povo não é mais traduzida por uma multidão sem nome e sem rosto ou caricatura

distorcida. Ao invés disso, um novo nível de existência se configura, no qual a

individualidade não é apagada, se completa pela coletividade e se afirma como sujeito da

história.

A partir daí, cada filme que realiza reitera seu foco sobre as questões coletivas em

que a ação e a consciência presentes na construção de seus personagens aproximam-se das

experiências de grupos, de classes, de segmentos que compõem a malha humana e social do

País, em um universo sempre apoiado no eixo do tempo, tende, numa perspectiva libertadora,

para o inevitável acolhimento do mais fraco, do oprimido. Refletir sobre o seu cinema é

perscrutar sua maneira de abarcar a história, pois Nelson é sinônimo de uma busca

ininterrupta e contínua direcionada para o nosso tempo e para o nosso lugar de instalação, um

país abaixo da linha do equador. Assim, sua propulsão à história se cristaliza na construção de

imagens da experiência social do Brasil.

Para a compreensão dos filmes de Nelson Pereira dos Santos como produtos de

determinações históricas são de extrema valia as reflexões do crítico americano Fredric

Jameson formuladas em As marcas do visível, em que defende a idéia de que a única maneira

de pensar a matéria visual é pela via da compreensão da sua emergência histórica.

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A primeira linha do texto de Jameson contém uma provocação: “o visual é

essencialmente pornográfico...sua finalidade é a fascinação irracional, o arrebatamento”213.

Esta transposição faz com que o autor considere que uma das funções precípuas do

filme é convocar o espectador a:

contemplar o mundo como se fosse um corpo nu...produto de nossa própria criação, algo que pode ser possuído pelos olhos e de que se podem colecionar as imagens214”.

O cinema como um dos mais importantes textos culturais do século XX invade o

século XXI, ganha complexidade, materializa-se nos filmes, que em uma abordagem

jamesiana, são imbuídos e perpassados por contradições. Nessa perspectiva, os filmes

assumem a condição de produtos históricos através do poder de representar o mundo em

imagens que direcionam o nosso olhar. Para o autor, com a ascensão das artes visuais torna-se

indispensável:

uma antologia do visual, do ser como algo acima de tudo visível, com os outros sentidos derivando dele; todas as lutas de poder e de desejo têm de acontecer aqui, entre o domínio do olhar e a riqueza ilimitada do objeto visual215.

Esta formulação é para chegar à afirmação de que filmes como produto da cultura

são:

Experiência física e como tal são lembrados, armazenados em sinapses corpóreas que escapam à mente racional. Baudelaire e Proust mostraram-nos como as memórias são na verdade parte do corpo, mais próximas do odor ou do paladar ...ou talvez fosse melhor dizer que memórias são, acima de tudo, recordações dos sentidos, pois são os sentidos que lembram, e não a ‘pessoa” ou a identidade pessoal216

Jameson ao nos remeter para a zona sem fronteiras dos sentidos, que implode o

tempo, o espaço e a própria identidade pessoal, reforça o poder da imagem visual, pois para

ele a experiência cinematográfica é tão intensa que permite diversas analogias e

aproximações, que vão dos odores do jardim da minha avó, que me trazem prazerosas

213Apud JAMESON, p. 1. 214 Id. Ibid., p. 1. 215 Ibid., p.1. 216 Ibid., p.1-2.

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recordações da infância ao sabor das madeleines, biscoitos amanteigados, sorvidos por Proust,

que também o levavam a afetivas recordações infantis.

O autor, que revisita o marxismo na pós-modernidade, acredita tanto no poder das

imagens que identifica na natureza do cinema em simetria com um vício que deixa suas

marcas no próprio corpo. Ao identificar o cinema como importante recurso cognitivo,

Jameson oferece uma chave não só de tradução do mundo, mas passível de estabelecer

estratégias de conhecimento e nele interferir, por meio dessa linguagem, justificando assim as

imagens cinematográficas como parte do processo social que nos integra. Para isso, situa

historicamente o cinema tanto na sua dimensão estética quanto tecnológica217.

A dimensão estética do cinema é perpetrada, segundo Jameson, em toda a sua

extensão, pelos acontecimentos históricos e sociais:

Uma estética do cinema seria não apenas indistinguível de sua ontologia; seria também social e histórica do começo ao fim, exatamente através da mediação da própria forma, desde que se leve em conta a historicidade da percepção (e dos mecanismos em que é registrada, bem como dos registros)218.

Jameson localiza historicamente o cinema no seio de uma civilização tecnológica,

ambiente em que adquiriu o caráter de cultura de massa, situação sublinhada anteriormente

por Walter Benjamin e seus pares da Escola de Frankfurt.

No decorrer do século passado o cinema floresceu como cultura de massa, em um

dado estágio das economias capitalistas, no qual a cultura passa a ser uma força que opera a

mediação simbólica na sociedade, inclusive nos níveis de representação política e ideológica.

No momento em que “tudo que é sólido desmancha no ar” 219, tudo perde

continuidade e se estilhaça, esta é a dimensão dada pelo moderno mundo capitalista que faz

217 Parece-me apropriado fazer uma menção a Walter Benjamin, ao tratar da estética e técnica cinematográficas em um a perspectiva histórica, por algumas razões. A primeira delas prende-se ao fato de que seu pensamento lança luz sobre uma nova compreensão da história humana. A segunda, por ser Benjamin inspirador da Escola de Frankfurt – grupo de filósofos e cientistas sociais de tendência marxista, que se encontraram no final dos anos 1920 e cunharam as expressões Indústria Cultural e Cultura de Massas. Uma terceira razão diz respeito ao seu ensaio, publicado em 1936, A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. Nesse texto, Benjamin discute as novas potencialidades artísticas e políticas decorrentes da reprodutibilidade técnica. A cópia seriada faz desaparecer a aura da peça única, e por isso sagrada. A reprodutibilidade libera a arte para novas possibilidades, tornando o seu acesso mais democrático e permitindo-lhe contribuir para uma politização da estética, ao contrário da estetização política, característica dos movimentos totalitários e fascistas que aconteciam simultaneamente ao período em que o texto foi produzido. Ainda neste texto, Benjamin destaca um importante aspecto, ocorrido nos domínios da percepção, que passa a atender novas demandas e que teve no cinema o seu melhor campo de experiência. 218 Apud JAMESON. Op. Cit., p. 3. 219 Referência à obra do professor norte-americano e ensaísta, Marshall Berman. Tudo que é sólido desmancha no ar: A aventura da modernidade. São Paulo Companhia das Letras, 1987.

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com que os produtos culturais, transformados em mercadorias, circulem no mercado e,

conseqüentemente, sejam consumidos em contextos culturais diversos e estranhos ao que deu

ensejo a sua produção.

Neste contexto, em que ocorre um andamento vivo do processo de reificação220,

Jameson aponta para importantes mudanças que atingem os sentidos e irão refletir na forma

de ver o mundo através de uma nova percepção: a cinematográfica. Essas mudanças atingem

o aparelho sensorial do homem e promovem um novo ordenamento dos sentidos. Assim, a

percepção cinematográfica ganha uma dimensão histórica porque vem à tona em um contexto

no qual as novas tecnologias alimentam e são retro-alimentadas por esse tipo de percepção.

Com isso, o autor nos leva para além do conteúdo e da forma, remetendo-nos às condições

históricas que permitiram o surgimento do cinema e das tecnologias que sustentaram a sua

produção.

Da lavra dos dispositivos teóricos propostos por Jameson para entender a dimensão

histórica do cinema pode-se extrair que a sua aplicação no debate que se substancializa no

cinema brasileiro encontra ressonância ao se referir à reação dos países que não dispõem de

tecnologia arrojada e passam a considerar suas imperfeições como traço característico da

afirmação da sua cinematografia, alimentando a discussão que existe acerca da qualidade e da

expressão da imagem, dessa forma acata a carga de sentido que impregna o termo imperfeição

a partir do contexto que o gerou, colocando-o no âmbito do problema da estética terceiro-

mundista:

Um certo modelo de sobredeterminação é de fato proposto pelos teóricos do cinema terceiro-mundista... A perfeição técnica da imagem(que se tem a tentação de identificar ao pós-modernismo do Primeiro Mundo) é vista explicitamente como um conotador de economias capitalistas avançadas, sugerindo que uma política estética terceiro-mundista alternativa tratará de transformar seu próprio cinema imperfeito em uma força e uma opção, um sinal de sua origem e conteúdos diferentes221.

Essa afirmação nos ajuda a compreender a experiência de estéticas, como a

identificada na obra de Nelson Pereira dos Santos, que apresentam propostas que privilegiam

a construção do Homem e da História em meios híbridos, enfrentando as contradições e

ambivalências que constituem a própria estrutura da subjetividade humana e seus sistemas de

representação cultural.

220 Expressão empregada nas ciências sociais para designar a fragmentação ocorrida no seio da sociedade moderna capitalista. 221 Apud JAMESON. Op. Cit., p.147.

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Assim, Jameson acrescenta mais um dado para o estabelecimento das condições

advindas do rebatimento histórico na compreensão das diferentes possibilidades da produção

cinematográfica: o sujeito, o autor cinematográfico.

É através de suas escolhas que o cineasta produz sentidos e cria significados para o

mundo, por meio de uma linguagem pessoal.

Estendendo-se a noção de escritura, utilizada na literatura, ao campo cinematográfico

pode-se falar na escritura fílmica de determinado escritor, tal como foi definido por Roland

Barthes, como um ato de solidariedade histórica, uma manifestação do criador com a

sociedade:

Não é dado ao escritor escolher sua escritura numa espécie de arsenal intemporal das formas literárias. É sob a pressão da História e da Tradição que se estabelecem as escrituras possíveis de um determinado escritor [...] A escritura é precisamente esse compromisso entre uma liberdade e uma lembrança222.

Da mesma forma o cineasta, assim como o escritor, ao manipular a matéria bruta do

seu trabalho, realiza um movimento de escolhas que extrapolam ao domínio da linguagem e

ambos estão sujeitos a influências de outras ordens, como as sociais, econômicas, políticas e

culturais. Essas variáveis agem dentro de um discurso e evidenciam a visão de mundo do

cineasta e fazem com que o ato de criação, portanto, nunca se encontre apartado do resto do

mundo e se aproxime das suas identificações mais imediatas.

Neste ponto, retoma-se a colocação de Nelson na abertura da letra H: “A história, na

realidade, já está pronta, e com vários pensamentos que a iluminam”. E, especula-se sobre o

seu sentido em um momento em que o fenômeno da cultura e, por conseqüência da produção

da imagem, sofre abalo nas suas noções de sujeito, autoria, produção e discurso. Essas

questões levantadas são inseridas na problemática de um país da periferia, que foi alvo de um

processo colonial e enfrenta as determinantes do seu diálogo com a globalização. Colocando-

se a questão nesses termos, e levando-se em conta a estratégia do posicionamento da borda,

do interstício da criação do entre-lugar223 como resistência e negação da autoridade instituída,

222 Roland BARTHES. Novos Ensaios críticos/O Grau Zero da Escritura. São Paulo: Cultrix, p. 125. 223 Homi K. BHABA. Op. Cit. A partir do conceito de hibridismo, o crítico indo-britânico propõe o lugar da cultura como o entre-lugar que, por resultar do confronto de dois ou mais sistemas culturais, é capaz de estabelecer uma mediação entre o pensamento crítico e a prática política. Utilizando noções como “deslizamento” e “fluidez”, Bhabha expõe a incapacidade colonialista de produzir identidades fixas, chamando a atenção para o que, se à primeira vista parece ser reprodução/imitação, termina por revelar-se uma forma de resistência.

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compreende-se o ponto de vista de Nelson e a história no seu devir, como fonte modeladora

das percepções do mundo, promovendo a mediação formal do jogo dialético em terreno de

diferenças onde os signos da cultura passam a ser apropriados e re-historicizados traduzindo

as identidades culturais na própria diferença cultural, produzindo releituras e discussões,

oportunidade de revisitação da história social, cultural e política do País.

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de Invençãode Invençãode Invençãode Invenção

Minha forma de fazer filmes é tentar comunicar o que está se passando dentro do personagem [...]. seu pensamento, seu sentimento.[...] Também filmo pensando sobre possíveis alterações na estrutura e narrativa. Ou seja, eu filmo com grande liberdade.

Nelson Pereira dos Santos224

A liberdade é uma possibilidade de escolha.

Edgar Morin225

Eu gostava de quase todo mundo que me fazia perceber quem diabos estava fazendo o filme...Porque diretor é quem conta a história, e deve ter o seu próprio método de contá-la.

Howard Hawks226

A maior parte das boas coisas no cinema acontece por acidente.

John Ford227

Nelson Pereira dos Santos, um inventor humanista, com uma maneira sincera, doce, sensível de ver a realidade e de criar personagens verossímeis, que passam ao espectador a sensação de que está diante de uma pessoa viva e nesse sentido realiza a plenitude do cinema.

José Tavares de Barros228

224 “My way of making movies is to try to communicate what`s going in inside the character […] the thought, the feeling […] I also film by thinking about possible alterations in structure and plot. So I film with great freedom”. Cf. Interview Gerald O’GRADY (1995). Op. Cit., p.122-144. 225 “Una libertad es una posibilidad de elección”. Edgard MORIN. Especial Avizora. Antropologia de la libertad, p.1. 226 Peter BOGDANOVICH. Afinal, quem faz os filmes. São Paulo: Companhia das Letras 2000. p. 22-23. 227Apud Peter BOGDANOVICH. Epígrafe. 228 Apud Entrevista concedida a Marise Berta, em set./2004.

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O que é invenção? Como ela se manifesta? Qual a sua substância?

No seu sentido etimológico a invenção é a imaginação produtiva ou criadora, uma

espécie de ordem interna à qual não se pode insurgir, capaz de engendrar a concepção de algo

novo, inusitado. Aptidão especial para conceber. O seu reconhecimento se dá quando ela se

torna uma condição existencial absoluta, quando é genuína e não deixa espaço para

considerações de oportunidade e conveniência. A invenção é imiscuída em um terreno

complexo, uma mistura que sintetiza todas as experiências vividas, memórias, intuições,

eventos casuais e circunstâncias concretas. É impossível estabelecer com precisão o momento

do seu florescimento, assim como é impossível analisá-la na variedade de seus componentes.

Enquanto substantivo feminino singular sua acepção é ligada à faculdade de dar

existência ao que não existe, dar nova forma ao já existente ou aperfeiçoar o que já existe. A

sua acepção é estendida no plural quando assume importância e significação mais amplas,

passando a dizer respeito às grandes descobertas da humanidade.

O cinema tem como matéria recorrente na sua historiografia a ontológica divisão, na

sua origem, entre a fidelidade ao real e a magia da invenção. Na divisão de apostas dos seus

pioneiros, em Lumière, a realidade e em Méliès, a invenção. O cinema trilhou, relativamente,

um rápido caminho, se o comparamos à maturação de outras manifestações artísticas, para

implantar-se no imaginário contemporâneo, sendo, talvez o gerador deste imaginário.

Herdeiro direto da fotografia, o novo meio de expressão, trouxe consigo a marca do

real como sinal de nascença:

Todo filme é uma sucessão de reproduções fotográficas, e uma foto (não importa o que você faça com ela) é sempre algo que já existiu, que, em certo momento específico, foi real229.

A marca do real , possibilidade de captar o mundo tal qual ele nos apresentava, trazia

ainda o movimento do mundo. O cinema como fotografia que se realizava no tempo, arrastava

consigo uma indicialidade até então procurada, mas não encontrada no universo das imagens.

Nem o Renascimento230, no auge da sua perfeição representativa, trazia em si as marcas do

mundo, os sinais de uma realidade que aderiam como pegadas ao olho da câmara.

229 Jean-Claude CARRIÈRE. A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995, p. 57. 230 Pierre Francastel traça um panorama da arte no século passado, abordando o seu percurso. Para ele, torna-se importante definir o espaço plástico que pretendeu ser o espaço, ou a forma correta de representar o mundo, que foi do Renascimento até o início da sua destruição, passando do Romantismo ao Impressionismo, e os caminhos que levaram à criação de uma nova dimensão espacial, inaugurada no princípio do século passado com as vanguardas artísticas. Cf. Pintura e Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

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Inscrever a relação de pertença do real no surgimento do cinema é entendê-lo

também na sua dualidade inicial e que esse caráter de verdade foi um dos fatores que menos

contribuíram para a transformação dessa autenticidade em instrumento de cognição, ou seja,

na sua transformação em arte.

O cinema foi rapidamente mostrando como transformava a realidade em imagens

particulares. Foi aprendendo a caminhar com seus próprios meios que se afirmou como arte e

desenvolveu padrões narrativos. O cinema narrativo clássico seguiu a linearidade a partir da

sua afinidade com a literatura. Este cinema transformou-se em eficiente diversão de massa,

dominando os mercados pela sua facilidade de penetração e leitura. No entanto, para além da

representação da realidade, desenvolveu-se outro tipo de cinema, disposto a subverter o

realismo com as invenções do imaginário expresso através da poética do realizador.

Recorrer ao passado do cinema para abordar um cineasta contemporâneo, moderno, é

isolar um fragmento embrionário constitutivo da tríade imagem/linguagem/tempo, como

forma de reconhecer e não desconsiderar o desenvolvimento de toda a discussão produzida

tanto pela história quanto pela teoria do cinema neste extenso período. Constituindo-se assim

uma moldura para apresentar os meios de expressão cinematográfica disponibilizados pelo

artista na sua criação cinematográfica.

Nesse sentido, a acepção invenção abrange a práxis de cineastas que ajudaram a

construir um inventário imagético acumulado no primeiro século das imagens em movimento.

Entender o cinema como uma linguagem complexa com laços intrincados entre a poética do

criador cinematográfico e os seus processos de produção, torna possível traçar princípios que

admitem uma marca pessoal na realização cinematográfica que permite que se coloque a

discussão para além da sua tradicional dicotomia entre arte e indústria e possa se extrair do

cinema sua essência enquanto linguagem poética, capaz de conjugar características de

expressividade e comunicabilidade.

No moderno cinema brasileiro, a expressão “invenção” foi empregada por Jairo

Ferreira231, ao indicar os momentos de maior ousadia a partir do ponto de vista de sua

margem, para quem:

A fase mais rica do cinema brasileiro não é a do Cinema Novo, mas essa que veio em seguida e perdura até hoje. Essa é a fase mais interessante porque está baseada na invenção, na poesia, na metáfora, no trabalho de criação avançada, peculiaridades do cinema nacional que, justamente por não ter uma infra-estrutura, possibilita esse descompromisso com e em relação à

231 Jairo FERREIRA. Cinema de Invenção. São Paulo: Max Limonad: Embrafilme, 1986.

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indústria. Em lugar de experimental, eu prefiro falar em invenção e aventura232.

Jairo Ferreira inclui Nelson Pereira dos Santos na sua “pequena galeria de talentos”,

ou seja, no rol de artistas em que ele destaca o “processo criativo” e a “sintonia visionária”:

NELSON PEREIRA DOS SANTOS – João Luiz Vieira interpretou o que eu achava & não expressava: Fome de Amor(1968) é que é o melhor deste grande cineasta mais famoso por Rio, 40 Graus (1955), Boca de Ouro (62), Vidas Secas (63), Memórias do Cárcere (84)233.

Esta colocação dá conta de um viés da obra de Nelson, pois o rótulo de underground

não lhe caberia no conjunto de sua obra, seja pelos procedimentos narrativos adotados seja

pelos mecanismos de produção percorridos. No entanto, é sintoma do seu processo criativo.

Justamente a partir do exemplo de Fome de Amor, filme em que excluiu tudo que parecesse

característico, abandonando a relação dinâmica “personagens típicos vivendo situações

típicas”, permitindo a presença do inesperado, que Nelson, em entrevista dada a Gerald

O`Grady, responde às indagações sobre os elementos de composição de seus filmes, do seu

processo de invenção/criação, que associa aos conceitos de improviso, imaginação e

liberdade:

Todos os meus filmes são cerca de 50 por cento um roteiro que encontrei, escrevi, imaginei, roteirizei, etc., e os outros 50 por cento são improvisação. Eu acho que a improvisação sempre acontece em meus filmes, mesmo desde o primeiro que tinha um roteiro muito rigoroso, onde tudo era muito bem definido, como o roteiro de ferro de René Clair. Mesmo com aquele roteiro, eu ainda conseguia improvisar. A improvisação está presente em meu trabalho devido à minha educação; isso inclui os documentários, onde se deve inventar um bocado também. O documentário não tinha um roteiro, assim eu tinha muita liberdade, e também tinha bastante espontaneidade na localização da câmera. Essa foi a experiência que adquiri do documentário e de Rio, 40 graus, meu primeiro filme, que tinha um forte aspecto de documentário e que foi basicamente filmado na locação, com poucas exceções. Muitas vezes a filmagem demandava soluções rápidas por causa da luz, assim eu era sempre obrigado a improvisar.

Fome de amor (1967) é um exemplo de improvisação total, o exagero da improvisação. Na verdade, não tem roteiro.... Quando iniciei o primeiro dia de filmagem, eu não sabia o que ia filmar. Fiz uma tomada com um piano em cima de um ferry no meio do mar. Eu não poderia deixar de registrar essa imagem. Durante Fome de amor, fiz minha primeira viagem aos Estados Unidos e entrei em contato com a produção underground. O ano era 1966. Tudo estava em grande tumulto – a guerra no Vietnam, jovens queimando

232 Carlos Alberto MATTOS. Walter Lima Júnior, Viver cinema. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002, p. 225. 233 Apud Jairo FERREIRA. Op. Cit., p. 207.

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seus registros de alistamento, drogas, protestos nas universidades, e jovens prontos para lutar. Era um momento em que era necessário quebrar convenções e efetuar um determinado rompimento. Assim, Fome de amor é o filme mais livre que eu já fiz.

O que eu tinha de fazer todo dia era escrever para os atores. Eu não tinha um roteiro para o filme inteiro. Eu tinha de construir a história enquanto estava sendo filmada. [Alexandre] Astruc234 disse que a câmera é como uma pena. Escrever com a câmera é o que fiz em Fome de amor. Havia várias condições que eu tinha que respeitar, entre elas, os atores – Leila [Diniz], Arduíno [Colasanti], Irene Stefânia, Paulo Porto – que já estavam contratados – e também a locação – Angra dos Reis, o mar, as ilhas. Eu tinha de combinar não importa o que viesse à minha imaginação com esses elementos fixos. As variáveis vieram de minha imaginação; as constantes eram os atores.235.

Nelson inicia o seu longo depoimento definindo em percentuais igualitários, meio a

meio, os ingredientes da receita de seus filmes, destinando: cinqüenta por cento para

elaboração e a outra metade para o improviso. Essa precisão aritmética, de princípio

salomônico, é logo abandonada e, ainda no primeiro parágrafo, admite a mescla que acata o

improviso, mesmo nas experiências mais rigorosas em que utiliza práticas narrativas

234 O romancista e cineasta Alexandre Astruc preparou o terreno para a concepção de autor no cinema, com o seu ensaio Birth of a new avant-garde: The camara-pen, originalmente publicado em Écran Français, n.144, 1948, incluído posteriormente em Peter GRAHAM (Org.). The new wave. Londres: Secker and Warburg, 1969, p.17-23. Nesse ensaio, sustentou que o cinema estava se transformando em um novo meio de expressão análogo à pintura ou o romance. O cineasta, afirmava Astruc, deveria ser capaz de dizer “eu” como o romancista ou o poeta. A fórmula da camera stylo (“camera-caneta”) valorizava o ato de filmar. O diretor não era mais um mero serviçal de um texto preexistente (romance, peça), mas um artista criativo de pleno direito. Cf. Robert STAM. Introdução à teoria do cinema. Campinas, SP: Papirus, 2003, p.103. 235 “All my films are about 50 percent a script which I came up with, wrote, imagined, scripeted, etc., and the other 50 percent The Road of Life is improvisation. I think that improvisation always happens in my films, ever since the first one that had a very rigorous script, where everything was very well defined, like René Clair iron script. Even with that script, I still managed to improvise. Improvisation is present in my work because of my education; this includes the documentaries, where one must invent a lot as well. The documentary didn`t have a script so I had a lot of liberty, and it also a lot of spontaneity in the placement of the camera. This was the training that: I got from the documentary and from Rio, 100 Degrees, my first film, wich had a strong documentary aspect to it and which was basically filmed on location, with a few exceptions. Many times the filming demands rapid solutions because of the light, so I was always obliged to improvise. Hunger for Love (Fome de Amor, 1967) is an example of total improvisation, the exaggeration of improvisation. Really, there was no script. When I began the first day of shooting, I didn`t know what I was going to shoot. I shot a take with a piano on top of a ferry in the middle of the ocean. I couldn`t not shoot this image. During Hunger of Love, I made my first trip of the united States and I came in contact with underground production. The year was 1966. Everything was in the great turmoil-the war in Vietnam, young people burning their draft cards, drugs, protests at the universities, and the young people ready for a fight. It was a moment in which it was necessary to break with convention and to bring about a definite break. So Hunger of Love is the freest film I ever made. What I would do every day was write for the actors. I didn´t have a script for the whole film. I would make up a story as it was filmed.(Alexandre) Astruc said that camera is like a pen. To write with the camera is what I did with Hunger of Love. There were several conditions I had to respect, among them, the actors – Leila (Diniz), Arduíno (Colasanti), Irene Stefânia, Paulo Porto-who were already under contract-and also the location-Angra dos Reis, the sea, the islands. I had to combine whatever came into my imagination with these fixed elements. The variables came from my imagination; the constants were actors”. Cf. Interview Gerald O’GRADY. Op. Cit., p.124-125.

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esquemáticas, como as do início de sua carreira, em que se realiza como um narrador de

histórias e seu cinema é um cinema de roteiro. Isso se evidencia no traquejo com o

enquadramento dos planos, na tranqüilidade na colocação da câmara e na manipulação fácil

do plano ao contraplano que instrumentalizam uma estrutura profundamente sofisticada

construída desde o roteiro e que a montagem transparente, eficientemente disfarçada pelo

corte em movimento, completa.

É nessa fricção entre o realismo, que marca as suas duas primeiras realizações e que

retomará em outros filmes, a narrativa convencional e experiências radicais com a linguagem,

que Nelson segue constituindo seu processo criativo, captando ou criando mundos.

Martin Scorsese, em uma entrevista concedida a Laurent Tirard, publicada em um

livro que tem como objetivo clarificar o modo como os filmes são feitos a partir da

experiência dos diretores, afirma que no cinema de hoje cada plano é uma experiência em si;

recorre ainda a Godard para fincar os dois pilares de sustentação da linguagem

cinematográfica (Griffith para o cinema mudo e Welles para o cinema falado), reconhecendo

a necessidade da sua (re) invenção:

Hoje os cineastas sentem que precisam se renovar e fazem o que podem para descobrir uma nova linguagem. Utilizam sempre os planos próximos, os panos abertos etc., mas não necessariamente da mesma maneira. E às vezes é a maneira como eles associam os planos uns aos outros que lhes permite criar novas emoções, ou pelo menos novas maneiras de comunicar essas emoções236.

Afirmando-se como cineasta que comunica emoções com propriedade, essa

faculdade é aqui entendida pela sua capacidade de encontrar soluções e formas de sustentação

renovadas que lhe permitiram atravessar a uma sucessão de conjunturas duramente adversas

com soluções originais e vontade de produzir. Isso se torna possível pelo conhecimento da

tradição em que está inserido, que o leva a formular um projeto de cinema que tem espaço

aberto, incondicionalmente, para novas possibilidades de experimentação. Essa sua

disponibilidade para criar com liberdade imprime sua assinatura, sua marca pessoal,

conferindo aos seus filmes atributos artísticos, que os levam a sobreviver mais longamente à

prova do tempo.

O crítico e professor da UFMG José Tavares de Barros237 recorre ao conceito de

mise en scène238 e de montagem para tratar da especificidade criativa cinematográfica de

236 Laurent TIRARD. Grandes diretores de cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006, p. 22. 237 Cf. José Tavares de Barros. O Código e o texto (Da teoria do cinema à análise do filme Tenda dos Milagres, de Nelson Pereira dos Santos). Dissertação apresentada à Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG.

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Nelson, enfatizando o seu pleno domínio da estrutura dramática, manejo da linguagem e

liberdade para criar:

O forte em Nelson é o domínio do que os franceses chamam de mise em scène e da montagem... Nelson vai sair do realismo, como em Fome de Amor, por não querer se prender a um gênero e por ser uma pessoa ciosa de liberdade239.

A posição de Barros é preciosa, demonstra a concepção de um pesquisador da obra

do cineasta, e encontra correspondência no que o cineasta afirma sobre o seu método de

trabalho. A designação cineasta é utilizada em simetria com o entendimento de Jacques

Aumont: como cidadão reconhecido por uma instituição, por um projeto pessoal ou porque

inventa formas240.

Nelson condensa o seu processo de trabalho, reiterando o espaço sem limites para a

sua criação, demonstrando reagir bem à tensão a que o diretor é constantemente submetido

entre, de um lado, o fato de saber precisamente o que quer – e de fazer tudo para obter o

resultado pretendido – e, de outro, o fato de estar pronto para mudar tudo de acordo com as

circunstâncias:

O que precede meu trabalho com a câmera é a edição. Quando estou escrevendo é comum eu pensar na edição e quando estou filmando, também estou trabalhando, paralelamente, em meu projeto de edição. Todo o meu trabalho de câmera é estruturado pensando sobre o que será possível fazer na edição e quais as mudanças em linguagem, expressão e narrativa que irei executar.Também filmo pensando sobre possíveis alterações na estrutura e na narrativa que possam ser incorporadas na edição. Não há imposição, determinação. E eu filmo com grande liberdade. Minha câmera é muito livre; eu filmo um movimento, e então na minha cabeça eu apago aquele movimento. Não vai ser aquilo quando editado. Eu trabalho com uma estrutura muito bem planejada para cada seqüência, mas estou sempre pensando em outras soluções possíveis. Não estou fechado para outras possibilidades fora das que foram planejadas241.

Quanto às escolhas que faz em relação ao posicionamento da câmera, da sua

alternância entre objetividade e subjetividade, Nelson responde à questão fundamental de todo

Belo Horizonte, 1980; e José Tavares de BARROS. A imagem da palavra, texto literário e texto fílmico. Tese apresentada à Faculdade de Letras da UFMG. Belo Horizonte, 1990. 238 Andrei Tarkovski define e dá sentido à mise-em-scène cinematográfica, afirmando: “No cinema como sabemos, mise em scéne significa a disposição e o movimento de objetos escolhidos em relação à área de enquadramento. Para que serve? A resposta dificilmente será outra: serve para expressar o significado do que está acontecendo”. Cf. Esculpir o tempo. São Paulo: Martins Fontes, 1990, p.84-85 239 Entrevista concedida a Marise Berta, em 12 set./2007. 240 Jacques AUMONT. As teorias dos cineastas. Campinas, SP: Papirus, 2004, p.9. 241 Entrevista concedida a Marise Berta, em set./2004.

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autor cinematográfico, exemplificando com os filmes o papel destacado que a câmera ocupa

no tipo de informação que quer transmitir – onde é preciso colocar a câmera para permitir que

o plano mostre o que deve ser mostrado, o que o diretor deseja mostrar para dar ao plano uma

perfeita potência dramática:

Eu crio uma realidade com meus atores e minha câmera filma aquilo como se fosse a verdade, como se toda a ação fosse realidade. A câmera adquire uma distância quase documental. Esse foi o caso em Como era gostoso o meu francês (1972). Muita gente acha que os índios eram reais, que a oca e tudo mais era real, porque a câmera tinha aquele distanciamento de um estrangeiro, de alguém que chega para observar, um antropólogo, um etnólogo, ou um repórter, um jornalista, um espectador. Rio, Zona Norte não é assim. Ele tem essa dualidade de documentário quando a polícia chega e o cara cai do trem; estes são os intervalos entre as lembranças do herói, que está em coma.... Quando o filme segue o personagem central, é uma câmera íntima; está vivendo seu completo universo psicológico.

Em O amuleto de Ogum (1975), a câmera é crente. Ela acredita; não é uma câmera documental. Está em concordância com todo o universo da religião popular, do herói, do corpo fechado. É cúmplice. Ela acredita naquilo, ela acredita em tudo, ela não tem uma visão distanciada. A estrada da vida (1981) é bastante distanciada, mas muito delicada – isto é, tem um ponto de vista muito delicado. É muito simpática; aceita o que acontece, mas não chega ao ponto de ser cúmplice. Mas tem um ponto de vista que é muito importante. A estrada da vida não tem nada de documentário, mas a câmera está num lugar que os personagens gostam, ou onde eu imagino que os personagens gostariam que estivesse. Eu forneci o chão para os personagens, eu os servi nesse sentido, assim eles puderam contar suas próprias histórias. Em [Memórias], a câmera está ligada à inteligência dos personagens, situada em relação a eles. Ela é sempre muito ágil, muito interessada, curiosa, observando muitos personagens, gestos que são simbólicos do personagem principal. A posição da câmera é determinada pelo que o personagem está pensando... Poucos filmes foram feitos inteiramente com uma câmera subjetiva242

242 “I create a reality with the actors and my camera films that as if it were the truth, as if all the action were reality.The camera has a quasi-documentary distance. This was the case in How Tasty Was My Little Frenchman (Como era gostoso o meu francês, 1972). So many people thought that the Indians were real, because the camera had that distance of a foreigner, of someone who arrived to observe, an antroplogist, an ethnologist, or a reporter, a journalist, an onlooker. Rio, Northern Zone is not like this. It has this duality of a documentary when the police arrive and the guy falls of the train; these are the intervals between the flashbacks of the hero, who`s in a coma. When the film follows the central character, it`s an intimate camera; it`s living his whole psychological universe. In The Amulet of Ogum (O amulet de Ogum, 1975) the camera is a believer.It believes; it`s not documentary camera. It is in agreement with the whole universe of popular religion, of the hero, of the closed body. It`s an accomplice. It believes in that, it believes in everything, it doesn`t have a distanced view.The Road of Life (Estrada da Vida, 1981) is also very distanced but very tender-I mean, it has a very tender point of view. It is very sympathetic; it accepts what happens, but it doesn`t get to the point of being an accomplice. But it has a point of view that is very important. The Road of Life has nothing documentary-like about it, but the camera is in a place that the characters like, or that I imagine the characters would like it to be. It gave the floor to the characters, I served them in this sense, so they could tell their own story. In (Memoirs), the camera is linked to the intelligence of the character(s), placed in relation to (then). It`s always very agile, very interested, curious, observing many characters, occurrences that are symbolic of the main character. The position of the camera is determined by what the character is thinking. Few films have been made entirely with a subjective camera”.

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Ao definir a sua câmera Nelson estabelece o lugar da sua fala, o seu campo de

pertencimento, ou seja, fala do que conhece ou quer conhecer. Seus filmes são feitos a partir

de temas ou de assuntos em relação aos quais se sente implicado por lhe concernir

diretamente. Esse conhecimento o ajuda nas escolhas dos vários níveis e ordens que a feitura

de um filme demanda.

A opção de manter os extensos depoimentos de Nelson Pereira dos Santos é uma

tentativa de situar a invenção criadora a partir do ponto de vista do autor, da sua busca, das

tomadas de posição que conformam o seu processo. Este processo é verificado nas apostas

feitas por Nelson na constituição da sua criação em que compatibiliza os acontecimentos

inerentes aos terrenos da invenção, do improviso, do improvável, da imaginação, da

inspiração e do intelecto.

Assim, o deslumbramento de Nelson faz com que a invenção, o improviso, o

improvável, a imaginação e a inspiração sejam instrumentos para imersão no intelecto, na

razão, pois tudo é produto do seu imaginário social243, terreno em que não cabe dicotomia

entre imaginar e racionalizar.

Esta não é uma “receita” prescrita, como me respondeu sorrindo quando lhe indaguei

sobre seu processo de invenção criativa: você quer saber a minha receita? Porém, para

Nelson, os acontecimentos imprevistos servem como elementos de inspiração, fazem parte da

sua dinâmica, que é processual. A realidade transfigura-se a si própria pela ocorrência do

improvável, o qual, quando se dá, expande os limites do possível e atinge a vida que está ao

redor da câmera, levando-a para dentro do filme, e que no final, torna um plano ou uma cena

completamente fantástico, validando a magia do cinema.

243 Cf. Gilbert DURAND. A imaginação simbólica. São Paulo: Cultrix, Editora da USP, 1998. Nessa obra, o autor aborda a dimensão do simbólico e aponta para um caminho de conciliação entre a razão e a imaginação.

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de Jorgede Jorgede Jorgede Jorge Amado e Jubiabá Amado e Jubiabá Amado e Jubiabá Amado e Jubiabá

O que é admirável na obra de Nelson é que ele se aprofunda cada vez mais no sentido da realidade brasileira, da evolução da consciência brasileira. [...] Desde o seu primeiro filme ele manteve uma consciência política, ao mesmo tempo em que foi ficando mais amplo. Um paulista que se fez carioca, e depois perdeu qualquer estreiteza regional.

Jorge Amado244

[Jubiabá] tem aquela coisa romântica, ao mesmo tempo é Brasil, fala das lutas de classe entre os homens. A outra coisa importante é o sexo, a relação de puro amor, a cabeça livre para fazer o sexo. E também a política como extensão da vida, como uma forma sadia de viver, igual ao sexo, a aventura. Qualquer um pode exercer a política.

Nelson Pereira dos Santos245

Escolhi Tenda porque há uma relação com a literatura brasileira dos anos 30, que apresentava uma visão crítica da realidade, tomando como herói o povo. [...] Desde a década de 40 [...] Jorge vem influenciando o cinema brasileiro [...] não só como autor, mas como intelectual circulando idéias no meio do cinema. [...] Tenda é um grande depoimento sobre a cultura brasileira. A história se passa na Bahia, mas ao tratar da questão da formação da sociedade brasileira, trata da realidade de todo o país. O que ele mostra é uma sociedade gerada pelo povo em termos culturais, éticos, que vai ser a sociedade dominante. Na verdade, essa sociedade já é dominante, mesmo sem ter força econômica, jurídica. É o poder do futuro.

Nelson Pereira dos Santos246

Se alguém seguisse a trajetória de vida do escritor Jorge Amado, desde seu

nascimento numa fazenda do sul da Bahia, em 1912, até o ano de 1946, quando o diretor de

cinema Nelson Pereira dos Santos estava completando 18 anos de idade, dificilmente

imaginaria que seus caminhos pudessem um dia convergir para se encontrar e seguir juntos ao

244 Cf. Helena SALEM. Op. Cit., p.12-13. 245 Id., p.345. 246 Jornal Diário de Notícias. Salvador, 12 e 13/10/1975. In: Gisele GUBERNIKOFF. Op. Cit.

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longo de um trecho considerável. Como dois afluentes de rio que se juntam para formar

caudaloso manancial, esses dois artistas brasileiros trilharam cada qual seu destino

independente, porém, prenunciando com suas escolhas político-culturais, um possível

cruzamento em algum momento de seus itinerários. A escolha do ano de 1946 para se fazer

essa introdução não foi, entretanto, fortuita.

Os vínculos entre Jorge e Nelson se explicitam pelas várias interfaces comuns entre

um e outro. Ambos escreveram em periódicos nos grêmios de suas escolas e, ainda jovens,

trabalharam em jornais e militaram na Juventude Comunista. Enquanto Nelson acabava de se

filiar ao Partido Comunista, Jorge se elegia deputado federal por essa mesma legenda, em

1946. Os dois se afastariam do PC por volta de 1955, ao tomarem ciência das atrocidades

perpetradas por Stalin, sem, entretanto, abandonar as convicções de esquerda. Jorge queria

mais tempo livre para escrever e Nelson para se dedicar por inteiro ao cinema. Em 1928,

Jorge se aproxima pela primeira vez do candomblé e conhece o pai-de-santo Procópio, com

quem fará amizade e que o nomeará ogã. Nelson, embora bem mais tarde, também se

aproximará do pai-de-santo Erley, e também terá, como Jorge Amado, uma relação muito

intensa com as crenças e os costumes populares. As conexões entre Jorge e Nelson se

estendem também até a Academia Brasileira de Letras – onde ambos foram imortalizados – e

se consolidam quando Nelson adapta para o cinema dois romances de Jorge: Tenda dos

Milagres e Jubiabá.

Sigamos agora um pouco apenas pela trilha de Jorge Amado para tentarmos

compreender como acontece essa evolução em sua vida, que vai de seu nascimento em uma

fazenda, passa pela alfabetização em casa com sua mãe, pela rígida escola primária, primeiro

em Ilhéus e em seguida em Salvador como interno no Colégio Antonio Vieira, de padres

jesuítas, depois o curso secundário no Ginásio Ipiranga também como interno, o curso de

Direito no Rio, as amizades com Vinícius de Moraes, Otávio de Faria, Raul Bopp, José

Américo de Almeida, Gilberto Freyre, Rachel de Queiroz – que o aproxima dos comunistas –

e outras importantes figuras da literatura. Ou seja, esse caminho da Bahia para o Brasil, e mais

tarde para o mundo, talvez possa melhor ser compreendido se considerarmos que essa

trajetória foi alicerçada, primeiro, por essa formação de base formalmente rigorosa, e depois,

por seu espírito ao mesmo tempo visionário e crítico da sociedade, seu inconformismo diante

das desigualdades, ditado por seu apego e fidelidade às idéias socialistas.

Desde cedo, Jorge traça e tece para si um projeto estreitamente vinculado à literatura

mais próxima do povo, uma literatura que pudesse retratar a realidade do nordestino, do

pescador, das prostitutas, do homem comum.

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Seu projeto está calcado, antes de tudo, na busca da aceitação popular. Como comunista, seu objetivo é, desde cedo, escrever para um grande número de leitores e libertar a literatura, assim, do domínio das elites. Para isso, ele se impõe um programa estético preciso, ancorado primeiro na tradição popular nordestina - a literatura de cordel, os cantadores - e, depois, na estética do realismo crítico e da denúncia. Ele vai temperar esse realismo social com todo o arsenal heróico desenvolvido pela tradição romanesca do século 19, isto é, o folhetim e também com a estética teatral do melodrama, que representava no palco o mesmo papel que o folhetim desempenhava nos jornais. Estratégia que, na televisão, desaguou nas telenovelas.247

Ao lançar Jubiabá, em 1935, Jorge avança consideravelmente em qualidade, o que já

se apresentava quase como um imperativo diante de uma recepção muitas vezes acerba por

parte da crítica em relação aos seus trabalhos anteriores.

O contexto político vivido naquele momento exigia um posicionamento do autor, que

fizera sua opção por uma literatura engajada, comprometida com uma abordagem crítica, de

viés socialista – avessa, portanto, aos modelos hegemônicos de manifestação cultural –

embasada principalmente no ideário de Marx, Engels, Lênin e Trotski.

Jorge assimila de forma orgânica e natural a linguagem épica e a representação

simbólica da literatura dos trovadores e poetas das feiras livres do Nordeste, assim como os

elementos pitorescos das narrativas orais sobre façanhas de personagens dotados de traços

facilmente reconhecidos pelas camadas compostas majoritariamente de pessoas simples e

proletárias, e os combina de forma cenográfica e fantástica, como nos folhetos de cordel, para

dar cor a um enredo bastante peculiar que ultrapassa os limites de uma literatura circunscrita,

ao incorporar e refletir sem conflitos, tanto o saber erudito quanto o saber popular.

O escritor anima seus heróis e personagens com uma carga de humanismo,

espontaneidade e realismo, de tal forma natural e convincente – explicitados em seus gestos,

palavras, atitudes e características individuais sui generis e marcantes, – que os aproximam

com familiaridade, tornando-os íntimos de seus leitores, como acontece, entre dezenas de

outros, com Gabriela, Guma, Tereza Batista, Quincas Berro D’Água, Tieta, Pedro Bala, Dona

Flor, Pedro Arcanjo e Antonio Balduíno, por exemplo.

Em Jorge Amado, a aprendizagem do herói em vez de depender de livros, sustenta-se na experiência vivida, nos “causos” que ouve no morro e no saber prático, nascido das dificuldades cotidianas. Antonio Balduíno é

247 Eduardo Assis DUARTE. Livro resgata pioneirismo da obra de Jorge Amado. Entrevista concedida a José CASTELLO. Jornal de Poesia. 30/08/2005. Disponível em: <http://www.revista.agulha.nom.br/catel02.html>. Acesso em: ago. 2007.

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guiado por seu ideal de liberdade, e não quer ser escravo do capitalismo: primeiro refugia-se na malandragem e depois na militância operária. O amadurecimento do herói se dá paralelamente à crescente mobilização das camadas subalternas. Pode-se dizer que Antonio Balduíno é um dos primeiros heróis negros da literatura brasileira.248

O teor de compromisso social presente tanto na obra de Jorge quanto na de Nelson,

emerge do sonho revolucionário da sociedade livre e igualitária, conformando em Jorge um

engajamento inicial à “literatura do oprimido”249 (e, posteriormente, uma adesão à narrativa

de registro, denúncia, reflexão e crítica da nossa formação cultural estratificada) e em Nelson,

“a proposta de cinema militante, nacional, à procura do povo, do Brasil, valorizando o

conteúdo e não o aparato técnico”250.

Em Tenda dos Milagres, através de Pedro Arcanjo, Jorge Amado investe contra as

teorias racistas baseadas no conceito de “raças puras” pregadas por Arthur de Gobineau, ataca

os preconceitos, e exalta a miscigenação como fator de afirmação da nacionalidade brasileira,

o que representa uma atualização de seus conceitos, adaptados aos fatos contemporâneos em

relação à sociedade que retratava em Jubiabá, no início de sua carreira.

Em 1935, quando lança Jubiabá, Jorge reveste seu personagem principal, Antonio

Balduíno (Baldo) de um forte sentimento de negritude e de uma conscientização política de

militante, que se rebela contra a exploração econômica, faz greve, e imerge nas tradições

africanas ancestrais para resgatar seus deuses e associá-los aos santos católicos, fazendo surgir

pela primeira vez em sua obra a idéia do sincretismo.

O tema do sincretismo já havia sido abordado em O Amuleto de Ogum e Nelson

Pereira dos Santos continua a explorá-lo, mas subvertendo a ordem de publicação das obras:

primeiro adapta Tenda dos Milagres e, depois, Jubiabá.

O Jubiabá de NPS é a história de um grande amor entre uma jovem branca e loura, Lindinalva [...] e o negro Antônio Balduíno. A política passa de raspão, apenas no final. Mas no livro de Jorge Amado, a parte das lutas políticas é igualmente importante à amorosa. E a questão racial, que anos depois o escritor voltaria a discutir mais profundamente em Tenda dos Milagres, está bastante presente também. Por necessidade de adaptação, Nelson se concentrou na relação de amor. Ou, talvez, em função do próprio momento dele, tenha preferido privilegiar o prazer estético do cinema –

248 Ilana Seltzer GOLDSTEIN. O Brasil best seller de Jorge Amado: literatura e identidade nacional. São Paulo: Editora Senac, 2003, p. 136-137. 249 Eduardo de Assis DUARTE. Jorge Amado: romance em tempo de utopia. Rio de Janeiro: Record; Natal, RN: UFRN, 1996, p.18. 250 Apud Helena SALEM. Op. Cit., p.71.

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através do amor – à discussão ideológica. Porque na adaptação de Tenda, ele percorreu justo o caminho inverso.251

Jubiabá, romance que narra a história de Baldo, herói proletário criado por Jorge

Amado no início dos anos 1930, foi reconstruído por Nelson Pereira dos Santos em

1985/1987. O filme encerra o ciclo cinematográfico de Nelson na Bahia – antes o cineasta

havia realizado Mandacaru Vermelho (1961) e, depois, Tenda dos Milagres (1975/1977).

Esse trajeto percorrido pelo cineasta teve o seu começo na aventura que resultou na criação de

um western nordestino, em que o amor marcava uma vitória contra a violência feudal; passou

pela primeira adaptação do mundo jorgeamadiano, uma imersão na discutida conceituação da

miscigenação, tratada por Arcanjo; até chegar à busca da identidade do afro-brasileiro Baldo.

Nesse caminho, Nelson demarcou o território do seu perfil de baianidade: a construção de

uma feição com a ginga própria dos sambistas baianos-cariocas. Nelson, ao criar os seus

filmes, na Bahia e noutros lugares, parece gingar cinematograficamente, com a sutileza e a

destreza musical de um Zé Kéti ou a expressiva delicadeza plástica sonora de um Batatinha.

Já não é preciso explicar nada. Trinta anos depois, ‘esta cama é minha’. Pode fazer o filme como quem faz música. ‘Porque um bom filme deve ser igual à música. Uma supracódigo. O importante é passar a emoção, ser bonito, ter um olhar original’. Na realidade, é esse o olhar que o interessa, e ele está livre para isso252.

Nelson estava numa das suas mais produtivas fases quando se dedicou a fazer

Jubiabá. Acabara de filmar um dos clássicos do cinema moderno brasileiro, Memórias do

Cárcere, adaptado da obra de Graciliano Ramos. O insight que o fez se aproximar do universo

de Jorge Amado foi a cena em que Gaúcho lê, na prisão, o livro Jubiabá – cena originalmente

descrita, também, por Graciliano Ramos253. Conforme Maria Ângela Pavan e Dennis de

Oliveira:

251 Id. Ibid., p. 348. 252 Apud Helena SALEM. Op. Cit., p. 346. 253 A concretização de filmar Jubiabá aconteceu porque houve uma proposta de co-produção entre um canal Antenne 2, da TV francesa, a produtora Regina Filmes, de Nelson Pereira dos Santos, e a Empresa Brasileira de Filme. Em abril de 1985, Nelson esteve em Paris para escrever o roteiro, no mês de agosto do mesmo ano, o contrato era assinado entre a Société Française de Production e a Embrafilme, prevendo que 50% do custo da produção seriam bancados pelos franceses e 50% pela empresa brasileira. A produção tem, também, a participação do extinto Banco Econômico da Bahia. Devido à demora da Embrafilme em liberar a sua participação financeira conforme o contrato, as filmagens que estavam marcadas para setembro só tiveram início em dezembro. Nelson, diante dos impasses criados, não por falta de recursos – já que os produtores franceses cumpriram o prazo do contrato, depositando a partes deles (Hum milhão de dólares, os problemas com os

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O livro Jubiabá apresenta a diferença de linguagem já nos primeiros capítulos. Por exemplo, Jorge Amado ressalta a luta política e social dos negros e Nelson Pereira dos Santos coloca em evidência em seu roteiro a busca de identidade de Baldo (personagem central) e o plot do amor impossível entre brancos e negros. Outro ponto em destaque é o tema eugenista da época retratada. Este tema foi colocado de maneira brilhante por Nelson Pereira dos Santos em Tenda dos Milagres (1975/77), um filme forte onde ele se apropria da metalinguagem, um cineasta desenvolvendo a história social e política da Bahia em relação aos negros, a ficção que cria no decorrer do roteiro. A ficção de Tenda dos Milagres se passa no início do século XX. No ano de 1975, Nelson Pereira dos Santos coloca no filme o debate sobre as teorias eugenistas tão difundidas no Brasil através da medicina e educação. Jubiabá é um filme que parece denotar a preocupação da impregnação do racismo na vida dos seus personagens. Destes, Baldo é o único que percebe este desafeto na pele e referencia sua angústia apenas no final, quando no momento de uma assembléia sindical prestes a decretar uma greve, ele demonstra seus sentimentos até então selados. A construção do personagem Baldo marca a narrativa do filme. Na infância, começa a perceber as diferenças e na adolescência começa a desenvolver um olhar crítico que se concretiza na fase adulta como boxeador. Este é outro momento em que o filme difere do livro porque no livro de Jorge Amado, Baldo começa como boxeador. Já no filme, ele se constrói como boxeador na idade adulta. Jorge Amado deu total liberdade para Nelson Pereira dos Santos; o escritor não acompanhou o roteiro e nem mesmo as filmagens254.

Ao se dedicar à analise de Jubiabá, Eduardo de Assis Duarte255 o define como um

romance da formação do proletariado, situando o processo de criação da obra em paralelo às

lutas socialistas brasileiras que surgiram concomitantemente à história da Aliança Libertadora

Nacional e aos conflitos revolucionários influenciados pela revolução bolchevista de 1917, os

quais, em seu percurso de expansão internacional, marcaram o País no ano de 1935.

Para Jorge Amado, que experimentara uma recepção crítica polêmica em torno de seus primeiros livros, impunha-se um salto de qualidade, visando não apenas uma obra estruturada e duradoura, mas sobretudo com alcance social ampliado, dentro do propósito de ‘falar às massas’ e intervir no processo cultural Para cumprir tais exigências, que no momento político a opção pela literatura engajada lhe determinavam o autor envereda pelos

franceses surgiram na finalização do filme), mas das questões não resolvidas com a Embrafilme, e outras a respeito da cenografia –resolveu parar as filmagens iniciadas em Salvador, e, no final de dezembro, mudou o set para Cachoeira, cidade histórica do Recôncavo baiano. Cachoeira era o cenário perfeito para um filme de época, pois Salvador, com uma paisagem urbana já bastante modificada, não era mais o espaço cenográfico que serviu a Tenda dos Milagres. As filmagens de Jubiabá duraram três meses. O filme foi lançando no Brasil e na França (com o título Bahia de tous les saints pelo canal Antenne 2). Participou do Festival de Veneza, exibido hors concours, em setembro de 1986. Sobre o processo de produção de Jubiabá, ver Helena SALEM. Op. Cit. 254 Ver Maria Ângela PAVAN e Dennis de OLIVEIRA. A construção da identidade negra em Jubiabá. Disponível em: <http://www.usp.br/nce>. Acesso em: ago. 2007. 255 Cf. Eduardo de Assis DUARTE. Jorge Amado: Romance em tempo de utopia. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, UFRN, 1996, p. 75-119.

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ramos ancestrais da narrativa e tempera o intuito realista de mostrar a evolução do oprimido na direção da consciência de classe com toda uma gama de recursos construtivos de grande repercussão popular [...] Em Jubiabá, vemos materializar esse encontro com o popular não apenas enquanto matéria ficcional, mas igualmente na direção das formas consagradas de sua expressão: causos da tradição oral, os folhetos de cordel, os ABC dos sertanejos. [...] A própria concepção do romance, fundada na narração dos feitos do herói, inspira-se no cordel, e mesmo na mais longínqua herança narrativa. Por outro lado, o autor incorpora também a herança narrativa burguesa que se difundiu e arraigou entre nós e constrói um romance de aprendizagem em que se evidenciam as relações com os motivos e tratamentos folhetinescos [...]. O resultado dessa mistura de formas e linguagens é o romance romanesco, fruto da combinação do popular com o popularizado [...] O objetivo dessa combinação de formas e difundir a mensagem partidária de elevação do oprimido, materializada em Jubiabá no processo de formação do herói proletário256.

No romance, a história de Baldo – herói negro, proletário, que andou de ponta a

ponta nos extratos sociais brasileiros, sendo sucessivamente órfão, mendigo, malandro,

capoeirista, boxeador, sambista, artista de circo, até tornar-se um poeta do ABC – é dividida

em três partes, com características narrativas cinematográficas: “Bahia de Todos os Santos e

Do Pai-de-Santo Jubiabá” abrange da infância de Baldo no morro Capa-Negro à adolescência

como serviçal, e ao mesmo tempo rebelde, que vive agregado na casa dos brancos, sonhando

com o impossível amor branco e negro; “Diário de um negro em fuga” espelha a juventude

transfigurada pela transgressão dos valores; “ABC de Antonio Balduíno” narra a fase em que

o personagem se transforma de herói do boxe a líder sindicalista. Nelson Pereira dos Santos

expandiu livremente o seu pensamento sobre a narrativa traçada por Jorge Amado, e,

refazendo Jubiabá ao seu modo, deu destaque à história de amor.

Projetado Jubiabá, o olhar do espectador se depara, logo no início do filme, com as

silhuetas de um bando de crianças que, em disparada, descem do topo do morro em

desabalada fuga, à medida que o grupo se desloca, em outras cenas, por ladeiras tortas e

estreitas, tendo lado a lado velhas e surradas casas. As crianças aproximam-se de uma

determinada plataforma; vê-se, a seguir, um grupo de músicos que entoam uma canção –

identifica-se um samba; os meninos vão se posicionado em torno desses músicos, formando

quase um círculo e, em silêncio, prestam atenção à música:

homem pobre nunca roubei pois não tinha o que roubar/ mas, um rico de carteira a nenhum deixa escapar/Adeus caldeirão da feira, adeus, também, mais alguém/Zombei de moços e de velhos, também, zombei de meninos/Chegou o meu dia, vou cumprindo o meu destino/Mulata de bom

256 Ver Eduardo de Assis DUARTE. Op. Cit., p. 75-77.

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cabelo, cabrinha de boa cor/Criolinha só no repique, branquinha nunca me escapou... 257

Fim da música, todos os personagens da roda de samba caem na risada. Corte. Uma

figura vestida num impecável terno azul vai se chegando – é Pai Jubiabá (vivido por Grande

Otelo); ele passa por duas senhoras, ultrapassa a fila de homens e crianças, recebe a

reverência de todos, que lhe pedem a bênção, e penetra numa casa. A tela escurece e

aparecem os créditos do filme conduzidos pela música tema, composta por Gilberto Gil.

A primeira observação a fazer sobre o prólogo do filme Jubiabá é que nele existe

uma sutil semelhança com cenas dos filmes Rio, 40 Graus e Rio, Zona Norte. A analogia está

nas crianças descendo o morro, nas casas enfileiradas em ruas íngremes e estreitas, na

fisionomia dos moradores e na sonoridade musical. Enquanto em Rio, Zona Norte,

presenciamos a vida do sambista Espírito, uma ficção da história real do compositor Zé Kéti

(também interpretado por Grande Otelo), agora assistimos e ouvimos, na abertura do filme

Jubiabá, um samba interpretado pelo compositor baiano Batatinha. A canção será um

leitmotiv dramático da vida de Baldo que busca a sua identidade.

Subjetivamente, esses espaços geograficamente distantes se ligam e se interligam

diegeticamente no cinema de Nelson258. O morro em que viveu Espírito/Zé Kéti em Rio, Zona

Norte (Rio de Janeiro) e o morro do Capa-Negro (Bahia) onde vivia Baldo, pai Jubiabá e

tantos outros afro-brasileiros têm raízes em comum únicas, estruturas orgânicas identificadas

na religiosidade, na música, nos traços comuns dos moradores que sofrem das mesmas

mazelas: da discriminação à exclusão. São morros, são pontos, são espaços periféricos que

possuem a mesma origem, neles as populações de ex-escravos inventaram na medida da

possibilidade de cada um o seu habitat em cima do que lhes restara dos detentores do poder.

Nesses núcleos cultivaram a sua cultura, assentaram os seus terreiros, criaram as suas escolas

de samba, os seus pagodes e os seus sambas de roda.

Jubiabá retoma a cena inicial do mesmo ponto de vista, muda os detalhes: chove. Pai

Jubiabá aparece na mesma porta, vista no plano anterior, está quase todo encharcado, e diz:

“obrigado mamãe Oxum”, mostrando a sua devoção aos orixás. Os meninos, entre eles Baldo,

brincam: “quem se molhar vira mulher”, a brincadeira é interrompida com os gritos da tia

Luiza que o chama, esse vendo que vai se molhar de todo jeito, afirma: “Agora não vale”.

Conhece-se o pequeno mundo do menino Baldo. Nas cenas seguintes, a tia Luiza no misto de

257 Letra da canção ABC de Batatinha e Jorge Amado. 258 Segundo Nelson, Jubiabá lembra Rio, 40 Graus, como alguma coisa de Tenda dos Milagres e de O Amuleto de Ogum. Ver Helena SALEM, Op. Cit.

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transe e loucura não reconhece mais o menino que criava, Baldo. Esse corre para chamar pai

Jubiabá, que socorre a velha tia e faz orações aos orixás. Morre a tia, Baldo agora se despede

dos seus amigos e é levado por Dona Augusta para viver noutro mundo: o dos brancos.

Baldo saiu do seu lugar carregando uma guia, traço de identidade religiosa usada por

adeptos do candomblé, oferecida pelo pai Jubiabá que lhe pediu: “Quando crescer, volte”. O

seu olhar é carregado de medo e insegurança, não sabe para onde vai. Mas, parece ter o

pressentimento de qual algo errado está para acontecer, em que pese a sua acompanhante,

Dona Augusta, dizer da família do comendador Ferreira: “são ricos, mas são boa gente”.

A câmera percorre a fachada da casa, mostrando a sua dimensão de grandeza, que

marca a distância da casa onde Baldo vivia com a sua tia e as outras casas dos amigos,

parentes, e do seu protetor, pai Jubiabá. Em plano médio, os visitantes são introduzidos na

sala. A família Ferreira faz a sua refeição, a dona da casa, Dona Maria, pede para Augusta que

acompanhe Baldo a se sentar, perguntando se eles já haviam almoçado. Dona Augusta,

responde: “Não se preocupe, a gente almoça na cozinha”. O Comendador Ferreira chama a

governanta: “Amélia”. Pede a sobremesa. A pequena Lindinalva já havia lançado um olhar na

direção de menino Baldo. Nessa cena, o posicionamento da câmara se modifica colocando a

mesa em primeiro plano e ao fundo estão posicionados D. Augusta e Baldo. Atravessando a

porta Amélia retorna a sala, trazendo o pedido do patrão.

Dona Augusta fala ao comendador que trouxera o menino. Antes dele se apresentar,

o comendador Ferreira vai perguntando: “Como é o seu nome Benedito?”, este lhe responde

“Antonio Balduíno”; o comendador retruca: “É muito grande, vou lhe chamar de Baldo”.

Ferreira manda Baldo andar (sair da sala), Amélia continua servindo, ao lado de Dona Maria,

mulher do comendador Ferreira, fazendo a seguinte pergunta: “E a senhora vai aceitar esse

menino”? Ela não responde e se limita a olhar para o marido; Ferreira, se dirigindo à Amélia,

recomenda “Você vai cuidar desse garoto, creia ele, é um bom negrinho”. Corta. D. Augusta,

enquanto almoça junto a Baldo, conta a Amélia que, em pose passiva, escuta a história da

morte da tia de Baldo. Na cena seguinte, Baldo e Lindinalva correm para o quintal e vão

brincar numa árvore, distante. Posta de bruços na janela, a governanta Amélia que vai se

transformar na principal antagonista a Baldo, no seu convívio com os Ferreira, fala: Isso não

vai dar boa coisa, um negro aqui dentro”.

A tela escurece, escuta-se a música, e numa elipse a cena é retomada do mesmo

ponto de vista anterior. Na árvore do quintal da casa, Lindinalva deitada num dos galhos, pede

a Baldo, que chegava da cidade, carregando de compras, que a leve nos braços para dentro da

casa. Baldo com ar debochado, fumando um charuto, não é mais o menino lúdico, já chegara

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à adolescência. Amélia não é nada afetiva com Baldo, muito menos tolera a sua intimidade

com a menina Lindinalva, e já havia expressado o seu racismo, desde a sua chegada na casa

dos Ferreira. Amélia o ameaça com uma colher de pau, e este finge que vai lhe dar um golpe

de capoeira, fica nítido que entre eles há um conflito.

Noutra cena, Amélia faz queixas do comportamento de Baldo ao comendador, que

pergunta se ele já sabe ler e escrever; Baldo responde que sim. Ganha um emprego e vai

acompanhar Lindinalva ao cinema. Na volta a casa, eles vão contemplar as estrelas, Amélia

carregada de ódio diz ao patrão que Baldo só vive a olhar para as coxas de Lindinalva e espiá-

la através das fechas das paredes. O Comendador enfurecido parte para cima de Baldo,

agredindo-o violentamente, e grita: “E então seu sujo eu lhe trata como um filho e assim que

você me paga, venha aqui seu negro sujo, cachorro, miserável”. Baldo foge todo

ensangüentado, a música toma todo o espaço do filme, parte da letra diz: “Como príncipe

encantado, bem preto como um carvão/Anjo negro iluminado”. Primeiro plano o rosto de

Baldo, ele se masturba e vê projetado o rosto de Lindinalva, em primeiro plano. A música

finaliza a seqüência com a frase: “Cupido era cuspida”. A partir dessa seqüência e em todas as

cenas que Baldo se envolve em conflitos, aparecerá o rosto de Lindinalva como um fantasma

ou um anjo lhe perseguindo, substituído os seus amores ou aliviando a dor da violência

sofrida.

Nelson carrega Jubiabá de um caldeirão de significados a respeito do embate entre

negros e brancos, são confrontos que vão sendo resolvidos por via da violência, física ou

simbólica, prevalecendo, até certo ponto, a hegemonia do poder branco. Como contraponto a

essa suposta superioridade, Nelson exibe o outro lado da luta contra essa condição autoritária:

o negro, simbolicamente, representado por Baldo, por sua vez, fundamentado nos princípios

do pai Jubiabá. Caberá a Baldo assumir a liderança, mesmo cometendo atos de violência, mas

sua atitude sempre será exercida na sua defesa e na defesa dos seus pares, representando uma

reação contra o poder estabelecido.

Expulso da casa do comendador Ferreira, Baldo vai perambular pelas ruas e a

mendigar junto com o seu inseparável amigo, Gordo. Insultado pelos transeuntes, fumando

restos de charutos. Baldo, no final do dia, faz a partilha do montante de dinheiro recolhido;

questionado por Gordo, porque vai repartir a grana com as meninas, responde: “Elas

trabalharam, vão receber, também”. Em que pesem as circunstancias adversas da vida, Baldo

mostra-se solidário. A vida segue, entre Baldo e seus amigos de rua. Eles formam rodas de

capoeiras para ganhar alguns trocados, até se esbarrar em Lindinalva caminhando com seu

noivo, Baldo sente na pele o desprezo. Chama-os de “brancos de merda”. Revoltado, Baldo

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toma outra atitude – ao invés de pedir, assalta um pedestre, diante do desespero do seu amigo

Gordo. Surpreendidos pela polícia, Baldo e seus companheiros são levados à prisão e

espancados. Solto, Baldo é ameaçado por um policial: “Se voltar pra cá, não sai nunca mais”.

Desesperado procurando um amparo corre e retorna para o morro do Capa-Negro, vai a casa

de pai Jubiabá em busca de conforto e apoio. É o fim da transição entre a adolescência e fase

adulta.

Nas cenas seguintes, vê-se Baldo já adulto, tocando atabaque numa festa do terreiro

de candomblé. O filme demonstra que nas fases da infância à adolescência, Baldo teve o seu

aprendizado das diferenças, às vezes demonstradas sutilmente, noutras com bastante agressão

física. Retrato de como o mundo branco o encarava preconceituosamente, por ser negro, por

ser pobre, por ser um desvalido, um sem-família. Entende Baldo, que o discurso da boa

convivência é uma farsa que somente se mantém diante da sua postura servil frente ao

dominante. A vivência dessas constantes situações conduz Baldo, na sua fase adulta, a ter uma

visão extremamente crítica da sociedade em que vive.

Aos poucos, Baldo vai construindo a sua identidade, assumindo gradativamente o

papel de líder. No percurso, vai se aproximar da jovem branca Da Cruz, filha de santo, noiva

do soldado da polícia Osório Da Cruz, repreendida pela sua mãe, que não concorda com o

casamento com Osório, não resiste às investidas de Baldo. O conflito está armado, entre

Baldo e Osório. Desafiado pelo noivo da moça, entre em luta corporal que vai lhe credenciar

junto a Luigi, empresário do boxe, para ser lutador e campeão da Bahia. À noite, no silêncio

do seu quarto, Da Cruz recebe a visita de Baldo e tem uma noite amor. No olhar de Baldo, Da

Cruz se transforma em Lindinalva.

Baldo vence a primeira luta, é manchete dos jornais. Comemora com os amigos, o

seu empresário Luigi, o inseparável Gordo, e o pai Jubiabá na Lanterna dos Afogados, ao som

do samba cantado por Batatinha: “Oi Nazaré que saudades eu tenho daí/ Essa terra

abençoada/[...]”. Durante a festa, onde todos dançam e comem, Baldo conta a sua proeza.

Outro empresário de boxe, Xavier, lhe oferece dinheiro para ele perder a próxima luta, um

suborno no valor de 100 mil réis; Baldo finge que aceita e denuncia o corrupto aos presentes:

“Fingi em aceitar para ele ver que homem não se compra”. Corte. Baldo está comendo com

amigos e recebe um jornal com as notícias a respeito da sua vitória, mas vê, também, a notícia

do noivado da jovem Lindinalva com Gustavo, em cuja manchete se lê: “Noivado entre

ilustres famílias bahianas”. Flashback; vê-se a mesma cena de Baldo lendo a manchete, mas,

ao invés do Baldo adulto, um Baldo adolescente é quem fala: “Brancos de merda, filhos da

puta”. Baldo se embriaga e, transtornado, é derrotado pelo adversário, o Alemão. A platéia

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grita: “Baldo você é traíra” [...] “Baldo, você é sujo”. Vaias, gritos, rostos desolados de Luigi

e Gordo, Baldo, no chão do ringue; aos pouco se escuta uma voz: “É doce morrer no mar, nas

águas verdes do mar”. Fusão, aparece o rosto de uma mulher negra em primeiro plano, segue

outro rosto de um homem; a mulher, interpretada pela cantora Eliana Pittman, continua a

cantar a música de Dorival Caymmi. Plano Médio. Baldo está deitado em um saveiro. Sua

fala se repete: “Brancos de merda, filhos da puta”. A mulher que cantava pergunta ao

barqueiro com quem ele fala, o barqueiro responde “Com a Bahia”. A fama foi efêmera;

Baldo segue outros caminhos.

O filme volta-se para o mundo dos brancos, da vida de Lindinalva, do seu noivo

Gustavo, do comendador Ferreira e da governanta Amélia, que continua na família após a

morte de Dona Maria, mulher do comendador Ferreira. Este passara a freqüentar bordéis e a

gastar desvairadamente o seu dinheiro, a ponto de hipotecar sua vistosa casa na cidade.

Falido, o comendador morre de infarto dentro do quarto do Bordel da Zaíra, em companhia de

sua prostituta predileta, Tetê. Enterrado o comendador Ferreira. Gustavo, o noivo, que se

recusara a ir ao velório, diz a Lindinalva, em sua nova moradia, que o seu pai havia arruinado

a sua carreira, por isso não haverá mais casamento. Entrega certa quantia de dinheiro à

governanta Amélia, prometendo mandar um pouco mais a cada mês. Lindinalva chora deitada

na cama, descobre-se grávida da noite de amor que teve com seu noivo. Nas cenas desse

encontro, Lindinalva, em sua imaginação, substitui Gustavo por Baldo. Com o passar dos

tempos, sem dinheiro para sobreviver, vai para o bordel, onde se prostitui. A saga de

Lindinalva é triste, vai da opulência dos primeiros dias bebendo champanhe até ir viver num

prostíbulo dos mais decadentes, e à sua morte.

Baldo havia retornado e reencontrou o seu empresário Luigi, que o convida para

integrar a sua trupe circense; conhece a cantora e dançarina Roselda, com quem tem um caso

de amor; outra vez, nas cenas de sexo, reaparece a figura de Lindinalva. Luigi, alcoolizado,

morre de uma queda do trapézio, o circo acaba. Baldo volta e encontra Gordo que lhe avisa

que Amélia havia lhe procurado. Sabendo da situação de Lindinalva, vai a sua procura,

encontra-a bêbada e implorando por um cigarro. A sua situação é deprimente. Baldo volta ao

pai Jubiabá, que lhe cobra: “Tu não achas que está na hora de trabalhar?” No mundo do

trabalho, Baldo vai ser operário nas docas. Amélia o procura, levando o filho de Lindinalva,

que está à beira da morte e quer vê-lo. Ela lhe pede perdão e implora para Baldo cuidar do seu

filho. Baldo volta às docas na assembléia da greve; as cenas são intercaladas com cenas de um

ritual do candomblé. Baldo surpreendendo a todos com um discurso:

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Eu sou um negro burro, não tenho palavras bonitas, mas sei que aqui tem homem com filhos, com fome mulher com fome. Vocês não sabem de nada. Que adianta negro vir cantar, vir rezar pra Oxossi. Um dia policiais fecharam a festa de Oxalá quando ele era Oxafulan, o velho. Pai Jubiabá foi com eles pra cadeia, o que é que negro pode fazer por negro. Cadê luz? Só tem as estrelas. Negro é a luz. Branco e negro pobres – tudo são escravos, mas tem tudo nas mãos. É só não querer mais ser escravo. Vamos votar, eu sou pela greve.

Com o braço levantado, Baldo chama os seus companheiros para a luta e, juntos,

saem caminhando. A câmera de José Medeiros, com a clareza marcada pelo uso do contraste

entre o claro e o escuro, passeia pelos rostos negros com intensa liberdade poética. Pai

Jubiabá levanta os braços e grita “Baldo!”; este se vira e escuta da boca do pai Jubiabá: “Os

ricos secaram os olhos da bondade, mas qualquer hora eles podem secar os olhos da maldade,

se ajoelha aos pés de Baldo que segue o seu caminho ao som da música cantada por Gilberto

Gil: Negro Balduíno/ belo negro o Baldo/ filho malcriado de um velha tia/com os olhos de

menino esperto/via luzes onde ninguém via. A câmera se desloca dos homens e foca o céu

estrelado. Fim.

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de Literaturade Literaturade Literaturade Literatura

Ao passar os olhos pela literatura (eureka!), o cinema descobriu que a imagem não é só o que aparece à flor da pele: é também texto, palavra que nos falta, invenção da palavra. A imagem não ilustra o que imaginamos enquanto pensamos com palavras: a imagem pensa, imagina de outra forma.

José Carlos Avellar259

Eu gosto dos dois filmes, que são uma conseqüência do meu relacionamento com a literatura. É como se eu tivesse feito uma apropriação autoral. Era como se aquele que escreveu Memórias do Cárcere ou Vidas Secas não fosse Graciliano. Eu me apropriei daqueles livros por causa de minha admiração pelo escritor; através de minha profunda conexão com eles, descobri que era o dono da história. Acho que isso é o que acontece em qualquer adaptação. [...] Queríamos fazer a mesma coisa com o cinema. Isto só seria possível criando uma forma própria de expressão, não usando uma pré-existente. [...] Havia momentos em que recebia muitas propostas para fazer filmes baseados em trabalhos literários, mas eu não me sentia à vontade e recusava várias daquelas propostas porque, antes de mais nada, deve existir um forte relacionamento entre o que eu vivo e penso e aquilo que me proponho a fazer com um livro e um autor.

Nelson Pereira dos Santos260

Prá mim, esse problema de reencontro com a cultura nacional não tinha ponto de apoio nenhum no cinema brasileiro anterior. [...] o cinema existente não expressava a nossa realidade, não tinha representatividade cultural. Pra que tivesse, era preciso que houvesse um cinema que fosse como a literatura dos anos 30 – Graciliano, José Lins do Rêgo, Jorge Amado, sobretudo, estes eram os nossos papas.

Nelson Pereira dos Santos261

259 Marinyse Prates de OLIVEIRA. Olhares Roubados: cinema, literatura e nacionalidade. Salvador: Quarteto, 2004, p. 59. 260 “I like both films, which are a consequence of my relationship with literature. It,s like I managed to make an appropriation of the author.It was like the one who wrote either(Memoirs) of Prison or Barren Lives wasn`t Graciliano I appropriated those books because of my admiration for the work of the writer; by way of my profound connection with them [...] There was a time when I received many proposals to make films based on literary works but I didn´t feel right and I refused many of them, because there must be a strong relationship beforehand between what I live and think I propose to do with a book an author”. Interview GERALD O’GRADY. In: Darlene J. Sadlier. Op. Cit., p. 125-126. 261 Maria Rita GALVÃO.Op. Cit., p.207-208.

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Para criar um cinema endógeno, de matéria e expressão próprios, Nelson toma como

referência o percurso da literatura brasileira ao afirmar que as experiências vivenciadas no

moderno cinema brasileiro já haviam sido experimentadas, de diferentes modos e graduações,

por esse meio de expressão artística. Cotejar e estabelecer um paralelo entre o percurso da

literatura e do cinema brasileiro parece ser uma maneira razoável de acompanhar

entendimento desse cineasta que manifesta, em várias oportunidades, ser tributário ao

pensamento proveniente da moderna literatura brasileira. Essa escolha também encontra apoio

na sugestão oferecida por Flora Süssekind que se reporta à contigüidade entre a literatura e o

cinema para revelar a intensidade dos seus relacionamentos ao propor uma:

história da literatura que leva em conta suas relações com uma história dos meios de comunicação, cujas inovações e transformações afetam tanto a consciência de autores e leitores quanto as formas de representação literária propriamente ditas262.

As diversas teorias circunscritas no interior dos estudos lingüísticos e literários

forneceram importantes subsídios à análise fílmica, em geral, e especificamente à adaptação.

Neste sentido, destaca-se a noção de Roman Jakobson263 sobre a “transposição criativa”, que

alargou os horizontes interpretativos verificando que além das diferenças de línguas na

tradução coexistem diferentes territórios de expressão, no qual se inclui a adaptação de textos

literários para cinema. Ao defender o aspecto original da transposição Jakobson264 retira do

262 Flora SÜSSEKIND. Cinematográfo de letras. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 26. 263 Para Roman Jakobson há três tipos de tradução: a intralingual, que consiste na interpretação dos signos verbais por outros da mesma língua; a interlingual, em que a interpretação dos signos verbais é feita através de uma língua diversa; e a intersemiótica, que corresponde á interpretação dos signos verbais por meio de sistemas de signos não verbais, ou seja, a transposição “de um sistema de signos para outro, por exemplo, da arte verbal para a dança, o cinema, a pintura. Roman JAKOBSON apud Júlio PLAZZA. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 1987, p.26. 264 A título de observação destaca-se a influência e a presença de lingüista russo no Brasil pelas conferências realizadas em sua visita ao Brasil em setembro de 1968, publicadas em 1970, pela Editora Perspectiva com o título Lingüística. Poética. Cinema, e em particular pelo conceito que desenvolveu sobre poética sincrônica que aqui foi estudado por Haroldo de Campos. Sobre a leitura pragmática-poética do corte sincrônico proposto por Roman Jakobson, ver Haroldo de CAMPOS. A operação do texto. São Paulo: Perspectiva, 1976, p.15-16. Observa o crítico poderá agora, de cabeça erguida e sem pedir escusas, reivindicar alto e bom som aquilo que nos é devido, o contributo de informação original que temos a reclamar como coisa nossa na evolução de formas da literatura universal, na, por assim dizer, ‘enciclopédia imaginária’ dessa literatura. Haroldo de Campos reivindica a dimensão sincrônica para rever a história da literatura brasileira, em que o critério de focalização se centra no diálogo dos procedimentos estéticos. Assim, o empenho de Jakobson em priorizar os estudos interdisciplinares e promover a vinculação entre poética e lingüística, são observados pelo estudioso brasileiro que não ignorou tais preceitos e no ensaio que escreveu quando da vinda de Jakobson ao Brasil nos anos de 1970, Haroldo de Campos com conhecimento o chamou "o poeta da lingüística".

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processo da adaptação seu liame mais redutor: a fidelidade ao original, preocupação central

dos teóricos pioneiros que estudaram a questão.

Aquece também o debate, as colocações mais recentes sobre as adaptações passarem

de um discurso valorativo sobre fidelidade ou traição para um discurso tocado pelas

possibilidades intertextuais.

A expressão “intertextualidade” foi introduzida na argumentação lingüística por Julia

Kristeva265 na década de 1960 a partir do “dialogismo” criado por Mikhail Bakthin266 nos

anos de 1930. O conceito de dialogismo implica no entendimento de que todo texto constitui

um ponto de encontro de exterioridades textuais. Linguagem para Bakthin se constitui pelo

contraditório, está sempre em movimento operando o diálogo entre as várias camadas

superpostas que a integram.

Assim, a intertextualidade torna-se um conceito teórico valioso, por relacionar o

texto na sua propriedade a outros sistemas de representações, chamando a atenção para todas

as operações transformadoras que um texto possa produzir sobre outro texto. Compreende-se,

assim, que os textos são tecidos por citações, conscientes e inconscientes, combinações e

inversões de outros textos.

As adaptações localizam-se, por definição, em meio ao corte superposto da

transformação intertextual, de textos gerando outros textos em um processo infinito de

reciclagem, transformação e transmutação. Dessa forma, o trânsito intertextual se faz presente

nas relações entre cinema e literatura. As possibilidades de inter-relacionamento dos dois

meios de expressão artística são inúmeras, apesar de o aspecto dominante recair nas questões

relacionadas à fidelidade das adaptações, sendo menosprezadas as particularidades e

substâncias desses modos de expressão artísticas.

Um olhar mais compreensivo sobre a questão terá de contemplar outras dimensões

que o tirem dessa insistência permanente, que deriva da expectativa gerada pelo conhecimento

do livro que o espectador projeta no filme, levando a um juízo crítico, geralmente superficial,

que com freqüência valoriza a obra literária sobre a adaptação a partir da alegação do não

cumprimento das determinações contidas nos livros: a “traição” à obra que lhe deu origem,

ancorada na postura do espectador que espera encontrar projetada uma versão “fiel” da obra 265 Julia Kristeva nasceu na Bulgária e passou a morar na capital francesa desde 1966. Psicanalista, professora de lingüística na Universidade de Paris e autora de livros de sucesso no mundo acadêmico. Seu pensamento conjuga várias disciplinas: filosofia, semiologia, teoria literária e psicologia. 266 Mikhail Bakthin, lingüísta russso. Seu trabalho concentra-se na área de teoria literária, crítica literária, sociolingüística, análise do discurso e semiótica. Bakhtin é na verdade um filósofo da linguagem e sua lingüística é considerada uma "trans-lingüística" porque ela ultrapassa a visão de língua como sistema. Para Bakhtin, não se pode entender a língua isoladamente, mas qualquer análise lingüística deve incluir fatores extra-lingüisticos como contexto de fala, a relação do falante com o ouvinte e o momento histórico.

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lida, e dos que defendem a supremacia da linguagem literária em detrimento da linguagem

audiovisual,267, credenciando às adaptações a fragilidade de sua condição de cópia, e como tal

canhestra. Na contemporaneidade este posicionamento está sendo amenizado, diante da

tendência em se considerar as derivações e as múltiplas possibilidades de leitura que uma obra

possa ter.

Marinyse Prates Correia ao tratar da noção de “fidelidade a um original” no universo

complexo da adaptação recorre ao pensamento de Gilles Deleuze desenvolvido em Platão e o

simulacro268, concernente ao seu reconhecimento da diferença como potência libertadora do

simulacro da opressão representada pelo original, flexibilizando o campo de análise crítica

para a adaptação da obra literária:

Deleuze, a seu turno, ao retomar o abalo que Nietzsche produz no esquema hierárquico construído por Platão, propõe-se a resgatar o simulacro da posição subalterna a que foi relegado, chamando a atenção para o fato de que enquanto a ‘cópia é uma imagem dotada de semelhança [...] o simulacro é construído sobre uma disparidade, sobre uma diferença, ele interioriza uma dissimilitude’269.

Tais observações alteram a hierarquia de valores e a fidelidade ao original deixa de

ser o critério maior de juízo crítico, levando-se em conta mais a apreciação do filme como

nova experiência que deve ter seu formato, e os sentidos nele enredados, avaliados em seu

benefício. Constata-se enfim que livro e filme sofrem a distância do tempo; escritor e cineasta

são sujeitos distintos, cada um com a sua subjetividade circunscrita a partir da sensibilidade e

expectativa próprias; além dos dois meios estarem inseridos em campos de produção cultural

distintos com dinâmicas e demandas específicas. O escritor instaura para a prática do seu

ofício o arsenal disponibilizado pela linguagem verbal, com toda a sua consistência figurativa

e preciosismo metafórico. Um cineasta maneja diferentes tipos de materiais de expressão e

recursos variados na captação das imagens e sons para intentar uma tonalidade, um clima, um

ritmo na sua narrativa. Não se pode cair no reducionismo que apenas limita a diferença entre

essas expressões artísticas. Há de se reconhecer seus empenhos: ao escritor o que é do

escritor, ao cineasta o que é do cineasta, tomando-se as analogias entre livro e filme mais

como ponto de partida, não de chegada.

267 Uso a expressão audiovisual por não desprezar a adaptação literária comumente assumida pela televisão, não sendo a sua prática exclusiva do cinema. 268 Gilles DELEUZE. Platão e o simulacro. In: Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 1982. 269 Marinyse Prates CORREIA. No livro ou na tela: dois modos de ser Amado. In Colóquio Jorge Amado: 70 anos de Jubiabá. Salvador: FCJA/FJA, 2006, p. 120.

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Randal Johnson270 entende como falso problema a fidelidade à obra-modelo pelo

cineasta, porque ignora diferenças essenciais entre os dois meios, e credencia a insistência no

estabelecimento de uma hierarquia normativa entre a literatura e o cinema a uma concepção

kantiana que defende a “inviolabilidade da obra literária e a especificidade estética”271 Para

sustentar esse argumento recorre ao pensamento de José Carlos Avellar272 como chave para a

compreensão mais eficaz da relação entre cinema e literatura:

A relação dinâmica que existe entre livros e filmes quase nem se percebe se estabelecemos uma hierarquia entre as formas de expressão e a partir daí examinamos uma possível fidelidade de tradução: uma perfeita obediência aos fatos narrados ou uma invenção de soluções visuais equivalentes aos recursos estilísticos do texto. O que tem levado o cinema à literatura não é a impressão de que é possível apanhar uma certa coisa que está num livro – uma história, um diálogo, uma cena – e inseri-la num filme, mas ao contrário, uma quase certeza de que tal operação é impossível. A relação se dá através de um desafio como os dos cantadores do Nordeste, onde cada poeta estimula o outro a inventar-se livremente, a improvisar, a fazer exatamente o que acha que deve fazer273.

A analogia proposta por Avellar encontra coro na posição de Nelson ao declarar o

seu sentimento de apropriação às suas adaptações de Memórias do Cárcere ou Vidas Secas.

Nelson vai mais além, relacionando essa idéia de pertencimento como derivada de uma

profunda conexão com o escritor. Essa posição o conduz na direção de assunto já tratado

neste trabalho: o reconhecimento da literatura social brasileira como vanguarda da discussão

da realidade do país, que servisse tanto de exemplo como de instrumento para a leitura

cinematográfica que propõe uma intervenção na conjuntura política contemporânea. Em Vidas

Secas a discussão vigente traz à tona a reforma agrária e a estrutura social brasileira. Em

Memórias do Cárcere a incursão no passado é mediação para falar no presente, onde a

liberdade é tematizada em um momento em que se encontra ameaçada no país, servindo de

parábola para se pensar que aspirá-la não é crime e que o direito precede a força. A questão

270 Professor de literatura e cinema brasileiros da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), pesquisador de literaturae cinema brasileiros. Autor de Literatura e Cinema. Macunaíma: do Modernismo na literatura ao Cinema Novo. São Paulo: T. A. Queiroz, 1982; Cinema Novo X 5: Masters of Contemporary Brazilian Film.Austin: University of Texas, 1984; The Film Industry in Brazil: Culture and the State. Pittsburgh: University of Pittsburgh, 1987 e Antônio das Mortes. Wiltshire: Flicks Books, 1998. Disponível em: <htpp://www.humnet.ucla.edu/spanport/faculty/randalj/>. 271 Randal JOHNSON. Literatura e Cinema, diálogo e recriação: o caso de Vidas Secas. In: Tânia PELLEGRINI (org.). Literatura, cinema e televisão São Paulo: Editora Senac São Paulo: Instituto Itaú Cultural, 2003, p.40. 272 Crítico e ensaísta brasileiro, exerce papel determinante tanto na reflexão crítica como na ação do cinema brasileiro. Administrador cultural com passagens na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de janeiro, Embrafilme, Riofilme e Conselho do Programa Petrobras Cultural. 273 José Carlos AVELLAR apud Randal JOHNSON. Op. Cit., p. 39-40.

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social é atualizada e a prisão, como espelho da sociedade brasileira, desdobra-se nas prisões

do egoísmo, da fome, do racismo, do preconceito, reproduzindo a sociedade que encarcera.

No confronto do diálogo de Nelson com a literatura e com os escritores, em que foi

usado o exemplo de dois filmes, identifica-se mais um retorno ao ponto de origem: a busca de

uma forma própria de expressão cinematográfica.

José Carlos Avellar trará munição à discussão ao afirmar que “o gosto pela invenção

e a vontade de escrever brasileiro” estavam presentes na literatura de 22, não tendo

correspondência no cinema brasileiro realizado no período. Para sustentar esse argumento ele

recorre a Mário de Andrade, ao escrever Amar Verbo Intransitivo e Carlos Drummond de

Andrade em Alguma Poesia e Poema de Sete Faces, como exemplos de escritura em imagens,

de cinema feito sem se servir da câmera de filmar:

Drummond e Mário estavam fazendo cinema, e filmando melhor do que as pessoas que entre nós neste mesmo período estavam diretamente envolvidas com o cinema.274

Resguardadas as generalizações e apoiando-se no fato de que muito pouco do cinema

brasileiro do período foi preservado, poucos exemplos podem ser encontrados para se

estabelecer um paralelo, acata-se o posicionamento de Avellar:

Um juízo absoluto pode ser injusto. Mas, sem qualquer dúvida, se em algum momento nossos filmes foram tão cinematográficos quanto o texto de Mário, este exemplo logo se perdeu, e o que predominou até um tempo relativamente próximo foi uma forma bem pouco cinematográfica, determinada pelos padrões impostos pela grande indústria cinematográfica.275

Nessa linha de desenvolvimento pode-se vincular a experiência da literatura

modernista em associação a outro contexto, o cinematográfico, e localizá-lo na marca dos

anos 1960, quando o cinema brasileiro retomou aquilo que a literatura modernista tinha

vislumbrado em duas instâncias: a da forma, ao estruturar as palavras em cortes

cinematográficos e a do conteúdo, ao discutir o país e fazê-lo em língua brasileira.

Assim, o cinema moderno brasileiro liga-se à literatura num programa comum em

que o autor cinematográfico via no autor literário uma extensão do seu desejo numa relação

dinâmica e viva em que a adaptação passa a ser uma troca de informações, uma conversa

274 José Carlos AVELLAR. O cinema dilacerado. Rio de Janeiro: Alhambra, 1986, p.209. 275 Apud AVELLAR, p. 209.

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íntima, partilhada, entre dois diferentes modos de criação e prazer: escrever e filmar. Um

texto pode conter inclinações cinematográficas e um filme pode se servir de informações

literárias, sem que com isto essas formas de expressão imponham subordinação uma à outra.

Ainda que essas áreas não sejam estanques, se imiscuam e se contaminem, os sistemas e as

técnicas convocadas para dar forma ao imaginário tanto pelo cinema como pela literatura têm

seus modos próprios de manifestação.

Nelson, no conjunto de sua obra, experimentou essa relação de diferentes formas e

muito proveito tirou disso. Essa conversa, tocada por um sentimento de identidade com o

autor literário, que toma o texto como um roteiro vivo, que ao ser lido conduz a uma forte

emoção e impulsiona para a criação do filme, foi mantida entre Nelson e seus autores

preferenciais: Graciliano Ramos, Jorge Amado, Machado de Assis. Esses contadores de

Histórias do Brasil, em uma conversa fraterna, desvendaram seus segredos, suas tramas e

enredos para ser independentes, se organizarem e ganharem vida própria na fabulação e na

narrativa de Nelson.

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dededede Mandac Mandac Mandac Mandacaru Vermelhoaru Vermelhoaru Vermelhoaru Vermelho

Mandacaru Vermelho é um croquis. Um filme-rascunho para o exercício de Vidas Secas.

Nelson Pereira dos Santos276.

Acho que o primeiro filme que vi, ou pelo menos aquele que mais me marcou, foi western. Lembro-me apenas da parte final, quando o herói, um jovem caubói, atravessa o deserto, última etapa para voltar à sua cidade e aos braços da amada. Está faminto e sedento. Encontra uma casa em ruínas e, nela, um poço com terrível aviso: "Quem beber dessa água, morrerá em uma hora". O herói despreza a advertência, mata a sede e continua a cavalgar. Consegue chegar à cidade, que se encontra em plena celebração de um casamento. O casamento de sua amada com outro.

Nelson Pereira dos Santos277

A décima segunda letra do alfabeto pode, simbolicamente, trazer à memória o

sentido da maturidade. Porém em vez do significado do substantivo feminino, aqui ela se

relaciona, no trajeto de Nelson Pereira dos Santos, com o verbo maturar, ou seja, tornar-se

ainda melhor, aprimorar-se. Definido dessa maneira, o EME, também, é a procura do

amadurecimento, do se desenvolver completamente em busca do aperfeiçoamento e de chegar

à condição de plenitude na arte, demonstrando a representação da habilidade adquirida. A

letra M de Mandacaru278 Vermelho adquire neste alfabeto cinematográfico a diversidade

desses vários significados.

M de Mandacaru, adjetivado de Vermelho, é o princípio da exposição visual do

percurso multifacetado fílmico de Nelson Pereira dos Santos, que se constitui de

276 Entrevista concedida a Marise BERTA. Op. Cit. 277 Entrevista concedida a Paulo Roberto RAMOS. In: Estudos Avançados, vol. 21, n° 59, São Paulo, Jan./Abril 2007. 278 Ñamandaka´ru ou Yamandaka’ru palavra de origem tupi-guarani que designa a planta arborescente nativa do Brasil de ramos lenhosos, flores brancas, róseas e de bagas púrpuras comestíveis.

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características variadas e peculiares. Por isso, cabe a definição de que se trata do seu estágio

de transição, da sua passagem de um lugar a outro. Visto nesse sentido, o filme corresponde

ao conceito do ato de transitar de um estado de coisa ou de uma condição a outra. Mandacaru

Vermelho havia sido o seu terceiro experimento cinematográfico, após as renovadoras

experiências de Rio, 40 Graus e Rio, Zona Norte, trabalhos que deram ao jovem produtor e

realizador a condição in utero do moderno cinema brasileiro.

Mandacaru Vermelho precede a Vidas Secas, uma de suas obras de grande porte, e

de uma inédita dúplice autoral, ou seja, a criação por dois autores: Graciliano Ramos o seu

primeiro original construtor na forma de literatura e Nelson Pereira dos Santos o inventivo

autor-poeta da transposição do imaginário literário ao cinematográfico.

Por causa da proximidade temporal entre os filmes – Mandacaru Vermelho e Vidas

Secas –, e devido à grande repercussão da adaptação do clássico da literatura brasileira,

Mandacaru a lenda popular da saga entre duas famílias que se antagonizam e se exterminam

em pleno sertão baiano, traduzida como se fosse um western brasileiro é considerado por uma

parte de teóricos e críticos que despedaçam um conjunto fílmico em partes desiguais num

trabalho de menor porte no percurso cinematográfico de Nelson.

Em oposição a essa visão da crítica monolíngüe contemporânea e num intuito de

redimensionar o olhar da crítica, uma das opções alternativas é penetrar em Mandacaru

Vermelho através da receptividade dada ao filme por parte das resenhas e das apreciações

cinematográficas escritas por articulistas em exercício na época da sua realização e do seu

lançamento (1960/1961). Observa-se de imediato que o acolhimento dado foi a do

arrebatamento e o da exaltação:

Apenas 5 milhões de cruzeiros (aproximadamente) foram gastos em MANDACARU VERMELHO, o que incluída as copias, é custo baixíssimo, a exigir milagres em esforços de seus realizadores. Apesar disso, o filme tem um bom acabamento técnico. O trabalho fotográfico é muito bom. Remo Usai é um dos dois ou três compositores que dispomos (em cinema). A montagem confiada ao argentino Nelo Nelli [...] tem um desenvolvimento enxuto, onde, consideradas as diretrizes narrativas, nada falta, nada sobra. [...] Nota-se em MANDACARU VERMELHO progressos extraordinários do cineasta que constrói um filme. [...] MANDACARU VERMELHO é um processo de maturação. (grifos meus)279

MANDACARU VERMELHO de Nelson Pereira dos Santos é seguramente, uma das primeiras tentativas válidas de descobrir o Brasil, no que ele oferece de melhor [...] em termos de cultura popular autêntica. Não é mais o

279 Ely AZEREDO e Sérgio AUGUSTO. Brasil Violento em MANDACARU VEMELHO. Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 27 de novembro de 1961. Apud Gisellle GUBERNIKOFF, Op. Cit., p.200-201.

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nacionalismo infantil e tedioso nem uma visão contaminada de exotismo é uma realidade primitiva e trágica, às vezes grotesca. A história de MANDACARU VERMELHO obedece ao mesmo sistema narrativo, à forma tradicional de nossa literatura de cordel, no qual os maus são punidos e os bons recompensados e redimidos. Esta é a mais encantadora virtude do filme: inspirar-se no que a tradição consagrou e elevou a uma dimensão mítica. [...] A total ausência de glamour, de cavalos de fogosos, de mocinhos justos e ideais e de heroínas empoadas [...] MANDACARU VERMELHO é rodado com roupas pobres e rudes, tal qual é a região, cujos caminhos selvagens são enfrentados em jumentos e burros. É a verdade que algumas dessas caracterizações do filme, mais ingênuo que a estória e os atores mais desajeitados do que desejariam os personagens. O filme foi feito em regime de urgência [...] e as seqüências obedecem às formas tradicionais dos filmes de aventura. A fotografia é de qualidade, mas as composições sofrem e acentuado academismo, de forma e de espírito280.

Extraído de uma lenda colhida por Nelson Pereira dos Santos, MANDACARU VERMELHO estréia em avant-première internacional, dia 15 na Bahia. A história de violência e vingança é baseada na saga famosa do folclore nordestino. Uma espécie de Romeu e Julieta [...] Como qualidade, além do tratamento singelo e sem prosaísmo, a fita tem um acabamento bem cuidado. Foto e montagem são pontos altos. [...] Ator e ao mesmo tempo diretor e autor do enredo, NPS encontra um estilo próprio para narrar uma estória típica, sem qualquer concessão ao cinema internacional. A fita inaugura no Brasil o tratamento machadiano no cinema brasileiro. A apresentação de Lygia Pape dá o tom do bom gosto ao bom gosto geral da fita281

Mandacaru Vermelho é um dos primeiros resultados do Ciclo Baiano de Cinema282.

A presença de Nelson Pereira dos Santos realizando Mandacaru Vermelho (1961) e fazendo a

montagem de Barravento de Glauber Rocha (1962), veio dar ímpeto ao movimento baiano,

que se tornou reconhecido, internacionalmente, na aprovação dada pelos franceses Georges

280 Claudio MELLO E SOUZ. MANDACARU VERMELHO – (uma obra do acaso). Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 1 de dezembro de 1961. Apud Gisellle GUBERNIKOFF. Op. Cit. p.203. 281 Décio Vieira OTTONI. MANDACARU VERMELHO é um Romeu e Julieta do Nordeste. Apud Gisellle GUBERNIKOFF. Op. Cit. p.194. 282 O encontro do produtor Rex Schindler com Glauber Rocha, no escritório do fotógrafo Leão Rosemberg, faz eclodir o Ciclo Baiano de Cinema, que, a rigor, tem início com Barravento (1960-1961), de Glauber Rocha (apesar da filmagem anterior de Luís Paulino dos Santos, autor de um curta importante: Um dia na rampa, 1955). Dentro de um projeto de se criar uma infra-estrutura cinematográfica com Rex, Braga Neto e David Singer (produtores), Roberto Pires e Glauber, como mentor intelectual, entre outros, o ciclo prossegue com A grande feira (1961) e Tocaia no asfalto (1962), filmes que podem ser enquadrados dentro dos postulados cinemanovistas [...]. No entusiasmo geral, cineastas do sul do País e do exterior, aproveitando o cenário da paisagem natural, realizam os filmes Bahia de Todos os Santos (1959-1960), de Trigueirinho Neto; Mandacaru vermelho (1961), de Nelson Pereira dos Santos; O pagador de promessas (1962), de Anselmo Duarte; e Três cabras de Lampião (1962), de Aurélio Teixeira. No Ciclo Baiano de Cinema, incluem-se os filmes entre os anos 1960 e 1963, mas é preciso separar e distinguir os oriundos do grupo gerador inicial (Rex Schindler, Glauber, Pires, etc.) – que querem criar uma escola baiana de cinema, seguindo uma linha programática –, daqueles realizados fora do grupo, embora genuinamente baianos, como O caipora (1963), de Oscar Santana; Sol sobre a lama (1962-1963), de Alex Viany e O grito da terra (1964) de Olney São Paulo. Há em todos, entretanto, uma preocupação no enfoque do drama do povo brasileiro sofrido e faminto. Cf. Fernão RAMOS e Luiz Felipe MIRANDA (org.) Op. Cit., 2000, p.135-136.

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Sadoul e Pierre Furter. Sadoul escreveu, em julho de 1962, sobre o cinema brasileiro e baiano

publicando na Lettres Françaises o artigo Bouillonante Bahia, e Furter no texto Bahia, la

nouvelle capital du cinèma brésilien, editado na Gazzette de Lausanne 283.

A crítica cinematográfica baiana incorporou os elogios dos críticos franceses a

respeito do cinema feito na Bahia, elevada ao patamar de nova capital do cinema brasileiro. A

absorção de críticas benignas foi uma das contribuições externas para a superação do enigma

provinciano e serviu de válvula de inserção ao cinema produzido na província elevado ao

cenário internacional. Enfim, era um apoio à transição cosmopolita da província, erguida,

naquele instante, ao status de metrópole da vanguarda cinematográfica brasileira.

Outro fator para o qual o crítico Glauber chamava a atenção referia-se ao “resultado

das pesquisas sobre o cinema na Bahia; hoje este trabalho se valoriza porque se torna

introdução indispensável aos estudos futuros sobre o cinema baiano”284. Glauber apelava para

a formulação teórica, pois a Bahia havia ficado de fora dos chamados ciclos regionais do

cinema brasileiro, ocorridos entre os anos de 1912 e 1930, quando foram produzidos filmes

no Amazonas, na Paraíba, em Pernambuco, Minas Gerais, e no Rio Grande do Sul. Entre

esses ciclos se destacou o de Cataguases produzido por Humberto Mauro, a primeira

personalidade revelada pelo cinema brasileiro285.

A única experiência cinematográfica baiana ininterrupta antes do ciclo era a

documental processada pelo pioneiro Alexandre Robatto286. Além disso, o exercício do

imaginário cinematográfico limitava-se às atividades do Clube de Cinema da Bahia e à crítica

283 Ver Glauber ROCHA. “Esboço de uma escola baiana”, in: Revisão crítica do cinema brasileiro. São Paulo: Cosac & Naify, 2003, p. 154 e 155. 284 Glauber ROCHA, “Esboço de uma escola baiana”in Revisão crítica do cinema brasileiro. São Paulo: Cosac & Naif, 2003. p.153. 285 Cf. Ana Lúcia LOBATO. Os ciclos regionais de Minas Gerais, Norte e Nordeste (1912-1930); e Rubens MACHADO. O cinema paulistano e os ciclos regionais do Sul-Sudeste. In: Fernão RAMOS (org.). História do cinema brasileiro, São Paulo: Art Editora, 1987. p.63-97. Sobre Humberto Mauro, ver Paulo E. SALLES GOMES. Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte. São Paulo: Editora Perspectiva, 1974. 286 Muito antes de acontecer o boom cinematográfico dos anos 1950, a produção baiana foi dominada pela ação isolada do documentarista Alexandre Robatto Filho, que realizou entre os anos 1930 e 50, aproximadamente cinqüenta e quatro filmes de curta metragem, nas bitolas de 16mm e 35mm. Entre os seus trabalhos, na sua grande maioria institucionais, há filmes considerados importantes como, por exemplo, Vadiação, Entre o mar e o tendal e Xareú. Segundo os críticos André Setaro e José Umberto Dias, “se a princípio Alexandre Robatto, Filho restringiu-se ao registro bruto da matéria histórica, no entanto, procurou, no transcurso de sua filmologia, imprimir o gesto gerador, a dosar com funcionalidade e expressão elementos do cinema em permanente evolução técnica [...] Era um realizador que, ciente de seu ofício, procurava cerzi-lo artesanalmente da melhor maneira possível, imbuído do espírito flahertyano na captação das imagens de sua terra e de sua gente. Um apaixonado imperturbável das paisagens humana e geográfica. Acreditando na revolucionária mensagem estética da escola documentária britânica, teorizada por John Grierson (1898/1972) na elaboração e transfiguração criadora da realidade. Robatto é um cineasta de domingo (conciliando cinema com as profissões de cirurgião-dentista e professor universitário até a sua aposentadoria em 1977), conseguiu filmar, documentar, até mesmo realizar copiagens manuais na bitola 35mm e fazer-se equiparará aos significativos documentaristas do Sul”. Cf. André SETARO e José Umberto DIAS. Alexandre Robatto, Filho – pioneiro do cinema baiano. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1992.

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exercida nos periódicos da cidade. Glauber Rocha indica as causas da estagnação da prática

cinematográfica:

a tradição literária da Bahia é a retórica. As novas gerações de escritores e artistas surgidos, inicialmente, em 1945, no grupo Caderno da Bahia, e mais tarde em Ângulos e Mapa sempre foram violentamente combativas ao passado de Castro Alves e Rui Barbosa; contudo, o improviso, o romantismo e o discurso descritivo continuaram marcando, e mal, a expressão artística da Bahia [...] A Bahia é – na síntese – o barroco português, o misticismo erótico da África e a tragédia desposada dos sertões: sua expressão artística até então inferior às expressões de Minas e Pernambuco, tende, para muito cedo, a inserir uma corrente nova nas artes brasileiras. Os que primeiro compreenderam este clima complexo e rico foram Martim Gonçalves e Lina Bardi, que, em quatro anos, instalaram raízes significativas no ambiente cultural da província287·.

Glauber Rocha, exercendo a função de crítico de cinema288, expõe as causas da falta

de progresso, e ao mesmo tempo os motivos da ruptura em “derrotar a província na própria

província”289. O jovem crítico rasga elogios enaltecendo o autor Nelson Pereira dos Santos,

colocando-o como um dos elementos deflagradores do cinema moderno e novo brasileiro,

assim como do Ciclo Baiano de Cinema. Adotado baiano, não seria Nelson um estrangeiro já

que não existia nenhuma reação xenófoba a sua integração a Bahia.

Glauber, no seu exercício crítico definiu Mandacaru Vermelho como um drama

rural, um western290 nordestino:

parece muito mais um romanceiro do sertão: um romance que segue a raiz popular, prólogo e epílogo, epopéia com o máximo de ação e o mínimo de psicologia, mas ao mesmo tempo retrato violento do Nordeste, vertical e sem retoques – como nunca antes foi realizado no cinema brasileiro [...] jovem produtor cabeça de ponte da independência industrial & ideológica do nosso cinema, figura surgida no polêmico Rio Quarenta Graus (1955), volta ao seu

287 Glauber ROCHA. Esboço de uma escola baiana, Op.Cit, p.154. 288 Glauber Rocha exerceu o papel de crítico de cinema entre os anos de 1956 a 1963, antes de se tornar conhecido como cineasta. Escreveu nos periódicos baianos O Conquistense, O Momento, Afirmação, Jornal da Semana, Jornal da Bahia, Sete Dias e Diário de Notícias e nas revistas: Mapa e Ângulos. Nos jornais do Rio de Janeiro: Jornal do Brasil, O Globo e O Metropolitano. 289 Glauber ROCHA. Inconsciência & Inconseqüência da atual cultura baiana. Diário de Notícias. Salvador, 05/02/61. 290 Fernando Simão VUFMAN. In: Fernando MASCARELLO (org.). História do Cinema Mundial. Campinas, São Paulo: Papirus, 2006. p.159. “Para muitos, o Western é considerado o gênero cinematográfico norte-americano por excelência. Com os primeiros filmes em que aparecem cowboys datando da virada do século XIX para o século XX, o Western inclui-se entre os primeiros gêneros de filmes narrativos da história. (...) Mas o sucesso do gênero não se limitou ao público; sua influência sobre a cinematografia de outros países pode ser observada em filmes de samurai japoneses, cangaceiros indianos, russos e mexicanos, além, é claro, das francas imitações na Alemanha e na Itália”.

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quarto filme, após Rio, Zona Norte (1957) e o Grande Momento (1957) – produção que foi dirigida por Roberto Santos – provando que os melhores destinos de nossa colonial cinematografia surgem – a todo custo – como frutos da produção independente e livre dos compromissos vulgares do pseudocomércio nativos dos filmes291.

Falar de cinema nacional era, especialmente, pensar na produção, porém, nunca

como indústria pesada. Mandacaru Vermelho se contrapõe ao processo industrializado da

realização do cinema propondo o processo do improviso, técnica que passou a ser adotada por

cineastas periféricos que não tinham acesso aos sofisticados recursos tecnológicos próprios do

aparato do cinema industrial. A proposição vestida foi a de usar a câmera na mão, frase por

Glauber pronunciada, sentença que não queria dizer arranjo daquele que ainda não domina ou

não consegue dominar a atividade a qual se dedicou, revelando-se inábil, incompetente,

inexperiente; era um posicionamento estratégico, daqueles que optaram em fazer o cinema

moderno dentro das possibilidades tecnológicas possíveis, pois:

o problema da câmara na mão (que virou lema do cinema novo e não quer dizer improviso amador, como alguns profissionais comentam entre risos) – já não é apenas resultado da ausência de capital básico, mas é também fruto de uma nova visão cinematográfica do mundo inteiro, quando o cineasta deixa de ser o artesão que maneja atores na cenografia de estudo e, num passe histórico, transforma a técnica em poética: Antonioni, Godard, o hindu Ray, John Cassavetes – eis os exemplos que começam a derrubar a estirpe de William Wyler – o conformismo do filme certinho, com estória narrada para um clima romântico, de fusão explicativa e luz desenhada no close da estrela. [...] Hoje, o filme comercial não é o melhor filme. O filme de autor – o cineasta é ficcionista ou poeta, cria, depõe, divaga denúncia e luta com a câmara. Não podia existir para o cinema brasileiro melhor oportunidade na história acidentada do cinema – história pela qual os cineastas pagam preços violentos na hora exata em que a idéia é implacavelmente sangrada pela indústria292.

Dessa maneira, a transposição da posição de artesão era condição indispensável para

o realizador conseguir a adulteração do estado material da tecnologia para o imaterial da

poética e, por conseguinte, torna-se um autor, ou seja, o indivíduo com a capacidade de

inventar. Era chegada à hora da transformação da condição do estado de pré-indústria

cinematográfica artesanal numa mutação autoral. Por isso Glauber, dizia que no Brasil:

Nelson Pereira dos Santos foi a primeira consciência individual do fenômeno que surgiu nas mãos de Rossellini – naquele tempo dourado de Vera Cruz,

291Ver Glauber ROCHA. Mandacaru Vermelho. Suplemento Dominical Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 11 de novembro de 1961. 292 Ver: Id. Ibid.

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de subdesenvolvimento cultural paulista, fabricando melodramas da tirania, crítica de produtos inflamados e perniciosos do cinema de imitação – do rei (Rubem) Biáfora e sua cultura suicida. Hoje, sabendo tardiamente que o cinema não é estúdio, não é luz, não é travelling macio, não é partitura musical, não é nada de nada que os conformistas pregam – sabendo que o cinema marcha para outros caminhos – e estes caminhos abertos pela produção livre do artista que está dizendo não – surge (mas surge também na hora exata) a primeira arrancada do cinema novo293.

Na defesa do movimento de renovação a opção de fazer cinema não seria a artificial,

ou seja, a criação feita em estúdio, assim o Ciclo Baiano de Cinema e o Cinema Novo foram

promotores da modernidade, pois esses dois movimentos compõem o cinema do

conhecimento em oposição ao do divertimento, o da linguagem e não o do espetáculo, o do

método e não da ilustração, por fim, o cinema da revelação e não o da descrição do óbvio.

Nesta perspectiva Mandacaru Vermelho tornava-se um paradigma, filme realizado

em regime magro dos independentes, nem mesmo por isso, o autor e o seu fotógrafo haviam

perdido as rédeas da disciplina formal da linguagem, da luz e do som que moldaram a cara do

cinema brasileiro:

poema, filme contado, linguagem de ação, dos cantadores de violências sertanejas – fixação do homem social na paisagem sem o deslize para o exótico: disciplina, concisão, ritmo, luz, poema corrido com as variantes de lirismo que revelam NPS de hoje poeta294.

Mandacaru Vermelho justifica-se como exemplo e modelo, por se tratar de um filme

poético popular, cujo resultado junto ao público da capital da Bahia foi surpreendente,

chegando a entusiasmar os mais absolutos inimigos do cinema brasileiro, além de ser recorde

de bilheteria. Na sua exibição, no interior, nas cidades de Juazeiro (Bahia) e Petrolina

(Pernambuco) foi aplaudido por uma platéia constituída, principalmente, de vaqueiros rústicos

que nunca tinham visto cinema em suas vidas e que chegaram de longe para ver e viver este

começo do Cinema Novo295.

Nelson concretizou o futuro do cinema moderno brasileiro, pois o resultado do

processo iniciado naquele momento eclipsaria o cinema conservador e resultaria num cinema

brasileiro autêntico. Mandacaru Vermelho, assim, torna-se uma das fontes iniciais do cinema

293 Id. ibid. 294 Glauber ROCHA. Mandacaru Vermelho. Op. Cit. 295 Essas Informações sobre a presença de público nas estréias do filme na Bahia estão relatadas no ensaio de Glauber, ver Glauber ROCHA, Mandacaru Vermelho. Op. Cit.

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que se desloca do universo urbano para o mundo rural, abrindo caminho para um inesgotável

veio desse tipo de filme296.

A abordagem a propósito do que é cinema moderno remete a uma heterogênea

pluralidade de tendências, seja estética, política ou técnica. Quando se observa a modernidade

cinematográfica alocada nas inovações tecnológicas, por exemplo, verifica-se que o cinema

deu elevados saltos quando da ultrapassagem do filme mudo para o sonoro, modificando

rigorosamente o estatuto da narrativa; daria ainda outros passos significativos com a invenção

da cor, do negativo dotado de maior sensibilidade, do uso de câmeras leves e de fácil manobra

e, especialmente, com a adoção do som direto, enfim, com a adoção de novas tecnologias o

cinema passou a ser reprocessado por outros meios. Tudo isso proporcionou novas

configurações na sua linguagem, tornando-o cada vez mais associado ao mundo que se fazia

moderno a cada momento.

Comentar a modernidade no cinema expõe o investigador ao plano estético, o qual

pode perfeitamente ser avaliado, através de estilos e movimentos como: o estudo da avant-

garde francesa de Jean Renoir, do surrealismo produzido pelo espanhol Luís Buñuel, do Neo-

Realismo de Roberto Rossellini e outros autores; da nouvelle vague de Truffaut e chegar até

as confluências de um cinema de rupturas dos italianos como, por exemplo, Michelangelo

Antonioni, Bernardo Bertolucci e Pier Paolo Pasolini, dos franceses Alain Resnais e Jean-Luc

Godard, do americano John Cassavetes, do cubano Tomás Gutierrez Alea e,

indiscutivelmente, da obra de Nelson Pereira dos Santos

O cinema moderno pode ser visto também na ótica da política de produção. Nesse

caso, o estudioso pode se deparar com a confrontação entre o que representa o aparato

produtivo do cinema clássico e o que significou a ruptura vanguardista cinematográfica, cuja

base ideológica foi alicerçada na política de autores, antítese ao cinema industrial e proposta

posta em voga nos anos de 1950 a 60, através das novas ondas do cinema: o neo-realismo, a

Nouvelle Vague e o Cinema Novo. Para esse movimento se concretizar, entretanto, era

necessário se fazer rupturas com os modelos anteriormente estabelecidos, por isso:

a maneira de vencer a chanchada é fazer a antichanchada e conquistar o público. Mas conquistá-lo sem às concessões tradicionais da indústria americana. O público não anda mais tão dopado quando ele mesmo começa a recusar fitas como Sócio de Alcova ou Dono da Bola. Se Mandacaru Vermelho também conquistar o público do Rio – a experiência de Nelson Pereira dos Santos assume assim, de fato a marginal e espinhosa e amarga posição que conquistou desde Rio Quarenta Graus: a voz contra a indústria

296 Id., ibid.

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de fitas coloridas em regime de entrega servil a estrangeiros; às fantasias convencionais de melodrama e sentimento radiofônico; às fitas pseudo-sérias de psicologia barata em apartamentos e salões do século passado – apoteose da escola Biáfora; as fitas ridículas de delírios formais, bebidos das cinematecas nos arquivos dos anos 30. Mandacaru Vermelho – feito com a câmara na mão e com a idéia – é resposta à inconseqüência e mediocridade do cinema brasileiro. É um começo do novo cinema – está com seus erros, mas resiste às críticas mais violentas, topa qualquer parada, está na tela para se ver e ouvir297.

É notório o contraponto entre os filmes de Nelson Pereira dos Santos e as produções

das chanchadas, bem como o prenúncio da visão utópica de um novo começo para o cinema

brasileiro. A verdade é que todos os produtos fílmicos feitos na perspectiva de renovação

eram absorvidos como resultado de uma esperança futura da confirmação do novíssimo

cinema.

Por ter sido um projeto improvisado, é possível que a obstinação do filme

Mandacaru Vermelho esteja na estória simples do vaqueiro que não acreditava na lenda para

negar o misticismo alienado do povo sertanejo. Mandacaru Vermelho é o filme que, nesse

sentido, precede ao clássico Deus e o diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1964), também

considerado como um western nordestino brasileiro. O filme tem similitude com o gênero

americano, porém, não foi procurado o exotismo da paisagem, mas o drama que habita neste

deserto de sol e árvores torcidas. Segundo o brasilianista Randall Johnson “Nelson partira de

uma forma codificada do cinema, isto é, de um gênero: no caso western”298.

É importante observar que numa recente revisão da obra de Nelson, o crítico

Eduardo Valente da revista eletrônica de cinema Contracampo fez a seguinte observação a

respeito da questão do gênero no cinema brasileiro:

o cinema brasileiro sempre teve como um dos seus principais problemas a dificuldade de fazer um cinema de gêneros, tornando-se com o tempo um gênero em si mesmo na imaginação do espectador. Não se vê uma comédia, uma aventura, um drama, se vê um "filme brasileiro". Parte disso tem a ver com a herança do Cinema Novo (seguida da pornochanchada) no imaginário recente do nosso cinema, parte disso tem a ver com as expectativas formadas pelo cinema americano e seu trabalho invariavelmente em gêneros, parte disso tem a ver com o que citamos no início da falta de trabalho de diretores em um projeto não pessoal. Mas o fato é que, exceção à chanchada (ainda assim, devido à sua permanência "fechada" no tempo, acabe sendo mais um

297 Glauber ROCHA, Mandacaru Vermelho. Op. Cit. 298 Randall JONHSON. Cinema novo X 5: master of contempory brazilian film. Austin, University of Texas, 1984 apud Hilda MACHADO. Rio 40 graus, Rio, Zona Norte: o jovem Nelson Pereira dos Santos, São Paulo: Escola de Comunicação e Artes da USP, 1987 (Dissertação de Mestrado), p.127.

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momento que um gênero), nenhum gênero de cinema, no sentido clássico da expressão, conseguiu estabelecer uma tradição no Brasil299.

O filme representava, naquele espaço de tempo, um avanço no processo da cadeia

produtiva fílmica nacional, e as diversas críticas apontaram as inúmeras qualidades vistas na

ótica de que a falta da perfeição técnica era transformada em gosto estético. Os significados

extraídos da observação analítica de Mandacaru Vermelho levam a tratá-lo como um trabalho

que espelha a invenção cinematográfica terceiro-mundista. Retrato romântico do nordeste

brasileiro, traçado através da saga da cultura popular nordestina; é a adequação do gênero

western em um drama romanesco que se distanciou substancialmente dos dois primeiros

projetos urbanos feitos por Nelson.

Segundo o crítico Orlando Senna, “parte da crítica baiana revelou-se surpresa pelo

fato de Mandacaru Vermelho ter se desligado da corrente de Rio, 40 Graus e Rio, Zona Norte

para juntar-se a outra que surgiu paralela à sua com o advento de Lima Barreto ao realizar o

clássico O cangaceiro” 300.

Nelson Pereira dos Santos disse que ao realizar Mandacaru Vermelho “não mudou a

sua preocupação de usar o cinema como veículos de polêmica social”301 e “não mudou a

solidariedade com os explorados”302. Nelson fez Mandacaru Vermelho como ele mesmo

afirma com a “precariedade técnica absoluta, tudo feito às pressas, em circunstâncias

desagradáveis”303. Considerava o filme como um teste, como uma experiência, uma prova

profissional muito severa.

eu tinha que fazer um filme, era um problema de sobrevivência. MANDACARU é mais uma afirmação de ordem profissional. Ao lado disso, tentei atingir uma linguagem popular. [...] Nos outros filmes me preocupava com o QUE tinha a dizer em primeiro lugar, para depois pensar COMO. Nesse eu pensei as duas coisas ao mesmo tempo. [...] Queríamos enfrentar a realidade brasileira com nossos próprios olhos, com nossa maneira de ver o mundo, como se isso fosse original. Mas daí até fazer cinema existe uma grande distância [...] Queremos filmes comunicáveis. Todo cineasta do mundo deseja isto e mais outra coisa: originalidade no modo de vê o mundo304.

299 Ver Eduardo VALENTE. Por um cinema ocasionalmente impessoal – Mandacaru Vermelho e Cinema de Lagrimas. Revista Contracampo, n. 29. Disponível em: <http://www.contracampo.com.br>. 300 Ver Orlando SENNA. “Nelson Pereira dos Santos fala ao DN”, Diário de Notícias, Salvador, 24 e25 de setembro de 1961, p.2, 3º.Caderno. 301 Idem, idem. 302 Idem, idem. 303 Idem, idem. 304 Idem, idem.

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Uma revisão crítica em Mandacaru Vermelho permite que se faça uma análise por

diversos ângulos e pontos de vista. É possível observá-lo conforme o pensamento do seu

autor, entendendo como um filme popular com evidente propósito de atingir o público;

enxergá-lo como parte do processo inventivo do cinema brasileiro e latino-americano;

embrenha-se na sua lenda romanesca nordestina de inspiração shakespeariana traduzida em

teatro popular por meio da representação simbólica de repentistas e cordelistas; ancorar-se no

filme e na sua principal influência narrativa: o western, incorporado e transformado como

gênero endógeno.

Outro caminho analítico a ser percorrido é se deter no filme Mandacaru Vermelho

com atenção e minúcia através do viés da sua construção cinematográfica que se caracteriza

por meio da inovação, da originalidade e das possibilidades de renovação estética implantada

contra os padrões vigentes da cadeia narrativa dos filmes brasileiro.

Mandacaru Vermelho açambarca um dos ciclos fundamentais da moderna história do

nordeste brasileiro: o cangaço. É prenúncio do ciclo de cinema baiano que antecede ao cinema

novo e moderno brasileiro, pela simples razão do seu autor, Nelson Pereira dos Santos,

incorporar o papel de representante da expressão máxima da intelectualidade cinemática

nacional, e de ter estabelecido um novo padrão para a feitura dos filmes brasileiros, que

consistia em transformar a imperfeição na perfeição, com a máxima assertiva de que uma

nação subdesenvolvida necessariamente não teria de ter uma arte subdesenvolvida, uma vez

que a vanguarda no Terceiro Mundo, certamente não era a mesma do mundo desenvolvido.

Na abertura de Mandacaru Vermelho o espectador se depara com letreiros – um

projeto gráfico desenhado por Lygia Pape – onde se lê:

Há muitos anos atrás, a proprietária da fazenda Pedra Furada preparou uma emboscada para liquidar os homens que não se sujeitavam ao seu domínio. Correu tanto sangue que ali nasceu um mandacaru vermelho. Conta a lenda que ninguém mais passou pela pedreira, por medo às almas penadas. Até que um dia...

A trama do filme pode ser reduzida a uma história de amor, uma encenação teatral

dos amores impossíveis, um Romeu e Julieta transfigurado em personagens populares do

nordeste brasileiro. Uma jovem mulher criada por sua tia é prometida para um homem da

categoria social dos latifundiários, mas se apaixona por um vaqueiro e com ele decide fugir,

depois de descobrir que a sua tutora havia matado os seus pais. O jovem casal tem a ajuda do

irmão do vaqueiro que procura levá-los a um lugarejo para os fugitivos se casarem, mas o

plano é descoberto pela tia-vilã que persegue os jovens amantes, estes conseguem escapar e

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acabam chegando ao mítico lugar conhecido como Mandacaru Vermelho – local aonde

aconteceu a morte dos pais da jovem virgem. Lá eles se deparam com religioso solitário que

decide realizar o casamento, a cerimônia é interrompida e tem início o grande conflito; o casal

sobrevive ao tiroteio e continua a fuga até chegar a uma pequena cidade onde um padre

realiza uma cerimônia de casamento coletivo.

Ao analisar Mandacaru Vermelho Glauber propôs um esquema para se interpretar o

argumento do filme:

um vaqueiro ama a moça que é filha de um latifundiário, o desnível social é o impedimento para concretização do amor. Moral do sertão: a honra da moça tem que ser lavada com sangue. Mito: na pedreira havia um mandacaru, vermelho de tanto sangue que lá foi derramado. Moral divina: a punição dos pecadores, o mal tem que ser extinto da face seca da terra. Moral do povo: quem não sossego acaba lá, no pé do mandacaru305.

Mandacaru Vermelho visto de um plano geral é o resultado de uma aglomeração de

apropriações, assimilações e adaptações estéticas, a começar pelo gênero western, em muito

da sua medida épico-dramática, uma das características do gênero norte-americano. Essa

dramaticidade é muita bem exercida pela paisagem, por exemplo, onde a aridez da terra

sertaneja é ressaltada, se apresentado como um cenário de espessura dramática expressiva e

dentro dele vai se desenrolar o drama lenda-épica das personagens, que se movem numa

estrutura de ópera popular, estreitando as suas encenações suntuosas e cheias de conflitos, os

personagens cumprem os seus destinos de equilíbrio da história, com o Bem aniquilando o

Mal que aparece de forma rígida, incrustado na geografia-física de um mundo que se pretende

tornar real através da construção simbólica do yamandaka’ru.

Mandacaru Vermelho capta com densidade a luz natural do sertão brasileiro, não usa

de artifícios comuns a iluminação do cinema de transparência – existe no máximo o uso de

rebatedores convencionais –, as suas composições e tonalidades acentuam por momentos o

clima documental, por outro o realismo barroco das suas cenas, que é ponto culminante do

filme. Há uma beleza indescritível nas tonalidades claras e escuras, sejam as vistas em

grandes planos ou em planos aproximados, e a câmera se desloca com uma desenvoltura

semelhante ao olhar humano, às vezes fixa, às vezes caminhando em panorâmicas, carrinhos,

e é especialmente conduzida na mão.

305 Ver Glauber ROCHA. Mandacaru Vemelho. Op. Cit.

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Por isso, a fotografia306 do filme é uma composição plástica que age como um

reforço a mise-en-scène de tempo e espaço. Entendidos, aqui, como parte do jogo dramático

atmosférico que marca a ruptura entre a mobilidade e a imobilidade das personagens nos seus

movimentos geométricos. Por exemplo, o filme usa o tradicional campo e contracampo, do

cinema clássico, opta pela ousadia da câmera que caminha e entrelaça as personagens dentro

da narrativa convencional, mas se afasta desse convencionalismo por uma simples razão – a

construção parece tosca pelo simples fato de que o aparato tecnológico utilizado faz com que

o olhar do espectador mantenha a distância visual de observador do espetáculo.

A partitura sinfônica é usada com o propósito de colocar harmonicamente os

elementos fílmicos em destaque, funciona com vida própria, já que em determinados

momentos da ação dramática, ela precede à imagem e ao seu dinamismo, e na construção do

drama é conduzida, rigorosamente, numa cadência visual e auditiva de extrema coerência.

Por sua vez, os diálogos funcionam como uma síntese que reforça a ação, não só pela

natureza gramatical, mas, sobretudo, pela relação emocional proporcionada às personagens, e

mais, ainda, por funcionar no sentido de ajustar a condição realista e não-realista contida no

filme. Enfim, a estrutura rítmica e arrítmica do filme põe todos seus movimentos em

constante choque, seja jogando a imobilidade contra o movimento geométrico, ou vice-versa,

reinando um “caos” controlado e descontrolado do debate imagético.

Mandacaru Vermelho é um filme que quebrou, definitivamente, a forma do fazer do

cinema brasileiro, pois tornou a imperfeição estética em perfeição. Isso porque o seu autor,

Nelson Pereira dos Santos, conseguiu atingir a correspondência entre a teoria e a prática, e fez

de seu trabalho uma fusão do pensamento proposto de sua vida e o resultado almejado por um

artista com o propósito de chegar à arte em sua plenitude.

306 O filme foi realizado em preto e branco.

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dededede Nacional Popular Nacional Popular Nacional Popular Nacional Popular

Vamos por o Cinema Novo na mesa para ver qual foi o seu resultado principal. O que a gente pode ver hoje é que esse resultado principal foi a afirmação cultural do cinema brasileiro.

Nelson Pereira dos Santos307

Já estavam porém agindo os jovens desconhecidos que iriam provocar uma reviravolta no cinema brasileiro, sintonizando-o com o tempo nacional e conferindo-lhe, pela primeira vez, um papel pioneiro no quadro da nossa cultura

Paulo Emílio Salles Gomes308

Não aconteceu ao acaso: está ligado não só às próprias tentativas do cinema como também a todo esse paralelismo da cultura, os movimentos de cultura popular, tudo isso[...]. Para mim, se tudo isso não houvesse acontecido no Brasil, não haveria esse sentido grupal de cinema, de pensamento conjunto, pois foi justamente nessa época que o Brasil passou a pensar em termos mais definidos: os problemas do nacionalismo foram encarados quase numa tentativa de sistematização, os problemas da cultura brasileira, de cultura popular, e os problemas da arte em geral.

Glauber Rocha309

Então existe uma opção. Saber um pouco mais a respeito do nosso ser cultural, se ligar mais a ele, praticar uma observação mais aberta, menos facciosa. Creio que isso também é realizar o projeto de cinema brasileiro, ter para o cinema um público permanente que é nosso povo.

307 Revista Civilização Brasileira, n° 1, março de 1965, p. 189. 308 Paulo Emílio Salles GOMES. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, p. 34. 309 Revista Civilização Brasileira, Op. Cit., p.194.

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Nelson Pereira dos Santos310

O cinema moderno brasileiro é coetâneo a um período de mudanças significativas

nas relações de poder e no estado brasileiro. Esse poder passava a apresentar mais elementos

na sua composição, ao mesmo tempo em que aumentava a sua concentração, em um quadro

em que a economia definia-se pela internacionalização, mantendo, ainda, sob alguns aspectos

uma perspectiva nacionalista, o que lhe conferia certa fisionomia populista. Esse traço

acompanhava a idéia de afirmação de um caráter próprio da cultura brasileira desde o retorno

de Getúlio Vargas ao poder em 1950, ocasião em que as condições para que a sociedade

brasileira assumisse as questões do desenvolvimento nacional foram fortalecidas.

Marilena Chauí destaca as linhas gerais do período:

Parte dos anos 50 a 60 são considerados pelos estudiosos anos do nacionalismo desenvolvimentista e populista. A tônica é dada por projetos econômicos e sociais de desenvolvimento capitalista, o combate ao subdesenvolvimento sendo deflagrado por bandeiras de mobilização nacionalista, sob os auspícios do Estado, ou de sua tomada por representantes dos “verdadeiros interesses populares e nacionais311

O nacionalismo e a internacionalização, movimentos contraditórios, que

expressavam a tensão nas forças da sociedade brasileira, tiveram a sua convivência

assegurada pelo pacto populista que garantia, ao mesmo tempo, a liberdade de expressão,

valorização positiva das posições nacionalistas e a legitimação da internacionalização da

economia, na medida em que esta possibilitou maior acesso de massas urbanas ao mercado de

trabalho e ao consumo.

Apesar das indagações em torno da “autonomia nacional” já se formularem antes,

naquele período, o problema apareceu como uma estratégia vinculada ao populismo, criando-

se oportunidade para que certas posições fossem assumidas na área cultural.

Até os anos de 1950, o pensamento cinematográfico não se destaca na reflexão geral

sobre a cultura brasileira. Esta situação só ira se modificar a partir dos anos 1950-1960,

quando o cinema assume a posição de vanguarda312 e entra em sintonia com as outras áreas da

cultura.

310 Entrevista concedida a Jean-Claude BERNARDET. Jornal Opinião em 14/02/75. 311 Marilena Chauí. Seminários. Coleção: O nacional e o popular na cultura brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 66. 312 Caetano Veloso, um dos principais articuladores do Tropicalismo, movimento que surgiu na música brasileira na segunda metade da década dos 1960 propondo uma nova linguagem para a canção conjugando a tradição da música popular brasileira aos elementos oferecidos pela modernização, em diversas oportunidades declarou que

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No início dos anos 1950, as questões relativas ao desenvolvimento do país refletiam-

se com intensidade, na discussão em torno do cinema brasileiro, provocando uma forte

repercussão no que era projetado e discutido neste ambiente. Nos primeiros Congressos

Nacionais do Cinema Brasileiro realizados em 1951, 1952 e 1953 (em São Paulo e no Rio de

Janeiro) defendeu-se, com entusiasmo, o desenvolvimento industrial apoiado no mercado

interno. Sem nenhuma possibilidade de erro, a defesa de um mercado dentro de seu território

e do seu complexo cultural era um dos dados mais importantes para a cinematografia do

país.313. Nelson Pereira dos Santos apresentava como alternativa para o domínio do mercado

pela produção estrangeira, uma tese intitulada O problema do conteúdo no cinema brasileiro

em que defende que o público, quando vai ao cinema, vai à busca de assuntos, dando a

largada rumo ao uso da temática brasileira para viabilizar a conquista do mercado314, o que

vai experimentar na prática ao realizar Rio, 40 Graus.

Nelson Pereira dos Santos ampliará a questão do uso da temática para além do

mercado, apresentando-a como decorrência do processo cultural em decantação no país que

procurava a sua identidade e aponta para um dado novo no campo cultural no período: a

afirmação da cultura, que assume um papel transformador na sociedade:

Na época do Cinema Novo havia, realmente, uma procura da identidade do homem brasileiro por aqueles que fizeram a descolonização da cultura brasileira. Esse processo de descolonização da cultura se baseou na cultura do homem brasileiro. [...] uns dando mais ênfase à questão racial, outros à questão cultural e outros à questão econômica na procura de sabermos quem é o homem brasileiro – buscar o homem brasileiro na sua simplicidade –, seja ele o homem do campo- o camponês –, o homem da cidade – o favelado –, a condição feminina, essa foi a busca empreendida na nossa identidade pelo cinema.

o movimento musical foi provocado pelas imagens plasmadas pelo Cinema Novo: “Se o tropicalismo se deveu em alguma medida a meus atos e minhas idéias, temos então de considerar como deflagrador do movimento o impacto que teve sobre mim o filme Terra em transe, de Glauber Rocha, em minha temporada carioca de 66-7”. Caetano Veloso. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 99. 313 A defesa do mercado nacional ocupado em 90% do seu tempo de projeção pelo cinema estrangeiro era feita por Alex Viany, então principal teórico da descolonização cultural do cinema brasileiro e por Nelson Pereira dos Santos. 314 Tese apresentada no I Congresso Paulista do Cinema Brasileiro, em São Paulo, em 15 de março de 1952. Nesta tese sustenta que o conteúdo é fator preponderante para a aceitação do filme pelo público e afirma que o povo brasileiro tem ânsia de ver na tela assuntos ligados ao país. Assim, conteúdo nacional é fator decisivo para a conquista do mercado.

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A construção de um pensamento nacionalista brasileiro, na época, era fortemente

alicerçada no que se discutia no ISEB315. As teses ali desenvolvidas refletiam o mais

avançado pensamento produzido em termos sociais no Brasil e formavam uma espécie de

consciência nacional com bases no tripé: desenvolvimentismo, nacionalismo e populismo.

A característica orientadora do período entre os anos de 1955 e os de 1960 era a de

manter o que se tinha e ampliar os desejos de industrialização do cinema brasileiro de forma

autônoma, seguindo o impulso do desenvolvimento do sistema capitalista no Brasil. Neste

período atravessamos os anos JK316, o governo relâmpago de Jânio Quadros e o golpeado

governo de João Goulart. A atualização dos rumos gestados nos anos precedentes acontecia

mediante as ambigüidades ideológicas que esse período traduziu.

As idéias nacionalistas eram transportadas para o cinema pelo viés proposto por esta

conjuntura política, que promovia o desenvolvimento nacional através da sua associação ao

capital internacional. A aglutinação ideológica em torno das formulações nacionalistas não

encontrou correspondência na realidade da estrutura econômica do país317. Nesse quadro,

navegava uma indústria cinematográfica quase inexistente, totalmente desamparada,

movimentando-se entre o desinteresse do capital internacional, já detentor do mercado, e a

expectativa no interesse do estado em implementar mais o setor cinematográfico em

decorrência e reforçando o desenvolvimento nacional. Na tentativa de trazer nuances

diferenciadoras às questões que se abrigaram sob a mesma fachada no processo de

industrialização, José Mário Ortiz Ramos vai afirmar:

315 ISEB, Instituto Superior de Estudos Brasileiros, fundado em 1956, para promover estudos sobre a realidade brasileira. Foi uma frente ampla da intelligentzia brasileira na década de 50, envolvendo intelectuais independentes das mais variadas linhas de pensamento, também envolveu intelectuais ligados à esquerda. 316 Em 1955, Juscelino Kubitschek de Oliveira vence as eleições presidenciais pela coligação do Partido Social Democrático (PSD) com o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). O gaúcho João Goulart é eleito vice-presidente pela chapa de Kubitschek. Setores militares e políticos da oposição, especialmente da União Democrática Nacional (UDN ), iniciam um movimento a favor de um golpe militar contra a posse de Kubitschek e de João Goulart. Estes representariam a continuidade do populismo e do nacionalismo do presidente Getúlio Vargas, morto em 1954. Mas em novembro de 55, o ex-ministro da guerra, General Teixeira Lott, põe as tropas nas ruas e garante a posse do presidente eleito. Em janeiro de 56, Kubitschek assume a presidência. O desenvolvimentismo é a principal política do governo Kubitschek, cujo slogan é "50 anos em 5". Industrializar aceleradamente o país, fazer da indústria o centro das atividades nacionais e superar definitivamente a dependência da economia do café são algumas das premissas de Kubitschek. Em 1960 Jânio Quadros é eleito presidente pelo Partido Democrata Cristão, apoiado pela UDN e João Goulart é eleito novamente Vice-Presidente. Naquela época, as votações para presidente e vice eram separadas. Jânio Quadros renuncia à presidência em 25 de agosto de 1961. Os ministros militares tentam impedir a posse de João Goulart, que estava em viagem fora do país e o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzielli é empossado presidente. Manifestações populares contra o golpe se formam em todo o país pressionando o congresso que em, 2 de setembro, aprova uma emenda constitucional que instaura o parlamentarismo como regime de governo. João Goulart é empossado presidente em 7 de setembro de 1961 e deposto por golpe militar em 31 de março de 1964. 317 Octavio Ianni em Estudos e planejamento no Brasil (1930-1970). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, analisará esse momento histórico do desenvolvimento nacional destacando a entrada do capital internacional no país.

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Temos desde o período 55-60 duas correntes se chocando: uma mais “nacionalista” se articulando de forma tática com o desenvolvimentismo, e outra mais pragmaticamente “industrialista”, colada ao ideário do governo JK, oscilando cuidadosamente entre a ferrenha busca de um cinema nacional e o cuidado em não hostilizar “os nossos fornecedores”.

Estes dois pólos, o “nacionalista” e o “industrialista-universalista” (“universalista” ou “cosmopolita”, no sentido de absorver, sem críticas, formas de produção e moldes artísticos estrangeiros), vão assumindo contornos mais nítidos na virada da década [...], sendo essencial a sua caracterização não somente para a compreensão de emergência do Cinema Novo, como das ações dos órgãos governamentais que surgirão318.

Com a mudança que ocorrerá posteriormente no processo político, e com a

significação cultural do cinema Novo, a postura nacionalista procurará se descolar do

processo que a identificava com a visão desenvolvimentista. Inserido numa atmosfera

específica de um produto industrial, o cineasta brasileiro fará a sua opção por um Cinema

Novo em meio às expectativas e tensões desse contexto desenvolvimentista que então se

definia. Como já foi visto no verbete dedicado ao Cinema Novo319, em sua intervenção esse

movimento tinha como premissa ser uma expressão da cultura brasileira, suas preocupações

temáticas, seu envolvimento com o avanço da linguagem serão mediados por uma questão

presente na produção e crítica de cinema – a questão popular nacional.

Nos anos 1960 a idéia de uma cultura nacional foi associada à necessidade de

observá-la a partir do ponto de vista das massas e de uma ótica popular, foi um tempo em que

a declaração expressa de sentimentos pelo país alimentou as artes. Havia uma preocupação

com a identidade nacional e o cinema promoveu uma pesquisa da nacionalidade, no âmbito da

sua linguagem, ao indagar sobre ela, partindo, em seguida, para a complexa tarefa de

conquistar o mercado nacional com os seus produtos.

O entendimento do que continha a expressão “cultura popular” - que, de certa forma,

abrigava as idéias de nacional e popular no cinema brasileiro dos anos 60 - era definido dentro

das linhas do “movimento de cultura popular”, sobretudo nos textos em que discutiam as

propostas e nas ações efetivadas pelo Centro Popular de Cultura.320.

318 José Mário Ortiz RAMOS. Cinema, estado e lutas culturais: anos 50, 60, 70. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983, p.23. 319 Também é feita a ressalva de que resguardadas as distinções entre propostas, pensamentos, estéticas que conferem a heterogeneidade do movimento eleger a questão do nacional popular como geral deve-se ao fato de que sua discussão é cara ao Cinema Novo como grupo em função da estratégia que adotou frente à questão como base de sua constituição. 320 O Centro Popular de Cultura (CPC) era um órgão ligado à União Nacional dos Estudantes (UNE) que agregava jovens interessados por arte e cultura, investindo na sua divulgação. Representava a síntese da

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No campo concreto experimental da cultura popular, que era desenvolvida no

CPC321, o cinema não chegou a ter a importância que tiveram outras artes, como o teatro, a

música ou a literatura, porém os principais integrantes do Cinema Novo reconheceram a sua

importância e influência nas suas formações.

No que nos diz respeito às idéias do nacional e do popular desenvolvidas pelo

Cinema Novo, constata-se que, ao surgir em paralelo aos movimentos de cultura popular, ele

irá sofrer influências dessas idéias, que também eram aplicadas a outras áreas da cultura.

Muitos dos integrantes do movimento Cinema Novo entenderam que essa relação foi vital

para a reflexão sobre “um cinema nacional e popular”. Glauber Rocha, em uma conversa com

Nelson Pereira dos Santos e Alex Viany, dirá:

Realmente, foi sòmente o teatro de nosso século (de 1920 para cá) e foi a chanchada que começaram a fazer isso, e o Cinema Novo surgiu com sua fôrça cultural no momento exato em que a chamada cultura popular se definiu melhor. Embora tenhamos alguns filmes válidos em nosso passado – inclusive dois filmes cariocas que acho importantes, Agulha no Palheiro e Rio, 40 Graus, um depois do outro: os primeiros filmes a procurar uma visão séria, em têrmos culturalmente dramáticos, da realidade cotidiana -, antes de surgir o Cinema Novo surgiu o movimento de renovação do teatro (com o Teatro de Arena), dentro daquela consciência de nacionalismo que começou a tomar forma nos últimos anos de Getúlio Vargas e que minha geração conheceu nos turbulentos governos subseqüentes de Juscelino, Jânio e Jango.322

Além dos filmes voltados para a temática popular da década de 1950, citados por

Glauber, verificamos, através do seu depoimento, a presença, já nos anos 1960, dessas

mesmas idéias em outras áreas da cultura, principalmente no movimento teatral. Na

transposição dessas experiências para o cinema podemos localizar uma das filiações do

Cinema Novo. Na mesma entrevista prossegue Glauber Rocha:

Não aconteceu ao acaso: está ligado às próprias tentativas do cinema como também a todo esse paralelismo da cultura, os movimentos de cultura popular, tudo isso. O Cinema Nôvo surgiu disso e sofrendo influências disso e procurando contribuir para isso [...] foi justamente nessa época que o Brasil

radicalização intelectual da época reunindo os pensamentos inquietos. A intenção do CPC era proporcionar instrumentos para que o espectador passasse a ser sujeito da história. 321 O CPC produziu em 1961/62 o longa-metragem Cinco vezes favela, constituído por cinco filmes de curta metragem: Um favelado de Marcos Farias, Escola de samba alegria de viver de Carlos Diegues, Zé da cachorra de Miguel Borges, Couro de Gato de Joaquim Pedro de Andrade e Pedreira de São Diogo de Leon Hirszman. O CPC também produziu um longa metragem Cabra marcado para morrer que focalizava as ligas camponeses do Nordeste brasileiro, projeto abortado pelo golpe de 64, retomado em novas bases pelo seu diretor Eduardo Coutinho em 1981 e concluído em 1984, transformando-se em referência para o filme documental contemporâneo. 322 Revista Civilização Brasileira, número 1, março, 1965, p. 193.

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passou a pensar também em termos mais definidos: os problemas do nacionalismo foram encarados quase numa tentativa de sistematização, os problemas da cultura brasileira, de cultura popular, e os problemas da arte em geral.323

Esse “paralelismo da cultura” mencionado por Glauber não significava equivalência

de posições entre as escolhas feitas pelo Cinema Novo e outros movimentos culturais. Tanto

isso é certo que não tardaram a ocorrer desentendimentos de ordens estética e ideológica

afastando o Cinema Novo das idéias defendidas pelos “movimentos de cultura popular”. Mas,

no horizonte do que se pleiteia definir um cinema nacional é conveniente a reflexão genérica

o que levará, em conseqüência, a uma reflexão especificamente cinematográfica.

Sebastião Uchoa Leite, na tentativa de ordenar os diferentes conceitos que o termo

cultura popular agrega dirá:

Até a data fixada [...] como sendo a do início, a fase de arranque do desenvolvimento brasileiro a ano de 1955 [...] o que se chamava de cultura popular era a cultura vinda do povo [...] Com os governos posteriores de Jânio Quadros e João Goulart, acelerou-se ainda mais o processo político, e a necessidade de participação dos intelectuais nesse processo se tornou uma das questões mais enfatizadas. A partir deste período o termo é que o termo cultura popular, com significações muito diversas, começou a ter um trânsito intensificado [...] Foi posta em ação a tese de que a cultura popular não era apenas a cultura que vinha do povo, mas sim a que se fazia pelo povo. A cultura popular é então conceituada como um instrumento de educação, que visa dar às classes economicamente (e ipso facto culturalmente) desfavorecidas uma consciência social e política324.

Nos textos produzidos por Nelson no início dos anos 1950 em que discute o cinema

independente a idéia de cinema popular é esboçada como indicativo da inquietação de dirigir-

se ao povo e não apenas expressar o que vem dele. Tal preocupação se manifesta no exercício

de Rio, 40 Graus, talvez o primeiro filme que se encaixe na definição de Sebastião Uchoa

Leite como cinema popular. Destaca-se, no entanto, que não se encontra na proposta do filme

aspiração didática, mas incondicionalmente trata-se de um filme feito “a favor do povo”,

como o próprio Nelson o define, filiado a uma proposta cinematográfica engajada política e

culturalmente.

Um cinema popular que venha do povo e o cinema popular dos anos 1950 e 1960,

que tem como proposta dirigir-se ao povo, com ou sem intenções didáticas, é de perceptível

323 Apud, p. 194. 324 Revista Civilização Brasileira, n° 4, set, 1965.

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distinção. Maria Rita Galvão e Jean Claude Bernardet, a esse respeito, farão o seguinte

comentário:

Não se trata, é claro, de simples transposição: é preciso reelaborar criticamente os dados brutos da cultura popular que se incorporam aos filmes325.

É exatamente nesta reelaboração que os filmes tanto podem contribuir para a

conscientização do povo como podem se afastar do povo tornando-se elitizados, e esta seria

uma das principais críticas feitas ao Cinema Novo: a de, na tentativa de dirigir-se ao povo,

operar uma transposição que não facilita o seu acesso e embaçar a sua mensagem.

Seguindo a linha argumentativa de Sebastião Uchoa Leite, infere-se que a idéia de

um cinema popular, no sentido que a expressão adquire quando associada aos significados de

“cultura popular” como algo que expressasse a “consciência da defasagem cultural entre as

diversas classes sociais”, surgiu no momento em que a preocupação desse cinema se voltou

para a realidade nacional ocorrendo a identificação do artista com o povo.

O cinema brasileiro partiu para a tentativa de conjugar esses elementos – e isso foi

um dos seus aspectos marcantes – utilizando a cultura popular como ponte para atingir o povo

e como matéria-prima popular, que vinha do povo. Com isto, descortinou a identidade, que

passava a ser meta a atingir e ao mesmo tempo meio para encontrar os rumos de afirmação da

cultura brasileira inserido num outro quadro de pensamento, que se abriria para a expressão da

sua diversidade.

Jean-Claude Bernardet em Brasil em tempo de cinema (1967) defende a tese de que

há uma relação estrutural entre cinema e sociedade e mais precisamente o se quadro de análise

se estabelece a partir da interpretação dos filmes feitos entre 1958 e 1966 que se dá sob a

égide da vanguarda cultural da classe média. Nos seus argumentos Jean-Claude reitera o que

em 1973, Paulo Emílio Salles Gomes irá sublinhar em Cinema: trajetória no

subdesenvolvimento: a frágil situação econômica do cinema brasileiro como um estado

permanente, que resulta da inabalável ocupação da produção estrangeira no mercado

cinematográfico nacional através dos mecanismos viciados de distribuição e exibição.

325 Maria Rita Galvão e Jean-Claude Bernardet. Cinema – repercussões em caixa de eco ideológica (as idéias de “nacional” e “popular” no pensamento cinematográfico brasileiro). Coleção: O nacional e o popular na cultura brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983, p.140.

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Na conclusão do seu livro, Jean-Claude faz a sua principal defesa: o cinema

brasileiro deve ser popular ao evidenciar seus temas não para o consumo da elite cultural, mas

do grande público.

É com a perspectiva de se dirigir para o grande público que Nelson continua

insistindo na construção de um cinema de visão popular e original. Em entrevista com o título

Nasce um novo Cinema Novo, concedida a Jean-Claude Bernardet no Jornal Opinião em

14/02/75, fala de Amuleto de Ogum avaliando o momento anterior vivido pelo cinema

brasileiro e lançando sua plataforma para além desse modelo:

O principal é que eu queria fazer um filme que fosse popular[...] Fazíamos filmes numa posição autoral, sem nos preocuparmos com o público. É claro que entre o autor e o público há vários intermediários, a distribuição, a posição do cinema estrangeiro no cinema brasileiro. Mas acredito que o projeto num filme popular tem que levar em consideração todas as questões. É um projeto global, não apenas o projeto de um filme. Quase o projeto piloto de uma posição cinematográfica.

Nelson, ao conceituar o projeto de Amuleto de Ogum como global renova as

discussões em torno do cinema brasileiro propondo um novo enfrentamento para a batalha da

afirmação do cinema brasileiro e a conquista do seu público: a luta contra o filme estrangeiro

não pode ser colocada apenas em termos de ocupação de mercado. A luta pela conquista do

mercado, a luta cultural e política são desdobramentos de uma grande frente a ser

empreendida simultaneamente, através de uma proposta em que tema e forma originais

mobilizem o público. Cinema popular que tem seu público pensado enquanto povo, cinema

com ponto de partida estabelecido a partir de uma determinada opção que impele o artista que

reconhece a importância da cultura desenvolvida pelo povo a estruturar o seu discurso através

de elementos fornecidos pela maioria da população. Em paralelo a esse ideário, Nelson não

despreza o contexto institucional e político do momento que lhe dá sustentação e esclarece:

O Amuleto vai junto com a EMBRAFILME. Foi um pacto que foi transado no cinema via Reis Velloso, Ney Braga, o professor Diegues, pai do Cacá etc. Foi uma coisa assim, não é um pacto formal, escrito e tal, mas uma retomada do diálogo por parte do governo militar ou das representantes desse governo militar com a área intelectual. Começou no primeiro ano de Geisel. Logo depois da posse do Geisel. Veio a nova EMBRAFILME[...]. Era uma defesa do cinema brasileiro, a obrigatoriedade de exibição foi aumentando, uma empresa forte para participar da produção, distribuição e até exibição. E O Amuleto foi um dos primeiros filmes da distribuidora EMBRAFILME. E a proposta era essa fazer um cinema ligado à nossa cultura, com toda a experiência do Cinema Novo, e também um cinema que pudesse ser popular. Minha expressão era: o cinema popular, que vai como

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conseqüência daquele mercado, vai ser comercial. Não ser comercial, eu queria mostrar o contrário. Aliás, alguém escreveu um manifesto326, não fui eu, acho que foi o Marco Aurélio Marcondes, ele era da Federação de Cineclubes. [...] Eu nunca fiz manifesto na minha vida e esse não é de minha autoria não [...]. Eu fiz um filme e expliquei por quê327.

No seu projeto global Nelson insistia ser impossível sustentar o esquema vigente de

distribuição e exibição, onde o filme brasileiro ocupa um papel subalterno, e convoca o

Estado, entendendo que a participação estatal é fundamental para alterar esse quadro, a

assumir uma nova posição em todo o processo. E como deve ser a atuação do Estado:

Através de uma alteração verdadeira e concreta na comercialização do filme brasileiro, abrir canais para a exibição – criando novas maneiras do filme chegar aos espectadores328.

O que Nelson propunha dizia respeito a se criar condições para a concentração da

economia cinematográfica mediada pela EMBRAFILME, que assumiria os papéis de exibição

e distribuição. Por outro lado, aos produtores seria preservada a liberdade de produção. Em

resumo, a idéia do plano global daria conta do exercício de uma política cinematográfica que

contemplasse a economia e a criação descentralizada.

Ronald Monteiro compõe o conjunto de analistas que faz o balanço do cinema

brasileiro nos anos 1970 na edição de março/abril de 2001 da Revista Cinemais e define o

cinema de perspectiva popular:

Consiste numa operação de baixo para cima – dentro da estrutura social em que vivemos – que exige a violentação de fórmulas criadas de cima para baixo, permitindo inserir no sistema de signos que é o cinema valores e padrões populares que, afinal são os que melhor poderão definir a cultura brasileira329.

O ponto de vista do professor, crítico e pesquisador do cinema brasileiro aponta para

caminhos seguidos pelo cinema de Nelson Pereira dos Santos em filmes que se seguiram

posteriormente à realização de Amuleto de Ogum, em que se destacam Tenda dos Milagres e

Estrada da Vida. Nestes filmes, Nelson retoma e atualiza as colocações que fez no I

326 Nelson Pereira dos SANTOS. Manifesto por um Cinema Popular. Federação dos Cineclubes do Rio de Janeiro/Cineclube Macunaíma/Cineclube Glauber Rocha, Rio de Janeiro, 1975. 327 Entrevista editada por Tunico AMÂNCIO no catálogo da Mostra de Filmes e Vídeos Plano Geral Nelson Pereira dos Santos, 14 a 24 de outubro de 1999, Centro Cultural Banco do Brasil, p.65-66. 328 Nelson Pereira dos SANTOS. Manifesto por um Cinema Popular. Op. Cit., p.6. 329 Revista Cinemais, nº 28, março/ abril de 2001, p.106.

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Congresso Paulista do Cinema Brasileiro em 1951330, recuperando o espírito do cinema

independente em que os cineastas tinham como proposta que os filmes fossem além da mera

expressão dos seus pontos de vista, atuando com mais profundidade na mentalidade dos

espectadores. Com esse intuito, articula as características populares e a conquista de mercado,

povo e público tendem a coincidir, pois o público se vê na tela enquanto povo e dessa forma

propõe um relacionamento com a maioria da população através da observação da sua essência

e o projeto se constitui global, sem instituir uma fórmula de atração de público, inclusive

porque essa tendência, cinema de perspectiva popular, não existe em si, é um processo, e

como tal postula um investimento estético e político na aceitação da qualidade dos valores

extraídos da realidade sócio-cultural que aborda declarando expressamente o seu

compromisso que o leva a procurar uma equação entre a sua postura e o diálogo com o

mercado, pois fica claro que a conquista do mercado se dará com filmes em que o público e,

conseqüentemente, o povo esteja presente.

330 Essas colocações foram tratadas na primeira letra deste alfabeto, na discussão em torno da constituição do cinema independente no Brasil.

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dededede Obra Obra Obra Obra

Em Nelson Pereira dos Santos, podemos falar numa diversidade estilística entre seus filmes, alguns dos quais iremos tratar, mas não é difícil encontrar temas que unifiquem essa diversidade. Por um lado, Nelson Pereira dos Santos é sempre fiel aos seus princípios, em toda a sua obra. Mas, por outro, ele é um verdadeiro camaleão

Helena Salem331

O JOVEM NELSON: OS PRIMEIROS FILMES

Há todo um caminho percorrido por Nelson Pereira dos Santos antes do seu primeiro

filme de ficção em longa-metragem, o antológico Rio, 40 Graus. A sua iniciação

cinematográfica se dá com a realização de Juventude332, documentário de 45’, em 16 mm,

sobre os jovens trabalhadores de São Paulo com roteiro de Nelson e direção dividida com

Mendel Charatz,333. Tratava-se de um filme – uma tarefa partidária – enviado para o Festival

da Juventude de Berlim, cuja cópia nunca mais voltou. Em seguida, realizaria outro

331 Apud SALEM.p. 224. 332 Há discordância entre Nelson e Mendel em relação ao ano de realização. Nelson afirma que o filme é de 1949, antes de sua viagem para a França e Mendel sustenta que é de 1950, ano em que comprou um copiador. Ao que parece, o ano é mesmo 1950. Apud SALEM p. 61. 333 Mendel Charatz, parceiro de Nelson nas primeiras descobertas cinematográficas, estudante de engenharia, aficionado por cinema, tinha uma distribuidora de filmes e um laboratório. É de Mendel o relato que rememora o filme: Começava dizendo: Você sabe onde fica São Paulo? São Paulo fica no Trópico de Capricórnio. Então aparecia um mapa-múndi, fixava o trópico, e uma luzinha ia conduzindo o espectador até chegar em praias tropicais, água batendo na areia, enquanto o locutor prosseguia: Sobe a serra e aí, lá do alto, verás a cidade! Era a história de um rapaz que mandava uma carta para um amigo alemão, dizendo que ele se solidarizava com o festival, explicava onde ficava ao Paulo, descrevia a cidade, os seus arredores, e o interior do estado. E as cenas, quando numa fábrica, mostravam um garotinho de 11 anos trabalhando numa máquina perigosa, que quebrava dedo. Quando era num bonde estava apinhado de gente. E quando falava na vida do campo, aparecia o enterro de uma criança. Tudo pro pior. No filme não tinha nada bom. Era uma desgraça, uma tristeza... [...] Gostei do filme, aprendi a montar com ele – avalia Nelson. Apud SALEM, p.62.

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documentário também como missão do partido, em fins de 1950, começo de 1951, dessa vez

para a Campanha da Paz, que não chegou nem a ser editado, resultou inacabado.

Seguindo na direção da profissionalização torna-se assistente de direção de Rodolfo

Nanni em O Saci (1951), durante as filmagens relaciona-se com o assistente de produção Alex

Viany. Em 1952, abandona São Paulo e parte para o Rio de Janeiro onde vai assumir a função

de Assistente de Direção em Agulha no Palheiro, de Alex Viany. Em 1953, após o

afastamento do diretor por motivos de doença, ascende da assistência à direção em Balança

mais não cai, chanchada de ingredientes neo-realista de Paulo Wanderley, baseada em um

programa de rádio com o mesmo nome. Acompanhando o “estado” da produção

cinematográfica brasileira o filme foi suspenso por problemas financeiros:

Então, eu continuei no Rio para fazer esse filme, mas acabou o dinheiro e a produção foi paralisada. Eu não tinha onde morar. Na verdade, eu morava no estúdio. Eu tive que ficar algum tempo dormindo no estúdio e os eletricistas, os maquinistas moravam no morro do jacarezinho. O estúdio era ao pé do morro. Era a maior favela do Rio de Janeiro aquela época.334

Especula-se que essas experiências na assistência e o fato de ir morar em um

subúrbio da Central do Brasil no Rio de janeiro, na entrada de uma favela, levaram-no ao

amadurecimento para a realização de Rio, 40 Graus:

Eu comecei a ter contato, ia filar a bóia na casa do eletricista lá na favela. Eu fiquei conhecendo a vida deles. Então eu pensei: isso aí é um filme335.

Feito com poucos recursos, o que de certa forma repercute no filme, afirma a força

do cinema como construção, que admite a eficácia da convenção do espetáculo inserido na

precariedade de produção. O seu vigor criativo e a presença de novos elementos de linguagem

se contrapõem permanentemente à escassez dos recursos de produção.

Crônica de uma cidade grande, Rio de Janeiro, a então capital do Brasil, Rio, 40

Graus, traz no seu título a declaração da escolha ampla feita pelo autor do seu argumento ao

iniciar os letreiros com: Nelson Pereira dos Santos apresenta A cidade de São Sebastião do

Rio de Janeiro em Rio, 40 Graus, seguindo-se o resto dos créditos sobre cenas aéreas da

cidade, em estilo de cartão-postal, ao som dos acordes do samba A voz do morro, de Zé Kéti.

334 Entrevista editada por Tunico AMÂNCIO no catálogo da Mostra de Filmes e Vídeos Plano Geral Nelson Pereira dos Santos. Op. Cit., p.16. 335 Apud entrevista Tunico Amâncio, Ibid., p.16.

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Rio, 40 Graus tem uma trama simples, centrada na aventura de cinco garotos negros

que deixam o morro numa manhã de domingo para ganhar dinheiro vendendo amendoins na

cidade. As histórias desses garotos são entrecortadas por episódios envolvendo outros

personagens, de uma maneira sutil, mostrando a disparidade entre os que têm e os que não

têm. O espaço é fragmentado e procura dar conta de uma visão abrangente da cidade. Nessa

ambientação fracionada, o fio da narrativa é tecido pela trajetória dos garotos, conectando as

várias histórias e personagens que dão corpo ao filme. O tratamento do tempo consiste em

concentrar a ação, que ocorre em paralelo, no espaço de um dia. Rio, 40 Graus começa

descortinando um amanhecer e termina com a imagem do céu estrelado que rebate as luzes da

cidade. A praia, a feira e o parque ensolarados na manhã, o futebol à tarde e o samba à noite

localizam esse dia em um domingo em que os personagens se dividem entre os que passeiam

e os que trabalham. Porém, há um momento em que as histórias se fundem em um estilo

especialmente dramático: pressionado por uma gangue de garotos que tenta roubá-lo, Jorge,

um dos garotos, corre atrás de um carro em movimento com a esperança de escapar de seus

perseguidores, resultando no seu atropelamento. As cenas da morte de Jorge são entrecortadas

por cenas dos rostos de torcedores no estádio do Maracanã, onde um nervoso jogador

substituto marca um gol. Essa seqüência em que a morte do rapaz é confrontada com as cenas

do estádio, a solidão da morte parece ter pouca ou nenhuma importância para a massa que se

agita e torce nas arquibancadas.

Em Rio, 40 Graus a opção de Nelson pela estrutura de tramas paralelas é um

exercício do domínio e experimentação das potencialidades da narrativa cinematográfica. A

descontinuidade, característica básica da arte moderna, marca a sua construção narrativa para

além do manejo das elipses já estabelecidas para a estruturação do tempo e do espaço

cinematográficos. O Teatro de Revista com a sua multiplicidade de quadros e cenas curtas,

condensando tempo e espaço, já oferecia um painel do Rio de Janeiro, ao qual a chanchada se

reportou. Nelson, em Rio, 40 Graus revisita essa formação e tira a cidade do palco italiano tão

caro à chanchada. Rasgando a cortina, implode a convenção e arrasta a ação para a rua.

Hilda Machado observa que a desenvoltura de Nelson em utilizar as convenções

narrativas escapa a algumas percepções apuradas como a de Jean-Claude Bernardet:

Ao requinte da narrativa nem Jean-Claude conseguiu atribuir sentido. O fascínio da articulação entre os diversos fragmentos das histórias que compõem o enredo de Rio 40º sempre o dominou: ‘em nenhum caso estas ligações acrescentam informações às histórias que se desenvolvem alternadamente, nem aos personagens, nem criam verdadeiramente relações mais complexas entre as camadas sociais em que ambientam as histórias.

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Poderiam ser todas suprimidas que o enredo não se alteraria, nem se alteraria o corte vertical praticado na sociedade carioca’.

Lukácsiano na época, Jean-Claude concede: ‘talvez estas ligações sejam antes um tributo pago à montagem clássica, ao espetáculo...’336

Ao longo do filme é demonstrada eficiência em se estabelecer contrastes que

mostram a disparidade econômica entre vendedores de amendoim e as pessoas com quem

esses se relacionam, sempre enfocando a solidariedade entre os favelados como uma maneira

de garantir uma vida melhor na favela. Como muito dos filmes de inspiração neo-realista

feitos no período traz uma forte carga sentimental e até mesmo estabelece uma parábola

melodramática sobre o sistema de classes. Nelson assume, declaradamente, uma visão da

cidade que se distancia do previsível no contexto de criação de propaganda sobre o Rio de

Janeiro, colocando-se se em franca oposição ao revelar outro lado da cidade que foge do

senso comum.

Em Rio, Zona Norte – segundo filme de uma trilogia inacabada sobre o Rio de

Janeiro que é iniciada com Rio, 40 Graus e terminaria com Rio, Zona Sul337 – o samba e o

morro são apresentados com intensidade dramática. A trilogia sofreria novo arranjo e seria

integralizada, posteriormente, com a realização de Amuleto de Ogum338.

A produção já não é tão precária nem cooperativada como foi em Rio, 40 Graus.

Tratava-se de uma produção mais profissional. Nelson Pereira dos Santos já trabalhava com

esquemas comerciais e atores profissionais, rodando também em estúdio.

Proposta nova como produção é também proposta nova como temática e linguagem.

A filiação ainda é neo-realista quanto à temática e ao sistema de produção, porém com

investimentos expressos na densidade psicológica na reconstrução realista do drama de um

sambista carioca. A negritude do personagem Espírito Santo da Luz, vivido pelo ator Grande

Otelo, também historicamente terá repercussão na história do cinema brasileiro, que rompe

com a tradição burguesa de lugar de negro é na cozinha, a qual a chanchada resistia a

abandonar. Rio, Zona Norte confere a Grande Otelo, depois de Moleque Tião (1943) de José

Carlos Burle, o papel de protagonista.

336 Hilda MACHADO. Rio 40 °, Rio Zona Norte. O jovem Nelson Pereira dos Santos. Dissertação de Mestrado defendida na. Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, 1987, p. 94-95. Jean-Claude BERNARDET Notas sobre aves sem ninho. In: Trajetória crítica. São Paulo: Polis, 1978, p. 223. 337 Rio, Zona Norte fazia parte de uma trilogia sonhada por Nelson, espécie de continuação de Rio, 40 Graus e que teria prosseguimento em Rio, Zona Sul, nunca filmado, mas que deixaria seus traços em El Justicero. 338 Nelson Pereira dos SANTOS. Três vezes Rio. Rio, 40 graus; Rio, Zona Norte; O Amuleto de Ogum. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

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Nelson Pereira dos Santos já tinha provocado um estranhamento com Rio, 40 Graus,

ao enquadrar os morros cariocas na sua câmara. Com Rio, Zona Norte faz um novo traçado do

que é esse “quilombo” urbano, as favelas cariocas nos anos 1950. Embora se mantendo fiel à

perspectiva de um cinema compromissado com o novo, Rio, Zona Norte segue um caminho

que o distingue de Rio, 40 Graus. Se este resulta em uma narrativa requintada perfeitamente

articulada entre os diversos fragmentos das histórias que compõem o enredo do filme,

seccionando a sociedade carioca, oferecendo uma amostragem dos seus segmentos e do

relacionamento entre eles, através do delineamento dos seus numerosos personagens, sem

aprofundá-los ao nível psicológico, Rio Zona Norte tem sua ação dramática concentrada no

sambista Espírito da Luz Soares, compositor do morro que tem a autoria de suas músicas

roubadas ou divididas em supostas parcerias para que sejam gravadas. O afunilamento num só

personagem garante-lhe dimensão existencial. A livre inspiração para esse enredo é na vida de

Zé Kéti339, sambista carioca, que faz também um pequeno papel no filme:

O filme é o Rio de Janeiro, mas visto em um outro plano, de um outro ângulo. É a história da relação da cultura popular com a cultura erudita, quer dizer, o personagem que é vivido pelo Grande Otelo é na realidade o Zé Kéti, com quem eu convivi durante o Rio, 40 Graus e conheci bem a vida dele, a vida da escola de samba, a vida da estação de rádio, o roubo da música340.

Rio, Zona Norte é um filme concebido dentro do espírito do Cinema Independente

que, no contexto de formação da imagem do Rio de Janeiro, Nelson assume uma posição que

foge ao lugar instituído, mostrando a luta pela sobrevivência em oposição à idéia de lazer. O

filme tem sua estrutura edificada a partir de dois pólos dicotômicos: o glamour da cultura de

massa emergente e a cultura de raiz excluída. Esse contraste é inserido em uma estrutura

circular. O filme começa como acaba, tendo como fio condutor, a linha dos subúrbios da

Central do Brasil. É contado em flashback e a ação transcorre em um único dia, que sintetiza

toda a vida de Espírito da Luz, que a repassa, inconsciente, ao esperar por socorro num

dormente de trilho, após ter caído do estribilho do trem. A ação do presente, o acidente que

deixa Espírito ferido nos trilhos de trem, tem pouca importância na trama do filme. Ela é

339 “A idéia do Rio, Zona Norte surgiu num fim de semana, num sábado à noite, quando nós fomos lá num subúrbio do Rio de Janeiro batizar... quero dizer, o Nelson foi padrinho de um filho de Zé Kety, foi uma transação com o Zé Kety. Então pegamos aquele trem da Central, e foi a partir daí que o Nelson começou a pensar o Rio Zona Norte que é muito, realmente, a própria vida do Zé Kety”. Depoimento de Guido ARAÚJO Apud Giselle GUBERNIKOFF, Op. Cit., p.265. 340 Depoimento de Nelson PEREIRA apud entrevista editada por Tunico AMÂNCIO. Op. Cit., p.22.

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apenas um artifício para a imersão, através da lembrança do passado, na vida e sentimentos do

personagem, sua luta para gravar um samba e sobreviver da música.

David Neves sublinha que em Rio, Zona Norte Nelson Pereira dos Santos usando dos

recursos de todo um cinema que lhe precedeu confirma uma poética calcada em referências

tanto realista, quanto do espetáculo cinematográfico ilusionista em que disponibiliza o Brasil

e seu cinema para os brasileiros:

O compositor Espírito da Luz Soares é a “voz do povo” e sua vida, a nossa vida. Eis o samba-na-caixa-de-fósforos, o despojamento, quase cinema-verdade em 1957. Eis a coragem, a necessidade de utilização da inteligência, do amor ao cinema. Que tipo de universo é esse? A poesia do real, da crueza, do drama, da pobreza, da infelicidade341.

Em Rio, Zona Norte a cultura popular, através da música, liga todos os personagens

da Zona Norte do Rio. O filme discute a criação artística no mercado capitalista e a posição

do artista na sociedade e isso o faz um filme mais pessoal onde Nelson Pereira dos Santos

apresenta suas próprias crenças e a função que ele, seguindo a tendência do pensamento da

época, se reservava: contar/cantar a vida e a obra de um compositor do povo. O filme indica a

possibilidade de identificação entre o compositor popular e o erudito, mas resulta na

demonstração crítica e realista da impossibilidade dessa relação, pois seus mundos são

distintos e inconciliáveis.

Em ensaio em que se propõe analisar o sambista do morro como uma espécie de

personagem mítico da nacionalidade brasileira Ivana Bentes fará a seguinte observação sobre

Rio, Zona Norte:

O filme funciona como uma espécie de anti-chanchada, mas que dialoga com os elementos da chanchada, com cenas musicais, ensaios de Escola de Samba, o ambiente nascente das estrelas do rádio e dos auditórios, cenas da cantora Ângela Maria no auge do sucesso cantando na Rádio Mayrink Veiga. Mas, simultaneamente relaciona o samba com sua origem nos morros, descrevendo o ambiente da Central do Brasil e dos subúrbios cariocas. O ator Grande Otelo, no auge do sucesso das chanchadas, encarna um personagem dramático. O filme vai combinar, assim, realismo, melodrama e filme musical342.

A anti-chanchada mencionada por Ivana Bentes diz respeito ao reforço dado à trama

na sua composição dramática, o que nas chanchadas não ultrapassava a função de pretexto, e

341 Apud David E. NEVES, Op.; Cit, p.214. 342 Ivana BENTES. Retóricas do nacional e do popular: a redenção da miséria pela arte in Estudos de Cinema: Socine II e III. Socine. São Paulo: Annablume, 2000, p.67.

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no naturalismo com que os números musicais são tratados. Um bom exemplo para sustentar

essa posição encontra-se na seqüência em que Ângela Maria canta o samba Malvadeza

Durão, no balcão do cafezinho da rádio após Espírito da Luz conseguir um minuto dela para

mostrar seu samba. O número musical é diegeticamente justificado e a encenação é a mais

anti-espetacular possível. Dessa forma, o filme dialoga com a tradição da chanchada, mas não

se quer chanchada.

Rio, Zona Norte aponta para o delineamento de um estilo, a separação tênue entre o

real e o ficcional que conduz a uma representação naturalista, porém extremamente

sofisticada, pois faz o balanço da vida do compositor apresentado pelo seu viés psicológico.

Espírito da Luz Soares, perde o filho, a casa, a autoria dos sambas, é abandonado pela mulher,

perde a vida no trilho do trem, mas seus sambas continuarão na memória coletiva dos

habitantes dos morros cariocas. Em uma cena magistral, no final do filme, Espírito da Luz

compõe um samba, enquanto o seu olhar atravessa os morros. Em frente ao morro da

Mangueira, no ápice do ato de criação, compõe o refrão “Samba meu que é do meu Brasil

também” e convoca a sonoridade de uma escola de samba existente apenas em potência que

se funde aos ruídos do trem, do morro e da cidade: radiosa sinfonia suburbana. Porém, o

público não foi sensível a esses apelos nem a esse tipo de construção fílmica e o filme

resultou em fracasso de bilheteria, o que deixou Nelson Pereira dos Santos no vermelho, com

um oneroso débito.

Após a realização desse filme, ele voltou ao jornalismo para garantir a sobrevivência

e pagar suas contas, trabalhando inicialmente no Diário Carioca e depois no Jornal do Brasil.

Apesar de estar distante do gênero documentário nesses últimos anos, conseguiu continuar na

ativa, sendo contratado para realizar documentários e filmes institucionais, no que se

familiariza com o gênero, apresentando sempre um plano revelador, um olhar novo sobre a

realidade a ser descortinada, confirmando a sua filiação neo-realista assim como a dos

documentários britânicos dos anos 1930 e 1940 que assistiu nas sessões da Cinemateca

Brasileira em São Paulo.

Durante a realização de um documentário em Juazeiro, na Bahia, em 1958, teve

contato com a seca e suas mazelas, crianças esquálidas e famintas, miséria e fome. Nesse

cenário, inicia uma pesquisa que tem o romance Vidas Secas, clássico de Graciliano Ramos,

como guia, deixando uma indagação no ar: se a opção pela adaptação foi movida pela

ansiedade, por já ter um roteiro a seguir, ou mera identificação com o autor literário. Na

dúvida, decide-se pela transposição da linguagem literária para a linguagem cinematográfica.

Adaptação feita, produção levantada, parte para as filmagens de Vidas Secas no interior da

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Bahia, adiado para dois anos mais tarde devido à impossibilidade já conhecida, e realiza

Mandacaru Vermelho (1961), já analisado neste ABC.

No interregno entre esses dois filmes, realiza uma adaptação de Nelson Rodrigues,

Boca de Ouro (1962-63), que foi porta de entrada do dramaturgo no universo cinematográfico

e exercício para Nelson Pereira dos Santos amadurecer a concisão necessária ao projeto de

Vidas Secas.

Boca de Ouro traz a visão de dois Nelsons, o dramaturgo e o cineasta. Ambos com

contribuições significativas para a renovação do espetáculo em seus campos de pertinência, o

teatral e o cinematográfico. O teatro e o cinema modernos no Brasil são experiências que só

se adensaram nos anos 1960. Observando-se a conjuntura desse período verifica-se a

atualização das linguagens teatrais e cinematográficas343, embora a observação que sobressai

é a de que a troca entre esses terrenos não foi efetiva, em que pese a atmosfera promotora de

mudanças impulsionar para esse sentido. A dramaturgia brasileira pouco se relacionou com o

Cinema Novo, seja pela opção feita pelo movimento ao cinema de autor seja pelas escolhas

pessoais de cada cineasta. No entanto, a nova cultura teatral brasileira que incorporou os

discursos de Brecht a Artaud, se fez presente no cinema344, mas os dramaturgos que

floresciam na cena teatral moderna como Augusto Boal e Oduvaldo Vianna Filho, não foram

objetos do interesse cinematográfico imediato.

Dentro desse quadro, outra inversão de perspectiva ocorreu no diálogo entre cinema

e teatro nos anos 1960. Nelson Rodrigues, àquela altura com seu nome consolidado no teatro

brasileiro, politicamente conservador, teve o seu teatro adaptado para o cinema pelas mãos do

cineasta com notória filiação política à esquerda.

Ismail Xavier destaca as características essenciais da dramaturgia de Nelson

Rodrigues, que em um primeiro exame parecem escapar ao interesse de Nelson Pereira:

Vaidades e ressentimentos; desordem amorosa. Ciranda de qüiproquós, fracassos e autodestruição obsessiva. Desfile de maridos enciumados ou mulheres insatisfeitas a tramar cenários de vingança. Congresso de filhos da culpa, habitantes de um mundo à deriva porque separado de um estado de pureza ideal que nenhuma experiência histórica pode ensejar. No entanto,

343 No decorrer dos anos 1950, companhias teatrais como o TBC fortaleceram a proposta do “grande teatro”, o que, em certa medida, favoreceu o estabelecimento de laboratórios dramáticos dos quais vieram à tona o Arena e o Oficina. No mesmo período em que se operava a transformação do teatro também ocorria a renovação no cinema. 344 A “estética da fome” incorporou o legado de Brecht ao contexto do cinema brasileiro ligando-o a outras influências presentes sobretudo nos filmes de Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade e Leon Hirszman.

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pureza que permanece como referência do dramaturgo a alimentar uma observação inconformada da experiência possível345.

Para Ismail Xavier a ficção de Nelson Rodrigues está circunscrita nessa recorrência

em que personagens vivem situações motivadas pelo jogo de ser e aparências que se repõem e

recompõem a cada peça ou romance-folhetim. Essas considerações ajudam a elaboração de

uma segunda crítica, mais apurada, que permite estabelecer uma relação com o universo de

Nelson Pereira e com as suas matérias de importância. Boca de Ouro é uma experiência

completamente diferente do que havia feito antes, porém que se conecta com as anteriores por

mais uma vez ter o Rio de Janeiro como cenário. Outras camadas do subúrbio carioca são

acionadas e fascinam o cineasta que se interessa pelo estudo psicológico das personagens

transpostas para a tela a partir das referências contidas na dramaturgia de Nelson Rodrigues.

“A vida como ela é”346 é um valor comum aos dois Nelsons.

A questão da permanência da noção do gênero trágico na modernidade, motivo de

intenso debate no âmbito do teatro347, perpassa o conjunto da obra dramatúrgica de Nelson

Rodrigues. Esse autor emergiu no momento de sua afirmação, nos anos 1940, destacando-se

como um salto de qualidade na dramaturgia brasileira então apresentada. A expressão teatral

de Nelson Rodrigues redimensionou o teor e o alcance do drama, inserindo-o na continuidade

associada à reflexão sobre as condições-limite do humano, em que o valor estético é

acentuado em detrimento da comédia habitual encenada na época348.

É Nelson Pereira dos Santos quem informa e clarifica sobre como se deu a sua

aproximação com a obra de Nelson Rodrigues:

E o Jece veio me procurar para fazer uma proposta: “Quer fazer o Boca de Ouro, a peça do Nelson Rodrigues?. Nelson Rodrigues não tinha sido filmado até então. Quer dizer, havia uma versão de um romance de Nelson Rodrigues para o cinema, que ele assinara com o pseudônimo de Suzana Flaig. Trata-se de Presença de Anita, que o diretor italiano Ruggero Jaccobi fez em São Paulo, na Maristela. Mas não era o verdadeiro Nelson Rodrigues, era outra coisa. Eu fui o primeiro a filmar Nelson Rodrigues. Foi o Jece Valadão que tomou a iniciativa de fazer o filme. Havia muita oposição, filmar Nelson Rodrigues era uma espécie de tabu. A história de Boca de Ouro é muito boa. Nelson Rodrigues retratou com grande acuidade a realidade do marginal carioca. Essa sociedade ainda é muito instável, as

345 Cf. Ismail XAVIER. O olhar e a cena – Melodrama, Hollywood, Cinema Novo, Nelson Rodrigues. São Paulo: Cosac & Naif, 2003, p. 161. 346 “A vida como ela é” é o título de uma coluna muito lida assinada por Nelson Rodrigues no jornal Última Hora. 347 Cf. Raymond Williams. Tragédia Moderna. São Paulo: Cosac & Naif, 2002. 348 Cf. Ângela Leite Lopes. Trágico, então moderno. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro/EDUFRJ, 1993 ; Victor Hugo Adler Pereira. Nelson Rodrigues e a obs-cena contemporânea. Rio de Janeiro: EDUFRJ, 1999.

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relações são incertas. Não existe nenhuma estrutura ética, escrita ou apenas oral, nada. Vale tudo, é uma liberdade plena. E é muito interessante o Nelson Rodrigues. A esquerda não gostava de Nelson Rodrigues, aliás nunca se aproximou dele. Quando eu fui fazer o filme, havia uma oposição à idéia de se filmar Nelson Rodrigues, era algo escandaloso. E a vida do subúrbio, era muito expressiva. E tem o lado do personagem completamente transgressor, ao extremo. Ele não aceita nenhum limite. A outra coisa é a construção da história, que já tinha acontecido no Rashomon349. Não sei se o Nelson foi influenciado pelo Rashomon, do Kurosawa. Lembram da história?350

A história do filme é urdida a partir da morte do personagem-título, Boca de Ouro

(Jece Valadão), famoso bicheiro de Madureira. O título é uma alusão feita à sua decisão de ter

todos os dentes removidos para permitir o uso de uma dentadura de ouro, expressão do seu

desejo de poder e ostentação. A trama é centrada em três diferentes versões da história, a

partir do relato da ex-amante do Boca, Guigui (Odete Lara), a um jornalista, Caveirinha (Ivan

Cândido). O jornalista vai à casa de Guigui, que está casada e tem dois filhos, para ter acesso

a informações sobre o recente assassinato do contraventor. Guigui, sem saber da morte do

Boca, desqualifica o ex-amor e confidencia ao jornalista um dos seus crimes bárbaros. Em

flashback Guigui começa a contar a história: um jovem marido, Leleco (Daniel Filho), expõe

sua mulher Celeste (Maria Lúcia Monteiro), por quem o Boca demonstra interesse, ao

constrangimento de solicitar empréstimo ao bicheiro. A mulher não cede ao assédio do Boca,

que lhe pede favores em troca do dinheiro e que diz ao marido que se sua vontade não for

satisfeita ele será morto. Acuado, o marido pede para a mulher ir para a alcova do Boca,

mesmo assim ele é espancado até a morte. Satisfeita, Guigui imagina o crime estampado nas

páginas dos jornais. No entanto, ao tomar conhecimento que o Boca foi assassinado,

arrepende-se e chorando pede ao jornalista para desconsiderar o seu primeiro depoimento,

dizendo que o boca foi seu único amor, e passa a contar outra versão do fato. Dessa vez,

invertem-se os papéis, o Boca é um benfeitor a quem Celeste, uma vigarista, pede dinheiro e

oferece a visão dos seus seios em troca de um colar de diamantes. Leleco, que havia seguido

Celeste flagra o momento íntimo entre eles e ameaça o bicheiro com uma arma. Celeste

defende o Boca e apunhala Leleco pelas costas. Guigui, ainda oferece uma terceira versão ao

jornalista, motivada pelo ciúme de seu marido que ouviu toda a sua conversa com o jornalista

e ameaça deixá-la. Nesta versão, buscando a reconciliação com o marido, Guigui equilibra as

versões anteriores. Leleco é informado sobre a traição de Celeste e vai até a casa do Boca

349 Rashomon (1950) direção de Akira Kurosawa. No século XV, numa floresta perto de Tóquio, bandido afirma que matou um samurai, depois de violentar a mulher dele. A mulher diz que foi ela quem matou o marido. A alma do morto conta que se suicidou, e um açougueiro dá uma quarta versão, antes de adotar um menino abandonado. Georges SADOUL. Dicionário de Filmes. Porto Alegre: L&PM, 1993. p.334-335. 350 Apud entrevista Tunico AMÂNCIO. Op. Cit., p.26.

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tentar extrair dinheiro do contraventor, que saca de uma arma, induz Celeste a entrar no jogo e

esta acaba esfaqueando o marido. Boca termina o serviço iniciado por Celeste, em seguida,

corta a garganta de Celeste e passa a cortejar Maria Luíza, uma grã-fina, que no final do filme

revela-se a responsável pela morte do Boca.

As diferentes versões expostas por Guigui oferecem uma gama de possibilidades

sobre o seu caráter e as suas intenções. Sentimentos como ira, carinho, vingança,

ressentimento e arrependimento misturam-se e ficam nivelados reforçando a tese que a

sordidez, a vilania, a corrupção dos personagens prescindem de motivações que orientem as

suas ações. A dúvida, o engano e a falsidade estão em todo o filme, que tem como síntese a

frase escrita no cartaz: O filme de todos os amores e de todos os pecados!

Boca de Ouro é um exemplo anunciador da diversidade de Nelson, apesar de neste

filme ele manter alguns princípios que matizam toda a sua obra. Como novidade há uma

referência ao filme noir americano351, principalmente no seu ágil e bem montado prólogo: o

filme começa com cenas de vários momentos da vida do Boca mostrando as suas facetas, a

síntese da sua história – apostador, assassino cruel, político em ascensão -, sem um único

diálogo as imagens de bandidos, policiais, roubos, tiroteios fundem-se ao som de um nervoso

jazz. Quanto às permanências, o realismo é mantido, seja no recurso de filmar em locação,

seja na escolha do elenco, com o objetivo de flagrar a vida do subúrbio e escapar das

convenções teatrais. Sobre as suas opções Nelson esclarece:

A menina que faz a moca, a Celeste, ela fez só esse filme. Ela não era atriz [...] exatamente para evitar o comportamento teatral. É difícil o ator de teatro se desvencilhar disso. Na minha cabeça também estava pensando em chegar mais próximo do comportamento real lá de uma menina suburbana [...] Tinha medo do comportamento teatral, tudo empostado, podia fazer o filme escapar do contexto. Eu queria sair do teatro e ir para o subúrbio mesmo para a vida [...] tem várias cenas na ponte lá do trem de Madureira352.

Apesar do êxito comercial, talvez o primeiro sucesso comercial do cineasta, a crítica

não recebeu bem o filme, sendo raras as suas manifestações de entusiasmo:

351 Film noir foi a expressão inventada pelos críticos franceses do período imediatamente posterior à segunda Guerra Mundial para designar um grupo de filmes criminais americanos, produzidos a partir dos anos 40, com certas particularidades temáticas e visuais que os distinguiam daqueles feitos antes da guerra. A.C. Gomes de MATTOS. O outro lado da noite: filme noir. Rio de Janeiro: Rocco, 2001, p. 11. Muitas vezes, porém, o cenário social do filme noir prevalece sobre a simples intriga policial: visão crítica dos Estados Unidos, de sua sociedade e instituições, o filme noir torna-se então um subgênero do filme social engajado. Philippe PARAIRE. O cinema de Hollywood. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 63. 352 Apud entrevista editada por Tunico AMÂNCIO. Op. Cit., p.28.

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Octávio Bonfim, de O Globo (5/2/1963), fez alguns poços elogios à parte técnica [...] E Hugo Barcellos, do Diário de Notícias (6/2/1963) foi categórico: ‘Nelson com Nelson não deu certo. E não deu, porque Nelson Pereira dos Santos, fidelíssimo ao texto original de Nelson Rodrigues, deixou-se embair pelo artificialismo do autor, o eterno homem da eterna banda podre’. Um dos raros que apreciou foi Luiz Alberto Sanz, do Jornal do Comércio (2/7/1963). Após elogiar algumas interpretações, a direção de NPS e a montagem de Rafael Valverde, afirmou: “Boca de Ouro merece uma visão calma e cuidada, onde não caberão os preconceitos com o nascente Cinema Novo. É um filme adulto.353

O filme seguinte é Vidas Secas, adaptação do reconhecido romance de Graciliano

Ramos, escrito em 1938. Vidas Secas integra o rol dos livros e filmes indeléveis da expressão

cultural e artística brasileiras. Tornou-se emblema do romance social, sinônimo do Cinema

Novo e passadas várias décadas de suas realizações a potência dos relatos mantém vigor, é

atual, ainda reflete as disparidades sociais e econômicas do Nordeste do Brasil pelo

tratamento dado ao tema da seca e suas circunstâncias.

O filme Vidas Secas é o resultado da concatenação de diversos aspectos. Como já foi

dito, Nelson documentou a seca no Nordeste brasileiro no final dos anos 1950 e o seu

imaginário passou a ser povoado pelas fortes e inolvidáveis imagens que sua memória

registrou. Por outro lado, a questão agrária e as reformas de base, naquele momento,

aqueciam o debate político e atraia a atenção de todo o país. No Nordeste, os camponeses se

organizavam e reivindicavam o direito de permanecer nas terras em que viviam e

trabalhavam. Assim, filmar Vidas Secas constituía-se em uma escolha adequada, pois Nelson

entrava no debate através do filme que apresentaria uma visão contígua à situação real e não

sentimental do nordeste brasileiro e também por ser uma adaptação de uma obra canônica do

romance social brasileiro, assinada por um autor reverenciado por Nelson354.

Em Vidas Secas Nelson manteve as indicações do romance quanto à poética,

seguindo a concisão e o minimalismo de Graciliano que elimina tudo que não é essencial,

353 Apud Helena SALEM p. 157-158. 354 Aos 22 anos, após ler São Bernardo, Nelson postulou filmá-lo e escreveu um roteiro em que Madalena não morria no final do romance. Rui Santos encaminhou uma carta a Graciliano Ramos pedindo sua permissão para Nelson filmar o romance. A resposta de Graciliano Ramos foi uma lição para o jovem cineasta, inesquecível para as suas futuras considerações acerca de adaptações, conforme seu relato na entrevista publicada em O Pasquim, n° 106, 10/04/2004, p.13-16 em que reproduz trechos da carta: “Se vocês quiserem fazer isso, façam, tirem meu nome dessa história. Inventem o que quiserem inventar [...] Vocês estão pensando na mulher dos dias de hoje, vivendo na situação social e urbana de agora. Tem que pensar em 1930. Ela é uma mulher frágil, com muitas idéias de mudanças [...] Essa mulher não tinha outra solução a não ser o suicídio. Prestem atenção: se ela não tivesse cometido o suicídio, Honório não ia escrever um livro. O livro é contado por ele porque não entendeu nunca esse suicídio. Contando essa história, poderia ser que chegasse numa explicação. Se ela não tivesse suicidado, ele não teria escrito o romance. Se ele não tivesse escrito o romance, eu também não teria escrito o livro. Se eu não tivesse escrito o livro, você não teria nenhuma idéia para fazer um filme”. Posteriormente São Bernardo foi filmado por Leon Hirszman em 1972, sendo um dos filmes de destaque da década.

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porém garantiu espaço para as descobertas oriundas da investigação da linguagem

cinematográfica:

Em Vidas Secas, eu alcancei uma liberdade formal muito grande, mas respeitei integralmente as duas partes da carta: nunca desvirtuar o pensamento do autor, respeitar, portanto, a essência do livro, e a segunda parte, não só referente ao condicionamento histórico, mas fazendo o possível para não alterar a estrutura narrativa que o autor elaborou. Isso porque a forma de contar uma história é determinada pela maneira de pensar355.

Nelson acompanha o pensamento de Graciliano que narra o livro na terceira pessoa.

Nesta perspectiva não é a personagem que ressalta, mas o narrador que se faz sentir pelo

discurso indireto, construído em frases curtas, incisivas, enxutas, quase sempre em períodos

simples. A obra configura um gênero intermediário, híbrido, transitando entre o romance e o

livro de contos. Consta de 13 capítulos, até certo ponto autônomos, mas que se ligam pela

repetição de alguns motivos recorrentes: a paisagem árida, a zoomorfização e

antropomorfização das criaturas e os pensamentos fragmentados das personagens. O discurso

de Vidas Secas é altamente subjetivado, no sentido de que grande parte do material escrito é

articulado do ponto de vista das personagens, dentro de uma hierarquia de poder que passa de

Fabiano para Sinhá Vitória, aos dois filhos, chegando até mesmo a cachorra Baleia.Também

as personagens são focalizadas uma por vez, o que mostra o afastamento existente entre elas.

Cada uma tem sua vida particular, acentuando-se a solidão em que vivem. Vidas Secas é,

portanto, a dramática descrição de pessoas que não conseguem comunicar-se. A comunicação

não flui, os grupos não interagem. A nota predominante do livro é o desencontro dos seres. Os

diálogos são raros e as palavras ou frases que vêm diretamente da boca das personagens são

apenas reclamações, exclamações, ou mesmo grunhidos. A terra é seca, mas, sobretudo o

homem é seco. Daí o título Vidas Secas.

No filme, o monólogo interior no estilo indireto livre é substituído por diálogos,

diretos e esparsos, intercalados pelo silêncio. A incomunicabilidade entre Sinhá Vitória e

Fabiano é explicitada por meio de uma “conversa” em que falam simultaneamente sem

escutar um ao outro, cada qual falando “com seus botões”.

Nelson agrupa alguns capítulos que no livro estão separados beneficiando-se da

disposição das narrativas nucleares, que permite certos movimentos e realocações que não

põem em risco o sentido da obra. Desenvolve uma relação dialógica com seu modelo de 355A arte de recriar. Entrevista concedida a Suzana SCHILD. Revista IBM, n° 18, setembro de 1984, apud SALEM. Op. Cit., p.171.

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referência e discute aspectos subjacentes ou subentendidos no romance de Graciliano Ramos.

Tal opção resulta em uma leitura crítica e criativa da obra original para dar conta da história

que aborda a saga de uma família de retirantes, composta pela mulher (Sinhá Vitória), pelo

marido (Fabiano), os dois filhos e a cachorra Baleia, que foge da seca e segue errante

atravessando o estéril solo nordestino na defesa da sua sobrevivência. Em busca de trabalho

instalam-se em uma fazenda onde Fabiano convence o dono das terras da sua competência

como vaqueiro. Nesta situação a família acomoda-se por um período até Fabiano se indispor

com o poder instituído, representado pelo avarento proprietário da terra e pelo soldado

discricionário. Essa circunstância o induz a uma situação de opressão em que é preso e

espancado. Quando sai da prisão, sem perspectiva de permanecer no local, sacrifica a

cachorra doente, Baleia, que era como gente em meio de gente que vive como bicho. Sinhá

Vitória indaga:“Um dia a gente vai virar gente. Podemos continuar vivendo que nem bicho?

Escondido no mato? Podemo?” Fabiano responde: “Não podemo não”. E de novo a família

desaparece na estrada em busca de um destino melhor para não ter o mesmo fim que Baleia.

O filme tendo como base a ficção naturalista promove a analogia homem-animal.

Tanto o animal como a criança, presentes no filme, são utilizados como metáforas para recriar

uma das maiores constâncias no discurso do cineasta: o menor, o frágil, o oprimido e o

desassistido.

Desenhando o oprimido toma como parâmetro a figura de Fabiano e investiga

sistematicamente a relação deste com as várias instituições sociais. Fabiano não cabe dentro

da sociedade, está fora de seus mecanismos, e oferece como resposta do seu personagem aos

que o oprimem, a revolta.

Ao definir Fabiano dentro de funções da sociedade Nelson conduz o filme a um

despojamento dramático que irá corresponder a uma economia de meios expressivos,

encaminhando para um nível de abstração que transcende ao universo social do nordestino e

ganha dimensão e ressonância mais amplas. Randal Johnson na análise que faz sublinha, com

exemplos, as escolhas feitas por Nelson no tratamento do filme:

O filme desenvolve um espaço predominantemente social e político (mostrando o fato da opressão de Fabiano) que é implicitamente psicológico. A seqüência alterna entre câmera subjetiva (por exemplo, Fabiano olhando para o outro prisioneiro e vice-versa), câmera objetiva (planos de Vitória na escadaria da igreja) e trechos semidocumentários (o bumba-meu-boi) como meio de contrastar a realidade (social) objetiva da situação do drama pessoal de Fabiano. A justaposição de som e imagem (como o som do festival acompanhando a imagem de Fabiano ou Sinhá Vitória em frente da igreja)

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torna explícita a marginalização dos protagonistas, que são excluídos da festividade e, por extensão, da sociedade brasileira como um todo.356

Na sua constituição, Vidas Secas apresenta aspectos de inovação. A fotografia dura

realizada por Luís Carlos Barreto transformou a dificuldade em virtude cinematográfica e

com a câmara na mão acompanha a mobilidade obrigatória da perambulação sertaneja. A

utilização precisa da trilha sonora, exemplo de “uso estrutural do som” 357 retirou o som do

ambiente e o transformou em diegese. Com essa construção imagem e som equilibraram-se e

dão o tom na dramaticidade sóbria do filme, que seguiu a linha do realismo crítico na

condução de situações simples, densamente estruturadas, composta por planos abertos e

enquadramentos seguros, áreas de domínio do espaço cinematográfico claramente definido. O

filme também explora classicamente o campo e o contra/campo, que alterna a pessoa que vê

com o que a pessoa presumivelmente vê. O ponto de vista das personagens se movimenta para

estruturar a identificação, com o foco se alternando, de forma equilibrada, entre as

personagens. .

Vidas Secas não obteve sucesso de público, mas obteve o reconhecimento da crítica e

ganhou visibilidade internacional na décima sétima edição do Festival de Cannes. Por seu

intermédio o cinema brasileiro conquistou um espaço importante, liderando o recorde da

premiação não-oficial: Prêmio de Cinema de Arte, o de Melhor filme de Juventude e da

OCIC. A trajetória internacional de Vidas Secas foi muita extensa e até hoje o filme repercute,

sendo com freqüência exibido em festivais e mostras que homenageiam o cinema brasileiro

moderno.

AS ALEGORIAS

Na marca do final dos anos 1960, com o panorama já definido pelas mudanças

políticas e institucionais ocorridas no País, a alegoria358 se instala no cenário cinematográfico

brasileiro, ocorrem mudanças e correção de rumos no seio do Cinema Novo. Glauber Rocha

356 Randal JOHNSON. Literatura e Cinema, diálogo e recriação: o caso de Vidas Secas. In: Tânia PELLEGRINI (org.) Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Editora Senac; Instituto Itaú Cultural, 2003, p.56. 357 Expressão utilizada por Noel Burch. 358 Alegoria, esquema de representação em que personagens e acontecimentos retratados são usados de forma figurada, como disfarce, para revelar os elementos da idéia representada. No cinema brasileiro já se tem registro do seu uso no filme Paz e amor (1910) que satiriza um rei fictício Olin,I, anagrama do nome do presidente Nilo Peçanha.

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assimila a crise e a representação alegórica se faz presente em sua imaginária Eldorado

tropical, Terra em transe (1967).

No cinema, a representação desse novo momento vivido pela cultura brasileira se

revestiu de aspectos de descontinuidade, numa nova versão dos esquemas alegóricos

propostos por Walter Benjamin nos seus textos de reflexão sobre as relações entre o mundo

moderno e o barroco. Para Benjamin359, o princípio da descontinuidade da interpretação, o

desmonte da ideologia burguesa, ocorre no interior de uma máquina produtora de cultura,

assegurando um novo direcionamento político que irá refletir na obra de arte e no pensamento

histórico. Essa via de reflexão associa a experiência frustrada a outros momentos da história

onde movimentos que apresentavam as condições necessárias para serem bem sucedidos não

prosperaram e ao sofrer solução de continuidade fazem emergir as interrupções e o lado

descontínuo da história aparece, quando esta é contada do ponto de vista dos vencidos, dos

projetos desviados. A visão alegórica, ao tomar uma coisa por outra faz surgir o outro da

história. O que foi reprimido, sufocado vem à tona graças ao deslocamento oferecido pela

alegoria360.

Assim como Glauber Nelson também irá processar a crise. El justicero (1966-67) é o

seu primeiro projeto após as mudanças políticas ocorridas no país e marca o seu retorno ao

Rio de Janeiro depois da demissão coletiva dos professores da Universidade de Brasília:

O Beco era também o ponto de encontro. Diariamente havia lá um papo ou outro[...]Então, eu expulso de Brasília, chego e vou para o Beco [...] Aí encontro uma figura genial, que era o Mário Falashi [...] Cheguei e o Mário disse: “Tem uma empresa aí que quer fazer um filme, você topa fazer? [...] “Evidente, eu estou aqui desempregado” Aí eu fui lá e a idéia dele era assim de fazer um filme que desse dinheiro[...] Eu torci o nariz [...]Meio desapontado [...] achava que não ia sair nada. Aí encontrei o Leon e contei a história. Ele falou: “Você já leu o livro do João Bethencourt, que se chama El justicero e seus amores?[...] Isso era 65, quer dizer, já era o segundo ano da ditadura militar, mas que ainda havia uma liberdade de imprensa, que era exercida muito bem por muitos jornalistas, o Cony, o Sérgio Porto, então o Stanislaw Ponte Preta, que ficavam sempre fustigando os militares [...] E o João Bethencourt escreveu o livro[...] nesse caminho [...] Li o livro naquela noite e no dia seguinte voltei lá no produtor e disse: “olha , o filme é esse aqui, dá uma lida”361.

359 Cf. Walter BENJAMIN. Origem do drama barroco. São Paulo: Brasiliense, 1984. 360 Cf. Ismail XAVIER. Alegorias do subdesenvolvimento: Cinema Novo, Tropicalismo, Cinema Marginal. São Paulo: Brasiliense, 1993. Neste livro, o autor traça o percurso do cinema brasileiro do final dos anos 1960, tomando a alegoria como sinal de referência. 361 Apud entrevista editada por Tunico AMÂNCIO. Op. Cit, , p.36.

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Trata-se de uma comédia urbana de costumes, baseada no livro As vidas do justiceiro

de João Bethencourt, que aborda a sociedade classe média alta da Zona Sul do Rio de Janeiro.

Do último filme da trilogia que Nelson projetou no final dos anos 1950 El justicero carrega

alguns vestígios, nos quais Alex Viany identifica a equivalência ao não-realizado Rio, Zona

Sul: “El justicero como que completa a trilogia inacabada: ainda que escrita por outra pessoa,

a história não deixa de ser Rio, Zona Sul”362.

Nelson recusa a ligação entre os filmes não vendo nada em comum com o projeto

dos dois filmes da trilogia, que o vê mais como um filme-escola, uma vez que incorpora à

equipe boa parte dos alunos que migraram com ele para o Rio de Janeiro, após o fechamento

do curso em Brasília. El Justicero serve-se da comédia para retratar a sociedade classe média

alta da Zona Sul, de forma experimental, sem grandes pretensões. Ainda assim, traz como

novidade um filme-dentro-do-filme, um viés auto-reflexivo. El Jus, Jorge, (Arduino

Colassanti), jovem carioca que contrata seu amigo Lenine (Emanuel Cavalcanti) para escrever

sua biografia, mas termina fazendo um filme sobre sua vida. O enredo da história gira em

torno das aventuras de Jorge, El Jus, filho de um general que existe para “ajudar os fracos e

desamparados”. Buscando uma reputação de justiceiro com ações que vão da libertação de um

malandro preso à defesa da ingenuidade de uma jovem comunista. Ao final do filme, que

expôs as peripécias do playboy em meio a conquistas amorosas, Lenine observa que a vida de

El Jus não despertará o interesse de ninguém. El Jus retruca que a ele interessa.

A recepção do público foi desalentadora e ainda em 1968 o filme foi apreendido pela

Polícia Federal ao ser exibido no Pará, em seguida foi decretada a sua apreensão em todo o

território nacional.

Nelson reconhece que El Justicero tem “certa limitação de objetivos”. Quase como

se, caminho necessário para fazer a passsagem entre Vidas Secas e Fome de Amor, seu filme

seguinte363. No entanto, na entrevista que deu a Tunico Amâncio, posterior à biografia feita

por Salem, Nelson aponta alguns problemas que a seu ver resultaram na baixa aceitação do

filme e no seu obscurantismo: o título em portunhol e o desconhecimento dos atores

confundiam o público, e revela que o filme, após anos sem ser exibido, vale a pena ser visto

hoje, pois é muito engraçado.

Se em El Jus, filme ligado a uma determinada conjuntura, Nelson perde a

oportunidade de fazer uma sátira apurada da vida social da Zona Sul, a sua realização,

permite, no entanto, a abertura para a leveza e irreverência que dará prosseguimento em

362 Crítica publicada no Jornal do Brasil em 14/10/1967. 363 Apud SALEM. Op. Cit, p.199.

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filmes posteriores. E, naqueles tempos de manhãs e noites cinzentas esses atributos também

eram armas de combate e de defesa.

O próximo filme, Fome de amor (1967-68), começaria a ser rodado em julho de

1967, antes do lançamento de El Jus que ocorre em outubro do mesmo ano. Mais uma

adaptação, dessa vez é um conto do livro Histórias para se ouvir de noite, de Guilherme de

Figueiredo. Paulo Porto detinha os direitos da história e convidou Nelson para dirigir o filme.

Com viagem marcada para os Estados Unidos Nelson indica seu ex-aluno, assistente e Diretor

de Arte, Luiz Carlos Ripper, para ficar à frente da produção. Ao retornar ao Brasil assume o

projeto e parte para Angra dos Reis para fazer o filme:

Esse filme na realidade, ele foi feito filmando, quer dizer, não existia roteiro[...] não tinha transformado aquilo em texto de roteiro, ação, diálogos. Mas a idéia básica ainda era aquela do conto inicial, que era a história de uma pianista que vai a um concurso de piano em Paris, que se apaixona por um grande pianista, um mestre, professor fantástico e tem uma grande história de amor com ele.[...] Eu tinha conhecido os Estados Unidos naquele momento. O ano era 66, em plena guerra do Vietnã, protestos, a droga começando, a marijuana, o Love and peace[...] Era a época da contestação, do começo do movimento hippie. Então, a idéia foi mudando[...] a idéia básica era que essa moça vai se apaixonar por alguém que tem uma ilha no Brasil, pronto. E aí todo o resto vem com os próprios atores, com as próprias experiências que cada um está vivendo naquele período no Brasil. Essa era a idéia de Fome de Amor364.

Em Fome de Amor (cujo subtítulo é Você nunca tomou banho de sol inteiramente

nua?) quatro personagens se encontram numa ilha. Alfredo (Paulo Porto), o proprietário, é

cego, surdo e mudo devido a um acidente e a ilha é seu refúgio. Sua mulher, Ula (Leila

Diniz), bem mais jovem, casou-se com ele antes do acidente. Mariana (Irene Stefânia), realiza

estudo de música concreta em Nova York onde conhece Felipe (Arduíno Colasanti), pintor

medíocre que trabalha como garçom para sobreviver. Mariana, envolvida com o marxismo-

leninismo, é convencida por Felipe de que ele também é ligado ao processo revolucionário.

Casa-se com ele e vem para o Brasil onde Felipe afirma ser proprietário de uma ilha. Na ilha,

Ula e Felipe se tornam amantes, enquanto Mariana se aproxima de Alfredo.

Nelson, a partir do argumento de Guilherme Figueiredo sobre relacionamentos e

fidelidade, elabora uma alegoria sobre o experimental terreno da contracultura dos anos 1960.

Trata também da frustração e perplexidade da esquerda diante da sua impotência por não

conseguir efetivar as mudanças sociais pretendidas. Encarna a experiência de estar numa

364 Apud entrevista editada por Tunico AMÂNCIO. Op. Cit, p.46.

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situação limite e ter que avançar. Outro aspecto a ser destacado no filme diz respeito à

narrativa e ao uso do tempo na montagem, o corte dentro do plano, atribuídos por Nelson ao

contato que teve com o underground americano, com os cineastas Stan Brakhage e Jonas

Mekas. Esses aspectos, a narração em ordem não cronológica, o modo inesperado com que

surge cada plano, o jogo do claro-escuro e os movimentos de câmara fazem da estrutura do

filme uma constante e renovada questão.

A crítica se dividiu na avaliação do filme. O Jornal do Brasil de 15/06/80 traz a

cotação do filme. Alberto Shatovsky, Miriam Alencar e Sérgio Augusto consideram o filme

bom. Ely Azeredo, regular. José Carlos Avelar e Maurício Gomes Leite, ótimo, e apenas

Valério M. Andrade, mau.

Azyllo muito louco (1969-1971) é o próximo filme e primeiro em Parati, cidade

cenário, refúgio onde Nelson em um espaço de quatro anos realiza três filmes:

Ali, na realidade, foi uma espécie de exílio dentro do Brasil, era tão distante, tão isolada a cidadela, aquele mundo de Parati, que era possível considerar um lugar de exílio. Olha só, lá em Parati nós fizemos o Azyllo e depois Como era gostoso o meu francês.365

Azyllo muito louco atinge o ápice da representação alegórica através da adaptação

subversiva de um clássico. É uma resposta ao golpe dentro do golpe de 1968. A começar pelo

título onde é fundida a idéia de asilo, local de repouso de anciões à expressão contemporânea

“muito louco”. A adaptação do conto O alienista de Machado de Assis conserva o espírito

sarcástico e crítico do autor. A essência do conto é seguida ainda que a interpretação da

história seja livre: O padre Simão (Nildo Parente) chega à província de Serafim, onde vive

uma população muito religiosa, porém sem liderança religiosa. Com idéias novas e mais

preocupado com a saúde mental do que com a salvação das almas do seu rebanho, o padre

com a ajuda de Dona Evarista (Isabel Ribeiro) manda construir um hospital de alienados, a

Casa Verde. Quase toda população da cidade é recolhida no local. Assustados com a situação

instalada na cidade seus representantes legais tentam tirar do padre seus poderes de alienista.

Uma sucessão de eventos acontece. Perde-se referência e subverte-se a ordem. Ninguém mais

sabe quem é louco e quem não é. A solução é internar o padre no asilo.

Primeiro filme colorido de Nelson, com cenografia e figurino de Luís Carlos Ripper,

de destacada inspiração tropicalista, recorre à fantasia, à metáfora e à estilização para fazer

alusões à situação política brasileira. Estabelecendo uma comparação entre Azyllo muito louco

365 Apud entrevista Tunico Amâncio p. 48.

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e Fome de amor, o primeiro filme a romper com a tradição realista em sua obra, Nelson

afirma:

Desde Fome de amor eu parti para um discurso, que era colocar em questão toda a nossa posição ideológica, muito fechada face a uma realidade que nos trazia sempre surpresas: sempre que pensávamos conhecê-la, nos apercebíamos do contrário, e ela se revelava nova, diferente.366

Estes foram os piores anos da ditadura militar, de autoritarismo e opressão, e Nelson

em Azyllo muito louco dá mais um passo na colocação do intelectual frente a essa situação e

passa a questionar as ideologias que aprisionam a realidade: a falsa ciência e a visão

distorcida das coisas, neste sentido compreende o filme como um discurso metafísico, uma

discussão sem fim desse problema. O filme é uma observação de como o Brasil, assim como a

fictícia Serafim, sofre os maus tratos das instâncias políticas cujas curas sociais e econômicas

estão sempre sendo postas em prática através de atitudes e fórmulas de salvação.

Há uma dose de surrealismo na composição do filme. O gestual dos atores e os

diálogos são também realçados pela condução elíptica do filme. O estranhamento proposital

da atmosfera de Serafim é criado tanto pelas locações como pelas personagens. A adoção da

música atonal colabora para essa estranheza. A música encobre os diálogos tornando-os

incompreensíveis e intencionalmente anacrônicos.

Como Fome de Amor, Azyllo muito louco flagrou tanto cinéfilos como críticos por se

diferenciar dos filmes anteriores de Nelson. O filme teve repercussão em festivais

internacionais e se os prêmios conquistados não chegaram a atrair o grande público, evitou o

fracasso financeiro e abriu as portas para a venda no exterior. Da mesma forma, o filme é tão

sutil em sua crítica que os censores permitiram sua liberação sem restrições.

Como era gostoso o meu francês (1970-72) é o segundo filme realizado em Parati. É

fruto de um projeto acalentado durante alguns anos, inseminado através do contato mantido

com um remanescente de uma tribo indígena nordestina à beira do extermínio cultural na

época das filmagens de Vidas Secas367, sugerido pela oferta visual da travessia Rio-Niterói,

que levava Nelson, morador de Niterói a viajar pelo tempo e imaginar aquela paisagem à

época da descoberta. Sua realização é ainda tocada pela sinalização de Lévi-Strauss presente

em Tristes Trópicos para aventura dos franceses no Rio de Janeiro368.

366 Salem p. 252 apud Cárdenas e Tessier op. Cit. P. 67 367 Apud SALEM. Op. Cit., p.257. 368 Apud entrevista com Tunico AMÂNCIO. Op. Cit, p.52.

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Sobre o filme, Nelson Pereira dos Santos, em depoimento dado a Helena Salem,

afirma:

A concepção histórica se baseia na recuperação da cultura brasileira colonizada há séculos. A teoria antropofágica é uma teoria de assimilação da cultura estrangeira pelo homem brasileiro. E pelo índio. O índio comia o inimigo para adquirir seus poderes, não para alimentar-se fisicamente. Era algo ritual. Quanto mais poderoso era o inimigo, mas saboroso ele era369.

O filme elabora uma crítica antropofágica370 ao colonialismo europeu. O canibalismo

é utilizado com ambivalência pelo diretor. Tanto serve para expor as práticas predatórias do

colonialismo quanto para sugerir uma alternativa para o presente, em que as técnicas de

dominação européias deveriam ser assimiladas e devoradas para serem usadas contra os

dominadores. Uma sátira política sobre o capitalismo global e sobre a situação econômica e

política do Brasil, realizada através de uma proposta de restituição do passado, em que se

recorre a esse passado como metáfora referente ao presente.

Como era gostoso o meu francês recorre aos acordos em torno da narrativa brasileira

sobre o período colonial e oferece uma contrapartida valiosa: o encontro entre as culturas,

diferente da tradição romântica não é idealizado. Ao contrário de Iracema, a virgem dos

lábios de mel, do romance de José de Alencar, Seboipep sobrevive ao seu encontro com o

colonizador e com ele não gera filhos.

Na avaliação de Nelson Pereira dos Santos o filme não discute a ideologia, incorpora

a visão antropológica, que é mais aberta. Prossegue Nelson nos seus argumentos:

Tento abordar o problema político sobre o plano de formação da cultura brasileira, mas mostrando e mantendo uma posição, o que não era o caso dos meus dois filmes precedentes, onde eu me colocava fora de toda posição, onde eu ficava distanciado371.

Apesar dessa afirmação, o filme conforma um propósito ao redefinir e incorporar à

tradição cultural brasileira as informações desprezadas sobre a memória dos Tupinambás. A

opção pela visão antropológica denota um empenho de reinterpretação da história, fazendo

369 Apud SALEM. Op. Cit., p.261 370 O Manifesto Antropofágico, publicado em 1928 por Oswald de Andrade, em um momento em que os modernistas decidiram-se por “abrasileirar” o movimento, respondia a uma situação em que as influências culturais estrangeiras teriam que ser devoradas e, na sua digestão, seriam criticamente reelaboradas, nos termos do formato e possibilidades locais. Quase meio século depois Como era gostoso o meu francês revisita o canibalismo, e mantém a suspeita quanto às intenções européias. 371 Apud SALEM. Op. Cit., p.267.

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emergir novos meios de denunciar o que ficou de fora. A verdade do colonizado é contraposta

à visão etnocêntrica do colonizador europeu, que não consegue, nem ao menos tenta fazê-lo,

compreender uma cultura nova, desconhecida e diferente da sua.

Parcialmente baseado na exaltada crônica escrita pelo explorador alemão Hans

Staden em 1557, onde ele narra sua convivência com os índios Tupinambás, após ter sido

capturado por estes quando vivia entre os portugueses nas imediações hoje circunscritas como

o Rio de Janeiro. No filme, o prisioneiro francês, Jean, (Arduíno Colasanti) tem sua morte

anunciada. Os índios marcam o dia de sua morte ao fim de oito luas. No tempo que lhe resta

aprende os hábitos da tribo com a ajuda de uma jovem índia, Seboipep (Ana Maria

Magalhães) que se torna sua mulher. Jean procura desenvolver uma estratégia para escapar.

Para isso atrai a ajuda de um velho contrabandista de armas que negocia com os Tupinambás,

negociando pólvora em troca de um tesouro que descobrira. No momento em que escavavam

a terra em busca do tesouro Jean mata o parceiro e enterra-o no buraco aberto. Tentando

escapar da sentença de morte Jean diz ao Cacique que tem poderes para fazer pólvora e luta

ao lado dos Tupinambás contra os Tupiniquins. Mas de nada adianta o seu empenho. Tenta

fugir e Seboipep o impede. O ritual antropofágico é um ato revestido de seriedade. Em

posição frontal é exigido de Jean que encare seu carrasco e pronuncie “quando eu morrer,

meus amigos virão me vingar”, em seguida recebe uma pancada na cabeça. Seu corpo é

servido em um banquete para a tribo. No final a câmara se afasta de Seboipep para mostrar a

aldeia em uma panorâmica. Uma legenda final aparece na tela assinada por Mem de Sá,

Governador Geral do Brasil, que em 1557 escreveu: “Batalhei no mar, de tal forma que

nenhum Tupiniquim permaneceu vivo. Os mortos se espalhavam rígidos por toda a praia,

cobrindo quase uma légua”.

O súbito aparecimento da legenda causa um enorme impacto, gerando um incômodo

ao estampar o extermínio da população indígena. O filme, no seu conjunto, mostrou com

simplicidade e segurança o mundo indígena vigoroso e em harmonia com o seu meio, o que

lhe confere valor estético além do inegável valor etnográfico.

Como era gostoso o meu francês assume uma posição mais elaborada nas relações

com suas fontes do que o caminho tomado usualmente nas adaptações literárias. Ele cruza

uma ampla gama de outras narrativas históricas, ao lado da formulada por Staden, formando

uma densa e sutil interconexão entre elas. No decorrer do filme há enxertos de textos de

cronistas franceses e portugueses coetâneos ao relato do alemão, que funcionam como

documento, informação, e também contraponto irônico. Essa prática promove uma fusão de

meios expressivos; mistura o documental, o burlesco a encenações dramáticas, resultando

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numa metáfora provocativa de resistência à sociedade moderna do capital global e consumo

estrangeiro.

O filme inaugura um ciclo que aborda o índio no cinema brasileiro: “Uirá, um índio

a procura de Deus” (1973), de Gustavo Dahl, “A lenda de Ubirajara” (1975), de André Luís

de Oliveira e “Ajuricaba” (1977), de Oswaldo Caldeira, sendo o primeiro a botar na tela os

índios brasileiros na sua singularidade e dimensão cultural. O público acolheu o filme, apesar

da inversão dos propósitos de Nelson na sua leitura:

O público não se identificou com as minhas idéias. Identificou-se, por exemplo, com o francês, o colonizador. Todo mundo lamentava a morte do “herói”. Não entenderam que o herói era o índio. 372

Quanto à crítica, as opiniões se dividiram mais uma vez, porém sem grandes

arrebatamentos. O sucesso do público é entendido por um segmento da crítica como a falta de

percepção do público para o filme brasileiro: “O público mal percebe que o filme é

nacional”373.

Na leitura do público e na percepção da crítica no Brasil seguem informações sobre o

andamento do cinema brasileiro que apontam para as suas contradições: o brasileiro não se

reconhece na tela, não identifica a sua originalidade e o cinema brasileiro vivencia sua crise.

Vem da crítica estrangeira a preocupação com o momento vivido pelo cinema

brasileiro e o reconhecimento da insistência Nelson em procurar uma saída possível:

Esse filme, [...] torna-se particularmente significativo num momento em que este movimento atravessa uma grave crise que de certa maneira pode levá-lo à extinção, em conseqüência da vida política e cultural [...] que o Brasil vive hoje em dia. NPS marcha ainda na cabeça do movimento a ensaiar um caminho possível, sem se retardar sobre os caminhos já percorridos, sem se trair [...]. Em ...Francês a fotografia tem uma esplêndida maturidade clássica: é necessário evitar o folclórico no tratamento dado à exterminação de todo o vestígio da cultura indígena. A pesquisa histórica foi trabalhada em função de “um drama individual” e mostra como tema central do filme “o abismo cultural”374.

Uma “ficção psicológica”375 – é assim que Nelson Pereira dos Santos define Quem é

Beta? (1972-73), que tem como subtítulo Pas de violence entre nous:

372 Entrevista a Isa CAMBARÁ. Folha de S. Paulo, 19/05/1977. 373 Rubens EWALD FILHO. A Tribuna (Santos), 18/04/1972. 374 Frederico de Cadenas. Positif, nº 130, set/71, p. 16 e 17, Cannes 71. 375 Jornal do Brasil, 27/11/71.

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Não posso nem quero dizer que estou fazendo algo de novo. O termo é pretensioso demais. Diria mais que é uma linguagem diferenciada. Não crio o novo, simplesmente rompo com o anterior e é possível que nesse rompimento algo de novo surja376.

Na abertura do filme a voz de Nelson imprime o caráter de narração de seu filme:

Não procurem mensagem neste filme; se alguma houver será sempre contribuição de sua parte. Não acreditem no que os atores estão fazendo em cena. Nunca foi de nossa intenção dar realismo ao comportamento dos personagens, porque tudo acontece como uma história em quadrinhos: sem compromisso, absolutamente sem compromisso. Encontrem uma posição confortável na sua poltrona, desatem os músculos, deixem a cabeça livre e os olhos também, como aliás deverão fazer em todo e qualquer filme.

O prólogo prepara o espectador para assistir a uma alegoria futurista sobre um casal

que vive uma estranha aventura, com ingredientes de drama e comédia. A ação do filme

transcorre em uma determinada região do mundo, sem identificação de tempo e espaço,

aparentemente após a devastação nuclear, Regina, (Regina Rosemburgo) procura refúgio e

chega no abrigo de Maurice (Fréderic de Pasquale), que o construíra numa perspectiva de

recuperar seu mundo perdido. Regina e Maurice pertencem ao grupo que tem armas,

alimentos e vínculos com o passado, responsável pela eliminação dos contaminados, grupo

dos desvalidos, que vagueiam pedindo alimento. Os dois passam o tempo caçando

contaminados e assistindo ao vídeo-memória, máquina de recordações criada por Maurice.

Surge uma estranha, Beta (Sylvie Fennec), que desestabiliza a vida do casal. Beta decide

partir e Maurice parte à sua procura. Alcançando-a passa a viver com ela, mas não consegue

esquecer Regina. Ao retornar ao abrigo encontra Regina vivendo com outro homem, Gama,

(Dominique Rhule). Os três passam a conviver, mas a presença de Beta é onipresente. Beta

regressa trazendo consigo uma mulher grávida. Um banquete é servido. Os contaminados

assistem olhando pelas janelas. Corte. Regina e Gama entram em um avião, vestindo roupas

normais, fora do quadro da alegoria futurista.

Sonho em quadrinhos, utópica visão, Quem é Beta?, trata da sobrevivência, sem

psicologismo, nem dicotomias moralizantes, através de uma vaga estrutura narrativa.

Como os demais filmes da safra alegórica de Nelson, é possível compreender Quem

é Beta,? a partir do ponto de vista de que a representação simbólica é uma forma de abordar

os males e os problemas do Brasil. Se não há moral que defina o bem e o mal no filme, há a

376 Diário de Notícias. Rio de Janeiro, 8/6/1973.

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separação dicotômica entre os que têm e os que não têm: aqueles que têm armas, comida e

abrigo e aqueles que sem nada ter perambulam implorando por alimentos.

O filme resultou em fracasso de bilheteria e público. A seu favor apenas a voz firme

de Carlos Diegues que em artigo intitulado Who´s better? Publicado na coluna de Tarso de

Castro, no jornal carioca Última Hora em 27/06/1973:

Beta é a segunda letra, a que está no meio, a ponte, a passagem, a travessia [...] digamos para simplificar que Quem é Beta? É um filme experimental [...] Acontece eu o experimental de hoje pode ser o clássico de amanhã. E nem sempre o clássico de hoje resiste à memória do tempo.

Quem é Beta? encerra uma fase e conduz o autor a uma revisão enquanto criador. É

tempo de desarmar a tenda em Parati, locação dos filmes dessa sua fase, e renovar a tribo. É

necessário repensar o Brasil.

O CINEMA DE PERSPECTIVA POPULAR

O amuleto de Ogum (1973-75); Tenda dos Milagres377 (1975-77), Estrada da vida

(1979-81) e Jubiabá (1985-87). Esses filmes, que compõem a nova fase do artista, fincados

em ambientes diversos: Caxias, baixada fluminense no Rio de Janeiro, Salvador e a periferia

paulistana, irão confirmar uma tendência já apontada por Nelson, na ocasião da realização de

Como era gostoso o meu francês, o seu investimento no contexto antropológico na

instauração da obra, definido a partir do ponto de vista do espaço de representação para a voz

dos muitos outros.

Amuleto de Ogum é ambientado em Caxias, núcleo de imigração nordestina na

baixada fluminense. Sua trama se passa entre bicheiros, operários, mendigos, pistoleiros,

pivetes, contraventores, umbandistas. A contradição se estabelece a partir da própria trajetória

que forma o perfil de cada personagem, trajetórias dinâmicas fugindo ao maniqueísmo das

características definitivas. A cultura do povo é vivida na sua dimensão real, numa observação

em plano aberto sem aproximações reducionistas ou preconceituosas. Amuleto de Ogum foi

feito a partir do argumento original de Francisco dos Santos, O Amuleto da Morte, um roteiro

sobre o mitológico Tenório Cavalcanti em que Nelson cruza três ordens de coisas: as religiões

de conversão, representadas pela Umbanda; o ambiente da Baixada Fluminense, campo

propício para a exploração do caldeirão religioso-popular, e o momento de distensão que

377 Tenda dos Milagres e Jubiabá são verbetes deste ABC.

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passava o cinema brasileiro com a Embrafilme pela primeira vez sob a direção de um

cineasta378.

Nesse filme é possível constatar a prática de citações nos filmes de Nelson Pereira

dos Santos. Assim, ele citaria Rio, 40 Graus em O amuleto de Ogum para explicitar melhor a

retomada de suas primeiras obsessões: Gabriel, o jovem pistoleiro da baixada fluminense, ao

entrar no elevador onde matará o funcionário da ONU, assovia A voz do morro, tema de Rio,

40 Graus. Amuleto de Ogum também retoma Vidas Secas379. É possível atribuir ao segundo

filme uma continuação do primeiro, que termina com um plano da família nordestina indo

para a cidade grande. Amuleto de Ogum abre com a morte do pai e de um dos filhos.

Para produzir Amuleto de Ogum Nelson concentrou a equipe em locação em Caxias,

vivendo para o filme, ambientando-se na atmosfera do trabalho, sob a regência do diretor que

assim se definia:

É o regente da orquestra. Tem lá um solista de violino, o regente sabe que nunca vai tocar como aquele solista. Então cabe ao maestro não ensinar ao solista como ele deve tocar, mas extrair do solista o máximo que ele sabe dar, o máximo do seu potencial. Ser diretor, lidar com os seres humanos é um trabalho muito mais psicológico380.

Com esse pressuposto Nelson partiu para retratar a vida de uma população à margem

da cultura oficial, mas que mantém vivos seus mitos e suas crenças. O objetivo não é novo e

sim a forma de abordagem que busca usar a linguagem da emoção na tradução dos valores

essenciais do nosso ser cultural popular, visando dialogar com o grande público.

Mas, a proposta de O Amuleto de Ogum não se encerrava no filme. É com esse filme

que Nelson reafirma a necessidade de uma descolonização cultural381, e para isso não basta

uma proposição teórica: “a única possibilidade de termos uma cultura é a de nós mesmos

toparmos inventá-la”382.

Apesar do esforço de Nelson de fazer um filme de extremo apelo popular, e sendo

popular, seria por conseqüência comercial e estaria inserido no bojo de um projeto global que

378 Nesse período, a nova Embrafilme estruturava-se com a distensão promovida pelo Governo Geisel e pelo interesse cinéfilo do ministro João Paulo dos Reis Velloso que nomeou Roberto Farias como presidente desse organismo estatal responsável pela política cinematográfica brasileira. 379 Randall Johnson, professor americano, pesquisador do cinema brasileiro, em Cinema Novo x 5: Masters of Contemporary Brazilian Film, Austin, Texas, 1984, observa as recorrências nos filmes de Nelson Pereira dos Santos. 380 Apud SALEM. Op. Cit., p.298. 381 É pertinente ressaltar a emergência das idéias em torno da descolonização cultural em nosso cinema nesse período. 382 Entrevista a Cláudio BOJUNGA. Jornal da Tarde, 31/10/1974, São Paulo.

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levasse em conta todas as questões relativas à produção e distribuição do filme, O Amuleto de

Ogum não teve sucesso comercial e sua distribuição ficou restrita a pequenas salas. No

entanto, circulou em diversos festivais, recebendo prêmios expressivos.

Quanto à crítica, a recepção foi majoritariamente favorável. Jean-Claude Bernardet

ao entrevistar Nelson Pereira dos Santos no Jornal Opinião irá afirmar que com O Amuleto de

Ogum nasceu um novo Cinema Novo:

O Amuleto de Ogum está certamente destinado a dar enorme impulso ao atual cinema brasileiro, modificar profundamente as posições existentes, relançar discussões de há longo tempo omitidas383.

Dos filmes agrupados como de perspectiva popular. Estrada da vida é o mais

simples. História ficcionada com base na biografia da dupla de música sertaneja Zé Rico e

Milionário. Nelson fala sobre a sua concepção:

A idéia inicial era realmente ter um distanciamento sociológico. Mas, depois de conversar com eles, percebi que queria não só conservar o conteúdo mas fundamentalmente a forma pela qual contam a própria história. Na forma, uma relação com a tradição de espírito circense, de espetáculos populares. Um filme mais para Méliès, pela concepção de interpretações plástica do mundo e universo imaginário das pessoas – do que para Lumière384.

A escolha por Georges Méliès, pioneiro que enxergou no cinema a possibilidade de

invenção, rende tributo ao cinema como forma de espetáculo e remete à magia, ao lúdico e ao

ilusionismo. Nelson sustenta essa opção e realiza um filme alegre e leve, sem deixar de tocar

na política, mesmo que de forma indireta, pois a ação das personagens leva à evidência os

mecanismos sociais em desordem e ao exercício crítico. Romeu e José chegam a São Paulo,

sem dinheiro e sem documentos, para trabalhar como pintor de paredes com o sonho de um

dia cantar para o povo. Hospedam-se no Hotel dos Artistas e decidem formar a dupla

Milionário e José Rico. No hotel começam a ensaiar e são contratados por Malaquias,

empresário sem caráter. Continuam trabalhando na construção civil enquanto o sucesso não

chega, mas são despedidos porque cantavam durante o trabalho e distraiam os operários que

paravam para ouvi-los. Gravam o primeiro disco e nada acontece. Fazem uma promessa

deixando um disco no altar de Nossa Senhora Aparecida. O LP chega à rádio local que toca

Estrada da Vida. Ocorre o milagre e o início de uma promissora carreira.

383 Entrevista a Jean-Claude BERNARDET. Jornal Opinião n° 119, 14/02/1975, Rio de Janeiro. 384Entrevista a Suzana Schild, Jornal do Brasil, 15/02/1981, Rio de Janeiro.

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Como outros filmes de Nelson Pereira dos Santos, Estrada da Vida trata dos

migrantes rurais que saem em busca de uma vida melhor na cidade. Neste filme, a música é o

elemento de ligação que evoca a solidariedade entre os trabalhadores. O maniqueísmo

presente no início do filme para definir as caracterizações entre o rural e o urbano vai

desaparecendo à medida que a dupla ganha fama.

Alguns detalhes transfiguram o naturalismo, que é amparado em um sistema

narrativo, conferindo-lhe uma dimensão poética e bem humorada. Um momento que indica

essa situação: José Rico e Milionário estão pintando um prédio em um andaime no alto de um

edifício em construção. Cantam rememorando sua terra natal enquanto trabalham. A paisagem

urbana de São Paulo, com seus matizes plúmbeos, é subitamente transformada, como num

passe de mágica, em um verde campo. Outra instante que merece registro pela sua construção

ocorre na pensão, quando Zé Rico e Milionário iniciam um solo musical que num crescendo

se transforma em uma reluzente orquestra popular. Também apresenta forte carga expressiva,

uma longa seqüência documental em que é mostrado o despertar de uma grande cidade.

Estrada da Vida mostra a ascensão do músico popular sertanejo em um ambiente de

entretenimento que não soa falso, pois a opção de Nelson não foi a de fazer um filme com Zé

Rico e Milionário, foi a de fazer um filme para eles. É a abertura total do artista que sem

preconceito se abre para o exercício cada vez maior de sua liberdade:

Amo o povo e não renuncio a esta paixão. Eu quero fazer cinema assim como essa dupla canta. Com o coração na jogada, senão nada vale a pena. Agora, se o meu filme tiver um conteúdo crítico, tudo bem. É a minha formação que está falando. [...] O negócio é não ter preconceito. Todos temos que restituir ao artista sua verdadeira função que é a de criar com amor e prazer385.

O filme fez grande sucesso não só no Brasil como no exterior. Na China, seu sucesso

foi tamanho que provocou uma excursão da dupla naquele país. Enquanto a crítica era

impiedosa ao dizer, entre outras coisas, que Nelson fizera um filme comercial para promover

a venda de discos da dupla, o público, talvez movido pela popularidade já alcançada pelos

músicos, acorria às salas para assistir à história de suas vidas. Calcula-se que mais de um

milhão de pessoas tenham visto o filme em apenas um ano. Para os padrões habituais de

freqüência de espectadores aos filmes brasileiros, esse número se constituía em verdadeiro e

inesperado sucesso de bilheteria.

385 Entrevista a Laura GREENHALD, Jornal da Tarde, 20/08/1979, São Paulo.

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Já Tenda dos Milagres é talvez o mais ambicioso desses filmes. O próprio romance

de Jorge Amado oferece um universo extremamente plural e uma larga possibilidade de linhas

de força que se cruzam na narrativa do filme: resistência e afirmação religiosa do povo negro,

submissão da burguesia ao colonialismo cultural do mundo desenvolvido, solidariedade dos

oprimidos e conflitos conceituais entre a inteligência progressista e o povo.

Em Jubiabá, outro romance de Jorge Amado, a estrutura narrativa é mais simples.

Mais uma vez, Nelson Pereira dos Santos reafirma o estilo que vem desenvolvendo mantendo

a vocação popular do autor literário nos mesmos moldes de uma dramaturgia que se rebela

contra os modelos, não recorre aos mitos, o filme submete a força religiosa à ação popular.

MEMÓRIAS DE UM CINEASTA

Entre Estrada da Vida e Jubiaba, Nelson Pereira dos Santos realiza Memórias do

Cárcere (1984), uma mudança inesperada, abrindo um parêntese na classificação apresentada

na fase anterior – que se referia a busca de um cinema de dimensão popular. Memórias do

Cárcere é mais uma adaptação de Graciliano Ramos e se reveste de um rigor formal que o

autor havia se distanciado nos últimos anos. A cada imagem corresponde uma intenção, os

ângulos escolhidos para expressar o seu desejo, sendo evitado o didatismo, aproximando-se

do virtuoso. Memórias do Cárcere tem a capacidade de sintetizar o que tem de melhor nas

suas experiências anteriores. Neste filme, Nelson Pereira dos Santos concentra a tradição

popular no estilo narrativo, guardando uma distância que impede a identificação do

espectador com o espetáculo, visando à reflexão, das imagens oferecidas. Na reestruturação

do plano original proposto por Graciliano Ramos atinge um resultado dramaticamente

eficiente e identificado aos seus pressupostos: dignificar o povo.

Memórias do Cárcere, a segunda adaptação literária de Graciliano Ramos em que

Nelson Pereira dos Santos irá comprovar que o cinema pode reivindicar a profundidade

atribuída à literatura tanto na narrativa concisa como através do domínio de sua linguagem.

Dessa forma, a adaptação dialoga não só com o texto de origem, mas com o seu próprio

contexto, inclusive atualizando a pauta do livro. Mais uma vez, a incursão no passado é

mediação para falar no presente.

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Em entrevista concedida a Suzana Schild386 Nelson Pereira dos Santos comenta o

processo de elaboração do roteiro:

O roteiro é um trabalho desligado do livro. É a sua parte que começa - escrever o filme.[...] É a fase de visualizar uma idéia. Eu tenho que ver para escrever, e eu só registro o que estou vendo. Deito, fecho os olhos, e começo a ver Memórias do cárcere.

A tarefa principal de Memórias do cárcere foi efetuar a síntese do livro, não só dos

episódios, como dos personagens e a sua transposição para a linguagem cinematográfica,

onde a câmera narra e não apenas mostra:

Memórias é interminável. A adaptação do livro, essa condensação. O trabalho de síntese, o livro tem não sei quantos personagens , eu acho que tem uns seiscentos personagens, e eu consegui reduzir para cento e pouco personagens. [...] Mas foi um trabalho grande, muito tempo de pesquisa, de resumo. Agora, o curioso é que o texto mesmo eu escrevi em vinte dias [...] porque eu já tinha lido tanto, tanto trabalho, que ficou fluente depois. Depois de me apropriar da história do Graciliano, eu escrevi uma história como se fosse minha mesmo387.

Nelson percebe a necessidade de estabelecer sua narrativa extraída do próprio texto.

Sublinhar algumas ações, inventar outras, recortar, fundir personagens, de modo a manter

sempre no epicentro a questão da resistência, por meio da sobrevivência da memória, tendo

como horizonte a liberdade. Memórias do Cárcere se constitui a partir dos manuscritos de

Graciliano Ramos ao passar dez meses na Colônia Correcional de Ilha Grande, em 1936,

preso pela polícia política de Getúlio Vargas, sob a acusação de pertencer a Aliança Nacional

Libertadora. Suas memórias, elaboradas em meio às ameaças de confisco e à carência dos

meios de produção, aparecem no filme como materialmente arrancadas das mãos da repressão

por diferentes estratagemas envolvendo a participação ativa do povo.

No encontro entre o escritor e o cineasta, como o que já havia ocorrido em Vidas

Secas, há uma equivalência de estilos, reitera-se um procedimento narrativo fundamental: a

gradação do ponto de vista na disposição das cenas para transpor a visão expressa na escrita.

No filme, esse procedimento resulta em recorrer aos recursos narrativos usuais de

campo/contra-campo, da escolha das prerrogativas da câmera, que narra e não apenas mostra

ao se definir o ângulo, a distância e o enquadramento que irão situar as personagens no

desenvolvimento da trama. Vidas Secas é sempre mencionado como filme-modelo da 386 Publicada na “Revista IBM”, ano VI, n° 18, setembro de 1984. 387 Apud entrevista Tunico AMÂNCIO p. 78.

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modulação do ponto de vista no cinema brasileiro. Memórias do Cárcere mesmo sem assumir

a narração em primeira pessoa do texto original, procura essa equivalência ao colocar a

câmera na linha dos olhos de Graciliano Ramos (Carlos Vereza) e, devolver, por meio do

corte, a sua imagem que exprime a reação diante do observado. Nos dois filmes percebe-se a

opção por um padrão apoiado na narração que utiliza procedimentos clássicos de continuidade

na busca de identificação entre personagem-platéia. Nelson maneja uma matéria já

sedimentada sob seu inteiro domínio para se comunicar com o público.

Essa indicação da presença reiterada do olhar de Graciliano Ramos estende-se à

fotografia do filme, dividida entre José Medeiros e Antonio Luís Soares, que segue a linha da

estrutura de narração e simples, sem efeitos, sensível e íntima ao se aproximar dos

personagens, ajuda a desenhar o painel de experiências que envolvem a coletividade no

cárcere. A câmera segue as personagens discretamente, todas elas transitam livremente.

Delimitados os estilos de câmera e de encenação, o filme tem sua narrativa estabelecida no

cruzamento do tom reflexivo, próprio a Graciliano, e a expansão da intensidade emocional

que o espetáculo do cinema estimula. A opção é a sutileza, as cenas de amor insinuadas, a

tortura sugerida pela imagem de um pé machucado, o óbvio é descartado assim como o

didatismo. A elaboração é sofisticada e cada personagem no filme – o anarquista, o

comunista, o militar, o trotskista – é apresentado na sua complexidade, o maniqueísmo fácil é

recusado. O comentário de Ismail Xavier exposto no artigo Graciliano herói, atesta o domínio

da matéria fílmica, executada com maestria por Nelson:

Escritor e cineasta estão do mesmo lado no plano político-ideológico – comungam no antifascismo, na crítica à exploração do trabalho, no repúdio a ditaduras a serviço do capital. Mas há uma diferença radical na atitude com que representam tudo isso. Se o escritor é intransigente ao avaliar a experiência, o cineasta se põe à vontade na composição do espetáculo com instância de consagração e, deste modo, oferece às platéias a catarse. Dentro desses parâmetros, o filme se realiza e é admirável a maestria de Nelson388.

Em relação à repercussão do filme, o público e a crítica são unânimes na sua

aceitação. As premiações nacionais e internacionais se sucedem. Não há recomendações nem

retoques a serem feitos, em Memórias do Cárcere tudo está em sintonia.

O CINEMA POSSÍVEL DOS ANOS 90

388 Filme Cultura, nº 44, abril-agosto, 1984. p.18.

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Na década que se inicia com o fechamento da Embrafilme, marcada por um grande

período de abstinência no cinema brasileiro389, Nelson Pereira dos Santos é um dos primeiros

cineastas a quebrar o jejum imposto pelas mudanças na política cinematográfica no País e

realiza A terceira margem do rio (1993-94). O filme é baseado nos contos A terceira margem

do rio, A menina de lá, Os irmãos Dagobé, Fatalidade e Seqüência do livro Primeiras

Estórias, de João Guimarães Rosa, um dos mais conhecidos escritores brasileiros. A terceira

margem do rio é a estrutura dorsal da trama na qual são abrigados os outros contos, dispostos

como episódios se parados e não relacionados. Nelson consegue a proeza de colocar grandes

trechos do texto de Guimarães Rosa na boca das personagens, representados por atores quase

desconhecidos, sem que as falas pareçam artificiais, criando um ambiente psicológico bem

afinado com o clima dos contos do autor literário. No entanto, não foi muito bem recebido

nem pela crítica e muito menos pelo público. Ao agregar num mesmo roteiro cinco contos

diferentes, transformando-os numa só história abre horizontes narrativos muito diversos entre

si. A partir da sua metade, quando passa a ser ambientado na periferia de Brasília com a

intenção de promover uma grande alegoria da sociedade brasileira, ocorre um desnível na

condução da narrativa. O questionamento feito é sobre o uso da alegoria: a alegoria só

funciona com o que está em concordância com o que se pretende dizer, e se esse acordo não é

estabelecido a sua eficácia dramática é comprometida.

A terceira margem do rio retoma alguns pontos abordados nos filmes anteriores de

Nelson formando uma cadeia de citações que reforçam certas posições do autor. A presença

de Maria Ribeiro no elenco é uma referência à Vidas Secas. Faz uma alusão à seca para que

os poderes de Nhinhinha sejam referidos e remetam aos poderes religiosos evocados em O

Amuleto de Ogum para proteger Gabriel. A migração também acontece, como em Vidas Secas

e O Amuleto de Ogum, ressignificada reflete as mudanças ocorridas nos mundos urbano e

rural, testemunho das conseqüências do progresso e da modernização. A cidade não é a terra

prometida ao migrante, Nelson seguindo Rosa privilegia o interior, e suas personagens

transpõem a árida realidade sócio-econômica através da construção de uma atmosfera de

sonho e magia em que se debatem entre as forças do bem e do mal.

389 Na década de 1990 o cinema brasileiro foi dado como estagnado. Mas, como aconteceu outras vezes em sua história, ele sobreviveu. A esse processo ocorrido nos anos 90, em que o cinema brasileiro ressurgiu e atingiu certa estabilidade deu-se o nome de “retomada”. Cf. Lúcia NAGIB. O cinema da retomada. São Paulo: editora 34, 2002; Luiz Zanin ORICCHIO. Cinema de novo – um balanço crítico da retomada. São Paulo: Estação Liberdade, 2003.

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Pouco depois de finalizar A terceira margem do rio, Nelson Pereira começou a

trabalhar num projeto do Instituto do Filme Britânico para comemorar o centenário do

cinema. O BFI (British Film Institute) encomendou filmes a diretores de várias

nacionalidades que retratassem a história do cinema em seus respectivos países. Em

depoimento prestado a Lúcia Nagib, ele esclarece:

Eles escolheram como tema o cinema da América Latina, pois, como sempre, eles não vêem o Brasil, a Argentina ou o México, vêem a América Latina,[...] Eu aceitei fazer e, em lugar de um documentário, preferi fazer uma ficção. E escolhi um momento expressivo da história do cinema na América latina, que foi o momento do melodrama, quando dispunha-se de uma estrutura econômica para a produção e distribuição390.

Em lugar de filmar um documentário, como foi a abordagem adotada pela maioria

dos diretores, ele decidiu fazer um drama sobre a idade de ouro do melodrama Latino

Americano391:

Cinema de Lágrimas (1995). O projeto foi inspirado no livro Melodrama: Um

cinema de lágrimas da América Latina (1992) da professora e pesquisadora de cinema Sílvia

Oroz, que detalhou a história e sucesso do que freqüentemente eram chamados filmes para

chorar.

Nelson Pereira dos Santos utilizou o livro como base de referência para seu filme

ficcional sobre um ator-roteirista homossexual brasileiro já maduro chamado Rodrigo (Raul

Cortez) obcecado pelo sonho recorrente sobre um trauma de infância – o suicídio de sua mãe.

Para compreender o ato materno, ele decide encontrar o filme que ela viu pouco antes de

matar-se. A pesquisa o levou, e a um jovem assistente (André Barros), do Rio para a Cidade

do México, onde despenderam vários dias assistindo clipes de melodramas Mexicanos e

Argentinos na cinemateca da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM). Talvez

como resultado do romance e paixão melodramáticos que ele vê na tela, Rodrigo termina

apaixonando-se por seu jovem assistente.

Como nos papéis dos melodramas que assistem, o ator e seu assistente são

aprisionados num enredo de amor tumultuado, tragédia e perda. Após recusar as ofertas

amorosas de Rodrigo, o jovem finalmente separa-se dele. Mais tarde, do seu leito de morte no

hospital, escreve contando que é doente terminal, fugitivo de traficantes de drogas e da

390 Lucia NAGIB. O Cinema da retomada: depoimentos de 90 cineastas dos anos 90. São Paulo: Editora 34, 2002, p.435. 391 Entre os anos 1930 e 1950 ocorre a Idade de Ouro do melodrama Latino-Americano, esteio dramático que tornou possível a associação, no cinema, de atitudes épicas ao drama íntimo.

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polícia, e avisa que no momento em que Rodrigo receber sua carta ele estará morto. Também

relata que finalmente localizou o tão procurado melodrama, o qual copiou e enviou para

Rodrigo em vídeo, o filme argentino, Armiño negro (1953) de Carlos Hugo Christensen. Um

filme trágico sobre um garoto que se suicida após ficar sabendo que sua mãe é uma prostituta.

Após assistir ao vídeo, Rodrigo compreende que sua mãe decidiu não arriscar na possibilidade

de desfecho semelhante, suprimindo a própria vida.

A busca de Rodrigo pelos arquivos de cinema é o verdadeiro móvel do melodrama,

pleno de segredos de família, um suicídio, um caso de amor não correspondido, uma carta

premonitória contendo a resposta de um enigma, e a morte por interesse amoroso.

A pesquisa pelos arquivos também é um instrumento ficcional que permite que sejam

mostrados breves clipes, a maioria no original, de filmes em preto-e-branco, evocativos da era

do estúdio. Com isso, Nelson Pereira dos Santos presta tributo a uma geração de diretores,

cinegrafistas, e estrelas que se tornaram famosos internacionalmente em função de seus

trabalhos em melodramas e adota uma posição revisionista em relação ao gênero que, como a

chanchada brasileira, foi freqüentemente criticado pelos autores dos novos cinemas por sua

associação a Hollywood.

Mas, Cinema de lágrimas também contém muitas referências ao Cinema Novo, as

quais freqüentemente se justapõem aos melodramas. No filme, Nelson Pereira dos Santos

aponta para a coexistência entre essas tendências. Usando de recursos de elementos de

arquivo em dois momentos ele incorpora pequenos pedaços e trechos de leituras sobre

Glauber Rocha e sobre o “cinema imperfeito” cubano. Essas referências são introduzidas

através da discussão em sala de aula de um professor da UNAM; nos planos que mostram os

corredores decorados com posters de produções do Cinema Novo e nos banners fora da

cinemateca que fazem alusão a esse movimento. Na cena final do filme, Rodrigo sai de uma

projeção de Armiño negro, o filme associado a sua mãe, para uma projeção do Deus e o diabo

na terra do sol (1964), de Glauber Rocha, que assiste com estudantes num grande auditório.

Pode-se inferir que o filme de Nelson Pereira dos Santos é uma tentativa de

compreender o cinema Latino Americano enquanto dialética entre dois momentos diferentes

na história do cinema de dois diferentes tipos de filme, um dos quais (melodrama) obteve

grande sucesso com platéias nacionais enquanto o outro (Cinema Novo), foi menos popular e

melhor recebido em platéias estrangeiras. Ele não demonstra privilegiar nem um nem outro, e

até sugere existirem afinidades entre eles. Aponta para um espaço de conciliação, já que

alguns pesquisadores, a esta linhagem Sílvia Oroz se integra, entendem que o distanciamento

do público ao Cinema Novo ocorreu devido à forma hegemônica adotada pelo movimento,

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em que se excluíram outras formas de representação que não fossem a relacionada à “Estética

da Fome”, e que não tivesse a ver com as estruturas intrínsecas do subdesenvolvimento. Sílvia

Oroz sustenta a posição de que o povo deixou de ir ao cinema a partir do dia em os cineastas

passaram a analisar de forma realista a tragédia do povo brasileiro e explica essa situação pelo

viés da emoção: “O povo foi considerado tema mais desconsiderado como beneficiário, foi

privado da emoção”.392

Cinema de lágrimas, no contexto da filmografia do autor, destaca-se como um

trabalho de menor expressão, mas, em perspectiva, indica uma complexa evolução do seu

pensamento sobre o cinema. Sintetiza as qualidades opostas constituintes de seus filmes -

diversão e experiência auto-reflexiva, emoção e crítica social -, reconciliando o conflito entre

eles. Servindo como uma espécie de resgate do que não foi contemplado anteriormente,

revisão do que sofreu alteração e também como retrospectiva de sua obra, a qual, como já foi

anteriormente mencionado neste texto, envolve muito da história do filme brasileiro.

NOVO MILÊNIO: TELEVISÃO, DOCUMENTÁRIOS E DE NOVO CINEMA

Na virada do milênio, comemora-se o centenário de Gilberto Freyre, sociólogo

brasileiro de reconhecimento internacional devido aos estudos que fez sobre a cultura e a raça

brasileira.

A rede de televisão GNT propõe a Nelson Pereira dos Santos para comemorar o

centenário do sociólogo a realização de uma série de documentários baseada no clássico da

sociologia brasileira: Casa grande e senzala (1933).

A série é estruturada seguindo as determinações de um filme educativo, ancora-se na

pesquisa, usando uma narrativa derivada da cultura nordestina onde um contador de histórias,

o especialista em Gilberto Freyre – Edson Nery Fonseca, conversa com sua jovem assistente,

dando ênfase na cultura oral e levando para o gênero documentário elementos ficcionais. As

locações acontecem em Recife e Olinda, cidades em que Gilberto Freyre viveu, na

Universidade de Columbia, onde estudou como aluno de graduação e em Lisboa e Coimbra,

onde deu prosseguimento à sua pesquisa sobre o Brasil.

392 Esta frase foi retirada da entrevista concedida à pesquisadora em agosto de 1977, na ocasião da realização da pesquisa para a dissertação do mestrado “Quando o cinema virou samba – representações de identidade no moderno cinema brasileiro”.

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Ainda sob a égide das efemérides, após assistirem à série da GNT, os filhos de outro

ilustre pensador do Brasil, o historiador Sérgio Buarque de Holanda, convidam Nelson Pereira

dos Santos para realizar um filme a partir da obra do pai. Raízes do Brasil (1936), ontológico

tratado sobre a constituição do ser brasileiro, que comemorava o seu centenário no ano de

2002. Assim, Raízes do Brasil – uma cinebiografia de Sérgio Buarque de Holanda (2004) é

realizado. Constituído em duas partes, cada uma delas convocando à sua completude, compõe

uma tese curiosa e ousada, que dialoga com certa facilidade com a espinha dorsal do conjunto

da obra de Nelson Pereira dos Santos, uma obra que quer mostrar um Brasil, que por algum

motivo não está clarificado, e que é importante em si mesmo, não por seu valor de exotismo,

mas por seu valor oculto e subjacente, o valor a ser desvendado pelo espectador.

Na primeira parte o documentário mostra uma série de descrições intimistas feitas

pelos filhos, netos, esposa e amigos, discursos de descrição subjetiva. A segunda parte é

dedicada ao discurso de objetividade científica espelhando trechos de Raízes do Brasil,

estruturado como filme educativo aos moldes de Casa Grande e Senzala, entrecortados com

narrações da biografia de Sérgio Buarque de Holanda, feita por ele mesmo, e lida por filhos e

netos. Em paralelo a essas leituras, imagens da época. Resulta desse filme, a síntese

promovida pelo conjunto das duas partes, o discurso afetivo e o da intelligentsia sobre o

mundo, confirmando elementos recorrentes na obra de Nelson Pereira dos Santos: o mundo se

forma entre a descrição sentimental e a descrição sistemática.

Brasília 18%, (2006) marca a sua volta ao cinema de ficção após 11 anos, período

em que se dedicou a realização de documentários. Brasília 18% tem seu título composto por

número, tal qual a sua obra inaugural Rio 40 Graus, a história se passa durante três dias entre

os meses de julho e agosto, quando o clima em Brasília é muito seco atingindo os 18° na

umidade relativa do ar. Ao mesmo tempo, o título do filme é sugestivo de algumas referências

e comemorações: este é o seu décimo oitavo filme de ficção em longa-metragem e a ação do

filme se desenrola na Capital Federal, Brasília. É neste ano também que se comemoram os 50

anos de Rio, 40 Graus, cuja ação acontece na então Capital Federal do País, o Rio de Janeiro.

Os títulos desses filmes remetem à condição atmosférica do ar (temperatura e umidade) e

trazem números e nomes cidades nos seus títulos. Associações podem ser feitas com relação a

esses números. 18 não poderia ser um percentual a ser pago a alguém? 40 graus não remeteria

ao caldeirão político que esquentava o Rio de Janeiro em meados dos anos 1950?

Na verdade, o clima do planalto central é estranhamente semi-árido, 18%. É dito que

na cidade-capital, no inverno, desovam-se os cadáveres no planalto, acobertados pelas chuvas.

No verão, devido à seca, a polícia começa a encontrar os corpos. É esse o mote inicial de

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Brasília 18% - um corpo de uma moça, uma assessora parlamentar é encontrada morta. Na

trama, Olavo Bilac (Riccelli) é um médico legista chamado de Los Angeles para elaborar o

laudo de um corpo encontrado. Morte que pode ocultar um crime político para acobertar

escândalos de corrupção. Suspeita-se que o corpo seja de Eugênia Câmara (Karine Carvalho),

uma jovem assessora parlamentar desaparecida e que estaria prestes a denunciar fraudes

envolvendo políticos poderosos. A intenção dos políticos é aliciar o médico para que ele

assine logo o laudo implicando a culpa no namorado da moça, Augusto dos Anjos (Michel

Melamed), um jovem cineasta, que a teria matado depois de ter visto um vídeo em que ela

fazia sexo com dez homens num inferninho. Enquanto isso, Olavo Bilac tem alucinações com

sua falecida esposa (Bruna Lombardi) e com a moça assassinada.

Para se compreender Brasília 18% é necessário ser complacente com o protagonista

da história, que não tem as características do herói romântico, assim como é preciso entender

o lócus Brasília como pano de fundo, sem pretender reduzir o filme à corrupção em Brasília

No decorrer do filme Olavo Bilac percorre os meandros de Brasília e não se mistura

a nenhum deles. Afirma que seu trabalho não é político, é meramente técnico. Essa atitude

asséptica de não tomar conhecimento de não se imiscuir acaba-o por levá-lo á uma

encruzilhada e conseqüentemente ao fracasso da sua missão, sob chantagem assina o laudo e

torna-se cúmplice de toda a situação que o enredou. Bilac que se pretendia fora da estrutura de

poder, mas a sua omissão coloca-o na base dessa estrutura, sente-se vítima ao ceder à pressão.

O filme expõe a sua covardia, mas não o julga. Brasília 18% é um filme de gênero de

mistério, de regras narrativas clássicas, com forte componente onírico, que é trazido ao filme

para ilustrar o distanciamento abismal da realidade de Brasília com o seu projeto modelo do

racionalismo e da funcionalidade. Seus enigmas não são solucionados, não há teses ou

certezas a serem comprovadas, há somente versões a serem contrapostas.

O filme não foi bem com o público e não despertou muito o interesse da crítica, em

que pesem as expectativas colocadas sobre ele. Na revista Contracampo Daniel Caetano

assina uma crítica sobre o filme, em que afirma:

O filme conseguiu um fato incomum: a grandeza e a integridade de Brasília 18% são inversamente proporcionais às do universo retratado. Conseguiu isso do seu modo: bem humarado e amargo; sendo ao mesmo tempo a narração de um pesadelo de um personagem em confronto com a realidade racional e um filme de mistério que não se decifra; com seus personagens de nomes bem conhecidos[...]; com uma fotografia criada sem medo do escuro[...]; fazendo, ao mesmo tempo, uma profissão de fé na importância do cinema buscar a realidade [...] e, ao mesmo tempo, um alerta à impossibilidade desse objetivo; mostrando com uma emoção notável os movimentos e os corpos com beleza incomum no olhar; descobrindo o

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ambiente tipicamente brasiliense dos interiores de carros e escritórios; a partir do seu modo de olhar experiente, tranqüilo, sem firulas; a partir das atuações irretocáveis do elenco, é assim que o filme mais recente de Nelson Pereira dos Santos se mostra raro, impressionante393.

dededede Paraiso Juarez Paraiso Juarez Paraiso Juarez Paraiso Juarez 394∗∗∗∗

Nós temos uma tarefa a cumprir: a de vivermos no mundo em que nascemos e de expressá-lo no que realizarmos; tanto faz se o amamos, ou se o sofremos. Em se tratando de um mundo bárbaro, como parece ser este nosso, indiferente aos valores espirituais e estéticos, como afirma Herbert Read, a arte contemporânea valerá como protesto.

Juarez Paraiso

A rigor, não foi o menino nascido em 1934 em Arapiranga, município de Minas de Rio

de Contas, quem escolheu a arte como caminho, para trilhar na vida. Foi a própria Arte quem o

escolheu para representar, junto com outros grandes mestres, o espírito do nosso século.

Que outra razão, senão a conjunção dos astros com as forças telúricas, - Virgem,

como signo do zodíaco e Oxossi, como santo - aliada à educação rigorosa e formação ética

exemplar, poderia determinar que Juarez Marialva Tito Martins Paraiso, o terceiro filho (entre

quatorze) do professor Isaltino Concécio Paraíso, saísse das barrancas do Rio de Contas para,

vencendo as maiores dificuldades, se tornar um mestre respeitado e um grande artista na

capital, e para muito além dela? 393 Contracampo Revista de Cinema n° 70 394 Paraíso Juarez é o título de um documentário feito pelo fotógrafo e documentarista nascido em Budapeste, Hungria, Thomaz Jorge Farkas, no qual o artista plástico Juarez Paraíso conta como realizou sua obra magistral de decoração da sala de espera do Cine Tupy, em 1968. Tempos depois, o Cine Tupy foi vendido e o comprador, incapaz de reconhecer no trabalho uma obra de arte – a qual faz alusão à evolução da comunicação de massa, à cultura (em especial, ao cinema) e à tecnologia - mandou destruir tudo ao invés de desmontá-la, como era possível fazer, e entregá-la ao autor, ou a tantos que admiram e respeitam o artista e sua arte, e que se sentiriam honrados em preservá-la. 395 Entrevista concedida a Marise BERTA em 11/08/2007.

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Felizmente, a arte não faz distinções, não recruta ninguém por critérios de classe,

raça ou etnia. Por outro lado, exige do verdadeiro artista que a ela se alia, dedicação

exclusiva, coerência, espírito aberto e solidário, sensibilidade social e desapego aos

modismos, “tendências” e apelos comerciais. Tudo isso a Arte encontrou em Juarez e, talvez

por isso, ele pôde como ninguém, experimentar de todas as suas vertentes – do acadêmico-

realista clássico ao desenho digital - e dominá-las, sem a preocupação de criar um estilo ou

especializar-se apenas em uma delas. Seu estilo é ditado pela liberdade de exercitar-se em

todas as técnicas – pintura, fotografia, escultura, desenho, litogravura, xilogravura, instalação,

murais, arte digital, etc. – com igual desenvoltura e, não raro, superpondo essas técnicas ou

recombinando-as.

Primeiro, ainda menino, começou a copiar, ampliando, os heróis fantásticos das

histórias em quadrinhos das revistas: Gibi, Globo Juvenil e Guri. Este contato inicial deixaria

para sempre sua marca, visível nas linhas sinuosas e sensuais de suas esculturas e entalhes, e

mesmo nas fotografias e desenhos eróticos de figuras humanas. Nesses trabalhos - posteriores

ao seu período clássico na EBA - a influência do quadrinho torna-se explícita pela utilização

da perspectiva exagerada, pela valorização do primeiro plano, pelo enquadramento do detalhe.

Estes termos, tão familiares ao fotograma da arte cinematográfica, são perfeitamente

aplicáveis a grande parte da obra de Juarez Paraíso.

É curioso como, no final dos anos 40 e início da década de 1950, enquanto Juarez

apenas acabava de entrar na Escola de Belas Artes, Nelson Pereira dos Santos, em São Paulo,

esteve inclinado, ou pelo menos manifestou ao amigo Luís Ventura o desejo de trabalhar com

a pintura e o desenho. Além de Luís Ventura, Nelson era amigo do artista plástico Otávio

Araújo e faziam parte de um grupo capitaneado pelo pintor Bonadei. Todos se reuniam uma

vez por semana numa sala do MASP, cedida por Pietro Maria Bardi para, sem compromisso

profissional, discutir sobre teatro. Participavam também do Clube dos Artistas e Amigos da

Arte que realizava trabalhos voltados à pintura, à literatura e à poesia. Anos depois, Otávio

Araújo diria que o desejo que Nelson tinha de aprender pintura e desenho talvez viesse de sua

necessidade de compreender aquilo, lembrando que também “o Eisenstein desenhava”.

Aos dezesseis anos Juarez Paraíso vai estudar na Escola de Belas Artes, onde passa

doze anos, envolvido com o realismo clássico, única concepção de arte aceita pela Escola. É

obrigado a abandonar, muito a contragosto, - o professor Raimundo Aguiar recomenda a seu

pai, que o faça desistir de copiá-los - seus heróis do quadrinho, com suas cores vibrantes, seus

movimentos excessivos, sua composição assimétrica, opostos à tradição acadêmica. Seus

primeiros mestres, adotados, sobretudo por afinidades estilísticas menos ortodoxas: Alex

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Raymond, Hogarth e Will Eisner são substituídos na EBA por outros, fiéis ao academicismo,

porém de grande importância em sua vida: Presciliano Silva, Alberto Valença, Mendonça

Filho – que Juarez considera um verdadeiro pai espiritual – Raimundo Aguiar e sua filha

Nilza, Ismael de Barros e Emídio de Magalhães. Esse convívio lhe deu o domínio da técnica,

rigor e disciplina de trabalho, mas não a satisfação da criação livre, a espontaneidade do

gesto, que ele só viria a encontrar com o modernismo que, fora do alcance da Escola,

fervilhava então por toda parte.

Pela minha habilidade, cheguei a ser convidado para ser presidente do Patrimônio acadêmico-realista da EBA. Aí descobri um cara chamado Jacques Vion, outro chamado Picasso, Georges Braque e Hieronymus Bosch, por quem fiquei realmente fascinado e cujo trabalho não tinha nada a ver com o que eu fazia. Eu me perguntei: estou aqui fazendo o que, em meio a toda essa pinacoteca meio romântica, essa herança realista neoclássica? Havia rumores na cidade a respeito de um cara chamado Mário Cravo, afrontando a todos com seus Exus de pênis imensos. Comecei a me acercar disso e assim fui me aproximando da arte moderna396.

Ao invés de dar continuidade ao trabalho acadêmico redutor, vigente na Escola de

Belas Artes, como era a vontade de seus mestres, Juarez se rebela - ao lado de Riolan

Coutinho, Maria Célia, Mário Cravo Jr., Adam Finerkaes, Henrique e Jacyra Oswald,

Mercedes Kruschewsky e João José Rescala, nessa época o diretor - contra aquela concepção

neoclássica e restritiva, e incorpora os princípios da arte moderna às disciplinas da EBA.

O neo-realismo, extensão natural do realismo francês, já era amplamente difundido e

cultuado em todo o mundo desde 1949, e constituiu-se numa revelação - quase revolução - de

que era possível, tanto no cinema como nas artes plásticas, obter produtos de grande

qualidade sem copiar modelos datados e sem precisar de grandes aparatos, equipamentos

caros, tecnologias inacessíveis. O cinema e as artes plásticas buscam inspiração nas ruas, se

espelham no próprio povo e podem ser feitos com o material disponível e utilizando-se de

todas as técnicas possíveis. Este legado do neo-realismo francês chega à Bahia com algum

atraso, mas é logo absorvido avidamente pelos artistas descontentes com o statu quo.

O rompimento do isolamento cultural da Bahia em relação ao que acontecia no

mundo em termos de artes plásticas, só poderia acontecer com a assimilação do arcabouço

modernista, que repudiava a cópia em favor de uma interpretação livre e autônoma, onde o

próprio processo criativo demandava uma percepção mais abrangente e uma ênfase maior nos

estudos da composição, que possibilitavam um espectro muito amplo de novas experiências.

396 Entrevista concedida a Marise BERTA em 11/08/2007.

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Picasso fez (de) tudo. Contrariei os artistas profissionais. Fazer uma só coisa é uma divisão falsa, coisa de mercado. Um artista tem de dominar todas as linguagens, todos os recursos, pois cada técnica é uma expressão. Teve um crítico que disse que meu maior pecado é fazer tudo bem397.

A década de 60 é particularmente favorável à disseminação de novos ares na arte

baiana pela sucessão de fatos que impulsionaram o reconhecimento de Juarez na cena artística

nacional. Lina Bo Bardi inaugura o Museu de Arte Moderna da Bahia; Juarez organiza aqui,

duas Bienais Nacionais de Artes Plásticas; também comanda a Galeria Convivium e é diretor

artístico da Revista da Bahia398. Todas essas atividades, além de participações em feiras de

arte, simpósios, debates e exposições, fornecem a Juarez a oportunidade de relacionar-se

diretamente com os mais importantes artistas e críticos de arte da Bahia e do Brasil e lhe

permitem reciclar e consolidar seus conhecimentos teóricos e sua habilidade prática. Seu

belíssimo e revolucionário trabalho de ambientação da sala de espera do Cinema Tupy é de

1968. Mistura de mural e tratamento espacial arquitetônico, Juarez combina influências da

arte barroca pela utilização das silhuetas sinuosas, a uma estrutura cênica que surpreende e

envolve os espectadores com sua temática de evolução da comunicação e tecnologia, que

ocupa todo o espaço e se reflete ampliada pelos espelhos recortados, de forma a multiplicar os

sentidos.

É provável que o recrudescimento dos atos de exceção da ditadura tenha levado o

artista de volta ao figurativismo, no final dos anos 60 e início da década de 1970, para

representar com vigor surrealista e erótico suas inquietações políticas e sociais, e explicitar

sua luta contra os preconceitos sexuais e religiosos.

Foi na década de 70, mais precisamente em 1976 que, quase acidentalmente, Juarez

conhece pessoalmente Nelson Pereira dos Santos.

Nelson havia filmado alguns artistas, e Jorge Amado lhe pediu que fotografasse

Juarez ao lado de um mural que este havia executado no Centro Administrativo399. O

397 Claudius PORTUGAL (org.). Juarez Paraíso Desenhos e Gravuras. Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado; COPENE, 2001. p. 69-70. (Casa de Palavras, Série Desenhos, 5) 398 Rebelando-se contra a manipulação de dados históricos, Juarez afirma que na Bienal recebeu ordens de um dos responsáveis para censurar quadros. Desobedeceu e foi preso por trinta dias. Na outra, recebeu do próprio governador, ordem para retirar obras, e a Bienal deixou de existir. Quanto à Revista da Bahia, diz, quem a fechou “não foram os militares, mas a administração”. E termina se queixando da indelicadeza da Universidade em não explicitar que o acervo (mais de quarenta obras) da galeria Convivium lhe foi doado por ele. In: Claudius PORTUGAL (org.). Juarez Paraíso Desenhos e Gravuras. Op. Cit., p.70. 399 Jorge AMADO. Navegação de cabotagem: apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei. Rio de Janeiro: Record, 1993, p.459. Em Navegação de cabotagem, espécie de livro de memórias, Jorge Amado narra o seu empenho, telefonando pessoalmente ao governador Antônio Carlos Magalhães, para incluir Juarez

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problema da saída de Jards Macalé do filme Tenda dos Milagres, que Nelson estava rodando

em Salvador, onde ele fazia o papel de Pedro Arcanjo, era recente. O filme estava órfão de

seu ator central e era urgente que se encontrasse alguém para substituí-lo. Depois, revendo o

filme na residência de Jorge, ao ver a imagem de Juarez na tela, como num estalo, Nelson e

Jorge percebem imediatamente sua semelhança com o personagem e o convidam a fazer parte

do elenco do filme, baseado no livro de Jorge Amado.

Juarez aceitou a proposta, apreensivo por não possuir nenhum atributo especial de

ator, e externou essa preocupação. Nelson lhe garantira que “não queria um ator que

carregasse os cacoetes de um ator profissional”. Ele seria Pedro Arcanjo e ponto final.

A simpatia que emanava de Nelson, e a atenção que ele dedicava a todos

indistintamente, aplacaram de vez todas as apreensões e minimizaram a timidez de Juarez

diante das lentes.

Eu participei do filme com envolvência (sic) afetiva, com envolvência emocional. Porque eu nunca fui ator400... então, teria que ser eu mesmo e, justamente, o bom pra mim foi isso, nessa experiência. O Nelson disse para mim: você não precisa atuar, seja você mesmo. Pedro Arcanjo se parece muito com você, com sua vida! Jorge Amado me contou como foi sua vida aqui na Bahia, sobre essa coisa do preconceito que existe muito aqui, às vezes difícil de ser identificado porque está camuflado, portanto, seja você mesmo. E eu tentei ser eu mesmo401.

Essa história parece coroar a ligação que Juarez sempre teve – desde a infância,

desde o tempo dos quadrinhos – ainda que intuitivamente, com o fotograma, e se concretizou

meio por acaso, pois nunca passou por sua cabeça a idéia de atuar no cinema.

Tudo começou, como foi dito, quando o músico e compositor Jards Macalé, que

fazia o papel de Pedro Arcanjo no filme, se desligou do elenco por questões pessoais e Nelson

foi obrigado a improvisar, fazendo dois personagens. Um Pedro Arcanjo jovem (Jards

Macalé), e outro mais maduro que seria interpretado por Juarez Paraíso.

Com o afastamento de Jards Macalé do elenco, surgiu o impasse sobre o que deveria

ser feito em tal situação. Como substituir um ator por outro, sem ter que refazer todas as cenas

filmadas pelo primeiro? Assim surgiu a idéia de dividir a vida de Pedro Arcanjo em dois

tempos distintos, artifício esse que não ocasionaria grandes prejuízos na continuidade e

compreensão do roteiro.

Paraíso, militante de esquerda, à lista de artistas que tiveram seus trabalhos compondo os novos edifícios públicos no Centro Administrativo. 400 Nikita Paula menciona a participação do não ator no cinema. Cf. Vôo cego do ator no cinema brasileiro: experiências e inexperiências especializadas. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: FUMEC, 2001. 401 Apud depoimento a Marise BERTA.

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Na quase totalidade das tomadas utilizou-se como cenário as ruas e casas do

Pelourinho, Terreiro do Bogum e Cidade Baixa (Órfãos São Joaquim).

Juarez diz que sentia alguma dificuldade em decorar os textos porque muitas vezes

Nelson não os entregava com antecedência suficiente, e ainda os modificava na hora de gravar

as cenas. Sua experiência como professor lhe permitiu sair-se razoavelmente bem da tarefa.

Segundo Juarez, todas as noites Nelson se encontrava com Jorge Amado, na casa deste, para

discutirem os detalhes de alguma cena, anotava tudo e levava o calhamaço para construir e

adaptar os textos que eram distribuídos aos atores. Muitas vezes, o próprio Jorge Amado

estava presente no set de filmagens402.

Nelson tinha um comportamento sempre afável e cortês, “uma pessoa simples”,

como o define Juarez, sempre respondendo com tranqüilidade e precisão às questões

colocadas pelo elenco, como a formulada por Juarez a respeito do fato dele utilizar sempre a

mesma roupa em todas as cenas. Nelson lhe disse para não se preocupar, pois Pedro Arcanjo

era pobre.

O personagem, portanto, foi construído a partir da própria experiência de vida de

Juarez, que, como Pedro Arcanjo, também tinha sido pobre e sofrera com preconceitos por ser

mulato, e das conversas com Jorge Amado sobre Manoel Quirino, que parece ter inspirado

Jorge para a criação de Pedro Arcanjo.

Fazer um personagem do espaço sagrado do candomblé não foi um problema para

Juarez porque, apesar de não ser um seguidor ou de professar qualquer religião, ele sempre

considerou a importância de todas elas.

O que eu sempre fiz foi respeitar (o candomblé). Para mim, todas as religiões são iguais. Professar, eu professei por condicionamento ditatorial da região e da família. Não acredito que haja uma religião. Há uma, no sentido da convergência. Todas são compatíveis. Então, pra mim foi fácil (fazer Pedro Arcanjo), eu sempre respeitei, sempre aceitei. Não sou de candomblé, mas respeito o pessoal de candomblé e sei que merece respeito403.

Para fazer o filme de Nelson Pereira, Juarez além de ler o livro de Jorge Amado,

vivenciou a ambiência do romance, pois ele mesmo morou no Pelourinho, anos antes, numa

sala alugada na Rua 28 de Setembro, zona do meretrício apelidada de “mangue”, convivendo

em suas ladeiras e ruas estreitas com a comunidade negra do Pelourinho e da Barroquinha, no

final da Baixa dos Sapateiros. Tinha amigos e alunos moradores da área que eram adeptos e

402 Ibid. 403 Ibid.

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freqüentavam os terreiros de candomblé. Ao representar Pedro Arcanjo, Juarez não sentia

representar alguém estranho ao seu mundo.

Era um ambiente muito conhecido meu [sic]. Convivi com a comunidade negra do Pelourinho que era 90%. Hoje o Pelourinho não tem nada a ver com o que era. O que houve ali, eu acho que foi uma irresponsabilidade, porque no fim não existe mais a comunidade original, não sobreviveu ninguém [...] porque é assim que se faz, se expulsa para a periferia. [...] Era uma comunidade íntegra, espetacular. Para desmanchar aquilo, você deve entender que houve uma violência muito grande do ponto de vista social, não é? Não se desapropria ninguém assim do seu habitat. Quando se faz isso, se está matando as pessoas, não é? Em função de um turismo cultural que não existe404.

Juarez contribuiria ainda – não mais como ator, mas como artista plástico – em outro

filme de Nelson, Jubiabá, envolvendo-se com os cenários da primeira etapa da produção,

ainda quando esta estava sediada em Salvador, antes do deslocamento para a cidade de

Cachoeira. Seu envolvimento no filme também se deu pela via do companheirismo, ajudando

na finalização dos desenhos dos figurinos criados pela companheira de vida e de arte, Márcia

Magno.

Depois disso, a sua intervenção no cinema, se dá através do seu incondicional apoio

à Jornada de Cinema da Bahia, participando como jurado, através de doação de obras para a

premiação e na montagem das exposições temáticas promovidas pelo evento.

Nos anos 1990, com o retorno de Roland Shaffner405 à direção do Instituto Goethe,

Guido Araújo preparou um grande evento rememorando os anos 1970 em Salvador,

enfocando a vida política e cultural da cidade e a germinação da Jornada de Cinema, Juarez

fez os cartazes e a curadoria da exposição.

Hoje, seu tempo é dividido entre os afazeres de artista e professor, aprofundando

suas pesquisas sobre gravura em metal e em lâminas de linóleo, inovando ao utilizar o clichê

fotográfico, e reintroduzindo a água-forte e a água-tinta. Dedica-se a ampliar suas pesquisas

sobre escultura e criação de objetos utilizando cabaças e sementes, iniciando a seguir seus

trabalhos de desenho digital, sem deixar de produzir ao mesmo tempo suas pinturas,

esculturas e murais monumentais.

No passo a passo da vida, Paraíso Juarez, senhor do perfeito manejo de transformar a

natureza em arte e professor por vocação, participou de centenas de exposições, recebeu

404 Apud entrevista a Marise BERTA 405 Roland Shaffner dirigiu o Instituto Goethe (ICBA), entre 1970 e 1977, exerceu o papel de agitador cultural em Salvador, incentivando jovens artistas, promovendo a cultura local, além de divulgar o melhor da cultura alemã.

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incontáveis prêmios, somando mais de uma dezena de títulos acadêmicos que lhe conferem

reconhecimento, dos quais se destaca o diploma de Professor Emérito da Universidade

Federal da Bahia, recebido em 1996. Com paixão e poesia recupera a sua trajetória:

Vivi a Bahia dos mil mistérios, a Bahia de Rubem Valentim, Helio Oliveira e de Procópio, cheia de Orixá e revelações.

Foi quando convivi com Cosme e Damião e me perfumava com o incenso dos santos.

Vivi a Bahia de José Maria, de Cosme de Farias e de Cuica de Santo Amaro,

quando conheci as almas penadas da madrugada, os eternos mendigos da carne e do espírito, a violência policial,

as prostitutas e os prostíbulos, a Bahia da madrugada, escura e infindável.

Vivi a Bahia da boemia, a Bahia de Sandoval, do Tabaris e do Rumba Dancing, do Pigalle e do 63,

uma Bahia de prazeres e de perigos sedutores. Vivi a Bahia da antiga Água de Meninos

E da Universidade de Edgard Santos. Vivi a Bahia de Jorge Amado e convivi com o seu Pedro Arcanjo. Vivi a Bahia envelhecendo, desgastada, cedendo lugar ao novo,

ao pseudo novo e ao novo velho. Hoje vivo a Bahia sobrevivente, ainda mais bela e majestosa,

a mais natural capital do Brasil, a mais africana e a mais brasileira. Eterna fonte de inspiração.406

406 Juarez PARAISO. In: Claudius PORTUGAL (org.). Juarez Paraiso Desenhos. Op. Cit., p.98.

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de Quadro de Produçãode Quadro de Produçãode Quadro de Produçãode Quadro de Produção

Rio, 40° é uma luta comigo mesmo. Descolei a grana, inventei a história, não tinha produtor, não tinha nada. Foi uma invenção de moleque de rua, a vontade de fazer. Tem um momento que você tem que decidir. Decidir pelo fazer é sempre uma boa; a boa é fazer. Você queria dez, tem cinco, tudo bem. Porque, nós de cinema, herdamos também aquele mito de Hollywood de riqueza, o produtor brigando com o diretor...(no Brasil), o produtor é tão pobre quanto o diretor.

Nelson Pereira dos Santos407

Dos dezesseis longas que eu fiz, existe muita diferença no tipo de produção de um para o outro.

Nelson Pereira dos Santos408

É preciso não esquecer o papel do indivíduo-realizador na produção do cinema brasileiro. O Cinema Novo esteve nesse processo, foi feito na base de autores que se sacrificam como produtores, e assim o cinema brasileiro pôde se afirmar no plano cultural, e foi na base dessa experiência que também foram desvendados os mistérios da comercialização, da distribuição, da importação.

Nelson Pereira dos Santos409

Ao lado da busca de uma expressão própria para o cinema brasileiro Nelson Pereira

dos Santos não se descuidou dos seus mecanismos de produção, procurando, no decorrer de

sua trajetória, viabilizar dispositivos compatíveis com a lógica que propunha para o cinema

moderno no Brasil.

Rio, 40 Graus, o seu primeiro filme em longa metragem é feito com um grande

esforço pessoal e uma vontade inquebrantável, o que viabilizou uma forma alternativa de

produção:

407 Apud Giselle GUBERNIKOFF. Op. Cit., p.344. 408 Interview Gerald O’GRADY (1995). In: Darlene J. SADLIER. Nelson Pereira dos Santos. Urbana and Chicago: University of Illinois Press, 2003, p.130. Of the sixteen feature length-films I’ ve made, there’s a lot of differences in the type of production from one to the next. 409 Apud Giselle GUBERNIKOFF, Op. Cit., p.43.

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Escrevi o roteiro de Rio, 40 Graus, mas não consegui produção, pois ninguém queria fazer um filme com personagens negros na sua maioria. Havia um grande preconceito contra o negro no cinema carioca, preconceito que foi engrossado quando os dois primeiros filmes da Atlântida foram lançados e não tiveram boa bilheteria. O primeiro contava a vida do Grande Otelo e se chamava Moleque Tião. Foi destruído no incêndio da Atlântida e não há cópias do filme. O segundo – Também somos irmãos (1949) – continuou insistindo no tema da discriminação racial. O roteiro era de Alinor Azevedo e direção de Zeca Burle (José Carlos Burle). Desse ainda há uma cópia. Permaneceu também a idéia de que filme que tem a presença de negros não tem sucesso410.

Ninguém aceitava o meu argumento, nenhum produtor existente achava que aquilo era cinematográfico, aí eu inventei uma empresa para fazer o filme. Como? A proposta é fazer uma cooperativa, mediante a venda de cotas de 5.000 a 100.000 cruzeiros, num esquema de produção independente411.

Após a recusa dos produtores cinematográficos, bater à porta dos produtores seria o

percurso usual para quem queria fazer cinema, Nelson parte para montar um esquema próprio

de produção. Para isso, contou com a preciosa colaboração de Ciro Freire Cury, um colega do

Colégio do Estado, que se mudou para o Rio de Janeiro para trabalhar no Banco do Brasil.

Ciro era considerado um economista brilhante e foi ele quem ajudou a elaborar o esquema

financeiro e econômico do filme. Além de Nelson e Ciro, a produção teve a colaboração de

Luiz Jardim, Louis Henri Guitton e Pedro Kosinski.

Nelson seguiu a fórmula de cooperativa que na época era utilizada no Rio de Janeiro.

Os ganhos oriundos da comercialização do filme são proporcionalmente partilhados entre

atores e técnicos, de acordo com o trabalho executado, cabendo uma porcentagem a cada um,

em relação ao custo médio do filme. Em geral, o diretor recebia dez por cento da renda, e o

resto era para cobrir as despesas trabalhistas e todos os gastos adicionais. O capital de giro era

coberto por cotas que eram vendidas a amigos, parentes, e a alguns investidores interessados.

Não existia nenhum aporte financeiro formal, principalmente originário, como hoje, de

incentivos governamentais:

É importante lembrar que o cinema não tinha um tostão de dinheiro público, não existia ajuda do Estado. Caso exemplar da iniciativa privada no cinema foi o de Ademar Gonzaga, que investiu tudo o que tinha no estúdio e nos filmes da Cinédia. Aqui em São Paulo, tivemos o Franco Zampari, que fundou a Vera Cruz, e que não tinha nada de dinheiro público, todo feito com investimento próprio412.

410 Entrevista para Estudos Avançados 21 (59), 2007. 411 Apud SALEM, Op. Cit., p.86. 412 Entrevista para Estudos Avançados. Op. Cit.

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Procurava-se economizar o máximo possível. Hélio Silva, o fotógrafo da equipe de

Nelson, contou a Humberto Mauro, que era na época o diretor do Instituto Nacional do

Cinema Educacional, que eles não tinham equipamento para filmar, e este emprestou uma

velha câmera do Instituto, que foi recuperada e utilizada durante todo o filme.

Aproveitando-se de uma lei recente que não cobrava imposto de importação nem

taxas sobre o preço de custo para filmes virgens, vários rolos foram adquiridos fora do Brasil,

diretamente do fabricante. Após a conclusão do trabalho o filme ficou pronto e foi

providenciada uma apresentação dele para a Columbia, distribuidora americana, que se

decidiu por comprá-lo.

Dois anos depois, em 1957, estava pronto Rio, Zona Norte, o segundo longa-

metragem de Nelson, concretizado nos mesmos moldes do anterior. Também em Rio, Zona

Norte não havia dinheiro nem do governo nem de patrocínios e quem estava à frente da

produção com Nelson era ainda Ciro Freire Cury. O mesmo sistema de cotas foi oferecido a

investidores que apostavam no filme. A grande diferença entre um e outro é que, em Rio,

Zona Norte, Nelson recebeu uma ajuda importante referente ao dinheiro dos prêmios ganhos

por Rio, 40 Graus e contou com um financiamento. Com parte desse dinheiro Nelson

produziu o filme de Roberto Santos, O Grande Momento.

Ao responder à indagação se as condições de produção de Rio, Zona Norte foram

mais confortáveis do que as de Rio, 40 Graus Nelson esclarece:

Em relação a Rio, 40 Graus, sim. O Rio, 40 Graus ganhou muitos prêmios em dinheiro, eu tive também um financiamento, porque eu fiz dois filmes, Rio, Zona Norte e O Grande Momento. Nós produzimos dois filmes, a mesma equipe que fez o Rio, Zona Norte foi para São Paulo e fez O Grande Momento. Mudou o diretor, eu fiz aqui, fiquei montando e lá em São Paulo o Roberto Santos dirigiu O Grande Momento. Então, nesse bolo eu fiz um negócio com a Maristela, que tinha o equipamento de filmagem, câmera, luz, tudo isso para os dois filmes, foi assim. Tinha o financiamento do Banco do Estado. Não era dinheiro a fundo perdido não, era financiamento, que tinha que pagar depois413.

Contudo, tanto Rio, Zona Norte quanto O Grande Momento não tiveram retorno de

bilheteria suficiente que justificasse a continuidade do processo de venda de cotas.

Em 1961, após quase três anos preparando o roteiro e ultimando as providências para

rodar Vidas Secas, quando estava tudo pronto para rodar o filme, a locação se tornou inviável.

413 Apud Entrevista editada por Tunico AMÂNCIO, Op. Cit., p.25.

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Nelson adia o projeto Vidas Secas realiza Mandacaru Vermelho. Em apenas dois meses, todas

as tomadas de Mandacaru Vermelho estavam prontas.

No terceiro filme, que deveria ter sido Vidas Secas e terminou sendo Mandacaru

Vermelho (1961), o ponto de partida foi o chamado dinheiro privado. Tudo o que Nelson

tinha era simplesmente sua vontade férrea, a disposição sem limites de sua equipe, de cada

técnico e de cada ator. E ele não ficou parado esperando por incentivos oficiais. Foi buscar, e

encontrou apoio no setor privado. Uma grande parte do dinheiro foi investida por Danilo

Trelles, um produtor uruguaio, que aplicou algum dinheiro na produção de filmes. Nelson

tinha ações de filmes da companhia alemã DEFA, e em troca tinha que lhes dar alguma coisa

filmada sobre o Brasil para integrar um documentário internacional sobre a fome.

Em 1962, Nelson foi chamado para ser o diretor de Boca de Ouro não tendo que

enfrentar o desgaste da maratona que é correr para conseguir incentivos, apoios e

financiamentos:

A experiência seguinte foi Boca de Ouro (1963), que foi uma produção de Herbert Richers, um produtor e distribuidor do Rio muito bem sucedido. Herbert decidiu produzir esse filme e me convidou para dirigir414.

Todos os equipamentos, a contratação do elenco, o fornecimento prévio dos meios

necessários para definir locação, conseguir estúdios, disponibilizar iluminação e outros

detalhes técnicos, tudo enfim, foi providenciado pela produção que ficou nas mãos de Jarbas

Barbosa, Gilberto Perrone e da distribuidora Copacabana Filmes Ltda.

Entre 1962 e 1963, a idéia de adaptar para o cinema o romance, Vidas Secas, de

Graciliano Ramos, finalmente seria realizada. O filme teria como locação a cidade de

Palmeiras dos Índios, em Alagoas, mesma cidade que havia tido como prefeito o próprio

Graciliano, e onde ele começou a escrever seus romances. Nelson Pereira e Luís Carlos

Barreto – produtor do filme, junto com Herbert Richers e Danilo Trelles –, foram ao Banco

Nacional, um dos poucos que financiavam projetos desse tipo, e pediram um empréstimo para

realizar o filme:

Eu e Luiz Carlos Barreto pedimos dinheiro emprestado ao Banco Nacional, um banco privado que ainda hoje investe em produção de filmes. O Banco

414 Interview Gerald O’GRADY (1995). In: Darlene J. SADLIER. Op. Cit., p. 131.The next experience was Gold Mouth (Boca de Ouro, 1963), which was a production by Herbert Richers, a producer and distributor from Rio who is very well established. Herbert decided to produce this film and invited me to direct.

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Nacional financiou dois terços do filme e Herbert um terço. Esta foi a economia em Vidas Secas415.

O filme foi noticiado antes do seu lançamento com expectativa favorável, entretanto,

teve uma distribuição restrita da Metro Goldwin Mayer, e foi exibido por pouco tempo nas

salas porque, segundo aventado na época pelo jornalista e crítico de cinema Ely Azeredo, a

MGM teve receio de que o grande sucesso a que estava destinado Vidas Secas, pudesse abalar

a hegemonia dos filmes norte-americanos, criando as condições favoráveis ao fortalecimento

de uma indústria cinematográfica nacional. Não fosse o dinheiro ganho com o prêmio

concedido pelo governador Carlos Lacerda, e o filme talvez não tivesse conseguido cobrir os

custos de produção apenas com a receita de público.

Até fazer seu próximo longa-metragem, Nelson dirigiria quatro curtas: dois em 1965

– Um moço de 74 anos e O Rio de Machado de Assis – ambos produzidos pelo Jornal do

Brasil, e dois em 1966 – Fala Brasília, produzido pelo MEC e pelo INCE e, Cruzada ABC,

encomendado pela Aliança para o Progresso - órgão criado pelo Presidente dos Estados

Unidos John F. Kennedy - e produzido pela Usis.

Em 1966, Nelson faria o longa-metragem El Justicero, lançado em 1967, utilizando o

dinheiro de um imposto que era cobrado no Brasil sobre o lucro das empresas que distribuíam

filmes aqui, e que tinha uma parte destinada a financiar filmes nacionais. Quase nenhuma

distribuidora, sobretudo americana, queria financiar - por motivos óbvios - filmes brasileiros,

e esse imposto servia para amenizar um pouco essa lacuna. El Justicero, além de dinheiro

governamental oriundo desse imposto, foi financiado pela Condor Filmes, uma distribuidora

de filmes europeus no Brasil.

Após El Justicero, Nelson realizou em 1967 e lançou em 1968, outro longa-

metragem sem ajuda financeira do governo: Fome de Amor: Você nunca tomou banho de sol

inteiramente nua?,filme independente, de baixo custo, produzido conjuntamente por Herbert

Richers e Paulo Porto.

Nelson realizaria logo em seguida, em1969, um curta-metragem intitulado

Alfabetização e, realizaria, ainda, Azyllo Muito Louco, uma produção independente dele, de

Luiz Carlos Barreto e Roberto Farias. Os exibidores e proprietários de cinema se recusam a

mostrar filmes em preto-e-branco que, alegam, não atraem espectadores e, conseqüentemente,

415 Ibid. p.131. Luiz Carlos Barreto and I borrowed money from the National Bank, a private bank which even today invests in film productions. So the National Bank financed two-thirds of the film and Herbert one-third. This was the economics of Barren Lives.

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diminuem a renda, o que praticamente determinou Nelson a realizar o seu primeiro filme a

cores.

Entre 1970 e 1973 Nelson concretiza Como era gostoso o meu francês, outro filme

independente, feito com dinheiro resultante de impostos cobrados pelo governo. A produção

foi feita por Luiz Carlos Barreto e César Thedim e a Condor Filmes entrou como co-

produtora. Após fazer sucesso no Festival de Cinema de Cannes, os direitos do filme foram

vendidos aos franceses.

Entre 1972 e 1973 viria Quem é Beta? – Pas de violence entre nous, que contou com

uma co-produção francesa. Não do governo, mas de um produtor francês, Gérard Léclery –

através da Dhalia Film – que entrou em contato com Nelson logo após a exibição de Como

Era Gostoso o Meu Francês em Cannes, para acertar essa parceria em que a Regina Filmes416

também se engajou.

O próximo filme será O Amuleto de Ogum, realizado entre 1973 e 1974, com

lançamento em 1975. Primeiro filme que Nelson faz utilizando o apoio financeiro da

distribuidora criada pela Embrafilme. A política de investimento dessa distribuidora era

baseada na presunção de lucro dos filmes. Isto é, ela emprestava parte do dinheiro necessário

para realizar o filme, e recebia depois que o filme era lançado. Foi assim que Nelson

conseguiu financiar 40% dos custos de O Amuleto de Ogum. O restante ficou a cargo da

Regina Filmes.

Para constituir o próximo filme, três anos depois de o Amuleto de Ogum, Nelson não

foi buscar o financiamento nos cofres públicos. Tenda dos Milagres foi integralmente feito

com recursos privados, oriundos de um banqueiro, Ronald Levinson que, como um

verdadeiro patrono das artes, produziu todo o filme.

Em 1979, foi a vez do longa Na Estrada da Vida, lançado em 1981, sobre a dupla de

cantores regionais Milionário e José Rico. O filme foi produzido pela iniciativa privada, mais

precisamente pela Vilafilmes Produções C. Ltda., uma empresa de São Paulo, e a distribuição

ficou a cargo da Embrafilme.

Dirigiu ainda em 1980 um curta-metragem intitulado Um Ladrão (parte do filme

Insônia), produzido pelo Sindicato dos Artistas e Técnicos do Rio. De 1980 a 1984 Nelson

dirigiu também, antes de fazer Memórias do Cárcere, um média-metragem intitulado Missa

416 Criada em 1972 por Regina Rosemburg Léclery e Nelson Pereira dos Santos, a empresa absorveu as obras anteriormente pertencentes a Nelson Pereira dos Santos e passou a dedicar-se à realização de longas para cinema e programas e séries para TV. Além dos filmes dirigidos por Nelson Pereira dos Santos, a Regina Filmes tem entre seus títulos sucessos de público e de crítica como O Grande Momento (Roberto Santos, 1958), Aventuras Amorosas de Um Padeiro (Waldir Onofre, 1975), A Dama do Lotação (Neville d´Almeida, 1978), e Sonhei com Você (Ney Sant´anna, 1989).

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do Galo, e um curta, que se chamou A Arte Fantástica de Mário Gruber417 – homenagem de

Nelson Pereira ao pintor – ambos em 1982, produzidos pela Regina Filmes.

A seguir faria três documentários para a Rede Manchete: um em 1983, chamado O

Mundo Mágico, e dois outros em 1984. O primeiro intitulado Capiba418, em homenagem ao

compositor, e o segundo também uma homenagem a outro grande músico e maestro, o

pianista e compositor Tom Jobim, e que se chamou A Música Segundo Tom Jobim. Só então,

Nelson filma seu 14º longa-metragem, Memórias do Cárcere. Este filme foi inteiramente

bancado pela Embrafilme.

Em 1985, dois documentários para a televisão foram dirigidos por Nelson: Eu sou o

samba, para a Rede Manchete e Bahia de Todos os Santos, para a TV Bahia. La Drôle de

Guerre, um curta-metragem produzido pelo Centre Georges Pompidou da França, seria

realizado em 1986. Enquanto filmava Memórias do Cárcere, foi sondado pelo Ministro da

Cultura da França, Jacques Lang, sobre a possibilidade de seu país participar de uma co-

produção num filme a ser dirigido por Nelson. Pouco mais de um ano depois, um acordo foi

selado entre Nelson, Louis Moillon – que dirigia a Sociedade Francesa de Produção – a

Televisão Francesa e a Embrafilme, para filmar uma adaptação de Jubiabá, romance de Jorge

Amado. Houve alguns contratempos entre a produção francesa e a brasileira, mas sanadas as

divergências, o filme chegou a seu termo. Sete anos se passariam até que surgisse outro longa-

metragem dirigido por Nelson.

Entre 1993 e 1994, seria rodado A Terceira Margem do Rio, mais um fruto da co-

produção entre brasileiros, através da Embrafilme, e franceses, com ajuda do Ministério da

Cultura e o das Relações Exteriores da França, além da Televisão Francesa. A produção foi

executada pela Regina Filmes.

417 Mário Gruber Correia (Santos SP 1927), autodidata em pintura, inicia seus trabalhos em 1943. Três anos mais tarde, em São Paulo, estuda com o escultor Nicola Rollo na Escola de Belas Artes de São Paulo, e passa a pintar em praça pública, quando trava contato com Mario Zanini e Bonadei. Trabalha com Di Cavalcanti e estuda gravura com Poty, em 1948. Com bolsa de estudos do governo francês viaja, em 1949, para Paris, onde estuda na École Nationale Supérieure des Beaux-Arts com Édouard Goerg. Ao retornar para o Brasil, funda o Clube de Arte, em Santos, e leciona gravura na Escola de Artesanato do Museu de Arte Moderna de São Paulo, entre 1951 e 1953. Neste ano, trava contato, em Santiago do Chile, com o muralista Diego Rivera, que lhe transmite ensinamentos sobre materiais e técnicas da pintura mural. Funda a União dos Artistas Plásticos de São Paulo em 1956. Entre 1961 e 1964, leciona gravura em metal na Fundação Armando Álvarez Penteado. Na década de 70, monta oficina onde trabalham vários artistas, entre eles Wesley Duke Lee e Frederico Nasser. Dedica-se em especial à calcografia e produz edições de gravura em metal na Impremérie Georges Leblanc, Paris. A partir de 1979, monta ateliê em Nova York, quando divide suas atividades entre esta cidade, Paris e São Paulo. Fonte: Itaú Cultural. 418 Lourenço da Fonseca Barbosa, conhecido como Capiba, é um importante compositor nascido em Surubim, Pernambuco, em outubro de 1904 e falecido em dezembro de 1997 em Recife. É autor de mais de 200 canções, em sua maioria frevos, mas também marchas, sambas, valsas e até música erudita. Muitas de suas composições são sempre lembradas nos carnavais pernambucanos, entre elas: É de amargar, de 1934; Olinda cidade eterna, de 1950; Madeira que cupim não rói, de 1963 e, São do Norte os que vêm, de 1967.

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No ano seguinte, Nelson faz Cinema de Lágrimas, um longa-metragem preparado

para o British Film Institute, que iria juntar-se a filmes de dezenove outros diretores, para

homenagear os cem anos do Cinema.

Cinco anos se passam e, em 2000, Nelson volta a filmar, desta vez uma mini-série

documental para a TV, canal GNT, Casa Grande & Senzala. Em 2004, realiza o

documentário Raízes do Brasil, produzido pela Regina Filmes, VídeoFilmes419 e Rio Filme.

Finalmente, em 2006, Nelson dirige o seu mais recente longa-metragem, Brasília 18%,

produzido pela Regina Filmes em colaboração com a Videofilmes.

Esses dois últimos filmes indicam como Nelson vem se relacionando com as

transformações que estão ocorrendo no mercado cinematográfico brasileiro, iniciadas nos

anos de 1990, quando os mecanismos de financiamento passaram a se dar de forma indireta

por intermédio de mecanismos de renúncia fiscal. Nos créditos de Raízes do Brasil a presença

da Petrobras e BNDES. Em Brasília 18% a participação estatal é mais ampla, Petrobrás,

BNDES, Eletrobrás, ANCINE, Fundo Nacional de Cultura e aparecem os nomes de

investidores, Nelson Totsheim Parente e Agenor Parente.

419 Criada em 1987 por Walter Salles e por seu irmão João Moreira Salles, a VideoFilmes é uma produtora de cinema e vídeo voltada para a realização de filmes de ficção de longa-metragem e documentários reconhecidos pela alta qualidade técnica e artística.

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dededede Realismo Realismo Realismo Realismo

Chamaremos, portanto, realista todo sistema de expressão, todo procedimento de relato propenso a fazer aparecer mais realidade na tela. “Realidade” não deve ser naturalmente entendida quantitativamente. Um mesmo acontecimento, um mesmo objeto é passível de várias representações diferentes. Cada uma delas abandona e salva algumas das qualidades que fazem com que reconheçamos o objeto na tela, cada uma delas introduz com fins didáticos ou estéticos abstrações mais ou menos corrosivas que não deixam subsistir tudo do original.

André Bazin420 Nelson teve cultura marxista na juventude quando estudou Direito. Fizera a crítica gramsciana do modernismo, do realismo socialista [...] Lucidez sobre os conflitos psicológicos provocados pela luta de classes. E por uma poética da brasilidade. Realismo. Crítica social. Uma crítica realista da realidade social porque econômica, política, cultural, etc.

Glauber Rocha421 Nosso Herói deverá ser este múltiplo homem brasileiro vivendo cada crise em seus respectivos estágios. A instabilidade deste personagem ativo e reflexivo não está em nosso cinema – antes já vem de nossa ficção e teatro e está ligado ao próprio conhecimento que os autores possam ter de realidade. E não se desliga também das precariedades de um conceito de realismo.

Glauber Rocha422

O apego à representação realista é recorrente na história do cinema. Desde o início

do cinema, buscou-se uma reprodução fiel e completa da realidade. O espectador na sala

escura do cinema vê-se tomado pela força da “impressão da realidade”423.

420 André BAZIN. O cinema. São Paulo: Brasiliense, 1991, p.244. 421 Glauber ROCHA. Op. Cit., p.314. 422 Id. Op. Cit. p.139. 423 Jacques Aumont e Michel Marie nos autorizam a falar em impressão de realidade. Segundo esses autores, a realidade corresponde à experiência vivida que o sujeito tem do real, ou seja, o que existe por si mesmo. Dessa forma, a realidade está inteiramente no campo do imaginário. Op. Cit., p.252.

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O cinema desenvolveu seus próprios códigos, suas convenções e mecanismos para

estabelecer significados. Essa relação de credibilidade que se estabelece entre o filme e o

espectador sustenta-se na reivindicação do que é aceito como real. Observa Christiam Metz:

A impressão de realidade [...] é sempre um fenômeno de duas faces: pode-se procurar a explicação no aspecto do objeto percebido ou no aspecto da percepção; por um lado a duplicação é mais ou menos “parecida”, mais ou menos fiel a seu modelo, ela carrega em si uma maior ou menor quantidade de indícios de realidade; por outro lado, esta construção ativa, que a percepção é sempre, os manipula de modo mais ou menos atualizante424.

Dessa forma, a fidelidade da cópia em relação ao seu modelo depende da quantidade

de indícios de realidade que ela mantém. É tributária também da recepção em seus aspectos

cognitivo-perceptivo e afetivo-participativo. A questão central não é o que é real, mas o que o

espectador acata como real. A imagem fílmica suscita um sentimento de realidade no

espectador, pois é dotada de todas as aparências de realidade.

Gérard Betton adverte para o sentido amplo que o conceito de realismo possa conter

frente à impossibilidade do real ser captado na sua totalidade, incorporando formas e verdades

que possam ser inventadas pelo artista criador:

O que aparece na tela não é a realidade suprema, resultado de inúmeros fatores ao mesmo tempo objetivos e subjetivos, imbricação de ações e interações de ordem ao mesmo tempo física (integração e parâmetros “sensoriais” e, principalmente, do continuum espaço-tempo) e psíquica (com todos os sentimentos e reflexos pessoais); o que aparece é um simples aspecto (relativo e transitório) da realidade, de uma realidade estética que resulta da visão eminentemente subjetiva e pessoal do realizador425.

A colocação de Betton ajuda a pensar sobre o paradoxo que o termo realismo

engendra. A simultaneidade da presença do real com a experiência de vivê-lo remete ao

recurso da representação. Assim, o real é mediado pela sua construção social. A compreensão

direta do real torna-se impossível e solicita a intermediação da linguagem. O seu processo

perceptivo passa invariavelmente pelo auxílio das representações sujeitas às opções próprias

ao crivo da consciência. O real é filtrado pela representação da realidade. O realismo tenciona

atingir a condição de real, embora por definição esta seja uma meta impossível de ser

cumprida, pois o real existe por si mesmo e o realismo estará sempre condicionado ao

distanciamento do real experenciado.

424 Christian METZ. A significação no cinema. São Paulo: Perspectiva, 1972, p.19. 425 Gérard BETTON. Estética do cinema. São Paulo: Martins Fontes, 1987, p. 9.

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A questão do realismo se coloca, entretanto, para além da compreensão de que o

termo está situado em terreno de extensa e ampla discussão, que se refaz permanentemente no

território de intensa mobilidade da representação e da anti-representação que definem e

prescrevem as características estéticas relativas ao cinema. Assim, o cinema torna-se

expressivo ao servir-se do mundo real para “elaborar um enunciado”, produzir um discurso. A

esse respeito Graeme Turner lembrará que:

As discussões que dominam os textos mais tradicionais sobre a teoria do cinema giram em torno do debate sobre formalismo/realismo (isto é, falar ou não sobre cinema a partir de sua unidade artística – ‘formal’ – ou a partir de sua relação específica que ele está tentando capturar em seus quadros – seu ‘realismo’)426.

O formalismo no cinema tem como expoente emblemático, Serguei Eisenstein,

geralmente um dos pontos de partida nas histórias da técnica e da teoria do cinema. Na sua

iniciativa de entender e formular questões que desenvolvessem o cinema usou, no início dos

anos 1920, a montagem como meio expressivo para transformar o filme em discurso e para

produzir sentido. Eisenstein considerava a montagem como o ponto em torno do qual girava a

linguagem cinematográfica. Pensando assim, foi aos poucos desenvolvendo uma teoria que

vai levá-lo a conceituar os vários tipos de montagem e, através desta tipologia, criar um

cinema que ele acreditava verdadeiramente revolucionário427. O cinema para ele era um meio

de comunicação eficiente de transformar a realidade, através de linguagem específica e seu

próprio modo de fazer sentido. Ressalvado o uso didático dado à montagem como

instrumento pedagógico de educação soviética, Eisenstein não estava só na recusa a uma

concepção de cinema como simples agente de registro, resguardada a potência do esteticismo

extremo, inseria-se no bojo de um pensamento que determinava o vigor artístico do cinema

dissociado da perspectiva realista e que via na sua incapacidade do reproduzir som e cor um

distintivo estético. A partir dessa concepção, realismo e arte opunham-se, o filme mudo

adquiria o patamar das artes e o incipiente filme falado rotulado de vulgar.

No entanto, a introdução do som veio reforçar a uma tendência de se procurar um

maior realismo tanto na forma como na estrutura narrativa cinematográfica. Essa tendência

faz o realismo emergir na cena do cinema europeu após a Segunda Guerra Mundial, já

prenunciado pelo surto de realismo social nos filmes de Hollywood no início dos anos

426 Graeme TURNER. Cinema como prática social. São Paulo: Summus, 1997, p.12. 427 Convém ressaltar a importância de outros formalistas russos, como Pudovkin e Vertov.

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1930428.Cabe registro também como outro fator concorrente ao crescente interesse pelo filme

realista no pós-guerra o sucesso e o respeito adquirido pelo filme documentário capitaneado

por John Grierson na Inglaterra nos anos de 1930-40 e a sua expansão para outros países,

fruto das unidades montadas no Canadá e na Austrália sob a supervisão do diretor. Ao

impacto resultante da disseminação do filme documentário soma-se o surgimento do

movimento cinematográfico de extrema significação no período, o Neo-realismo429.

O Neo-realismo tornou-se um influente movimento que teve a Itália do pós-guerra

como cenário, redescobrindo a sua paisagem e nela reintegrando o seu povo. Há quem

defenda ser Obsessão (Ossessione, 1942) de Luchino Visconti, realizado ainda durante a

guerra, o primeiro filme ligado a essa corrente. Esse ponto de vista é coerente na medida em

que, ao adaptar o romance do norte-americano James Cain, The Postman Always Rings Twice,

Visconti apontava para outra possibilidade de se fazer cinema no seu país ao se afastar dos

épicos e farsas sofisticadas que davam o tom à estética dominante da era fascista, do chamado

“cinema dos telefones brancos”, distante da realidade. Ao ambientar seu drama entre gente do

povo Visconti abria o caminho para o movimento e anunciava um estilo. Mas, o núcleo duro

do Neo-realismo é erigido a partir dos “filmes de guerra” de Rossellini, em que os contornos

do movimento são mais reconhecíveis: produção fora do estúdio, ambientada na rua, mais ágil

e barata, valendo-se muitas vezes de atores não-profissionais, com uma visão progressista,

que questionava a forma de participação da Itália na guerra e o preço pago por isso. Roma,

Cidade Aberta (Roma, Città Aperta, 1944-1945), aborda a questão; Paisá, (Paisá, 1946), com

seus seis episódios segue a libertação italiana do Norte ao Sul do país e Alemanha, Ano Zero

(Germania Anno Zero, 1948), desloca seu olhar para outro país derrotado e lá também

encontra uma população rendida. Outros filmes somam-se a esses e formam um conjunto de

linhas formais e sociais semelhantes, em que se destacam A Terra Treme (La terra Trema,

1948) de Luchino Visconti; Vítimas da Tormenta (Sciuscià, 1946); Ladrões de Bicicleta

(Ladri de Biciclette, 1948) e Umberto D, 1952, os três de Vittorio De Sica. Esses filmes

apresentam uma visão generosa em relação ao povo, assumindo a sua maneira de falar e

sentir. Com um ponto de vista social definido, levava seus temas e assuntos para a tela,

convocando a crítica e o público a adotarem uma atitude não evasiva e distanciada em relação

à sociedade. Esses temas e assuntos dão base ao enredo de quase todos os filmes deste

movimento e cobrem alguns pontos da seguinte pauta: denúncia do fascismo, exaltação da

428 Exemplo clássico do realismo social hollywoodiano está contido em Scarface: A vergonha de uma nação, 1932, de Howard Hawks. 429 Este movimento já foi citado em outros momentos nesta tese. No entanto, para efeito da discussão pretendida a recuperação de sua síntese é oportuna.

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resistência, desemprego, indigência, desamparo da do idoso, abandono da infância, a condição

da mulher, a reforma agrária, a emigração, entre outros.

Gilles Deleuze ao tratar do neo-realismo, entende que a produção italiana do pós-

guerra não pode ser pensada “ao nível do real”, pois a visão do protagonista neo-realista, sua

percepção, não é mais prolongada em termos da ação. Ela se relaciona, ao contrário, com o

pensamento e com o tempo. Para essa questão fundamental Deleuze afirma: “o que constitui a

nova imagem é a situação puramente ótica e sonora, que substitui as situações sensório-

motoras enfraquecidas430.

Para Deleuze, no âmbito do neo-realismo, ocorre um deslocamento na relação espaço

e tempo: aquilo que o personagem vê não se prolonga mais numa ação. O cinema articula-se a

partir da ótica do vidente, não mais da personagem agente. Os protagonistas direcionam o

olhar para o mundo com investimentos nas coisas e nas pessoas. É um olhar determinado,

fixo, em busca de entender o que não tem definição, assimilando o imprevisto. Na imagem-

ação os objetos e meios tem realidade própria, porém subordinada à funcionalidade

determinada pelas imposições da situação. Na nova imagem os objetos e meios conquistam

uma realidade autônoma que os faz valerem por si mesmos.

Assim, o neo-realismo percorre o caminho do afrouxamento dos vínculos sensório-

motores, em que a montagem assumia o papel de conter o tempo e postula a ascendência das

situações óticas e sonoras para constituir suas imagens liberadoras do tempo. Ao subordinar a

imagem às exigências de novos signos em que o real não é mais representado ou reproduzido,

mas visado, o neo-realismo transfere o pathos da tragédia para os pequenos sentimentos do

dia-a-dia, para a vida, para o inesperado, para o imprevisível.

Tendo o realismo como foco não se pode desprezar, também, a formulação de André

Bazin no pós-guerra francês. Com seus escritos veiculados no periódico que fundou o Cahiers

du Cinéma, Bazin ocupou o centro da abordagem sobre o realismo e exerceu extrema

influência sobre a realização e a reflexão cinematográficas. Concebendo a produção industrial

da imagem em torno da qual o cinema moderno se articulava como uma forma de

conhecimento alimentou o surgimento dos movimentos de renovação cinematográfica.

Considerado um teórico de filiação realista, em oposição aos formalistas, parte do

entendimento que o cinema sustenta-se na revelação do mundo, como em uma epifania.

Assim, torna-se clara a sua insurreição contra um cinema que atingia essa revelação. A um

430 Gilles DELEUZE. Cinema II - A imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 12.

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cinema de cortes visíveis, ele optava por um cinema da transparência, mais fiel ao mundo que

se apresenta diante dos seus olhos.

Na introdução traduzida para o português de O cinema431, assinada por Ismail

Xavier, assim apresenta o contexto que propiciou um estilo de reflexão como a de Bazin:

Na França e na Itália, aquela conjuntura de vitória sobre o fascismo e de reconstrução do mundo dentro de uma nova ordem encontrou expressão numa análise de cultura conduzida nos termos do humanismo renovado432.

O professor paulista prossegue na sua exposição balizando o território da crítica

militante de Bazin:

Não por acaso, a questão central dessa crítica é a da “vocação realista” do cinema, não propriamente como veiculação de uma visão correta e fechada do mundo, mas como forma de olhar que desconfia da retórica (montagem) e da argumentação excessiva, buscando a voz dos próprios fenômenos e situações. Realismo, então como produção de imagem que deve se inclinar diante da experiência, assimilar o imprevisto, suportar a ambigüidade, o aspecto multifocal dos dramas433.

Bazin afasta-se das idéias de Eisenstein, fundadas em “fragmentos da realidade”

justapostos, que constroem a arte mediante a montagem. Para ele, a montagem continha alto

grau de manipulação tornando-se uma imposição, uma ordem verticalizada, do cineasta ao

espectador. “A voz dos próprios fenômenos e situações”, aos quais Ismail Xavier se refere,

dizem respeito às escolhas dos procedimentos-chaves adotados pelos construtores do cinema

moderno: o “plano-seqüencia” (apresentação da cena sem cortes, numa única tomada), os

movimentos de câmara, o uso da profundidade de campo visível, o respeito à duração

contínua dos fatos e a minimização dos efeitos de montagem. Estes procedimentos traduzem a

noção formulada por Bazin, que levava em conta a noção de raccord434, atentando para o

movimento e para o arranjo de como os elementos no quadro ou na tomada são dispostos a

fim de observar como se podia gerar a significação. O movimento e o posicionamento das

personagens na cena, a escolha do posicionamento da câmara, a luz, o foco, a profundidade,

431 No original Qu´est-ce que le cinema? A pergunta “O que é o cinema?” não traz uma asserção definitiva, mas a coleção de textos compilados por Bazin revela a sua investigação sobre o específico fílmico. 432 André BAZIN. O cinema. São Paulo: Brasiliense, 1991, p.9. 433 Op. Cit. p. 10. 434 Tipo de montagem na qual as mudanças de plano, são, tento quanto possível, apagadas como tais, de maneira que o espectador possa concentrar toda sua atenção na continuidade da narrativa visual. Jacques AUMONT e Michel MARIE. Dicionário teórico e crítico de cinema. Campinas: São Paulo, 2003, p, 251.

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tudo ganha destaque nesta perspectiva; a mise-en-scène é sintoma da autoria que se constrói

por meio de tomadas realistas.

Ismail Xavier analisa a composição do cinema moderno a partir da ótica de Bazin:

Tal cinema de “situações em bloco”, sem a análise prévia exigida pela montagem do cinema clássico, traduz o ideal da “compreensão” baziniana: antes de ser julgado o mundo existe, está aí em processo; há uma riqueza das coisas em sua interioridade que deve ser observada, insistentemente, até que se expresse. Para tanto, é preciso que o olhar não fragmente o mundo e saiba observá-lo de forma global435.

Nelson Pereira dos Santos, como já foi reiterado em outros momentos deste trabalho,

deu início a uma linha de pensamento em cinema no Brasil não somente fundamentada na

ideologia partidária que acatou, mas também nos princípios ideológicos que pautaram o

cinema europeu no final da Segunda Guerra Mundial. Na viagem que fez à Paris no início dos

anos 1950, em busca de formação cinematográfica, teve contato mais próximo com o realismo

francês e com o neo-realismo italiano e ficou impressionado com aquele novo posicionamento

do cinema frente à realidade. O mundo atingido pela guerra clamava pela exposição das suas

seqüelas. A Itália mostrava essa realidade no cinema, utilizando dos dispositivos que estavam

ao alcance para fazê-lo, essa atitude se espraia por outras cinematografias. Ao beber da fonte

neo-realista Nelson entende que aquela era uma forma de se fazer cinema adequada para o

Brasil que apresentava fortes contradições sociais, em certo sentido muito semelhante àquelas

condições desfavoráveis da Itália que saia da guerra:

O neo-realismo foi uma grande lição de produção para países como o Brasil, que ainda estavam com uma cinematografia incipiente. O que foi essa lição de produção? O negócio era o seguinte, não precisava ter grandes estúdios, nem grandes estrelas. Não precisava de muito dinheiro. Era ter o equipamento necessário [...]. O resto era nossa vida: não ter vergonha dos problemas. Pelo fato da Itália ter sofrido as conseqüências da guerra, a sociedade italiana foi desestabilizada, a família foi “mexida”. As crianças, as mulheres...todos se viam em uma nova realidade, que se chocava com as convenções. Era uma realidade que não vinha com as convenções da Itália tradicional e patriarcal. No Brasil, eu sempre dizia assim “o Brasil sempre viveu como se estivesse em um pós-guerra”. Sociedade desestabilizada, família perdida, crianças abandonadas, mulheres também. Portanto, há aqui um laço de grande união entre nossa história e a História deles, e a partir daí a proximidade com o neo-realismo436.

435 Op. Cit. p. 10. 436 Nelson Pereira DOS SANTOS. Nelson Pereira dos Santos, o pai do cinema moderno brasileiro. Entrevista concedida a Claudio Szynkier. Agência Carta Maior - Melhores entrevistas de 2003. Disponível em: <http://agenciacartamaior.uol.com.br/agencia.asp?coluna=visualiza_arte&id=1334>. Acesso em: 6 jan. 2004.

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De fato, os países periféricos viram no neo-realismo um meio hábil e eficiente de

mostrar um cinema que fosse comprometido com a questão social, que atingia esses países

com grande intensidade. A incorporação do neo-realismo, portanto, não foi sentida apenas em

termos de estética, ou mesmo de modo de produção, mas acima de tudo na temática

apresentada. Também é importante salientar, ao se tratar do diálogo do neo-realismo com

outras cinematografias e, em especial com a brasileira que, quando o movimento italiano

eclodiu, na segunda metade da década de 1940, ele não veio impor-se enquanto modelo -

como foi o caso das produções hollywoodianas - mas surgiu como mais um elemento

deflagrador que veio se somar à tentativa de levar para as telas uma cultura nacional de

marcas próprias.

Alex Viany, em depoimento dado no curta metragem Nelson Filma (1971) de Luís

Carlos Lacerda, afirma que os diretores neo-realistas eram admirados acima de tudo pelo

engajamento social com que colocavam de forma clara os problemas de uma época, de um

país. Ao cinema brasileiro mais do que expor um modelo estético, o neo-realismo

demonstrava uma atitude moral, ao debruçar-se sobre a realidade, focando elementos da vida

do povo, até então encobertos, mal tratados ou não observados. De fato, não se tratou,

simplesmente de se transplantar a experiência italiana, mas de trazê-lo para o centro da

experiência brasileira437.

Maria do Rosário Fabris trata da assimilação do ideário neo-realista por parte dos

cineastas brasileiros no contexto dos anos 1950, na publicação que traz no título a indagação

Nelson Pereira dos Santos: Um olhar Neo-Realista?, em que destaca momentos dessa

conversa com o movimento italiano tomando por base Rio, 40 Graus e Rio, Zona Norte:

Em seu filme de estréia (mas, sob muitos aspectos, também em Rio, Zona Norte), Nelson Pereira dos Santos valia-se dos postulados zavattnianos e rossellinianos – por exemplo, a opção pelos deserdados da sorte que, no seu caso, passava também pela questão racial; a escolha de uma técnica de filmagem que permitisse a captação mais imediata da realidade; o próprio título do filme, composto de três elementos como o de Roma, cidade Aberta

437 Embora a cinematografia carioca fosse identificada principalmente com as chanchadas, entre a segunda metade dos anos 1930 e a primeira metade dos anos 1950, a Atlântida havia filmado também obras de fundo social que, à falta de uma definição melhor, foram denominadas pré-neo-realistas (Maria Rita Galvão e Carlos Roberto de Souza), pré em relação a um neo-realismo brasileiro, que surgiria com o cinema independente: Favela dos meus amores, de Humberto Mauro; João Ninguém, de Mesquitinha; Moleque Tião, Vidas solidárias, Luz dos meus olhos, Também somos irmãos e Maior que o ódio, de José Carlos Burle; É proibido sonhar, Gente honesta, Sob a luz do meu bairro e Tudo azul, de Moacyr Fenelon; Amei um bicheiro, de Jorge Ileli e Paulo Wanderley, dentre outras. Mariarosario Fabris. O Neo-realismo e o cinema realista brasileiro dos anos 1950. O primeiro Nelson Pereira dos Santos in Catálogo do II Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual. Organização Geral: Walter Lima; coordenação Diana Gurgel; coordenação editorial Zilah Azevedo. Salvador: EDUFBA: VPC, 2006, p. 42-42.

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etc. – para acertar os ponteiros com o cinema nacional. Em Rio, Quarenta Graus, o aspecto mais turístico da então capital federal, esse grande mito construído pelo cinema carioca e mesmo por produções estrangeiras, chocava-se com o olhar “neo-realista” que Nelson Pereira dos Santos lhe lançava. A cidade era ainda a grande protagonista, mas o diretor pretendeu dar vez e voz a outras personagens: a gente do povo438.

Ao responder a indagação sobre o seu processo criativo Nelson expõe a sua visão

sobre a impossibilidade de assimilar a dimensão de produção da épica eisensteiniana,

destacando, no entanto, a influência da sua formulação sobre a teoria da montagem e a

factibilidade advinda com o neo-realismo que iluminou as cinematografias emergentes:

Com toda a sinceridade, o cinema de Eisenstein era castrador. Sabe por quê? Porque era um cinema poderoso, enorme, feito com muitos recursos [...] Então, nós pobres brasileiros, quando a gente via os filmes de Eisenstein, a gente brochava. Se sentia sem condições de fazer esse filme, fazer um filme parecido [...] O que tem a ver em relação a Eisenstein e depois com as conseqüências do Eisenstein no cinema, a influência que ele exerceu, foi toda uma escola de montagem [...] Agora quando veio o neo-realismo, ao contrário, foi uma grande libertação porque nos ensinava do ponto de vista da produção, que bastava sair pra rua, não dependia do estado, não dependia das altas finanças como o cinema de Hollywood, ou do estado como o cinema soviético. Era um cinema que podia ser feito na rua, o ator era o semelhante, o equipamento o mais simples possível. [...] Essa relação com o neo-realismo me pegou e muitos cineastas especialmente dos países como o Brasil. Aconteceu isso na Índia, na Grécia, no Canadá, na Argentina, no México. O cinema renasceu assim. [...] A grande síntese do cinema de montagem com o cinema realista, se deu nas novas cinematografias. 439.

Glauber Rocha no primeiro texto da compilação que publicou em Revolução do

Cinema Novo ao analisar o filme Rayzes Mexicanas, 1953440, de Benito Alazraki, avança na

interpretação de que o Neo-Realismo ao conjugar o ângulo de produção com a eleição

temática legou às cinematografias jovens a possibilidade de triunfar com dignidade. Em sua

análise, Glauber Rocha se vale do filme para discutir a linguagem cinematográfica nos países

da América Latina verificando o quanto Alazraki absorveu Zavattini e Eisenstein, afirmando

que ele contém a síntese de duas tendências altamente antagônicas: o antiformalismo seco do

Neo-Realismo e a ultra-expressão eisensteiniana. Essa síntese/confronto entre os princípios

estéticos preconizados por Eisenstein e Zavattini foi alcançada pelo cineasta mexicano na

438 Mariarosaria FABRIS. Nelson Pereira dos Santos: Um olhar Neo-Realista? São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994, p. 82. 439 Maria Elisa Silva COELHO. O Rio de Janeiro no cinema de Nelson Pereira dos Santos: Rio 40 graus; Rio Zona Norte; Boca de ouro e El Justicero. Um estudo sobre o cinema carioca. Dissertação de Mestrado defendida na Universidade Estadual do Rio de Janeiro/UERJ: Rio de Janeiro, 2003, p. 109-110. 440 Este artigo foi inicialmente publicado na imprensa baiana, em 1958.

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medida em que ele aplicou ao roteiro as lições do Neo-Realismo zavattiniano e à linguagem o

legado das invenções da teoria da montagem e da composição de Eisenstein. No texto,

Glauber coloca no mesmo diapasão o neo-realismo e o cinema épico eisensteiniano formando

uma “dualidade-unidade”, uma “síntese/choque”, como dois pólos antagônicos, necessários e

complementares para a construção de uma linguagem cinematográfica de expressão nacional

e aponta Nelson Pereira dos Santos como o mais apto cineasta brasileiro a prosseguir no

caminho indicado por Alazraki:

Entre todos os nacionais, pela dupla resistência e pelo terceiro preparo – assim como o estilo que luta por encontrar – destacaríamos Nelson Pereira dos Santos, através das pesquisas formais intrínsecas e extrínsecas em Cesare Zavattini e Luchino Visconti, como o brasileiro mais em preparação para realizações na linha de dualidade-unidade, pontificação eisensteiniana e o resultado de Benito Alazraki.441

Para Nelson Pereira dos Santos o realismo e a compreensão de que ele é construído

por artifícios de linguagem implica em se pensar a questão da verdade. O realismo subentende

uma realidade única e uma única apreensão dela como verdadeira. A verdade é a grande

preocupação presente no início de sua obra. O jovem Nelson parte do conceito baziniano de

que a essência do cinema é satisfazer a obsessão do espectador pelo realismo e investe no

oferecimento da verdade, sem deixar de sublinhar que era a sua verdade, o seu ponto de vista.

E isso é feito com a verdade da cidade do Rio de Janeiro, a verdade sobre a vida do sambista

Espírito da Luz, a verdade na lenda inventada de Mandacaru Vermelho revelando ao Brasil o

que ele tinha de verdadeiro e autêntico em termos de cultura. As diferentes verdades

confrontadas em Boca de Ouro. A verdade documental objetiva em Vidas Secas. Tudo que se

declare verdadeiro torna-se autoritário em Azyllo muito louco. É falsa a visão da história

oficial, mas é verdadeiro o massacre aos índios tupinambás com o qual Nelson finaliza Como

era gostoso o meu francês.

Mais tarde o próprio Nelson em um ponto de virada advertiria e imporia

desconfiança sobre os perigos do engano pela boca do violeiro cego em O Amuleto de Ogum,

que entoando um repente cantava e contava: “Eu vou contar uma história que aconteceu de

verdade, que eu acabei de inventar agorinha”.

Dessa forma, em 1974, Nelson, ao seu modo, e na condição do “brasileiro mais bem

preparado para realizações na linha de dualidade-unidade” atualiza a representação da

realidade no cinema brasileiro e refaz o caminho canônico do realismo investindo na quebra

441 Glauber ROCHA. Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac & Naif, 2004, p. 39.

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de limites rígidos ao encenar sobre o natural e naturalizar o encenado. O real representado

funde-se ao ficcional, entregando ao espectador o poder de decisão. Verdade ou engano?

Realidade ou fabulação? A resposta não desperta muito interesse. Fato e ficção se hibridizam.

O real impulsiona o ficcional e o ficcional impulsiona o real. Não há desproporcionalidade na

tensão dessas forças que são mobilizadas pelo diretor. Essa atualização na forma de

representação proposta por Nelson vai encontrar respaldo e correspondência na reflexão de

Frederic Jameson sobre o realismo italiano:

[...] se o realismo confirma sua pretensão de ser uma representação do mundo correta e verdadeira, ele, assim, deixa de ser um modo estético de representação e fica fora da esfera da arte. Por outro lado, se exploramos, enfatizamos ou colocamos em primeiro plano os artefatos artísticos com a captura da verdade do mundo, o “realismo” é desmascarado como um mero efeito-de-realismo ou efeito-de-realidade, e o real que ele pretendeu desvelar se transforma de imediato na mais completa representação e ilusão442.

A propósito, Nelson alinha-se a esse pensamento contemporâneo com o qual tem

encontrado uma maior identidade nas proposições críticas. Levando em consideração esses

pressupostos, ao fazer um balanço da sua obra e do cinema brasileiro recente, declarou:

Sempre que posso vou ao cinema ver filmes de diretores brasileiros. Hoje o cinema brasileiro é pluralista tem muita vitalidade e todas as tendências estão nele. Finalmente, há uma superação de obrigatoriedades ideológicas ou estéticas. O bonito do cinema brasileiro é isso, inclusive com lugar para mim com quase oitenta anos fazer meus filmes com a preocupação com o social com a proposta da mudança do que já existe. Vejo todos os filmes com um olhar de que cada um está traçando o seu caminho o debate está aberto. Alguns anos, se me chamassem para assistir a um filme, eu perguntava se existia a famosa luta de classes. Felizmente mudei. Acho importante o marxismo estético e para mim o pensador mais contemporâneo é o americano Frederic Jameson 443.

442 Fredric JAMESON. Op. Cit., p.162. 443 Revista Pesquisa FAPESP. Edição Online. Entrevista – Um cineasta imortal. Abril 2006- Edição 122.

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dededede Sincretismo Sincretismo Sincretismo Sincretismo

Ogum, erga a sua espada, levante a sua lança para nos defender. Nos dê proteção com seu escudo toda vez que o inimigo nos aborrecer. Nos cubra com o seu sagrado manto, sua bandeira tão gloriosa. Atire as patas do seu cavalo contra o dragão e a serpente venenosa444. Eu andarei vestido e armado com as armas de São Jorge. Para que meus inimigos, tendo pés, não me alcancem, tendo mãos, não me peguem, tendo olhos não me enxerguem, e nem pensamentos eles possam ter para me fazer o mal. Armas de fogo meu corpo não alcançarão, facas e lanças se quebrem sem ao meu corpo chegar, cordas e correntes se rebentem, sem o meu corpo amarrar445

.

Na Bahia, São Jorge é identificado com Oxóssi, deus dos caçadores, mas, no Rio de janeiro, é ligado a Ogum, deus da guerra, o que é compreensível em relação aos dois orixás, pois São Jorge é apresentado nas gravuras como um valente cavaleiro, vestido em brilhante armadura, montado sobre um cavalo ricamente ajaezado em ferro, que bate no chão com as patas e caracola. Armado com uma lança, São Jorge da Capadócia mata um dragão enfurecido, caça predileta do deus dos caçadores.

Pierre Verger446 Na verdade, a umbanda é a religião do nosso povo e ela explica o seu comportamento. Como toda religião, pretende aperfeiçoar o homem. O que eu tento mostrar no filme é a umbanda tal como ela é: uma visão religiosa, com raízes profundas, trazendo em si toda a formação do homem brasileiro, da nossa história, a contribuição da cultura do negro e do índio. Dizem os antropólogos que a verdade da sociedade pode ser encontrada nos mitos que ela produz.

Nelson Pereira dos Santos447

444 Este ponto é um típico produto da Umbanda Popular, já distante de qualquer influência africana, apresenta Ogum na forma sincretizada de santo guerreiro (a bandeira e o manto não são atributos de Ogum, mas de São Jorge). A letra mostra os sentimentos do povo brasileiro em relação ao seu orixá: ele é o herói mítico, o paladino que vem em defesa daqueles que enfrentam as forças do mal. 445 Oração a São Jorge. 446 Pierre VERGER. Orixás. São Paulo: Corrupio, 1981, p. 26. 447 Declaração dada ao jornal A Gazeta, ES, em 16/02/75. Na ocasião do lançamento de O Amuleto de Ogum em Vitória. In: Giselle GUBERNIKOFF. Op. Cit. , p.48.

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O sincretismo em Nelson Pereira dos Santos pode associar-se ao seu pluralismo, mas

será em O Amuleto de Ogum que se encontra a sua mais definida e nítida tradução. O filme,

ponto de inflexão na sua trajetória, tornou-se um desafio no exercício empreendido no sentido

de evitar o enfoque crítico e a interpretação estritamente intelectual, ao tratar do mito e, por

conseqüência, da religião popular. Essa atitude, porém não implica abrir mão do espírito

crítico, mas resulta no seu reposicionamento:

A posição crítica está antes, na procura do filme, na procura da expressão, na parte da realidade que a gente quer analisar, na observação dessa realidade. A partir do momento em que o filme começa, ele tem que usar a linguagem da emoção, estar ligado a estes valores populares448.

Rito de passagem, imersão em domínios desconhecidos, incitação para além de

flutuações advindas do trânsito e do intercâmbio de práticas e credos. Exercício radical nas

diversas dimensões do sincretismo O Amuleto de Ogum, como é reiterado por analistas e

declarado em várias entrevistas de Nelson, pode ser tomado, inicialmente, como um mergulho

na antropologia em meio a uma convergência de situações, contribuições e influências:

Outra coisa importante é a informação antropológica. A Dona Laurita estava aqui fazendo curso de Antropologia, o professor Wagner. Então eles estavam estudando as religiões de conversão. E eu peguei essa carona logo, através da umbanda, do candomblé etc. E outro dado também para esse filme é o livro do Jorge Amado, que eu fui fazer depois. É o Tenda dos Milagres. Acho que o livro do Jorge é de 72, por aí, se eu não me engano, uma coisa assim. Juntando tudo isso, mais uma história, uma proposta de história, um pré-roteiro, escrito pelo Chico Santos. O Chico Santos foi motorista do Tenório Cavalcanti. Ele viveu aquela experiência do Tenório contra o coronel Barcelos. Os tempos daquela grande guerra na Baixada Fluminense. Ele conheceu bem aquilo. Ele escreveu uma história, mas era só um pouco a vida do Tenório. Eu misturei as duas coisas, o Tenório, que tinha fama de ter o corpo fechado. Eu trabalhei em cima disso e fiz o roteiro d’ O Amuleto. A presença de uma outra parte importante da nossa realidade, como é a nossa relação com a igreja, como são as religiões populares. Essa era a idéia: juntar todos esses pedacinhos e fazer o filme449.

Entender o sincretismo como mistura de elementos que resulta em um produto misto,

híbrido e eclético é a evidência que a declaração de Nelson ressalta. Tendo o sincretismo

448 Entrevista a Jean-Claude BERNARDET. Jornal Opinião, São Paulo, 14/2/1975. In: Giselle GUBERNIKOFF, Op. Cit., p. 37. 449 Entrevista editada por Tunico AMÂNCIO no catálogo da Mostra de Filmes e Vídeos Plano Geral Nelson Pereira dos Santos, 14 a 24 de outubro de 1999. Centro Cultural Banco do Brasil, p. 66-67.

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religioso como tema amplia o seu investimento nos formas sincréticas e promove a fusão de

vários níveis e linguagens. Juntar e misturar são verbos conjugados na sua declaração.

Ao realizar O Amuleto de Ogum, seu décimo primeiro filme, contava com vinte anos

de exercício cinematográfico, período em que suas crises e soluções perpassaram e se

perfilaram às crises e soluções do cinema brasileiro. Após as alegorias, as metáforas, dos

filmes de pesquisas era o momento do fim do exílio cultural, de voltar ao país sem dele nunca

ter saído.

A sua volta é circunscrita em um “projeto global” em que ultrapassa a realização

pessoal, mantém e renova o prazer estético, e se volta para uma discussão relacionando o

cinema ao seu público. Com essa postura renova as discussões em torno do cinema brasileiro a

partir do pressuposto de que a luta pela afirmação da produção nacional nas telas e a luta

cultural e política são aspectos diversos de uma mesma batalha a serem vencidos

simultaneamente:

É um projeto global, não apenas o projeto de um filme. Quase o projeto piloto de uma posição cinematográfica. Não é pretensão, não quero dar isso como modelo. É apenas uma solução para a minha própria vida, como produtor, para sobrevivência de minha posição como diretor de cinema450.

Para projeto de tal envergadura Nelson vai contar com os olhos, a percepção e a

cumplicidade intelectual de Laurita, que não só lhe indica o tema, mas a nova maneira de

tratá-lo, o que o leva a repensar a sua metodologia:

Quando fiz Rio, 40 ° fiquei quase um ano andando pelo morro, freqüentando a rapaziada, vendo sessões de umbanda, esbarrando em despachos. Mas a minha câmara não filmava nada disso. A visão religiosa do povo e a própria visão de mundo do povo eram totalmente ignoradas por mim. A realidade que eu procurava não estava diante da câmara, mas no modelo que tinha na minha cabeça451.

Fruto de um pensamento racionalista e cartesiano o método, “modelo que tinha na

cabeça”, ordenava a realidade visível de um conhecimento que o levaria à verdade. A reflexão

feita o faz chegar à constatação de que a idéia de método a priori não funciona mais, que as

dúvidas são universais na produção do conhecimento e que cada prática exige um método

específico para tratar o seu objeto.

450 Entrevista a Jean-Claude BERNARDET. Jornal Opinião, São Paulo, 14/2/1975. In: Giselle GUBERNIKOFF, Op. Cit., p. 36-37. 451 Entrevista dada a Marcelo BERABA. Jornal O Globo em 29/01/75. In: Giselle GUBERNIKOFF. Op. Cit., p.24.

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Sobre esse aspecto, observa-se que a pesquisa que toma para si campos da etnologia,

da antropologia, da arte, enfim olhares que declarem manifesto interesse pelo estudo das

sociedades, por certo tipo de homem, supõem uma escolha que promove o ajustamento, uma

integração, ao comportamento que o estudo reivindica. Respondendo à indagação formulada

por Georges Charbonnier sobre a convivência, na pesquisa etnológica, da paixão e da ciência,

Claude Lévi-Strauss fala dos percalços da construção do ponto de vista intelectual e dá

esclarecimentos sobre o sistema de referência de pesquisas que tenham esse propósito:

É preciso, se me permite a expressão, renunciar a conceber uma sociologia “euclidiana” [...] Quando se estudam diferentes sociedades, pode ser necessário trocar o sistema de referência – e essa é uma ginástica muito penosa. É uma ginástica, aliás, que somente a experiência de campo pode ensinar452.

Para tratar a religião popular é necessário conhecer e aceitar os valores da realidade

sócio-cultural abordada, desembaraçar-se do sistema de referência até então adotado e ao

mesmo tempo inaugurar um sistema de valores com prerrogativas conceituais, estéticos,

políticos e emocionais que permitam apreender os aspectos da realidade que se descortina.

Nelson parte para a Baixada Fluminense com uma atitude aberta ao novo e em busca de uma

relação de proximidade com o objeto tratado, suas personagens eclodem das ruas e dos

terreiros – o mundo que criou já nasceu criado ou imaginado:

O que acontece é que o tipo de informação deixa de ser apenas teórica, das pessoas que analisam de fora, ou superficial. A informação que eu precisava para o filme tinha que vir de um pai de santo. Era preciso uma certa vivência para eu me situar dentro da coisa toda. [...] Consultei vários terreiros e dentro do filme existe o próprio Erley, que interpreta o pai de santo que toma conta de Gabriel. Ele é um babalaô e estava sempre dando as dicas necessárias. A preparação do filme foi muito desse jeito. A informação teórica dos estudiosos precedeu a preparação do roteiro. O objetivo era mostrar a Umbanda sem os equívocos que existam quando ela é vista como uma crendice popular, como folclore453.

Maria Isaura Pereira de Queiroz ao estudar as aproximações entre as formações da

identidade cultural e da identidade nacional no Brasil entende que as pressões da onda da

imigração européia sobre a hegemonia da antiga classe dominante colonial levaram à

valorização da brasilidade e que a criação da umbanda demonstrou a acolhida que a

452 Georges CHARBONNIER. Arte, linguagem, etnologia: entrevistas com Claude Lévi-Strauss. Campinas, SP: Papirus, 1989, p. 15. 453 Entrevista publicada no Jornal do Brasil em 23/02/75. In: Giselle GUBERNIKOFF. Op. Cit., p. 56-57.

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diversidade teve nos anos 1920 nos circuitos característicos da cultura brasileira como um

todo, não só de sua elite. A elite mais tradicional reafirmou-se através do modernismo, mas

este significou mais do que isso, a idéia de nação é assimilada como natural e seus princípios

mais racistas e eurocêntricos são eliminados e a mestiçagem torna-se valor cultural, quando

não biológico454.

Nessa perspectiva o sincretismo religioso é projetado na sua dimensão cultural455

como combinação de diferentes crenças e práticas, agregando valor positivo, implicando em

tolerância na assimilação das contradições e dos contrários. A positividade, que garante a

diversidade, afasta-se do sincretismo totalizante, aquele que procura integrar em um único

corpo elementos de variada extração com a finalidade de conseguir uma unanimidade. Essa

tendência totalizante é oposta à proposta da modernidade cultural que privilegia o corpo

heterogêneo e desigual, acatando a diferença. Alguns autores, mais exigentes, sustentam que

nenhum sincretismo suporta a crítica analítica, a crítica que divide um todo em suas partes e

que é condição própria da modernidade.

Outra vertente, que toma como base a cultura emergente456, pode ser explorada para

dar conta de uma abordagem posta frente a uma realidade que se desdobra, na medida em que

tenta proceder à síntese entre a experiência concreta e a experiência possível.

A verificação de que a nossa cultura é híbrida é a chave para Nelson aproximar-se da

cultura do povo com a flexibilidade necessária que permite superar as dicotomias estanques e

inelásticas presentes nas oposições da área cultural (cultura erudita ou cultura popular, cultura

nacional ou cultura estrangeira), observando a dinâmica cultural na sua essência, ou seja, em

como ela se dá de fato, em movimentos cambiantes entre pólos que se atraem e se repelem

sem se excluir:

Nós sabemos, desde Gilberto Freyre, que existem duas culturas no Brasil: aquela importada, imitação da cultura ocidental, e uma outra natural, espontânea, de raízes mais fortes, e que é reprimida. É o momento de começarmos a viver a cultura do povo. [...] Eu já tinha essa perspectiva há muito tempo, mesmo quando estava realizando meus filmes anteriores. O que eu não tinha era a condição pessoal de poder abdicar de uma visão própria, de um modelo próprio das coisas. Quando eu queria representar o povo, eu o representava de acordo com a minha imagem. Eu tinha uma solidariedade hipotética. O meu desejo era o de fazer um cinema ou de que o

454 Cf. Maria Isaura Pereira de QUEIROZ. Identidade Cultural, identidade nacional no Brasil. Tempo Social. Revista de Sociologia da USP, vol. 1, n° 1, 1° sem. 1989. 455 Em concordância com o conceito de sincretismo cultural formulado por Teixeira COELHO. Dicionário crítico de política cultural. São Paulo: Iluminuras: FAPESP, 2004, p. 344. 456 Elementos extraídos do conceito de cultura emergente formulado por Teixeira COELHO. Op. Cit., p.112.

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cinema brasileiro em geral exercesse uma função liberadora do nosso povo e que contribuísse para estabelecer uma comunidade cultural no Brasil457.

Sobre a cultura brasileira o debate na contemporaneidade é intenso, muita reflexão

foi e continua sendo feita. Já houve quem quisesse defini-la a partir de uma perspectiva de

unidade, enquadrando-a dentro de um conceito coeso e único. Essa posição foi afastada pela

evidência de que não existe uma cultura brasileira homogênea:

A cultura das classes populares, por exemplo, encontra-se, em certas situações, com a cultura de massa; esta, com a cultura erudita; e vice-versa. Há imbricações de velhas culturas ibéricas, indígenas e africanas, todas elas também polimorfas, pois já traziam um teor considerável de fusão no momento do contato interétnico. E há outros casamentos, mais recentes, de culturas migrantes, quer externas (italiana, alemã, síria, judaica, japonesa...), que internas (nordestina, paulista, gaúcha...), que penetraram fundo em nosso cotidiano material e moral458.

Ao se admitir o caráter plural e diverso inerente à cultura brasileira dá-se um passo

para atravessar o mosaico das superfícies e compreender a cultura como resultado de

múltiplas interações e oposições no tempo e no espaço.

Essa situação é ampliada pela sensibilidade do artista que entrevê em meio ao

emaranhado de sons e imagens algumas linhas de força mais límpidas que, seguidas na

sugestão de suas ofertas, remetem a estruturas diferenciadas. Respeitar as diferenças e colocá-

las em equivalência, observando os ritmos que modulam os vários usos do tempo é a marca

da nova posição que adota O Amuleto de Ogum. Ao longo de todo o filme, o mito e o real

estão na mesma linha, não há qualquer diferença de tratamento entre eles:

Para Nelson, a meta era retratar a vida dessa imensa população que vive à ‘margem da cultura oficial, conseqüência de uma marginalização econômica, mas que ‘mantém vivos seus mitos e suas crenças’459. Em outras palavras: ‘O objetivo não é novo, a abordagem sim’. Porque agora Nelson procura ‘viver a cultura do povo’, desvendá-la, não com a finalidade de qualquer julgamento, de adesão ou repúdio. Mas de saber ‘um pouco mais a respeito de nosso ser cultural, se ligar mais a ela, praticar uma observação mais aberta, menos facciosa’460461.

457 Entrevista publicada na Revista Manchete assinada por Nilton CAPARELLI, em 01/02/75. In: Giselle GUBERNIKOFF, Op. Cit., p. 29-30. 458 Alfredo BOSI. Plural, mas não caótico. In: Alfredo BOSI (org.). Cultura Brasileira: temas e situações. São Paulo: Ática, 1987, p. 7-8. 459 Entrevista a Marcelo BERABA, O Globo, 29/01/75, apud Helena SALEM Op.Cit., p. 294. 460 Opinião, 14/2/1975, apud Helena SALEM. Op. Cit., p. 295. 461 Helena SALEM. Nelson Pereira dos Santos. O sonho possível do cinema brasileiro. Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 1987. p. 294-295.

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Esse “ser cultural” ao qual faz referência vai ser representado, ressignificado por

meio de uma linguagem também híbrida e sincrética. O tratamento cinematográfico adotado

mescla aspectos documentários aos de ficção na busca de um campo novo de experimentação.

Para Nelson, a reaproximação com o público se dará a partir da reflexão que

contempla também uma revisão que resulte em uma proposta dramática esteticamente

original, pois o divórcio entre o cineasta intelectual e seu público teve os mais variados

motivos, sendo um deles a incapacidade de serem elaboradas propostas temáticas e formais

que mobilizassem o público.

Neste sentido O Amuleto de Ogum é um filme experimental, uma inovadora e bem

sucedida tentativa de conjugar tema e forma. Para tornar viável essa posição, Nelson Pereira

dos Santos não precisou optar pelos gêneros cinematográficos tradicionais. Apesar da sua

trama O Amuleto de Ogum não é um filme policial, muito menos pitoresco ou exótico. O

filme segue o princípio observado pelo autor na pesquisa que fez em torno da dinâmica da

sociedade e parte do princípio que assim como a vida o filme não está preso a

compartimentos, pois é construído a partir da observação de que a realidade é mestiça, impura

e carregada de contrários, comprovando que a diversidade rechaça tanto a uniformidade

quanto os compartimentos estéreis e dessa forma o filme se constitui em um processo em que

seu autor faz uma aposta estética bem delineada de acordo com a sua visão política

reposicionada.

O Amuleto de Ogum resulta em um drama em que seu autor serve-se dos recursos

narrativos tanto do documentário como da ficção, ultrapassando a fronteira da pura

espetacularidade e do simples entretenimento, através da potência dos seus meios expressivos.

O equilíbrio com que opera a fusão e a mistura de recursos narrativos dá o tom ao filme. Há

equivalência entre os personagens, a expressão fotográfica não se sobressai gratuitamente; a

escolha, o uso da música e da sonoridade que pontua o filme é sugestivo e não condiciona a

emoção; a edição apenas revela, ou seja, a densidade narrativa expressa a realidade do

espetáculo cinematográfico, sem diluir o espírito crítico do espectador.

O próximo passo de Nelson será a realização de Tenda dos Milagres em que entrará

em contato com o candomblé, religião da matriz africana, de iniciação mais complexa e de

extremo vigor, mas que também percorreu os caminhos do sincretismo para garantir a sua

sobrevivência:

É difícil precisar o momento exato em que esse sincretismo se estabeleceu. Parece ter-se baseado, de maneira geral, sobre detalhes das estampas

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religiosas que poderiam lembrar certas características dos deuses africanos462.

Em Tenda dos Milagres, como se verificará a seguir, Nelson continuará

prosseguindo na investigação em torno da religião popular e da busca de um meio expressivo,

sincrético e original para o cinema de perspectiva popular.

462 Pierre VERGER. Orixás. São Paulo: Corrupio, 1981, p. 26.

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dededede Tenda dos Milagres Tenda dos Milagres Tenda dos Milagres Tenda dos Milagres

Tenda dos Milagres é um hino de amor à Bahia [...] Pedro Arcanjo é um personagem da primeira fase. Ele é uma mistura de duas ou três personalidades importantes da cidade. Uma delas é o major Cosme de Farias, figura lendária, conhecida como o pai dos analfabetos, que, com quase 100 anos de idade, ainda desfilava de carro aberto nos festejos de 2 de Julho [...] Quem quiser lidar com o povo, não pode chegar numa atitude superior de cineasta genial. Nada disso. Tem que se chegar que nem um jornalista ou um cientista social, usando a câmera como um instrumento de trabalho, assim como o repórter usa a caneta e o engraxate usa a cera. É assim que eu vou. Eu e meus companheiros de equipe. O relacionamento vai ser de irmão para irmão. A linha, a visão e a inspiração vão ser a mesma de Jorge. Será um longo caminho a percorrer. Mas, vá lá. Vai ser um filme tão vivo quanto AMULETO, o mocinho vai voltar vivo

Nelson Pereira dos Santos463.

Quem é ateu e viu milagres como eu Sabe que os deuses sem Deus Não cessam de brotar, nem cansam de esperar E o coração que é soberano e que é senhor Não cabe na escravidão, não cabe no seu não Não cabe em si de tanto sim É pura dança e sexo e glória, e paira para além da história Ojuobá ia lá e via Ojuobahia Xangô manda chamar Obatalá guia Mamãe Oxum chora lagrimalegria Pétalas de Iemanjá Iansã-Oiá ia Ojuobá ia lá e via Ojuobahia Obá É no xaréu que brilha a prata luz do céu E o povo negro entendeu que o grande vencedor Se ergue além da dor Tudo chegou sobrevivente num navio Quem descobriu o Brasil? Foi o negro que viu a crueldade bem de frente E ainda produziu milagres de fé no extremo ocidente Ojuobá ia lá e via Ojuobahia

Caetano Veloso464

463 Entrevista concedida a Rosane de SOUZA. Jornal Última Hora, Rio de Janeiro, 30/04/75. In: Giselle GUBERNIKOFF, Vol, II, p. 118. 464 Letra da composição Milagres do Povo.

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Ao fazer o retrato do povo como seu próprio modelo em Tenda dos Milagres, adaptado

do romance de Jorge Amado, o seu décimo segundo filme, Nelson Pereira dos Santos definiu de

que maneira se deu o seu processo de construção do cinema de perspectiva popular465:

Escolhi Tenda porque há uma relação com a literatura brasileira dos anos 30, que apresentava uma visão crítica da realidade, tomando como herói o povo. Além disso, Jorge Amado é muito tentador para o cinema, devido à repercussão em qualquer mercado e pela forte presença em termos de imagens. Desde a década de 40, quando a Atlântida filmou TERRA VIOLENTA (adaptação de Terras do Sem Fim) que Jorge vem influenciando o cinema brasileiro e o carioca em particular – não só como autor, mas como intelectual com idéias circulando no meio do cinema. Aliás a Atlântida é conhecida hoje como produtora de chanchadas, mas começou com outra perspectiva. Filmes como SOMOS TODOS IRMÃOS, MOLEQUE TIÃO tratam do problema racial, influenciados pela literatura da época. Tenda é um grande depoimento sobre a cultura brasileira. A história se passa na Bahia, mas trata da questão da formação da sociedade brasileira, trata da realidade de todo país. O que ele mostra é uma sociedade gerada pelo povo em termos culturais, éticos que vai ser a sociedade dominante. Na verdade, essa sociedade já é dominante, mesmo sem ter força econômica e jurídica. É o poder do futuro. A história de Pedro Arcanjo é uma síntese disso [...]466

Tenda de Jorge Amado transformada no Milagre de Nelson Pereira dos Santos é o

confronto entre a cultura popular e a cultura acadêmica de gabinete, trata-se da história do

capoeirista, pai-de-santo e escritor afro-descendente Pedro Arcanjo, que encarou o

conservadorismo da elite branca baiana, encarnada na figura do personagem Nilo Argolo,

desmascarando as idéias racistas com uma arma poderosa: o conhecimento.

Essa história romanceada na literatura por Jorge Amado e transposta

cinematograficamente por Nelson Pereira dos Santos mantém a fonte original dos princípios

revolucionários idealizadas por aqueles que, privados da liberdade e submetidos à vontade

absoluta de um senhor, procuravam a todo custo romper as barreiras de uma política que na

sua essência estava calcada no conservadorismo social configurado em grande parte do poder

político dominante.

465 “Por cinema de perspectiva popular entenda-se uma determinada opção que impulsiona o artista sensível à importância da cultura desenvolvida pela massa popular – e não a mass media – a estruturar o seu discurso partindo de dados fornecidos pela maioria. Em outras palavras, o cinema de perspectiva popular consiste numa operação de baixo para cima – dentro da estrutura social em que vivemos – que exige a violentação de fórmulas criadas de cima para baixo, permitindo inserir no sistema de signos que é o cinema de valores e padrões populares que, afinal, são o que melhor poderão definir a cultura brasileira”. Cf. Ronald F. MONTEIRO. O cinema de perspectiva popular – Brasil Anos 70. Cinemais – Revista de Cinema e outras questões Audiovisuais. Rio de Janeiro, número 28, março e abril de 2001, p. 106. 466 Entrevista de Nelson Pereira dos Santos. Tribuna da Bahia, 12/13 de outubro de 1975 apub Giselle Gubernikoff, O cinema brasileiro de Nelson Pereira dos Santos – uma contribuição ao estudo da personalidade artística. São Paulo, ECA-USP, 1985 (Dissertação de Mestrado, vol. II, p.124).

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O personagem principal Pedro Arcanjo, o ojuobá, é a própria representação da

multiplicidade das pessoas de origem africana que nasceram após o trágico tempo da

escravidão. Arcanjo tem formação autodidata, é um intelectual endógeno que se contrapõe aos

doutores da Faculdade de Medicina da Bahia, naquela época um dos grandes centros de

estudos do país. Arcanjo confrontou o pensamento científico predominante na medicina legal,

utilizada como suporte político da elite branqueadora racista e discriminatória que procurava a

todo custo fortalecer o arquétipo prevalecente da sociedade oligarca, arcaica e autoritária.

Arcanjo é o símbolo opositor a essa forma política monolítica porque visualiza uma sociedade

oposta e democrática na qual não existe a superioridade de raças. Por essa atitude, Arcanjo é

“uma síntese do poder futuro, observando que mesmo sem ter ainda a força econômica e

jurídica, já começou a existir uma sociedade dominante gerada pelo povo, em termos culturais

e étnicos467”.

O tempo espacial do filme Tenda dos Milagres se compõe de várias épocas: a do

passado distanciado que se localiza no início do começo do século XX, precisamente em 1904

e se prolonga para um segundo espaço do passado próximo, demarcado pelo início da

Segunda Guerra Mundial. São extensões espaciais dramáticas sem limites, nas quais o negro

já liberto do regime escravocrata procurava uma forma de lutar contra a sociedade

configurada pelo padrão europeu, Arcanjo é o condutor das idéias libertárias. Era o começo de

um longo enfrentamento que ainda hoje se alonga com novos conceitos e outros

desdobramentos mais acirrados que só fazem aumentar a não coabitação entre negros e

brancos.

O outro período do filme é mais presente e se situa no ano de 1975 – no romance a

ação se passa no ano de 1968 - trata-se de uma adequação espontânea do autor

cinematográfico Nelson ao seu período de pesquisa, de filmagens e da finalização do filme468.

Nessa fase onde se configura a contemporaneidade, o grande enigma a ser descoberto

é: quem teria sido Pedro Arcanjo? O brasilianista Dr. James Dean Livingston após uma

entrevista coletiva provoca o interesse da imprensa sobre o personagem histórico. A partir das

indagações do cientista americano, o personagem Fausto Pena é instigado a saber quem fora

Arcanjo.

O espaço dramático do presente no filme expõe uma sociedade que absorveu a

modernidade conservadora na qual a memória das lutas e das reivindicações políticas e sociais

do passado recente dos afro-descendentes já havia caído no esquecimento ou então já haviam

467 Cf. Jose Tavares de BARROS. O código e o texto. Op. Cit., p.88. 468 O projeto teve início em julho de 1975 e o filme foi lançado oficialmente no Brasil em outubro de 1977.

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sido diluídas da sua originalidade. Fausto Pena – poeta e escritor na versão literária, é,

também, transformado em cineasta na versão fílmica –, constrói um filme processando a

metalinguagem em Tenda dos Milagres para reconstituir a vida do herói Pedro Arcanjo.

O filme submetido aos critérios de uma análise fílmica pode ser dividido em quatro

tempos: o primeiro é o presente narrativo, no qual o cineasta Fausto Pena processa a

montagem do filme que está fazendo a respeito da história de vida de Pedro Arcanjo; o

segundo tempo trata do passado recente, onde se busca descobrir quem foi Pedro Arcanjo, e o

espaço dramático é a Bahia dos meados dos anos 1970, provocada pelas declarações do

americano James Dean Livingston; o terceiro tempo é o passado mais distante que trata da

reconstituição da vida do jovem Pedro Arcanjo, e o quarto tempo é o passado menos distante

que abrange a maturidade e a morte do personagem Pedro Arcanjo469.

Os tempos dramáticos foram cenograficamente compostos na cidade do Salvador,

Bahia, o que obriga ao olhar do espectador somente perceber a mudança temporal através dos

figurinos das personagens, pois nunca é possível enxergá-lo, localizá-lo ou defini-lo através

do espaço urbano, já que esse espaço confunde-se arquitetonicamente na visão de quem

observa o filme, mistura-se o passado e o presente, o barroco e a modernidade.

Além disso, esses tempos são intercalados em ordem não cronológica, rompendo com

a linearidade, e isso provoca uma fragmentação na narrativa. Embora o filme conserve o

sistema básico do cinema clássico de transparência de início, meio e fim, é necessário ressaltar

que Nelson subverte a narração clássica do cinema convencional com muita sutileza. Assim, na

verdade, existe em Tenda dos Milagres uma composição fílmica circular e fragmentada.

Do ponto de vista da clareza e da organização do discurso observam-se sinais

precisos que orientam o espectador no caminho que o filme vai trilhando, através de seus

planos, cenas e seqüências, embora alguns planos resultem obscuros. A lógica adotada por

Nelson Pereira dos Santos para concatenar os níveis temporais no filme convoca a

participação crítica do espectador. Com declarada intencionalidade ou operando a

transcendência necessária em resposta aos desajustes de produção, Nelson não mascara as

debilidades que se manifestam no filme, principalmente as que surgem no nível da cena. As

coisas não se apresentam como acabadas, não são estáveis, elas surgem, se organizam e se

fragmentam forçando o espectador a procurar a chave de significação entre as camadas

justapostas que só se revelam como um todo através da decodificação de sua estrutura. Tenda

469 Esta proposta de divisão do roteiro do filme Tenda dos Milagres em quatro tempos foi elaborada pelo crítico Ronald F. MONTEIRO. Cf. O cinema de perspectiva popular Brasil Anos 70. Op. Cit.

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dos Milagres mobiliza o espectador em várias instâncias, mas para ser compreendido exige a

apreensão da sua totalidade, o que significa acatar o jogo de armar da sua proposta.

Na primeira seqüência do filme, após o prólogo, assistimos às cenas de montagem do

filme narrando como foi a vida de Pedro Arcanjo, o Ojuobá – os olhos de Xangô –, nascido

no século XIX, exatamente no ano de 1875 e morto no início dos anos 1940, do século XX,

quando a população exigia a adesão do País a Segunda Guerra Mundial. Arcanjo, em que pese

a sua histórica vida, é na contemporaneidade um desconhecido da maioria dos intelectuais

baianos e brasileiros, mas é louvado e agraciado por um detentor do prêmio Nobel, que

quando da sua passagem por Salvador, Bahia insiste em conhecer mais de Pedro Arcanjo em

seu solo natal, mobilizando intelectuais e a mídia para o descobrimento do personagem. Nesse

sentido, o filme tem muita semelhança com o livro Tenda dos Milagres –, porém amplia a

complexa linearidade narrativa, pois o romance tem uma estrutura fracionada ou mesmo

quebrada.

Os níveis temporais expostos no livro estão distribuídos da seguinte maneira: há o

relato do poeta Fausto Pena, sempre na primeira pessoa; existe a descrição do tempo presente,

a partir da chegado do cientista americano e temos o tempo da rememoração da vida e da ação

política de Pedro Arcanjo. Contudo essa estrutura temporal foi bastante modificada na versão

cinematográfica, além disso, o poeta Fausto Pena transformado em cineasta é uma clara

alusão ao cinema autoral:

Mas, por outro lado, se Nelson Pereira dos Santos tinha a intenção de discutir o processo de fazer cinema no Brasil de 1977, parece evidente que encontrou um elo entre essa proposta e o romance de Jorge Amado que lhe serviu de base. O que quer se afirmar é que a escolha do livro “Tenda dos Milagres” não foi casual ou indiferente; pelo contrário, deu-se o encontro porque Nelson Pereira dos Santos descobriu situações, personagens e sobretudo uma estrutura narrativa que continha potencialmente – ainda no plano literário – o filme que ele pretendia fazer. Se a luta travada pelo escritor Fausto Pena significava uma extensão da história de Pedro Arcanjo e de posição contra o colonialismo cultural, esta por sua vez se articularia com os problemas que Nelson Pereira dos Santos enfrentava para realizar um filme dentro das condições brasileiras. Assim, não é secundária, mas primária e essencial, a transformação de Fausto Pena–escritor em Fausto Pena-cineasta no processo de adaptação do texto literário para o cinema; em conseqüência, será insuficiente qualquer leitura de TENDA DOS MILAGRES que não relacionar os elementos da sua ação com essa proposta: o filme dentro do filme470.

470 Cf. José Tavares de BARROS. Op. Cit., p.132.

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O número de cenas em Tenda dos Milagres das seqüências do tempo presente, nas

quais o personagem Fausto Pena está editando e comentando o filme com o montador

Severino Dadá, se resumem em apenas cinco aparições. Porém, são fundamentais para o

entendimento da construção do filme. São cenas de curta duração com o propósito de

assegurar a presença de Fausto Pena no presente narrativo do filme, e nas ações dramáticas.

Fausto Pena contracena com o referido montador Severino Dadá e com a personagem Ana

Mercedes. Nota-se a intenção de Nelson de se distanciar do seu objeto original – Tenda

romance –. Já o personagem do montador Severino Dadá é uma pessoa conhecida do mundo

cinematográfico brasileiro, e não faz parte do conjunto de personagens de Jorge Amado, no

entanto não há um distanciamento entre ele e os criados por Amado, uma vez que se trata de

uma figura popular. Severino Dadá é a inserção do autor cinematográfico Nelson, e nas suas

poucas falas questiona Fausto Pena sobre as verdades de Pedro Arcanjo e de qual seria o final

do filme.

Da mesma maneira, a aparição em uma das cenas dessas seqüências do cineasta,

poeta e intelectual Fernando Coni Campos, acompanhado de Ana Mercedes, entregando a

Fausto Pena os escritos de Pedro Arcanjo, é outra liberdade de criação de Nelson Pereira dos

Santos. Ainda, existe, em uma das cenas uma citação em off ao cineasta Roberto Faria, na

época exercendo a presidência da Embrafilme. Essas inserções de personalidades do mundo

cinematográfico, assim como uma rápida alusão a Embrafilme e um cartaz de uma

pornochanchada exposto na sala de montagem fazem parte da estratégia de Nelson de chamar

a atenção para o cinema brasileiro e situar o seu contexto.

Todas essas licenças poéticas cinematográficas feitas por Nelson dentro do conjunto

criado anteriormente por Jorge Amado em Tenda original, funcionam com o propósito de

estabelecer um caráter documental ao próprio filme Tenda. Além do mais se verifica que o

personagem Fausto Pena está a quase todo momento a falar sobre a história que já aconteceu e

a passar para o espectador informações sobre a evolução do relato como um todo. Em outras

falas, Pena trata sobre questões relacionadas com a produção querendo enfatizar junto ao

espectador as dificuldades para concretização do filme, é a reflexão crítica de Nelson Pereira

dos Santos sobre o processo da produção cinematográfica brasileira.

Uma das linhas de força do filme é a constituição do presente recente, 1975. Existe

uma longa sucessão de episódios provocados pela revelação do cientista americano James D.

Livingston, no meio cultural e social da Bahia. Logo no prólogo do filme aparece uma

apresentadora de televisão com uma feição meio caricata, anunciado a presença e a

provocação científica do Dr. Livingston. Em seguida, após as cenas da entrevista, no saguão

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do hotel, temos uma grande disputa por parte de veículos de comunicação de quem vai dar o

“furo jornalístico” sobre quem foi Pedro Arcanjo. Fausto Pena é cobrado pelos seus chefes,

especialmente o Dr. Zezinho (diretor do jornal), que ameaça não publicar nenhuma matéria de

cunho cultural em seu jornal até descobrir a verdadeira história de Arcanjo, e Pena é obrigado

a concorrer com Ana Mercedes com quem mantém um affaire, e ao mesmo tempo vai

estabelecer uma cumplicidade na produção do filme e da peça de teatro sobre Arcanjo.

Para seguir a trajetória de Pedro Arcanjo, Pena recorre ao contínuo do jornal,

conhecido pela alcunha de Ligeireza que havia afirmado ter conhecido pessoalmente o mestre

Arcanjo. Então, Ligeireza narra a Fausto Pena como aconteceu a morte de Arcanjo dentro de

um bordel. Assistimos em flashback a primeira morte de Arcanjo, retratada de forma

espalhafatosa. Serão sucessivos flashbacks que vão intercalar o presente recente ao passado

distante em quatro seqüências-chaves, nelas vemos as ações desmistificadoras do racismo e a

vida amorosa do jovem Arcanjo. Da mesma maneira, o presente se relaciona ao passado mais

recente, no qual a maturidade de Arcanjo, a continuidade da sua disputa com academia, a

refrega com a repressão aos terreiros de candomblé, a reflexão política e a sua segunda morte

são mostradas.

No tempo presente, além dos citados personagens Fausto Pena, Ana Mercedes,

James D. Livingston, Dr. Zezinho, temos ainda com maior destaque as personagens da

professora Edelweiss Calazans e do publicitário Gastão Simas. Edelwiess no romance é

Edelweiss Vieira, uma artesã, autodidata cheia de boas intenções e completamente por fora da

realidade do mundo que acerca. Na versão cinematográfica foi transformada em uma

professora que é a fusão dos três únicos personagens que levam a sério a recuperação da

memória de Pedro Arcanjo. Edelwiess aparece com destaque conduzindo a palestra de

Livingston na Faculdade de Medicina, e é escolhida para ser a curadora do seminário sobre

Arcanjo com a participação do publicitário Gastão Simas, mas este aplica um golpe e aborta o

evento alegando uma falsa censura, e conta com apoio nessa falcatrua do Dr. Zezinho, agora

interessado em um lançamento imobiliário que leva o nome de Pedro Arcanjo e na

comemoração do seu centenário que acaba concretizando-se como o retrato oficial de Pedro

Arcanjo visto pela sociedade burguesa e branca, abafando a sua verdadeira face criada no

imaginário popular.

Nessas seqüências Nelson aponta e interliga de forma muito clara a continuidade dos

elementos conservadores da sociedade brasileira com origem no passado que se perpetuaram

e reaparecem travestidos no cinismo e no oportunismo, procurando fazer um desmonte do

personagem Arcanjo, cristalizando a sua massificação como produto de consumo.

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Para contrapor a verdade sobre o Arcanjo folclórico e o Arcanjo politizado, Nelson

habilmente utiliza-se da fragmentação da narrativa cinematográfica. Nesse caso, as tensões

provocadas pelas idéias de Arcanjo rompem o tempo e dão possibilidades de várias leituras.

Recordemos a cena em que aparece pela primeira vez o jovem Arcanjo no pátio da Faculdade,

após a aula ministrada pelo professor Nilo Argolo. Os alunos se esbarram em Pedro Arcanjo,

e este na base da galhofa leva um dos estudantes ao ridículo por este defender a sua pureza

racial. Esta cena está localizada, logo depois da cena do desentendimento de Fausto Pena – no

tempo presente – num bar, com um professor negro, que também nega as suas origens e diz

impropérios racistas contra Arcanjo. Esta cena é inusitada porque ao mesmo tempo em que

Pena se digladia com o professor, é assediado por um homossexual. Nesse sentido, o autor

Nelson trabalha com uma complexa situação, em que estabelece um distanciamento de

comportamento entre Fausto Pena e Pedro Arcanjo, pois enquanto Pena reage de forma

agressiva à fala do professor racista, Arcanjo não perde a pose por causa dos desaforos

desferidos pelo estudante a sua pessoa.

Nelson está sempre operando com o confronto e com o contraditório, e trabalhando

com tempos fílmicos distintos uns dos outros. Essa refinada opção de fragmentação e

circulação narrativa provoca no espectador uma necessária compreensão do conteúdo do

filme, e gera uma diversidade de posições políticas a respeito da verdadeira personalidade de

Pedro Arcanjo. Sobre essa alteração da realidade dramatúrgica, o crítico Ronald F. Monteiro

fez a seguinte observação sobre Tenda dos Milagres:

Logo no início do filme Fausto examina seu trabalho na moviola com o auxiliar Dadá; são mostrados aos espectadores flashes de Arcanjo moço e velho (rosto dos atores Jards Macalé e Juarez Paraíso caracterizados para o papel). A suposição é que aquelas são as representações escolhidas por Fausto para viverem os personagens cuja vida ele pesquisou. Há, ainda, indicações de que em alguns momentos da pesquisa de Fausto e Ana Mercedes, na Bahia, estejam no filme. Entretanto, na conclusão, depois que Fausto sai de cena, quando é descerrado o retrato de Arcanjo na comemoração do seu centenário, surge a mesma fisionomia do ator Jards Macalé. As fantasias autorais da realidade dramatúrgica do filme confundem-se e desafiam qualquer esforço de distinção471.

São contínuas as alteridades da realidade dramática em Tenda dos Milagres. A

personagem Ana Mercedes no filme é bem diferente da estruturada no romance, enquanto na

peça escrita ela representa uma mulher sedutora, livre dos preconceitos nos jogos amorosos,

além de ser muito manhosa, utilizando-se dos seus atrativos em proveito próprio que não foge

471 Cf. Ronald F. MONTEIRO. Op. Cit., p. 114.

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da submissão, é uma representação de uma mulher de vida licenciosa com volubilidades

artísticas. A cinemática Ana Mercedes exerce no filme um papel mais moderno. É uma

mulher independente que, embora mantenha uma relação amorosa com Fausto Pena, não

deixa de se envolver com amores fugazes, e não se desvincula de Pena, provavelmente por

provocação intelectual, compaixão ou mesmo dó.

A ligação de Ana Mercedes com Fausto Pena é vista em quase todo o tempo presente

do filme. Ela participa ativamente da pesquisa sobre Arcanjo e destaca-se na montagem da

peça teatral inacabada. Nas cenas do ensaio teatral se envolve com Ildásio, uma vez que a

peça desanda, o melhor é uma refrega sexual. Ana Mercedes faz, também, num momento de

idílio amoroso com Fausto, o grande questionamento sobre a personagem Rosa de Oxalá,

atribuindo a ela a razão de ser, o grande amor de Pedro Arcanjo. Rosa se dividia entre Arcanjo

e o seu fraternal amigo Lídio Corró. Arcanjo ganhou Rosa numa disputa musical e corporal,

mas Rosa, tempos depois, preferiu assumir a sua relação com um burguês branco para dar

segurança ao seu filho.

A relação amorosa entre Ana Mercedes e o americano Livingston é narrada por dois

pontos de vista: na carta que o cientista escreve para o jornal e nos comentários feitos pela

própria Ana a Fausto Pena no bar. Ana Mercedes, antes do seu envolvimento com o

americano, havia surpreendido a todos quando incorporou um santo no terreiro de candomblé

– não há essa cena no romance – é uma invenção do autor Nelson Pereira dos Santos. Há um

desencontro nas imagens e nas versões masculina e feminina do encontro entre Ana e

Livingston. Enquanto, ele se recorda da noite de amor e sexo, ela descreve que apenas havia

pousado fotograficamente para satisfazer ao voyeurismo de Livingston. Onde estaria a versão

autêntica? Seria nas primeiras cenas, nas quais Ana Mercedes quer testar a masculinidade do

americano? Ana Mercedes sobe na cama, se despe e diz: “Quero ver se você é bom mesmo ou

é só fachada”, e enlaça o americano com um colar. O filme não define qual teria sido a versão

verdadeira, deixa a dedução na cabeça de cada espectador.

A ambigüidade é recorrente em Tenda dos Milagres, assim como as deduções a

respeito da construção do personagem principal Pedro Arcanjo. Quem melhor conhece o

professor afro-descendente é o próprio povo, que é despertado através do programa de

radialista França Teixeira, um personagem folclórico do radio jornalismo sensacionalista

baiano, Teixeira afirma ao microfone: “Pedro Arcanjo foi o rei do brega da Bahia”, a sua voz

ressoa nos ouvidos dos populares que transitavam nas ruas de Salvador. Ligeireza comentou

com a baiana de acarajé, que estava escutando o programa num rádio de pilha: “Tá todo

mundo falando de velho Arcanjo. Que é que tão querendo?”.

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O espectador vai conhecer Arcanjo gradativamente a cada momento que o filme em

flashback reconstrói a história do herói do povo. O jovem Arcanjo é destemido e debochado,

desafia a ordem do chefe de polícia e desfila com o seu bloco afro, e sai ileso junto com os

amigos. De imediato o espectador vai se deparar com o ambiente habitacional de Arcanjo, a

barraca da comadre Terência, a tenda que divide com Lídio Corró, a amizade com o menino

Damião. Vamos conhecer as mulheres de Arcanjo: da finlandesa Kirsi que vai se apaixonar e

engravidar, retornando ao seu país levando o filho na barriga, à Rosa de Oxalá que enciumada

encarna o mito, quebra os preceitos da religião afro-descendente para ter uma longa noite de

amor com o jovem Arcanjo e transformá-lo no velho Arcanjo. Momento de grande

transformação. Rosa e Dorotéia fundem-se na Iaba, encarregada de transmutar, pela

subjugação amorosa, a personalidade de Arcanjo:

Tenda dos Milagres. Lídio e Manoel sugerem a Pedro Arcanjo que escreve o que sabe sobre a Bahia. [...] Ouve-se um ruído forte de ventania, a imagem é clareada por fogos de artifícios. Pedro Arcanjo levanta-se, dirigi-se a porta da rua. Iaba desfila por uma ladeira, até chegar à porta da ‘Tenda’: ela é primeiro Rosa de Oxalá, depois Dorotéia. A porta de Tenda pergunta por Pedro Arcanjo. Dorotéia: ‘Cadê Pedro Arcanjo, esse pai d’égua’? Rosa: ‘De bode vai virar capado’. Pedro Arcanjo sobe ao quarto , reza, agita os guizos, enfrenta primeiro Dorotéia, que vira Rosa. É Rosa que Pedro Arcanjo abraça furiosamente. Na sala abaixo, Lídio comenta que ‘Pelas minhas contas já acabou e começou quarenta vezes’, referindo-se a tradição que a Iaba não goza nunca: Pelo que vejo, era uma vez o mestre Arcanjo’, diz Manoel. Primeiro plano da Iaba Rosa, deitada; ruídos de gotas d’água caindo. A câmara afasta-se enquadrando apenas o teto do quarto. Surge Pedro Arcanjo agora interpretado por Juarez Paraíso. Em off, voz da iaba Rosa: ‘Tu me virou mulher. Comeu a minha força e meu segredo. Tu agora é o cão solto na Bahia’.472

Nessas seqüências de imagens Nelson Pereira dos Santos vai da verossimilhança,

quando usa adequadamente a história de Arcanjo, à inverossimilhança, quando abre as

possibilidades para a imaginação criativa, ou seja, transita do real à magia cinematográfica.

Embora Tenda dos Milagres não conte com os recursos mirabolantes das novas tecnologias, o

elemento mágico suscitado no próprio do cinema desde a origem dessa fabulosa máquina de

reinventar a realidade se faz presente na densidade das imagens coreograficamente compostas

com certa maestria. Podemos apontar essas soluções nas cenas das transformações das

mulheres e na fusão que resulta no envelhecimento do personagem Pedro Arcanjo, em que o

jovem Arcanjo ao levantar a cabeça após a saudação feita ao orixá apresenta as marcas do

tempo.

472 Cf. Jose Tavares de BARROS. Op. Cit., p.109.

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Na fase da maturidade de Arcanjo é que são acirradas as relações políticas contra a

religião afro-descendente. Também, nesse passado recente da diegese do filme é que alguns

personagens se destacam e ganham evidências favorecendo a contextualização da história,

bem como desvendando os mistérios que ainda restam em torno da figura de Pedro Arcanjo,

para isso contribuem as personagens do já citado Professor Nilo Argolo e do professor Fraga

Neto. Entre Pedro Arcanjo e Neto se desenrola o diálogo mais intenso no sentido da definição

política do filme, e conseqüentemente do posicionamento do autor Nelson diante do confronto

política e religião:

O professor Fraga Neto, um marxista convicto, no último encontro com Pedro

Arcanjo, depois da demissão de Arcanjo da Faculdade de Medicina, estranhando a sua

profunda relação com o candomblé, escuta de Arcanjo que depois das suas intensas leituras,

havia ele se distanciado da visão ingênua que tinha das coisas, mas categoricamente afirmava:

“os orixás são um bem do povo. É preciso saber conciliar teoria e vida, amar o povo e, não, o

dogma. Um dia haverá uma cultura brasileira mestiça, e com a ajuda dos orixás”.

Esse breve diálogo extraído do seu contexto, ou seja, do âmbito da história do filme

serve como uma alusão as posições políticas e estéticas assumidas pelos cineastas oriundos do

movimento do Cinema Novo, e transparece uma autocrítica dos compromissos assumidos na

primeira fase do movimento, quando se almejava de forma meio ingênua a transformação do

pensamento político brasileiro das camadas populares. Após a brutal mudança na estrutura

política brasileira e seus maléficos efeitos no campo cultural, os intelectuais que “falavam

pelo povo”, fizeram uma revisão dos posicionamentos políticos e estéticos dos seus filmes, e

Nelson se antecipou, ou melhor, retornou com novas bases, dessa vez sem idéias ortodoxas,

ao cinema que ele próprio já havia realizado na sua primeira fase e que já foi abordado, o

chamado cinema de perspectiva popular como uma saída para uma sociedade que ansiava pela

liberdade e democracia, como, também, para um cinema que continuava em busca do seu

público. Não é efêmera a escolha da adaptação de Tenda dos Milagres. Nesse sentido, Nelson

apontava para caminhos a seguir em que incorporava inevitavelmente o pensamento popular,

e evidentemente, a sua tradição religiosa não católica que perdia o sentido de alienação e

passava a ter sintonia com a idéia de transformação da sociedade pela assimilação e respeito

às diferenças. Observa-se que é logo após Tenda, que já havia sido precedido por O Amuleto

de Ogum, que Glauber Rocha vai realizar o seu último filme A idade da terra, ícone –

manifesto político estético que prioriza o povo e a sua religião afro-descendente. Não restam

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dúvidas de que o pai Nelson, assim Glauber473 o chamava, continuava como uma estrela guia

das imagens do moderno cinema brasileiro.

Em Tenda, o conflito étnico religioso político é um micro universo do que

presenciamos hoje em quase todo o mundo. É claro que sem a dimensão bélica dos conflitos

atuais. No filme, os personagens que comungam do verbo reprimir estão lado a lado do

professor Nilo Argolo, que professa as idéias racistas e a ele se alinha o coronel Gomes,

representante da tradição conservadora da família que embranqueceu e que a todo custo nega

a mistura das etnias tão comum ao brasileiro. À tropa de choque da elite perfila-se o delegado

Pedrito Gordo, o executor que conduz a ação da repressão. Opondo-se a esse conjunto, o

chefe de polícia Fernando Góes, um paradoxo no sistema repressivo que assume a sua

negritude; a falida condessa francesa conhecida como Zabela, que revela, a cada momento, os

traços afro-descendentes das famílias brancas e dos personagens racistas e reacionários; a tia

Eufrásia e sua sobrinha Lu, filha do coronel Gomes, que vai contrair matrimônio com Tadeu

Fonseca, filho de Pedro Arcanjo, causando um reboliço na sua casa; que se estende até o

professor Fraga Neto.

Nesses aparentes e simples embates em torno da religião, sobretudo no

distanciamento entre negros e brancos, enfatizado constantemente pela elite conservadora,

Nelson põe em destaque a religião afro descendente como suporte junto ao povo, sobretudo o

candomblé enquanto fonte de resistência do oprimido à repressão que lhe é imposta pelos

donos do poder. Assim, assiste-se a inúmeros ataques da polícia aos templos sagrados, à

arbitrária prisão do Pai Procópio – protagonizado no filme pelo artista e pai-de-santo

conhecido e reconhecido na Bahia, Luís da Muriçoca. Como contraponto necessário para

professar a defesa da religião afro-descendente, Pedro Arcanjo ridiculariza o delegado Pedrito

Gordo, invocando a ancestralidade de um auxiliar do policial, levando- a incorporação de um

orixá publicamente em meio a uma ação de repressão ao culto religioso. O auxiliar volta-se

contra a autoridade e a tropa policial, guerreiro incorporado defende o povo de santo, e

expulsa os opressores do terreiro.

Aliás, Nelson funde as formas clássicas da ficção e do documentário. Compõem o

filme como atores da dramaturgia natural figuras expoentes da camada mais nobre candomblé

da Bahia, por exemplo, Mãe Mirinha de Portão, Mãe Menininha do Gantois, Mãe Ruinho do

473 “Depois de conhecer Nelson Pereira dos Santos, encarei a possibilidade de fazer um filme no Brasil. Entre Pátio e Cruz, fui estagiário de Nelson no Rio de Janeiro. Vim da baia para o rio quando ele filmava Rio, Zona Norte. Durante a montagem de Barravento ele me influenciou e me formou tecnicamente. Se alguém teve influência na minha vida cinematográfica e intelectual, este foi Nelson”. Glauber ROCHA. Positif, 67. Entrevista a Michel Ciment. In: Glauber ROCHA. Op. Cit., 2004. p. 111.

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Bogum. Nelson investe na busca da veracidade, ao mesmo tempo em que recorre à

dramaturgia natural já instituída como um traço do seu repertório fílmico, fortalecendo a

aceitação dos conceitos e do poder originário dos terreiros como fortalezas do pensamento e

das idéias libertárias do povo afro-descendente brasileiro.

Não é à toa que Nilo Argolo, o representante simbólico ficcional da reação, leva às

ultimas conseqüências as suas idéias reacionárias que culminam com a demissão de Pedro

Arcanjo da função de bedel da Faculdade de Medicina. Em seguida, para o aumento do seu

infortúnio, é preso e no fim da vida passa a vender de tudo para sobreviver. Mas, Arcanjo em

nenhum momento abdica dos seus princípios e das suas vigorosas idéias, amparado na sua

crença religiosa que só reforça os conceitos políticos. Nelson ainda mostra Pedro Arcanjo na

sua derradeira investida lutando contra a tentativa do totalitarismo universal provocada pela

ascensão do nazismo na Alemanha e do fascismo na Itália.

Passeata pelas ruas da cidade, à noite. Populares portam faixas. “As armas e ao trabalho, brasileiros” – “Guerra às potências do eixo”. O Hino Nacional é tocado pela banda e cantado pelo povo. Pedro Arcanjo caminha sozinho. De repente sente-se mal, aperta o coração, apóia-se no guarda-chuva, senta-se no meio-fio474.

Segue-se o desfecho do filme, o espectador é levado ao tempo presente, Fausto Pena

explica ao montador Severino Dadá que “o importante é que Pedro Arcanjo sempre foi fiel às

suas idéias”, que então acrescenta: “Eu não preciso terminar o filme todo mundo já viu”.

Corte. O Dr. Zezinho abre as comemorações elitistas do centenário de Pedro Arcanjo, a

professora Edelweiss aplaude sem muito entusiasmo, fecha a imagem. Um registro da festa 2

de Julho, desfile comemorativo da data cívica da independência da Bahia, faz o contraponto à

falta de espontaneidade e mascaramento constantes da seqüência anterior. É esse o momento

preciso em que a ficção transmuda-se em documentário. Os habitantes de Salvador encenam o

drama popular que comemora a vitória, marco de liberdade dos brasileiros que se insurgiram

para destituir o poder português. Caboclos- mestiços -sincréticos desfilam pelas ruas da

histórica Salvador com toda a pujança da conquista, com toda a carga da nacionalidade

fazem-se representantes do País novo que se organiza, ícones alegóricos de uma realidade

histórica construída coletivamente. Viva o povo brasileiro! Fim.

Com o passar do tempo, visto na ótica dos dias atuais Tenda dos Milagres pode ser

considerado um filme que aborda uma das questões mais polêmicas da sociedade brasileira: a

474 Cf. Jose Tavares de BARROS, op.cit. p.122.

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miscigenação. Já na época do lançamento do filme críticas contundentes foram feitas ao filme.

O conteúdo dos artigos, especialmente os elaborados por Jean Claude Bernardet475, enfatizam

que a tese da miscigenação esteve sempre voltada a favor de uma política que obedecia como

meta a “brancura” da sociedade brasileira, e esse processo só acontecia quando um branco

casava-se ou vivia com uma negra, ou quando um negro se casava com uma branca, a busca

em ambas as ações era clarear a “cor do povo brasileiro”. De maneira muito rigorosa, a idéia

da anti-miscigenação é a de que se trata de “uma forma pacífica de exterminar os negros”.

Assim, o filme Tenda dos Milagres seria uma idéia desmobilizante da luta contra o racismo, e

um convite à inanição diante dos conflitos raciais existentes no país.

De acordo com Jean Claude Bernardet476, os conflitos registrados no filme são

solucionados de forma simplista e as ações encaminhadas dentro da narrativa de uma forma

passiva com a convicção de que com o desenrolar da miscigenação entre as gerações de

negros e brancos os conflitos raciais seriam reduzidos. Na opinião do crítico trata-se de um

equivoco, pois a Bahia, e o país convivem e continuarão a conviver com um racismo igual aos

dos séculos passados. Por outro lado, se observa que esse modelo de crítica tem uma

abrangência muito mais ampla do que a que se detém exclusivamente nos elementos

apresentados pelo filme, Bernardet universaliza os conceitos que abarca do universo do

escritor Jorge Amado ao do cinema de Nelson Pereira dos Santos e acrescenta na sua análise

os problemas raciais e do colonialismo cultural que se perpetuaram ao longo dos anos.

Por outro lado, na defesa do filme, a crítica americana Marsha Kinder diz que é bom

lembrar que Tenda dos Milagres é um filme com viés voltado para o humanismo do seu

personagem, além das perspectivas de uma política racial, embora o filme discuta,

evidentemente, as ideologias das classes sociais e seus respectivos embates, ele consegue

envolver o espectador emocionalmente e até certo ponto pode ser considerado um filme

divertido com sátiras desmistificadoras da estrutura social brasileira, pois mistura os

problemas raciais com política sexual, analisa o comportamento feminino e masculino diante

da vitalidade do sexo que sempre aflorou no país, e particularmente na Bahia, vista como um

espaço propício à liberdade sexual, sem as amarras do puritanismo que calçou grande parte do

comportamento cultural em voga em determinados lugares. Essa forma de comportamento

475 Cf. os artigos de Jean Claude BERNARDET: Tenda dos Milagres: a cultura é um fato político, publicado no jornal Última Hora, São Paulo, 08/02/1978; Estamos ficando brancos. Última Hora, São Paulo, 14/02/1978; Tenda dos Milagres: um convite à alienação. Última Hora. São Paulo, 16/03/1978. 476 Jean Claude BERNARDET ainda discute sobre a ideologia do filme Tenda dos Milagres de Nelson Pereira dos Santos em Cinema Brasileiro: Propostas para uma História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

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tanto está contida no romance de Jorge Amado quanto no filme de Nelson Pereira dos

Santos477.

Dos choques ideológicos, da miscigenação, do encontro de valores, da mentira e da verdade, do preto e do branco: o filme de Nelson Pereira dos Santos desdobra-se em elementos contraditórios que tendem a despertar o espectador do seu comodismo. [...] este filme deve ser visto por todos e que Arcanjo é uma personalidade digna de ser admirada (embora seu mito inclua mentiras, distorções e omissões) [...] (Pedro) Arcanjo, (Fausto) Pena e (Nelson) Pereira dos Santos não são puristas e também nós espectadores, não somos – este é o ponto central. O filme celebra a miscigenação e as formas mistas como a melhor solução para o racismo, para democracia e para fazer filmes478.

dededede Utopia Utopia Utopia Utopia

O pensamento que presidiu a primeira fornada do chamado Cinema Novo não estava nem no cinema. Estava na grande tradição do pensamento brasileiro. Porque nós somos filhos dos literatos, dos escritores, dos romancistas, da Semana de Arte moderna, da literatura nordestina do romance dos anos 30. Nós somos filhos dessa gente, que procurou conscientizar essa relação.

Nelson Pereira dos Santos479

Essa riqueza cultural é uma herança enorme e partilhadíssima; ela não tem dono. Ela se perde nas origens dos tempos. A explicação que se pode encontrar para ela é mais uma visão antropológica do que uma visão ideológica, política. Pelo fato de ser partilhada, ela é individualizada. Cada um de nós é o mais lídimo representante dessa herança, o mais lídimo herdeiro de tudo isso, que foi construído e legado no decorrer dos tempos.

Nelson Pereira dos Santos480

477 Marsha KINDER. Tent of Miracles. In: Film Coment. USA, fevereiro/março de 1978, p.45-50. Apud Jose Tavares de BARROS. Op. Cit., p. 168. 478 Id., Ibid. 479 Depoimento a Giselle GUBERNIKOFF, em São Paulo 16/5/1979 e 5/2/1980 com a participação de Reinaldo Volpato e Guilherme Lisboa. In: Giselle GUBERNIKOFF. Op. Cit., p. 334. 480 Id. Ibid. p. 340.

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Falar sobre a obra de Nelson Pereira dos Santos é entrar em acordo a utopia com a realidade.

Emanuel Cavalcanti481

A tradição nutre a criação, a criação nutre a tradição: música de Carlos Chávez e de Heitor Villa-Lobos, arquitetura de Oscar Niemeyer e de Luis Barragán, pintura de Orozco, Frida Kahlo, Portinari, Soto, cinema de Emilio Fernández e Nelson Pereira dos Santos.

Carlos Fuentes482

A Utopia tem a sua definição firmada em um complexo terreno devido à

multiplicidade de aproximações que lhe são possíveis, como as políticas, literárias e

sociológicas, sendo recorrentemente empregada como uma constante da reflexão política em

cada tempo e em cada país.

Norberto Bobbio ao tratar do conceito de utopia menciona que a sua mais célebre

definição é a de Karl Mannheim (Ideologia e utopia, 1929), segundo a qual: “a mentalidade

utópica pressupõe não somente estar em contradição com a realidade presente, mas também

romper os liames da ordem presente”483.

Na leitura de Bobbio, feita a partir de Mannheim, a mentalidade utópica não traduz

apenas o pensamento e muito menos a sua projeção sob a forma da fantasia, ou sonho para

sonhar-se acordado, situacionalmente transcendente; é uma ideologia que se realiza na ação

de grupos sociais. Nessa perspectiva, Nelson Pereira dos Santos traz as nítidas inscrições

definidoras da utopia em seu pensamento e obra, pois de diferentes formas enfrentou a

questão tomando-a não com o sentido de “lugar ideal”, “lugar feliz” ou “lugar inexistente”,

mas como um lócus de conflagração da ordem social.

Não é desprovida de razão que em muitos momentos deste trabalho as colocações de

Nelson Pereira dos Santos, no que diz respeito às suas referências e filiações, apontam para a

literatura e para os pensadores que formularam a utopia da brasilidade.

Quando começa a operar a sua expressão fílmica, em meados dos anos 1950, tem fé

na sua imaginação política e acredita que o mundo melhor, não é apenas pensável, mas

possível. Assim, manifesta a preocupação em olhar de frente e de forma próxima os

481 Depoimento colhido em setembro de 2008. 482 Carlos FUENTES. Este é meu credo. São Paulo: Rocco, 2006. Extraído de trechos disponibilizados em Veja on-line edição 1979– 25 de outubro de 2006. 483 Karl MANNHEIM apud Norberto BOBBIO et al. Dicionário de política. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1986, p.1285.

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problemas brasileiros, direcionando o seu foco para o homem brasileiro empenhando-se em

conhecer o país a partir das novas bases que o desenvolvimento kubitschekiano propiciava,

voltando-se para a tradição cultural cumulativa que circunscreveu o espaço nacional e que era,

ela mesma, campo e laboratório de invenção do ideário da constituição do ser brasileiro.

Pela proposta deste trabalho não se torna excessivo ressaltar que em todo o percurso

de Nelson Pereira dos Santos a indagação “O que é ser brasileiro?” procura ser respondida,

seja como militante político na fase estudantil, em que criou vínculos profundos e

permanentes com os compromissos sociais, econômicos e políticos do país, seja como autor

cinematográfico que procura enquadrar na sua lente o homem brasileiro na sua totalidade

revelando os cadinhos mais recônditos da sua alma.

No contato com a pesquisa sobre a brasilidade e a formação do seu imaginário crítico

na perspectiva revolucionária dos anos 1960, seguida de sua transformação e inserção

institucional a partir dos anos 1970, toma-se com referência o passado e isso envolveria

refletir com mais acuidade sobre o fato de que a utopia da brasilidade que se reflete nas artes

brasileiras é esquadrinhada no Modernismo e teve dois temas de grande importância na

história intelectual e cultural brasileira: a identidade nacional e a autonomia cultural.

A discussão é extensa e teve seu início por volta de 1870, aqui não se pretende

repassar toda a tradição da discussão, mas pontuá-la para efeito de contextualização.

Para Ilana Seltzer Goldstein, os estudos de Ernest Renan, um dos pioneiros da

investigação sobre as nações, já em 1822 denunciam um equívoco até então recorrente:

definir uma nação pelo território, pela etnia, pela religião ou pela língua, pois as nações são

territórios flutuantes em que podem coexistir várias línguas, várias etnias e vários credos.

Segundo Renan, a nacionalidade continha um lado sentimental, um “princípio espiritual” e

isso explicaria sua coesão:

[...] ter sofrido, ter celebrado, ter esperado junto, eis o que vale mais que fronteiras. [...] Uma nação é uma grande solidariedade, constituída pelo sentimento de sacrifícios que se fizeram e de outros que ainda se está disposto a fazer.484

Benedict Anderson485, em abordagem já citada neste trabalho, um século após os

estudos de Ernest Renan tratou o nacionalismo em perspectiva antropológica, afirmando que o

mesmo traz traços de semelhança com o parentesco e a religião. Assim como a religião, a

484 Ernest RENAN apud Ilana Seltzer GOLDSTEIN. O Brasil best seller de Jorge Amado: literatura e identidade. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2003, p.34. 485 Benedict ANDERSON. Nação e consciência nacional. São Paulo: Ática, 1989.

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nação como uma “comunidade política imaginada” teria o papel de apaziguar os sofrimentos

humanos.

O historiador inglês Eric Hobsbawm486 fortalece o pensamento contemporâneo sobre

a questão ao afirmar que um dos elementos cruciais na criação e perpetuação das nações é a

“invenção das tradições”, que consiste na aceitação tácita ou explícita de um conjunto de

práticas reguladas por normas capazes de inculcar valores e comportamentos pela repetição.

Maria Isaura Pereira de Queiróz observa que a utilização de conceitos definidos no

estrangeiro, geralmente no âmbito da civilização ocidental, para exprimir particularidades de

sua realidade, quando não sofrem uma adaptação perfeita para representar essa realidade,

teriam a tendência de se tornarem deslocados, anacrônicos - “idéias fora do lugar”487. Essa

consideração é feita pela pesquisadora ao tratar dos conceitos de identidade cultural e

identidade nacional, utilizados como sinônimos no Brasil, contrariamente ao que ocorre na

Europa. A sinonímia indica as diferenças de definição dos conceitos por parte dos

pesquisadores brasileiros e europeus:

Para os europeus, a identidade nacional une entre si coletividades culturais que podem ser patrimônios culturais muito diversos; a união é essencialmente política e se faz através de sentimentos comuns de adesão e de devotamento a uma sociedade global. Para os brasileiros, as duas concepções, de identidade cultural e de identidade nacional, se confundem. Em sua nação, todas as coletividades étnicas, todos os estratos sociais estão interligados por um patrimônio cultural semelhante e este fato compõe o nacional – algo que se exprime de forma concreta, independente de uma conscientização488.

À colocação da pesquisadora frente a nossa história, acrescente-se o fato de que na

condição brasileira o nacionalismo traz o emblema da ideologia489, no entanto algumas

observações formais sobre o nacionalismo são pertinentes e por aproximação podem ser

aplicadas. Neste sentido, o nacionalismo pressupõe uma representação única para

486 Cf. Eric HOBSBAWN. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984 e Nações e nacionalismo desde 1870: programa, mito e realidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. 487 A expressão “idéias fora do lugar” foi criada por Roberto Schwarz em artigo homônimo, em que tratava a obra de Machado de Assis, escrito no calor do debate em torno da questão da identidade nos anos 1970, publicado na revista Estudos Ceprap, n° 3, do Centro de Análise e Planejamento, onde desconstrói o mito da originalidade da cultura brasileira. 488 Maria Isaura Pereira de QUEIROZ. Identidade cultural, identidade nacional no Brasil. In: Tempo Social - Revista de Sociologia da USP, vol. 1, n° 1, 1° semestre, 1989, p. 44. 489 Cf. Marilena CHAUÍ. Seminários. Coleção: O nacional e o popular na cultura brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1983.

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acontecimentos simultâneos e paralelos e a nação é vinculada à idéia de progresso. Nesse

particular, encontra simetria ao pensamento de Robert Nisbet, para quem:

A idéia de progresso acredita que a humanidade avançou do passado – a partir de alguma condição original de primitivismo, barbárie, ou até nulidade –, continua avançando agora e deverá ainda avançar no futuro que possa ser previsto. [...] É inseparável de um sentido do tempo que flui de forma linear490.

Essas formulações ajudam a projetar o futuro da nação na utopia progressista. O

conceito de identidade nacional não só neutraliza tendências dispersivas e desagregadoras

como efetiva-se como meio de legitimação do poder político. Nesse sentido Renato Ortiz irá

afirmar:

Falar em cultura brasileira é falar em relações de poder[...] na verdade, a luta pela definição do que seria uma identidade autêntica é uma forma de se limitar as fronteiras de uma política que procura se impor como legítima491.

É possível entender, então, que no Brasil a ideologia da identidade brasileira é

disposta como autodefesa da elite para garantir a sua hegemonia e referência na discussão

política do futuro do país. Dessa forma, as teorias racistas que vigoraram nos centros

intelectuais do país de 1870 a 1930 partiram de uma perspectiva eurocêntrica e viam como

motivo de inviabilidade do progresso fatores como raça e clima. Lilia Moritz Schwarcz, ao

distinguir a “sciencia” que o País importa no final dos 1800, afirma: “O que aqui se consome

são modelos evolucionistas e social-darwinistas originalmente popularizados enquanto

justificativas teóricas de práticas imperialistas de dominação”492.

Raymundo Nina Rodrigues e Sylvio Romero entre outros, empreenderam grandes

esforços para combinar conceitos racistas necessários para a manutenção do poder branco,

eurocêntrico, com a percepção contraditória de que o país havia sido ocupado pelo outro.

Preocupados em definir uma identidade cultural brasileira, ao se defrontarem com o

patrimônio cultural próprio, adquiriam consciência da heterogeneidade dos traços culturais

existentes no país, mas o faziam baseados em modelos de origem européia. A

heterogeneidade compreendida nos complexos culturais aborígenes, nos de origem européia e

nos de origem africana coexistiam, e os costumes e práticas aborígenes e africanos eram

490 Robert NISBET. História da idéia de progresso. Brasília: UNB, 1985, p.17. 491 Renato ORTIZ. A moderna tradição brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1980, p. 8-9. 492 Lilia Moritz SCHWARCZ. O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p.28.

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vistos como obstáculos que impediam o Brasil de um desenvolvimento tanto cultural como

econômico, pois essa situação também embaraçava a eficiência econômica, dificultando a

conquista da glória e do esplendor disponibilizados pela civilização européia.

Nesses estudos, a concepção era a de que a identidade cultural seguia a maneira que

seus realizadores julgavam ser a ocidental: partiam dos padrões ocidentais de raça e de

estabilidade de sua sociedade493 chegando ao entendimento de que nossas “crises e

desequilíbrios” provinham das misturas raciais e culturais encontradas no país.

A questão fundamental em discussão, apesar de cada estudo apresentar pequenas

variantes, era a da coexistência de elementos culturais de origem tão diversa sem se

destruírem reciprocamente, de como constituir um conjunto homogêneo, e o que isso

representava para o progresso tão necessário ao país. Esses cientistas tinham dificuldade de

conceber o entendimento de que um dia a sociedade brasileira, apesar de suas diferenças

étnicas, culturais e econômicas, pudesse vir a constituir um patrimônio cultural harmonioso

que garantisse a pluralidade de seus traços e, ao darem esse sentido à questão, poderiam

sustentar a crença de que esse estado de coerência seria uma condição para atingir o processo

civilizatório.

O salto estabelecido no conceito de identidade no sentido de ser superada a noção de

igualdade e semelhança pelo seu delineamento a partir da diferença será dado pelos

modernistas, que irão fertilizar o terreno da identidade em um jogo de espelhos que encontrará

rebatimento em diversas reflexões como a de Carlos Rodrigues Brandão, para quem:

As identidades são representações inevitavelmente marcadas pelo confronto com o outro [...] não apenas o produto inevitável da oposição por contraste, mas o próprio reconhecimento social da diferença494.

Será ainda Maria Isaura Pereira de Queiróz a observar que essa superação começou

no início do século XX, datando essa mudança na ocasião da Semana de Arte Moderna de São

Paulo, em 1922, que promoveu uma reviravolta nas maneiras de ver da intelectualidade

nacional. Nesse quadro destaca a importância de dois nomes que forjaram outra forma de

pensar o problema da identidade nacional – Mário de Andrade e Oswald de Andrade –

intelectuais que revigoraram todo o pensamento intelectual brasileiro da segunda década do

493 A presença do racismo nos estudos era forte, uma vez que na Europa essas teorias eram atuantes e o Conde de Gobineu, autor do “Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas, proclamava a superioridade da raça branca. 494 Carlos Rodrigues BRANDÃO. Identidade e etnia. Construção da pessoa e resistência cultural. São Paulo: Brasiliense, 1986, p.42.

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século passado. O ideário conservador avivou, pelo movimento inverso, a inquietação dos

modernistas que reagiram fortemente ao eurocentrismo, propondo a troca de referências até

então estabelecidas.

Com a Semana de Arte de 1922, a heterogeneidade passou a ser considerada

referência obrigatória do que constituía a identidade cultural nacional, demonstrando que a

originalidade e a pujança da cultura brasileira provinham justamente da multiplicidade de suas

raízes e de sua capacidade de misturá-las. Essa posição defendida pelos modernistas

confrontava-se radicalmente ao que era proposto anteriormente pelos estudiosos que tomavam

a homogeneização cultural como patamar necessário e única via para a construção de uma

identidade nacional.

Os intelectuais modernistas faziam suas apostas na heterogeneidade como

constitutiva da identidade. Nas suas composições e leituras da arte rejeitaram a mímese e

dimensionaram o estatuto poético na direção de um tempo anterior inscrito fora da própria

modernidade. Esse elemento inovador de pura inauguração é o original que reinventa o

passado como mito de criação e origem. Ana Maria de M. Belluzo sintetiza assim o

ineditismo da vanguarda modernista brasileira:

Da mesma forma pode nascer o símbolo no universo da representação artística. Tarsila imagina figuras da memória da terra. Oswald de Andrade procura o nome no dicionário tupi-guarani. Chama a figura mágica de Tarsila de Abaporu, “homem que come”. Está sendo inventado o Movimento Antropofágico495.

Recorrente também na reflexão sobre os elementos de constituição da identidade

considerados pelo modernismo é a filiação de Oswald de Andrade ao ideário antropofágico,

propondo um “indianismo” às avessas. Baseada na antropofagia ritual dos nossos índios a

antropologia cultural de Oswald de Andrade tinha como proposta a seleção apurada em

termos de cultura internacional, a fim de que fosse metabolizada em produtos próprios e

originais e devolvidos ao mundo. Jorge Schwartz fazendo um balanço retrospectivo da

trajetória de Oswald destaca a sua fidelidade à antropofagia:

Concebidos nos anos subseqüentes à Semana de 22, os princípios de sua maior utopia começarão a ser desenvolvidos inicialmente sob forma de manifestos: Pau Brasil e Antropofagia. O

495 Ana Maria de Moraes BELLUZO. Os surtos modernistas. In: Modernidade: Vanguardas artísticas na América Latina. São Paulo: Memorial/UNESP, 1990, p. 24.

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ideário dos anos 20 é retomado com vigor nos anos 40. Em seus textos filosóficos, Oswald de Andrade desenvolve a idéia do bárbaro tecnizado que possibilitaria a libertação do homem submetido ao jugo do patriarcado capitalista496.

Oswald de Andrade, até o fim de seus dias, perseguiu a utopia da redenção

antropofágica e do retorno ao primitivo como via de libertação da América. Mário de Andrade

assumiu a tarefa de contrapor o pensamento eurocêntrico comum às nossas elites ao

desprezado passado nacional, reabilitando este pelo viés da multiplicidade das culturas

populares. Desse modo, fez a revisão das grandes questões da época e, passo a passo, investiu

na caminhada de “abrasileiramento do Brasil”.

Com a lente aberta numa angulação panorâmica, o modernista rechaçou a idealização

e o recalque do passado nacional adotando como estratégia estética a inversão dos valores

hierárquicos estabelecidos pelo cânone eurocêntrico, apontando tanto para o resgate da

multiplicidade étnica e cultural nacional como para o vínculo que esta mantém com o

pensamento universal não-eurocêntrico.

Ao operar a inversão dos valores e da hierarquia em circulação, o modernismo

lançou luzes aos objetos culturais periféricos. O intelectual brasileiro, o artista brasileiro,

deveria ocupar a cena, ser protagonista da sua história.

A década de 1930 assistiu à mudança efetuada no pensamento dos intelectuais,

formuladores e produtores da cultura brasileira, que abandonaram os argumentos da

interpretação do primeiro instante do modernismo, de orientação nitidamente cultural,

passando a trilhar os caminhos de uma política universalista radical, nesse momento centrada

no materialismo histórico, influenciada pela análise marxista adotada para a compreensão do

processo histórico brasileiro.

Essa análise será usada tanto para a avaliação do passado nacional quanto para

buscar a utopia, que deve acabar com os desequilíbrios econômicos e injustiças sociais no país

e no mundo. A produção artística e cultural deixou de ser experiência inaugural do

multiculturalismo, a serviço de uma ruptura e subversão estéticas, passando a vincular-se à

crítica da estrutura econômica da sociedade. A inspiração foi dada pelo realismo oriundo dos

congressos de literatura soviéticos.

A formulação de uma autêntica e vigorosa política que tratasse da identidade

brasileira só seria possível nos anos 1930 se esta estivesse em favor da praxis marxista,

496 Jorge SCHWARTZ. Vanguardas Latino-Americanas – Polêmicas, manifestos e textos críticos. São Paulo: Iluminuras/EDUSP/FAPESP, 1995, p. 168.

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através da denúncia do poder oligárquico que inibia as relações de classe do país. A estética

de fundamento marxista aguçava o sentimento do intelectual e do artista para o espetáculo

deplorável da realidade brasileira e as principais obras artísticas produzidas nesse período irão

projetar o país pela lente do subdesenvolvimento.

Nesse quadro de formulação teórica o país era conduzido à fase urbano-intelectual no

momento seguinte à Revolução de 1930, marco histórico que representou um:

[...] movimento de unificação cultural, projetando na escala da nação fatos que antes ocorriam no âmbito das regiões [...] houve alargamento de participação [...] em diversos setores: instrução pública, vida artística e literária, estudos históricos e sociais, meios de difusão cultural como o livro e o rádio497.

A revolução modernizadora – desencadeada em 1930 – transformava a face

tradicionalmente rural do país, alterando-lhe não apenas a e estrutura econômica, mas também

as instituições sociais e políticas. No plano cultural ocorria uma notável efervescência:

assimiladas as conquistas estéticas renovadoras buscava-se agora a discussão da realidade

brasileira.

O estabelecimento das bases para o florescimento de uma cultura “genuinamente

nacional” que redescobria o Brasil orientava os processos culturais deflagrados no período,

favorecendo a dinamização que perpassava várias esferas da sociedade brasileira. A ânsia de

reinterpretar o passado nacional e inventar o país nas suas possibilidades enquanto nação

aparece com destacada evidência na cena literária conformando-se àquilo que Antonio

Candido designou como “pré-consciência do subdesenvolvimento”, isto é, uma percepção do

atraso e da miséria e que teve como canal mais forte de expressão o romance. O gênero

literário normalmente voltado para a crônica do social tornou-se a espécie predileta de toda

uma geração. A esse respeito Alfredo Bosi esclarece:

[...] os abalos que sofreu a vida brasileira em torno de 1930 (a crise cafeeeira, a revolução, o acelerado declínio do Nordeste, as fendas nas estruturas locais) condicionaram novos estilos ficcionais marcados pela rudeza, pela captação direta dos fatos, enfim por uma retomada do naturalismo, bastante funcional no plano da narração-documento que então prevaleceria498.

497 Antonio CANDIDO. A revolução de 30 e a cultura, em Novos Estudos, n° 4, São Paulo: Cebrap, 1984, p. 1. 498 Alfredo BOSI. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1985, p. 438.

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Contudo, se a ficção se fez presente no período, com a exuberância dos talentos de

José Lins do Rego, Erico Veríssimo, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Rachel de Queiróz,

etc., em seu rastro se disseminou outro gênero: o ensaio. Este gênero visava dissecar e refletir

aspectos da realidade brasileira de forma direta, sem a mediação dos instrumentos ficcionais.

Um número expressivo de ensaios marca a década de 1930, sendo produzidos por jovens

autores que intentavam abordagens renovadoras de nossos fenômenos históricos, econômicos,

sociológicos, educacionais, étnicos, etc. É a década onde avultam obras, tais como Casa-

grande e senzala (1933), de Gilberto Freire; Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de

Holanda e Formação do Brasil contemporâneo (1942), de Caio Prado Júnior.

Cabe mencionar ainda que, neste período, intelectuais assumiram papéis qualificados

e de poder na construção orgânica da sociedade, estimulando a criação e inserindo-se em

diversas instituições. As representações profissionais também foram institucionalizadas:

Em 1930 foi fundada a Ordem dos Advogados do Brasil, em 1931 a academia de Medicina, em 1933 a Ordem de Engenheiros e Arquitetos. Em 1937 foram ainda criados o Serviço Nacional de Teatro (SNT) e o Instituto Nacional de Cinema Educativo (Ince), além do Instituto nacional do Livro (INL)499.

Dessa forma, ressalta-se que Getúlio Vargas enquanto esteve na Presidência da

República (1930-1945), junto à edificação do Estado estimulou à atividade intelectual e atraiu

a participação de expressiva camada da intelectualidade trazendo-a para perto de si:

Carlos Drummond de Andrade no Ministério da educação e Saúde, Lúcio Costa, Oscar Niemayer e Candido Portinari projetando e decorando para o governo; o crítico Augusto Meyer na chefia do instituto nacional do livro; Ribeiro Couto e Murilo Mendes no corpo diplomático; Manuel bandeira como membro consultivo do serviço do patrimônio Histórico e artístico Nacional (SPHAN), cuja primeira versão fora idealizada por Mário de Andrade500.

Há de se computar os graus de investimentos e apostas dos intelectuais na bolsa do

Estado brasileiro. A crença dos intelectuais foi abalada com a entrada do país na Segunda

guerra em 1942 e constituía-se um paradoxo combater o nazi-fascismo e apoiar um regime

autoritário. Ao intelectual cabia, no entanto, a avaliação permanentemente sobre a atuação do

499 Ilana Seltzer GOLDSTEIN. O Brasil best seller de Jorge Amado: literatura e identidade. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2003, p. 47. 500 Id., ibid.

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governo e os movimentos em torno da política. Envolto numa atmosfera nacionalista, o

Estado Novo traçou uma estratégia de apropriação do repertório cultural emergente em franco

processo de legitimação elegendo símbolos nacionais oriundos desse processo e fixando-os no

imaginário da nação.

O desenvolvimento dessa discussão conduz ao entendimento de que a utopia da

brasilidade e a construção da nacionalidade é um projeto que tem sua inscrição entre os anos

1930 e 1950, não sendo por acaso que é neste período que a questão nacional se impõe no

esplendor de toda a sua força. Concepções diferentes como as que sedimentavam o ISEB ou

alicerçavam o Estado Novo, ocupavam campos diferenciados, mas tinham como ponto de

partida a constatação de que era necessária a consolidação de uma realidade que ainda estava

em processo no Brasil. Renato Ortiz reconhece ser o Estado o espaço no interior do qual se

realizaria a integração da nação e esclarece sobre o papel do intelectual na sua relação com o

Estado:

Os intelectuais, ao se voltarem para o Estado, seja para fortalecê-lo como o fizeram durante Vargas, seja para criticá-lo, como os isebianos, o reconhecem como espaço privilegiado por onde passa a questão cultural501.

O Brasil sai da era Vargas, propositora do desenvolvimento nacional com base na

intervenção do Estado, e entra nos anos 1960 e início dos anos 1970502 em um período em que

o florescimento cultural e político na sociedade brasileira pode ser entendido como romântico

revolucionário503. Essa hipótese é sustentada por Marcelo Ridenti em seu livro Em Busca do

Povo Brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV, em que argumenta:

o romantismo das esquerdas não era uma simples volta ao passado, mas também modernizador. Ele buscava no passado elementos para construção da utopia do futuro. Não era, pois, um romantismo no sentido anticapitalista prisioneiro do passado, gerador de uma utopia irrealizável na prática. Tratava-se de romantismo, sim, mas revolucionário. De fato, visava-se resgatar um encantamento da vida, uma comunidade inspirada no homem do

501 Renato ORTIZ. Op. Cit., p. 51. 502 Esse período já foi tratado em passagens anteriores desse trabalho, por isto está sendo, neste momento, abordado com mais brevidade. 503 Marcelo Ridenti faz essa reflexão a partir da noção de “estrutura de sentimento” formulada por Raymond Williams, para o qual a estrutura do sentimento não se contrapõe a pensamento, mas procura dar conta “do pensamento tal como sentido e do sentimento tal como pensado: a consciência prática de um tipo presente, numa continuidade viva e inter-relacionada”, sendo por isso uma hipótese cultural de relevância especial para a arte e a literatura. Cf. Raymond WILLIAMS. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p.134-135.

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povo, cuja essência estaria no homem camponês e no migrante favelado a trabalhar nas cidades504.

Este é o momento, como foi informado anteriormente, em que Nelson inicia o seu

processo de realização fílmica, encarnando o papel romântico revolucionário sendo acolhido e

acolhendo o Cinema Novo. É chegada à hora de assumir a herança dos pensadores,

recorrentemente sublinhados pelo cineasta, que lhe deram esteio, pista e caminho luminoso a

seguir. A absorção, as conexões e os desdobramentos de todo o pensamento e da experiência

cultural, social e política vivenciada torna-se empreendimento necessário.

A formulação evocada pelo intelectual romântico revolucionário postula novas

versões para as representações de brasilidade, não mais no sentido de justificar a ordem social

existente, mas de questioná-la.

O Brasil não seria ainda o país da integração entre as raças; - o negro Espírito da

Luz, não pode gravar seu samba, produz para outro compositor branco que se apropria e lucra

com sua música; da harmonia e da felicidade do povo brasileiro, Eldorado, o país fictício de

Terra em transe é o éden idealizado pelos conquistadores espanhóis e portugueses; sendo

interditado pelo poder do latifúndio, em que Sinhá Vitória, Fabiano e seus dois meninos em

sofrido desamparo procuram sinal de vida no solo rachado do sertão nordestino-, mas poderia

vir a sê-lo como conseqüência da revolução por chegar, que Glauber anunciava em tom de

profecia “o sertão vai virar mar, e o mar virar sertão”.

O que estava implícito no ideário do intelectual brasileiro no início dos anos 1960 era

a ação transformadora que levaria à construção de uma sociedade com base em novos

arranjos. Retomando o pensamento de Marcelo Ridenti, observa-se que:

Valorizava-se acima de tudo a vontade de transformação, a ação para mudar a História e para construir o homem novo, como propunha Che Guevara, recuperando o jovem Marx. Mas o modelo para esse homem novo estava paradoxalmente, no passado, na idealização de um autêntico homem do povo, com raízes rurais, do interior, do “coração do Brasil”, supostamente não contaminado pela modernidade capitalista505.

Procurava-se uma via que garantisse a modernização que não implicasse em adesão

ao fetichismo reducionista da mercadoria e do dinheiro, facilitada pela incipiência do mercado

consumidor. Renato Ortiz assevera:

504 Marcelo RIDENTI. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 25. 505 Marcelo RIDENTI. Artistas e intelectuais no Brasil pós-1960. In: Tempo Social - Revista de Sociologia da USP, v.17, nº1, p. 84.

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A relação entre cultura e política se expressava como complementariedade nos anos 50 e até meados de 60, porque vivíamos um clima de utopia política no interior de uma sociedade de mercado incipiente 506

A questão da identidade nacional e política do povo brasileiro estava recolocada,

movimentos anteriormente em ordens distintas, alinhavam-se. Procurava-se, simultaneamente,

recuperar as raízes da cultura e romper com o subdesenvolvimento crônico da sociedade

brasileira. Tal opção encontra amparo no seio da esquerda. Assim a remissão ao passado não

se separava das utopias de construção do futuro inscritas no horizonte do socialismo. Naquele

contexto brasileiro levar o povo em conta não implicava em criar utopias anticapitalistas de

cunho passadista, mas progressista; resultava na aparente contradição de se voltar para o

passado, onde estavam fincadas as raízes populares nacionais, para projetar as bases do

construto do futuro de uma revolução nacional modernizante que, ao se consolidar, poderia

implodir as fronteiras opressoras do capitalismo.

Nelson Pereira dos Santos confirmando a vocação de afirmar na sua obra a idéia de

uma consciência nacional apresenta a nação a partir de elementos catalisadores da ampla

utopia do seu povo, empenhando-se na missão de estender e socializar os sentidos de nação e

de povo. Para tanto usa de vários recursos em que opera atualizações permanentes, já

apontados ao tratarmos do cotejamento da sua obra. Esses recursos qualificam a sua

diversidade e fazem com que a sua narrativa dialogue com o destino do país em momentos de

realismo cortante, de pessimismo desconcertante, de ironia apurada, de alegoria poética, de

total liberdade, de experimentação e pedagogia necessárias. Suas imagens, nos vários tempos

do seu exercício, procuram revelar um modo de vida apartado do processo de colonização

sofrido pela cultura brasileira e o faz através das suas representações. As crenças, os hábitos e

jeitos que compõem o mosaico multifacetado da cultura do homem brasileiro são tecidos

como fontes irradiadoras de utopia porque possuem como virtualidade a recusa ao modelo que

a asfixia. Atento às análises e mudanças no seio da cultura e da sociedade brasileira

contemporânea, advindas da emergência da indústria cultural, que reorienta a discussão na sua

relação povo-nação, dando à noção outra abrangência, Nelson prossegue, como vimos em

diversos momentos deste trabalho, atualizando suas informações sobre a sociedade brasileira,

formulando pensamentos e estabelecendo estratégias que imprimem na sua narrativa a

essência do que para ele é permanente: a utopia de um futuro em que o projeto do Brasil

oficial se substancie no projeto do Brasil real. 506 Renato ORTIZ. Op. Cit., p. 164.

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de de de de VidaVidaVidaVida

A vida de um fazedor de filmes é sempre, também, um filme. Helena Salem507

[Ao pensar num filme] eu fico totalmente livre e escrevo à vontade. [Para] fazer um roteiro, você tem que imaginar a cena por completo. O ambiente, quem estará na cena, o que vai acontecer. Tenho que descrever já pensando na coisa concreta. Penso no tipo de móvel. Depois é que vem o diálogo. Mas na hora de escrever, tenho que ter tudo pronto na cabeça. Então, gosto de trabalhar na rede, de olhos fechados. A minha esposa é quem vem me perguntar: vem cá, não vai trabalhar hoje, não? E eu digo: mas já estou trabalhando!

Nelson Pereira dos Santos508 Olha, não vou negar: tenho uma grande inveja da juventude. Gostaria de ter hoje, por exemplo, 50 anos... Mas estou feliz: faço cinema, tenho amigos, estou bem casado, não fiquei amargo nem ressentido com as adversidades da vida. Estou aí. É um privilégio estar vivo. Celebro a vida todos os dias.

Nelson Pereira dos Santos509

Isso é indiscutível. Ninguém pode negar que essa celebração cotidiana da vida esteve

presente em todos os momentos, até aqui vividos intensamente por Nelson Pereira dos Santos.

Sejam naqueles de grande alegria, sejam naqueles em que a tristeza e as decepções vieram

lembrar-lhe que também fazem parte do jogo, Nelson soube sempre fazer prevalecer o que

realmente contava naquele instante, o que de fato valia a pena preservar, inclusive ao

roteirizar e dirigir seus filmes, fazendo com que refletissem invariável e teimosamente a idéia

que trazia em mente.

Nelson Pereira dos Santos exerce, e sempre exerceu como gosta de frisar, com total

liberdade, a sua autonomia autoral. É um dos poucos cineastas que conseguiu manter uma

507 Helena SALEM. Nelson Pereira dos Santos: o sonho possível do cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987. p.13. 508 Depoimento. Disponível em: <http://ego.globo.com/ENT/Entrevista/0,,ENN90-5279,00-NELSON+ PEREIRA+DOS+SANTOS.html>. Acesso em: 08/01/2008. 509 Depoimento de Nelson Pereira dos Santos a Penha ROCHA. Um cineasta imortal. In: Revista Pesquisa Fapesp, edição impressa 122, p. 6, abril 2006.

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coerência inatacável ao longo de toda sua carreira, investigando o mundo à sua volta. Quem

sabe se não foi mergulhando nesse inesgotável manancial disponibilizado pela vida que o

gosto pela celebração entranhou-se indelével e definitivamente em sua personalidade?

É bem verdade que a formação recebida desde a infância tem um peso nada

desprezível na determinação de sua maneira de fazer filmes. O ensinamento dos valores,

sobretudo éticos, recebido, aliada a uma “liberdade” estética e consciência política,

adquiridas, moldaram, assim como o ideal modernista e a literatura, sua forma de

compreender e interpretar o Brasil.

[...] todos esses autores chamavam atenção para o que significa ser brasileiro. Evidentemente, isso não foi tudo na minha formação intelectual. Eu vivi a juventude muito esperançosa, a juventude do pós-guerra. Acabava a guerra, chegava ao fim o fascismo no mundo, terminava o Estado Novo no Brasil... Diante desse cenário, o pensamento tinha espaço. E a presença dos partidos marxistas apontava um caminho bem luminoso... Então, aquele era o momento de se perguntar. Era o momento de tirarmos da cabeça todas as dúvidas que tínhamos. [...] Eu acabei despertando essa curiosidade pela vida brasileira.510

A década de 1920 em que Nelson nasce reacende por todo o mundo, após as

ocorrências traumáticas da primeira Guerra Mundial, a vontade de construir sobre bases mais

sólidas uma sociedade mais livre, criativa e renovadora. Acendem-se por toda parte as luzes

de novas mentalidades.

No Brasil, a década começa com o nascimento de João Cabral de Melo Neto. Dois

anos depois, em 1922, ocorre a Semana de Arte Moderna. Em 1928, vários eventos marcarão

a história cultural do país: é fundada a Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira;

Tarsila do Amaral pinta o Abaporu e, junto com Oswald de Andrade e Raul Bopp, lança o

Movimento Antropofágico; Mário de Andrade publica Macunaíma; Cassiano Ricardo lança

Martim Cererê; e Heitor Villa-Lobos, o Choro nº. 11 para Piano e Orquestra.

A 14 de maio nascia Ernesto Che Guevara e no dia 22 de outubro de 1928 vem ao

mundo Nelson Pereira dos Santos que poderia hoje ser – como queria sua mãe – Marco

Antônio dos Santos.

510 Rodrigo FONSECA. Meu Compadre Cinema – sonhos, saudades e sucessos de Nelson Pereira dos Santos. Cadernos Cine Academia nº 6: Brasília, 2005 p. 17/18.

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Prevaleceu a vontade de seu pai que se encantara com um filme mudo, cujo personagem principal era o Almirante Nelson, o intrépido marinheiro inglês que derrotou a esquadra francesa de Napoleão em Trafalgar.511

Os eventos referentes ao modernismo, descritos hoje como fundamentais para a

formação do pensamento cultural do país fazem, entretanto, parecer ter tido grande

participação popular ou ampla repercussão entre a população, mas na verdade, estavam

restritos a uma minoria e tinham um alcance muito pouco abrangente. Em seu discurso de

posse na Academia Brasileira de Letras, em 2006, Nelson esclarece esse fato, afirmando que:

Os modernistas, que tanto buscavam assimilar a linguagem cinematográfica, desconheciam o cinema feito no Brasil ou, antes, o desprezavam. Mário de Andrade, cinéfilo, era vítima de escárnio por parte dos amigos, porque, ávido de cinema, assistia também aos poucos filmes brasileiros que surgiam esporadicamente. Por sua vez, os cineastas brasileiros importantes, como Mário Peixoto e Humberto Mauro, nunca ouviram falar da Semana de Arte Moderna nem do Movimento Modernista. Humberto Mauro, por exemplo, vivia em Cataguazes, na mesma cidade onde repercutiu o modernismo na obra e na atuação de Rosário Fusco com a revista “Verde” e, no entanto, encontrava-se distanciado do movimento, ignorando-o e ignorado por ele512.

Os pais513 de Nelson, todos os domingos, levavam a família inteira ao Cine Teatro

Colombo, no Brás, onde passavam as tardes em meio a seus heróis, assistindo aos seriados,

documentários, comédias e dramas, quase sempre americanos. Nelson também estava

presente, ainda que no colo da mãe.

E o próprio Nelson é quem reforça o quadro que conseguimos vislumbrar, ao

imaginar aquela família inteira atravessando a rua para comprar ingressos no cinema em

frente à alfaiataria de seu Antonio, onde passavam horas, envolvidos na poalha do cinema.

Esse contato precoce e contínuo com a sala de projeção foi determinante na vida de

Nelson, que desde cedo passou a compreender a importância da arte cinematográfica, a qual

entraria definitivamente em sua vida.

Durante toda a década de 1930 e início da década de 1940, período correspondente a

sua infância e pré-adolescência, a maioria da pequena quantidade de filmes nacionais 511 Cícero Sandroni em discurso de recepção a Nelson Pereira dos Santos, quando de sua posse na Academia Brasileira de Letras em 2007. 512 Além de Humberto Mauro, que não teve nenhum envolvimento com o movimento modernista, Nelson faz referência principalmente, ao filme Limite de Mário Peixoto, que a imprensa da época insistiu em associar ao movimento modernista, mas que estava muito distante das idéias que os paulistas, que encabeçavam esse movimento, perseguiam. 513 A mãe de Nelson, Angelina Binari dos Santos era natural de Caçapava, interior de São Paulo, e seus pais eram imigrantes italianos da região de Veneto. O pai, Antonio Pereira dos Santos, era alfaiate de profissão e havia nascido na cidade de Vargem Grande do Sul, São Paulo. Adquiriu, anos depois, algumas ações da Companhia de Petróleo fundada por Monteiro Lobato e da Companhia Americana de Filmes, a qual chegou a construir um estúdio ao lado do Aeroporto de Congonhas.

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exibidos, foi produzida pela Cinédia, no Rio de Janeiro, companhia cinematográfica

inaugurada em 1930 por Adhemar Gonzaga. Lábios sem beijo, de Humberto Mauro, é o

primeiro filme produzido pela Cinédia no ano de sua fundação. Três anos depois, em 1933, o

mesmo Humberto Mauro faria Ganga Bruta, também na Cinédia, que se transformaria num

clássico do cinema brasileiro. Era muito difícil para os filmes brasileiros conseguir atrair

público suficiente para fazer frente ao mercado dominado e saturado pela produção americana

que, pretendendo exercer ao máximo sua hegemonia e funcionar mercadologicamente, havia

adotado a estratégia de impor seus filmes no mundo inteiro:

Em fevereiro de 1911 chegava ao Brasil uma embaixada de capitalistas vinda dos Estados Unidos com a missão de sondar os nossos mercados e verificar suas possibilidades quanto ao emprego de capital. A economia dos Estados Unidos, em expansão, voltava os olhos ávidos para os países industrialmente pouco desenvolvidos na América Latina – e o tradicional liberalismo brasileiro receberia os americanos de braços abertos514.

Essa ação expansionista refletiu diretamente no desenvolvimento do nosso cinema -

recém saído do que se convencionou chamar “bela época do cinema brasileiro515” - que viu

suas telas serem majoritariamente ocupadas pelo produto estrangeiro, contribuindo para a

marginalização do nosso cinema, que não conseguiu sustentar seu desenvolvimento. Por volta

de 1920, e nos anos que se seguiram, há indícios de progresso. Ocorrem sinais de vitalidade

na produção do Rio de Janeiro e São Paulo, eclodindo os Ciclos Regionais, ou “surtos

regionais” como prefere Alex Viany516, nos mais variados pontos do país. Paulo Emílio Sales

Gomes relata esse progresso e o efeito de seu surgimento tardio:

Paulatinamente, esses diversos grupos estabelecem contato através de jornalistas do Rio e de São Paulo que se interessam de forma militante por nossos filmes, delineando-se assim, pela primeira vez, uma consciência cinematográfica nacional. Um ou outro diretor consegue trabalhar com certa continuidade. Há uma progressão orgânica de filme para filme e surgem obras que atestam um incontestável domínio da linguagem e expressão estilística. Em torno de 1930, nasceram os clássicos do cinema mudo brasileiro e houve uma incursão válida na vanguarda mais ou menos hermética. Era tarde, porém. Quando o nosso cinema mudo alcança essa relativa plenitude, o filme falado já está vitorioso em toda parte517.

514 Carlos Roberto de SOUZA. Nossa Aventura na Tela: a trajetória fascinante do cinema brasileiro da primeira filmagem à Central do Brasil. São Paulo: Cultura editores associados, 1988, p. 64. 515 Período de euforia da produção cinematográfica que ocorreu entre 1908 a 1911, basicamente entre as cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. 516 Alex VIANY. Introdução ao Cinema Brasileiro. Rio de Janeiro: Alhambra: Embrafilme, 1987. 517 Paulo Emílio Sales GOMES. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, p.31.

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A chegada do cinema falado abre um novo processo, “um longo e penoso reinício”.

Entre os anos de 1930 e 1940 a produção se concentra no Rio de Janeiro, onde são criadas as

condições mais favoráveis ao seu de desenvolvimento.

Em 1937, pouco antes da Segunda Guerra Mundial passar a ser o foco dos interesses

nacionais e da atenção de todos, a Cinédia ainda conseguiu produzir Samba da vida, um filme

de Lulu de Barros que alcançou relativo sucesso de bilheteria, diferentemente da maioria que,

no máximo, conseguia apenas cobrir as despesas. Entretanto, com o início da Guerra, a

Cinédia não consegue mais produzir. Praticamente todo o material, principalmente os rolos de

filme virgem e equipamentos usados por ela, que vinham de fora, só podem agora ser

importados sob severas condições e preços elevadíssimos. Apesar disso, uma outra empresa

cinematográfica é aberta no Rio em 1941. Trata-se da Atlântida, que inaugura sua produção

em 1943 com o longa-metragem O moleque Tião, com roteiro de Alinor Azevedo e dirigido

por José Carlos Burle, baseado na vida de Sebastião Prata, o ator Grande Otelo.

No jornal carioca A Manhã, o poeta Vinícius de Moraes inicia em 1942 um debate

sobre a importância de se desenvolver um cinema nacional, ao mesmo tempo em que a revista

A Scena Muda defende a criação imediata de um cinema genuinamente brasileiro.

Tem início com a Atlântida, em 1943, as chanchadas, um tipo de filme que iria

enfatizar como ponto central de construção dos roteiros, a caricatura social, o humor fácil, a

improvisação.

Nelson Pereira dos Santos esclarece sobre a sua relação inicial com o cinema

brasileiro:

Eu não tinha nenhuma ligação com o cinema brasileiro, nenhuma ligação histórica. Eu tinha a ver com o cinema como linguagem, numa relação cineclube, cinemateca, e tinha a ver, num outro plano, com a história do Brasil. Mas a história do Brasil colocada em termos sociológicos, antropológicos, políticos. Não era a história do Brasil de Cartier (sic). Eu tinha duas escolaridades, a do cinema como linguagem e a da nossa realidade social, numa perspectiva histórica518.

É nesse contexto histórico/cultural que se desenvolve e passa da adolescência à vida

adulta, Nelson Pereira dos Santos, agora um cinéfilo contumaz, que assiste ao máximo de

filmes a que tem acesso, com uma paixão que nem mesmo a literatura, que adora, consegue

superar.

518 Depoimento a Gisele GUBERNIKOFF. São Paulo, em 16 de maio de 1979 e 5 de fevereiro de 1980 p. 333.

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Conhece Laurita Sant’Ana, então com 15 anos de idade e que viria, 5 anos depois, a

ser sua primeira companheira e mãe de três de seus filhos: Nelson, Ney e Márcia. O quarto

filho, Diogo, nasceria alguns anos depois, em 1972, de uma outra relação. Morando em ruas

contíguas, estudando no mesmo Colégio e pegando o mesmo bonde, era quase inevitável a

aproximação entre Nelson e Laurita, que se tornava mais estreita à medida que descobriam

afinidades e partilhavam interesses. Os olhares trocados no bonde logo se transformaram em

namoro e depois em paixão. Laurita era a companheira inseparável de todos os momentos; os

bons e os ruins. Gostavam de dançar, ouvir música, liam os mesmos livros, conversavam

sobre tudo, inclusive, é claro, sobre política. Diferente do pai de Nelson, que era maçom e

anticomunista, a mãe de Laurita, Ana Andrade, era uma ativa militante comunista.

O início da militância de Nelson foi decerto influenciado pela proximidade de

Laurita e sua mãe, mas principalmente, pela excelente formação intelectual e cultural que o

Colégio do Estado propiciava - e onde o PC era bastante atuante - e pela popularidade que a

esquerda alcançou no mundo por ter sido, no final da Guerra, peça chave na vitória dos

soviéticos sobre os nazistas e através da heróica resistência - dos maquis na França e dos

partigiani na Itália - ao fascismo. Em 1946, Nelson é surpreendido pela polícia pixando

muros com propaganda em favor da Constituinte, e é preso. Mais tarde, já na Faculdade de

Direito, continua a participar de todas as atividades políticas e manifestações que se espalham

por todo o país, defendendo idéias e princípios, como a palavra de ordem “O petróleo é

nosso” dos comunistas, e a Campanha pela Paz, esta de caráter internacional, e que se

levantava contra o recrudescimento da guerra fria e o perigo latente de uma guerra sem

precedentes, desta vez com armas atômicas. A Faculdade de Direito, situada no Largo de São

Francisco, exercia entre os jovens estudantes uma especial atração por tradicionalmente

abrigar um espírito libertário que os seduzia. Para Nelson, o significado de fazer parte daquele

ambiente ia além desse fato, como ele mesmo explica:

O projeto de ingressar na Faculdade continha também uma motivação pessoal e, por isso, predominante. Desde menino freqüentava a Faculdade porque o meu padrinho de batismo, José Epaminondas de Oliveira, era o porteiro das Arcadas e seu filho, Joaquim de Oliveira, bedel da Casa. Sempre que me dirigia ao Centro da cidade, passava pelo largo de São Francisco para pedir a benção ao padrinho. De sua sala, bem à entrada do prédio, podia enquadrar, no alto de uma coluna, as placas que homenageiam até hoje três ex-alunos: Álvares de Azevedo, Fagundes Varela e Castro Alves. Desde então, sentia-me motivado para seguir um caminho na vida que, mesmo sem

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saber ainda qual seria, tinha a certeza de que começaria ali, sob as Arcadas519.

Iniciando o jornalismo, que exerceu em paralelo à atividade cinematográfica e fonte

de receita em momentos em que fazer cinema era uma impossibilidade, edita uma seção

literária no jornalzinho comunista da Faculdade e redige críticas de cinema para o Hoje, que

era o Diário do Partido:

Tinha uma coluna de crítica, editada duas ou três vezes por semana, que era mais um review dos filmes que qualquer coisa [...] e eu era tão parcial que não vinguei no cargo. Evidentemente, pelo espírito da época, filme americano era algo para se esculhambar. Aí, aparece o anúncio de um filme brasileiro. Era “Estrela da Manhã”, com fotografia de Ruy Santos, roteiro de Jorge Amado e música de Dorival Caymmi. Lembro que escrevi: “esse filme vai inaugurar uma nova etapa no cinema brasileiro...” O curioso é que escrevi sem ter visto o filme. O que choveu de carta na redação, depois do meu texto não foi brincadeira. [...] Na realidade, filmes como aquele alimentaram de esperança a cabeça da minha geração. Já estava de cabeça feita pelo neo-realismo, pelos clubes de cinema, o Cineclube de São Paulo, a experiência da Vera Cruz. Depois escrevi sobre cinema na revista Fundamento, que era do Partido. Dessa época tenho até vergonha, uma vez que eu ataquei o primeiro filme da Vera Cruz que vi. Mas nessa época as coisas eram mais inflamadas. Havia mais ligação com a crítica. Ela era levada mais a sério. Mais ainda a opinião dos críticos italianos e franceses. A Itália possuía algumas das melhores revistas de cinema do mundo, entre as quais a Cinema Nuovo, que fazia a cabeça da gente. Do lado americano, a minha formação era o Alex Vianny e a leitura do John Howard Lawson. O livro dele sobre roteiro era muito bom! E, é claro, todo mundo tinha debaixo do sovaco o Eisenstein. Tínhamos que ler em espanhol, pois não havia tradução para o português. Havia ainda um outro livro pertinente, também de um russo, chamado Lev Kuleshov. Era o “Tratado de la Realización Cinematografica”, uma leitura obrigatória520.

Casa-se com Laurita em 1949. Para pagar as contas, começa a trabalhar em jornais e

faz seu primeiro contato com o cinema ao realizar o documentário, Juventude, um 16 mm,

encomendado pelo Partido Comunista. Em 1950 nasce seu primeiro filho, Nelsinho.

A década de 1940 foi especialmente importante na formação e solidificação do

arcabouço intelectual de Nelson. É ele mesmo quem descreve de forma sintética os

acontecimentos desse período:

Foram os dez anos de minha formação, do ginásio à Faculdade de Direito, uma viagem a Paris, o casamento, serviço militar, cineclubes, Juventude Comunista, primeiro emprego em jornal, primeiro filme e primeiro filho, que

519 Discurso proferido na ocasião de sua posse na Academia Brasileira de Letras, 2006. 520 Rodrigo FONSECA. Meu Compadre Cinema – sonhos, saudades e sucessos de Nelson Pereira dos Santos. Cadernos Cine Academia nº 6: Brasília, 2005 p. 23/24.

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nasceu em 1950. Estava impregnado da certeza de que o Brasil encontraria o bom caminho para ter uma sociedade mais rica e mais justa, porque assistia ao fim da ditadura – ninguém imaginava que poderia acontecer outra no futuro. E, no mundo, acabavam para sempre – dizia-se – o fascismo e o nazismo. [...] No colégio, nossa célula da Juventude Comunista, que, em homenagem a Frei Caneca, recebia seu nome, promovia reuniões mais culturais que políticas, principalmente de celebração cultural da história do Brasil – daí o Frei Caneca ser nosso patrono. Para dizer a verdade, ingressei na Juventude Comunista porque, naquele tempo, ser jovem e não ser comunista é o mesmo que, hoje, ser jovem e não fumar maconha: corre-se o risco de ser discriminado. Os pais não gostavam, é claro. Tinham medo, pois já sabiam o que tinha acontecido com os comunistas em 1935521.

Em 1946, um grupo de cinéfilos e cineastas – entre os quais, Almeida Salles,

Lourival Gomes, Benedito Duarte e Paulo Emílio Salles Gomes – funda um Clube de Cinema

em São Paulo, o Cineclube São Paulo, para discutir, fazer críticas e desenvolver o pensamento

estético em torno da cinematografia no Brasil. Um ano depois, em 1947, Assis Chateaubriand

inaugura o Museu de Arte de São Paulo (MASP). O industrial Francisco Matarazzo Sobrinho

em 1949 funda o Museu de Arte Moderna (MAM) e convida a diretoria do Cineclube São

Paulo para assumir o departamento de cinema do Museu. Matarazzo faria parte também do

grupo de criação do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), e participaria ativamente na criação

da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, ainda em 1949.

Em 1951, Nelson dá início à sua carreira como profissional do cinema, quando

Rodolfo Nanni o convida para ser assistente de direção em O Saci, filme que teve locação em

Ribeirão Bonito, interior de São Paulo. Após finalizar o filme de Nanni, Nelson está com as

ferramentas necessárias para entrar de vez no mundo do cinema.

Vai morar – no início sem a família – no Rio de Janeiro, para fazer Agulha no

palheiro, como assistente de direção de Alex Viany, por indicação de Rui Santos, o grande

cineasta do Partido Comunista, que de início o havia convidado a trabalhar em Angra dos

Reis, num filme chamado Aglaia, que não chegou a ser finalizado.

Nelson estava morando em Santa Tereza, no apartamento de seu amigo Otávio

Araújo, onde Laurita, grávida pela segunda vez, vinha regularmente de São Paulo passar

alguns dias com ele.

Em 1953 finaliza roteiro de Rio, 40 graus. Laurita foi para São Paulo se preparar

para o nascimento de Ney, o segundo filho de Nelson, enquanto este reunia a equipe que iria

fazer Rio, 40 graus. Em 1956, Nelson se afasta do Partido Comunista - durante todo o período

521 Entrevista para Estudos Avançados 21 (59), 2007.

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do regime militar será, entretanto, sempre tratado como membro ativo - após uma viagem que

faz à Tchecoslováquia, para apresentar Rio 40 graus, no festival internacional de Karlovy

Vary, onde o filme recebe o Prêmio ao Talento Jovem. Em seguida o jornal O Estado de São

Paulo lhe concede o Prêmio Saci. Conquista também o Prêmio Governador do Estado de São

Paulo de melhor roteiro e ainda os prêmios de melhor roteiro e direção no Festival do Distrito

Federal.

Em 1958, Rio, Zona Norte estreou sem a mesma repercussão do filme anterior mas

mesmo assim recebeu o prêmio de melhor direção do Festival de Cinema do Distrito Federal.

Em 1964, Vidas Secas é exibido em Cannes e recebe o Prix des Cinémas d’Art, o Prix Du

Meilleur Film pour la Jeunesse, além do Prix de l’Office Catholique du Cinéma. Vidas Secas

está posicionado como um dos cinco melhores filmes da história do cinema brasileiro. O

Cinema Novo vivia então seu apogeu, e Nelson mantém uma relação particular com todas as

vertentes do movimento:

Porque ele precede, influencia, participa como um dos principais formuladores, ou catalisadores, e ao mesmo tempo passa ao largo do Cinema Novo. Ele é e não é do movimento. Porque, efetivamente, NPS é sobretudo ele mesmo, corre em faixa própria, desenvolvendo coerentemente uma trajetória iniciada anos antes, com uma dinâmica interna muito particular522.

Leon Hirszman comenta a atuação de Nelson junto ao grupo:

Ele tinha a tranqüilidade e a confiança de resolver [os problemas] na hora. Isso tudo foi um valor que frutificou na época da resistência. Pra mim, o Nelson significou isso: um mestre, grande mestre do cinema523.

Referindo-se a essa característica, Cacá Diegues reconhece que:

O Nelson tem uma extraordinária habilidade política de somar os pedaços, juntar pessoas diferentes. Mas você nunca fica sabendo direito o que ele pensa. Naquela época, ele estava sempre falando em nome de todos nós, para nós mesmos. Como se estivesse traduzindo nosso caótico pensamento, às vezes divergente, contraditório. Tinha também essa coisa prática dele, de fazer tudo em função de um determinado objetivo, o sentimento de que era preciso fundar um cinema moderno no Brasil524.

Nelson é assim: ao mesmo tempo em que não abre mão daquilo que acredita ser o

caminho certo das coisas, ele consegue de forma tranqüila, mas impositiva, impedir que

522 Helena SALEM. Nelson Pereira dos Santos: O sonho possível do cinema brasileiro. Op. Cit., p.160. 523 Id. Ibid., p. 185. 524 Ibid.

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fatores externos à sua vontade interfiram no seu processo criativo. E é novamente Cacá

Diegues quem confirma esse lado “domesticado” da tenacidade e vontade férrea presentes na

personalidade de Nelson.

Uma coisa é a extrema paciência dele. Mas, embora muitos o vejam como uma pessoa cândida, acho que o Nelson é também de uma violência terrível. Ele controla a violência com a paciência. Isso aliás, está nos filmes dele. São de uma grande violência, subjacente a toda poesia, ao humanismo próprio de sua formação. Sempre essa contradição. [...] Eu quis muito, mas nunca consegui ter uma intimidade maior com o Nelson. Não sei se algum de nós conseguiu, talvez o Barreto. Mas, na minha geração de cinema, aconteceu uma coisa muito bonita. A gente tinha cineastas preferidos no exterior, o Glauber adorava o Einsenstein, o Paulo César Saraceni o Rossellini, o Walter Lima Jr. o John Ford. Mas ídolo, realmente, era o Nelson525.

Em 1962, uma nova celebração: o nascimento de Márcia, primeira e única filha

mulher, caçula dos seus três filhos com Laurita. Sua relação com os filhos foi definida pela

intensidade afetiva. Ney, seu filho do meio, em depoimento que faz a Salem declara:

Os filhos são que nem filmes para ele. Tudo que ele faz é que tem importância. E ele sempre foi muito carinhoso prá gente [...] era presente em qualidade, não em quantidade. A presença física era muito difícil, mas tínhamos passagens inesquecíveis com ele. Em qualidade, era impressionante. Por exemplo: Quando a gente era criança, lá em Niterói, eu e meu irmão juntávamos os amigos, comprávamos latas de salsichas, e íamos com meu pai de bicicleta pra praia de Adão e Eva [...] Ele ia na frente comandando a tropa. A gente subia, descia a ladeira, chegávamos lá fritávamos as salsichas, ele foi escoteiro, então ia ensinando as coisas. Prá nós era uma aventura mesmo, maravilhosa, excitante [...] estávamos descobrindo o mundo! No entanto, férias ele nunca tirou. Acho que não. O cinema é realmente tudo pra ele, não tem outra coisa. [...] lembro de uma vez[...] que ele pegou nós três para brincar com o visor que havia lá em casa [...] Ele começou a mostrar prá gente as diferenças da lente do visor [...] A Márcia subia e descia a escada e, a cada momento, a gente deixava a luz de cima acesa, ou a de baixo, íamos alternando a iluminação da descida dela, olhando sempre com uma mesma lente. Então ele falou: Isso que é cinema. Estão vendo, conforme a iluminação você dá o clima526.

Em meio à turbulência gerada pela mudança de rota na vida brasileira advinda com o

regime militar e com o seu recrudescimento, Nelson viaja para os Estados Unidos onde fica

dois meses, a convite do Departamento de Estado Americano, visitando estúdios

cinematográficos, escolas de comunicação, emissoras de televisão e diversas universidades.

Aproveita sua estadia para preparar também uma grande mostra do cinema brasileiro a ser

525 Ibid., p.187. 526 Ibid., p.158-159.

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realizada no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque no ano seguinte. Em dezembro de 1968

o regime ditatorial instaura o AI-5, suspendendo os direitos individuais. Nelson estréia Fome

de Amor com Leila Diniz no papel principal e recebe o prêmio de melhor diretor no Festival

de Brasília. Dirige mais um curta-metragem, antes de se auto-exilar em Parati junto com sua

equipe, onde os filmes: Azyllo Muito Louco, Como era gostoso o meu francês – o filme mais

interessante dessa década –, e Quem é Beta?, filme que viria a ser o último dos três rodados

em Parati em 1972, no mesmo ano em que nasce Diogo, o filho temporão de Nelson.

Como era gostoso o meu francês é premiado no Festival de Cannes, e na volta ao

Brasil em 1973, Nelson começa a trabalhar em seu novo projeto, O Amuleto de Ogum, que

seria laureado em 1978 com o Kikito de melhor filme no Festival de Gramado, concorrendo

também à Palma de Ouro no Festival de Cannes.

Em julho de 1974, Ney Braga, que era Ministro da Educação e Cultura, constitui

uma comissão para reformular os órgãos do MEC ligados às atividades cinematográficas e

convida527 Nelson Pereira dos Santos para representar os interesses da cinematografia

nacional. Surge assim o Conselho Nacional de Cinema (Concine). Cacá Diegues esclarece a

importância da participação de Nelson nessa comissão, naquele momento, para o

fortalecimento do cinema brasileiro.

Em 1974, você tinha mercado que começava a esquentar, mas era totalmente dominado pelas companhias estrangeiras. Então, só o Estado poderia ter força econômica e política para enfrentar as companhias estrangeiras e tomar um pedaço desse mercado. Porque nenhum de nós tinha essa força. O Estado propôs a abertura democrática, nós acreditamos e instalamos esse projeto. Deu certo, certíssimo. A Embrafilme se transformou na principal distribuidora da América Latina528.

O Secretário Reis Velloso foi, segundo Nelson, um personagem importante na defesa

do cinema nacional, lutando por financiamentos e garantindo completa liberdade de criação

sem, contudo, subordinar essa criatividade a qualquer condição prévia.

A Embrafilme nasceu e se desenvolveu em plena ditadura. Ela tinha uma enorme capacidade de produzir, pois agregava os brasileiros que faziam cinema. Mas entrou em um processo predatório e acabou destruída. O projeto da Embrafilme foi um projeto bem claro: foi um apoio financeiro bolado à imagem e semelhança [daquele] da Petrobrás. A Embrafilme era

527 Os demais membros convidados foram: Manuel Diegues Jr. (MEC); Antonio Augusto dos Reis Velloso (Secretaria de Planejamento da Presidência da República); Octávio de Faria (Conselho Federal de Cultura); Cláudio Antonio Fontes Diegues (Departamento de Assuntos Culturais) e Leandro Gomes Tocantins (da Embrafilme). Fonte: Salem, H., O Sonho Possível do Cinema Brasileiro, p. 304. 528 Ibid., p. 305.

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uma empresa competitiva dentro do mercado. A única coisa que ela não podia fazer era produzir sozinha. Ela tinha que co-produzir, distribuir, exibir. Toda a lei que garantia suporte à Embrafilme nos tempos do presidente Geisel lhe atribuía poder legal de distribuir e também de importar certos filmes. Eu diria que aquela era uma empresa altamente competitiva529.

Em 1975 é criada no Rio de Janeiro a Associação Brasileira de Cineastas (Abraci).

Nelson Pereira dos Santos foi eleito o seu primeiro presidente, e Leon Hirszman, que ocupou

o cargo de secretário-geral, atesta a relevância de Nelson nesse processo:

Nelson Pereira dos Santos teve uma participação muito importante naquele momento na luta pela liberdade de expressão, para uma mudança mesmo no processo cultural e político do país, sempre numa visão de obter uma nova correlação de forças. Nós estávamos dispersos mesmo. E o Nelson não foi só o primeiro presidente da Abraci como um participante ativíssimo em todo o processo. Politicamente, muito sábio, muito articulado. Ele sempre conseguiu transacionar bem com a moeda da dificuldade. Essa coisa de renascer sempre, desemaranhar-se de qualquer tipo de aprisionamento, seja político ou afetivo. Acho que ele é muito cônscio de sua força530.

Entre 1975 e 1978, Nelson esteve envolvido com atividades de produtor: primeiro

produzindo um filme de Waldyr Onofre, As aventuras amorosas de um padeiro; em seguida,

em 77, A dama do lotação de Neville de Almeida. Em 78 fez um documentário para a TV

Educativa, para terminar a década com a estréia do filme Tenda dos Milagres em 1979, com o

qual receberia os Candangos de melhor filme e melhor diretor no Festival de Brasília. Os anos

seguintes, até meados da década de 1990, são praticamente dedicados a filmes adaptados da

literatura. Mesmo os curtas e médias-metragens que faz, são quase todos baseados em contos

e romances de escritores brasileiros.

Nos últimos anos têm ocorrido muitas homenagens, não apenas à obra - com

premiações aos filmes, e que tem acontecido ao longo da carreira de Nelson desde Rio, 40

graus, - mas à pessoa do próprio Nelson Pereira dos Santos: seu curta-metragem Meu

Compadre Zé Keti, de 2001, é eleito como o melhor do ano; antes disso, em 1985, Memórias

do Cárcere recebe o prêmio de melhor filme no Festival Novo de Cinema Latino Americano

de Havana; é homenageado em 2003, no Festival Internacional de Mar Del Plata; em 2004,

recebe o Troféu Barroco na Mostra de Tiradentes; depois, os títulos de Cidadão do Estado do

Rio e de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), que se soma ao

de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Paris X e aos títulos de Notório Saber

529 Rodrigo FONSECA. Meu compadre cinema – sonhos, saudades e sucessos de Nelson Pereira dos Santos. Op. Cit., p.83. 530 Ibid., p. 307.

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concedido pela Universidade de Brasília (UNB), Alta Qualificação Científica pela

Universidade Federal Fluminense (UFF), além de Comendador da Ordem de Rio Branco da

República Federativa do Brasil e Comendador da Ordem de Ciências, Letras e Artes da

República de Portugal; é o primeiro cineasta imortalizado como Acadêmico ao ser eleito

membro da Academia Brasileira de Letras em 2006.

Estou muito feliz de ter sido eleito para a Academia Brasileira de Letras. [...] Essa iniciativa da ABL de abrir um espaço para o cinema brasileiro é muito importante. O cinema é uma forma de arte tão importante quanto a literatura531.

Nelson sente-se à vontade tanto com o fardão de imortal quanto com a militância,

que o leva a comparecer a uma série de eventos, palestras e conferências promovidas pela

Academia Brasileira de Letras.

Também é membro de honra do Comitê de Cineastas da América Latina e membro

fundador da Fundação do Novo Cinema Latino-americano, da qual participa atualmente como

integrante do seu Conselho Superior.

Em 2007, recebe na Universidade de Guadalajara o prêmio Mayahuel de Prata no 22º

Festival Internacional de Guadalajara, no México.

É uma satisfação ser homenageado, é algo muito especial para mim, porque tenho uma relação especial com o cinema mexicano que, com seus autores jovens, representa muito sua cultura e, por isso, tem uma posição no mercado532.

É homenageado também no Festival de Cinema de Tribeca, criado por Robert De

Niro e Jane Rosenthal, em Nova Iorque, para ajudar na recuperação da economia do bairro

nova-iorquino após os ataques de 11 de setembro de 2001.

É condecorado como Chevalier da Legião de Honra da França e recebe o título de

Comendador da Ordre des Arts et des Lettres do Governo Francês.

Em Cuba, recebe das mãos de Fidel Castro a mais alta condecoração de Estado para

a Cultura: a Ordem Félix Varela. Do Brasil, recebe a Ordem do Cruzeiro do Sul.

Em 2008, Nelson Pereira dos Santos fará oitenta anos de idade, uma boa

oportunidade para comemorar sua importante contribuição, durante quase sessenta anos, para

a produção cinematográfica mundial. A Federação Internacional de Arquivos de Filmes

531 Depoimento a Lucas Salgado. Cinemacafri.com. em 18/10/2007. 532 http://oglobo.globo.com/cultura/mat/2007/03/26/295084409.asp

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(FIAF)533, responsável pela mais alta distinção conferida a um cineasta, neste ano a outorgará

a Nelson Pereira dos Santos, escolhendo-o como o diretor da cinematografia mais expressiva

do mundo em 2008, por ocasião do Festival de San Sebastián.

Todas as homenagens que se fazem a Nelson, mestre na arte de filmar são, portanto,

um pequeno tributo que se paga a quem dedicou uma vida inteira a construir um cinema

sempre socialmente crítico, formalmente criativo e esteticamente belo.

533 Fundada em Paris, em 1938, a FIAF conta, atualmente, com 120 instituições ligadas a ela, representando um total de 65 países. No Brasil, apenas a Cinemateca Brasileira e o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio) são ligados à instituição.

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X da questãoX da questãoX da questãoX da questão

O filme coloca “um grande número de questões” no “constante vai e vem entre a vida de Arcanjo, vivida diante de nossos olhos, e a reconstituição de Arcanjo feita pelo poeta. [...] a apropriação da imagem de Arcanjo pela televisão, pela publicidade, pela cultura oficial no seu esvaziamento até transformá-lo numa peça de promoção da sociedade de consumo”. Sobre a estrutura narrativa, afirma que “o filme é armado assim como se a platéia estivesse na sala de montagem” e é também “um filme sobre como se faz cinema no Brasil [...] E o espectador não estará errado se sair do cinema com a impressão de que nossos filmes terminam e dão certo por uma espécie de Milagre.

José Carlos Avellar534

Começar pela colocação das questões em torno de Tenda dos Milagres, um dos

pontos altos da argumentação desta tese, em que se procurou responder sobre o percurso de

Nelson Pereira dos Santos através da observação da sedimentação de sua obra, capaz de

atravessar o tempo, evoluir, operar vários trânsitos e não se desviar do cerne da questão

central à qual se propõe: a discussão, valorização da cultura e do cinema brasileiro; sua vida

confundindo-se com a história da cultura do País e do seu cinema – tudo isso é uma

provocação que deve permitir, conforme o caminho aqui percorrido, esboçar em traços gerais

as linhas que buscam estabelecer a relação entre os filmes, os textos e a performance de

Nelson Pereira dos Santos na cena político-cultural de seu tempo. A idéia é demonstrar a sua

atuação e a posição estratégica que ocupa na constituição do moderno cinema brasileiro,

conformando a figura do artista-intelectual em diálogo com as questões nacionais no âmbito

da política e da cultura especialmente pela abordagem de sua relação com a Bahia e pelo

estudo dos três filmes que realizou no Estado: Mandacaru Vermelho, Tenda dos Milagres e

Jubiabá, tomados como síntese da sua incursão como autor cinematográfico.

534 Artigo publicado no Jornal do Brasil, em 18/06/77, tendo como título Introdução a um filme sobre o verdadeiro milagre brasileiro, in Giselle Gubernikoff, vol. II, p. 142.

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Depois de mapear, traçar e indagar sobre os aspectos constitutivos da atuação de

Nelson Pereira dos Santos no cenário cinematográfico brasileiro, procedeu-se a indagação no

que diz respeito aos princípios recorrentes que perpassaram o seu pensamento e obra,

expondo agora algumas considerações acerca da tessitura desta argumentação.

As interpretações realizadas nesta tese, os estudos aqui citados, as declarações do

autor e as demais declarações apresentadas põem em destaque, ainda que de modo não-linear,

fragmentado e não-homogêneo, o todo que compõe algumas das características marcantes que

cruzam a vida e a alma de Nelson Pereira dos Santos e dos seus personagens, situados no

quadro de formação do cinema brasileiro. Para consubstanciar algumas considerações finais

acerca deste itinerário, é necessário um rápido percurso por estas marcas, insistentemente

presentes nas construções de Nelson Pereira dos Santos e sintetizados nos três filmes

mencionados.

Até Nelson Pereira dos Santos, nas palavras de Glauber Rocha, “no país

subdesenvolvido o cinema existente era ilusão”535. A idéia do cineasta e ideólogo do cinema

brasileiro referia-se à imagem da vida construída através do cinema americano, em análise

feita do cinema como possibilidade técnica moderna capaz de influenciar até mesmo quem

nunca tenha ido ao cinema em toda a vida, pois os reflexos e a sedimentação de uma cultura

cinematográfica são reconhecidos como inerentes à vida contemporânea, atingindo as culturas

que não resistiram aos estímulos que o cinema provoca à imaginação. Dessa forma, o nosso

público, por motivos tanto econômicos quanto culturais, formou uma imagem de vida e

passou a se identificar com esta imagem, e reivindicava, em primeira instância, um filme

brasileiro feito aos moldes da mimese, isto é, do modelo de construção e linguagem artística

definidos por padrões que não lhe eram próprios. Mesmo os filmes que tomavam o País como

tema, o faziam através de abordagens técnicas e artísticas a partir da matriz americana.

Qualquer outro modelo de filme que apresente a trama a partir de outros princípios, expondo

outra urdidura do conflito cinematográfico, encontra reação por parte do espectador, que,

desinformado do seu próprio País e de suas formas de representação, não aceita a imagem que

assiste.

Assim, como propósito deste trabalho, procurou-se demonstrar que Nelson Pereira

dos Santos riscou os primeiros traços que se insinuam para a constituição do drama nacional

através de uma forma que contempla a inversão da perspectiva até então seguida, ou seja, de

535 Cf. Glauber ROCHA. Revolução do Cinema Novo. São Paulo e Naif, 2004, p. 285.

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um cinema que seja constituído pelas motivações próprias suscitadas pelas suas experiências

sociais, culturais, técnicas e econômicas.

Após a realização de Rio, 40 Graus e Rio, Zona Norte, o croquis que realiza em

Mandacaru Vermelho do que seria posteriormente sua obra de contundência e alcance

reconhecidos, em que disseca e faz reverberar os aspectos da barbárie sertaneja, Vidas Secas,

é exercício de oportunidade, desejo de realização e liberdade. Em Mandacaru Vermelho, estão

presentes elementos que indicam a constituição de alguns pressupostos delineados nos dois

trabalhos iniciais e que irão se manter como constantes na obra de Nelson Pereira de Santos, a

par do improviso, que também passa a ser incorporado como um dos seus elementos de

domínio. O interesse vivo pela pesquisa, pelo fato jornalístico, pela literatura, aliado aos

elementos de fundamentação, constituem as motivações que foram expostas como alicerces

da ideação do filme. A ambientação do filme, o deslocamento para o sertão, era o movimento

indicado, naquele momento, para o homem jovem e inquieto que já havia avistado o mar da

baía de Guanabara do alto dos barracos dos morros da cidade de São Sebastião do Rio de

Janeiro pela impossibilidade de destacar a favela na paisagem horizontal de São Paulo.

Sensível à movimentação da renascença cultural baiana, Nelson Pereira dos Santos aporta na

Cidade da Bahia e mais um traço comum é dado que resulta na sua maneira de conduzir a

produção e se reflete na sua criação. Nelson procura seus pares, forma equipe, dialoga com o

movimento cultural, particularmente com o núcleo que se forma em torno do emergente Ciclo

Baiano de Cinema. Está dado o passo para o rito de passagem que o Cinema Novo irá

promover no cinema brasileiro. Nelson Pereira dos Santos havia deflagrado o desafio que o

cineasta brasileiro irá responder de como conquistar o público com formas narrativas próprias

e o seu encontro com os jovens baianos, que tinham em comum a mesma preocupação,

promove a sinergia necessária para a eclosão do movimento.

A colaboração de Nelson Pereira dos Santos ao movimento é o de mostrar os

caminhos e a pedagogia de um cinema novo que fez a opção de enfrentar a verdade brasileira,

outro termo muito caro às convicções de Nelson, ao qual ele conjuga, permanentemente, lado

a lado à outra expressão que lhe é recorrente: liberdade, que num exercício de significação e

edição de discurso resulta em um terceiro traço, aqui destacado, correspondendo a sua

declaração de princípios fundadores da invenção de uma nova proposta de linguagem

cinematográfica. E essa linguagem vem de um acordo que se pretende com o público,

postulando a revisão das questões ambientais da cultura brasileira. Esse diálogo precisa estar

bem posicionado, pois vai exigir um duplo esforço. Do cineasta para se comunicar com o

público com uma linguagem que lhe é nova e do público de assimilar essa linguagem que

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apesar de não desprezar os usos e empregos do cinema, mas o quer como elemento de

reflexão crítica.

Na busca empreendida de responder ao axioma “Quem somos nós e qual é o nosso

cinema”, Nelson Pereira dos Santos recusou o simplismo do caminho que forçosamente

poderia conduzi-lo ao populismo fácil e insistiu na iniciativa que cada vez mais o aproximava

a enxergar a complexidade do drama do povo. Assim, tomou o distanciamento necessário a

posturas dogmáticas e rasas, investindo no aprofundamento da questão. Com liberdade, reagiu

à mudança de rumo imposta ao cinema brasileiro pela situação política do país, experimentou

linguagens e obsessivamente insistiu no formato de revolver as fontes populares, interpretá-

las através dos seus filmes e devolvê-las ao povo com a sua significação. E essa

ressignificação implicava em uma averiguação de linguagem que fosse a mais adequada para

dar conta dos vários níveis em que se processam a comunicação da arte. Glauber Rocha, ao

falar do conteúdo informativo processado pelo Cinema Novo na articulação do seu

pensamento, quando o cineasta se propõe a falar com outro enredo, com outro tipo de

imagem, ritmo e poesia, entende que:

Eles se lançam na perigosa aventura revolucionária de aprender enquanto faz, de colocar, pois, a teoria paralela à prática, de se comportar segundo uma frase oportuna de Nelson Pereira dos Santos, citando não sei que poeta português:

‘Não sei por onde vou, mas sei que não vou por ali!’536.

Seguindo essa orientação, sem saber para onde ia, mas com a certeza de onde não ir,

Nelson Pereira dos Santos, atento ao que se passa no Brasil e no mundo, ao ambiente que o

cerca, à sociedade e ao cinema, não se isola na sua arte e a condiciona à sua vivência através

do agenciamento dos vários circuitos em que é mobilizado a interferir. Assim, aciona a sua

sensibilidade para verificar as numerosas relações de interdependência e de subordinação de

uma realidade muitas vezes difícil de ser apreendida pelo intelecto. Essa realidade geralmente

apresenta diversos aspectos e o põe constantemente em cheque.

E esse corte vertical na sociedade é alimentado pela pesquisa anterior feita pelos

reiterados formuladores do pensamento brasileiro, aos quais Nelson Pereira dos Santos

recorre para reviver a inteligência do mito e promover uma dramaturgia da vida social em que

opera a sua transcendência, direcionando o seu olhar para o registro em que reescreve a

história social, cultural e política do Brasil, que não o do arquivo oficial, mas por um

536 Id. Ibid., p.133.

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movimento avesso, que surge da margem, do que está fora do discurso hegemônico, que está

em processo, latente, e que rejeita as supostas verdades totalitárias.

Dessa forma, após a realização de O Amuleto de Ogum, em que Nelson Pereira dos

Santos reafirma a complexidade do múltiplo ser brasileiro – ativo e reflexivo personagem que

toma a cena do cinema de perspectiva popular formulado pelo cineasta –, chega-se, nesse

ponto, a um novo traço constitutivo e de clara definição no mosaico artístico do cineasta.

Tenda dos Milagres e Jubiabá dão reforço à fecundidade dos investimentos de tema, narrativa

e linguagem, calcados na experiência popular e em acordo com ela, que o cineasta passa a

empreender. O espectador a quem esses filmes se dirigem é convidado não só a ver, mas a

participar desses filmes, tornando-se livre para escolher, pois o discurso de Nelson é

democrático, apoiado na sua verdade; dirige-se às demais versões que os fatos possam conter

para promover o sincretismo, as transposições e as articulações que resultam em experiências

que tão fortemente lhe mobilizam e que reacendem o seu credo no cinema brasileiro, para o

qual se move com o mesmo empenho que descortina e reencena, por pura paixão, para melhor

compreender o homem da terra Brasil e dimensioná-lo no conjunto das nações. Para além do

nacional projeta o ser brasileiro com suas insuficiências e qualidades, elementos flutuantes de

um pensamento em evolução, conclamado para o exercício da criação cinematográfica, que se

inicia na estratégia de sua produção, se constitui na liberdade dialética e se afirma na sua

aceitação pelo público.

abancado à escrivaninha em são paulo na minha casa da rua lopes chaves de supetão senti um friúme por dentro fiquei trêmulo, muito comovido com o livro palerma olhando pra mim não vê que me lembrei que lá no norte, meu deus! muito longe de mim na escuridão ativa da noite que caiu um homem pálido magro de cabelo escorrendo nos olhos, depois de fazer uma pele com a borracha do dia, faz pouco se deitou, está dormindo. esse homem é brasileiro que nem eu.

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Mario de Andrade537

537 Trecho do poema “O descobrimento”, encarte do CD Brasileirinho, de Maria Bethânia editado pela Biscoito Fino, em 2003.

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de Zoomde Zoomde Zoomde Zoom

Quem vai escrever um livro sobre Nelson Pereira dos Santos, organizar seus roteiros segundo a montagem final dos filmes, montar a foto de cada plano com diálogo, montar suas entrevistas, artigos e estabelecer a cronologia crítica mundial em torno de sua obra?

Os textos dos filmes de Nelson devem ser estudados ou Vidas Secas com fotos de Luiz Carlos Barreto montadas por Nelson não é uma linguagem nova dada ao pensamento de Graciliano?

Cortemos por aqui.

Aparecerão muitos livros sobre o cinema novo mas eu contarei minha versão sob o título de Da teatralização poética à Montagem Parabólyka ou Itinerário Hystóryko da Metáfora Dialética à revisão crítica do Cinema Novo – de Rio, 40 graus a Tenda dos Mylagres.

Glauber ROCHA538 Acho que um artista, quando verdadeiramente talentoso, inserido no seu tempo e raízes, ultrapassa as fronteiras de seus limitados instrumentos de expressão. Torna-se, sim, patrimônio de toda a sociedade. Nelson faz cinema- poderia compor, escrever ou pintar, não importa. Suas verdades e sonhos pertencem a todos nós – e não somente aos amantes do cinema. Então, é pensando em transmitir para qualquer um que ame a vida e a beleza – isto é, a arte – que me empenho em contar a história desse contador de histórias. Um brasileiro, lutador incansável, que escolheu o cinema para falar do ser humano, do amor, do Brasil.

[...] Na realidade, para mim a história está só começando. Porque essa história ora contada (desse contador de histórias) tinha mesmo de ser contada. Eu sempre soube que tinha. Não para terminar, mas para iniciar. Para que a gente possa melhor curtir as próximas histórias dele. E curtir mais as que ele já contou. Principalmente (tomara), quem sabe valorizar um pouco mais, só um pouquinho, esse nosso criador brasileiro, filho do povo e a ele sempre fiel.

Helena SALEM539

538 Cf. Glauber ROCHA. Op. Cit., p.296. 539 Cf. Helena SALEM. Nelson Pereira dos Santos: o sonho possível do cinema brasileiro. Op. Cit., p.10; p.357.

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No fechamento deste ABC, o Z é destinado ao zoom, a lente mais próxima atinge os

textos que o iluminaram.

O livro de Glauber Rocha não teve tempo de ser escrito, mas nesta tese muitos dos

argumentos desenvolvidos em sua curta e intensa produção formativa do cinema, composta

por filmes, críticas e textos, sobre os mais variados temas da composição cinematográfica,

foram utilizados e deram sustentação ajudando o seu desenvolvimento, através do

discernimento e diferenciando o que era qualitativo em termos de apreciação e

aprofundamento analítico. Esta posição encontra apoio em publicação razoavelmente recente

em que o pesquisador francês Jacques Aumont540 parte da interação com a expressão

conceitual do autor, isto é, não se trata mais de apenas analisar filmes para se encontrar o

pensamento cinematográfico, mas de dialogar com textos e falas dos autores. Descortinam-se

as visões dos autores cinematográficos, não apenas pelo viés analítico dos seus filmes, mas,

para além deles, em conceitos de sua extração.

Nesses termos, por analogia, pode-se entender que o mesmo procedimento foi

seguido no tratamento que se deu ao pensamento formativo de Nelson Pereira dos Santos,

reconhecido pela comunicação que estabeleceu por meio de entrevistas, uma possível herança

da sua condição de jornalista. O certo é que quando Nelson Pereira dos Santos deu forma

escrita ao seu pensamento cinematográfico, além dos roteiros publicados541, o fez por meio de

entrevistas nos diversos meios de comunicação, sendo que muitas delas foram editadas,

publicadas em revistas ou transformadas em livros.

A construção desta tese também foi guiada por um saber imprescindível em que

foram encontrados preciosos sinais de conhecimento sobre o objeto disponibilizado na

dedicada e intensa biografia feita por Helena Salem, em tarefa de “escavação”, motivada pela

dimensão do artista.

Outro conjunto de informações de primeira grandeza foram os trabalhos acadêmicos

desenvolvidos em programas de pós-graduação nas universidades brasileiras e estrangeiras

que consistiram em valiosos repositórios de informações que alimentaram este ABC, dando o

mote para esta peleja, que não se esgota, e tem a pretensão de despertar outras poéticas, que

como na poesia popular recorreu ao passado, em um resgate de renovação, se apropriou, como

elemento de mediação, dos seus intertextos para projetá-lo para o futuro.

540 Cf. Jacques AUMONT. Teoria dos cineastas. São Paulo: Papirus, 2004.

541 Nelson Pereira SANTOS. Três vezes Rio – Rio, 40 graus; Rio, Zona Norte; O amuleto de Ogum. Rio

de Janeiro: Rocco, 1999.

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FILMOGRAFIA DE NELSON PEREIRA DOS SANTOS LONGAS

Rio, 40 graus (1954-1955)

Direção: Nelson Pereira dos Santos Roteiro: Nelson Pereira dos Santos Produção: Nelson Pereira dos Santos, Mário Barros, Ciro Freire Cúri, Luiz Jardim, Louis Henri Guitton e Pedro Kosinski Assistente de direção: Jece Valadão Fotografia: Hélio Silva Montagem: Rafael Justo Valverde Música: Radamés Gnatalli Elenco: Jece Valadão, Glauce Rocha, Roberto Bataglin, Zé Kéti, Sady Cabral, Mauro Mendonça, Renato Consorte. Rio, Zona Norte (1957)

Direção: Nelson Pereira dos Santos Roteiro: Nelson Pereira dos Santos Produção: Nelson Pereira dos Santos e Ciro Freire Cúri Fotografia: Hélio Silva Montagem: Rafael Justo Valverde Música: Alexandre Gnatalli e Zé Kéti Elenco: Grande Otelo, Jece Valadão, Maria Pétar, Malú, Paulo Goulart, Zé Kéti, Ângela Maria. Mandacaru vermelho (1960-61)

Direção: Nelson Pereira dos Santos Roteiro: Nelson Pereira dos Santos Produção: Nelson Pereira dos Santos e Danilo Trelles Fotografia: Hélio Silva Montagem: Nelo Melli Música: Remo Usai Elenco: Nelson Pereira dos Santos, Ivan de Souza, Sônia Pereira, Miguel Torres, Luiz Paulino dos Santos Boca de ouro (1962-63)

Direção: Nelson Pereira dos Santos Roteiro: Nelson Pereira dos Santos Produção: Jarbas Barbosa, Gilberto Perrone, Copacabana Filmes Ltda. Fotografia: Amleto Daissé Montagem: Rafael Justo Valverde Música: Remo Usai Elenco: Jece Valadão, Odete Lara, Daniel Filho, Maria Lúcia Monteiro, Ivan Cândido, Wilson Grey. Vidas secas (1962-1963)

Direção: Nelson Pereira dos Santos

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Roteiro: Nelson Pereira dos Santos, adaptado da obra de Graciliano Ramos Produção: Herbert Richers, Danilo Trelles, Luiz Carlos Barreto Fotografia: Luiz Carlos Barreto e José Rosa Montagem: Rafael Justo Valverde Música: Remo Usai Elenco: Átila Iório, Maria Ribeiro, Orlando Macedo, Jofre Soares, Gilvan Lima, Genivaldo Lima, Baleia. El justicero (1966-97)

Direção: Nelson Pereira dos Santos Roteiro: Nelson Pereira dos Santos Produção: Condor Filmes Fotografia: Hélio Silva Montagem: Nelo Melli Música: Carlos Alberto Monteiro de Souza Elenco: Arduíno Colasanti, Adriana Prieto, Márcia Rodrigues, Thelma Reston, José Wilker Fome de amor ou Você nunca tomou banho de sol inteiramente nua (1967-68)

Direção: Nelson Pereira dos Santos Roteiro: Nelson Pereira dos Santos e Luiz Carlos Ripper Produção: Herbert Richers e Paulo Porto Fotografia: Dib Lutfi Montagem: Rafael Justo Valverde Música: Guilherme Magalhães Vazo Elenco: Leila Diniz, Arduíno Colasanti, Irene Stefânia, Paulo Porto, Márcia Rodrigues Azyllo muito louco (1969-71) Direção: Nelson Pereira dos Santos Roteiro: Nelson Pereira dos Santos. Adaptação livre de O alienista, de Machado de Assis. Produção: Nelson Pereira dos Santos, Luiz Carlos Barreto, Roberto Farias Fotografia: Dib Lutfi Montagem: Rafael Justo Valverde Música: Guilherme Magalhães Vazo Elenco: Nildo Parente, Isabel Ribeiro, Arduíno Colasanti, Irene Stefânia, Nelson Dantas, Ana Maria Magalhães, Leila Diniz. Como era gostoso o meu francês (1970-72) Direção: Nelson Pereira dos Santos Roteiro: Nelson Pereira dos Santos Produção: Nelson Pereira dos Santos, Luiz Carlos Barreto, K. M. Eckstein, César Thedim Fotografia: Dib Lutfi Montagem: Carlos Alberto Camuyrano Música: José Rodrix Diálogos em tupi: Humberto Mauro Elenco: Ana Maria Magalhães, Arduíno Colasanti, Eduardo Imbassahy Filho, Manfredo Colasanti, José Kleber. Quem é Beta?

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Pas de violence entre nous (1972-73)

Direção: Nelson Pereira dos Santos Roteiro: Nelson Pereira dos Santos Produção: Regina Filmes e Dhalia Film Fotografia: Dib Lutfi Montagem: André Delage Música: Paulo, Cláudio, Maurício Elenco: Fréderic de Pasquale, Sylvie Fennec, Regina Rosemburgo, Isabel Ribeiro, Arduíno Colasanti, Luiz Carlos Lacerda, Ana Maria Magalhães O amuleto de Ogum (1973-1975) Direção: Nelson Pereira dos Santos Roteiro: Nelson Pereira dos Santos Produção: Regina Filmes e Embrafilme Fotografia: Hélio Silva, José Cavalcanti, Nelson Pereira dos Santos Montagem: Severino Dada e Paulo Pessoa Música: Jards Macalé Elenco: Jofre Soares, Anecy Rocha, Ney Sant’Anna, Maria Ribeiro, Jards Macalé, Olney São Paulo Tenda dos milagres (1975-77)

Direção: Nelson Pereira dos Santos Roteiro: Nelson Pereira dos Santos, adaptado do livro Tenda dos milagres, de Jorge Amado Adaptação e diálogos: Nelson Pereira dos Santos e Jorge Amado Diretor de Produção: Albertino N. da Fonseca Fotografia: Hélio Silva Montagem: Raimundo Higino e Severino Dadá Música: Gilberto Gil, Jards Macalé Elenco: Hugo Carvana, Sônia Dias, Anecy Rocha, Jards Macalé, Juarez Paraíso, Severino Dada, Wilson Mello. Estrada da vida (1979-81)

Direção: Nelson Pereira dos Santos Roteiro: Francisco de Assis Produção: Vilafilmes Produções C. Ltda. Fotografia: Francisco Botelho Montagem: Carlos Alberto Camuyrano Música: Dooby Ghizzi Elenco: Milionário, José Rico, Nádia Lippi, Silvia Leblon, Raimundo Silva, José Raimundo Memórias do cárcere (1983-84)

Direção: Nelson Pereira dos Santos Roteiro: Nelson Pereira dos Santos, adaptação da obra homônima de Graciliano Ramos Produtora executiva: Maria da Salete Fotografia: José Medeiros e Antônio Luiz Soares Montagem: Carlos Alberto Camuyrano

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Elenco: Carlos Vereza, Glória Pires, Jofre Soares, José Dumont, Nildo Parente, Wilson Grey, Tonico Pereira, Arduíno Colasanti, Ney Sant’Anna Jubiabá (1985-87)

Direção: Nelson Pereira dos Santos Roteiro: Nelson Pereira dos Santos e Luiz Carlos Ripper Direção de Produção: Tininho Fonseca, Roberto Petti. Chico Drumond, Walter Schi, José Oliosi Fotografia: José Medeiros Montagem: Yvon Lemiere, Yves Charoy, Catherine Gabrielidis, Sylvie Lhermenier, Alain Fresnot Música: Gilberto Gil e Serginho Elenco: Grande Otelo, Zezé Motta, Ruth de Souza, Eliana Pitman, Jofre Soares, Antônio José Santana A terceira margem do rio (1993-94) Direção: Nelson Pereira dos Santos Roteiro: Nelson Pereira dos Santos, baseado nos contos “A terceira margem do rio”, “A menina de lá”, “Os irmãos Dagoberto”, “Fatalidade e seqüência” do livro Primeiras estórias, de João Guimarães Rosa Produção: Regina Filmes Fotografia: Gilberto Azevedo e Fernando Duarte Montagem: Carlos Alberto Camuyrano e Luelane Correa Música: Milton Nascimento Elenco: Bárbara Brandt, Ilya São Paulo, Sonjia Saurin, Maria Ribeiro, Chico Diaz, Mariane Vicentine. Cinema de lágrimas (1995) Direção: Nelson Pereira dos Santos Roteiro: Nelson Pereira dos Santos e Silvia Oroz Produção: Roberto Feith Fotografia: Walter Carvalho Montagem: Luelane Correa Música: Paulo Jobim Elenco: Raul Cortez, André Barros, Cristiane Torloni, Patrick Tannus, Cosme Alves Netto, Silvia Oroz, Ivan Trujillo Raízes do Brasil (2003) Direção: Nelson Pereira dos Santos Roteiro: Nelson Pereira dos Santos e Miúcha Produção: Márcia Pereira dos Santos e Maurício Andrade Ramos Fotografia: Reynaldo Zangrandi Montagem: Alexandre Sagese Elenco: Sérgio Buarque de Hollanda, Maria Amélia, Chico Buarque, Antonio Candido, Paulo Vanzolini Brasília 18% (2006) Direção: Nelson Pereira dos Santos

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Roteiro: Nelson Pereira dos Santos Produção: Regina Filmes e VideoFilmes Fotografia: Edgar Moura Montagem: Alexandre Saggese Música: Paulo Jobim Elenco: Othon Bastos, Otávio Augusto, Bruna Lombardi, Carlos Alberto Riccelli, Malu Mader Documentários, curtas e médias-metragens Juventude (1950) Documentário sobre a situação da juventude em São Paulo Soldados do fogo (1958) Um moço de 74 anos (1965) Direção: Nelson Pereira dos Santos Produção: Jornal do Brasil Fotografia: Luiz Carlos Saldanha e Hans Bantel Documentário sobre a história do Jornal do Brasil, fundado em 14 de abril de 1891 O Rio de Machado de Assis (1965) Direção: Nelson Pereira dos Santos Roteiro: Nelson Pereira dos Santos Produção: Jornal do Brasil Fotografia: Hélio Silva e Roberto Mirilli Fala Brasília (1966) Direção: Nelson Pereira dos Santos Roteiro: Nelson Pereira dos Santos Produção: MEC e Ince Fotografia: Dib Lutfi Cruzada ABC (1966) Direção: Nelson Pereira dos Santos Produção: Usis Curta-metragem realizada para a Aliança Para o Progresso, órgão criado pelo ex-presidente norte-americano John Kennedy. Alfabetização (1970) Cidade Laboratório de Humboldt 73 (1973) Média-metragem sobre a criação de uma base científica e tecnológica na floresta amazônica Nosso mundo (Repórteres de TV) (1978) Produzido para a TV Educativa

Um ladrão (Insônia) (1981) Direção: Nelson Pereira dos Santos Roteiro: Nelson Pereira dos Santos, baseado no conto “Insônia” de Graciliano Ramos.

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Produção: Sindicato dos Artistas e Técnicos do Rio Fotografia: Jorge Monclar Elenco: Ney Sant’Anna, Wilson Grey, Nádia Lippi Nota: parte de um filme em três episódios baseado na obra de Graciliano Ramos. Missa do galo (1982) Direção: Nelson Pereira dos Santos Roteiro: Nelson Pereira dos Santos, baseado em conto de Machado de Assis. Produção: Nelson Pereira dos Santos Filho, Regina Filmes. Fotografia: Hélio Silva e Walter Carvalho Montagem: Carlos Alberto Camuyrano Elenco: Isabel Ribeiro, Nildo Parente, Olney São Paulo, Elza Gomes. A arte fantástica de Mario Gruber (1982) La drôle de guerre (1986) Direção: Nelson Pereira dos Santos Roteiro: Nelson Pereira dos Santos, inspirado no diário de guerra do escritor Raymond Queneau Produção: Centre Georges Pompidou Meu compadre Zé Kéti (2001) Direção: Nelson Pereira dos Santos Roteiro: Nelson Pereira dos Santos Produção: VideoFilmes Fotografia: Reinaldo Flávio Zangrandi Montagem: Júlio Souto Música: Zé Kéti Elenco: Monarco, Guilherme de Brito, Walter Alfaiate, Nelson Sargento, Jair do Cavaquinho, Noca da Portela e Wilson Moreira Programas para a televisão Cinema Rio – TV Educativa (1980) O mundo mágico – Rede Manchete (1983) A música segundo Tom Jobim – Rede Manchete (1984) Capiba – Rede Manchete (1984) Eu sou o samba – Rede Manchete (1985) Bahia de Todos os Santos – TV Bahia (1985) Super Gregório – Rede Manchete (1987) Casa grande & Senzala – Série em quatro episódios (2000-2001) Assistente de direção O saci – direção de Rodolfo Nanni (1951) Agulha no palheiro – de Alex Viany (1952) Balança mas não cai – de Paulo Vanderlei (1953)

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Montador Barravento – de Glauber Rocha (1961) O menino de calça branca – de Sérgio Ricardo (1962) Pedreira de São Diogo (Cinco vezes favela) – de Leon Hirszman (1964) Maioria absoluta – de Leon Hirszman (1964) Cantores e trovadores – de Evandro Moura (1968) A nova era – de Nilo Sérgio (1985) Produtor O grande momento – de Roberto Santos (1958) A opinião pública – de Arnaldo Jabor (1965) As aventuras amorosas de um padeiro – de Waldyr Onofre (1975) A dama do lotação – de Neville d’Almeida (1977) Sonhei com você – de Ney Sant’Anna (1990) Ator Mandacaru vermelho – de Nelson Pereira dos Santos (1961) Jardim de guerra – Neville d’Almeida (1968)

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APÊNDICE APÊNDICE A: Apontamentos para o ABC de Nelson Pereira dos Santos (vídeo-documentário)

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