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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS,LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA Renata Marcela Gabardo de Sousa AS INTERAÇÕES E O SENSO DE JUSTIÇA COMUM LAGUNA 1815-1823 CURITIBA 2008

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE CIÊNCIAS … · importante ressaltar, nesse contexto, a lógica da equidade, que fazia parte da distinção dos sujeitos sociais. ... 2 LEVI,

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS,LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA

Renata Marcela Gabardo de Sousa

AS INTERAÇÕES E O SENSO DE JUSTIÇA COMUM

LAGUNA 1815-1823

CURITIBA

2008

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Renata Marcela Gabardo de Sousa

AS INTERAÇÕES E O SENSO DE JUSTIÇA COMUM

LAGUNA 1815-1823

Monografia apresentada à Universidade Federal do Paraná como requisito parcial para a obtenção do título de bacharel em História. Orientador: Prof. Dr. Carlos Alberto Medeiros Lima.

CURITIBA

2008

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AGRADECIMENTOS

À realização deste trabalho, devo em primeiro lugar a Deus, por ter colocado

em meu caminho todas as pessoas que de alguma forma me apoiaram. Meus pais,

Claudete e Itapuan, pelo esforço que fizeram pela minha educação; por terem

depositado suas melhores expectativas de futuro; e finalmente, respeitarem e

apoiarem as minhas escolhas.

Minhas meninas, Giovana e Rafaela, que deram novo sentido à minha vida.

Irmãs a quem tento dar os melhores exemplos. Fábio, melhor amigo, companheiro,

namorado, marido; seu apoio impulsionou a minha formação. Sua compreensão

evitou que a minha ansiedade me prejudicasse. Seu suporte emocional me conteve

tantas vezes em momentos de crise.

Meus amigos, Stefani Arrais Nogueira, Priscila de Lima; bem como tantos

colegas, por tornarem os dias na universidade mais agradáveis e a cantina tão

aconchegante.

Professor, Carlos Alberto Medeiros Lima, sempre disponível para orientar; a

dedicação, o entusiasmo com o trabalho, sobretudo a paciência dedicada foram

essenciais para que eu chegasse ao fim desta jornada. Além do trabalho de

orientador de pesquisa, foi um encorajador em muitos momentos, o que também me

incentivou a seguir sempre em frente.

Serginho, amigo de todos; nosso apoio dentro da universidade, para corrigir

os erros; e como precisei de sua ajuda. Sou grata a cada correção de matrícula, ou

orientação de como proceder diante das questões internas.

Todos os professores do Departamento de História, que contribuíram para a

formação e crescimento, seja dividindo seu conhecimento, seja criticando. Enfim, a

todos que de alguma forma me apoiaram, suportaram, ensinaram, o meu: Muito

Obrigada!

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RESUMO

O objetivo deste estudo consiste na observação da dinâmica das interações sociais, em Laguna do início do século XIX. Dentro de um contexto mais amplo, da Colônia, a região estudada não representou um centro agroexportador baseado na mão-de-obra escrava; antes, mantinha sua produção, mantida por lavradores, voltada para o abastecimento interno. A partir desse quadro, analisamos as relações entre senhores e escravos, os laços que definiam a vizinhança e a família. Por fim, o lugar da violência e das transgressões aos valores leva à noção local de justiça comum, que definiu o teor dos registros de querelas.

Palavras-chave: relação senhor - escravo; interações de vizinhança; senso de justiça.

ABSTRACT

The purpose of this study is the observation of the dynamics of social interactions in Laguna at the beginning of the XIX century. Within a broader context, of the Colony, the studied region was not considered an agro-exporter center based on slave-labor; as a matter of fact, maintained its production held by farmers and aiming the internal supply. From this context, it was analyzed the relations between masters and slaves, the ties that defined family and neighborhood. Finally, the place of violence and transgression of the values lead to the concept of local justice, which defined the content of the quarrels’ records.

Key-words: relation master-slave; neighborhood interactions; sense of justice.

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SUMÁRIO

1. Introdução ____________________________________________________________ 1

2. Laguna – Contexto Histórico _____________________________________________ 3

3. Entre resistência e a acomodação: escravos e senhores frente à escravidão._______ 10

3.1 Tensão e Acomodação: Autonomia e Reconhecimento. _________________________ 12

3.2 A Posição Senhorial Frente os Escravos ______________________________________ 19

4. Vizinhos Divergentes: dependência ou individualização_______________________ 23

4.1 A vizinhança: sua forma e variações locais ___________________________________ 24

4.2 A Violência Banalizada ___________________________________________________ 26

4.3 A propriedade alheia _____________________________________________________ 31

5. Direito oficial e o senso de justiça comum __________________________________ 36

5.1 As reais expectativas em relação à justiça ____________________________________ 40

5.2 Mulheres violentas, homens desesperados ____________________________________ 44

6. Conclusão____________________________________________________________ 50

7. Referências___________________________________________________________ 53

ANEXO A – RELAÇÃO DE QUERELANTES, QUERELADOS E TESTEMUNHAS 56

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1. Introdução

O objetivo do estudo que segue, consiste em avançar sobre algumas questões

que compunham o tecido social da Laguna, do início do século XIX. A saber,

privilegiamos as relações travadas entre senhores e seus cativos, os laços de

vizinhança, de família. Transitamos por questões envolvendo propriedade, por fim

chegamos ao senso comum de justiça que pairava sobre os costumes daquela

sociedade.

Para tais considerações é importante ressaltar o caráter predominantemente

rural da região, composto principalmente por pequenos lavradores, que

direcionavam o escoamento de sua produção ao abastecimento interno. Entretanto,

apesar da posição periférica em relação à Metrópole e a outras regiões centrais da

Colônia, Laguna desenvolveu uma dinâmica própria, no âmbito político, jurídico,

administrativo, dentro da qual, as elites ocupavam os cargos mais significativos na

Câmara.1 Dessa forma, buscamos especificidades para as questões envolvidas nesta

análise, apesar das considerações gerais que envolviam as estruturas sociais.

A fonte trabalhada consiste no Livro de Querelas da Comarca da Laguna de

1815 a 1830. Partindo do teor de vinte e três registros de querelas, bem como de

dois termos de desistência de querela, nos debruçamos a analisar o que teria sido

quebrado, no universo das relações, quando de agressões violentas, ou de

transgressões de normas socialmente instituídas pela experiência social.

Centralizando as concepções acerca das distinções entre os indivíduos, bem

como das interações sociais; trabalhamos basicamente com a perspectiva de uma

sociedade corporativa, na qual cada um ocupava o seu lugar e recebia de acordo

com a sua posição social. Dessa forma, quando tratamos das relações travadas

dentro dessa dinâmica, torna-se vital considerar a categoria da reciprocidade, na

base de tais relacionamentos, com as práticas bilaterais de dom e contra dom. É

importante ressaltar, nesse contexto, a lógica da equidade, que fazia parte da

distinção dos sujeitos sociais. Tal categoria (equidade) representa a imagem do que 1 KÜHN, Fabio. Gente da Fronteira: Família, Sociedade e Poder no Sul da América Portuguesa – século XVIII. Tese de Doutorado. Pp: 309-310.

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é justo, considerando uma sociedade desigual, hierarquizada e corporativa; no

entanto justa de acordo com os princípios da justiça distributiva, a qual dá a cada

um segundo seu status social.2

Partindo desses elementos que influenciam a experiência social, pretende-se

analisar as interações desenroladas entre senhores e escravos, vizinhos, relações

familiares e por fim, a expectativa dos sujeitos em relação à atuação da justiça. Isso

porque o exame feito das instituições sociais se deu a partir de queixas registradas,

cujos teores nos revelam alguns valores praticados pelos indivíduos.

As narrativas das transgressões ou de atos violentos surgem, em muitos

casos, sob a forma de discursos em nome da moral, dos bons costumes. Assim,

mesmo em casos de conflitos do cotidiano, em que as leis não teriam sido violadas,

os indivíduos buscavam legitimidade para sua querela nos costumes.

Partindo desse panorama geral da sociedade, trabalharemos com as relações

entre escravos e seus senhores; com as relações entre vizinhos ou indivíduos que

compartilham uma proximidade espacial; bem como com alguns pontos que

definiam os relacionamentos entre familiares; a saber, levando em conta o modelo

patriarcal. Por fim, após delinearmos alguns elementos das instituições, através das

narrativas de crimes cometidos, buscaremos, com a análise do teor dos registros,

definir o senso comum de justiça que compartilhavam os moradores da Laguna.

Com isso, alguns valores socialmente instituídos virão à tona, para esclarecer os

reais motivos das queixas, ou mesmo para legitimar as demandas.

2 LEVI, Giovanni. Reciprocidad Mediterránea. Universidad de Venecia. Pp: 1-3.

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2. Laguna – Contexto Histórico

Diante do objetivo de analisar instituições sociais que marcaram a região sul

em fins do período colonial, mais especificamente a Laguna do início do século

XIX, surgem questões que remontam a considerações históricas anteriores a este

período; necessárias para a compreensão da sua formação regional.

Resultado da expansão vicentina das bandeiras ao sul, Laguna carrega o

nome de Domingos de Brito Peixoto como seu fundador. Acometido do impulso da

busca pelo ouro que fez, por muito tempo, os paulistas enfrentarem os sertões, o

referido Domingos de Brito Peixoto acompanhado por seus filhos fundou ali uma

colônia e ergueu uma igreja invocando a Santo Antonio dos Anjos. A data de tal

fundação ainda é discutida, no entanto é sabido, consensualmente, que a chegada da

família Brito Peixoto à atual Laguna ocorreu em meados do século XVII; a região

era, até então, habitada por tapuias.3

O povoado de Laguna elevado à categoria de vila em 1714, mantinha sob sua

jurisdição boa parte do atual Rio Grande do Sul, até metade do século XVIII.

Muitos de seus moradores participaram da conquista e povoamento do Rio Grande

de São Pedro, no movimento de migração para o Sul. Depois disso, por ser uma

região portuária se transformou em ponto estratégico e de defesa do Rio Grande.4

A composição demográfica apresenta uma curiosidade peculiar do local. Em

7 de novembro de 1910, o Capitão Tenente Arnaldo Siqueira Pinto da Luz ofereceu

para o Arquivo do Estado a relação das Vilas e Freguezias que compreendiam a

Província da Ilha de Santa Catarina e o seu continente da Terra Firme, com a

respectiva população dos anos de 1796 e 1821. A trajetória populacional neste

intervalo de tempo é significativa para a compreensão de alguns aspectos que

delinearam o perfil da região: A vila de Santo Antonio dos Anjos da Laguna, ereta

Freguezia em 1725 e vila em 1730, na Terra Firme do rio Mambituba , extremidade

3 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem a Curitiba e Província de Santa Catarina. Pp: 197. 4 KÜHN, Fabio. Gente da Fronteira: Família, Sociedade e Poder no Sul da América Portuguesa – século XVIII. Tese de Doutorado. Pp: 111-112.

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da Província ao sul possuía, em 1796, 620 fogos com 4200 almas.5 Dados esses

números, apesar de não podermos precisar os números que compunham cada fogo a

média geral das famílias seria de um casal com quatro ou cinco filhos; uma

composição razoável para a típica agricultura familiar das pequenas propriedades.

A mesma fonte traz para o ano de 1821, um dado curioso, o registro de 1060

fogos com 4598 almas.6 A população não aumentou significativamente, o que é

perfeitamente compreensível dado o intervalo de tempo de vinte e cinco anos entre

um levantamento e outro. No entanto o número de fogos quase dobrou no mesmo

intervalo considerado, gerando um fenômeno incomum para o período, apesar de

não podermos precisar o número de almas por fogo, a média seria de famílias

compostas pelo casal e dois filhos, o que contradiz a regra da família numerosa para

exercer o trabalho na lavoura familiar, característica de regiões “periféricas”, onde a

escassez de recursos imperava. Além disso, a estabilização populacional apresenta

também uma contradição aos interesses, da Coroa Portuguesa, de povoar a região

promovendo a fixação de casais açorianos na região, durante o século XVIII.7

No entanto, uma possível explicação para o grande número de fogos (em

relação ao número de almas), pode estar ainda na política da Coroa. Quando da

primeira chegada de açorianos à Ilha de Santa Catarina, o anúncio do Brigadeiro

José da Silva Paes, acerca do cumprimento das determinações régias : “Na

passagem das Ilhas para aquy, e ainda nas mesmas Ilhas, se ajustarão alguns

casamentos de moços e moças solteiras...”.8 Os documentos trabalhados por Walter

Piazza, referem-se em todo momento, à política da Coroa no sentido de promover a

colonização realizada por casais. Nesse mesmo sentido, a Provisão Régia de 9 de

agosto de 1747 esclarecia ao Brigadeiro Silva Paes: “no contorno de cada logar e

nas terras que ainda não estiverem dadas de sesmaria asignalará um quarto de

5 REVISTA TRIMENSAL do Instituto Histórico e Geographico de Santa Catarina. Vol. 2 1913. Florianópolis Santa Catarina. Pp: 2-3. 6 REVISTA TRIMENSAL do Instituto Histórico e Geographico de Santa Catarina. Vol. 2 1913. Florianópolis Santa Catarina. Pp: 3. 7 PIAZZA, Walter F. A Epopéia Açórico- Madeirense 1748- 1756. Florianópolis: Ed. Da UFSC; Ed: Lunardelli, 1992. Pp: 48. 8 PIAZZA, Walter F. A Epopéia Açórico- Madeirense 1748- 1756. Florianópolis: Ed. Da UFSC; Ed: Lunardelli, 1992. Pp: 379-380.

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légoa em quadro a cada um dos cabeças do cazal do mesmo logar”.9 O trecho

acima evidencia, mais uma vez, o incentivo da Coroa na colonização açoriana

estabelecida por casais no sul do Brasil, o que pode ser o reflexo de um grande

número de fogos com poucas almas.

A média de 4 almas por fogo verificada em Laguna, em 1821, se repete em

todas as outras regiões da Província. A partir dessa representação geral de famílias

pouco numerosas, vale uma reflexão acerca da posição da escravidão naquela

sociedade.

Apesar de não termos números acerca da população cativa, é conhecido que a

escravidão na região sul, fora dos grandes centros exportadores, foi

majoritariamente composta por pequenos plantéis, responsáveis pela produção

voltada ao consumo local e ao abastecimento interno. Além disso, os incentivos à

colonização açoriana se davam no tocante à concessão de pequenos pedaços de terra

a casais, visando à reprodução e constituição de famílias para trabalhar nas lavouras

gerando tributos. A coroa proporcionava as ferramentas, casas, pedaços de terra,

sementes, provisões iniciais, e até cabeças de gado10, mas a mão-de-obra ficaria por

conta da reprodução familiar. Assim, apesar de existirem as grandes propriedades

baseadas na mão-de-obra cativa, o que predominava naquela região era a agricultura

familiar, do camponês livre ou mesmo do trabalho de poucos escravos no interior da

pequena propriedade.

Fabio Kuhn percebeu na composição social da Laguna, um traço fortemente

marcado pela agricultura; em 1727, dos 65 casais que residiam no local, 36% eram

lavradores, 32% fazendeiros, 24% pertenciam à nobreza de terras, incluindo nessa

categoria as elites da Câmara. Aliando a esses dados a, também referida por Kuhn,

carência geral de recursos que o Ouvidor Pires Pardinho relatou em sua visita11,

poderíamos relacionar a grande maioria composta por lavradores e ditos

9 PIAZZA, Walter F. A Epopéia Açórico- Madeirense 1748- 1756. Florianópolis: Ed. Da UFSC; Ed: Lunardelli, 1992. Pp: 382. 10 PIAZZA, Walter F. A Epopéia Açórico- Madeirense 1748- 1756. Florianópolis: Ed. Da UFSC; Ed: Lunardelli, 1992. Pp: 184-185. 11 KÜHN, Fabio. Gente da Fronteira: Família, Sociedade e Poder no Sul da América Portuguesa – século XVIII. Tese de Doutorado. Pp: 38-39.

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fazendeiros, à noção de como viveriam as camadas mais pobres da Laguna. A

ênfase dada à análise de questões relacionadas aos lavradores é justificada pelo

grande número destes, envolvidos nos casos de queixas da Laguna oitocentista.

Entre reclamantes e reclamados, parece haver um pequeno universo dominante de

pequenos proprietários, lavradores pobres e analfabetos.

Querelantes Ocupação Quant lavrador 4

Testemunhas Ocupação Quant alcaide 1 canoeiro 1 cocheiro 1 escrivão de vintena 1 feitor 1 ferreiro 1 furriel 1 lavrador 27 lavrador e pescador 3 oficial de pedreiro 1 pedreiro 1 pescador 3 porteiro do auditório 1 sapateiro 3 vive de seus negócios 1 vive de solicitar causas 1

Tabela 1 – Ocupações dos querelantes e testemunhas.

Dentro desse quadro que define, essencialmente, a Laguna no início do

século XIX, faz-se importante inseri-la no contexto mais amplo para em seguida

pontuar as suas especificidades. De acordo com Stuart Schwartz, o final do século

XVIII foi marcado por uma expansão na economia brasileira, liderada por um

renascimento agrícola, que teve sua origem nas reformas promovidas por Marquês

de Pombal. Com isso, o Brasil tornava-se preponderante no quadro da economia

imperial portuguesa, intensificando as culturas voltadas para a exportação.12

O período de intensificação da atividade exportadora se apoiou numa

também expansão da escravidão como mão-de-obra no período final da colônia.

12 SCHWARTZ, Stuart. Escravos, roceiros e rebeldes. Trad. Jussara Simões. Bauru, SP:EDUSC, 2001. Pp: 127-128.

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Para além das importações de escravos destinadas a regiões tradicionais como Rio

de Janeiro e Bahia, localidades como São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul, que

não se caracterizavam pela economia exportadora e preponderância de trabalho

cativo, agora foram impelidas à expansão e maior dependência da mão-de-obra

escrava. Concomitantemente à expansão da economia escravocrata e complementar

a ela, permanece uma situação menos trabalhada pela historiografia, que

caracterizou o desenvolvimento da economia interna através da integração regional

pelo desenvolvimento de um mercado voltado para o abastecimento do mercado

interno e da mão-de-obra escrava que movimentava a máquina exportadora.13

É nesse contexto que encontramos os lavradores da Laguna; no interior de

suas pequenas propriedades, utilizando-se cada vez mais da mão-de-obra escrava na

produção, dedicando-se, sobretudo, à cultura da mandioca para a produção da

farinha, que tinha grande importância na dieta dos trabalhadores livres ou cativos de

diversas regiões do Brasil. É sob esse foco também que podemos constatar uma

mudança na configuração demográfica e social da região. Com o já referido

renascimento agrícola do início do século XIX, o quadro, delineado pelos autores

que analisaram a população no setecentos; assim como os levantamentos

demográficos, acaba sofrendo alterações durante as primeiras décadas do

oitocentos.

Se durante o século XVIII os fogos eram compostos em média por quatro

almas, o que não comportaria grandes números de escravos na sociedade em geral,

no início do XIX, apesar de não podermos precisar para a Laguna, especificamente,

o número de cativos importados para o sul do Brasil mais do que triplicou. Além

disso, a escassez de recursos referida por autores e viajantes da época anterior ao

século XIX, também é provável que tenha sido superada por muitos dos pequenos

proprietários, uma vez que estes passavam pela “progressiva capitalização da

agricultura de subsistência”.14

13 SCHWARTZ, Stuart. Escravos, roceiros e rebeldes. Trad. Jussara Simões. Bauru, SP:EDUSC, 2001. Pp: 129. 14 SCHWARTZ, Stuart. Escravos, roceiros e rebeldes. Trad. Jussara Simões. Bauru, SP:EDUSC, 2001. Pp: 138-139.

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A distinção social acentuada pelo desenvolvimento econômico de Laguna

pode ter sido um catalisador das transformações das relações humanas que

compunham as diversas instituições sociais. O que outrora fora um espaço carente

até mesmo de habitantes, haja vista a promoção da Coroa da colonização açoriana,

se revela, no início do século XIX, um lugar onde conflitos e crimes ocorrem muitas

vezes na disputa por afirmação política, social, e econômica. Sendo o local onde se

registravam as querelas, um espaço público, um dos poucos senão único onde a

população mais carente enxergava a possibilidade de soltar a sua voz, a Câmara

seria a espinha dorsal da vida política da Vila. A partir dela pode-se observar a

dinâmica da municipalidade.

Em primeiro momento, vale salientar que a categoria de vila, à qual Laguna

pertencia, fora “um reflexo da resposta régia à situação resultante de um

povoamento anterior e espontâneo, promovido pelos colonos individualmente, e

cujo crescimento até certo ponto fazia com que a Coroa julgasse necessário prover

a organização de um governo municipal.”15

Vimos sob uma perspectiva econômica, que a região sul do Brasil, sofreu

transformações significativas no final do período colonial; desfazendo-se da noção

simplista e generalizante da predominante pobreza, entrando no circuito do

comércio interno e agroexportador. Russel-Wood reforça a idéia de uma integração

entre as regiões da Colônia e mesmo destas com a Metrópole. Aplicando o modelo

centro-periferia o autor constata uma descentralização política, econômica através

do que chama “autoridade negociada”. Dessa forma, numa paulatina busca por

autonomia, as regiões consideradas anteriormente periféricas tanto em relação à

Metrópole quanto aos grandes centros dentro da Colônia, se posicionam como

atuantes nesta dinâmica institucional que constituiu a sociedade brasileira, através

principalmente da interação, e do desenvolvimento de ferramentas de negociação

com as autoridades metropolitanas. Nesse contexto de desenvolvimento de uma

dinâmica própria de atuação, a municipalidade ocupa um papel central nessa

15 RUSSEL-WOOD, A. J. R. “Centros e periferias no mundo luso-brasileiro, 1500-1808”. In: Revista Brasileira de História. V. 18, n. 36.

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formação, e em suas mais importantes funções, encontravam-se os membros da elite

colonial.16

De acordo com Fabio Kühn, não existia no Brasil uma nobreza ou mesmo

uma fidalguia, no entanto, a elite colonial se considerava uma nobreza nativa,

devido às suas origens remontarem ao passado da conquista da América portuguesa.

Com as mercês recebidas, ocupavam os principais cargos político-administrativos

nas Câmaras. Tinham seu poder galgado na riqueza, na capacidade de

arregimentação de homens para a guerra. Era a esta elite formada pelas,

consideradas, melhores famílias da terra que pertenciam os mais importantes cargos

das Câmaras.17 Era também dentro desses espaços que presenciamos nos registros,

que o exercício da justiça em muitos casos não seguia um código de leis, mas sim

um conjunto de interesses a serviço da elite local.

Para corroborar com esta perspectiva observada na fonte, tem-se o quadro

apresentado por Auguste de Saint-Hilaire, na sua incursão à Ilha de Santa Catarina,

Os juízes viam-se frequentemente embaraçados ao terem que fazer a escolha de leis

que se chocavam entre si; em muitos casos a situação exigia que seguissem sua

própria consciência ou interesse.18 Tal forma da atuação dos juízes pode apresentar

duas facetas: a prática de um direito doutrinal, baseada nos costumes, ou ainda o

reflexo da detenção de um poder em relação às camadas menos favorecidas e neste

caso este poder seria usado para a manutenção da elite local. Trabalharemos a frente

com as duas possibilidades, pois elas não se excluem, pelo contrário,

complementam-se.

16 RUSSEL-WOOD, A. J. R. “Centros e periferias no mundo luso-brasileiro, 1500-1808”. In: Revista Brasileira de História. V. 18, n. 36. 17 KÜHN, Fabio. Gente da Fronteira: Família, Sociedade e Poder no Sul da América Portuguesa – século XVIII. Tese de Doutorado. Pp: 309-310. 18 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem a Curitiba e Província de Santa Catarina. Pp: 182.

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3. Entre resistência e a acomodação: escravos e senhores frente à escravidão.

O objetivo deste trabalho é delinear algumas formas que o convívio entre

senhores e escravos assumiu na região da Laguna, no início do século XIX. Para

isso, utilizaram-se as queixas registradas, e a partir delas serão analisados traços de

expectativas, e posicionamentos diante da instituição da escravidão e diante da

figura do outro.

Maria Sylvia trabalha com a formação de um contingente de homens livres,

por não estarem ligados ao processo agro-exportador de produtos, sobretudo o

açúcar, baseado na grande propriedade. Tais homens livres, também eram

considerados pobres por viverem à margem de uma sociedade que se utilizava da

força de trabalho escrava. A partir desse raciocínio a autora relaciona, diretamente,

a violência à condição de pobreza19.

O modelo, formulado por Maria Sylvia, acerca da estruturação da sociedade

colonial na qual havia uma integração entre o grande proprietário de terra e o

escravo, ocupados na atividade agro-exportadora, cada qual posicionado dentro do

contexto produtivo relegavam o homem livre, despossuído, a uma situação de

desnecessidade do trabalho, ou de exercer atividade econômica significativa.

No entanto, trabalhos mais recentes como o de Agnaldo Valentin apontam

para uma questão que, de certa forma, contradiz o modelo segundo o qual os

homens coloniais possuíam papéis rigidamente estabelecidos. Em trabalho sobre o

cultivo do arroz no Vale do Ribeira, durante o século XIX, o autor aponta para um

crescimento na participação de lavradores ou pequenos proprietários de terra, com

expressiva atuação na economia, utilizando-se de mão-de-obra cativa.20

Ao lado dessa perspectiva que privilegia a existência e participação de

pequenos proprietários de escravos; outro quadro emerge, caracterizado pelo

trabalho na roça, realizado por camponeses de poucos recursos sem a utilização da

mão-de-obra cativa. A percepção destas duas modalidades produtivas, bem como o

exame das interações sociais no interior delas, se constitui em ponto importante para

19 FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens Livres na Ordem Escravocrata. pp. 9-14. 20 Ver gráfico da p. 12. VALENTIN, Agnaldo. O arroz e a estrutura de posse de escravos no Vale do Ribeira (SP) 1801 a 1836.

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a compreensão da região da Laguna colonial, que direcionava sua produção ao

abastecimento do mercado interno.

Dentro desse quadro predominava os pequenos plantéis, o que demonstra que

o esquema grande proprietário e escravo não era o único em jogo; a relação entre

pequenos proprietários e escravos torna-se não apenas real, como essencial para

compreender a dinâmica social de diversas regiões, encarregadas de abastecer

internamente o mercado brasileiro colonial.

Outros autores também observaram a existência de pequenos plantéis na

sociedade colonial, como Eduardo Spiller Penna, estudando o caso do Paraná no

século XIX. Essa observação é de significativa importância para rever alguns

estudos que no passado procuraram diminuir o papel da escravidão no sul do

Brasil.21

Beatriz Mamigonian também contraria a tese da europeização do sul, quando

situa a região no contexto da produção, muito mais voltada para o abastecimento do

mercado interno, principalmente com o cultivo da mandioca, o qual contou com a

força de trabalho escrava dentro das pequenas propriedades. 22

É pelo viés da interação entre os pequenos proprietários de escravos e seus

cativos que se pretende desenvolver esta etapa do trabalho, afinal, a documentação

demonstra que colocar o escravo à parte da dinâmica social não é possível,

conforme revelam os registros.

Neste presente capítulo pretende-se observar a dinâmica cotidiana entre os

escravos e senhores. Para isso, buscar-se-á reconstruir algumas peças desta relação;

dessa forma, questões como a busca por autonomia escrava, a sua mobilidade,

algumas percepções do escravo em relação ao senhor e o inverso, bem como

categorias que classificavam o cativo tornam-se essenciais à realização deste estudo.

21 PENA, Eduardo Spiller. O Jogo da Face. Pp. 23-30. 22 MAMIGONIAN, Beatriz G. Africanos em Santa Catarina: escravidão e identidade étnica (1750-1850)

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3.1 Tensão e Acomodação: Autonomia e Reconhecimento.

Os estudos acerca da escravidão nas Américas, e mais atualmente no Brasil,

têm passado pelo exame desta instituição focando, frequentemente, a temática que

envolve elementos plausíveis para a caracterização de certa autonomia escrava, a

partir de comportamentos cotidianos vislumbrados por práticas culturais, atividades

econômicas e posicionamentos frente aos senhores, denotando a auto-percepção do

cativo enquanto sujeito político inserido na sociedade. Para a discussão do que

chamamos autonomia escrava torna-se pertinente a exposição de algumas

categorias exploradas pela historiografia.

Ao problematizar a questão referente à construção da autonomia do escravo,

Maria Helena Machado traz para o centro da discussão, a problemática envolvendo

as atividades econômicas informais exercidas pelos escravos, bem como a inclusão

delas no sistema econômico mais amplo. Assim, a autora propõe uma revisão da

historiografia que posicionava a figura do cativo, enquanto vítima passiva de um

processo histórico, marcado pela dominação total; e consequentemente o coloca

como agente dentro de um espaço que envolve a sua existência e a resultante

interação com outros sujeitos. (MACHADO, 1988, pp: 143-144)

Partindo de uma visão que privilegia a perspectiva da integração da

sociedade escravista, dentro da qual os escravos criavam seu espaço de autonomia

econômica, social e cultural; respondendo às diferentes situações ora com

acomodação, ora com resistência, moldando assim, o sistema que buscava a sua

sujeição a objetos de trabalho. A partir do quadro geral que envolve a vida escrava,

Maria Helena Machado enfoca a construção da autonomia a partir de atividades

econômicas informais, como a roça no tempo livre, o artesanato e até mesmo furtos

praticados pelos escravos. E para além da compreensão dos efeitos destas atividades

no âmbito da organização interna entre os cativos, Machado sugere a necessidade de

inserir a análise do tema no contexto do sistema econômico geral, pois é preciso

esclarecer o processo econômico e social que permitiu a sua absorção pelo sistema

escravista vigente. (MACHADO, 1988; pp: 146-154)

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Para uma ampliação da concepção envolvendo a construção da já referida

autonomia escrava cabe mencionar o trabalho de Ira Berlin acerca da história da

escravidão nos Estados Unidos. Considerando os elementos já citados como a

capacidade de barganha e mesmo de disputa entre senhores e escravos; Berlin

adentra a dinâmica da formação e reformulação da escravidão para enfatizar, que

embora fora imposta e incentivada por meios violentos, tal instituição também foi

mantida pela negociação. (BERLIN, 2006; pp:15-17)

O capítulo intitulado “Gerações da Travessia” busca o traçado da vida dos

negros na América do Norte, como resultado do encontro entre africanos, europeus

e com os povos do Novo Mundo; tratava-se de indivíduos cosmopolitas, que tinham

sua trajetória de vida marcada pelos enclaves. Local de encontro dos interesses

comerciais africanos e europeus, os enclaves uniam estes povos espacial e

culturalmente, propiciando aos descendentes, frutos da sua união, o conhecimento,

prática e mistura das culturas, africana e européia. (BERLIN, 2006; pp: 35-39)

Os crioulos seguiam padrões europeus no âmbito da religiosidade, da

organização familiar, e ganhavam a vida através de seu conhecimento acerca do

comércio do Atlântico. Assim, forjavam sociedades próprias nem sempre integradas

à dos africanos que dominavam o comércio interno ou dos europeus, que

controlavam o comércio no Atlântico. E até meados do século XIX, existiam

ramificações de famílias crioulas em todos os cantos das Américas e da Europa.

Residindo na Europa ou na África, o seu conhecimento e experiência, mais do que a

cor, separavam-nos dos africanos e dos europeus; estas características fronteiriças

dos crioulos, tiravam-lhes a possibilidade de ter identidade definida, gerando

instabilidade em suas alianças. (BERLIN, 2006; pp: 39-42)

Quando escravizados, por dívidas, crime, heresia, os crioulos eram exilados

em qualquer parte do Atlântico; mas com suas peculiaridades, como a desenvoltura

lingüística ou a agilidade social e cultural causavam temor nos produtores de açúcar

do Novo Mundo. Então, rejeitados pelos grandes proprietários pela sabedoria e

experiência, os crioulos eram enviados a sociedades marginais e tomados por

pequenos produtores. Mas onde estivessem usavam sua língua característica e

instalavam suas instituições específicas de comunidades crioulas; além disso,

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utilizavam-se de suas habilidades para negociar um lugar na ordem social

estabelecida. (BERLIN, 2006; pp: 42-46)

E é a partir dessa concepção do escravo dentro do sistema escravista e de sua

capacidade de negociar suas condições e de se apresentar à sociedade enquanto

sujeito ativo no tocante às questões envolvendo a sua existência, é que se pretende

delinear aspectos das ações autônomas mesmo dentro de um quadro geral de

acomodação por parte dos cativos.

“No dia quinze de março do ano de mil oitocentos e quinze, na vila de

Laguna, em casas do Juiz Ordinário Capitão Antonio Souza França, registrou-se a

querela que dava Gaspar Joze Mendes Braga, morador da vila, de Francisco Mancio

Xavier, também morador da mesma vila. Sua querela consistia nos fatos

apresentados de teor seguinte: diz Gaspar Jozé que é possuidor de um escravo de

nome Felipe, e que o traz em casa de Mariano Jozé de Bitancur para que aprenda o

ofício de sapateiro. Francisco Mancio Xavier pediu ao escravo do suplicante que lhe

fizesse um par de sapatos de seda pelo preço de trezentos e vinte reis. O dito

escravo fez o par de sapatos e ao entregar à filha do suplicado o escravo recebeu

apenas oitenta reis. Dessa forma, o suplicante alega o suplicado não só ter cometido

furto do cabedal, como também do feitio ou jornal que pertencia ao suplicante. Este,

ao tomar conhecimento do fato, quis corrigir seu escravo que, por temor, lhe fugiu e

anda fugido, anotava prejuízo de seu serviço de jornais e como este caso é furtivo

quer o suplicante querelar do suplicado.”

O trecho da querela acima exposta traz alguns aspectos relevantes para as

relações travadas entre senhor e escravo. O objetivo central não é analisar crimes ou

agressões físicas, mas sim utilizar tais atos para identificar elementos que

compunham o tecido social da região estudada. Este é um dos casos que não nos

deixa considerar a figura do escravo apenas como “uma presença ausente”, afinal

para este caso, e para alguns outros, o escravo se constitui em ator principal, apesar

da querela não ter sido registrada por ele ou contra ele.

O caso apresentado traz à tona quatro aspectos fundamentais do ambiente

que envolve o senhor seu escravo. Em primeiro lugar, a possível mobilidade que

adquiriam os escravos jornaleiros. Em segundo, a imagem que Gaspar Jozé Mendes

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Braga de seu escravo, um instrumento de obtenção de lucros que pertencia a ele. O

terceiro ponto, o castigo, ou corretivo, como forma de se reforçar a dominação

exercida pelo senhor em relação ao escravo. O último ponto, único que será

explorado nesse tópico: a reação (fuga) do escravo diante do castigo eminente.

Diversos autores têm discutido o posicionamento escravo diante de situações

críticas; pudemos observar que Maria Sylvia desconsiderou a figura do cativo como

atuante sobre sua própria existência no âmbito das relações sociais que envolviam

homens livres. A fonte não oferece meios de identificar a posição social do

suplicante, mesmo assim, podemos perceber que independente de suas posses ele

interagia de alguma forma com o seu escravo, Felipe.

Alguns estudos produziram, para a historiografia referente à escravidão no

Brasil, sobretudo na década de 70, a idéia do cativo passivo em relação à sua

condição. A partir dessa idéia central outras, como a sua incapacidade de

autogoverno, de sociabilidade, e até de interação no processo de pós-emancipação,

foram expostas.23 No entanto, estudos mais recentes tecem considerações

posicionando a figura do escravo como um agente do meio em que vive, capaz de

utilizar-se de estratégias para inclusive amenizar os efeitos da dominação de seu

senhor, e até mesmo de modificar tais relações.

Eduardo Spiller Penna em seu trabalho intitulado “O Jogo da Face”, expõe

as facetas que o escravo assumia diante de situações de tensão, refutando a imagem

de passividade do cativo, recuperando sua imagem não tanto como vítima da

situação, mas como pessoa capaz de criar gestos e valores que moldavam sua

existência. Ou seja, os cativos não seriam apenas sujeitos condicionados pelo meio

social, mas também agentes dentro deste meio. 24

O argumento de Eduardo Penna reflete a situação em que o escravo Felipe se

encontrava, bem como a saída que ele encontrou para o problema que, naquele

momento, afligia a sua existência. Encontrando-se ele em situação de ser castigado

pelo seu senhor, no momento em que sua versão acerca do ocorrido não teria grande

23 Destacam-se obras clássicas como: IANNI, Otávio. As metamorfoses do Escravo. FERNANDES, F. A Revolução Burguesa no Brasil. CARDOSO. F. H. Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional. 24 PENA, Eduardo Spiller. O Jogo da Face. Pp. 135-166.

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valor, o cativo fugiu. A fuga traz consigo a noção de que a autoridade reconhecida,

ou o sentimento de pertencer a um senhor não consegue ser ouvido quando a

integridade física ou a sobrevivência estão em jogo. Dessa forma, podemos pensar

que apesar da fidelidade que Felipe devotava ao seu dono, voltando de sua jornada e

trazendo a ele o que recebia pelo seu trabalho, o escravo não hesitou em

desconsiderar sua posição quando se sentiu em risco.

Ainda para este caso, outro ponto merece atenção: de acordo com a narrativa

do querelante o escravo trabalhava como jornaleiro exercendo o ofício de sapateiro

fora da casa senhorial. Apesar do lucro de tal atividade pertencer ao senhor, o ato de

realizar algum trabalho fora da casa senhorial confere ao escravo certo grau de

mobilidade. De acordo com Maria Helena Machado, o exercício de algumas

funções independentes do escravo pode ter contribuído para a desagregação da

escravidão. Além disso, os serviços remunerados podem ter preparado a mão-de-

obra escrava para o mercado de trabalho livre no meio rural.25

Um outro ponto que chama atenção para este caso, é o que relata o trecho da

narrativa: “Francisco Mancio Xavier pediu ao escravo do suplicante que lhe fizesse

um par de sapatos de seda pelo preço de trezentos e vinte reis. O dito escravo fez o

par de sapatos e ao entregar à filha do suplicado o escravo recebeu apenas oitenta

reis”. Notamos que além do exercício fora da casa senhorial, embora com o

consentimento e até determinação do proprietário, as relações escravistas se

estendiam para além do esquema “proprietário-escravo”; isto é, num espaço em que

o escravo o era reconhecidamente pela população, como propriedade de alguém, ele

interagia com outros indivíduos, inclusive negociando o valor de seu trabalho.

Outros casos que retratam alguma forma de autonomia dentro da interação

entre senhor e escravo foram observados no contato com a documentação referente

às querelas registradas. Quando nos deparamos com a queixa dada por Paulo Pinto

de Araujo da viúva Laurianna, encontramos uma situação bastante peculiar. A razão

da queixa, segundo Paulo Pinto de Araujo, seria que “abusando a suplicada das

Leis usa a prática do diabólico embuste da Mágica do Sortilégio fazendo

25 MACHADO, Maria Helena P. T. Em Torno de uma Autonomia Escrava: Uma Nova Direção Para a História Social da Escravidão. Pp. 149.

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adivinhações com uma peneira e por sorte de dedos iludindo o rude povo a

adivinhar fatos passados e futuros, infamando, assim, a várias pessoas do País

increpando-os em crimes não existentes, motivando discórdias e desassossego entre

as famílias entre cativos e senhorios por cujo motivo não é oculto os estranhos

castigos de açoites que se tem feito”. 26

O trecho acima corrobora com a argumentação já trabalhada, mas vai além

da idéia de uma autonomia baseada em trabalho fora dos domínios senhoriais, ou da

auto-preservação. O teor da querela remete-nos a um elemento bastante

emblemático não só no tocante à autonomia como também no que diz respeito à

identidade individual, ou à percepção de si mesmo diante da sua condição de cativo.

Trata-se da resistência escrava diante dos castigos que “não eram ocultos” e até

pode-se dizer, que eram institucionalizados no universo de senhores e escravos.

Ao analisar as facetas assumidas pelo escravo diante de situações de tensão,

Eduardo Pena observa vários campos nos quais a resistência se fazia presente. Os

escravos podiam demonstrar sua dignidade diante dos castigos físicos e até mesmo

manipular as leis ao seu favor. Enfim, o que o autor trabalhou foi com a capacidade

de resistir a elementos que compunham o quadro da escravidão como a violência, a

injustiça, e até mesmo à arbitrariedade. Dessa forma, trabalhou com a atitude

escrava frente a estas questões, e sua capacidade de defesa de seus interesses. 27

Para o registro apresentado exatamente na passagem em que o querelante

afirma que a querelada estava “motivando discórdias e desassossego entre cativos e

senhorios por cujo motivo não é oculto os estranhos castigos de açoites que se tem

feito”, podemos transportar o argumento exposto por Eduardo Pena. Quando se

trabalha com a escravidão, muitos conceitos são inferidos: o domínio legitimado por

uma condição imposta; o castigo físico como forma de punir, por um ato incorreto,

e até de educar o escravo incapaz de julgamento próprio.

Entretanto o que se pode perceber na passagem referida é que no momento

em que o escravo entra em discórdia com o senhor ele demonstra a capacidade de

questionar a autoridade a qual está submetido. Quando o cativo entra em discórdia

26 Arquivo da Comarca da Laguna. Livro de Querelas 1815-1830. O texto foi pontuado e atualizado para o português atual. 27 PENA, Eduardo Spiller. O Jogo da Face. Pp: 87-91.

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com o seu senhor significa que está em não-concordância com alguma condição à

qual lhe foi imposta. Assim, ele não oferece simplesmente resistência a algum

termo de sua condição, mas também apresenta a capacidade e disposição de

negociar pontos da sua sujeição.

É baseado nessa visão, que privilegia a capacidade autônoma do escravo em

refletir sobre as condições de sua própria existência, que podemos compreender o

fato de “um escravo ter fugido por motivo de ser injustiçado por Maria Cardoza”.

A partir de conflitos envolvendo fuga, discórdia, é que podemos perceber que

mesmo dentro de um quadro de acomodação à dominação, os cativos desenvolvem

uma concepção de si próprios apoiada na idealização do que são dignos de receber.

Além disso, pode-se perceber que nesse cenário do qual fazem parte, sua

movimentação se constitui não apenas em ações designadas e aprovadas pelo seu

senhor, mas também iniciativas próprias, muitas vezes essenciais à sua existência ou

integridade, num âmbito que pode incluir até mesmo o confronto.

Reforçando a tese da busca por autonomia e reconhecimento social, João

José Reis traz, para o centro da discussão, as estratégias utilizadas pelos escravos

para construir esse cenário que no qual seria agente negociador das suas condições.

Além das negociações diretas envolvendo senhores e escravos, o autor aponta para

o que ele chamou de “fuga reivindicativa”. Quando por impaciência do escravo ou

por intransigência do senhor, a negociação não acontecia; então frequentemente o

cativo fugia, com intenção de voltar, apenas para “assustar” o seu dono, ou ainda

para fazê-lo entender que alguma parte da relação estabelecida não estava sendo

cumprida. O susto pregado no senhor, geralmente estava ligado ao

dimensionamento do seu prejuízo decorrente da fuga do cativo, e mapeavam os

limites da submissão. (REIS, 1989; pp: 63-66)

Parece ser este o caso dos escravos fugidos por terem sido injustiçados, a

resistência aos desmandos do seu proprietário falou mais alto do que a acomodação

diante de um sistema instituído de trabalho; dentro do que Reis chamou de um

“paradigma ideológico colonial”, todo o sistema escravista parecia legitimado frente

à sociedade. Mas de acordo com o autor: “entre a oposição física e a submissão

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conformada, existiu um espaço possível de negociação cotidiana.” (REIS, 1989; pp:

67-77)

Os documentos apresentados acima trazem a dualidade do sistema; de um

lado a lógica da dominação senhorial, muito pautada na construção da imagem do

escravo como ferramenta de trabalho, ou mesmo como ser passível de escravização

por condições naturais, e por isso, sujeito a punições por atos cometidos, inclusive

castigos físicos legitimados. De outro lado, tem-se o personagem vivenciado pelo

cativo, agindo à procura de condições de existência enquanto humano, e reivindicar

as implicações de tal humanidade através da negociação.

Para além dos campos de negociação preparados pelos cativos, pode-se

também identificar situações que indicam a dualidade na postura de senhores e

outros homens livres em relação a eles. O mesmo sujeito que lutava por reaver o seu

escravo-propriedade, reconhecia a espontaneidade de suas ações. O mesmo senhor

que exigia o reconhecimento enquanto proprietário, também reconhecia alguma

legitimidade na fuga; o mesmo dono que evocava o direito de castigar, também

concebia a viabilidade do escravo fugir para não apanhar.

3.2 A Posição Senhorial Frente os Escravos

As relações que marcaram o convívio entre senhor e escravo, não poderiam

ser representadas apenas pelas facetas que este assumiu. Na verdade, quando

buscamos compreender a interação que estes indivíduos travaram e vivenciaram, é

necessário levar em conta que os caminhos que percorrem representam vias de mão

dupla. Nesta dialética das relações, “escravos e senhores, mesmo situados em

extremos opostos, se constituíram em elementos interdependentes”.28

Portanto, o tópico que segue tem por objetivo apresentar alguns

posicionamentos de senhores diante de seus escravos, bem como expor elementos

que nos fornecem a concepção que estes homens formavam acerca da escravidão.

Elementos como a obediência, o castigo, o controle, o uso do escravo para fins

28 MACHADO, Maria Helena P. T. Crime e Escravidão. Pp: 13.

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violentos, e até mesmo algum reconhecimento por parte do senhor, contribuíram

para a composição do jogo de poder que os envolvia.

As reflexões acerca da legitimidade da escravidão permeiam a sua existência

desde sua gênese. Ora sendo questionada por abolicionistas, ora sendo defendida a

sua legalidade principalmente por religiosos, a instituição marcou a história

brasileira. O discurso tomado neste trabalho, além da fonte referente à Laguna, vem

do Bispo D. Joze Joaquim da Cunha D’Azeredo Coutinho intitulado “Obras

Econômicas”. Azeredo Coutinho busca legitimar a escravização sob diversos

pontos: social, econômico, político.

O autor defende as Leis contra os preceitos do Direito Natural e,

inicialmente, alega defender o comércio de escravos apenas como forma de atacar

os filósofos iluministas29. Mas ao tratar, logo no início, da legitimidade das leis, o

que o bispo procura é calçar a sua defesa de um sistema cruel desde a sua forma de

organização.

Para construir a legitimidade da escravidão, o autor restringe a liberdade,

defende o relativismo da justiça, pelo princípio da equidade30. Esta se reveste com

uma imagem de justiça dentro de uma sociedade desigual, hierarquizada e

corporativa. Tal forma seria justa segundo os princípios da justiça distributiva (a

cada um segundo seu status social).31

Ao defender a idéia de obediência ao soberano, o reconhecimento da lei do

vencedor e relacionar a noção de liberdade com o direito à propriedade, Azeredo

Coutinho, constrói a sua defesa à existência de uma sociedade hierarquizada, dentro

da qual a escravização não apenas é válida como também é necessária. Assim, os

preceitos que fazem parte do Direito Natural são distorcidos pelo discurso do

religioso que submete o dito Direito à legitimidade da escravidão.32

As idéias, apresentadas e defendidas por Azeredo Coutinho, refletiram um

período vivenciado e praticado pelas sociedades. Apesar de seu aspecto cruel, esta

mentalidade fazia parte das sociedades escravistas, talvez para a própria

29 COUTINHO, J. J. da Cunha de Azeredo. Obras Econômicas (1794-1804). Pp: 235-237. 30 COUTINHO, J. J. da Cunha de Azeredo. Obras Econômicas (1794-1804). Pp: 238-239. 31 LEVI, Giovanni. Reciprocidad Mediterránea. Pp: 1 32 COUTINHO, J. J. da Cunha de Azeredo. Obras Econômicas. 1794-1804). Pp:253-255.

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sobrevivência da instituição. Partindo desse olhar, sob o qual a existência de

escravos em meio a homens livres, como forma natural da dinâmica social, é que

analisaremos alguns aspectos da vida cotidiana que marcaram estas relações;

iniciando pela prática de atividades afora o trabalho comum, como a violência.

O uso da força escrava não esteve restrito apenas ao trabalho no interior da

propriedade. O uso da violência em prol do senhor se constituiu em recurso não

apenas legítimo como fundamental na dinâmica social que envolvia senhores e

escravos. Além de não representar uma contraposição aos valores sociais, a

violência praticada por escravos podia incluí-los no tecido social. 33

A fonte referente à Laguna nos apresenta o caso em que “Joze Monteiro de

Brito registra sua queixa contra Joze, escravo do Capitão Costodio Pereira da

Silva. Segundo ele: “seu escravo, Francisco preto da Costa, tomou umas pancadas,

enquanto dormia em sua senzala. Aconteceu que daquelas pancadas, depois de dez

dias, Francisco veio a falecer. E Joze Monteiro de Brito afirma ter sido o escravo,

Joze, do Capitão Costodio Pereira da Silva o agressor.34

Apesar deste caso não explicitar a determinação do senhor à prática de tal

crime, é possível inferir de alguma forma o envolvimento dos proprietários quando

o suplicante referencia o dono do suplicado. Isto indica a intenção do querelante em

tornar o senhor do querelado, parte neste delito. Essa observação pode ser

corroborada através de uma outra queixa registrada contra o mesmo escravo do já

referido Capitão. De acordo com Joze Monteiro de Brito, “estava ele presente

quando o escravo Joze de Nação Cabinda, armado de uma faca de ponta, investiu

contra o Mollato Manuel, cortando-lhe a mão. Esta ofensa não pode ser reclamada

nem pôde ser feito o Corpo de Delito, em razão do delinqüente ofensor ser escravo

do cunhado do Juiz Ordinário da época, o Capitão Domingos Fernandes de

Oliveira.

Para estas querelas apresentadas, à primeira vista aparentam uma

representação de luta por reafirmação de poder dentro de uma sociedade

hierarquizada, na qual o Capitão Costodio Pereira da Silva ocupava posição

33 LIMA, Carlos A. M. Escravos de Peleja: A instrumentalização da Violência Escrava na América Portuguesa (1580-1850). Pp: 131-133). 34 ARQUIVO DA COMARCA DA LAGUNA. Livro de Querelas.

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superior em relação ao seu vizinho e lavrador Joze Monteiro de Brito. No entanto,

não podemos deixar de computar nessa complexa equação social, a agressão que se

promoveu entre os escravos pertencentes a estes homens. Embora Maria Helena

Machado, de certa forma, responsabilize a carência material à qual os cativos

estariam submetidos, não se pode negar a que a violência que caracterizava as

relações entre senhores e escravos, também marcava as relações entre os cativos. 35

Para além do significado impresso nas ações violentas a favor dos senhores

como porta de entrada à sociedade, outra perspectiva pode ser tomada. A autora

Maria Sylvia de Carvalho Franco trabalha, dentro da lógica da dominação pessoal,

com a idéia da interdependência entre homens livres, numa sociedade hierarquizada

e desigual. Nesse jogo da dominação, os sujeitos reconheciam na figura do “outro”,

elementos que o mantinham em sujeição para a manutenção da ordem social

estabelecida. 36

Apesar do direcionamento da autora para as relações desiguais entre homens

livres; a lógica do raciocínio pode ser transposta para o caso das relações entre

senhores e escravos. Isto porque, quando da utilização da capacidade violenta da

sua escrava, Luiza Vieira assume com ela, um pacto simbólico mútuo. Ao atacar a

suplicante Florinda Roza de Jesus, a mando de sua dona, a cativa desenvolve a

expectativa de ser protegida da justiça pela sua dona.37 Este caso demonstra, que

dentro do processo de dominação, desenvolve-se também, a dependência mútua, ou

de certa reciprocidade entre as partes envolvidas nas agressões.

Com os casos analisados pôde-se perceber que nas relações travadas entre

senhores e seus escravos, além das atitudes de resistência por parte destes em

relação à dominação sem limites por aqueles, outras questão está envolvida nesse

quadro. O lugar da violência, nem sempre é marginal, muitas vezes pode ser

inclusiva ou necessária. Mas, além disso, ela é tomada ora como forma de retomada

de controle, pelos senhores em relação aos seus cativos; ora como motivo legítimo

destes mesmos cativos de resistir às formas que o cativeiro poderia tomar; vale

ressaltar que estas duas práticas não se excluem.

35 MACHADO, Maria Helena P. T. Crime e Escravidão. Pp: 42-43. 36 FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens Livres na Ordem Escravocrata. pp: 65-111. 37 ARQUIVO DA COMARCA DA LAGUNA. Livro de Querelas.

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4. Vizinhos Divergentes: dependência ou individualização

O presente capítulo visa à elucidação de elementos que definiam o conceito

mais amplo de sociedade, observando seus reflexos e suas variações ou

particularidades para a Laguna do início do século XIX. Partindo do geral,

pontuando o particular, o foco do trabalho será a observação das relações entre

vizinhos.

Para efeitos metodológicos a categoria de “vizinho” não ficou restrita apenas

a indivíduos que partilhavam uma proximidade espacial ou laços comunitários. O

que se tornou necessário foi uma flexibilização do entendimento, estendendo-o a

pessoas que, de alguma forma, conheciam seus opositores a ponto de poderem

acusá-los pelos seus nomes completos; bem como apontar outras informações sobre

quem estariam acusando.

Tal recurso foi adotado devido à necessidade de trazer, para a nossa

discussão, a produção historiográfica que relaciona os laços comunitários e suas

implicações como condições básicas das relações entre vizinhos. O que se pôde

perceber, para o caso da Laguna, é que nela, apesar da proximidade pessoal que

prescinde a ajuda mútua ou a reciprocidade, muitos casos surgem galgados em

contextos e posicionamentos que parecem contrariar este preceito. No entanto,

buscar-se-á a compreensão de que mesmo dentro do contexto de uma relação

divergente, tanto de interesses quanto de valores individuais, pode-se, sim,

identificar a reciprocidade entre os atores.

A fonte analisada traz à tona pequenas “tragédias” cotidianas que nos

ajudaram a caracterizar aspectos da vida em sociedade; os valores que a

compunham, relações pessoais e de distinção entre os indivíduos. Além disso, faz-

se importante delimitar o âmbito das relações comunitárias e as implicações das

particularidades da Vila da Laguna.

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4.1 A vizinhança: sua forma e variações locais

A documentação estudada nos trouxe, através do maior número, um grupo

formado por trabalhadores rurais, basicamente lavradores, que se dedicavam

predominantemente ao cultivo da mandioca voltado ao abastecimento interno.

Mesmo dentro desse quadro que demonstra a maioria de pequenos produtores e

criadores de gado, surgem ainda casos envolvendo a elite local, imersos no jogo de

reafirmação de poder.

Dessa forma faz-se importante analisar os aspectos sociais, a partir do

registro de transgressões e violência, levando em conta a existência de uma justiça

distributiva na qual imperava a equidade. Assim, numa sociedade desigual,

hierarquizada e corporativa, a justiça “dava a cada um segundo seu status social”. 38

A questão referente à convivência entre moradores da mesma localidade, ou

mesmo as formas possíveis de associação destes indivíduos para modalidades como

trabalho e lazer, ocupam um lugar importante no trabalho de Antonio Candido,

sobre a cultura camponesa a que ele chama “cultura caipira”. Como princípio

fundamental a essa cultura o equilíbrio da sociedade, esteve diretamente ligado à

relação das necessidades e suas respectivas satisfações, dessa busca mútua,

surgiriam associações baseadas na solidariedade.39

Mas a partir do objetivo de analisar a dinâmica social, surge um

questionamento acerca da natureza das relações. Tal questão assume posição

essencial no desenvolvimento desta discussão. Trata-se da adoção de categorias

como sociedade ou comunidade, no universo da Laguna. Algumas produções da

nossa historiografia pontuam a existência de laços comunitários baseados em

condições materiais gerais de certa região. Dessa forma, ao analisar locais

considerados periféricos, tais autores não hesitam em relacionar vida comunitária

diretamente à escassez material.40

38 LEVI, Giovanni. Reciprocidad Mediterránea. Universidad de Venecia. Pp. 1. 39 CANDIDO, Antonio. Os parceiros do Rio Bonito. Estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida. Pp. 21-23. 40 Ver FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens Livres na Ordem Escravocrata; e CANDIDO, Antonio. Os Parceiros do Rio Bonito.

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Em um clássico da historiografia, Antonio Candido delineou o que chamou

de “cultura rústica”, baseada no modo de vida do camponês do século XIX. Dentro

desse quadro amplo dos costumes surge a questão básica que de certa forma os

definem: “o equilíbrio social depende da correlação das necessidades e sua

satisfação.” Ou seja, atingir um equilíbrio social depende de balancear o mínimo

social (organização social compatível) e o mínimo vital (exploração do meio físico

para a sobrevivência). 41

A partir dessa unidade básica, surgem agrupamentos de indivíduos com

interesses de sobrevivência em comum. É nesse contexto das necessidades que

ocupam um lugar de destaque elementos de sociabilidade como a ajuda mútua, o

mutirão, as práticas lúdicas. E é dentro do quadro das relações de vizinhança,

baseadas também num sentimento de pertencimento a uma localidade, que as

relações sociais, a dizer, as relações comunitárias se desenrolam. 42

Seguindo essa mesma linha de raciocínio, Maria Sylvia de Carvalho Franco

também aponta para uma relação comunitária orientada para a satisfação das

necessidades mútuas dos agentes sociais. No entanto, admite dentro desse quadro

onde a solidariedade se desenvolve, também outra forma de sociabilidade surge

mesmo decorrente de interesse comuns ou, muitas vezes, concorrentes: as

desavenças e até mesmo ações violentas.43

De forma mais extrema e pontual Ferdinand Tönnies diferenciou de forma

bem objetiva a categoria sociedade da comunidade. Assim, localizou as relações

comunitárias no universo da convivência íntima, tomando parte orgânica do

indivíduo no ínterim familiar. Enquanto isso, à sociedade relegou o caráter do

espaço público, onde o indivíduo constrói sua vivência. A partir disso, classificou as

relações estabelecidas no campo como comunitárias, baseadas na relação mútua de

41 CANDIDO, Antonio. Os parceiros do Rio Bonito. Estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida. Pp. 23-25. 42 CANDIDO, Antonio. Os parceiros do Rio Bonito. Estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida. Pp. 58-61. 43 FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens Livres na Ordem Escravocrata. pp:

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reciprocidade. Em contrapartida, as relações constituídas em sociedade, se baseiam

na troca, de acordo com interesses individuais.44

Se pensarmos de acordo com Tönnies, podemos concluir que em todas as

formas de relações a reciprocidade, baseada no dom e contra dom, se faz presente.

Acontece que entre comunidades tal reciprocidade está implícita organicamente,

tomando parte na essência que define tais espaços. Já entre as relações de sociedade

para que exista uma ajuda mútua, teria que haver o interesse das duas partes

envolvidas. Dessa forma, pode-se inferir que a reciprocidade existe de qualquer

forma, uma vez que, estando os indivíduos de acordo ou em desavença, a reação de

um será de acordo com a ação que sofreu advinda do outro.

4.2 A Violência Banalizada

Durante o contato e leitura com a documentação, nos deparamos com

situações que nos levaram a dedicar especial atenção à questão da violência naquela

sociedade; não apenas a natureza da fonte, registros de queixas, como também o

grande número de ocorrências de agressões físicas sem precedentes.

Dessa forma, temos que: “no dia primeiro de setembro de mil oitocentos e

quinze, Sebastião Alves morador do Maruim, termo da Vila da Laguna, foi ao Juiz

Ordinario Thomaz Joze Freire querelar perante as Justiças de Sua Alteza Real de

Joze Lopes, também morador do mesmo distrito. Disse Sebastião, casado, que no

dia quinze de agosto do mesmo ano, estava ele recolhendo-se para sua casa,

pacificamente sem se contender com pessoa alguma pela estrada de fronte à casa

de Joze Cardoso. Estava ali de caso pensado, à sua espreita, Joze Lopes, solteiro,

foi atacá-lo na estrada com nomes injuriosos e não contente com isso, lhe deu três

bofetadas com a mão aberta na face fazendo-lhe sérias contusões e deixando-lhe

desacordado. Não tivesse o suplicante sido acudido por algumas pessoas, segundo

ele, teria morrido.”

O caso acima relatado retrata um cenário em que indivíduos que mantinham

certa proximidade espacial acabam numa trama violenta aparentemente, e isto foi 44 TÖNNIES, Ferdinand. Comunidades e Sociedades. Pp: 511-513.

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alegado pelo suplicante, sem motivo que o pudesse explicar. No entanto Maria

Sylvia, em estudo acerca da dinâmica social da civilização do Vale do Paraíba, no

século XIX, elucidou alguns aspectos dessa questão.

De acordo com a autora acima mencionada, atos violentos não apenas faziam

parte do cotidiano como algo inesperado, ou como um contratempo nas relações

entre indivíduos da mesma comunidade de homens pobres, como também se

constituía em uma instituição que, entre outros elementos da convivência, definia a

forma das interações sociais. Ou seja, a violência não se tratava apenas de uma

fatalidade que poderia ocorrer entre os sujeitos, ela certamente ocorria a partir do

momento que passasse a fazer parte do universo dos relacionamentos. Assim,

transformava-se em uma instituição reguladora da sociedade, a que a autora chamou

de Código do Sertão.45

Outro caso curioso foi registrado por Joze Corrêa, morador da Capoteira,

contra Domingos Corrêa, também morador da Capoteira. De acordo com Joze:

“vinha ele na manhã de sábado do dia dezessete de janeiro de mil oitocentos e

dezoito, manso e pacífico para o seu trabalho, e se encontrou com ele, Domingos

Corrêa e se travou de razões com ele a ponto de querer lhe dar ferroadas o que não

conseguiu pela defesa do suplicante que tornando a seguir o caminho de sua roça,

aquele suplicado lhe seguiu e a traição lhe deu com uma enxada na cabeça que o

derrubou em terra de cuja pancada lhe fez uma grande ferida na cabeça.”

Quando o querelante afirma ter travado de razões com o querelado, podemos

inferir que uma discussão acabou gerando uma situação de conflito. No entanto este

representa mais um caso em que os dois vizinhos poderiam ter resolvido suas

divergências apenas com a discussão.

No entanto, a solução de um conflito exige mais do que o caráter pacífico de

uma das partes. Para além de uma atitude unilateral em busca da pacificação num

quadro de conflito, a resolução de uma divergência é uma via de mão-dupla, que

deve representar um interesse comum. E a maioria dos incidentes sem uma razão

prévia, ou mesmo aqueles representados por uma rixa antiga, pode ser explicado

pela ausência de interesse mútuo em solucionar as contendas de forma menos

45 FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens Livres na Ordem Escravocrata. pp:

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dolorosa. Caso emblemático de como um interesse unilateral não é suficiente para a

manutenção da ordem, mas é suficiente para que se dê início a uma luta armada, é o

que envolve Antonio de Quadros e sua mulher contra Luis Manoel de França.

De acordo com o casal: “estando em sua casa quieto e pacificamente às sete

horas da manhã, eis que chega à sua porta, seu vizinho Luis de França com voz

altiva ultrajando de nomes injuriosos ao suplicante e à sua mulher, e com um pau

desafiando-os como rixa antiga, de caso pensado, vendo-se o suplicante ultrajado

de semelhantes razões, foi para fora de casa e avançando-se o suplicado como

danado ao suplicante com o dito pau, lhe atirou varias bordoadas e igualmente em

sua mulher que veio acudir seu marido.”

Casos como o que retratamos acima salpicaram a documentação, tendo sido

maioria observada. As querelas entre vizinhos a partir de motivos banais, ou mesmo

sem precedente algum, protagonizaram a relação de queixas registradas; no entanto,

observamos algumas peculiaridades que nos ajudam a delinear algumas instituições

sociais. Mas quando tratamos da violência banalizada, devemos trabalhar com dois

caminhos de pensamento: a possibilidade da ocorrência de um ato violento sem um

antecedente; e ainda com um ato precedido por um conflito que poderia ser

resolvido por outras formas, sem que fosse necessário recorrer a meios violentos

para ambas as partes (banalização da violência).

Os casos analisados trouxeram perspectivas que giraram em torno de uma

concepção de violência, à primeira vista, sem sentido. No entanto, retornando ao

estudo feito por Maria Sylvia acerca de uma sociedade predominantemente pobre,

percebemos que a violência toma uma forma bastante concreta dentro da vida

comunitária. Contrariando a noção de que a dinâmica da vida comunitária baseia-se

no consenso, nas relações de interesses voltados para o mesmo e único sentido, a

autora passa a considerar que a tensão, a ruptura aparecem como elementos

constitutivos da comunidade. Dentro disso, constatou que atos violentos eram

causados por situações imediatas. Além disso, os motivos das brigas muitas vezes

eram menores do que a força nelas empregadas, seriam o que ela chamou de

“violência motivada por banalidades cotidianas”. 46 E a partir dessa lógica usada

46 FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens Livres na Ordem Escravocrata. pp: 24-26.

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pela autora, tomamos para a sociedade da Laguna, a reciprocidade considerada, não

apenas em relações de interesses comuns, mas também em situações de

divergências permanentes.

Mas é importante ressaltar, que dentro do universo das relações cotidianas

entre vizinhos, que prescindiam certa organização comunitária, a instituição

chamada vizinhança se constituía em uma via de mão-dupla. Se por um lado,

observamos a violência como um código de conduta frente ao outro, existiam

situações em que a pouca distância, o longo tempo de convivência, mesmo a relação

estabelecida faziam com que os querelantes retirassem suas queixas mesmo depois

de terem sofrido uma agressão sem motivos. Assim aconteceu com Florinda Roza

de Jezus, depois de ter registrado uma queixa contra Ursula, mulher de Antonio da

Silva, Luiza Vieira e uma escrava da mesma Luiza. As quereladas, aproveitando-se

da ausência do marido da querelante esperaram pela sua volta da casa de uma

vizinha, e lhe deram muitas pancadas. A narrativa da queixosa denotou um quadro

violento em que ela teria feito o papel da vítima. No entanto, quinze dias depois,

Florinda voltou à casa do Juiz Ordinário para registrar o termo de desistência da

querela. Segundo ela, os ferimentos foram decorrentes de sua queda; assim retirou a

queixa alegando ter como razão a sua proximidade com as quereladas.

Os reais motivos que levaram Florinda Rosa a desistir de sua luta por justiça

não se pode saber; entretanto, podemos pensar em algumas possibilidades. Depois

de ter registrado a querela, num momento de tensão logo após a desavença, teve

quinze dias para acalmar os ânimos e perceber que o problema não teria sido tão

grave, e que poderia ser resolvido de outra forma.

Uma segunda possibilidade aponta para o fato de que em uma briga

envolvendo um desequilíbrio razoável de forças, inevitavelmente resultaria em uma

das partes bastante ferida. No caso, Florinda Roza foi surpreendida por três

mulheres, sem que houvesse tempo ou chance de defesa. Nesse caso, nos

questionamos sobre o que levou Florinda a retirar a queixa. Ou a querelante sentiu

medo de possíveis retaliações futuras, já que as três acusadas seriam próximas. Ou

ainda, o fato de serem próximas, vizinhas, falou mais alto diante da possibilidade de

se romper relações, ao envolver a justiça. O que nos parece mais plausível seria o

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temor que Florinda Roza sentiu, pois, não apresentou um termo de perdão; antes

disso, desmentiu ter sido ferida por suas vizinhas, alegando uma queda ao invés de

uma agressão.

Fato semelhante aconteceu com Silvano Antunes, que depois de relatar uma

agressão de proporções gravíssimas contra a sua mulher, retirou a queixa em

seguida. Ocorreu que estando ele ausente de sua residência, e nela apenas sua

família mansa e pacífica sem desavença alguma. Eis que chegaram em sua casa

Ledonina, mulher de Paulo Pinto, Gracia, mulher de Thomaz da Silva, Albina,

mulher de Antonio Pedrozo; todas circunvizinhas do suplicante e ali furiosamente

avançaram sobre a mulher do suplicante dando-lhe bofetões, arrastando-lhe pelos

cabelos para fora da casa, bateram em Ignacia Antonia com pedaços de pau e

gritavam: mata, mata. A vítima, já sem sentidos foi socorrida, e se não o

tivesse,poderia ter morrido, alegou Silvano.

O que chama atenção para tal registro é que depois de apresentar um caso em

que sua mulher quase foi levada a óbito por vizinhas próximas, o sujeito que movia

a ação desiste desta alegando não querer mais se contender e atendendo à pobreza e

indigências das suplicadas.

Mesmo desconhecendo as razões das três mulheres para tal atitude, sabemos

que um conflito não surge do nada. As razões pessoais, que não consistiriam em

motivos legais para solucionar uma contenda, pareciam válidas para aqueles sujeitos

iniciarem um conflito maior. Dessa forma, podemos inferir que no âmbito das

relações pessoais, que marcaram os vizinhos, a violência surgia como elemento

constitutivo.

O curioso é perceber que a grande maioria das acusações não apresenta

subsídios para análise de uma causa. As querelas envolvendo ações violentas se

apresentaram sem uma razão de ser. Na maioria dos casos, as vítimas ressaltavam

seu caráter manso e pacífico durante os conflitos. Dessa forma, dificilmente

poderíamos classificar uma atitude violenta como uma forma de regulamentação ou

de estabelecimento de uma ordem social, conforme previu Maria Sylvia. Entretanto,

mesmo desconhecendo os motivos que levavam a violência às últimas

conseqüências, eles certamente existiram, ao menos na grande maioria dos casos.

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Mesmo em casos em que os acusadores não alegaram uma rixa antiga, a

ofensa necessária para preceder a agressão física certamente existira. Porém,

podemos inferir que a razão que precedia as agressões seriam, predominantemente,

contendas pessoais cuja solução não poderia ser buscada em vias legais. Então, o

comportamento daqueles indivíduos nos leva a tomar a visão de Maria Sylvia de

que a violência era utilizada ora como forma de afirmação da própria altivez,

coragem e construção de uma reputação individual, ora como elemento normativo

das relações.47 Assim, no jogo social, violência e organização social e comunitária

não se excluem, pelo contrário, complementam-se.

Dentre os elementos observados nos documentos, pode-se concluir que para

além da afirmação de que a violência estaria presente como elemento integrador das

relações entre vizinhos; ela também marcou profundamente as motivações pessoais

mais íntimas da convivência. Nela, muitas desavenças cotidianas, culminaram;

através dela, buscava-se dar fim às divergências corriqueiras.

4.3 A propriedade alheia

Como vimos, as relações de vizinhança foram profundamente marcadas

pelos conflitos pessoais que, freqüentemente, culminaram em ações agressões

físicas. Entretanto, outras instituições interferiram no cotidiano da sociedade

lagunense do início do século XIX.

Dentre as mais significativas, o que chamou especial atenção foi a relação

que os indivíduos estabeleciam com as coisas dos outros. Dentro desse contexto,

que envolve a propriedade, a palavra-chave para esta discussão é reconhecimento,

este era essencial para que dentro daquele universo, houvesse uma legitimidade dos

pertences, sobretudo de terras, frente os pares.

De acordo com Hebe Mattos, uma questão no âmbito jurídico revelava o

caráter ambíguo entre a propriedade e o acesso a terra, no sudeste escravista, da

primeira metade do século XIX. A conhecida política de doação das sesmarias

exigia a revalidação da concessão condicionada à ocupação, para que existisse o 47 FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens Livres na Ordem Escravocrata. pp: 55.

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caráter patrimonial, e havia o direito da Coroa de fazer as terras voltarem a seu

domínio, quando não cumprida esta condição. Qualquer título de propriedade

tornava-se inválido se contestado. Junto disso, a legislação colonial, através das

Ordenações Filipinas, tradicionalmente consagrara a posse efetiva como recurso

legal para a obtenção de propriedade. Sob o domínio da Coroa portuguesa, sempre

foi possível vender ou passar em herança terrenos que jamais haviam sido

oficialmente doados. Dessa forma, atos de compra, venda inventários podiam gerar

questões jurídicas, capazes de sancionar direitos de propriedade.48

No entanto tais ações só eram possíveis quando reconhecidas pelo conjunto

de pessoas envolvidas nas transações, principalmente vizinhos da região. Dessa

forma, mesmo quando da existência de títulos de posses legais, o reconhecimento

costumeiro e consensual da posse dependia de seu poder, construído sobre o

costume.49

Justamente baseado no que Hebe Mattos expõe, surge na documentação um

registro correspondente. Trata-se da situação que vitimou Narcizo de Siqueira

Lopes, pelo Tenente Antonio de Avilla Silvestre Soares da Roza, Manoel Teixeira

da Silveira Pay, João Homem da Costa, Manoel Sebastião e outros. O suplicante

alegou morar no Morrete de Biraquera, um lugar ermo, no qual não encontrou

socorro quando dos ataques dos vizinhos. Narcizo de Siqueira Lopes edificou sua

casa de vivenda, possuindo Licença da Câmara da Vila, com posse judicial do

terreno. No entanto, se opuseram a esta licença e posse várias pessoas, seus

inimigos, dentre os quais, o suplicante identificou o líder: o Tenente Antonio de

Avilla Silvestre Soares da Roza.

Depois dos requerimentos do povo, a própria Câmara acatou, dando um

prazo de trinta dias para que o querelante demolisse sua casa. Sua residência foi

atacada pelos indivíduos que afirmavam que a Justiça de nada valia para eles,

enquanto depredavam sua casa.

48 MATTOS, Hebe Maria. Das Cores do Silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista; Brasil, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. Pp: 74. 49 MATTOS, Hebe Maria. Das Cores do Silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista; Brasil, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. Pp: 75.

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O caso narrado acima demonstra claramente o que foi dito por Hebe Mattos,

acerca da legitimidade da propriedade conquistada com o reconhecimento dos

vizinhos ao redor. Para este caso, apesar do querelante possuir a documentação da

posse legal de sua propriedade, o fato de possuir muitos desafetos forçou-o a lutar

por ela, inclusive junto à Câmara, que já o havia concedido a Licença. Isso nos

remete a outra questão, não menos importante, que toca um espaço público. A

Câmara seria em teoria, um local onde a população exerceria algum poder.

Entretanto, a prática revelava a revelava como um espaço utilizado pelas elites

políticas e econômicas para exercer efetivamente seu poder. Prova disso, é que um

Tenente liderava a ação de intenção de despejo de Narcizo, e provavelmente graças

à influência de seu posto militar, a Câmara acatou o pedido.

Outra situação que se enquadra no mesmo raciocínio diz respeito a dois

sujeitos com mesmo sobrenome: “diz Joaquim Pacheco que no dia vinte e nove de

novembro de mil oitocentos e vinte e dois, alcançando Licença para novamente

fincar uns marcos com o demarcador Bento Joaquim de Oliveira, em uns terrenos

que lhe tocaram por falecimento de seu pai Manoel Pacheco. No mesmo dia,

atrevidamente, sem temor nem respeito às leis arrancou os referidos marcos

dizendo várias descomposturas ao suplicante.”

A passagem acima, além de reforçar o que foi trabalhado por Mattos, traz

ainda uma desavença mais peculiar. A rixa entre dois homens que possuem mesmo

sobrenome, possivelmente pertenciam à mesma família. Se a hipótese se confirma,

observa-se que a necessidade do reconhecimento comum, perpassava inclusive as

relações familiares. Mas o fato é que as recorrentes intervenções nos marcos, feitos

pelo suplicado, corroboram a já referida autonomia em relação às leis que

delimitavam a propriedade.

Mas para o contexto da Laguna, a terra não o único elemento que definia a

propriedade. Numa sociedade onde predominava a atividade agropecuária, o gado

também consistia em fonte de subsistência, e por isso, assumia um significado

patrimonial. Portanto, quando a ofensa acontecia contra algum animal que

pertencesse a alguém, a queixa assumia um teor ainda mais emotivo do que quando

se tratava de terras.

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Joaquim Martins de Espindola registrou uma queixa contra Jozé Luis, porque

segundo ele, Jozé furtou uma égua mansa com uma marca “S” do lado de montar,

cuja marca é do suplicante. Ele registrou a sua querela devido ao fato da égua ser de

sua estimação e valer oito mil reis. Obviamente, o valor material é o mais forte

motivo que leva um indivíduo a reclamar na justiça. No entanto, o valor sentimental

atribuído ao animal, justifica a busca por reparação.

Encontramos duas situações que chamaram a atenção dentro da

documentação. No primeiro, Joaquim Rodrigues reclama de Francisco Duarte e

Manoel Furtado. Segundo ele: “ele trazia no Campo da Barra, uma vaca sua que

trazia uma marca e tinha a ponta da orelha cortada. Tal animal teve suas duas

orelhas cortadas pelos dois suplicados, bem como seu rabo; em conseqüência disto,

o animal morreu. Quando Joaquim cobrou-lhes pelo seu prejuízo, além de não

pagarem, afirmaram fazer o mesmo com todos os animais que o suplicante tivesse

no Campo da Barra.”

Em outra ocasião, Joaquim Joze Figueira registra sua queixa contra Joaquim

de Brito sob a seguinte acusação “o lavrador Joaquim Joze possui uma junta de

bois mansos, e os cria no campo de Araçatuba, onde mais pessoas criam seus

gados. O suplicado conduziu um de seus bois até outra freguesia e o matou

publicamente.”

Para as duas situações observadas, além de possuírem a natureza da agressão

em comum, outro elemento chama a atenção. Os dois casos envolvem uma ação

contra a propriedade alheia. Nesses casos, bem como o referido de destruição da

casa de um forasteiro, não há um furto, ou outra ação em benefício próprio. O que

na verdade observamos, na maioria dos casos envolvendo propriedade são atuações

visando à destruição ou apenas prejudicar o outro. A Câmara não recebeu

reclamações de disputa por algum bem material, apenas, indivíduos que relatavam

algum malefício exercido por seus vizinhos.

Por fim, em casos envolvendo as “coisas dos outros”, percebemos que as

agressões se deram em dois níveis: o do não reconhecimento, e o da aniquilação da

propriedade alheia. E percebemos também, que nenhum dos registros sequer

insinuou uma possível disputa por bens. Desta forma, corroboramos a visão de

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Hebe Mattos, ao afirmar que para a apropriação de algo, era necessário que os

vizinhos ao redor lhe conferissem o direito de tê-lo.

Neste capítulo, envolvendo as interações entre sujeitos afora a intimidade da

residência, mas que de alguma forma dividiam algum espaço, as práticas violentas

marcaram fortemente alguns aspectos da vida em sociedade. Os padrões dos

registros, que apontam para atos violentos sem precedentes, nos levam, num

primeiro olhar, a concordar com a formulação proposta por Maria Sylvia de

Carvalho Franco, ao menos em parte, acerca da utilização da violência como uma

das formas de integração e composição da experiência social. Mas para além de

uma concepção de banalização do uso da força, como simples forma de demonstrar

altivez diante do outro, a este artifício recorreram os lagunenses, muitas vezes, com

o intuito de contestar a sua posição diante de outro ou da sociedade de forma mais

ampla.

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5. Direito oficial e o senso de justiça comum

O capítulo a seguir tem por objetivo discutir o senso comum de justiça que

pairava sobre a sociedade lagunense do início do século XIX. Entenda-se por essa

categoria, o consenso partilhado pelos indivíduos do que seria uma postura correta;

bem como as expectativas da sociedade em relação à atuação da justiça. Dentro

desse quadro, nos deparamos com valores morais e noções gerais do que seria

correto ou não, aos olhos dos atores sociais, independentemente de um

posicionamento jurídico.

Para esta incursão, acerca dos elementos que compunham a concepção do

exercício comunitário da justiça, discutiremos questões como direito costumeiro,

valores sociais compartilhados, perpassando as relações de poder travadas no

ínterim das distinções dos sujeitos, e que se tornavam mais evidentes quando de

uma disputa judicial.

Vale a pena retomar algumas particularidades da Laguna, no tocante ao

funcionamento da justiça. Além disso, vale também apontar alguns enviesamentos

acerca do caminho que se havia a percorrer ao decidir levar uma causa para o

âmbito jurídico; bem como os obstáculos que os indivíduos enfrentavam durante

sua busca.

Primeiramente ressaltamos que o documento trabalhado provém de registros

da Câmara da época. Esta, como já foi dito anteriormente, representava o órgão

vital da municipalidade. Além disso, era um espaço utilizado pelas elites locais para

a manutenção e reafirmação de seu poder. A Câmara era o local onde os indivíduos

de todas as classes procuravam auxílio jurídico para solucionar seus problemas; no

entanto, muitas vezes se deparavam com um juiz que certamente agiria em prol do

lado mais forte, ou simplesmente mais influente, rico.

Em uma realidade em que preponderava a prática da venalidade dos cargos

mais importantes, era comum que o juiz ordinário, aquele que recebia e registrava

as queixas, representasse os interesses de seus pares. Então, pode-se dizer que a

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Câmara representava um espaço de hierarquização da sociedade.50 Essa

solidariedade entre os juízes e as elites se refletia na função exercida por aqueles: os

juízes seriam mais do que técnicos ou aplicadores do direito; muitas vezes agiam

em prol dos interesses dos mais poderosos.51

Mas se por um lado o juiz ordinário atuava a favor dos poderosos, por outro

exercia sua função, muitas vezes de acordo com o bom-senso comum à sociedade

em geral. Em muitos casos em que a queixa confrontava com as leis, o

representante destas via-se obrigado a atuar de acordo com sua consciência, e das

normas de conduta e convivência que regiam a sociedade.52

Paralelamente às muitas possibilidades de atitude dos juízes frente aos

conflitos, observou-se um grande número de analfabetos, e para os nossos registros

representavam a grande maioria. Tal situação caracteriza um obstáculo ao acesso à

justiça, por parte dos mais humildes; afinal, a pobreza ou o analfabetismo poderiam

consistir em fatores intimidadores no momento de se envolver num processo legal.53

Sexo N. de casos Sabe assinar Não sabe assinar

Masculino 20 7 13 Feminino 1 0 1

Total 21 7 14 Tabela 2 – Relação de querelantes que sabiam asssinar.

É importante ressaltar, nesse contexto, a lógica da equidade, que fazia parte

da distinção dos sujeitos sociais. Tal categoria (equidade) representa a imagem do

que é justo, considerando uma sociedade desigual, hierarquizada e corporativa; no

entanto justa de acordo com os princípios da justiça distributiva, a qual dá a cada

um segundo seu status social.54

Entretanto, ter um caso tramitando na justiça poderia significar que por mais

humilde que fosse o sujeito, sua honra, família, seu nome e até mesmo seus bens,

quando ameaçados, deveriam ser alvo de um processo judicial, a fim de

50 KÜHN, Fabio. “O poder na vila: a atuação da Câmara de Laguna”. In: História de Santa Catarina. Séc. XVI a XIV. Florianópolis: Editora da UFSC, 2004. 51 HESPANHA, António Manuel. A constituição do Império Português. Revisão de alguns enviesamentos correntes. Pp: 17. 52 SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem à Província de Curitiba e Santa Catarina. 53 MONTEIRO, I. B. A Litigiosidade e o “Perdão” em Vila Nova de Gaia (séculos XVII- XVIII). Revista de Ciências Históricas. Porto: vol. XI. 1996. Pp: 101-112. 54 LEVI, Giovanni. Reciprocidad Mediterránea. Universidad de Venecia. Pp: 1

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desencorajar comportamentos semelhantes no futuro.55 Assim foi a grande maioria

das alegações dos querelantes em seus registros, “para exemplo de outros, sem dolo

ou malícia mas sim por satisfação à Justiça e emenda dos querelados”.56

Mas um outro questionamento aparece quando da leitura da fonte analisada.

Brigas, o não-reconhecimento de uma propriedade, ou pequenos furtos entre

pessoas que compartilhavam certo espaço de convivência nos parecem motivos

banais para se envolver em um processo judicial; mesmo que os registros

representem apenas a primeira instância legal. Mas essa dinâmica quase banal e

cotidiana da busca pela justiça ocorre, dentre muitos fatores, sobretudo pela prática

do direito comum, que muitas vezes se confunde ou mesmo se funde com o direito

oficial.

Analisando a realidade jurídica na sociedade européia do Antigo Regime,

Antonio Manuel Hespanha se utiliza de termos como “justiça oficial” e “justiça

comunitária” para tratar da crise do legalismo atual. Hespanha constatou que no pré-

oitocentos, a ordem jurídica se constituía de forma pluralista. Dentro do direito

oficial, a lei tinha um papel minoritário; ou seja, o direito oficial possuía um caráter

doutrinal. Dessa forma, a lei era utilizada como um meio de adaptação da

doutrina.57

Para além do caráter subordinado da lei à doutrina, desde sua edição, aquela

já se limitava pelo direito natural, que representava os fundamentos da razão

jurídica. Diante disso, quando confrontadas com as normas jurídicas, provenientes

da auto-organização dos corpos sociais ditos, particulares, a lei também se submetia

aos valores destes corpos. No seio familiar imperava a ordem doméstica; os

religiosos se submetiam à ordem da Igreja; e para o nosso foco principal, o convívio

entre vizinhos era tutelado pelos valores morais, de boa conduta e pela política da

boa vizinhança. Então, os estatutos se impunham, a lei ficava presa entre o direito

55 MONTEIRO, I. B. A Litigiosidade e o “Perdão” em Vila Nova de Gaia (séculos XVII- XVIII). Revista de Ciências Históricas. Porto: vol. XI. 1996. Pp: 101-112. 56 ARQUIVO DA COMARCA DA LAGUNA. Livro de Querelas. 1815-1830. 57 HESPANHA, Antonio Manuel. “Lei e Justiça: história e prospectiva de um paradigma” In: Justiça e Litigiosidade: História e Prospectiva. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 1993. Pp: 8-14.

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comum (doutrina) que a limitava por cima, e o direito dos corpos que a esvaziava

por baixo.58

Dentro desse quadro em que prevalecia o direito comum, baseado em valores

morais e tradições, a maior parte da população se deixava tocar pelos padrões de

conduta sob a égide das formas de organização comunitária. E pelos funcionários

encarregados do exercício jurídico, eram vistos e seus casos tratados com

condescendência. A partir desse contexto, durante o setecentos o despotismo

iluminado tentou reforçar o poder da Coroa, e reduzir o referido pluralismo jurídico.

A política se mostrou eficaz no centro da administração e da justiça, entretanto, não

foi capaz de reduzir as múltiplas fontes de direito na periferia, devido a questões

como o analfabetismo. 59

Então, Hespanha acrescenta que as leis escritas não representam,

simplesmente, a realidade jurídica, mas se relacionam intimamente com as outras

realidades cotidianas, a história das instituições sociais.60 Portanto, ao analisar a

possibilidade da atuação da justiça e sua estrutura, é importante levar em conta o

diálogo que as leis estabelecem com as tradições, os valores, a cultura geral, e as

peculiaridades locais.

Para complementar a argumentação acerca da dinâmica jurídica européia no

Antigo Regime, Hespanha trabalha com a mesma realidade do pluralismo jurídico

para o Brasil colonial. A coexistência do direito comum com o secular e o

eclesiástico, tinha como ponto de ligação o seu caráter doutrinal. Além disso, havia

uma flexibilização quando da transcrição de uma ordem natural para outra jurídica.

Assim, as hierarquias estariam expostas a diversos contextos não mantendo

posições fixas, resultando em entrecruzamentos móveis com particularizações.61

58 HESPANHA, Antonio Manuel. “Lei e Justiça: história e prospectiva de um paradigma” In: Justiça e Litigiosidade: História e Prospectiva. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 1993. Pp:14-15. 59 HESPANHA, Antonio Manuel. “Lei e Justiça: história e prospectiva de um paradigma” In: Justiça e Litigiosidade: História e Prospectiva. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 1993. Pp:16. 60 HESPANHA, Antonio Manuel.”Da iustitia à disciplina: textos, poder e política penal no Antigo Regime.” In: Justiça e Litigiosidade: História e Prospectiva. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 1993. Pp: 8-14 61 HESPANHA, António Manuel. Porque é que existe e em que consiste um direito colonial brasileiro.

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Para a realidade da Colônia, a distância em relação à Metrópole a levou a

desenvolver um direito próprio, correspondente a situações do cotidiano. Entretanto,

não foi o direito comum que gerou as particularidades na ordem jurídica; isto foi um

produto da interação dos fatores locais, como humanos, geográficos, políticos, bem

como o modelo europeu baseado na doutrina, que se acomodou à realidade colonial.

A justiça, assim como o governo tornou-se complacente, dentro de seu caráter

contraditório, com a realidade local.62

O quadro estrutural apresentado demonstra aspectos da situação de Portugal,

no Antigo Regime. Entretanto, tal estrutura refletiu-se no Brasil colonial

caracterizando-se por uma estrutura pluralista, na qual os valores concebidos entre

os pares sobrepunham-se ao código escrito de leis. Dessa forma, nos tópicos a

seguir, buscar-se-á uma discussão de tais valores, que se traduzem em expectativas,

enfatizando as leis de convivência que regiam aquela sociedade.

5.1 As reais expectativas em relação à justiça

Ao lançar o olhar sobre a documentação referente à Laguna, dois

questionamentos podem ser ressaltados: inicialmente, como os conflitos de valores

ou de interesses surgem como motivo de querela no âmbito jurídico. Em seguida, ao

observar o teor das narrativas, percebemos, em muitos casos, certo exagero por

parte dos querelantes acerca de contendas cotidianas. Uma possível razão poder ser

apontada para isso: aumentando a gravidade da infração sofrida, poderia haver uma

garantia de que a justiça seria feita, e talvez mais rapidamente.

É importante ressaltar que toda a interação da sociedade, que muitas vezes

culminava em uma desavença, violência, o que resultava em um registro de queixa,

acontecia num contexto constituído por uma sociedade corporativa, desigual, na

qual, prevaleciam os fundamentos da equidade entre os indivíduos. Ou seja, cada

sujeito assumia uma posição social, e recebia de acordo com o direito a que tal

posição o garantia. Dessa forma, homens mais humildes, menos prevalecidos pelo

62 HESPANHA, António Manuel. Porque é que existe e em que consiste um direito colonial brasileiro.

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poder econômico, ou pela alfabetização, por exemplo, deviam ter plena consciência

de que teriam a mais que lutar para conseguirem ter suas causas resolvidas pela

interferência da municipalidade.

Este raciocínio justifica a saga jurídica trilhada por Joze Monteiro de Brito:

ao ter dois escravos seus feridos e mortos a mando de Capitão Costodio Pereira da

Silva, ele registrou sua queixa duas vezes. Quando da segunda vez que foi à casa do

juiz ordinário, deixou bem claro, que sua querela não havia sido aceita

anteriormente devido à ligação que o juiz anterior possuía com o querelado. A

situação citada acima corrobora o que foi dito anteriormente; temos nesse caso um

exemplo óbvio do abuso de poder do juiz ordinário, Luiz Martins Collaço que,

utilizando-se do seu cargo, favorece alguém de seu mesmo círculo de relações, e de

elevada posição social; dessa forma, preterindo o serviço que prestava à

comunidade de modo geral, colocando em primeiro plano suas relações pessoais. A

veracidade da querela ficou clara quando da insistência da esposa de Joze Monteiro,

em requerer a justiça, mesmo depois da morte deste.

Este foi o caso mais emblemático da resistência do órgão jurídico em agir em

prol do bem comum e do estabelecimento da ordem social. Muitos sujeitos

exageravam no teor de suas narrativas e faziam questão de alegar a violência,

sofrida, sem precedentes. Isto evidencia que mesmo nos casos que o juiz ordinário

pudesse assumir uma posição imparcial, a sua atuação poderia ser lenta se não

houvesse uma gravidade na situação.

Dentro desse ambiente de interação entre a sociedade ansiosa pela solução de

seus conflitos, e o aparato jurídico, que muitas vezes se tornava convenientemente

lento, encontramos diferentes abordagens acerca do que se esperava da justiça em

cada cenário de conflito.

Na maioria das querelas registradas, a finalidade de sua existência é

declarada como sendo “para exemplo de outros e para justiça da republica

ofendida”. Tal argumento corrobora a observação de Monteiro, quando afirma que

apesar dos obstáculos que se colocavam ao acesso à justiça, ter uma ação

tramitando no meio legal poderia significar que a honra dos indivíduos não deveria

novamente ser colocada em xeque por outros atrevidos.

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Entretanto, apesar da intenção geral de manutenção de instituições sociais

como a honra individual, a família, a propriedade; bem como a ordem social, alguns

anseios surgem particularmente e até paralelamente a este. Os casos envolvendo

escravos, por exemplo, demandavam resoluções diferentes; desde a cobertura de um

prejuízo sofrido, até o direito de castigá-los sem a interferência do órgão municipal,

passando por situações de proteção quase paternalista.

Assim foi o caso do escravo Felipe que aprendia o ofício de sapateiro,

quando recebeu uma encomenda de, Francisco Mancio Xavier, pela qual foi paga

apenas uma parte do serviço prestado. O dono do cativo, Gaspar Jozé Mendes

chegou a castigá-lo achando que estaria sendo enganado. No entanto, quando da

fuga do cativo, seu senhor foi obrigado a reconhecer sua inocência, sob o risco

dele não voltar mais ao cativeiro. Nesse caso, o senhor demanda não apenas a

quantia pendente do serviço prestado pelo seu cativo, quanto o prejuízo causado

pelos dias de ausência do cativo para a realização de seu trabalho.

Outro caso peculiar é o que envolve a relação entre senhores e cativos:

“Paulo Pinto de Araújo registrou sua querela contra Laurianna de tal, porque

segundo ele a viúva praticava a magia das adivinhações. Poderíamos por aqui

concluir que tratava-se de uma acusação contra a prática de bruxaria, no entanto, da

continuidade da leitura da querela percebemos que a real reclamação de Paulo

tratava-se, como ele mesmo declarou, de crimes de motivações de discórdia entre

famílias e entre cativos e seus senhores, incitando os escravos a fugirem, como fez

um escravo depois de ter sido injustiçado por Maria Cardoza. Com este caso

podemos perceber que a reclamação de Paulo Pinto de Araújo vai além do fato da

sociedade ser enganada pela adivinha. Na verdade este motivo escamoteia o real

anseio do querelante, que consiste não permitir que a viúva influencie a reação dos

cativos diante do castigo violento. Trata-se, portanto, de uma luta pela tomada do

controle de sua relação com seu cativo, sem a interferência do município, nem

tampouco de membros da sociedade que pudessem modificar a concepção dos

cativos sobre sua condição.

O caso apresentado por Jozé Monteiro de Brito possui o teor seguinte:

“estava seu escravo, Francisco dormindo em sua senzala, quando foi atacado com

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algumas pancadas, pelo cativo, Joze, que pertencia ao Capitão Costodio Pereira da

Silva. Em decorrência das pancadas, seu cativo veio falecer alguns dias depois.” A

demanda declarada pelo querelante consiste em emenda de outros e satisfação da

Republica agravada”; entretanto, pode-se perceber uma conotação quase paternal

do senhor em relação ao seu cativo. Obviamente não podemos deixar de cogitar o

prejuízo sentido pelo senhor, mas seu senso de justiça, para com o seu escravo

morto, fica mais evidente quando de sua insistência na querela, mesmo depois dela

não ter sido aceita pelo Juiz Ordinário em exercício na época.

Sob uma perspectiva geral, os casos que centralizam a figura de cativos

revelam desejos diferentes em relação à autoridade judicial. Para além da busca por

reparos materiais ou financeiros, os proprietários pleiteavam os “direitos” que a sua

condição garantia: o direito de castigar sem a interferência municipal, ou de sua

vizinhança. Além disso, constatamos também um jogo de poder, envolvendo dois

senhores, disputando o prestígio junto à autoridade judicial.

Para as querelas envolvendo contendas entre vizinhos, observamos intenções

diferentes dos reclamantes, dependendo da natureza da ofensa ou agressão. As

razões das demandas em geral se apresentam sob duas formas: a busca pelo

reconhecimento de direitos de propriedades e animais; além das queixas envolvendo

agressões físicas, que representam a maioria. Entretanto, em menor número,

observamos registros de crimes envolvendo a instituição familiar; de maneira geral,

chefes de famílias reclamando seus direitos sobre sua mulher.

Dentro da busca pela defesa legal de uma propriedade, os sujeitos tentavam

preterir algo vital para a manutenção dela: o reconhecimento ou aceitação baseado

em critérios internos à comunidade local. O posicionamento do grupo de pessoas ao

redor era de extrema importância para que os sujeitos gozassem do sossego em seu

pedaço de terra adquirido. Ou ainda, quando da criação de animais soltos em

campos aparentemente comuns a todos os vizinhos, o reconhecimento de posse por

parte deles, bem como o sentimento de identificação e mesmo de afeição entre os

sujeitos seria muito importante, para manter a sua criação sem prejuízos causados.

Visto a vulnerabilidade desse tipo de convivência e de divisão territorial, manter o

gado em pastos “públicos”, ou mesmo dar de beber aos animais num rio

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compartilhado poderia ser motivo de agressão física, morte do animal com

promessa de se fazer o mesmo a todos os outros animais pertencentes ao querelante,

ou mesmo roubo.

Os conflitos violentos poderiam ser analisados sob diversas perspectivas e se

enquadram em várias categorias. No entanto, para cada uma delas, a expectativa de

atuação da justiça pode se apresentar de formas diferentes. O simples ato de ter sua

causa oficialmente registrada em poderia conferir certa segurança depois de uma

situação traumática. Apesar do registro de uma querela representar apenas a

primeira instância, sem a garantia de que um processo decorrerá dela, a iniciativa de

se querelar contra um vizinho que se demonstrou violento, pode desencorajar atos

semelhantes futuramente.

Essa dinâmica funcionou para a todos os casos em que ocorrera agressão

física, entre vizinhos, ou iguais. O objetivo de se querelar seria para “emenda dos

agressores, exemplo de outros e para a justiça da República ofendida”.63 Porém, as

situações que envolviam mulheres como agressoras, tanto no âmbito familiar,

quanto entre vizinhos, merece especial atenção, portanto dedicamos-lhes um tópico

exclusivo, primeiro pela natureza bizarra das ações no contexto considerado;

segundo, devido às peculiaridades das expectativas dos querelantes.

As narrativas de casos violentos mais extremados merecem um tópico à

parte, graças à sua ruptura com os modelos de uma sociedade que privilegiava a

figura masculina no interior de todas as instituições sociais. Trata-se de situações

em que homens viam-se constrangidos por atitudes de mulheres que fugiam à

resignação de sua condição e tomavam atitudes voluptuosas, colocando em risco a

reputação da condição masculina.

5.2 Mulheres violentas, homens desesperados

A reflexão a seguir visa à elucidação de algumas questões que surgem

quando da recorrência de atitudes violentas provocadas por mulheres. Vale ressaltar

63 Arquivo da Comarca da Laguna. Livro de Querelas.

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o ambiente machista em que aconteceram tais investidas. Um cenário no qual o

homem representava o centro das relações como marido, como pai. Para corroborar

esta afirmação temos algumas querelas registradas, pelo pai ou marido, por parte de

sua filha ou mulher.

Duas situações chamam atenção para conflitos entre homens e mulheres. O

primeiro consiste no seguinte: “Manoel Alves registrou querela contra sua mulher,

Lodovina Roza de Jesus; bem como contra Luis Ferreira. Os suplicados teriam sido

flagrados por Manoel em situação de adultério numa capoeira. Depois disso, os

adúlteros fugiram levando tudo o que havia na casa do suplicante. Por temor e

respeito, Manoel resolveu não querelar, naquele momento, não obstante, tornou a

receber sua mulher, mesmo depois dela ter confessado ao Juiz, e deste tê-la

ordenado que parasse de viver escandalosamente pela vizinhança, uma vez que

Lodovina também cobrava para prestar serviços. No entanto, Lodovina não deixou

de viver escandalosamente, e ainda trata seu marido por nomes injuriosos, saía

quando bem entendia, negava ao marido o matrimônio conjugal, e finalmente

queria lançá-lo fora de sua própria casa dando-lhe com um pau, e ameaçando-lhe

de morte. Luis Ferreira, ao invés de cuidar de sua família (porque era casado),

também partilha do escândalo da suplicada, entrando e saía da casa do suplicante

para se mancomunar com a adúltera, e usurpar a honra e causar a morte de

Manoel. Assim, ele registrou sua querela buscando a punição dos adúlteros para

não morrer de infelicidade, ou de qualquer outra desgraça que pudesse ocorrer.64

Outra queixa que nos chamou atenção segue: “Francisco da Roza Sudre

registrou sua querela contra Leonarda Roza, mulher de Luis Nunes, e Floriana

Gomes. Estava ele, vindo do Serviço de sua Roça, manso e pacífico quando de

propósito e caso pensado, lhe sai ao encontro Leonarda Roza e lhe atira uma

porretada na cabeça e, lançando-se ao suplicante o derrubou em terra, tempo em

que chegou Floriana Gomes, Maria Gomes e outras. A dita Maria Gomes segurou

o suplicante por um braço e Floriana deu-lhe, nas costas, uma porretada e depois

as duas suplicadas lhe deram as bofetadas e pancadas, que o seu ódio e rancor lhes

fluiu com as quais lhe fizeram nos olhos as contusões declaradas. Certamente as

64 Arquivo da Comarca da Laguna. Livro de Querelas.

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duas contempladas as duas contempladas acabariam com a vida do suplicante não

fosse a comiseração que dele teve a suplicada Maria Gomes, largando-lhe os

braços e tirando aqueles dois leões de cima dele.”65

As duas passagens narradas acima caracterizam situações extremamente

agressivas e ameaçadoras, orquestradas por pessoas do sexo feminino. O que

certamente espantou a sociedade que as assistiu foi a intensa capacidade de agir de

forma violenta e perigosa, bem como de planejar e organizar os ataques com frieza.

A maioria dos casos, antes relatados, envolvendo conflitos violentos, apresentavam

essencialmente a falta de precedentes. Ou seja, quando das situações de briga entre

vizinhos, as agressões físicas decorriam de uma discussão momentânea; o calor de

uma briga gerava as condições necessárias para a violência propriamente dita. Já

para o caso das mulheres agressoras, tanto quando se dirigiam a homens, quanto a

outras mulheres, seus atos tinham como único precedente, a espreita.

Os homens eram postos em xeque quando de uma agressão vinda de uma

mulher, pois, se o revide se constituiria em um ato imoral, também a sua resignação

constrangia a sua imagem masculina diante do restante da sociedade. Então, sem

poder reagir da mesma forma, tais homens alegavam terem sido gravemente feridos,

quase à morte, para ressaltar o caráter violento dos ataques, bem como a

representação de perigo daquelas mulheres. Assim, quando de uma agressão física

de mulheres a homens, surgia uma situação paradoxal; se a idéia de se cometer uma

violência seria incorreta perante aos olhos da sociedade, avessa às regras de

convivência, a um homem também seria desmoralizante sofrer tais agressões.

Trata-se de instantes sem precedentes da condição feminina; o que

observamos foi uma inversão de papéis momentaneamente, entre homens e

mulheres, por motivos que são desconhecidos, uma vez alegada a ausência de

precedentes. O fato é que de todas as querelas registradas contra mulheres violentas,

as narrativas das agressões consistiam, de fato, em atos mais graves, levando as

vítimas quase à morte. Muito disso, poderia ser exagero para justificar a um homem

ter apanhado de uma ou mais mulheres.

65 Arquivo da Comarca da Laguna. Livro de Querelas.

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Acontece que para um homem buscar na Câmara a justiça para uma mulher

violenta, muitos fatores entravam em jogo. À figura masculina, havia que se abrir

das próprias pré-concepções acerca da posição feminina; reconhecer que não

mantinha o domínio sobre as mulheres ao menos naquela situação, e ainda admitir

seus temores frente à possibilidade de novos conflitos.

Entretanto, esse temor era justamente contra o que os homens daquela

sociedade demandavam. A ameaça iminente consistia em bom motivo para se

querelar. Além disso, e principalmente, o que se buscava, ao trazer a público os seus

temores e anseios, no primeiro caso apresentado, aquele em que um marido traído

queixava-se das ameaças de sua mulher, na verdade, procurava restaurar a sua honra

maculada pelo adultério; bem como assumir novamente a posição de chefe de sua

família, ou ao menos de sua casa.

Ainda tratando do caso envolvendo Manoel Alves e sua mulher adúltera,

Lodovina, é interessante analisar a fundamentação de sua querela. O desespero do

querelante ficou bastante evidente com o teor de sua narrativa. Por se tratar de um

homem analfabeto (isso foi declarado ao final da querela), é de se surpreender que

tenha alegado que os fatos contados eram tão escandalosos que “seriam proibidos

até nos mais remotos Reinos da barbaridade entre romanos e hebreus, e entre eles

não se reparava para a simples qualidade da pessoa como é a do suplicante mas

sim para a punição da justiça administrando-a igualmente ao valido e ao

desamparado na certeza de que o suplicante iria participar dessa justiça.” Assim,

Manoel Alves baseou sua demanda em um discurso com tom civilizador, buscando

a legitimidade em normas sociais que regiam as civilizações mais antigas,

claramente influenciado por uma terceira pessoa que conhecia a história de tais

sociedades.

Para o segundo caso apresentado, em que o sujeito alegou ter sido tocaiado

por duas mulheres, quando voltava do seu trabalho na lavoura, afirmando, que da

surpresa da ação, quase foi morto por elas; o rapaz procurava a reafirmação pessoal

perante a sociedade. Afinal, não importava a gravidade da violência aplicada, desde

que aquelas mulheres tomassem conhecimento publicamente, através do órgão

jurídico, do lugar que ocupavam naquela sociedade, qual seria, subordinadas à

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figura masculina. No entanto, a falta de um motivo para a conduta daquelas

mulheres, alegada por Francisco da Roza, pode ser questionada a partir de seu

próprio depoimento quando ele afirma que “depois as duas suplicadas lhe deram as

bofetadas e pancadas, que o seu ódio e rancor lhes fluiu com as quais lhe fizeram

nos olhos as contusões declaradas.” Apesar da dificuldade em conceber a idéia de

que exista ódio sem alguma motivação, sabe-se que existe essa possibilidade;

entretanto, ao mencionar o rancor sentido por aquelas mulheres, Francisco

reconhece uma atitude sua refletida na atuação das suplicadas. Podemos ainda

inferir que se trata de uma disputa relacionada a gênero, uma vez que temos uma

agressão física promovida apenas por mulheres, e várias delas, que conheciam o

querelante e que, de acordo com ele mesmo, agiam movidas por um sentimento de

rancor.

Os casos em que observamos o envolvimento de familiares, tanto nas

disputas entre si quanto contra seus vizinhos, além de denúncias de agressões

praticadas por mulheres contra os homens, havia também casos em que mulheres

figuravam sob a condição de totais vítimas de suas vizinhas.

Os dois únicos casos envolvendo mulheres agredindo outras, cujos maridos

registraram as querelas em nome delas, tomaram o mesmo rumo, após o registro da

queixa. Os dois maridos, logo após depositarem suas queixas das agressoras de suas

mulheres, resolveram retirá-las, em nome da boa convivência. Em seus Termos de

Desistência, Manoel Joze afirmou que “sua mulher na verdade, teria caído e ferido

sua testa” e que retirava sua querela em razão da proximidade que possuíam.

Semelhante à atitude de Manoel, foi a tomada por Silvano Antunes: depois

de ter relatado a violência praticada por duas vizinhas contra a sua esposa,

aproveitando-se de sua ausência, ele retira a querela por estar arrependido, para

não mais contender, e atender à pobreza e indigência das suplicadas. As situações

apresentadas refletem o modo de viver dentre os envolvidos, bem como sua

proximidade.

Os Termos de Desistência de Querela registrados, apesar do pequeno

número, denotam uma realidade, que Isilda Monteiro observou para Vila Nova de

Gaia, nos séculos XVII e XVIII. Através da análise dos Perdões de Parte a autora

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percebeu que no quadro dos mecanismos possíveis que levavam um querelante a

estes Perdões, mesmo considerando os interesses e pressões que poderiam

condicioná-los, a existência de laços de amizade, de família ou de vizinhança

consistiam em bons motivos para a concessão do perdão. Além disso, o perdão se

assumia formas de atitudes altruístas ou religiosas, nas quais prevalecia a obrigação

moral ou o ato de fé.66

Conotação parecida à observada por Monteiro assumem os termos de

desistência da Laguna. Para o primeiro caso, o laço de vizinhança, ou a declarada

proximidade entre os querelantes e a querelada, motivou a retirada da querela. Para

o segundo, o altruísmo motivou a desistência, diante da indigência das quereladas.

Os reais motivos podem ter sido escamoteados, como o temor à recorrência de tais

agressões, devido à proximidade ou rancor que o registro oficial poderia causar.

Entretanto, não cabe aqui supor motivações, o importante é ressaltar que mesmo

diante da violência declarada sem precedentes, a sociedade também apresentava

aspectos de aproximação diante do conflito; a ser dito, as diversas razões (morais,

religiosas, afetivas), para perdoar.

O balanço geral da reflexão apresentada denota a complexidade da dinâmica

não linear da sociedade. No interior do emaranhado que compunha o tecido social,

diversas eram as expectativas dos atores em relação ao exercício da justiça. Para

além da aplicação de leis, os sujeitos buscavam satisfações pessoais para seus

problemas. A reafirmação da posição social, o reconhecimento de autoridade e

controle para com os escravos, ou do direito de propriedade; assim como a

restauração da imagem pessoal frente à sociedade, constituíram em apenas algumas

das formas que os indivíduos encontravam de se sentir justiçados.

66 MONTEIRO, Isilda Braga da Costa. “A Litigiosidade e o “Perdão” em Vila Nova de Gaia (séculos XVII e XVIII).”. In: Revista de Ciências Históricas, Universidade Portucalense. Vol. XI. 1996. Pp: 101-112.

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6. Conclusão

O emaranhado que compunha o tecido social, da Laguna do início do século

XIX, denota a complexidade de relações que se entrecruzam. Envolvidas em uma

mesma querela, nos deparamos com choques entre instituições. Aliado a isso, os

vieses que surgem de cada registro sugerem apontamentos de análise em diversas

direções. Dessa forma, nos deparamos com casos envolvendo diversos valores, seja

dentre as transgressões que poderiam ser acolhidas em diversas categorias, seja

dentre as instituições confrontadas, que assumiam

Através do teor de cada narrativa percebemos que apesar do objetivo

principal da busca por justiça, os atores sociais legitimavam suas demandas

sobrepondo valores intrínsecos às práticas sociais locais ao que de fato estaria

previsto em códigos escritos. Dessa forma, conferiam aos costumes e as

especificidades locais, um caráter universal.

De acordo com as divisões de tópicos tomamos algumas conclusões

decorrentes da observação das situações apresentadas nas querelas. Ao inserir

Laguna num contexto mais amplo da Colônia, nota-se que ela não se enquadrava

dentre os grandes centros produtores, movidos essencialmente pela mão-de-obra

cativa. Pelo contrário, predominavam as pequenas propriedades, nas quais os

lavradores ocupavam lugar central; disso decorre o grande número de lavradores

que figuravam em nossos registros.

A sua posição, relativamente periférica dentro da Colônia, possibilitou a

introdução de uma dinâmica própria em vários níveis. No meio político, a

municipalidade local desempenhou um papel marcante, acolhendo às Câmaras,

onde inclusive as querelas eram registradas, as figuras mais importantes da elite

local. No âmbito jurídico, o papel do Juiz Ordinário, como aplicador da justiça,

acabava muitas vezes manipulado pelos poderosos. Assim, nos deparamos com

situações de disputa entre poderosos que acabavam na primeira instância; tais

entreveros acabavam causando desconforto entre a figura do Juiz Ordinário e a

parte mais frágil ou mais pobre, ou menos prestigiada.

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No segundo capítulo, quando trabalhada a realidade vivida entre senhores e

seus cativos, pudemos corroborar o que a historiografia, referente à escravidão,

corrente tem trazido: escravos e senhores desempenharam papéis que envolviam

negociações políticas em todas as situações, não apenas em limites ou em

momentos decisivos como de alforria, mas também em questões do cotidiano. O

castigo, como forma de controle, muitas vezes foi contestado pelo cativo, através da

fuga. Isso denota uma face, já apresentada por estudiosos da escravidão, mesmo

altiva do escravo diante de sua condição. E também demonstra a disposição do

senhor em negociar em troca do reconhecimento de seu controle, sobretudo através

do discurso paternalista em relação aos seus cativos.

No terceiro capítulo, trabalhamos com as situações de conflito envolvendo

vizinhos. Apesar dos laços de solidariedade que teoricamente envolveriam os

sujeitos que possuíam uma proximidade espacial, notamos a maior incidência de

violência praticada entre eles; atitudes violentas tomadas, sobretudo, por mulheres.

Além disso, as transgressões envolvendo propriedade marcaram também o contexto

da Laguna. Aqui, locais de uso comum, principalmente de pastagens, ou rio,

geravam situações de roubo de animais, e mesmo de agressões físicas por parte dos

vizinhos. Mesmo propriedades legalizadas, só eram legítimas, aos olhos da

sociedade, com o reconhecimento por parte dos vizinhos próximos. Do contrário

disso, o próprio órgão municipal revogava a posse.

Por fim, chegamos à discussão envolvendo a busca por justiça. Nesse

capítulo, o teor das querelas foi de extrema importância para a análise. Isso porque

conseguimos captar alguns elementos que compunham a noção consensual do que

seria correto e justo. Tais valores orquestraram os rumos das narrativas e deram

sentido aos registros de querelas. Em nome desse senso de justiça comum, os

indivíduos viam a possibilidade de resolver legalmente os seus pequenos

infortúnios.

Então, concluímos que ao mesmo tempo em que os atores sociais,

frequentemente, recorriam a meios violentos para responder a impasses do

cotidiano, também se utilizavam dos meios legais para buscar a solução para tais

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impasses. Apesar disso, não podemos mensurar a recorrência destas situações, o que

não nos permite afirmar ser aquela uma sociedade violenta.

Por fim, ao tomar a teorização de Maria Sylvia de Carvalho Franco

acerca de uma condição de marginalidade como causa da formação de uma

sociedade predominantemente violenta, que comete crimes por motivos banais,

ficaremos apenas com uma parte dela. A violência aparece como forma de

posicionamento diante do outro com o intuito de regular a dinâmica social.

Entretanto, também surge com a finalidade de se contestar o poder ou posições no

interior das instituições sociais. Diante disso, e dialogando com isso, temos as

normas, também delineadas pelo cotidiano e vivenciadas entre os sujeitos. Qualquer

forma de transgressão desse código de valores morais, era tomada como

desobediência às leis e, portanto, motivo de se demandar junto à justiça oficial.

Desse modo, o reconhecimento do controle, ou de propriedade, a inversão de papéis

sociais, assumida por mulheres; enfim, problemas cotidianos tomavam a forma de

crimes, elevando o costume à categoria de lei.

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7. Referências

FONTES

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MAMIGONIAN, Beatriz G. Africanos em Santa Catarina: escravidão e identidade étnica (1750-1850)

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ANEXO A – RELAÇÃO DE QUERELANTES, QUERELADOS E TESTEMUNHAS

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