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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO CAMPUS UNIVERSITÁRIO DE RONDONÓPOLIS INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO MARTA CECÍLIA ROCHA DA SILVA COLEÇÃO GIRASSOL: LIVRO DIDÁTICO DE ALFABETIZAÇÃO EM CONTEXTO INDÍGENA - (DES)ENCONTROS ENTRE O PROPOSTO E O REALIZADO Rondonópolis MT 2015

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO CAMPUS … · As amigas, de longe e de perto, mas sempre presentes, Nágela, Soila, Vasti e colegas da turma do Mestrado/2013. Foi fundamental

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

CAMPUS UNIVERSITÁRIO DE RONDONÓPOLIS

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

MARTA CECÍLIA ROCHA DA SILVA

COLEÇÃO GIRASSOL: LIVRO DIDÁTICO DE ALFABETIZAÇÃO EM

CONTEXTO INDÍGENA - (DES)ENCONTROS ENTRE O PROPOSTO E O

REALIZADO

Rondonópolis – MT

2015

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MARTA CECÍLIA ROCHA DA SILVA

COLEÇÃO GIRASSOL: LIVRO DIDÁTICO DE ALFABETIZAÇÃO EM

CONTEXTO INDÍGENA - (DES)ENCONTROS ENTRE O PROPOSTO E O

REALIZADO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Educação do Instituto de Ciências

Humanas e Sociais da Universidade Federal de

Mato Grosso, Campus Universitário de

Rondonópolis, como requisito parcial para

obtenção do título de Mestre em Educação, na

linha de Pesquisa Linguagens, cultura e construção

do conhecimento: perspectivas histórica e

contemporânea.

Orientadora: Profa. Dra. Cancionila Janzkovski

Cardoso

Rondonópolis – MT

2015

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4

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

PRÓ-REITORIA DE ENSINO DE PÓS-GRADUAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

Rod. Rondonópolis. -Guiratinga, km 06 MT-270 - Campus Universitário de Rondonópolis - Cep:

78735-901 -RONDONÓPOLIS/MT

Tel : (66) 3410-4035 - Email : [email protected]

FOLHA DE APROVAÇÃO

TÍTULO: "COLEÇÃO GIRASSOL: LIVRO DIDÁTICO DE ALFABETIZAÇÃO EM

CONTEXTO INDÍGENA - (DES) ENCONTROS ENTRE O PROPOSTO E O REALIZADO"

AUTOR: Mestranda Marta Cecilia Rocha da Silva

Dissertação defendida e aprovada em 09/12/2015.

Composição da Banca Examinadora:

______________________________________________________________________

Presidente Banca / Orientador Doutor(a) Cancionila Janzkovski Cardoso

Instituição : UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

Examinador Interno Doutor(a) Silvia de Fátima Pilegi Rodrigues

Instituição : UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

Examinador Externo Doutor(a) Josélia Gomes Neves

Instituição : UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDONIA/UNIR

Examinador Suplente Doutor(a) Raquel Gonçalves Salgado

Instituição : UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

RONDONÓPOLIS, 09/12/2015.

5

A Deus seja a Glória.

Todas as coisas foram feitas por Ele, e sem

Ele nada do que foi feito se fez. (Jo 1:1-3)

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AGRADECIMENTOS

Primeiramente a Deus, por tantas bênçãos, concedendo-me oportunidades valiosas de viver,

tornando-me capaz de caminhar na direção e projetos dados por Ele.

A José Roberto, presença constante e marcante, grande companheiro e amor que acalma e

impulsiona.

De forma especial, à minha mãe, Margarida, incentivadora com seu estilo de vida e ensino. Se

tivesse tido chance, teria alcançado destaque acadêmico.

Aos meus irmãos Pedro, Washington e Finê; cunhadas, Nair, Léia e Janice; e sobrinhos, pelo

amor que sempre demonstraram, acreditando na minha capacidade, dando-me força pra

continuar estudando e tendo novas conquistas. A toda minha família e amigos, que souberam

estar juntos no meu silêncio. Obrigada!

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela concessão

da bolsa de pesquisa.

À minha professora e orientadora, Dra. Cancionila Janzkovski Cardoso, pela compreensão e

incentivo, com palavras de confiança nos momentos em que as limitações humanas me

levaram ao desânimo e impotência. Meus sinceros agradecimentos a quem tornou possível a

realização dessa pesquisa. Suas atitudes firmes são exemplo para mim. A recompensa vem do

Senhor.

Às professoras Dra. Josélia Gomes Neves e Dra. Sílvia de Fátima Pilegi Rodrigues, pelas

valiosas contribuições durante a qualificação, sem as quais não amadureceria meu olhar de

pesquisadora.

Aos professores do Programa de Pós-graduação em Educação (UFMT/CUR), pela partilha na

construção de saberes.

Ao professor Ms. Agameton Ramsés, pelo conhecimento compartilhado de forma

agradavelmente descontraída, e incentivo contagiante.

A Anabel Beatriz de Col, pela solicitude e compreensão em todos os momentos.

Aos amados da Igreja Batista Jardim Atlântico, IBJA, queridos e presentes que souberam

animar, incentivar e apoiar, o que muito contribuiu para que eu chegasse até aqui.

Agradecimentos não traduzem meu carinho e gratidão.

Aos meus parceiros de pesquisa os meus colaboradores Kurâ-Bakairi, professores Apolônio,

Durval, Ivelize e Jaqueline. Muito obrigada por acreditarem e tornarem possível essa

pesquisa.

A Antônio Cezar Scheffer, mais que motorista incansável nas idas a Paranatinga para

pesquisa e a Cuiabá, durante o tratamento. Sinta-se participante dessa pesquisa.

As amigas, de longe e de perto, mas sempre presentes, Nágela, Soila, Vasti e colegas da turma

do Mestrado/2013. Foi fundamental tê-las por perto.

Muito obrigada a todos que aqui estão citados, e a muitos outros que deveriam estar, e que

esse espaço se torna insuficiente para citar. Serei grata sempre.

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RESUMO

Este trabalho se propõe analisar o Livro Didático de Alfabetização (LDA), da Coleção

Girassol – Saberes e Fazeres do Campo, na perspectiva intercultural, no processo de ensino

aprendizagem em um contexto em que o português é a segunda língua. Para tanto, o trabalho

será realizado com professores da primeira etapa do Ensino Fundamental em três unidades

escolares, na Terra Indígena Bakairi, no município de Paranatinga, Mato Grosso. O objetivo

geral é analisar os três primeiros volumes de letramento e alfabetização. A Coleção é

distribuída e aprovada pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) Campo 2013 e sua

adequação a um contexto de diversidade pluricultural e linguística como as escolas indígenas

no processo de alfabetismo na etnia Bakairi. Busca-se apontar adequação ou inadequação do

LDA, em relação aos objetivos para o qual foi elaborado, sua implicação no contexto da

escola do campo indígena e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar

Indígena (DCNEI) e, neste cenário, contextualizar o ambiente onde o LDA é utilizado, em

termos de diversidade cultural e linguística. Pretende-se ainda analisar os aspectos observados

gerando contribuição baseada nos apontamentos dos professores sobre a pesquisa. A

metodologia para a coleta de dados consiste em analisar, na perspectiva da educação

intercultural, o Livro Didático de Alfabetização (LDA), distribuído pelo PNLD Campo, as

DCNEI e, complementarmente, o uso de entrevistas com quatro professores. A análise das

entrevistas permitiu identificar que os professores entrevistados utilizam o LDA como

material de apoio no cotidiano escolar e possibilitam aos alunos e a si mesmos, como sujeitos

do fazer pedagógico, uma experiência de proximidade com o impresso que possibilita uma

maior apropriação dos textos apresentados. O desafio da interculturalidade se faz presente no

incentivo à produção cultural, no compartilhamento do LDA no contexto escolar e familiar.

Percebe-se também que as experiências vividas nos anos iniciais de escolarização pelos

professores lhes permitem participar na “construção” do saber de seus alunos hoje. Nos

volumes analisados, a princípio, observa-se que, mesmo tendo sido apresentados como

aprovados para a educação do campo, os aspectos para uma educação intercultural precisam

ter maior destaque. Percebe-se uma atitude bastante sucinta quanto à diversidade linguística e

temática indígena, um dos grupos que compõem a população do campo. Nota-se ainda que

este importante recurso de apoio pedagógico, exerce função múltipla no processo de

alfabetismo bilíngue.

Palavras-chave: Livro didático de alfabetização. Interculturalidade. Escola indígena.

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ABSTRACT

This study aims to analyze the Textbook Literacy (LDA), the intercultural perspective in the

process of teaching and learning in a context where Portuguese is the second language. For

this work will be performed with teachers of the first stage of primary school into the three

units School in Indigenous Bakairi at the municipality of Paranatinga, Mato Grosso. The

overall objective is to analyze the first three volumes Collection Sunflower - Knowledge and

Doings Field. Distributed and approved by PNLD Field in 2013 and its adaptation to the

context of multi-cultural and linguistic diversity as indigenous schools in the literacy process

between Bakairi ethnicity. The aim is to point adequacy or inadequacy of the LDA, in relation

to the objectives for which it was prepared and its implications in the context of school of

Indian countryside and the National Curriculum Guidelines for Indigenous Education

(DCNEI) for this scenario, contextualize the environment where the LDA is used, in terms of

cultural and linguistic diversity. The aim is also to analyze the observed aspects generating

contribution based on notes from teachers about the problem. The methodology for data

collection is to examine, in the context of intercultural education, the teaching of literacy book

(LDA), distributed by PNLD Field, the DCNEI and in addition, the use of interviews with

four teachers. The data analysis identified that the interviewed teachers use the LDA as

collateral in everyday school life and enable students and themselves as subjects of

pedagogical practice, a close experience with the form that enables greater ownership of texts

presents. The challenge of interculturalism is present in encouraging cultural production, LDA

share on school and family experiences. We also noticed that the experiences of the early

years of schooling by the teachers allow them to participate in the "construction" of

knowledge to their students today. The volumes analyzed, at first, it is observed that, even

though it was presented as approved for the education field, the aspects of an intercultural

education could have the spotlight. You can see a fairly succinct attitude to linguistic diversity

and indigenous issues, one of the groups that make up the rural areas population. Note also

that important teaching support resource has multiple functions in bilingual literacy process.

Keywords: Textbook literacy. Interculturalism. Indigenous school.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Mapa da Localização dos Kurâ-Bakairi 26

Figura 2 – Mapa da Localização dos Bakairi e Paranatinga 59

Figura 3 – Mapa da Localização das Escolas 61

Figura 4 – Desenhos das pinturas corporais Kurâ-Bakairi 62

Figura 5 – Pinturas corporais masculinas Kurâ-Bakairi 63

Figura 6 – Pinturas corporais femininas Kurâ-Bakairi 64

Figura 7 – Capas dos volumes analisados 66

Figura 8 – Sumário do Volume 1 68

Figura 9 – Capa do Livro Girassol 1º Ano 74

Figura 10 – Quadro Militão dos Santos 1º Ano 75

Figura 11 – Capa do Livro Girassol 2º Ano 76

Figura 12 – Quadro Militão dos Santos 2º Ano 77

Figura 13 – Capa do Livro Girassol 3º Ano 78

Figura 14 – Quadro Militão dos Santos 3º Ano 79

Figura 15 – Os Direitos das Crianças 85

Figura 16 – O que é, o que é? 86

Figura 17 – Diversidade de gêneros textuais do Volume 2– Tirinhas 83

Figura 18 - Diversidade de gêneros textuais do Volume 2 – História em quadros 87

Figura 19 - Diversidade de gêneros textuais do Volume 2 – Letra de Música 87

Figura 20 – Introdução às letras do alfabeto 89

Figura 21 – Jeitos de Morar 92

Figura 22 – Seção Produção 93

Figura 23 – Apresentação Maria Sol e Zé Sabiá 94

Figura 24 – Orientações ao professor 96

Figura 25 – O buraco do tatu 98

10

Figura 26 – Sumário Volume 3 101

Figura 27 – Textos com enfoque campesino Volume 3 102

Figura 28 – Tempo de Brincar 106

Figura 29 – Texto de um indígena – V.1 107

Figura 30 – Um planeta de todos 108

Figura 31 – História dos três porquinhos 113

Figura 32 – Capa da cartilha na língua Bakairi 123

Figura 33 – Cartilha Bakairi - Alfabeto 124

Figura 34 – Cartilha Bakairi - História em quadrinhos 125

Figura 35 – Os animais - Livro de Leitura 2 em Bakairi 126

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Etapas da Educação Indígena na América Latina 19

Quadro 2 – População Indígena nas escolas brasileiras (2007 a 2012) 29

Quadro 3 – Retrospectiva das Diretrizes Nacionais para a Educação Indígena 38

Quadro 4 – Descrição dos Professores Alfabetizadores e Sujeitos 64

Quadro 5 – Organização da Coletânea 67

Quadro 6 – Variedade nas manifestações textuais - Volume 1 80

Quadro 7 – Variedade nas manifestações textuais - Volume 2 81

Quadro 8 – Variedade nas manifestações textuais - Volume 3 82

Quadro 9 – Textos complementares no Volume 3 84

Quadro 10 – Sugestão de Leitura (Livros e Sites) 97

Quadro 11 – Material Didático Bakairi 122

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CEALE Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita

CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

CONEP Comissão Nacional de Ética em Pesquisa

DCNEI Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena

EIB Educação Intercultural Bilíngue

EJA Educação de Jovens e Adultos

FENAME Fundação Nacional do Material Escolar

FNDE Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação

FUNAI Fundação Nacional do Índio

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira

INL Instituto Nacional do Livro

ISA Instituto Socioambiental

LD Livro Didático

LDA Livro Didático de Alfabetização

LDBEN Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional

MEC Ministério da Educação

MT Mato Grosso

NTCI Novas Tecnologias de Comunicação e Informação

PCN Parâmetros Curriculares Nacionais

PLIDEf Programa do Livro Didático para o Ensino Fundamental

PNAIC Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa

PNE Plano Nacional de Educação

PNLD Programa Nacional do Livro Didático

PNLD Campo Programa Nacional do Livro Didático Campo

PNLD-EJA Programa Nacional do Livro Didático para a Educação de Jovens e Adultos

PNLDEM Programa Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio

SEDUC Secretaria de Estado de Educação

SIL Summer Institute of Linguistics

SPI Serviço de Proteção ao Índio

UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 15

1 EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA ALÉM FRONTEIRAS ................................ 18

1.1 Contexto nacional: uma trajetória de lutas, conquistas, anseios e expectativas ................... 20

1.2 Mato Grosso: precursor da participação articulada na educação escolar indígena ............ 23

1.3 A especificidade dos Kurâ-Bakairi: educação e contexto escolar .................................... 25

1.4 Os fundamentos da Educação Escolar Indígena ............................................................... 28

1.4.1 A escola indígena Comunitária, Diferenciada e Específica em construção.................... 30

1.4.2 Intercultural e Bilíngue: sonhos e realidade na e da escola indígena ...................... 32

1.4.3 Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Indígena: reconhecimento ao

protagonismo indígena ................................................................................................................. 37

2 DE CONTRADITÓRIO A ESSENCIAL: O LIVRO DIDÁTICO DE

ALFABETIZAÇÃO EM FOCO .......................................................................................... 40

2.1 Breve histórico do Livro Didático ............................................................................................. 41

2.2 PNLD Campo: especificidades e questionamentos .................................................................. 45

2.3 Letramento e Alfabetização: um entrelaçar de conceitos e processos ................................... 49

2.4 Livro Didático no contexto escolar indígena ...................................................................... 55

3 CAMINHOS METODOLÓGICOS: COLABORADORES, COLETA E

TRATAMENTO DE DADOS .............................................................................................. 58

3.1 Critérios de escolha e descrição dos sujeitos ...................................................................... 61

3.2 O destaque da análise documental: o Livro Didático de Alfabetização .......................... 65

3.3 Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Indígena (DCNEI) como

documento de análise ....................................................................................................................... 69

4 SURPRESAS, CONSTATAÇÕES E DESAFIOS NA ANÁLISE DOS DADOS ......... 72

4.1 Texto e Imagem: confrontos e proximidades nos documentos analisados .......................... 74

4.2 Interculturalidade e Bilinguismo: uma visão documental ...................................................... 87

4.3 Estratégias Didáticas e Pedagógicas nos documentos ............................................................. 95

4.4 Temática do Campo e Temática Indígena nos documentos: uma realidade questionável .. 99

5 PROFESSORES KURÂ-BAKAIRI: DIZERES, SABERES E FAZERES SOBRE O

LIVRO DIDÁTICO E AS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS .............................................. 111

5.1 Texto e Imagem ........................................................................................................................ 111

5.2 Interculturalidade e Bilinguismo ............................................................................................ 115

5.3 Estratégias didáticas e pedagógicas ........................................................................................ 127

5.3.1 Fazeres pedagógicos .......................................................................................................... 129

14

5.4 Temática do Campo e Temática Indígena ............................................................................. 136

CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 141

REFERÊNCIAS .................................................................................................................. 145

ANEXO - DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS PARA A EDUCAÇÃO

ESCOLAR INDÍGENA ...................................................................................................... 152

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INTRODUÇÃO

No Brasil, a interculturalidade na Educação transpassa as barreiras étnicas priorizando

um diálogo franco entre as culturas envolvidas, não só os grupos minoritários, mas também a

sociedade envolvente. Este diálogo acontece inicialmente na educação escolar, na

alfabetização, na perspectiva não de apenas como uma codificação/decodificação de signos,

mas em um processo que envolve as práticas culturais e suas manifestações, a essência da

língua escrita, já que, “Alfabetizar não é só ler, escrever, falar sem uma prática cultural e

comunicativa, uma política cultural determinada” (FRAGO, 1993, p. 27).

Nesse sentido, este trabalho analisou os três primeiros volumes da Coleção Girassol –

Saberes e Fazeres do Campo, recomendados pelo Programa Nacional do Livro Didático

(PNLD) Campo 2013, sua adequação ao processo de letramento e alfabetização em um

contexto multicultural e linguístico. Para tanto, contextualizou-se o ambiente onde o LDA é

utilizado, em termos de diversidade cultural e linguística. A partir disso, são apontadas

adequações ou inadequações do LDA em relação aos objetivos para os quais são elaborados,

suas implicações no contexto da escola do campo indígena e das Diretrizes Curriculares

Nacionais para a Educação Indígena (DCNEI), bem como, são, também, analisados os

aspectos observados (o proposto e o realizado) gerando contribuição baseada nos

apontamentos dos professores sobre o problema.

Por se tratar de um contexto multilinguístico e multicultural, é importante examinar o

bilinguismo e sua participação no processo intercultural bilíngue. Desse modo, a análise de

fatores que adéquem o material elaborado para escola do campo, a um contexto de

diversidade pluricultural como as escolas indígenas, uma vez que foi recomendado a elas

também, se faz necessária. Poderá o material didático, a Coleção Girassol – Saberes e Fazeres

do Campo, elaborada para a Educação do Campo, se adequar a um contexto intercultural

como em uma escola indígena? Como este material, todo elaborado em língua portuguesa,

pode contribuir para o letramento e alfabetização tanto na língua materna indígena como na

língua portuguesa?

De acordo com os Referenciais Curriculares para a Educação Indígena (BRASIL,

1998, p. 24): A Educação Intercultural (escolar indígena) “deve reconhecer e manter a

diversidade cultural e lingüística;” bem como, “estimular o entendimento e o respeito entre

seres humanos de identidades étnicas diferentes” isto é preparar cada um a se relacionar com

o outro dentro e fora de sua sociedade.

16

A minha trajetória profissional como professora do ensino básico, em áreas indígenas

justifica em grande parte a escolha do tema desta pesquisa. Os quase nove anos de atuação

entre os Palikur, do grupo linguístico Aruak, na Reserva Indígena do Oiapoque – Amapá, e

entre os Apinajé, do grupo linguístico Jê, no Estado de Tocantins, proporcionaram

experiências distintas, por serem grupos de cultura e línguas diferentes; no entanto,

semelhantes na necessidade de especificidade do material didático, especificamente o livro

didático de alfabetização, que utilizavam no processo de alfabetização e letramento, e que

permitisse maior valorização linguística, étnica e cultural.

A desatenção e desvalorização a estes fatores que presenciei e vivi nesses anos, serve

de desafio e encorajamento para buscar saber, no contexto atual, em que o Programa Nacional

do Livro Didático Campo 2013 distribui material para as escolas do campo e indígenas, os

encontros e desencontros deste objeto pedagógico, o livro didático, no processo de letramento

e alfabetização em contexto escolar indígena do nosso país.

De acordo com Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) conforme

“resultados preliminares do Censo Demográfico realizado em 2010, existem 817.963

indígenas, dos quais 502.783 vivem na zona rural e 315.180 habitam as zonas urbanas

brasileiras”. Ainda de acordo com o Censo, “foram registradas 274 línguas indígenas em 305

etnias diferentes, sendo que 17,5% da população indígena não fala a Língua Portuguesa”.

(BRASIL, 2010)

As experiências mostraram que “[...] quanto maior o investimento pedagógico na

língua materna”, maior o desenvolvimento na segunda língua (MAHER, 2007, p. 70).

Podemos e devemos encontrar e disponibilizar meios e abordagens para que haja um

investimento pedagógico na língua materna e para que o mesmo se concretize.

Este trabalho organiza-se em cinco capítulos. No primeiro há a descrição do histórico

da Educação Escolar Indígena do nosso país, no Estado de Mato Grosso e de uma etnia mato-

grossense, o povo Kurâ-Bakairi.

O segundo capítulo detalha os objetos de pesquisa: o Livro Didático de Alfabetização

da Coleção Girassol – Saberes e Fazeres do Campo, distribuído pelo Programa Nacional do

Livro Didático, PNLD Campo 2013 e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação

Indígena (DCNEI).

O terceiro capítulo apresenta os caminhos metodológicos desta pesquisa em Educação,

que por meio de análise do LDA, das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação

Indígena (DCNEI) e entrevistas com professores alfabetizadores da etnia Kurâ-Bakairi busca

17

entender a adequação do LDA, distribuído pelo PNLD Campo 2013, no processo de

letramento e alfabetização, em um contexto multilinguístico e multicultural, que constitui o

contexto escolar indígena.

O quarto capítulo constitui-se das análises dos documentos, um entrelaçar das

observações dos volumes analisados e deliberações da DCNEI.

No quinto capítulo, os saberes e fazeres dos professores Kurâ-Bakairi quanto ao Livro

Didático de Alfabetização e práticas pedagógicas são inferidos por meio da descrição e

análise das entrevistas.

Nas considerações finais, apresenta-se um diálogo entre as categorias da análise

interpretativa e os fundamentos da educação escolar indígena.

18

1 EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA ALÉM FRONTEIRAS

Como o Brasil, há outros países no continente americano que foram colonizados pelos

países ibéricos. São, aproximadamente, vinte países denominados de América Latina. Essa

diversidade não é só geográfica, e se torna mais nítida ao pensar que em cada país há várias

outras nações, as nações indígenas. Nesse panorama, as tentativas de diálogo, negociações e

conflitos se avolumam e assumem características específicas em cada realidade. Podem-se

perceber as diferenças múltiplas: étnicas, religiosa, de gênero, entre outras que se destacam

em diferentes linguagens. (CANDAU, 2010)

Para essa autora, a “realidade histórica” das sociedades latino-americanas é “marcada

pela negação dos ‘outros’,” negação não só física como também simbólica. Nesse contexto a

educação teve um papel primordial para “difundir e consolidar uma cultura comum de base

ocidental e eurocêntrica, silenciando e/ou inviabilizando vozes, saberes, cores, crenças e

sensibilidades”. (CANDAU, 2010, p. 154).

Há países latino-americanos, como México, Guatemala, Peru, Equador e Bolívia, nos

quais a população indígena “tem peso demográfico significativo em relação à população

nacional”, enquanto em outros países a população indígena é minoritária, a exemplo de Costa

Rica, Brasil, Panamá, Venezuela e Chile. Tais países reconhecem “o direito a uma

modalidade especial de educação para as sociedades indígenas”. Há termos como Educação

Intercultural Bilíngue (EIB) ou educação endógena e etnoeducação (MONTE, 2007, p. 402).

Conceitos com propostas diferenciadas que, no entanto, não ofuscam a importância da

educação diferenciada para os povos indígenas.

Não só na América Latina, mas também em grande parte do mundo, na década de

1970, a diversidade étnica e cultural passou a ser motivo de preocupação. Assim, os debates

sobre educação se avolumaram tendo como foco a perspectiva de interculturalidade

(COLLET, 2006).

Segundo Candau (2010), não existe apenas “uma linha única e progressiva da história

da educação indígena na América Latina”, sendo identificadas “quatro principais etapas no

desenvolvimento da educação escolar indígena”, que para melhor visualização consta no

quadro 1 a seguir.

19

Quadro 1 – Etapas da Educação Indígena na América Latina

ETAPAS PERÍODO CARACTERÍSTICAS

PRIMEIRA

Do período colonial

até as primeiras

décadas do

século XX

Violência etnocêntrica explícita de imposição da

cultura hegemônica sobre as populações indígenas;

Eliminação do “outro”;

SEGUNDA

Das primeiras

décadas do século

XX até década

de 1970

Surgiram as primeiras escolas estatais bilíngues

voltadas para os povos indígenas.

Outras línguas além da oficial conviveriam no

espaço escolar.

Mas com raras e preciosas exceções1, essas escolas

viam o bilinguismo apenas como uma etapa de

transição necessária: um modo para alfabetizar e

“civilizar” mais facilmente, povos inteiros.

Línguas indígenas foram sistematizadas e

transcritas para a escrita e essa concepção de

bilinguismo irá influenciar fortemente as políticas

educativas voltadas às comunidades indígenas em

toda a América Latina;

TERCEIRA Da década de 1970

até década de 1980

Começam a emergir no cenário internacional, entre

as décadas de 1960 e 1980, organizações

governamentais e não-governamentais voltadas

para a defesa da causa indígena;

O bilinguismo deixa de ser visto apenas como

instrumento civilizatório para ser considerado de

importância fundamental para a continuidade dos

próprios grupos minoritários;

QUARTA Do final da década

de 1980

Os próprios indígenas passam a participar das

definições para o setor educativo;

O bilinguismo deixa de ser visto apenas como

estratégia de transição ou meio para manutenção

de uma cultura ameaçada, para ser inserido em um

discurso mais amplo, onde a perspectiva

intercultural pressiona o modelo escolar clássico e

inclui nela não apenas diferentes línguas, mas,

sobretudo, diferentes culturas. Lutas indígenas antes isoladas, protagonizadas por

cada etnia em particular, passaram a ser unidas sob

uma identidade comum “indígena” e a ter

reconhecimento e espaço internacional

principalmente nas últimas décadas.2

Exigência comum por escolas coordenadas e

gerenciadas por professores indígenas;

A experiência de escolas interculturais indígenas

desenvolvidas no continente incluiu uma nova

dimensão sobre a ideia mesma de cultura no

espaço escolar.

Fonte: Dados organizados pela autora para esta pesquisa (CANDAU; RUSSO, 2010, p. 155-157).

20

Observa-se um processo em que a violência etnocêntrica dá lugar à valorização das

línguas, mas com outros tipos de violência como o bilinguismo civilizatório. No entanto, no

final de 1980, surge um novo bilinguismo e a educação antes só reivindicada, foi também

praticada pelos próprios indígenas.

Percebe-se que as lutas, os desafios e conquistas desse grupo de países latino-

americanos, entre eles o Brasil, apresenta a Educação Escolar Indígena atrelada à perspectiva

da Interculturalidade. No Brasil esse enfoque é dinamizado por documentos oficiais como os

Referencias Curriculares Nacionais para a Educação Indígena (RCNEI).

1.1 Contexto nacional: uma trajetória de lutas, conquistas, anseios e expectativas

A chegada dos colonizadores no nosso território foi marcada pela violência e

dominação. Percebe-se hoje pela história, que aquilo que por muito tempo se entendeu como

“descobrimento” do Brasil entende-se atualmente como uma invasão e desconsideração aos

povos que aqui estavam. (MAHER, 2006, p.12-13)

Tal violência se deu também quanto à Educação Escolar Indígena, no distanciamento

dos aspectos culturais de ensino e aprendizagem destes povos. A partir do século XVI surgiu

por meio dos jesuítas a educação escolar, com o intuito de catequizar, impondo saberes e

anulando culturas (BRASIL, 2007). A Educação Escolar Indígena, a partir de então, esteve

ligada à igreja, com o intento de assimilação destes grupos à sociedade nacional.

Reconhecia-se por Educação Escolar Indígena algo que atenderia a todos os índios

sem se mencionar a especificidade de cada grupo. Todos formavam o alvo e foco do Serviço

de Proteção ao Índio (SPI).

O Serviço de Proteção ao Índio (SPI) foi criado em 1910 “tendo por objetivo prestar

assistência a todos os índios, dos nômades aos aldeados” uma assistência marcada por um

sistema tutelar com hegemonia até a Constituição Federal de 1988. (BRASIL, 2006, p.113).

Observa-se nesse período, que a tutela foi um entrelaçar de humanitarismo com autoritarismo,

para tanto foram criados postos indígenas, em que a alfabetização de adultos e crianças se

instituiu como um processo pedagógico, que experimentava, assim como nas escolas rurais, a

realidade de professores com pouca ou nenhuma formação, ensino deficiente e “material

didático padronizado”. (BRASIL, 2006, p. 125)

Com a extinção do SPI em 1967, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) recebeu a

incumbência das ações de proteção e assistência aos índios a Educação Escolar inclusive,

21

tendo como foco a integração do índio à sociedade nacional. Pouco destaque se dava às etnias

até então conhecidas, eram categorizados: índios. O diferencial entre as escolas instituídas

pelo SPI e as estabelecidas a partir da década de 1960 foi legitimar o uso da língua materna no

ensino das séries iniciais, na alfabetização. (TASSINARI, 2008). Isso não como valorização

às diferenças e sim como mecanismo para “uma melhor aprendizagem dos conteúdos e

linguagens nacionais”. (OLIVEIRA; NASCIMENTO, 2012, p. 772)

Dessa forma, marca de violência e dominação na presença dos colonizadores

caracteriza-se como uma das lutas do passado que ainda se encontra nos dias atuais.

Segundo Neves (2009) a educação escolar indígena pode-se resumir:

[...] em dois grandes períodos: da Educação Indígena – protagonizada pelos

povos indígenas à Educação para Índios: etnocêntrica, catequizadora,

evangelizadora e integracionista – materializada pelo poder público e pelos

missionários - católicos e protestantes. E, deste modelo para a chamada

Educação Escolar Indígena: específica, diferenciada, intercultural bilíngue –

proposta pelas próprias sociedades indígenas e referenciada pela

Constituição Federal de 1988. (NEVES, 2009, p. 162)

Um período de lutas e preconceitos, outro de vislumbre de diferenças para a conquista

do reconhecimento como pessoa, membro de um grupo alvo de novos rumos pela Carta

Magna do país.

A educação escolar diferenciada como um direito dos grupos indígenas no Brasil tem

como marco o final dos anos de 1980 e início de 1990. É por meio da Constituição Federal

Brasileira de 1988, que um novo conjunto de ideias, de práticas e de pessoas comprometidas

com a temática da educação escolar indígena vai aos poucos ocupando o cenário das políticas

deliberativas com especificidade aos indígenas. Para Grupioni (2008, p. 72), a Constituição

Brasileira de 1988 “além de perceber o índio como pessoa, o percebe com os direitos e

deveres de qualquer outro cidadão brasileiro”. Para esse autor, em contraposição à escola

pretérita, a nova escola indígena seria:

Caracterizada como uma escola comunitária (na qual a comunidade indígena

deveria ter papel preponderante) diferenciada (das demais escolas

brasileiras), específica (própria a cada grupo indígena onde fosse instalada),

intercultural (no estabelecimento de um diálogo entre conhecimentos ditos

universais e indígenas) e bilíngue (com a consequente valorização das

línguas maternas e não só de acesso a língua nacional). (GRUPIONI, 2008,

p. 37, grifo nosso).

22

No início da década de 1990 o Ministério da Educação (MEC) recebeu por

transferência a responsabilidade pelas ações educativas que foram descentralizadas da

FUNAI, o que representou um aumento de sujeitos e possibilidades como indígenas,

antropólogos, educadores, associações científicas e universidades, entre outros. (GRUPIONI,

2008).

A partir de 1993, com a posse do Comitê de Educação Escolar Indígena, vários

documentos foram elaborados, tais como: as Diretrizes para a Política Nacional de Educação

Escolar Indígena (1993), o Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas

(RCNEI, 1998) e os Referenciais para a Formação de Professores Indígenas (2002). Tais

documentos trouxeram o vislumbre da conquista para a tão almejada Educação Escolar

Indígena em consonância com os seus fundamentos: “princípios da igualdade social, da

diferença, da especificidade, do bilinguismo e da interculturalidade”. (BRASIL, 2012a, p. 1).

Para que essa conquista se materialize, um dos fatores de fundamental importância é o

Livro Didático a ser utilizado, pois como há de se garantir as especificidades da educação

indígena diferenciada sem a utilização de um material com tal peculiaridade?

Dessa forma, vale observar o que declaram a respeito, alguns dos documentos oficiais:

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN):

Art. 79. A União apoiará técnica e financeiramente os sistemas de ensino no

provimento da educação intercultural às comunidades indígenas,

desenvolvendo programas integrados de ensino e pesquisa. [...] § 2º Os

programas a que se refere este artigo, incluídos nos planos nacionais de

educação, terão os seguintes objetivos: [...] IV – elaborar e publicar

sistematicamente material didático específico e diferenciado. (BRASIL,

1996)

A Resolução nº 3 – Fixa as Diretrizes Nacionais para o funcionamento das escolas

indígenas e dá outras providencias:

Art. 9º - São definidas, no plano institucional, administrativo e

organizacional, as seguintes esferas de competência, em regime de

colaboração: I – à União caberá legislar, em âmbito nacional, sobre as

diretrizes e bases da educação nacional e, em especial: [...] g) elaborar e

publicar, sistematicamente, material didático específico e diferenciado,

destinado às escolas indígenas. (BRASIL, 1999)

O Plano Nacional de Educação (PNE):

Meta 2: Universalizar o ensino fundamental de nove anos para toda

população de 6 a 14 anos. Estratégias: [...] 2.6) Manter programas de

23

formação de pessoal especializado, de produção de material didático e de

desenvolvimento de currículos e programas específicos para educação

escolar nas comunidades indígenas, neles incluindo os conteúdos culturais

correspondentes às respectivas comunidades e considerando o fortalecimento

das práticas socioculturais e da língua materna de cada comunidade

indígena. (BRASIL, 2010)

Nesses três importantes documentos relacionados à Educação Escolar Indígena de

nosso país, fica clara a determinação do direito a especificidade dos Livros Didáticos de

serem usados no ensino escolar indígena. Os documentos acima mencionados, de certa forma

complementam a Carta Magna do Brasil e desde o final da década de 1990 aos dias atuais

imbricados com outros documentos, pode-se dizer que provocam anseios e expectativas no

sentido de quando essas determinações se concretizarão. Expectativa que se aproxima do

pensamento de Grupioni (2008, p. 99):

Configurou-se um modelo de estadualização para o atendimento das

demandas educacionais indígenas, cujo arcabouço administrativo e

operacional não se completou, de modo que várias secretarias estaduais de

educação sequer contam com equipes técnicas para o desenvolvimento de

ações, situação agravada pela inexistência de dotações orçamentárias

específicas para a educação escolar indígena. A leitura que os sistemas de

ensino fazem desses novos preceitos ocorre predominantemente em sentido

contrário aos textos legais, desvirtuando e empobrecendo o alcance do que

eles indicavam, mantendo o sentido monocultural da educação nacional.

Dessa feita a Educação Escolar Indígena no território brasileiro não se apresenta com a

mesma desenvoltura em todos os Estados. O Estado de Mato Grosso tem por meio do

Governo do Estado e da Secretaria de Educação (SEDUC) se mostrado preocupado com a

questão educacional voltada às comunidades indígenas do estado.

1.2 Mato Grosso: precursor da participação articulada na educação escolar indígena

O estado de Mato Grosso tem em seu território mais de quarenta povos indígenas num

total de mais de vinte e oito mil índios. De acordo com o Instituto Socioambiental (ISA), são

dezoito línguas faladas neste estado em quarenta e uma (41) etnias1.

Foi em 1718 que as primeiras bandeiras chegaram à região que hoje conhecemos por

Mato Grosso. Isto é, mais de duzentos anos depois da chegada de Pedro Álvares Cabral a esta

terra (ÂNGELO, 2009). Período esse, marcado por muita violência, subjugo e escravidão:

1 Disponível em: http://pib.socioambiental.org/pt/c/quadro-geral Acesso em 9/02/2015.

24

Os principais marcos das relações entre os povos indígenas mato-grossenses

e os colonizadores foram a subjugação e a escravidão. Devemos também

registrar a resistência expressa por um constante estado de guerra, que

resultou na dizimação de nações inteiras e retardou significativamente o

processo de ocupação da região Centro-Oeste brasileira. (ÂNGELO, 2009, p.

26).

Os povos indígenas de então, representavam mão de obra escrava e valiosa não apenas

no serviço braçal, mas como guias, pois eram grandes conhecedores do “sertão”.

A imprensa e o ensino primário chegaram a Mato Grosso a partir do século XIX.

Ensino esse, voltado para a “população analfabeta”. Naquele período a “herança cultural

indígena era vista como um grande obstáculo para o desenvolvimento da província”

(ÂNGELO, 2009, p. 31).

Na tentativa de uma integração nacional, as melhorias das estradas e das

comunicações foram estratégias adotadas. A implantação das linhas telegráficas executada

pela Comissão Rondon, liderada por Cândido Mariano Rondon, filho da terra, como

descendente Bororo, serviu também para estabelecer os índios como “trabalhadores da

nação”. Assim inúmeros Bakairi, Pareci e Bororo, fizeram parte dos agregados para o serviço

(Idem, p. 32).

O processo de escolarização entre os povos indígenas de Mato Grosso está

intimamente associado à “política expansionista do Estado”, executada pela Comissão das

Linhas Telegráficas em 1890, entre o povo Bororo, e em 1895, os Pareci e os Bakairi. O que

permitiu a efetivação gradativa da ocupação do Estado.

De acordo com Siqueira, Rondon exigia que os indígenas aprendessem a ler buscando

uma maior integração deles com a sociedade “civilizada”. No entanto, quando o telégrafo foi

desativado, “os migrantes que entraram nos territórios abertos pela Comissão Rondon não

respeitaram os índios. Tomaram suas terras, e os escravizaram utilizando-os como mão-de-

obra ou assassinando aldeias inteiras” (SIQUEIRA, 2002, p. 171).

Para essa autora, são quatro os troncos linguísticos encontrados em Mato Grosso:

Tupi-Guarani – como os povos Juruna, Munduruku, e Tapirapé; Macro-Jê – como os povos

Bororo, Suyá, Xavante e Umutina; Aruak – como os Pareci, Terena, Yaualapti; Karib – como

os Bakairi, Kalapalo, Kuikuru, Nahukuá; Línguas isoladas – como a Nambikwara e Trumai

(SIQUEIRA, 2002, p. 20).

Cada etnia tem sua língua que expressa diversidade de costumes, de organização

social, de filosofia de vida, de pensamento, de estrutura educativa. Toda essa diversidade

requer atenção especial também no contexto educativo, no caso a Educação Indígena, ou mais

25

especificamente a educação escolar indígena, isto é, a educação diferenciada, específica,

intercultural e bilíngue, conforme prevê a Constituição brasileira de 1988.

No estado do Mato Grosso a Resolução nº 201/04 que fixa normas estaduais para a

estrutura e funcionamento e organização das Escolas Indígenas no Sistema Estadual e dá

outras providências estabelece no seu Art. 3º: “constituirão elementos básicos para a

organização, a estrutura e o funcionamento da escola indígena. Item II- o ensino ministrado

nas línguas maternas das comunidades atendidas, ou aquela adotada no seu processo histórico

de contato” assim percebe-se que a alfabetização pode ser tanto na língua materna como em

língua portuguesa, não havendo nada definido.

1.3 A especificidade dos Kurâ-Bakairi: educação e contexto escolar

Os Kurâ-Bakairi hoje vivem na região norte mato-grossense na Terra Indígena

Santana, no município de Nobres, e na Terra indígena Bakairi, no município de Paranatinga.

Vale ressaltar que para grafar o nome de um povo indígena é necessário que se

observe algo já estabelecido:

A partir de uma convenção estabelecida, entre lingüistas e antropólogos, em

1953, ficou estabelecido que o substantivo gentílico referente ao nome de

um povo indígena seria grafado com maiúscula e nunca pluralizado: tal

substantivo, além de muitas vezes já estar no plural na língua indígena de

referência, é designativo de um povo, de uma sociedade, de uma

coletividade única – e não apenas de um conjunto de indivíduos. Daí nos

referirmos aos Palikur, e não aos Palikures; aos Guajajara, e não aos

Guajajaras. (MAHER, 2006, p. 14)

Dessa forma, estaremos nos valendo dessa convenção nas designações tanto do povo

Bakairi quanto aos nomes dos sujeitos, parceiros desta pesquisa.

26

Figura 1 – Mapa da Localização dos Kurâ-Bakairi

Fonte: Barros (2003, p. 85)

Apesar de a Terra Indígena Santana ter sido criada em 1905, só setenta anos depois foi

implantada ali a educação escolar. Antes disso, os Bakairi podiam estudar na escola de uma

fazenda vizinha. No entanto, a Área Indígena Bakairi, criada em 1918, teve sua primeira

escola implantada em 1922: já atendia dezesseis (16) alunos do sexo masculino (TAUKANE,

1999, p. 102).

Para Aryon Dall’Igna Rodrigues, foi Capistrano de Abreu, que contribuiu para a

documentação da língua Bakairi do Mato Grosso. Ele “aprendeu a fazer linguística descritiva”

por meio de estudos realizados por Karl Von Den Steinen em sua segunda expedição ao Brasil

Central em 1887 e 1888 (RODRIGUES, 2004). Há registros datados de 1882, de um

“capitão” Bakairi que esteve com Steinen e era considerado como “semicivilizado” e que

aprendeu francês no contato com outro militar que conviveu com os Bakairi por cerca de vinte

anos, bem como de um documento encaminhado ao chefe da Inspetoria Regional, de 1924,

por meio do quais líderes Bakairi fizeram reivindicações. Os povos Bakairi, portanto, tiveram

contato com a escrita e educação muito antes de ter contato com escola (TAUKANE, 1999, p.

95).

27

Pensar em educação, é saber que em casa, na rua, na igreja, na escola, é possível

envolver-se com ela. Educação e vida se compõem, para aprender, para ensinar, para saber,

para fazer ou ainda para conviver, como define Mortatti (2004, p. 29):

De um modo geral, a educação (do latim educativo, educere – conduzir para

fora de) pode ser definida como uma atividade específica e

constitutivamente humana que tem por finalidade a formação, ou seja, o

desenvolvimento das virtualidades próprias do ser humano, considerando-se

sua capacidade de ensinar e aprender, em diferentes situações, espaços,

momentos da vida.

O conceito latino pode revelar que há várias concepções de educação. Em mundos

diversos, a educação tem características diferenciadas, constituindo-se por vezes “outra

educação”.

O povo Kurâ-Bakairi, segundo Taukane, educa “pela vida e para a vida” e mais:

[…] pelo exemplo dos pais, avós maternos e paternos, parentes próximos.

Consideramos importante ter o espelho, o exemplo e a prática de vida para a

formação de uma pessoa. […] A nossa educação se dá através do tempo e do

espaço. Desde que acordamos para a clareza do sol, nós aprendemos

vivendo. Ela se processa através da participação nas atividades da vida

cotidiana, das mais aparentemente insignificantes até as mais sagradas.

(TAUKANE, 1999, p. 59)

Como várias outras sociedades indígenas brasileiras, o povo Kurâ-Bakairi reconhece

que o processo de educação envolve um investimento social da família e da comunidade

como um todo.

Não há uma única forma de educação, cada vez mais o cotidiano da maior parte dos

povos indígenas acontece num contexto de tensão entre os conhecimentos indígenas e

ocidentais. Dentre estas relações Inter étnicas, nos deparamos com a educação escolar.

Para Taukane, uma Kurâ-Bakairi, nascida na aldeia Pakuera, primeira índia brasileira

com o título de mestrado, a educação escolar na Terra Indígena Bakairi tem no ano de 1985 o

“divisor de águas”, pois os Kurâ-Bakairi assumiram a escola e a administração do Posto

Indígena e “demais cargos antes ocupados apenas pelos Karaíwa, os não-indígenas”. Para a

autora, a escola deve ser entendida “como instrumento de luta a favor de nossos (Kurâ-

Bakairi) e de nossa autonomia” (idem, p. 29).

A realidade da educação escolar indígena nos remete novamente ao final da década de

1980 e início de 1990, período que identifica novas propostas, novas ideias e novos sujeitos

em torno da temática indígena e da escola. A proposta é de uma educação diferenciada das

28

demais escolas brasileiras; específica e própria de cada grupo em que for estabelecida;

intercultural no intercâmbio de conhecimentos universais e indígenas; bilíngue na valorização

da língua materna e da língua nacional como direito dos povos indígenas (GRUPIONI, 2008).

Direito dos povos indígenas que reflete, diretamente, na criança indígena. Não há como não

entender essa criança como um sujeito não isolado, que se relaciona com o outro. Indivíduo

que, nos processos interativos de que participa, influencia e é influenciado. As crianças

indígenas, ao consubstanciar o gênero, a etnia, valores e condições sociais, ratificam os

significados do lugar que ocupam nas relações sociais que as constituem.

1.4 Os fundamentos da Educação Escolar Indígena

Como em alguns países da América Latina, a questão da educação escolar bilíngue

intercultural no Brasil tem origens por motivos não só pedagógicos, mas especialmente por

razões sociais, políticas, ideológicas e culturais.

Os cenários e processos de educação escolar indígena parecem fornecer um campo

fértil para disputas. Por se situar na esfera das políticas indigenistas do Estado, é por meio das

políticas educacionais para os povos indígenas que se percebe a natureza do vínculo que o

Estado tenciona estabelecer com esses povos. O que leva o Estado a buscar atender as

solicitações, na atualidade, é o reconhecimento político dos direitos à diferença étnica e

cultural dos índios. (OLIVEIRA; NASCIMENTO, 2012)

Uma escola em contexto indígena representa um grande desafio no processo

educacional e requer das entidades e órgãos responsáveis a elucidação de novas concepções e

mecanismos, não só para que essas escolas sejam respeitadas em suas particularidades, como

também para que sejam integradas e favorecidas de fato, com a inclusão no sistema oficial.

Para Soares (2001, p. 6),

[…] a prática pedagógica na escola brasileira, em todas as matérias e,

particularmente, no ensino da língua materna, tem sido dissociada de suas

determinações sociais e sociolinguísticas; ora, ao lado da também

indispensável perspectiva psicolinguística, a perspectiva social – resultado

da contribuição integrada e articulada da Sociologia da Linguagem e da

Sociolinguística – é indispensável a uma prática de ensino que,

fundamentando-se em conhecimentos sobre as relações entre linguagem,

sociedade e escola, e revelando os pressupostos sociais e linguísticos dessas

relações, seja realmente competente e comprometida com a luta contra as

desigualdades sociais.

29

Para a autora, a escola precisa vincular os conhecimentos linguísticos assim como os

sociais. A escola tem uma função social e, como ambiente de formação, se depara com as

desigualdades sociais, religiosas, étnicas. O processo educacional precisa abarcar “o outro”

não como o diferente, mas sim como “eu” com especificidades e uma identidade própria ou

em formação. Desta maneira, nos unimos a Candau (2012, p. 27), “Hoje em dia não se pode

mais pensar numa igualdade que não incorpore o tema do reconhecimento das diferenças, o

que supõe enfrentar contra todas as formas de desigualdade, preconceito e discriminação.”

Este reconhecimento requer um posicionamento contrário à homogeneização que, em

geral, marca a cultura escolar. O Censo Escolar da Educação Básica 2012 – Resumo Técnico,

elaborado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira

(INEP)2, apresenta os seguintes dados reproduzidos em quadro resumido:

Quadro 2 – População Indígena nas escolas brasileiras (2007 a 2012)

Número de Matrículas na Educação Indígena por Modalidade e

Etapa de Ensino – Brasil – 2007-2012

ANO TOTAL

GERAL

ED.

INFANTIL

ENSINO FUNDAMENTAL ENSINO

MEDIO

ED.

PROFISSIONAL EJA

ED.

ESPECIAL TOTAL

ANOS

INICIAIS

ANOS

FINAIS

2012 234.869 22.858 167.338 113.495 53.843 17.586 824 26.022 243

∆%

2011/2012 -3,6 -3,9 -4,4 -6,3 -0,2 -8,4 -49,7 9,4 161,3

Fonte: INEP (2012).

Observa-se que: a) os alunos matriculados nos anos finais do Ensino Fundamental são

menos da metade dos 113.495 matriculados nos anos iniciais; b) dos 53.843 matriculados nos

anos finais do Ensino Fundamental apenas 17.586 se matricularam no Ensino Médio. São

contrastes que merecem ser avaliados. Segundo o mesmo Resumo Técnico:

A oferta dos anos iniciais do ensino fundamental é predominante ao se

comparar com as demais etapas, justificando a necessidade de políticas

públicas permanentes para garantia do direito à educação aos brasileiros

residentes nessas áreas, considerando a territorialidade, a participação das

comunidades e a articulação entre os órgãos públicos. (BRASIL, 2013, p.

33)

2 A tabela original apresenta os resultados referentes ao período de 2007 a 2012. Disponível em:

http://download.inep.gov.br/educacao_basica/censo_escolar/resumos_tecnicos/resumo_tecnico_censo_educacao

_basica_2012.pdf Acesso em: 22/08/2014.

30

Acreditamos que tais “políticas públicas permanentes” precisam permitir que a

educação intercultural bilíngue, neste contexto multicultural, funcione como instrumento de

valorização da cultura indígena, ultrapassando a fronteira étnica, além de ser efetivada em

todas as sociedades implicadas no processo.

1.4.1 A escola indígena Comunitária, Diferenciada e Específica em construção

Mesmo a escola sendo hoje um lugar de apropriação de conhecimento, ela não é o

único espaço da sociedade. No entanto, a escola é um lugar privilegiado para aproximar a

educação, cultura e diversidade.

Escola e educação são interligadas, entrelaçadas, imbricadas e dissociadas, será? Em

um contexto indígena em que a cultura oral é marcante, a educação nos padrões de tempo e

espaço e formalidade que a instituição escolar tradicional evoca, não é a única possibilidade

de educação.

Para Maher (2006, p. 17):

Quando observamos mesmo as atividades mais corriqueiras realizadas no

interior de uma aldeia Yanomami, por exemplo, podemos perceber que aí

ocorre um intenso e complexo processo de ensino/aprendizagem. Esse

empreendimento, é preciso entender, não implica, não “passa” por

conhecimento escolar algum. Antigamente, essa era a única forma de

educação existente entre os povos indígenas: o conhecimento assim

transmitido era mais do que suficiente para dar conta das demandas do

mundo do qual faziam parte. A partir do contato com o branco, no entanto,

esse conhecimento passou a ser insuficiente para garantir a sobrevivência, o

bem-estar dessas sociedades.

A descrição acima é possível devido à convivência da pesquisadora entre o povo

Yanomami. Tais pesquisas confirmam o jeito próprio de aprender e ensinar dos povos

indígenas, bem como a compreensão da insuficiência de conhecimento ao se deparar com a

necessidade de uma convivência com o não indígena.

Bergamaschi (2011) descreve como o resultado de sua pesquisa e convivência com o

povo Mbyá-Guarani que:

A oralidade, presente não apenas na fala, mas na escuta respeitosa e atenta à

palavra, a cada som, e cada silêncio, que é também uma forma de

comunicação, são importantes modos de aprender, contribuindo para

desenvolver a autonomia, característica que expressa a individualidade da

pessoa e o reconhecimento da cada um no coletivo. [...] o aprender se dispõe

como a ação que aciona o ensinar e esta compreensão se articula com uma

31

expressão recorrente nas respostas aos questionamentos acerca de como se

aprendeu. (BERGAMASCHI, 2011, p. 149)

A descrição dos Yanomami, dos Mbyá-guarani nesses trechos acima, poderia ser a

descrição de tantos outros povos como Bakairi, ou Xavante. Enfim, culturas que, como tantas

outras do nosso país, conservam ainda hoje seu jeito próprio de ensinar e aprender e buscam

ampliar seus conhecimentos em uma escola que seja de fato e de verdade específica e

diferenciada.

Há alguns fatores que foram abordados para que a proposta lançada em 1988,

fundamentada pelas DCNEI para a Educação Escolar Indígena e consequentemente a Escola

Indígena como sendo: comunitária, diferenciada e específica possa se tornar possível. A

formação de professores específicos, materiais didáticos diferenciados, participação da

comunidade no processo e leis que não só determinem, mas possibilitem por meio de recursos

outros a viabilização de tais determinações. (GRUPIONI, 2008).

O Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (RCNEI) assim

caracteriza a escola indígena comunitária:

Porque conduzida pela comunidade indígena, de acordo com seus projetos,

suas concepções e seus princípios. Isto se refere tanto ao currículo quanto

aos modos de administrá-la. Inclui liberdade de decisão quanto ao calendário

escolar, à pedagogia, aos objetivos, aos conteúdos, aos espaços e momentos

utilizados para a educação escolarizada (BRASIL, 1998, p. 24).

Nota-se que a característica comunitária da escola indígena vai além de ser conduzida

pela comunidade, ela deve ser administrada de modo amplo incluindo currículo, calendário,

“momentos e espaços utilizados” sendo, portanto, bem mais abrangente.

Foi por meio da Constituição Federal, no final dos anos de 1980, que as mudanças

quanto à questão dos direitos indígenas foram de forma mais direta, focados também aos

processos educativos. Ficou instituído como direito a educação e escola diferenciada, que com

o passar dos anos traria no seu bojo aspectos de envolvimento comunitário, enfoque

diferenciado e específico e ensino bilíngue e interculturais. (GRUPIONI, 2008)

Cohn (2002) descreve a participação fundamental da comunidade na vida de

aprendizado de uma criança Xikrin:

[...] fortalecendo olhos e ouvidos, e atentas a tudo que acontece, as crianças

vão aprendendo. E o fazem de modo bastante ativo, acompanhadas de perto

e estimuladas por adultos orgulhosos de suas novas conquistas. Escolhem o

32

que, quando e como aprender, e vão crescendo para abraçar essa nova

experiência, a da idade adulta, quando poderão colocar em prática o que se

esforçaram para aprender. Quando serão rodeados por outras crianças

sedentas por ouvir, ver e entender. (COHN, 2002, p. 148)

Postura como a dos Xikrin, que envolve a comunidade no aprendizado da criança e

tem participação na formação dessa criança no adulto que irá acompanhar as crianças das

próximas gerações. Isso pode ser um elo importante também para a compreensão e

participação na, e para a Escola Indígena Comunitária.

O conceito de comunitária se amplia ao se pensar na escola indígena diferenciada.

Segundo Grupioni a educação diferenciada está alicerçada sob três proposições:

Talvez a que tenha tido maior relevância tenha sido a proposição de que a

educação diferenciada é um direito das comunidades; [...] A segunda

premissa dizia respeito ao caráter laico dessa educação diferenciada, o que

implicava no abandono e na recusa a qualquer forma de associação entre o

direito à educação e sua oferta por missões de fé ou outras agências

missionárias. [...] A terceira premissa do discurso da educação diferenciada

[...] cabia aos próprios membros das comunidades indígenas conduzirem

seus processos escolares. (GRUPIONI, 2008, p. 37-38)

Como se pode perceber, os aspectos dessa educação se confundem com as

características da tão almejada escola indígena desse nosso Brasil de hoje. Aspectos que

trazem na sua essência a relevância que ultrapassa o direito das comunidades, sua autonomia

em conduzir os “processos escolares” e ainda reforça a necessidade do “abandono e na

recusa” de orientações religiosas no exercício do direito à educação escolar indígena.

1.4.2 Intercultural e Bilíngue: sonhos e realidade na e da escola indígena

Ao distinguir multicultural de multiculturalismo, o sociólogo jamaicano, Stuart Hall

define aquele como qualitativo e este como substantivo, “usualmente utilizado no singular

significando a filosofia específica ou a doutrina que sustenta as estratégias multiculturais”

(HALL, 2003, p. 52). Para esse autor, o multiculturalismo expõe processos e estratégias

políticas sempre inacabadas. Ele compara ainda “como há distintas sociedades multiculturais,

assim também há ‘multiculturalismos’ bastante diversos” e cita: o multiculturalismo

conservador, o pluralista, comercial, crítico, entre outros. (HALL, 2003, p. 53).

De fato, a polissemia do termo constitui-se uma das dificuldades para aprofundar-se na

problemática do multiculturalismo.

33

Para Fleuri (2003) há termos que estão sendo usados com concepções diferentes, como

os termos multicultural, intercultural e transcultural, mas são concepções que direcionam para

uma mesma ideia, o que deve ser observado é o contexto a que se aplicam. Assim,

multicultural pode “representar concepções pedagógico-políticas divergentes” isto é, enquanto

alguns defendem uma convivência “democrática entre grupos diferentes”, há os que

sustentam “um modo de aproximar as diferenças étnico-culturais, isolando-as reciprocamente.

Transcultural também tem “diferentes sentidos”, mas às vezes entendido “como elemento

transversal já presente em diferentes culturas”.

O termo intercultural, segundo Fleuri (2003), também é usado:

Para indicar realidades e perspectivas incongruentes entre si: há quem o

reduz ao significado de relação entre grupos “folclóricos”; há quem amplia o

conceito de interculturalidade de modo a compreender o “diferente” que

caracterizava a singularidade e a irrepetibilidade de cada sujeito humano; há

ainda quem considera interculturalidade como sinônimo de “mestiçagem”.

(FLEURI, 2003, p. 17)

A multiplicidade de sentidos de cada um desses termos dificulta a tarefa de melhor

interpretá-los. Esses três conceitos com aparente semelhança são bastante únicos e

incongruentes. Interculturalidade como convivência democrática entre grupos distintos, a

aproximação entre o diferente único e individual e ainda com o sentido de misturar, mesclar

culturas. Busca-se respeitar as diversidades e integrá-las sem, contudo, apagá-las.

O multiculturalismo nasceu dos movimentos sociais relacionados às questões

identitárias, nas lutas dos grupos discriminados e minoritários, e não na academia. Está, por

isso, “atravessado pelo acadêmico e o social”, isto é, a “militância” e construção de

conhecimento. (CANDAU, 2012, p. 32)

Essa diversidade, para Candau (2008) pode, no entanto, resumir-se: ao

multiculturalismo assimilacionista, o multiculturalismo diferencialista ou monoculturalismo

plural e o multiculturalismo interativo, também denominado interculturalidade. Para a autora,

esta perspectiva intercultural tem algumas peculiaridades. Como sua característica primordial

“a promoção deliberada da inter-relação entre diferentes grupos culturais presentes em uma

determinada sociedade” valorizando a “riqueza das diferenças culturais”.

Outro traço dessa perspectiva é que “concebe as culturas em contínuo processo de

elaboração de construção e reconstrução” dessa forma, não fixa padrões culturais. Para essa

autora ainda, “a afirmação de que nas sociedades em que vivemos os processos de hibridação

cultural são intensos”, isto é, estão em constante mudança, em “construção permanente”.

34

Dinâmica que evidencia a miscigenação de “diferentes grupos socioculturais”. O

reconhecimento da relação de poder “que permeiam” as relações culturais é outro aspecto da

perspectiva intercultural. Relações essas que são “marcadas pelo preconceito e discriminação

de determinados grupos”. Por último, reconhece as demandas quanto à diferença e a

desigualdade “admite diferentes configurações em cada realidade, sem reduzir um polo ao

outro”. (CANDAU, 2008, p. 51)

Segundo a autora, a educação, na interculturalidade, é uma educação para “negociação

cultural”, em que “as diferenças sejam dialeticamente incluídas”. (Idem, 2008, p. 23)

A diversidade étnico-cultural que desde a década de 1980 tem sido alvo de uma

atenção especial, na América Latina, busca um relacionamento positivo entre grupos culturais

distintos, confrontar a discriminação e o preconceito respeitando as diferenças. Nesse cenário

está presente a interculturalidade. (WALSH, 2009)

De acordo com Walsh, o conceito de interculturalidade é amplo e às vezes difuso.

Para melhor explicar o seu uso e sentido contemporâneo, essa autora apresenta três

perspectivas distintas: relacional, funcional e crítica.

A perspectiva relacional é basicamente associada ao “contacto e intercambio entre

culturas” isto é, “entre personas, prácticas, saberes, valores y tradiciones culturales distintas”

que podem ocorrer “en condiciones de igualdad o desigualdad”. No entanto, para essa autora,

o problema com essa perspectiva “es que, típicamente, oculta o minimiza la conflictividad y

los contextos de poder, dominación y colonialidad continua en que se lleva a cabo la relación”

(WALSH, 2009, p. 2-3)

A perspectiva seguinte pode-se denominar funcional, que por meio do reconhecimento

das diversidades e diferenças culturais objetiva a “inclusión de la misma al interior de la

estructura social estabelecida”. Assim, “el reconocimiento y el respeto a la diversidad cultural

se convierten en una nueva estrategia de dominación”. (Idem, 2009, p. 3)

E por fim, Walsh apresenta a terceira perspectiva: a interculturalidade crítica. Nessa

perspectiva “no partimos del problema de la diversidad o diferencia en sí, sino del problema

estructural-colonial-racial”. La interculturalidad entendida críticamente aún no existe, es algo

por construir. (WALSH, 2009, p. 4)

Num contexto intercultural, essas relações se “multiplicam” envolvendo interlocutores

de cada cultura presente. Para Ferreira (2007), um índio Tukano, a escola indígena

intercultural e multilíngue pode ser assim definida:

35

b) Intercultural: reconhecer e manter a diversidade cultural e linguística,

promover uma situação de comunicação e experiências sócio-culturais,

linguísticas e históricas diversas, não considerando uma cultura superior à

outra, mas com entendimento e respeito entre seres humanos de identidades

étnicas diversas. [...] no mundo indígena e no mundo não indígena há

diversidade cultural, não sendo nenhuma melhor ou superior à outra.

c) Multilingue: a reprodução sócio-cultural das sociedades indígenas, como

tradições culturais, crenças, a organização política, os projetos de futuro são

na maioria dos casos manifestados através do uso de mais uma língua.

(FERREIRA, 2007, p. 85)

As características da escola indígena reforçam a sua complexidade. No contexto em

que línguas transitam, e que grupos minoritários estão no processo, é importante o respeito às

diversidades e o reconhecimento de que não há hierarquia, pois todos somos iguais.

No ambiente escolar em questão encontram-se materiais para a alfabetização em

ambas as línguas, mas será que essa legitimidade também está presente em outras linguagens,

como alimentação, preservação de costumes, horários e regras, por exemplo?

A necessidade de convivência em uma sociedade globalizada e a interação com

diferentes povos, costumes, línguas e culturas que a internet e outras Novas Tecnologias de

Comunicação e Informação (NTCIs) proporcionam, possibilitando a comunicação com

qualquer parte do mundo de maneira rápida, fácil e acessível, são fatores que revigoram a

discussão, neste início de século XXI, sobre bilinguismo.

Pensar bilinguismo é pensar em um fenômeno complexo e multifacetado com

aspectos sociais, psicológicos e linguísticos. Segundo Calvet (2002), Ferguson, em um artigo

de 1959, “lança o conceito de diglossia, coexistência em uma mesma comunidade de duas

formas linguísticas”. De acordo com Calvet, anos depois Joshua Fishman amplia o

entendimento de diglossia fazendo a distinção entre diglossia – uma ocorrência social e

bilinguismo – um fenômeno individual (CALVET, 2002 p. 59-60).

Acredita-se que não há como ter interação cultural dissociada de conhecimento das

línguas envolvidas neste contexto multicultural. A relevância de um fazer pedagógico

contextualizado linguística e culturalmente, vai permitir que estes sujeitos do processo de

ensino e aprendizagem se construam sujeitos integrados e atuantes em um contexto de

diversidade cultural e distinto das línguas em foco.

Olga Katschan afirma:

Que, levando-se em consideração a enorme diversidade de situações

envolvidas ao considerarmos o tema Bilinguismo, o mais aconselhável é o

estudo de situações específicas de Bilinguismo e possíveis consequências

dessas situações em determinados aspectos do desenvolvimento, deixando de

36

considerar o Bilinguismo em si, e considerando-o em contexto.

(KATSCHAN, 1986 apud FLORY, 2009, p.36)

Conforme Kastchan, é importante o reconhecimento da especificidade e diversidade

presentes no cenário da pesquisa. Enfatizando-se não só a situação de ensino intercultural com

o foco no bilinguismo, mas o contexto em que este ocorre.

O contexto dessa pesquisa se dá com o grupo étnico Bakairi no ambiente escolar, com

classes uni docentes dos primeiros anos do Ensino fundamental. Diante disso, O ensino

intercultural nesse ambiente transita, para professores e alunos, entre a língua materna Bakairi

e a Língua Portuguesa.

O bilinguismo no contexto indígena é visto por Maher (2005, p. 68) como o

bilinguismo das minorias, e apresenta-se como uma determinação compulsória: “ele é

obrigado a aprender a língua majoritária do país e se tornar bilíngue”, isto é, o dominar a

Língua Portuguesa passa a ser uma obrigação. Mesmo nas diferentes posições sociais das

aldeias, bem como no contato com a sociedade majoritária, percebe-se, em ambos os casos,

que existe uma necessidade básica de falar português, sendo o tema do “pertencimento” um

dos elementos prioritários.

A Constituição Federal de 1988, em seu Artigo 210, § 2º, assevera a “utilização das

línguas maternas e processos próprios de aprendizagem” no Ensino Fundamental. Os artigos

78 e 79 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), a exemplo da

Constituição, recomendam que a União desenvolva os programas de ensino e pesquisa da

educação escolar intercultural. O objetivo de tais programas deve ser o fortalecimento das

práticas socioculturais e das línguas maternas, a inclusão de conteúdos culturais inerentes a

cada comunidade nas propostas curriculares, o restabelecimento de suas memórias históricas e

a confirmação de suas identidades étnicas e conhecimentos tradicionais. A participação da

comunidade é assegurada no planejamento dos programas específicos.

As últimas décadas, portanto, têm sido de avanço na conquista destas abordagens em

sala de aula, na formação de professores e na valorização das políticas públicas de línguas,

mas muito ainda precisa ser feito. Vale ressaltar que, de acordo com o Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatística (IBGE) “foram registradas 274 línguas indígenas em 305 etnias

diferentes, sendo que 17,5% da população indígena não fala a língua portuguesa”3.

Segundo Almeida (2011, p. 3993):

3 Disponível em: http://www.funai.gov.br/. Acesso em: 22/08/2014.

37

No tocante à Educação Intercultural voltada para os povos indígenas, o

Bilinguismo é indissociável. Isso porque essas sociedades têm línguas

próprias, e a interação com a sociedade envolvente requer competências

comunicativas nos dois idiomas. Não devemos esquecer, entretanto, que os

aspectos culturais envolvidos estão em constante tensão, e que a alteridade

assume aspecto primordial nesse contexto.

Partindo dessa concepção, a perspectiva intercultural propicia que neste contexto

multilinguístico e multicultural que é o contexto escolar indígena promovam a “alteridade”,

no reconhecer e considerar as diferenças num projeto comum, na valorização e aprendizado

contínuo. Para que tais anseios pudessem se concretizar, observaram-se consensos por meio

de documentos oficiais que sistematizassem as orientações para esse contexto. Assim sendo,

são apresentadas as Diretrizes para a Política Nacional de Educação Escolar Indígena.

1.4.3 Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Indígena: reconhecimento ao

protagonismo indígena

Desigualdade, diferença, inclusão, temas recorrentes no contexto escolar, embora

muitas vezes não considerados com a seriedade que cada um deles exige. A inclusão, o

reconhecimento da desigualdade tão propagada e as diferenças que a caracterizam, para

Maher (2007), estão em mudança:

Se antes era fácil ignorar a diversidade que sempre caracterizou o ambiente

educacional no país, hoje, a sua atual amplitude força os pesquisadores e

educadores a ter de admiti-la, a ter que colocar a diversidade em sua agenda.

Não é mais possível tentar entender nossas escolas sem levar em conta as

diferenças no seu interior […] sujeitos bilíngues, alunos cuja língua não é o

português. (MAHER, 2007, p. 67)

Esta conscientização descrita há quase dez anos pela professora Maher, já se delineava

no final do século XX e culminou com o Ministério da Educação assumindo a direção das

estratégias para a educação escolar aos grupos indígenas. O MEC reuniu diferentes “atores”

que, em consonância com o Estado, permitiram diversidade discursiva sobre o tema.

Em 1991, a Portaria 599, de 16 de abril, estabeleceu um princípio para a desejada

escola indígena diferenciada. Para “coordenar, acompanhar e avaliar” tais determinações

foram criadas no mesmo documento para a Coordenação Nacional de Educação Indígena no

MEC. Esse ato teve “boa acolhida no meio indigenista” uma vez que oportunizava a

“participação de representantes das comunidades indígenas [...] criava espaços de participação

e representação para os mesmos dentro do Estado” (GRUPIONI, 2008, p. 43).

38

Segundo Grupioni (2008, p. 35), esse protagonismo indígena pode ser percebido desde

os anos de 1980 e 1990 quando “se constrói o discurso da escola diferenciada”.

Para Ângelo (2009, p. 15), “Entende-se por protagonismo indígena a capacidade

crescente dessas sociedades estabelecerem relações dialógicas com a sociedade nacional e de

exercerem o controle do seu projeto de vida no presente e no futuro.”

Pouco tempo depois da abertura e participação dada pela Portaria 599, o protagonismo

indígena foi, pode-se dizer, recompensado com a apresentação das Diretrizes Curriculares

Nacionais para a Educação Indígena.

Em 1993, o MEC conferiu ao Comitê de Educação Escolar Indígena a missão de

elaborar a política nacional de educação indígena. No mesmo ano, buscando atender o grande

desafio de tornar públicas as orientações oficiais, ocorreu o lançamento das Diretrizes para a

Política Nacional de Educação Escolar Indígena (GRUPIONI, 2008).

O aspecto assimilacionista das políticas educacionais voltadas aos povos indígenas,

objetivando a integração desses à sociedade envolvente, observado no passado, vai aos

poucos dando lugar ao reconhecimento do “direito à diferença étnica e cultural, como

princípio de ação política” (OLIVEIRA; NASCIMENTO, 2012, p. 766).

Para melhor visualização, foi elaborado o quadro abaixo:

Quadro 3 – Retrospectiva das Diretrizes Nacionais para a Educação Indígena

Fonte: Elaborado pela autora para esta pesquisa.

D I R E T R I Z E S

ANO TÍTULO DOCUMENTO CONTEXTO

1

1993

Diretrizes para a Política

Nacional de Educação

Escolar Indígena

Brasília, MEC/SEF/DPEF

Cadernos de Educação

Básica, 1993. Série

Institucional; vol.2.

Orienta os esquemas de

ensino estaduais a

adotarem a nova

proposta de educação

escolar indígena

1

1999

Diretrizes Nacionais para

o Funcionamento das

Escolas Indígenas

Resolução CEB n.3, de 10

nov. 1999

Visa à valorização plena

das culturas dos povos

indígenas e à afirmação

e manutenção de sua

diversidade étnica

2

2012

Diretrizes Curriculares

Nacionais para a

Educação Escolar

Indígena

Resolução n.5, de 22 jul.

2012

Estão pautadas pelos

princípios de igualdade

social, da diferença, da

especificidade, do

bilinguismo e da

interculturalidade.

39

Em aproximadamente vinte anos observou-se que as Diretrizes, acompanharam o

contexto escolar da época. Desde a definição dos princípios e propostas pedagógicas para a

escola indígena e construção das políticas para a educação indígena e, por fim, contemplando

toda a educação básica, as Diretrizes de 2012 reconheceram a especificidade de cada povo e

seus projetos educativos.

Por entender a relevância destas Diretrizes definidas em 2012, este documento será o

instrumento catalisador4 de nossa análise do Livro Didático, os três primeiros volumes,

letramento e alfabetização, da Coleção Girassol – Saberes e Fazeres do Campo, aprovada pelo

PNLD Campo 2013.

4 Catalisar, no sentido de provocador de mudanças.

40

2 DE CONTRADITÓRIO A ESSENCIAL: O LIVRO DIDÁTICO DE

ALFABETIZAÇÃO EM FOCO

O Livro Didático (LD), nas últimas décadas, tem sido alvo de pesquisas em

diversas abordagens diferentes. Segundo Choppin (2009), a história do LD é recente.

Para esse autor, a diversidade de termos de definição desse recurso didático dificulta

ainda mais o seu estudo e reconhecimento.

Para Bittencourt (2004), “o livro didático é um objeto contraditório que gera

intensas polêmicas e críticas de muitos setores”. Concordando com isso, Rojo (2014)

diz que pesquisas revelam fatores que precisam de maior atenção, cuidado e melhorias.

Mesmo que desde a década de 1960, segundo Batista (2014), pesquisas

revelaram que apesar da baixa qualidade, incorreções, insuficiências metodológicas, os

LD contraditoriamente “terminavam por constituir parte significativa da escola

brasileira” e hoje por ser “uma das poucas formas de documentação e consulta” entre

professores e alunos, pode-se dizer essencial no processo de ensino-aprendizagem.

(BATISTA, 2014, p. 28)

Um dos locais em que ocorre o processo de ensino-aprendizagem é a escola, que

é um ambiente social, de relações complexas e permeadas por diversidades

socioeconômicas e linguísticas. (SOARES, 2001).

No contexto escolar o Livro Didático tem considerável influência (BATISTA,

2014). Deve, portanto, ser alvo de pesquisa constante, principalmente em se tratando de

analisar os conteúdos e ensinos transmitidos além das palavras.

Para Bonazzi e Eco (1972) há muito mais transmitido nos textos simples dos LD

do que se pode, com uma rápida leitura, perceber.

A análise que esses autores realizaram em alguns livros italianos e

posteriormente em português serve de alerta, para a urgência de uma leitura ou releitura

com um olhar mais crítico nas nossas análises de hoje.

Tal investigação pode apresentar fatores de ideologia implícita que deve ser

também considerada. Para Deiró (1978) a força hegemônica da sociedade se reflete na

escola e no LD. Para essa autora, é possível perceber a ideologia da classe dominante

sobre a classe dominada, como sobre os índios. Hoje o que se pode perceber não é

muito diferente, pois a presença dos indígenas no livro didático é reduzida e, em alguns

casos, omissa.

41

Portanto, pela abrangência e pelo espaço que ocupa na cultura escolar, esse

contraditório material pedagógico, o LD, é não só essencial nos dias de hoje, como

também seu conhecimento, pesquisa e análise são imprescindíveis, a fim de que o

investimento das políticas públicas em livros seja cada vez mais justificado em critérios

científicos.

2.1 Breve histórico do Livro Didático

A escola moderna surge com o educador tcheco, Juan Amós Comenius (1592-

1670). Segundo Alves (2006) a escola, para Comenius, nasceu como “uma máquina tão

bem construída ou ao menos a construir”, que precisava ser “posta em movimento”. A

preocupação do educador moravio, na sociedade do século XVIII, era também de cunho

econômico. Observa-se isso em sua obra, Didáctica Magna:

[…] onde existem [escolas], não são indistintamente para todos, mas

apenas para alguns, ou seja, para os ricos, porque, sendo dispendiosas,

nelas são admitidos os mais pobres, salvo casos raros, ou seja, quando

alguém faz uma obra de misericórdia. (COMÊNIO, 1976 apud

ALVES, 2006, p. 157)

Ele entendia que, para que a escola se constituísse era imprescindível diminuir

seus custos, sendo assim, o seu foco de ação passa a ser a mudança do “instrumental do

trabalho didático”. Dessa forma, o professor tem um novo instrumento de trabalho:

O manual didático surgiu com a pretensão de consubstanciar uma

síntese dos conhecimentos humanos de uma forma mais adequada ao

desenvolvimento e assimilação da criança e do jovem. Especializou-

se, também, em função dos níveis de escolarização e das áreas de

conhecimento, multiplicando-se da mesma forma que os instrumentos

de trabalho, dentro da oficina, que, por força da divisão do trabalho,

ganharam as configurações mais adequadas às operações que

realizavam. (ALVES, 2006, p. 76)

Surge, então, o que conhecemos hoje como livro didático, salvo as mudanças de

conceitos e épocas. Desta forma, o manual ou livro didático começa a acompanhar o

professor e aluno no processo de ensino e aprendizagem.

Assim, o livro didático anuncia-se como um campo de pesquisa abrangente e

para compreendê-lo na sua história, no seu papel educacional, na sua atuação

entrelaçada na vida social do nosso território nacional é relevante que se considere não

42

só a diversidade das fontes como também os diferentes campos de estudo, inclusive

para a análise do próprio livro e de seus conteúdos.

Como todo objeto de pesquisa, o livro didático é resultado de uma construção

intelectual. Choppin (2004) menciona quatro funções essenciais sujeitas a uma variação

de época, disciplina, níveis de ensino e ambiente sociocultural:

1. Função referencial: […] o suporte privilegiado dos conteúdos

educativos, o depositário dos conhecimentos, técnicas ou habilidades

que um grupo social acredita que seja necessário transmitir às novas

gerações.

2. Função instrumental: […] põe em prática métodos de

aprendizagem, propõe exercícios ou atividades que, segundo o

contexto, visam a facilitar a memorização dos conhecimentos […]

3. Função ideológica e cultural: […] A partir do século XIX […] o

livro didático se afirmou como um dos vetores essenciais da língua, da

cultura e dos valores das classes dirigentes. Instrumento privilegiado

de construção de identidade, geralmente ele é reconhecido, assim

como a moeda e a bandeira, como um símbolo da soberania nacional

e, nesse sentido, assume um importante papel político. Essa função,

que tende a aculturar — e, em certos casos, a doutrinar — as jovens

gerações, […]

4. Função documental: acredita-se que o livro didático pode fornecer,

sem que sua leitura seja dirigida, um conjunto de documentos textuais

ou icônicos, cuja observação ou confrontação podem vir a desenvolver

o espírito crítico do aluno. (CHOPPIN, 2004, p. 553)

Choppin, pesquisador francês e autor de uma rigorosa pesquisa sobre livros

didáticos, suas produções e conceitos, reconhece a complexidade do objeto “livro

didático”, “a multiplicidade de suas funções”, o que dificulta não só, uma definição

precisa, bem como sua pesquisa (CHOPPIN, 2004, p. 552).

Para Bittencourt, além de contraditório e polêmico o LD é “considerado como

um instrumento fundamental no processo de escolarização”. Para essa autora, a

familiaridade do livro didático e sua “fácil identificação” não testificam a sua

simplicidade, mas ao contrário, segundo ela, é por meio de pesquisas e ponderações que

podemos assimilar toda a sua complexidade. (BITTENCOURT, 2004, p. 471).

Tais pesquisas e análises que focam as diversas áreas, conforme Reiris (2005)

testificam sim, a complexidade desse instrumento cultural e básico nas escolas, o livro

didático:

Como objeto de estudio, a los libros de texto los colocan en la mirilla

diversas investigaciones: históricas, de educación comparada, de

exámenes ideológicos, sociológicos, antropológicos, psicológicos,

lingüísticos, de política cultural y economía, epistemológico-

43

disciplinares, pedagógicos, etc. Cada una de ellas nos brinda valiosos

informes parciales para reconstruir el análisis de ese instrumento

cultural que se ha constituido desde sus orígenes como un atributo

básico de la Escolaridade formal. En el entrecruzamiento

interdisciplinario de todas estas dimensiones se construyen las

complejas problemáticas educativas que los envuelven. (REIRIS,

2005, p. 347)

No Brasil, a expressão mais utilizada tem seu sentido etimológico: Livro

Didático, que em língua espanhola é traduzido por manuels de estúdio e na língua

francesa por livre d’enseignement.

Segundo Mortatti (2004, p. 31), a partir do final do século XIX, com a

proclamação da República, a Educação começou a ter maior destaque e a escola se

institucionalizou para o preparo das futuras gerações. Ler e escrever, então passou a ser

parte do ensino e aprendizagem escolarizados. O material existente para o ensino de

leitura era precário e vinha da Europa.

Aproximadamente quarenta anos depois, em 1929, a criação do Instituto

Nacional do Livro (INL), órgão específico para “legislar sobre as políticas do livro

didático”, trouxe maior validação ao LD e impulsionou a sua produção. A partir de

então, vários foram os decretos5 que aprimoraram as ações referentes à produção, edição

e distribuição do LD, até a extinção do INL pelo Decreto n. 77.107, de 04/02/1976, e a

criação da Fundação Nacional do Material Escolar (FENAME), que passou a ser “a

responsável pela execução do Programa do Livro Didático”.

O final do século XX e começo do século XXI são marcados por avanços

significativos quanto às políticas do livro didático. O Programa Nacional do Livro

Didático se consolidou a partir de 1985, em um processo gradativo de produção,

distribuição e avaliação do LD, atendendo alunos do Ensino Fundamental, Ensino

Médio, Educação de Jovens e Adultos (EJA) e alunos com deficiência visual, surdos,

entre outros, com obras complementares dicionários e livros didáticos.

A “centralidade” do livro didático no procedimento de ensino e aprendizagem

exige que voltemos nossa atenção, mais uma vez, para os que hão de usufruir dele,

5 1938 – Decreto de Lei n.1006 de 30/12/1938 – instituiu a Comissão Nacional do Livro Didático

(CNLD).

1945 – Decreto de Lei n.8460 de 26/12/1945 – consolida regulamentações sobre produção,, cabe ao

professor a escolha do LD.

1966 – Decreto Lei n. 59355 de 04/10/66 – criação da Comissão do Livro Técnico e Livro Didático

(Coltec)

1971 – O INL passa a desenvolver o Programa do Livro Didático para o Ensino Fundamental (Plidef)

Disponível em: http://www.fnde.gov.br/programas/livro-didatico/livro-didatico-historico Acesso em:

06/04/2015.

44

professores e alunos. Como produzir, neste país multicultural e multilinguístico, um

livro didático que atenda às necessidades desse professor/aluno multicultural?

No Brasil, esta questão assume especial importância no contexto da elaboração

de uma proposta curricular nacional – os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN

(BRASIL, 1997) –, que inclui "pluralidade cultural" como um dos temas a serem

trabalhados.

A definição de cultura e comunidade étnica contribui para a valorização de

aspectos próprios a cada comunidade. Para o pesquisador mexicano Héctor Munõz Cruz

(2011, p. 58),

Si definimos cultura como las filiaciones históricas, perspectivas

generales sobre el mundo, las tradiciones religiosas o idiomas

promueven la separación de la comunidad étnica. Si por comunidade

étnica designamos una comunidade que se edifica sobre una sucesión

de generaciones, en cierto territorio, con su propia historia y lenguaje,

entonces encontramos que el multiculturalismo –en un sentido amplio-

se encuentra en un mismo territorio, se localizan diferentes

comunidades étnicas con una cultura históricamente reconocida.

Ao encontrarmos aspectos “unificantes” como religião, visão de mundo, língua,

filiação histórica, delimitamos comunidades étnicas. Segundo esse autor, estas

comunidades são formadas por um grupo composto de “una sucesión” de gerações em

um território, com sua própria história e língua. Assim sendo, a presença de diferentes

comunidades étnicas, com uma cultura historicamente reconhecida, estabelece o

multiculturalismo.

O reconhecimento desta etnicidade foi contemplado na Constituição Federal de

1988, em que as comunidades indígenas tiveram assegurado o direito a uma educação

escolar diferenciada, específica, intercultural e bilíngue.

Considerar um contexto da alfabetização em duas línguas (bilíngue /bicultural) e

sua diversidade e, tendo como foco as questões étnicas, grupos sociais discriminados, de

modo particularmente significativo, os povos indígenas no contexto escolar brasileiro é

pensar não só diversidade, mas alteridade e especificidades não só linguísticas, mas

socioculturais de alunos e professores envolvidos num processo de aquisição de

conhecimento mútuo. Para Fleuri (2003, p. 31),

Enfatizar o caráter relacional e contextual (inter) dos processos sociais

permite reconhecer a complexidade, a polissemia, a fluidez e a

relacionalidade dos fenômenos humanos e culturais. E traz

45

implicações importantes para o campo da educação. A mais

importante implicação constitui-se na própria concepção de educação.

A educação, na perspectiva intercultural, deixa de ser assumida como

um processo de formação de conceitos, valores, atitudes baseando-se

uma relação unidirecional, unidimensional e unifocal, conduzida por

procedimentos lineares e hierarquizantes. A educação passa a ser

entendida como o processo construído pela relação tensa e intensa

entre diferentes sujeitos, criando contextos interativos que, justamente

por se conectar dinamicamente com os diferentes contextos culturais

em relação aos quais os diferentes sujeitos desenvolvem suas

respectivas identidades.

Com o lançamento dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), em 1997, a

pluralidade cultural, o reconhecimento da multiculturalidade e a perspectiva

intercultural ganharam mais relevância social e educacional. (BRASIL, 1997)

Com a Constituição Federal de 1988, deu-se o início de uma nova proposta para

a Educação Escolar Indígena, pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional

(LDB). Em 1996, acrescentou-se a obrigatoriedade do material didático específico.

Mesmo que embrionariamente, desde 1993, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a

Educação Escolar Indígena (DCNEI) trazem o reconhecimento e a valorização à

especificidade indígena que se aprimorou com a Resolução n.5 em 2012. Depois dos

PCN em 1997 a singularidade indígena é mais uma vez contemplada por meio do

Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (RCNEI) em 1998.

O processo evolutivo que se observa nos decretos, resoluções e diretrizes com

foco na educação indígena, como os acima citados, evidencia a preocupação das

políticas públicas relacionadas à especificidade da educação escolar indígena. No

entanto, a singularidade campesina, a população do campo, ou melhor, a escola do e no

campo, também foi contemplada pelas Diretrizes Operacionais para a Educação Básica

nas Escolas do Campo6, o PNLD Campo, entre outros.

2.2 PNLD Campo: especificidades e questionamentos

No Brasil, à semelhança do México, temos, como mencionado anteriormente, o

Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Programa criado por iniciativa do

Ministério da Educação (MEC) e Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação

(FNDE), órgão responsável pela captação de recursos para o financiamento de

6 RESOLUÇÃO CNE/CEB 1, DE 3 DE ABRIL DE 2002. Ver Resolução n.2, de 28 de abril de 2008, que

estabelece diretrizes complementares, normas e princípios para o desenvolvimento de políticas públicas

de atendimento da Educação Básica do Campo.

46

programas direcionados ao Ensino Fundamental. O PNLD tem como objetivos básicos

“a aquisição e a distribuição, universal e gratuita, de livros didáticos para os alunos das

escolas públicas do ensino fundamental brasileiro” (BATISTA, 2014, p. 25-26).

Com o objetivo de oferecer livros didáticos de melhor qualidade, a partir de

1996, o MEC por meio de um conjunto de critérios de avaliação ao Livro Didático,

estabeleceu o que hoje conhecemos como Programa Nacional do Livro Didático

(PNLD). Programa responsável pela “aquisição e distribuição gratuita dos livros

didáticos escolhidos pelos professores e encaminhados às escolas” (BATISTA, 2014,

27).

As Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo

(BRASIL, 2002) reconhecem as especificidades da escola do campo e recomendam que

se observem as exigências múltiplas que possibilitem atender estas especificidades.

A partir de 2011, o MEC apresenta a proposição para o PNLD Campo, visando

atender as escolas multisseriadas, localizadas nas zonas rurais. (VIEIRA; GARCIA,

2013, p. 84)

O PNLD Campo, de acordo com o seu Guia, objetiva:

[...] considerar as especificidades do contexto social, econômico,

cultural, político, ambiental, de gênero, geracional, de raça e etnia dos

Povos do Campo, como referência para a elaboração de livros

didáticos para os anos iniciais do ensino fundamental (seriado e não

seriado), de escolas do campo, das redes públicas de ensino.

(BRASIL, 2012b, p. 9)

A história do Livro Didático e a história do Programa Nacional do Livro

Didático se entrelaçaram nas últimas décadas. Pode-se até dizer que se fundem na

dinâmica que a história nos apresenta.

Segundo o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) em 1985,

por meio do Decreto n. 91.542, o Programa do Livro Didático para o Ensino

Fundamental (PLIDEF) dá lugar ao Programa Nacional do Livro Didático (PNLD).

A década de 1990 é palco de algumas das mais importantes consolidações no

processo de permitir que o LD chegue às escolas. Nesse período, a proeminência do

livro didático no processo de ensino e aquisição de conhecimento é um forte argumento

que serve como justificativa para o seu rigoroso processo de avaliação evidenciando o

cuidado, o aprimoramento da sua qualidade e maior facilidade de acesso, tais como:

47

1993 – Por meio da Resolução CD FNDE n.6 – dispõe fluxo de verbas

regulares para aquisição e distribuição do LD;

1993/1994 – Definidos os critérios para avaliação do LD;

1996 – Primeiro Guia de Livros Didáticos; inicia-se o processo de avaliação

pedagógica dos livros inscritos no PNLD;

1997 – a responsabilidade pela política de execução do PNLD é transferida

para o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE),

direcionado aos alunos de 1ª a 8ª série com os livros didáticos de

Alfabetização, língua portuguesa, história, geografia, ciências e estudos

sociais7.

O século XX se finda com um avanço nas políticas do livro didático, com

diversas formas experimentadas pelo Estado objetivando disponibilizar o LD a escola

de 1929 a 1996, um período de sessenta e sete anos. Somente em 1997, com a extinção

da FAE e a integral transferência da política de efetivação do PNLD para o FNDE, que

a produção e distribuição contínua e efetiva do LD foi instaurada.

Objetivando a qualidade dos livros, a partir de 1996, o Programa agilizou um

processo de avaliação pedagógica das obras nele inscritas. De acordo com Batista

(2003, p. 30), definiram-se:

[...] como critérios comuns de análise, a adequação didática e

pedagógica, a qualidade editorial e gráfica, a pertinência do manual do

professor para uma correta utilização do livro didático e para a

atualização do docente.

Definiu-se ainda, então, como critérios eliminatórios que os livros:

Não poderiam expressar preconceitos de origem, raça, sexo,

cor, idade ou quaisquer outras formas de discriminação;

Não poderiam induzir ao erro ou conter erros graves relativos

ao conteúdo da área, como, por exemplo, erros conceituais

(BATISTA, 2014, p. 30, grifos do autor).

O resultado dos processos avaliativos relativos aos livros inscritos no

PNLD/1997 foi divulgado no final de 1996, para diferentes áreas, como editores,

distribuidores, professores da escola fundamental, entre outros. No tocante ao consumo

do livro didático, a divulgação aconteceu de duas maneiras: “por um intenso debate na

imprensa” e pela publicação primeira do Guia de Livros Didáticos do PNLD. Nessa

7 FNDE – Histórico Disponível em http://www.fnde.gov.br/programas/livro-didatico/livro-didatico-

historico Acesso em: 15/04/2015.

48

publicação foram apresentados aos professores os livros “recomendados com ou sem

ressalvas” (idem, p. 31-32).

Quase trinta anos depois, em 2011, o MEC lançou, como parte da política do

Livro Didático do Governo Federal, o edital para as escolas do campo. Vale ressaltar

que até então as escolas do campo participavam do mesmo programa comum a todas as

escolas.

Com a ampliação dos debates em torno da Educação rural nos movimentos

sociais e espaços institucionais, começou a circular, a partir de 2013, o PNLD Campo e

seu Guia de Livros Didáticos, programa específico às escolas do campo, que valoriza as

especificidades campesinas. Segundo este Guia, “Do conjunto de 16 coleções avaliadas

no PNLD Campo 2013, 14 (87%) foram excluídas e 02 (13%) foram aprovadas”.

Das duas obras aprovadas nos critérios avaliativos apresentados no Edital de

Convocação 05/2011 – CGPLI, uma delas é a Coleção Girassol - Saberes e Fazeres do

Campo, nosso objeto de pesquisa8.

Atualmente, o critério de avaliação é definido pelo Guia como “critérios que

asseguram um padrão consensual mínimo de qualidade para as obras didáticas”. Tal

avaliação, portanto se dá “por meio de um conjunto de princípios e critérios

eliminatórios comuns a todos os componentes curriculares, retomados e especificados

nos termos das áreas de conhecimento envolvidas em cada componente curricular”

(BRASIL, 2012, p. 16), à semelhança dos critérios estabelecidos em 1996. Sempre

lembrando que tais livros devem focar a especificidade das populações do campo.

Como parte integrante das populações do campo, descritas no Inciso I do

parágrafo 1 do Decreto 7.352/2010, conforme o Guia de Livros Didáticos Campo 2013,

Educação do Campo, os povos indígenas e suas unidades escolares começam a receber

os livros especificamente voltados à escola do campo. Segundo esse Guia:

[…] as coleções destinadas ao ensino e à aprendizagem, foram

criteriosamente avaliadas considerando o contexto dos espaços

educativos do campo contendo textos, atividades e ilustrações que

possibilitem ao educando se apropriarem dos conteúdos escolares

articulados com as referências contextualizadas de suas relações mais

imediatas e experienciadas no campo. (BRASIL, 2012b, p. 8)

O referido decreto (7352/2010) estabelece como população do campo:

8 A outra coleção aprovada foi a Projeto Buriti Multidisciplinar, Editora Moderna.

49

Art 1º [...] § 1º Para os efeitos deste Decreto, entende-se por: I -

populações do campo: os agricultores familiares, os extrativistas, os

pescadores artesanais, os ribeirinhos, os assentados e acampados da

reforma agrária, os trabalhadores assalariados rurais, os quilombolas,

os caiçaras, os povos da floresta, os caboclos e outros que produzam

suas condições materiais de existência a partir do trabalho no meio

rural. (BRASIL, 2010b, p. 1)

Entende-se, portanto, como população do campo, os acima listados, incluindo os

quilombolas e os caiçaras como povos da floresta, em uma só categoria: campo. No

entanto, cada grupo tem “processos históricos e culturais singulares” nas suas

diversidades que muitas vezes não são consideradas. Desse modo, “o caráter [...] do

discurso em prol de uma democracia para todos acaba uniformizando e

homogeneizando trajetórias, culturas, valores e povos”. (GOMES, 2013, p. 70).

Nosso objeto de pesquisa, os três primeiros volumes de Letramento e

Alfabetização da Coleção Girassol - Saberes e Fazeres do Campo, aqui definido como

Livro Didático de Alfabetização (LDA) faz parte da Coleção anteriormente citada e

avaliada positivamente pelo PNLD Campo 2013: “os livros didáticos mais adequados

para o ensino nas Escolas do Campo no primeiro segmento do Ensino Fundamental,

recurso indispensável ao processo de ensino e aprendizagem”. (BRASIL, 2012b, p. 8).

De acordo com histórico do livro didático do FNDE, o novo século traz entre,

outros melhoramentos, o atendimento de forma progressiva pelo PNLD, a alunos com

necessidades especiais (visuais e auditivas) com o livro em braile e em libras na versão

MecDaisy e CD ROM, respectivamente. O Ensino Médio, por meio do Programa

Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio (PNLDEM), a Educação de Jovens e

Adultos (Programa Nacional do Livro Didático para a Educação de Jovens e Adultos –

PNLD-EJA), a Educação no e do Campo (PNLD Campo) são contemplados nos últimos

anos com livros didáticos e materiais complementares9.

2.3 Letramento e Alfabetização: um entrelaçar de conceitos e processos

Esta pesquisa se debruçou sobre os volumes de Letramento e Alfabetização para

os anos iniciais da Coleção Girassol, que adotou as seguintes definições: “Alfabetizar-se

significa dominar a tecnologia da escrita” que “é um processo pontual cujo término é

identificado”, enquanto que o processo de letramento “é constante” em que o “sujeito

9 FNDE – Histórico disponível em http://www.fnde.gov.br/programas/livro-didatico/livro-didatico-

historico Acesso em: 15/04/2015

50

que vive no mundo letrado [...] é solicitado a participar de novas práticas de letramento”

(CARPENEDA; BRAGANÇA, 2012, p. 15). Neste sentido, não poderia deixar de

abordar esses conceitos, amplamente discutidos no cenário nacional, bem como, as

diversidades da alfabetização e do letramento, o livro didático e suas relações com a

perspectiva intercultural, pois a coletânea analisada é direcionada às escolas do campo

quilombolas, caiçaras e indígenas.

Esses conceitos são discutidos na perspectiva de que a Alfabetização não deixou

de existir para que Letramento tivesse vida, ou vice-versa, pois eles se complementam.

Não pode haver alfabetização sem letramento e não deve existir letramento sem

alfabetização.

O contexto escolar indígena específico e diferenciado, entretanto, busca uma

alfabetização que acompanhe o avanço dado pela Constituição Federal e LDB para a

Educação Intercultural: a alfabetização intercultural. Neves (2009) assim a define:

[...] processo formativo decorrente das relações biculturais ou

multiculturais, envolvendo o estudo de duas ou mais línguas e

aprendizagens no campo da leitura e da escrita em uma perspectiva

dialógica, onde os elementos culturais de ambas precisam estar em um

processo de permanente negociação com vistas a um possível

equilíbrio e superação de assimetrias. (NEVES, 2009, p. 5)

Uma relação dialógica é constitutiva da relação educativa, dessa forma, está

presente no letramento e na alfabetização, no contexto escolar inclusive, e na

alfabetização intercultural acompanhando sua especificidade.

Para Bakhtin, a linguagem dialógica define-se pelo diálogo entre os

interlocutores e pelo diálogo entre os outros textos. A relação que ocorre entre os

interlocutores, constrói os próprios sujeitos produtores do texto, bem como, constitui a

linguagem e dá significado ao texto (BAKHTIN, 1992, p. 35-36).

Desta forma, para Bakhtin o discurso não é individual, pois acontece, pelo

menos, entre dois interlocutores, que por sua vez, são seres sociais. O discurso também

não é individual, porque mantém relações dialógicas com outros discursos. Percebe-se

assim que para o autor, estas relações dialógicas se dão sempre no contexto sócio-

histórico.

51

Diante disso, dialogismo é entender que o sujeito e os sentidos constroem-se

discursivamente nas interações verbais na relação com o outro, em uma determinada

esfera de atividade humana.

Num contexto intercultural estas relações se “multiplicam” envolvendo

interlocutores de cada cultura presente. A alfabetização como aquisição de uma

tecnologia, pode ocorrer em uma língua e servir de meios para a aquisição de outra. No

entanto, para que também ocorra o processo de letramento é importante que por meio de

conscientização, valorização das diversidades culturais, linguísticas e as práticas

pedagógicas, que desenvolvem tais competências de uso efetivo desse processo

formativo, estejam presentes na formação dos professores e no cotidiano escolar.

Por meio desta dialogia no campo da educação, pode-se entender que leitura,

escrita, alfabetização, letramento são atividades que se inserem num contexto social,

que abrangem capacidades desenvolvidas no processo de alfabetização (stricto sensu),

até capacidades que certificam o aprendiz, educando e educador, à participação ativa

nas práticas sociais letradas e que colaboram para o continuum do seu letramento.

Os novos fenômenos trazem novos desafios. Hoje não basta ler e escrever; é

preciso saber utilizar a leitura e escrita de acordo com as exigências do contexto. É ir

além, é “um algo a mais no aprendizado”. A este “algo mais” vem se nomeando de

“letramento” (MORTATTI, 2004, p. 34).

O termo letramento surge em 1986, com Mary Kato e em 1988, tem seu

“lançamento no mundo da educação”, por meio do livro: Adultos não alfabetizados - o

avesso do avesso de Leda Verdiani Tfouni que “dedica páginas à definição de

letramento” (SOARES, 1998), desde então vem ganhando destaque nas produções,

acadêmicas ou não, relacionadas ao tema de educação, alfabetização, analfabetismo,

entre outros. O surgimento se deu segundo Soares (1998, p. 19), porque “novas palavras

são criadas ou as velhas palavras dá-se um novo sentido, quando emergem novos fatos,

novas idéias, novas maneiras de compreender os fenômenos”.

Desta forma, pensa-se hoje em letramento como um processo permanente, um

continuum, de aprendizado, de inserção e participação na cultura escrita a que todos têm

direito, tanto do ponto de vista social quanto individual. Assim como a alfabetização, o

letramento é um contínuo, mas não linear, engloba múltiplos papéis, com múltiplas

finalidades, múltiplos contextos. O processo de letramento não chega a um término, é

permanente, não há como definir em que ponto do processo o iletrado torna-se letrado.

52

O letramento nesse trabalho foca, principalmente, o educando nos primeiros

anos do ensino fundamental, em um contexto escolar e social que envolve mais de uma

língua, portanto, mais de uma cultura. O trabalho foi realizado numa das muitas

comunidades indígenas do nosso país. De acordo com Cardoso, “os estudos tem

apontado para o fato de que alfabetizar-se é apreender outro processo de pensamento é,

portanto, muito mais que aprender uma simples técnica” (CARDOSO, 2000, p. 20).

Devemos lembrar que ensinar uma língua suplementar requer perspectivas que

envolvem, além do aspecto gramatical, aspectos interculturais.

Vale ressaltar que hoje existem “caminhos e descaminhos” nas concepções de

alfabetização e letramento, mas é tempo de “procurar caminhos e recusar descaminhos”

(SOARES, 2004). Entende-se então, que o contexto escolar indígena exige sim uma

postura diferenciada.

E, além disso, este trabalho leva a pensar que tal postura deverá ter entre outros

componentes, um material didático também diferenciado para que se alcance por meio

de um processo dialético, entre sujeitos e sociedades envolvidas, a valorização

igualitária das especificidades e peculiaridades de ambos. Pensar no processo dialético

do ser humano – sociedade – mundo, e associado à educação é pensar em diversidade.

Esta diversidade anteriormente exposta é de línguas, de culturas, de localização

urbana ou não urbana, indígena ou não-indígena, branco ou negro, surdo ou ouvinte, de

características sociais também diversas, entre outras. Isto nos remete aos prefixos

“pluri”, “inter” e “multi” que, associados ao termo cultural, trazem conceitos

diferenciados entre si. O pesquisador espanhol, Trujillo Saèz (2005) assim os define:

[…] los tres conceptos (multi-, pluri- e interculturalidad) representan

los três planos de la cultura. Así, la multiculturalidad es el concepto

que describe una situación(nacional, regional, comunitaria) de culturas

en contacto, como el multilingüismo es de lenguas en contacto. […]

La pluriculturalidad es un rasgo personal cognitivo. De igual forma

que poseemos diferentes “registros” lingüísticos, también usamos

diferentes repertorios culturales en diferentes situaciones. […] La

interculturalidad, por último, se puede describir en términos

estáticos y dinámicos: se describe estáticamente cuando se utiliza para

describir una situación comunicativa en la que se ponen en contacto

dos (o más) individuos que se perciben el uno al otro como

pertenecientes a distintas culturas; se describe dinámicamente cuando

se utiliza para describir los mecanismos que se ponen en

funcionamiento en esa interacción comunicativa y, especialmente,

para que esa comunicación sea efectiva. Por ello, la interculturalidad

es situacional frente a la pluriculturalidad (que es cognitiva) y la

multiculturalidad (que es social). (SAÉZ, 2005, p. 32-33, grifo nosso)

53

Percebe-se, dessa forma, a interculturalidade com o foco situacional. É uma

interação de culturas e entender em termos estáticos o outro, como pertencentes a

culturas distintas, que é importante e enriquecedor, e em termos dinâmicos, mais que

sujeitos, o reconhecimento dos mecanismos presentes para que esta interação

comunicativa seja efetiva.

Sendo assim, o desafio da educação intercultural traz consigo a proposta para o

diálogo entre culturas. Diálogo linguístico, social e interacional. É hora de um

engajamento para fazer diferença nesta situação emergente. Um olhar no processo

histórico revela que muito tem se analisado.

Analfabetismo, alfabetização, fracasso escolar, interculturalidade… No decorrer

do século XX, analistas espanhóis concluíram que o analfabetismo era resultado de uma

escolarização deficiente considerando apenas a alfabetização através do sistema escolar.

Análises históricas recentes na ótica da história comparativa deslocam o foco da

consequência (analfabetismo) para as causas (ausência de alfabetização), isto é, o

importante deixa de ser o analfabetismo para ser a alfabetização como um processo

(FRAGO, 1993).

No Brasil, durante o período colonial, a Educação estava sob a responsabilidade

de ordens religiosas, especialmente a dos Jesuítas, cuja educação objetivava a

evangelização. Havia, no entanto, naquele período, um grande número de pessoas que

não sabiam ler nem escrever. Fato este, que teve destaque com a proibição do voto aos

analfabetos, em 1882, evidenciando-o como um problema de caráter político.

Em 1872, se deu o primeiro censo para diagnosticar a situação populacional e do

analfabetismo no Brasil. A partir de então, se repetiram censos em 1890, 1900 e em

1920, mais bem planejados e sob a instrumentalidade do Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatística (IBGE). O censo de 1940 tem seus dados mais sistematizados e

com “procedimentos em vigor até os dias de hoje”. (MORTATTI, 2004, p. 18)

O analfabetismo, particularmente no decorrer do século XX, também se

constituiu um problema não só político, mas social, cultural e econômico. Observaram-

se posturas discriminatórias e marginalização ao analfabeto sob o argumento de ser

incapaz. (Idem, 2004).

O entendimento e o conceito de analfabeto passam por mudanças marcantes

observadas através dos censos populacionais. No censo de 1872, o primeiro censo no

Brasil, o critério para registrar o analfabetismo era identificar os que, numa declaração

pessoal, sabiam ou não sabiam ler e escrever. Na década de 1950, passou-se a observar

54

as definições de alfabetização e letramento da Organização das Nações Unidas para a

Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), a pessoa deveria ser capaz de ler e

escrever um bilhete, já não bastava assinar o nome (MORTATTI, 2004).

Hoje, os vários critérios utilizados para estabelecer o número de analfabetos

apresentam resultados relativamente distintos. No entanto, observa-se que ainda o

número de analfabetos no país é alto. Segundo os dados da Unesco, considerando

alguns países da América Latina como: Colômbia (8,4%); Chile (4,2%) e Argentina

(3,2%), o Brasil (13,6%) tem a maior taxa de analfabetismo da população acima de

quinze anos (Idem, p. 26).

A alfabetização na atualidade continua associada à educação escolar e ao

desenvolvimento social, cultural econômico e político. A mídia ressalta isso.

Uma análise acurada vai perceber que a Educação tem menos

flexibilidade de mudança do que Renda ou mesmo Longevidade. Isso

porque a maioria dos adultos brasileiros que teve menos tempo na

escola ou é analfabeta, terá grandes dificuldades de recuperar esse

déficit daqui para adiante. Diferente situação acontece com

Rendimento [...]. (TEIXEIRA; ABRUCIO, 2013, p. A18)

Como se observa no texto jornalístico, os resultados do Índice de

Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) colocam os dados referentes à Educação

lado a lado com os computados para Renda e Longevidade destacando a relação

existente entre eles.

A educação escolar sendo vista como fator civilizatório, isto é, agente de

esclarecimento e a alfabetização como meio privilegiado de aquisição do saber,

imperativo na modernização e desenvolvimento social e político, não é algo novo. Ao

longo do século XIX a Educação deixou de ter cunho religioso e se consolidou como

instrumento de modernização e progresso. Associou-se assim, a escola ao aprendizado

da leitura e escrita. (MORTATTI, 2004, p. 31)

A educação escolar adquire um papel importante como agente de elucidação

para os menos letrados. A Leitura e Escrita, por sua vez são bens culturais, constituintes

da alfabetização e processos diferenciados que envolvem conhecimentos linguísticos e

psicológicos e várias habilidades distintas. Assim como, diferentes processos de ensino-

aprendizagem, tanto individuais como sociais, uma vez adquiridos e utilizados,

proporcionam ao indivíduo e ao seu grupo social uma “mudança de estado ou condição

nos aspectos culturais, sociais, políticos, linguísticos”. (Idem, p. 100)

55

Dessa forma, a interação entre leitor, leitura, contexto, e linguagem escrita, na

representação do que se absorve com a leitura, na interpretação do mundo em que se

vive, permite uma aprendizagem sociofuncional. Freire (1982) reconhece que ao se

compreender o contexto em que se vive se começa a leitura.

Assim como os aspectos educacionais de ensino-aprendizagem afetam o

desenvolvimento social e individual, também o contexto escolar indígena com suas

especificidades, como tradições, hábitos, crenças e linguagens afetam diretamente as

questões educacionais (NEVES, 2009). Para essa autora:

Adotamos o termo cultura escrita utilizada por Ferreiro (2001), com o

entendimento de que o ato de ensinar a língua escrita deve possibilitar

aos alunos e alunas o desenvolvimento das capacidades de leitura e de

produção de textos de diferentes gêneros, que circulam socialmente e

que estão presentes no cotidiano das sociedades atuais a fim de que

possam sempre que necessário utilizar estes conhecimentos a favor

dos interesses de suas comunidades. (NEVES, 2009, p. 5)

Dessa maneira, a leitura passa a ser compreendida como um recurso para

ampliar as experiências e estimular faculdades mentais, enquanto a escrita passa a ser

compreendida como meio de comunicação e instrumento de linguagem, além de

caligrafia (MORTATTI, 2004, p. 64).

O caminho para esse contexto multilinguístico e multicultural que representa o

nosso país, deve ser de abrir espaço para a Educação Intercultural e Bilíngue – em

contextos que assim o exigirem – e todo o processo de ensino aprendizagem que

priorize o diálogo entre os saberes e fazeres de diferentes culturas quer seja do campo,

ou indígena.

2.4 Livro Didático no contexto escolar indígena

A difusão de material didático para as escolas do nosso país se caracteriza como

uma conduta que visa promover considerações necessárias para gerir de forma

satisfatória os conhecimentos no âmbito da alfabetização, que se apresenta em variados

contextos. Desde a escola urbana à pretérita escola rural, hoje definida como escola no e

do campo, bem como, a singular escola indígena. Esses contextos se apresentam com

especificidades próprias, mas com um material único, o livro didático, em se tratando de

produção, avaliação e distribuição. O reconhecimento da educação diferenciada como

56

direito das comunidades indígenas instituído no final da década de 1980, trouxe a

valorização da língua e cultura de cada povo.

No entanto, mesmo que implícita e com certa lentidão a preocupação com o

Livro Didático como material específico para as escolas indígenas se fez presente para

possibilitar a alfabetização na língua materna em primeira instância.

Vale ressaltar a importância que os documentos oficiais dão ao material

específico para o contexto escolar indígena como no Decreto 6861:

Art. 2o São objetivos da educação escolar indígena: [...] IV -

desenvolvimento de currículos e programas específicos, neles

incluindo os conteúdos culturais correspondentes às respectivas

comunidades; V - elaboração e publicação sistemática de material

didático específico e diferenciado; e (BRASIL, 2009)

Para a escola do campo a Resolução n.1 estabelece no seu Art. 15. II – “as

especificidades do campo, observadas no atendimento das exigências de materiais

didáticos” (BRASIL, 2002).

Assim sendo, a preocupação por um material adequado é evidenciada como

característica constitutiva do PNLD e agora, também do PNLD Campo. Por meio de

avaliações e resenhas das coleções aprovadas publicadas no Guia do Programa Nacional

do Livro Didático, as escolas e professores têm oportunidade de escolher o material que

melhor se adapte ao seu contexto escolar.

No entanto, segundo Reiris (2005, p. 349), esta pode ser uma maneira de

controlar os conteúdos apresentados para o processo ensino aprendizagem. Isto nem

sempre é tão evidente, como é o caso do Reino Unido e em quase metade dos E.U.A.,

enquanto que na França, a inspeção e aprovação para cada programa é feito por regiões,

que escolhem os seus próprios livros didáticos. Para esta autora, em países como o

México, que há mais de quatro décadas possuem “políticas de producción estatal y

distribución gratuita de libros” é evidente o controle Estatal. (REIRIS, 2005, p. 349).

No Guia de Livros do PNLD Campo 2013, encontram-se informações

importantes para a escolha do Livro Didático, tais como:

Serão atendidas pelo PNLD Campo 2013 as escolas rurais com até

100 alunos matriculados nos anos iniciais do ensino fundamental e as

escolas rurais com mais de 100 alunos que não realizaram a escolha

do PNLD 2013 ou que tenham optado por não receber livros naquele

programa. (BRASIL, 2012b, p. 18)

57

Mediante a senha da escola e acesso feito apenas por meio da secretaria da

escola, procuram garantir a escolha e o registro feito pela escola. Vale relembrar que

esse foi o primeiro PNLD Campo, e que a escolha deveria ser feita entre as duas

coleções já previamente escolhidas. Estas coleções eram: a Coleção Projeto Buriti

Multidisciplinar e Coleção Girassol – Saberes e Fazeres do Campo.

58

3 CAMINHOS METODOLÓGICOS: COLABORADORES, COLETA E

TRATAMENTO DE DADOS

A pesquisa em Educação pode ser um instrumento para acelerar o processo de

construção de relações interculturais, baseado no diálogo entre as culturas. Diálogo esse que

tem muito a contribuir, pois a partir da igualdade, da diferença e da parceria, pode-se criar o

novo. É por meio da pesquisa em Educação que esse horizonte de possibilidades se amplia e

oferece oportunidades para a construção de novos saberes e fazeres.

A perspectiva metodológica que norteia esta investigação é uma pesquisa qualitativa

em Educação que buscou responder a seguinte questão de pesquisa: Como se apresenta o

Livro Didático de Alfabetização (LDA) e quais suas implicações no processo de letramento e

alfabetização em contexto indígena, entendido como cenário multilinguístico e cultural?

A fim de conseguir tal intento, nosso objetivo era analisar o Livro Didático de

Alfabetização (LDA), material elaborado para escola do campo, e a sua adequação para um

contexto de diversidade pluricultural e linguística como as escolas indígenas. Para tanto,

buscou-se contextualizar o ambiente onde o LDA é utilizado, em termos de diversidade

cultural e linguística. Pretendendo ainda, apontar adequação ou inadequação do LDA em

relação aos objetivos para o qual foi elaborado e a sua implicação no contexto da escola do

campo indígena e DCNEI, bem como, analisar os aspectos observados (o proposto e o

realizado) gerando contribuição baseada nos apontamentos dos professores sobre o problema.

No segundo semestre de 2013, o projeto foi cadastrado no sistema da Plataforma

Brasil e CEP, dando início para o parecer e encaminhamento aos órgãos Conselho Nacional

de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), (FUNAI) e (CONEP).

Em visita à Terra Indígena Bakairi, nas aldeias Painkum e Aturua, nos apresentamos e

falamos dos objetivos da pesquisa e fizemos algumas perguntas iniciais. Ficou confirmado

com os professores, que o LDA da nossa proposta era o adotado pelas escolas em que

atuavam. Obtivemos a anuência daquelas aldeias e professores, para a pesquisa. O contato foi

com a liderança das aldeias e os sujeitos da pesquisa. Constatamos que dois professores

obtinham a formação para a docência e especialização. E das outras duas professoras, uma

possuía como formação o magistério, e a outra, o nível médio.

Nessa fase do curso e projeto, o diagnóstico de câncer de mama, o tratamento, e as

limitações decorrentes dele, ocasionaram a impossibilidade de voltar à Terra Indígena Bakairi

para realizar a pesquisa do tipo etnográfica e observação participante nas escolas indígenas.

59

Diante disso, foi necessário dar outra direção à pesquisa. As mudanças afetaram inclusive a

questão da pesquisa, os objetivos e a metodologia a ser aplicada. Para tanto, se optou pelo uso

de entrevistas e também, um estudo documental.

Segundo Bogdan e Biklen (1994), faz-se uso da entrevista para “[…] recolher dados

descritivos na linguagem do próprio sujeito, permitindo ao investigador desenvolver

intuitivamente uma idéia sobre a maneira como os sujeitos interpretam aspectos do mundo”.

(BOGDAN; BIKLEN, 1994, p. 134).

A investigação se deu por meio das entrevistas semiestruturadas, com a finalidade de

assimilar as ideias, as interpretações do educador sobre o Livro Didático de Alfabetização no

seu fazer pedagógico cotidiano, e a adequação desse recurso pedagógico, que é o LDA.

Optou-se pela entrevista e a análise do LDA, como também da DCNEI, objetivando a

somatória dos dados e a sistematização das informações obtidas.

Figura 2 – Mapa da Localização dos Bakairi e Paranatinga

Fonte: Barros (2003, p. 45).

60

Fizemos contato com a professora Nelir Renostro Heinen, então Coordenadora de

Projetos da Secretaria Municipal de Educação de Paranatinga, Mato Grosso, para obtermos os

dados das escolas indígenas e professores de Ensino Fundamental na Terra Indígena Bakairi.

Bem como, buscar saber a data do curso de formação para os professores alfabetizadores da

Área Indígena.

Simultaneamente, continuamos o contato com a FUNAI e demais sujeitos, atendendo

as exigências do parecer emitido pela Plataforma Brasil.

As entrevistas foram realizadas em Paranatinga, com quatro professores

alfabetizadores da etnia Kurâ-Bakairi, durante o curso de Matemática do Pacto Nacional pela

Alfabetização na Idade Certa (PNAIC). Apenas uma das entrevistas pode ser realizada antes

do início do curso do PNAIC, as outras foram nos intervalos, ou no término do dia de

atividades. O tempo foi ainda mais reduzido, devido a um acidente ocorrido na Reserva

Indígena, que antecipou a volta dos professores.

O contato com a Plataforma Brasil dando continuidade ao processo de aprovação do

projeto foi afetado pelo tratamento de saúde. No entanto, em abril de 2015, o projeto foi

aprovado pelo CEP e enviado ao CONEP. Foi emitido um parecer. Depois de resolvida as

pendências, o projeto está em apreciação junto ao CONEP desde 15 de maio 2015. Um dos

fatores de entrave nesse processo se dá, devido ao fato de envolver um grupo indígena,

mesmo que foi declarado documentalmente a não entrada em Área Indígena para a realização

desse trabalho.

Levando-se em conta o contexto multilinguístico e o fato desta pesquisa se dar com

sujeitos bilíngues, em que o português é a segunda língua, o risco do distanciamento entre

pesquisador e pesquisado aumentou consideravelmente. Conforme Bourdieu (1999, p. 695):

O mercado dos bens linguísticos e simbólicos que se institui por ocasião da

entrevista variar em sua estrutura segundo a relação objetiva entre o

pesquisador e o pesquisado ou, o que dá no mesmo, entre todos os tipos de

capitais, em particular os linguísticos, dos quais estão dotados.

Para esse autor, o capital cultural do pesquisador não deve permitir que uma relação de

hierarquia superior se estabeleça, pelo contrário, o respeito à linguagem do pesquisado, seu

ponto de vista e história devem ser considerados ao se estabelecer uma relação de pesquisa.

Tanto a relação de troca como o respeito e interação entre pesquisador e pesquisado

presentes nesta pesquisa, buscaram contribuir para compreender qual o significado do LDA

para o professor, e o modo como ele se apropria desse elemento de cultura escolar.

61

Compreendeu-se a partir das entrevistas, que as mesmas, constituem forma de

conhecimento complementar da realidade investigada. Assim, a análise delas se deu por meio

de transcrição, leitura e análise, gerando uma contribuição baseada nos apontamentos dos

professores sobre o problema.

3.1 Critérios de escolha e descrição dos sujeitos

O critério para que os sujeitos fossem escolhidos foi o de participarem do cotidiano

escolar da etnia Kurâ-Bakairi como alfabetizadores.

Dessa forma, o trabalho foi realizado com quatro professores da primeira etapa do

Ensino Fundamental em três Unidades Escolares: Escola Municipal Otavio Kuvere, na Aldeia

Aturua, Escola Municipal Indígena Painkum, na Aldeia Painkum, e a Escola Municipal

Vicente Kaiawa, na Aldeia Cabeceira do Azul, todas localizadas na Terra Indígena Bakairi,

no cerrado mato-grossense, ao sudeste do Alto Xingu, no município de Paranatinga, MT.

Figura 3 – Mapa da Localização das Escolas

Fonte: Barros (2003, p. 85, destaque nosso).

62

Apresentamos, nesta pesquisa, os sujeitos com nomes de pinturas corporais – iwenu –

peculiar aos Kurâ-Bakairi, como um dos povos integrantes do grupo linguístico Karib. Tais

pinturas estão associadas aos ritos pancomunitários “um dos seus traços típicos” que se revela

de grande importância “não considerá-los, ao menos no caso Bakairi, seria renunciar ao

entendimento da sua sociedade” (BARROS, 2003, p. 289-290). Diante disto, escolhemos as

pinturas corporais, mesmo que não usadas no cotidiano desse grupo, para nominar os sujeitos

desta pesquisa. Para os sujeitos do sexo masculino, usamos nomes de pinturas corporais

masculinas, e para as mulheres, nomes de pinturas corporais femininas.

Figura 4 – Desenhos das pinturas corporais Kurâ-Bakairi

Fonte: Barros (2003, p. 294-295).

Há todo um “protocolo” para a elaboração de tais pinturas, pois essas são feitas por

quem possui certo “dom e conhecimento” e são assim detalhadas por Barros (2003, p. 292):

São feitas com o preto azulado do jenipapo, o vermelho do urucu, o preto do

carvão e o branco da tabatinga. Preparar as tintas de jenipapo e urucu são

tarefas tipicamente femininas. Para preparar a tinta de jenipapo […] a fruta

deve ser colhida ainda verde. Sua polpa é ralada, misturando-se a ela um

pouco d’água, sendo torcida aos poucos dentro de um tecido, recolhendo-se

o caldo. Este é levado ao fogo até que comece a espumar, quando então se

retira dele. O resultado é uma pinta preta azulada que ganha vida na pele

depois de algum tempo.

63

Da semente de urucu (aunto) obtém-se o vermelho-carmim, se bem madura

e amarelo alaranjada, se mais verde. À sua pasta acrescenta-se o óleo de

pequi (nhunkago) em quantidades diversas, dependendo da espessura da

tinta que a pintura requer. O preto, propriamente dito, é obtido de carvão

triturado ou retirado do fundo dos fornos de cerâmica próprios para assar

beiju (elado). A este, que é bem fino, é que se misturam resinas vegetais,

dentre elas a de um arbusto denominado âwanji, o almíscar. A cor branca –

obtida de kãwin, barro extraído das cabeceiras e olhos d’água – é de uso

exclusivamente masculino.

As pinturas corporais masculinas que nominam os sujeitos masculinos desta pesquisa,

“privilegiam o tronco – costas e peito – até a cintura”. No entanto, Ywâru (“está nadando”) é

pintada de forma que fique centralizada nas costas e Menxu (pacuzinho) é pintada ou nas

costas, ou nas pernas, neste caso, indo dos tornozelos até a virilha (BARROS, 2003, p. 296).

Figura 5 – Pinturas corporais masculinas Kurâ-Bakairi

Fonte: Barros (2003, p. 342).

Já as pinturas corporais femininas que nominam os sujeitos femininos são: sarô, que

representa a ariranha, e kalamigare, um pequeno peixe de escamas, e

64

[...] são feitas nas duas laterais do corpo, indo da altura da costela, pouco

abaixo da linha dos mamilos ou dos seios até o tornozelo. Usa-se para tanto,

exclusivamente a tinta de jenipapo […] Em lugar de pincel, usa-se uma tala

de buriti, tendo enrolado à ponta um pouco de algodão (BARROS, 2003, p.

292).

Figura 6 – Pinturas corporais femininas Kurâ-Bakairi

Fonte: Barros (2003, p. 294).

Para que se possa “visualizar” melhor os sujeitos, professores alfabetizadores,

participantes desta pesquisa, foram elaborados quadros, que seguem abaixo.

Quadro 4 – Descrição dos Professores Alfabetizadores e Sujeitos

Fonte: Dados organizados pela autora para esta pesquisa.

NOME NA PESQUISA

IDA

DE

SE

XO

FORMAÇÃO

TEMPO

QUE

LECIONA

ESCOLA EM

QUE ATUA

YWÃRU (está nadando) 41 M

Superior (Letras)

especialista em

Educação Indígena

5 anos Painkum

MENXU (pacuzinho) 40 M

Superior e

Especialista em

Ciências Sociais

3 anos Otavio Kuvere

SARÔ (ariranha) 36 F Magistério 17 anos Vicente Kaiawa

KALAMIGARE (peq.

peixe de escamas) 27 F Ensino Médio Sete meses Otavio Kuwere

65

A primeira entrevista realizada antes do curso de formação do PNAIC ter início, foi

com o professor YWÂRU, com duração de uma hora e quarenta e seis minutos (1h46min.),

com nove páginas transcritas.

A segunda foi indicação da professora Nelir Renostro Heinen, responsável pelo curso.

Devido ao remanejamento de professores na Aldeia, dois dos sujeitos escolhidos

anteriormente não estavam mais atuando na alfabetização no período da coleta de dados. Ela,

professora SARÔ, não fazia parte dos sujeitos contatados anteriormente, mas aceitou fazer a

entrevista. Conversamos no horário do intervalo, pois devido a um contratempo, os

professores Kurâ-Bakairi precisaram voltar à Aldeia logo após o almoço, e não teríamos outra

oportunidade. Foram apenas dezoito minutos (18 min.) transcritos em duas laudas. O

gravador apresentou uma falha e parte da entrevista não foi gravada. Conseguimos perceber a

tempo e refazer algumas perguntas.

O professor MENXU foi entrevistado no fim do dia, estava visivelmente muito

cansado. Chegou da Aldeia, participou da 1ª etapa do curso de formação e, no final, aceitou

dar a entrevista. Ele entendeu a importância da participação nesta pesquisa: “Hoje é você,

amanhã sou eu”. Foram trinta e oito minutos (38 min.) de entrevista, transcritos em três laudas

e meia.

A quarta e última entrevista foi com a professora KALAMIGARE, a que possuía a

menor experiência em sala de alfabetização. Conversamos por dez minutos (10 min.) e

tivemos um pouco mais de uma lauda de transcrição.

3.2 O destaque da análise documental: o Livro Didático de Alfabetização

A investigação documental se deu por meio da análise do Livro Didático de

Alfabetização (LDA) e um estudo exploratório das Diretrizes Curriculares Nacionais para a

Educação Indígena (DCNEI).

Para tal estudo foi fundamental ter acesso ao objeto de pesquisa. O corpus desta

investigação, os três primeiros volumes direcionados ao letramento e alfabetização, da

Coleção Girassol, Saberes e Fazeres do Campo, distribuída e aprovada pelo PNLD Campo

2013.

Os livros analisados têm basicamente a mesma composição, as primeiras páginas –

aproximadamente 97 – são dedicadas a Letramento e Alfabetização. Em seguida, o segundo

foco específico a cada volume; no volume 1 a Alfabetização Matemática e no volume 2 e 3,

66

Geografia e História. As Referências Bibliográficas e o Manual do Professor finalizam cada

volume.

Figura 7 – Capas dos Volumes analisados

Fonte: Carpeneda; Bragança (2012a, b, c).

Esses livros não são vendidos e só são distribuídos para as escolas do campo e para

professores alfabetizadores. O fato de não nos encaixarmos nessa categoria no momento,

dificultou muito o andamento da pesquisa. Depois de vários contatos por meio da SEDUC,

conseguimos os livros do aluno, sendo que o terceiro volume, não era de letramento e

alfabetização.

Os livros analisados e aprovados pelo PNLD são escritos na língua portuguesa, que é a

língua reconhecida como nacional. O material é apresentado ao professor mediante carta, na

primeira contracapa. A seguir, são apresentadas as escolas que participam do Programa

Nacional do Livro Didático do Campo, como sendo o alvo da distribuição desse material pelo

MEC e FNDE. Por fim, é ressaltada então, a importância da colaboração do professor para

que a obra tenha um melhor aproveitamento.

A apresentação para os alunos se dá por meio de uma cartinha em letras maiúsculas

no vol.1 e nos vol. 2 e 3. A carta destaca os aspectos campesinos e se propõe a “descobrir

juntos novos mundos e trocar vivências e experiências”. Zé Sabiá e Maria Sol são os

personagens presentes em todos os volumes da Coleção. Zé Sabiá, que trará informações de

outros espaços, e Maria Sol, que dará dicas e sugestões nas atividades.

Os livros são divididos, basicamente, da mesma forma nos três volumes analisados.

Veja quadro abaixo:

67

Quadro 5 – Organização da Coletânea

VOLUME CLASSIFICAÇÃO PÁGINAS

1, 2, 3 Letramento e alfabetização Aprox. 100

1 Alfabetização matemática 99-190

2, 3 Geografia e história 103-190

1, 2, 3 Referências bibliográficas 191-192

1, 2, 3 Manual do Professor (orientações)

1, 2, 3 Orientações para o Educador 04-10

1, 2, 3 Letramento e Alfabetização 11- 42

2, 3 Geografia e História 44- 95

1 Alfabetização Matemática 43- 80

Fonte: Elaborado pela autora para esta análise.

Quanto à estrutura, os volumes de letramento e alfabetização estão organizados em

quatro unidades, formados por dois capítulos em cada unidade. As unidades são apresentadas

por meio de fotos, temas e perguntas a serem respondidas oralmente. Nos três volumes

iniciais encontram-se as seções:

- Leitura;

- De olho na escrita;

- Produção;

- Hora da história;

- Texto puxa texto e

- Estudo do texto.

No 2º e 3º anos a abordagem à caligrafia e estudo da gramática é apresentada por meio

das seções Traçando letras e Estudo da língua. Na proposta de um diálogo interdisciplinar

com outras disciplinas “da mesma” Coleção. Apresentam-se as seções: Mural das vivências,

Vai e vem e Dica de leitura, que são omitidas nos sumários dos três volumes analisados.

É importante destacar que, ao definir as seções e estrutura da obra para o professor, as

características e funções destas seções suprimidas têm particular relevância.

68

Figura 8 – Sumário do Volume 1

Fonte: Carpeneda; Bragança (2012a, p. 6).

A seção Dica de leitura “apresenta algumas sugestões de livros que podem ser lidos

pelo professor ou pelos alunos” (CARPENEDA; BRAGANÇA, 2012a, p. 24), mas que para

encontrá-las é necessário folhear o volume em sua procura. Será que isto não dificulta a

leitura ao invés de estimulá-la? Na seção Vai e vem, por sua vez, “são apresentadas atividades

de vivência integradora, através das quais o aluno interliga os saberes escolares aos saberes

comunitários e vice-versa” (CARPENEDA; BRAGANÇA, 2012a, p. 25). De igual modo é

apresentada a seção Mural das vivências, que é proposta no final dos semestres, para a

69

realização de um mural dos conteúdos aprendidos, e em conjunto com os colegas para ser

“compartilhado com a família e comunidade”.

De acordo com Rojo e os resultados de sua pesquisa com o LD, a parte editorial que

mais se distancia do desejado são os sumários, “apenas 58% de avaliação positiva, inúmeras

vezes não cumprem sua função orientadora”. (ROJO, 2014, p. 81).

O Guia de Livros Didáticos do PNLD Campo (BRASIL, 2012b) denomina as

Orientações para o Educador que se encontram ao final de cada volume como Manual do

Professor. No volume1 é composto de oitenta páginas, e nos volumes dois e três, há noventa

e seis páginas em cada um. As respostas e os comentários às atividades estão junto com as

atividades propostas ao aluno, em destaque e escrito em vermelho.

As Orientações para o Educador começam com uma apresentação dos pressupostos

teóricos da educação no campo. A seguir, é apresentada a Coleção e sua estrutura que permite

ao o professor poder visualizar como as disciplinas contempladas foram agrupadas nos

volumes do 1º ao 5º ano. Desta forma, o docente tem explicitados os detalhes da Coleção e do

volume que utilizará. O que lhe possibilita também um melhor planejamento das atividades. E

por último, há uma lista de treze (13) títulos como sugestão de leituras e a indicação de seis

(6) sites para consulta sobre vários temas além dos já abordados. As propostas de atividades,

sugestões, e atividades complementares são detalhadas nas orientações no final do volume,

como nas atividades do aluno. Este material se repete nos três primeiros volumes analisados

sem qualquer mudança.

A análise realizada dos LDA foi construída tomando por parâmetro a ficha de

avaliação a que são submetidas às coleções inscritas no PNLD. Preliminarmente, para esta

análise, foram respondidas as questões propostas pela referida ficha de avaliação e

posteriormente, algumas questões foram novamente respondidas com foco na educação

escolar indígena e articuladas com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação

Indígena (DCNEI), com ênfase no contexto e nos sujeitos de nossa pesquisa.

3.3 Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Indígena (DCNEI) como

documento de análise

Apresentada em 1993, a DCNEI, de acordo com o seu texto de origem “marca uma

etapa sem precedentes na história dos povos indígenas no Brasil”, e reconhece que a

Constituição Federal de 1988 assegura esses direitos pela lei, como se lê:

70

A Constituição Brasileira reconhece aos índios o direito à diferença, isto é, à

alteridade cultural, rompendo com a postura com que sempre procurou

incorporar e assimilar os índios à "Comunidade Nacional" e que os entendia

como categoria étnica e social transitória, fadada ao desaparecimento certo.

Com o mais recente texto constitucional em vigor, os índios deixam de ser

considerados como espécie em via de extinção, sendo-lhes reconhecida sua

organização social, costumes, línguas, crenças e tradições. À União não mais

caberá a incumbência de incorporá-los à comunhão nacional, mas de legislar

sobre as populações indígenas, conforme o artigo 22 da Nova Constituição,

no intuito de protegê-la. (BRASIL, 1993, p. 175).

Dessa forma, as comunidades indígenas tiveram o reconhecimento do direito a uma

educação escolar diferenciada, específica, intercultural e bilíngue. São estes, reconhecidos

hoje, como povos na sua maioria, pertencentes à zona rural, de acordo com o Governo

Federal10

, “do total de indígenas no país 502.783 vivem na zona rural”. Quase duzentos mil a

mais do que aqueles que habitam nas zonas urbanas. Sendo que “36,2% dos indígenas vivem

em área urbana e 63,8% na área rural”, a significativa população rural dos indígenas e a

escolas rurais indígenas que têm à disposição o LDA nos seus processos de alfabetização e

letramento, que nos desafiam neste trabalho.

O estudo documental das DCNEI, a análise dos LDA e a descrição e observações das

entrevistas compõem a tríade de elementos por meio dos quais se buscou entender a

adequação do livro didático (LDA), distribuído pelo PNLD Campo 2013, no processo de

letramento e alfabetização, em um contexto multilinguístico e cultural, o contexto escolar

indígena.

Para Lessard-Hérbert, Goyet e Boutin (1994), a pesquisa qualitativa aponta para os

tipos de dados produzidos e para os modos de ação simultânea ou alternadamente. A pesquisa

qualitativa em Educação, portanto, proporcionou uma melhor apreensão tanto dos fenômenos

educativos referentes à escola, como dos materiais relacionados ao cotidiano escolar.

Assim sendo, esta é a perspectiva que orientou esta investigação. Procurar entender

como se apresenta o LDA, suas implicações e os aspectos de (des)adequações na perspectiva

intercultural presentes ou não nestes livros didáticos, e constituinte das propostas da DCNEI,

bem como, a contribuição baseada nos apontamentos que os sujeitos conferiram as tais

ocorrências.

Ao considerar o LDA como um recurso material da cultura escolar, presente e de fácil

acesso aos professores das escolas públicas, sendo garantido pelo PNLD Campo, e

recomendado às escolas indígenas, o que se tem percebido, é que tais volumes se distanciam 10

Portal Brasil. Disponível em: http://www.brasil.gov.br/governo/2015/04/populacao-indigena-no-brasil-e-de-

896-9-mil Acesso em: 23/04/2015.

71

do povo indígena do campo e aspectos, como a omissão de qualquer tipo de menção (que se

observa no volume 2), que servem de bloqueio para que em outros, sejam considerados.

72

4 SURPRESAS, CONSTATAÇÕES E DESAFIOS NA ANÁLISE DOS DADOS

Este capítulo tem o objetivo de apresentar a análise do Livro Didático de

Alfabetização da Coleção Girassol – Saberes e Fazeres do Campo, aprovada pelo PNLD

Campo 2013, a fim de apreender como se apresentam e quais as suas implicações no processo

de letramento e alfabetização em contexto indígena, local tido como multilinguístico e

cultural. A análise foi articulada com o estudo documental das Diretrizes Curriculares

Nacionais para a Educação Indígena (DCNEI).

Para o pesquisador francês, Choppin a mais antiga função do Livro Didático é a

função ideológica e cultural, em que além de ser instrumento pedagógico constitui também

como produto de grupos sociais que, por meio deles, preservam suas culturas, seus valores,

suas tradições e suas identidades (CHOPPIN, 2004, p. 553).

De fato, a história do Livro Didático tem reforçado não só a sua importância e atuação

abrangente, como também a necessidade de mudanças que venham a atender “as exigências

apresentadas pelo contexto educacional contemporâneo”. Como especifica Batista (2014, p.

49), é necessário “[…] um livro didático também diversificado e flexível, sensível à variação

das formas de organização escolar e dos projetos pedagógicos, assim como a diversificação

das expectativas e interesses sociais e regionais.”

De acordo com o Guia de Livros Didáticos PNLD Campo 2013 (BRASIL, 2012, p. 8),

para os anos iniciais do Ensino Fundamental, o livro didático é “um material de apoio

fundamental no desenvolvimento do trabalho docente e no processo de aprendizagem dos

educandos”. Dessa forma, as Coleções aprovadas “foram criteriosamente avaliadas”

ponderando os “espaços educativos do campo” que poderão ser articulados pelos sujeitos do

campo com as experiências vivenciadas no campo.

Assim, a análise da Coleção Girassol - Saberes e Fazeres do Campo, aprovada e

distribuída pelo PNLD Campo 2013, busca contribuir para a citada “diversificação”.

Os três primeiros volumes da Coleção foram analisados objetivando compreender sua

adequação no processo de letramento e alfabetização em um contexto multicultural e

linguístico.

Para tal análise, algumas categorias foram elencadas, a saber:

1. Texto e Imagem: confronto e proximidades nos documentos analisados;

2. Interculturalidade e Bilinguismo: uma visão documental;

3. Estratégias didático-pedagógicas nos documentos;

73

4. Temática do Campo e Temática Indígena nos documentos: uma realidade

questionável.

Vale ressaltar que tanto a análise documental, como as observações nas entrevistas

com os professores, foram elaboradas considerando as categorias acima mencionadas.

O fato de nos atermos ao contexto escolar indígena, nos direcionou as categorias tais

como, Interculturalidade, bilinguismo e Temática do Campo e Indígena, pois nas escolas

indígenas, que na maioria são rurais, os sujeitos são integrantes dos povos do campo. Assim,

recebem o material específico ao campo. Outro aspecto é o fato de entendermos a relevância

da hibridização cultural para que todos os grupos envolvidos cresçam no processo de ensino

aprendizagem.

As outras duas categorias são direcionadas a estratégias editoriais, didáticas e

pedagógicas (ROJO, 2014). As particularidades dessas categorias são a apresentação dos

textos, as ilustrações e orientações aos professores.

Os autores dos livros da Coleção Girassol – Saberes e Fazeres do Campo são

apresentados em duplas ou trios, para cada temática.11

Vale lembrar, que a Coleção apresenta para o 1º ano um volume (Letramento e

Alfabetização e Alfabetização Matemática) e para 2º e 3º ano dois volumes (Letramento e

Alfabetização, Geografia e História; Alfabetização Matemática e Ciências). Nossa análise

abarcará os volumes e conteúdos referentes à Alfabetização e Letramento.

Este volume se trata de uma Coleção Seriada Multidisciplinar por área, em que,

segundo o Edital de Convocação para o Processo de Inscrição e Avaliação das Obras, os

volumes são “concebidos e organizados em Coleções integradas, disciplinares, por área de

conhecimento ou interdisciplinares para [...] classes seriadas (BRASIL, 2011, p. 3), com

abordagem voltada às populações do campo e recomendada pelo MEC para as escolas

indígenas.

Como se perceber, no decorrer da análise, há textos que se imbricam e por vezes

entrelaçam o que possibilita a análise em mais de uma categoria, como por exemplo, um fato

citado na categoria de interculturalidade e bilinguismo e na categoria que aborda a temática

indígena e temática do campo.

11 Para Letramento e Alfabetização e Língua Portuguesa: Isabella Carpaneda e Angiolina Bragança;

- para Alfabetização e Matemática: José Roberto Bonjorno, Regina Azenha e Tânia Gusmão;

- para Geografia e História: Tânia Mares e Suely Almeida e

- para Ciências: Demétrio Gowdak e Eduardo Martins. (Editora FTD, 1 ed., São Paulo, 2012).

74

Os dados da análise documental e das observações às entrevistas foram relacionados,

classificados e para uma melhor compreensão, passamos a discorrê-los nas categorias

elencadas.

4.1 Texto e Imagem: confrontos e proximidades nos documentos analisados

O visual de capa dos volumes é atraente, enfatiza a interação pela pintura apresentada.

Perde, a nosso ver, a oportunidade de orientar os professores a aproveitar tais pinturas com

aspectos do cotidiano para uma interação enriquecedora, para os alunos, diante das diferenças

apresentadas. No entanto, faz a sua apresentação na totalidade da pintura na descrição

editorial da coleção (na contra capa).

Figura 9 – Capa do Livro Girassol 1º Ano

Fonte: Carpeneda; Bragança (2012a, capa).

75

O recorte que ilustra a capa do Volume 1, com 192 páginas, é do quadro Brinquedos e

brincadeiras (2010), do pintor pernambucano, autor das representações nas capas de todos os

nove volumes da coleção, Militão Santos. O que é bastante sugestivo, se pensarmos na nova

proposta do Ensino Fundamental de Nove Anos, que inclui a criança de seis anos, nos anos

iniciais. Uma criança acostumada a brincadeiras e a um ambiente mais descontraído como nos

da pré-escola.

Figura 10 – Quadro Militão dos Santos 1º Ano

Fonte: Carpeneda; Bragança (2012a, p. 2).

O segundo volume, que apresenta 192 páginas, por sua vez, tem como destaque de

capa um recorte do quadro Amazônia (2007), do mesmo pintor pernambucano, Militão

Santos.

76

Figura 11 – Capa do Livro Girassol 2º Ano

Fonte: Carpeneda; Bragança (2012b, capa).

Porém, é preciso ressaltar que nesse volume a única oportunidade de se observar uma

imagem dos indígenas, é na capa. É importante mencionar, também, que não há a

especificidade de um grupo em particular, o título do quadro nela reproduzido, “Amazônia”

(Figura 12), reforça ainda mais essa generalização, a não valorização de cada aspecto tão

particular de cada etnia.

77

Figura 12 – Quadro Militão dos Santos 2º Ano

Fonte: Carpeneda; Bragança (2012b, p. 2).

No Volume 3, também com 192 páginas, a representação da capa fica por conta do

quadro “Feira Nordestina” (2008) de Militão dos Santos, em que o trabalho e a produção rural

são detalhados na representação de uma feira local, como se pode observar nas figuras 13 e

14, a seguir.

78

Figura 13 – Capa do Livro Girassol 3º Ano

Fonte: Carpeneda; Bragança (2012c, capa).

79

Figura 14 – Quadro Militão dos Santos 3º Ano

Fonte: Carpeneda; Bragança (2012c, p. 2).

As atividades são elaboradas, na maioria das vezes, a partir de textos apresentados. A

categoria texto inclui uma variedade de manifestações nos LDAs: charges, quadrinhos,

caricaturas, mapas, fotografias, reproduções de pinturas, desenhos, ilustrações, imagens de

satélites, gráficos, tabelas, letra de música, conforme é possível observar no quadro 6, a

seguir:

80

Quadro 6 – Variedade nas manifestações textuais (Volume 1)

VOLUME 1

Título Autor Gênero/Tipo Página

Sapo Cururu Folclore Letra de música 20

Canção de ninar Folclore Letra de música 23

A cuca Luciana Garcia Narrativa 27

O peão entrou na roda Folclore Letra de música 29

Amarelinha Jornal Instrucional 32

Ah, eu entrei na roda Folclore Letra de música 34

Ciranda no Jardim e foto Barbara Rochliz Pintura e foto 37

Não tem título Folclore Trava-língua 38

Não tem título Folclore Parlenda 41

Impressão Digital Ângela Carneiro e outros Instrucional 44

Onde será a festa? Luís Camargo Conto 49

O buraco do tatu (trecho) Sérgio Caparelli Poema 52

Aldeia (trecho) Daniel Munduruku Narrativa 56

A minha família Pedro Bandeira Poema 62

O xale roxo… Cristina Porto Poema 65

Casa das delícias Sônia Rodrigues Mota Narrativa 68

Sítio do seu Lobato Folclore Letra de música 73

Higiene da ordenha ABC da agricultura Instrucional 79

Meu Galinho Folclore Letra de música 81

A galinha dos ovos de ouro Esopo Fábula 85

A janelinha fecha… Folclore Letra de música 89

Por trás da casca… Lisa Burke Instrucional 92

Manjerona e gengibre… (trecho) César Obeid Poema 95

Fonte: Dados organizados pela autora a partir do LDA V. 1

81

O volume um apresenta vinte e três (23) textos, sendo que treze (13) deles em forma

de poemas, como letra de músicas, parlendas e trava-língua. Os poemas transmitem a

mensagem em textos curtos, geralmente uma estrofe de cinco ou seis versos, o que pode

justificar a grande incidência de poemas no primeiro ano. Os demais textos são apresentados

em quatro (4) instrucionais, e a mesma quantidade, de textos narrativos. Percebe-se assim, a

diversidade de apenas três gêneros textuais.

Quadro 7 – Variedade nas manifestações textuais (Volume 2)

VOLUME 2

Título Autor Gênero/Tipo Página

Nome da gente Pedro Bandeira Poema 08

Pessoal… Jean Galvão Tirinha 11

Bruxinha Zuzú Eva Furnari Narrativa não verbal 17

Rato rosa Eva Furnari Hist. em quadrinhos 18-19

De abóbora faz melão Folclore Poema 23

Forró no escuro Luiz Gonzaga Letra de música 31

Na gangorra Alba de Castro Toledo Poema 35

Papagaio Cristina Aragão Poema 41

Convite José Paulo Paes Poema 46

Carta enigmática Ziraldo Carta enigmática 49

Escrevi seu belo… Folclore Quadrinha 51

Fruta familiar Sérgio Capparelli Poema 59

Acordar com cafuné Otávio Roth Poema 62

A árvore Maria Lucia Godoy Poema 64

Festas de boi Silvia Dumont Narrativa 69-70

O maior arraial Fábio Cardoso Jornal 75

H de hora Elza Beatriz Poema 81

Chove, chuva Recreio, SP Instrucional 84

Galinha d’angola Roseana Murray Poema 91

A minhoca e os passarinhos Sylvie Girardet e Puig

Rosado

Narrativa 96

As abelhas Vinicius de Moraes Poema 97

Fonte: Dados organizados pela autora a partir do LDA V. 2.

82

No volume dois, encontram-se vinte e um (21) textos. Dentre estes textos, treze (13)

são poemas; e dos oito (8) textos restantes, três (3) são narrativas. Ainda se percebe a grande

quantidade de textos do gênero poético, um facilitador do processo de ensino-aprendizagem

nessa fase do segundo ano. Observa-se assim, que a diversidade também não foi tão

significativa.

Quadro 8 – Variedade nas manifestações textuais (Volume 3)

VOLUME 3

Título Autor Gênero/Tipo Página

O livro dos grandes direitos das

crianças (Art. 1, 2, 3 […], 7 […],

33[…])

Hiro Kawahara Instrucional 08

A cigarra e a formiga […] Suely Mendes Brazão Fábula 24

Lixo: problemas e soluções Moacir Roberto Darolt Instrucional 35-36

Bilboquê sustentável Extraído de um site12

Instrucional 46

A ararinha de bico torto […] Walcyr Carrasco Narrativa 61-62

Cisterna calçadão garante água para

o semiárido […]

Natercia Rocha Jornal 73

Qual a fruta? Silvestre frutas Instrucional 85

Árvore Fabio Augusto Vita e outros Infográfico 94

Fonte: Dados organizados pela autora a partir do LDA V. 3.

O volume três, na seção Leitura apresenta oito (8) textos: quatro (4) instrucionais, uma

fábula, uma narrativa, um texto de jornal e um infográfico. De oito textos, observam-se cinco

gêneros. Apesar da pouca quantidade de textos nessa seção a diversidade é representativa.

Um aspecto que se percebe entre os quadros dos três volumes é o decréscimo de textos

no volume 3. Isso é emblemático de uma concepção de que o enfoque na leitura fica

comprometido em nome de outros conteúdos mais relevantes como a gramática, que, segundo

Rojo (2014, p. 86), “é o que os autores mais fazem”. De acordo com Rojo (2014) depois de

uma minuciosa avaliação do Livro Didático de Língua Portuguesa:

[...] embora autores e editores estejam escolhendo bons textos, diversificados

e representativos, não conseguem propor, a partir deles, atividades de leitura

e de produção de textos efetivas e eficazes. Por fim, pensar a linguagem oral

12

Conforme está no rodapé da página: Extraído do site: www.agenciatheiaservice.com.br. Acesso em: 08/03/

2012.

83

(formal e pública) como objeto de ensino, como querem os PCNs, está longe

dos LDs (23%). (ROJO, 2014, p. 87).

Nota-se que bons textos, diversificados e representativos, não possibilitam por si só

que o ensino-aprendizado se concretize. Tais textos são escolhidos pelos editores e autores

dos LDA.

A proposta didático-pedagógica para a Educação do Campo, de acordo com a

Resolução nº 1 (abril de 2002), define que:

Art. 5º As propostas pedagógicas das escolas do campo, respeitadas as

diferenças e o direito à igualdade e cumprindo imediata e plenamente o

estabelecido nos artigos 23, 26 e 28 da Lei 9.394, de 1996, contemplarão a

diversidade do campo em todos os seus aspectos: sociais, culturais,

políticos, econômicos, de gênero, geração e etnia. (BRASIL, 2002, p. 1,

grifo nosso).

O Livro Didático é reconhecidamente um material de apoio ao professor, (BATISTA,

2014, p. 28). Assim, entende-se relevante sua postura e uso na contextualização e abordagem

da diversidade cultural e linguística, objetivando o letramento e a alfabetização de todos.

A integração da criança, família, escola e comunidade, podem ser reconhecidas, no

volume 1, nas quatro unidades apresentadas. Os temas são abrangentes e associados.

Características regionais e locais são frequentemente apresentadas por meio de imagens,

atividades e textos. Como exemplo, citamos os sinais de trânsito próprios à zona rural (v. 1, p.

14, at. 5) e as brincadeiras (v.1, p.32-34, texto e at.1). O texto “Onde será a festa?” (v. 1, p.

49, at. 1) por meio de nomes de animais conhecidos e próprios do meio rural, conforme

mostra a figura 27, facilita a aprendizagem.

Enquanto no vol. 1 - aparece catorze (14) vezes a seção Leitura - e no v. 2 - quinze

vezes (15) a seção Leitura - no volume 3, conforme já foi mencionado, chamou a atenção o

número reduzido dessa seção: oito (8) vezes apenas. No entanto, foram vistos vários outros

textos complementares nas demais seções, aproximadamente vinte e seis textos. Desses vinte

e seis textos, onze são extratos do texto original, como se observa por meio dos colchetes [...]

no início, no final, no meio, ou, tanto no início como no final, de acordo com o quadro abaixo.

Outra característica a ser salientada nesses textos, é que nove dos onze, têm apenas quatro

frases (um verso, quando poema). O v. 3 atende alunos do 3º ano que devem ter certa

desenvoltura na leitura. Mas, porque textos tão curtos? Por se tratar de crianças do terceiro

ano, os textos poderiam ser um pouco mais extensos e elaborados.

84

Percebe-se ainda que nesses textos complementares há uma variedade significativa de

gêneros, conforme se vê no quadro abaixo:

Quadro 9 – Textos Complementares no Volume 3

Fonte: Dados organizados pela autora para esta pesquisa

VOLUME 3

Título Autor Gênero/ Tipo P.

Paraíso José Paulo Paes Poema [...] 12

Os direitos da criança Ruth Rocha Poema […][…] 14

Pião de ferro velho Renata Meirelles Instrucional […][…] 18

Teatro de bonecos (título

criado pelas autoras)

Luiza Wolf Instrucional […] 20

As anedotinhas do bichinho

da maçã

Ziraldo Piada 28

A cigarra e as formigas Monteiro Lobato Fábula […][…] 30

Biografia Autoras Biografia 39

Classificados poéticos Roseana Murray Poema […] 40

Carta Alunos da escola Pedra Branca Carta 43

Tela de um computador com

um e-mail

flaviabernardes@educação.com.br E. mail 45

O que fazer com tantas

tábuas?

Maurício de Souza História em

quadrinhos

49-51

Cebolinha Maurício de Souza História em

quadrinhos

53-54

Brinquedo de sucata César Obeid Poema […] 55

Folclore brasileiro Girassol Brasil Edições, 2006, p. 98 Parlenda 58

Cartaz Ministério do meio ambiente Narrativa não verbal 67

Piadas para toda a família Lourdes Erburu e José Morán Piada […] 68

Outra piada Folclore Piada (folclore) 69

Coisa boa Sônia Barros Poema 70

Saudade Neusa Sorrenti Poema[…] 75

Sem título Neusa Sorrenti Adivinhas 78

Cartazes Elaborado por alguns alunos Instrucional 79

Modelo de Bilhete Ju Bilhete 83

O que é, o que é? Lúcia Pimentel Góes Poema […] […] 88

Quadrinhas brasileiras Silvio Romero Poema […] […] 91

Sem título Autoras Legenda 92

Teste de coragem (título

criado pela autoras)

Edson Gabriel Garcia Narrativa 97

85

Um ponto que chamou a atenção foram as indicações de supressões ([...]) observados

nos textos complementares apresentados nesse volume: de vinte e seis (26) textos, onze (11)

são recortes, e desses, cinco (5) têm recortes no início e no final do texto ([...] [...]). O texto

“Os direitos da criança” (p. 14) teve o título modificado e dois recortes, sendo utilizado

apenas um verso de um poema, que na íntegra, tem dez versos. Conforme se observa pela

figura abaixo:

Figura 15 – Os Direitos das crianças

Fonte: Carpeneda; Bragança (2012c, p. 14).

O mesmo pode ser observado no texto: “O que é, o que é?” (p. 88). Título criado pelas

autoras. Segundo a citação abaixo do título, nota-se que o texto teve dois recortes e apresenta

apenas um verso do poema.

86

Figura 16 – O que é, o que é?

Fonte: Carpeneda; Bragança (2012c, p. 88).

A diversidade de gêneros, nos textos de leitura, amplia os conhecimentos de alunos

que em muitas comunidades, não têm acesso a outro tipo de material de apoio que não seja o

Livro Didático de Alfabetização (ROJO, 2014). Os textos são apresentados, por exemplo,

como Tirinhas (v. 2, p. 11, at. 1); história em quadrinhos (v. 2, p. 18-19, at. 2); letras de

músicas (v.2, p. 31, at.1) entre outros.

Figura 17 – Diversidade de gêneros textuais do Volume 2 - Tirinhas

Fonte: Carpeneda; Bragança (2012b, p. 11).

87

Figura 18 - Diversidade de gêneros textuais do Volume 2 - História em quadros

Fonte: Carpeneda; Bragança (2012b, p. 18).

Figura 19 – Diversidade de gêneros textuais do Volume 2 - Letra de Música

Fonte: Carpeneda; Bragança (2012b, p. 31).

A análise dos volumes, no foco dessa categoria, permitiu observar que muito pode ser

transmitido pelas imagens, bem como, pelos textos e suas variações textuais. No entanto, os

textos fragmentados, a pouca diversidade, e a omissão do sujeito indígena, empobrece o

processo de ensino e aprendizagem.

4.2 Interculturalidade e Bilinguismo: uma visão documental

La afirmación de uma cultura propia não excluye em principio la

possibilidade de interculturalidad; és mas bien la condición necessária para

que el diálogo sea entre iguales, aunque diferentes. (MELIÁ, 2014)

Não se encontra em todas as unidades e capítulos do Volume 2, destinados ao

letramento e alfabetização, sequer uma foto ou menção de um grupo indígena. E como expõe

o sociólogo francês, Bourdieu (2003, p. 148-149), “a língua não é só forma de comunicação

88

ou conhecimento, mas de poder”, e continua, “dentre as censuras mais radicais, seguras e

escondidas, estão as que excluem certos indivíduos da comunicação (não os convidando para

os lugares de onde se fala com autoridade, ou colocando-os em lugares sem palavra)”. A

omissão de imagens exclui a oportunidade de interação do excluído, quer presente ou não,

com os demais interlocutores.

Para Hall (2011, p. 22), as identidades do sujeito pós-moderno são mutáveis “de

acordo com a forma de como o sujeito é interpelado ou representado”. Uma vez que essa

identificação não é automática, essa identidade pode ser “ganhada ou perdida”.

Se a exclusão, isto é, a não representação afeta a identidade do sujeito pós-moderno,

pode-se inferir que a exclusão do indígena e suas especificidades das imagens e textos no

LDA, o afetem diretamente, ainda mais ao considerar que esses sujeitos são crianças.

Vale destacar três observações ao Manual do Professor que se distanciam do contexto

de educação escolar indígena. Primeiramente, a menção aos povos indígenas, que é bem

escassa, (três citações) nos textos de orientações.

a. Primeira citação: Menciona que, em conjunto com as Diretrizes Operacionais para

a Educação Básica nas Escolas do Campo (2001/2004), a Resolução CEB nº3, de 10 de

novembro de 1999 (fixa as diretrizes nacionais para o funcionamento das escolas indígenas e

dá outras providências) reforçam “a implantação da Educação do Campo nas escolas rurais”

(CARPENEDA; BRAGANÇA, 2012 a, b, c, p. 6);

b. Segunda citação, em palavra específica ao educador para que “seja comprometido

com a construção de uma sociedade mais justa e sustentável, em que […] se fortaleçam novos

valores” e passa a listá-los destacando as “diferentes gerações e etnias […]” (CARPENEDA;

BRAGANÇA, 2012 a, b, c, p. 7 grifo nosso);

c. Por último, no item seguinte, ressalta que, “sejam consideradas (as especificidades

de grupos humanos como […]) na elaboração dos planos de ensino e de aula” como os

indígenas; (CARPENEDA; BRAGANÇA, 2012 a, b, c, p. 7);

d. Em segundo plano, constata-se que a bibliografia, de trinta e oito (38) textos e seis

sites sugeridos para as leituras, não privilegia sequer uma indicação sobre aspectos étnico-

raciais ou indígenas. Terceira e última constatação: não se observou nenhuma orientação

específica para o contexto indígena. Diante disso, percebe-se que esses aspectos identificados,

se afastam da proposta da DCNEI, como se observa:

Art. 3º - Parágrafo Único: a educação escolar indígena deve se constituir

num espaço de construção de relações interétnicas orientadas para a

manutenção da pluralidade cultural, pelo reconhecimento de diferentes

89

concepções pedagógicas e pela afirmação dos povos indígenas como sujeitos

de direitos. (BRASIL, 2012c, p. 3).

Se a menção aos povos indígenas é tão restrita nas Orientações, como esperar que seja

diferente no conteúdo a ser trabalhado, de modo a considerá-los sujeitos de direitos? E ainda,

considerando que no contexto escolar “o livro didático é uma fonte importante, quando não a

única fonte, na formação da imagem que temos do Outro” (GRUPIONI, 1995, p. 486, grifo

do autor). É interessante observar que, como um livro de alfabetização, que deveria buscar a

interação de vários contextos, como no Volume 1, traz lacunas, como abaixo explicitado, com

indicativas de que a Coleção pouco se preocupou com o segmento indígena, também

participante da educação do/no campo.

Já no início do Volume 1, na seção De olho na Escrita, ao apresentar as letras do

alfabeto (V. 1, p. 11, at.1), o texto sugere: “Estas são as letras que formam o nosso alfabeto”

(grifo nosso).

Figura 20 – Introdução às letras do alfabeto

Fonte: Carpeneda; Bragança (2012 a, p. 11).

90

Ora, o livro poderia tê-lo classificado como o alfabeto da língua portuguesa e, assim,

fazer menção ou dar abertura para o reconhecimento de outras línguas existentes no nosso

país multilinguístico. As orientações para o professor, relacionadas a esse texto (alfabeto),

resumem-se à importância que deve ser dada aos tipos de letras, isto é, maiúsculas e

minúsculas, cursivas ou de forma. Não há qualquer indicação de outras possibilidades de

alfabetos.

O aspecto intercultural foi novamente distanciado, conforme se constatou na definição

da DCNEI, Dos objetivos, Art. 2º, item III:

Assegurar que os princípios da especificidade, do bilingüismo e

multilinguismo, da organização comunitária e da interculturalidade

fundamentem os projetos educativos das comunidades indígenas,

valorizando suas línguas e conhecimentos tradicionais. (BRASIL, 2012c, p.

2)

Pôde se observar tal distanciamento da proposta didático pedagógica de Educação do

Campo nos volumes em questão, e também, na LDB. O artigo 23 trata de especificidades

quanto à organização do ano letivo, reclassificação de alunos e calendário escolar. O Artigo

26 (BRASIL, 1996) norteia a questão curricular “por uma parte diversificada, exigida pelas

características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela”. Sendo

detalhado nos seguintes parágrafos:

§ 1º Os currículos a que se refere o caput devem abranger, obrigatoriamente,

o estudo da língua portuguesa e da matemática, o conhecimento do mundo

físico e natural e da realidade social e política, especialmente do Brasil.

§ 2º O ensino da arte, especialmente em suas expressões regionais,

constituirá componente curricular obrigatório nos diversos níveis da

educação básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural dos

alunos. (BRASIL, 1996)

O Artigo 26 estende-se para o artigo 26-A, que estabelece “obrigatório o estudo da

história e cultura afro-brasileira e indígena”, como detalhado nos parágrafos a seguir:

§ 1º O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos

aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da

população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo

da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas

no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na

formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas

social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.

§ 2º Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos

indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo

91

escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história

brasileiras. (BRASIL,1996, grifo nosso)

O Artigo 28, por sua vez, reforça o estabelecido anteriormente, e para tanto “os

sistemas de ensino promoverão as adaptações necessárias à sua adequação, às peculiaridades

da vida rural e, de cada região”, e ainda dá destaque especial a três itens:

I – conteúdos curriculares e metodologias apropriadas às reais necessidades

e interesses dos alunos da zona rural;

II – organização escolar própria, incluindo adequação do calendário escolar

às fases do ciclo agrícola e às condições climáticas;

III – adequação à natureza do trabalho na zona rural (BRASIL, 1996, p. 21).

Por outro lado, a DCNEI, na Seção I, Dos Currículos da Educação Escolar Indígena,

Art.15, § 5º define:

Os currículos devem ser ancorados em materiais didáticos específicos,

escritos na língua portuguesa, nas línguas indígenas e bilíngues, que

reflitam a perspectiva intercultural da educação diferenciada, elaborados pelos professores indígenas e seus estudantes e publicados pelos

respectivos sistemas de ensino. (BRASIL, 2012c, p. 8, grifos nossos)

Entende-se a escassez de materiais especificamente bilíngues, diante do fato de que

cada etnia tem sua especificidade. No entanto, os livros (LDA) oferecidos às escolas rurais

indígenas, como material do campo, precisam privilegiar os moradores indígenas do/no

campo, como afirma a Constituição Brasileira de 1988, no Artigo 231 “São reconhecidos aos

índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, […]” e na educação, na

perspectiva intercultural, segundo Candau, (2013, p. 23) “para o diálogo entre diferentes

grupos sociais e culturais”.

No Volume 1, observam-se conteúdos que, contextualizados, proporcionam aos alunos

não só o contato, como a ampliação de conhecimentos e conceitos relativos às diversidades e

especificidades do campo. O triste é a não oportunidade de conhecer mais sobre esses outros

brasileiros do campo, os índios.

De qualquer modo, o destaque fica para as imagens que apresentam a Unidade Jeitos

de morar, que mostram um dos tipos de moradia de um grupo indígena. A imagem não é

muito nítida, além de ser de difícil identificação, ainda é possível confundir com as aldeias do

grupo étnico Yanomami. No entanto, por pesquisa posterior, percebe-se a semelhança com as

casas dos povos do Xingu. (V. 1, p. 48, texto).

92

Figura 21 – Jeitos de Morar

Fonte: Carpeneda; Bragança (2012a, p. 48).

Outro exemplo a ser observado é na seção Produção (V.1, p. 19) que estimula a

produção de textos. Nessa seção são mostrados alguns cartazes com regras para o “bom

convívio” no ambiente escolar. Sob que padrões culturais estes padrões foram estabelecidos?

É importante considerar que, cada grupo tem maneiras próprias de estabelecer suas regras de

conduta.

93

Figura 22 – Seção Produção

Fonte: Carpeneda; Bragança (2012a, p. 19).

Tais regras se estabelecem no contexto e pelo grupo que as adotam. A escola deve ter

sim suas regras de bons relacionamentos, mas precisa interculturalmente abranger ribeirinhos,

quilombolas, indígenas e suas especificidades.

De igual forma, no Volume 2 percebe-se que os conteúdos são apresentados levando-

se em conta o contexto do campo, o que propicia situações de ensino – aprendizagem

apropriadas, no entanto, observa-se a omissão da temática indígena.

Como evidencia o fato de que, apesar de fazer menção a festas típicas como Festa de

boi (p. 69) e arraial de São João (p. 75), não faz nenhuma referência a uma festa indígena, ou

qualquer outra alusão a outro enfoque social como: trabalho, brincadeiras ou moradia. Tais

aspectos fazem com que a Coleção distancie-se novamente da DCNEI, em seu Art. 15, item

V, que propõe uma “[...] interdisciplinaridade e contextualização na articulação entre os

diferentes campos do conhecimento, por meio do diálogo transversal entre disciplinas

94

diversas e do estudo e pesquisa de temas da realidade dos estudantes e de suas comunidades.”

(BRASIL, 2012c, p. 9).

Nos três volumes, na página nove, nas Orientações ao Educador, como parte da

Estrutura da Coleção, apresentam-se os personagens que acompanharão os alunos em todos os

três volumes analisados: Zé Sabiá, que trará informações de outros espaços, e Maria Sol, que

dará dicas e sugestões nas atividades (V.1, 2 e 3, p. 9).

Figura 23 – Apresentação Maria Sol e Zé Sabiá

Fonte: Carpeneda; Bragança (2012 a, b, c, p. 9).

Lopes da Silva (2002), pesquisadora entre crianças Xavante e Xerente de Mato

Grosso, propõe, mediante “situações etnográficas” selecionadas com o intuito de discutir

“processos próprios de aprendizagem”, que “[...] a corporalidade seja entendida também como

um dos mecanismos centrais dos processos de aprendizagem e transmissão de conhecimentos,

habilidades, técnicas e concepções próprias à educação das crianças índias.” (LOPES DA

SILVA, 2002, p. 60)

Pode-se, diante da constatação de que a corporalidade, uma vez constituinte central

não só da transmissão do conhecimento como do processo de aprendizagem das crianças

Xavante e Xerente, levantar a hipótese de que o uso de caricaturas que buscam personificar

humanos, com expressões corporais e faciais, como se observa nos personagens Zé Sabia e

Maria Sol, possa agilizar o aprendizado em contexto escolar indígena.

Os aspectos de interculturalidade elencados nessa análise foram, como se pode

perceber, na sua maioria de distanciamento com as determinações da DCNEI e, quanto ao

bilinguismo, de um afastamento ainda maior, pois não há menção a outras línguas além da

Portuguesa. A temática indígena não é privilegiada nesses volumes destinados às escolas não

95

urbanas, nas quais estão inclusas as escolas indígenas. Se não há a orientação para que os

professores ampliem o conhecimento para outras línguas e etnias, como esperar que sejam

valorizadas?

4.3 Estratégias Didáticas e Pedagógicas nos documentos

Entende-se estratégias didáticas e pedagógicas, focadas nessa categoria, como sendo

as orientações didáticas e pedagógicas oferecidas aos professores como sugestões nas

atividades propostas nos volumes analisados.

Os livros são apresentados ao professor mediante carta na primeira contracapa,

assinada pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). É dado o destaque

ao fato de que as escolas que participam do Programa Nacional do Livro Didático do Campo

estão recebendo o material que é distribuído pelo MEC por meio do FNDE. Pede a

colaboração do professor em aspectos que possibilitem um melhor aproveitamento da obra. A

apresentação para os alunos é por meio de uma cartinha dos autores, no volume 1, em letras

maiúsculas, e nos volumes 2 e 3 em letras minúsculas com iniciais maiúsculas. Carta que

ressalta as características do campo e se propõe a “descobrir juntos novos mundos e trocar

vivências e experiências”. (CARPENEDA; BRAGANÇA, 2012 a, b, c, p. 3)

Como se percebe houve o cuidado da Coleção em adequar a forma gráfica – as letras

maiúsculas e minúsculas - de acordo com o que se observa na orientação pedagógica do

Caderno 2, Alfabetizando, de orientações para a organização do Ciclo Inicial de

Alfabetização:

[…] no âmbito da leitura […] por serem unidades discretas (não

“emendadas” […]) as maiúsculas de imprensa podem ser diferenciadas e

contadas mais facilmente pelos alunos. […] são mais fáceis de escrever,

especialmente para crianças pequenas. (CEALE, 2004, p. 29)

Outro aspecto observado nas sugestões ao professor, se percebe nos direcionamentos

que acompanham as atividades. Elas estão destacadas no visual da página, pois se encontram

em vermelho. No entanto, na sua maioria, há instruções em que as letras são muito pequenas e

o texto longo, o que dificulta a compreensão e possibilidade de não atendimento ao requerido.

Conforme se observa na primeira página da Unidade 1 (v. 1, p. 7, texto).

96

Figura 24 – Orientações ao professor

Fonte: Carpeneda; Bragança (2012 a, p. 7).

É no anexo Letramento e Alfabetização que o professor tem contato com os objetivos

e princípios teóricos da Coleção. A introdução vem com o texto Começo de conversa,

[...] buscamos apresentar um material composto por textos variados,

adequados à faixa etária a que se destinam, aliados a atividades que

permitirão aos alunos descobrir o sistema de escrita, refletir sobre ele e

construir conhecimentos de que precisam para ler e escrever. Além disso,

atividades de leitura e produção de textos – orais e escritos – permitirão que

tenham acesso a práticas permeadas pela linguagem escrita e participem

delas, contribuindo assim, para o seu letramento. (CARPENEDA;

BRAGANÇA, 2012 a, p. 13)

Logo a seguir, no texto Partindo da teoria, percebe-se a preocupação com o

letramento: “o aluno será estimulado a desenvolver as habilidades e competências necessárias

às várias práticas de linguagem” com a valorização da linguagem oral e escrita e como esse

processo acontece “esse longo processo deverá garantir que o aluno tenha acesso ao mundo

letrado e participe dele da forma mais variada possível” (V. 1, 2 e 3, 2012, p. 14). Em

subitens sobre alfabetização e letramento, a prática de produção de textos, a prática de leitura,

a prática da oralidade e avaliação os autores apresentam o que se entende por cada um destes

pontos, o papel da escola, do professor para a viabilização de um aluno letrado e alfabetizado.

Treze textos e seis sites são sugeridos para leitura e aprimoramento do professor, conforme

quadro abaixo.

97

Quadro 10 – Sugestão de Leitura (Livros e Sites)

Número TÍTULO

1 Além dos muros da escola. Josette Jolibert; Jeannette Jacob e colaboradores. Porto

Alegre: Artmed, 2006.

2 A prática da linguagem em sala de aula – praticando os PCN. Roxane Rojo.

Campinas: Mercado das Letras, 2006.

3 A prática educativa: como ensinar. Antoni Zabala. Porto Alegre: Artmed, 1998.

4 Aprender a escrever: a apropriação do sistema ortográfico. Jaime Luiz Zorzi. Porto

Alegre: Artmed, 1997.

5 Escola, leitura e produção de textos. A. M. Kaufman; M. E. Rodrigues. Porto

Alegre: Artmed, 1995.

6 Estratégias de leitura. Isabel Solé. Porto Alegre: Artmed, 1992.

7 Formando crianças leitoras. Josette Jolibert e colaboradores. Porto Alegre: Artmed,

1992.

8 Formando crianças produtoras de textos. Josette Jolibert e colaboradores. Porto

Alegre: Artmed, 1994.

9 Lutar com palavras: coesão e coerência. Irandé C. Antunes. São Paulo: Parábola,

2005.

10 Muito além da gramática: por um ensino de línguas sem pedras no caminho. Irandé

C. Antunes. São Paulo: Parábola, 2007.

11 Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia de variação linguística. Marcos

Bagno. São Paulo: Parábola, 2007.

12 Ortografia: ensinar e aprender. Artur Gomes de Morais. São Paulo: Ática, 1998.

13 Propostas didáticas para aprender a escrever. Anna Camps e colaboradores. Porto

Alegre: Artmed, 2006.

14 http://portal.mec.gov.br/>. Acesso em 28 mar 2012.

15 http://ceale.fae.ufmg.br/> Acesso em 28 mar 2012.

16 http://portaldoprofessor.mec.gov.br/index.html >. Acesso em 28 mar 2012

17 http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaObraForm.jsp. Acesso em 28

mar 2012

18 http://www.museudalinguaportuguesa.org.br/> Acesso em 28 mar 2012

19 http://www.reveduc.ufscar.br/index.php/reveduc>. Acesso em 28 mar 2012

Fonte: Carpeneda; Bragança (2012a, b, c, p. 20).

A Estrutura dos volumes de letramento e alfabetização é o próximo tema aos

educadores. O texto destaca as seções apresentadas nos volumes: Leitura, De olho na escrita,

Produção, Hora da história, Texto puxa texto e Estudo do texto, como comuns aos três

volumes iniciais da Coleção. Destaca que no 2º e 3º anos há uma ênfase maior à gramática e

caligrafia. Assim, as seções Traçando letras e Estudo da língua “foram pensadas”.

(CARPENEDA; BRAGANÇA, 2012 a, b, c, Anexo, p. 21). E também mostra a importância

da interação com outras disciplinas nas seções Mural das vivências, Vai e vem e Dicas de

leitura. A partir de então, passa a descrever detalhadamente cada uma das seções, ao que nos

deteremos posteriormente.

98

As Orientações para o Educador se encerram com uma ampla abordagem às quatro

unidades e seus capítulos destacando as atividades sugeridas no livro do aluno e enriquecendo

o educador com “dicas”, sugestões e orientações outras. Esse apêndice de orientações do

Volume 1 termina com trinta e cinco (35) páginas específicas à alfabetização Matemática. No

segundo e terceiro volumes as quase cinquenta páginas finais se destinam à abordagem do

ensino de Geografia e História.

Como a educação na perspectiva intercultural pode ser entendida como uma educação

que privilegia a alteridade, que valoriza o convívio com o outro, entende-se que o Volume 1

se enquadra de maneira mais abrangente nessa perspectiva, ao demonstrar por meio das

abordagens como: brincadeiras (v. 1, p. 28, texto), moradia e práticas sociais e interação com

outro país – Japão (v. 1, p. 52, at.1), e atividades em família (v. 1, p. 72, texto) a importância

da participação e valorização com o outro e suas especificidades. No entanto, vale ressaltar a

falta de alusão às especificidades indígenas.

Figura 25 – O buraco do tatu

Fonte: Carpeneda; Bragança (2012a, p. 52).

99

Observa-se a página 52, ainda que, por meio da atividade 2, há o incentivo ao diálogo

sobre o Japão e sua localização, não se detém sobre a diversidade exposta na imagem tais

como, os trajes, a casa, o estilo do cabelo, os sapatos, enfim, características orientais que

enriqueceriam os alunos e privilegiariam a questão intercultural. Vale salientar, ainda, que a

ênfase esboçada nas sugestões ao professor de como conduzir as atividades propostas está

unicamente nos sons da letra T, partindo do personagem: tatu.

A análise nessa categoria evidenciou que tais orientações aos professores poderiam ter

uma visibilidade melhor, com textos mais sucintos e atraentes. Os textos sugeridos não

abarcam textos na temática indígena, o que distancia o professor desse foco de abordagem

tanto no seu crescimento acadêmico quanto na didática junto aos alunos.

4.4 Temática do Campo e Temática Indígena nos documentos: uma realidade

questionável

O Guia PNLD Campo 2013 (p. 13) define população do campo como: “estão descritas

no Inciso I do parágrafo 1 do Decreto 7.352/2010 como populações do campo (agricultores

familiares, extrativistas, pescadores artesanais, ribeirinhos, assentados e acampados da

Reforma Agrária, quilombolas, caiçaras, povos da floresta e caboclos)” (grifo do autor).

Sendo assim, entende-se que “povos da floresta” referem-se aos povos étnicos presentes em

todo território nacional no contexto rural ou do campo. No entanto, a população do campo e

indígena são distintas e os indígenas não se sentem confortáveis com a nomenclatura de

populações tradicionais.

A esses, os volumes analisados têm menção bastante reduzida, deixando a dúvida se

existe o reconhecimento dos mesmos. Aos demais grupos mencionados pelo Guia observam-

se nos volumes citados o reconhecimento do modo próprio de vida das populações do campo

e a utilização social desse espaço como fundamental, em sua diversidade, para a construção

da sua identidade social e de sua participação na definição dos rumos da sociedade brasileira.

Essa identidade social se entrelaça com a história de cada um desses povos do campo.

A Coleção, nos últimos itens aborda fatos e particularidades relativas ao povo do campo, mas,

mesmo que em vários momentos o estímulo ao convívio social, bem como, o reconhecimento

da diferença e da pluralidade social e cultural da nossa nação exista, observa-se, porém que é

ínfima a menção aos povos afro-descentes e indígenas.

100

O fato de a Coleção dedicar um anexo para não só orientar, mas também esclarecer o

professor nas questões da Educação do Campo não caracteriza a necessariamente a

especificidade da obra, como direcionada à escola do e no campo.

O Guia do PNLD Campo se vale de Caldart (2011) para conceituar a educação do

campo:

[...] nomeia um fenômeno da realidade brasileira atual, protagonizado pelos

trabalhadores do campo e suas organizações, que visa incidir sobre a política

de educação desde os interesses sociais das comunidades camponesas.

Objetivo e sujeitos a remetem às questões do trabalho, da cultura, do

conhecimento e das lutas sociais dos camponeses e ao embate (de classe)

entre projetos de campo e entre lógicas de agricultura que têm implicações

no projeto de país e de sociedade e nas concepções de política pública, de

educação e de formação humana. (BRASIL, 2012b, p. 9)

Tal concepção é apresentada nos volumes da Coleção em análise, no início das

Orientações ao Educador “a luta por uma educação diferenciada” desde o decênio de 1970 se

mostrou constante solicitação “dos movimentos sociais do campo, que lutavam pela terra,

pelo trabalho e pela dignidade” (CARPENEDA; BRAGANÇA, 2012 a, b, c, Anexo, p.6).

Desta forma, os livros didáticos com essa especificidade são descritos no Edital e

endossados pelo Guia:

Nessa primeira edição do PNLD Campo, o Ministério da Educação - MEC

“busca fomentar a produção de obras didáticas que superem o quadro atual

das produções existentes” consideradas como “alheias às Diretrizes

Operacionais formuladas pelo Conselho Nacional de Educação para a

Educação Básica das Escolas do Campo” (BRASIL, 2012b, p. 9, grifos

nossos).

Portanto na apresentação do conteúdo da “Nossa coleção” observam-se atividades

que integram “aluno/comunidade, escola/família e comunidade/escola” (CARPENEDA;

BRAGANÇA, 2012 a, Anexo, p. 8), bem como, valoriza mais a cultura do campo e suas

particularidades.

Apesar dos temas das unidades, no Volume 3, serem mais gerais, na Unidade 1 “Um

Planeta de todos” e na U4 “Brasil, uma terra fértil” conforme se constata pelo sumário.

101

Figura 26 – Sumário Volume 3

Fonte: Carpeneda; Bragança (2012c, p. 6).

Observa-se o empenho em focar no contexto campesino, o trabalho artesanal com

recursos da natureza como a palha da bananeira e do coco, (v. 3, p. 36-38, at.4) e imagens de

aves (v. 3, p. 64, at. 8), e para a identificação de “bichos” (v. 3, p. 71, at. 7), e o trabalho e

cultivo do solo (v. 3, p. 84, leitura introdutória). No entanto, a diversidade de trabalhos com

recursos da natureza poderia ser mais abrangente, inclusive o indígena. As demais atividades

focam exclusivamente aspectos do campo, não fazendo a interação com a cidade, como Vieira

e Garcia (2013, p. 90) nominam de “restrições ou limites” percebidos na avaliação desta

Coleção.

102

Figura 27 – Textos com enfoque campesino Volume 3

Fonte: Carpeneda; Bragança (2012c, p. 36).

Fonte: Carpeneda; Bragança (2012c, p. 38).

Fonte: Carpeneda; Bragança (2012c, p. 64).

Fonte: Carpeneda; Bragança (2012c, p. 71).

103

Fonte: Carpeneda; Bragança (2012c, p. 84).

Outra característica do Volume 3 são os vários temas abordados relacionados à

cidadania, como por exemplo, a importância dos documentos pessoais (CARPENEDA;

BRAGANÇA, 2012c, p. 21-22) na seção Vai e Vem; o cuidado com o meio ambiente e lixo

(CARPENEDA; BRAGANÇA, 2012c, p. 34-39, at. 1); extinção de animais silvestres

(CARPENEDA; BRAGANÇA, 2012c, p. 67); e o direito das crianças (CARPENEDA;

BRAGANÇA, 2012c, p. 8-9) entre outros.

Contudo, algumas ponderações se fazem necessárias quanto à questão intercultural e

indígena. Na U1, a menção da criança indígena como um dos habitantes do mundo (p. 7) seria

uma oportunidade a mais para destacar tantas diversidades no planeta. No entanto, a

orientação ao professor é que enfatize a forma “mapa mundi” e não seus habitantes.

Nas outras três unidades não se encontram textos com a temática indígena e seus

contextos singulares. Total omissão, inclusive ao citar os direitos da criança, pois essas são

retratadas por desenhos (p. 8-9), mas não se encontra nem Criança negra, nem Criança

indígena ou asiática.

Vale ressaltar que esta omissão é recorrente também diante da proposta da adequação

da Coleção em função das especificidades da Educação do Campo com o foco em alguns

aspectos como: ao considerar os sujeitos, espaços e identidades socioterritoriais; práticas

culturais; organizações sociais e lutas e ainda, relações escola, família e comunidade, entre

outros.

104

Para o geógrafo Bernardo Mançano Fernandes, “O território é espaço de vida e morte,

de liberdade e de resistência. Por essa razão, carrega em si sua identidade, que expressa sua

territorialidade” (2005, p. 30). A particularidade da Educação do Campo objetiva o sujeito do

campo com suas especificidades, identidade e contexto de vida. O autor destaca ainda:

De acordo com Raffestin (1993), partimos da premissa que para alguns

movimentos o território é seu trunfo e, portanto, a razão da sua existência.

Para todos os movimentos o espaço é essencial. É evidente que não existem

movimentos sociais sem espaço. Todos os movimentos produzem algum tipo

de espaço, mas nem todos os movimentos têm o território como trunfo.

Existem movimentos socioespaciais e movimentos socioterritoriais no

campo, na cidade e na floresta. Para evitar mal-entendidos com relação a

nosso pensamento, enfatizamos que movimento social e movimento

socioterritorial são um mesmo sujeito coletivo ou grupo social que se

organiza para desenvolver uma determinada ação em defesa de seus

interesses, em possíveis enfrentamentos e conflitos, com objetivo de

transformação da realidade. Portanto, não existem “um e outro”. Existem movimentos sociais desde uma perspectiva sociológica e

movimentos socioterritoriais ou movimentos socioespaciais desde uma

perspectiva geográfica. (FERNANDES, 2005, p. 31, grifos nossos)

Assim, se considerarmos o conceito apresentado e os grupos mencionados, quer em

texto ou imagem nos volumes 1, 2 e 3, pode-se entender que os Livros Didáticos de

Alfabetização apresentam proposta de forma parcialmente contextualizada em função das

especificidades da Educação do Campo, pois reconhecem não só o espaço do campo como o

território de vida e desenvolvimento com vistas à subsistência, aprendizado e organização

social, sem no entanto, interagir com a cidade, e se omitir na temática indígena.

O texto da seção Vai e Vem (v. 1, p. 78) valoriza as “pequenas propriedades” e logo a

seguir na seção Texto puxa Texto é informativo e didático com informações importantes para

melhorar mais esta prática comum da ordenha. O mesmo destaque a atividades do campo, é

dado no volume 2 (p. 88) ao ser apresentado um cartaz com o slogan “É no campo que se

plantam as cidades”, uma imagem urbana feita de legumes e grãos enfatizando a importância

dos homens e mulheres do campo na produção dos alimentos. Tudo isso, valoriza o sujeito,

sua função seu espaço e território.

O Volume 3, contudo, por conta da sua perspectiva em temas mais abrangentes, não

especifica necessariamente o morador do campo, mas levanta questionamentos para que o

aluno se posicione. O que se percebe pelo texto que apresenta uma carta modelo de

reivindicações por problemas ambientais da comunidade junto aos órgãos competentes (p.

105

43), texto que incentiva e desperta a questão da ação coletiva, na solução de problema

ambiental na comunidade em que vivem.

Quanto às práticas culturais, o destaque do Volume 2 é festas típicas (v. 2, p. 69, at. 1,

p. 79), e no Volume 1 as letras de música e trava-língua apresentam o folclore no cotidiano da

escola e da criança, conforme se observa no quadro Variedades nas manifestações textuais na

p. 76 desse trabalho.

A Constituição Federal Brasileira expressa, em seus Artigos 215 e 216, o seguinte:

Art. 215: O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e

acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a

difusão das manifestações culturais;

Art. 216: Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens materiais e

imateriais, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de

referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores

da sociedade brasileira nos quais se incluem:

I - as formas de expressão;

II - os modos de criar, fazer e viver;

III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;

IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados

às manifestações artístico-culturais;

V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,

arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. (BRASIL, 1988)

Desta forma, os costumes e tradições, as danças regionais, as canções populares, as

histórias populares, os costumes populares, etc. são bens imateriais e fazem parte do

patrimônio cultural brasileiro sendo representados por meio das manifestações folclóricas e

embasadas pelo texto constitucional.

No entanto, a Coleção não se contextualiza nas especificidades da educação do campo,

se ela deixa de fora as especificidades da Educação Escolar Indígena.

Quanto à perspectiva da Educação Indígena do campo, a coleção é bem sucinta. No

Volume 1 apresenta imagens de crianças, casas e trabalho indígenas, no entanto: no V. 1, p. 7

– apesar de ter fotografia de vários grupos de crianças de várias etnias e países do mundo, a

orientação ao professor assim começa: “professor, falar e escutar são práticas exercidas em

diversos contextos de interação” e depois desafia o professor a “criar condições para que os

alunos [...] possam adquirir ou melhorar essas práticas”. Assim, não orienta o professor para

discorrer sobre as diversidades retratadas e características de cada grupo, mesmo porque não

traz informações particulares desses grupos, apenas os menciona na generalidade,

contribuindo, assim, para a invisibilidade deles.

106

Na p. 28, o tema é Tempo de brincar. Percebe-se em uma das fotos menores um grupo

de meninos que se pode dizer são e estão em uma Aldeia.

Figura 28 – Tempo de Brincar

Fonte: Carpeneda; Bragança (2012a, p. 28).

As perguntas que devem ser lidas para os alunos como interação ou interpretação das

fotos são bastante pessoais Mais uma vez a oportunidade de se conhecer outras maneiras de

brincar se restringe ao espaço de cada um.

A próxima citação (v. 1, p. 48, texto) Jeitos de morar (Figura 21, neste trabalho)

retrata vários tipos de moradia, mas não traz nenhuma orientação ao professor e as perguntas

sugeridas aos alunos evidenciam a individualidade, por exemplo: Alguma dessas casas se

parece com a sua? Do que você mais gosta na sua casa? O que você costuma fazer na sua

casa?

107

Perde-se assim, a oportunidade de incentivar o professor na abordagem das

diversidades existentes nos grupos retratados em cada uma dessas situações.

Merece destaque na seção Texto puxa Texto, o fragmento do texto escrito por Daniel

Munduruku (vol.1, p. 56-57). Uma excelente oportunidade para abordar as diferenças entre os

povos existentes no nosso país, suas características linguísticas (nome com K) e particulares

como a organização das aldeias.

Figura 29 – Texto de um indígena - V. 1

Fonte: Carpeneda; Bragança (2012a, p. 56).

O texto ressalta as diferenças entre os povos Xavante e Munduruku na disposição das

casas. Embora não aborde qualquer outro tema na perspectiva étnica, especificamente

indígena. Nem mesmo o Manual do Professor, nas orientações nas atividades do Livro do 1º

108

ano, amplia as sugestões sobre o tema abordado nesta seção Texto puxa texto. Quantos textos

poderiam ser puxados a partir do livro “Coisas de índio” de Munduruku?

O Volume 1 apresenta também outros temas como família e natureza que estabelecem

uma boa oportunidade de interação entre os diferentes grupos do campo pelo diversificado

número de ilustrações, que retratam vários ambientes e práticas culturais sem no entanto

aproveitá-las.

É importante lembrar que o mesmo não se observa no Volume 2, esse volume não faz

menção aos grupos étnicos indígenas, na abordagem de Letramento e Alfabetização. Apesar

de ter o desenho de uma aldeia na capa, conforme já foi mencionado na temática da

interculturalidade.

O Volume três também é bastante sucinto. Só há uma foto do rosto de uma criança

indígena ao apresentar os moradores do planeta, e nada mais. Novamente, vale ressaltar que a

menção não traz a etnia retratada ou menção de quantas etnias essa criança representa. A

orientação ao professor enfatiza aspectos geográficos do mapa-múndi e não a diversidade dos

seus habitantes.

Figura 30 – Um planeta de todos

Fonte: Carpeneda; Bragança (2012c, p. 7).

109

Como vimos a ausência, na maioria do material analisado, do sujeito indígena e de seu

espaço e território não nos permite concordar que a Coleção se apresenta contextualizada com

as especificidades da Educação do Campo, pois distancia o sujeito indígena incluso na

proposta do campo. De igual modo se distancia da DCNEI, como se observa em:

Art. 3º Constituem objetivos da Educação Escolar Indígena proporcionar aos

indígenas, suas comunidades e povos:

I - a recuperação de suas memórias históricas; a reafirmação de suas

identidades étnicas; a valorização de suas línguas e ciências.

(BRASIL,2012c)

E ainda, quanto aos objetivos:

Art.2º -VII - zelar para que o direito à educação escolar diferenciada seja

garantido às comunidades indígenas com qualidade social e pertinência

pedagógica, cultural, linguística, ambiental e territorial, respeitando as

lógicas, saberes e perspectivas dos próprios povos indígenas. (Idem, 2012c)

Essa lacuna quanto aos sujeitos indígenas nas páginas dedicadas ao letramento e

alfabetização, conforme já foi citado, evidencia o distanciamento não só das Diretrizes, como

se observa no Programa Nacional dos Direitos Humanos, do Ministério da Justiça, que faz

constar, dentre as 518 propostas de ações governamentais, as seguintes:

214. Apoiar o processo de revisão dos livros didáticos de modo a resgatar a

história e a contribuição dos afrodescendentes para a construção da

identidade nacional

233. Apoiar o processo de revisão dos livros didáticos de modo a resgatar a

história e a contribuição dos povos indígenas para a construção da identidade

nacional.

234. Promover um ensino fundado na tolerância, na paz e no respeito à

diferença, que contemple a diversidade cultural do país, incluindo o ensino

sobre cultura e história dos povos indígenas13

.

Pode-se notar que tais orientações reiteram os critérios de avaliação contínua do

Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) desde 1996. O que se observa nesta análise é

que nesses vinte anos tem-se caminhado pouco na efetivação dessas recomendações.

Para Maher (2005), esta situação é explicável:

Fomos educados no interior de um sistema de educação construído a partir

de um posicionamento ideológico que procura diluir as identidades indígenas

13

Universidade de São Paulo – USP – Biblioteca virtual de Direitos Humanos, disponível em:

http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Direitos-Humanos-no-Brasil/ii-programa-nacional-de-direitos-

humanos-pndh-2002.html acesso em 28/05/2015

110

com o intuito de torná-las menos visíveis aos olhos da nação brasileira […]

uma estratégia eficaz quando se quer dominar alguém é destituí-lo de

qualquer singularidade, é emprestar-lhe a invisibilidade. (MAHER, 2005,

p. 81)

Diante das análises nessa categoria, percebe-se que a temática do campo com a

especificidade indígena está bastante diluída e distante da educação intercultural proposta há

mais de vinte anos na Constituição Federal.

A análise apresentada nesse tópico trouxe surpresas ao se constatar o distanciamento

da temática do campo, pois as atividades propostas focam na sua maioria aspectos do campo

sem que haja a interação com a cidade.

Trouxe como constatações os resultados de distanciamento da temática indígena, uma

vez que não privilegia aspectos culturais, territoriais, como por exemplo, ao tratar dos direitos

da criança em que as imagens não retratam crianças negras ou indígenas.

E como desafios, percebe-se pelo texto de Daniel Munduruku que outros textos de

temática indígena poderiam enriquecer e aproximar esses volumes da população indígena.

111

5 PROFESSORES KURÂ-BAKAIRI: DIZERES, SABERES E FAZERES SOBRE O

LIVRO DIDÁTICO E AS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS

Um dos caminhos metodológicos definidos para esta pesquisa foi o uso de entrevistas.

Estas entrevistas foram realizadas na cidade de Paratinga, em um contexto escolar durante um

módulo de formação continuada do Programa Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade

Certa (PNAIC). Em contato prévio, foi exposto o objetivo das entrevistas, primeiro contato

com os sujeitos e com o consentimento destes, mediante planejamento, houve a oportunidade

das entrevistas nesta ocasião.

Os professores entrevistados têm formação superior e as professoras têm formação em

nível médio. Todos pretendem ampliar seus estudos em cursos de mestrado ou graduação.

As entrevistas foram realizadas, na sua maioria, em ambiente de formação continuada,

isto é, com tempo controlado e bastante movimentação. Como recurso didático reforçamos

que as mesmas categorias que nortearam a análise documental serão aqui utilizadas, a saber:

1. Texto e Imagem.

2. Interculturalidade e bilinguismo.

3. Estratégias didáticas e pedagógicas.

4. Temática do Campo e Temática Indígena.

Apresentamos a seguir as entrevistas sua descrição e observações a partir destes eixos

temáticos.

5.1 Texto e Imagem

O que caracteriza a Coleção Girassol – Saberes e Fazeres do Campo, “[...]como uma

obra voltada para o aluno do campo[...]” de acordo com o Guia PNLD Campo 2013 “[...]são

as ilustrações e os temas que contextualizam as atividades, as quais, em geral, têm como eixo

norteador o cotidiano em comunidades rurais”. O Guia dá como destaque da Coleção “A

preocupação em contextualizar as atividades e as ilustrações em situações relativas ao campo

brasileiro”. (BRASIL, 2013, p. 30-31) e na resenha da obra:

[…] nota-se a recorrência a diferentes formas de linguagem (gráficos,

mapas, tabelas, fotos e gravuras) adequadas às situações de ensino-

aprendizagem, bem como uma gama variada de gêneros textuais

representativos de diferentes formas de circulação social (BRASIL, 2013, p.

29).

112

Na sua dissertação Hagg (2009), que tem a proposta de analisar as associações entre

palavras e aprendizagens que as crianças fazem tendo o Livro Didático como mediador, ela

apresenta:

As palavras antes de serem lidas, são vistas. E antes de chegar às palavras a

criança primeiramente tem o contato visual com o livro, o objeto, que já

comunica mesmo fechado, por meio de sua capa, de sua materialidade. O

aluno ao abrir um livro é atraído primeiramente pelas imagens e é a partir

delas que a leitura começa. (HAGG, 2009, p. 57)

Para essa autora, o papel mediador do Livro Didático é possível pela proximidade do

aluno com o objeto livro. Seu colorido, suas imagens são objeto de leitura muito antes do

conhecimento das letras, podendo ser atraentes ou repulsivos, incentivadores ou

desestimulantes. Todo o LDA, de capa a capa é agente de leitura visual das imagens, palavras

e de tudo mais que o compõe.

A proposta do Livro Didático de Alfabetização para as escolas do Campo trouxe toda

uma especificidade que é, como já vimos, destacada na coleção analisada, mas que no

entanto, deixa a desejar na representação da especificidade do quilombola e do indígena.

Por nos atermos ao contexto do campo, no cenário multicultural e linguístico da escola

indígena, com toda sua especificidade, buscamos referenciais para tal contexto.

De acordo com os Referenciais de Formação para Professores Indígenas (BRASIL,

2002b, p. 64-65) temos:

Um aspecto importante na elaboração de materiais didáticos é a ilustração.

As imagens não são simples complementos da parte escrita, mas portadoras

de uma ordem de informações que muitas vezes os textos não dão conta de

fazer. O desenho, portanto, é um recurso imprescindível no registro e na

transmissão de conhecimentos da cultura, de informações sobre a fauna e a

flora regionais, de lugares, etc, desempenhando relevante função didática e,

ao mesmo tempo, expressando concepções estéticas próprias de um povo ou

de um indivíduo. Vale lembrar aqui a importância da arte como um dos

elementos que expressam identidade étnica e cultural, sendo um aspecto que

deve permear o processo de formação dos professores e de produção de

materiais didáticos.

Percebe-se esse entendimento no relato da professora SARÔ, quando diz que o livro

didático é seu material de apoio para planejar as aulas: “[…] como pode trabalhar aquele

texto, não só pelo que está escrito, pelas figurinhas, você tem ideia de como pode fazer a sua

aula.” (SARÔ, 07 jun/2014)

113

À semelhança da professora SARÔ, o professor YAWÂRU diz fazer uso das

ilustrações:

Esse aqui a criançada gosta. Eu traduzo todinha, por exemplo, […] eu falo

do porco, especialmente da casa, eu pergunto que é, como é a casa

construída de palha, como é a casa construída com graveto, vocês sabem o

que é graveto? Tem uns que não sabem, aí tem que falar, né? (YAWÂRU,

06 jun/2014)

Figura 31 – História dos três porquinhos

Fonte: Carpeneda; Bragança (2012a, p. 58).

Vale lembrar que esse professor, em parceria com outros colegas, elaborou uma

cartilha na língua Bakairi com várias ilustrações, inclusive de uma história em quadrinhos.

No entanto, esses professores reconhecem que, para se ter um bom livro, é necessário

algo mais.

Para o professor MENXU, o Livro Didático de Alfabetização precisa de atualização e

mais orientações para o fazer pedagógico do professor em um “como que é hoje, como vai ser

amanhã” (MENXU, 06 jun/2014), para as atividades, exercícios e propostas do livro.

114

Enquanto que para a professora SARÔ, a carência do livro está em não abordar com

mais frequência, ou precisa “ter mais coisas do cotidiano indígena”. (SARÔ, 07 jun/2014)

Vale ressaltar que a professora SARÔ sente a incompletude do livro pelo fato de não

ter mais na temática indígena. Ela não se vê no livro. Ele poderia ser um bom livro com a

inclusão de mais indígenas.

Em ambas as falas desses professores verifica-se que um dos aspectos que precisam de

melhorias no Livro Didático de Alfabetização (LDA) é o aspecto textual. No entanto, para a

professora SARÔ, há outro aspecto a ser balizado, “Também, às vezes, tem alguma parte do

livro que a gente não consegue dominar direito”. (SARÔ, 07 jun/2014)

O conteúdo, em algumas partes do livro não permite que SARÔ domine direito e faça

uso deles. São vários os fatores que podem ocasionar essa situação. Entretanto, Rojo (2014),

numa análise de Livros Didáticos de Língua Portuguesa de 5ª a 8ª série,14

observou que nos

textos selecionados para a sua pesquisa “há uma decidida preferência por textos

representativos da variedade padrão, norma culta, língua escrita” (ROJO, 2014, p. 85).

Tal aspecto torna-se de muita relevância em um cenário multicultural e linguístico, em

que os docentes e alunos falantes do português de uso cotidiano e limitado a alguns contextos

comunicam-se permanentemente, quer na escola ou fora dela, e na maior parte do tempo na

língua Bakairi. O que pode dificultar a compreensão de um texto elaborado na norma culta.

Uma vez que o livro é específico para as escolas do campo, esse precisa ser um aspecto

seriamente considerado.

Cada aluno dos anos iniciais do Ensino Fundamental na escola da aldeia onde

YAWÂRU atua recebe o seu livro. Leva-o para casa e, na opinião daquele professor, que tem

um aluno iniciante em casa, o LD tem um significado para aquelas crianças:

Elas entendem que é através dele que elas vão aprender, porque o guri que

tenho em casa, toda a noite, ele abre o livro, às vezes faz perguntas difíceis

sobre as figuras que ele vê no livro. O guri pergunta sobre os animais,

figuras, palavras, a escrita, porque ainda não sabe ler e eu tenho que ler e

falar na língua materna. (YAWÂRU, 06 jun/2014)

Para Val e Castanheira (2005), um dos pontos como tendência geral nas obras

analisadas15

é o “zelo quanto à contribuição do livro para a formação cidadã do aluno” (VAL;

CASTANHEIRA, 2005, p. 147) e, apesar de toda limitação quanto ao aspecto linguístico, o

14

Por meio de fichas avaliativas de 37 coleções, num total de 148 livros analisados. 15

Foram analisados 41 livros de alfabetização; 42 coleções de Língua Portuguesa de 1ª a 4ª série, obras avaliadas

no PNLD 2004 (avaliadas em 2002, usadas em 2004).

115

LDA se apresenta como instrumento interação entre família, escola e comunidade. Dessa

forma, a presença do livro no cotidiano dos alunos, não só na escola, mas também nela se

associa ao pensamento de Rockwell (1997, p. 35), “Los estudiantes de muy diversos grupos

comparten capacidades genéricas que les permitem manejar la diversidade de significados que

se encuentran en estos mundos escolares, así como apropriar-se y producir diversos recursos

culturales.”

As ilustrações do campo e zona não-urbana caracterizam essa Coleção e sua

especificidade para o campo, no entanto, não se observa isso na temática indígena. Para os

professores, sujeitos da nossa pesquisa o livro apresenta ilustrações que auxiliam no fazer

pedagógico. No entanto, o LDA seria mais completo se apresentasse mais textos com a

temática indígena.

Percebe-se pela análise das entrevistas nessa categoria que o livro é um agente de

interação entre família, escola e comunidade.

5.2 Interculturalidade e Bilinguismo

Vale relembrar que o contexto é bilíngue, aqueles professores são falantes tanto da

língua Bakairi como da Língua Portuguesa, parte dos alunos estão no primeiro ano do Ensino

Fundamental e o contato com a língua portuguesa é bem limitado, uma vez que falam a maior

parte do tempo a língua Bakairi, isto é, quase que exclusivamente a língua materna Bakairi,

como se observa:

Matemática dá para trabalhar bem, até mesmo o que eles fazem na Aldeia

mesmo, aqui por causa das figuras fica mais fácil para eles compreenderem

do que aqui na escrita mesmo, por exemplo, eu leio na língua portuguesa,

eles não vão entender não, tem alguns que vão entender, eu tenho que

traduzir para a língua materna. (YWÂRU, 06 jun/2014)

Primeiramente explico na língua (Bakairi). A criança começa a perguntar.

Ela pergunta mais do que no Ensino Médio (MENXU, 06 jun/2014)

Nota-se que o texto da Coleção apresenta-se em português, uma vez que se destina a

falantes desta língua, crianças das escolas do campo. Assim sendo, distancia-se do processo

de alfabetização intercultural, pois, para que seja utilizado na aldeia, necessita de todo um

processo de tradução realizado pelos professores (as) que possibilite às crianças uma

construção de sentido e neste aspecto a imagem por si só não ajuda; quando em um ambiente

como esse as crianças transitam pelas duas línguas, o aproveitamento pedagógico é outro.

116

Ambos os professores atuam em turmas uni docentes. Entende-se com isso que há

alunos que dominam o português em vários níveis. O diálogo nesse contexto envolve ambas

as línguas, a Língua Portuguesa e a Língua Bakairi.

Para a pesquisadora mexicana Elsie Rockwell (1997):

[...] dentro del aula el uso de la lengua escrita está inmerso em los processos

de reproducción y de resistência presentes em toda interacción entre

maestros y alunos. Estos processos influyen em las maneras de interpretar

los significados de los textos, de ler y de simular la lectura, y de producir

usos alternatitivos de la escritura. (ROCKWEL, 1997, p. 35)

Ao estabelecer essa ponte de interpretações cruzadas, YAWÂRU e MENXU, no fazer

pedagógico como professores alfabetizadores, possibilitam aos alunos a compreensão do

texto. Essa troca de conhecimentos entre professor/aluno e aluno/aluno, pode-se dizer,

possibilita a construção de novos textos e interpretações.

Na visão bakhtiniana, também, a linguagem não é um sistema fechado e acabado. Os

elementos sociais são produzidos em contextos socioculturais, um processo contínuo de

mudança sob os mandos do próprio uso cotidiano em nossas interações.

A relação dialógica, por excelência, está presente na relação educativa assim sendo, na

Alfabetização e Letramento. Para Bakhtin, a linguagem dialógica define-se pelo diálogo entre

os interlocutores e pelo diálogo entre os outros textos. A relação que ocorre entre os

interlocutores constrói os próprios sujeitos produtores do texto, bem como, constitui a

linguagem e dá significado ao texto. (BAKHTIN, 1992, p. 35-36)

Os professores foram unânimes em afirmar que cada aluno tem seu livro, que os levam

para casa e os trazem a cada dia de aula. Conforme observou em uma de suas pesquisas

realizadas em sala de aula no México, Rockwell a proximidade com o LDA traz mais

possibilidades “de participar en su interpretación mediante prácticas orales, colectivas y

alternativas”, (ROCKWELL, 1991, p. 40) permitindo uma maior apropriação do texto.

Entender o contexto escolar como um espaço de produção cultural é um dos desafios

da educação intercultural. Cabe aos professores “favorecer experiências de produção cultural”

e alargar a perspectiva cultural dos alunos, se valendo dos “recursos disponíveis” no contexto

escolar e na comunidade (CANDAU, 2013, p. 35). O professor, ao permitir ao aluno

compartilhar “em casa” tanto quanto “na escola” os conteúdos e atividades do LDA, está

favorecendo a produção daquele aluno e ampliando sua visão cultural.

117

O professor YAWÂRU, ao explicar como possibilita aos seus alunos a compreensão,

apreensão tanto do português como da língua Bakairi, constrói relações interculturais,

conforme se observa:

P - Como é pra criança começar a escrever em português. Um bilhete…

como você trabalha isso?

Y - Às vezes eu falo as palavras ditando, né? Para os que já escrevem eu

dito. As palavras são difíceis pra escrever na língua materna, aí eu tenho que

corrigir isso. A gente trabalha assim de segunda feira em diante. Como, por

exemplo: enhuno, quando tem n antes de h a gente coloca hífen, tudo isso a

gente já ensina no segundo ano. (YAWÂRU, 06 jun/2014)

Para Rockwell (1991, p. 40), “La relación com la lengua escrita y la interpretación que

es possible construir dependen de las formas en que interactúan maestros y alunos em relación

com el texto.”

O professor YAWÂRU e sua relação de interatividade com os alunos lhe permite

construir uma relação com a língua portuguesa, num primeiro momento, ao ditá-las e com a

língua Bakairi em uma atividade metalinguística nas duas línguas.

O professor MENXU, por sua vez, expressa:

Tanto na nossa língua que tem sete vogais quanto em português que tem

cinco (sic!), a grande diferença entre o português e a língua materna. Muito

das vezes, as crianças confundem um pouco. Ele quer usar com as letras

vogais o A no português e na nossa língua o A tem outro nome escrito, até a

consoante também né? (MENXU, 06 jun/2014)

A mesma situação enfrenta o professor YAWÂRU:

A gente ensina desde pequeno, né? Para poder até quando crescer… já vai

com aquela ideia, porque tem letra que a gente não usa, deixa eu ver, o K

mesmo ela faz duas funções. Isso aí a gente tem que ensinar desde criança

[…] o S também é difícil […]. (YAWÂRU, 06 jun/2014)

Esta é uma situação que não só MENXU ou YAWÂRU enfrentam, mas professores

indígenas em comunidades bilíngues se deparam e precisam de “competência necessária […]

capacidade de tomar decisões informadas sobre o modo adequado de grafar seu próprio

idioma” (MAHER, 2006, p. 26) e uma vez detentores desta competência, transmiti-las aos

seus alunos iniciantes nesse novo universo, a escrita. Observamos que professor MENXU

traça um paralelo entre o aprendizado da criança indígena e não indígena da sua língua

materna “[…] como educamos nossa criança em casa, pai e mãe conversa só na língua

118

materna, não na língua portuguesa, da mesma forma o não indígena, conversa com pai e mãe

na língua portuguesa”. (MENXU, 06 jun/2014)

Desta forma, o professor explica o seu fazer pedagógico:

[…] escrevo na lousa em português, nome de objetos, animais. Quando

explico em português e na língua materna a tradução.

P – Elas aprendem a escrever em que língua primeiro?

M – Elas aprendem primeiro na língua materna, tanto pra ler como pra

escrever. E eu uso o livro traduzindo. Confunde a cabeça do aluno se a gente

fala só em português, tem que ser na língua e depois a tradução. (MENXU,

06 jun/2014)

É importante ressaltar que o Livro Didático de Alfabetização desta forma, tem suas

funções (CHOPPIN, 2004, p. 553) duplicadas ao possibilitar o ensino da língua materna, a

língua Bakairi, quando o professor o utiliza para nortear os conteúdos a serem trabalhados em

sala e nas atividades com a interação continuada dos alunos. Enfim, como já dissemos essas

funções se duplicam ao utilizar o mesmo LDA no ensino não só da língua materna, mas no de

outra língua, a língua envolvente ou a segunda língua, o português. O fato de ter sido

produzido em Língua Portuguesa evidencia que seu público alvo são as crianças falantes

dessa língua, assim para que seja utilizado em um contexto escolar indígena é necessário que

o professor faça traduções comprometendo a eficácia do processo pedagógico.

O povo Paresí, localizado a noroeste do Estado do Mato Grosso, tem experiência

semelhante com o LDA, “o professor vai ‘traduzindo’ para a língua materna das crianças os

conteúdos dos livros didáticos, o que não se revela fácil para a compreensão desses alunos”

(PAES, 2002, p. 56). Fato esse que se aproxima de Neves (2009, p. 208),

[…] além de valorizar a língua materna e a oralidade, enquanto inserção em

um espaço anteriormente estranho, ampliam-se as competências de

estudantes e docentes, na medida em que cada vez mais terão que mobilizar

saberes para a compreensão dos novos conteúdos, tema permanente para

estudo nos processos de desenvolvimento profissional continuado de

professores e professoras.

O Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas, ao discorrer sobre a

língua indígena na escola, traça caminhos metodológicos:

[…] a língua indígena deverá ser a língua de instrução oral do currículo. […]

a língua utilizada na sala de aula para introduzir conceitos, dar

esclarecimentos e explicações. Esse tipo de procedimento permite que os

119

alunos que têm pouco domínio do português possam aprender melhor e mais

rapidamente os novos conhecimentos […]. (BRASIL, 1998, p. 119)

O professor MENXU foi, dentre os professores entrevistados, um dos que, ao ser

questionado se conhecia o RCNEI se posicionou:

P - Você já viu ou leu o RCNEI?

M - Já.

P - ele dá muitas sugestões de atividades, já usou?

M – Uso ainda. Ajuda nas dificuldades curriculares do português, ajuda no

nosso trabalho. (MENXU, 06 jun/2014)

Observa-se que a postura de trabalho desse professor coaduna com o seu

conhecimento do RCNEI e sua proposta formativa. Conforme Midlin (2003), este documento

“se ocupa de princípios e conteúdos de um currículo que os professores indígenas devem

aplicar em sala de aula” (MIDLIN, 2003, p. 149).

A criança, no segundo ano do Ensino Fundamental, de acordo com o professor

YAWÂRU já tem certa habilidade na língua portuguesa que lhe permite algumas atividades

como se observa:

P - Nesta fase no segundo ano, ela já pode escrever pequenos bilhetes em

português?

Y - Hã, hã! Até brincam em português. Mas ela escreve na língua também. A

gente escreve mais em português. Eu falo em sala de aula: A gente tinha que

valorizar mais a nossa língua. (Para os adultos) porque você não escreve na

língua materna? Carta, bilhete, alguma coisa assim, vocês sabem escrever!

E vai escrever em português. Eu acho que é porque eles têm mais facilidade

pra escrever em português.

P - Por que você acha que eles têm mais facilidade de escrever em

português?

Y - Porque a língua materna é difícil de escrever, mas tem alguns que

escrevem bem. Bem mesmo. Outros escrevem na língua portuguesa porque

não têm domínio. (YAWÂRU, 06 jun/2014)

Para esse professor, se as crianças forem incentivadas e ensinadas a escrever e ler mais

na língua Bakairi, ao chegarem ao Ensino Médio, vai ser diferente do que acontece hoje,

quando os adultos escrevem cartas, bilhetes, “alguma coisa assim” em português. Ele

reconhece que os alunos do Ensino Médio têm mais facilidade pra escrever em português,

pois consideram a língua materna difícil.

Percebe-se pelas palavras de YAWÂRU que, para ele, ao enfatizar o ensino na língua

materna, espera estar minimizando, ou vencendo uma dificuldade que hoje se apresenta com

120

os alunos do Ensino Médio. Será que a dificuldade de hoje é reflexo de um ensino mais

distante da língua Bakairi, nos anos iniciais do Ensino Fundamental?

A postura de YAWÂRU se coaduna com a posição de Maher (2007, p. 70) que com

base em evidências empíricas anunciam que “quanto maior o investimento pedagógico na

língua materna,” maior será a facilidade que este aluno terá em “se desenvolver em sua

segunda língua”.

No entanto, entende-se que ao falar, entender e escrever nas duas línguas tais alunos

têm no bilinguismo algo compulsório, já que eles não têm opção, como um grupo minoritário,

isto é, podia ser um latino ou surdo, como o indígena, este “é obrigado a aprender a língua

majoritária do país e se tornar um bilíngue” (MAHER, 2007, p. 68). Tal situação se contrapõe

fortemente com a interculturalidade, descrita por Meliá (2014):

La interculturalidad supone el reconocimiento pleno de la diferencia de la

piel del otro y no hay interculturalidad cuando la piel del otro, especialmente

lo que disse com su lengua – que precisamente llamamos lengua – es

negada, despreciada e incluso maltratada. (MELIÁ, 2014, p. 47)

Para esse autor, a língua é “a pele da interculturalidade”, e, na defesa dessa ideia,

discorre por vários aspectos traçando um paralelo entre a pele, a língua, as palavras “Así

como las palavras de um dicionário están contenidas dentro de las tapas del libro, las palavras

vivas del hablante están dentro de la piel que habitamos y que nos habita; lo que no está

dentro de esa piel, no existe; la piel de la lengua es nuestro habitat.” (MELIÁ, 2014, p. 49).

Pensar no aluno indígena, seu contexto de obrigatoriedade do bilinguismo na

perspectiva de Meliá (e na nossa também) é chocante! Ao se exigir, mesmo que sem nenhuma

normatização, que o aluno busque outra língua, subentende-se que a sua língua é ineficaz e

está fora do “seu habitat”.

Será que, ao se propor um livro totalmente em português, não estamos não só

obrigando a apreensão da outra língua como também deixando claro para a nova geração de

alunos de contextos indígenas que não há reconhecimento “pleno de la diferencia de la piel

del outro”, e sua língua é negada, depreciada, e, nas palavras de Meliá (2014), inclusive

maltratada?

As DCNEI reiteram a Constituição Federal de 1988, que assegura, em seu artigo 210,

“às comunidades indígenas o uso de suas línguas maternas” (BRASIL, 1993, p. 177).

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) por sua vez, atribui ao

Sistema de Ensino da União em parceria com outras “agências federais […] desenvolverá

121

programas integrados de ensino e pesquisa, para a oferta de educação escolar bilíngue e

intercultural aos povos indígenas” (BRASIL, 1996, p. 39-40).

Estas normatizações apontam para outra questão: a formação desse agente de ensino, o

professor indígena. Não nos ateremos sobre este tópico, mas vale esclarecer que atualmente é

de consenso que o professor deve ser “oriundo da respectiva comunidade” (BRASIL, 2012c,

p. 3).

Por meio de projetos de formação de professores indígenas em vários estados do

Brasil, como por exemplo, o Programa de Formação de Professores Alfabetizadores –

PROFA, com o apoio do MEC em Rondônia, nos idos de 2001, com alcance nos municípios

de Ji-Paraná, Cacoal, Pimenta Bueno e Espigão do Oeste, e o Projeto Açaí – magistério

indígena – também em Rondônia (NEVES, 2009, p. 71-73) percebe-se nos últimos anos a

crescente preocupação para atender esta carência.

No nosso Estado, o Projeto Tucum, coordenado pelo governo de Mato Grosso (1995 –

2000) com o objetivo de “capacitar e habilitar professores índios em nível de magistério”

(PEGGION, 2003, p. 44) foi um dos precursores.

Atualmente, por meio do Caderno de Educação Escolar Indígena, O Projeto 3º grau

Indígena, integrante de um Programa de Formação de Professores Indígenas implementado

em Mato Grosso, desde 2001, com vários cursos “superiores específicos e diferenciados para

a formação do professor indígena” tem espaço aberto para que outros segmentos tenham

acesso às experiências e realizações desses professores. (MATO GROSSO, 2002, p. 8)

Dessa forma, percebe-se a expansão de práticas e implementos que oportunizam ao

professor indígena melhor capacitação. No entanto, segundo Peggion (2003), esta “nova

categoria nestas sociedades”, o professor indígena, “bem como a escola necessitam de uma

classificação para poderem inserir-se nas relações sociais”.

Para esse autor, a escola precisa ser vista como agente de socialização no processo

ensino-aprendizagem e ao se distinguir, devido ao “recebimento de salário” e o “trânsito pelos

código ocidentais”. Esse professor pode ser considerado “uma pessoa fora do grupo”

(PEGGION, 2003, p. 46). Assim, prejudicaria a dinâmica do e no contexto escolar.

Maher (2006, p. 26), por sua vez, ressalta que as responsabilidades de um professor

indígena vão muito além das “atividades circunscritas ao ambiente escolar”, suas atribuições

são bem mais amplas, o “acesso aos códigos da sociedade brasileira” permite “que se

percebam, e com que sejam percebidos, como elementos cruciais na interlocução cultural”.

122

Quer sob um foco ou outro, é importante que nossa visão se amplie, de modo a

abordar a formação continuada desses professores nos aspectos sócio cultural dos contextos

em que a escola e o professor estão inseridos.

Dos quatro professores entrevistados, dois são especialistas, como já mencionamos

anteriormente. Ambos se deparam no cotidiano do fazer pedagógico com a tarefa de transitar

pelas duas línguas. MENXU, um dos professores com formação superior, faz uso das cartilhas

na língua Bakairi, para auxiliá-lo nas aulas “Uso [o material impresso em Bakairi] tem muitos

alunos que não sabiam, naquela época, a mãe não estudava. Hoje em dia não, […] e nós temos

que passar da forma que nós aprendemos como que é a nossa língua”. (MENXU, 06

jun/2014). A postura de MENXU se aproxima ao pensamento de Neves (2009, p. 207):

Embora seja incipiente a produção de material didático específico e

intercultural, nas escolas indígenas – considerando as exigências do projeto

educativo diferenciado – algumas comunidades estão atentas aos

comportamentos da prática social e sua inserção nestes recursos, de forma a

aproximar o trabalho pedagógico ao universo cultural do povo.

Os KURÂ-BAKAIRI têm um volume expressivo de material na língua, conforme se

observa no quadro abaixo:

Quadro 11 – Material Didático Bakairi

ALFABETIZAÇÃO ETNO CIÊNCIAS LIVROS DE

LEITURA

LIVROS DE

LENDAS

Pré leitura Livro sobre animais As aventuras da vida O perdiz e o sol

Apoio 1, 2 Os Pássaros 1, 2 Contos dos alunos Antigamente tudo era

bom

Os Animais Os Peixes Fui pescar ontem As histórias contadas

volumes de 1 a 7

Transição de

Português para

Bakairi

Répteis, anfíbios e

arraia O que eles fizeram O leão e o homem

Os acidentes

acontecem

O macaco e os outros

animais

Quando tive medo de

onça

Os acontecimentos

dos velhos

Quando minha mãe

deixou o tatu escapar

Fonte: material produzido por SIL16

16

Disponível em: http://www-01.sil.org/americas/brasil/SILapub.html - publicações.

123

Durante o período das entrevistas tomou-se conhecimento de outra cartilha elaborada

sob a coordenação das Faculdades Claretianas, por alguns professores Bakairi. Não tem data

nem local impresso, por sua organização, parece ser baseada nas cartilhas brasileiras, antes da

reestruturação do PNLD, em 1996.

A figura a seguir apresenta a capa da cartilha.

Figura 32 – Capa da Cartilha em Bakairi

Fonte: Acervo da pesquisadora.

124

De posse da cartilha elaborada por eles, YAWÂRU diz:

Y – […] esse aqui mesmo nós fizemos, esse aqui é mais para a alfabetização

né? A criançada gostou desse aqui (mostra a cartilha que fizeram).

Os textos pequenos eu trabalho. Às vezes a criançada lê também. Aqueles

também trabalho com os adultos, porque tem gente que tem dificuldade

também de escrever e entender a história. (YAWÂRU, 06 jun/2014)

Na próxima ilustração (Figura 33), é possível observar o alfabeto na língua Bakairi,

com imagens associadas às letras.

Figura 33 – Cartilha Bakairi - Alfabeto

Fonte: Cartilha Bakairi (p. 17-18).

Observa-se na cartilha, toda na língua Bakairi, várias e diversificadas atividades

pedagógicas. Percebe-se que foram consideradas as múltiplas representações, em um diálogo

intercultural, à medida que valoriza o saber do “outro” como no uso nas cruzadas e na estória

em quadrinhos “Papa Capim”, do desenhista Maurício de Souza, com o texto em Bakairi.

125

Figura 34 – Cartilha Bakairi - História em quadrinhos

Fonte: Cartilha Bakairi (p.45-48).

Textos escritos por Bakairi das duas Terras Indígenas “foram publicados”, no entanto,

segundo Barros, 2003, “há divergências entre os falantes da Terra Indígena Bakairi e os

falantes da Terra Indígena de Santana”, como exemplo, “os de Santana dizem koekâ e os da

Terra Bakairi dizem kozekâ, para veado”. (BARROS, 2003, p. 41) Para esta autora a língua

Bakairi “está por merecer um cuidadoso estudo”.

Os Animais é um dos livros para leitura na língua Bakairi, na fase inicial da

alfabetização. Produzido pela comunidade Bakairi com o apoio do SIL.

Com pequenos textos apresenta dezoito animais e algumas de suas características.

126

Figura 35 – Os animais – Livro de Leitura 2 em Bakairi

Fonte: Livro de Leitura 2 (p. 7)

Os desenhos foram feitos por artistas Bakairi e têm tradução para o português nas

últimas páginas. Foi impresso pela primeira vez em 1994, há mais de vinte anos. O professor

YAWÂRU é fruto deste tempo “[…] eu aprendi na língua materna também porque tinha a

americana lá, Mini e Beth. Eu era pequeno, não muito pequeno, mais ou menos 14 ou 15

anos, por aí assim. Eu interessava muito, […]” (YAWÂRU. 06 jun/2014).

Mesmo que hoje o fazer pedagógico nas escolas indígenas deva ser desvinculado do

“modelo missionário” também como forma de afirmação de “que o caráter laico do ensino

público no Brasil” se estenda “e seja garantido também as terras indígenas” (GRUPIONI,

2008, p. 61).

Para Taukane, “a atuação de missionários do Summer Institute of Linguistics (SIL) foi

significativa”. (1999, p.42), Esta professora Bakairi, relaciona, em sua dissertação, os

materiais preparados pelo SIL que “tendem a uniformizar a nossa língua”.

Tanto Taukane como alguns dos nossos professores entrevistados foram alfabetizados

na língua no material acima citado, foram alunos e hoje são professores.

127

Assim, os alunos de “ontem” e professores de hoje, “ponen en práctica diversos

saberes adquiridos en sus trayectorias personales. (ROCKWELL, 1997, p. 32)

As escolas na Terra Indígena Bakairi englobam o Ensino Fundamental e Médio. Há

professores como YAWÂRU que se dividem nas classes de alfabetização e Ensino Médio.

Os professores entrevistados são unânimes de que o material elaborado na língua

Bakairi é importante, mas o que se constatou é que nem todos os professores tem acesso,

como no caso da professora SARÔ:

P – Você usa a cartilha na língua indígena?

S – Eu gostaria de usar, mas lá na aldeia não tem.

P – O YAWÂRU tem um material que eles fizeram…

S – Naquela época tinha mesmo, mas quando comecei a ensinar não tinha

mais. Tem mesmo um que tem nome dos bichos, história de canoa, rio tudo

na língua, mas eu não tenho este material.

P – Se você tivesse?

S – Eu usaria. (SARÔ, 07 jun/2014)

A distância da escola em que a professora SARÔ atua pode ser um agravante, mas não

podemos nos esquecer que há questões de parentesco e territorialidade como explica Taukane:

Cada grupo local domina um território específico, em regra delimitado por

rios e riachos. […] Os recursos nele contidos são por direito, dos membros

que o compõem. Para que os demais tenham acesso a eles, faz-se necessário

o estabelecimento de acordos, implicando em um sistema de trocas grupais.

[…] A existência de um território depende da carreira de um líder que o cria

e de sua capacidade para mantê-lo. […] Um indivíduo ou família é

identificada como pertencente ao local em que vive, havendo, portanto, uma

relação entre identidade e territorialidade. (TAUKANE, 1999, p. 48-51)

Para Mindlin (2003, p. 148), professores indígenas como SARÔ “têm que combinar

dois universos distintos, […] duas ou mais formas de pensar e viver […]”.

5.3 Estratégias didáticas e pedagógicas

Na carta de apresentação dos Parâmetros Curriculares Nacionais referentes às quatro

primeiras séries do Ensino Fundamental, direcionada ao professor, lemos:

Nosso objetivo é auxiliá-lo na execução de seu trabalho, compartilhando seu

esforço diário de fazer com que as crianças dominem os conhecimentos de

que necessitam para crescerem como cidadãos plenamente reconhecidos e

conscientes de seu papel em nossa sociedade. (BRASIL, 1997, p. 2)

128

O Ensino Fundamental é “um direito público subjetivo de cada um e como dever do

Estado e da família na sua oferta a todos” (BRASIL, 2010c). Assim sendo, engloba também

as populações indígenas e de acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a

Educação Escolar Indígena (DCNEI), tal ensino, uma vez atrelado à “ação educativa da

família e da comunidade”, deve propiciar a “formação para a cidadania plena” (BRASIL,

2012, p. 14). Para tanto, a Resolução nº 5 acrescenta: “pelo reconhecimento de diferentes

concepções pedagógicas” e “exclusividade do atendimento a comunidades indígenas por parte

de professores indígenas oriundos da respectiva comunidade”. (BRASIL, 2012, p. 3)

É por meio dos professores, da etnia Bakairi e de seus falares, saberes e fazeres, que

busca conhecer mais da sua contribuição e participação no processo ensino aprendizagem

daquele grupo.

O Manual do Professor, da Coleção Girassol – Saberes e Fazeres do Campo, e assim

denominado pelo Guia do PNLD Campo (2013, p. 30), anexo ao volume do aluno, oferece

aos professores uma ajuda a atividades específicas e junto às atividades traz em diversas

oportunidades, comentários e sugestões didáticas.

Para o professor YAWÂRU, o manual tem seu papel:

Tem parte que é bom, né? Mas tem parte que não tem quase nada para

aproveitar. De vez enquanto eu faço adaptação também, né? Eu tenho que ler

antes. Aí já chego lá [aula] sabendo, para não ficar lendo. Ai, baseado

naquilo, a gente desenvolve a atividade do livro, né? (YAWÂRU, Entrevista

06 jun/2014)

É importante lembrar que esse professor atua em uma turma uni docente, composta de

crianças de vários níveis de aprendizado, algumas articulam bem a língua Bakairi e

portuguesa, enquanto outras estão tendo os primeiros contatos com o português. Ao

reconhecer a importância de “ler antes” e ir “sabendo”, e ter liberdade para “baseado

naquilo”, criar e “desenvolver”, se aproxima do pensamento de Freire, (1982) “como seres

“abertos”, são capazes de realizar a complexa operação de, simultaneamente, transformando o

mundo através de sua ação, captar a realidade e expressá-la por meio de sua linguagem

criadora”.

Como YAWÂRU, a professora SARÔ observa as orientações do manual “Algumas

eu sigo, elas são boas, eu gosto”. (SARÔ, 07 jun/2014)

A facilidade percebida na fala dessa professora nos leva a inferir que reconhece as

orientações como facilitadoras para o desenvolvimento de sua aula.

129

De acordo com Rockwell, “Maestros y alunos construyen interpretaciones cruzadas

por convenciones escolares y saberes cotidianos que rinden el texto más, o menos, accesible”.

(2001, p. 13)

O professor MENXU, no entanto, ao ser interpelado sobre o Manual do Professor,

assim se manifesta: “Tem, eu uso, tem hora que ajuda, tem hora que não ajuda. É assim em

português porque… ele não tem interpretação do texto, ele é bem direto […] não tem

sinônimos”. (MENXU, 06 jun/2014)

Percebe-se que para ambos o uso do Manual não acrescenta muito ao seu fazer

pedagógico. Infere-se que não é um texto de fácil compreensão. Vale lembrar que o Manual

como o LDA é em Língua Portuguesa, aspecto que é um complicador para alunos e

professores indígenas.

Fator esse contemplado nas DCNEI na Educação Básica, seção I, Dos currículos da

Educação Indígena, Art. 15, § 5º que asseveram “Os currículos devem ser ancorados em

materiais específicos, escritos na língua portuguesa, nas línguas indígenas e bilíngues […]”

(grifo nosso). A obrigatoriedade do material específico e diferenciado na valorização

inclusive linguística está longe de ser observada no LDA analisado.

Dessa forma o professor fica limitado, na sua contribuição e construção do fazer

pedagógico no seu contexto escolar indígena conforme se lê nas DCNEI , Art.19, §1º:

Os professores indígenas, no cenário político e pedagógico, são importantes

interlocutores nos processos de construção do diálogo intercultural,

mediando e articulando os interesses de suas comunidades com os da

sociedade em geral e com os de outros grupos particulares, promovendo a

sistematização e organização de novos saberes e práticas. (BRASIL, 2012c,

p. 10)

Uma vez que o material didático, aqui focado no Manual do Professor, destinado a

proporcionar ao professor orientações pedagógicas facilitadoras, não supre tal proposta, passa

a ser, portanto, não facilitador, mas complicador, para que este “importante interlocutor nos

processos de construção do diálogo intercultural”, o professor, possa desenvolver sua função.

5.3.1 Fazeres pedagógicos

Para Rockwell (1991, p.40) “En las classes,[…] la relación maestro-alumnos, se

construye de manera especial la relación com la lengua escrita”. Desta forma, o

130

relacionamento dos anos iniciais que os professores tiveram, fazem parte da “construção” do

saber desses e o modo de transmissão aos alunos hoje.

Segundo a autora, a relação social que se compõe com a língua escrita é essencial para

apreensão do texto em contextos específicos.

Os professores entrevistados iniciaram seus estudos na comunidade Bakairi. Os

contatos iniciais com o Livro Didático de Alfabetização (LDA), foi por meio de seus

primeiros professores:

Quando eu comecei, antes… teve o livro didático, mas só que não era igual

como hoje, faltava, os alunos sentavam em duplas […] (MENXU, 06

jun/2014))

Primeiro a professora explicava o texto, depois ela dava atividade. Eu me

adaptava, eu escrevia a pergunta e respondia aquela pergunta.

(KALAMIGARE, 07 jun/2014)

Interessante observar que, para MENXU, o fato do livro ser lido em duplas foi

marcante. Hoje professor, ele destaca a diferença.

Admitir a escola como organismo social implica apreender que seus sujeitos se

relacionam com elementos da cultura escolar, de forma peculiar e contestatória.

A professora SARÔ tem quase vinte anos de experiência como professora e, quando

interpelada se encontrava dificuldades como alfabetizadora, ela desabafa:

Algumas, porque ensinar a criança do multisseriado até quinta série é muito

complicado. A gente dá atenção para um ao outro está pedindo ajuda. 19

alunos para uma classe multisseriada é muito aluno, uma dificuldade é esta.

(SARÔ, 07 jun/2014)

A aldeia em que a professora SARÔ leciona é uma das mais distantes, se tomarmos

como base a Aldeia Central, a Pakwera. O contato não é tão frequente e a dificuldade de

locomoção e transporte compromete qualquer necessidade que se possa ter, inclusive na

escola. Tal distanciamento pode explicar porque ela tem apenas o magistério. Ela sente

necessidade de estudar mais, mas os complicadores: distância recursos, transporte, não o

permitiram até o momento.

Diante da dificuldade de melhor formação e a problemática de uma sala de aula com

“superlotação” se acrescenta a perspectiva cultural que Maher (2006) nos apresenta:

Nas sociedades indígenas, o ensinar e o aprender são ações mescladas,

incorporadas à rotina do dia a dia, ao trabalho e ao lazer e não estão restritas

a nenhum espaço específico. A escola é todo o espaço físico da comunidade.

131

Ensina-se a pescar no rio, evidentemente. Ensina-se a plantar no roçado.

Para aprender, para ensinar, qualquer lugar é lugar, qualquer hora é hora...

(MAHER, 2006, p. 17)

Percebe-se no cotidiano de SARÔ, com sua sala de aula com dezenove (19) alunos em

uma turma uni docente, o anseio de transmitir o ensino, num contexto em que se entende que

essa transmissão não pode ser feita em quatro paredes. Para as sociedades indígenas, aprende-

se todo tempo em todo espaço, “qualquer hora é hora”. SARÔ luta contra essa ideia na

comunidade e, porque não dizer, consigo mesma.

Todos estes fatores, no entanto, não impedem que SARÔ seja reconhecida pela

coordenação pedagógica regional como uma boa professora, dedicada e comprometida com

seu trabalho.

Outro aspecto demonstrado nas entrevistas relacionado às práticas pedagógicas

envolvendo o LDA é evidenciado em atividades pelos alunos:

Y - às vezes eu escrevo no quadro, às vezes escrevem direto no caderno

também, nome de animais, objetos, essas coisas.

P – Eles têm o livro, eles trazem de casa?

Y - Trazem de casa, completam e fazem no livro. (YAWÂRU, 06 jun/2014)

Percebe-se nesse contexto a dinâmica de que os LDA “assumem múltiplas funções”

pedagógicas, Choppin (2004, p. 552-553), tais como “suporte de conteúdos educativos”,

bem como, propor exercícios ou atividades e ser um “instrumento privilegiado de construção

de identidade” e como função documental acredita-se que o livro didático pode fornecer, sem

que sua leitura seja dirigida, um conjunto de documentos textuais ou icônicos, cuja

observação ou confrontação podem vir a desenvolver o espírito crítico do aluno.

Para Chartier (2001, p. 79): “Os mesmos textos e livros são objetos de múltiplas

decifrações, socialmente contrastante […]”. É o que se observa na leitura dirigida do

professor MENXU:

M - Primeiramente os alunos começam a fazer leitura do livro, e eu posso

criar de acordo com a forma que está escrito ali, aumentando as atividades

para os alunos.

[…] Porque tem poucas atividades. Porque o aluno quer aprender mais. Às

vezes tem leitura do livro, às vezes não, eu pego outros materiais

distribuídos pelo MEC, tem vários materiais para leitura. (MENXU, 06

jun/2014)

132

Mesmo o Livro Didático de Alfabetização em uso sendo todo em língua portuguesa, o

professor MENXU faz desse objeto de ensino não só um instrumento que lhe possibilite criar

outras atividades, mas o incorpora a outros que lhe possibilitem desenvolver melhor a sua

proposta de aula.

Tal postura se associa a Reiris (2005) que destaca como uma das funções explícitas

dos “libros de texto” a de servir de apoio ao professor no seu planejamento, desenvolvimento

e avaliação curricular. Para essa autora, em sua pesquisa em países da América Latina e

Espanha, sobre a importância do Livro Didático (libro de texto), este apoio se concretiza por

ser, por um lado, um “compendio graduado y organizado de los contenidos a enseñar” e por

outro um “Guia para la propuesta de atividades de início, desarrollo y evaluación” (REIRIS,

2005, p. 342). O que também se percebe claramente definição de LDA da professora SARÔ:

É um livro de apoio, um livro de referência que você pega e vai lendo pra ter

uma base de como pode trabalhar aquele texto, não só pelo que está escrito,

pelas figurinhas, você tem ideia de como pode fazer sua aula. Pra mim é um

livro muito importante. (SARÔ, 07 jun/2014)

Dessa forma, tais funções se aproximam do que Choppin nomina de Referencial, no

que se refere aos conteúdos “necessários transmitir às novas gerações”, e Instrumental,

quando “propõe exercícios e atividades”. (CHOPPIN, 2004, p. 553)

Percebe-se que os professores YAWÂRU e MENXU entendem o LDA desta forma ao

utilizá-lo regularmente:

O professor YAWÂRU:

Eu não uso direto o livro, às vezes eu vario, alguma coisa da realidade da

aldeia mesmo,

Tem outro, mas só que do anterior, né? Não tinha aquele outro, […], tem

aquela amarela com espiral branca, aquela ali que de vez em quando eu pego

também anterior porque tem uns que dá prá trabalhar também.

A gente usa pelo menos três vezes, às vezes quatro vezes por semana;

(YAWÂRU, 06 jun/2014)

O professor MENXU:

P - Se pensar que tem cinco dias de aula na semana. Quantos dias você usa o

livro na semana?

M - Segunda, quarta e sexta.

P - Você diz que usa o LD três vezes por semana, porque você usa?

M - Pra fazer o plano de aula, é encaminhado pelo MEC, é para ser usado,

mas é pra usar a criatividade também. Não vamos ficar só com aquilo que

está no livro. (MENXU, 06 jun/2014)

133

Entender a importância do plano de aula, elaborado no diário de classe, é um dos

desafios lançados pelos Referenciais Curriculares Nacionais para as Escolas Indígenas

(RCNEI), cuja função é formativa e não normativa, aos professores indígenas, (1998, carta de

apresentação ao professor, p. 2). Este documento nomeia o diário de classe como “um

instrumento para a prática reflexiva do professor”. Não fica claro ser essa compreensão que o

professor MENXU tem sobre o diário. Ele menciona “plano de aula”, no entanto busca ser

criativo e não preso a um só material, planeja a sua aula.

A professora KALAMIGARE, por sua vez, faz uso do LDA, “todos os dias, um

pouquinho. Todos os dias”. Vale lembrar que essa professora é a que tem menor tempo de

atuação docente. A experiência em sala de aula permite ter mais facilidade no uso simultâneo

de outros materiais, como aponta Rockwell (1991, p. 33):

En la práctica docente se encuentram siempre recursos de diversas

tradiciones docentes, construídos historicamente, apropriados por los

maestros en el transcurso de sus vidas, articulados cotidianamente en la

relación com el grupo […] Esos recursos incluyen formas de hablar, de

interrogar y de usar los elementos que se tienen a la mano, entre ellos los

libros de texto.

Os anos de experiência construídos no cotidiano escolar permitem ao professor fazer

usos de recursos materiais ou atitudinais, tais como o livro didático e outros materiais

complementares bem como no seu relacionar com os alunos.

É nesse cotidiano escolar e na dinâmica da aula que questões surgem, como atesta o

professor YAWÂRU: “A gente faz assim, coordenação motora que a gente fala, não é? Fazia

aquilo ali [mostra caligrafia no livro] só que mais fácil. Eles não faziam, de repente […] ela

vem e já sabe escrever”. (YAWÂRU, 06 jun/2014)

O professor YAWÂRU se depara com os alunos “se apropriando de um novo objeto

de conhecimento, ou seja, em uma aprendizagem conceitual”. Depois de alguns estágios

construtivos, “a escrita infantil segue uma linha de evolução […] através de diversos meios

culturais, de diversas situações educativas e de diversas línguas”. (FERREIRO, 1985, p.9)

O contexto desta pesquisa tem no mínimo duas línguas envolvidas, Bakairi e

Português, podendo ter outras etnias como Xavante e Bororo que também se encontram

residindo entre os Bakairi. Dessa forma, são pelo menos dois contextos linguísticos

envolvidos, enquanto que num contexto africano, por exemplo, é comum pessoas que falam

várias línguas. Para Maher (2006), linguista e pesquisadora da temática indígena “as

pesquisas demonstram que nós subtilizamos, e muito, nossa capacidade de aprender línguas”

134

(MAHER, 2006, p. 32). Entretanto, a fase inicial da alfabetização se revela delicada e requer

um grande esforço intelectual da criança.

Outro questionamento que surge na prática pedagógica do professor YAWÂRU:

Aí eu fiquei em dúvida também, não sei se está certo o processo, porque eu

faço mais letra de fôrma, que se fala não é? Quando eu faço cursiva,

reclama. Às vezes nem conhece a letra, […] do terceiro ano em diante já

está prático já. Devagarinho eu já vou mudando desta letra para a outra letra.

(YAWÂRU, 06 jun/2014)

De acordo com Ferreiro (1985) esta é uma das principais dificuldades que

profissionais do ensino das primeiras séries têm, porque “[…] se apoia em uma visão do

processo de aprendizagem segundo a qual a cópia e a repetição dos modelos apresentados são

os procedimentos principais para se obter bons resultados”. (FERREIRO, 1985, p. 15)

A autora menciona tais dificuldades verificadas em pesquisas no México, Barcelona,

Suíça entre outros locais. Problemática que se acentua no contexto multilinguístico. A

construção do conhecimento para o professor YAWÂRU perpassa pelo cenário não só

linguístico, como escolar, numa turma uni docente, em que os alunos novos tendem a

simplesmente copiar e repetir os modelos apresentados aos outros. E percebe-se aqui outro

agravante, como bem expressa Maher (2006, p. 25):

Além disso, enquanto um professor não-índio tem, à sua disposição (em

livrarias, em bibliotecas, em jornais, na Internet) toda uma variedade de

materiais e recursos para servir de suporte pedagógico, um professor

indígena não tem muito em que se apoiar para desenvolver seu trabalho: a

maior parte dos materiais que lhe poderiam ser úteis ainda estão “por-fazer”.

O LDA em questão, ao descrever a seção Traçando letras, dá uma breve informação:

Esta seção propõe caligrafia e treino da letra cursiva no 2º e no 3º ano. No 1º ano, optou-se por iniciar

o trabalho apresentando e utilizando a letra de imprensa maiúscula, por ter um traçado mais fácil e um

“desenho” mais evidente. (CARPENEDA; BRAGANÇA, 2012a, b, c, Anexo, p. 23)

Se essa orientação fosse retomada na apresentação do alfabeto (v.1, p.11, at.1,2), o

professor poderia superar essa dificuldade. Ao apresentar as letras, a orientação é para que

elas sejam expostas na sala de aula nas quatro formas – maiúsculo e minúsculo, em letra de

forma e em letra cursiva – o que pode ter aumentado essa dúvida.

O professor YAWÂRU, no seu fazer pedagógico, todavia externaliza o que pode não

ser uma dificuldade, mas sim o que Ferreiro (1985, p. 9) reconhece como “[…] ‘Saber’ quer

dizer ter construído alguma concepção que explica certo conjunto de fenômenos ou de objetos

135

da realidade. Que esse “saber” coincida com o “saber” socialmente válido é um outro

problema […].” (FERREIRO,1985, p. 9). Saberes que constituem cada ser, cada povo. Assim,

os Referenciais Curriculares Nacionais para as Escolas Indígenas (1998, p. 288), dando

continuidade às orientações pedagógicas quanto aos temas transversais, abordam o tema Arte,

apresentando esse saber como constitutivo dos povos desde os primórdios da civilização.

Depois de considerar que “as produções artísticas se constroem a partir de valores, regras,

[…] e concepções estéticas distintas em cada povo” se detém na “arte nas sociedades

indígenas”:

Além de outras funções, as produções artísticas dos povos indígenas são

meio de comunicação de aspectos da cultura, da vida social e da visão do

mundo por intermédio dos objetos, das danças, da pintura corporal e dos

cantos, [...] (BRASIL, 1998, p. 288).

A comunicação e o compartilhar cultural se dão, inclusive, por meio das

representações artísticas. A particularidade de um povo pode ser observada em seus utensílios

por eles produzidos. Tal produção é enfatizada “[…] nas sociedades indígenas a maioria das

pessoas pratica algum tipo de arte. Esse saber faz parte da formação de uma pessoa adulta

respeitada em sua comunidade”. (Idem, p. 290)

Assim sendo, pode-se entender a disposição do professor YAWÂRU com relação às

letras das músicas do LDA:

Y – [mostra o livro] Aqui tem música…

P- Tem o CD, vocês usam?

Y - Ninguém sabe para onde foi, nem as crianças sabem.

P - Como você usa [as letras das músicas]?

Y - Tem uns que eles já conhecem. Tem uns que aprendi aqui no curso, e eu

ensino eles. Tem música que eu não conheço e eles conhecem, eles cantam e

eu aprendo também. (YAWÂRU, 06 jun/2014)

O Manual do Professor não faz qualquer menção a um CD de músicas que acompanhe

os volumes da Coleção. No entanto, por serem cantigas de roda, é possível que tenham tido

outro material, fato que causou a confusão do professor.

O professor MENXU é pronto a aprender, pois se posiciona como aprendiz na difícil

tarefa de alfabetizar:

P - Você tem dificuldades como alfabetizador?

M - As vezes tenho um pouco de dificuldade, né? Mas só que essa

dificuldade fica melhor para mim. Também é um desafio que nós temos, né?

136

Como professor a gente aprende com as crianças, elas têm dificuldades

muito grandes. (MENXU, 06 jun/2014)

O importante é observar a postura desses professores, em aprender como nos dizeres

de Freire (2001):

[…] ensinar e aprender se vão dando de tal maneira que quem ensina

aprende, de um lado, porque reconhece um conhecimento antes aprendido e,

[…]. O aprendizado do ensinante ao ensinar se verifica à medida em que o

ensinante, humilde, aberto, se ache permanentemente disponível a repensar o

pensado, rever-se em suas posições; em que procura envolver-se com a

curiosidade dos alunos e dos diferentes caminhos e veredas, que ela os faz

percorrer. (FREIRE, 2001, p. 259)

De acordo com Freire o professor de “ensinante”, passa a aprendiz quando “humilde,

aberto,” e pronto a reavaliar seus pensamentos “reconhece um conhecimento antes aprendido”

consolida-se em um novo aprendizado e um novo ensino.

5.4 Temática do Campo e Temática Indígena

Como parte integrante das populações do campo, descritas no Inciso I do parágrafo 1

do Decreto 7.352/2010, em itálico, conforme o Guia de Livros Didáticos, Educação do

Campo 2013, os povos indígenas e suas unidades escolares passam a escolher e receber os

livros especificamente voltados à escola do campo.

O contexto populações do campo se diversifica em uma interação de culturas:

ribeirinhos, quilombolas, indígenas entre outros, uma relação dialógica, por excelência,

presente na relação educativa, na alfabetização no letramento e na Educação na perspectiva da

interculturalidade.

Acreditamos que não há como ter interação cultural dissociada de conhecimento das

línguas envolvidas no cenário multicultural. A relevância de um fazer pedagógico

contextualizado linguística e culturalmente vai permitir que os sujeitos do processo de ensino

e aprendizagem se construam sujeitos integrados e atuantes em um ambiente de diversidade

cultural e distinto das línguas em foco.

De acordo com a Resolução n.1, para a Escola do Campo, no seu Art. 2º, parágrafo

único:

A identidade da escola do campo é definida pela sua vinculação às questões

inerentes à sua realidade, ancorando-se na temporalidade e saberes próprios

dos estudantes, na memória coletiva que sinaliza futuros, na rede de ciência

137

e tecnologia disponível na sociedade e nos movimentos sociais em defesa de

projetos que associem as soluções exigidas por essas questões à qualidade

social da vida coletiva no país. (BRASIL, 2002a, p. 1)

Para tanto, esse documento também destaca, no Art. 5º, que as “propostas pedagógicas

das escolas do campo, […] contemplarão a diversidade do campo em todos os seus aspectos:

sociais, culturais, políticos, econômicos, de gênero, geração e etnia”. (BRASIL, 2002a, p. 1,

grifo nosso)

Uma vez que o LDA “tornou-se, sobretudo, um dos principais fatores que influenciam

o trabalho pedagógico” (BATISTA, 2014, p. 28), é importante saber a opinião dos professores

com relação a esse material. Para Rojo, (2014, p.83), pode ser o “único material de leitura

disponível nas casas destes alunos”, muito mais se considerarmos o cenário multilinguístico,

que é o contexto escolar indígena, uma vez que se “trabalha” com pelo menos duas línguas.

Eu gosto de usar livro, mas tem vezes que nem uso também. Estes livros tem

diferença sim, porque livro que eu achei mais legal esse que a gente tá

recebendo hoje, porque livro que vinha antes, eu não entendia não, era muito

complicado para ensinar, o próprio para gente ensinar na língua, aí ele não

dava conta de desenvolver, mas esse aqui, eu achei legal esse aqui [está com

o livro volume 1 nas mãos]. (YAWÂRU, 06 jun/2014)

Infere-se que houve, na opinião desse professor, uma evolução entre o último livro

distribuído e o atual. O anterior “era muito complicado [...] não dava conta de desenvolver”.

O que parece não acontecer com o que tem em mãos.

Enquanto que para MENXU o LDA é “Um livro produzido pelo MEC para ensinar os

alunos primeiro na alfabetização, e nele está escrito tudo em português”. (MENXU, 06

jun/2014)

No entanto, mesmo que o atual LDA é aceito e usado no cotidiano escolar, há nos

professores um ideal de um “bom livro”. Para o professor MENXU um bom livro “Tem que

ser um livro cheio de história, tem que ser atualizado, de vez em quando o livro fala não como

os alunos aprendem, tem que ser da realidade. Como que é hoje, como vai ser amanhã”.

(MENXU, 06 jun/2014).

Para a professora SARÔ “Tem que ser igual este aqui [segurando um exemplar do

livro foco de nossa pesquisa] só ter mais coisas do cotidiano indígena”. (SARÔ, 07 jun/2014)

O ideal, ou um “bom livro”, vai além das aparências, observa-se que precisa ter mais

coisas do cotidiano indígena, mais histórias, trazer mais da realidade étnica tão viva no nosso

país e vivenciada por aqueles docentes.

138

O LDA em questão foi elaborado para a escola do campo. Entretanto, percebe-se que

não privilegia a escola não-urbana, a escola indígena, com sua especificidade, como já

exposto na análise documental. Por outro lado, os professores o adaptam para o contexto em

que estão inseridos e metade dos sujeitos o apontou como bom para ensinar.

O professor MENXU revela que faz uso do livro para fazer o plano de aula e por ser

encaminhado pelo MEC para ser usado, mas “não vamos ficar só com o que está no livro” e

então externa a necessidade de dar uma adequação ao livro: “o livro tem história, nós temos a

nossa história” e continua:

Primeiramente tem aquilo que está no livro de história, só que os alunos não

compreendem aquilo que está escrito ali, e aí a gente tem que inverter e

contar a história do próprio povo, do rio, do morro, então eles já vão

começando a compreender, e depois perguntam para o pai, o avô deles.

(MENXU, 06 jun/2014)

O professor YAWÂRU encontra ainda outras dificuldades:

P - você usa o livro na parte da matemática ou da língua portuguesa?

Y – As duas, porque a gente tem que seguir o horário que eles mandam, né?

Por exemplo, de segunda feira eu tenho duas aulas de língua portuguesa e

duas de história. Mas só que aqui, não tem história, aí a gente tenta fazer

alguma coisa lá de acordo com a realidade… nossa mesmo. (YAWÂRU, 06

jun/2014)

Adaptações, usos inusitados. Estamos muito longe de saber o que, de fato, os

professores fazem com o LD em sala.

De acordo com as Diretrizes para a Política Nacional de Educação Escolar Indígena:

“as atividades durante o processo educativo não devem ser compartimentalizadas”. O

documento destaca ainda que “os conteúdos devem ser trabalhados de maneira global e

integrada” (BRASIL, 1993, p. 177). Percebe-se assim, no início da década de 1990 a

flexibilidade de não se compartimentar os conteúdos.

Na Resolução CEB n.3, que fixa o funcionamento das escolas indígenas, no Art. 4º

item II, cinco anos depois, lemos:

Art. 4º As escolas indígenas, […] desenvolverão suas atividades de acordo

com o proposto nos respectivos projetos pedagógicos e regimentos escolares

com as seguintes prerrogativas:

II - duração diversificada dos períodos escolares, ajustando-os às condições e

especificidades próprias de cada comunidade. (BRASIL, 1999, p. 1)

139

Os períodos escolares terão seu tempo ajustado às condições e especificidades na

organização desses períodos ao se levar em conta o tempo e modo próprio de cada

comunidade.

O professor YAWÂRU, talvez, pudesse ter um aproveitamento melhor na ministração

dos conteúdos, se esses pudessem ser trabalhados numa flexibilidade maior de tempo.

A Resolução nº5, que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação

Escolar Indígena na Educação Básica, no seu Art. 7º estabelece:

Atividades consideradas letivas podem assumir variadas formas, como séries

anuais, períodos semestrais, ciclos, alternância regular de períodos de estudo

com tempos e espaços específicos, grupos não-seriados, com base na idade,

na competência e em outros critérios, ou por forma diversa de organização,

sempre que o interesse do processo de aprendizagem assim o recomendar.

(BRASIL, 2012a, p. 4)

O que se percebe é uma evolução de posturas até os dias de hoje, que no entanto, “a

construção do exercício da diferença, da pluralidade, e a estes essa nova política de educação

indígena não foi ainda capaz de dar vazão” (GRUPIONI, 2008, p. 63).

É sabido que cada povo tem sua maneira de aprender (ROCKWELL, 1997, p. 30). Os

A’uwê17

“nos ensinam é que se aprende vivendo, experimentando e que o corpo, suas

sensações e seus movimentos são instrumentos importantes do aprendizado” (LOPES DA

SILVA, 2002, p. 42).

Para os Xikrin, do sudeste do Pará, “a correspondência entre ver e ouvir é forte […]:

os órgãos do aprendizado são os olhos (no) e o ouvido (mak), e […] que precisam ser

desenvolvidos para a aquisição da capacidade de aprender”. (COHN, 2002, p. 142).

Taukane assim se expressa sobre seu povo, os Kurâ-Bakairi:

As crianças são corrigidas na medida em que erram, desobedecem. Quando o

seu erro é grave, geralmente passa-se o pay-hó, o escarificador com o qual se

sarja a pele, que recebe posteriormente infusões de plantas medicinais que

favoreçam a sua saúde e crescimento físico. Mas não se violenta a criança e

jamais se pensa em explorá-la. Educa-se para que ela possa viver em

sociedade. Nossas crianças não tem tempo para frustração, para ociosidade,

para solidão, muito menos têm hábitos das crianças karaíwa, tais como:

chupar o dedo, roer unhas, enfiar o dedo no nariz, ter inapetência. Não se

registra, igualmente, dificuldade de relacionamento entre pais e filhos

púberes. (TAUKANE, 1999, p. 78-79)

17

Integrantes dos povos Xavante e Xerente, povos indígenas Jê.

140

Por meio desses relatos sobre os A’uwê, os Xikrin, os Kurâ-Bakairi nota-se a

peculiaridade de cada povo em adquirir aprendizado. Um aspecto que se observa comum a

todos é a corporalidade. Observamos que o professor MENXU traça um paralelo entre o

aprendizado da criança indígena e não indígena da sua língua materna:

[…] como educamos nossa criança em casa, pai e mãe conversa só na língua

materna, não na língua portuguesa, da mesma forma o não indígena,

conversa com pai e mãe na língua portuguesa. [a criança indígena] vai

aprender na sua segunda casa, a sala de aula, começa a falar o português,

começa a falar o nome das figuras, começa a compreender os nomes [das

figuras]. (MENXU, 06 jun/2014)

Para os Referenciais para a Formação de Professores Indígenas, as escolas indígenas

“revestem-se, como projeto social, de uma dimensão coletiva” e seus professores têm:

[…] o complexo papel de compreender e transitar nas relações entre a

sociedade majoritária e sua sociedade. São interlocutores privilegiados

“entre dois mundos”, ou entre duas culturas, tendo de acessar e compreender

conceitos, ideias, categorias que não são apenas de sua própria formação

cultural. (BRASIL, 2002b, p. 21)

MENXU, como professor interlocutor, busca ser o elo de aproximação desses dois

mundos. Dessa forma, permite que suas práticas pedagógicas se aproximem da Educação na

perspectiva da interculturalidade.

Para Candau, uma das possibilidades de se chegar a práticas pedagógicas “que

assumam a perspectiva intercultural” é reconhecê-las “como processos de negociação

cultural”, que possibilitem “favorecer experiências […] de ampliação de horizonte cultural

dos alunos e alunas, aproveitando os recursos disponíveis na comunidade escolar e na

sociedade”. (CANDAU, 2013, p. 32-35)

O destaque para a análise apresentada nesse tópico foi que os professores utilizam-se

do LDA no fazer pedagógico cotidiano e metade dos sujeitos o aponta como bom para o

ensino.

141

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho teve sua investigação orientada pela seguinte questão de pesquisa:

Como se apresenta o Livro Didático de Alfabetização (LDA), os três primeiros volumes da

Coleção Girassol – Saberes e Fazeres do Campo, e quais suas implicações no processo de

letramento e alfabetização em contexto indígena, entendido como cenário multilinguístico e

cultural?

Após longo percurso de estudo, a proposta para esse capítulo é um diálogo entre essa

questão de pesquisa, as categorias da análise interpretativa e os fundamentos da Educação

Escolar Indígena.

Vale ressaltar que tais fundamentos - “princípios de igualdade social, da diferença, da

especificidade, do bilinguismo e da interculturalidade” -, foram assim definidos pelas

Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena para a Educação Básica

como “fundamentos da Educação Escolar Indígena”. (BRASIL, 2012, Art.1 § único)

A análise foi realizada em três volumes da Coleção Girassol – Saberes e Fazeres do

Campo propostos para a educação do campo, a partir das seguintes categorias: Texto e

Imagem: confronto e proximidades nos documentos analisados; Interculturalidade e

Bilinguismo: uma visão documental; Estratégias Didáticas e Pedagógicas nos documentos e

Temática do Campo e Temática Indígena nos documentos: uma realidade questionável.

Estamos conscientes de que a abordagem descrita neste trabalho permitiu identificar

nos volumes do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) Campo 2013 analisados que,

os LD são inscritos pelas editoras para a avaliação do Programa e que das dezesseis coleções

inscritas apenas duas foram aprovadas. O MEC/FNDE não encomenda os LD às editoras e o

editorial não foi restrito a questão indígena, no entanto foi específico ao Campo, e escolas não

urbanas, espaço em que estão inseridas a maioria das escolas indígenas. Dessa forma, mesmo

tendo sido apresentados como aprovados para a educação do campo, os aspectos para uma

educação intercultural poderiam ter maior destaque.

Os resultados evidenciam que, em relação à categoria 1 - Texto e Imagem: confronto e

proximidades nos documentos analisados – nota-se que a Coleção Girassol não contempla de

modo significativo a temática indígena, haja vista que apresenta-se em português, uma vez

que se destina a falantes desta língua, crianças das escolas do campo e portanto, distancia-se

do processo de alfabetização intercultural, pois, para que seja utilizado na aldeia, necessita de

todo um processo de tradução realizado pelos professores(as) que possibilite às crianças uma

142

construção de sentido e neste aspecto a imagem por si só não ajuda; quando em um ambiente

como esse as crianças transitam pelas duas línguas, o aproveitamento pedagógico é outro.

Percebeu-se também que no volume 2 a única oportunidade de se observar uma imagem deste

seguimento da população do campo, os indígenas, é na capa. A omissão de imagem exclui a

oportunidade de interação do excluído, quer presente ou não, com os demais interlocutores.

Há uma considerável variedade de gêneros textuais em que são trabalhados temas abrangentes

e associados que destacam as características do campo e sua diversidade. No entanto tal

diversidade, não contempla a especificidade dos povos indígenas.

São evidentes, na categoria - Interculturalidade e Bilinguismo nos documentos, os seus

resultados de distanciamento quanto à diversidade e especificidade indígena e valorização de

aspectos como, espaços e identidades socioterritoriais; práticas culturais; organizações sociais

como define a LDB e DCNEI entre outros.

Na categoria - Estratégias Didáticas e pedagógicas os aspectos observados foram na

sua maioria de distanciamento quanto às determinações das DCNEI, tendo em conta que as

Orientações ao Educador não privilegiam o contexto indígena e na bibliografia sugerida aos

educadores, pois não há sequer uma indicação sobre aspectos étnicos-raciais ou indígenas. Tal

restrição observa-se ainda nas orientações dos conteúdos a serem trabalhados que não

oportunizam um maior conhecimento sobre esses outros brasileiros do campo, os índios.

A quarta categoria – Temática do Campo e Temática Indígena nos documentos: uma

realidade questionável –, apresenta resultados que não diferem dos resultados das categorias

anteriores, isso é, distancia-se da temática indígena, uma vez que não privilegia aspectos

culturais, territoriais, como ao tratar dos direitos da criança em que as imagens não retratam

crianças negras ou indígenas. O destaque fica para o texto de Daniel Munduruku, uma

excelente oportunidade para abordar as diferenças entre os povos existentes no nosso país,

suas características linguísticas (nome com K) e particulares como a organização das aldeias.

Entretanto, as orientações de auxílio professor nas atividades do Livro do 1º ano, não

ampliam as sugestões sobre o tema. Novamente, essa lacuna quanto aos sujeitos indígenas,

conforme citado, evidencia o distanciamento não só das Diretrizes, como dos Fundamentos

para a Educação Indígena. Quanto a temática do campo, já estaria comprometida por não

abordar os campesinos indígenas, no entanto as atividades focam na sua maioria aspectos do

campo sem que haja a interação com a cidade.

Dessa feita os resultados dessas categorias se distanciaram da especificidade indígena

e dos fundamentos da Educação Escolar Indígena. Ora específicos, ora entrelaçados o

143

distanciamento do reconhecimento à igualdade social, da diferença, da especificidade, do

bilinguismo e da interculturalidade foram assim observados.

A análise das entrevistas, por sua vez, permitiu perceber que apesar de ser um contexto

bilíngue e o Livro Didático aprovado pelo PNLD Campo 2013 ser todo em língua portuguesa

e dessa forma distanciar-se da alfabetização intercultural o Livro Didático de Alfabetização

(LDA) utilizado exerce múltiplas funções no contexto escolar indígena. Os professores

entrevistados dizem utilizá-lo como material de apoio no cotidiano escolar e dessa forma

possibilitam aos alunos e a si mesmos, como sujeitos do fazer pedagógico, uma experiência

de proximidade com o LD que permite uma maior apropriação dos textos apresentados

mesmo sendo um cenário em que tanto os professores quanto as crianças circulam entre duas

línguas e o aproveitamento pedagógico questionável. Os professores foram unânimes em

afirmar que cada aluno tem seu livro, que os levam para casa e os trazem a cada dia de aula.

Sendo assim, o desafio da interculturalidade se faz presente no incentivo à produção cultural,

no compartilhamento do Livro Didático de Alfabetização no contexto escolar e familiar. O

papel mediador do Livro Didático é possível pela proximidade do aluno com o objeto livro,

bem como por sua leitura visual das palavras e de tudo mais que o compõe (HAGG, 2009).

Entender o contexto escolar como um espaço de produção cultural é um dos desafios

da educação intercultural. Portanto, cabe aos professores “favorecer experiências de produção

cultural” e alargar a perspectiva cultural dos alunos, se valendo dos “recursos disponíveis” no

contexto escolar e na comunidade (CANDAU, 2013, p. 35). O professor, ao permitir ao aluno

compartilhar “em casa” tanto quanto “na escola” os conteúdos e atividades do LDA, estão

favorecendo a produção daquele aluno e ampliando sua visão cultural.

Percebe-se também que as experiências vividas nos anos iniciais de escolarização

pelos professores lhes permitem participar na construção do saber de seus alunos hoje. Assim,

o fato de ter sido produzido em Língua Portuguesa não impede o LDA que se torne um

instrumento “polivalente” neste cenário “multi”, no processo de alfabetização e letramento.

O Estudo documental das Diretrizes (DCNEI), contudo, reforça ainda mais o

distanciamento dos princípios de fundamentam a Educação Escolar Indígena.

Pensar nos encontros e desencontros nesse trabalho foi enriquecedor e angustiante.

Enriquecedor, pois trouxe o conhecimento de quanto já se caminhou rumo a uma educação

intercultural, bilíngue, diferenciada e específica, mesmo que se percebam as lacunas de

reconhecimento e prática junto a direitos já institucionalizados. Angustiante, pois, são quase

trinta anos da Carta Magna do país que trouxe a visibilidade para esses sujeitos da nossa

144

nação pluricultural e étnica. Mais de vinte das primeiras Diretrizes específicas para o contexto

escolar indígena e fica o reconhecimento que ainda há muito a se fazer.

Será que ao se propor um livro totalmente em português, não estamos não só

obrigando a apreensão da outra língua como também deixando claro para a nova geração de

alunos de contextos indígenas que não há reconhecimento “pleno de la diferencia de la piel

del outro” (MELIÁ, 2014) e sua língua é negada, depreciada, e nas palavras de Meliá,

inclusive maltratada?

A relevância de um fazer pedagógico contextualizado, linguística e culturalmente, vai

permitir que esses sujeitos do processo ensino-aprendizagem se construam sujeitos integrados

e atuantes na conjuntura distinta das línguas em foco.

O desafio está lançado! Desejo continuar engajada nessa luta, buscando mais

conhecimento, empenhando-me em pesquisa, acompanhando e participando das cobranças e

das conquistas que ainda hoje fazem da Escola Intercultural e do Material Didático Específico

um sonho.

Que essa pesquisa possa contribuir com aqueles que estão comprometidos a fazer a

diferença nesta luta, que é nossa, para o real protagonismo indígena, sua Escola Diferenciada

e tudo que engloba o reconhecimento e a valorização a eles negados desde a colonização.

145

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ANEXO - DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS PARA A EDUCAÇÃO

ESCOLAR INDÍGENA

DESTAQUES A SEREM OBSERVADOS NAS DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS

PARA A EDUCAÇÃO INDÍGENA

RESOLVE:

Art. 1º Esta Resolução define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação

Escolar Indígena na Educação Básica, oferecida em instituições próprias.

Parágrafo único Estas Diretrizes Curriculares Nacionais estão pautadas pelos

princípios da igualdade social, da diferença, da especificidade, do bilinguismo e da

interculturalidade, fundamentos da Educação Escolar Indígena.

DOS OBJETIVOS

Art. 2º -

III - assegurar que os princípios da especificidade, do bilingüismo e multilinguismo,

da organização comunitária e da interculturalidade fundamentem os projetos educativos das

comunidades indígenas, valorizando suas línguas e conhecimentos tradicionais;

IV - assegurar que o modelo de organização e gestão das escolas indígenas leve em

consideração as práticas socioculturais e econômicas das respectivas comunidades, bem como

suas formas de produção de conhecimento, processos próprios de ensino e de aprendizagem e

projetos societários;

VII - zelar para que o direito à educação escolar diferenciada seja garantido às

comunidades indígenas com qualidade social e pertinência pedagógica, cultural, linguística,

ambiental e territorial, respeitando as lógicas, saberes e perspectivas dos próprios povos

indígenas.

DOS PRINCÍPIOS DA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

Art 3º - Constituem objetivos da Educação Escolar Indígena proporcionar aos

indígenas, suas comunidades e povos:

I - a recuperação de suas memórias históricas; a reafirmação de suas identidades

étnicas; a valorização de suas línguas e ciências;

II - o acesso às informações, conhecimentos técnicos, científicos e culturais da

sociedade nacional e demais sociedades indígenas e não-indígenas.

Parágrafo único A Educação Escolar Indígena deve se constituir num espaço de

construção de relações interétnicas orientadas para a manutenção da pluralidade cultural, pelo

reconhecimento de diferentes concepções pedagógicas e pela afirmação dos povos indígenas

como sujeitos de direitos.

Art 4º - Constituem elementos básicos para a organização, a estrutura e o

funcionamento da escola indígena:

153

II - a importância das línguas indígenas e dos registros linguísticos específicos do

português para o ensino ministrado nas línguas maternas das comunidades indígenas, como

uma das formas de preservação da realidade sociolinguística de cada povo;

IV - a exclusividade do atendimento a comunidades indígenas por parte de professores

indígenas oriundos da respectiva

Art. 5º Na organização da escola indígena deverá ser considerada a participação de

representantes da comunidade, na definição do modelo de organização e gestão, bem como:

III - suas formas de produção de conhecimento, processos próprios e métodos de

ensino-aprendizagem;

IV - o uso de materiais didático-pedagógicos produzidos de acordo com o contexto

sociocultural de cada povo indígena;

Art. 6º Os sistemas de ensino devem assegurar às escolas indígenas estrutura adequada

às necessidades dos estudantes e das especificidades pedagógicas da educação diferenciada,

garantindo laboratórios, bibliotecas, espaços para atividades esportivas e artístico-culturais,

assim como equipamentos que garantam a oferta de uma educação escolar de qualidade

sociocultural.

DA ORGANIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

Art. 7º A organização das escolas indígenas e das atividades consideradas letivas

podem assumir variadas formas, como séries anuais, períodos semestrais, ciclos, alternância

regular de períodos de estudos com tempos e espaços específicos, grupos não-seriados, com

base na idade, na competência e em outros critérios, ou por forma diversa de organização,

sempre que o interesse do processo de aprendizagem assim o recomendar.

§ 1º Em todos os níveis e modalidades da Educação Escolar Indígena devem ser

garantidos os princípios da igualdade social, da diferença, da especificidade, do bilinguismo e

da interculturalidade, contando preferencialmente com professores e gestores das escolas

indígenas, membros da respectiva comunidade indígena.

§ 2º Os saberes e práticas indígenas devem ancorar o acesso a outros conhecimentos,

de modo a valorizar os modos próprios de conhecer, investigar e sistematizar de cada povo

indígena, valorizando a oralidade e a história indígena.

§ 4º A Educação Escolar Indígena será acompanhada pelos sistemas de ensino, por

meio da prática constante de produção e publicação de materiais didáticos diferenciados, na

língua indígena, em português e bilíngue, elaborado pelos professores indígenas em

articulação com os estudantes indígenas, para todas as áreas de conhecimento.

Art. 8º A Educação Infantil, etapa educativa e de cuidados, é um direito dos povos

indígenas que deve ser garantido e realizado com o compromisso de qualidade sociocultural e

de respeito aos preceitos da educação diferenciada e específica.

§ 3º As escolas indígenas que ofertam a Educação Infantil devem:

154

I - promover a participação das famílias e dos sábios, especialistas nos conhecimentos

tradicionais de cada comunidade, em todas as fases de implantação e desenvolvimento da

Educação Infantil;

II - definir em seus projetos político-pedagógicos em que língua ou línguas serão

desenvolvidas as atividades escolares, de forma a oportunizar o uso das línguas indígenas;

IV - elaborar materiais didáticos específicos e de apoio pedagógico para a Educação

Infantil, garantindo a incorporação de aspectos socioculturais indígenas significativos e

contextualizados para a comunidade indígena de pertencimento da criança;

Art. 9º O Ensino Fundamental, direito humano, social e público subjetivo, aliado à

ação educativa da família e da comunidade, deve se constituir em tempo e espaço de

formação para a cidadania indígena plena, articulada tanto ao direito à diferença quanto ao

direito à igualdade.

§ 2º O Ensino Fundamental deve promover o acesso aos códigos da leitura e da

escrita, aos conhecimentos ligados às ciências humanas, da natureza, matemáticas,

linguagens, bem como do desenvolvimento das capacidades individuais e coletivas

necessárias ao convívio sociocultural da pessoa indígena com sua comunidade de pertença e

com outras sociedades.

DO PROJETO POLITICO-PEDAGÓGICO DAS ESCOLAS INDÍGENAS

Art. 14 O projeto político-pedagógico, expressão da autonomia e da identidade

escolar, é uma referência importante na garantia do direito a uma educação escolar

diferenciada, devendo apresentar os princípios e objetivos da Educação Escolar Indígena de

acordo com as diretrizes curriculares instituídas nacional e localmente, bem como as

aspirações das comunidades indígenas em relação à educação escolar.

§ 1º Na Educação Escolar Indígena, os projetos político-pedagógicos devem estar

intrinsecamente relacionados com os modos de bem viver dos grupos étnicos em seus

territórios, devendo estar alicerçados nos princípios da interculturalidade, bilingüismo e

multilinguismo, especificidade, organização comunitária e territorialidade.

Dos currículos da Educação Escolar Indígena

Art. 15 O currículo das escolas indígenas, ligado às concepções e práticas que definem

o papel sociocultural da escola, diz respeito aos modos de organização dos tempos e espaços

da escola, de suas atividades pedagógicas, das relações sociais tecidas no cotidiano escolar,

das interações do ambiente educacional com a sociedade, das relações de poder presentes no

fazer educativo e nas formas de conceber e construir conhecimentos escolares, constituindo

parte importante dos processos sociopolíticos e culturais de construção de identidades.

§ 1º Os currículos da Educação Básica na Educação Escolar Indígena, em uma

perspectiva intercultural, devem ser construídos a partir dos valores e interesses etnopolíticos

das comunidades indígenas em relação aos seus projetos de sociedade e de escola, definidos

nos projetos político-pedagógicos.

§ 5º Os currículos devem ser ancorados em materiais didáticos específicos, escritos na

língua portuguesa, nas línguas indígenas e bilíngues, que reflitam a perspectiva intercultural

155

da educação diferenciada, elaborados pelos professores indígenas e seus estudantes e

publicados pelos respectivos sistemas de ensino.

§ 6º Na organização curricular das escolas indígenas, devem ser observados os

critérios:

I - de reconhecimento das especificidades das escolas indígenas quanto aos seus

aspectos comunitários, bilíngues e multilíngues, de interculturalidade e diferenciação;

VI - de adequação das metodologias didáticas e pedagógicas às características dos

diferentes sujeitos das aprendizagens, em atenção aos modos próprios de transmissão do saber

indígena;

VII - da necessidade de elaboração e uso de materiais didáticos próprios, nas línguas

indígenas e em português, apresentando conteúdos culturais próprios às comunidades

indígenas;

Dos professores indígenas: formação e profissionalização

Art. 19 A qualidade sociocultural da Educação Escolar Indígena necessita que sua

proposta educativa seja conduzida por professores indígenas, como docentes e como gestores,

pertencentes às suas respectivas comunidades.

§ 1º Os professores indígenas, no cenário político e pedagógico, são importantes

interlocutores nos processos de construção do diálogo intercultural, mediando e articulando os

interesses de suas comunidades com os da sociedade em geral e com os de outros grupos

particulares, promovendo a sistematização e organização de novos saberes e práticas.

§ 2º Compete aos professores indígenas a tarefa de refletir criticamente sobre as

práticas políticas pedagógicas da Educação Escolar Indígena, buscando criar estratégias para

promover a interação dos diversos tipos de conhecimentos que se apresentam e se entrelaçam

no processo escolar: de um lado, os conhecimentos ditos universais, a que todo estudante,

indígena ou não, deve ter acesso, e, de outro, os conhecimentos étnicos, próprios ao seu grupo

social de origem que hoje assumem importância crescente nos contextos escolares indígenas.

Art. 20 Formar indígenas para serem professores e gestores das escolas indígenas deve

ser uma das prioridades dos sistemas de ensino e de suas instituições formadoras, visando

consolidar a Educação Escolar Indígena como um compromisso público do Estado brasileiro.

§ 1º A formação inicial dos professores indígenas deve ocorrer em cursos específicos

de licenciaturas e pedagogias interculturais ou complementarmente, quando for o caso, em

outros cursos de licenciatura específica ou, ainda, em cursos de magistério indígena de nível

médio na modalidade normal.

§ 4º A formação de professores indígenas deve estar voltada para a elaboração, o

desenvolvimento e a avaliação de currículos e programas próprios, bem como a produção de

materiais didáticos específicos e a utilização de metodologias adequadas de ensino e pesquisa.

§ 6º Os sistemas de ensino e suas instituições formadoras devem assegurar a formação

continuada dos professores indígenas, compreendida como componente essencial da

profissionalização docente e estratégia de continuidade do processo formativo, articulada à

realidade da escola indígena e à formação inicial dos seus professores.

156

DA AÇÃO COLABORATIVA PARA A GARANTIA DA EDUCAÇÃO ESCOLAR

INDÍGENA

Seção I

Das competências constitucionais e legais no exercício do regime de colaboração

Art. 24 Constituem atribuições da União:

VII - promover a elaboração e publicação sistemática de material didático específico e

diferenciado, destinado às escolas indígenas;

Art. 25 Constituem atribuições dos Estados:

VIII - promover a elaboração e publicação sistemática de material didático e

pedagógico, específico e diferenciado para uso nas escolas indígenas.