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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE LINGUAGENS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE CULTURA
CONTEMPORÂNEA
DANIEL PELLEGRIM SANCHEZ
PENSAMENTO ABISSAL, COLONIALIDADE
E AS ARTES VISUAIS EM CUIABÁ
CUIABÁ – MT
2015
DANIEL PELLEGRIM SANCHEZ
PENSAMENTO ABISSAL, COLONIALIDADE
E AS ARTES VISUAIS EM CUIABÁ
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Estudos de Cultura Contemporânea da
Universidade Federal de Mato Grosso, como requisito para a
obtenção do título de Mestre em Estudos de Cultura
Contemporânea, Linha de Pesquisa: Epistemes Contemporâneas.
Orientadora: Profa. Dra. Ludmila Brandão.
CUIABÁ - MT
2015
Dedico este trabalho aos meus
familiares, em especial a minha esposa
Emyle e a minha filha Iza.
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais Antônio e Helenice – pela acolhida sempre muito carinhosa, pelo apoio e
pelo amor incondicional;
À minha esposa Emyle Daltro – pelo apoio, dedicação e amor;
À minha orientadora, Professora Drª Ludmila Brandão – pela amizade, empenho e
dedicação;
Ao Sr. Hildeberto Daltro, a Srª. Rosa Maria e a ―vó‖ Juracy – pelo carinho e apoio
irrestritos;
À minha irmã Rafaela e sua família – pelo apoio em momentos difíceis e pelo carinho;
Ao meu irmão Leonardo – pelo entusiasmo de sempre e por ser tão afetuoso;
A Raimundo Severo, Genivaldo Macário e Germano Augusto Fischdick – pelo apoio,
pelo profissionalismo exemplar e pelo incentivo;
À Profª. Drª. Suzana Cristina Guimarães – por ter aceitado o convite para participar da
banca de defesa, pela sensibilidade e incentivo;
A Profª. Drª. Luciana Ballestrin – por ter aceitado o convite para participar da banca de
defesa e pelo comprometimento com o tema desta pesquisa;
Agradecimentos aos artistas Carlos Lopes, José Pereira, Vitória Basaia, Carlinhos
Antônio Batista, Nilson Pimenta, Benedito Nunes, ao produtor cultural José Paulo
Traven – pela atenção, consideração e pela disponibilização de informações caras a este
trabalho;
Aos demais artistas do estado de Mato Grosso, em especial aqueles com quem trabalhei
quando fui galerista;
Ao Professor Dr. Sylvio Gadelha – pela amizade e pela oportunidade de aprendizado
por meio do estágio;
Ao Prof. Dr. José Carlos Leite – pela atenção, consideração e incentivo;
A todos os professores do Mestrado em Estudos de Cultura Contemporânea (ECCO –
UFMT) – pela dedicação e pela oportunidade de compartilharmos saberes;
Aos colegas do mestrado e do NEC (Núcleo de Estudos do Contemporâneo) – pelas
conversas, estudos e amizades que surgiram desse convívio;
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Ministério
da Educação – pelo financiamento desta pesquisa.
“[...] Há uma zona de não-ser; uma região extraordinariamente
estéril e árida, uma rampa essencialmente despojada, onde um
autêntico ressurgimento pode acontecer.”
(Frantz Fanon, 2008, p. 26)
“Não vou me enterrar em um particularismo estreito. Mas
ainda, não quero me perder em um universalismo descarnado.
Há duas maneiras de se perder: por segregação nos muros do
particular ou por diluição no ´universal´. Minha concepção do
universal é a de um universal rico em tudo o que é particular,
rico em todos os particulares, aprofundando a coexistência de
todos os particulares.”
(Aimé Césaire a Maurice Thorez, 1956)
SUMÁRIO
RESUMO.................................................................................................................. 07
ABSTRACT............................................................................................................. 08
LISTA DE FIGURAS.............................................................................................. 09
INTRODUÇÃO........................................................................................................ 13
CAPÍTULO 1 – MODERNIDADE/COLONIALIDADE/DECOLONIALIDADE
1.1. Colonialismo, pós-colonialismo, (de)colonialidade......................................... 19
1.2. Pensamento abissal e amarrações terra-sol.................................................... 26
1.3. Do pensamento abissal à decolonialidade....................................................... 33
1.4. Ciência moderna na perspectiva decolonial................................................... 36
CAPÍTULO 2 – COLONIALIDADE DA ARTE................................................. 43
2.1. O trajeto único das artes.................................................................................. 49
2.2. Algumas respostas à colonialidade.................................................................. 52
CAPÍTULO 3 – AS ARTES VISUAIS EM CUIABÁ.......................................... 58
3.1. Uma breve história recente das artes visuais em Cuiabá.............................. 58
3.1.1. Século XX........................................................................................................ 59
3.1.2. Século XXI....................................................................................................... 63
3.2. Amarrações da/na arte em Cuiabá................................................................. 68
3.3. Descarregando.................................................................................................. 77
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................. 82
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................. 85
RESUMO
Articulado à ideia de Boaventura de Sousa Santos de que o pensamento moderno
ocidental é um pensamento abissal, este trabalho propõe verificar a possível persistência
de dispositivos de colonialidade oriundos desse pensamento, de divisões da realidade
social e de dominação epistemológica nas artes visuais em Cuiabá, problematizando
questões relacionadas ao racismo, à exploração e a outros modos de violência ou
desumanização. Além disso, tem em vista articular referenciais teóricos e ferramentas
para a construção contínua de conceitos, redes e relacionamentos a serem utilizados na
expectativa da positivação e construção de aesthesis e subjetividades decoloniais. O
estudo das noções de colonialidade e colonialidade da arte, assim como a investigação
do fenômeno no circuito da arte em Cuiabá constituem este trabalho. De acordo com
Aníbal Quijano (2000), a colonialidade é parte constitutiva da matriz colonial de poder e
resulta de uma classificação racial/étnica seguida de hierarquização que se impõe à
população mundial e que atua em diversos âmbitos, planos e dimensões, inclusive
materiais e subjetivos, da escala e existência social cotidiana. O chamado racismo
epistêmico, por sua vez, refere-se à hierarquia de dominação onde os conhecimentos
produzidos por sujeitos ocidentais são considerados como superiores aos conhecimentos
produzidos por sujeitos não ocidentais. Na arte, essas hierarquizações se dão por meio
dos dualismos ―erudito‖ e ―popular‖, ―regional‖ e ―universal‖, entre outros, como
também através de categorizações como arte primitiva, naïf, bruta, artesanal, étnica,
cabocla, esquisita etc. Em Cuiabá não há nenhum curso de graduação em artes visuais,
mas há uma grande quantidade de artistas autodidatas ("populares"); existem poucos
equipamentos culturais e, em geral, administra-se o setor com baixo orçamento, quase
sem políticas de intercâmbio. A falta de interesse do setor público somada ao
direcionamento decorativo ou "espetacular" que o setor privado designa para as artes
visuais no circuito local geram obstáculos intransponíveis para alguns artistas,
instituindo um mundo à parte, de isolamento, invisibilidade ou, como disse Aníbal
Quijano, "um beco sem saída" para aqueles que miram uma trajetória dentro
instituições, equipamentos, eventos, circuitos autorizados/oficiais. Circuitos que, salvo
algumas exceções, veem o ―sul do mundo‖ como menos capaz, subalterno no que
concerne aos seus saberes, técnicas e artes. No que tange ao Brasil, essa hierarquia, com
seus valores e procedimentos, é reproduzida internamente nas relações entre o circuito
de arte de São Paulo e Rio de Janeiro com as outras cidades do país. Inspirados pelo
conceito de pensamento único de Milton Santos, denominamos o circuito
autorizado/oficial de trajeto único. O paradigma cuiabano das artes, por isso mesmo,
gera inúmeras inquietações e angústias que estão a exigir esforços de decolonização e
legitimação de modos outros da produção visual. Com isso, propomos, na esteira de
Mignolo, conduzir ações orientadas por pensamentos de resistência, por noções como a
de "pensamento de fronteira", de "desobediência epistêmica" e de "aesthesis
decolonial", que venham desenganchar-nos da obrigatoriedade de trilhar o trajeto único
do circuito hegemônico, nos reposicionando, redefinindo, ou seja, constituindo pluri-
trajetórias em circuitos outros.
PALAVRAS-CHAVES: Colonialidade; decolonialidade; racismo epistêmico; artes
visuais; Cuiabá.
ABSTRACT
Articulated with the idea of Boaventura de Sousa Santos that modern Western thinking
is an abysmal thought, this work proposes to verify the possible persistence of
coloniality devices, divisions of social reality and epistemological dominance in the
visual arts in Cuiabá, discussing issues related to racism, exploitation and other forms of
violence or dehumanization. Additionally, aims to provide theoretical frameworks and
tools for the ongoing construction of concepts, relationships and networks to be used to
enhance and build decolonial aesthesis and subjectivities. This work is constituted by
the study of the notions of coloniality and coloniality of the art, as well as by the
investigation of this phenomenon in the art circuit in Cuiabá. According to Anibal
Quijano (2000), coloniality is constitutive of the colonial matrix of power and results
from a racial/ethnic classification followed by hierarchy that is imposed on the world's
population and which operates in several spheres, planes and dimensions, including
materials and subjectives of social scale and existence. The so-called epistemic racism,
in turn, refers to the hierarchy of domination where the knowledge produced by Western
individuals is considered as superior to knowledge produced by non-Western
individuals. In art, these hierarchizations occur through the dualisms "classical" and
"popular", "regional" and "universal", among others, as well as through categorizations
as primitive, naive, crude, handmade, ethnic, cabocla, weird art etc. In Cuiabá there is
no undergraduate degree in visual arts, but there are a lot of ("popular") self-taught
artists; there are few cultural equipment and generally the sector is administered with
low budget, almost without exchange policies. The lack of interest of the public sector
plus the decorative direction or "spectacular" that the private sector refers to the visual
arts in the local circuit g enerate insurmountable obstacles for some artists, establishing
a world apart, of isolation, invisibility or, as Aníbal Quijano said, "a dead end" for those
that target a trajectory within institutions, equipment, events, authorized/official circuits.
Circuits that, with some exceptions, see the "South of the world" as less able, subaltern
with respect to their knowledge, techniques and arts. With regard to Brazil, this
hierarchy, with its values and procedures, is reproduced internally in the relations
between the Sao Paulo and Rio de Janeiro art circuit with the other cities of the country.
Inspired by the concept of the ―single thought‖ of Milton Santos, we call the
authorized/official circuit by single path. The cuiabano paradigm of arts generates many
concerns and anxieties that are demanding efforts of decolonization and legitimation of
other visual production modes. Thus, we propose, in the wake of Mignolo, to conduct
actions guided by resistance thoughts, notions such as "border thinking", of "epistemic
disobedience" and "decolonial aesthesis", which will unhook us from the obligation to
tread the single path of the hegemonic circuit, repositioning us, redefining, or
constituting multi-paths in circuits others.
KEYWORDS: Coloniality; Decoloniality; epistemic racism; visual arts; Cuiabá.
LISTA DE FIGURAS
Figura 01/p. 15
Vitória Basaia em sua casa ateliê, 2010. Foto: Julio César Carvalho.
Figura 02/p. 18
Sharjah Bienal 11 realizada nos Emirados Arabes Unidos. Ammar Al Attar, Prayer
Room, 2012, installation view, twenty photographs, lambda c-print, matte. Courtesy of
the artist and Cuadro Fine Art Gallery. Image courtesy of Sharjah Art Foundation1.
Figura 03/p. 28
Homem segurando o sol. Fotografia disponível em: <http://sorisomail.com/xixinko/1-
visual-imagens.html> Acesso em 20 de janeiro de 2015.
Figura 04/p. 29
Camadas da zona pelágica. Autor: Capmo. Disponível em:<
http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/f/f2/Pelagiczone_pt.svg> Acesso em
20 de janeiro de 2015.
Figura 05/p. 31
Melanocetus johnsonii ou peixe-diabo negro. Fotografia: Senckenberg
Forschungsnstitut und Naturmuseum / Sven Tränkne. Disponível
em:<http://www.spiegel.de/fotostrecke/tiefsee-ausstellung-bizarre-wesen-aus-den-
tiefen-der-ozeane-fotostrecke-61475-6.html> Acesso em 24/02/2014.
Figura 06/p. 33
Jeannette Ehlers, Black Magic At The White House,2 2009. 03:46, sound, courtesy of
the artist and Art Labour Archives. Imagem extraída do catálogo da exposição Be.Bop
2012. Black Europe Body Politcs realizada em Berlim, Alemanha (MIGNOLO, 2012).
Figura 07/p. 37
Daniel Pellegrim Sanchez, 2° Tempo, 2012, fotografia.
1 Tradução nossa: Ammar Al Attar, Sala de Oração, 2012, vista da instalação, vinte fotografias, lambda c-
print, matte. Cortesia do artista e da Cuadro Fine Art Gallery. Imagem cortesia da Fundação Arte de
Sharjah. Disponível em < http://www.ibraaz.org/essays/59> Acesso em 28/01/2005. 2 Tradução nossa: Jeannette Ehlers, Magia Negra na Casa Branca, 2009. 03:46, som, cortesia da artista e
Art Labour Archives.
Figura 08/p. 38
Quinsy Gario, The Bearable Ordeal of the Collapse of Certainties3, 2011, theater &
poetry. Foto: Brett Russel. Imagem extraída do catálogo da exposição Be.Bop 2012.
Black Europe Body Politcs realizada em Berlim Alemanha (MIGNOLO, 2012).
Figura 09/pgs. 38 e 39
Sumugan Sivanesan, A Children´s Book of War, A [Not So] Secret War. Terra Nullius
and the Permanent State of Exception, 1:46, sound4, 2010. Courtesy of the Artist and
The Momentum Collection. Imagem extraída do catálogo da exposição Be.Bop 2012.
Black Europe Body Politcs realizada em Berlim Alemanha (MIGNOLO, 2012).
Figura 10/p. 40
Daniel Pellegrim Sanchez, sem título, 2014, fotografia.
Figura 11/p. 49
Daniel Pellegrim Sanchez, sem título, 2012, fotografia.
Figura 12/p. 51
Daniel Pellegrim Sanchez, sem título, 2013, fotografia.
Figura 13/p. 53
Registro de ―Language & Opacity / Lenguaje y Opacidad‖, de Black Mirror / Espejo
Negro5: Suites Fotográficas, Pedro Lasch, 2007-2008. Imagem extraída do artigo
Aiesthesis Decolonial (MIGNOLO, 2010).
Figura 14/p. 54
Tereza Maria Díaz Nério – Hommage à Sara Bartman, 2007. 04.00, no sound, courtesy
of the artist and Art Labour Archives6. Imagem extraída do catálogo da exposição
Be.Bop 2012. Black Europe Body Politcs realizada em Berlim Alemanha (MIGNOLO,
2012).
3 Tradução nossa: Quinsy Gario, O calvário suportável do colapso das certezas, 2011, teatro e poesia.
4 Tradução nossa: Sumugan Sivanesan, Um Livro de Guerra para Crianças, A [Not So] Guerra Secreta.
Terra Nullius e o Permanente Estado de Exceção, 1:46, som, 2010 Cortesia do Artista e de Momentum
Collection. 5 Tradução nossa: Registro de ―Linguagem & Opacidade‖, de Espelho Negro: Fotografias: Pedro Lasch,
2007-2008. 6 Tradução nossa: Tereza Maria Díaz Nério – Homenagem à Sara Bartman, 2007. 4:00, sem som,
Cortesia da artista e de Art Labour Archives.
Figura 15/p. 55
Fred Wilson, Ota Benga, 2008, medium bronze with silk scarf on wooden base, edition
of 5, 59.5x12x12in. Collection Tate Modern, London.7
Disponível em:<
https://www.pinterest.com/pin/24629129184307371/> Acesso em 08/10/2013.
Figura 16/p. 55
William Kentridge, Black Box/Chambre Noire, 2005. 22:00, sound, courtesy of the
artist and Marian Goodman Gallery8. Imagem extraída do catálogo da exposição
Be.Bop 2012. Black Europe Body Politcs realizada em Berlim Alemanha (MIGNOLO,
2012).
Figura 17/p. 61
Clóvis Irigaray, A criação do índio, sem data, OST, 100X200 cm
Figura 18/p. 62
Aleixo Cortez, 2012, Foto: Daniel Pellegrim Sanchez
Figura 19/p. 62
Benedito Nunes, 2009. Foto: Daniel Pellegrim Sanchez
Figura 20/p. 63
Adir Sodré. Disponível em: http://conexaoartesmt.blogspot.com.br/p/adir-sodre.html
Acesso em 27/01/2015
Figura 21/p. 66
Página inteira dedicada à exposição de Carlos Lopes na Pellegrim Galeria de arte em
Chapada dos Guimarães. Fonte: Folha do Estado – Folha 3, publicada em 07 de
novembro de 2003.
Figura 22/p. 67
Paulo Traven e Nilsom Pimenta na Pellegrim Galeria de arte, ao fundo escultura de
Roberto de Almeida. 2010. Foto: Daniel Pellegrim Sanchez.
7 Tradução nossa: Fred Wilson, Ota Benga, 2008, bronze médio com lenço de seda na base de madeira,
edição de 5, 59.5x12x12 cm. Coleção Tate Modern, Londres. 8 Tradução nossa: William Kentridge, Box Negro, Hendrik Witbooi, 2005. 22:00, som, cortesia do artista
e de Marian Goodman Gallery.
Figura 23/p. 67
Artistas participantes da exposição Percurso, reunidos no Museu de Arte e de Cultura
Popular da UFMT. Fonte: Museu de Arte e de Cultura Popular da UFMT.
Figura 24/p. 75
Roberto de Almeida, 2010. Foto: Daniel Pellegrim Sanchez
Figura 25/p. 77
Clóvis Irigaray. Foto: Acervo do Artista
Figura 26/p. 80
Reprodução do desenho do Engenho do Buriti, feito por Hércules Florence, durante a
Expedição Langsdorff, no século XIX, exposto na Sala da Memória em Chapada dos
Guimarães - MT. Fotografia: Daniel Pellegrim Sanchez.
13
INTRODUÇÃO
Esta dissertação articula-se aos Estudos Decoloniais, para verificar a possível
persistência de dispositivos de colonialidade, de divisões da realidade social e de
dominação epistemológica nas artes visuais em Cuiabá, estado de Mato Grosso.
Os estudos decoloniais constituem-se hoje por propostas do Grupo
Modernidade/Colonialidade (M/C), rede formada por intelectuais latino-americanos
vinculados a diversas universidades das Américas e da Europa. A organização enquanto
grupo se iniciou no final dos anos de 1990 e se estendeu durante a primeira década do
século XXI. Segundo Luciana Ballestrin (2013, p. 91), esse grupo:
[...] realizou um movimento epistemológico fundamental para a
renovação crítica e utópica das ciências sociais na América Latina no
século XXI: a radicalização do argumento pós-colonial no continente
por meio da noção de ―giro decolonial‖. Assumindo uma miríade
ampla de influências teóricas, o M/C atualiza a tradição crítica de
pensamento latino-americano, oferece releituras históricas e
problematiza velhas e novas questões para o continente. Defende a
―opção decolonial‖ – epistêmica, teórica e política – para compreender
e atuar no mundo, marcado pela permanência da colonialidade global
nos diferentes níveis da vida pessoal e coletiva.
Nesse sentido, destacamos o modo de escrita do termo ―outros‖ desde a
abordagem decolonial, sobre o qual Catherine Walsh (2009, p. 25) escreve que:
[...] falar de modos ―outros‖ é tomar distância das formas de pensar,
saber, ser e viver inscritas na razão moderno-ocidental-colonial. Por
isso, não se refere a ―outros modos‖, nem tampouco a ―modos
alternativos‖, mas aos que estão assentados sobre as histórias e
experiências da diferença colonial [...] Essas histórias e experiências
marcam uma particularidade do lugar epistêmico – um lugar de vida –
que recusa a universalidade abstrata.
Importante salientar também que, em grande parte deste trabalho, faremos uso
da primeira pessoa do plural – nós –, porém em alguns momentos, para marcar um lugar
específico de enunciação, escreveremos na primeira pessoa do singular – eu.
Caminhos trilhados
A princípio, meu projeto de pesquisa iria investigar a produção de arte em
Cuiabá, tendo em vista a colonialidade e as condições sociais da mesma,
problematizando questões relacionadas à autonomia, qualificação e legitimação.
14
Desde o início de minha carreira – 1998 –, tenho interesse pelo funcionamento
do Sistema das Artes, em especial para saber sobre as regras do mercado de arte,
visando minha autonomia como artista, bem como a de meus colegas de profissão.
Nesses quinze anos de atuação, participei de salões de arte, fiz exposições individuais,
formatei projetos para Leis de Incentivo do Estado e Município, conheci e visitei
instituições, ateliês etc. Direcionei, então, meus estudos – Especialização em
Planejamento e Gestão Cultural – para o mercado de arte e abri, em 2003, uma galeria
de arte em Chapada dos Guimarães, que funcionou por seis anos. A galeria realizou
mais de vinte exposições apresentando artistas do estado de Mato Grosso, sendo eles,
em sua maioria, de Cuiabá.
Ao frequentar ateliês, produzir, estudar e fazer parte do mercado – por meio da
Galeria de Arte – e também do governo – fui conselheiro estadual de cultura e secretário
de cultura de Chapada dos Guimarães –, pude viver algumas contradições, tensões e
angústias do meio artístico, percebendo as mudanças sociais e políticas e as dificuldades
na autonomização do sistema de arte cuiabano, o que me possibilitou ir além das
questões de mercado.
A pergunta que a princípio orientou a pesquisa foi: Por que os artistas visuais em
Cuiabá têm dificuldade em conseguir autonomia e se legitimar no circuito nacional de
arte? No decorrer da pesquisa, todavia, o projeto fez um giro, o ―giro decolonial‖,
colocando a colonialidade no centro do debate, a questão da colonização como
componente constitutivo da modernidade e a compreensão da descolonização como
inúmeras e indefinidas estratégias e formas contestatórias que buscam uma mudança
radical nas formas hegemônicas atuais de poder, ser e saber (Nelson Maldonado –
Torres, 2008 b). Nossos estudos passam então a se concentrar na verificação da
existência de hierarquização, segregações, preconceitos e desigualdades no âmbito das
artes visuais e de possíveis modos de resistência e oposição a eles. Dessa maneira,
investigamos a produção de artes visuais em Cuiabá, tendo em vista o racismo, o
eurocentrismo epistêmico e a ocidentalização – violenta ou consentida – dos estilos de
vida como dispositivos de colonialidade.
Com minha participação no Grupo de Pesquisa Núcleo de Estudos do
Contemporâneo (NEC), situado no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura
Contemporânea (ECCO), da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), pude ter
15
contato com o grupo atualmente chamado de
Modernidade/Colonialidade/Decolonialidade, rede multidisciplinar e multigeracional de
intelectuais, entre os quais se destacam os sociólogos Aníbal Quijano (Peru), Edgardo
Lander (Venezuela), Ramón Grosfoguel (Porto Rico - EUA) e Agustín Lao-Montes
(Porto Rico); os semiólogos Walter Mignolo (Argentina - EUA) e Zulma Palermo
(Argentina); a pedagoga Catherine Walsh (EUA - Equador), os antropólogos Arturo
Escobar (Colômbia) e Fernando Coronil (Venezuela - EUA); o crítico literário Javier
Sanjinés (Bolívia - EUA) e os filósofos Enrique Dussel (Argentina - México), Santiago
Castro-Gómes (Colômbia), María Lugones (Argentina - EUA) e Nelson Maldonado-
Torres (Porto Rico). Textos dos autores acima citados constituíram-se como principais
referências teóricas, orientando em termos epistemológicos as reflexões, discussões e
ações reunidas neste trabalho de pesquisa.
Realizamos pesquisa bibliográfica e também entrevistas semi-estruturadas com
seis artistas: Carlos Lopes, Nilson Pimenta, Vitória Basaia, Benedito Nunes, José
Pereira, Carlos Antônio Batista e com o produtor cultural, Paulo Traven, que é
subsecretário de cultura do município de Cuiabá desde o ano de 2013. As informações
levantadas com as entrevistas foram ancoradas teoricamente por meio do diálogo com
diversos autores, bem como articuladas a dados obtidos em pesquisas na internet.
Figura 1: Vitória Basaia em sua casa ateliê, 2010. Foto: Julio César Carvalho
16
Para a seleção dos artistas entrevistados, nos guiamos por critérios como: 1)
estar estabelecido na grande Cuiabá 2) viver predominantemente do trabalho com as
artes visuais 3) ser reconhecido pelo público e pela crítica locais; 4) ter trabalhado com
a Pellegrim Galeria, uma vez que nos possibilitou um conhecimento mais consistente do
percurso e da produção pictórica. Finalmente, Paulo Traven foi escolhido por ter sido,
por longo tempo, um produtor cultural independente no estado de Mato Grosso e agora
estar atuando em âmbito público municipal.
As entrevistas abordaram questões referentes ao processo de autonomização
social da arte; de legitimação em âmbito local; aos impedimentos, preconceitos e
dispositivos de colonização na arte em Cuiabá; às estratégias que estão sendo adotadas
para vencer os obstáculos, além de outras questões que surgiram durante a realização da
pesquisa.
Podemos então afirmar que esta dissertação tem como objetivo investigar a
produção das artes visuais em Cuiabá, tendo em vista o racismo, o eurocentrismo
epistêmico e a ocidentalização (violenta ou consentida) dos estilos de vida como
dispositivos de colonialidade. Daí decorre a expectativa que temos de identificar os
modos como se dão a dominação epistemológica nas artes visuais em Cuiabá,
problematizando questões relacionadas ao racismo, à exploração e aos diferentes
processos de violência e desumanização. Finalmente, esperamos que a manipulação dos
referenciais teóricos e suas ferramentas conceituais da tríade
modernidade/colonialidade/decolonialidade que se anuncia possa contribuir para a
construção contínua de conceitos, redes e relacionamentos a serem utilizados para
valorizar e construir aesthesis e subjetividades decoloniais.
Articulados à ideia de Boaventura de Sousa Santos (2010, p. 31) de que ―o
pensamento moderno ocidental é um pensamento abissal‖, no primeiro capítulo desta
dissertação, exploramos o funcionamento dessas abissalidades que hierarquizam e
invisibilizam saberes e práticas outros e que operam a transmutação da antiga
dominação colonial, chamada de colonialismo, em colonialidade. Nesse capítulo,
apresentamos o Grupo Modernidade/Colonialidade/Decolonialidade e também reflexões
sobre a abissalidade. Discutimos as noções de ―pensamento abissal‖ (SANTOS, 2010),
―pensamento heterárquico‖ (KONTOPOULOS, 1993) e ―giro decolonial‖
(MALDONADO-TORRES, 2008 b). Abordamos também relações entre a ciência
17
moderna e a colonialidade, bem como a ―perspectiva de ponto zero‖ (CASTRO-
GOMES, 2003). Com esse capítulo que se constitui do estudo de todas essas noções
pretendemos nos situar e entender os fenômenos da colonialidade e da decolonialidade.
Orientado pelo pensamento de Walter Mignolo de "descolonizar a estética para
liberar aesthesis", o segundo capítulo desta dissertação se detém sobre os modos como o
pensamento moderno ocidental rege os critérios de validação sobre a produção artística
mundial. Aborda a noção grega de aesthesis (sensação) e a apropriação da mesma, no
século XVIII, por filósofos como Baumgarten e Kant que deram ensejo ao nascimento
da ―narrativa estética‖ eurocentrada, a qual distinguiu/distingue o diferente,
classificando-o e desqualificando-o em relação à arte europeia, num momento histórico
em que os países colonizadores se fortaleciam econômica e culturalmente pelo processo
de colonização das Américas, Ásia e África. É nesse contexto que surgem distinções
como arte e artesanato, ou seja, de critérios de distinção entre a verdadeira arte e aquilo
que não chega a ser e, com eles, da distinção entre objetos que serão exibidos em
Museus de Arte daqueles que serão destinados, no máximo, a Museus de História
Natural. É a partir do século XVIII que se constrói na Europa o ―museu‖ (casa das
musas) formando uma nova complexidade na arte e na estética. Esse sistema que aí
começa a se constituir vai se firmando, ao longo dessa história, como o ―trajeto único‖
das artes que se incumbe de legitimar os artistas que conseguem percorrê-lo.
No terceiro capítulo, lançamos um olhar sobre a história recente das artes visuais
em Cuiabá. Em seguida, discutimos questões apresentadas nos relatos de artistas que
vivem e produzem nessa cidade e do produtor cultural que integra o grupo de
entrevistados desta pesquisa. As questões aqui tratadas são articuladas a noções e
argumentos de autores que pensam a decolonialidade do poder, do saber e do ser, de
modo a percebermos em que medida a (de)colonialidade constitui esse sistema de
arte/vida. Abordamos temas como a opressão nas artes, a consciência que tem ou não
delas os artistas entrevistados; as classificações locais; a vivência do dilema
regional/universal, erudito/popular para cada artista; a percepção ou não de preconceitos
vários nas artes visuais em Cuiabá, entre outros.
Em se tratando de arte produzida na América Latina, no Brasil e mais
especificamente em Mato Grosso e em sua capital Cuiabá, é ao ―trajeto único‖
fortalecido e reproduzido com mais separações, classificações e hierarquizações, que
18
este trabalho de pesquisa se opõe, para podermos vislumbrar possíveis caminhos
―outros‖.
Figura 2: Sharjah Bienal 11 realizada nos Emirados Arabes Unidos. Ammar Al Attar, Prayer Room, 2012,
installation view, twenty photographs, lambda c-print, matte. Courtesy of the artist and Cuadro Fine Art
Gallery. Image courtesy of Sharjah Art Foundation9.
9 Ammar Al Attar, Sala de Oração, 2012, vista da instalação, vinte fotografias, lambda c-print, matte.
Cortesia do artista e da Cuadro Fine Art Gallery. Imagem cortesia da Fundação Arte de Sharjah.
Disponível em < http://www.ibraaz.org/essays/59> Acesso em 28/01/2005.
19
1. MODERNIDADE/COLONIALIDADE/DECOLONIALIDADE
Profecia final
Adeus povo, adeus árvores adeus campos
Aceitai minha despedida
Fico governando essa zona de cá por inteiro até
a ponta dos trilhos em Rio Branco
e o senhor por sua vez governa
do Rio Branco até a pancada do mar
Espinhos soltos no chão
Mistérios presos no ar
Não desejei carregar esse cajado infinito
Anuncio a tua vinda
No silêncio dos cocões
Já vou, meu primeiro trago
Longe da terra primeira
A nitidez se acentua
O nevoeiro se engole
Minhas raízes caminham
Herdeiros do fim do mundo
Queimai vossa história tão mal contada
(Cordel do Fogo Encantado)
1.1.Colonialismo, pós-colonialismo, (de)colonialidade
Nas fronteiras entre poesia, teatro e música, o grupo Cordel do Fogo Encantado
(Arcoverde-PE) transcreve, na obra Profecia Final, um trecho da carta do Capitão
Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, ao Governador de Pernambuco. Na carta,
Lampião com a intenção de evitar a guerra, querendo paz, sugere a divisão de
territórios, a demarcação territorial do sertão nordestino. As palavras da carta foram
entendidas pelo governador de Pernambuco como um desafio ao governo e a reação foi
extremamente violenta, assinalando o início da perseguição que daria no fim do grupo
de Virgulino Lampião10
.
Lampião toma como referência de fronteira a cidade de Rio Branco, atual
Arcoverde - PE, para limitar seu território. Bem antes de Lampião, em 1494, era traçada
a linha global moderna entre Espanha e Portugal, o Tratado de Tordesilhas, linha reta,
cartesiana, um meridiano que dividia a amorfa América do Sul em duas. A linha de
Tordesilhas foi mudando, foi sendo empurrada, distorcida, algumas vezes com âncoras
10 Veja-se o site (ASSUNÇÃO, Moacir).
20
em paralelos centrais, estratégicos, como o paralelo S15, onde na última fronteira, foi
erguida Vila Bela de Santíssima Trindade - MT. Com o passar dos anos, as fronteiras se
definiram de forma irregular, seguindo o curso dos rios, o relevo de serras e a "pancada
do mar".
Além das várias formas de dominação territorial – como o exemplo de Lampião
no Nordeste brasileiro, muito bem evidencia – a história da América do Sul nos mostra
também a emergência histórica do racismo no sistema-mundo, o eurocentrismo
epistêmico e a ocidentalização (violenta ou consentida) dos estilos de vida. Estas são
algumas das várias dimensões da colonialidade. Para Aníbal Quijano (2000, p. 342):
La colonialidad es uno de los elementos constitutivos y específicos del
patrón mundial de poder capitalista. Se funda en la imposición de una
classificación racial/étnica de la población del mundo como piedra
angular de dicho patrón de poder y opera em cada uno de los planos,
ámbitos y dimensiones, materiales y subjetivas, de existencia social
cotidiana y a escala societal. Se origina y mundializa a partir de
América11
.
A epistemologia dominante, monocultural, surge com a intervenção política,
econômica e militar do colonialismo e se assenta na diferença cultural do mundo
moderno cristão ocidental e na diferença política do capitalismo. O colonialismo
reduziu a diversidade epistemológica e, mesmo após os processos de independência
política e até econômica, transmutou-se nisso que agora se chama ―colonialidade‖.
Antes mesmo da introdução da colonialidade como termo/conceito, a ideia já se
manifestava no pensamento africano de Kwame Nkhruma e Amilcar Cabral,
principalmente, e negro nas Américas como no de W.E.B. Dubois, Aimé Césaire, Frantz
Fanon, Angela Davis, Sylvia Wynter, Abidias do Nascimento, Cedric Robinson,
Édouard Glissant, Milton Santos e também de feministas ―chicanas‖ como Glória
Evangelina Anzaldúa, Cherríe I. Moraga, entre outras.
Os processos de descolonização do chamado ―terceiro mundo‖ – fim do
colonialismo – foram conduzidos durante os séculos XIX e XX. A partir da metade do
11 Tradução nossa: ―A colonialidade é um dos elementos constitutivos e específicos do patrão colonial de
poder capitalista. Fundamenta-se na imposição de uma classificação racial/étnica da população do mundo
como pedra angular desse patrão de poder e opera em cada um dos planos, âmbitos e dimensões,
materiais e subjetivas, da existência social cotidiana e da escala social. Origina-se e mundializa-se a partir
da América‖.
21
século XX – tempo histórico posterior aos processos de descolonização –, surge o termo
―pós-colonialismo‖, do qual se depreende basicamente, segundo Luciana Ballestrin
(2013, p. 90), dois entendimentos, o primeiro se refere:
[...] à independência, libertação e emancipação das sociedades
exploradas pelo imperialismo e neocolonialismo – especialmente nos
continentes asiático e africano. A outra utilização do termo se refere a
um conjunto de contribuições teóricas oriundas principalmente dos
estudos literários e culturais, que a partir dos anos 1980 ganharam
evidência em algumas universidades dos Estados Unidos e da
Inglaterra.
No contexto da libertação e emancipação das sociedades exploradas pelo
imperialismo e neocolonialismo vale destacar a Conferência de Bandung (Indonésia),
onde se reuniram vinte e três países asiáticos e seis países africanos (com uma
população total de 1350 bilhões de habitantes), entre 18 a 25 de abril de 1955, com o
objetivo de formar uma política global, visando promoção e a cooperação econômica e
cultural entre a África e a Ásia como forma de oposição ao colonialismo ou
neocolonialismo dos Estados Unidos da América, da União Soviética ou qualquer outra
nação considerada imperialista. Bandung foi uma das primeiras Conferências a afirmar
que o Racismo é crime, transmitindo a ideia de criar um Tribunal da Descolonização
(DIÁRIO UNIVERSAL, 2007). De Bandung surgiu, em 1961, o Movimento de Países
não Alinhados (MNA) que se tornou forte dispositivo de lutas nacionais por
independência, combate à pobreza, desenvolvimento econômico e oposição ao
colonialismo, ao imperialismo e ao neocolonialismo, as conferências se estenderam até
2006 com a presença de mais de 115 países12
(THE NON-ALIGNED MOVEMENT,
2004).
Ballestrin (2013, p. 92) situa o pós-colonialismo ―como um movimento
epistêmico, intelectual e político‖ e registra que:
[...] na década de 1970, formava-se no sul asiático o Grupo de Estudos
Subalternos13
– com a liderança de Ranajit Guha, um dissidente do
marxismo indiano –, cujo principal projeto era ―analisar criticamente
não só a historiografia colonial da Índia feita por ocidentais europeus,
mas também a historiografia eurocêntrica nacionalista indiana‖
12 Para mais informações acesse o site da conferência The Non-Aligned Movement, 2004.
13 Segundo Ballestrin (2013, p. 92 e 93), o termo ―subalterno‖ foi emprestado de Antônio Gramsci e
entendido como classe ou grupo desagregado e episódico que tem uma tendência histórica a uma
unificação sempre provisória pela obliteração das classes dominantes.
22
(Grosfoguel, 2008, p.116), bem como a historiografia marxista
ortodoxa (Castro-Gomez e Mendieta, 1998). Na década de 1980, os
subaltern studies se tornaram conhecidos fora da Índia, especialmente
através dos autores Partha Chatterjee, Dipesh Chakrabarty e Gayatri
Chakrabarty Spivak.
Em 1985, Spivak publicou um artigo, que segundo Ballestrin, se tornou um
cânone do pós-colonialismo: ―Pode o subalterno falar?‖ Ballestrin (2013, p. 93) registra
ainda que nesse artigo:
[...] a autora faz uma profunda crítica aos intelectuais ocidentais
Deleuze e Foucault – a despeito de sua filiação pós-estruturalista e
desconstrucionista – e uma autocritica aos estudos subalternos, através
da reflexão sobre a prática discursiva do intelectual pós-colonial.
Para Spivak, o sujeito subalterno é inaudível, sua voz não pode ser ouvida. A
autora critica também os/as intelectuais que pretendem falar em nome do subalterno e
ao fato de que ―nenhum ato de resistência pode ocorrer em nome do subalterno sem que
esse ato seja imbricado no discurso hegemônico‖ (Almeida, 2010, p. 12). Em nosso
caso, por nos considerarmos artista e pesquisador subalterno em diferentes graus e
dimensões, sentimo-nos autorizados a falar, mas não a falar pelos artistas ou por outros
agentes culturais entrevistados, acompanhados, mas falar com eles/elas, assim como
falamos com os autores que compõem conosco esta dissertação de mestrado.
Ainda de acordo com Ballestrin (2013, p. 93 e 94):
Na década de 1980, o debate pós-colonial foi difundido no campo da
crítica literária e dos estudos culturais na Inglaterra e nos Estados
Unidos, cujos expoentes mais conhecidos no Brasil são Homi Bhabha
(indiano), Stuart Hall (jamaicano) e Paul Gilroy (inglês). O local da
cultura, Da diáspora e Atlântico negro foram traduzidos para o
português e tiveram repercussão nas ciências sociais brasileiras. Em
um contexto de globalização, cultura, identidade (classe/etnia/gênero),
migração e diáspora apareceram como categorias fundamentais para
observar as lógicas coloniais modernas, sendo os estudos pós-
coloniais convergentes com os estudos culturais e multiculturais.
Vale destacar o descontentamento de diversos autores com as bases
epistemológicas desses grupos de estudos constituídas por teorias e teóricos
eurocentrados, tais como Michel Foucault, Antonio Gramsci, Jacques Derrida e pela
exceção, Ranajit Guha, que é indiano14
. Na América Latina, o ―pós-colonialismo‖
estimulou, na década de 1990, a formação de um grupo de investigação formado por
14 Para informações mais detalhadas a esse respeito ver texto completo de Luciana Ballestrin, 2013.
23
autores que nutriam tal descontentamento e que Artur Escobar15
passou a chamar de
―Proyecto latino/latino americano modernidad/colonialidad‖ 16
(2003 apud CASTRO-
GÓMES; GROSFÓGUEL, 2007, p. 9) que em seguida agregou o nome decolonialidad.
O projeto Modernidad/Colonialidad/Decolonialidad (Proyecto MCD) – reúne
um importante e ativo grupo de pensamento crítico na América Latina. Com influência
do pós-colonialismo, e vindos quase em sua totalidade de antigos âmbitos de produção
crítica de conhecimento na América Latina, a exemplo da teoria da dependência, da
filosofia da libertação, dos estudos subalternos etc., criam a partir de sua articulação o
que chamam de pensamento ou perspectiva decolonial.
De acordo com Walter Mignolo (2009) o projeto teve três momentos:
primeiramente, pôs ênfase no controle imperial/colonial da economia e da autoridade;
em uma segunda etapa, foi enfatizado o controle de gênero, sexualidade e subjetividade
por um lado e conhecimento (epistemologias) por outro; e em um terceiro momento,
ainda em exploração, surgiu a questão da descolonização da natureza. A
(de)colonialidade do poder foi complementada pela (de)colonialidade do saber e como
resultado das duas surgiu a (de)colonialidade do ser. Daí desdobraram-se outras
denominações como (de)colonialidade da natureza, da arte, da estética (aesthesis
decoloniais), entre outras.
Para chegar ao termo colonialidade, Aníbal Quijano (1992) argumenta que:
la idea de raza es, con toda seguridad, el más eficaz instrumento de
dominación social inventado en los últimos 500 años. Producida en el
mero comienzo de la formación de América y del capitalismo, en el
tránsito del siglo XV al XVI, en las centurias siguientes fue impuesta
sobre toda la población del planeta como parte de la dominación
colonial de Europa.17
Na síntese feita por Ramón Grosfoguel (2013a, p. 43), ―la idea de ‗colonialidad‘,
es decir, que la raza es un principio organizador de la lógica de acumulación de capital,
15 Escobar, Arturo. Mundos y conocimietos de otro modo. El programa de investigación de
modernidad/colonialidad latinoamericano. Tabula Rasa, 1, 51-86, 2003. 16
Para uma visão mais detalhada sobre o histórico do projeto modernidade/colonialidad veja-se o Prólogo
em Castro-Gómez, Grosfoguel, 2007. 17
Tradução nossa: ―a idéia de raça é, com toda segurança, o mais eficaz instrumento de dominação social
inventado nos últimos 500 anos. Produzido no início da formação da América e do capitalismo, na
transição do século XV ao século XVI, nos séculos seguintes, foi imposta a toda a população do planeta
como parte da dominação colonial da Europa‖.
24
de la economía política y de la división del trabajo internacional del sistema capitalista
mundial desde el siglo XVI"18
. Grosfoguel (2013a, p. 44) diz ainda que "la ‗colonialidad
del poder‘ nace de la historia del colonialismo no es reductible a él porque una vez
terminado el colonialismo la colonialidad ha continuado hasta nuestros días en todas sus
manifestaciones"19
.
Para esses autores, a modernidade não pode ser concebida e muito menos
referida sem imediatamente associá-la à colonialidade. Isso significa dizer que não é
possível mencionar supostos avanços ou triunfos da modernidade ocidental sem que se
ponha a nu o alto preço pago na colonialidade. Ambos, colonialidade e modernidade são
indissociáveis, uma vez que o segundo se constitui a partir do primeiro. Por isso, Walter
Mignolo (2011) afirma que a colonialidade é o lado sombrio the darker side20
da
modernidade. Para Mignolo21
(2007, p. 34):
La colonialidad pone de manifesto las experiencias y las ideas del mundo y
de la historia de aquellos a quienes Fanon denominó les damnés de la terre
(―los condenados de la tierra‖, que han sido obligados a adoptar los
estándares de la modernidad). Los condenados se definen por la herida
colonial, y la herida colonial, sea física o psicológica, es uma consecuencia
del racismo,el discurso hegemónico que pone em cuestión la humanidade de
todos los que no pertenecen al mismo locus de enunciación (y a la misma
geopolítica del conocimiento) de quienes crean los parámetros de
clasificación y se otorgan a sí mismos el derecho a clasificar.
Para Zulma Palermo (2010, s/p, tradução nossa), "a diferença colonial constitui
uma negação do valor do outro, que é diferente do eu-sujeito-único que é capaz de
pensar, dizer e fazer‖, sendo que, ainda segundo Palermo, esse outro é marcado pela
18 Tradução nossa: "a ideia de colonialidade é afirmar que a raça é um princípio organizador da lógica de
acumulação de capital, da economia política e da divisão de trabalho internacional do sistema capitalista
mundial desde o século XVI. "a colonialidade do poder nasce da história do colonialismo, mas não é
redutível a ela, porque uma vez terminado o colonialismo, a colonialidade tem continuado até nossos dias
em todas as suas manifestações‖ 19
Tradução nossa: "a colonialidade do poder nasce da história do colonialismo, mas não é redutível a ela,
porque uma vez terminado o colonialismo, a colonialidade tem continuado até nossos dias em todas as
suas manifestações‖ 20
Um dos livros de Mignolo traz exatamente o título The darker side of the renaissance. 21
Tradução nossa: A colonialidade põe em manifesto as experiências e as idéias do mundo e da história
daqueles a quem Fanon denominou les damnés de la terre (os condenados da terra) que foram obrigados a
adotar as normas da modernidade. Os condenados se definem pela ferida colonial, e a ferida colonial, seja
física ou psicológica, é uma conseqüência do racismo, do discurso hegemônico que põe em questão a
humanidade de todos os que pertencem ao mesmo locus de enunciação (e a mesma geopolítica do
conhecimento) dos que criam os parâmetros de classificação e se outorgam a si mesmos o direito de
classificar.
25
raça, classe, língua, gênero, pelo lugar em que vive, pelas suas formas de vida e,
especialmente nos dias de hoje, pela capacidade que possui de participar das demandas
do sistema de mercado.
Santiago Castro-Gómez e Ramón Grosfogel escrevem que, de acordo com o
enfoque decolonial (2007, p.14 e 17, grifos dos autores):
[...] el capitalismo global contemporáneo resignifica, en un formato
posmoderno, las exclusiones provocadas por las jerarquías
epistémicas, espirituales, raciales/étnicas y de género/sexualidad
desplegadas por la modernidad. De este modo, las estructuras de larga
duración formadas durante los siglos XVI y XVII continúan jugando
un rol importante en el presente (...) Como resultado, el mundo de
comienzos del siglo XXI necesita una decolonialidad que
complemente la descolonización llevada a cabo en los siglos XIX y
XX. Al contrario de esa descolonialización, la decolonialidad es un
proceso de resignificación a largo plazo, que no se puede reducir a un
acontecimiento jurídico-político22
.
Dentre outras coisas, alguns integrantes da rede
Colonialidade/Modernidade/Decolonialidade dão início a uma ampla revisão histórica.
Grandes genocídios/epistemicídios23
ocorridos no século XVI – como o
genocídio/epistemicídio da população de origem judia e mulçumana na conquista de Al-
Andalus (Espanha); dos povos indígenas na conquista do continente americano; dos
africanos raptados e escravizados no continente americano e o das mulheres queimadas
vivas sobre acusações de bruxaria na Europa (GROSFOGUEL, 2013 b, p. 31) –
resultaram na criação de privilégios (econômicos, epistêmicos etc.) ao homem
ocidental, os quais perduram até os dias de hoje. Somente com as guerras, com a
exploração do outro, do diferente, foi possível conceber esse sistema mundo
Eupopeu/Euro-Norte-americano, moderno/colonial, capitalista/patriarcal
(GROSFÓGUEL; MIGNOLO, 2008, p.37).
22 Tradução nossa: [...] o capitalismo global contemporâneo ressignifica, em um formato pós-moderno, as
exclusões provocadas pelas hierarquias epistêmicas, espirituais, raciais/étnicas e de gênero/sexualidade
implantadas pela modernidade. Deste modo, as estruturas de longa duração formadas durante os séculos
XVI e XVII continuam desempenhando um papel importante no presente [...] Como resultado, o mundo
de começos do século XXI necessita uma decolonialidade que complemente a descolonização levada a
cabo nos séculos XIX e XX. Ao contrário dessa descolonização, a decolonialidade é um processo de
ressignificação a longo prazo que não se pode reduzir a um acontecimento jurídico-político. 23 O conceito de epistemicídio foi desenvolvido por Boaventura de Sousa Santos (2010) para se referir à
destruição de conhecimentos ligados à destruição de pessoas.
26
No Brasil não foi e não é diferente, documentos a exemplo do Relatório
Figueiredo24
e do livro o Holocausto Brasileiro de Daniela Arbex (2013) são provas de
como a sociedade brasileira tratou e ainda hoje trata a diferença. Conflitos que
continuam no século XXI com a falta de demarcação de terras indígenas, onde grandes
latifundiários e empresas de mineração matam pela terra. Longa, violenta e contínua
história.
1.2. Pensamento abissal e amarrações terra-sol.
O termo abismo é usado como metáfora para a depressão psicológica (fundo do
poço) ou para os extremos relativos às diferenças (há um abismo entre nós). Neste
sentido, Boaventura de Sousa Santos (2010, p. 31) fala que o "pensamento moderno
ocidental é um pensamento abissal". Santos afirma que a modernidade é um sistema que
produz distinções visíveis e invisíveis. Um sistema formado por linhas radicais que
dividem a realidade social em dois universos distintos: o universo "deste lado da linha"
e o do "outro lado da linha". Assim, para Santos (2010, p. 32):
A divisão é tal que o "outro lado da linha" desaparece enquanto
realidade, torna-se inexistente, e é produzido como inexistente.
Inexistência significa não existir sob qualquer forma de ser relevante
ou compreensível. Tudo aquilo que é produzido como inexistente é
excluído de forma radical porque permanece exterior ao universo que
a própria concepção aceite de inclusão considera como sendo o Outro.
A característica fundamental do pensamento abissal é a
impossibilidade da copresença dos dois lados da linha. Este lado da
linha só prevalece na medida em que esgota o campo da realidade
relevante. Para além dela há apenas inexistência, invisibilidade e
ausência não dialética.
Santos diz ainda que as diferenças visíveis que estruturam a realidade de um
lado da linha baseiam-se na invisibilidade das diferenças entre um e outro lado. Daí que
o binarismo metafórico visível/invisível usado para elaborar o conceito de pensamento
abissal é fundado na impossibilidade de coexistência dos dois lados. Dentro da realidade
visível, as diferenças seguem classificações, implacáveis construções de verticalidades
hierárquicas que vão do mais claro, no topo, ao mais escuro, na base. Verticalidades
com geometrias deterministas, ancoragens gráficas com evocações solares e hierarquias
dégradés, percebidas, por exemplo, dentro do que Immanuel Wallerstein (2004, p. 241)
24 Documento produzido pelo Estado brasileiro que apurou matanças de tribos inteiras, torturas e toda
sorte de crueldades praticadas contra indígenas em todo o país — principalmente por latifundiários e
funcionários do extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI).
27
chama de sistema-mundo25
, onde se estabilizam centros, semi-periferias e periferias
utilizando, para tanto, uma lente eurocentrada. Abaixo da linha abissal, as opressões são
agravadas pela racialização que dá ensejo justificado a várias formas de violência,
exploração, expropriação e desumanização. Cria-se a ilusão, com ares de verdade, de
que a luz é superior à escuridão, de que a luz é virtude e a inexistência de luz pura
negatividade, de que o sol, portanto, é mais importante do que a lua. Propomos chamar
essas ilusões, esses dispositivos (que produzem e estabilizam hierarquias e oposições)
de ―amarração‖. O termo não é escolhido por acaso, pois se refere a uma das formas de
se manter o navio atrelado ao cais de um determinado porto, uma forma de ancoragem,
além do que é também usado para designar trabalhos de magia no Candomblé e na
Umbanda (religiões de origem Yorubá), feitos por uma sacerdotisa ou sacerdote com a
finalidade de estabelecer e fixar uma união amorosa. O ilusionismo moderno é
constituído por trabalhos de amarração ego-geo-políticos, amarrações Terra-Sol. Ou
seja, é solar, pois pressupõe um critério absoluto a luz e ainda uma única matriz
irradiadora o Sol que precisa da Terra para operar sua geopolítica de colonização.
25 Para Immanuel Wallerstein trata-se de um regime global de poder que tem como característica uma
"superestrutura política que consiste em um conjunto de Estados supostamente soberanos definidos e
limitados por seu pertencimento a uma rede ou sistema interestatal, cujo funcionamento se guia pelo
chamado equilíbrio de poder, mecanismo destinado a garantir que nenhum dos Estados que formam parte
deste sistema interestatal tenha nunca a capacidade de transformá-lo em um império-mundo" (2004, p.
241).
28
Figura 3: Homem segurando o sol. Fotografia disponível no site <http://sorisomail.com/xixinko/1-visual-
imagens.html
Quando se ouve a palavra abissal também associamos a vários tipos de abismo, a
exemplo das depressões ou falhas geológicas proporcionadas por diferentes relevos em
uma paisagem (serras, vales, montanhas etc.), contudo, o termo é também usado para
cavernas verticais e regiões marítimas com grande profundidade. Diferentemente dos
relevos vistos nas paisagens da superfície terrestre, que durante o dia ficam bem
iluminados, na zona abissal marítima ou abisso-pelágica, como também nas profundezas
das cavernas verticais (subsuperficiais), dominam as trevas, sem o benefício da luz do
sol que aí não consegue penetrar. Por essa especificidade da ausência de luz, nessas
regiões encontram-se seres vivos muito particulares, adaptados a um ecossistema
próprio que dispensa a luz. Porém, abaixo da zona abissal, localiza-se a zona hadal,
palavra que em francês significa "lugar da morte", uma referência ao deus da mitologia
grega Hades, também conhecida como fossa oceânica26
.
26 Fossas abissais são as regiões mais profundas dos oceanos. Depressões que se formam abaixo do talude
continental, em zonas de encontro de placas tectônicas, onde uma placa mergulha sobre a outra
(UNIVERSIDADE LUSÓFONA)
29
Segundo uma lógica oceanográfica, essas divisões são feitas com base na
profundidade, que nessas regiões podem chegar a mais de 11 km, com uma pressão que
pode atingir 11000 psi.
Figura 4: Camadas da zona pelágica. Autor: Capmo27
O gráfico acima segue padrões cartesianos, ou seja, as linhas nele traçadas
classificam diferentes áreas ou regiões marítimas, arbitrando fronteiras e espaços com
nomes que seguem quantificações de penetração da luz do sol, da profundidade e do
tipo de vida marinha (Epi/Meso/Bati/Abisso/Hado). Na perspectiva gráfica acima, o sol
e o mar permanecem estáticos (amarrados à imagem) em suas posições polarizadas,
tendo no sol o fundamento, o ponto zero no alto do gráfico. Ao escolher o sol para o alto
da imagem (uma escolha evidentemente arbitrária), a lua é claramente elidida do
sistema: há ―sempre‖ (e somente) luz acima do mar. Por sua vez, ao ignorar a dinâmica
da rotação ou do giro do planeta Terra em relação ao sol, o gráfico cristaliza um
dégradé, uma hierarquia vertical de luz que vai da zona totalmente iluminada, no topo, à
escuridão absoluta na base.
27 O autor consta como referência em um ficheiro da WIKIPÉDIA (2013).
30
Essa construção, que alimenta muitos imaginários, é arrematada com a escolha
de Hades, o deus dos mortos, do mundo inferior na mitologia grega, para denominação
dessas zonas interiores (do mar, da terra), onde a vida se desenvolve em condições
consideradas hostis para o ser humano28
.
Em que pese a evidente importância dos estudos oceanográficos, não podemos
deixar de identificar, nessa construção gráfica, uma semiosfera29
com aspectos
hierárquicos que nos remete ao machismo na ocultação da lua e ao racismo, ao
subalternizar o escuro. É possível perceber também o caráter antropocêntrico da
ancoragem gráfica. A semiosfera ganha densidade com a designação dos seres abissais,
impotentes diante dos dispositivos humanos, como o pequeno peixe Diabo Negro30
(Fig.
2), cujo nome evidencia estereótipos. Tais enunciados que funcionam de forma
espetacular, criam um ilusionismo cercado de representações e evocações
preconceituosas que, por outro lado, lança na invisibilidade os modos singulares dessas
vidas, a biodiversidade, a complexidade ecossistêmica dessas regiões outras,
constituindo e reforçando uma abissofobia31
no mundo troposférico32
. Contudo, o medo
do que se considera hostil, o medo da profundidade, da ausência de luz, de ser
implodido nas diferenças extremas de pressão, não são suficientes para frear o arrivismo
ocidental-capitalista e sua gigantesca máquina de exploração. Para a exploração das
zonas hadais, inventou-se o curioso submersível de nome batiscafo.
28 Nessas condições, os seres vivos possuem corpos gelatinosos para suportar a grande pressão,
movimentos lentos e resistem grandes períodos de tempo sem alimento (ARAGUAIA, Maria) 29
Segundo Machado (2007), o conceito de semiosfera, formulado por I. Lotman para designar a cultura
como um organismo não separando aspectos biológicos e de aspectos culturais. Trata-se de um espaço
que possibilita a realização dos processo comunicativos e a produção de novas informações, funcionando
como um conjunto de diferentes textos e linguagens. 30
Veja-se BBC BRASIL. 31
A abissofobia é um medo incomum que o indivíduo tem de abismos e de precipício (ABC DE
FOBIAS). 32
Troposfera é a porção mais baixa da atmosfera terrestre onde o ser humano respira.
31
Figura 5: Melanocetus johnsonii ou peixe-diabo negro. Fotografia: Senckenberg Forschungsnstitut und
Naturmuseum / Sven Tränkne33
.
O que estamos chamando aqui de pensamento hadal, na trilha do pensamento
abissal de Santos, pressupõe a existência de zonas hadais que podemos compreender
como o interior do interior, a invisibilidade para além do invisível, zonas de morte
desqualificadas pelo agravante da dupla distância. Longe, portanto, do que já é
considerado longínquo. O pensamento hadal nos auxilia a situar estas ―zonas mais
profundas‖, duplamente desqualificadas pelas hierarquias dégradés do pensamento
moderno/colonial, ou seja, o pensamento desqualificador vivido e reproduzido por quem
está desqualificado. É uma expressão de exagero que pressupõe a existência de fendas
ainda mais profundas e pensamentos para lá de abissais. 34
Segundo Grosfoguel35
(2012, p. 93):
Para Fanon, el racismo es una jerarquía global de superioridad e
inferioridad sobre la línea de lo umano que ha sido políticamente
producida y reproducida como estructura de dominación durante
siglos por el «sistema
imperialista/occidentalocéntrico/cristianocéntrico/capitalista/patriarcal
33 A espécie é encontrada em todos os oceanos numa profundidade entre 100 e 2 mil metros (SPIEGEL
ONLINE, 2010). 34
A discussão acerca do pensamento hadal tende a ser aprofundada em pesquisas vindouras, ao longo de
nossa trajetória como artista e pesquisador, pois acreditamos que tal noção pode ser potente para
estudarmos esse ―interior do interior‖ e suas especificidades. 35
Tradução nossa: Para Fanon, o racismo é uma hierarquia global de superioridade e inferioridade sobre a
linha do humano que tem sido politicamente produzida e reproduzida como estrutura de dominação
durante séculos pelo "sistema imperialista/ocidentalocêntrico/cristianocêntrico/capitalista/
patriarcal/moderno/colonial" (Grosfoguel, 2011). As pessoas que estão acima da linha do humano são
reconhecidas socialmente em sua humanidade como seres humanos com subjetividade e com acesso a
direitos humanos/cidadãos/civis/de trabalho. As pessoas abaixo da linha do humano são consideradas sub-
humanos ou não-humanos, é dizer, sua humanidade está questionada e portanto, negada (Fanon, 2010).
32
/moderno/colonial» (Grosfoguel, 2011) 36
. Las personas que están
arriba de la línea de lo humano son reconocidas socialmente en su
humanidad como seres humanos con subjectividad y con acceso a
derechos humanos/ciudadanos/civiles/laborales. Las personas por
debajo de la línea de lo humano son consideradas sub-humanos o no-
humanos, es decir, su humanidade está cuestionada y, por tanto,
negada (Fanon, 2010) 37
.
Para Grosfoguel, a estrutura do racismo é uma instituição de poder, uma
hierarquia de poder global que atravessa todas as relações sociais, inclusive a economia
política, onde se classificam grupos sociais de superiores e outros de inferiores sobre a
linha do humano.
Na zona do ser há um reconhecimento das formas de existir, de ser, de viver, de
pensar, da espiritualidade, das artes, das epistemologias etc., já na zona do não ser, estas
formas são consideradas inferiores. Grosfoguel afirma que não são zonas homogêneas,
tanto acima da linha do humano, quanto abaixo, há uma heterogeneidade de sujeitos.
Afirma também que, na zona do ser, há uma dialética do eu e do outro, trata-se da
dialética hegeliana do reconhecimento, este outro é oprimido em termos de classe, de
gênero, de sexualidade, nacionalidade, religiosidade etc., só que nessa zona, tanto o eu
quanto o outro vivem em comum privilégio racial, embora oprimidos, sua humanidade é
reconhecida por esse eu, portanto não há opressão racial. Já abaixo da zona do ser,
vivem-se todas as opressões descritas acima, só que são agravadas pela opressão racial.
36 GROSFOGUEL, Ramón. 2011. Decolonizing Post-Colonial Studies and Paradigms of Political-
Economy: Transmodernity, Decolonial Thinking and Global Coloniality. Transmodernity:Journal of
Peripheral Cultural Production of the Luso-Hispanic Word Vol. 1, No. 1, 1-38
http://escholarship.org/uc/item/21k6t3fq 37
FRANTZ, Fanon. 2010. Piel Negra, máscaras blancas. Madrid: Akal.
33
Figura 6: Jeannette Ehlers, Black Magic At The White House,38
2009.
03:46, sound, courtesy of the artist and Art Labour Archives. Imagem
extraída do catálogo da exposição Be.Bop 2012. Black Europe Body
Politcs realizada em Berlim, Alemanha (MIGNOLO, 2012).
1.3. Do pensamento abissal à decolonialidade
Tentando ir além da lógica única e determinista do pensamento hierárquico, o
filósofo grego Kyriankos Kontopoulos (1993) elabora o termo pensamento heterárquico.
Para Santiago Castro-Gómes e Ramón Grosfoguel (2007, p. 18):39
El pensamiento heterárquico es un intento por conceptualizar las
estructuras sociales con un nuevo lenguaje que desborda el paradigma
de la ciencia social eurocéntrica heredado desde el siglo XIX. El viejo
lenguaje es para sistemas cerrados, pues tiene una lógica única que
determina todo lo demás desde una sola jerarquía de poder. Por el
contrario, necesitamos un lenguaje capaz de pensar los sistemas de
poder como una serie de dispositivos heterónomos vinculados en red.
Las heterarquías son estructuras complejas en las que no existe un nivel
38 Tradução nossa: Jeannette Ehlers, Magia Negra na Casa Branca, 2009. 03:46, som, cortesia da artista e
Art Labour Archives. 39
Tradução nossa:"o pensamento heterárquico é uma tentativa de conceitualizar as estruturas sociais com
uma nova linguagem que vai além do paradigma da ciência social eurocêntrica herdada do século XIX. A
velha linguagem é para sistemas fechados, pois tem uma lógica única que determina todas as demais a
partir de uma só hierarquia de poder. Por outro lado, necessitamos de uma linguagem capaz de pensar os
sistemas de poder como uma série de dispositivos heterônomos vinculados em rede. As heterarquias são
estruturas complexas em que não existe um nível básico que governa sobre os demais, mas que todos os
níveis exercem algum grau de influência mútua em diferentes aspectos particulares e atendendo a
conjunturas históricas específicas. Em uma heterarquia, a integração dos elementos disfuncionais ao
sistema jamais é completo, como na hierarquia, mas parcial, o que significa que no capitalismo global não
há lógicas autônomas nem tão pouco uma só lógica determinante "em última instância", que governa
sobre todas as demais, mas existem processos complexos, heterogêneos e múltiplos, com diferentes
temporalidades, dentro de um só sistema-mundo de larga duração. No momento em que os múltiplos
dispositivos de poder são considerados como sistemas complexos vinculados em rede, a ideia de uma
lógica 'em última instância" e de domínio autônomo de alguns dispositivos sobre outros desaparece."
34
básico que gobierna sobre los demás, sino que todos los niveles ejercen
algún grado de influencia mutua en diferentes aspectos particulares y
atendiendo a coyunturas históricas específicas. En una heterarquía, la
integración de los elementos disfuncionales al sistema jamás es
completa, como en la jerarquía, sino parcial, lo cual significa que en el
capitalismo global no hay lógicas autónomas ni tampoco una sola
lógica determinante ‗en última instancia‘ que gobierna sobre todas las
demás, sino que más bien existen procesos complejos, heterogéneos y
múltiples, con diferentes temporalidades, dentro de un solo sistema-
mundo de larga duración. En el momento en que los múltiples
dispositivos de poder son considerados como sistemas complejos
vinculados en red, la idea de una lógica ‗en última instancia‘ y del
dominio autónomo de unos dispositivos sobre otros desaparece.
O pensamento abissal, moderno, ocidental com pretensão de universalidade40
foi
construído e disseminado, como vimos, mediante dispositivos de dominação epistêmica.
Santos (2006, p. 137-165) busca contrapor a essa monocultura do conhecimento
científico a ecologia de saberes que é, a seu modo, outra forma de afirmar uma
heterarquia epistêmica. Para Santos (2010, p. 53):
É uma ecologia, porque se baseia no reconhecimento da pluralidade de
conhecimentos heterogêneos (sendo um deles a ciência moderna) e em
interações sustentáveis e dinâmicas entre eles sem comprometer a sua
autonomia. A ecologia de saberes baseia-se na ideia de que o
conhecimento é interconhecimento.
A ecologia de saberes proposta por Sousa Santos pode ser articulada ao
pensamento transmoderno defendido por Enrique Dussel (1994), o qual busca
transcender a modernidade eurocentrada (Dussel, 2001). Para Dussel (1994, p. 7), a
manutenção da razão moderna oculta um mito irracional, "mito que consiste na
justificação da violência‖, que para esse autor deve ser negada e superada. Dussel
propõe a transmodernidade enquanto um projeto utópico. Para Grosfoguel (2010, p.
482):
Ao contrário do projeto de Habermas, em que o objetivo é concretizar o
incompleto e inacabado projeto da modernidade, a transmodernidade de
Dussel visa concretizar o inacabado e incompleto projeto novecentista da
descolonização. Em vez de uma única modernidade, centrada na Europa e
imposta ao resto do mundo como um desenho global, Dussel propõe que se
enfrente a modernidade eurocentrada através de uma multiplicidade de
respostas críticas descoloniais que partam das culturas e lugares epistémicos
subalternos de povos colonizados de todo o mundo.
40 A pretensão de universalizar o pensamento ocidental está posta, por exemplo, no idealismo absoluto do
filósofo alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel.
35
Para Walter Mignolo (2000) a transmodernidade seria equivalente à
"diversalidade enquanto projeto universal" e um resultado do "pensamento crítico de
fronteira" enquanto intervenção epistêmica dos diversos subalternos. Revisão,
redefinição histórica, semiótica e conceitual são respostas dos pensamentos críticos de
fronteira. O ―pensamento crítico de fronteira‖ é uma noção cunhada por Mignolo
(2000), inspirado em pensadores/as chicanos/as como Gloria Anzaldúa (1987) e Jose
David Saldívar (1997) e surgiu como uma das consequências inevitáveis do
expansionismo moderno/colonial, constituindo-se como:
[...] resposta epistémica do subalterno ao projeto eurocêntrico da
modernidade. Ao invés de rejeitarem a modernidade para se
recolherem num absolutismo fundamentalista, as epistemologias de
fronteira subsumem/redefinem a retórica emancipatória da
modernidade a partir das cosmologias e epistemologias do subalterno,
localizadas no lado oprimido e explorado da diferença colonial, rumo
a uma luta de libertação descolonial em prol de um mundo capaz de
superar a modernidade eurocentrada. Aquilo que o pensamento de
fronteira produz é uma redefinição/subsunção da cidadania e da
democracia, dos direitos humanos, da humanidade e das relações
económicas para lá das definições impostas pela modernidade
europeia. O pensamento de fronteira não é um fundamentalismo
antimoderno. É uma resposta transmoderna descolonial do subalterno
perante a modernidade eurocêntrica (GROSFOGUEL, 2010, p. 480).
Outra noção cara aos estudos decoloniais é a de ―giro decolonial‖, de Nelson
Maldonado-Torres, que pensa essa expressão referindo-se, em primeiro lugar:
[...] à percepção de que as formas modernas de poder têm produzido e
ocultado a criação de tecnologias de morte que afetam de forma
diferente as distintas comunidades e sujeitos. Isto também se refere ao
reconhecimento de que as formas coloniais de poder são múltiplas e
que tanto os conhecimentos, como a experiência vivida de sujeitos que
foram marcados pelo projeto de morte e desumanização modernos são
altamente relevantes para entender as formas modernas de poder e
para fornecer alternativas para as mesmas. Neste sentido, não se trata
de uma gramática da descolonização, nem de um único ideal de
mundo descolonizado. O conceito de giro decolonial em sua expressão
mais básica busca colocar no centro do debate a questão da
colonização como componente constitutivo da modernidade, e a
descolonização como inúmeras e indefinidas estratégias e formas
contestatórias que buscam uma mudança radical nas formas
hegemônicas atuais de poder, ser e saber (MALDONADO-TORRES,
2008 b, p. 66).
O pensamento crítico de fronteira, a ecologia de saberes, o pensamento
heterárquico e o giro decolonial mostram-se como pensamentos constitutivos de
possíveis "estruturas dissipativas" (PRIGOGINE, 1997) que buscam interações de
36
coexistência. Estruturas que podem indicar saídas para a crise (civilizatória) que surge
do pensamento eurocentrado.
1.4.Ciência moderna na perspectiva decolonial
Na perspectiva decolonial, as hierarquias vistas na panpolítica da mitologia
egípcia e grega foram substituídas pela teopolítica na Idade Média e, na modernidade, a
teopolítica foi substituída pela egopolítica. De acordo com Ramón Grosfoguel (2010, p.
460):
Descartes substitui Deus, fundamento do conhecimento na teopolítica
do conhecimento da Europa da Idade Média, pelo Homem (ocidental),
fundamento do conhecimento na Europa dos tempos modernos. Todos
os atributos de Deus são agora extrapolados para o Homem
(ocidental). Essa verdade universal que está para além do tempo e do
espaço, o acesso privilegiado às leis do universo, e a capacidade de
produzir conhecimento e teorias científicas, tudo isso está agora
situado na mente do Homem ocidental.
Grosfoguel (2010, p. 460) diz ainda que, ―o ego-cogito cartesiano (‗penso, logo
existo‘) é o fundamento das ciências modernas ocidentais‖ e relembra os argumentos de
Enrique Dussel na afirmação de que ―o ‗penso, logo existo‘ do século XVII foi
precedido por 150 anos de ‗conquisto, logo existo‘ (ego-conquiro)‖ (GROSFOGUEL,
2013b, p.33). Grosfoguel (2013b) conclui que, a partir de então, o que se vê na história
da conquista da América é a aplicação do ―extermino, logo existo‖ (ego-extermino)
como fator de mediação sociohistórica estrutural entre o ego-cogito e o ego-conquiro. É
assim que os genocídios/epistemicídios do século XVI (ego-extermino) são fundantes
das estruturas de conhecimento modernas.
Ilya Prigogine41
(1997) afirma que, em Descartes, ocorre um dualismo pela
ruptura entre a matéria (res extensa - as verdades de Newton, Einstein, Schroedinger) e
o pensamento (res cogitans - a verdade do homem), assim como também ocorre em
Immanuel Kant pelo nômeno e o fenômeno (Teoria da Razão Pura). Essa ruptura se dá
pelo "milagre laico" (PRIGOGINE, 1997) das leis de Newton em oposição a toda forma
de crença religiosa. Para ele, a fenda entre esse dois mundos (o das leis da natureza e o
do pensamento do homem) conduziu a ideia de duas culturas distintas, e isso é típico do
41 PRIGOGINE, Ilya. Grandes pensadores do Século XX. Disponível
em:<http://www.youtube.com/watch?v=tuqrvPQ7nAk> Acesso em 25/07/2013.
37
pensamento ocidental hegemônico. No Oriente, a exemplo das culturas da Índia e da
China, a ideia de lei, de legalidade, de obrigação de legalidade nunca foi formulada.
Em Descartes, renasce o pensamento grego dualista visto em Platão. Finalmente,
para Prigogine, quando os filósofos se separam deste dualismo, se tornam anti-
científicos, pois se colocam diante do problema do tempo, como Heidegger e Bergson, e
como a ciência clássica não considerava este tempo como existencial, como tempo de
decisões, como o tempo de Sartre e de Kierkegaard, então haviam que rechaçar a
ciência. Um rechaço que, segundo Prigogine, se faz em nome do tempo existencial, da
vida humana.
Figura 7: Daniel Pellegrim Sanchez, 2° Tempo, 2012, fotografia.
Não há como negar a validade relativa do pensamento dualista, mas é preciso
subsumi-lo. Prigogine pensa como "superar o dualismo sem negar a ciência ou a
filosofia", propõe um mundo em que coexista as duas, uma imagem não contraditória,
constituída das leis de Newton, mas também da vida e do humano. Um locus onde
coexista a inteligibilidade da natureza e o mundo humanista dos valores.
Prigogine (1997) acentua o caráter probabilista da ciência com o que ele chama
de flutuações, evoluções e instabilidades. Ao ancorar probabilidade ao que chama de
"flecha do tempo", considerando as auto-organizações e bifurcações, Prigogine (1997)
enuncia o "fim das certezas". Com as incertezas, longe do equilíbrio, do determinismo e
no regime das flutuações, nas bifurcações, nascem novas soluções, novos sistemas
complexos que se mostram como "estruturas dissipativas", interativas (como as cidades,
38
por exemplo). Fazer coexistir essas novas estruturas com o que já estava estável é o
desafio da ciência, proposto por Prigogine.
Figura 8: Quinsy Gario, The Bearable Ordeal of the Collapse of Certainties42
, 2011, theater & poetry.
Foto: Brett Russel. Imagem extraída do catálogo da exposição Be.Bop 2012. Black Europe Body Politcs
realizada em Berlim Alemanha (MIGNOLO, 2012).
Contudo, o pensamento filosófico que seculariza a teologia cristã
hierarquizadora de mentes/corpos, e que também subalterniza as localidades ―outras‖
fora da Europa ocidental (―o resto do mundo‖), acaba por processar insensatez,
desequilíbrios e injustiças percebidas, hoje em dia, em diversos problemas ambientais e
sociais, além das irracionalidades da não-coexistência.
42 Tradução nossa: Quinsy Gario, O calvário suportável do colapso das certezas, 2011, teatro e poesia.
39
Figura 9: Sumugan Sivanesan, A Children´s Book of War, A [Not So] Secret War. Terra Nullius and the
Permanent State of Exception, 1:46, sound43
, 2010. Courtesy of the Artist and The Momentum Collection.
Imagem extraída do catálogo da exposição Be.Bop 2012. Black Europe Body Politcs realizada em Berlim
Alemanha (MIGNOLO, 2012).
A esse propósito, Donna Haraway (1988) afirma a necessidade de confrontar os
conhecimentos em sua visada dualista que lança uma cortina de fumaça sobre o corpo e
a localidade, com a pretensão de fundar um universalismo abstrato não situado, em
outras palavras, um universalismo onipresente. Assim, as amarrações platônicas,
cartesianas, kantianas, hegelianas recriam a representação, a magia do Olho da
Providência44
, em uma perspectiva falconiana (que do alto observa a todos, mas não
pode ser observado facilmente) que lembra Re-Horakhty45
, o deus da mitologia egípcia,
e que mantém uma perspectiva de "ponto zero". Segundo Santiago Castro-Gomez46
(2003 apud GROSFOGUEL, 2010, p. 460):
O ―ponto zero‖ é o ponto de vista que se esconde e, escondendo-se, se
coloca para lá de qualquer ponto de vista, ou seja, é o ponto de vista
que se representa como não tendo um ponto de vista. É esta visão
através do olhar de deus que esconde sempre a sua perspectiva local e
concreta sob um universalismo abstrato. A filosofia ocidental
privilegia a ―egopolítica do conhecimento‖ em desfavor da
―geopolítica do conhecimento‖ e da ―corpo-política do
conhecimento‖. Em termos históricos, isto permitiu ao homem
ocidental (esta referência ao sexo masculino é usada
intencionalmente) representar o seu conhecimento como o único capaz
de alcançar uma consciência universal, bem como dispensar o
conhecimento não-ocidental por ser particularístico e, portanto,
incapaz de alcançar a universalidade.
O iluminismo não só o tira teo do centro político para nele colocar o homem, a
saber, branco-europeu-judaico-cristão-capitalista-moderno, como também tenta fazer
inúmeros trabalhos de amarração de tudo e de todos, a ego-política hegemônica que se
assenta em um "castelo no céu"47
.
43 Tradução nossa: Sumugan Sivanesan, Um Livro de Guerra para Crianças, A [Not So] Guerra Secreta.
Terra Nullius e o Permanente Estado de Exceção, 1:46, som, 2010 Cortesia do Artista e de Momentum
Collection. 44 O olho de Deus que observa a humanidade. 45
Hibrido de Rá (Deus Sol na mitologia egípcia) e Hórus (dos Dois Horizontes) que, segundo essa
mitologia, era o soberano de todas as parte do mundo, ou seja, do céu, da terra e do mundo inferior. 46
CASTRO-GOMEZ, Santiago. La Hybris del Punto Cero. ciencia, raza e ilustración em la Nueva
Granada (1750-1816) Bogotá: Editora Pontifica Universidade Javeriana, 2003. 47 Titulo do filme de animação de Hayao Miyazaki, 1986
40
Figura 10: Daniel Pellegrim Sanchez, sem título, 2014, fotografia.
Explorar, sondar, controlar e dominar o universo a despeito dos outros que o
compartilham revela-se arrogância comum ao pensamento moderno eurocentrado.
Em entrevista (ESTÉTICAS DECOLONIAIS, 2010), Walter Mignolo afirma
que a luta no século XXI, visando controle e poder, se faz através do controle do
conhecimento. Nessa perspectiva, surge o problema da demarcação (contorno, fronteira)
na filosofia da ciência, que diz respeito à dificuldade em fazer a distinção entre teorias
científicas e teorias não-científicas (que nem teriam o estatuto de teorias). A questão é o
não reconhecimento da diversidade epistemológica tanto no interior da ciência, como na
relação entre ciência e outros conhecimentos/saberes não validados como científicos.
A lógica da ciência moderna, do dividir para conhecer, é responsável pelo
estabelecimento de suas divisões internas (ciências formais, ciências físico-químicas e
experimentais, ciências sociais, ciências humanas etc.) e pela especialização do cientista
que é instado a dedicar-se a apenas uma dessas disciplinas operando, também, em seu
interior, outras subdivisões.
Para Walter Mignolo (idem, ibidem), as disciplinas acadêmicas são dispositivos
de controle, uma vez que só se legitima o cientista que obedece às regras da disciplina,
lógica essa que converte a ciência em uma gigantesca máquina de processar decadência
41
epistêmica. Para esse autor, as narrativas de progresso científico, de salvação pela
ciência, de sacralização da teoria são formas de decadência epistêmica e disciplinar.
Declínio que fica evidente através da persistência acrítica de noções e conceitos
coloniais racistas. Os domínios disciplinares estão relacionados, pela enunciação, com
fundamentos patriarcais calcados na secularização da teologia cristã que se convertera,
na Renascença, em filosofia e em ciência. Mignolo explica que a matriz colonial de
poder atua em dois níveis: o do enunciado (o já realizado) que aparece diante de nossos
sentidos através do discurso e o da enunciação (ato de produzir o enunciado), onde se
controla o conhecimento. Fica evidente a manipulação de enunciados e enunciações,
desde o iluminismo, que colocam a Europa como centro epistêmico do mundo, segundo
uma ontologia diferenciadora que apaga aqueles que estão à margem. Para Mignolo, é
preciso se desvincular das lógicas de domínio onde a narrativa da inovação inferioriza
conhecimentos tradicionais, locais, entre outros. Se entrarmos em um conflito somente
nos domínios e não questionarmos os lugares e as regras dos lugares a partir dos quais
esses domínios são constituídos, vigiados, controlados e mantidos, viveremos sempre a
angústia de uma suposta defasagem, de um anacronismo atávico que nos localiza
sempre em alguma retaguarda.
O encobrimento do pensamento ―outro‖ com classificações e hierarquizações
são os nós do pensamento moderno eurocentrado. Se, por um lado, se acumula e produz
escassez, por outro, desclassifica-se, desqualifica-se, descredencia-se, gera insegurança
e desconfiança em tudo aquilo que não está "amarrado".
Sobre o pensamento ―outro‖, Ludmila Brandão e Rosane Preciosa (2010)
lembram o esforço levado a efeito por Lévi-Strauss para descrever e classificar o
suposto tipo de pensamento dos indígenas no Brasil que, não tendo ciência, nem arte,
produziam ainda assim algum conhecimento. Nas comparações que faz entre as
potencialidades dessas formas de conhecimento, destacando a primazia da ciência em
sua capacidade especulativa por ser fundada na abstração, o antropólogo propõe as
expressões ―pensamento selvagem‖, ―pensamento do concreto‖, ―pensamento mítico‖ e
―bricolagem‖ para designar o modo de conhecimento e de pensamento em cuja
descrição Lévi-Strauss afirma tratar-se de um universo fechado, com dificuldades de
incorporação do novo (particularidade do mito), incapacidade de abstração
(particularidade do pensamento do concreto), criação limitada aos rearranjos com os
42
mesmos elementos (característica da bricolagem) claramente em desvantagem aos
modos ocidentais de pensar e conhecer (BRANDÃO; PRECIOSA, 2010). Esse
pensamento, dizem as autoras, dominou quase toda a antropologia do século XX e
alastrou-se pelas Humanidades que se incumbiram de transformar a bricolagem lévi-
straussiana que designava uma suposta forma de pensamento dos indígenas em modo
operatório de ―criação‖ (pleno de limitações) dos grupos subalternos em geral. Diante
de um objeto único, não seriável, que impede a classificação como artesanato, utiliza-se
a categoria ―bricolagem‖, classificação que abriu-nos possibilidades para pensar a
decolonização da estética, a (de)colonialidade da arte.
43
2. COLONIALIDADE DA ARTE
Walter Mignolo, em entrevista dada ao evento BE.BOP 2012 – BLACK
EUROPE BODY POLITICS48
, realizado em Berlim, escreve sobre o processo global
de "descolonizar a estética para libertar aesthesis" como resposta e esforço de
desvinculação com o lado mais sombrio da modernidade e da globalização, ou seja, com
a colonialidade.
Para Mignolo (2010), Aristóteles (335 a.C. e 323 a.C) em A Poética, distingue
aesthesis de poiésis e “fue acerca de la poiesis que Aristóteles teorizó en el discurso de
la Poética; y en la poética, mimesis y catarsis‖49
(2010, p. 14). Quanto à aesthesis,
Mignolo trata-a como outra esfera, que se associa ao sentimento, ao afeto e à percepção.
Enquanto a poiésis tem o foco na rede de relações entre as criações artísticas, a aesthesis
destaca a sensibilidade do público. "Faculdade de sentir", "compreensão pelos sentidos",
"percepção totalizante" são conceitos derivados da aesthesis.
Mignolo (2009, p. 10) afirma que a palavra ―estética deriva de aiesthetikos‖ e
que a apropriação do conceito de aesthesis foi feita no século dezoito, na Europa, por
filósofos como Alexander Gottlieb Baumgarten e Immanuel Kant. Ainda para o autor
(2009, p.10), ―antes de Baumgarten y la publicación de Aesthetica (1750) la palabra es
poco usual tanto en el latín como en las lenguas vernáculares Europeas‖ 50
. Na época em
que surge a palavra, a Europa vivia um momento de mudanças radicais em seu
imaginário. Dentre essas mudanças, Mignolo (2009) cita a aceitação de ―religiões do
mundo‖ – instrumento com o qual o estudo secular das religiões desloca o controle que
a teologia cristã teria nesse domínio – e a criação da linguagem da economia política
com a obra clássica de Adam Smith, A riqueza das nações (1776). O projeto
revolucionário europeu do secularismo51
uniu estética, teologia cristã e economia
48 MIGNOLO, Walter. Decolonial Aisthesis and Other Options Related tho Aesthetics. Be.Bop 2012.
Black Europe Body Politcs. Berlim. Alemanha, 2012. 49
Tradução nossa: ―foi acerca da poiesis que Aristóteles teorizou o discurso da Poética; e na poética,
mimesis e catarsis” 50
Tradução nossa: ―antes de Baumgarten e a publicação de Aesthetica (1750) a palavra era pouco usada
tanto em latin quanto nas línguas vernaculares europeias‖. 51
sm (secular+ismo) 1 Regime secular ou laical. 2 Espírito ou tendência secular. 3 Sistema ético que
rejeita toda forma de fé e devoção religiosas e aceita como diretrizes apenas os fatos e influências
derivados da vida presente; laicismo. 4 Doutrina segundo a qual devem ser excluídos da educação pública
44
política, mobilizando e modelando a segunda expansão imperial52
liderada por França e
Inglaterra. É também neste momento que o conceito de literatura se expande.
A obra de Kant Observações sobre o belo e o sublime (1776, seção IV) é citada
por Mignolo (2009, p. 10) para dizer que a partir desse momento, ―cuanto más va el
pensamiento de Europa hacia el sur y hacia Oriente y llega a Asia, África y América,
menor parece ser – para este modo de pensar – la capacidad de las poblaciones no
europeas de sentir lo bello y lo sublime estético‖53
. Ao transformar as sensações em
apreciação do belo e do sublime, gerou-se um sistema que privilegiou o olhar sobre os
outros sentidos e é por isso que a representação e a denotação – articuladas à noção de
poiesis – tomaram tamanha importância na modernidade. Mignolo (ESTÉTICAS
DECOLONIALES, 2010) justifica que ―por isso é tão difícil entendermos e sentirmos
as sensações de um Aymara, um Quechua, que não tem o olhar como ponto de
referência".
Ainda segundo Mignolo (2009, p.11), o estético e o conceito secular de razão
cumprem duas funções complementares, são elas:
a) en Europa se comienza a construir una subjetividad secular y
burguesa que se separa de la subjetividad sagrada y teológica
construída a partir del Renacimiento y liderada por los países del sur
y, b) fuera de Europa, la estética emerge como un nuevo concepto y
critério para (de)evaluar y jerarquizar la creatividad sensorial de otras
civilizaciones.54
O autor segue explicando ainda que é neste contexto que surgem distinções
como arte e artesanato, ou seja, são usados critérios como ―de que uma ‗tela‘ é arte e um
objeto de argila ‗artesanato‘‖, de que antigos ―livros chineses‖ (rolos de papel) e objetos
e códigos da civilização Asteca sejam exibidos em Museus de História Natural. É a
partir do século XVIII que se constrói na Europa o ―museu‖ (casa das musas) formando
e de outros assuntos estatais elementos religiosos. (DICIONÁRIO ONLINE DE PORTUGUÊS, 2014.
Disponível em:< http://www.dicio.com.br/secularismo/> Acesso em 11/09/2014.) 52
Pressupomos que a primeira expansão imperial moderna trata-se da chegada de espanhóis e portugueses
no continente americano no século XV. 53
Tradução nossa: ―quanto mais vai o pensamento da Europa ao Sul e ao Oriente, chegando a Ásia,
África e América menor parece ser – para esse modo de pensar – a capacidade dessas populações não
europeias de sentir o belo e o sublime estético‖ 54
Tradução nossa: a) na Europa se começa a construir uma subjetividade secular e burguesa que se separa
da subjetividade sagrada e teológica construída a partir do Renascimento e liderada por países do sul e b)
fora da Europa, a estética emerge como um novo conceito e critério para (des)avaliar e hierarquizar a
criatividade sensorial de outras civilizações.
45
uma nova complexidade na arte e na estética. No decorrer do século XIX, os museus
acabam por se dividir em duas trajetórias: ―el ‗museo‘ que organiza la memoria y el arte
de Europa y el ‗museo‘ que colecciona y organiza los objetos exóticos de las colonias
de Europa, aún aquellos anteriores al momento de la colonización‖55
(MIGNOLO,
2009, p.11). É nesta época que mercadores, viajantes e coletores buscam, ao redor do
mundo, objetos exóticos que não são considerados arte mas que, por sua vez, constituem
a colonialidade do saber (conhecimento) e, por conseguinte, do ser (subjetividade).
Para Mignolo (2009, p.12):
La estética atraviesa género y sexualidade, y también racialidad en
tanto arte y estética imponen un patrón ideal de beleza que va del arte
a Miss Universo y la indústria de la moda. Y el arte (también la
filosofia, la ciência, la tecnologia e la religión cristina) estabelece un
patrón a partir del cual se classifica y jerarquiza el orden del mundo.
La estética y el arte fueron y continúan siendo instrumento
institucional de colonialidad. 56
Assim, como em uma máquina de produzir diferenças e hierarquias, a estética e
a arte seguem criando padrões. Além da diferença entre as culturas, existe também o
aspecto da distância. De acordo com Zulma Palermo (2009, p.16):
La diferencia instala los critérios de superioridad/inferioridad entre las
culturas; la distancia señala una doble magnitude: por un lado, la de
carácter físico: la lejanía con el centro de poder; la outra, de caráter
temporal: progreso/atraso que niega contemporaneidad a lo distinto;
ambas dan consistência a la relación entre civilización y cultura, y
entre cultura y naturaleza.57
Para Palermo (2009, p.16), na América Latina, desde o primeiro e trágico
contato com europeus no século XV, podem ser identificadas buscas de alternativas ao
poder hegemônico. Essa genealogia de mais de 500 anos à procura de plataformas de
55 Tradução nossa: ―o ‗museu‖ que organiza a memória e a arte da Europa e o ‗museu‘ que coleciona e
organiza os objetos exóticos vindo das colônias da Europa, aqueles anteriores ao momento da
colonização‖ 56
Tradução nossa: A estética atravessa gênero e sexualidade, e também racialidade, tanto arte quanto
estética impõe um padrão ideal de beleza que vai da arte a Miss Universo e a indústria da moda. É a arte
(também a filosofia, a ciência, a tecnologia e a religião cristã) que estabelece um padrão a partir do qual
se classifica e hierarquiza a ordem do mundo. A estética e a arte foram e continuam sendo instrumento
institucional de colonialidade. 57
Tradução nossa: A diferença instala os critérios de superioridade/inferioridade entre as culturas; na
distância nota-se uma dupla magnitude: por um lado, a de caráter físico: a distância com o centro do
poder; a outra, de caráter temporal: progresso/atraso que nega contemporaneidade ao distinto: ambas dão
consistência a relação entre civilização e cultura e entre cultura e natureza.
46
pensamento próprio, de pensamentos e produções autônomas se mostra como uma
diferença fundamental em relação ao pensamento produzido nas últimas colônias (Índia,
África e Oriente) que romperam com a sujeição política aos impérios. Palermo (2009,
p.17) informa que ―desde esse primer contacto, las oposiciones valorativas: superioridad
vs. inferioridad, primitivo vs. civilizado habrán de regir los criterios estéticos que se
ponen en circulación‖58
.
Do dualismo ontológico natureza/cultura, desdobram-se as oposições
primitivo/civilizado, tradicional/moderno, popular/erudito, subalterno/hegemônico,
impuro/puro, atraso/progresso, regional/universal, longe/perto, local/global entre outras.
Para Palermo (2009, p. 17) são:
Las ―escuelas‖ – en sus dos dimensiones occidentales: como centros
de adquisición de conocimientos y como corrientes estéticas – se
instalan y generan los criterios de validación que habrán de regir
durante más de cinco siglos. Descartadas las producciones de las
culturas preexistentes y consideradas sólo por su autoctonismo – rasgo
de disvalor frente a ―universalidad‖ de las obras que se canonizam –
las que se originan en este cono del mundo no sólo devem adecuar-se
a los ―modelos‖ exteriores, sino que siempre se verán como
―asíncrónicas‖ por ralación a éstos ya que los rasgos de innovación
llegan tarde y, por general, sin su ―pureza‖ y ―autenticidad‖. Es esta
concepción de superioridad la que llevó siempre a nuestros artistas a
atravesar los mares y cruzar el continente para acercarse a las fuentes
directas del ―saber hacer‖ como los ―outros‖. Acá radica la
colonialidad: en el estar convencidos de ―el bien, la verdad y la
belleza‖ están en otro lugar y no en el próprio.59
Assim, entendemos que é necessário discorrermos sobre o conceito de lugar
dialogando com Palermo (2009), de modo a tentar ir além das concepções de espaço
físico e habitat, principalmente para pensarmos os dias de hoje, onde circulam com
muita intensidade o discurso da globalização. Para Palermo (2009, p.17) ―el lugar és
58 Tradução nossa: ―desde esse primeiro contato as oposições valorativas, superioridade vs inferioridade,
primitivo vs civilizado, irão reger os critérios estéticos que se põe em circulação.‖ 59 Tradução nossa: As ―escolas‖ – em suas duas dimensões ocidentais: como centros de aquisição de
conhecimentos e como correntes estéticas – se instalam e geram os critérios de validação que irão regir
durante mais de cinco séculos. Descartadas as produções das culturas preexistentes e consideradas
somente poe sue autoctonismo – recurso de desvalor frente a ―universalidade‖ das obras que se
canonizam – as que se originan neste cone do mundo não só devem adequar-se aos ―modelos‖ exteriores,
mas que sempre se verão como ―assincrônicas‖ em relação a estes já que os recursos de inovação chegam
tarde e, em geral, sem sua ―pureza‖ e ―autenticidade‖. É esta concepção de superioridade que levou
sempre nossos artistas a atravessar os mares e cruzar o continente para aproximar-se das fontes diretas do
―saber fazer‖ como os ―outros‖. Aqui radica a colonialidade: em estar convencidos de que ―o bem, a
verdade e a beleza‖ estão em outro lugar e não nele próprio.
47
mas bien lo que dá significado al mundo integrando cosas, cuerpos y memorias en
configuraciones particulares, generando espacios o regiones para la existencia60
. Para
Palermo, há uma enorme diferença entre habitar um lugar, viver em um lugar e estar
determinado por ele – por mais que saibamos o quanto os lugares condicionam modos
de vida. O lugar, pela perspectiva de Palermo, está atravessado por muitos lugares.
Diversas formas de pensamento e de produção constituem um trabalho de arte. Assim, é
possível fazer uma reflexão sobre as oposições local/global na arte, sobre a produção
local e a circulação global. Segundo Palermo (2009, p.18) temos que pensar sobre ―las
formas por las que la lugarización alcance ―plusvalia‖ y validez para formar parte de esa
expansión em simetria com la procedente de cualquier localización planetária‖61
. Com
isso, assumimos que a expansão gerada pela globalização produz relações assimétricas
de produção e circulação artística. De acordo com Palermo (2009, p. 18):
La cuestión se plantea en las formas por las que se puede concretar la
decolonialidad de la ―narrativa estética‖ eurocentrada. Cuando nos
decimos a nosotros mismos dentro del campo del arte, lo hacemos con
los instrumentos (linguajes y técnicas) adquiridos.62
Assim Palermo questiona: Existe una posibilidad distinta para uma ―estética‖
que dé forma a una ―ética‖ de la diferencia?63
Para responder a essa questão, propomos acompanhar os modos pelos quais as
diferenças são produzidas. E perguntamos: Para que e para quem são produzidas?
Quem/o que se beneficia da(s) diferença(s) no campo das artes?
Sobre essa questão Boaventura de Sousa Santos (2003, p. 56) diz:
Temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos
inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa
igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade
que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza,
alimente ou reproduza as desigualdades.
60 Tradução nossa: O lugar é por sua vez o que dá significado ao mundo integrando coisas, corpos e
memórias em configurações particulares, gerando espaços ou regiões para a existência. 61
Tradução nossa: ―as formas pelas quais a lugarização alcance ―plusvalia‖ e validez para fazer parte
dessa expansão em simetria com a procedente de qualquer localização planetária.‖ 62
Tradução nossa: A questão surge nas formas pelas quais se pode concretizar a decolonialidade da
―narrativa estética‖ eurocentrada. Quando nos dizemos a nós mesmos dentro do campo da arte, o
fazermos com os instrumentos (linguagens e técnicas) adquiridos. 63
Tradução nossa: Existe uma possibilidade distinta para uma ―estética‖ que dê forma a uma ―ética‖ da
diferença?
48
Como isso pode orientar uma ética da diferença que permeie as artes?
Entendemos que uma obra de arte se potencializa enquanto trabalho decolonial
quando evidencia, justamente, os modos de produção de diferença, quando põe à baila
os atores dessa rede de relações a que chamamos ―sistema das artes‖, o qual costuma
invisibilizar, inclusive tornando inaudível as vozes de artistas, ou desqualificar outros
mundos da arte e suas produções que mal conseguem sair dos lugares de confinamento
que lhes são destinados. A produção artística decolonial pede circuitos outros, não se
alinha, não está ―atrás‖ da produção europeia/estadunidense, está lado a lado, é
produzida junto, pelo mesmo projeto que qualifica e desqualifica modos de fazer arte e
de ser artista, instaurando espaços para que uns vivam – e bem – de arte e negando
espaços a outros.
Percebemos na América Latina a repetição das ―narrativas estéticas‖
eurocentradas, principalmente francocentradas, gerando inclusive alguns modismos na
Academia – o que configura a colonialidade estética; por outro lado existe a busca por
―narrativas outras‖, as quais podemos citar com Palermo (2009, p.19) o ―barroco
americano, passando por antropofagias, transculturações e hibridações de diferentes
cunhos‖. Além dessas respostas, outras começam a ser gestadas, como bem evidencia
Walter Mignolo em Aiesthesis Decolonial (2010), e podem ser encontradas dentro e
fora do Brasil, nas metrópoles ou no interior, obras que das mais diversas maneiras,
explícita ou implicitamente, questionam as perversidades do ―sistema da arte‖ – sistema
este que reproduz as ―narrativas estéticas‖ eurocentradas que orientam os diversos
modos, modelos e vias de produção e circulação de arte, tais como curadoria e crítica,
museus e galerias, jornalismo cultural, mercado de arte etc. Cito como exemplo a obra
de Yuri Firmeza, do Ceará, que inventou um artista e uma exposição para questionar a
imprensa, curadorias, espaços expositivos e fazer uma crítica a esse sistema,
evidenciando a geopolítica que hierarquiza ―artistas e obras segundo as origens, a classe
social, o gênero, a etnia etc.‖ (BRANDÃO, 2014 a, p.1), tendo como referência aqueles
que produzem nos centros mundiais da arte (Nova Iorque, Londres, Paris, Berlim etc.):
o topo da mesma hierarquia.
49
2.1. O trajeto único das artes
Figura 11: Daniel Pellegrim Sanchez, sem título, 2012, fotografia.
Entre os muitos textos e entrevistas de Milton Santos sobre o totalitarismo da
globalização, sobre o pensamento único64
, destaco uma em que afirma que o
globalitarismo é um neologismo que representa a globalização somada ao totalitarismo,
ou seja, a globalização perversa e totalitária em que vivemos. De acordo com Santos
(ENTREVISTA, 2008):
[...] estamos vivendo uma nova fase de totalitarismo. O sistema
político utiliza os sistemas técnicos contemporâneos para produzir a
atual globalização, conduzindo-nos para formas de relações
econômicas implacáveis, que não aceitam discussão, que exigem
obediência imediata, sem a qual os atores são expulsos da cena ou
permanecem dependentes, como se fossem escravos de novo.
Escravos de uma lógica sem a qual o sistema econômico não funciona.
Que outra vez, por isso mesmo, acaba sendo um sistema político.
Esse globalitarismo também se manifesta nas próprias idéias que
estão atrás de tudo. E, o que é mais grave, atrás da própria produção e
difusão das idéias, do ensino e da pesquisa. Todos obedecem, de
alguma maneira, aos parâmetros estabelecidos. Se estes não são
respeitados, os transgressores são marginalizados, considerados
residuais, desnecessários ou não-relevantes. É o chamado pensamento
único. Algumas vozes críticas podem se manifestar, uma ou duas
64 Entrevista concedida a José Corrêia Leite, editor do Jornal Em Tempo. Disponível
em:<http://www.controversia.com.br/index.php?act=textos&id=2412> Acesso em 21/08/2013.
50
pessoas têm permissão para falar o que quiserem, para legitimar o
discurso da democracia. Só que a estrutura do processo de produção
das ideias se opõe e hostiliza essa produção de idéias autônoma e, por
conseguinte, de alternativas.
Diante da realidade informacional, Santos alerta para as manobras e o controle
impostos pela grande finança (grandes corporações internacionais, bancos, governos
mundiais etc.), que tem a informação como instrumento de dominação e colonização.
De acordo com Santos, a informação é o grande instrumento do processo de
globalitarismo e da produção de novas formas de totalitarismo de vida, porém, quando
manejada por pequenos grupos, de forma inteligente, podem produzir exatamente o
efeito oposto65
.
Desse modo, Milton Santos lança seu grito do território66
como ação afirmativa
que visa responder às verticalidades perversas da globalização, se opondo aos
fundamentalismos do consumo irresponsável através de processos de resistência que
partem dos lugares onde tais perversidades foram impostas. Imposições que ficam
hiper-evidentes nessas regiões diante, por exemplo, do ruralismo neoliberal, que embora
tenha alta produtividade, utiliza-se de um modelo de produção ligado à indústria da
guerra, com a utilização de grandes quantidades de agrotóxico, de sementes
transgênicas que dependem de ativações químicas, com financiamentos vinculados aos
grandes bancos. Soma-se a tudo isso o desflorestamento ilegal.
Santos, buscando o efeito comunicacional oposto à informação globalitarista,
observa como as sociedades periféricas se estruturam, desvelando suas potencialidades
produtivas, seus modelos sustentáveis de produção, seja na construção de moradias, na
agricultura, na circulação das pessoas, nos comportamentos lúdicos construtivos, nas
relações interpessoais, nas formas de manifestação e constata que, embora em muitos
casos exista escassez de objetos e materiais, estas comunidades produzem respostas
originais, com o uso criativo desses mesmos objetos e tecnologias, conseguindo
globalizar um olhar outro. Santos fala que a produção criativa dessas comunidades
65TENDLER, Silvio. Encontro com Milton Santos ou O Mundo Global Visto do Lado de Cá.
Documentário de Silvio Tendler. Rio de Janeiro. Caliban Produções. 2006. Disponível em:<
https://www.youtube.com/watch?v=-UUB5DW_mnM> Acesso em 21/08/2013. 66
De acordo com a Prof. Maria Adélia Aparecida de Souza (SANTOS, Milton, 2005, p. 254) o Grito do
Território é uma espécie de revanche ao globaritarismo, ou seja, ações que a partir do território e dos
lugares irão gerar um novo tempo em que Milton Santos denominou de período popular da história,
período esse mais solidário.
51
muitas vezes é invisibilizada devido ao seu caráter político, de oposição à racionalidade
única da modernidade, desse modo, a profunda relação com o local cria formas próprias
de racionalidade e geralmente estes enunciados são contrários ou são críticos à lógica da
dependência da ordem global.
A arte, a movimentação cultural pode dar visibilidade crítica ao espetáculo
globalitarista, produzindo enunciados de oposição, e isso costuma ser veementemente
combatido, seja através da cooptação do(a) artista para uma "arte oficial", seja
provocando isolamentos, difamações, desqualificações e até torturas psicológicas.
Com as respostas das periferias, do lado de cá (sul do mundo), Santos prevê um
novo período histórico, que ele chama de período popular da história. Para Santos,
devemos:
[...] pensar na construção de novas horizontalidades que permitirão, a
partir da base da sociedade territorial, encontrar caminhos que nos
libere da maldição da globalização perversa que estamos vivendo e
nos aproxime da possibilidade de construirmos uma outra
globalização, capaz de restaurar o homem na sua dignidade
(SANTOS, 2005, p. 256).
Figura 12: Daniel Pellegrim Sanchez, sem título, 2013, fotografia.
Com Milton Santos, podemos afirmar que o sistema das artes se estrutura em um
trajeto único, totalitário, viciado pelo sistema político e que reproduz as relações
econômicas implacáveis da globalização, mas também, e sobretudo, produz diferenças e
hierarquias (QUIJANO, 1992) que deixam à margem uma grande quantidade de
52
pessoas. Assim, o que se propõe é ensaiar caminhos outros que se configurem em
alternativas a esse modelo.
2.2. Algumas respostas à colonialidade
Em novembro de 2010, realizou-se em Bogotá, Colômbia, a exposição
denominada ―Esteticas descoloniales‖. Além da apresentação das obras, o evento contou
com publicação de catálogo e palestras dos artistas e do proponente da mostra – Walter
Mignolo – conteúdo que foi disponibilizado na internet (ESTÉTICAS DECOLONIAIS,
2010). Em sua fala, Mignolo discute a exposição denominada Black Mirror-Espejo
Negro – realizada de 22 de maio de 2008 a 18 de janeiro de 2009, no Nasher Museum,
na Duke University, na cidade de Durham, Carolina do Norte – do artista mexicano
Pedro Lasch. Convidado a falar de seus projetos em Bogotá, Lasch mostra a articulação
de seu trabalho com a exposição de El Greco e Velásquez, espelhando arte pré e pós
espânica. Explica que a produção de El Greco e Velásquez ocorreu no período de 1598
a 1621 e que cerca de 100 anos antes desse período, teve início um dos maiores
genocídios da história da humanidade, ou seja, em 1492, quando Cristóvão Colombo
chega à América. Na ocasião, existiam no continente da América Central e do Sul, cerca
de cinquenta milhões de pessoas, sendo vinte e cinco milhões de Astecas, doze milhões
de Incas, entre outros e, segundo o artista, estas estimativas não são generosas, são um
meio termo, pois gerar estimativas precisas de populações, a esta altura da história, é
bastante difícil. Em 1650, passados aproximadamente cento e cinquenta anos da
chegada de Cristóvão Colombo, a população estava reduzida a oito milhões de pessoas,
ou seja, quarenta e dois milhões de pessoas apagadas da história.
53
Figura 13: Registro de ―Language & Opacity / Lenguaje y Opacidad‖, de Black Mirror / Espejo Negro67
:
Suites Fotográficas, Pedro Lasch, 2007-2008. Imagem extraída do artigo Aiesthesis Decolonial
(MIGNOLO, 2010).
Segundo Mignolo (2012), em exposição de igual importância realizada em
Berlim, na Alemanha, surgem outras obras que demostram que a violência empreendida
nesse processo de colonização, a partir do século XVI, continuou nos séculos seguintes.
Nomes como o de Saartjie "Sarah" Baartman (1789-1815) – mulher Khoisan do sudeste
da África, comumente usada como atração secundária de circo na Europa do século XIX
–; Ota Benga (1883 – 1916) – um pigmeu Mbuti, congolês conhecido por sua polêmica
exibição em um ―zoo humano‖ no Zoológico do Bronx, Nova York, em 1906 –; e o do
chefe Namaqua Hendrik Witbooi68
, são usados na composição de obras de arte – como
nos exemplos abaixo.
67 Tradução nossa: Registro de ―Linguagem & Opacidade‖, de Espelho Negro: Fotografias: Pedro Lasch,
2007-2008. 68
O genocídio dos Hererós e Namaquas ocorreu onde hoje se localiza a Namíbia, entre 1904 e 1907,
durante o processo de colonização de África pelos Alemães. É considerado o primeiro genocídio do
século XX. Foi claramente um comando para eliminar as pessoas pertencentes a um grupo étnico
específico e só porque eles eram parte deste grupo étnico. Alguns crânios foram levados para as
universidades na Alemanha para comprovar cientificamente a superioridade dos brancos.
54
Figura 14: Tereza Maria Díaz Nério – Hommage à Sara Bartman, 2007.
04.00, no sound, courtesy of the artist and Art Labour Archives69
.
Imagem extraída do catálogo da exposição Be.Bop 2012. Black Europe
Body Politcs realizada em Berlim Alemanha (MIGNOLO, 2012).
69 Tradução nossa: Tereza Maria Díaz Nério – Homenagem à Sara Bartman, 2007. 4:00, sem som,
Cortesia da artista e de Art Labour Archives.
55
Figura 15: Fred Wilson, Ota Benga, 2008, medium bronze with silk scarf on wooden base, edition of 5,
59.5x12x12in. Collection Tate Modern, London.70
Figura 16: William Kentridge, Black Box/Chambre Noire, 2005. 22:00,
sound, courtesy of the artist and Marian Goodman Gallery71
. Imagem
extraída do catálogo da exposição Be.Bop 2012. Black Europe Body
Politcs realizada em Berlim Alemanha (MIGNOLO, 2012).
70 Tradução nossa: Fred Wilson, Ota Benga, 2008, bronze médio com lenço de seda na base de madeira,
edição de 5, 59.5x12x12 cm. Coleção Tate Modern, Londres. Disponível em:<
https://www.pinterest.com/pin/24629129184307371/> Acesso em 08/10/2013. 71 Tradução nossa: William Kentridge, Box Negro, Hendrik Witbooi, 2005. 22:00, som, cortesia do artista
e de Marian Goodman Gallery.
56
Além da Carolina do Norte, Berlim e Nova York – que têm em suas histórias,
ligações evidentes com o racismo – nas curadorias e artigos de Walter Mignolo,
aparecem cidades como Bogotá na Colômbia, Quetzaltenango na Guatemala, Bienal de
Sharjah nos Emirados Árabes Unidos, entre outras. Mignolo, por meio da opção
decolonial, ensaia caminhos outros por várias vias, respondendo à colonialidade em
lugares onde ela é imperativa, como também ocupando e dando visibilidade a espaços
considerados – pelo ethos hegemônico – como sendo periféricos. Para além dos lugares,
é interessante observarmos o corpo artístico das exposições composto por artistas e
obras vindos da América Latina (notadamente Quito, Bogotá, Bucaramanga, Cidade do
México etc.), Oriente Médio, de África e do Leste Europeu, a exemplo da artista sérvia
Tanja Ostojic e outras/os de cidades como Saravejo, Viena e Ljubljana, artistas e obras
com narrativas estéticas decoloniais.
Walter Mignolo (DECOLONIAL AESTHETCS, 2010) fala de ―pontos de
origem‖ para dizer que a ideia de modernidade, de pós-modernidade e altermodernidade
tem sua origem na Europa e a ideia de descolonização tem seus ―pontos de origem‖ em
todo ―terceiro mundo‖, sobretudo em África. Para esse autor, a origem do conceito de
descolonização pode ser colocada na Conferência de Bandung (1955), pois na mesma
década de realização desse evento, Frantz Fanon, Amilcar Cabral, Aimé Césaire entre
outros autores passam a produzir textos usando este conceito. Isso é importante para
compreendermos a posição de Nicolas Bourriaud por ocasião da curadoria Altermodern,
na Trienal Tate Modern, em 2009. A altermodernidade de Bourriaud, diz Mignolo, ―é
um projeto de família europeia‖, resultado de uma insuficiência da pós-modernidade
eurocentrada, que segue articulada (como na modernidade) segundo uma cronologia
linear, sob a égide da categoria ―tempo‖. Bourriaud se dá conta de que é preciso olhar
para o ―espaço‖. Contudo, diz Mignolo, trata-se da visão europeia de espaço. Na
exposição Altermodern, os autores estrangeiros convocados são dos Estados Unidos e
do Japão, daí deduz-se que a altermodernidade proposta por Bourriaud está olhando
para um mundo afim, para as ―sucursais‖ europeias, seus afiliados pelo mundo, que tem
na modernidade seu ponto de origem. Já o projeto decolonial, diz Mignolo, está atento a
outras problemáticas, ou seja, à maneira como os artistas/intelectuais do terceiro mundo
respondem, inclusive à altermodernidade. Para Mignolo, o importante não é decidir
sobre qual perspectiva é a melhor ou pior, mas admitir que as duas posições são
57
legítimas mas precisam ser olhadas desde a geopolítica do sentir, do pensar, do
conhecer.
Tendo como parâmetro as curadorias de Mignolo, ainda não evidenciamos
espaços no Brasil com exposições na perspectiva decolonial, bem como não
encontramos artistas brasileiros participando de exposições com esse enfoque. Sobre
isso Luciana Ballestrin (2013, p.111) escreve que:
[...] uma questão importante que não povoa o imaginário pós-colonial
e decolonial do Grupo Modernidade/Colonialidade é a discussão sobre
e com o Brasil. Esse é um ponto problemático, já que a colonização
portuguesa – a mais duradoura empreitada colonial europeia – trouxe
especificidades ao caso brasileiro em relação ao resto da América. O
Brasil aparece quase como realidade apartada da realidade latino-
americana. É significativo o fato de não haver um(a) pesquisador(a)
brasileiro(a) associado ao grupo72
, assim como nenhum cientista
político – brasileiro ou não. Também o grupo foi atingido pelo
―complexo de Colombo‖ (Melman, 2000)73
. Assim, ele privilegia a
análise da América hispânica em detrimento da portuguesa e chama
pouca atenção aos processos de colonialidade e subimperialismo
dentro do continente, a exceção dos Estados Unidos.
No âmbito da arte, seria uma estratégia decolonial o estabelecimento e o
fortalecimento de articulações entre artistas, curadores, pesquisadores, galeristas,
críticos de arte, entre outros, do Brasil e dos países da América Latina? No caso de
Mato Grosso que, em termos territoriais fica próximo à Bolívia, ao Paraguai, ao Peru
etc., poderiam ser traçadas estratégias conjuntas que engendrariam circuitos de arte,
abrangendo outros países da América do Sul? E se agregarmos o que foi e está apartado
no próprio estado de Mato Grosso, ou seja, o que até então vem sendo chamado de ―arte
indígena‖, ―arte popular‖, ―arte contemporânea‖? Poderemos assim delinear caminhos
―outros‖?
72 Há referências aos brasileiros Darcy Ribeiro, Milton Santos e Gustavo Lins Ribeiro. Ribeiro
(2011) identificou essa ausência e desenvolveu a perspectiva ―pós-imperialista‖ que incorpora a
análise do Brasil. 73 MELMAN, Charles (2000). ―O complexo de Colombo‖, em ASSOCIATION FREUDIENNE
INTERNATIONALE (org.). Um inconsciente póscolonial, se é que ele existe. Porto Alegre:
Artes e Oficios.
58
3. AS ARTES VISUAIS EM CUIABÁ
Neste capítulo, lançamos um olhar sobre a história recente das artes visuais em
Cuiabá, Mato Grosso. Mato Grosso é um estado grande em território, superando, em
tamanho, alguns países. Tem fronteiras com a Bolívia e Paraguai, mas o intercâmbio
não é significativo. A história do estado é repleta de evidências que mostram o
imperativo da colonialidade. Nesse sentido, destacamos que vivem no estado mais de 46
etnias indígenas que, ainda hoje, esbarram na falta de demarcação de seus territórios, o
que acarreta disputas pela terra marcadas por protestos e confrontos violentos. Também
percebemos formas de opressão e invisibilidade que o corpo artístico mato-grossense
vive, discutindo questões apresentadas nos relatos de artistas radicados em Cuiabá e do
produtor cultural Paulo Traven, que entrevistamos para esta pesquisa. Tais questões são
articuladas a nossa experiência como artista visual e produtor cultural atuante na cidade.
Nesta última década, atuamos no que se pode chamar de circuito artístico do
Estado de Mato Grosso e, mais especialmente, de sua capital Cuiabá e zona de
influência, por meio da Pellegrim Galeria de Arte. Administrando a galeria,
acompanhamos a carreira de 20 artistas, participamos de editais públicos de incentivo à
cultura, frequentamos ateliês, produzimos exposições e, mesmo em um âmbito restrito
(Mato Grosso), pudemos vivenciar as contradições, tensões e angústias desse meio
artístico.
Ao articular questões e situações vividas em/com o circuito artístico mato-
grossense a noções e argumentos de autores que pensam a decolonialidade do poder, do
saber e do ser, nos atentamos às maneiras pelas quais a colonialidade constitui esses
modos de arte/vida, bem como nos perguntamos se é possível traçar estratégias
decoloniais em/com as artes visuais de Cuiabá.
3.1. Uma breve história recente das artes visuais em Cuiabá
Mato Grosso é um estado rico no que tange às artes visuais. Além da história
recente sobre a qual discorreremos abaixo, ao percorrermos, por exemplo, os paredões
do município de Chapada dos Guimarães, é possível perceber gravuras e pinturas
rupestres, as quais mostram que criatividade e inspiração são inerentes aos mais antigos
59
habitantes dessas terras. A cada aldeia indígena, verificamos a grande variação de
pinturas corporais, esculturas em madeira, redes, cerâmicas, vestimentas e adornos
feitos com plumárias variadas e outros materiais.
3.1.1. Século XX
O período que compreende o fim do século XIX e início do século XX é
marcado por mudanças políticas. Na nova república, no Rio de Janeiro, as Exposições
Gerais são substituídas pelo Salão Nacional de Belas Artes, promovido pela Escola
Nacional de Belas Artes, antiga Academia de Belas Artes, fundada por D. João VI, hoje
Museu Nacional de Belas Artes. As irmãs Francisca Emília Mariano Campos e Maria
Emília de Campos, ambas cuiabanas e alunas da Escola Nacional de Belas Artes,
participam dos Salões Nacionais de Belas Artes de 1899-1900-1901 e 1909 e da
Exposição Geral de Belas Artes, respectivamente.
Com a república, foi possível um rompimento gradual com o padrão de arte
convencional, europeizado, feito para documentar e ilustrar os acontecimentos da corte,
surgindo os primeiros sinais para o movimento da Semana da Arte Moderna de 1922,
que introduziu o modernismo no Brasil.
Em 1915, Eufrásio Cunha Cavalcanti (Recife, 1873), instala em Cuiabá o Museu
Dom José, a coleção de interesse diverso, desde peças indígenas a mobiliário, joias,
imagens sacras de madeira, além de algumas pinturas.
Em 1924, chega em Cuiabá a freira salesiana Alzira Bastos que leciona pintura,
música e artes cênicas durante onze anos, no Asilo Santa Rita e tem, entre suas alunas,
Inês Corrêa da Costa, artista que, anos depois, frequenta o ateliê de Cândido Portinari,
no Rio de Janeiro. Inês é uma das precursoras do modernismo em Mato Grosso.
Segundo Lenine Póvoas (1994, p. 149), nesse período, acontece o ―Salão de
1935‖, primeira exposição coletiva em Cuiabá, com participação de dezessete artistas,
entre eles o pernambucano Eufrásio Cunha, a cuiabana Aracy Gonçalves Figueiredo,
Mathias Gonçalves, a baiana Bernadete das Neves (1903), o casal pernambucano Aida e
Joaquim Novaes, o pintor Flávio Rubin, Miguel Peres, na organização e realização o
artista alemão radicado em Cuiabá, Dr. Jorge Bodstein, com patrocínio da Academia
60
Mato-grossense de Letras74
. Em 1937, Bodstein realiza mais uma coletiva, o ―Salão de
1937‖ com obras dele e mais duas alunas, com um total de vinte e cinco trabalhos. O
Salão mostra diversidade de técnicas e estilos. Esses eventos parecem começar a
implantar a lógica do mecenato em Mato Grosso.
Talentos a exemplo da premiada Wega Nery (Corumbá, 1913) mudam-se de
Mato Grosso por não existir, no Estado, possibilidades de profissionalização nas áreas
artísticas, o que continua acontecendo nas décadas seguintes. Outro exemplo é o de
Victor Arruda (Cuiabá, 1947) que, no início da carreira, participa do Salão Nacional de
Arte Moderna no Rio de Janeiro, em 1976. Vale citar, também, Alcides Pereira dos
Santos, que no ano de 1992 migra para São Paulo.
Nos anos de 1960, um grupo começa a se organizar em Campo Grande
composto por Aline Figueiredo, Humberto Espíndola, Carlos Alberto Marques de
Medeiros, Adelaide Acácia Leite Vieira, Darcy Cardoso Terra. São animadores
culturais e artistas que se unem para fundar a AMA (Associação Mato-grossense de
Arte) e realizar pesquisas e ações artísticas. Contudo, somente na década de 1970, com
a fundação da Universidade da Selva (1970), hoje Universidade Federal de Mato
Grosso, UFMT, as artes visuais em Mato Grosso tomam verdadeiro fôlego.
Em 1973, Humberto Espíndola e Aline Figueiredo passam a integrar o quadro
técnico da UFMT, e também integra esse quadro, o programador visual Wladimir Dias
Pino. Humberto e Aline se esforçam para realizar uma atualização das artes visuais no
Estado, alinhando essa produção aos movimentos artísticos capitaneados pelas cidades
do Rio de Janeiro e São Paulo. Vale destacar que a dupla também fomentou a arte
―popular‖, buscando espaços de visibilidade nacional para a mesma. Por outro lado,
Wladimir Dias Pino, (Bienal de São Paulo em 1968 e 1977, Bienal de Arte Construtiva
de Nuremberg também em 1968) funde poema e artes visuais, dispensando os suportes
tradicionais, instrumentaliza a gráfica da UFMT e propõe uma ruptura com os
movimentos internacionais. Assim participa e ajuda a fundar, desde Cuiabá, o
movimento da Arte Concreta, fazendo livros objetos, poemas processo, lançando o
intensivismo, desterritorializa sua arte integrando-se a movimentos nacionais.
74 PÓVOAS, Lenine de Campos. História da Cultura Mato-grossense. Cuiabá: Edução do Autor, 1994,
p. 149-154.
61
Na segunda metade da década de 1970 e início da década de 1980, o então
Reitor da UFMT, Gabriel Novis Neves, aposta na cultura como forma de
desenvolvimento social. Nessa época, é criado o Museu de Arte e de Cultura Popular da
UFMT (1974) e o Ateliê Livre do Museu de Arte e Cultura Popular da UFMT (1981).
Com uma forte influência e articulação das lideranças da UFMT, o governador Garcia
Neto abraça a causa artística e, em 1975, a Fundação Cultural é criada e, em 1976, são
instituídos o Ateliê Livre da Fundação Cultural e o Salão Jovem Arte. Nesse período,
alguns artistas se destacam, a exemplo de Clóvis Irigaray, Dalva de Barros, Humberto
Espíndola, João Sebastião e João Pedro Arruda. Ressaltamos que Humberto Espíndola
consegue participação na Bienal de São Paulo em 1971 e Veneza em 1972.
Figura 17: Clóvis Irigaray, A criação do índio, sem data, OST, 100X200 cm.
Com o Ateliê Livre da Fundação Cultural, revelam-se artistas como Gervane de
Paula, Adir Sodré, Alcides Pereira dos Santos, Benedito Nunes, Carlos Lopes, Márcio
Aurélio, Regina Penna, entre outros. O Ateliê tem como professora a artista Dalva de
Barros que, a partir de 1981, também passa a lecionar artes no Ateliê Livre da UFMT.
O Salão Jovem Arte, por sua vez, incentiva e revela vários talentos como: Ana
Amélia Marimon (Salão de 1976), Gervane de Paula (1977), Adir Sodré e Alcides P.
Santos (1978), Márcio Aurélio e Marcelo Velasco (1979), Nilson Pimenta (1981),
Benedito Nunes (1982), Carlos Lopes (1983), Osvaldina dos Santos (1984), Gonçalo
Arruda (1985), Aleixo Cortez (1986), Sebastião Silva (1990), Jonas Barros (1991),
Almira Reuter (1993), Adão Domiciano (1994), Antonio Pereira da Silva, dito Sitó
(1995), Roberto de Almeida e Sebastião Veloz (1997), Wander Mello (1998), Télio
Donizeti (1999) etc. Dalva se aposenta e o Ateliê da UFMT passa a ser dirigido por
62
Nilsom Pimenta. Do ateliê da UFMT, destacam-se os artistas Aleixo Cortez; Adão
Domiciano; Sebastião Silva; Jared Aguiar; José Pereira, Valquez, entre outros.
Figura 18: Aleixo Cortez, 2012, Foto: Daniel Pellegrim Sanchez
Depois da divisão do Estado de Mato Grosso, em 1977, na década de 1980,
podemos destacar a participação de vários artistas no movimento das artes em Mato
Grosso, entre eles: Alcides Pereira dos Santos, Benedito Nunes, Nilsom Pimenta,
Regina Pena, Jonas Barros, Osvaldina dos Santos, Márcio Aurélio e Carlos Lopes. O
movimento acolhe e influencia artistas de outros centros, a exemplo de Maty Vitart
(entre 1983 e 1997), Bené Fonteles (1981 a 1989), Vitória Basaia, a partir de 1981.
Figura 19: Benedito Nunes, 2009. Foto: Daniel Pellegrim Sanchez
63
Desse movimento, dois artistas conseguem alguma projeção nacional com a
participação em 1983, da exposição coletiva ―Como vai você geração oitenta?‖, que
ocorreu no Parque Lage, na cidade do Rio de Janeiro, são eles: Gervane de Paula e Adir
Sodré. Adir se destaca participando várias vezes do Salão Nacional do Rio de Janeiro e
de outros salões.
Figura 20: Adir Sodré. Fonte: http://conexaoartesmt.blogspot.com.br/p/adir-sodre.html
A década de 1990 foi palco de efetivas mudanças no cenário político
cultural mato-grossense, entre essas mudanças podemos citar a lei n.º 5894, de
12/12/1991, onde fica instituída a política estadual de incentivo à cultura, ampliada no
ano seguinte pela fixação de parcerias de ICMS a serem deduzidos das empresas
privadas que desejassem investir em cultura. Também é criado em 1994, o Conselho
Estadual de Cultura, responsável pela coordenação e avaliação dos projetos
apresentados por artistas locais. Em 1995, é extinta a Fundação Cultural e criada a
Secretaria de Estado de Cultura. Em 1999, é construído um Centro Cultural na UFMT e,
em 2000, é restaurado e implantado o Museu do Rio Cuiabá.
3.1.2. Século XXI
O século vinte e um se inicia com a restauração e implantação do Centro
Cultural SESC Arsenal (2001), que mantém uma Galeria de Arte e um programa de
cursos e workshops em áreas artísticas. Na primeira década, é inaugurado também o
Museu da Imagem e do Som de Cuiabá – MISC (2006) e o Museu do Morro da Caixa
D´água Velha (2007), ambos administrados pelo governo municipal de Cuiabá. A
64
segunda década do século XXI se inicia com a implantação do Pavilhão das Artes
(2011), equipamento gerido pelo governo do Estado e que vem promovendo
importantes exposições. O Estado também mantém um espaço expositivo denominado
Galeria de Arte da Secretaria de Estado de Cultura. É importante frisar que, em geral,
administra-se o setor das artes visuais com baixos orçamentos, o que, em muitos casos,
gera dificuldades na manutenção dos espaços expositivos (públicos) e quase não há
política de intercâmbio.
Hoje, três críticos mato-grossenses estão inscritos na ABCA (Associação
Brasileira de Críticos de Arte) – Aline Figueiredo Espíndola, Ludmila de Lima Brandão
e Serafim Bertoloto. Em âmbito privado, destacamos a Casa das Molduras (embora
tenha como foco principal serviços e comércio de molduras, a empresa possui coleção e
mantém espaços com exposição permanente de trabalhos de vários artistas); a N´Arts
Galeria (dirigida por Heleninha Botelho, promove exposições e possui acervo de arte
mato-grossense); a Casa do Parque (possui café bistrô, um auditório, ambiente musical,
e uma galeria) e a Galeria 455 (espaço expositivo da Casa do Parque que funciona com
a promoção de exposições artísticas e que tem a política de cobrar um trabalho de cada
artista que expõe em seu espaço, assim está constituindo seu acervo) e a Arto Galeria
(possui um café e espaço expositivo, coloca à disposição do público a coleção do casal
José Guilherme Barbosa Ribeiro e Glória Alice Ferreira Bertoli conhecidos como Zé
Guilherme e Goita). Esta última é a primeira galeria, em Cuiabá, que dispõe de
biblioteca e de reserva técnica com trainéis para guardar obras de arte.
Importante registrar que tanto em âmbito público, quanto privado, existem
dificuldades de intercâmbio e não há presença das galerias mato-grossenses em Feiras
de Arte nacionais (SP Arte e ArtRio), nem internacionais (Frieze, Basel, ARCO e
outras). No que diz respeito ao mercado editorial de arte, as publicações, quando não
são feitas e distribuídas de forma independente, são produzidas pelas editoras EdUFMT,
Carlini Caniato e Entrelinhas.
Outro aspecto a se considerar é que Cuiabá não desenvolveu mercado
secundário de arte, ou seja, não possui casas de leilão – embora tenham sido realizados
alguns leilões pontuais –, tampouco se articulou com essas instituições em âmbito
nacional (Aloísio Cravo, Bolsa de Arte etc.) ou internacional (Sotheby‘s, Christie‘s
etc.).
65
É também importante verificar como essas casas de leilão atuam, utilizando
tanto critérios geopolíticos e históricos, quanto estéticos. A Sotheby´s, por exemplo,
possui Departamento de Arte Latino-americana e Departamento de Arte
Contemporânea. A diretora de Day Sales do Departamento de Arte Contemporânea da
Sotheby‘s, Gabriela Palmieri (FIALHO, 2010)75
, declarou que:
[...] temos cuidado e evitamos dizer que nossas escolhas têm por base
um perfil estético ou uma base estritamente regional, trata-se de arte, e
não se trata de onde vem, ou quem é quem, não consideramos
nacionalidades, só pensamos sobre qual o contexto de venda faz mais
sentido.
Apesar dessa declaração de Palmieri, percebemos que existe um certo tipo de
―promoção‖ do Departamento de Arte Latino-americana para o Departamento de Arte
Contemporânea. As casas de leilão não assumem esta hierarquia, mas parece que ela é
sustentada pelo volume de vendas e valores negociados. Nas discussões sobre o peso do
mercado secundário no processo de formação de valores artísticos nos sistema das artes,
promovido pela associação Fórum Permanente, falou-se que:
[...] enquanto 1 milhão de dólares é um valor extraordinário para o
Departamento de Arte Latino-americana, ele é quase irrisório para o
Departamento de Arte Contemporânea em que recordes para uma
única obra chegam a mais de 70 milhões de dólares. Ainda que ambos
os departamentos atuem no plano internacional, o mercado de arte
contemporânea é globalizado e lida com nomes reconhecidos
globalmente que atingem facilmente valores acima de oito dígitos,
enquanto o Departamento de Arte Latino-americana, apesar de
internacional, lida, em grande parte, com artistas que são
frequentemente conhecidos apenas por especialistas e colecionadores
que têm um interesse particular pela produção do continente latino-
americano (FIALHO, 2010).
No que tange à relação da imprensa mato-grossense com a arte, verificamos
uma difusão efetiva de eventos artísticos, uma vez que os jornais locais costumam
garantir ―páginas inteiras‖ para exposições de arte.
[...] Em Cuiabá, com facilidade um artista consegue uma página
inteira, uma capa de caderno, é o tipo de exposição que a gente não vê
em grandes capitais. O artista para estar na capa de um jornal no Rio
de Janeiro tem que ser um artista de muito destaque, nacional ou até
75 Disponível em: http://www.forumpermanente.org/event_pres/exposicoes/sp-arte-2010/relatos/sothebys
66
internacional. Aqui em Cuiabá, nós temos uma boa relação nesse
sentido (informação verbal)76
.
Foto 21: Página inteira dedicada à exposição de Carlos Lopes na Pellegrim Galeria de Arte, em
Chapada dos Guimarães. Fonte: Folha do Estado – Folha 3, publicada em 07 de novembro de 2003.
Apesar das facilidades de comunicação oriundas da internet, redes sociais,
plataformas crowdfundings, barateamento dos deslocamentos aéreos e outras, em
Cuiabá ainda são muitas as dificuldades em utilizar esses mecanismos para fortalecer a
distribuição e divulgação das artes visuais.
76 Informação fornecida pelo produtor cultural e atual subsecretário de cultura do município de Cuiabá,
Paulo Traven, em entrevista cedida a Daniel Pellegrim Sanchez, em Cuiabá, MT, em 2014.
67
Figura 22: Paulo Traven e Nilsom Pimenta na Pellegrim Galeria de arte, ao fundo escultura de Roberto de
Almeida. 2010. Foto: Daniel Pellegrim Sanchez
Atualmente, a exposição Percurso, realizada no Museu de Arte e Cultura
Popular da UFMT, em 2014, evidencia o talento de artistas ainda não citados nesse
histórico, como Herê Fonseca, Miguel Penha, Carlinhos Antonio Batista, Lara Matana,
Luis Segadas, entre outros.
Figura 23: Artistas participantes da exposição Percurso na UFMT. Fonte: Museu de Arte e de
Cultura Popular da UFMT.
68
3.2. Amarrações da/na arte em Cuiabá
É lugar comum atribuir ao suposto ―isolamento‖ de cidades como as de nossas
inserções Cuiabá, capital de Mato Grosso e Chapada dos Guimarães, a 60 km da
capital – a razão para todos os igualmente supostos ―atrasos‖ em relação aos critérios
evolutivos ocidentais. A ―civilização‖ aqui, costumamos escutar, custou a chegar. Em
texto apresentado na ANPAP/2014 em coautoria com Ludmila Brandão dizemos que:
Permanece no imaginário (e na ignorância) do sul-sudeste brasileiro
que animais selvagens transitam por estas cidades, que o faroeste
vigora neste espaço designado ―de fronteira‖. Se o estereótipo tivesse
fundamento, estas cidades, caracterizadas por suas centralidades
geodésicas da América do Sul, equidistantes, portanto, dos oceanos
Pacífico e Atlântico lóci iniciais dos processos de colonização na
América do Sul poderiam estar a salvo, talvez, da integralização do
processo colonizador e das subsequentes formas atuais da
colonialidade. No caso das artes, poderíamos nem ter ―arte‖, nos
termos ocidentais. Mas não é exatamente o que aqui acontece
(BRANDÃO, SANCHEZ, 2014 b, p. 10)
Nesse mesmo texto, afirmamos que na crítica de arte e na academia, é evidente o
enfrentamento com a ―regionalização‖ da arte que aqui se faz. É de longa data a
discussão nacional/regional no âmbito da pesquisa histórica e da literatura que se
ressentem, com razão, de terem seus produtos sempre caracterizados como regionais
enquanto a produção do eixo Rio-São Paulo (a nossa Europa) dispensa predicações, ou
seja, são história do Brasil e literatura brasileira. Assim como a história não é do Brasil
e a literatura não é brasileira, as artes aqui são igualmente carimbadas de ―regionais‖
(BRANDÃO, SANCHEZ, 2014 b). Na possibilidade de confrontar o predicado/estigma:
[...] aceitam-se designações como arte ingênua, naïf, popular ou, na
tentativa de não deixar-se sobrecodificar, inventam-se outras como
arte ―cabocla‖77
. A predicação não é inofensiva. Ao contrário, sob a
capa de uma ―boa vontade‖ do circuito oficial de artes (críticos,
pesquisadores, galerias, artistas renomados, imprensa etc.) que aceita
incluir sob o manto das artes essas produções diferenciadas, opera-se
uma desqualificação definitiva (2014 b, p. 10).
No artigo Desconstruindo o naïf: a pintura de Alcides dos Santos, Ludmila
Brandão e Suzana Guimarães (2012) procuram demonstrar como funcionam essas
77 Aline Figueiredo, crítica de arte e animadora cultural da maior importância no Estado e para sua
produção visual, desde os anos 70, cunhou a arte aqui produzida pela chamada segunda geração dos
artistas formados no âmbito do Ateliê Livre da UFMT, de ―cabocla‖. A designação não somente foi
acolhida como foi repercutida por críticos de renome nacional e internacional.
69
adjetivações, como elas caracterizam extrinsecamente o trabalho artístico, dizendo
exclusivamente sobre as origens do criador (se é indígena, popular, rústico etc.) e
omitindo uma crítica verdadeira às obras, às suas características composicionais, como
se dá com os artistas e obras do circuito ―nacional‖. No embate dos editais para pesquisa
e curadoria na área das artes visuais, essa predicação/desqualificação pesa sobre o
corpus artístico dito ―regional‖, uma vez que lhe é negada, de partida, a relevância
nacional e, por conseguinte, a possibilidade de relevância internacional – haja vista o
―trajeto único‖ nas/das artes.
Na atividade de pesquisa, salvo exceções, a conquista de financiamentos para
projetos de investigação sobre esses artistas (―regionais‖) depende igualmente dessa
―conquista de legitimidade‖, cuja visibilidade curiosamente lhe precede, forjando uma
estranha lógica (quase um paradoxo) em que para ser objeto de pesquisa, o artista e sua
obra precisam ser previamente conhecidos e valorizados.
Estudando o mercado de artes visuais mundial, identificamos o funcionamento
articulado de um sistema que conta com grandes instituições promotoras, galerias,
revistas, coleções, eventos de variadas escalas, e constatamos que sua organização, de
maneira geral, parece seguir uma escala geográfica, onde os artistas ―regionais‖, para
conseguirem autonomia e legitimação em âmbito estadual, têm que "conquistar"
Cuiabá; em âmbito regional, Brasília; em nível nacional Rio de Janeiro e São Paulo; em
nível mundial, Nova York e Paris.
Antes de compreendermos do que se tratava enfim essas experiências em nossas
atuações de artista, crítico ou produtor cultural, na percepção das dificuldades de
legitimação para a necessária autonomização (BOURDIEU, 1999) do sistema de arte
em Mato Grosso, entendíamos que os problemas eram de ordem prática ou que os
problemas eram, evidentemente, nossos e de nossa região.
Porém, hoje entendemos que mais do que nós pesquisadores, críticos e
produtores culturais, os artistas, além de enfrentarem cotidianamente essa geopolítica
das artes, também se confrontam com os determinismos da hierarquia epistêmica. Não
raramente nos defrontamos com situações de preconceito e exploração. É aqui que
entendemos que o suposto ―isolamento‖ não nos salvou da colonialidade. Mesmo nesta
realidade dita ―mais profunda do país‖, encontramos reproduzidas, e se reproduzindo, as
70
mesmas perversidades da colonialidade e, o que é pior, verificamos que não há
perspectiva nenhuma de que o artista destas plagas, mesmo passando a radicar
geograficamente em um centro, em uma metrópole, venha a conseguir autonomia ou
legitimação, uma vez que o espaço que lhe será conferido tende a ser sempre aquele das
periferias das metrópoles. Se o mundo julgou e ainda julga o Brasil como arcaico,
agrário e patriarcal, o mesmo se reproduz também internamente, na relação que se
estabelece entre os grandes centros urbanos e o interior do Brasil. Essa hierarquização
urbana é cruzada com uma hierarquização de classe, gênero, etnia, entre as mais
evidentes. Aos indígenas, negros e pobres em geral caberão as categorias
desqualificadoras do pitoresco, exótico, selvagem, caipira. Palavras carregadas de
preconceito e que expressam bem isso que Nelson Maldonado-Torres78
passou a chamar
de "racismo epistêmico"79
(2008a apud BRANDÃO; GUIMARÃES, 2012).
O artista Carlos Lopes, por exemplo, fala que quando morou em São Paulo, por
cerca de dois anos, sentiu que não era preciso sair de Mato Grosso para ser artista e
viver de sua arte. Mudar-se para São Paulo constituiu-se como um difícil recomeço num
lugar estranho, onde não possuía familiares ou outros tipos de vínculo, por isso voltou
decidido a ―ganhar o mercado‖ em Cuiabá e, num segundo momento, tentar ―ganhar
mercado lá fora‖. Lopes relata ainda que, em São Paulo, algumas pessoas discriminam
não o artista, mas o lugar de onde ele veio, a procedência portanto, ―acham que o estado
está atrasado, Mato Grosso é muito longe, Cuiabá está bem atrasada‖80
, o que para
Lopes é uma inverdade, decorrente da falta de conhecimento, visto que as pessoas que
assim pensam, nunca estiveram em Cuiabá.
Todavia, com Quijano (1992), vimos que tais dificuldades não se reduzem tão
somente aos aspectos geográficos ou mesmo econômicos, hierarquias são construídas
também, e principalmente, pela produção de distinções como cor da pele, sexualidade,
linguajar etc. Pessoas racializadas e patologizadas são subalternizadas tanto nas
metrópoles, como no interior. Seguindo Quijano (2010, p.124), podemos perceber que
78 MALDONADO-TORRES, Nelson. A topologia do Ser e a geopolítica do conhecimento. Modernidade,
império e colonialidade. Revista Crítica de Ciências Sociais. Coimbra: Centro de Estudos Sociais, n.80,
março de 2008, pp: 71-114. 79 O Racismo epistêmico refere-se a essa hierarquia de dominação onde os conhecimentos produzidos por
sujeitos ocidentais são considerados como superiores aos conhecimentos produzidos por sujeitos não
ocidentais. 80
Informação fornecida por Carlos Lopes em entrevista cedida a Daniel Pellegrim Sanchez, em Cuiabá,
MT, em 2014.
71
boa parte das dificuldades vividas pelos artistas em Cuiabá se dá devido à colonialidade
das relações culturais ou intersubjetivas.
Em todas as sociedades onde a colonização implicou a destruição da
estrutura societal, a população colonizada foi despojada dos seus
saberes intelectuais e dos seus meios de expressão exteriorizantes ou
objetivantes. Foram reduzidas à condição de indivíduos rurais e
iletrados.
Em muitos casos, ter um ―alcance universal‖ é reproduzir as enunciações da
matriz, ou mesmo expor em eventos ou instituições consagrados pelo ethos
hegemônico. Sobre isso Anibal Quijano (2010, p.124) diz:
Nas sociedades onde a colonização não conseguiu a total destruição
societal, as heranças intelectual e estética visual não puderam ser
destruídas. Mas foi imposta a hegemonia da perspectiva eurocêntrica
nas relações inter-subjetivas com os dominados.
É o que se vê também na criação e valorização de algumas exceções – não é
porque o atual presidente dos Estados Unidos é negro (uma exceção na história desse
país) que o racismo tenha sido superado nos EUA – e no multiculturalismo, conceito
eurocêntrico, que faz parte da lógica cultural do capitalismo multinacional, consistindo
em novas formas de racismo. O multiculturalismo suprime os problemas das relações de
poder, da exploração, das desigualdades e exclusões, mostrando-se como ―descritivo‖ e
―apolítico‖. O recurso central à noção de ‗tolerância‘ acenada pelo multiculturalismo
―não exige um envolvimento ativo com os ‗outros‘ e reforça o sentimento de
superioridade de fala de um autodesignado lugar de universalidade‖ (SANTOS;
NUNES, 2003, p. 31) e, na arte, não é diferente, são criadas estruturas e eventos para
abrigar ―o outro‖ (Museus "étnicos", eventos de arte "popular", "incomum", "latina"
etc.), sem que se mexa na matriz de poder. Isso pode ser considerado até uma conquista
tática para quem sofre com a segregação nas artes, que está no "beco sem saída", mas
não diminui o abismo entre, por exemplo, a ―arte contemporânea‖ e as outras.
Last but not least, a hegemonia eurocêntrica na cultura do mundo
capitalista implicou uma maneira mistificada de perspectiva da
realidade, quer se trate do "centro", quer da "periferia colonial". Mas
os seus efeitos sobre a última, no que concerne ao conhecimento e à
ação, foram quase sempre historicamente conducentes a becos sem
saída (QUIJANO, 2010, p. 124).
72
Ao que tudo indica, estéticas ―regionais‖ (não universais) encontram apoio nos
governos, nas políticas públicas de conservação da diversidade e do patrimônio cultural,
contudo, diante do financiamento privado de campanhas eleitorais, onde lobbies de
grandes corporações (inclusive multinacionais) geram corrupção das prioridades, as
políticas públicas de cultura acabam por repetir as lógicas de mercado, enquanto,
poderiam atuar onde o mesmo não atua e também onde ele reduz, aliena e
espetaculariza. O mercado e a mídia hegemônica tendem a enfraquecer a potência de
resistência de muitas produções artísticas – de ―periferia‖, ―rurais‖, ―populares‖, entre
outras –, por meio da invisibilização de diversos aspectos sociais/culturais que
constituem tais produções e do destaque, manipulação e supervalorização de aspectos
―que vendem‖ mais facilmente.
A maioria das pessoas que entrevistamos, durante a pesquisa, falou da
dificuldade de diálogo entre artistas e governo (leis de incentivo) e entre artistas e as
instituições privadas que financiam projetos culturais.
[...] eu penso que nós da produção cultural, artistas produtores, nós,
pessoas interessadas em que esse mercado se solidifique, a gente
precisa se profissionalizar. [...] Os nossos artistas plásticos, por
exemplo, são artistas plásticos profissionais, mas para acessar recursos
públicos, acessar recursos privados, a pessoa precisa ter um pouco
mais do que só as habilidades artísticas dela ou ela precisa contratar
uma pessoa que supra essa deficiência. Eu vejo que o diálogo entre o
artista e o poder público, entre o artista e as empresas que têm
potencial de patrocínio, é muito ruim. Porque esses dois segmentos,
que devem ser complementares, eles falam ―línguas‖ diferentes. [...]
Quando eu digo que este diálogo tem dificuldade, é em coisas muito
elementares, que às vezes vai da apresentação de um ofício, de um
orçamento, que para muitos artistas é uma dificuldade muito grande; a
apresentação de documentos pessoais é outro problema, apresentação
de comprovante de residência é um problema. [...] Para a gente acessar
o dinheiro do poder público, não tem como [...] há de se ter uma conta
no banco, há de se ter uma relação formal para acessar esse dinheiro
(informação verbal)81
.
A necessidade de ―mediação‖ entre artistas e governo, artistas e instituições
privadas é algo que os entrevistados pontuam, mas ponderam que existe uma
dificuldade, ou seja, o que os artistas movimentam em termos de recursos financeiros
em Cuiabá não possibilita que os mesmos possam contratar um produtor cultural que
cumpra tal função. Muitos artistas também têm dificuldade de articulação com críticos e
81 Informação fornecida pelo produtor cultural e atual subsecretário de cultura do município de Cuiabá,
Paulo Traven, em entrevista cedida a Daniel Pellegrim Sanchez, em Cuiabá, MT, em 2014.
73
curadores de arte. Na cidade, existem associações de artistas e também uma associação
de produtores culturais, porém, atualmente, percebemos uma atuação tímida ou um
tanto restrita em termos da realização dessa ―mediação‖.
Ao dialogar com os entrevistados e acessando nossa vivência com os 20 artistas
da Pellegrim Galeria, pudemos perceber que muitos deles não movimentam recursos
suficientes porque estão à margem do sistema. Daí que, sim, muitos deles necessitam de
ajuda para acessar o caminho dos editais e dos patrocínios privados, mas entendemos
que, além disso, precisam trilhar/constituir caminhos ―outros‖. Se estão à margem,
talvez, nos passos de Glória Anzaldúa, tenhamos que aprender a lidar melhor com essa
margem, com a fronteira. Como é possível viver nessa, com essa e com outras fronteiras
que nos constituem e que constituímos? Como fortalecer um ―pensamento crítico de
fronteira‖ (MIGNOLO, 2000) que agregue outros ―fronteiriços‖ que possam, com seus
(des)alfabetismos, se comunicarem e se fortalecerem mutuamente, ativando de modos
―outros‖ governo, instituições de fomento e circuitos ―outros‖?
Nas entrevistas que realizamos, pudemos perceber que existe um
descontentamento grande com a desvalorização da arte produzida em Cuiabá, porém
não percebemos questionamentos em relação aos modos como essa desvalorização é
produzida, ou seja, não se questionam as classificações e hierarquias impostas pelo
―trajeto único‖ das artes.
Benedito Nunes, por exemplo, afirma em tom de lamento que, em Cuiabá, ―as
pessoas compram arte da mesma forma que compram artesanato‖ (informação verbal)82
,
que os preços das ―obras de arte‖ equivalem a preços de ―peças de artesanato‖. A
separação e hierarquização entre arte e artesanato ganha corpo nos discursos (inclusive
dos artistas) e nos valores praticados em relação aos trabalhos de arte que, no caso de
Cuiabá, estão ―nivelados por baixo‖, ou seja, em muitos casos, ―arte‖ e ―artesanato‖ se
confundem em termos do que valem no mercado. Entendemos que um dos motivos da
desvalorização de grande parte da produção de arte em Cuiabá, que passa a ser
―confundida‖ com ―artesanato‖, pode ser a permanência de alguns padrões, ou seja,
prevalece a pintura sobre outras formas de produção; parece haver uma preferência por
telas horizontais a verticais; uso majoritário de cores claras; predominância de formatos
82 Informação fornecida pelo artista Benedito Nunes em entrevista cedida a Daniel Pellegrim Sanchez, em
Cuiabá, MT, em 2014.
74
pequenos e médios, obras figurativas etc. É comum também encontrarmos a figura do
que o mercado chama de "autocopista", ou seja, alguns artistas, ao perceberem que
certas composições vendem mais que outras, criam ―fórmulas de sucesso‖ que são
repetidas inúmeras vezes pelo próprio autor, com pequenas mudanças de uma obra para
outra, visando a comercialização das mesmas. Comercialização necessária, visto que a
maioria dos/as artistas da região sobrevivem da venda de seus trabalhos e em alguns
casos com subsídios pontuais do governo. Contudo, essas práticas que, num primeiro
olhar, parecem demonstrar oportunismos dos artistas, ao serem examinadas em sua
complexidade, fazem ver a força de uma lógica de mercado que se impõe sobre a
produção e comercialização de trabalhos artísticos da ―periferia colonial‖. Além disso, é
importante questionarmos as argumentações que o pensamento moderno vem
sustentando em relação à classificação e hierarquização da arte mundial, por meio da
distinção entre ―arte‖ e ―artesanato‖. Zulma Palermo faz uma crítica a essa distinção,
escrevendo que , na lógica da colonialidade:
[...] el artista es un ser humano que se distingue de los demás y se
destaca de entre ellos, produciendo –―creando‖ – obras únicas, el
artesano produce en cantidad, desaparece como persona detrás de sus
produtos y por lo tanto no ―crea‖; en consecuencia, mientras el artista
experimenta y manipula, inventa nuevas técnicas y utiliza diversidad
de materiales, el artesanato no inova, no concibe su obra para la
contemplación, no se destaca de entre los otros. Detrás de estas
diferencias valorativas, sin embargo, es reconocible la impronta de la
episteme moderno-colonial ya que en esos criterios se hace visible el
princípio de autorialidad (derechos de autor, lo que implica valor
económico) y, vinculado a ello, el de propriedad privada,
(intimamente vinculado al sistema capitalista), es decir, valores que no
se radican, precisamente, en la contemplación y el goce y que, sin
embargo, están activos en la producción artística validada como tal
(2009, p. 20-21).83
83 Tradução nossa: [...] o artista é um ser humano que se distingue dos demais e se destaca entre eles,
produzindo – "criando" – obras únicas, o artesão produz em quantidade, desaparece como pessoa por trás
de seus produtos e, portanto, não "cria"; Consequentemente, enquanto o artista experiente e manipula,
inventa novas técnicas e utiliza diversos materiais, o artesanato não inova, não concebe sua obra para a
contemplação, não se destaca entre os outros. Por trás dessas diferenças valorativas, no entanto, é
reconhecida a marca da episteme moderno-colonial, uma vez que esses critérios se fazem visíveis pelo
princípio da autoria (direitos autorais, o que implica valor econômico) e, ligado a este, o de propriedade
privada (intimamente vinculado ao sistema capitalista), ou seja, valores que não se encontram,
precisamente, na contemplação e no prazer e que, no entanto, estão ativos na produção artística validada
como tal (2009, p. 20- 21).
75
Figura 24: Roberto de Almeida, 2010. Foto: Daniel Pellegrim Sanchez.
Nessa relação entre arte e sistema capitalista, é importante sinalizarmos também
a exploração dos artistas mediante o ―fascismo contratual‖, que de acordo com
Boaventura de Sousa Santos,
[...] ocorre nas situações em que a diferença de poder entre as partes
no contrato de direito civil (seja ele um contrato de trabalho ou um
contrato de fornecimento de bens ou serviços) é de tal ordem que a
parte mais fraca vulnerabilizada por não ter alternativa ao contrato
aceita as condições que lhe são impostas pela parte mais poderosa, por
mais onerosas ou despóticas que sejam (2010, p. 46).
É fácil notar esse dispositivo da colonialidade em Cuiabá: a exploração. Em um
território prolífico em artes visuais, a grande oferta de trabalhos satura o mercado local
(rarefeito), os preços das obras caem, o artista fica mais suscetível à especulação
exploratória. Nessa perspectiva, aparecem também as disputas internas, onde a
manutenção de estruturas, tradições e costumes se sobrepõe ao desenvolvimento de uma
―interculturalidade crítica‖ (WALSH, 2009) e do incentivo a pensamentos e práticas
―outros‖.
Nessa direção, percebemos que é imprescindível formar público para as artes,
muitas pessoas são consumidores em potencial de arte em Cuiabá, mas isso não se
76
efetiva por falta de formação. Formar apreciadores de arte é uma necessidade, mas,
além dela, precisamos pensar estratégias para que o já apreciador de arte, de algum tipo
de arte, possa ter condições de adquirir e/ou conviver com esses trabalhos. Para que isso
ocorra é necessário fortalecer ideias e práticas que favoreçam a heterarquia social e o
surgimento de novas coletividades marcadas por afetos e sensibilidades comuns que
unem e não que separam as pessoas.
Dói, em nós artistas, em diferentes aspectos e graus, a ―ferida colonial‖, sabemos
ou sentimos diversos tipos de opressão, seja pela cor de pele, seja pelo gênero e pela
sexualidade, seja pela escolha da arte como profissão – de difícil inserção no mercado –,
seja por sermos latinos, entre outros, mas ainda assim, utilizamos linguagens, materiais
e técnicas adquiridas, típicas da tradição europeia. Talvez seja um contrassenso estar
ferido e não se opor abertamente ao agressor. Para sobreviver, preferimos o diálogo,
promovemos hibridações, dissimulamos as respostas, como num ―jogo‖ de capoeira.
Assim, resistimos às mais diversas formas de opressão e hierarquização, produzindo
―nossa‖ arte obstinadamente e inventando-nos como artistas. Daí que consideramos que
ser artista em Cuiabá, Mato Grosso é um exercício constante de criação, onde são
criados modos de existir, de viver com arte/de arte e de constituir caminhos para as
artes, o que se propõe com este trabalho é que essa criação seja potencializada,
tornando-se consciente da colonialidade/decolonialidade que a constitui.
77
Figura 25: Clóvis Irigaray. Foto: Acervo do Artista
3.3 Descarregando...
É necessário começar a pensar que nós enquanto artistas, possuímos o direito de
viver do que produzimos em termos de arte, para tanto, o diálogo que precisamos
constituir não é só com o governo e com instituições de fomento à arte. Nós, artistas,
pesquisadores e produtores culturais precisamos experimentar um diálogo ―outro‖ com
artistas índios, os quais muitos nem consideram como artistas, pois o que fazem é ―arte
indígena‖, ou ―étnica‖; precisamos dialogar de modo outro com ―artesãos‖, que não são
considerados ―artistas‖; precisamos dialogar com artistas dos países vizinhos ao nosso,
conhecermos suas dificuldades, situarmo-nos em relação às nossas; precisamos dialogar
de modo mais articulado com esses artistas todos de outras cidades do estado de MT,
para juntos pensarmos estratégias de valorização do que fazemos em termos de arte, de
valorização do que somos. Propomos sairmos das divisões das divisões, das
subdivisões, das categorias nas quais nos encontramos para podermos transitar e pensar
em estratégias comuns e caminhos outros. No que tange às artes visuais, a
desqualificação é calcada na desconfiança, nos reducionismos e preconceitos. Há outros
―setores‖ que sofrem modos similares de desqualificação e é possível aproximá-los,
desde que se decolonize o pensamento e se passe a pensar as condições em que as
78
diferenças e as distinções são constituídas. A arte produzida nas sociedades indígenas,
quilombolas, assim como a arte popular brasileira, a arte do interior do país –
―regional‖, são postas em um patamar inferior, permanecendo a opressão sobre as
pluriculturas locais.
Nesse caminho, entendemos a ―interculturalidade crítica‖ como estratégia de
desamarração ou estratégia decolonial que se pode se dar agregando os âmbitos
supracitados. Catherine Walsh aborda a interculturalidade crítica como projeto político,
social epistêmico e ético e a diferencia da ―interculturalidade funcional‖.
Enquanto no interculturalismo funcional busca-se promover o diálogo
e a tolerância sem tocar as causas da assimetria social e cultural hoje
vigentes, no interculturalismo crítico busca-se suprimi-las por
métodos políticos não violentos. A assimetria social e a discriminação
cultural tornam inviável o diálogo intercultural autêntico. [...] Para
tornar real o diálogo, é preciso começar por tornar visível as causas do
não diálogo e isso passa necessariamente por um discurso de crítica
social [...] um discurso preocupado por explicitar as condições [de
índole social, econômica, política e educativa] para que este diálogo se
dê (TUBINO84
, 2005, p. 8 apud WALSH, 2009, p. 21).
Walsh escreve que a interculturalidade crítica ―é uma construção de e a partir
das pessoas que sofreram uma histórica submissão e subalternização‖ e que esse
movimento pode envolver conjuntamente ―setores que, da mesma forma, buscam
alternativas à globalização neoliberal e à racionalidade ocidental, e que lutam tanto pela
transformação social como para a criação de condições de poder, saber e ser muito
diferentes‖ (WALSH, 2009, p. 22).
Se Paulo Sérgio Duarte (ARTE BRASILEIRA – ALÉM DO SISTEMA, 2010,
s/p) escreve que as fronteiras do ―sistema da arte são pensadas à luz de três instituições:
a estética, a academia e instituições conexas – sobretudo os museus –, e o mercado‖,
podemos pensar que uma educação decolonial é estratégica para que trajetos ―outros‖ de
arte possam ser pensados/praticados.
No campo da educação em Cuiabá, criou-se, em 2008, o Mestrado em Estudos
de Cultura Contemporânea (ECCO/UFMT), e em 2014, o Doutorado, cursos
interdisciplinares, articulados a questões do tempo presente que engendram novos
84TUBINO, Fidel. ―La interculturalidad crítica como proyecto ético-político‖, Encuentro continental de
educadores agustinos, Lima, enero 2005, p.24-28. Disponível em
<http://oala.villanova.edu/congressos/educación/lima-ponen-02.html>
79
pensamentos e práticas. Contudo, a cidade ainda não possui curso superior de artes
visuais.
Além disso, alguns artistas pontuam que, em outros países, existem políticas de
valorização de autodidatas, conferindo-lhes títulos de doutores honoris causa, e que isto
no Brasil é mais raro de se acontecer.
Consideramos que a atividade artística e o ensino conduzidos por artistas
autodidatas, de suma importância para a formação em artes visuais em Cuiabá,
poderiam ser mais fomentados, em diferentes espaços e com mais regularidade. Nilsom
Pimenta, professor de arte no ateliê livre da UFMT, relata que foi uma sorte poder
ensinar e ao mesmo tempo desenvolver seu trabalho artístico; fala também que o
emprego na UFMT lhe garante uma estabilidade financeira, possibilitando o
desenvolvimento de um trabalho artístico mais independente dos padrões exigidos pelo
mercado. Essa situação não é a da maior parte dos artistas da cidade.
Carlos Lopes e Benedito Nunes esporadicamente participam, na qualidade de
instrutores, de cursos oferecidos pelo ateliê livre do Palácio das Artes e do ateliê do
Sesc Arsenal, eles são favoráveis à criação de cursos que acolham os ―mestres
populares‖.
No caso da criação de um curso de graduação em artes visuais, ou de mais vagas
de professores nos ateliês livres da cidade, os artistas poderiam se beneficiar com as
ações dos cursos que tendem a integrar ensino com criação artística. Intercâmbios entre
artistas, estudantes e professores poderiam promover e fortalecer a atuação de artistas
do e no estado, bem como a evidenciação de processos educacionais nos/dos processos
de criação artística.
Outro ponto a se considerar é que o ensino de arte tende a acessar a cadeia
produtiva da arte que, muitas vezes, passa a ser tema de estudos e pesquisas artísticas e
acadêmicas dos criadores e/ou dos educadores em formação. Além disso, a formação
crítica e responsável de artistas, pesquisadores, educadores, produtores, curadores,
críticos em arte tende a promover processos de formação de público nessa área, uma
dificuldade apontada por todos os artistas entrevistados.
Com o ensino de arte, propomos, nos passos de Walsh, que falemos:
80
[...] de uma política epistêmica da interculturalidade, mas também de
epistemologias políticas e críticas, poderiam servir, no campo
educativo, para colocar os debates em torno da interculturalidade em
outro nível, transpassando seu fundo enraizado na diversidade étnico-
cultural e focalizando o problema da ―ciência‖ em si; isto é, a maneira
através da qual a ciência, como um dos fundamentos centrais do
projeto modernidade/colonialidade, contribuiu de forma vital para o
estabelecimento e manutenção da histórica e atual ordem hierárquica
racial, da qual os brancos, e especialmente os homens brancos
europeus permanecem em cima. Permite considerar a construção de
novos marcos epistemológicos que pluralizam, problematizam e
desafiam a noção de um pensamento e conhecimento totalitário,
únicos e universais, partindo de uma política e ética que sempre
mantém como presente as relações do poder às quais foram
submetidas estes conhecimentos (2009, p. 24-25).
Figura 26: Reprodução do desenho do Engenho do Buriti, feito por Hércules Florence, durante a
Expedição Langsdorff, no século XIX, exposto na Sala da Memória em Chapada dos Guimarães - MT.
Fotografia: Daniel Pellegrim Sanchez.
Ao vermos a imagem acima, do engenho do Buriti em Chapada dos Guimarães,
onde aparecem escravos carregando o patrão em uma rede, nos damos conta de que
seguimos sendo os carregadores da rede em outro regime certamente, e nela, seguem
sendo carregados os valores e os saberes do topo da hierarquia. Não se trata, portanto,
de trocar carregados e carregadores. Mais uma vez, uma palavra muito usada nos ritos
do candomblé e da umbanda vem ao nosso auxílio: descarrego. Entre outros
significados encontra-se o de ―livrar-se do peso‖. Neste caso, soltar a rede com tudo o
que nela vai! Embora a ideia de tombo nos incite a uma rebeldia irônica à brasileira,
talvez uma traquinagem circense, pensamos em soltar a rede não como um ato de
contumaz de violência, de provocar um acidente que possa machucar "o patrão", mas
81
tão somente como a opção de não mais carregá-lo. O peso desse indivíduo macho,
branco, cristão, ocidental, capitalista, moderno e suas tralhas tensionam de tal maneira
os punhos e os fios nele arrematados que se torna praticamente impossível desfazer os
nós das amarrações. O privilégio de ser carregado em uma horizontalidade acima da
terra, de estar flutuando como em um castelo no céu, não só sustenta a "verticalidade do
dégradé hierárquico", como também mantém a pressão sobre as linhas da rede. Ao
soltar-se de uma rede que explora, escraviza, ou causa infelicidade, teremos tempo para
tecer redes outras, mais dignas e autossustentáveis. Soltá-la, desfazer os nós com uma
alavanca newtoniana, se for preciso, redefinir seu uso com logos outros é o que nos
resta e compete fazer mais do que nunca.
82
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Demonizar o escuro, hadonizar85
o interior, ocultar a lua, calar, emular através
de uma competitividade de massacre são artifícios de homens que têm a denotação
como estratégia política. Evocar o sol, o olho celestial, representar Deus e se amarrar
em geometrias deterministas fazem parte do fundamentalismo ego-político que segue
atravessando corações, mentes e instituições, inclusive as que se dedicam ao suposto
cultivo do espírito, como as artísticas e acadêmicas. Aníbal Quijano (2010, p. 124) fala
que ―em todo mundo eurocentrado foi-se impondo a hegemonia do modo eurocêntrico
de percepção e produção de conhecimento e numa parte muito ampla da população
mundial o próprio imaginário foi demonstradamente colonizado‖ por tal
fundamentalismo ego-político que se manifesta no/com o que este trabalho define como
colonialidade.
Foi vivendo o meio artístico de Cuiabá, a partir do ano de 1998 até os dias atuais
que, com esta pesquisa fomos provocados a perceber a colonialidade – expressa,
segundo Quijano (2000), por uma classificação racial/étnica seguida de hierarquização
que se impõe à população mundial – atuando em diversos âmbitos, planos e dimensões,
inclusive nas artes visuais da cidade, em seus circuitos materiais e subjetivos, em seus
modos de fazer e ser cotidianos. Pudemos acompanhar que na arte, as hierarquizações
se dão por meio dos dualismos ―erudito‖ e ―popular‖, ―regional‖ e ―universal‖, entre
outros, como também através de categorizações como arte primitiva, naïf, bruta,
artesanal, étnica, cabocla, esquisita etc. Se passarmos a entender cada uma dessas
categorizações na complexidade que as constitui, ―regional‖ e ―universal‖, ―local‖ e
―global‖, ―longe‖ e ―perto‖ podem deixar de ser antagônicas e, conectadas que estão,
podem passar a permitir mais re-posicionamentos para favorecer possíveis composições
―outras‖. Agora, se continuarmos a desejar e valorizar o ―trajeto único‖ das artes, não só
estaremos fortalecendo-o, como estaremos nos fechando a possibilidades de construção
de novos trajetos. Não sabemos exatamente onde esses trajetos ―outros‖ nos levarão,
mas podemos optar entre ficar com as incertezas que nos acompanharão nesses tais
85 De Hades, o deus grego da morte e do mundo inferior (HESÍODO, 2012, p. 127 e 147).
83
trajetos, ou continuarmos nessa zona, que conhecemos tão bem, onde prevalece o
pensamento abissal.
Seguindo Fanon, nos encontramos com a noção de ―ferida colonial‖ e
percebemos nos artistas com que convivemos diferentes marcas, feridas feitas pela
diferença de fenótipo (raça), classe social, língua, gênero, pelo lugar em que vivem,
pelas suas formas de vida ou pela capacidade que possuem de participar do sistema do
mercado de arte. Notamos que, mesmo desvalorizados e hierarquizados, continuam a
produzir muitas vezes sem se opor ao eu-sujeito-único, ao pensamento e trajeto únicos.
A persistência e a resistência desses artistas e seus trabalhos, por si só, constituem
respostas ao trajeto único das artes, porém, à medida que se tornarem cada vez mais
conscientes dos dispositivos de colonialidade inerentes às obras que produzem, suas
respostas poderão se potencializar enquanto decoloniais, promovendo relações de
proximidade com públicos ―outros‖, também hierarquizados e subalternizados. A
decolonialidade se potencializa com o que passa a ser material de pesquisa e produção
artística; com os agentes (autores, críticos, artistas, artesãos, públicos etc.) com os quais
dialogamos, produzindo conceitos e procedimentos para a criação de arte; e também
com os temas que surgem dessas pesquisas e diálogos. A partir do momento que vamos
nos conscientizando da colonialidade e percebendo-a também na arte, em suas relações,
mudamos o modo como vemos os trabalhos artísticos, inclusive os que são produzidos
por nós.
Verificamos, então, que dispositivos de colonialidade oriundos do pensamento
abissal, de divisões da realidade social e de dominação epistemológica persistem nas
artes visuais em Cuiabá. Problematizamos questões relacionadas ao racismo, à
exploração e a outros modos de violência ou desumanização e orientamo-nos no sentido
de buscar caminhos ―outros‖, dialogando com diversos autores vinculados ou não a rede
Modernidade/Colonialidade/Decolonialidade, que compartilham pensamentos/práticas
fortalecedores de processos de decolonização. Dialogando com esses autores, pudemos
conhecer a noção de pensamento heterárquico que nos impulsiona a experimentar
estratégias de movimento no sentido de realizar o giro decolonial .
Uma estratégia que destacamos para realizar o giro decolonial é cultivarmos o
pensamento crítico de fronteira, mas como dar corpo a esse pensamento nas/com as
artes visuais de Cuiabá? Talvez, uma dimensão desse pensamento seja assumirmos o
84
lugar do ―entre‖, essa posição arriscada e atravessada pelas mais diversas
temporalidades, espacialidades, com seus diferentes modelos e padrões. Esse
pensamento teria corpos (proposições artísticas) mutáveis, visto que ora precisam se
abrir e ora se fechar, ora permanecer, ora se transformar, gerando tensão que favorece a
criação, nessa relação que precisa ser de agenciamento com esses atravessamentos e
suas intensidades; corpos múltiplos, pois seriam constituídos por diversas identidades,
formas e sentidos que, em situações de problematização, emergiriam deles/neles; corpos
que modificam tudo o que os toca, sendo afetados e afetando, produzindo efeitos
diferentes do que habitualmente eram produzidos.
Seguindo essa linha de pensamento, verificamos que, em Cuiabá, ainda temos
dificuldade de produzir arte articulada a esse pensamento crítico de fronteira, pois ainda
não lidamos muito bem com esse lugar arriscado, onde só corpos mutáveis, múltiplos e
que aprendem a afetar e a serem afetados (sobre)vivem. Contudo, muitos artistas e
trabalhos artísticos, resistindo e existindo do modo que conseguem, parecem – assim
como a vegetação do cerrado, com suas árvores de cascas grossas, que têm a capacidade
de se queimar inteiras e ainda assim continuarem vivas e ressurgirem com suas flores –
ter desenvolvido força e formas para assumir as fronteiras que os constituem, tornando-
se aptos a buscarem caminhos diferenciados de legitimação e autonomização que
necessariamente não precisam estar no ―trajeto único‖ das artes visuais, que se impõe
sobre os artistas em termos globais. Acolher desvios e fissuras torna-se imprescindível
nesse trilhar caminhos ―outros‖, os quais são performados à medida que são trilhados.
No que se relaciona às fissuras, temos consciência de que elas existem neste
trabalho de pesquisa, porém sabemos que as mesmas podem nos conduzir – nós e outros
pesquisadores – a próximos passos. Esperamos, por meio desta dissertação, contribuir
com discussões acerca das artes visuais e estimular que outros artistas, pesquisadores,
estudantes, docentes etc. se interessem pela questão da (de)colonialidade da arte, para
que possam contribuir, tornando mais promissoras as investigações nessa área.
85
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