176
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO GLEICE LANE DE ARAUJO SILVA MÃOS CHEIAS DE PALAVRAS NUM CORPO QUE FALA: O DISCURSO FIGURATIVO DO SUJEITO SURDO VITÓRIA 2009

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

  • Upload
    others

  • View
    1

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO

CENTRO DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

GLEICE LANE DE ARAUJO SILVA

MÃOS CHEIAS DE PALAVRAS NUM CORPO QUE FALA: O DISCURSO FIGURATIVO DO SUJEITO SURDO

VITÓRIA 2009

Page 2: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

GLEICE LANE DE ARAUJO SILVA

MÃOS CHEIAS DE PALAVRAS NUM CORPO QUE FALA: O DISCURSO FIGURATIVO DO SUJEITO SURDO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação - Universidade Federal do Espírito Santo como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Educação. Área de concentração: Educação e

Linguagem – Visual. Orientadora: Professora Doutora Moema L. Martins Rebouças

VITÓRIA 2009

Page 3: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)

Silva, Gleice Lane de Araujo, 1961- S586m Mãos cheias de palavras num corpo que fala : o discurso

fIgurativo do sujeito surdo / Gleice Lane de Araujo Silva. – 2009. 175 f. : il. Orientadora: Moema Lúcia Martins Rebouças. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Espírito

Santo, Centro de Educação. 1. Língua de sinais. 2. Língua brasileira de sinais. 3.

Semiótica. I. Rebouças, Moema Lúcia Martins. II. Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Educação. III. Título.

CDU: 37

Page 4: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da
Page 5: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

Ao Deus, Senhor e Amigo que efetuou em mim tanto o querer quanto o realizar, de acordo com sua boa vontade. À Edith e à Maria Célia, duas mulheres encantadoras: a primeira, mãe e conselheira que com sua força e determinação me ensina que nunca é tarde para abraçar uma grande causa; a segunda, saudosa sogra, que com sua ternura ensinou-me a valorizar a beleza e a simplicidade do dia a dia. Ao Marco Antonio, esteio na turbulência e aos filhos, Gabriel, Gustavo e Samira, meu incentivo a prosseguir em novas buscas.

Page 6: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

AGRADECIMENTOS

Ao meu marido, Marco Antonio, que mais uma vez, em minha trajetória acadêmica,

assumiu seu papel de além-marido, ou seja, de parceiro, cúmplice, incentivador,

cozinheiro e amigo. Sem sua ajuda e compreensão jamais teria concluído esta

pesquisa.

Aos amados filhos, Gabriel, Gustavo e Samira, a quem dedico todos os meus

esforços de aperfeiçoamento como pessoa, mãe e profissional, agradeço pelo

respeito e tolerância ao tempo que não podia destiná-los e pela capacidade de

compreensão em reconhecer isso.

À Edith, minha mãe e intercessora, pelas orações, pelas palavras amorosas de

incentivo e que por ser, também, educadora acreditou na potencialidade desta

pesquisa para a área da Educação.

Às minhas irmãs, Marialzira (Zia), Vânia, Gláucia, Marineila (Neila) e ao meu irmão

Ewaldo pela força e, conseqüentemente, pela compreensão quanto às minhas

ausências em reuniões e encontros de família por estar envolvida com esta

dissertação.

Ao cunhado José Sátiro de Oliveira, professor doutor aposentado pela Unicamp,

pela disponibilidade em apreciar os primeiros capítulos desta dissertação,

contribuindo com um olhar acurado de quem já percorreu muitas trilhas em

percursos investigativos de pesquisas acadêmicas

À professora Dra. Moema Martins Rebouças pela flexibilidade, pois, ao reconhecer

meu real objeto de estudo, aceitou orientar-me numa temática tão pouco

pesquisada.

Page 7: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

À Dra. Ivone Martins, querida professora do mestrado, que com seu jeito doce e

firme contribuiu com meus estudos acadêmicos, e em especial, pelo seu olhar

comprometido com a qualidade teórica e relevância de minha pesquisa, desde o

período de minha qualificação.

Ao professor Dr. César Cola, por participar de minha banca e por ter me dado a

oportunidade, em sua disciplina do mestrado, de revelar-me em contos e crônicas,

minhas singularidades e devaneios.

Um agradecimento carinhoso à professora Dra. Mirlene Ferreira Macedo Damázio,

que prontamente atendeu ao meu convite para participar da banca examinadora.

À Professora Dra. Denise Meyrelles de Jesus pela amizade, pela força e incentivo.

Agradeço por ter me aberto os olhos para ver além das dificuldades, as minhas

possibilidades e potencialidades.

Aos professores bilíngües da “Escola do Encontro”, que sempre estiveram

disponíveis em cooperar com minha pesquisa, incentivando seus alunos a fazerem o

mesmo.

Aos meus colaboradores, alunos surdos da “Escola do Encontro”, pela alegria em

participar de meu projeto de pesquisa. Agradeço, em especial, à aluna D, que se

prontificou em colaborar com as gravações e com as seções de fotos.

A todos os profissionais da Escola do Encontro: intérpretes, professores, pedagogos,

coordenadores, merendeiras, porteiros, além de outros alunos surdos e ouvintes que

cooperaram, com seus depoimentos, no desenvolvimento do processo investigativo.

Agradeço aos professores surdos, especialmente ao prof. Flávio Eduardo por

contribuir como sujeito desta pesquisa e como revisor da transcrição das narrativas.

À minha amiga Rejane Telles, por sua ajuda e apoio imensuráveis no período das

provas de seleção para o mestrado e durante todo o processo de produção desta

dissertação.

Page 8: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

À Vasti Gonçalves de P. Correia, amiga, conselheira e incentivadora que sempre

esteve acessível para prestar socorro nos momentos angustiantes.

À Priscila M. Pio Maciel Lima por sua revisão cuidadosa do texto dissertativo e ao

professor Edson Maciel Júnior, por adequá-lo às normas exigidas pela ABNT.

Obrigada pelas pertinentes sugestões e valiosos conselhos!

Ao Grupo Shévah, de Dança e Coreografia pelo incentivo e por compreender minha

impossibilidade em cooperar ativamente na dinâmica dos ensaios e de não ter

podido apreciar algumas de suas apresentações.

À Dora Lúcia Frasson, que com sua sensibilidade e empatia, soube compreender a

necessidade de me ausentar por alguns dias de meu trabalho para efetivar a

conclusão desta dissertação.

A todos os amigos, por compreenderem a impossibilidade de ter-lhes dado a

merecida atenção no período de produção desta pesquisa.

Não poderia deixar de registrar a contribuição dos Estudos Independentes do

Programa de Pós-Graduação da UFES para o fortalecimento da proposta desta

pesquisa. Foi muito importante o intercâmbio de idéias e os debates com colegas

mestrandos e doutorandos que, de alguma maneira, deixaram suas marcas na

construção desta dissertação.

Quanto aos autores que, com suas contribuições e postulações se constituíram em

escopo teórico desta pesquisa, meu eterno agradecimento.

Page 9: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

Se não tivéssemos voz nem língua e ainda assim quiséssemos

expressar as coisas uns aos outros, não deveríamos, como

aqueles que ora são [surdos] [...], esforçar-nos para transmitir o

que desejássemos dizer com as mãos, a cabeça e outras

partes do corpo?

Sócrates

Page 10: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

SILVA, Gleice Lane de Araujo. Mãos cheias de palavras num corpo que fala: o discurso figurativo do sujeito surdo. 2009. 175 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós Graduação em Educação, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2009.

RESUMO

A pesquisa busca identificar e analisar a presença da figuratividade nos discursos

produzidos por sujeitos surdos por meio da Libras (Língua Brasileira de Sinais). A

partir da figuratividade estabelecemos um recorte dos sinais considerados icônicos

manifestos nesses discursos e propomos, sem grandes pretensões, analisá-los com

base no aporte teórico oferecido pela semiótica greimasiana que se constituirá em

alicerce, tanto epistemológico quanto metodológico. Procuramos identificar como a

figuratividade nesses sinais se apresenta e produz sentido para o surdo. Para tanto,

formamos um grupo focal com alunos surdos do Programa de Educação de Jovens

e Adultos em uma das escolas referência para educação de surdos da rede

municipal de Vitória. Pretendemos por meio da roda de conversa e da contação de

história, levantar dados que revelem: a identificação da presença da iconicidade na

Libras e o reconhecimento da contribuição da figuratividade na produção de uma

língua semiotizada pelas figuras do mundo sensível e que dá sentido aos discursos

produzidos por sujeitos surdo. Portanto, a Língua Brasileira de Sinais será

considerada um objeto semiótico repleto de significações a serem reveladas.

Entendemos que, ao darmos a devida importância à iconicidade presente no

discurso figurativo da pessoa com surdez, ressaltamos a premente necessidade de

se pensar numa educação significativa para alunos surdos pautada,

fundamentalmente, na visualidade, valorizando o sujeito surdo como um ser de

linguagem que apreende e interage com o mundo significante pela mediação

semiótica, já que as figuras do mundo sensível engendram sua língua viso-gestual-

espacial.

Palavras-chave: Língua Brasileira de Sinais, iconicidade, figuratividade, discurso

visual, semiótica.

Page 11: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

ABSTRACT

Research aimed at identifying and analyzing the presence of figuration on the speech

produced by individuals who are hearing impaired through the use of Brazilian Sign

Language (Libras). From the figuration we establish a snippet of the signs considered

iconic manifested in this speech and propose, without great ambitions, analyzing

them based on the theoretical contribution offered by Greimas‟ semiotics that will

constitute itself as a foundation, both theoretical and epistemological. We tried to

identify how figuration appears and produces meaning to the hearing impaired in

these signs. For so, we formed a group with hearing impaired students of an

educational program for young people and adults of one of the reference schools on

education of the hearing impaired in the city of Vitória. We intend, by means of

talking circles and story telling, to collect data that reveals: the identification of the

presence of iconicity in Libras and the recognition of the contribution of figuration in

the production of a language semiotics-like by the figures of the sensitivity world and

that gives meaning to the speeches produced by the hearing impaired. Therefore,

The Brazilian sign language (Libras), will be considered a semiotic object full of

significations to be revealed. We understand that, when giving the real importance to

the iconicity, to the figurative speech of a hearing impaired, we enlighten the

imperious requirement of thinking in a significant education for the hearing impaired

students focused, basically, in vision, enriching the hearing impaired as language

being that grasps and interacts with the significant world by the semiotic mediation,

as the images of the sensible world engender his visual-gestural-spatial language.

Keywords: Língua Brasileira de Sinais, iconicity, figuration, visual speech, semiotics

Page 12: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

LISTA DE ILUSTRAÇÕES E TABELAS

ILUSTRAÇÃO 01 – SINAL DE CASA ................................................................................ 69 ILUSTRAÇÃO 02 – SINAL DE HARPA ............................................................................. 69 ILUSTRAÇÃO 03 – SINAL DE CHORAR .......................................................................... 69 ILUSTRAÇÃO 04 – SINAL OLHAR .................................................................................. 77 ILUSTRAÇÃO 05 – SINAL DE PORTA ............................................................................. 81 ILUSTRAÇÃO 06 – SINAL DE ANGÚSTIA ....................................................................... 82 ILUSTRAÇÃO 07 – SINAL DE LEITE ................................................................................ 85 ILUSTRAÇÃO 08 – SINAL DE LADRÃO ........................................................................... 85 ILUSTRAÇÃO 09 – SINAL DE LADRÃO ........................................................................... 86 ILUSTRAÇÃO 10 – SINAL DE LIVRO ............................................................................... 87 ILUSTRAÇÃO 11 – SINAL DE TELEFONE ....................................................................... 87 ILUSTRAÇÃO 12 – SINAL DE PENSAR ........................................................................... 88 ILUSTRAÇÃO 13 – SINAL DE FÁCIL ............................................................................... 88 ILUSTRAÇÃO 14 – SINAL DE INTELIGENTE .................................................................. 89 ILUSTRAÇÃO 15 – SINAL DE ESQUECER ..................................................................... 89 ILUSTRAÇÃO 16 – SINAL DE AMIZADE; AMIGO ............................................................ 89 ILUSTRAÇÃO 17 – SINAL DE ANGÚSTIA ....................................................................... 90 ILUSTRAÇÃO 18 – SINAL DE CORAÇÃO ....................................................................... 90 ILUSTRAÇÃO 19 – SINAL DE VIDA ................................................................................. 91 ILUSTRAÇÃO 20 – SINAL DE COLHER ........................................................................... 95 ILUSTRAÇÃO 21 – SINAL DE CAMA E COPO ................................................................. 95 ILUSTRAÇÃO 22 – SINAL DE ESCOVA DE CABELO E DENTAL .................................... 95 ILUSTRAÇÃO 23 – SINAL DE MESA ............................................................................... 95 ILUSTRAÇÃO 24 – SINAL DE P-A-Z ................................................................................ 96 TABELA 01 ................................................................................................................ 127 TABELA 02 ................................................................................................................ 127 TABELA 03 ................................................................................................................ 130 TABELA 04 ................................................................................................................ 130 TABELA 05 ................................................................................................................ 131 TABELA 07 ................................................................................................................ 133 TABELA 08 ................................................................................................................ 137 TABELA 09 ................................................................................................................ 138

Page 13: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

SUMÁRIO

SUMÁRIO.................................................................................................................. 12

INTRODUÇÃO.......................................................................................................... 14

DO OBJETO AO OBJETIVO .............................................................................................................17

DO PERCURSO INVESTIGATIVO ......................................................................................................18

1 METODOLOGIA..................................................................................................... 21

1.1 OS SUJEITOS .......................................................................................................................24

1.2 PROCEDIMENTOS PARA A COLETA DE DADOS......................................................25

1.3 A FORMAÇÃO E CARACTERIZAÇÃO DO GRUPO FOCAL .....................................25

1.3.1 O papel do pesquisador.................................................................................... 26 1.4 ENCONTROS E PROPOSTAS .........................................................................................27

1.5 OBSERVAÇÃO .....................................................................................................................27

1.6 ENTREVISTAS .....................................................................................................................28

1.7 PROCEDIMENTOS PARA ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS DADOS .............29

2 LINGUAGEM E SURDEZ....................................................................................... 32

2.1 LÍNGUA, LINGUAGEM E FALA .........................................................................................32

2.2 O SUJEITO SURDO .............................................................................................................36

2.2.1 Identidade do Surdo.......................................................................................... 43 2.3 LÍNGUA DE SINAIS: UMA LÍNGUA NATURAL E COMPLEXA ..................................48

2.3.1 Aspectos Fonológicos....................................................................................... 53 2.3.2 Aspectos Morfológicos...................................................................................... 57 2.3.3 Aspectos Sintáticos........................................................................................... 59 2.3.4 Aspectos Semântico-Pragmáticos.................................................................... 60

3 LINGUA DE SINAIS BRASILEIRA: uma língua viso-gestual-espacial.............. 62

3.1 LIBRAS: UMA LÍNGUA VISUAL ...................................................................................................63

3.1.1 A Visualidade do Surdo..................................................................................... 65 3.1.2 A Visualidade e a Figuratividade na semiótica discursiva................................ 66 3.2 LIBRAS: UMA LÍNGUA GESTUAL ...............................................................................................70

3.3 LIBRAS: UMA LÍNGUA ESPACIAL ..............................................................................................75

3.1.3 A Iconicidade na Libras como Produtora de Sentido....................................... 83

4 TEXTOS E CONTEXTOS NA ESCOLA DO ENCONTRO.................................... 99

4.1 O ALUNO SURDO NA ESCOLA: TEXTOS E CONTEXTOS ......................................99

4.2 ENCONTROS E DES-ENCONTROS NA ENTRADA .................................................104

4.3 ENCONTROS NO RECREIO ...........................................................................................107

4.4 ENCONTRO COM OUTROS SUJEITOS ......................................................................110

4.5 ENCONTROS NA SALA DE AULA COMUM ................................................................112

4.6 ENCONTROS NA SALA DO ATENDIMENTO EDUCACIONAL ESPECIALIZADO

(AEE) ............................................................................................................................................113

4.6.1 Atendimento Educacional Especializado........................................................ 114 4.6.2 Educação Bilíngue nas escolas municipais de Vitória.................................... 116 4.6.3 Experiências vivenciadas na sala do AEE...................................................... 117

5 DESCRIÇÃO DA FIGURATIVIDADE / ICONICIDADE DO DISCURSO DO SURDO PELO VIÉS SEMIÓTICO......................................................................................... 120

5.1 PERCURSO DA ANÁLISE DESCRITIVA DA FALA VISO-GESTUAL DOS SUJEITOS SURDOS ....121

Page 14: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

13

5.2 DESCRIÇÃO DA FIGURATIVIDADE/ICONICIDADE PRESENTES NO DISCURSO DOS SUJEITOS

SURDOS PELO VIÉS DA SEMIÓTICA. .............................................................................................123

5.3 MÃOS CHEIAS DE PALAVRAS NUM CORPO QUE FALA ......................................138

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................. 141

7 REFERÊNCIAS.................................................................................................... 148

ANEXOS.................................................................................................................. 153

ANEXO – A.............................................................................................................. 154

ANEXO – B.............................................................................................................. 155

ANEXO – C.............................................................................................................. 157

ANEXO – D.............................................................................................................. 158

ANEXO – E.............................................................................................................. 159

ANEXO – F.............................................................................................................. 161

ANEXO – G.............................................................................................................. 162

ANEXO – H.............................................................................................................. 174

ANEXO – I................................................................................................................ 175

Page 15: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

14

INTRODUÇÃO

Pesquisar sobre o universo surdo, sobre a Língua de Sinais e suas características e

especificidades tornou-se um prazer e uma motivação. A expressividade da Língua

de Sinais sempre me encantou. A maneira empolgante de um surdo conversar

através de suas mãos cheias de palavras1 chamava minha atenção.

Meu primeiro contato com pessoas com surdez foi em meados da década de 80, na

Igreja Batista da Praia do Suá, Vitória, ES. Devido ao seu trabalho pioneiro nesta

área, é reconhecida como a primeira igreja no Estado do Espírito Santo a oferecer

aos surdos a oportunidade de participar dos cultos e demais atividades com

interpretação em Língua de Sinais.

Quando fui apresentada a essa língua, pude constatar que não se tratava apenas de

uma simples comunicação através de gestos, mas de uma língua poética e

esteticamente construída. Uma língua visual e espacial, pois utiliza a visão e o

espaço para produzir sentido. Possui gramática e características próprias, ou seja,

uma língua que apresenta todas as propriedades específicas das línguas humanas.

Fui intérprete da Língua de Sinais e convivi com a comunidade surda da Praia do

Suá por 12 anos. Minha experiência levou-me a querer conhecer mais sobre o grupo

de pessoas com quem estava interagindo. Propus-me, então, a buscar respostas ou

norteamentos que pudessem, de alguma forma, contribuir com meus estudos e

dirimir algumas inquietações acerca da surdez e do sujeito surdo. Além de leituras

de obras que abordavam o tema, procurei participar de simpósios e congressos que

tratavam das peculiaridades do surdo e de sua língua: a Língua de Sinais.

Minha experiência com a educação de surdos iniciou-se em 2001, numa Escola

Municipal de Ensino Fundamental de Vitória. Inicialmente atuei como professora de

Arte e posteriormente como professora Especialista da Educação Especial, na área

da Surdez, atendendo em Laboratório Pedagógico, que na época se constituía em

um espaço destinado ao atendimento de alunos com necessidades educacionais

1 Termo traduzido do título de um programa produzido pela Gallaudet Unversity (EUA): “Hands full of

words”, citado por Sacks (1998, p. 16).

Page 16: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

15

especiais. O atendimento ao aluno surdo era no contraturno, individual ou em

pequenos grupos, tendo como enfoque a alfabetização, priorizando a leitura do

português escrito e o aprendizado da Língua de Sinais. As ilustrações dos sinais, as

fotografias de elementos do mundo natural retiradas de livros, revistas ou exploradas

por meio eletrônico, bem como reproduções de obras de arte eram largamente

disponibilizadas. Eram referenciais importantes para a compreensão de conceitos

variados, já que a linguagem visual ocupa, na educação dos surdos, um papel

importante de mediação e interação com toda a sistematização de informações.

Reconhecer a visualidade do surdo facilitou o aprimoramento das propostas

pedagógicas. Como professora de Arte, atraída essencialmente para o visual,

percebia que a interatividade das crianças surdas com as linguagens artísticas

também permeava a visualidade. Com que facilidade compreendiam os textos

visuais! Os livros de história sem texto verbal, só com ilustrações, atraíam muito as

crianças surdas.

Em projetos educacionais trabalhamos alguns livros de texto visual da autora Regina

Coeli Rennó2, em que as imagens falam por si, eloquentes e calorosas

possibilitando, a cada leitor, por meio de sua imaginação, construir a história e

compor seu próprio texto. Ao desenvolver o projeto de leitura desses livros, sugeri

aos alunos surdos que convidassem um colega de classe, ouvinte, para participar do

momento de leitura e interpretação das histórias. Ao “lerem” as imagens, em vez de

letras, como se faz num texto essencialmente verbal, e recontarem a história através

da Língua de Sinais, as crianças surdas mostravam uma riqueza de apreensão de

significados e apresentavam na narrativa muito mais detalhes do que as outras

ouvintes, principalmente em relação aos sentimentos e tensões vividas pelos

personagens. Para validar essa afirmação cito o caso de Rebeca3, uma aluna surda.

Rebeca encantou-se com a história narrada pelas imagens do livro “Amor de Ganso”

de Rennó (1995). A fim de situar o leitor a respeito do enredo dessa história,

apresento um pequeno resumo, considerando portanto, a narrativa um reflexo de

2 Títulos trabalhados com as crianças surdas: Amor de ganso (1995), Pê, o pato diferente (1993) e

História de amor (1997). 3 Nome fictício.

Page 17: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

16

minha própria imaginação a partir da leitura das imagens. A história fala de um

ganso que se apaixona por uma galinha. Os familiares do ganso não aceitam seu

envolvimento com a ave, mas mesmo criticado por sua comunidade o ganso

apaixonado enfrenta as pressões para ficar com a galinha e seus três pintinhos. No

desenrolar da narrativa, os protagonistas enfrentam o descaso e o repúdio dos

outros gansos que não admitem a idéia de conviverem com a diferença. O ganso

apaixonado é pressionado a tomar uma decisão: esquecer seu relacionamento com

a galinha ou sair da comunidade, levando-a consigo. Com muita tristeza resolveu

deixar o lugar onde morava e partiu com a galinha e seus três pintinhos.

Ao interpretar o texto visual, a aluna surda utilizava a Língua de Sinais e todo o seu

corpo para enfatizar um determinado sentimento. Quando era de tristeza, se

encurvava e mostrava através da Língua de Sinais e das expressões faciais a

angústia vivida pelo ganso e pela galinha. Quando o momento era de tensão ou

raiva, os sinais eram produzidos com aspereza e de forma abrupta, associando

sempre as expressões corpóreo-faciais; nos momentos de ternura, as expressões e

a produção dos sinais tornavam-se lentas e mais suaves. Não só o falar com as

mãos contava a história, mas todo o corpo produzia sentido.

As experiências com alunos surdos estimularam-me a pesquisar ainda mais sobre a

especificidade dos sujeitos surdos como constituidores de uma narrativa própria e

com um modo específico de apreensão de significados.

Em 2003, no Curso de Especialização em Artes Visuais no Ensino Fundamental e

Médio, oferecido pelo Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo,

apresentei uma Monografia com o título: Ouvindo Imagens: a importância da

Imagem na construção do conhecimento do surdo, orientada pela professora Isabel

Helena Oliveira de Souza. Nesse trabalho, abordei como tema central a visualidade

do surdo e a capacidade que ele tem de perceber e compreender significados a

partir de sua interação com o mundo natural através do canal viso-gestual.

Timidamente, esbocei um ensaio sobre a importância da imagem na construção do

conhecimento e apreensão de conceitos pela criança surda.

Page 18: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

17

O interesse pelas questões da surdez persistiu, em especial pelo sujeito surdo e seu

modo peculiar de linguagem, e levou-me a embarcar numa nova exploração:

compreender a figuratividade da Língua de Sinais, principalmente o sentido que ela

provoca na interatividade discursiva dos sujeitos que dela se utiliza.

DO OBJETO AO OBJETIVO

Consideraremos a Língua de Sinais como um objeto semiótico repleto de

significações a serem desveladas. Assim, o objeto deste estudo é a língua, em

nosso caso, a Língua Brasileira de Sinais (Libras)4 e os sentidos que ela provoca no

discurso do surdo.

O objetivo desta dissertação é analisar a presença da figuratividade nos discursos

produzidos por sujeitos surdos por meio da Libras. Ao estabelecer um recorte dos

sinais considerados figurativos manifestos nos discursos desses sujeitos, propomos,

sem grandes pretensões, analisá-los à luz da teoria semiótica greimasiana,

identificando como a figuratividade presente nesses sinais se apresenta e produz

sentido para o surdo.

Levaremos em consideração que o cerne da questão está em compreender a

linguagem/discurso como uma atividade constitutiva do sujeito. Aliás, como saber

onde se funda o sujeito, como ele toma forma, se não se considerar o seu percurso

em busca de sentido? São reflexões que convergem com nossas inquietações a

respeito da construção da significação da linguagem do surdo no mundo ouvinte.

Afinal, como esse sujeito surdo estabelece relações com o mundo à sua volta, senão

pela linguagem? Como se dá a interação do aluno surdo dentro do ambiente escolar

se possui uma língua diferente da maioria? São questões imbricadas e pertinentes à

discussão dessa pesquisa, já que nos propomos refletir sobre a constituição do

surdo como sujeito de linguagem.

4 Optamos por utilizar o termo Libras nesse estudo por ser comumente usado para referir-se à Língua Brasileira de Sinais. No entanto, vale ressaltar a existência do termo LSB, que é uma sigla utilizada, internacionalmente, seguindo os padrões de identificação para as línguas de sinais (QUADROS; KARNOPP, 2004, p. 46)

Page 19: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

18

Para fins de análise, a partir de um corpus emprestado dos discursos de alunos

surdos, será feito um recorte de alguns sinais que possuem características

figurativas na forma de apresentação, considerando as proposições semióticas

acerca da visualidade.

Algumas hipóteses foram formuladas, tais como: i) o surdo apreende os

conhecimentos do mundo, essencialmente pelo canal visual; ii) traz para sua língua

aspectos figurativos do mundo natural na construção de muitos sinais sem, contudo,

lhe tirar o estatuto de língua natural5, pois a figuratividade presente em muitos sinais

da Libras reflete a relação do surdo com seu meio circundante; iii) esta

especificidade linguística influencia em sua formação como ser de linguagem.

Portanto, consideraremos a Língua de Sinais como um objeto semiótico, repleto de

significações a serem desveladas, constituindo em motivo de investigação as

seguintes questões: Como o surdo atribui significados e conceitos para sua inserção

como ser de linguagem? Qual a contribuição da figuratividade na produção de

sentido nos discursos produzidos por sujeitos surdos por meio da Língua de Sinais?

Ou ainda, em quais sinais6 identificamos a presença dessa figuratividade e como ela

se estabelece na constituição de sentido7? E considerando que a pesquisa ocorre

dentro do ambiente escolar, procuramos pontuar as relações contextuais que se

estabelecem na escola para a inserção (ou não) desses sujeitos por meio da

linguagem.

DO PERCURSO INVESTIGATIVO

Esta dissertação é constituída por seis capítulos, organizados de maneira a conduzir

o leitor ao percurso traçado por nós até o ponto de chegada, onde pudemos ancorar

nossas postulações.

5 Stokoe (apud QUADROS; KARNOPP, 2004, p. 30) percebeu e comprovou que a Língua de Sinais atendia a todos os critérios linguísticos de uma língua genuína, no léxico, na sintaxe e na capacidade de gerar uma quantidade infinita de frases. 6 Por sinal entende-se o item lexical da Língua de Sinais. É equiparado à palavra, item lexical das

línguas orais auditivas. Dito de outra maneira: nas línguas de modalidade oral-auditiva temos as palavras; nas línguas de modalidade visogestual temos os sinais. 7 Os sinais que serão considerados figurativos e como tais analisados, serão aqueles identificados na

fala dos surdos participantes desta pesquisa, ou seja, dos surdos participantes do grupo focal, que foi o método utilizado para coleta de dados.

Page 20: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

19

No capítulo 1 apresentamos os procedimentos metodológicos para a realização

desta pesquisa, além dos sujeitos e os instrumentos utilizados na coleta e na análise

dos dados. Optamos pela semiótica tanto quanto epistemologia como metodologia

para embasar a análise e a interpretação dos dados, ou seja, do corpus constituído

pelo discurso do aluno surdo produzido numa roda de conversa.

O capítulo 2 constituiu-se em referencial teórico dos princípios gerais sobre

linguagem e surdez, esclarecendo algumas diferenciações entre língua, linguagem e

fala. Para discussão de tais temas escolhemos como arcabouço teórico que

fundamentam e embasam a constituição do surdo como um ser de linguagem, capaz

de formulações e interpretações do mundo circundante, as considerações de

estudiosos da área da linguística, como: Saussure (1995), Bakhtin (1990), Greimas

(1975), Greimas; Kristeva e Bremond (1979) e Fiorin (1995). Tratamos, também, da

especificidade do surdo como ser de linguagem, pontuando alguns aspectos

intrínsecos à Língua Brasileira de Sinais. Desta feita, consideramos as proposições

de autores, como: Quadros; Karnopp (2004), Fernandes (2003), Brito (1995), dentre

outros.

No capítulo 3 discorremos sobre as características que permeiam a Língua de

Sinais, quais sejam: a visualidade, a gestualidade e a espacialidade, e como esses

elementos se constituem em significantes na fala viso-gestual do surdo.

Dedico o capítulo 4 aos textos e contextos da Escola do Encontro, nomenclatura

poeticamente criada para designar o locus da pesquisa. Compreendemos a escola

como um espaço, dentre outros da vida em sociedade, marcado por encontros e

desencontros entre sujeitos. Ao ir para a escola, o aluno surdo segue para múltiplos

des-encontros: com seus colegas surdos, com outros alunos surdos e ouvintes, com

a Língua Portuguesa, com a própria Língua de Sinais, com a expectativa de novos

conhecimentos, com os professores e com os demais profissionais da escola. Estes

encontros no ambiente escolar são permeados de idas e vindas, mas possuem, em

sua essência, o vislumbre de um novo percurso a ser traçado: do reconhecimento do

aluno surdo como ser de linguagem e, consequentemente, como um aprendiz, em

potencial.

Page 21: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

20

É no capítulo 5 que nos aproximamos do tema desta dissertação. Apresentamos as

postulações acerca das hipóteses levantadas bem como as análises dos sinais

considerados icônicos ou figurativos, constituintes da fala do surdo. Analisamos a

fala-gesto dos colaboradores surdos, em especial, a iconicidade presente no léxico

dos discursos apresentado por eles. A semiótica Discursiva (ou greimasiana)

apresenta-se como uma ciência de investigação e interpretação da significação

presente nas mãos cheias de palavras num corpo que fala.

Concluo esta dissertação, no capítulo 6, das considerações finais, sintetizando os

resultados obtidos com a identificação da figuratividade nos discursos do aluno

surdo, apontando as contribuições desta pesquisa.

No Anexo, seguem os formulários utilizados na coleta de dados, os documentos e

legislações pertinentes às discussões deste trabalho, além de outras referências que

se fizeram necessárias.

Page 22: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

21

1 METODOLOGIA

Esta pesquisa, de natureza qualitativa, envolveu a pesquisa de campo. Segundo

Lüdke e André (1996), a pesquisa qualitativa consiste no trabalho intensivo de busca

direta dos fenômenos em suas manifestações, sem qualquer manipulação

intencional do pesquisador.

Através da Semiótica, como pressuposto metodológico, pudemos explorar situações

da vida real, no contexto escolar dos sujeitos pesquisados; descrever a situação do

contexto em que foi feita a investigação além de formular hipóteses e desenvolver

teorias.

Estabelecemos como objeto de estudo a fala visual do surdo, em que o foco estará

nos sinais que apresentam características figurativas. Entretanto, como estes

sujeitos circulam e interagem no espaço escolar, analisaremos como se dá as

relações entre eles, os professores e demais trabalhadores.

Para a realização desta pesquisa, além dos participantes diretos - pessoas surdas

que se constituem nos sujeitos do presente estudo - também foram envolvidos

outros sujeitos, que antes de tudo, se constituíram em parceiros e colaboradores:

alunos e amigos surdos, professores e intérpretes que por estarem envolvidos

diretamente com a educação de alunos com surdez, trouxeram contribuições de

forma significativa na elaboração das concepções aqui apresentadas.

Como trataremos da língua visual e gestual do surdo, os termos “figurativo” e

“icônico” serão amplamente usados neste estudo, e faz-se necessário esclarecer

que as referências conceituais serão aquelas dadas pela teoria semiótica.

Apresentamos, a seguir, alguns destes conceitos à luz dos estudos semióticos.

Sobre o termo figurativo, lemos no Diccionario Razonado de la Teoria del Lenguaje:

Considerado em si mismo, lo figurativo no tiene sentido alguno: solo adquiere uno cuando es tematizado: las figuras del mundo puestas em discursos, son únicamente em pretexto para la afimacíon renovada de los sistemas de valores proviemente planteados (GREIMAS; COURTÉS, 1991, p. 114).

Page 23: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

22

Sendo assim, o figurativo só adquire sentido quando tecido dentro do discurso.

Lemos, ainda, no mesmo dicionário que o discurso figurativo:

[...] es un discurso que, para producir el efecto de iconicidad, usa abundantemente la referencialización. [...] Puede hablarse, en ese plano, de um lenguaje figurativo de tipo metasemiótico, capaz de estructurar los esquemas conceptuales que soportan y organizan uma visión del mundo o una ideologia (GREIMAS; COURTÉS, 1991, p.114).

O discurso figurativo ao produzir efeito de iconicidade usa o referente como objeto

de significação. Em sua obra “Sobre o Sentido”, Greimas (1975) discute sobre o

conceito de referente e diz que “com o aparecimento da semiótica, teoria de todas

as linguagens e de todos os sistemas de significação o referente surge ao se

considerar o mundo extralingüístico”, ou seja, o contexto não como um referente

absoluto, mas como um lugar da manifestação do sensível, da manifestação do

sentido humano. É a presença do mundo visível constituindo-se em mundo sensível.

Greimas (1975, p. 49) reconhece que o mundo visível em vez de se projetar diante

de nós como uma tela homogênea de formas, aparece como se fosse constituído de

várias camadas de significantes superpostos ou mesmo justapostos.

Barros (2005, p. 87) define a figurativização como o procedimento semântico pelo

qual conteúdos mais concretos, ou seja, os que remetem ao mundo natural,

recobrem os percursos temáticos abstratos.

A iconicidade é apresentada no Diccionario de Greimas e Courtés (1991, p.135),

com a seguinte definição: “La iconicidad es uma forma, entre otras, de

aprovechamiento discursivo de La figuratividad que constiuiye su material”. A

iconicidade explora discursivamente, a figuratividade.

De acordo com Greimas e Courtés (1991), a iconicidade deve ser enxergada sob

dois pontos de vista: o semântico e o enunciativo. Do ponto de vista semântico, os

autores falam de uma iconicidade de “consistência”, afirmando que a iconicidade é

resultado de uma sobredeterminação de traços figurativos que, por meio de

procedimentos diversos de referencialização, enriquece progressivamente a

representação até fazer parecer real a imagem produzida do mundo natural. Do

ponto de vista enunciativo, os autores falam de “modos de integração” do

Page 24: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

23

observador, que por contrato fiduciário entre os enunciadores, faz variar

consideravelmente seu modo de adesão.

Barros (2005, p. 87) entende que a iconização é o investimento figurativo exaustivo

da última fase do procedimento de figurativização, com o objetivo de produzir ilusão

referencial ou de realidade. Para a autora, a figura é um elemento da semântica

discursiva que se relaciona com um elemento do mundo natural, o que cria no

discurso, o efeito de sentido ou a ilusão de realidade. Sobre a iconização do

discurso, assim escreve Barros (2005, p.72):

Na iconização, mas também nas demais etapas da figurativização, o enunciador utiliza as figuras do discurso para levar o enunciatário a reconhecer “imagens do mundo” e, a partir daí, a acreditar na “verdade” do discurso (BARROS, 2005, p.72).

Enunciador, na visão semiótica, é o destinador do discurso, o sujeito da enunciação.

O enunciatário é o destinatário do discurso.

Fiorin (2008, p. 55) define enunciação como o ato de produção do discurso ou como

a instância que povoa o enunciado de pessoas, de tempos e de espaços, ou seja,

define-se como a instância do eu-aqui-agora (ego, hic et nunc). Sobre estas

instâncias, assim esclarece Fiorin:

O „eu‟ é instaurado no ato de dizer: „eu‟ é quem diz „eu‟. A pessoa a quem o „eu‟ se dirige é estabelecida como „tu‟. O „eu‟ e o „tu‟ são os actantes da enunciação, os participantes da ação enunciativa. [...] O „eu‟ realiza o ato de dizer num determinado tempo e num dado espaço. „Aqui‟ é o espaço do „eu‟, a partir do qual todos os espaços são ordenados; „agora‟ é o momento em que o „eu‟ toma a palavra e, a partir dele, toda a temporalidade linguística é organizada (FIORIN, 2008, p. 56).

A partir dessas concepções, cremos que todo o percurso dissertativo será facilmente

apreendido pelo leitor, lembrando que a discussão acerca desses conceitos será

recorrente.

Pelo seu teor, a pesquisa exigiu contato direto com os sujeitos, bem como condições

de observação nas quais o comportamento e as relações ocorreram naturalmente. A

preocupação foi a de captar um maior número possível de elementos presentes no

processo investigativo imbricado no discurso surdo, os significados que o surdo

Page 25: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

24

atribui ao se constituir ser de linguagem, ou seja, aos fatos relacionados à sua

experiência e à própria existência como ser que apreende o mundo pelo canal

visual.

1.1 OS SUJEITOS

Os sujeitos desta pesquisa, na sua maioria, são surdos com surdez congênita e

surdos pré-linguísticos, ou seja, que perderam a audição antes da aquisição da fala.

As causas congênitas da surdez podem ser ou não de origem genética. Diferentes

enfermidades podem causar a surdez, como por exemplo: rubéola, toxoplasmose,

sífilis, anorexia do parto, icterícia neonatal, más formações genéticas, infecções do

ouvido médio, etc (CICCONE,1990).

Escolhemos pesquisar surdos adultos fluentes na Língua de Sinais e não crianças,

por entendermos que o domínio na língua facilitará a constatação da presença de

alguns sinais considerados figurativos, pois o discurso - pano de fundo da presença

da figuratividade - será mais amadurecido por refletir as experiências de vida e a

vivência com a Língua de Sinais.

Participaram desta pesquisa sujeitos surdos adultos, de ambos os sexos, alunos do

programa de Educação de Jovens e Adultos (EJA) do curso noturno de uma escola

municipal em Vitória, ES.

A escola foi escolhida pelo fato de existir uma quantidade significativa de alunos

surdos adultos e um fortalecimento da comunidade surda dentro desse espaço. É

uma das Unidades de Ensino referência de atendimento a alunos com surdez da

Prefeitura Municipal de Vitória.

Page 26: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

25

1.2 PROCEDIMENTOS PARA A COLETA DE DADOS

Como instrumentos de coleta de dados, além da observação em lócus, utilizamos a

entrevista aberta e a fechada com alunos e profissionais da escola, cujo modelo

encontra-se no anexo desta pesquisa.

Constituíram-se, também em coleta de dados, as informações e os relatos de

experiências de profissionais envolvidos com a educação dos alunos com surdez na

escola pesquisada.

1.3 A FORMAÇÃO E CARACTERIZAÇÃO DO GRUPO FOCAL

Considerando que os dados a serem colhidos estavam imbricados no discurso do

sujeito surdo, a coleta das informações foi feita a partir da constituição da técnica de

Grupo Focal (GF) formado por alunos surdos.

Morgan (apud VEIGA & GONDIM, 2001) define grupos focais como uma técnica de

pesquisa que coleta dados por meio das interações grupais ao se discutir um tópico

especial sugerido pelo pesquisador. Pode ser caracterizada como um recurso para

compreender o processo de construção das percepções, atitudes e representações

sociais de grupos humanos.

Para constituir o Grupo Focal, procuramos uma turma em que a maioria dos alunos

pudesse atender às características pré-estabelecidas, quais sejam: surdos que

apresentassem surdez congênita ou pré-lingual e que possuíssem a Língua de

Sinais como linguagem de comunicação.

O grupo foi formado por participantes de uma classe de treze alunos surdos de

ambos os sexos, do programa de Educação de Jovens e Adultos que apresentavam

surdez pré-lingual e congênita e que, na grande maioria, eram usuários da Língua

de Sinais8 como língua de comunicação e interação.

8 Como GF escolhemos uma turma já estabelecida na escola em que fazem parte alguns alunos que ainda estão aprendendo a Língua de Sinais, mas que em nada dificultou a proposta da pesquisa.

Page 27: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

26

Foi importante para o bom andamento da pesquisa o interesse demonstrado por

esses alunos, professores e intérpretes em participarem e contribuírem com a

proposta de investigação.

Socializamos com a turma a proposta do grupo focal e da pesquisa em questão para

que os participantes soubessem o que esperar das discussões a fim de proporcionar

um ambiente que lhes deixassem bem à vontade. Foi dito que as atividades de

conversação em Libras teriam caráter informal e que seria importante a participação

de todos com o máximo de espontaneidade possível.

1.3.1 O papel do pesquisador

Segundo Veiga e Gondim (2001), o moderador de um grupo focal assume uma

posição de facilitador do processo de discussão, e sua ênfase está nos processos

psicossociais que emergem, ou seja, no jogo de interinfluências da formação de

opiniões sobre um determinado tema.

O autor diz que o papel do moderador é promover a participação de todos, evitar a

dispersão dos objetivos da discussão e a monopolização de alguns participantes

sobre outros. Outra ação do moderador é registrar a discussão. No caso dessa

pesquisa, o registro deu-se por meio de filmagens e fotografias9, pois o objeto de

análise era a própria língua do aluno surdo, isto é, a possível presença da

iconicidade em sua fala, que se apresenta pelo canal viso-espacial. O discurso do

surdo foi analisado a partir de recortes dos sinais que efetivamente apresentaram

características icônicas ou figurativas.

Como parte do conjunto de significações, foi investigado no discurso produzido pelos

surdos não só como falavam, mas o que falavam, pois as mãos apresentaram

comportamentos, ações, pensamentos, idéias e sentimentos significativos para a

Pudemos constatar que mesmo sem a fluência na Língua de Sinais o sujeito surdo usa um corpo que fala. E, diferentemente do que pensava inicialmente, essa diversidade dentro da sala de aula trouxe uma riqueza maior às nossas reflexões. 9 Os registros de filmagens e fotografias foram devidamente autorizados por escrito por todos os

participantes.

Page 28: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

27

produção dos discursos. Os sinais foram produzidos por mãos e corpo que estavam

situados num contexto sócio-econômico-cultural especificamente, num contexto da

cotidianidade escolar. Para Mary Douglas (apud OLIVEIRA, 1992, p.113), o corpo

físico e o corpo social relacionam-se reciprocamente, pois o corpo comunica

informação para e do sistema social do qual faz parte. Daí a importância de

considerarmos na investigação, o contexto escolar como elemento significativo na

constituição do discurso dos sujeitos surdos.

1.4 ENCONTROS E PROPOSTAS

Foram aproximadamente, cinco encontros de duas horas cada, num período de 30

dias. Foi um tempo suficiente para que todos pudessem ter a oportunidade de se

expressarem com tranquilidade e liberdade. Os encontros foram realizados dentro

do espaço escolar, num horário previamente combinado com a professora bilíngue e

autorizado pela equipe técnica-pedagógica da Escola.

Como proposta de discussão no grupo focal, apresentamos o livro de textos visuais

intitulado “O Gato de Papel”, de Rennó (1997). O livro narra a história de um gato

que “cansou” de viver como um simples desenho numa folha de papel. Desejando

abandonar sua vida estática, num salto se rasga da folha de papel e ganha “vida”.

Em contato com a realidade, o gato de papel passa por situações adversas até ser

recolhido por um pescador, que o trata como um ser especial10.

Escolhemos esse livro para fomentar a conversa no grupo com o objetivo de

trabalhar a subjetividade e os diferentes sentimentos que a história produziria em

cada participante. Eles puderam apreender significados a partir da leitura das

imagens.

1.5 OBSERVAÇÃO

Em se tratando de uma pesquisa de campo, um dos meios de coleta de dados

utilizado foi a observação. Como pesquisadora, constituo-me também em uma

observadora participante, por isso, foi possível testar hipóteses por intermédio da

10 Descreveremos essa narrativa com mais detalhes no Capítulo 4.

Page 29: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

28

criação de situações que dificilmente ocorreriam em outras modalidades de

observação.

Para Wilkinson (apud VIANNA, 2003, p. 50) a observação participante apresenta as

seguintes vantagens: i) possibilita a entrada de determinados conhecimentos que

seriam privativos e aos qual um observador estranho não teria acesso; ii) permite a

observação não apenas de comportamentos, mas também de atitudes, opiniões e

sentimentos, além de superar a problemática do efeito do observador.

Algumas dimensões foram consideradas na observação: a) o espaço físico da

Escola; b) as pessoas envolvidas, que foram os surdo-sujeitos da pesquisa, outros

surdos da escola, alunos ouvintes, professores e demais profissionais da escola; c)

sequências ao longo do tempo: cinco encontros de duas horas cada, por um período

de trinta dias; d) conjunto de ações que apresentam relação, ou seja, conversas,

entrevistas, observação dos alunos no recreio quando se organizavam em pequenos

grupos para conversarem sobre amenidades e assuntos diversos, e) emoções

sentidas e expressas, que no nosso caso se referiram ao envolvimento pelos

participantes do grupo focal com o contexto das histórias lidas e recontadas.

A observação constituiu-se em uma ação contínua. Os dados observados e

coletados foram registrados através do diário de campo em forma de relatos,

salientando as informações que eram efetivamente significativas. Outros recursos

como a fotografia e a filmagem também se constituíram como meios de registros.

1.6 ENTREVISTAS

Neste estudo foram utilizados dois tipos de entrevistas: a entrevista aberta, para

extrair fatos, opiniões, e a entrevista estruturada, com perguntas pré-formuladas,

respostas mais fechadas ou sintéticas (ANEXOS E e F).

As entrevistas possibilitaram um contato com os demais sujeitos que circulam na

escola: alunos ouvintes, outros alunos surdos, professores e profissionais da Equipe

Técnica Pedagógica, merendeiras, porteiros, etc. O contato com essas pessoas

possibilitou compreender a relação estabelecida entre eles e os alunos surdos, e as

Page 30: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

29

razões da formação da cultura surda na escola, partindo então do contexto, ou seja,

da escola que abriga o surdo para o texto, que é o surdo que se constitui como

sujeito. O que essa escola tem de específico para ter atraído os alunos surdos? Foi

uma das questões formuladas (ANEXO E).

1.7 PROCEDIMENTOS PARA ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DOS DADOS

Para proceder a análise do discurso do surdo foram observados alguns sinais

considerados figurativos da Língua de Sinais. Como dito, o corpus aqui explorado foi

emprestado dos discursos de alunos surdos, dentro da cotidianidade do contexto

escolar, no espaço sala de aula.

Foi proposto aos surdos, por meio da roda de conversa no grupo focal que, a partir

do contexto narrado pela história do livro selecionado, deveriam recontar a história

em Libras.11 E assim, o discurso produzido se constituiu em um corpus a ser

analisado.

Considerando a fala-gesto do surdo como um signo com uma especificidade a ser

desvelada, propomos discutir sobre a representação figurativa da Língua de Sinais,

fundamentando nossas proposições na semiótica greimasiana, que se estabelece

como uma teoria da significação. Portanto, torna-se importante o aprofundamento de

alguns pontos da teoria semiótica. O embasamento teórico-metodológico das

análises de alguns sinais da Libras que foram feitas nessa pesquisa tem como

referencial obras de Greimas (1975, 1979, 2004); Greimas; Kristeva e Bremond

(1979); Landowski (2002); Oliveira (1992; 2004) e Oliveira e Landowski (1995).

Sobre o sentido e considerações acerca da linguagem gestual me reporto à Greimas

et alli (1979) que traz uma rica referência sobre a presença da força dos gestos na

socialização da linguagem. E, em outra obra, Sobre o Sentido, (GREIMAS, 1975)

que trata, dentre outros temas, das condições para uma semiótica do mundo natural.

Sobre o mundo sensível assim escreve o autor:

11

No Capítulo 4, será apresentada a proposta de trabalho que desencadeou a motivação da discussão em grupo.

Page 31: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

30

O mundo dito sensível torna-se assim, na sua totalidade, o objeto da busca da significação; no seu conjunto e nas suas articulações, o mundo se apresenta como uma virtualidade de sentido, por pouco que esteja submetido a uma forma. A significação pode se ocultar sob todas as aparências sensíveis, encontra-se atrás dos sons, das imagens, dos cheiros

e dos sabores [...] (GREIMAS, 1975, p. 46).

Pela singularidade do objeto de pesquisa, foi utilizada uma filmadora e uma câmera

fotográfica digital. O registro da fala dos participantes surdos através da máquina

digital e da filmagem foi analisado levando em consideração o recorte do corpus, ou

seja, a seleção dos sinais icônicos ou figurativos presentes nos discursos dos alunos

do GF. Os discursos foram analisados buscando responder às seguintes questões:

em quais sinais identificamos a presença da figuratividade e qual a sua contribuição

na produção de sentido nos discursos produzidos por sujeitos surdos?

Por meio do registro das imagens, pudemos selecionar no discurso apresentado,

vários sinais considerados figurativos. Após a seleção, nos detemos na análise de

toda a expressividade utilizada para a construção e produção desses sinais. Foram

consideradas as expressões corpóreo-faciais, os movimentos tomados pela mão e o

corpo quanto a espacialidade e o direcionamento, as configurações de mão na

formação dos sinais e outros dados que consideramos relevantes para validarmos a

hipótese de serem os sinais figurativos referentes do mundo natural e constituidores

de sentidos pelo surdo, dado seu aspecto ligado à visualidade.

A leitura e análise semiótica dos sinais é possível quando nos colocamos na posição

de leitores sensíveis e atentos pesquisadores, porém não esquecendo em momento

algum do que escreve Oliveira (1992, p. 70): “O produto de nosso ler não se postula

como verdade, mas está sujeito a novas leituras e a outras mais novas ainda,

sucessivamente, sem um ponto final”.

Ao propormos uma análise da figuratividade presente em alguns sinais da Língua

Brasileira de Sinais (Libras), tomamos emprestado de Greimas a expressão “erguer

o olhar”, que pode significar, segundo Brait (1995, p.196):

[...] mudar de nível para interrogar o texto, combinando o esperado com o inesperado, perseguindo uma ambição construtivista, racionalista, que não se perde de vista o cultural e o sensível (LANDOWSKI apud BRAIT, 2005, p.196).

Page 32: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

31

A produção de alguns sinais da Libras pode estar associada ao modo de ser da

figuratividade. No dizer de Brait (2005, p. 198), o efeito criado pela figuratividade

aponta para uma ruptura com os cânones da discursivização literária, enfrentando,

enquanto instância profunda, o problema da possibilidade do conhecimento do

mundo através da tela do parecer que é a figuratividade.

Lemos no Dicionário da Semiótica (GREIMAS; COURTÊS, 1979) muitas concepções

acerca de Discurso, mas uma em particular, proporcionou-nos um desvelamento

acerca do termo:

[...] a teoria semiótica é levada a conceber o discurso como um dispositivo em forma de “massa folheada”, constituído de certo número de níveis de profundidade superpostos, dos quais somente o último, o mais superficial

12, poderá estabelecer uma representação

semântica comparável, grosso modo, às estruturas linguísticas profundas [...] (GREIMAS; COURTÊS, 1979, p.127).

A teoria semiótica, conforme o Dicionário de Semiótica (GREIMAS; COURTÉS,

1979, p. 127) é levada a conceber o discurso como um dispositivo de massa

folheada, constituído de certo número de níveis de profundidade superpostos, dos

quais somente o último, o mais superficial (no sentido de estar na superfície) poderá

estabelecer uma situação de significação, por esse motivo elegemos a semântica do

discurso, ou seja a figurativização e a tematização como referencial de nossas

análises.

12

Referente à superfície: significado lexical apresentado pelo Dicionário da Língua Portuguesa (FERREIRA, 2000).

Page 33: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

32

2 LINGUAGEM E SURDEZ

A linguagem é o instrumento graças ao qual o homem modela seu pensamento, seus sentimentos, suas emoções, seus esforços, sua vontade e seus atos, o instrumento graças ao qual influencia e é influenciado, a base última e mais profunda da sociedade humana. Mas é também o recurso último e indispensável do homem, seu refúgio nas horas solitárias em que o espírito luta com a existência, e quando o conflito se resolve no monólogo do poeta e na meditação do pensador (HJELMSLEV, 1978, p.).

Uma pesquisa sobre a Língua de Sinais exige estudos sobre a linguagem e a

surdez. A linguagem como instituição social e mediadora entre o homem e o mundo

circundante e a surdez como constituidora de um sujeito que apreende o mundo

muito mais pela experiência visual do que por qualquer outro canal sensorial.

Considerando a linguagem como tudo que envolve significação para o sujeito,

cremos que é a partir dela que esse sujeito se constitui. E no dizer de Hjelmslev

(1978, p. 179) a linguagem não é um simples acompanhante, mas sim um fio

profundamente tecido na trama do pensamento. É por meio da linguagem que o

sujeito recorta e percebe o mundo e a si próprio (GOLDFELD, 2001).

Abordaremos neste capítulo, as teorias que fundamentam a pesquisa e que

embasam a constituição do surdo como um ser de linguagem, capaz de formulações

e interpretações do mundo circundante.

2.1 LÍNGUA, LINGUAGEM E FALA

Para melhor entendimento das questões sobre o assunto, apresentaremos uma

breve revisão conceitual acerca das concepções de língua, linguagem e fala,

considerando conceituações de alguns estudiosos da área da linguística e da

linguagem.

A linguística estruturalista saussuriana apresenta-se como uma ciência da

linguagem, que trata a língua como sua essência. Para Saussure (1991), língua não

se confunde com linguagem. A linguagem é formada pela língua e pela fala, e a

língua é tida como um sistema de regras abstratas, composto de elementos

significativos inter-relacionados. É o aspecto social da linguagem, já que é

Page 34: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

33

compartilhada por todos os falantes de uma comunidade linguística, ou seja, a

língua é considerada um conjunto de signos abstratos presentes na mente como

resultado da história cultural e como consequência da prática social.

Chomsky (apud QUADROS; KARNOPP, 2004, p. 30) traz a seguinte definição

formal de língua: “É um conjunto (finito ou infinito) de sentenças, cada uma finita em

um comprimento e construída a partir de um conjunto finito de elementos”. As

referidas autoras acrescentam a essa definição que os elementos básicos ou

unidades mínimas das línguas orais são as palavras, e nas línguas de sinais são as

palavras sinalizadas e as frases da língua representáveis em termos de uma

sequência dessas unidades.

Já Bakhtin (1990) concebe a língua como um sistema semiótico criado e produzido

no contexto social e dialógico, servindo como elo entre psiquismo e ideologia. Para

Bakhtin, o ser social nasce com o exercício de sua linguagem e pela fala se constitui

sujeito, influenciando o meio em que vive. O autor afirma que o falante de uma

língua não a reconhece como um sistema de normas abstratas, mas como um

conjunto de significações:

A língua, como um sistema de formas que remetem a uma norma, não passa de uma abstração, que só pode ser demonstrada no plano teórico e prático do ponto de vista do deciframento de uma língua morta e de seu ensino (BAKHTIN, 1990, p. 108).

Para Bakhtin, a “verdadeira substância” da língua não está nem no sistema abstrato

das formas linguísticas, ou seja, no universo lexical, nos fonemas, morfemas, etc.

nem focada no psiquismo individual do sujeito, mas se revela no ato dialógico em

seu acontecimento concreto, por ser um produto coletivo e ininterrupto de sujeitos

socialmente organizados.

Greimas também concebe a “língua” como um fato social por se constituir uma das

formas de existência da sociedade. A “fala”, por sua vez é concebida como criadora

das zonas de comunicação particularizadas: “[...] a „fala‟ é individual pelo fato de ser

assumida pelo sujeito falante, que se torna assim o lugar em que se aceita a

responsabilidade pelo sistema linguístico e pela sua programação em discursos

comunicáveis” (GREIMAS, 1976, p. 40).

Page 35: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

34

Considerando a linguagem imbricada aos fenômenos ideológicos, as concepções

tecidas na obra Linguagem e Ideologia de José Luiz Fiorin (1995) produzirão um

entretecimento com as outras desencadeadas neste estudo.

Fiorin (1995) apresenta nessa obra, uma reflexão sobre linguagem e sociedade.

Além de considerar a linguagem como uma instituição social e veículo das

ideologias, o autor a concebe como um instrumento de mediação entre os homens e

a natureza, e entre homens e outros homens, com especificidades próprias.

O autor entende ideologia como um conjunto de idéias ou representações que

servem para justificar e explicar a ordem social, as condições de vida do homem e

as relações que ele mantém com outros homens (FIORIN, 1995, p. 28). A ideologia

é formada a partir da visão de mundo de uma determinada classe social. Uma

formação ideológica é, portanto, um conjunto de representações, de idéias que

revelam a compreensão que uma dada classe tem do mundo (FIORIN, 1995, p. 33).

Fiorin (1995) aponta distinções entre língua, discurso e fala. Para o autor, a língua é

um sistema constituído por elementos lexicais e gramaticais organizados

estruturalmente:

O sistema (língua) é um todo em si e compreende o conjunto dos elementos lexicais e gramaticais que fazem parte de uma linguagem, a organização interna desses elementos e suas regras combinatórias (FIORIN, 1995, p.12).

Ainda segundo Fiorin (1995, p. 10), a língua constitui-se no mecanismo de

linguagem utilizado especificamente pelo ser humano, trazendo em sua constituição

uma cultura, ideologias e visão de mundo próprias da sociedade que a utiliza. Ela é

um sistema social, pois é comum a todos os falantes de uma determinada

comunidade linguística. A língua, sistema virtual, abstrato, concretiza-se através da

fala, que é individual e responsável pela exteriorização do discurso. A fala é a

atividade psico-físico-fisiológica individual de atualização do discurso (FIORIN, 1995,

p. 80). O discurso pode ser considerado um conjunto de frases que produzem

sentido, que exprimem não só os pensamentos de seus falantes, mas também o

Page 36: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

35

modo de apreensão e de interação com o mundo. Assim, Fiorin conceitua o

discurso13:

O discurso é a atualização de uma competência discursiva do falante, isto é, de uma capacidade de estruturar discursos. A nosso ver, é no discurso que se manifestam, com toda a plenitude, as coerções ideológicas que incidem sobre a linguagem (FIORIN, 1995, p. 80).

Com o ato de produção do discurso, o sujeito toma posição em relação ao conjunto

de representações que dão forma ao quadro ideológico que o governa e de que ele

é suporte. Fiorin (1995, p. 42) complementa esta idéia dizendo que o enunciador (o

falante) é o suporte da ideologia que se constitui em matéria-prima para a

elaboração de seu discurso.

A linguagem, entendida em seu sentido amplo, como um instrumento da

comunicação verbal ou não verbal é constituída pela visão de mundo do sujeito que

a utiliza. Se há linguagem, há pensamento, ou seja, o pensamento não existe fora

da linguagem. Diderot (1949, p. 112) afirma que a comunicação do pensamento é o

objeto principal da linguagem. Então, a linguagem é o mecanismo utilizado para a

exposição de nossos pensamentos, emoções, crenças, medos, desejos,

conhecimentos e toda infinidade de coisas que passam em nossas mentes.

Para identificarmos melhor o uso de terminologias, vamos adotar, nesta pesquisa,

uma diferenciação entre língua e linguagem. Não adotaremos linguagem como

sinônimo de língua, como usualmente é difundido, mas consideraremos o conceito

de língua como um sistema de elementos lexicais e gramaticais seguindo, também,

a terminologia adotada por Bakhtin, concebendo a língua como um sistema

semiótico, criado e produzido no contexto social e dialógico. Assumir as concepções

bakhtinianas a respeito da linguagem é, portanto, pressupor a construção da

subjetividade como resultado de um processo no qual o outro possui papel

constitutivo e ativo.

13

De acordo com TEIXEIRA (1996, p. 37), o discurso é um processo semiótico, um todo de significação constituído pela enunciação. Em contrapartida, enunciação, para BENVENISTE (apud TEIXEIRA, 1996, p. 45) não é apenas o lugar de um sujeito, mas o lugar de um eu em relação com um outro, ambos localizados num contexto referencial.

Page 37: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

36

Esse esclarecimento se faz necessário para que não haja confusão entre as

conceituações e as devidas aplicações dos termos no texto desta pesquisa.

Reiteramos essa necessidade citando Fernandes (2003), umas das autoras

brasileiras que estuda linguisticamente a Língua Brasileira de Sinais:

Os conceitos de linguagem e língua, bem-diferenciados, ajudam-nos a definir os campos de atuação de nossas investigações e a sabermos interpretar, com eficácia, os textos que nos chegam às mãos e que, com frequência, utilizam indiferentemente o termo linguagem no seu sentido mais amplo ou como sinônimo de língua (FERNANDES, 2003, p.16).

Para a referida autora, a língua é uma forma de linguagem, visto que é um tipo

dentre os diversos meios de comunicação. Mas a linguagem, no entanto, não pode

ser considerada um tipo de língua, pois contém um conceito muito mais amplo.

Fiorin (1985) considera o sujeito como ser de linguagem aquele inserido

socialmente, portanto, a mercê de todas as intervenções ideológicas,

sociologicamente construídas. Só será possível para o surdo compreender uma

língua e poder se constituir um ser de linguagem com possibilidades de interação,

num lugar que lhe confira a possibilidade discursiva. É sobre esse sujeito Surdo,

considerado um ser de linguagem, que falaremos a seguir.

2.2 O SUJEITO SURDO

[...] ser surdo não é melhor ou pior do que ser ouvinte, é apenas diferente. Se considerarmos que os surdos não são “ouvintes com defeito”, mas pessoas diferentes, estaremos aptos a entender que a diferença sensorial entre pessoas surdas e pessoas ouvintes gera uma visão não-limitada, não-determinística de uma pessoa ou de outra, mas uma visão diferente de mundo, um “jeito Ouvinte de ser” e um “jeito Surdo de ser”, que nos permite falar em uma cultura da visão e outra da audição (PIMENTA, 2001, p. 24).

14

Vimos nas discussões anteriores que o sujeito se constitui com o outro pela

linguagem. Esse processo de construção de identidade não é linear, mas como

14

Nelson Pimenta nasceu em Brasília, (06/09/1963). Foi o primeiro ator surdo a se profissionalizar no Brasil, estudou no National Theatre of the Deaf (NTD) de Nova Iorque, é pesquisador de Língua de Sinais e foi instrutor de teatro e de Língua Brasileira de Sinais em diversas instituições de ensino, entre elas o Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES) e a Federação Nacional de Educação e Integração de Surdos (FENEIS). É graduado em Cinema pela Universidade Estácio de Sá. Em 1999 criou, com Luiz Carlos Freitas, a LSB Vídeo, empresa com a missão de contribuir para o aprimoramento da educação dos surdos (PIMENTA, 2001, p. 24).

Page 38: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

37

defende Bakhtin, é essencialmente dialético, fluido e composto de idas e vindas, de

tomadas e retomadas de pontos de vistas do outro, imbuídos de valores e

ideologias. E como esse sujeito surdo, que vive num mundo oralizado, pode se

constituir um ser de linguagem que se constitui através do processo dialético?

O sujeito surdo é apresentado de forma científica e ao mesmo tempo poética por

Oliver Sacks, quando nos leva a viajar com ele ao mundo dos surdos. O autor

argumenta sobre a importância da aquisição da Língua de Sinais por crianças

surdas no período da aquisição da fala, ou seja, até os dois ou três anos de idade,

confirmando a necessidade de um diagnóstico sobre a surdez o mais precoce

possível para que se efetive a constituição de uma língua. Sua maneira clara e leve

de escrever não deixa rastros de incompreensão pelo leitor. São apresentadas as

características presentes nos surdos por ele estudados e aí, pudemos perceber que,

em linhas gerais, há semelhanças com casos de surdez estudados por

pesquisadores brasileiros e até analisados em minha prática com alunos surdos.

Sacks (1998, p. 65) cita vários casos de surdos que não possuíam uma linguagem

constituída, como é o caso de Kaspar Hauser, um jovem de aproximadamente

dezesseis anos, criado em cativeiro e isolado de toda comunicação com o mundo a

sua volta. Em 1928 foi encontrado em uma rua de Nuremberg, cidade alemã situada

ao norte do Estado da Baviera, com uma carta na mão que contava sua história;

outro caso é de uma criança selvagem, chamada Genie, encontrada em 1970, nos

Estados Unidos, na Califórnia, que não adquiriu fluência em nenhum tipo de língua,

nem a oralizada nem a de sinais. Sacks cita outros casos como o de Jean Massieu

que mesmo sem linguagem estruturada até os catorze anos, foi adotado pelo abade

Sicard, tornando-se mais tarde eloquente tanto em sinal (termo generativo para uma

comunicação em gestos e em Língua de Sinais) quanto no francês escrito. É um

caso em que se evidencia a possibilidade de um “sem-língua” se constituir em um

novo ser de linguagem. Pudemos constatar, através de nossa experiência e contato

com crianças e adolescentes surdos a recorrência de alguns casos apresentados

pelo referido autor.

Page 39: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

38

Mas ao falarmos do sujeito surdo devemos apresentar, também, algumas questões

básicas sobre surdez, por considerarmos pertinente o entendimento desta como

constituidora daquele.

Desde o século XVIII, a surdez era vista como um problema de saúde, castigo ou

algo a ser corrigido. Para minimizar seus efeitos aparentes, os surdos eram

ensinados a falar como se fossem ouvintes. Por muito tempo a oralidade fez parte

da proposta de “normalização” do sujeito surdo. A fala era entendida como

modalidade única, comum e obrigatória para estabelecer a comunicação com os

surdos. De acordo com Lopes (2007, p. 44), essa situação perdurou do século XVII

até quase todo o século XX.15

Há quase três décadas, Godinho já escrevia sobre o estigma que repousava sobre o

sujeito surdo:

A noção corriqueira que se tem do surdo ainda data da Idade Média, quando ele era considerado débil mental, sem perspectiva, marginalizado por ser portador de um estigma. Em nossa sociedade atual continua sendo visto como um estigmatizado, embora com um pouco mais de oportunidades (GODINHO,1982, p. 44).

É comum a associação da surdez com a ausência de linguagem. Como a linguagem

é uma atividade essencialmente humana, até pouco tempo atrás o sujeito surdo era

estigmatizado por ser considerado um ser sem linguagem, portanto, diferente de

outros seres humanos. Dessa forma, o estigma torna-se inevitável. Goffman assim

define estigma:

[...] um atributo que lo vuelve (el extraño) diferente de los demais [...] y lo convierte em alguien menos apetecible, em casos extraños, em uma persona, casi enteramente malvada, peligrosa e débil. De esse modo dejamos de verlo como uma persona total e corriente para reducirlo a um ser inficionado y menos preciado. Um atributo de esa naturaleza es um estigma em especial cuando él produce em los demás [...] un descrédito amplio (GOFFMAN, apud GODINHO, 1982, p. 45).

Se temos a visão de que um ser surdo é como um “organismo” que interage com o

meio e se adapta a este, colocamos o foco predominantemente no ser deficiente, ou

seja, no deficiente auditivo. Ver o surdo pela sua deficiência é efetivar a visão

15 Para saber mais sobre a surdez e educação de surdos ao longo da história, o leitor encontrará muitas obras interessantes, dentre as quais cito: SACKS (1998); GOLDFELD (2001) e LOPES (2007).

Page 40: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

39

estigmatizada desse ser, cuja singularidade está na forma de comunicação, ou seja,

em sua língua.

Falar da surdez para se chegar ao sujeito surdo não é, nem de longe, resquício do

paradigma clínico-patológico, muito pelo contrário. A esse respeito já fizemos

estudos e reflexões. Num texto produzido com outros colegas professores-

pesquisadores, intitulado Surdez, Família e Educação: concepções e

representações (SILVA, et all, 2004, p. 73), discutimos as representações

estereotipadas acerca da surdez e como elas refletem, diretamente, na metodologia

de trabalho pedagógico com os alunos surdos. Nesse texto foi apresentado um

estudo de caso envolvendo dois alunos de mesma faixa etária da Escola Municipal

de Vitória, e reconhecidos por sua família com diferentes concepções acerca da

surdez e do sujeito surdo. Foram discutidas as concepções tradicionais baseadas no

modelo clínico-terapêutico e no modelo sócio-antropológico da surdez e seus

respectivos reflexos no contexto pessoal, educacional, familiar e social.

Carlos Skliar (1997) - referenciado pelas idéias de Grahan Bell (defensor do

oralismo) e Clerc (defensor da ASL- Lingua de Sinais Americana), defende a

existência de algumas concepções acerca da surdez, que ao nosso ver contribuíram

para a constituição de representações sociais do sujeito surdo: i) visão da

concepção clínico-terapêutica, que por ser focada na patologia, no déficit biológico,

na surdez do ouvido, considera o surdo, essencialmente, como uma pessoa que não

ouve e portanto não consegue falar. Em linhas gerais, define a pessoa surda como

um ser incompleto em comparação ao sujeito ouvinte. ii) já a visão sócio-

antropológica percebe a surdez como diferença social e reconhece a singularidade

linguística da comunidade16. Para esse pesquisador e outros mais, os surdos

formam uma comunidade linguística minoritária, em que compartilham a Língua de

Sinais, valores culturais, hábitos e modos de socialização próprios. Os graus de

decibéis não são considerados prerrogativas para que os surdos participem de

comunidades surdas, mas o reconhecimento como tais e o de sua língua como

identidade e constituidora de sujeitos.

16

Neste sentido de comunidade, assim define o Dicionário Houiass (2007): “Conjunto de indivíduos com determinada característica comum, inserido em grupo ou sociedade maior que não partilha suas características fundamentais”.

Page 41: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

40

Conforme estudos de pesquisadores como Ottmar Teske (1988, p. 139), a

comunidade surda pode ser representada por associações, igrejas, escolas, clubes

ou qualquer lugar onde um grupo de surdos se reúna. Quando estão juntos,

divulgam sua cultura, trocam idéias e experiências e todo o processo dialógico é

feito através da língua comum, a Língua de Sinais. Os surdos sentem-se atraídos a

participarem de uma comunidade surda, pois buscam todas as possibilidades

comunicativas com seus pares e consequentemente uma maior identificação de si

mesmo ao se relacionarem com os outros. Essa escolha é plausível e legítima e

não significa segregação ou exclusão. Em contato com outros surdos numa

comunidade surda, crianças, adolescentes e adultos surdos podem construir

positivamente sua auto-estima, apropriar-se de sua cultura, de sua história e formar

sua identidade por intermédio do convívio com o outro.

A temática da surdez, segundo Lopes (2007, p. 7) é construída culturalmente não só

nos campos clínicos e antropológicos, mas também em campos discursivos distintos

como linguísticos, religiosos, educacionais, jurídicos, filosóficos, etc. A autora

acredita que todas as interpretações possíveis sobre o que convencionamos chamar

de surdez são interpretações sempre culturais. A surdez narrada pelo sujeito ouvinte

é considerada uma grande invenção por essa autora, pois não passa da construção

de um olhar sobre aquele que não ouve.

A visão que se tem da surdez implica diretamente na maneira como identificamos o

sujeito surdo. Talvez por ignorância ou por descaso, o sujeito surdo tem sido narrado

como um indivíduo desacreditado, impossibilitado de exercer com autonomia seus

direitos e deveres inerentes aos que participam de qualquer sociedade. É

classificado, muitas vezes, a partir de sua capacidade ou não de ouvir, considerando

imprescindíveis os decibéis atingidos por sua faculdade de perceber os sons. O

termo surdo é carregado de estigma e estereótipo, de deficiência que requer a

urgência da necessidade de normalização. Assim escreve Perlin sobre essa visão

estereotipada do sujeito surdo:

O estereótipo sobre o surdo jamais acolhe o ser surdo, pois o imobiliza a uma representação contraditória, a uma representação que não conduz a uma política da identidade. O estereótipo faz com que as pessoas se oponham, às vezes, disfarçadamente, e evitem a construção da identidade

Page 42: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

41

surda, cuja representação é o estereótipo da sua composição distorcida e inadequada (PERLIN, 1998, p. 54).

De acordo com Wrigley (apud THOMA, 1988, p. 129), são diversas as

nomenclaturas para designar uma pessoa surda: “mudos”, “surdos-mudos” ou

“deficiente auditivo”. O termo preferido pela maioria que se identifica como tal é

simplesmente “surdo”. Damázio (2007, p. 13) utiliza o termo “pessoa com surdez”

como uma forma de se reportar a pessoa com deficiência auditiva, independente do

grau da sua perda sensorial.

Pelo Decreto no. 5626/200517 há diferenciação entre pessoa surda e deficiente

auditivo. No artigo 2º lemos que pessoa surda é aquela que interage com o mundo

por meio de experiências visuais, manifestando sua cultura principalmente pelo uso

da Língua Brasileira de Sinais-Libras. Para caracterizar a deficiência auditiva, o texto

legal considera a perda da audição em decibéis: “Parágrafo único. Considera-se

deficiência auditiva a perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB)

ou mais, aferida por audiograma nas frequências de 500Hz, 1.000Hz, 2.000Hz e

3.000Hz”.

Como a proposta desta pesquisa é falar de um sujeito surdo, culturalmente

constituído, abstemo-nos de concebê-lo a partir de sua deficiência. Não se constitui,

portanto, em primordialidade apresentarmos as possíveis causas da surdez, mesmo

considerando que cada surdo tem histórias de vida distintas e, muitas vezes, a

causa e o período em que ficou surdo pode proporcionar diferentes possibilidades

de aprendizagem da Língua de Sinais.

Alguns pesquisadores, incluindo Lopes, preferem olhar a surdez da seguinte

maneira:

[...] olhar a surdez de outro lugar que não o da deficiência, mas o da diferença cultural. Não nego a falta de audição do corpo surdo, porém desloco o meu olhar para o que os próprios surdos dizem de si quando articulados e engajados na luta por seus direitos de serem vistos como sujeitos surdos, e não como sujeitos com surdez. Tal diferença, embora pareça sutil, marca substancialmente a constituição de uma comunidade

17

O Decreto regulamenta a Lei no 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua

Brasileira de Sinais e o art. 18 da Lei no 10.098, de 19 de dezembro de 2000 (ANEXO A).

Page 43: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

42

específica e a constituição de estudos que foram produzindo e inventando a surdez como um marcador cultural primordial (LOPES, 2007, p. 9).

Escolhemos ver o surdo como um ser possuidor de uma singularidade linguística. O

enfoque desta pesquisa está ancorado no sujeito surdo como ser de linguagem e

essa constituição de sujeito de linguagem está inspirada na base antropológica da

surdez e não na falta da audição como definidora do surdo. Não é nosso interesse,

no entanto, polemizar sobre terminologias ou nomenclaturas, mesmo porque as

terminologias vão surgindo e se tornando termos peculiares de escritores de uma

determinada época e futuramente substituídas por outras, conforme formação

ideológica. Para designar o sujeito surdo sem, contudo, negar a existência da

surdez, usaremos com liberdade nesta pesquisa, ora o termo surdo, ora o termo

pessoa com surdez, considerando a singularidade desse sujeito que não apreende o

mundo significante através das ondas sonoras, mas pela visualidade emergente de

sentido.

Se escolhermos olhar o surdo pela sua singularidade linguística, automaticamente

rejeitaremos olhá-lo pela visão ouvintista, que percebe o surdo como um ser

incompleto exatamente por não poder usar e compreender a fala oral. Skliar (1998,

p. 15) define ouvintismo como um conjunto de representações dos ouvintes em que

o surdo é obrigado a se olhar como se fosse também ouvinte. E é por esse olhar, de

negação da surdez, que o próprio surdo se sente como deficiente por se constituir

em um sujeito não ouvinte e passa a se sentir inferiorizado por não conseguir se

comunicar pela via oral-auditiva.

A receptividade do sujeito surdo entre ouvintes e entre seus pares define-se pela

aceitação de sua surdez e pelo reconhecimento de sua língua. Autores como Perlin

(1998, p. 52) acreditam que essa receptividade está associada ao reconhecimento

de uma identidade surda. Achamos por bem considerarmos essa proposição sem,

contudo, entrar no mérito se é pertinente ou não a defesa de uma identidade surda,

mas apresentar resultados da reflexão da autora sobre o assunto.

Page 44: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

43

2.2.1 Identidade do Surdo

Um dia descobri que nunca iria falar como os ouvintes. Seria mesmo impossível. Era preciso pegar o meu jeito de ser surda, de ter minha comunicação visual (Depoimento de uma mulher surda citado por PERLIN 1988, p. 54)

Sem a pretensão de esgotarmos o tema, apresentamos o conceito de Identidade

Surda considerando as postulações desenvolvidas por Perlin (1988). Em seu texto

Identidades Surdas, a autora baseia-se em um dos conceitos que Stuart Hall

estabelece para identidade: o da modernidade tardia em que as identidades são

consideradas fragmentadas (PERLIN, 1988, p. 52). Situa o sujeito surdo dentro do

conceito pós-moderno18 de Hall, entendendo a identidade como sendo identidade

plural, múltipla, que se transforma e que não é estática ou algo pronto e acabado. A

identidade é algo que está em construção, que está em movimento e que empurra o

sujeito em diferentes posições (PERLIN, 1988, p. 52).

Algumas das concepções de Hall (apud PERLIN, 1988, p. 53) definem as

identidades como contraditórias, que se cruzam, se deslocam continuamente, pois

de acordo com esse autor, a identidade cultural é formada por meio do

pertencimento a uma cultura e muda de acordo com a forma como o sujeito é

interpelado. No dizer de Perlin (1988), o sujeito surdo, nas suas múltiplas

identidades, sempre está em situação de necessidade diante da identidade surda.

No mundo regido pela oralidade, as identidades surdas assumem formas

multifacetadas e até mesmo fragmentadas, mas não se diluem, estão presentes

mesmo em meios socioculturais ouvintes.

Considerando as múltiplas identidades surdas, Perlin (1988, p. 63) estabelece

algumas categorias de identidades que são assim classificadas:

a) Identidade surda: é entendida como a identidade do surdo militante, que além de

nascer surdo, se percebe surdo e não se envergonha disso. É a identidade que

afirma a presença de uma consciência de ser definitivamente diferente e que

18 De acordo com Sá (1988, p. 170) os estudos na perspectiva teórica “pós-moderna” não buscam a demonstração mas a argumentação acerca dos fatos e considera os discursos como construídos das subjetividades, constituidores, portanto, da realidade.

Page 45: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

44

reconhece a necessidade dos recursos visuais para sua interação com o mundo

circundante. São reconhecidos como sujeitos culturais.

b) Identidade surda híbrida: é a que pertence aos surdos que nasceram ouvintes e

com o tempo se tornaram surdos19, ou seja, que tiveram uma experiência com a

audição, com a estrutura do português verbalizado, sendo, portanto, oralizados.

Esse é o caso da própria autora, que conta que ao nascer ouvinte e posteriormente

se tornar surda passou a ter duas línguas, o português oralizado e a Língua de

Sinais. Como surda, portanto, sente a necessidade de se expressar em Língua de

Sinais mesmo quando pensa em português e afirma que, apesar de ter tido

experiência auditiva em algum momento de sua vida, a tendência da escolha quanto

à identidade caminhará sempre ao encontro da identidade surda;

c) Identidade surda de transição: refere-se àquele sujeito surdo que por muito tempo

conviveu com ouvintes - como é o caso de filhos surdos de pais ouvintes - sem

nenhum contato com surdos e que ao conhecerem um outro surdo ou uma

comunidade surda se identifica como tal. Esse sujeito surdo passa, então, por uma

transição de assimilação e aceitação de sua surdez e no dizer da autora, passa pela

experiência da des-ouvintização20 à identidade surda de experiência mais visual.

Não é um processo fácil, pois está em jogo a formação da alteridade do sujeito

surdo, trazendo sempre um conflito cultural. Perlin considera que a des-ouvintização

deixa sequelas na representação que são evidenciadas na identidade do surdo em

reconstrução nas diferentes etapas da vida (PERLIN, 1988, p. 64).

d) E finalmente apresentamos as duas últimas classificações num mesmo tópico, por

entendermos que se tratam basicamente das mesmas características: uma é

descrita como Identidade surda incompleta e a última como Identidade surda

flutuante. De acordo com a descrição da autora, tanto a Identidade surda incompleta

como a Identidade surda flutuante fazem parte do sujeito que nega a surdez e

valoriza a representação ouvintista. Normalmente pertence ao sujeito que mesmo

surdo ou com pouca audição residual opta pela prótese auditiva e se esforça em

19

A surdez pode ocorrer antes do aprendizado da fala oral, ou seja, até os dois anos de idade sendo considerada como surdez precoce ou pré-linguística e pós-linguística quando ocorre depois que o sujeito adquiriu a linguagem. 20

A “des-ouvintização” refere-se ao abandono da representação ouvintista pela identidade surda.

Page 46: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

45

estar junto com os ouvintes, se abdicando de participar de encontros com pessoas

surdas. Na verdade, trata-se do sujeito que nega sua condição de surdo e que

procura, a todo custo, se integrar na comunidade dos ouvintes. Mas nem sempre

consegue lograr êxito efetivamente. Muitas vezes não consegue ser compreendido e

tem dificuldades em compreender a fala oral. Seu entendimento é fragmentado, mas

mesmo assim, em nome de uma falsa identidade, se esforça pra se sentir, pelo

menos, um pouco parecido com a maioria, ou seja, com os ouvintes. Os surdos que

negam a surdez acabam por não constituírem uma identidade própria, pois como

escreve Perlin, possuem uma identidade flutuante, já que não conseguem ser

inseridos efetivamente na comunidade dos ouvintes por falta de comunicação e nem

na dos surdos, pela falta de conhecimento e fluência na Língua de Sinais. No dizer

da autora, o sujeito surdo acaba construindo sua identidade com fragmentos das

múltiplas identidades, não centradas ou fragmentas (PERLIN, 1988, p. 66).

Existem outros trabalhos que falam sobre a identidade e cultura surda. Dentre os

lidos cito o texto: Cultura e Identidades Surdas: encruzilhada de lutas sociais e

teóricas, escrito por Santana e Bergamo (acesso em: 26 jul. 2009)21 para

fomentarmos a discussão sobre o tema. Nesse trabalho, os autores analisam a

legitimação das expressões cultura e identidade surdas, considerando haver uma

inversão teórica ao ser tomada a Língua de Sinais como definidora da Identidade

Surda:

A aquisição de uma língua, e de todos os mecanismos afeitos a ela, faz com que se credite à Língua de Sinais a capacidade de ser a única capaz de oferecer uma identidade ao surdo. [...] Ao tomar a língua como definidora de uma identidade social, ainda que se leve em conta as relações e os conflitos relativos às distintas posições ocupadas por grupos sociais, enfatiza-se o seu caráter instrumental (SANTANA; BERGAMO, acesso em: 26 jul. 2009, p. 4).

Os autores acreditam na idéia de não existir uma identidade exclusiva e única, como

a identidade surda. Eles defendem que a identidade é formada pelos diferentes

papéis sociais tomados pelo sujeito, como ser surdo, rico, heterossexual, branco,

21 Ana Paula Santana é doutora em linguística e professora do Curso de Fonoaudiologia e do Mestrado em Distúrbios da Comunicação da Universidade Tuiuti, Paraná e Alexandre Bergamo é Doutorando em Sociologia e professor do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Estadual Paulista (UNESP), em Marília, SP.

Page 47: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

46

gordo, professor, etc. bem como pela língua que constrói essa subjetividade. Um

dos questionamentos levantados no texto é:

Se a identidade está relacionada a práticas sociais de uma complexidade muito maior, por que a língua, e apenas ela, é tomada como o instrumento por excelência de sua constituição e definição? Qual é o significado desta inversão, desse jogo teórico que toma a língua, num primeiro momento, como definidora dessas mesmas práticas? (SANTANA; BERGAMO, acesso em: 26 jul. 2009, p. 5).

Será que a identidade surda se estabelece, principalmente pelo uso da Língua de

Sinais? O que na verdade esses autores defendem é que a Língua de Sinais não é o

único meio de se estabelecer a identidade, mas o passaporte para o universo social.

E que a inserção neste universo está apenas se iniciando.

Damázio também critica o fato de se relacionar a constituição de uma cultura

diferente, própria dos surdos, pautada apenas na expressão em sinais. Em seu texto

“Educação escolar Inclusiva para pessoas com surdez na escola comum – questões

polêmicas e avanços contemporâneos”, a autora apresenta uma reflexão sobre a

educação de pessoas com surdez e contesta a essência de uma cultura puramente

surda, embasada na Língua de Sinais. A autora, assim escreve: [...] não é possível

defender uma cultura, pautada apenas em formas de expressão em sinais, visto que

as pessoas com surdez usufruem todas as demais possibilidades de vida em

sociedade (SANTANA; BERGAMO, acesso em 26 jul. 2009, p. 9).

Damázio entende que não é defendendo uma cultura surda que garantiremos o

atendimento às diferenças das pessoas com surdez, mesmo porque a concepção de

uma cultura genuinamente surda contraria o próprio conceito de cultura, que

segundo a autora, reduz significativamente o universo cultural dos sujeitos surdos.

Conforme Moraes, a cultura de um povo está imbricada por diferentes dimensões:

[...] a cultura de um povo envolve dimensões éticas e estéticas, seus modos de viver, seus sistemas de valores e crenças, seus instrumentos de trabalho, seus tipos de organização social, seja ela familiar, econômica, educacional, trabalhista, institucional, política ou religiosa (MORAES, apud DAMÁZIO, 2007, p. 9).

Page 48: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

47

Maher (apud SANTANA; BÉRGAMO, acesso em: 26 jul. 2009) também acredita que

a construção da identidade não é do domínio exclusivo de língua alguma, embora

ela seja sempre, da ordem do discurso.

No dizer de Sacks (1998), o sujeito surdo com “s” maiúsculo, é aquele que se

reconhece como membro de uma comunidade linguística diferente. Para este autor,

ser surdo é, antes de tudo, reconhecer-se surdo; é pertencer a um mundo de

experiência visual e não auditiva.

E o que dizer da cultura surda? Parte de pesquisadores da área da surdez aceita a

denominação do termo “cultura surda” (MOURA, 1993, 2000; QUADROS, 1997;

GOLDFELD, 1997; SKLIAR, 1998. 2000; PERLIN, 1998; SÁ, 1999; LOPES, 2007).

Esses autores defendem que o surdo estará mais próximo da cultura surda

dependendo da identidade assumida por ele dentro da sociedade.

A surdez como diferença não acontece simplesmente pelo fato do sujeito ser surdo,

mas pelo fato desse mesmo sujeito surdo viver em uma determinada comunidade22

e compartilhar com seus pares uma mesma língua, a viso-gestual, e uma forma de

viver e organizar o tempo e o espaço.

Conceber o surdo como um sujeito de cultura própria é, para outros pesquisadores,

uma questão complexa, principalmente quando a constituição desta cultura surda

está alicerçada apenas à Língua de Sinais, às estratégias sociais e aos mecanismos

compensatórios que os surdos realizam para agir no ou sobre o mundo, como o

despertador que vibra, a campainha que aciona a luz, etc. Para Santana e Bérgamo

(acesso em 26 jul. 2009, p. 9), a cultura surda parece ser o nome dado a um

conjunto de mecanismos alternativos que os surdos usam devido a sua limitação

auditiva. Segundo esses pesquisadores, boa parte dos estudos acadêmicos

negligencia a complexidade entre cultura, linguagem e identidade.

22

A comunidade aqui considerada é a surda, que no dizer de TESKE (1988, p. 148) é um complexo de relações e interligações sociais, que diferem de outras comunidades onde existe a possibilidade da comunicação oral, pois as pessoas surdas necessitam da Língua de Sinais e das experiências visuais para realizarem uma comunicação satisfatória com outras pessoas.

Page 49: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

48

Concordamos que a cultura surda não se estabelece simplesmente com a fluência

na Língua de Sinais, mas, sobretudo, com a aceitação da surdez e na maneira como

essa aceitação perpassa pelo viés do reconhecimento de sua interação social por

meio da experiência visual. Entendemos que todo ser humano, ouvinte ou surdo,

possui sua singularidade, uma identidade própria que se constrói socialmente, na

sua relação com o outro.

2.3 LÍNGUA DE SINAIS: UMA LÍNGUA NATURAL E COMPLEXA

A Língua de Sinais nas mãos de seus mestres (referindo-se aos usuários desta língua) é uma língua extraordinariamente bela e expressiva, para a qual, na comunicação uns com os outros, nem a natureza nem a arte lhes concedeu um substituto à altura [...] (LONG, apud SACKS, 1998).

As línguas de sinais sempre despertaram interesse em uns e estranhamento em

outros. Sua origem e desenvolvimento são questões que dificilmente poderíamos

responder com exatidão, já que não houve registro.

Por muitos séculos a Língua de Sinais foi considerada uma espécie de pantomima

ou código gestual. Mas não se trata nem de uma coisa nem de outra. Seria muito

simplório considerá-la uma pantomima, pois todas as pantomimas são fáceis de

entender. Ao acompanharmos um surdo em sua comunicação por sinais, logo

perdemos a sensação do “já sei”, e envergonhados descobrimos nossa impotência

em compreender uma língua tão complexa e cheia de significados (SACKS, 1998, p.

88)

A língua de Sinais está voltada primordialmente para as funções visuais. É adquirida

naturalmente como língua materna, pois é própria da comunidade surda. Ela se

constitui no modo mais fácil e espontâneo do sujeito surdo se relacionar com o outro

e consigo mesmo e o meio mais eficaz de permitir seu desenvolvimento pleno como

um ser de linguagem.

Sacks (1998, p. 42), ao se interessar pelos estudos acerca do surdo, ou seja, pela

sua história, dificuldades e as especificidades de sua língua, maravilhou-se ao

constatar tamanha potencialidade que a Língua de Sinais pronunciava. Quanto mais

Page 50: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

49

estudava e pesquisava sobre essa língua, mais convencido ficava de que se tratava

de uma língua complexa em si mesma, com sintaxe, gramática e semântica, mas

com características diferenciadas de qualquer língua falada ou escrita. Long retrata

o quanto os ouvintes desconhecem acerca da eficácia dessa língua e da sua

relevância para os surdos como constituinte de seres de linguagem:

Para aqueles que não a entendem, é impossível perceber suas possibilidades para os surdos, sua poderosa influência sobre o moral e a felicidade social dos que são privados da audição e seu admirável poder de levar o pensamento a intelectos que de outro modo estariam em perpétua escuridão. Tampouco são capazes de avaliar o poder que ela tem sobre os surdos. Enquanto houver duas pessoas surdas sobre a face da terra e elas se encontrarem, serão usados sinais (LONG, apud SACKS, 1998).

Quadros e Karnopp (2004, p. 31) afirmam em sua obra que a Língua de Sinais é

considerada pela linguística como língua natural ou como um sistema linguístico

legítimo. Essa concepção da Língua de Sinais como língua genuína e complexa não

surgiu aleatoriamente, mas foi se estabelecendo após estudos, análises e pesquisas

minuciosas. Um grande desbravador dos estigmas contra a Língua de Sinais foi o

linguista William Stokoe, que a partir de 1960 desenvolveu estudos acerca da

legitimidade da língua sinalizada como uma língua natural23. Aliás, foi a partir do

trabalho incansável de pesquisadores americanos sobre a língua de sinais

americana, a ASL (American Sign Language) que a Língua de Sinais pôde ser

legitimada como objeto de estudo da linguística. Stokoe afirma que a Língua de

Sinais atende a todos os critérios linguísticos de uma língua propriamente dita, quer

no sentido lexical, que no sentido sintático. Quadros e Karnopp assim escrevem a

respeito do trabalho de Stokoe:

Ele foi o primeiro a procurar uma estrutura, a analisar os sinais, dissecá-los e a pesquisar suas partes constituintes. Comprovou, inicialmente, que cada sinal apresentava pelos menos três partes independentes (em analogia com os fonemas da fala) – a localização, a configuração de mãos e o movimento – e que cada parte possuía um número limitado de combinações (QUADROS; KARNOPP, 2004, p. 30).

Stokoe, ao perceber a riqueza da expressividade da Língua de Sinais, a considerou

muito mais do que uma prosa ou narrativa, comparando-a a uma exibição

23 Fernandes (2003, p. 39) afirma que uma língua é considerada natural quando é própria de uma comunidade de falantes que a têm como meio de comunicação, podendo ser adquirida como língua materna e que as línguas de sinais são sistemas abstratos de regras gramaticais, naturais das comunidades de indivíduos surdos que as utilizam.

Page 51: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

50

“cinemática”, em sua essência. Sua opinião recebe adeptos de artistas, dramaturgos

e atores que se expressam em LS:

Numa Língua de Sinais [...] a narrativa deixa de ser linear e prosaica. Em vez disso, a essência da Língua de Sinais é fazer cortes de uma visão normal para um close-up, para uma tomada distante e novamente um close-up e assim por diante, incluindo até mesmo cenas de flashback e flashforward, exatamente como se faz na montagem de um filme. [...] Não só a própria comunicação por sinais é mais organizada como um filme montado do que qualquer narrativa escrita, mas, além disso, cada usuário da Língua de Sinais situa-se de um modo muito parecido como de uma câmera: o campo e o ângulo de visão são dirigidos, mas variáveis. Não só quem faz sinais, mas também seu interlocutor têm consciência, o tempo todo, da orientação visual de quem está se comunicando com relação ao que ele esta comunicando (STOKOE, apud SACKS, 1998, p. 101).

De acordo com Sacks (1988), até a década de 50 nenhum linguista ou cientista

havia se dedicado aos estudos sobre a Língua de Sinais como Stokoe. Buscando

uma estrutura na ASL (American Sign Language), encontrou dezenove

configurações de mãos, doze diferentes localizações, além de vinte e quatro tipos de

movimentos ao realizar um sinal. Foi responsável pela invenção de um sistema de

notação para cada um desses elementos. Publicou, em 1965, a obra Dictionary of

American Sign Language. Ainda sobre a contribuição de Stokoe, Sacks escreve:

A Língua de Sinais, naquela época, não era considerada uma língua propriamente dita, mas uma espécie de pantomima ou código gestual, ou talvez uma espécie de inglês estropiado expresso com as mãos. A genialidade de Stokoe foi perceber, e provar, que não era nada daquilo: que ela satisfazia todos os critérios linguísticos de uma língua genuína, no léxico e na sintaxe, na capacidade de gerar um número infinito de proposições. (SACKS,1998, p. 88-89).

Conforme Quadros e Karnopp (2004), os elementos básicos ou unidades mínimas

formadoras dos sinais (Configuração de mão, Localização e Movimento) foram

descritos por Stokoe (apud SACKS, 1998, p.) por “quirema”24, ou seja, os quiremas

são considerados os elementos gestuais de base. Cada “morfema” (no sentido

linguístico, a unidade mínima portadora de significação) é composto de três

quiremas: pontos estruturais de posição, configuração e movimento denominados

respectivamente de tábula (tab), designação (dez) e significação (sig). De acordo

24 Quadros & Karnopp (2004) pontuam que o termo quirema tem sido substituído por vários autores por fonema e fonologia, já que as línguas de sinais são línguas reconhecidas como naturais, ou seja, não artificiais e que compartilham princípios linguísticos subjacentes aos das línguas orais, apesar das peculiaridades de cada uma.

Page 52: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

51

com esse estudioso da Língua de Sinais, a linguagem gestual coloca-se, portanto a

três níveis: i) estudos dos quiremas, “cherology”; ii) estudo da combinação dos

quiremas, “morphocheremics” e iii) morfologia e sintaxe, “morphemics”. A quirologia

refere-se também, à dactilologia ou à arte de conversar por meio de sinais feitos

com os dedos, ou ainda, à ciência incumbida de estudar os movimentos das mãos e

do pulso.

Kristeva, em seu artigo “O gesto: prática ou comunicação?” esboça a possibilidade

da linguagem gestual ser autônoma de sentido e que não precisa ser escorada na

língua verbal para existir:

A analogia entre a palavra e o gesto, tomada como ponto de partida da quinésica, impõe à partida e necessidade de isolar diferentes níveis do código gestual: quer níveis correspondentes aos níveis das línguas, aceitas pela linguística, quer níveis que permitam o estudo da interdependência linguagem/gestualidade (KRISTEVA,1979, p. 86).

Por muitas décadas os linguistas se ocuparam em identificar o que havia em comum

entre as línguas de sinais e as línguas faladas. De acordo com Quadros (2006, p.

171), tal discussão foi pertinente num período em que era imprescindível a

comprovação do status linguístico da Língua de Sinais. Atualmente, é pacífica a

concepção da Língua de Sinais como uma língua legítima, com estruturas próprias.

As pesquisas atuais se ocupam em descobrir o que há de diferente entre as duas

modalidades de língua - as línguas sinalizadas e as línguas orais – e com o que esta

diferença pode contribuir para os estudos linguísticos.

O trabalho de Stokoe abriu caminhos para novas pesquisas e concedeu às línguas

de sinais maior credibilidade e notoriedade linguística. Suas postulações, conforme

Quadros (2006, p. 170), serviram de âncora para que novos pesquisadores

pudessem dar prosseguimento ao estudo das línguas de sinais, em especial aos

estudos da ASL. São eles: Battison (1974); Klima & Bellugi (1979); Baker (1976),

Liddell (1980); Liddell & Johnson (1989), Lillo-Martin (1991) e Neidle, Kegl,

MacLaughlin, Bahn & Lee (2000).

Na literatura brasileira contamos com vários pesquisadores da Língua de Sinais,

além de existirem obras importantes de análise e estudos sistemáticos da Libras e

Page 53: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

52

do processo de aquisição de conhecimentos por alunos surdos. Citaremos alguns

pesquisadores e a temática de seus trabalhos: Brito (1995), cuja obra apresenta

uma descrição linguística da Língua de Sinais brasileira; Karnopp (1994, 199925)

apresenta um estudo mais voltado para a representação fonológica da Libras e suas

implicações na aquisição dessa língua; Quadros (1995, 1999) analisa a estrutura da

Libras, discorrendo sobre a classificação dos verbos que apresentam ou não

concordância; Bernardino (2000) aborda a produção linguística dos surdos,

apontando as diferenças entre a língua oral-auditiva e a Libras; Fernandes (2003)

trata da aquisição da linguagem em indivíduos com surdez e mais especificamente,

sobre a aquisição da escrita do Português por alunos surdos; e Quadros e Karnopp

(2004) apresentam uma descrição linguística da libras nos níveis fonológicos,

morfológicos e sintáticos.

Fernandes (2003, p. 17; p. 39.) escreve que a Língua de Sinais é um sistema

abstrato de regras gramaticais que, como todas as línguas orais-auditivas, não é

universal. Cada comunidade linguística produz sua própria língua. Existe a Língua

de Sinais americana, a francesa, a inglesa e assim por diante. A autora esclarece,

ainda, que as línguas podem ser de duas modalidades: orais-auditivas ou espaço-

visuais. A forma de recepção e reprodução é o que as diferenciam. As línguas orais-

auditivas têm como canal receptivo a audição, e a forma de reprodução é a

oralização das palavras. Já a Língua de Sinais possui como canal receptivo a visão

e é naturalmente reproduzida por sinais manuais. Por conta dessa diferenciação

ocorrem outras que as distinguem. Trata-se da diferença que há entre seus sistemas

fonológicos (de sons), morfológicos (de formas), sintáticos (de estruturação frasal) e

semântico-pragmático (de significação e uso).

Fica claro, então, que quando falamos em Língua de Sinais estamos falando

também da Libras, a língua do surdo brasileiro, e tratamos de uma língua composta

de elementos fonológicos, morfológicos, sintáticos e semântico-pragmáticos. Para

situar o leitor acerca destas peculiaridades, vamos descrever, de maneira sucinta,

embasado nos estudos de Brito (1995), Fernandes (2003) e Quadros e Karnopp

25

Para estudos mais avançados referenciamos a tese de doutorado de Karnopp: “Aquisição Fonológica da Língua Brasileira de Sinais”, PUC/RS. Porto Alegre, 1999.

Page 54: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

53

(2004) como cada um destes elementos se apresentam na Língua de Sinais

brasileira.

2.3.1 Aspectos Fonológicos26

De acordo com Quadros e Karnopp (2004), a fonética e a fonologia das línguas de

sinais são áreas da linguística que estudam as unidades mínimas dos sinais que não

apresentam significados isoladamente. Assim descrevem a fonologia dos sinais:

[...] é o ramo da linguística que objetiva identificar a estrutura e a organização dos constituintes fonológicos, propondo modelos descritivos e explanatórios. A primeira terfa da fonologia para Língua de Sinais é determinar quais são as unidades mínimas que formam os sinais. A segunda tarefa é estabelecer quais são os padrões possíveis de combinação entre essas unidades e as variações permitidas/possíveis no ambiente fonológico (QUADROS; KARNOPP, 2004, p. 82).

É interessante observarmos que tanto nas línguas orais quanto nas de sinais

existem, na estrutura interna, uma dupla articulação, que são as unidades

significativas chamadas de morfemas, e as arbitrárias, que são os fonemas. Ao

passo que nas línguas orais os fonemas são produzidos pela passagem do ar pela

laringe, nariz e boca, nas línguas de sinais, os fonemas são produzidos a partir dos

parâmetros visuais. Todas as informações linguísticas são recebidas pelos olhos e

produzidas pelas mãos. Por isso, são denominadas línguas de modalidade gestual-

visual (ou espaço visual). Portanto, o que distingue essas duas modalidades de

língua não é simplesmente a utilização do aparelho fonador nem o uso das mãos. A

diferença básica está na organização fonológica27 das duas modalidades. Com base

nos estudos de Klima e Bellugi, Brito (1995, p. 49) aponta a linearidade, explorada

nas línguas orais e a simultaneidade, característica da Língua de Sinais, como

traços diferenciadores e peculiares de cada modalidade.

Entendemos que a fonologia na Língua de Sinais é representada pela quirologia.

Fernandes (2003, p. 40) esclarece que assim como a fonologia é representada pelos

26

Um estudo sobre a fonologia da Língua de Sinais, e uma análise descritiva e representativa das propriedades articulatórias dos sinais pode ser encontrado na dissertação de mestrado de André Nogueira Xavier (2006): Descrição Fonético-Fonológica dos Sinais da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS), defendida na Universidade de São Paulo. 27

Quadros & Karnopp (2004, p.47) esclarecem que o termo “fonologia” tem sido usado para se referir também ao estudo dos elementos básicos das línguas de sinais.

Page 55: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

54

fonemas de uma língua oral - articulação dos sons da fala, a quirologia refere-se aos

quiremas28 – articulação das mãos na constituição dos sinais. Mas o que são os

quiremas apontados por Stokoe? São as Configurações de Mão (CM), a Localização

(L) e o Movimento das Mãos (M), ou seja, as unidades mínimas (fonemas) para a

constituição de um determinado sinal. Anos mais tarde, Battison et al. (1973)

acrescentaram outros parâmetros à descrição dos quiremas: a Orientação da Palma

da Mão (Or) e os Aspectos Não-Manuais dos Sinais (NM).

O sistema fonológico da Libras é composto, então, dos seguintes parâmetros

(elementos quirológicos):

a) Configuração de mãos (CM): são as formas ou posições que as

mãos tomam na realização dos sinais (BRITO, 1995). Conforme

observação de Fernandes (2003), há pelo menos quatro

combinações possíveis de apresentação para as diversas

configurações de mão: 1) apenas uma das mãos configurada; 2) as

duas mãos em configurações distintas; 3) as duas mãos com a

mesma configuração, como que espelhadas e 4) uma das mãos

com configuração apoiada na outra mão configurada ou não.

As Configurações de Mãos (CMs) da Libras, segundo Brito (1995), foram descritas a

partir de dados coletados nas principais capitais brasileiras29. A autora apresenta 46

CMs que estão organizadas no quadro, no plano vertical, conforme a semelhança

entre elas. Não são identificadas, porém, quais são as CMs básicas e quais são as

variantes.

28

Descritos inicialmente por Stokoe, em 1960. 29

A maioria dos dados utilizados por Brito (1995) foram coletados em São Paulo, Rio de Janeiro e Recife.

Page 56: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

55

Figura 01: Quadro de CMs (BRITO,1995)

Ao observarmos o quadro, percebemos similaridades e diferenças entre as CMs.

Notamos uma tênue diferença, por exemplo, na CM “Ff” e “Ft”, localizados na coluna

08: na primeira, o dedo polegar fica para fora e na segunda, o polegar fica para

dentro. Essas diferenciações se constituem em elementos distintivos de cada sinal.

Devido a Libras ser uma língua viva e dinâmica, pressupõem-se acréscimos de

novos sinais ao seu léxico, como por exemplo, a inserção de termos ligados à

informática. Por isso, a criação de novos sinais deve-se a regras gramaticais

específicas, como se espera de todo sistema linguístico. Os novos sinais, ao se

incorporarem ao léxico, utilizam os parâmetros da língua visogestual.

b) Ponto de Articulação ou Localização (L): refere-se ao espaço

utilizado na feitura de um sinal. Pode ser localizado no espaço

superior, na frente do corpo, acima do pescoço; com localização

Page 57: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

56

média, quando os sinais são feitos na altura do tronco; e localização

inferior, quando realizados abaixo da cintura.30

c) Movimento das mãos (M): a característica cinésica dos sinais

oferece à língua sinalizada dinamismo e simultaneidade. Ocorre

quando as mãos se afastam, se unem, se entrelaçam, enfim, se

movimentam em diferentes direções sempre tendo o corpo do

enunciador como ponto de referência.

d) Orientação da palma da mão (Or): dependendo do sinal, as mãos

podem ficar com a palma para baixo, para cima ou para as laterais.

Ao se movimentarem combinam diferentes posições.

Apresentamos a seguir datilologia, ou seja, o alfabeto manual da Língua Brasileira

de Sinais. Cada letra possui uma configuração distinta e muitas são aplicadas na

feitura dos sinais. Brito (1995) salienta que o alfabeto manual foi construído por

algumas CMs e é somente um meio de empréstimo linguístico em Libras.

Figura 02: Alfabeto Manual extraído do site da (FENEIS, acessado em: 25 jul. 2009).31

30

Fernandes (2003) informa que estas três ocorrências espaciais são identificadas na Libras, ao passo que nas outras línguas de Sinais, a localização fica restrita às zonas espaciais superior e média.

Page 58: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

57

A datilologia é muito utilizada para digitalizar nomes próprios e palavras cujo sinal é

desconhecido. A soletração manual serve também para digitalizar nomes de ruas e

avenidas, nomes de bairros ou cidades e sempre que faltar padronização nacional

dos sinais.

Quadros e Karnopp (2004, p. 88) lembram que usuários da língua utilizam a

datilologia em uma variedade de contextos, especialmente para introduzir uma

palavra técnica que ainda não possui um sinal equivalente. As autoras também

entendem que a soletração manual não é uma representação direta do Português.

Assim definem a datilologia: É uma representação manual da ortografia do

Português, envolvendo uma sequência de configurações de mão que tem

correspondência com a sequência de letras escritas do Português.

Seguindo esse raciocínio podemos compreender a existência de algumas palavras

tomadas por empréstimo pela Libras, à língua portuguesa. Um exemplo clássico é o

sinal N-U-N-C-A que com o passar do tempo tem se modificado, ajustando-se às

restrições de boa formação do sistema linguístico da Libras. Antes, esse sinal era

soletrado manualmente, letra por letra. Depois se passou a soletrar somente N-U-N

ou N-C-A. Houve uma redução tanto no número de configuração de mão quanto no

número de orientação de mão envolvidos na constituição do sinal. (QUADROS;

KARNOPP, 2004).

2.3.2 Aspectos Morfológicos

As línguas de sinais possuem um léxico e um sistema de estrutura de criação de

novos sinais em que as unidades mínimas significantes são combinadas. O item

lexical nas línguas orais-auditivas, ou seja, a palavra corresponde ao sinal na Língua

de Sinais. Os sinais são formados pela combinação dos parâmetros de construção

da língua, isto é, da forma e do movimento das mãos, e do ponto no corpo ou no

espaço onde são realizados.

31

Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos.

Page 59: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

58

Assim como há palavras simples e compostas em português, há também em libras;

Fernandes (2003) exemplifica utilizando as palavras “frutas” e “guarda-chuva”. Em

Libras, o sinal para “frutas” é representado pela combinação dos sinais: ”MAÇÃ-

LARANJA-DIVERSOS”, ou seja, um vocábulo composto em Libras representando

um vocábulo simples do português. E o inverso ocorre em “guarda-chuva”, vocábulo

composto da língua portuguesa representado em Libras como uma palavra simples.

A propósito, convém lembrarmos de algumas convenções utilizadas para

representarmos os sinais da Libras em português escrito: a) Toda palavra a ser

sinalizada é grafada em português em letras maiúsculas; (MUNDO, AVIÃO, LIVRO,

etc.); b) Quando um único sinal em Libras é composto pela união de duas palavras

em português, essas são grafadas separadas por hífen: QUERER-NÃO; AINDA-

NÃO, etc.; c) Se o sinal é formado por dois ou mais sinais mas com um só

significado, ele é grafado em letras maiúsculas separados pelo símbolo “^”, como é o

caso de CAVALO^LISTRA – zebra; d) quando o nome de pessoas, cidade ou outra

palavra precisar ser soletrada pela datilologia, a separação letra a letra é feita por

hífen: S-A-M-I-R-A; F-E-L-I-C-I-D-A-D-E etc.; e) Há sinais em Libras que são

formados por empréstimo da palavra em português, como é o caso de N-U-N-C-A e

P-A-Z. Nesse caso, as palavras aparecem separadas por hífen e em itálico. Assim,

percebemos que não é simplesmente uma digitação da palavra, mas um sinal por

ela constituído; f) Como na Libras não há desinência para gêneros masculino e

feminino e nem para o plural, fica convencionado utilizar o símbolo @ para evitar

confusão, e o entendimento será feito pelo contexto: MUIT@ (muito, muita, muitos,

muitas), AMIG@, (amigo, amiga, amigos, amigas) FRI@ (frio, fria, frios, frias) etc.

Uma outra característica morfológica da Libras é a iconicidade de alguns sinais.

Como exemplo, citamos os classificadores que utilizam na sua constituição,

aspectos influenciados pela modalidade viso-espacial. Os classificadores são muito

utilizados para apresentar idéias que não são descritas por sinais. Assim Karnopp e

Quadros definem os classificadores:

Os classificadores têm distintas propriedades morfológicas, são formas complexas em que a configuração de mão, o movimento e a locação da mão podem especificar o movimento e aposição de objetos e pessoas ou para descrever o tamanho e a forma dos objetos (QUADROS; KARNOPP, 2004, p. 93).

Page 60: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

59

Quadros e Karnopp (2004) destrincharam a morfologia das línguas de sinais,

especialmente da Libras, e Brito (1995) dedicou um capítulo de sua obra para expor

parte dos resultados de seus estudos sobre o tema, especialmente sobre os

classificadores em Libras. Ela também atribui a característica da modalidade da

Língua de Sinais (espaço-visuais) à presença frequente de diversos classificadores

que exploram morfologicamente o espaço de maneira multidimensional. Ferreira

Brito observa que, tanto na ASL como em Libras, os classificadores (CLs) funcionam

como partes dos verbos em uma sentença, chamados neste contexto de verbos de

movimento ou de localização. A relação entre o significado do verbo e o seu

classificador tem a característica de ser transparente ou icônica. Sendo assim, os

classificadores representam os seres envolvidos no evento narrado, preservando a

iconicidade nessa representação (BRITO, 1995, p. 103).

Como exemplo de classificadores, citaremos a CM , que pode significar o

gancho do telefone, quando colocado sobre os ouvidos; bomba de gasolina, em

movimento como se estivesse enchendo o tanque; um avião, elevando a mão para o

alto, em diagonal ascendente como que fazendo o movimento de decolagem da

aeronave, etc. A transparência dos classificadores refere-se à semelhança entre a

forma dos sinais e a forma ou tamanho de seus referentes.

2.3.3 Aspectos Sintáticos

Conforme Fernandes (2003), “a sintaxe é o estudo das inter-relações dos elementos

estruturais da frase e das regras que regem a combinação das sentenças”. A autora

descreve diferenciações entre as línguas de sinais e as línguas orais na estruturação

e formação dos sinais/palavras:

O que as diferencia de algumas línguas orais-auditivas é que, ao contrário da maioria dessas, as línguas de sinais são sintéticas. O sinteticismo é uma característica do grego e o latim, por exemplo. Por essa razão, as línguas de sinais não têm artigo, como ocorreu no latim clássico. Ademais, o seu sinteticismo permite que não haja uma lista tão ampla como a do português, no que se refere às classes das preposições e conjunções (FERNANDES, 2003, p. 42).

O sinteticismo é considerado uma das características principais da sintaxe das

línguas de sinais. Este sinteticismo pode ser observado na construção frasal, com

Page 61: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

60

pouco uso de preposições e conjunções. A Libras é bastante flexível na ordenação

das palavras, mas apesar desta flexibilidade, parece haver uma ordenação mais

utilizada, qual seja: Sujeito-Verbo-Objeto (SVO). Exemplificando: MARIA VIAJAR

AVIÃO; MENINO BRINCA PIPA. Outra ordenação muito usada é SOV (Sujeito-

Objeto-Verbo): ELE FUTEBOL JOGA; MULHER CHÃO CAIU.

As expressões não-manuais (ENM), ou seja, o movimento do rosto, cabeça, olhos

ou tronco marcam as construções sintáticas. As expressões não-manuais são todos

os recursos associados para dar maior expressão aos sinais. Quando sinalizamos o

sinal “SORRISO”, a mão direita está configurada em “L” e colocada sobre o queijo,

balançando repetidas vezes, com a expressão de sorriso, no rosto. O elemento

“sorriso” é uma expressão não-manual imprescindível para demonstrar a alegria do

enunciador. Seria bem incoerente sinalizar este sinal com um ar sério no rosto.

Provavelmente um surdo não entenderia o significado de tal informação ou ficaria

confuso sobre de qual sentimento se está falando. Outro exemplo de expressão não-

manual é a expressão indicativa de interrogação e negação. A dissertação de

mestrado de Jéssica Arroteia, cujo título é “O Papel da Marcação Não- Manual nas

Sentenças Negativas em Línguas de Sinais Brasileiras”, defendida em 2005, na

UNICAMP, apresenta uma análise descritiva dos elementos que marcam ou

contribuem para a interpretação das sentenças negativas na LSB.

2.3.4 Aspectos Semântico-Pragmáticos

Fernandes afirma que os traços semânticos-pragmáticos são previamente

estipulados em seu uso, pelo contexto, em qualquer modalidade de língua.

No nível semântico há algumas diferenças quanto à correspondência entre sinais e

seus significados. Para exemplificarmos, utilizaremos os exemplos escolhidos por

Bernardino (2000): o verbo COMER. Esse verbo pode ser representado por

diferentes sinais, conforme sua conotação. Por exemplo: o sinal COMER-MAÇÃ é

realizado com a mão dominante configurada em “C”, frente à boca, representando

iconicamente uma maçã a ser mordida; outro sinal de COMER é realizado com a

mão dominante em “B”, com os dedos estendidos e virados para a boca,

Page 62: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

61

movimentando os dedos para baixo e para cima. O vigor ou a leveza ao realizar um

sinal caracterizam também, essa especificidade da língua.

Os pontos de localização de alguns sinais são outro indicativo semântico-pragmático

presente na Libras. Os sinais correspondentes a sentimentos normalmente são

realizados junto ao peito, próximos ao coração; Os sinais relativos à cognição são

realizados, em sua maioria, na região da cabeça, mais especificamente, na testa.

Isso demonstra que os sinais não são criados aleatoriamente, mas seguem critérios

de utilização de campos semânticos. Exemplificaremos alguns desses sinais um

pouco mais à frente, no item 3.1.3.

Page 63: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

62

3 LINGUA DE SINAIS BRASILEIRA: uma língua viso-gestual-espacial

Devido às especificidades da Língua de Sinais, várias são as terminologias

utilizadas por pesquisadores: língua viso-espacial, espaço-gestual, viso-gestual, etc.

Uma outra terminologia foi adotada por Correa (2007, p. 10.) em sua Dissertação de

Mestrado, para se referir às línguas de sinais: língua cinésico-visual. Para justificar a

utilização desse termo, Correa escreve:

[...] adotamos o termo cinésico-visual para nos referirmos à modalidade das línguas de sinais. Justificamos o emprego desse termo porque a abordagem cinésico-visual possibilita a descrição de todos os elementos de recepção, canal e produção, na simultaneidade de sua realização. Assim, para abranger o modo de produção dos elementos linguísticos das Línguas de Sinais ou dos elementos do sistema gestual, parece-nos coerente adotar a abordagem dos estudos cinésicos que, segundo Eco (1976), é entendido como o estudo dos gestos e dos movimentos corporais de valor significante convencional (CORREA, 2007, p. 32).

A essa terminologia poderíamos acrescentar a categoria espaço, resultando na

seguinte nomenclatura: língua cinésico-viso-espacial, por considerarmos que a

Língua de Sinais possui exatamente estas características: é estruturalmente uma

língua visual que se movimenta em um determinado espaço produzindo sentido.

Continuaremos, portanto, adotando neste estudo o termo viso-gestual, reiterando

que o interesse desta pesquisa é estudar como a fala-gesto (sinais) engendra o

discurso visual da pessoa com surdez. A espacialidade é intrínseca à modalidade

das línguas sinalizadas, pois os sinais são produzidos sincronicamente num

determinado espaço, no corpo do enunciador ou fora dele. A modalidade viso-

gestual permite representar simbólica e espacialmente, no espaço real utilizado pelo

enunciador, formas visíveis de objetos concretos segundo suas características

físicas valendo-se de movimentos e de expressões corpóreo-faciais para produzir

significado. As expressões faciais e corporais são consideradas elementos

linguísticos de produção de sentido.

Page 64: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

63

3.1 LIBRAS: UMA LÍNGUA VISUAL

A língua [de sinais] que usamos entre nós, sendo uma imagem fiel do objeto expresso, é singularmente apropriada para tornar nossas idéias acuradas e para ampliar nossa compreensão, obrigando-nos a adquirir o hábito da observação e análise constantes. Essa língua é vívida; retrata sentimentos e desenvolve a imaginação. Nenhuma outra língua é mais adequada para transmitir emoções fortes e intensas (Pierre Desloges apud SACKS,1998, p. 33).

Por ser a apreensão do mundo para o surdo uma experiência visual, a palavra

falada dificilmente será o principal meio para ele se expressar. Em sua total

construção semântica, a palavra não é para o surdo a ferramenta de construção do

pensamento, pois seu pensamento depende das imagens, não só para se

expressar, mas para existir. Cada imagem possui relação com outra, formando elos

de uma grande corrente, dando sentido ao que se percebe e assimila. Trata-se da

elaboração do pensamento pelo canal da visualidade.

Encontramos uma pesquisa que dialoga como nossa proposta de discussão sobre o

tema “visualidade da Língua de Sinais”. Trata-se da tese de Ana Regina S. Campello

(2008). A pesquisadora aborda a visualidade como processo de ensino-

aprendizagem do sujeito surdo e a considera como propulsora de sentido uma vez

que supõe exercícios imagéticos mediados, semioticamente, por signos. As

proposições são pertinentes e formuladas com propriedade, não só do ponto de

vista epistemológico, mas do empírico, pois embasam a própria experiência visual

de uma pesquisadora com surdez profunda. Assim escreve sobre a experiência da

visualidade:

A experiência da visualidade produz subjetividades marcadas pela presença da imagem e pelos discursos viso-espaciais provocando novas formas de ação do nosso aparato sensorial, uma vez que a imagem não é mais somente uma forma de ilustrar um discurso oral. O que captamos sensorialmente pelos olhos é apenas uma pista que é enviada aos sistemas neuroniais e, posteriormente, esses dados, através de operações mais complexas informam nosso cérebro, produzindo sentido do que estamos vendo. Por isso, as formas de pensamento são complexas e necessitam a interpretação da imagem-discurso. Essa realidade implica ressignificar a relação sujeito-conhecimento principalmente na situação de ensinar e aprender (CAMPELLO, 2008, p. 22).

Experiências pessoais de pesquisadores surdos ratificam a notoriedade que deve

ser dada ao aspecto da visualidade como elemento constituidor de apreensão do

mundo significante. Ao discutir sobre a visualidade, Campello concorda que se torna

Page 65: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

64

imprescindível uma reflexão sobre as produções e compreensões visuais dos

sujeitos surdos.

Para Laboritt (1994), a percepção do som para o surdo perpassa o viés da

visualidade. A autora surda conta, em sua obra, a sua experiência visual,

considerando que tudo que vê é percebido e apreendido imageticamente. Assim

como os sons são percebidos pelos ouvintes por meio do canal auditivo, para os

surdos a sensação sonora é revelada por imagens: “Tenho minha imaginação, e ela

tem seus barulhos em imagens. Imagino sons em cores. Meu silêncio tem, para

mim, cores, nunca é em preto e branco” (LABORITT, 1994, p.19).

Esse fenômeno semiótico de construção imagética de sentido, experiencial dos

sujeitos surdos, deve ser considerado e estudado com maior profundidade por

surdos e não-surdos, pois trata-se de um fértil canal de apreensão conceitual,

engendrado por mediações dialógicas por meio da visualidade.

Ao se comunicarem pela modalidade viso-gestual, os surdos usam a Língua de

Sinais envolvendo o corpo todo na produção do discurso, produzindo inúmeras

formas de apreensão, interpretação e narração do mundo a partir de uma cultura

visual.

É nessa perspectiva que quero abordar a visibilidade das coisas, que no sentido de

Landowski é abordar o visível na perspectiva de uma apreensão impressiva,

reintegrando o ver na globalidade do sentir (2004, p.108). Sobre essa visualidade,

escreve Landowski:

[...] consideramos a visualidade das coisas como uma das dimensões estésicas do real entre outras, as quais em conjunto, depende de uma só problemática do sentido, tal como ele se constitui a partir de nossa presença no mundo sensível (LANDOWSKI, 2004, p.107).

A partir de processos visuais e da apreensão do mundo sensível, o surdo pode

estruturar a comunicação, imagem e língua, ordenando a experiência figurativa de

linguagem pelo uso da forma. Portanto, podemos dizer que por meio de uma língua

visual, o surdo cria conceitos visuais, tratando a forma como resultado de um ato

específico de elaboração e invenção de esquemas de pensamento.

Page 66: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

65

3.1.1 A Visualidade do Surdo

Os barulhos dos que escutam são também imagens para mim, sensações. A onda que rola sobre a praia, calma e doce, é uma sensação de serenidade, de tranquilidade (LABORITT, 1994, p. 19).

De acordo com Marques (1999, p. 38), a visualidade representa para o surdo o

principal canal de organização do pensamento e expressão do conhecimento. Com

o uso de imagens como instrumentos mediadores do conhecimento podemos

observar resultados significativos na formação e na relação social da pessoa surda.

A visualidade é, portanto, o meio pelo qual é permitido ao surdo expressar o

pensamento32.

O canal visual permite ao surdo a leitura do mundo como um referencial para a

formulação de todo o processo mental de apreensão de significados. Sobre a

visualidade da pessoa com surdez, assim escreve Marques:

A visualidade parece representar, para a pessoa surda, o principal canal de processamento de esquemas de pensamento, por ser capaz de propiciar naturalmente a aquisição, construção e a expressão de conhecimento, valores e vivências, que de outra maneira seriam incomunicáveis (MARQUES, 1999, p. 39).

Skliar também considera a visualidade como um aspecto importante na mediação

entre o surdo e seu contexto de vida.

A surdez é uma experiência visual, ou seja, todos os mecanismos de processamento da informação, e todas as formas de compreender o universo em seu entorno, se constroem como experiência visual (SKLIAR 1998, p. 28).

Ratificando a importância da visualidade para o sujeito surdo, Campello escreve:

Os aspectos da visualidade, nada mais são que uma característica peculiar elaborada e voltada para a comunidade Surda, baseada com os próprios entendimentos e experiências visuais. Também tem uma forma estratégica cultural e linguística de como transmitir a própria representação de objeto, de imagem e de língua cuja natureza e aspecto são precisamente de aparato visual (CAMPELLO, 2008, p. 27).

Tal experiência visual, citada por Marques, Skliar e Campello, nos remete ao “fazer

sentido, fazer imagem” abordado por Landowski (2004, p. 104). Nesse texto, o autor

32 Discuto sobre a visualidade do sujeito surdo em outro trabalho acadêmico (SILVA, 2003, p. 40-41) enfatizando a importância da imagem como propulsora dos processos cognitivos da criança surda.

Page 67: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

66

se apóia não só nas proposições de Greimas, mas nos estudos de Jean Marie

Floch, para justificar a tessitura de uma semiótica “que integra explicitamente a

dimensão do sensível”.

A apreensão do mundo-objeto de maneira inteligível e ao mesmo tempo sensível

torna-se um desafio, pois significa rasgar o véu que encobre as imagens-figuras

reconhecíveis e nomináveis para buscar apreender o “fazer sentido”, por meio do

regime de sentido, que segundo Landowski se refere à visão do mundo particular.

3.1.2 A Visualidade e a Figuratividade na semiótica discursiva

A figuratividade não é simples ornamento das coisas, ela é essa tela do parecer cuja verdade consiste em entreabrir, em deixar entrever, graças a ou por causa de sua imperfeição, como de uma possibilidade do além-sentido. Os humores do sujeito encontram assim a imanência do sensível (GREIMAS apud BRAIT, 1995, p.1830).

A semiótica greimasiana detém-se no debate sobre o discurso, por isso chamada de

Semiótica Discursiva. Em seus estudos, Greimas amplia o debate da semiótica, para

questões e temas referentes também à visualidade e o gosto. Falarei apenas da

visualidade para chegar à figuração ou iconicidade.

A visualidade apontada por Greimas (2004, p. 75-96) discorre sobre a “semiótica

figurativa e semiótica plástica”. Tais abordagens dialogam com o texto “Modos de

presença do visível” de Landowski (2004, p. 97-111).

No texto de Greimas, a questão da figuratividade nos interessa quando discute

visualidade, crivo de leitura e sistema de representação. Em Greimas (2004, p. 76-

77) está claro que a visualidade se constitui, sob a forma de imagens, num

componente essencial da “linguagem poeticamente construída”. E em Landowski,

(2004, p. 106) quando discute sobre os “modos de presença do visível” e sobre o

estabelecimento do “regime de presença” no mundo em que vivemos que passa ser

o responsável por comandar o regime de sentido segundo o qual o mundo pode

significar para um sujeito.

Page 68: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

67

Se o “crivo de leitura” é uma espécie de “significado do mundo representado”, que

torna o mundo significante e que nos permite “identificar as figuras como objetos”

qual seria o crivo de leitura para o surdo? Concordamos com Greimas (2004, p. 80)

que “mal se coloca o conceito de crivo de leitura, e ele já faz surgir uma

problemática nova”, principalmente se considerarmos que esse crivo de leitura

possui natureza social, ou seja, que sofre variações no tempo e no espaço, no que

tange ao reconhecimento dos objetos do mundo sensível. Sobre esta questão,

escreve Greimas:

[...] sendo cada cultura dotada de uma “visão de mundo” que lhe é própria, ela impõe, por isso mesmo condições variáveis ao reconhecimento dos objetos e, consequentemente, à identificação das figuras visuais, como algo que “representa” os objetos do mundo, contentando-se, frequentemente com esquematismos vagos, mas exigindo, por vezes, reprodução minuciosa dos detalhes verídicos (GREIMAS, 2004, p. 80).

Landowski (2004, p. 106) apresenta o “regime de sentido” como visão do mundo

particular e o “regime de presença” como uma análise das formas da vida adotadas

pelo sujeito no mundo-objeto. Os modos de presença do visível estão presentes na

maneira como as coisas fazem sentido. Como se o mundo começasse a fazer

sentido enquanto “presença efetiva, envolvente, imediatamente acessível” (PROUST

apud LANDOWSKI, 2004, p. 98). Esse “modo de presença” pode estar presente na

língua do surdo que se apresenta como linguagem contextualizada, tendo sempre

como referência para sua expressividade e até mesmo, existência, o mundo-objeto.

A aproximação sensível das coisas do mundo faz com que o surdo elabore sentido

em sua fala-gesto, constituindo, então, “regime de sentido” e “regime de presença”,

fazendo do universo inteiro uma espécie de “texto” que se pode ler continuamente,

não apenas com os olhos, mas com todos os sentidos, concebendo-o tanto como

um mundo inteligível quanto como um mundo sensível.

Por ser um sujeito que apreende significados muito mais pelo sentido da visão, sem

ignorar, porém os outros sentidos latentes, o que o surdo fala por meio de sua língua

viso-gestual é tudo que ele vê, e a visualidade está presente nas figuras tecidas pela

ação de mãos criadoras de sentido. Henri Focillon tece uma descrição poética sobre

a representação rupestre das mãos, que transcrevo, fazendo uma associação às

mãos da pessoa com surdez:

Page 69: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

68

As mãos são quase seres vivos... dotadas de um espírito livre e vigoroso, de uma fisionomia. Rostos sem olhos e sem voz que, não obstante, vêem e falam... As mãos significam ações: fazer, criar, às vezes, parecem até pensar (FOCILLON apud OLIVEIRA,1992, p. 23).

As mãos dos sinalizadores33 são criadoras de sentido, que na produção dos sinais

se apresentam vigorosas e expressivas, construindo significados.

A construção de significação feita pelo surdo, produzindo imagens com significações

discretas e articuladas a partir de uma leitura sensível de mundo pode se constituir

no que Landowski chama de “uma poética da imagem voltada para a significação”.

Pois, não seriam as articulações de um sinal “conjuntos significantes” e as coleções

desses conjuntos “sistemas significantes”?

Consideramos que grande parte do léxico da Libras é prenhe de iconicidade, já que

estabelecem uma relação de figuratividade no momento em que as mãos se

articulam, criando sinais e produzindo significado. De acordo com o dicionário

Houaiss (2007), iconicidade é “a propriedade que tem o signo icônico de representar

por semelhança o mundo real (quanto maior o grau de iconicidade de um signo,

menor o seu grau de abstração ou esquematização)”.

Para exemplificarmos a presença dessa iconicidade, apresentamos alguns sinais da

Libras:

a) para representar a palavra CASA – significando moradia, lar – as mãos se

apresentam com a seguinte configuração: as duas mãos abertas, palma a palma,

tocam-se somente pelas pontas dos dedos indicadores, médios e anelares, criando,

à frente do corpo, a forma triangular de um telhado.

33 Escolhemos a terminologia sinalizador para referenciarmos, nesta pesquisa, a pessoa que se comunica em LS, tal como o fez Moreira (2007), em sua dissertação, apesar do referido termo não ser reconhecido pelo dicionário Houaiss Eletrônico da língua portuguesa.

Page 70: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

69

Ilustração 01 – Sinal de CASA

b) para sinalizar a palavra HARPA, utilizam-se as duas mãos, deslocadas para o

lado esquerdo do corpo do sinalizador, movimentando-se os dedos como se

estivesse dedilhando as cordas do instrumento.

Ilustração 02 – Sinal de HARPA

c) a sinalização da palavra CHORAR é feita com a mão direita (MD) configurada em

“D”, do alfabeto manual. O sinalizador passa os dedos indicadores sobre a face,

abaixo dos olhos, representando, iconicamente, as lágrimas descendo.

Ilustração 03 – Sinal de CHORAR

Page 71: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

70

Ao colocarmos a questão da iconicidade de um objeto postulamos um crivo de

leitura iconizante à interpretação desses objetos. Greimas (2004, p. 80) diz que essa

leitura iconizante “é, contudo, uma semiose, vale dizer, uma operação que,

conjungindo um significante e um significado, resulta na produção de signos”.

De acordo com Greimas (2004, p. 75) o conceito de representação é o ponto de

partida para a reflexão da visualidade. Aqui sou instigada a criar uma relação com a

linguagem dos surdos, tomando a liberdade de parafrasear Greimas (2004, p. 76),

quando o autor aponta questionamentos que nos levam a, pelo menos, uma

reflexão: as articulações das mãos, “configurações visuais”, construídas sobre o

corpo ou fora dele são “representações”? E essas “configurações” no momento em

que são produzidas, convergem para um mesmo objetivo? São regidas por um

“código” graças ao qual elas podem ser lidas? Considerando sim, para todas essas

perguntas, Greimas nos aponta que todos esses conjuntos são “sistemas de

comunicação”, de “formulação” ou de “concepção”. Então, a Língua de Sinais,

construída a partir de configurações visuais poderia falar de outra coisa que não de

si mesma?

Diante do exposto, apresentaremos a proposição do estabelecimento da Língua de

Sinais utilizadas pelo surdo, como formadora de pensamento, possibilitando-lhe

representar visualmente sentimentos, conceitos e impressões de um mundo vivido e

experimentado que no dizer de Landowski (2004, p.108) significa abordar o visível

na perspectiva de uma impressão voltada para a experiência do sentido

experimentado, reintegrando o ver na globalidade do sentir.

3.2 LIBRAS: UMA LÍNGUA GESTUAL

[...] há gestos sublimes que toda a eloquência oratória nunca haverá de transmitir (DIDEROT, 2006, p. 96).

A questão da expressividade do gesto é abordada de diferentes maneiras em

estudos como o de Diderot ([1949])34, Greimas; Kristeva; Bremond et al. (1979) e de

Oliveira (1992).

34 Texto original escrito em 1751.

Page 72: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

71

Oliveira (1992) discute a fala dos gestos, tecendo uma análise da representação

corporal na arte, discutindo a importância das mãos e de todo o corpo na

experiência da criação e expressão. São algumas das instigantes perguntas da

autora: Qual a importância das mãos na experiência da criação e expressão desde

os primórdios da humanidade? O que e como fala a Fala Gestual?

As mãos criam e expressam o sentir humano. Passado e presente pelas mãos,

transtemporizam-se. As mãos, ontem e hoje, falam do ser/estar do homem no

mundo. São uma parte do homem que re-acorda o próprio homem para sua

dinamicidade num outro tempo/espaço de ação (OLIVEIRA,1992, p. 27).

Parafraseando Oliveira (1992), formulamos as seguintes questões: se as mãos,

parte do homem, falam de seu ser/estar no mundo, o que não falaria todo o corpo do

surdo na expressão em Língua de Sinais? Como o corpo e suas partes repropõem

em suas articulações e na dinamicidade de seu movimento, um discurso gestual

fecundo de sentido?

A importância da fala pelos gestos tornou-se também, objeto de pesquisa de Denis

Diderot ([1949]). O autor questiona, em sua obra Carta sobre os Surdos e Mudos

endereçada àqueles que ouvem e falam, os métodos até então utilizados com

surdos, ressalva a complexidade das Línguas de Sinais e analisa linguisticamente, a

produção de sentido por meio dos gestos. Ele conta na sua “Carta” que quando se

propôs a estudar os movimentos e os gestos dos atores de peças teatrais, buscava

os lugares mais afastados, o camarote do 3º patamar, pois acreditava que quanto

mais afastado estava dos atores, melhor estava colocado. Apesar do fato de que

para conhecer algo precisamos nos aproximar e não buscar o distanciamento,

Diderot sabia o porquê dessa necessidade: ele não estava preocupado em ouvir a

voz de seus atores, mas compreender a fala do corpo. Assim que a peça começava,

ele tapava os ouvidos, causando estranheza aos espectadores à sua volta. Como

era frequentador assíduo de espetáculos teatrais, sabia de cor o texto da maioria

das peças. Quanto mais o texto era conhecido por Diderot, mais ele mantinha os

ouvidos obstinadamente tapados. Essa experiência foi tão marcante para o autor

quanto para as pessoas que o observavam. Alguns jovens, em sua simplicidade, o

imitavam, tapando também os ouvidos e ficavam surpresos, pois, para eles nada

Page 73: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

72

significavam tal atitude. Outros se arriscavam em questioná-lo e sua resposta era de

que cada um tinha a sua maneira de escutar, e a dele era a de tapando os ouvidos

para ouvir melhor. Sem o som das palavras, a voz do corpo lhe contava, de maneira

contundente, a emoção de cada cena.

Diderot estava propondo um estudo da linguagem por gestos, e para aprofundar seu

conhecimento e conhecer a especificidade da linguagem gestual, buscou a

companhia de um surdo-mudo de nascença. Ao conviver com um surdo pôde

compreender que os gestos e todo o movimento corporal se traduzia em uma

linguagem repleta de sentidos.

Com essa reflexão, Diderot cristaliza sua concepção sobre a origem da linguagem,

ou seja, que ela só é constituída por meio de uma relação sensível do homem com

os objetos à sua volta, trazendo-lhe significação.

Objetivando ancorar epistemologicamente nossa temática, procuramos estudos que

corroborassem nossas hipóteses investigativas. Encontramos trabalhos dissertativos

que muito contribuíram na fomentação do desenvolvimento deste estudo. Um deles

é o trabalho de Correa (2007), citado no início desse capítulo, que traz no bojo de

sua dissertação a proposição de analisar os recursos gestuais complementares às

produções linguísticas do surdo, organizando e descrevendo a tipologia da

linguagem gestual além de identificar as estratégias empregadas pelos sujeitos para

efetivar a comunicação. O trabalho de Correia dialoga com nossa pesquisa quando

aborda a importância da gestualidade como produtora de sentido, quando considera

os estudos semióticos como base para o reconhecimento de algumas funções

sígnicas que envolvem o sistema gestual. O que difere é a base semiótica: a

pesquisadora fundamenta suas proposições na semiótica peirciana, enquanto nós

optamos pela semiótica greimasiana. Correa entende que as questões linguísticas

se aplicam ao estudo das línguas e que as questões sobre a linguagem são

tratadas, em geral, pela semiótica. Suas postulações estão baseadas nas

contribuições dos estudos realizados por Saussure, Pierce e Umberto Eco.

Segundo Correa (2007), quando é impossível o uso dos canais sensoriais

responsáveis pela recepção de uma língua oral, sonora, os gestos revelam-se

Page 74: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

73

mediadores de um processo cognitivo humano que possibilita a transmissão de

idéias. Complementamos essa informação com uma frase de Diderot (apud SILVA,

2003, p. 12): “Um homem que impedido de usar os sons articulados, procura

exprimir-se por meio de gestos”. Essa concepção nos remete ao que Oliveira

escreve sobre a fala gestual: “[...] o homem, miríade de sinais, é uma ação sígnica

que significa” (OLIVEIRA, 1992, p. 182).

Cresswell (1979, p. 169) sustenta que um dos traços característicos da linguagem

humana é o movimento corporal contínuo, referindo-se especialmente à

comunicação verbal. Quando se propôs a pesquisar o gesto manual associado à

linguagem concluiu que o campo de estudo sobre a gestualidade do ser humano, tão

fecunda de significação, tem sido pouco visitado e explorado. Provavelmente, a

razão desse possível desinteresse seja devido à visão unidirecional centrada nos

estudos das linguais orais e auditivas, que por muito tempo deixaram suspensos os

estudos mais aprofundados sobre a gestualidade.

Correa (2007) acredita que o estudo dos gestos recebe atualmente um status mais

prestigiado nas investigações linguísticas e comunicativas pelo fato de que o gesto

se realiza na mesma modalidade que as línguas sinalizadas, o que revela a

necessidade de separar essas duas ocorrências numa situação comunicativa.

Greimas considerou uma problemática a questão da atribuição da gesticulação

como linguagem:

[...] tentaremos organizar um pouco o domínio da gesticulação como linguagem, que é um domínio aparentemente confuso, onde elementos diferentes, signos e sintagmas gestuais, seus programas e seus códigos sejam naturais ou artificiais, se misturam e se confundem na manifestação (GREIMAS, 1975, p. 66).

A práxis gestual é definida por Greimas (1979, p. 27) como a utilização de seu

próprio corpo pelo homem, tendo em vista a produção de movimentos organizados

em programas, com um sentido comum. Essa gestualidade programada, no dizer de

Greimas, refere-se à gestualidade prática e não mítica.

Page 75: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

74

Em estudos sobre a comunicação gestual, Greimas (1975, p. 76) reconheceu,

primeiramente dois tipos de gestualidade: a) gestualidade de comunicação, portanto

discursiva, que abrange as categorias significante/significado e b) gestualidade de

transposição, referindo-se, então, à gestualidade mimética, que pode ser

exemplificada com a mão representando uma arma, na seguinte configuração: os

dedos indicador e polegar estirados enquanto os demais estão dobrados junto à

palma e que de forma vigorosa é apontada para o outro; e à gestualidade lúdica,

como os gestos da dança folclórica, que a seu ver não pode ser examinada do ponto

de vista da comunicação discursiva.

Sobre tipologia gestual, as considerações de Kendon (apud CORREIA, 2007, p. 38)

apresentam nuances conceituais semelhantes ao pensamento greimasiano. O autor

em questão elaborou um rol de tipologia dos gestos:

a) a gesticulação, referindo-se aos gestos produzidos no ato da fala oral;

b) a pantomima, que se baseia em movimentos miméticos de ações humanas ou

não-humanas, como a representação do pulo de um gato, ou a ação de escovar os

dentes. Mesmo que alguns autores, como Greimas e Kendon, defendam a idéia de

que a pantomima não ocorre em discursos, nos parece, salvo engano, que em

alguns sinais da Libras ocorra sua presença, como constituidora de significado na

produção de alguns sinais como acontece nos recursos utilizados pelos chamados

“Classificadores” (CL). Os classificadores são recursos enfáticos utilizados para

representar, por exemplo, o deslocamento de animais ou pessoas num determinado

espaço, a queda de objetos ou pessoas, etc. O sinal, em Libras, “ESCOVAR OS

DENTES”, ilustrado um pouco mais a frente é essencialmente mimético, no sentido

apontado por Kendon.

c) os emblemas, referindo-se aos gestos utilizados culturalmente. Greimas (1975, p.

56) atribui como fenômeno cultural a gesticulação aprendida e transmitida, conforme

os sistemas semióticos, como é o caso do sinal “Positivo”, com o dedo polegar em

riste e os demais dobrados junto à palma. Na Libras, esse “gesto” representa mais

que isso, representa um signo linguístico. É a configuração de mão (CM), utilizada

para indicar, por exemplo, o número um. Como último tipo de gestualidade, Kendon

Page 76: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

75

apresenta a Língua de Sinais, (apud CORREIA, 2007, p. 38) que segundo ele é o

próprio discurso realizado na mesma modalidade em que os gestos se realizam,

porém com uma diferença: trata-se de uma língua autônoma, constituída de itens

lexicais convencionados.

Correia menciona a importância dos estudos acerca dos gestos e afirma que,

segundo Kendon, o estudo do gesto levanta questões sobre a relação entre

linguagem verbal, linguagem imagística e pensamento (2007, p. 39). Consideramos

a Língua de Sinais como fala-gesto, prenhe de gestualidade, uma vez que é

articulada pela mobilidade corporal, ou seja, o movimento de mãos e corpo.

Landowski (1996, p. 25-26) ao discorrer sobre o corpo e o sentido, fala sobre a

mobilidade corporal. Mesmo reconhecendo que é demasiadamente difícil modelizar

a mobilidade, apresenta quatro níveis da modalidade corporal: as expressões

faciais; a gestualidade (braços e mãos); as atitudes reveladoras dos humores e

emoções e, por último, o movimento do corpo no espaço englobante, quando trata

da proxêmica. É nessa perspectiva de modalidade viso-gestual de língua que os

gestos, com seus diferentes tipos e seus respectivos componentes linguísticos estão

intrínsecos, imbricados para estabelecer direcionalidade no espaço sinalizado e para

inserir referentes ausentes no discurso sinalizado (CORREA, 2007, p. 57).

3.3 LIBRAS: UMA LÍNGUA ESPACIAL

Encontramos na Língua de Sinais, em todos os níveis – léxico, gramatical, sintático – um uso linguístico do espaço: um uso que é espantosamente complexo, pois boa parte do que se fala ocorre de modo linear, sequencial, temporal, na Língua de Sinais torna-se simultâneo, coincidente, com múltiplos níveis (SACKS, 1998, p. 99).

Ao discorrer sobre o uso linguístico do espaço, Sacks está falando de uma

gramática espacial. Outros estudiosos da Língua Americana de Sinais (ASL), como

Liddell e Johnson (apud SACKS, 1998, p. 100) consideraram a comunicação por

sinais não uma sucessão de configurações instantâneas “congeladas” no espaço, e

sim, contínua e ricamente moduladas no tempo, com dinamismo de movimentos e

“pausas” análogo ao da música ou da fala. Analisando a ASL, esses pesquisadores

Page 77: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

76

identificaram diferentes movimentos sequenciais: a) sequências de configurações de

mãos; b) localizações; c) sinais não manuais; d) movimentos locais; e) movimentos e

pausas. Além de uma segmentação interna, considerada fonológica, na construção

de cada sinal.

Comparando o dinamismo e as diferentes dimensões espaciais exploradas pelo

corpo da pessoa que faz os sinais, Stokoe identificou a presença de um elemento

singular: o canal de expressão tetradimensional da Língua de Sinais:

Quando três ou quatro usuários da Língua de Sinais encontram-se num posicionamento natural para uma conversa em sinais [...] as transformações do espaço não são absolutamente rotações de 180º do mundo visual tridimensional, mas envolvem orientações que os não-usuários dessa língua raramente ou nunca entendem. Quando todas as transformações desse e de outros tipos são efetuadas entre o campo visual tridimensional de quem faz os sinais e o de cada observador, o que está comunicando transmitiu o conteúdo de seu mundo de pensamentos para o observador. Se todas as trajetórias de todas as ações sinalizadas – direção e mudança de direção de todos os movimentos de braço, antebraço, pulso, mãos e dedos, todas as nuances de toda a ação dos olhos, rosto e cabeça – pudessem ser descritas, teríamos uma descrição dos fenômenos nos quais o pensamento é transformado por uma Língua de Sinais (STOKOE, apud SACKS, 1998, p. 101).

Para Stokoe, portanto, a Língua de Sinais apresenta mais que três dimensões, ou

seja, além das dimensões largura, altura e profundidade representada na feitura dos

sinais, surge outra: a dimensão temporal. O autor conjectura a possibilidade da

Língua de Sinais explorar todas as possibilidades sintáticas de seu canal de

expressão tetradimensional (SACKS, 1988, p. 100).

Essa possível descrição dos movimentos tetradimensionais citadas por Stokoe é

exemplificada por Sacks, que apresenta um diagrama em que ilustra as dimensões

espaciais presentes nas articulações do sinal OLHAR, em ASL. Apresentamos a

ilustração tal como aparece em sua obra, com os devidos créditos (SACKS,1988, p.

103):

Page 78: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

77

Ilustração 04 – Sinal OLHAR Imagens geradas por computador mostrando três inflexões gramaticais diferentes do sinal OLHAR.

SACKS (1988) comenta que desvendar essa estrutura tetradimensional

extremamente complexa, exige uma percepção quase ao nível da genialidade, mas

que, antagonicamente, pode ser facilmente desvendada por uma criança surda de

três anos de idade, usuária da Língua de Sinais.

Brito (1995, p. 215) utiliza a expressão inglesa setting para se referir ao espaço de

realização dos sinais. O esquema apresentado pela pesquisadora para representar

os eixos de deslocamentos possíveis na discursivização, considera também a

multidimensionalidade espacial. A liberdade de movimento na Língua de Sinais pode

ser entendida como a utilização do espaço na frente e atrás do corpo do enunciador,

à direita (superior/inferior), à esquerda (superior/inferior), em cima e embaixo. Os

pontos de articulação tomam todos os referentes espaciais disponíveis para a

realização dos sinais; desde os pontos no próprio corpo, como a ponta do nariz, até

os pontos menos precisos, como o espaço à frente do tórax. Em sinais em que o

ponto de articulação não é relevante é considerado espaço neutro.

Segundo Friedman (apud BRITO,1995, p. 216-217) os pontos de articulação são

realizados em quatro regiões principais do corpo: CABEÇA; TRONCO, BRAÇOS E

MÃO, e cada uma dessas regiões são exploradas como microrregiões. Por exemplo,

Page 79: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

78

na região da CABEÇA, surgem outros pontos de articulação de sinais: topo da

cabeça, testa, têmpora, orelha, olhos, nariz, boca, queixo, zona abaixo do queixo,

etc. Da mesma forma acontece nas outras regiões principais apontadas. Há sinais

que compreendem mais de um ponto de articulação e na produção dele são

marcados o ponto inicial e o ponto final, ou seja, onde começa e termina a

gestualidade. Um exemplo é o sinal do vocábulo PRÓPRIO, em Libras: As duas

mãos configuradas em “P”, do alfabeto manual; os dedos médios tocam nas

têmporas e, em seguida, em movimento circular, tocam no peito.

Os pontos articulatórios que informam direcionamento como, à esquerda, à direita,

em frente, atrás, etc., toma o próprio corpo do enunciador como referente principal.

Exemplos: sinais FUTURO/PASSADO.

O sinal FUTURO como marcação de tempo, apresenta uma visão prospectiva na

sua realização: a MD com CM em “F” do alfabeto manual é impulsionada para frente

informando visualmente que o futuro encontra-se à frente do enunciador, enquanto o

passado fica para trás, daí, a representação do sinal em Libras ser com a MD,

aberta com a palma virada para trás, na altura do ombro direito. Faz, por duas

vezes, o movimento impulsionando-a para trás.

As diversas dimensões que a língua sinalizada toma na discursivização, podem ser

observadas mais claramente numa narrativa produzida em sinais. Ao narrar uma

história por meio da Língua de Sinais, as pessoas com surdez exploram seus

movimentos corporais e o espaço de sinalização ao seu redor para construir as

cenas e para dar vida aos personagens. Nesta interpretação dos personagens, o

narrador surdo assume o papel de qualquer participante da cena narrada e a sinaliza

como se fossem eles. Lemos no trabalho dissertativo de Moreira (2007) algumas

considerações sobre essa característica própria da pessoa com surdez, de

incorporar personagens numa narrativa descritiva. A pesquisadora apresenta uma

proposta de descrição da dêixis de pessoa na Língua de Sinais Brasileira. Nas

línguas de sinais, a dêixis de pessoa é realizada substancialmente por meio de dois

tipos de sinais de apontamento: os pronomes pessoais e os verbos indicadores.

Moreira apresenta algumas características da língua viso-espacial do surdo que se

apropria de todo o espaço englobante para produzir sentido. Assim escreve:

Page 80: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

79

Quando o sinalizador35 quer narrar, por exemplo, um diálogo ocorrido entre um pai e uma mãe, ele pode representar e incorporar a mãe e sinalizar olhando para a esquerda, que é o lugar em que ele pode imaginar que está o pai. O sinalizador tem de fazer a expressão facial da mãe que ele está interpretando e agir como ela. Para interpretar o pai, o sinalizador tem, então, de sinalizar olhando para a direita dele, onde está representada a mãe, fazer a expressão facial do pai. Sinalizar e agir como ele, e interagir como entidade subrogada criada para a mãe. Se o pai for mais alto que a mãe, por exemplo, o sinalizador, quando assumir o seu papel, terá de sinalizar olhando para baixo, e quando assumir o papel da mãe, ele terá que olhar para cima (MOREIRA, 2007, p. 51).

Esse jogo de distâncias, proximidades ou afastamentos, direção do olhar, ou seja,

os modos pelos quais o surdo se coloca e se movimenta em relação aos

personagens, a maneira como gerem e ocupam o espaço envolvente, considerando

a presença do personagem narrado, refere-se à proxêmica.

No dicionário de semiótica de Greimas e Courtés lemos a seguinte definição de

proxêmica:

A proxêmica é uma disciplina – ou melhor, um projeto de disciplina – semiótica que visa a analisar a disposição dos sujeitos e dos objetos no espaço e, mais particularmente, o uso que os sujeitos fazem do espaço para fins de significação. Assim definida, ela aparece como um domínio problemático da teoria semiótica, que cobre em parte a semiótica do espaço, mas também a semiótica natural, a semiótica teatral, a semiótica discursiva, etc. [...]. Numa primeira aproximação, a proxêmica parece interessar-se pelas relações espaciais (de proximidade, de distanciamento, etc.) que os sujeitos mantém entre si, e pelas significações não –verbalizadas que eles daí tiram (GREIMAS E COURTÉS, 1979, p. 359).

As relações de proximidade e de distanciamento são observadas por Rebouças

(2003), ao analisar semioticamente obras como Floresta36, de Tarsila do Amaral,

(REBOUÇAS, 2003, p. 32). Para a autora, os jogos de proxêmica são os recursos

expressivos responsáveis pelas significações das posições e atitudes dos corpos em

um espaço englobante. Ao salientar as relações inter-actoriais contidas na obra O

Jantar de De Fiori37 (2003, p. 63), Rebouças trabalha com algumas categorias

proxêmicas, como: central x periférico; de frente x de costas; sentado x em pé e em

movimento x sem movimento.

35 Referindo-se à pessoa que utiliza a LS para se comunicar. 36 Tarsila, Floresta, 1929, óleo s/ tela. 63,9x76,2 cm. Col. MAC-USP. 37 E. de Fiori. O Jantar, 1942, óleo s/ tela. 90x109,5 cm. Acervo do Museu de Arte Brasileira da Fund. Armando Alvares Penteado.

Page 81: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

80

Segundo Fabbri (1979, p. 93), a proxêmica é o ramo da semiótica que estuda a

estruturação significante do espaço humano. Com base nos estudos do antropólogo

Edward T. Hall, responsável pela difusão do termo “proxêmica”, o autor considera a

estrutura inconsciente do microespaço, ou seja, a maneira como o homem avalia a

distância entre si e os outros nas relações cotidianas como um resultado da

proxêmica. Fabbri escreve que o discurso da proxêmica se baseia como semiótica

da comunicação, tanto na cultura como na comunicação estabelecida entre os

sujeitos, axioma fundamental das ciências behavioristas nos Estados Unidos.

Nessa mesma linha de pensamento, Kristeva (1979, p. 83) considera a proxêmica

como uma nova extensão do estudo behaviorista da gestualidade, pois se ocupa do

modo como o sujeito gesticulante organiza o seu espaço como um sistema

codificado no processo da comunicação.

Greimas e Courtés (1979, p. 360) amplia a atuação da proxêmica, que ao nosso ver

pode ser relacionada com a espacialidade explorada na sinalização em Libras:

A proxêmica não poderia satisfazer-se apenas com a descrição dos dispositivos espaciais formulados em termos de enunciados de estado; ela deve ter em mira igualmente os movimentos dos sujeitos e os „deslocamentos‟ de objeto, que não são menos significativos, porque são representações espácio-temporais das transformações (entre os estados). Sendo assim, a proxêmica vai além dos limites que se propôs e se vê obrigada a integrar em seu campo de análise também as linguagens gestuais tanto quanto as linguagens espaciais (GREIMAS; COURTÉS, 1979, p. 360).

Para cristalizar a proposição de que a Língua de Sinais possui além dos níveis

lexical, gramatical e sintático, o uso linguístico do espaço, citamos Sacks, que de

maneira apaixonante descreve mais esta característica da língua viso-gestual:

A característica isolada mais notável da Língua de Sinais – que a distingue de todas as demais línguas e atividades mentais – é seu inigualável uso linguístico do espaço. A complexidade desse espaço linguístico é esmagadora para o olho “normal”, que não consegue ver, e muito menos entender, o tremendo emaranhado de seus padrões espaciais (SACKS, 1998, p. 99).

Quando consideramos o aspecto físico e a trajetória de articulação das línguas,

percebemos que a língua oral ocorre de maneira linear, sequencial e temporal. Nas

línguas de sinais, em sua tetradimensionalidade, conforme observada por Stokoe e

Page 82: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

81

ratificada por Sacks, os sinais são produzidos simultaneamente, coincidente e em

múltiplos níveis. Daí a complexidade da LS, que não se configura simplesmente

como um aglomerado de gestos ou ações miméticas, mas em uma língua produzida

por um corpo-volume que produz significativamente, na dimensão espacial, um

discurso gramaticalmente visual.

A Língua de Sinais explora sintaticamente seu canal de expressão multidimensional

com as manipulações espaciais e a pertinência do espaço de realização das

mensagens gestuais.

Essa capacidade natural de explorar semioticamente o espaço, faz com que o

discurso do surdo se apresente com característica cinemática. Conforme Brito (1995,

p. 213), para haver movimento, é preciso haver um objeto e um espaço, e nas

línguas de sinais o objeto é representado pelas mãos do enunciador/sinalizador e o

espaço da enunciação é a área em torno de seu corpo. Exemplificamos esse

fenômeno com o sinal PORTA. As mãos articulam-se à frente do corpo do

enunciador, num movimento de abrir a porta. Esse é um exemplo, dentre outros, de

manifestação mimética, no sentido poético do termo, imbuída de significação

discursiva, na Língua de Sinais. Ao referir-se à gestualidade mimética, Greimas

(1975, p. 73) considerou a presença da complexidade na produção de um texto

gestual, de manifestação figurativa, fortalecendo a premissa de que a pantomima se

aproxima da linguagem poética.

Ilustração 05 – Sinal de PORTA

Acrescentamos que o próprio corpo do enunciador surdo, também se constitui em

espaço de enunciação. Exemplo: sinal ANGÚSTIA, em Libras:

Page 83: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

82

Ilustração 06 – Sinal de ANGÚSTIA

A Língua de Sinais, em nosso caso, a Libras, se apropria dos elementos sígnicos -

visualidade, gestualidade e espacialidade – para se apresentar como uma língua

que se expressa num nível surpreendente de semiotização. Por meio da visualidade,

a LS representa visualmente sentimentos, conceitos e impressões de um mundo

vivido e experimentado, reintegrando o ver na globalidade do sentir.

Por sua gestualidade, articulada pela mobilidade viso-gestual, a Língua de Sinais faz

do movimento de mãos e corpo, componentes linguísticos, estabelecendo um

discurso visual fecundo de significação, que na acepção semiótica do termo, é assim

definido por Landowski:

Produto que resulta da efetiva presença do mundo para o sujeito, assim como da recíproca presença do sujeito para o mundo. [...] um mundo indissociavelmente inteligível e sensível, no qual o cognitivo não se opõe ao sensitivo, mas nasce (e cresce e morre) nele: um mundo, enfim, onde não há sentido fora dos sentidos, nem almas além dos corpos (LANDOWSKI, 1996, p. 32).

Como língua espacial, estabelecida por um corpo-volume que produz enunciados

multidimensionais, a Língua de Sinais explora sintática e gramaticalmente o espaço,

semiotizando-o.

Todas as características abordadas fazem do discurso do surdo uma língua

essencialmente semiótica e cinemática.

Page 84: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

83

3.1.3 A Iconicidade na Libras como Produtora de Sentido

Uma característica das línguas de sinais é que, diferentemente das línguas orais, muito sinais têm forte motivação icônica. Não é difícil supor que esse contraste se explique pela natureza do canal perceptual: na modalidade vísuo-espacial, a articulação das unidades da substância gestual (significante) permite a representação icônica de traços semânticos do referente (significado), o que explica que muitos sinais reproduzam imagens do referente (SALLES, et alli, 2002, p. 83-84).

As observações tecidas nos incentivam a prosseguir em nossa visão epistemológica

acerca da presença contundente e essencial da figuratividade ou iconicidade

inerente à Língua de Sinais.

Campelo, pesquisadora surda, também defende que tanto a iconicidade quanto a

arbitrariedade sempre existiram na Língua de Sinais e se torna impossível a

separação ou exclusão dessas características próprias geradas a partir da

percepção cognitiva do surdo e que a iconicidade é produto dessa ação perceptiva:

A percepção visual cria novo signo de acordo com o mundo que se vê (CAMPELLO,

2008, p. 157).

A experiência humana é fundamentalmente visoespacial e temporal e as línguas de

sinais, por sua característica modal acabam tendo mais recursos para mapear e

representar essas propriedades visoespaciais e temporais. A iconicidade é uma

característica marcante da comunicação na modalidade visoespacial.

No entanto, é interessante reconhecermos que os processos visuais estão presentes

tanto nas línguas de sinais como nas orais. Nas línguas faladas encontramos as

chamadas figuras de linguagens, dentre as quais se destacam as metáforas, que por

sua vez são carregadas de iconicidade. As metáforas se servem da iconicidade para

expressar um tipo de experiência numa relação do tipo como se fosse.

Exemplificando, temos as frases: Com você, minha vida é um mar de rosas ou com

os meus olhos te filmei. Ou ainda: André pisou na bola com a namorada. O que dizer

dos provérbios, que se valem da iconicidade para revelar significados? São

inúmeros os exemplos, mas citaremos alguns bem conhecidos: água mole em pedra

dura, tanto bate até que fura; nem tudo que reluz é ouro; cavalo dado não se olha os

dentes, etc. A iconicidade nas línguas orais está representada, também, pelas

onomatopéias, que ao apresentar semelhança entre a forma e a coisa representada,

Page 85: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

84

como o atchim, o tique-taque ou o coachar ou o zumbir assume o caráter icônico da

língua.

A respeito da estrutura morfêmica dos sinais, ou seja, da participação de morfemas

metafóricos na iconicidade dos sinais da Libras, Capovilla e Raphael escrevem:

A iconicidade de um sinal ou símbolo diz respeito à sua transparência, translucência ou opacidade denotativa, ou seja, ao grau em que seu significado é imediatamente aparente a um observador ingênuo e não familiarizado com esse sinal ou símbolo (CAPOVILLA; RAPHAEL 2005, p. 737).

O autor chama de transparente o sinal altamente icônico, que pode ser interpretado

até por pessoas que desconhecem a língua, devido à figuratividade que leva ao

significado. Ainda sobre esta transparência icônica de alguns sinais, Quadros e

Karnopp (2004) citam a autora González, que estabelece uma classificação dos

sinais a partir das relações semânticas básicas entre o referente e o item lexical.

Assim escrevem:

Segundo a autora (Gonzáles) os sinais podem ser motivados (sinais icônicos e dêiticos), intermediários e/ ou arbitrários. A iconicidade reproduz a forma, o movimento e/ ou a relação espacial do referente, tornando o sinal transparente e permitindo que a compreensão do significado seja mais facilmente apreendida. Assim, mesmo não se conhecendo bem uma língua, há uma motivação do signo com relação ao referente. Entretanto, cabe salientar que apenas uma parte do léxico possui esta característica. Ao lado desta iconicidade, há também a arbitrariedade, já que alguns sinais não representam associações ou semelhanças visuais com o referente (QUADROS; KARNOPP, 2004, p. 32-33).

É importante deixar claro que essa transparência é relativa. Como prova disso há o

caso de Hoemann (apud QUADROS; KARNOPP, 2004, p. 33) que realizou um

experimento a fim de testar a decodificação imediata de sinais considerados

icônicos. Ele selecionou 100 sinais do dicionário da ASL para mostrar a 52 pessoas

que não conheciam a Língua de Sinais. Somente 30% dos sinais apresentavam

significados identificáveis com a forma do sinal produzido. Portanto, essa é uma

discussão que merece reflexões aprofundadas.

Page 86: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

85

Muitos sinais da Libras considerados atualmente como icônicos, podem, com o

passar do tempo, tornarem-se arbitrários. Como exemplo, citamos o sinal para

LEITE, que é realizado com a MD, com movimento de abrir e fechar a mão, como se

estivesse tirando manualmente o leite da vaca.

Ilustração 07 – Sinal de LEITE

Provavelmente no futuro, quando a tiragem de leite no Brasil for somente por

equipamentos eletrônicos, o movimento utilizado na realização do sinal LEITE, ou

seja, que ilustra a tiragem de forma manual, já não representará iconicidade para os

pequenos aprendizes da Libras, mas uma arbitrariedade.

Alguns sinais em Libras passam de uma motivação icônica para uma relação

arbitrária, devido ao aspecto diacrônico da língua. Como exemplo citamos duas

maneiras de apresentar o sinal para LADRÃO. Um, de aspecto icônico,

representando alguém roubando algo: mão esquerda aberta (ME), palma virada para

baixo. Mão direita (MD) aberta, dedo polegar levemente encostado na palma da ME,

faz movimento para trás, fechando a mão, indicando que alguém está furtando algo.

Ilustração 08 – Sinal de LADRÃO

Page 87: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

86

Frequentemente tem-se utilizado outro sinal para LADRÃO, produzido de maneira

mais sutil, se constituindo numa metáfora. O sinal é realizado com a língua fazendo

um movimento interno e rápido na bochecha, ou seja, a língua passa rapidamente

na lateral interna de uma das bochechas, produzindo um volume, que quase não é

perceptível a alguém desatento.

Ilustração 09 – Sinal de LADRÃO

Essas mudanças foram percebidas também em outras línguas de sinais. Muitos

pesquisadores como Frishberg (1976), Woodward (1975) e Klima e Bellugi (1975)

(apud QUADROS E KARNOPP, 2004, p. 33), ao analisarem a ASL concluíram que a

iconicidade pode passar por transformações na forma da constituição do sinal que

como qualquer língua natural, historicamente passam por transformações

linguísticas. Essas mudanças que uma língua sofre com o passar dos tempos pode

favorecer o desaparecimento da motivação icônica de alguns sinais como os

exemplificados acima.

A Iconicidade proporciona a conexão entre forma e significado. Por meio do canal

perceptivo, a pessoa com surdez pode apreender as formas do mundo-objeto,

apresentados por gestos que se originam diretamente da percepção para o

processamento linguístico. A iconicidade é a representação parcial dessa apreensão

perceptiva. Como exemplos citamos ainda os sinais de LIVRO e TELEFONE:

Page 88: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

87

Ilustração 10 – Sinal de LIVRO

Para sinalizar LIVRO, são utilizadas as duas mãos, representando um livro aberto e

em seguida, a MD passa sobre a palma da ME, como se estivesse folheando suas

páginas.

O sinal TELEFONE é produzido com a MD configurada em “Y”, do alfabeto manual

(CM nº. 31) com localização próximo ao ouvido.

Ilustração 11 – Sinal de TELEFONE

Como citado no item 2.3.4 desta pesquisa, os aspectos modais e locativos dos

sinais em Libras também indicam o conteúdo semântico, ou seja, conforme a

localização e o modo de realização aponta para uma significação que lhe é

intrínseco. São, por exemplo, os casos de sinais que se referem ao cognitivo ou aos

sentimentos. Os sinais produzidos na área da cabeça e nas sub-regiões, como na

têmpora ou na fronte, relacionam-se com as funções cerebrais ou cognitivas. Os

sinais referentes a sentimentos são em sua maioria produzidos na área do peito.

Page 89: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

88

Exemplificamos alguns de sinais realizados na região da cabeça:

a) PENSAR: MD na CM nº. 21, encosta o dedo indicador na têmpora.

Ilustração 12 – Sinal de PENSAR

b) FÁCIL: MD na CM nº. 34, encosta o dedo médio na testa num movimento

deslizante, afastando, em seguida a mão para frente.

Ilustração 13 – Sinal de FÁCIL

c) INTELIGENTE: com a MD configurada na CM nº. 46, o dedo indicador e médio

tocam a têmpora direita, rapidamente e se afastam para a lateral.

Page 90: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

89

Ilustração 14 – Sinal de INTELIGENTE

d) ESQUECER: nas CMs 48 e 61, a MD passa de um lado a outro, sobre a fronte,

como se estivesse apagando algo da mente.

Ilustração 15 – Sinal de ESQUECER

Apresentamos exemplos de sinais realizados na área do peito, que normalmente se

relacionam a sentimentos e sensações diversas:

a) AMIZADE: MD em CM nº. 52. Dá duas batidinhas com a lateral da mão, no

peito, próximo á área do coração.

Ilustração 16 – Sinal de AMIZADE; AMIGO

Page 91: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

90

b) ANGÚSTIA: MD na CM nº. 34, passa o dedo médio no peito, demonstrando o

sentimento por meio da expressão facial.

Ilustração 17 – Sinal de ANGÚSTIA

c) CORAÇÃO: MD configurada em CM nº. 54, encosta no peito para cima e para

baixo, duas vezes, simulando o movimento do batimento cardíaco.

Ilustração 18 – Sinal de CORAÇÃO

d) VIDA: MD com CM nº. 61, passa duas vezes sobre o peito, na área do

coração, em movimentos ascendentes.

Page 92: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

91

Ilustração 19 – Sinal de VIDA

A partir desses exemplos podemos perceber que a iconicidade não está somente

vinculada a conceitos concretos, mas também a conceitos abstratos.

Apesar da arbitrariedade se contrapor à iconicidade, existe entre essas duas

categorias um elemento comum: a convencionalidade, que é compatível tanto com

signos motivados como com signos arbitrários.

Capovilla e Raphael (2005, p. 737) apresentam um estudo em que procuram

pormenorizar a categoria Iconicidade, dando pistas da imanência do grau de

figuratividade que um determinado sinal possa ter. Como dito anteriormente, o sinal

com iconicidade profunda, chama-se iconicidade transparente. Já o sinal com

iconicidade mediana, denomina translúcido e ao sinal com pouca iconicidade dá-lhe

o nome de opaco.38

Eastman (apud CAPOVILLA; RAPHAEL, 2005) considera os sinais icônicos muito

próximo das características da pantomima e da mímica. Essa relação já foi feita por

outros estudiosos como Klima e Bellugi. Eles acreditam que com a evolução da

Língua de Sinais (especialmente a ASL), a iconicidade cederá lugar

progressivamente à arbitrariedade, diminuindo assim, da transparência à

translucência até chegar à opacidade.

38 Conforme citam Capovilla; Raphael (2005, p. 737), vários estudos experimentais analisaram a iconicidade dos sinais da ASL, como os de Bellugi & Klima (1976); Lloyd, Loeding & Doherty (1985). Orlansky & Benvillian, 1984). E na Libras (CAPOVILLA; SAZONOV, et al., 1997).

Page 93: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

92

A esse respeito, Capovilla e Raphael comentam:

Embora, aparentemente a evidência desse fenômeno ainda não tenha sido documentada em outras línguas, além da ASL, tudo indica que ele deva ser esperado uma vez que, a medida que uma Língua de Sinais se desenvolve, a formalização linguística crescente é compatível com o aumento no grau de arbitrariedade, convencionalidade e recombinatividade das unidades mínimas componentes da morfologia dos sinais (CAPOVILLA; RAPHAEL, 2005, p. 737).

Quadros e Karnopp (2004, p. 31) apresentam como um dos mitos acerca da Língua

de Sinais, a idéia de que a Língua de Sinais é uma mistura de pantomima e

gesticulação concreta, incapaz de expressar conceitos abstratos. As autoras

pontuam que sendo os sinais assim considerados, ou seja, concebidos como uma

mistura de gestos e pantomima, não teriam como característica a arbitrariedade do

signo como as palavras possuem, mas carregariam uma relação icônica ou

representacional de seus referentes, o que impediria de possuir o status linguístico.

Isso porque se entende que quanto maior o grau de iconicidade de um signo, menor

o seu grau de abstração ou esquematização.

Consideramos que essa visão se trata da concepção saussuriana de signo

linguístico, que defendia a arbitrariedade do signo para estatuir a língua oral como

língua natural. Por muito tempo a linguística ignorou a Língua de Sinais como língua

natural. Saussure defendia que a relação entre significante e significado nas línguas

orais era necessariamente arbitrária. Para este linguista, não existia nenhuma

relação de motivação entre os signos.

É compreensível esse entendimento quando se trata de um postulado em uma

época que nem se cogitava a eloquência da Língua de Sinais, muito menos sua

natureza linguística. Mas com o avançar das pesquisas, chegamos a conclusão que

a idéia saussuriana não abrange as línguas sinalizadas.

Sacks (1998, p. 87) observa que até por volta da década de 60, a Língua de Sinais

era reconhecida como uma pantomima ou como língua pictórica, ou seja, como uma

escrita de figuras no ar. As línguas de sinais então, eram vistas como uma

linguagem ideográfica, essencialmente pictórica e muito pouco simbólica que em

Page 94: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

93

comparação com as línguas verbais era considerada mais um código gestual do que

uma língua propriamente dita. Sacks cita o seguinte comentário de Miklebust (1960):

Os sistemas de linguagem ideográfica, em comparação com sistemas simbólicos verbais têm pouca precisão, sutileza e flexibilidade. Provavelmente o homem não pode atingir seu potencial pleno por meio de uma linguagem ideográfica, porquanto ela se limita aos aspectos mais concretos de sua experiência (MIKLEBUST apud SACKS, 1998, p. 88).

Vários estudos como o de Stokoe refutaram essa idéia e concluíram que a LS é

genuína no léxico e na sintaxe e com capacidade de gerar infinitas proposições e de

expressar conceitos abstratos.

Percebemos no entanto, uma dificuldade muito grande por parte de alguns

pesquisadores da Libras em aceitar a presença de sua figuratividade. Não

valorizamos somente o aspecto icônico/figurativo em detrimento da arbitrariedade da

língua. A arbitrariedade está presente, pois os sinais bem como as palavras da

Língua Portuguesa são produtos de uma convenção, incluindo os sinais icônicos,

que também se servem de convencionalidade, mesmo tendo uma relação entre o

referente e o modo de apresentá-lo. A língua continua sendo arbitrária, porque se

escolheu representar convencionalmente um e não outro protótipo icônico de certo

objeto.

Tanto as palavras da Língua Portuguesa como os sinais da Língua de Sinais

Brasileira são socialmente construídos, pois pertencem a uma comunidade

linguística. Toda modificação será oriunda da qualidade diacrônica da língua e não

caberá a nenhum indivíduo modificá-los nem na sua estrutura de significante

(vocábulo ou sinal) nem no seu significado.

A respeito do caráter icônico da LS, Xavier (2006) apresenta em sua dissertação a

contribuição de Klima e Bellugi (1979) que também reconhecem a iconicidade nas

línguas sinalizadas. De acordo com esses autores, os sinais icônicos tiveram

influência das representações miméticas ou pantomímicas, mas com uma ressalva:

as línguas de sinais não são articuladas como uma pantomima, produzidas

aparentemente sem nenhuma restrição quanto a ocupação espacial ou quanto ao

uso do corpo e das mãos. Portanto, não encontramos nenhuma dificuldade em

Page 95: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

94

considerarmos a iconicidade de alguns sinais em relação aos referentes do mundo

natural como uma característica inerente às línguas viso-gestuais-espaciais.

Os sinais de uma língua sinalizada são realizados, conforme Xavier (2006, p.13), em

um espaço mais delimitado e são produzidos essencialmente pelas mãos,

articulados com configurações de mãos, localizações e movimentos permitidos pela

língua. Não se tratam, portanto, de gestos e pantomimas desarticulados e

inventados à medida que são produzidos. Xavier cita que tal fato reforçou os estudos

de outros pesquisadores como Battison, que mostrou que a iconicidade presente

nas línguas de sinais não podia ser usada como evidência contra seu estatuto de

língua natural.

Consideramos, portanto, a figuratividade presente em alguns sinais como uma

característica única dessa língua que é dinâmica e complexa. Com essa posição não

deixamos de dar à Língua de Sinais o respeitável lugar de língua natural e que,

mesmo tendo a figuratividade presente, possui também a característica de ser

arbitrária. Abrimos espaço para um novo olhar para a Língua de Sinais: o de língua

figurativa. Esclarecemos que o termo figuratividade deriva do figurativo, apresentado

no dicionário de semiótica. Assim lemos:

O termo figurativo é empregado somente com relação a um conteúdo dado (de uma língua natural, por exemplo), quando este tem um correspondente no nível da expressão da semiótica natural (ou do mundo natural). (GREIMAS; COURTÉS 1997, p.186).

Alguns sinais em Libras são constituídos pela forma do objeto tal como eles se

apresentam no mundo natural, engendrando figuratividade. Para exemplificarmos,

apresentamos os sinais a seguir:

Page 96: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

95

Ilustração 20 – Sinal de COLHER

Ilustração 21 – Sinal de CAMA e COPO

Ilustração 22 – Sinal de ESCOVA DE CABELO E DENTAL

Outro exemplo é o sinal de MESA: as duas mãos com configuração em “B” (do

alfabeto manual), se afastam simultaneamente para as laterais e em seguida para

baixo. Criam, no espaço a frente do corpo do sinalizador, o desenho de uma mesa

retangular, começando o traçado pelo tampo e terminando com o movimento

representativo para os pés.

Ilustração 23 – Sinal de MESA

Page 97: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

96

A diacronia presente na LS provoca mudanças linguísticas que ocorrem por

questões temporais e históricas e não simplesmente por modismo. O uso através do

tempo pode proporcionar uma modificação na estrutura de algumas palavras. O que

pode ocorrer também na LS, proporcionando a variação em alguns sinais. Cito um

exemplo clássico: o sinal para a palavra PAZ. Anteriormente a sinalização era feita,

escrevendo, com a datilologia a palavra P-A-Z, no espaço a frente do corpo. Por

conta da dinamicidade da língua, esse sinal sofreu redução, sendo sinalizado

apenas a letra “P” e a letra “Z”, sem, portanto, prejudicar seu significado.

Ilustração 24 – Sinal de P-A-Z

Ainda sobre a presença da iconicidade na LS, faz-se necessário pontuarmos uma

característica imanente a todas as línguas: a não universalidade. Por isso, um sinal

considerado icônico (ou arbitrário) para a Libras, não o será em outra língua, que

terá igual sentido, mesmo que tenham aparências semelhantes. Sobre esta

questão, escrevem Quadros e Karnopp:

[...] pode-se dizer que a aparência exterior de um sinal é enganosa, já que cada língua pode abordar um aspecto visual diferente em relação, por exemplo, ao mesmo objeto, diferenciando a representação lexical de língua para língua (QUADROS; KARNOPP, 2004, p. 32).

As autoras discorrem sobre a aparência enganosa de um sinal quando se referem

às línguas de vários países. Elas citam como exemplo o sinal manual para NÃO,

considerando o mesmo icônico, mas com significado diferente na Língua de Sinais

Americana. Em Libras significa advérbio de negação e na ASL significa o advérbio

de lugar “onde”.

É importante deixar claro, que neste estudo, quando falamos da iconicidade, nos

reportamos especificamente à Língua Brasileira de Sinais. Concordamos com as

Page 98: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

97

autoras citadas que, em se tratando das línguas de sinais de outros países, um traço

dado para um sinal pode corresponder a significados totalmente diferentes ou

desconhecidos por outra comunidade linguística. O que ocorre igualmente nas

línguas oralizadas, como no caso de vocábulos do Português do Brasil e do

Português de Portugal.

Outra questão importante que queremos salientar é que a iconicidade de alguns

sinais nem sempre é reconhecida automaticamente. Como citado no item 3.1.3, p.

85 desta dissertação, Hoemann (apud QUADROS; KARNOPP, 2004, p. 33) ao

selecionar cem sinais do léxico da ASL (Língua de Sinais Americana) considerados

icônicos ou transparentes, para serem identificados por ouvintes que não conheciam

a LS, apenas 30% desses sinais foram reconhecidos conforme seus significados.

Esse resultado foi importante para clarear que um sinal constituído iconicamente não

é garantia de ser claramente decifrado por qualquer pessoa, como alguém que

desconhece a Língua de Sinais. Defendemos, porém, que o valor da iconicidade de

alguns sinais não está na facilidade, em sua decodificação imediata, mas na relação

semiótica intrínseca.

Alguns autores pesquisados pontuam que forças linguísticas e sociolinguísticas

tendem a inibir a natureza icônica dos sinais, tornando-os mais arbitrários através

dos tempos (QUADROS; KARNOPP, 2004, p. 33). Se considerarmos que a

característica do surdo de apreensão de significados do mundo circundante se faz

principalmente por meio do canal visual, a iconicidade da língua será sempre o

reflexo dessa peculiar maneira de ver e apreender as coisas do mundo. Portanto a

iconicidade parece ser um elemento constituidor genuíno de uma língua viso-

gestual-espacial.

Diante do exposto, consideramos a forma dos objetos, o movimento ao utilizá-los,

como um conjunto de significantes, que servem como construtos da representação

lexical de alguns sinais da Libras. A relação com o objeto, com as formas em geral

do mundo natural, constitui a Língua de Sinais como uma língua contextualizada

com o macrotexto que a engloba.

Page 99: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

98

O surdo observa visualmente o mundo e o apresenta por meio de uma língua

dinâmica e rica em arbitrariedade e iconicidade. É arbitrária, pois é produto de uma

convenção social. Sendo assim, a Língua de Sinais não pode ser modificada nem

aleatória, nem iconicamente, pois apresenta parcialmente em sua constituição

algumas características dos referentes do mundo natural de maneira figurativa.

Acreditamos que enquanto os surdos se manifestarem linguisticamente pela

modalidade viso-gestual-espacial, a figuratividade/iconicidade será um elemento

inerente à produção de sinais.

Page 100: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

99

4 TEXTOS E CONTEXTOS NA ESCOLA DO ENCONTRO

4.1 O ALUNO SURDO NA ESCOLA: TEXTOS E CONTEXTOS

Como locus da nossa pesquisa, escolhemos uma escola municipal da cidade de

Vitória, que se constituiu ao longo dos anos em um referencial para alunos surdos.

Antes mesmo da proposta da Secretaria de Educação de eleger algumas escolas

como referência39 para surdos, essa já se constituía como tal, devido ao grande

número de alunos com surdez matriculados, principalmente no período noturno.

Vamos nomeá-la, nesta pesquisa, de Escola do Encontro.

O prédio onde funciona a escola foi construído em 1977, como Centro Interescolar.

Passou a funcionar, a partir de 1980, como escola de 1º. Grau.

A Escola do Encontro atende alunos do 1º. ao 9º. ano do Ensino Fundamental nos

turnos: matutino e vespertino. No noturno é oferecido o programa de Educação de

Jovens e Adultos, 1º. e 2º. Segmentos (EJA). Em 2008, frequentavam no turno

matutino cinco alunos surdos, no vespertino dois e no noturno trinta alunos,

perfazendo um total de trinta e sete alunos surdos. Até o final desse mesmo ano, a

Escola do Encontro possuía mil e duzentos alunos matriculados, incluindo surdos e

ouvintes. Em 2009, o número de surdos matriculados sofreu uma pequena redução:

quatro alunos no matutino, um aluno no vespertino e vinte e quatro no noturno,

totalizando vinte e nove alunos surdos. Conforme relato de uma das pedagogas, a

redução da matrícula de alunos surdos nesse ano se justifica pelo fato de outras

escolas municipais terem se tornado referência para surdos. Houve uma época em

que a escola possuía quarenta e seis surdos matriculados só no noturno, quando

ainda era uma das poucas escolas que oferecia ao aluno com surdez um

atendimento especializado em Libras.

39 Desde 2008, a Prefeitura Municipal de Vitória busca concentrar a matrícula de alunos com surdez nas nove escolas referência. Tal ação visa possibilitar a interação entre alunos com surdez e com outros alunos e profissionais adultos com surdez, além da otimização das ações técnico-pedagógicas e administrativas necessárias à materialização do uso da Libras no universo escolar. Com essas ações, garantir o Atendimento Educacional Especializado (AEE) no contraturno, instituindo um projeto socioeducacional em tempo integral voltado para atender às necessidades educacionais especiais dos alunos com surdez (CORREIA, 2008).

Page 101: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

100

Por se localizar numa área de fácil acesso, a Escola atende uma gama diversificada

de alunos oriundos de vários bairros de Vitória. O corpo discente, em sua maioria, é

de baixo poder aquisitivo. Muitos moram em morros da cidade de Vitória, em

habitações precárias e de difícil acesso.

Procuramos dados ou anotações oficiais sobre o início do envolvimento de alunos

surdos na Escola do Encontro, mas nada constava nos arquivos da Escola e nem

nos da Secretaria de Educação. Conseguimos informações por funcionários mais

antigos e por relatos pessoais que fortaleceram nossas hipóteses de que a Escola

do Encontro se configurava efetivamente no espaço da gênese da história do surdo

na escola comum, em Vitória.

Um dos relatos, cujos trechos transcreveremos a seguir, é de Marcela40, que por

muitos anos trabalhou como professora de surdos. Era aluna recém-chegada do

curso de Pedagogia da UFES e como tinha formação no Magistério foi acolhida pela

Escola para ser uma professora-intérprete voluntária de seus amigos surdos. Ela foi

a grande incentivadora de seus quatro amigos surdos a se matricularem na Escola

do Encontro.

[...] Então, em 1999, quatro surdos resolveram se matricular. Já nesta época lidava com as reclamações deles com relação à necessidade que o mercado de trabalho estava impondo à sua escolarização. Então, fiz uma reunião com eles na igreja

41 e fiz uma palestra dizendo que precisavam

voltar a estudar e que seria legal eles estudarem à noite. Procurei a escola e conversei com a pedagoga me colocando a disposição para ajudar os professores. Ela gostou e permitiu que eu fosse para a sala de aula. Fui e participava das aulas com os meus amigos surdos, interpretando e até mesmo planejando com os professores. Na época me lembro bem dos professores de história, de geografia e ciências

A partir do início do século XXI, a Escola do Encontro tornou-se, segundo Marcela,

símbolo da resistência surda. A resistência surda é abordada por Lopes (2007, p.

50-56) como um movimento de luta e repulsão aos modelos dos saberes e à própria

ordem dos discursos oficiais a respeito da surdez e da educação de surdos. Essa

visão está estreitamente ligada à defesa da escola para surdos.

40

Todos os nomes citados nesta dissertação são pseudônimos para preservar a identidade dos sujeitos participantes. Esclareço ainda, que as proposições concernentes ao referido relato foram extraídas do depoimento escrito, cedido pela professora. 41

Referindo-se à Igreja Batista da Praia do Suá, pioneira na interpretação de cultos em Libras, cuja iniciativa de trabalho com surdos data-se de 1989.

Page 102: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

101

Marcela prontificou-se, inicialmente, a atuar como professora voluntária dos surdos e

mais tarde como professora contratada por tempo determinado, pela Prefeitura

Municipal de Vitória:

Porém, na época, não havia professores de surdos que soubessem Libras e por isso, tentei naquele ano, o contrato e comecei no ano seguinte a trabalhar como contratada. O número de surdos nesta escola de quatro alunos passou a dezessete.

Marcela diz que mesmo com muita dificuldade o trabalho com surdos foi se

estabelecendo lenta e gradativamente, ganhando força diante da comunidade surda.

Afirma que todos os projetos desenvolvidos com o aval dos professores, dos

pedagogos, eram voltados para a valorização da cultura surda, e inserção da Língua

de Sinais na escola. A professora relembra que “mesmo quando a idéia era

desmantelar o espaço para os surdos, eles iam para lá porque tinham duas coisas:

intérprete e outros surdos”.

Mas com o tempo, com a própria política burocrática do sistema, tentou-se de várias

formas, desestruturar o movimento “uma vez que haviam quarenta surdos lá e

achavam que isso não seria inclusão, pois não havia a devida „estrutura‟ para

recepcioná-los”. Por um tempo o movimento resistiu, mas sucumbiu, segundo

Marcela, ao próprio sistema quando esse mesmo desestruturou todo o trabalho,

colocando para gerir as ações dos profissionais, pessoas que não compreendiam o

trabalho com surdos, muito menos o movimento surdo. De qualquer forma, a Escola

do Encontro produziu muito nesse período, quando os surdos eram ouvidos e faziam

parte do processo de educação.

O relato de Marcela reflete o contexto histórico-político da época. Para defender a

escola para surdos, o movimento de resistência ganhou força e muitos adeptos,

tanto na área acadêmica, quanto na prática educacional, por parte de professores e

alunos com surdez. Lopes (2007) faz parte dos pesquisadores da área da surdez

que defende a escola para surdos e repudia a proposta de inclusão dos alunos

surdos em escolas comuns. Assim escreve:

Diante dos movimentos de inclusão de surdos em escolas de ouvintes, aqueles estão resistindo a serem separados de seu grupo surdo. É bem sabido o quanto os surdos mantêm-se unidos em associações de surdos, em grupos e reuniões de igreja e em escolas específicas. Dentre todos

Page 103: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

102

esses espaços, a escola parece se constituir como o locus principal e mais produtivo de articulação e resistência cultural. [...] É no espaço escolar que estão em jogo os poderosos mecanismos de atribuição e imposição de sentidos, de definição e normalização de determinadas identidades, de hegemonização de determinadas práticas culturais, de circulação dessas ou daquelas políticas de identidade (LOPES, 2007, p. 54-55).

A defesa de uma identidade própria dos surdos, de uma cultura surda e

consequentemente da não inserção do aluno surdo em escolas onde a maioria é

ouvinte se tornou, na década de 90, o cerne das discussões e debates travados na

área da educação de surdos, vertentes que ainda perduram em muitas práticas e

discursos na atualidade. Trata-se do discurso da surdez como diferença. O conceito

“diferença” traz contornos variáveis e, nessa visão, surge na tentativa de substituir

os pesados rótulos excludentes, quando se destaca o principio de normalidade. A

intenção é louvável, mas pode se tornar um gueto dentro da esfera social.

Ser surdo é não ouvir, e não ouvir torna o sujeito capaz de formular outra

perspectiva de interação com o contexto vivido por meio de outros canais, que não o

da audição. Aí surge a peculiaridade do sujeito surdo. Essa concepção, quando

aliada ao valor subjetivo de ser surdo, sem a negação da própria surdez, revela um

ser completo que interage por meio de uma língua expressiva, autêntica e complexa,

diferente “não-surdo”42 que se utiliza da audição para apreender significados do

mundo circundante. A diferença está por toda parte, em todos os espaços e se torna

emergente aprendermos a valorizá-la como traço distintivo entre as pessoas e não

como produtora de guetos sociais.

Em seu texto: “Na escola tem lugar para quem é diferente?”, Padilha (1999) propõe

uma reflexão acerca de conceitos e escolhas que os envolvidos com a educação

precisam abarcar. Seu texto apresenta-se como um reservatório de

questionamentos que leva o professor à reflexão não só de sua prática pedagógica,

mas de sua efetiva compreensão acerca do que vem a ser um contexto educacional

inclusivo. A partir do próprio título, a autora sugere outros questionamentos: quem é

o diferente? Como o aluno aprende? Como o professor ensina? Há espaço para o

aprendizado de alunos com e sem deficiência? A escola tem ciência de como

planejar e pôr em prática um ensino sistematizado, mas significante para todos os

42

Termo utilizado por Ana Regina S. Campello em sua tese (2008) para referir-se ao ouvinte.

Page 104: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

103

alunos? Assim, Padilha sintetiza a importância de indagações que fomentam a

reflexão:

Tantas perguntas...Quantas respostas? Serão tantas respostas, quantas foram as reflexões que fizermos, as observações que registrarmos, as „coragens‟ que tivermos para transformar o que parece tão bom, certo e adequado... Respostas do tamanho do nosso compromisso. Soluções do tamanho de nossa coragem. Caminhos do tamanho do nosso envolvimento com as leituras e discussões. Saídas do tamanho da nossa interação com a comunidade e os problemas dela (PADILHA, 1999, p.14).

Atualmente, com a nova política de Educação Especial da Secretaria de Educação

do Município de Vitória, a Escola do Encontro passou a ser um pólo da educação de

surdos, ou melhor, uma escola referência que os surdos podem escolher como um

dos espaços educacionais onde terão a oportunidade de aprendizagem sistemática

dos conteúdos escolares com profissionais especialistas, além de intérpretes na sala

de aula. Mesmo convivendo com alunos ouvintes numa mesma sala de aula, a

Escola do Encontro oferece atendimentos especializados em Libras, bem como

aulas de Português para surdos. Essas iniciativas incentivam a presença do surdo

na escola.

É, portanto, na Escola do Encontro, atualmente com 29 alunos surdos, que

escolhemos estudar a fala do surdo, mas especificamente, o discurso figurativo em

Libras. E não poderíamos escolher outra escola, já que na Escola do Encontro os

surdos jovens e adultos se dirigem, a cada dia, para mais um encontro entre pares.

Se esse encontro é destinado a novas aprendizagens, não questionaremos. Mas,

com certeza, é um espaço constituidor de encontros ou, quem sabe, de

desencontros.

Inicialmente, propusemo-nos a trilhar cinco caminhos investigativos de observação e

análise do cotidiano escolar: 1) a observação da entrada dos alunos surdos na

Escola do Encontro; 2) a observação do convívio entre ouvintes e outros alunos

surdos no recreio; 3) o encontro dos alunos surdos com outros sujeitos; 4) a

observação do surdo na sala de aula comum e 5) a observação do aluno surdo na

sala de atendimento especializado. E foi nesse último espaço que se constituiu o

Page 105: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

104

grupo focal, participante das propostas desta pesquisa, juntamente com o instrutor e

os professores bilíngues43.

4.2 ENCONTROS E DES-ENCONTROS NA ENTRADA

Como primeira investigação empírica, optamos por chegarmos à escola para

observarmos o cotidiano, mesmo sabendo que o discurso surdo estaria latente e,

portanto, passível de ser analisado. Por ser no período noturno, a grande maioria

dos alunos é adulta, com alguns poucos adolescentes. Passamos três dias somente

observando a entrada dos alunos no espaço da Escola do Encontro. Muitos eram

trabalhadores e frequentemente chegavam atrasados. Mas todos que chegavam,

dirigiam-se imediatamente para as suas respectivas salas, principalmente os

ouvintes. Quando isso não acontecia, lá estava o coordenador para “lembrá-los” da

sala de aula.

Num dos dias de observação, ocorreu um fato curioso, senão intrigante, que

narraremos a seguir:

Chegamos à Escola do Encontro e procuramos acomodação em um dos bancos de

alvenaria, para podermos observar e anotarmos em nossa agenda fatos

interessantes e corriqueiros envolvendo alunos surdos. Deparamo-nos com a

seguinte cena:

No pátio interno da escola, que na verdade se configura num grande corredor de

circulação, um grupo de alunos surdos conversa animadamente. Chegam um pouco

atrasados como alguns alunos ouvintes, mas em vez de irem logo para a sala de

aula, se juntam com outros surdos. Os alunos surdos parecem não ter pressa para

se dirigirem à sala. Enquanto o coordenador de turno chama a atenção dos ouvintes

perambulando pelo pátio, mandando-os para a sala de aula, os alunos surdos

conversam sem serem repreendidos. Qualquer aluno ouvinte que atravessava o

pátio era chamado à atenção para retornar imediatamente para a sala de aula.

43 Neste ano, 2009, a Escola do Encontro conta com três professores bilíngues, cinco intérpretes e dois instrutores surdos, para atender aos três turnos.

Page 106: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

105

Pudemos perceber a rotina da escola e o rigor quanto a utilização do corredor em

horário de aula, em especial, pelos alunos ouvintes. Porém, o grupo de surdos, com

sua fala silenciosa, mas não menos eloquente, parecia invisível aos olhos da

coordenação.

Já havia se passado vinte minutos quando uma professora passou por eles e fala

qualquer coisa mandando-os para a sala de aula. Eles, em Língua de Sinais, falam

que estão esperando uma pessoa. A professora, sem muito argumento, sai

deixando-os ali, conversando.

Outros surdos vão chegando à escola, e como imã vão se ligando à roda de

conversa, sem irem para sala de aula. A professora passa novamente por eles e,

talvez incomodada com a nossa presença e com o número de alunos surdos fora da

sala de aula, mostra-se indignada com a situação e faz o seguinte comentário,

olhando para os lados: Cadê a professora de surdos? Ela devia estar com eles. Eles

ficam aí, largados, coitados! E logo em seguida pergunta aos alunos, com gestos

largos e confusos, por que ainda não foram pra sala de aula. Então ela entende que

eles estão aguardando um determinado professor e aí explica, que o tal professor

não veio à escola por estar doente. Pela leitura labial, eles compreendem o recado e

aos poucos o grupo vai se dissolvendo, ficando apenas dois surdos que teimam

mais um pouco em ir pra sala de aula e tempos depois seguem o mesmo rumo dos

colegas.

Consideramos que o ocorrido talvez não seja uma questão corriqueira, mas

queremos ressaltá-la, não com o intuito de aviltar a imagem da escola e muito

menos dos profissionais envolvidos, mas para nos levar à reflexão sobre o evento.

Algumas questões nos inquietaram quanto ao episódio narrado: A primeira é em

relação ao fato da “permissão” velada concedida aos surdos de não só ficarem fora

da sala de aula, mas também de ficarem no pátio conversando, batendo papo. A

outra se refere à falta de comunicação e interação entre alunos surdos e professores

ouvintes. Como não houve entendimento entre os alunos e a professora logo no

primeiro contato, a situação se prolongou e por falta de informação, os surdos

continuaram aguardando o professor de Educação Física que não iria à Escola

naquele dia, por motivo de doença.

Page 107: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

106

O sujeito surdo culturalmente constituído, que se expressa por meio de sua própria

língua, a Língua de Sinais, num espaço social marcado pela oralidade, é visto pela

maioria de nós ouvintes, como estrangeiro. Um estrangeiro, por não ser falante da

língua do nosso país, ou seja, por trazer consigo marcas culturais que se

apresentam de forma singular na maneira de ver o mundo à sua volta e na

modalidade de se comunicar por uma língua viso-gestual. Ora, o modo de ser-viver

do sujeito surdo torna-se objeto de observação e avaliação do grupo Assimilador,

que no entender de Landowski (2002), é o grupo dominante e nesse caso, o grupo

dos ouvintes, ora esse sujeito repleto de estrangeirices se torna invisível e

negligenciado. Quando mencionamos esta questão, não nos referimos aqui à

ideologia da resistência surda, mas à evidência de situações oriundas do

relacionamento que envolve um grupo que se constitui minoria dentro de um

contexto em que outro grupo, por ter maior número de participantes, torna-se a

maioria.

O tratamento desigual entre alunos ouvintes e surdos no episódio narrado reforça

conceitos teorizados por Landowski em relação ao sentido da presença do Outro,

que resulta sempre de uma negociação entre sujeitos. Ao reconhecer o outro como

um des-semelhante não articulamos positivamente a relação entre identidade e

diferença, mas negamos a alteridade e a possibilidade do Outro fazer-se um no meio

de nós. O surdo como dessemelhante é assim considerado quando temos

dificuldades em admiti-lo como um de nós. Como se o nosso discurso proclamasse:

“tal como se apresenta, você não tem lugar entre nós” (LANDOWSKI, 2002, p. 10).

O seu modo peculiar de falar, o jeito específico de interpretar o mundo à sua volta

são para o grupo dominante/assimilador, nesse caso os ouvintes e falantes da

língua oral, estrangeirices, às vezes pitorescas outras vezes encantadoras. Mas, por

força da imperiosidade da inclusão de todos em todos os espaços nos forçamos a

elaborar pressupostos que muitas vezes estão na área da idealização e não da

racionalização. Reescrevo como exemplo, as palavras de Landowski a respeito das

boas-vindas do povo francês aos estrangeiros:

Sejam bem-vindos todos, de onde quer que tenham vindo desde que todos, por mais longínquo que seja o lugar de onde vieram, façam o mais rápido possível um esforço para tornarem-se como nós! (LANDOWSKI, 2002, p. 5).

Page 108: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

107

Ao receber o Outro em nosso “território”, nos propomos ajudá-lo a se livrar daquilo

que faz com que ele continue sendo o Outro. Enquanto ele for o Outro ele será

estrangeiro e, por isso, não participante de uma mesma cultura e das mesmas

ideologias. Mas na verdade, trata-se de um discurso de exclusão que determina a

sorte reservada ao Outro, ao estrangeiro, que para ser aceito/assimilado precisa se

desprender de sua cultura, de seu estrangeirismo, ou seja, o Outro passa a ser

reduzido ao Mesmo, para que um dia ele possa se integrar plenamente no ambiente

que o acolheu. É o caso de ingestão do Mesmo e excreção do Outro. Seria, então, a

escola um destes territórios visitados pelo sujeito surdo? Seria a sala de aula um

país estrangeiro que fomenta em seu discurso de exclusão a negação do

Outro/Surdo enquanto tal?

A aceitação do Outro como diferente abrem-lhe opções, antes negadas, de se fazer

presente num território, supostamente “nosso”. Landowski deixa claro essa

concepção no trecho abaixo:

Ora, começar a admitir que o fato de o Outro ser “diferente” não significa, necessariamente, que o seja no absoluto, mas que sua diferença é função do ponto de vista que se adota, é já criar a possibilidade de outros modos de relação com as figuras singulares que o encarnarão (LANDOWSKI, 2002, p.14).

Entendemos com isso que o Outro não é mais simples representante de um lugar

qualquer, mas no dizer de Landowski (2002, p.15), um possível “integrante e

elemento constitutivo do Nós, sem ter com isso que perder sua própria identidade”.

O sujeito, segundo Landowski (2002), para se constituir como tal, constrói-se pela

diferença que há entre ele e o outro. Exemplificando: eu me defino não só pela

maneira reflexiva de pensar sobre mim, mas também pela da imagem que o outro

me envia de mim mesma. Há, portanto, uma diferença que me separa do outro. A

identidade passa pela intermediação de uma alteridade a ser construída.

4.3 ENCONTROS NO RECREIO

Minha segunda observação aconteceu nos momentos de intervalos. A grande

maioria dos alunos surdos se dirigia para o refeitório para saborear o prato do dia,

Page 109: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

108

enquanto outros, iam comprar lanche na cantina. Eles utilizavam gestos de

apontamento para indicar o item que desejavam comprar. Mesmo desconhecendo a

Língua de Sinais, a vendedora esforçava-se para compreender o que os alunos

surdos queriam comprar. No relato, a vendedora disse que já havia se acostumado

com a maneira dos surdos falarem e até entendia o desejo de compra deles.

Percebi que a hora do Recreio é o momento de mais um importante encontro: os

surdos sentam-se juntos, ao redor de uma grande mesa que tacitamente parece

reservada a eles. E pouco a pouco as cadeiras em volta da mesa vão sendo

tomadas por alunos surdos que, após saírem da fila da merenda, não param de

conversar um com o outro em sua língua. Os assuntos são variados: desde um jogo

de futebol até uma fofoca sobre o início da aula. Temas triviais tornam-se

estimuladores de uma eloquente discussão.

Conversando com um dos professores bilíngues, foi esclarecido que os surdos tem

necessidade de estabelecer uma rotina e uma “demarcação de território” para que

outros se cheguem e se sintam à vontade. É comum todos se sentarem para

colocarem a conversa em dia. Surdos fluentes na Língua de Sinais ensinam outros,

que por motivos alheios à sua vontade, não se apropriaram dela como língua de

comunicação e interação. Não aprenderam a Língua de Sinais numa fase anterior

nem conviveram com outros surdos no período da infância. Mas na espontaneidade

do momento aperfeiçoam seus conhecimentos na própria língua.

Depois, ao saírem do refeitório, formam grandes rodas de conversas, no pátio.

Devido o grande número de alunos surdos, é formada mais de uma roda. Todos

participam da conversa. Brincam, riem e fazem gozações com os colegas. Apesar

dos surdos se agruparem no recreio, percebemos amizades entre surdos e ouvintes.

Observamos que, em alguns momentos, alguns alunos ouvintes buscavam interagir

com os surdos, mas não ao ponto de conversarem em LS. Na roda de conversa,

porém, a presença maciça de surdos é constante, e os ouvintes – por não serem

fluentes em Língua de Sinais - não chegam a participar dessas rodas.

A inclusão de alunos surdos em escolas de ouvintes gera polêmica e ainda são

travados grandes debates sobre a questão. De um lado, a defesa da escola própria

Page 110: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

109

para surdos, alicerçada no discurso das diferenças que, em nome da especificidade

da Língua de Sinais, legitima as idéias excludentes e segregacionistas; de outro, a

defesa da escola comum como a melhor escola para o surdo, pois parte do princípio

que ele também tem direito de estar lá, mas com perspectiva de aprendizagem

tendo a LS como língua de instrução. E será neste espaço, numa escola inclusiva,

que terá a oportunidade de conviver com outras tantas diferenças.

Para ilustrar a importância da convivência com a diversidade, segue o depoimento

de Campello, pesquisadora surda, sobre o impacto que lhe causou ao tomar ciência

da diversidade humana, em especial das diferenças pela deficiência, ao participar

em 1981, do Congresso Brasileiro de Deficientes, em Recife:

Até aquele momento, eu tinha apenas breve contato com as pessoas portadoras de deficiência nos movimentos políticos da cidade do Rio de Janeiro, mas em Recife, com os meus próprios olhos, vi milhares de pessoas portadoras de deficiência, um grande número delas. Elas estavam reunidas numa mesa redonda, em grupos pequenos, ou em grupos grandes, elaborando suas propostas e reivindicações e discutindo sobre os itens propostos e suas alterações. No mundo dos Surdos, onde eu convivia, nunca tinha visto ou pensado que existissem milhares de pessoas portadoras de deficiência. Só via sujeitos Surdos e convivia com os sujeitos Surdos nas escolas, nas festas, nos jogos esportivos das associações de Surdos onde sou militante há 30 anos, mas o encontro me fez refletir que a diferença se encontra em muitas outras esferas (CAMPELLO, 2008, p. 47).

Conforme relato da pesquisadora, ter participado de um congresso com pessoas

com outras deficiências lhe possibilitou refletir sobre a diversidade humana e sobre a

amplitude da diferença. O papel da escola inclusiva abrange, igualmente, a

perspectiva de ampliar a interação entre pessoas com e sem deficiência.

Entendemos que a escola se torna um lócus de eloquentes discussões e um celeiro

de oportunidades para uma efetiva proposta inclusiva que tenha significado para

aqueles que dela participam. Só pelo fato de frequentarem um mesmo espaço, a

experiência com a diversidade se torna enriquecedora para todos os alunos, sejam

eles deficientes físicos, cegos, surdos ou ouvintes.

Page 111: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

110

4.4 ENCONTRO COM OUTROS SUJEITOS

O encontro com outros sujeitos foi observado em alguns momentos específicos

como na aula de Educação Física, na compra de lanche na cantina e mediante os

dados das entrevistas. Na aula de Educação Física, alunos surdos e ouvintes

participavam intensamente das atividades. Na quadra, a professora especialista

ministrava sua aula com independência, apesar da presença do intérprete. Com

tranquilidade ela explicava as atividades físicas e a utilização dos materiais de apoio

para a realização das atividades. Apesar de não se expressar em Libras, a

professora se fazia entender, utilizando a expressão corporal e a demonstração.

Cada exercício ou jogo ela exemplificava o procedimento. Frequentemente o aluno

surdo se espelhava nos colegas ouvintes para a realização das atividades. Havia

também, a preocupação dos alunos ouvintes em alertar os colegas surdos, quando

faziam algum movimento errado, na hora dos exercícios físicos ou simplesmente

chamavam a atenção dos colegas para que eles observassem como a professora

estava fazendo a atividade.

Os jogos de competição estimulavam a participação de todos, surdos e ouvintes. Era

visível o entusiasmo dos alunos. Numa dessas atividades competitivas, foi solicitado

a formação de duas equipes com a tarefa de realizar, num menor tempo, o percurso

sugerido pela professora. A formação das equipes era feita pelos próprios alunos

que de maneira espontânea, iam se juntando, uns mudando de fila para ficarem

mais próximos aos seus pares. Observamos que os alunos surdos ficavam todos

numa mesma fila. A professora não interferia na formação das equipes. O espírito

competitivo tomava conta e animadamente procuravam corresponder ao desafio

proposto.

Os dados coletados nas entrevistas (fechadas e abertas) serviram como um “raio X”

da interação dos envolvidos com a educação e os sujeitos surdos. Quando foi feita a

pergunta: “o que a Escola do Encontro tem de específico que atraiu os alunos

surdos?”, dos doze entrevistados, sete atribuíram à amizade entre os surdos como

elemento de atração à escola, ou seja, quase sessenta por cento dos entrevistados

escolheram essa resposta. Os restantes atribuíram à metodologia e à localização da

escola. A amizade entre os surdos, segundo a maioria dos pesquisados, fortalecia o

Page 112: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

111

empenho de continuarem a estudar e refletia o desejo em frequentarem uma escola

comum com outros surdos e não-surdos. Quando questionado sobre a possibilidade

de estudar numa escola só pra surdos, um aluno surdo mostrou repúdio à idéia,

relembrando uma fase de experiências não muito agradável, em que estudou numa

dessas escolas, que mesmo sendo só pra surdos, não possuía uma metodologia

que valorizasse a especificidade da Língua de Sinais, pois ainda se embasava na

visão oralista de ensino, com a valorização da leitura labial, do Português sinalizado,

em detrimento da fluência em Libras.

Percebemos nas entrevistas, que os profissionais da escola, ou seja, professores,

pedagogos, coordenadores, bibliotecária e demais empregados, não sabiam se

comunicar em Libras. Muitos desconheciam os sinais básicos, dificultando uma

interação com os alunos surdos.

Para minimizar o distanciamento entre surdos e ouvintes, uma das pedagogas nos

informou sobre um projeto implantado na escola de oferecer cursos de Libras para

os interessados da comunidade escolar, abrangendo família e funcionários da

escola. Ela disse que por causa da demora da contratação dos instrutores e

professores bilíngues, no ano de 2009, a efetivação do projeto ficou prejudicada.

Pretende-se retomá-lo no segundo semestre. O curso básico para alunos ouvintes é

oferecido uma vez por semana, em aulas de 30 minutos, para cada turma, nos três

turnos. O objetivo do projeto é promover o uso e a difusão da Língua de Sinais no

contexto escolar.

Os únicos profissionais fluentes na Língua de Sinais na Escola do Encontro eram os

professores bilíngues e os intérpretes. Dentre os demais entrevistados, somente o

coordenador afirmou que sua comunicação com os alunos surdos era difícil, por não

entender a Libras. Um fato interessante é que mesmo não sabendo se comunicar

em Libras, a maioria das pessoas envolvidas com a educação e alguns alunos

ouvintes, afirmaram ter afinidades com os alunos surdos e apontaram como

vantajosa, tanto para alunos surdos e não-surdos, a questão de estudarem numa

mesma escola regular comum.

Page 113: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

112

A escola pesquisada traz no bojo de sua proposta político-pedagógica o desejo de

arraigar-se como uma verdadeira Escola do Encontro. Os des-encontros sempre

ocorrerão, são quase inevitáveis. Mas vemos, no desejo de acertar dos profissionais

envolvidos, uma perspectiva de uma escola em que a diversidade será

simplesmente um elemento propulsor de uma prática educacional de qualidade para

todos. Se isso ainda não é fato, revela-se, certamente, uma grande aspiração.

4.5 ENCONTROS NA SALA DE AULA COMUM

Partimos para a quarta trilha de observação: a sala de aula comum. Foram poucos

encontros na sala de aula comum, pois, nem sempre conseguíamos agendar nossa

participação. Dependíamos do aval de alguns professores que, a nosso ver, se

sentiam inibidos e, às vezes, constrangidos com a nossa presença. Percebemos

inicialmente que a presença da pesquisadora causava, igualmente, nos alunos,

estranheza e inibição. Mas aos poucos, todos foram se acostumando com a nossa

presença.

Nesta sala, os surdos sentavam-se próximos a outros surdos, preferencialmente nos

primeiros lugares, proporcionando o encontro com seus pares. Anotavam tudo que

era escrito no quadro. A presença do intérprete favorecia a explicação e o

entendimento de conceitos. Alguns professores, por não conhecerem a Libras,

tinham dificuldades em se relacionarem com os alunos surdos. Outros, como o caso

de uma professora alfabetizadora, mesmo sem a fluência em Língua de Sinais,

procurava se fazer entender e averiguar se o que foi dito foi compreendido por

todos. Os alunos surdos tinham liberdade em levantar a mão para dissolverem suas

dúvidas. Os alunos ouvintes frequentemente complementavam alguma informação

ou procuravam ajudar num entendimento de alguma questão: era o momento da

empatia e do encontro com a diversidade.

Temos consciência de que uma proposta inclusiva para surdos dentro de uma sala

de aula com alunos não-surdos requer metodologias diferenciadas, e estamos longe

do ideal almejado. Mas é gratificante perceber profissionais que desconhecem a

Libras, buscarem preencher de alguma forma as pequenas lacunas do

Page 114: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

113

conhecimento acadêmico do surdo. O fato de estarem juntos, surdos e não-surdos,

num mesmo espaço, provoca situações que podem fomentar uma ação-reflexão dos

profissionais envolvidos com a educação, tendo a diversidade como propulsora

dessa reflexão.

Conversando com a professora regente, pudemos notar a sua angústia diante da

dificuldade em aprender Libras. Ela nos conta que o interesse pela convivência com

os alunos surdos a estimula às práticas comunicativas diversas, até mesmo pela

linguagem corporal, do olhar e da leitura labial.

Percebemos, na sala de aula, a falta de materiais didáticos visuais como recursos de

ensino-aprendizagem. Sem os recursos visuais, o intérprete se valia, em alguns

momentos, de traçar esquemas explicativos no quadro, paralelamente ao que o

professor ensinava. A importância da imagem, da visualidade para o surdo,

explanada no capítulo anterior, é muitas vezes negligenciada, principalmente, como

um fértil recurso de apreensão de significados.

Como a finalidade era essencialmente observarmos o aluno surdo em seu processo

discursivo para verificarmos a presença da figuratividade em sua língua,

percebemos que na sala de aula comum o discurso em Libras não era tão eloquente

e, portanto, não seria o melhor espaço de concretização da análise desse discurso.

Seguimos, então, para a sala do Atendimento Educacional Especializado.

4.6 ENCONTROS NA SALA DO ATENDIMENTO EDUCACIONAL ESPECIALIZADO (AEE)

Na sala do AEE, o aluno surdo participa de projetos educacionais que estimulam sua

aprendizagem, levando em consideração a especificidade da Língua de Sinais e a

peculiaridade do sujeito surdo. É o momento de grandes encontros! Antes de

relatarmos, porém, as experiências vivenciadas no AEE, achamos pertinente

situarmos o leitor a respeito do que vem a ser o Atendimento Educacional

Especializado conforme entendimento do Ministério da Educação. Apresentamos, no

Page 115: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

114

tópico seguinte, resumidamente, a proposta bilíngue das escolas referências da

Prefeitura Municipal de Vitória.

4.6.1 Atendimento Educacional Especializado

O Atendimento Educacional Especializado, o AEE, é um serviço educacional que faz

parte da política de educação inclusiva desenvolvida pelo Ministério de Educação. É

oferecido em salas multifuncionais, normalmente em turno oposto44 ao do ensino

regular em classe comum, aos alunos que precisam de suplementação ou

complementação no decorrer do processo de aprendizagem. O Documento45

“Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva”,

assim define as atividades do AEE:

O atendimento educacional especializado identifica, elabora e organiza recursos pedagógicos e de acessibilidade que eliminem as barreiras para a plena participação dos alunos, considerando as suas necessidades específicas. As atividades desenvolvidas no atendimento educacional especializado diferenciam-se daquelas realizadas na sala de aula comum, não sendo substitutivas à escolarização. Esse atendimento complementa e/ou suplementa a formação dos alunos com vistas à autonomia e independência na escola e fora dela. O atendimento educacional especializado disponibiliza programas de enriquecimento curricular, o ensino de linguagens e códigos específicos de comunicação e sinalização, ajudas técnicas e tecnologia assistiva, dentre outros. Ao longo de todo processo de escolarização, esse atendimento deve estar articulado com a proposta pedagógica do ensino comum (BRASIL, 2008, p.16).

A proposta do AEE para alunos com surdez, elaborado por Mirlene F. M. Damázio,

(2007) integra o Projeto de formação continuada de professores das salas

multifuncionais dos municípios-pólo do Programa Educação Inclusiva: Direito à

Diversidade da Secretaria de Educação Especial e de Educação à Distancia do

MEC. O projeto traz, em seu bojo, uma nova perspectiva de trabalho educativo com

alunos com surdez: a possibilidade de aprendizagem efetiva nas turmas comuns do

ensino regular, tendo a retaguarda do Atendimento Educacional Especializado –

AEE.

44

De acordo com o Projeto Bilíngue da SEME (CORREIA, 2008), o “Atendimento Educacional” especializado é realizado, preferencialmente no contraturno. No noturno o AEE pode ser oferecido no mesmo turno. 45

Documento elaborado pelo Grupo de Trabalho nomeado pela Portaria nº 555/2007, prorrogada pela Portaria nº 948/2007, entregue ao Ministro da Educação em 07 de janeiro de 2008.

Page 116: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

115

Para favorecer a efetivação de um ensino e aprendizagem significativos para o aluno

surdo, são necessárias ações educacionais que estimulem o desenvolvimento

cognitivo das pessoas com surdez. Por muito tempo se atribuiu unicamente aos

surdos, a incapacidade de ler e escrever fluentemente ou de apreender conceitos

mais complexos. Mas Damázio nos alerta sobre a falácia da dificuldade do surdo em

aprender. Na verdade, precisamos compreender a maneira como o surdo aprende,

em vez de nos preocuparmos tanto em como ensiná-lo. Refletindo sobre essas

questões, Damázio escreve:

As práticas pedagógicas constituem o maior problema na escolarização das pessoas com surdez. Torna-se urgente, repensar essas práticas para que os alunos com surdez, não acreditem que suas dificuldades para o domínio da leitura e da escrita são advindas dos limites que a surdez lhes impõe, mas principalmente, pelas metodologias adotadas para ensiná-los (DAMÁZIO, 2008, p. 21)

A proposta do AEE, segundo Damázio, contempla três momentos distintos e

importantes na aprendizagem do aluno com surdez: o ensino em Libras, o ensino de

Libras e o ensino em Língua Portuguesa.

O ensino em Libras é oferecido preferencialmente por um instrutor ou professor

surdo. Neste momento são explanados e explicados os diferentes conteúdos

curriculares utilizando a Língua de Sinais.

O ensino de Libras é oferecido preferencialmente por professor surdo. É o momento

de se oferecer ao aluno com surdez, o conhecimento e a aquisição da língua. A

preferência pelo professor surdo é devido à vantagem que há em aprender uma

língua com um nativo. Mas nada impede que haja a presença de professores

ouvintes fluentes na língua, mesmo porque, atualmente, não há grande quantitativo

de professores surdos para atender à demanda das escolas. No momento do ensino

da Libras é oportunizado ao aluno com surdez aprender termos técnicos ou

científicos, proporcionando o enriquecimento do léxico em Libras.

Outro momento do AEE destina-se ao ensino da Língua Portuguesa, ministrado por

um profissional da área. Nessa aula, a ênfase é no ensino do Português escrito e

suas regras gramaticais. É o ensino do Português como segunda língua, já que a

Page 117: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

116

Libras é reconhecida como a primeira língua do surdo brasileiro. É, portanto a

prerrogativa de uma escola bilíngue, conforme o § 1º, Art. 22, do Decreto 5.626, de

22 de dezembro de 2005, oferecer a LIBRAS e a modalidade escrita da Língua

Portuguesa como línguas de instrução utilizadas no desenvolvimento de todo

processo da escolarização dos alunos com surdez.

4.6.2 Educação Bilíngue nas escolas municipais de Vitória

A Prefeitura Municipal de Vitória mobilizou-se para reestruturar a política pública

para a educação dos alunos com surdez matriculados em suas unidades de ensino,

da Educação Infantil ao Ensino Fundamental. Em 2008 apresentou o documento

“Educação Bilíngue: ressignificando o processo socioeducacional dos alunos com

surdez, no Sistema Municipal de Ensino de Vitória, por meio do ensino, uso e

difusão da LIBRAS” (CORREIA, 2008). O documento instituiu a implantação do

projeto bilíngue em nove escolas referência, sendo sete do Ensino Fundamental e

duas escolas de Educação Infantil, visando atender aos pressupostos inclusivos e às

necessidades educacionais dos alunos surdos. O documento salienta que essas

escolas referências são escolas de ensino comum, mas que apresentam uma

proposta diferenciada para a escolaridade dos alunos com surdez. Estão localizadas

estrategicamente para atender a demanda dos alunos surdos. Para justificar tal

ação, assim prediz o documento:

A proposta se justifica visto a necessidade de providências técnico/administrativas e organizacionais das escolas, que possibilitem a interação entre alunos com surdez e entre os referidos alunos e adultos com surdez (CORREIA, 2008, p. 6).

Para atender à nova proposta de ação com alunos com surdez, fez-se necessária a

criação de espaços-tempo escolares e a atuação de outros profissionais como:

Professor ou Instrutor de Libras; Tradutor e intérprete de LIBRAS-Língua-

Portuguesa-LIBRAS; Professor para o ensino da Língua Portuguesa e Professor

regente de classe com conhecimento acerca da singularidade linguística dos alunos

com surdez.

Page 118: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

117

A proposta educacional para alunos com surdez nas escolas referências, da Rede

Municipal de Vitória, está embasada nas proposições do MEC, especificamente do

AEE, conforme descrito no material do Programa de Formação Continuada a

Distância de professoras de salas multifuncionais, relatado no tópico anterior, qual

seja: do Ensino de LIBRAS, do Ensino em LIBRAS e do Ensino da Língua

Portuguesa escrita, resguardando a opção da família ou do próprio aluno pela

modalidade oral da Língua Portuguesa.

O documento, assim, sistematiza sua proposta de Educação Bilíngue:

A proposta de Educação Bilíngue do Sistema Municipal de Ensino de Vitória, fundamentada na filosofia da inclusão, incorpora a LIBRAS e a modalidade escrita da Língua Portuguesa como línguas de instrução do aluno com surdez, no universo de sete Unidades de Ensino Fundamental e em duas Unidades de Educação Infantil [...] para atuarem como escolas referências no processo de escolarização dos referidos alunos, respeitando a identidade surda que se manifesta mediante a coletividade que se constitui a partir da convivência entre as pessoas com surdez (CORREIA, 2008, p. 7).

Reiteramos que a Escola do Encontro é uma dessas escolas referência.

4.6.3 Experiências vivenciadas na sala do AEE

Escolhemos a sala de aula do AEE como o último caminho de investigação e

observação do cotidiano escolar. Neste espaço as conversas “rolavam soltas”, sem

nenhum acanhamento. Os alunos participavam e questionavam junto aos

professores quando não compreendiam um determinado assunto. A Libras era

usada como língua de instrução e comunicação. Observamos que as aulas eram

ministradas por professores bilíngues (Português-Libras) e por instrutor ou professor

surdo46. Mesmo nas aulas ministradas pelo professor surdo não percebemos o uso

de materiais visuais. Tudo era explicado na lousa.

No primeiro dia de observação da turma, a professora bilíngue propôs a discussão

sobre o tema “diversidade humana”. Para incentivar a narrativa dos alunos e a

46

Os intérpretes só atuavam na sala de aula comum e em outros momentos que necessitavam de interpretações.

Page 119: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

118

compreensão de novos conceitos, a temática escolhida teve como embasamento o

texto intitulado: “Quem somos nós?”47, que foi impresso e distribuído para cada

aluno. O texto falava da diversidade humana, quanto à habitação, modos de viver e

quanto à fisionomia. Em um dos parágrafos, discorrendo sobre a cor de olhos e

cabelos, assim dizia o texto:

Nossos olhos e cabelo também são de cores diferentes. Podemos ter olhos azuis, castanhos, cinzentos ou verdes. Nosso cabelo pode ser louro ou castanho, ruivo ou preto. Pode ser liso ou encaracolado [...] (CAVANAH; MOORE; WEIB, 1995, p. 6-7).

Quando a professora começou a explicar o significado das palavras desconhecidas,

uma aluna levantou a mão e perguntou em Libras o que significava cabelo horrível?

Inicialmente a professora não entendeu o motivo da pergunta, até que percebeu que

se tratava da expressão “ruivo” que pela leitura labial a aluna surda havia entendido

“horrível”. Essa é uma questão muito importante quando pensamos na educação de

surdos. Quantas palavras “soltas no ar” são entendidas erroneamente pelos alunos

surdos treinados em leitura labial E como é importante o estabelecimento da sala de

aula como espaço de aprendizagem onde eles podem ser ouvidos em suas dúvidas

e inquietações!

Mantoan, em suas reflexões sobre o direito de cada um ser, sendo diferente na

escola, escreve:

As diferenças culturais, sociais, étnicas, religiosas, de gênero, enfim, a diversidade humana está sendo cada vez mais desvelada e destacada, e é condição imprescindível para entender como aprendemos e como entendemos o mundo e a nós mesmos (MANTOAN, 2004.p. 37).

Sendo assim, a escola não pode continuar ignorando, anulando ou marginalizando

os modos diferentes de aprendizado de seus alunos. E no dizer de Mantoan, a

escola deve compreender que aprender implica em saber expressar de diferentes

maneiras o que sabemos e em representar o mundo a partir de nossas origens,

valores e sentimentos.

47

Extraído da enciclopédia “O mundo da criança” – Gente de todo o mundo. (CAVANAH; MOORE; WEIB, 1995, p. 6-7). Vol. 1.

Page 120: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

119

Essa sala, de 10 alunos surdos, constituiu-se então, em nosso Grupo Focal. Os

sujeitos desta pesquisa são, na sua maioria, surdos que perderam a audição antes

da aquisição da fala (pré-linguísticos) ou com surdez congênita.

Os professores bilíngues aceitaram participar da nossa pesquisa sendo o elo entre a

pesquisadora e os alunos. Quando foi socializado o motivo da nossa presença na

escola, e o objetivo da pesquisa, todos os alunos compreenderam e se envolveram

com a proposta. Houve receptividade por parte de todos em participar ativamente

das atividades.

Uma das propostas de trabalho do professores bilíngues para o aprendizado da

Língua Portuguesa e da Libras era oferecer momentos de imersão nessas línguas.

Um deles nos falou dos encontros de imersão na Libras. Tratava-se de momentos

em que os alunos surdos aprendiam Libras em Libras. Era o tempo destinado ao

exercício e aprendizagem da Libras, pois havia muitos alunos surdos com pouca

fluência na Língua de Sinais, com a linguagem permeada de sinais domésticos.

O espaço escolar proporciona, dentre outras possibilidades, o encontro entre

sujeitos surdos e sua própria língua, e essa convergência instiga novas propostas de

conhecimento e interação. Foi numa dessas aulas que propusemos ao professor

bilíngue a roda de conversa em torno de uma temática. Sugerimos um trabalho em

conjunto, tendo como objeto de discussão o livro com texto imagético (ou visual)

intitulado “Gato de Papel” (RENNÓ, 1997).

O livro narra a história de um gato que, cansado de ficar preso a uma folha de papel,

se rasga e num salto sai em busca de novas experiências. Seu primeiro contato no

mundo real foi com outro gato, mas que curiosamente causa estranhamento tanto

para ele como para o gato real. Apesar de serem ambos da mesma espécie,

possuíam características diferentes que causaram, à primeira vista, uma ação de

distanciamento. Cada um foge em direções opostas. Na rua, o gato de papel

vivencia momentos perigosos, em que é pisoteado pelos transeuntes e quase

atropelado pelo intenso tráfego. Depois de ser pisoteado, amassado, tratado com

indiferença, abandonado e varrido para dentro de um bueiro que deságua no mar, é

salvo por um pescador, que o recebe em seu barco com as regalias de um gato de

Page 121: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

120

verdade. Assim, encontra aconchego ao lado do solitário pescador, e por causa do

tratamento recebido, comporta-se como um gato de verdade, sentindo fome, sono e

frio, ou seja, sensível, mesmo não sendo de carne e osso como os demais. O gato

passa a morar com o pescador e recebe uma aconchegante caminha para dormir.

O envolvimento dos alunos surdos com a proposta de leitura da imagem visual do

livro citado e o entendimento do contexto da história produziram um rico discurso

que proporcionou a análise descritiva da figuratividade do discurso visual da pessoa

com surdez pela teoria semiótica.

5 DESCRIÇÃO DA FIGURATIVIDADE / ICONICIDADE DO DISCURSO DO SURDO

PELO VIÉS SEMIÓTICO

A teoria semiótica, concebida como um percurso ou disposição hierárquica de modelos que se implicam, deve ser praticada por um sujeito suficientemente competente para passar de um nível ao outro. Esse sujeito encarnado em mim neste instante, não sei se possui força e capacidade para percorrer, com um mínimo de segurança, essa tessitura de articulações em que o sentido assume as formas da significação que lhe conferem existência semiótica (CAÑIZAL, 2004, p.199).

Cientes de nossa insipiência e consequentes limitações em percorrer

semioticamente com a devida competência o percurso de significação do objeto de

análise – a fala viso-gestual-espacial do surdo – nos apoiamos nas postulações de

Cañizal e lembramos que a leitura, descrição e análise das narrativas e dos sinais

serão feitas por alguém que não pertence ao mundo do surdo, mas que reconhece a

complexidade da língua em questão. É com precaução, portanto, que aceitamos o

desafio de buscar as significações no encenar dos discursos da Língua de Sinais.

Encenar, pois, é uma linguagem que envolve todo o corpo em gestualidades e

expressões que articuladas significam, se apresentando essencialmente cinemática.

Reiteramos que na investigação empírica procuramos alcançar o objetivo,

inicialmente proposto, de analisarmos descritivamente pela semiótica, a presença da

figuratividade nos discursos produzidos por sujeitos surdos por meio da Libras,

estabelecendo um recorte dos sinais considerados icônicos, e identificarmos como a

figuratividade presente nestes sinais se apresentou constitutiva de sentido para o

surdo.

Page 122: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

121

Escolhemos estear em Greimas nossa idéia de discurso, que é considerado como

manifestação da linguagem e a única fonte de informações sobre as significações

imanentes a essa linguagem (GREIMAS apud FIORIN, 1995, p. 24). Nessa

concepção, o discurso em Libras constituiu-se em manancial de manifestação das

significações da fala visual do sujeito surdo, reveladas pelo fazer semiótico.

5.1 PERCURSO DA ANÁLISE DESCRITIVA DA FALA VISO-GESTUAL DOS SUJEITOS SURDOS

A fim de estabelecermos nossas proposições sobre a presença significativa da

iconicidade na Libras e como são figurativos os discursos, buscamos extrair da

narrativa da história “Gato de Papel” (RENNÓ, 1997) feita pelos sujeitos surdos, os

sinais icônicos, considerados assim pela percepção da pesquisadora. Escolhemos o

livro “Gato de Papel” para fomentarmos a discussão que devido ao texto imagético e

a leitura de seus códigos visuais a criatividade foi estimulada na construção das

narrativas.48

A sala de aula do Atendimento Educacional Especializado constituiu-se no lócus da

narrativa dos alunos surdos. Contamos com a participação direta dos professores

bilíngues e do professor surdo como colaboradores na aplicação metodológica.

Inicialmente, o livro foi apresentado cena após cena, proporcionando uma leitura

coletiva e sequenciada. Depois, foi disponibilizado um livro para cada aluno a fim de

que fizessem uma leitura e interpretação mais individualizada.

Num segundo momento, retomamos o contexto da história, afixando na lousa cópias

coloridas das páginas do livro, em cenas sequenciadas. Depois de relembrarem o

enredo, foi sugerido aos alunos que cada um fizesse a leitura do texto imagético dos

eventos percebidos visualmente, recontando a história para seus colegas. Enquanto

um recontava a história, os demais colegas portaram-se como uma animada platéia.

48 A escolha de um livro com texto imagético não foi casual, pois consideramos a dificuldade que a maioria dos alunos que não são fluentes na leitura escrita do Português, teriam para decifrar tais códigos de leitura, além, claro, de que a visualidade é uma categoria imanente de apreensão de significados por parte do surdo.

Page 123: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

122

Os alunos foram orientados pelo professor bilíngue que procurassem recontar a

história evitando “copiar” o que os outros colegas diziam, ou seja, que eles fossem

autênticos e livres na apresentação da narrativa. As cenas foram apresentadas de

forma sequencial conforme exposição das imagens afixadas na lousa.

É importante esclarecer que, apesar de quase todos os dez alunos do grupo focal

terem participado da atividade de leitura e interpretação da história, tornou-se

inviável, para fins de análise, a apresentação de todas as narrativas e suas

respectivas análises descritivas. Sendo assim, optamos por fazer escolhas que mais

nos atenderiam em função da proposta desta pesquisa. Para demarcar o corpus de

análise, escolhemos apenas duas narrativas: uma feita por D., uma das alunas do

grupo focal,49 e outra feita por F., um professor surdo convidado. Maiores

esclarecimentos serão descritos a seguir.

Solicitamos a um professor surdo da Escola do Encontro que também recontasse a

história. Quando o professor recontou a história para a turma, percebemos a riqueza

de detalhes e como a figuratividade se apresentava numa língua rica em

iconicidade. Contudo, tal evento não pôde ser registrado, pois, por motivos alheios à

nossa vontade, não conseguimos filmar a participação desse professor e nem

estabelecer um novo horário para a sessão de fotos e filmagem. Convidamos então

outro instrutor surdo, também professor da Prefeitura Municipal de Vitória, para

participar de nossa pesquisa como colaborador. Os registros em vídeo,

disponibilizado em anexo, e em fotos apresentados nesta pesquisa são do professor

F., que gentilmente aceitou nosso convite, prontificando-se a realizar o trabalho.

Apresentamos ao professor F., a proposta de nossa pesquisa e o motivo do uso da

história do “Gato de Papel”. Ao ler as imagens, disponibilizou-se imediatamente a

recontar a história.50 Tivemos que fazer um trabalho à parte da sala do Atendimento

Educacional Especializado, na sala de aula de um prédio próximo à Escola do

Encontro. O registro que fizemos de sua narrativa apresentou num rico corpus para

análise, pois, comparativamente à narrativa do professor surdo da Escola do

49 Aluna do Programa EJA, 2º. Segmento. 50 Vale dizer, que nenhum dos sujeitos “ensaiaram” a recontação da história, configurando-se em atividade de improviso.

Page 124: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

123

Encontro, o discurso do professor F. também se constituiu numa “fala” que

contemplava a figuratividade da história a partir da iconicidade de suas figuras, tais

como: gato, carro, casa, entre outras.

Tanto a aluna D., da Escola do Encontro como o professor surdo F. se prontificaram

em recontar a história se posicionando em pé, frente à lousa, a fim de serem vistos

por todos e facilitar o registro de fotos e filmagens.

Fotografamos e filmamos os sinais realizados pelo professor e pela aluna que se

constituíram em novos colaboradores desta pesquisa. A partir da imagem fotográfica

dos sinais, desenvolvemos a descrição semiótica proposta. Ressaltamos que a

filmagem e as fotos foram produzidas pela pesquisadora em nossa experiência em

campo e, por isso, deixaram a desejar no que tange ao aspecto técnico de captura,

denotando características de um trabalho amador que, a nosso ver, em nada limitou

a investigação.

Objetivando otimizar nossa descrição e análise, apresentamos primeiramente a

narrativa dos colaboradores surdos. Após, apresentaremos a descrição semiótica de

alguns sinais considerados icônicos e, finalmente, a conclusão dos dados

levantados e analisados. As imagens do livro “Gato de Papel” e o registro por fotos e

vídeos do discurso dos sujeitos surdos tornaram-se estratégias imprescindíveis para

o alcance do objetivo de análise a que nos propomos. Vale ressaltar que nem todos

os movimentos corporais e as expressões faciais puderam ser capturados pela

objetiva da máquina digital, devido à rapidez e dinamicidade dos acontecimentos na

fala do sujeito surdo.

5.2 DESCRIÇÃO DA FIGURATIVIDADE/ICONICIDADE PRESENTES NO DISCURSO DOS SUJEITOS SURDOS PELO VIÉS DA SEMIÓTICA.

Primeiramente, passamos à transcrição da narrativa da aluna e do professor,

considerando a maneira e a sequência tal como foi narrada em Libras. As narrativas

foram transcritas na sequência apresentada no vídeo. A tradução e transcrição dos

sinais revelaram-se procedimentos complexos, mas procuramos nos orientar nas

Page 125: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

124

proposições de Quadros; Karnopp (2004, p. 37) e Brito (1995, p. 207). No ato da

tradução, escolhemos as palavras que mais se aproximaram do sentido expresso

pelos sinais. As glosas com palavras do Português foram escritas com todas as

letras maiúsculas e sempre na forma infinitiva, por não haver flexão de modo e

tempo verbal em Libras. Não apresentaremos a versão em Língua Portuguesa, visto

que já se encontra narrada no capítulo 4, subitem 4.6.3.

Pautados, ainda, nas pesquisadoras Quadros e Karnopp (2004) e Brito (1995),

adotamos as seguintes convenções na transcrição dos sinais: quando foram usadas

mais de uma palavra do Português para traduzir um sinal em Libras, utilizamos os

vocábulos separados por hífens, como foi o caso da palavra CAIR-PROFUNDO; as

palavras digitalizadas pelo alfabeto manual foram transcritas por letras maiúsculas,

separadas por hífens, como foi o caso de L-I-X-O; para identificação dos

Classificadores (CLs) usaremos a seguinte informação gráfica: < > Exemplo:

<BARCO-A-REMO>; para expressar as interrogações utilizamos <?> e para as

exclamações <!>.

Organizamos a narrativa no quadro abaixo, identificando na primeira coluna o

número da cena com sua respectiva ilustração; na segunda coluna a narrativa da

aluna; na terceira, a narrativa do professor, na quarta, a identificação dos sinais

icônicos presentes na fala dos dois sujeitos e na última coluna destacamos somente

os sinais icônicos, recorrentes nas duas narrativas, ou seja, os sinais icônicos

presentes tanto no discurso do professor quanto no da aluna. Para pontuar a

ausência da recorrência dos sinais icônicos na última coluna, escolhemos a seguinte

notação: <X>.

Como pode ser observado, o destaque das figuras sinalizadas iconicamente foi feito

cena a cena. Por isso, o vocábulo GATO aparece repetidamente em diferentes

colunas.

Para socializarmos o contexto do enredo imagético do Livro “Gato de Papel” (Rennó,

1997), escolhemos utilizar as ilustrações criadas pela própria autora, no quadro na

páginas seguintes.

Page 126: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

125

Orientamos ao leitor que faça a leitura de cada narrativa tal como ela se apresenta,

ou seja, quadro a quadro, em sentido vertical, descendente.

DIVISÃO EM CENAS

NARRATIVA DA ALUNA

NARRATIVA DO PROFESSOR

SINAIS ICÔNICOS

SINAIS ICÔNICOS

RECORRENTES

1ª. Cena (Capa)

A aluna não cita o

título da história.

Começa sua

narração a partir da

cena 02

<?>

TUDO BOM

DESENHO

HISTÓRIA GATO

PAPEL

GATO PAPEL

GATO <X>

2ª. Cena (p.5)

DESENHO

GATO PAPEL

DESENHO

FOLHA-PAPEL

<!> BONITO

GATO <X>

3ª. Cena (p.6)

SUMIR

GATO FOLHA

FICAR-NÃO;

DESGRUDAR

SAIR FOLHA

GATO

DESGRUDA

R

<X>

4ª. Cena (p.8)

GATO VIGIAR

GATO PAPEL

SOBRESSALTAR

SAIR

TER OUTRO

GATO VERDADE

GATO GATO

5ª. Cena (p.9)

PULAR PULAR JANELA

PULAR

GATO

PULAR

JANELA

PULAR

6ª. Cena (p.10)

CARRO

RÁPIDO PASSAR

RÁPIDO

GATO ASSUSTAR

CARRO

PERIGOSO

GATO

CARRO CARRO

7ª. Cena (p.11)

GATO

PREOCUPADO

CARRO

RÁPIDO- PASSAR GATO <X>

Page 127: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

126

DIVISÃO EM CENAS

NARRATIVA DA ALUNA

NARRATIVA DO PROFESSOR

SINAIS ICÔNICOS

SINAIS ICÔNICOS

RECORRENTES

8ª. Cena (p.12)

ESMAGAR QUASE

ESMAGAR

GATO FLUTUAR

VENTO CAIR

PESSOAS ANDAR RÁPIDO

PISAR ESMAGAR GATO SOFRER

GATO

ESMAGAR ESMAGAR

9ª. Cena (p.14)

LIXO

TAMBÉM GATO

CAIR JOGADO

<?>PARECER O

QUE

L-I-X-O51

MISTURADO

GATO <X>

10ª. Cena (p.15)

VASSOURA-

VARRER

FICAR JUNTO

L-I-X-O

TER VASSOURA-

VARRER

JUNTO

VASSOURA-

VARRER

GATO

VASSOURA-

VARRER

11ª. Cena (p.16)

<CAIR-

PROFUNDO>

GATO

CAIR

FLUTUAR VENTO

<CAIR BURACO

PROFUNDO>

FLUTUAR

BUEIRO

CAIR-

PROFUNDO

CAIR-

PROFUNDO

12ª. Cena (p.17)

RÁPIDO

AFOGAR

GATO

CAIR

GATO

CAIR

AFOGAR

<X>

13ª. Cena (p. 18)

ÁGUA

<AFUNDAR-

PROFUNDO>

GATO DESAGUAR

MAR

SUGAR

GATO

AFUNDAR-

PROFUNDO

<X>

51

O professor utilizou a datilologia: L-I-X-O; a aluna usou o sinal para lixo: Com a MD configurada na

CM nº. 12, faz um movimento de pinçar a ponta do nariz e logo depois joga a MD para o lado direito, abrindo todos os dedos, de uma só vez.

Page 128: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

127

DIVISÃO EM CENAS

NARRATIVA DA ALUNA

NARRATIVA DO PROFESSOR

SINAIS ICÔNICOS

SINAIS ICÔNICOS

RECORRENTES

14ª. Cena (p. 19)

PESCAR

GATO SOFRER

PESCADOR

PESCAR GATO

PESCADOR

PESCAR

GATO

PESCAR

15ª. Cena (p. 20)

DEPOIS

PESCAR

Tabela 01

PESCADOR

PESCAR GATO

PESCADOR

PESCAR

GATO

PESCAR

16ª. Cena (p. 22)

DEPOIS RIR

ÁGUA PEIXE

COMER FOME

PESCADOR

PEGAR GATO

PAPEL MOLHAR

<!> COITADO

DAR COMIDA

PEIXE52

DAR PEIXE

COMER PRONTO

PESCADOR

GATO

COMER

RIR

GATO

COMER

17ª. Cena (p.23)

BARCO-REMAR

DEPOIS

SATISFEITO

IR CASA

RECEBER GATO

PAPEL

<!> PERTENCER

JUNTO CASA

MINHA

CASA

GATO

JUNTO

BARCO-

REMAR

<X>

18ª. Cena (p.24)

COBERTOR

CALMO

SATISFEITO

DORMIR

<!> FIM

CASA

DORMIR

COBERTOR

DORMIR

Tabela 02

52

O professor utiliza o sinal para peixe: MD com CM no. 53, que num movimento sinuoso simula o nado do peixe; a aluna faz outro sinal: MD com CF n. 12, encosta o dedo indicador na lateral do queixo.

Page 129: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

128

Consideramos um desafio estabelecer qualquer postulação sobre uma língua tão

rica, vívida, dinâmica, cinemática e repleta de figuratividade. Toda ação investigativa

proposta nesta pesquisa configura-se num singelo passo para a constatação de que

a iconicidade, tão rebatida por alguns teóricos da língua sinalizada – apesar de sua

presença contundente em muitos sinais e, especificamente, nos classificadores – faz

da Língua de Sinais uma língua, essencialmente, viso-gestual-espacial. Portanto,

assistir ao vídeo que acompanha esta dissertação, resultará em ganhos para o leitor,

quanto a apreensão da riqueza de detalhes das narrativas apresentadas pelos

sujeitos surdos, que não pode ser abarcada pela transcrição linear dos

acontecimentos.

Retomando o pensamento de Diderot (2006:96), de que “há gestos sublimes que

toda a eloquência oratória nunca haverá de transmitir”, entendemos, também, que a

descrição escrita em Português não daria conta de tamanha complexidade da fala

gestual do surdo, da gama de movimentos, locomoções em diferentes

direcionamentos e articulações de braços e mãos, além das expressões não-

manuais, ou seja, das expressões corpóreo-faciais que são utilizadas na construção

dos sinais. Por isso, todas as expressões faciais e os movimentos não puderam ser

devidamente capturados, dada à especificidade das ações cinemáticas do discurso

surdo.

Fiorin (2008, p. 55) nos esclarece que a enunciação é o ato de produção do discurso

e também a instância que origina o enunciado de pessoas, de tempos e de espaços.

As instâncias da enunciação, segundo Fiorin (2008, p. 56-57), são: o eu-aqui-agora.

A enunciação visual dos sujeitos surdos, também estabelece essas instâncias: o eu,

são os próprios sujeitos surdos, enunciadores da narrativa; o aqui, refere-se ao

espaço do eu (do narrador), que para aluna é a sala de aula do A.E.E. e para o

professor é a sala de aula de um prédio próximo à Escola do Encontro e, o agora,

refere-se ao momento em que o eu toma a palavra e direciona os acontecimentos.

Apresentamos nas tabelas abaixo, a análise da discursivização dos sujeitos, a partir

do registro em vídeo, considerando apenas quatro categorias: a proxêmica,

referindo-se ao espaço tomado pelo corpo no ato da enunciação, ou seja, o jogo de

distâncias, proximidades ou afastamentos, direção do olhar e os modos pelos quais

o surdo se coloca e se movimenta em relação aos personagens, gerindo o espaço

Page 130: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

129

envolvente, considerando a presença do personagem narrado; a sonoridade da fala

dos sinalizadores, que mesmo sendo surdos, não são necessariamente mudos; o

percurso passional da narrativa, envolvendo a emoção e a dramaticidade na

apresentação do discurso e da mudança de estado dos personagens e por fim, o

grau de iconicidade presente na totalidade do discurso, sendo considerado a

quantidade de palavras sinalizadas e dentre estas, a quantidade das que se

apresentaram icônicas.

Na dinâmica do procedimento da descrição recorreremos, sempre que necessário,

às cenas, associando ao número correspondente.

CATEGORIA SUJEITO ALUNA SUJEITO PROFESSOR

PROXÊMICA* * Para compreendermos

a relação dos sujeitos

desta pesquisa com o

espaço da enunciação,

torna-se necessário

informar onde e como

foram posicionadas as

ilustrações da história.

Observamos que,

conforme o

posicionamento do

recurso visual, emergiram

diferentes relações com o

espaço circundante,

como, por exemplo, a

contenção e a não-

contenção do

deslocamento do corpo

no espaço narrativo.

D. relutou um pouco para ir à frente. Procuramos não forçar ninguém para participar desta atividade, mas, estimulada pelo professor bilíngue, a aluna se sentiu à vontade e aceitou o desafio de recontar para toda a turma, sua versão a respeito da história em questão.

Após socializarmos com F. sobre nossa proposta de investigação, ele aceitou, prontamente colaborar com o que fosse necessário, no tempo disponibilizado, ou seja, nos intervalos de suas atividades.

O aqui, ou seja, o espaço da enunciação da aluna foi a sala do A.E.E., no prédio da Escola do Encontro.

O aqui do enunciador professor foi uma das salas de aula de um prédio próximo à Escola do Encontro.

As ilustrações foram coladas em tiras de papel-cenário, de maneira sequencial. Essas tiras foram afixadas na lousa numa altura, em que se levou em conta a altura média dos alunos. As tiras ficaram posicionadas um pouco acima da linha do olhar da aluna.

As tiras de papel com as ilustrações coladas de maneira sequencial foram organizadas sobre a mesa que estava em frente ao quadro negro. Foi uma opção do próprio professor, justificando que, com apenas um olhar de soslaio, poderia se orientar quanto aos acontecimentos na história.

Para narrar a história, a aluna

posicionou-se em pé, em frente à lousa. Não havia o objeto mesa próximo ao espaço da

narrativa, deixando-a, mais livre. Ela manteve uma distância mínima entre o espaço de locomoção e a lousa, onde

estavam afixadas as gravuras. O corpo da aluna movimentou-

se seguindo uma linha imaginária prospectiva, pois, se

O professor se posicionou em pé, em frente à lousa para produzir sua narrativa. Bem próximo à lousa havia dois bancos de madeira, encostados à parede. Um pouco mais à frente desses bancos havia uma mesa. F. posicionou-se no espaço entre os bancos de madeira e a mesa. Procurou ficar bem próximo à mesa e ali

Page 131: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

130

CATEGORIA SUJEITO ALUNA SUJEITO PROFESSOR

locomoveu sempre para frente, em consonância com a trajetória das cenas narradas. Seu corpo

não ficou contido no espaço.

Tabela 03

estabelecer seu percurso narrativo. As ilustrações o “prenderam” junto à mesa. Portanto, tal posicionamento inibiu a exploração do espaço, que ficou limitado entre os bancos e a mesa, conferindo ao corpo a contenção dos movimentos.

CATEGORIA SUJEITO ALUNA SUJEITO PROFESSOR

Os alunos do Grupo Focal constituíram-se numa animada platéia. Sentados em semi-círculo, assistiram às apresentações das narrativas de seus colegas. Apesar de se portar a uma distância razoável da roda de conversa, (aproximadamente 2,5m do círculo de colegas) sua interação comunicativa com o grupo foi notória. Utilizou o sinal dêitico de apontamento para situar sua narrativa e ao mesmo tempo informar à turma sobre qual cena estava falando. Seu olhar era, sempre, dirigido à turma, ignorando, portanto, a objetiva da máquina digital. Por conta disso, notamos a manifestação da platéia em três momentos: na 13ª.cena, quando narra a parte em que o gato foi despejado no mar; na 16ª. cena, que ao se esbarrar na borda da folha, quase rasgando o papel, causou uma breve comoção na turma, ao que ela pediu desculpas, e finalmente quando ela encerra sua narrativa, sendo aplaudida pelos colegas.

Não houve platéia e sua interação comunicativa foi, somente, com a própria câmera que gravava sua eloquente fala. A presença da pesquisadora não inibiu seu desempenho narrativo, mesmo nos colocando à distância de 0,80 cm para gravarmos as imagens. O enunciador demonstrou, ao longo da história, tranquilidade e segurança frente à objetiva da máquina digital. Dialogava com o enunciatário virtual, olhando sempre para a câmera. Como não foi interpelado por nenhuma comoção externa, sua narrativa seguiu com dinamismo e fluidez.

Considerando as pontuações feitas, percebemos que a aluna teve mais liberdade de se movimentar dentro do espaço estabelecido pelas regras veladas - porém, não menos contundente - da proxêmica, ou seja, da indicação de aproximação e distanciamento que um corpo dentro de um determinado espaço, requer.

Tabela 04

Page 132: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

131

CATEGORIA SUJEITO ALUNA SUJEITO PROFESSOR

SONORIDADE DA

FALA

Notamos a presença da sonoridade em sua fala. Ela oraliza as palavras juntamente com a sinalização. Para cada sinal produzido emite um som.

Tabela 05

Percebemos a ausência da sonoridade da fala. Os sons percebidos foram os associados aos movimentos enfáticos apresentados por classificadores. Como exemplo, podemos citar o momento em que narrou a cena do gato sendo pisoteado pelos pedestres: as duas mãos batem uma na outra com veemência.

CATEGORIA SUJEITO ALUNA SUJEITO PROFESSOR

PERCURSO PASSIONAL

DA NARRATIVA

Os indícios indicativos de envolvimento passional com a história se apresentaram principalmente na utilização das expressões não-manuais. Propomo-nos a ressaltar qual dos sujeitos surdos se apropriaram mais do corpo e das expressões faciais para falarem de sofrimento, dor, sustos, satisfação e alegria dos personagens da narrativa.

Sua expressão facial permaneceu alegre por quase toda a narrativa, ou seja, não demonstrou a mudança de estado dos personagens, em especial, do gato.

Mesmo sem se locomover dentro do espaço da narrativa, o professor explorou seus movimentos de braços e mãos para construir as cenas e para dar vida aos personagens, ou seja, ao gato e ao pescador. Suas expressões faciais demonstraram, em todo tempo, os estado passional dos sujeitos da história.

Na 8ª. cena, por exemplo, em que o gato foi pisoteado pelos pedestres, ela ignorou seu sofrimento e sua dor, tão bem caracterizados pela ilustradora, através dos recursos gráficos como as “estrelinhas” indicativas de dor e as “elipses” em volta da cabeça, indicando tontura. Narrava cada episódio como se estivesse se divertindo com as cenas.

Nessa interpretação, o narrador surdo assumiu o papel de participante da cena narrada e a sinalizou como se fossem os próprios personagens. Observamos isso em várias cenas: logo nas primeiras, quando o gato não gostou de ficar grudado na folha, e então, após esforço, num salto se descolou de seu suporte; na 8ª. cena, quando foi pisoteado pelos pedestres, o narrador surdo apresentou o sofrimento do gato, enfatizando que as pisadas das pessoas da rua estavam machucando-o.

Page 133: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

132

Mesmo utilizando a movimentação das mãos, braços e tronco sem restrições, alargando o espaço das gesticulações, preocupou-se, simplesmente, em narrar cada episódio, conforme a temporalidade dos eventos, abdicando de se envolver com o contexto passional da história.

Tabela 06

Outro momento em que frisa o sofrimento do gato foi na cena 14, quando foi içado pelo pescador. O personagem pescador também ganha vida na narrativa: ao puxar o anzol e notar que se tratava de um gato e não de um peixe, o pescador olha para o gato consternado e diz: coitado do gatinho! Comovido, percebe o cansaço e a fome de seu novo amigo e oferece peixe para o gato comer. Podemos concluir que a fala do narrador professor foi plena de demonstrar a mudança de estado dos personagens, devido ao tratamento particular de expressar toda dramaticidade das cenas.

CATEGORIA SUJEITO ALUNA SUJEITO PROFESSOR

GRAU DE ICONICIDADE DOS

SINAIS UTILIZADOS Para apurarmos o grau de iconicidade dos sinais apresentados por cada sinalizador, tomamos como referência os dados levantados na transcrição da narrativa em Libras. A quantidade total de sinais produzidos pela aluna foi de aproximadamente trinta sinais e dentre esses, treze se apresentaram iconicamente, perfazendo um total de 45% de iconicidade no léxico utilizado pela aluna. O professor produziu em sua narrativa, aproximadamente cem sinais, sendo vinte considerados com maior grau de iconicidade, além de inúmeros classificadores, que são, em sua essência, figurativos. A porcentagem referente ao total de iconicidade, levando em conta somente os sinais, e não os classificadores, foi de 20% de utilização de sinais icônicos. Mas, pela sua complexidade e a demanda de um tempo maior para a análise, não ressaltaremos os

D. utilizou uma quantidade mais reduzida de Classificadores. O uso de Classificadores demanda maior fluência na Libras e são recursos, que aliados às expressões não-manuais, descrevem, imageticamente, uma ação. A iconicidade de sua fala se apresentou mais no léxico da narrativa. Dentre os 30 sinais, quase a metade apresentou-se, figurativamente. Listamos alguns sinais icônicos e Classificadores que emergiram na fala do sujeito aluna: GATO-VIGIAR; PULAR; CARRO; ESMAGAR; VASSOURA-VARRER; <CAIR-PROFUNDO> (CL); <AFOGAR> (CL); PESCAR; RIR; COMER; BARCO-REMAR; COBERTOR.

F. utilizou diferentes classificadores como recursos para enfatizar uma ação. Com um discurso com vinte por cento de iconicidade, apresentou uma linguagem mais rebuscada, plena de expressões não-manuais. Listamos os sinais icônicos e alguns Classificadores que emergiram na fala do professor: GATO; <DESGRUDAR> (CL); <SOBRESSALTAR> (CL); PULAR; JANELA; CARRO; <GATO FLUTUAR> (CL); <GATO ESMAGAR> (CL); VASSOURA-VARRER; JUNTO; CAIR- BURACO (CL); <GATO-AFUNDAR> (CL); PESCADOR; PESCAR; COMER, CASA; DORMIR.

Page 134: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

133

classificadores utilizados, amplamente pelo professor surdo. Mas, a olhos vistos, sua fala se configurou em uma língua mais rica de iconicidade.

Tabela 07

Apesar de recontarem a mesma história, alguns elementos constituíram diferentes

narrativas, como a ocupação do corpo no espaço durante a apresentação. D.

precisou locomover-se mais no espaço, para acompanhar as cenas ilustradas e

afixadas ao longo do quadro, e F. manteve-se, sempre no mesmo lugar, do início ao

fim de sua narrativa, já que as ilustrações foram expostas em cima da mesa.

A aluna surda descreveu, de maneira sintética, cada cena da história e gastou o

tempo de um minuto e dois segundos na produção de sua narrativa. Na sua

narrativa concisa, não fez a introdução da história e se absteve de apresentar o

título, iniciando sua narrativa a partir da segunda cena.

O professor apresentou uma narrativa mais rebuscada, com maior riqueza de

detalhes. Sua apresentação ocorreu em um minuto e vinte e quatro segundos. F.

apresentou didaticamente, o texto narrativo nas três fases, ou seja, introdução,

desenvolvimento e conclusão. Iniciou sua apresentação, cumprimentando o

espectador virtual, exclamando: “tudo bom?”. Enfatizou a introdução, apresentando

o título do livro e a conclusão, com o sinal FIM. O uso do referido sinal é comum

numa palestra ou numa leitura, para indicar seu encerramento.

O jogo proxêmico de aproximação e distanciamento do corpo no espaço narrativo foi

logo apreendido pela aluna ao ser convidada para narrar a história e a se posicionar

frente aos colegas, pois foi a primeira a realizar tal atividade. Ela incorporou as

possibilidades da posição que deveria tomar e a dinâmica corporal que deveria

adotar para efetivar seu percurso narrativo num aqui estabelecido pelo agora. A

platéia, composta pelos alunos da sala do AEE, interagiu em alguns momentos com

a narradora, estreitando o processo dialógico da discursivização.

Por não contar, literalmente, com uma platéia tal como a aluna surda, o enunciatário

do discurso do professor surdo será o leitor que assistir ao vídeo disponibilizado em

Page 135: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

134

anexo. Ao discursar, olhando sempre para a câmera, o professor propõe uma

interação dialógica com o espectador, que ao assistir a apresentação, sentir-se-á,

também, participante da narrativa.

No discurso da aluna e do professor surdos foi levado em conta, não só o que

falavam, mas como falavam e de onde falavam, considerando que a fala produzida

nos referidos espaços e tempos específicos refletiram o contexto da narrativa. E

retomando o que Mary Douglas (apud OLIVEIRA, 1992, p.113) escreveu, tanto o

corpo físico como o corpo social, ou seja, aquele inserido em um determinado

contexto comunica informação para e do sistema social do qual faz parte.

Salientamos, também, que a relação do corpo com o espaço da enunciação esteve

diretamente ligada à exposição do recurso visual que referenciou a toda a

proxêmica.

Identificamos nas narrativas apresentadas, sinais que possuem diferentes graus de

iconicidade, que segundo Capovilla (2005, p. 737), podem se apresentar de maneira

transparente, translúcida ou opaca, referindo-se à facilidade ou não de percepção e

apreensão da respectiva iconicidade. Portanto, o sentido de figuratividade nem

sempre estará explícito à primeira vista. Precisamos interagir com os sinais, com sua

construção simbólica plena de sentido para, então, nomeá-lo como sinal icônico.

Consideramos icônicos todos os sinais do contexto lexical da Libras, que possuem

traços figurativos e que utiliza referentes do mundo natural ou do mundo-objeto para

sua construção. Elencamos, das narrativas dos sujeitos surdos, conforme apreensão

perceptiva da pesquisadora, vinte e dois sinais possuidores de iconicidade e

figuratividade: GATO; DEGRUDAR; PULAR; JANELA; ESMAGAR; JUNTO;

FLUTUAR; VASSOURA-VARRER; CAIR-PROFUNDO; BUEIRO; PESCAR;

PESCADOR; PEIXE; AFUNDAR-PROFUNDO; COMER; DORMIR; BARCO-REMAR;

CAIR; AFOGAR; RIR; CASA e COBERTOR.

Dentre os mencionados acima, delimitamos os sinais icônicos recorrentes nas

narrativas dos dois sujeitos surdos. Identificamos onze sinais que emergiram, tanto

na fala da aluna quanto na fala do professor. São eles: 1) GATO; 2) PULAR; 3)

Page 136: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

135

CARRO; 4) ESMAGAR; 5) VASSOURA-VARRER; 6) CAIR-PROFUNDO; 7)

PESCAR / PESCADOR; 8) PEIXE; 9) COMER; 10) BARCO-REMAR e 11) DORMIR.

Restringindo ainda mais nosso percurso de análise, propomos, neste trabalho

descrever os formantes de alguns sinais retirados da lista dos recorrentes

elencados. Optamos por selecionar e descrever os seguintes sinais: CARRO;

VASSOURA-VARRER, PESCAR E COMER. A justificativa refere-se ao fato de

considerá-los próximo à noção de iconicidade transparente apontado por Capovilla.

Entendemos que estes sinais apresentam alto grau de iconicidade que, dentro do

contexto a que se referem, podem ser identificados pelos enunciatários com muito

mais clareza, dado seu caráter figurativo de se apresentar.

No intuito de continuar a análise da figuratividade/iconicidade entremeada no

discurso dos sujeitos surdos, achamos pertinente descrevermos as características

dos formantes dos sinais elencados, mesmo ciente da dificuldade em descrever uma

língua cinemática por meio da imagem fixa, ou seja, da fotografia. Procuramos

identificar e descrever as características significantes mais importantes.

Utilizamos tabelas que apresentam, além da foto dos sinalizadores produzindo os

sinais, os elementos formacionais, constituidores de sua iconicidade. Adotamos

algumas convenções de descrição dos sinais, que se mesclaram a outras, tendo

como referências básicas autores como Brito (1995); Quadros; Karnopp (2004),

Xavier (2006) e a pesquisadora Correa (2007).

Foram adotadas as seguintes convenções:

MD – mão direita (que será considerada, nesta pesquisa, a mão de ação, ou seja, a

mão dominante)

ME – mão esquerda

MD + ME – as duas mãos

Page 137: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

136

CM – configuração de mão: são as formas ou posições que as mãos tomam na

realização dos sinais. A nossa referência é o quadro de CM adotado pela Feneis

(Federação Nacional de Educação e Interação de Surdos), disponibilizado em

anexo.

OR – orientação da palma da mão: dependendo do sinal, as mãos podem ficar com

a palma para baixo, para cima ou para as laterais que ao se movimentarem

combinam diferentes posições.

LO – localização espacial: refere-se ao espaço utilizado na feitura de um sinal. Pode

ser localizado no espaço superior, a frente do corpo, na altura acima do pescoço;

com localização média, quando os sinais são feitos na altura do tronco e localização

inferior, quando realizados abaixo da cintura. É conhecido também como ponto de

contato ou ponto de articulação.

MO – movimento: a característica cinésica dos sinais oferece à língua sinalizada

dinamismo e simultaneidade. Ocorre quando as mãos se afastam, se unem, se

entrelaçam, enfim, se movimentam em diferentes direções sempre tendo o corpo do

enunciador como ponto de referência.

ENM – expressões não-manuais

RI – referente icônico: elemento do mundo natural ou do mundo-objeto que

referenciou a construção do sinal

Tais descrições seguem nas tabelas abaixo:

SINAL

Glosa CARRO VASSOURA-

VARRER PESCAR COMER

Page 138: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

137

SINAL

Qual mão MD + ME MD + ME MD + ME MD

CM

Nº. 03

Nº. 03

Nº. 11

Nº. 50

OR Palmas para

dentro

MD, com a

palma virada

para a esquerda

e a ME, palma

virada para a

direita

MD, palma para a

esquerda; ME,

palma para baixo

Palma para

dentro.

LO

No espaço neutro

à frente do corpo

do enunciador

No espaço

neutro à frente

do corpo do

enunciador

No espaço neutro

à frente do corpo

do enunciador

No espaço

neutro à frente

do corpo do

enunciador

MO

Movimentos

alternados para

cima e para

baixo.

As mãos são

posicionadas,

inicialmente, em

frente ao corpo

do sinalizador.

Em movimento

sequenciado, as

duas mãos, se

afastam em

diagonal, para a

esquerda do

sinalizador.

Tabela 08

A MD, como mão

dominante, traça

no ar uma linha

curva ascendente

em direção ao

corpo do

sinalizador. Nessa

ação, ocorre uma

pequena torção

do corpo, que é

levemente

flexionado para

trás,

acompanhando o

movimento

anterior.

Os dedos unidos

da MD

flexionam-se em

direção à boca

do sinalizador.

Page 139: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

138

SINAL

ENM

Os olhos fixos,

direcionados para

frente, indicam

concentração no

ato de dirigir.

Com os lábios é

feito um

movimento de

aspiração do ar.

As sobrancelhas

são levemente

arqueadas,

expressando

envolvimento

com a ação de

varrer. O olhar é

direcionado para

o lixo varrido.

A

ENM é contextual.

A utilizada pela

aluna é de alegria,

pois foi retirada da

cena em que o

gato foi içado pelo

pescador.

Sobrancelhas

arqueadas, boca

aberta e olhos

bem abertos.

RI

Volante:

as mãos simulam

segurar no

volante

Vassoura:

as mãos simulam

segurar o cabo

da vassoura

Vara de pescar

com molinete:

a MD simula a

ação de puxar a

vara enquanto a

ME “segura” o

molinete

Neste caso, a

referência

icônica não é um

objeto, mas uma

ação, ou seja, a

ação de colocar

o alimento para

dentro da boca

Tabela 09

5.3 MÃOS CHEIAS DE PALAVRAS NUM CORPO QUE FALA

O que se vê na narrativa, da contação de estórias, do sistema conversacional, de piadas, é bastante parecido com a sucessão cinematográfica, onde as atividades específicas e gerais das estruturas icônicas se entrelaçam uma a outra [...] (CAMPELLO, 2008, p. 21).

Quando os surdos colaboradores desta pesquisa conversaram e narraram histórias,

percebemos que todo o corpo se movimentou para estabelecer significação, por

meio de uma fala essencialmente visual e cinemática. Como o espaço em frente ao

corpo do sinalizador foi frequentemente utilizado, as cenas da narrativa pareceram

Page 140: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

139

acontecer sempre num primeiro plano, como se fizesse um corte da visão normal

para um close-up. Para exemplificarmos ressaltamos a utilização da descrição

imagética do bueiro, feita por F., que em vez de ser sinalizado no chão foi traçado no

ar uma elipse para representar o buraco do bueiro.

Na contação de história pudemos perceber nitidamente aquilo que Stokoe (apud

SACKS 1998, p. 100), havia observado, há quatro décadas: a Língua de Sinais

apresenta-se com características cinemáticas. As narrativas dos surdos revelaram

uma língua que explorou plenamente as possibilidades sintáticas de seu canal de

expressão multidimensional.

As figuras do mundo sentido e experimentado parecem desfilar diante da pessoa

com surdez. E, parando esse desfile, o sujeito surdo recorta os contornos de alguns

objetos, percebendo-os e desprendendo-os do mundo perceptivamente apreendido.

Desse modo, dá-se a construção de um ser de linguagem sensibilizado e

apaixonado pelas figuras que, por experiência estésica com o mundo circundante,

engendra uma língua mergulhada em formas, contornos, enfim, plenamente

figurativizada. Sendo assim, o mundo sensível participa da edificação de uma língua

icônica por um sujeito que, como corpo, está integrado neste mundo ornado de

figuras, que segundo o entendimento de Fiorin (2008, p. 91) remete a algo existente

no mundo natural e que todo conteúdo de qualquer língua natural, no nosso caso a

Língua de Sinais, tem um correspondente perceptível no mundo apreendido.

Concluímos este capítulo considerando como verdadeiras as seguintes hipóteses

levantadas: i) o surdo apreende os conhecimentos do mundo, essencialmente pelo

canal visual. Quando fala iconicamente, com sinais plenos de figuratividade, o surdo

ratifica que sua apreensão de mundo sentido revela-se em uma língua que emerge

extraindo do mundo-objeto ou mundo-natural, as figuras semiotizadas; ii) que

mesmo trazendo para sua língua esses aspectos figurativos do mundo natural na

construção lexical, tal especificidade, contudo, não lhe tira o estatuto de língua

natural, pois a figuratividade presente em muitos sinais da Libras reflete a relação do

sujeito surdo com seu meio circundante de maneira inerente de constituição de

linguagem. Refutar a presença da iconicidade como constituidora de uma língua

natural, arbitrária e significativa para as pessoas com surdez é uma postura

Page 141: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

140

equivocada concebida, frequentemente, por sujeitos não-surdos que negam tal

especificidade sígnica dos sujeitos surdos em se relacionar com o mundo, por meio

de sua língua visual; iii) o reconhecimento dessa especificidade linguística norteia

toda a concepção do sujeito surdo como ser de linguagem viso-gestual-espacial.

Constatamos, então, que os sujeitos surdos são possuidores de mãos cheias de

palavras num corpo que fala.

Page 142: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

141

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que nos motivou a trilhar todo o percurso epistemológico e investigativo até aqui

registrado, foi nosso obstinado interesse pela área da surdez, em especial, pela

língua sinalizada, que se apresenta entretecida de figuratividade. E, quando

tomamos conhecimento da complexidade dessa língua que se apresenta de

maneira, quase poética na produção de sentido, reconhecemos em sua estrutura,

terreno fértil de exploração semiótica.

Esta pesquisa constituiu-se numa trajetória que a cada vez em que for percorrida

pelo olhar do leitor, resgatará sua plena significação. Aliás, de nada servirão as

reflexões teóricas, os diálogos com outras pesquisas acadêmicas e o registro dos

dados levantados e investigativos acerca da figuratividade da LS, em especial, da

Libras, se não se apresentarem significativos ou pelo menos provocadores de

opiniões diversas.

Estabelecemos como objetivo precípuo desta dissertação analisar a presença da

figuratividade nos discursos produzidos por alunos e professores surdos por meio da

Língua de sinais. Escolhemos como lócus uma escola referência para educação de

surdos, da rede municipal de Vitória e a denominamos, neste estudo, de “Escola do

Encontro”. Tal nomenclatura já prenunciava nosso outro desejo de pesquisa:

investigar, num ambiente escolar, a inserção deste sujeito de fala diferente, porém,

não menos eloqüente, como um sujeito de linguagem.

Constituímos na Escola do Encontro um grupo focal formado por alunos surdos do

1º. e 2º. Segmentos, da Educação de Jovens e Adultos, que nos concedeu a

oportunidade de socializarmos nossa proposta de trabalho e iniciarmos a

investigação acadêmica. Foi com este grupo que efetivamos a proposta

metodológica de pesquisa, ou seja, apresentamos um livro com texto imagético,

intitulado “Gato de Papel” (RENNÓ, 1997) para ser lido, compreendido e depois

socializado através de narrativas em Libras. Do grupo focal, delimitamos como

sujeito de participação direta, uma aluna, do 2º. Segmento. O segundo sujeito dessa

pesquisa foi um professor surdo de outra escola referência da Prefeitura Municipal

Page 143: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

142

de Vitória. Estes sujeitos com surdez construíram narrativas que serviram como

corpus para a análise que engendrou as postulações conclusivas deste trabalho.

Nossa pesquisa tratou a língua viso-gestual como objeto semiótico que se revelou

num texto repleto de significações para os falantes desta língua.

A semiótica discursiva ou greimasiana se apresentou tanto como epistemologia

como metodologia. Como base epistemológica, a semiótica embasou nossa

trajetória investigativa e como metodologia, se apresentou como o percurso utilizado

na busca da significação do discurso do sujeito surdo.

Todo aparato conceitual e metodológico que emergiu neste trabalho foi para

respaldar uma concepção que, salvo engano, é refutada por uma parte de

pesquisadores da língua em questão: que o reconhecimento da iconicidade inibe o

estatuto da língua sinalizada como língua natural. Estabeleceu-se a idéia de que, ao

considerar a figuratividade da língua, estará, também, negando sua arbitrariedade,

característica imanente das línguas orais. Trata-se do postulado da arbitrariedade do

signo lingüístico, imanente da língua oral defendido por Saussure que tanto

influenciou lingüistas por diferentes épocas.

À partir da visualidade, temática amplamente discutida nesta pesquisa, retomamos a

polêmica discussão da relevância da iconicidade da Língua de Sinais como

característica importante na construção de uma língua viso, gestual-espacial, sem

contudo negarmos a arbitrariedade estabelecida na estrutural lexical da Libras.

Sacks (1998, p. 87) nos lembra do episódio, ocorrido no séc. XIX “Conferência de

Milão, de 1880” que disseminou a desvalorização oficial e formal da língua de sinais.

Tal evento irradiou conseqüências, percebidas ainda hoje, indeléveis, como a

negação de uma língua rica de sentido que se difere da oral, unicamente por sua

modalidade viso-gestual-espacial. O autor acima mencionado nos lembra, ainda,

que uma construção conceitual equivocada pode ser, largamente divulgada e trazer

danos por décadas. Ele cita um conceito dado às línguas de sinais pela Enciclopédia

Britânica, na década de sessenta:

Page 144: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

143

A língua de sinais manuais usada pelos surdos é uma linguagem ideográfica. Essencialmente, ela é mais pictórica, menos simbólica e como sistema, enquadra-se, principalmente no nível da representação por imagens. Os sistemas de linguagem ideográfica, em comparação com sistemas simbólicos verbais tem pouca precisão, sutileza e flexibilidade. Provavelmente o homem não pode atingir seu potencial pleno por meio de uma linguagem ideográfica, porquanto ela se limita aos aspetos mais concretos de sua experiência (ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA, apud SACKS, 1998, p. 87)

Este parece ter sido, por tantas outras décadas, o conceito acolhido por não-surdos

sobre a língua de sinais quando o foco era a sua visualidade. Se negamos esta

característica intrínseca da LS, conseqüentemente negamos a importância da

iconicidade, fecunda de figuras do mundo visual, como produtora de parte do léxico

da Libras.

Quadros; Karnopp (2004, p. 32) ao refutarem o mito que aponta a LS como uma

mistura de pantomima misturada com gesticulação concreta, ou seja, icônica,

incapaz, portanto, de expressar conceitos abstratos, defendem os sinais como

símbolos arbitrários, que podem expressar sim, conceitos abstratos. Mas, para

afirmar tal fato, as autoras desvalorizam a iconicidade das línguas sinalizadas

pontuando que “investigações lingüísticas indicam que aspectos icônicos ou

pictóricos de sinais individuais não são o aspecto mais importante da estrutura e do

uso da língua de sinais”.

A não-admissão da iconicidade que engendra a figuratividade da língua de sinais faz

com que as autoras acima, ao refutarem o mito citado, apresentem três

pesquisadores que abordam a iconicidade na LS sendo que, apenas um destes, a

reconhece como característica imanente. Pudemos perceber, então, que o

posicionamento ideológico acerca da iconicidade escolhido pelas autoras -

largamente conhecidas e lidas no campo dos estudos da Língua Brasileira de Sinais

- é de não dar a merecida relevância na extensão a que propomos, nesta pesquisa.

Tomamos as palavras de uma pesquisadora surda, Campello (2007) cuja pesquisa

entremeou-se dialogicamente com a nossa, para corroborarmos a concepção da

iconicidade e seu devido reconhecimento como formantes de uma língua

figurativizada, que em nada impede de ser, também considerada arbitrária. Já

Page 145: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

144

afirmamos, anteriormente, que o fato de escolher este ou aquele referente como

constituidor de alguns sinais icônicos já aponta uma qualidade arbitrária.

Defendemos que a iconicidade e a arbitrariedade sempre existiram na língua de sinais da comunidade surda e é impossível separar ou excluir as características próprias e geradas dentro da percepção cognitiva dos sujeitos Surdos. A percepção visual cria novo signo de acordo com o mundo que se vê (CAMPELLO, p. 210-211)

Não foi inocente o destaque dado ao trecho recortado do texto dissertativo da

referida pesquisadora. Antes, para fortalecer nossas proposições, amplamente

discutidas até a exaustão, de considerarmos a libras, uma língua visualmente

produzida por um sujeito que percebe o mundo e a ele atribui sentido pela

semiotização das figuras e que ao produzirem sentido, incorporam-se ao seu léxico,

quer como sinais, quer como transcrições imagéticas de eventos percebidos.

A análise das narrativas da aluna D. e do professor F. ratificaram as seguintes

postulações: i) que o surdo apreende os sentidos do mundo, essencialmente pelo

canal visual e por conta dessa visualidade traz para sua língua, um léxico que, em

que boa parte, reflete seu modo de perceber esse mundo; ii) enquanto a fala oral se

apresenta seqüencial e temporal, a Libras mostrada nas narrativas evidenciou a

tridimensionalidade de uma fala que usa lingüisticamente o espaço contido no

próprio corpo e nos diferentes pontos ao redor deste corpo, que ao se movimentar

produz um expressivo e inigualável discurso. O corpo é ora o corpo que fala, ora o

corpo que vira contexto de sua própria fala. Para citarmos um exemplo, ao expressar

a palavra CHORO, o sinal é representado pelo tocar do dedo indicador da MD sobre

a face direita, simulando o deslizar da lágrima pelo rosto. O espaço explorado está

contido no próprio corpo.

Assim, a comunicação em Libras surge imbricada de nuances de figuratividade que,

dialeticamente confluem em uma língua plena de significação constituindo o surdo

como ser de linguagem. Validamos com nossa pesquisa de campo que o aluno com

surdez só se constituirá um ser de linguagem dentro do espaço escolar se inserido

socialmente, e se lhe for oferecido meios de possibilidade discursiva.

Page 146: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

145

Estamos convencidos de que a divulgação da libras através de um ensino

sistemático, com espaço e constância no currículo escolar, é o canal que abre novas

oportunidades para a efetivação de verdadeiros encontros entre surdos e não-

surdos. A Escola do Encontro apresentou nuances para que tal projeto aconteça, ao

se propor em consolidar projetos de ensino e divulgação da Libras para todos os

alunos e profissionais da Escola. Só assim, a língua de sinais será considerada,

verdadeiramente um fato social que para se constituir como tal, conforme defende o

pensamento bakhtiniano, precisa se processar dialogicamente.

Defendemos, portanto, a escola inclusiva, ou seja, a presença do aluno surdo em

escola regulares de ensino, mas, refutamos os guetos existentes nestes espaços,

que separados pela língua, não experimentam a prática bilíngüe.

Em nossa pesquisa, observamos, também, lacunas no procedimento metodológico

que podem originar outros guetos: a não aprendizagem. Referimo-nos a constatação

da não utilização de recursos visuais para explanação das aulas em Libras.

Professores bilíngües e até mesmo instrutores surdos tem negligenciado o canal da

visualidade, abstendo-se de apresentarem propostas de aulas em que a imagens

fixas ou em movimentos dialoguem com conteúdos acadêmicos, expandindo a

significação dos mesmos, que de outra forma, seria impossível de ser abarcado.

Por muito tempo a preocupação na educação de surdo foi aprender como ensinar o

aluno com surdez, mas urge o tempo em que precisamos compreender como este

aluno, efetivamente, aprende. Para esta pesquisadora, tal assertiva já está bem

delineada. Consideramos, desde a nossa primeira produção acadêmica em que

discutimos sobre a importância da imagem na construção do conhecimento do aluno

surdo (SILVA, 2003) que a imagem e as figuras deste mundo proporcionam

aprendizagens que, entremeadas ao contexto vivido e experimentado pelos alunos,

engendram, de forma empírica e reflexiva, significações relevantes do conteúdo

acadêmico.

Consideramos, então, a visualidade para a pessoa com surdez, elemento

constituidor de um ser de linguagem, que apreende o mundo, essencialmente, pelo

Page 147: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

146

sentido da visão sem, portanto, negligenciar a importância dos demais sentidos que

lhe são potencializados como o tato, paladar e o olfato.

Assim, reiteramos a importância da imagem na educação dos alunos com surdez

como propulsora da construção do conhecimento pelo sujeito surdo, a partir de sua

efetiva inserção num mundo de linguagem que se apresenta social e ideológico. Se

a visualidade é uma característica imanente da Língua sinalizada, porque resistirmos

ao uso da imagem como recurso primordial da educação de surdos? Assumimos e

reconhecemos que todo pensamento do sujeito com surdez é imagético e é esse

pensamento que estrutura sua linguagem. Logo, a figurativização das formas do

mundo torna-se elemento inerente de uma língua imbricada por iconicidade e esta

língua deve se constituir num meio de comunicação e interação com os demais

sujeitos.

A Escola do Encontro é a escola onde alunos surdos e não-surdos dividem o mesmo

espaço de aprendizagem. Mas poderá, efetivamente, se constituir em uma Escola

do Encontro, quando prover satisfatórios encontros de surdos com surdos e surdos

com não-surdos, num ambiente bilíngüe, em que a língua se apresentará não como

diferença que traz rupturas, mas que promove interação comunicativa.

O nosso olhar prospectivo para a Escola do Encontro acolhe a seguinte visão: o

surdo tendo como língua de instrução a Libras aprende com autonomia a decifrar os

códigos do português escrito, e os alunos não-surdos assimilam a Libras como sua

segunda língua, como instrumento de comunicação e interação com seus colegas

surdos. Só nesta perspectiva, a escola pesquisada poderá ser legitimada, em

sentido estrito, como a Escola do Encontro.

Consideramos, portanto, que um incontestável encontro entre alunos surdos com

outros sujeitos, principalmente, com os não-surdos, está se delineando,

paulatinamente, na Escola do Encontro, lócus de nossa pesquisa, na medida em

que a instituição providencia meios de efetiva interação. Acreditamos que o projeto

do ensino da Libras para todos os alunos e profissionais da Escola aponta para uma

nova perspectiva na educação de surdos, que deve ser encarada, não como utopia

mas, como uma realidade em potencial.

Page 148: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

147

A receptividade do aluno com surdez numa escola regular de ensino define-se, não

só pela aceitação dessa surdez como particularidade, mas, precipuamente, pelo

reconhecimento de sua língua. Contudo, não basta apenas reconhecê-la, mas

aprendê-la e praticá-la num processo dialógico contínuo e crescente.

Esperamos que esta pesquisa tenha contribuído, pelo menos, provisoriamente, com

os futuros estudos acerca da temática discutida neste trabalho, ou seja, do discurso

figurativo do surdo, esse ser de linguagem possuidor de mãos cheias de palavras

num corpo que fala.

Page 149: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

148

7 REFERÊNCIAS

1 ARROTÉIA, Jéssica. O papel da marcação não-manual nas sentenças

negativas em Línguas de Sinais Brasileira (LSB). 2005. 119 f. Dissertação (Mestrado em Lingüística) – Instituto de Educação e Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, 2005.

2 BARROS, Diana L. P. de. Teoria semiótica do texto. São Paulo, Ática, 2005. 3 BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec,

1990. 4 BERNARDINO, Elidéa Lúcia. Absurdo ou lógica? A produção lingüística do

surdo. Belo Horizonte: Profetizando Vida, 2000. 5 BRAIT, Beth. Discursividade e Figuratividade: conjecturas em torno da

imanência do sensível in. OLIVEIRA, Ana Cláudia de; LANDOWSKI, Eric (Eds). Do inteligível ao sensível: em torno da obra de A. J. Greimas. São Paulo: EDUC, 1995. p.183-198.

6 BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Diretrizes

nacionais para a educação especial na educação básica. Brasília: MEC/SEESP 2007. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/politica.pdf>. Acesso em: 10 abr. 2008.

7 BRASIL. Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei no

10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras, e o art. 18 da Lei no 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Disponível em:

<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/d5626.htm>. Acesso em: 10 abr. 2008.

8 BRITO, Lucinda Ferreira. Por uma gramática da língua de sinais. Rio de

Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995. 9 CAMPELLO, Ana Regina e S. Aspectos da visualidade na educação de

surdos. 2008. 245 f. Tese (Doutorado de Educação) – Pós-Graduação de

Educação, Universidade Federal de Santa Catarina, Santa Catarina, 2008.

10 CAÑIZAL, Eduardo Peñuela. Semiótica das paixões: o desespero num quadro de Pablo Picasso. In: OLIVEIRA, Ana Cláudia de; LANDOWSKI, Eric (Eds). Do inteligível ao sensível: em torno da obra de A. J. Greimas. São Paulo: EDUC, 1995.

11 CAVANAH, Frances; MOORE, Nelle E.; WEIB, Ruth C. (Org). O mundo da

criança. Childcraft, The Childs Treasury. Rio de Janeiro: Editora Delta, 1995.

Page 150: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

149

12 CAPOVILLA, Fernando C.; RAPHAEL, Walkiria D. Enciclopédia da Língua de Sinais Brasileira: o mundo do surdo em Libras: Comunicação, religião e eventos. EDUSP, São Paulo, 2005. Vol. 4.

13 CICCONE, Maria Marta Costa, et al. Comunicação total. Rio de Janeiro:

Cultura Médica, 1990.

14 CORREIA, Vasti Gonçalves de Paula (Coord). Educação Bilíngue: ressignificando o processo sócio educacional dos alunos com surdez, no sistema municipal de ensino de Vitória, por meio do ensino, uso e difusão da LIBRAS. Secretaria Municipal de Educação (SEME) e Coordenação de Formação e Acompanhamento à Educação Especial (CFAEE): Vitória, 2008.

15 CRESWELL, Robert. O gesto manual associado à linguagem. In: GREIMAS,

Algirdas Julien; KRISTEVA, J.; BREMOND, Claude, et alli. Práticas e linguagens gestuais. Lisboa: Editorial Veja, 1979. p. 169-187.

16 DAMÁZIO, Mirlene Ferreira Macedo. Atendimento educacional

especializado: pessoa com surdez. São Paulo: MEC/SEESP, 2007. Disponível

em: <http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/aee_da.pdf>. Acessado em 29 jul. 2009.

17 DIDEROT, Denis. Carta sobre os surdos e mudos endereçada àqueles que

ouvem e falam. São Paulo: Escala, [1949]. 18 FABBRI, Paolo. Considerações sobre a proxêmica. In: GREIMAS, Algirdas

Julien; KRISTEVA, J.; BREMOND, Claude, et alli. Práticas e linguagens gestuais. Lisboa: Editorial Veja, 1979. p. 93-107.

19 FERNANDES, Eulália: Linguagem e Surdez. Porto Alegre: Artmed, 2003. 20 FIORIN, José Luiz: Linguagem e ideologia. São Paulo: Editora Ática, 1995. 21 ______. As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e

tempo. São Paulo: Editora Ática, 1996. 22 ______. Elementos da análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2001.

23 GIL, Antônio Carlos. Como elaborar projetos e pesquisa. São Paulo: Atlas,

1995. 24 GODYNHO, Eloysia: Surdez e significado social. São Paulo: Cortez Editora,

1982. 25 GREIMAS, Algirdas Julien; COURTÉS, Joseph. Dicionário de Semiótica. São

Paulo: Editora Cultrix, 1979. 26 ______. Diccionario razonado de la teoria del lenguaje: Madrid: Biblioteca

Românica Hispânica Editorial Gredos, 1991. Tomo II.

Page 151: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

150

27 ______. Semiótica e ciências sociais. São Paulo: Editora Cultrix, 1976.

28 ______.Sobre o Sentido: ensaios semióticos. Trad. A. C. César e outros.

Petrópolis: Vozes, 1975 29 ______. Semiótica figurativa e semiótica plástica. In: OLIVEIRA, Ana

Cláudia de (org). Semiótica plástica. São Paulo: Hacker Editores, 2004. p. 75-96.

30 GREIMAS, Algirdas Julien; KRISTEVA, J., BREMOND, Claude, et alli. Práticas e linguagens gestuais. Lisboa: Editorial Veja, 1979.

31 HJELMSLEV, Louis Trolle. Prolegômenos a uma teoria da linguagem. In:

Textos selecionados. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. Os Pensadores.

p. 149-215. 32 HOUAISS, Antônio. Dicionário eletrônico da língua portuguesa. Versão 2.0

a, abril 2007. Objetiva, 2007. Portugês. WindowsXP.

33 LABORIT, Emmanuele. O Vôo da Gaivota. São Paulo: Best Seller,1994.

34 LANDOWSKI, Eric. Presenças do outro. São Paulo: Editora Perspectiva,

2002.

35 ______. Viagem às nascentes do sentido. In: SILVA, Inácio Assis. Corpo e sentido: a escuta do sensível. São Paulo: Editora da UNESP, 1996. p.21-43.

36 LOPES, Maura Corcini. Surdez & educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

37 LÜDKE, Menga; ANDRÉ, Marli E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens

qualitativas. São Paulo: EPU, 1986. 38 MARQUES, Carla Verônica M. Visualidade e surdez: a revelação do

pensamento plástico. In: Espaço, INES / MEC: Rio de Janeiro, n. 12,

Dez/1999. 39 MANTOAN, Maria T. E. O direito de ser, sendo diferente, na escola. R. CEJ,

Brasília, n. 26, p. 36-44, jul/set. 2004.

40 MOREIRA, Renata Lúcia. Uma descrição da dêixis de pessoa na língua brasileira de sinais (LSB): pronomes pessoais e verbos indicadores. 2007, 150 f. Dissertação (Mestrado em Semiótica e Linguística Geral) – Programa de Pós-Graduação em Lingüística, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, USP, 2007.

41 OLIVEIRA, Ana Cláudia de. Fala gestual. São Paulo: Perspectiva, 1992.

42 ______. (Org.) Semiótica plástica. São Paulo: Hacker Editores, 2004.

43 OLIVEIRA, Ana Cláudia de; LANDOWSKI, Eric (Eds). Do inteligível ao

sensível: em torno da obra de A. J. Greimas. São Paulo: EDUC, 1995.

Page 152: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

151

44 PADILHA, Anna M. Lunardi. Na escola tem lugar para quem é diferente? In: Re-criação: Revista do CREIA, Corumbá, 4, p.7-18, jan/jun. 1999.

45 PERLIM, Gladis T. T. Identidades Surdas. In: SKLIAR, Carlos (Org): A surdez:

um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Mediação, 1988.

46 PIMENTA, Nelson. Oficina-palestra de cultura e diversidade. In: Instituto Nacional de Educação de Surdos, Brasil, INES, 6., 19 a 21 de setembro de 2001. Anais do VI Seminário Nacional do INES: Surdez - Diversidade Social. Rio de Janeiro, RJ: INES, 2001. p. 24.

47 QUADROS, Ronice Muller. Efeitos de modalidade de língua: as línguas de sinais. In: ETD – Educação Temática Digital, Campinas, v.7, p. 168, jun.

2006.

48 QUADROS, Ronice Muller de; KARNOPP, Lodenir Becker: Língua de sinais brasileira: estudos lingüísticos. Porto Alegre: Artmed, 2004.

49 RENNÓ, Regina Coeli. Amor de ganso. Curitiba: Arco-Íris, 1995. Coleção

imagens mágicas. 50 ______. Pê, o pato diferente. São Paulo: FTD, 1993. Coleção roda pião 51 ______. História de amor. Belo Horizonte: Ed. Lê, 1997. Coleção imagens

mágicas. 52 ______. Gato de papel. Belo Horizonte: Ed. Lê, 1997. Coleção imagens

mágicas. 53 TESKE, Ottmar. A Relação dialógica como pressuposto na aceitação das

diferenças: o processo de formação das comunidades surdas. In: SKLIAR, Carlos (Org): A surdez: um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Mediação.1988. p. 139-156.

54 THOMA, Adriana da S. Surdo: esse “outro” de que fala a mídia. In: SKLIAR,

Carlos (Org): A surdez: um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Mediação. 1988. p.123-138.

55 REBOUÇAS, Moema Martins. O discurso modernista da pintura. Lorena:

CCTA, 2003. 56 SÁ, Nídia R. Limeira de. Cultura, poder e educação de surdos. São Paulo:

Paulinas, 2006. 57 ______. O discurso surdo: a escuta dos sinais. In: SKLIAR, Carlos (Org): A

surdez: um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Mediação. 1988. p. 169-192.

58 SACKS, Oliver. Vendo vozes: uma viagem ao mundo dos surdos. São Paulo:

Companhia das Letras, 1998.

Page 153: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

152

59 SANTANA, Ana Paula e BERGAMO, Alexandre: Cultura e identidades surdas: encruzilhada de lutas sociais e teóricas: Educ. Soc., Campinas, vol. 26, n. 91, p. 565-582, Maio/Ago. 2005. Disponível em: <http://www.cedes.unicamp.br>. Acessado em: 25 jul. 2009.

60 SALLES, Heloísa M. M. Lima; FAULSTICH, Enilde, et alli. Ensino de língua

portuguesa para surdos: caminhos para a prática pedagógica, Brasília:

SEE/MEC, 2002. Vol. 1.

61 SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 1995.

62 SKLIAR, Carlos (Org): Educação & exclusão: abordagens sócio-

antropológicas em educação especial. Porto Alegre: Mediação, 1997. 63 ______. A Surdez: um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre: Mediação,

1998.

64 SILVA, Gleice Lane Araujo (et.al.). Surdez, família e educação: concepções e representações. In: Inclusão e Debate: Ressignificando a prática pedagógica a partir da pesquisa e da formação docente. Revista Inclusão em Debate. v.1.

n. 1 (dez, 2004). Vitória: SEME/PMV, 2004. p.73-80. 65 TEIXEIRA, Lúcia. A Semiótica no Espelho. In: Cadernos de Letras da UFF,

Niterói, n. 12, Instituto das Letras da UFF, 2º. Semestre/1997. p. 33-49.

66 TESKE, Ottmar. A Relação dialógica como pressuposto na aceitação das diferenças: o processo de formação das comunidades surdas. In: SKLIAR, Carlos (Org): A Surdez: um olhar sobre as diferenças. Porto Alegre:

Mediação,1988. 67 VEIGA, L. & GONDIM, S.M.G. A utilização de métodos qualitativos na

ciência política e no marketing político. Opinião Pública, 2001

68 VIANNA, Heraldo Marelim. Pesquisa em Educação: a observação. Brasília:

Plano Editora, 2003. 69 XAVIER, André Nogueira. Descrição fonético-fonológica dos sinais da

Língua de Sinais Brasileira (LIBRAS). 2006, 145 f. Dissertação (Mestrado

em Semiótica e Linguística Geral) – Programa de Pós-Graduação em Lingüística, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, USP, 2006.

Page 154: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

153

ANEXOS

Page 155: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

154

ANEXO – A

Presidência da República

Casa Civil Subchefia para Assuntos Jurídicos

DECRETO Nº 5.626, DE 22 DE DEZEMBRO DE 2005.

Regulamenta a Lei no 10.436, de 24 de abril de

2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras, e o art. 18 da Lei n

o 10.098, de 19

de dezembro de 2000.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso das atribuições que lhe confere o art. 84, inciso IV, da Constituição, e tendo em vista o disposto na Lei n

o 10.436, de 24 de abril de 2002, e no art. 18 da

Lei no 10.098, de 19 de dezembro de 2000,

DECRETA:

CAPÍTULO I - DAS DISPOSIÇÕES PRELIMINARES

Art. 1o Este Decreto regulamenta a Lei n

o 10.436, de 24 de abril de 2002, e o art. 18 da Lei n

o 10.098,

de 19 de dezembro de 2000.

Art. 2o Para os fins deste Decreto, considera-se pessoa surda aquela que, por ter perda auditiva,

compreende e interage com o mundo por meio de experiências visuais, manifestando sua cultura principalmente pelo uso da Língua Brasileira de Sinais - Libras.

Parágrafo único. Considera-se deficiência auditiva a perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas freqüências de 500Hz, 1.000Hz, 2.000Hz e 3.000Hz.

CAPÍTULO II - DA INCLUSÃO DA LIBRAS COMO DISCIPLINA CURRICULAR

Art. 3o A Libras deve ser inserida como disciplina curricular obrigatória nos cursos de formação de

professores para o exercício do magistério, em nível médio e superior, e nos cursos de Fonoaudiologia, de instituições de ensino, públicas e privadas, do sistema federal de ensino e dos sistemas de ensino dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

§ 1o Todos os cursos de licenciatura, nas diferentes áreas do conhecimento, o curso normal de nível

médio, o curso normal superior, o curso de Pedagogia e o curso de Educação Especial são considerados cursos de formação de professores e profissionais da educação para o exercício do magistério.

§ 2o A Libras constituir-se-á em disciplina curricular optativa nos demais cursos de educação superior

e na educação profissional, a partir de um ano da publicação deste Decreto.

[...]

Art. 31. Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 22 de dezembro de 2005; 184o da Independência e 117

o da República.

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA Fernando Haddad

Page 156: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

155

ANEXO – B

CARACTERIZAÇÃO DA ESCOLA

1. Nome da escola: ______________________________________.

2. Fundação: ___________________________________________.

3. Endereço: ____________________________________________

4. Dados da Comunidade: a) Procedência da maioria dos matriculados (Bairros de origem dos alunos): _____________________________________________________________ b) Outras situações: _____________________________________________________________ _____________________________________________________________ 5. Aspecto físico: a) Número de salas de aula:_________________________________ b) Condições das salas de aula: ______________________________ c) Possui biblioteca?_______________________________________

d) Possui salas-ambiente? __________Quais? __________________

e) Possui refeitório? _________________________

f) Possui área livre? Como estes espaços são utilizados pelos alunos (surdos e

ouvintes?)

g) Há algum espaço que não é utilizado pelos alunos surdos? Porque?

6. Organização das turmas

a) Número de alunos ouvintes e surdos por turno:

Matutino: (ouvintes): _________ (surdos): ___________ Vespertino: (ouvintes): _______ (surdos): ___________ Noturno: (ouvintes): _________ (surdos): ___________ Totais: _________ __________ b) Quantos alunos surdos por sala?

______________________________________________________

Page 157: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

156

_________________________________________________________ c) Número de turmas: Noturno: _____________________ 7. Recursos humanos: Quantos professores bilíngües? ________

Quantos intérpretes? _________________ Quantos professores surdos? __________ 8. Rotina escolar:

a) Início e término das aulas: Matutino: __________ Vespertino:____________ Noturno: __________ b) Início e término do recreio: Matutino: __________ Vespertino:____________ Noturno: __________ d) Em passeios escolares a participação de alunos surdos é: ( ) Significante. Todos ou a maioria participam. ( ) insignificante. A maioria não participa Motivos prováveis: ____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Page 158: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

157

ANEXO – C

CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIMENTO I Eu, Gleice Lane de Araujo Silva, em cumprimento ao protocolo de pesquisa, apresento aos profissionais da Escola de Ensino Fundamental “Aristóbolo Barbosa Leão”, unidade da Rede Municipal de Ensino de Vitória – ES, o projeto de pesquisa “Mãos Cheias de Palavras”, como recomendação para a realização do Mestrado em Educação, do Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal do Espírito Santo. O objetivo da pesquisa é analisar a fala-gesto do surdo em interação com seus pares, dentro do ambiente escolar. Como instrumento de pesquisa, serão utilizados formulários para análise de documentos, para a realização de entrevistas e observação participante em sala de aula e outros espaços escolares, com registros através de vídeos, fotografias e diário de campo. O trabalho será realizado a partir de negociações com os sujeitos, no decorrer do estudo. Os dados/resultados da pesquisa serão apresentados no texto da dissertação e poderão ser utilizados para publicação. Por isso, solicito sua autorização por meio de assinatura deste Termo de Consentimento:

Nome do Profissional: ____________________________________________________________ Função: [ ] Professor (a) [ ] Instrutor (a) de Libras [ ] Intérprete de Libras [ ] Professor(a) Bilíngüe [ ] Coordenador de Turno [ ] Pedagogo (a) Vitória, ____/____/_______ ___________________________________________

Page 159: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

158

ANEXO – D

CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIMENTO II

Em cumprimento ao protocolo de pesquisa, apresento aos profissionais da Escola de Ensino Fundamental “Aristóbolo Barbosa Leão”, unidade da Rede Municipal de Ensino de Vitória – ES, o projeto de pesquisa “Mãos Cheias de Palavras”, de autoria da mestranda Gleice Lane de Araujo Silva, como recomendação para a realização do Mestrado em educação, do Programa de Pós-Graduação em educação, da Universidade Federal do Espírito Santo. O objetivo da pesquisa é analisar a fala-gesto do surdo em interação com seus pares e com outros sujeitos, dentro do ambiente escolar. Desse modo, a pesquisa será desenvolvida na sala de aula com observação participante, gravações em vídeo, entrevistas, fotografias e registros em diário de campo. Para garantir o tratamento ético dos dados, o nome da escola será mantido em sigilo e no texto da dissertação receberá um nome fictício. O nome dos alunos será apresentado através das iniciais. As filmagens e registros fotográficos serão realizados sem comprometimento da ação educativa, preservando, sobretudo, a integridade do grupo. Os dados/resultados da pesquisa serão apresentados no texto da dissertação e poderão ser utilizados para publicação. Por isso, solicitamos sua autorização por meio de assinatura deste Termo de Consentimento: Eu, ________________________________________________________, aluno(a)

da Escola Municipal “Aristóbolo Barbosa Leão”, Vitória-ES, autorizo publicação

concernente a minha participação nesta pesquisa, quer como entrevistado (a) quer

como aluno (a) participante deste projeto na sala de aula e em outros espaços da

escola. Portanto, autorizo a utilização da minha imagem resultante de filmagens e

fotografias na produção e publicação desta pesquisa.

Assinatura: _________________________________________ RG: __________________________ Vitória, ____/____/_______

Page 160: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

159

ANEXO – E

ENTREVISTA COM ALUNOS NÃO-SURDOS

1. Nome: _______________________________________________________

2. Série e Turma: _________________________________________________

3. Você tem amigos/colegas surdos? _________________________________

4. Você entende a LS? Como você se comunica com eles?

___________________________________________________________________

__________________________________________________________________

5. Em sua opinião, o que esta escola tem de específico que atraiu tanto os alunos

surdos?

___________________________________________________________________

__________________________________________________________________

6. Se você fosse surdo (a) o que esperaria desta escola?

___________________________________________________________________

__________________________________________________________________

7. Você acha que o aluno surdo se sente incluído na escola? Em que baseia sua

resposta?

___________________________________________________________________

__________________________________________________________________

8. Quais os espaços da escola mais freqüentados pelos surdos? Por quê?

___________________________________________________________________

__________________________________________________________________

9. Quais os menos freqüentados? Por quê?

___________________________________________________________________

__________________________________________________________________

10. Você acha que seu colega surdo gosta de participar das aulas e das atividades

extra-curriculares? Como isso acontece?

Page 161: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

160

___________________________________________________________________

__________________________________________________________________

11. Como você define a pessoa com surdez?

___________________________________________________________________

__________________________________________________________________

Quais são os pontos positivos e negativos de um aluno surdo freqüentar uma

escola/sala de aula com alunos ouvintes?

Pontos Positivos:

___________________________________________________________________

__________________________________________________________________

Pontos negativos:

___________________________________________________________________

__________________________________________________________________

12. O que é Libras? O que ela significa pra você?

___________________________________________________________________

__________________________________________________________________

Page 162: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

161

ANEXO – F

ENTREVISTA FECHADA – PROFISSIONAIS DA ESCOLA

01. Que atividade você exerce nesta Escola:

[ ] Professor (a) [ ]Pedagogo (a) [ ] Coordenador [ ] Porteiro

[ ] Merendeira [ ] Serviços Gerais [ ] Outra: _________________ 02. A que você atribui o quantitativo de alunos surdos matriculados nesta

escola? [ ] Espaço da Escola [ ] Localização da Escola [ ] Metodologia de Ensino

[ ] amizade entre os surdos [ ] _______________________________

03. Qual o seu grau de conhecimento da Libras?

[ ] não conheço nada de libras

[ ] conheço alguns sinais básicos

[ ] tenho fluência na LS

04. Como é sua comunicação com os alunos surdos?

[ ] difícil, pois não entendo LS

[ ] Indiferente. Não lido muito com alunos surdos

[ ] boa, apesar de não entender a LS

[ ] ótima, pois sei me comunicar em LS

05. O que é Libras pra você?

[ ] um método de comunicação

[ ] uma linguagem com gestos

[ ] uma língua como outra qualquer

06. Como você vê a questão de alunos surdos estudarem numa escola com

professores e outros alunos ouvintes?

[ ] inadequada para os surdos

[ ] inadequada para os ouvintes

[ ] Vantajosa para ambos. Os surdos e os ouvintes juntos aprendem melhor

[ ] Utópica. Não há possibilidade do surdo aprender, efetivamente, numa escola com alunos e professores ouvintes.

Page 163: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

162

ANEXO – G

Prefeitura de Vitória Secretaria Municipal de Educação Subsecretaria Político-Pedagógica

Coordenação de Formação

e Acompanhamento à Educação Especial

EDUCAÇÃO BILÍNGÜE:

Ressignificando o processo socioeducacional dos alunos com surdez, no Sistema Municipal de Ensino de Vitória,

por meio do ensino, uso e difusão da LIBRAS.

Vitória/ES 2008

Page 164: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

163

Prefeito Municipal de Vitória

João Carlos Coser

Secretária Municipal de Educação

Marlene de Fátima Cararo Pires

Subsecretaria Político Pedagógica Terezinha Baldassini Cravo

Subsecretaria de Gestão Democrática

Sônia Maria Machado Fraga

Coordenação de Formação e Acompanhamento à Educação Especial- CFAEE

Vasti Gonçalves de Paula Correia

EQUIPE - CFAEE

Carmem Lúcia Silva Laranja Gonçalves Débora Almeida de Souza

Edna Maria Marques Bonomo José Francisco Souza

Marília dos Santos Franklin e Rodrigues Nilds de Souza Bandeira Frota

Priscila Pavan Regina de Fátima Martins D'Oliveira

Vitória/ES 2008

Page 165: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

164

SUMÁRIO

1. ARESENTAÇÃO...............................................................................................................................04 2. JUSTIFICATIVA................................................................................................................................04 3.OBJETIVO GERAL..........................................................................................................................06 4.OBJETIVOS ESPECÍFICOS.............................................................................................................07 5. CARACTERÍSTICAS DO PROJETO DE EDUCAÇÃO BILÍNGÜE..................................................07 6. OPERACIONALIZAÇÃO..................................................................................................................08 6.1. Recursos humanos.................................................................................................................... 08 6.2. Formação em serviço..................................................................................................................09 6.3 Atendimento educacional especializado................................................................................... 09 6.4. Processo de ressignificação da práxis pedagógica.................................................................09 7. UNIDADES DE ENSINO REFERÊNCIA PARA A EDUCAÇÃO BILÍNGÜE....................................10 7.1. Educação Infantil..........................................................................................................................10 7.2. Educação de Jovens e Adultos.................................................................................................10 7.3. Ensino Fundamental...............................................................................................................,...10

8. DESCRIÇÃO DAS FUNÇÕES REFERENTES AOS CARGOS DE PROFESSOR BILÍNGÜE/DEFICIÊNCIA AUDITIVA, INSTRUTOR DE LIBRAS E TRADUTOR INTÉRPRETE LIBRAS-LÍNGUA PORTUGUESA-LIBRAS.........................................................................................11 8.1. Professor Bilíngüe/Deficiência Auditiva....................................................................................11 8.2. Instrutor de LIBRAS.....................................................................................................................11 8.3. Tradutor Intérprete LIBRAS-Língua Portuguesa-LIBRAS.........................................................12

9. ORIENTAÇÕES PARA A ORGANIZAÇÃO PEDAGÓGICA............................................................12 9.1. Professor Bilíngüe e Deficiência Auditiva ................................................................................12 9.2.. Instrutor de LIBRAS ...................................................................................................................13 9.3. Tradutor e Intérprete de LIBRAS-Língua Portuguesa- LIBRAS ..............................................14

10. CONSIDERAÇÕES.........................................................................................................................16

11. REFERÊNCIAS..............................................................................................................................16

Page 166: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

165

1. APRESENTAÇÃO Nos últimos dezessete anos a Secretaria Municipal de Educação de Vitória vem enfrentando o desafio de implementar ações visando garantir aos alunos com surdez o direito de acesso e permanência no Sistema Público Municipal de Ensino. No desdobramento dessas ações, verifica-se que a forma como se estruturam as propostas pedagógicas desenvolvidas para atender às necessidades educacionais especiais dos referidos alunos, sem o devido enfrentamento de sua diversidade lingüística, são prejudiciais à sua escolarização, com perdas consideráveis no desenvolvimento da aprendizagem. Buscando atender às Diretrizes Nacionais para a Educação Especial (resolução CNE/CEB n. 2, de 11 de setembro de 2001, a lei 10.098/94, de 23 de março de 1994, especificamente o capítulo VII, que legisla sobre a acessibilidade à língua de sinais, a Lei 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais e o Decreto 5626 de 2005 que assinala que a educação de pessoas com surdez no Brasil deve ser bilíngüe, garantido o acesso à educação por meio da utilização da Língua de Sinais e o ensino da Língua Portuguesa escrita como segunda língua, a Secretaria Municipal de Educação de Vitória/Coordenação de Formação e Acompanhamento à Educação Especial/Gerência de Ensino Fundamental/Gerência de Educação Infantil, apresentam as proposições para a reestruturação da política pública para a educação dos alunos com surdez matriculados nas Unidades de Ensino de Educação Infantil e Ensino Fundamental do Sistema Municipal de Ensino de Vitória/ES. O presente documento institui a implantação de um projeto educacional bilíngüe, em nove escolas referência, sendo sete escolas de Ensino Fundamental e duas escolas de Educação Infantil, visando atender aos pressupostos inclusivos e às necessidades educacionais especiais dos alunos com surdez. As referidas escolas são escolas de ensino comum, que compõem o Sistema Público Municipal de Educação de Vitória. Salientamos que o § 1º, Art. 22, do Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005, define como escolas e classes bilíngües aquelas em que a LIBRAS e a modalidade escrita da Língua Portuguesa sejam línguas de instrução utilizadas no desenvolvimento de todo o processo educativo das pessoas com surdez. 2. JUSTIFICATIVA A educação escolar do aluno com surdez, fundamentada na filosofia da inclusão, entendida para além da integração física, se configura em um enorme desafio para a grande maioria dos sistemas de ensino que se propõem a garantir a educação para todos. Essa garantia não se restringe apenas ao acesso, mas também à permanência com qualidade na educação proposta. Ressalta-se, ainda, no processo de inclusão das alunos com surdez, vários problemas de diferentes instâncias e ordens, entre os quais destacamos a barreira da comunicação que ocasiona evasão e fracasso escolar desses alunos. Considerando que, em uma escola inclusiva, a comunidade tem a responsabilidade de educar todos os alunos e assegurar que todos sejam valorizados, possibilitando que compartilhem saberes necessários para a vida social, há que se compreender que é a escola que deverá adaptar-se ao aluno com surdez, incorporando nos seus processos socioeducacionais, sua singularidade lingüística e especificidade de ensino-aprendizagem. Nesta perspectiva, é descabível negar aos alunos com surdez o direito de acesso à sua língua natural e à língua oficial do país. Isso pressupõe a garantia da educação bilíngüe que envolve a transformação da situação monolíngüe da escola, fundada na Língua Portuguesa. Segundo Fernandes (2006, p. 03), constata-se que:

[...] o contexto educacional está organizado de forma que todas as interações são realizadas pela oralidade, o que coloca os alunos com surdez em extrema desvantagem nas relações de poderes e saberes instaurados em sala de aula, relegando-os a ocupar o eterno „lugar‟ do desconhecimento, do erro, da ignorância, da ineficiência, do eternizado não-saber nas práticas lingüísticas.

Page 167: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

166

Diante desse quadro situacional é imprescindível buscar novos caminhos para viabilizar a escolarização das pessoas com surdez na escola comum, contemplando o Ensino de LIBRAS, o Ensino em LIBRAS e o Ensino da Língua Portuguesa escrita, resguardado o direito de opção da família ou do próprio aluno pela modalidade oral da Língua Portuguesa. Diversos estudos realizados nas últimas décadas apontam que é por meio da língua de sinais que a criança com surdez vai adquirir a linguagem que lhe é própria, com possibilidade de adentrar ao mundo representativo com todas as suas nuances e estabelecer trocas simbólicas com o meio físico e social, consequentemente, ampliando as possibilidades de desenvolvimento do pensamento. Segundo Quadros (2006), a recomendação do SEESP/MEC para o ensino da Língua Portuguesa escrita, como segunda língua das pessoas com surdez, ocorre em função da Língua Portuguesa ser, pela Constituição Federal, a língua oficial do Brasil, ou seja: “[...] é a língua cartorial em que se registram os compromissos, os bens, a identificação das pessoas e o próprio ensino”. Portanto, seu uso é obrigatório nas relações sociais, culturais, econômicas (mercado nacional), jurídicas e nas instituições de ensino e seu uso é fundamental para que as pessoas com surdez exerçam plenamente sua cidadania. Vale destacar, ainda, que mais do que a utilização de uma língua, os alunos com surdez precisam de ambientes educacionais estimuladores, que desafiem o pensamento, explorem suas capacidades, em todos os sentidos. Isso implica uma política educacional que respeite a singularidade lingüística desses alunos e as características específicas em relação as suas experiências que traduzem-se de forma visual e se manifestam mediante a coletividade que se constitui a partir da convivência entre pessoas com surdez. Ao ter contato com seus pares que usam a língua de sinais, o aluno com surdez poderá mergulhar no fluxo da comunicação e ter, então, o despertar da consciência de sua identidade surda. Diante do exposto, no ano de 2008, damos início à implantação de um projeto educacional bilíngüe, visando atender aos pressupostos inclusivos e às necessidades educacionais especiais dos alunos com surdez em Unidades de Ensino referência. Essas Unidades de Ensino estão, estrategicamente, localizadas para atender a demanda dos referidos alunos, que no ano de 2007 encontravam-se matriculados em diversas Unidades de Ensino municipais sem a garantia do atendimento educacional comum e especializado, necessário para atender às especificidades de seu processo de ensino-aprendizagem. A proposta se justifica visto a necessidade de providências técnico/administrativas e organizacionais das escolas, que possibilitem a interação entre alunos com surdez e entre os referidos alunos e adultos com surdez. Nesse sentido, a reestruturação pedagógica desenvolvida tanto na sala de aula comum quanto no atendimento educacional especializado, envolve a criação de espaços/tempos escolares e novos cargos conforme encaminhamentos dados em nível federal, a saber: Professor ou Instrutor de LIBRAS; Tradutor e Intérprete de LIBRAS-Língua Portuguesa-LIBRAS; Professor para o Ensino da Língua Portuguesa como segunda língua e Professor regente de classe com conhecimento acerca da singularidade lingüística manifestada pelos alunos com surdez. Tais encaminhamentos considera, também, a necessidade de formação continuada para toda equipe escolar focalizando a surdez, a LIBRAS e a Língua Portuguesa como segunda Língua, assim como o uso de metodologias e estratégias de ensino para atender alunos com surdez em interação com ouvintes. De acordo com o Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005, para resguardar o direito de opção da família ou do próprio aluno com surdez pela modalidade oral da Língua Portuguesa, é necessário que essa modalidade deva ser ofertada, preferencialmente, em turno distinto ao da escolarização, por meio de ações integradas entre as áreas da saúde e da educação, ficando a definição dos profissionais de fonoaudiologia, assim como os espaços de atendimento para o desenvolvimento da modalidade oral, sob a responsabilidade de órgãos que possuam estas atribuições nas unidades federadas.

Page 168: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

167

3. OBJETIVO GERAL

Implementar uma “Política de Educação para Alunos com Surdez” no Sistema Municipal de Ensino de Vitória, atendendo as Diretrizes da atual Política Nacional de Educação Inclusiva, garantindo a implantação de um projeto educacional bilíngüe, respeitando a experiência visual e lingüística do aluno com surdez no seu processo de ensino-aprendizagem, utilizando a LIBRAS e a Língua Portuguesa escrita como segunda língua, resguardado o direito de opção da família ou do próprio aluno pela modalidade oral da Língua Portuguesa.

4. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Atender aos princípios da educação inclusiva, garantindo a reorganização/reestruturação de unidades de ensino para que incorporem a LIBRAS no universo escolar, instituindo a educação bilíngüe;

Garantir que o processo de ensino-aprendizagem de alunos com surdez, seja realizado utilizando a LIBRAS e o Português escrito como segunda língua;

Desenvolver metodologias de ensino-aprendizagem com didáticas próprias para garantir a educação bilíngüe;

Promover a reorganização da sala de aula comum e o desenvolvimento de ações pedagógicas para atender às necessidades de ensino-aprendizagem das pessoas com surdez em interação com ouvintes;

Reestruturar a ação pedagógica desenvolvida pelo Atendimento Educacional Especializado - AEE para atender às necessidades educacionais especiais dos alunos com surdez (Ensino de LIBRAS, em LIBRAS e modalidade escrita da Língua Portuguesa);

Promover ações integradas com instituições especializadas na área da surdez, para definições de locais e profissionais especializados no desenvolvimento de ações pedagógicas complementares e suplementares, visando atender às necessidades educacionais especiais dos alunos com surdez quando eles próprios ou seus familiares optarem pela modalidade oral da Língua Portuguesa.

5. CARACTERÍSTICAS DO PROJETO DE EDUCAÇÃO BILÍNGÜE: A proposta de Educação Bilíngüe do Sistema Municipal de Ensino de Vitória, fundamentada na filosofia da inclusão, incorpora a LIBRAS e a modalidade escrita da Língua Portuguesa como línguas de instrução do aluno com surdez no universo de sete Unidades de Ensino Fundamental (AA, ABL-diurno e noturno, ASFA, IMS, JKO, MJCM, SVP) e em duas Unidades de Educação Infantil (JFSS, DS), totalizando nove escolas localizadas em regiões estratégicas, para atuarem como escolas referência no processo de escolarização dos referidos alunos, respeitando a identidade surda que se manifesta mediante a coletividade que se constitui a partir da convivência entre as pessoas com surdez. Nessa perspectiva, a partir de 2008, a Secretaria Municipal de Educação de Vitória busca concentrar a matrícula de alunos com surdez nas nove escolas referência, visando possibilitar a interação entre alunos com surdez e entre os referidos alunos e profissionais adultos com surdez e a otimização das ações técnico-pedagógicas e administrativas necessárias à materialização do uso da LIBRAS no universo escolar. Com essas ações, vem garantir o garantir o Atendimento Educacional Especializado no contra-turno, instituindo um projeto socioeducacional em tempo integral voltado para atender às necessidades educacionais especiais dos alunos com surdez.

a) OPERACIONALIZAÇÃO

Sensibilizar familiares, alunos com surdez e a comunidade escolar para a adesão ao projeto de Educação Bilíngüe.

Concentrar, gradativamente, a matrícula de alunos com surdez nas nove escolas referência.

Page 169: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

168

Disponibilizar transporte ou Vale Social, se for o caso, para deslocamento de alunos de suas residências às Unidades de Ensino referência, e retorno às suas residências.

Criar tempos/espaços escolares para o ensino, uso e difusão da LIBRAS no universo escolar (alunos com surdez, demais alunos, profissionais da escola e a comunidade escolar).

Localizar nas escolas referência os recursos humanos necessários à implementação da Educação Bilíngüe.

Criar espaços/tempos de formação em serviço para atuação profissional na perspectiva da Educação Bilíngüe.

Ressignificar o atendimento educacional especializado voltado para os alunos com surdez.

Ressignificar a práxis pedagógica no contexto geral da escola para atender à especificidade dos processos de ensino aprendizagem do aluno com surdez.

b) Quanto aos recursos humanos

Localizar professores e/ou Instrutores de LIBRAS e em LIBRAS (surdo), nas escolas referência.

Localizar professores ouvintes bilíngües para o ensino de Língua Portuguesa como segunda língua e/ou professor de Deficiência Auditiva, caso o quantitativo de professores bilíngües não atenda a demanda existente.

Localizar Tradutores e Intérpretes de LIBRAS-Língua Portuguesa-LIBRAS redimensionando o papel/função do Tradutor e Intérprete no universo escolar. 2.Quanto aos processos de formação em serviço

2. Criar espaços/tempos para formação continuada dos profissionais especializados na área da surdez, para atuarem na perspectiva da Educação Bilíngüe inclusiva.

3. Criar espaços/tempos para formação em serviço contemplando todos os profissionais das escolas referência por meio de encontros periódicos coletivos e no próprio lócus da escola, incluindo em alguns momentos toda a comunidade escolar.

6.3. Quanto ao Atendimento Educacional Especializado - AEE

Criar espaços escolares para o ensino de LIBRAS e em LIBRAS e da modalidade escrita da Língua Portuguesa para os alunos com surdez (legalmente contra-turno numa proposta de horário integral).

Reestruturar a ação pedagógica desenvolvida no Atendimento Educacional Especializado para o ensino de LIBRAS, em LIBRAS e da modalidade escrita da Língua Portuguesa;

Implementar metodologias de ensino-aprendizagem e desenvolvimento de didáticas próprias para alunos com surdez no Atendimento Educacional Especializado.

6.4. Processo de ressignificação da práxis pedagógica

Subsidiar o professor regente de classe com conhecimentos acerca da singularidade lingüística e especificidade educacional manifestada pelos alunos com surdez.

Adquirir e confeccionar material didático para a criação de ambientes educacionais estimuladores que desafiem o pensamento, explorem capacidades, em todos os sentidos, levando em consideração que as experiências de pessoas com surdez traduzem-se de forma visual, sendo que esses materiais e ambientes beneficiam também o processo de ensino-aprendizagem dos demais alunos;

Implementar metodologias de ensino-aprendizagem e desenvolvimento de didáticas próprias desenvolvidas em salas de aula comuns compostas por alunos com surdez em interação com ouvintes;

Page 170: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

169

Adotar mecanismos de avaliação coerentes com aprendizado de segunda língua, na correção das provas escritas, valorizando os aspectos semânticos e reconhecendo a singularidade lingüística manifestada no aspecto formal da Língua Portuguesa pelos alunos com surdez.

Redimensionar o quantitativo de alunos em salas de aula compostas por alunos ouvintes e alunos com surdez, respeitando o fluxo.

7. UNIDADES DE ENSINO REFERÊNCIA PARA A EDUCAÇÃO BILÍNGÜE

7.1 Educação Infantil

CMEI LOCALIZAÇÃO TURNO RECURSOS HUMANOS PREVISTOS

JFSS DS

Goiabeiras Centro

Opção Horário Integral

Professor Bilíngüe

Linguagem/Letramento/Alfabetização / Língua Portuguesa

escrita Instrutor de LIBRAS Linguagem / LIBRAS

7.2 Educação de Jovens e Adultos

EMEF LOCALIZAÇÃO TURNO RECURSOS HUMANOS PREVISTOS

ABL Bento Ferreira

Noturno Contra-turno

Matutino Vespertino

Tradutor Intérprete

Professor Bilíngüe Português escrito

Instrutor de LIBRAS

Ensino de Libras e/ou em Libras

7.3. Ensino Fundamental

EMEF LOCALIZAÇÃO TURNO RECURSOS HUMANOS PREVISTOS

AA ABL ASFA IMS JKO MJCM SVP

Santo Antônio Bento Ferreira

Jardim Camburi Andorinhas Maria Ortiz São Pedro

Centro

Integral

OU

Contra-Turno:

Matutino Vespertino

Tradutor Intérprete

Professor Bilíngüe

Português escrito

Instrutor de Libras Ensino de Libras e/ou em Libras

8. DESCRIÇÃO DAS FUNÇÕES REFERENTES AOS CARGOS DE PROFESSOR BILÍNGÜE/DEFICIÊNCIA AUDITIVA, INSTRUTOR DE LIBRAS E TRADUTOR INTÉRPRETE LIBRAS-LÍNGUA PORTUGUESA-LIBRAS 8.1. Professor Bilíngüe/Deficiência Auditiva Garantir o ensino de Língua Portuguesa aos alunos com Surdez da Educação Infantil às séries finais do Ensino Fundamental, incluindo EJA; ministrar aulas como forma de complementação e suplementação curricular utilizando a LIBRAS como língua de instrução para o aprendizado da Língua Portuguesa como segunda língua; desenvolver e adotar mecanismos de avaliação coerentes com o aprendizado de segunda língua, na correção das provas escritas, valorizando o aspecto semântico e reconhecendo a singularidade lingüística manifestada no aspecto formal da Língua Portuguesa; confeccionar, solicitar, disponibilizar e orientar a utilização de recursos didáticos que apóiem o processo de escolarização do aluno com surdez; planejar e acompanhar as atividades pedagógicas desenvolvidas em parceria com os demais profissionais da unidade de ensino e comunidade escolar, quando necessário, em consonância com o Projeto Político Pedagógico; exercer a função de Tradutor e Intérprete de LIBRAS-Língua Portuguesa-LIBRAS quando necessário.

Page 171: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

170

8.2. Instrutor de LIBRAS Apoiar o uso e a difusão da LIBRAS; ministrar aulas de LIBRAS na Educação Infantil e Ensino Fundamental, incluindo EJA, no atendimento educacional especializado e para toda a comunidade escolar; utilizar a Libras como língua de instrução, como forma de complementação e suplementação curricular; desenvolver e adotar mecanismos de avaliação alternativos ou não, referentes ao aprendizado dos conteúdos curriculares expressos em LIBRAS, desde que devidamente registrados em vídeo ou em outros meios eletrônicos; orientar alunos com surdez no uso de equipamentos e/ou novas tecnologias de informação e comunicação; confeccionar, solicitar, disponibilizar e orientar a utilização de recursos didáticos que apóiem o processo de escolarização; planejar e acompanhar as atividades pedagógicas desenvolvidas em parceria com os demais profissionais da unidade de ensino e comunidade escolar, quando necessário, em consonância com o Projeto Político Pedagógico da escola. 8.3. Tradutor e Intérprete de LIBRAS-Língua Portuguesa-LIBRAS Realizar a interpretação das duas línguas (Libras-Língua Portuguesa) de maneira simultânea e consecutiva; viabilizar o acesso aos conhecimentos e conteúdos curriculares em todas as atividades didático-pedagógicas colocando-se como mediador da comunicação e não como facilitador da aprendizagem; viabilizar a comunicação entre usuários e não usuários de LIBRAS em toda a comunidade escolar; apoiar a acessibilidade aos serviços e as atividades fim da instituição de ensino: secretaria, informática, fotocopiadora, biblioteca, seminários, palestras, fóruns, debates, reuniões e demais eventos de caráter educacional; participar do planejamento, acompanhamento e avaliação das atividades pedagógicas desenvolvidas com alunos com surdez, em parceria com os demais profissionais da Unidade de Ensino e comunidade escolar, quando necessário, em consonância com o projeto político pedagógico; observar preceitos éticos no desempenho de suas funções, entendendo que não poderá interferir na relação estabelecida entre a pessoa com surdez e a outra parte, a menos que seja solicitado.

9. ORIENTAÇÃO PARA A ORGANIZAÇÃO PEDAGÓGICA Para desenvolver as ações necessárias à efetivação da prática da Educação Bilíngüe, seguem as orientações acerca dos espaços/tempos para o exercício das atribuições/funções dos Professores bilíngües/deficiência auditiva, Instrutores de LIBRAS,Tradutores e intérpretes. 9.1. Professor Bilíngüe e Deficiência Auditiva – 25 horas

ATRIBUIÇÕES 2ª FEIRA 3ª FEIRA 4ª FEIRA 5ª FEIRA 6ª FEIRA

AEE – Atendimento Educacional Especializado para o ensino da Língua Portuguesa (contra-turno). (No noturno/AEE poderá ser no mesmo turno)

Confeccionar, solicitar, disponibilizar e orientar a utilização de recursos didático-tecnológicos.

Planejar as atividades de Língua Portuguesa desenvolvida no Atendimento Educacional Especializado.

Planejar e acompanhar as atividades desenvolvidas na sala comum, em parceria com os pedagogos e professores regentes do turno, na perspectiva do trabalho colaborativo.

IN - TER - VA - LO

Page 172: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

171

ATRIBUIÇÕES 2ª FEIRA 3ª FEIRA 4ª FEIRA 5ª FEIRA 6ª FEIRA

Desenvolver junto aos pedagogos e professores regentes mecanismos de avaliação coerentes com o aprendizado de segunda língua na correção das provas escritas.

Exercer a função de tradutor e intérprete quando a CFAEE, junto com a escola, considerar necessário.

9.2. Instrutor de LIBRAS – 40 horas (20 horas matutino / 20 horas vespertino)

ATRIBUIÇÕES HORA 2ª FEIRA 3ª FEIRA 4ª FEIRA 5ª FEIRA 6ª FEIRA

Ensino de LIBRAS na sala de aula comum de 1ª à 4ª séries (alunos e professor regente juntos) (no turno).

Ensino de LIBRAS na sala de aula comum de 5ª à 8ª séries (no turno - preferencialmente alunos e um professor regente juntos).

Ensino de LIBRAS para os professores de 5ª à 8ª séries, demais profissionais da escola e familiares de alunos (dentro ou fora horário de trabalho).

IN - TER - VA - LO

Ensino de LIBRAS aos alunos com surdez no AEE (contra-turno).

Planejar as atividades para o ensino de LIBRAS (ambos os turnos).

Planejar e acompanhar as atividades desenvolvidas na sala comum, em parceria com os pedagogos e professores regentes (ação colaborativa/ambos os turnos).

ALMOÇO HORÁRIO INTEGRAL OU SEMI-INTEGRAL

Ensino do conteúdo curricular em LIBRAS no AEE (conceitos novos dos conteúdos curriculares trabalhados em sala de aula comum (no contra-turno).

Planejar as atividades para o ensino em LIBRAS (conceitos novos dos conteúdos curriculares trabalhados em sala de aula comum) (ambos os turnos).

Orientar os alunos com surdez no uso de materiais didáticos/equipamentos; uso de tecnologias e comunicação (ambos os turnos).

IN - TER - VA - LO

Page 173: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

172

ATRIBUIÇÕES HORA 2ª FEIRA 3ª FEIRA 4ª FEIRA 5ª FEIRA 6ª FEIRA

Confeccionar, solicitar e disponibilizar recursos didático-pedagógicos (ambos os turnos).

Desenvolver e adotar mecanismos de avaliação alternativos ou não, referentes ao aprendizado dos conteúdos curriculares expressos em LIBRAS, desde que devidamente registrados em vídeo ou em outros meios eletrônicos e, em parceria, com pedagogos e professores regentes (ambos os turnos)

9.3. Tradutor e Intérprete de LIBRAS-Língua Portuguesa- LIBRAS – 40 horas (20 horas matutino / 20 horas vespertino)

ATRIBUIÇÕES HORA 2ª FEIRA 3ª FEIRA 4ª FEIRA 5ª FEIRA 6ª FEIRA

Viabilizar a comunicação entre usuários e não usuários de LIBRAS em todo o contexto escolar.

Realizar a tradução e interpretação LIBRAS-Língua Portuguesa-LIBRAS na sala de aula comum.

Planejar e/ou participar dos planejamentos com os pedagogos e professores regentes, para conhecer antecipadamente o conteúdo curricular das aulas a serem traduzidas/interpretadas.

IN - TER - VA - LO

Colocar-se como mediador da comunicação nas atividades desenvolvidas na biblioteca que envolvam alunos com surdez .

Colocar-se como mediador da comunicação nas atividades desenvolvidas no Laboratório de Informática que envolvam alunos com surdez.

Colocar-se como mediador da comunicação nas demais atividades didático-pedagógicas que envolvam alunos com surdez.

ALMOÇO HORÁRIO INTEGRAL OU SEMI-INTEGRAL

Orientar os alunos com surdez no uso de materiais didáticos/equipamentos; uso de tecnologias e comunicação com a comunidade escolar.

Apoiar a acessibilidade comunicativa dos alunos com surdez: secretaria, fotocopiadora, reuniões, eventos educacionais etc.

Page 174: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

173

ATRIBUIÇÕES HORA 2ª FEIRA 3ª FEIRA 4ª FEIRA 5ª FEIRA 6ª FEIRA

Participar do planejamento, acompanhamento e avaliação das atividades desenvolvidas com alunos com surdez, na perspectiva do trabalho colaborativo.

IN - TER - VA - LO

Apoiar a acessibilidade comunicativa dos alunos com surdez em seminários, palestras, fóruns e debates.

10. CONSIDERAÇÕES Sabemos que a inclusão do aluno com surdez deve acontecer desde a educação infantil até a educação superior. Assim sendo, cumpre-nos garantir, desde cedo, as condições para que este aluno utilize os recursos que necessita para superar as barreiras em seu processo educacional, podendo assim usufruir seus direitos escolares, exercendo sua cidadania, de acordo com os princípios constitucionais do nosso país (BRASIL, 2007, p. 14). Esta proposta de educação bilíngüe, vem assim assinalar um ponto de partida de um trabalho que se volta para as necessidades dos alunos com surdez, considerando, sobretudo, que sua inclusão na escola comum requer a busca de meios para beneficiar sua participação e aprendizagem, tanto na sala de aula comum, como no Atendimento Educacional Especializado. Estas ações, em harmonia, podem a nosso ver ser consideradas, conforme escreve Doziart (1998) como o “(...) aperfeiçoamento da escola comum em favor de todos os alunos”. 11. REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVARENGA, E. G. de, BATISTA, E. R. & FLORES, A.C.. A surdez e seus desafios. In: Cadernos de ensino de ciências-ensino e saúde, Rio de Janeiro, vol. 1, p. 51-57, 2004. BRASIL. Ensino de Língua Portuguesa para surdos: caminhos para a prática pedagógica. Vol. 1 e 2. Brasília:MEC-SEESP, 2002. _______. Decreto-lei nº 5.626 de 22 de dezembro. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília: 2005. _______. Lei nº 10.436 de 24 de abril de 2002. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília: 2002. _______. Atendimento educacional especializado: pessoa com surdez. (organizado por Mirlene F. M. Damázio). SEESP-MEC, Brasília: 2007. FERNANDES, Eulália (org.). Surdez e bilingüismo. Porto Alegre: Mediação, 2005. GOLDFELD, Márcia. A criança surda: linguagem e cognição numa perspectiva sócio-interacionista. São Paulo, Plexus, 2001. REILY, Lúcia. Escola inclusiva: linguagens e mediações. Campinas, SP: Papirus, 2004.

Page 175: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

174

ANEXO – H

ALFABETO MANUAL – DATILOLOGIA

Page 176: UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTOportais4.ufes.br/posgrad/teses/nometese_169_GLEICE LANE...Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da

175

ANEXO – I

QUADRO DE CONFIGURAÇÕES DE MÃOS

Fonte: www.feneis.com.br