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Universidade Federal do Rio de Janeiro
Leandro Gama Junqueira
Vida, caminho, verdade: poética do destino
Rio de Janeiro
2013
VIDA, CAMINHO, VERDADE: POÉTICA DO DESTINO
Por:
Leandro Gama Junqueira
Departamento de Ciência da Literatura
Poética
Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Ciência da Literatura da Universidade
Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção
do Título de Doutor em Ciência da Literatura (Poética)
Orientador: Prof. Doutor Manuel Antônio de Castro.
UFRJ / FACULDADE DE LETRAS
1º SEMESTRE / 2013
FOLHA DE APROVAÇÃO
JUNQUEIRA, Leandro Gama. Vida, Caminho, Verdade: Poética do
Destino. Rio de Janeiro, UFRJ, Faculdade de Letras, 235 fls
mimeo. Tese de Doutorado em Poética – Ciência da Literatura.
Rio de Janeiro: UFRJ, 2013.
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da
Literatura da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos
requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Ciência da Literatura
(Poética).
BANCA EXAMINADORA:
___________________________________________________________________
Presidente: Professor Doutor Manuel Antônio de Castro - UFRJ
Orientador
___________________________________________________________________
Professor Doutor Ricardo Pinto de Souza – UFRJ
___________________________________________________________________
Professora Doutora Angela Maria Guida - UFMS
___________________________________________________________________
Professora Doutora Cláudia Andréa Prata Ferreira- UFRJ
___________________________________________________________________
Professor Doutor Igor Teixeira Silva Fagundes - UFRJ
___________________________________________________________________
Professora Doutora Martha Alkmin - UFRJ (Suplente)
___________________________________________________________________
Professora Doutora Idalina Azevedo da Silva - UFRJ (Suplente)
Defendida a Tese:
Conceito: ____________
Em: 28 / 08 / 2013.
Junqueira, Leandro Gama.
Vida, Caminho e Verdade: Poética do Destino/ Leandro Gama
Junqueira. - Rio de Janeiro: UFRJ/ Faculdade de Letras, 2013.
xii, 240 f: 31 cm.
Orientador: Manuel Antônio de Castro
Tese (doutorado) – UFRJ/ FL/ Programa de Pós-graduação em
Ciência da Literatura (Poética) 2013.
Referências Bibliográficas: f. 234 – 240.
1. Poética. 2. Destino. 3. Vida. 4. Caminho. 5. Verdade. I. Castro,
Manuel Antônio de. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Programa de Pós-graduação em Ciência da Literatura (Poética). III.
Título.
Dedicatória
Com todo afeto, amor, carinho e gratidão,
ao Grande Autor,
responsável maior por esta realização
e provedor fiel de tudo o que eu necessito e sou.
Totalmente a você:
Yahweh-ro’i
Agradecimentos
À Dulcinéa Nascimento Gama e Venilton de F. Soares Junqueira (in memoria), autores
do autor, e a Luís Fernando, companheiro de estrada;
À Elisangela e aos meus filhos Davi e Débora, amor desde os tempos imemoriais;
À Norma, à Néia, à Ângela, ao Laerton e ao Rhuan, indefiníveis neste mundo;
Aos meus sogros José Manuel e Maria Elizabeth e aos meus cunhados;
Aos amigos remanescentes, parentes e alunos-amigos;
Aos colegas de profissão em especial ao meu amigo Fernando Venâncio;
Aos professores examinadores que tão gentilmente aceitaram fazer parte da banca de
defesa;
Em especial, ao professor Manuel Antônio de Castro, que me iniciou nas veredas do
“entre” e adestrou meus ouvidos à “escuta” e, muito mais que mestre excelente, tornou-se um
companheiro e amigo, cuja importância neste trabalho, em minha formação e em minha vida é
imensurável e indescritível;
Aos que, de um modo ou de outro, fizeram parte desta travessia;
Aos anônimos que me incitaram, sem ao menos sabermos um do outro, a auscultar
melhor a vida;
Enfim, a você que me lê e aos que estão a caminho...
Muito obrigado!
Resumo
JUNQUEIRA, Leandro Gama. Vida, Caminho, Verdade: Poética do
Destino. Rio de Janeiro, UFRJ, Faculdade de Letras, 235 fls
mimeo. Tese de Doutorado em Poética – Ciência da Literatura.
Rio de Janeiro: UFRJ, 2013.
Procuramos desenvolver neste trabalho a tese de que vida, caminho e verdade se
conjugam no que chamamos de poética do destino atrelando poesia e pensamento na
confluência de manifestação do real. Tomamos como ponto de partida dois dos maiores
poetas e pensadores do século XX: Carlos Drummond de Andrade e Martin Heidegger,
dialogando também com outros poetas e pensadores da prosa e da poesia. Nosso objetivo é
promover a interação entre o poetar pensante e o pensar poético e refletir sobre alguns
princípios que norteiam o acontecer do destino na poética a partir do poema “A máquina do
mundo”, de Drummond.
Nosso caminho de reflexão partiu de alguns poemas de Drummond e ensaios de
Heidegger que manifestavam o destino, vida, caminho e verdade como questões e não
conceitos. As reflexões nos conduzem a um entendimento ontopoético de destino e da
liberdade como caminho, distanciando tanto do determinismo como da predestinação. Assim,
vida, caminho e verdade giram em torno de destino num circulo poético de manifestação de
sentido trazendo à tona outras questões como: corpo, tempo, pensar, ausculta e silêncio,
renuncia e oferta, morte, memória, amor, o nada, finitude e permanência, procura e encontro,
arte e vida, sentidos e intuição, linguagem, mito e natureza, mistério e manifestação, travessia
e trajetividade, limite e não-limite, o Belo, sólido e insólito, sentido, compreensão e
significância, experienciação, aprendizagem e sabedoria.
Palavras-chave: poética do destino, A máquina do mundo, Carlos Drummond de
Andrade.
Abstract
JUNQUEIRA, Leandro Gama. Life, Path, Truth: Poetics of Destiny.
Rio de Janeiro, UFRJ, Faculdade de Letras, 2013. Thesis in
Poetics – Ciência da Literatura.
In this work, we tried to develop the thesis that life, path and truth come together in
what we call poetics of destiny, connecting poetry and thought at the confluence of the real
manifestation. We took as our starting-point two of the greatest poets and thinkers of the
twentieth century: Carlos Drummond de Andrade and Martin Heidegger, also dialoguing with
other poets and thinkers of prose and poetry. Our goal is to promote interaction between the
thinking poetize and the poetic thinking and to reflect on some principles that guide the place
of destiny in poetics from Drummond’s poem A máquina do mundo (Mathime of the world).
Our way of thinking came from some Drummond’s poems and Heidegger’s essays that
expressed destiny, life, path and truth as questions and not concepts. The reflections lead us to
an ontopoetics understanding of destiny and freedom as the path, distancing both determinism
and predestination. Thus, life, path and truth revolve around destiny in a poetic circle of sense
expression, bringing up other issues such as body, time, thinking, auscultation and silence,
resignation and offer, death, memory, love, nothing, finitude and permanence, searching and
gathering, art and life, senses and intuition, language, myth and nature, mystery and
manifestation, crossing and path, limit and no-limit, the Beautiful, solid and unusual,
meaning, significance and understanding, experiencing, learning and wisdom.
Keywords: poetc’s destiny, A máquina do mundo, Carlos Drummond de Andrade.
“Se procurar bem, você acaba encontrando
não a explicação (duvidosa) da vida,
mas a poesia (inexplicável) da vida ”
(DRUMMOND, 1984: 95)
“A linguagem fala, o homem fala à medida que
corresponde a linguagem”
(HEIDEGGER, 2004a, p. 26.)
Sumário
Introdução .....................................................................................................................12
1. Vida, arte e aprendizagem: destinações humanas ..............................................19
1. 1 - Arte e vida ................................................................................................23
1.1.1 - Vida: arte do destino ......................................................................27
1.1.2 - Destino na Grécia Antiga ...............................................................30
1.1.3 – Causa: a sistematização filosófica do destino ..............................34
1.1.4 – Vida e destino: necessidade e convergência .................................37
1.1.5 - Destino: entre-tempo e entre-caminho da vida ............................41
1.2 - Pensar: a vida da arte .................................................................................44
1.2.1 – O que é isto: o pensar .....................................................................46
1.2.2 – Pensar: maquinar da vida .............................................................47
1.2.3 – Pensar: auscultar o silêncio ...........................................................50
1.2.4 – Pensar: a renúncia originária .......................................................52
1.3 - Memória: vida do pensamento ..................................................................56
1.3.1 - Memória: reunião integradora do que era, é e será ....................58
1.3.2 – Memória, morte e destino ..............................................................61
1.3.3 – Memória e amor .............................................................................63
1.3.4 – Memória e nada ..............................................................................64
1.3.5 – Memória e o sensível ......................................................................65
1.3.6 – Memória: finitude e permanência ................................................66
1.4 - Pro-cura: a arte da vida .............................................................................68
1.4.1 - Pro-curar: ver, pensar e caminhar ................................................69
1.4.2 - Pro-cura, encontro e des-encontro .................................................70
1.4.3 – O caminho da pro-cura ..................................................................73
1.4.4 – Pro-cura: arte e vida ......................................................................74
1.4.5 – Vida: a arte da pro-cura ................................................................76
1. 4. 6 – Vida e morte .................................................................................78
2. O apelo do caminho: espera do inesperado ...........................................................86
2.1 - Nas vias dos sentidos e da intuição ............................................................88
2.1.1 - Sentidos e intuição na via da modernidade ..................................89
2. 1.2 - Sentidos e intuição como medida ..................................................91
2.1.3 – Corpo: necessidade e convergência de sentidos e intuição .........95
2.2 - Veredas mitopoéticas .................................................................................97
2.2.1 - Conjunções mitopoéticas: linguagem, mito e natureza ............98
2.2.2 - Apelo mitopoético: ausculta do mistério ...................................102
2.3 - O caminho da travessia .............................................................................104
2.3.1 - O caminho no pensamento-poético-oriental ...............................108
2.3.2 - O caminho: do oriente ao ocidente ..............................................111
2.3.3 - De-morar: a travessia do caminho ..............................................115
2.3.4 - Destino: a trajetividade humana no caminho do pensamento..119
2.4 - Destino: gestualização da vida ................................................................122
2.4.1 – Gestualização como construção poética ....................................126
2.4.2 - Destinar: a-travessar a vida ........................................................129
2.4.3 – Destinação: a travessia do sentido .............................................130
2.4.4 – Caminho, travessia e aprendizagem ..........................................134
2.5 - Caminho para a verdade ........................................................................137
2.5.1 - Caminho: o palmilhar do sentido ..............................................140
2.5.2 - Caminhar: a luta pelo sentido ....................................................142
2.5.3 - Caminho: o rasgo da diferença ..................................................144
2.5.4 - Metá-hodós: caminho originário ...............................................146
3. Verdade: o descortinar misterioso da vida ........................................................150
3.1 - Verdade e linguagem ..............................................................................152
3.1.1 - Verdade e angústia .....................................................................153
3.1.2 – A rendição da verdade à não-verdade .....................................157
3.1.3 – (Co-) Respondendo ao apelo do inesperado ............................159
3.1.4 – Pedra: o marco da existência humana .....................................163
3.2 - Verdade: do originário ao racionalismo ................................................167
3.2.1 – A visão mecanicista da Modernidade.........................................168
3.2.2 – O limiar da verdade na Grécia Antiga: o platonismo ..............172
3.2.3 – A entificação da verdade na Idade Média .................................174
3.2.4 – A sistematização da verdade na Modernidade .........................176
3. 3 - Verdade e liberdade ................................................................................180
3. 3.1 – Liberdade como habitar originariamente ................................181
3. 3.2 – Liberdade como possibilidade e disponibilidade .....................182
3. 3. 3 – Liberdade como destinação ......................................................184
3. 3. 3 – Liberdade e limite ......................................................................186
3. 4 – Verdade: manifestação ontofânica ........................................................188
3. 4. 1 – Verdade e manifestação .............................................................188
3. 4. 2 – Verdade e manipulação .............................................................190
3. 4. 3 – Verdade e o Belo ........................................................................194
3. 4. 4 – Verdade e ontologia ...................................................................195
3. 5 - A compreensão da verdade .....................................................................197
3. 5. 1 - Compreensão: tensão entre sólido e insólito ............................199
3. 5. 2 - Compreensão: discurso e parábola ...........................................201
3. 5. 3 - Compreensão: ausculta do silêncio ...........................................202
3. 5. 4 - Compreensão e significância ......................................................204
3. 6 - Verdade da compreensão ........................................................................206
3. 6. 1 - A incompreensão.........................................................................209
3. 6. 2 - A compreensão ideológica ..........................................................211
3. 6. 3 - A compreensão conceitual ..........................................................215
3. 6. 4 - A compreensão convencional .....................................................217
3. 6. 5 - A compreensão poético-dialogal ................................................219
3. 6. 6 - A verdade: a ausculta do silêncio ...............................................223
4. Caminho, Verdade, Vida ......................................................................................229
5. Referências Bibliográficas ...................................................................................232
Introdução
Poética do destino é poetização da vida como caminho e verdade. A questão aqui colocada
não é a poética de um determinado autor, mas a do destino; pelo simples fato de toda poética ser
primeira e originariamente poética deste. Esta convoca a fala do poeta instaurando a manifestação
inaugural poético-apropriante no acontecer poeta.
Poeta não é, acontece.
Partindo da ideia de que poética não é a produção de um poeta ou delimitação técnica de
seu trabalho, a entendemos como o operar da verdade como caminho e vida. Caminho e vida se
dizem também procura e sentido como desdobramentos do destino.
A arte é o núcleo seminal e disseminador do acontecimento do destino, por isso pensamos a
poética do destino.
Poética é a manifestação da ação da poiesis, e esta é a essência do agir como todo passar do
não ser ao ser, isto diz o mesmo que destino. Poética e destino dizem o mesmo sem ser a mesma
coisa. Poética é o destinar humano se dando e doando como linguagem de modo que possa abrir
caminho para o acontecimento da verdade na vida. Todo poema é, de certo modo, um desdobrar
do acontecimento do destino como vida, caminho e verdade. Assim sendo, escolhemos como
provocação das questões apresentadas na tese intitulada Vida, caminho e verdade: poética do
destino o poema A máquina do mundo, de Carlos Drummond de Andrade, originalmente
publicado no livro Claro enigma. Foco de muitos comentários e teses relativas à estética de seu
autor e nuclear da poética drummondiana, a análise do poema é frequente tido como eixo
estruturador da escrita do poeta, sua leitura se faz quase sempre de modo comparativo com dois
outros bem conhecidos textos: A Divina Comédia e Os Lusíadas. A tese comum, além das que
assinalam semelhanças temáticas e formais, é a de que o texto de Drummond se diferencia dos
outros dois sobretudo por representar a tônica da “poesia mentada” de um eu isomorficamente
identificado com o autor.
As interpretações giram, a princípio, em torno do entendimento da recusa do caminheiro de
receber a revelação gratuita da máquina por ser considerada uma doação metafísica “da natureza
mítica das coisas”, pertencente ao plano transcendente e, até mesmo, extraterreno. Tal
pensamento legitima a oposição entre o aprendizado racional e a aprendizagem mitopoética, que
14
reafirma a posição racionalista do conhecimento moderno, rejeitando o que não se origina do
“seu próprio ser desenganado” em prol da autonomia do pensamento cogitante. O que ratifica
uma subjetividade especulativa racional e revela o conúbio do sujeito cogitante com o objeto
cogitado, supostamente plasmado nas imagens simbólicas debuxadas no poema, autenticando
certa simbiose entre o universo interior e o exterior do sujeito. Desse modo, a poética é
racionalizada e o trabalho poético é um operar ideológico na esteira lógica-metafísica.
Entretanto, o drama existencial que se manifesta no poema simula um jogo de procura e
recusa de certo conhecimento como um impasse epistemológico do humanismo moderno, no
dilema que se formula na pergunta: “até onde (quanto) a mente humana pode conhecer?”.
O título do poema, aparentemente sem nenhuma novidade, ensejando uma conotação
realista que supõe permear todo o texto, nos surpreende na dupla possibilidade de sentido
abrindo-se como algo extremamente ambíguo fazendo referência ora a uma visão mecanicista do
mundo ora à própria dinâmica de acontecer do mundo. Ambas as visões assinalam o ponto de
partida para caminhos radicalmente opostos, mas que evidentemente contínuo se tangenciam.
Surge, então, a questão do destino: o que é e como se dá o destino humano?
Neste trabalho procuramos intermediar a aproximação entre a arte e o pensamento,
sobretudo do século XX, em torno da poética. Nosso objetivo é promover a interação entre o
poetar pensante e o pensar poético e refletir sobre alguns princípios que norteiam o acontecer
poético-apropriante do destino na arte. As reflexões em torno do pensamento em confronto com a
poesia nos conduzem ao entendimento de que a poesia e pensamento não nascem do homem, mas
são modos como a linguagem se manifesta nele. Isto é, pensamento e poesia são frutos da
ausculta do homem, que só manifesta o que lhe advém nessa ausculta; o que se manifesta é
destino. Por esse motivo nos debruçamos sobre a questão da escuta fazendo uma escuta da
questão. Nosso trabalho é uma tentativa de desvincular a linguagem, a poesia e o pensamento do
esquema lógico-metafísico por meio do qual se afirma a verdade de uma proposição em
decorrência de sua ligação com outras já reconhecidas como verdadeiras, deixando manifestar a
tensão arte e destino. Nosso caminho é o do diá-logo, entendido como o embate de duas (ou
mais) falas do logos, principalmente entre a fala e o silêncio.
Conjugando poesia e pensamento como dois modos de eclosão da linguagem na
proximidade do humano, palmilhamos o des-encobrimento do sentido em cada imagem
engendrada e manifesta nos poemas e ensaios. Falamos de imagem e não de ideias, proposições,
15
símbolos ou alegorias porque nosso foco não é fazer uma leitura analítica ou estética, que vê o
corpus como um objeto, antes nos colocamos à ausculta da linguagem e procuramos com ela
dialogar, por esse motivo, não há corpus específico, o que há é ausculta do destino em tensão
com e na arte; desse modo falamos de procura em vez de demonstração. A procura não resulta da
decisão do sujeito, tampouco é por ele criada, antes é um apelo para que o homem se abra em
escuta e abrindo-se desperte para o acontecimento da Verdade e se lance nas veredas do des-
velamento de sua própria existência.
No pensamento poético, a arte realiza e manifesta destino como vida, caminho e verdade
intensificando a experienciação da aprendizagem e da sabedoria dando a oportunidade ao homem
de experimentar o acontecimento do extraordinário no mais ordinário de sua existência. Assim,
originariamente entendida, a arte manifesta o destino e se estabelece como questão, abolindo toda
e qualquer forma de representação. Pensamos então destino como questões e não como conceitos
emergentes nas obras em estudo.
O modo de estruturar nossa escuta procurou acompanhar a manifestação de destino como
linguagem nas obras dos diversos poetas (do verso e da prosa) e pensadores. Como a proposta é
um diálogo, não queríamos que nossa fala fosse um corpo estranho, por esse motivo nosso
pensamento se moveu em círculo procurando fazer uma experienciação hermenêutica e não
viciosa da linguagem. Desse modo, pro-curamos deixar que a complexidade da obra dos autores
se expusesse cada vez mais, acompanhando o embate das falas com o cuidado de não provocar
intencional e mecanicamente o fenômeno, nem de algum modo viciá-lo, permitindo que ele se
des-velasse na própria tensão que os envolve. Sendo assim, grafamos muitas palavras com hífen
entre prefixos e radicais com a preocupação de manter o vigor tensional do entre que intercambia
a pro-dução de sentido possibilitando uma leitura além da linguística ou da lexicologia,
apontando para a gênese originária de cada palavra como fenômeno de manifestação ambígua e
ambivalente do sentido.
A delimitação da tese instaurada no título-tema: Vida, caminho e verdade: poética do
destino estabelece-se na abertura e convocação de várias vozes da poesia e do pensamento da
Antiguidade clássica até a contemporaneidade fundamentada na ideia de que estamos vivendo o
fim de um ciclo e início de outro, conforme afirma Emmanuel Carneiro Leão:
16
A história da humanidade se move em ciclos de vinte e cinco séculos. A cada dois
milênios e meio se fecha um ciclo, se atinge e se instala um fim. É o instante propício
para se transformar e ser mais livremente o que somos. Pois tudo se torna fluído e nada
se fixa. Os velhos padrões se esboroaram e os novos parâmetros ainda não se instalaram.
Aparecem, então, mais claras as limitações da razão e se fazem mais sensíveis as perdas
da racionalidade. O mundo todo entra em transição e sente a necessidade de passar.
(LEÃO: 2009, p. 24 - 25.)
Trilhamos as vias do silêncio e da escuta na linguagem e os inter-câmbios entre poesia e
pensamento. Nesses inter-câmbios algumas questões surgiram e se retiraram para depois
ressurgirem na urdidura de vida, caminho e verdade como imagens-questões complexas e muito
recorrentes na arte - enigmas do destino que assinalam o des-encobrimento do homem como ser-
em-travessia.
As questões aqui colocadas se cruzam e entrecruzam a todo o instante, assim como no
poema No meio do caminho, de Drummond, os versos sucessivos não são meras repetições, mas
retomadas e recolocações das questões, aqui também se faz o mesmo. Frases, afirmações e
citações podem se repetir em contextos diversos estabelecendo novas relações de sentido, sem
com isso se pretender ser redundante, mesmo correndo o risco de sê-lo. Muitas questões vão ser
retomadas ao longo do texto, entretanto procuramos não apenas repetir algo já dito, mas ampliar
as questões em contextos e falas diferenciados. Desse modo, as questões desenvolvidas na tese
vão se desdobrando ao longo dos capítulos de modo interrelacional, muitas vezes uma questão
enunciada num capítulo vai ser ampliada e desenvolvida nos seguintes, sendo recolocadas
continuamente em outros.
Escolhemos poemas de Carlos Drummond de Andrade muito conhecidos com propósito de
pensar a possibilidade de se fazer uma nova leitura deles pro-curando no que já foi pensado
(desvelado) o que ainda permanece impensado (velado).
Não é preciso fazer uma vasta leitura dos poemas de Drummond neste trabalho para se
verificar a riqueza poética que destilam. Todos os poemas, fazendo coro com Heidegger, são
manifestações de um único poema, e acrescentamos, do destino. Um poema põe questões que se
encontram nos diversos em que aparecem. Assim sendo, para o diálogo entre poesia e
pensamento, partimos da identificação de três movimentos poéticos nucleares no texto A máquina
do mundo que abrem as questões. Estes movimentos não correspondem exatamente a um
quantitativo de versos e/ou delimitações de estrofes, antes se manifestam caleidoscopicamente
em cada palavra, entretanto, podemos percebê-los em sintaxes e arranjos diversos, por isso
17
recorremos ora a um ora a outro desses arranjos, ficando aberta a possibilidade de pensá-los de
outro modo ou disposição.
O primeiro desses movimentos faz eclodir questões referentes à vida dialogando,
sobretudo, com o poema A máquina do mundo e textos da obra de Heidegger. Assim, no primeiro
capítulo da tese, intitulado Vida, arte e aprendizagem, trazemos a questão da vida relacionada a
seus vários inter-cursos. Primeiramente exploramos a relação arte e vida, logo após pensamos a
referência vida-arte-destino, passando pela compreensão grega arcaica de destino, por sua
sistematização filosófica que tenta apreender e conceituar o devir vital. Em seguida refletimos
sobre a tensão expressa nas questões: vida e destino, necessidade e convergência, entre-tempo e
entre-caminho. À frente, colocamos a questão do pensamento e sua relação com a vida e a arte e
o maquinar imanente e inerente à vida que acontece por meio da ausculta do silêncio e da
renúncia originária relacionado principalmente aos poemas A máquina do mundo e Poesia, de
Drummond. O terceiro tópico dedicamos a pensar a memória como vida do pensamento
estabelecendo-se como reunião integradora do que é, foi e será na relação com a morte, destino,
amor, o nada e o sensível, além da tensão finitude e permanência tomando como ponto de partida
o diálogo com os poemas A máquina do mundo, Memória e Ausência. No último tópico da
primeira parte refletimos sobre a questão da pro-cura a partir do diálogo com os poemas A
máquina do mundo, Lembrete e A palavra mágica, seguindo itinerário do caminhar, ver e pensar
na tensão pro-cura e encontro, e arte e vida. Por fim, deixamos vir à presença a tensão vida e
morte a partir dos poemas Os mortos de sobrecasaca, Vida depois da vida e Morto vivendo.
O segundo capítulo corresponde à provocação destinada do caminho como espera do
inesperado num movimento de abertura que toma o homem dando sentido a sua caminhada.
Segue-se trilhando o caminho nas vias dos sentidos e intuição pensando o corpo como
necessidade e convergência, palmilhando seu movimento no poema A máquina do mundo em
tensão com outras falas da poesia e do pensamento, sobretudo mítico; em seguida, lançamo-nos
ao apelo das veredas mitopoéticas na ausculta do mistério entre linguagem, mito e natureza.
Propusemo-nos também a pensar o caminho da travessia seguindo o rastro do poema No meio do
caminho, dialogando com ensaios de Heidegger na obra Caminho para a linguagem e Grande
sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Daí surge o fazer a travessia do pensamento-poético-
oriental nas trilhas do Tao, em poemas de Lao Tsé e Chuang Tzu, perfazendo o caminho do
oriente ao ocidente tendo ainda como guia o poema No meio do caminho, entendendo a
18
trajetividade humana como realização poética do destino. É pensada a caminhada como
construção contínua e inconclusa da morada humana no mundo em face da tensão tempo e
memória e, em seguida, o sentido de destino como gestualização da vida e esta como
manifestação poética, ou seja, arte, nas sendas do poema Mãos dadas, O lutador e Grande
sertão: veredas colocando a ação do destino na vida humana como um destinar ou destinação,
sendo este o modo como o homem atravessa a vida fazendo seu meta-hodós, transvertendo o
sentido em aprendizagem e caminho para a verdade. Colocamos, ainda, neste capítulo as questões
evocadas pelas palavras-guia no grego: logos, physis, aletheia, techne, meta-hodós, dzoion e
télos, nas suas relações com o acontecimento de destino na arte.
O terceiro capítulo da tese se destina a pensar a verdade como o descortinar do mistério da
vida em tensão com a linguagem, passando pela angústia como provocação à abertura para a
compreensão do destino em face do abismo do nada. A caminhada é vista como procura na
correspondência ao apelo poético do inesperado. Torna-se necessário pensar por alto as mudanças
de sentido de verdade, do sentido originário da palavra grega aletheia à entificação da metafísica
racionalista que transubstanciou sistematicamente verdade em orthotes, adaequatio e veritas,
provocadas pela sistematização do pensamento promovidos sobretudo pelo platonismo e
aristotelismo, na Antiguidade, Patrística e Escolástica, na Idade Média e demais movimentos
racionalistas da Idade Moderna. Pensamos também a tensão entre verdade e liberdade nos modos
de manifestação desta como habitação, possibilidade e disponibilidade, destinação e limite,
trilhando seu acontecer poético no poema Verdade, de Drummond, que coloca questões da
verdade em tensão com a manipulação, o Belo, a ontologia e a compreensão. Nos últimos tópicos
deste capítulo, pensamos os modos de acontecimento da compreensão, primeiramente como
tensão entre sólito e insólito tecendo a diferença entre compreensão e significância, em seguida,
passamos à incompreensão, compreensão ideológica, conceitual, convencional e poético-dialogal,
guiados pela poesia (de) Operário no mar, chegando à verdade como acontecimento poético-
apropriante do destino e ausculta originária do silêncio nas vias do sentido/caminho da vida.
19
1. Vida, arte e aprendizagem: destinações humanas
Todo questionamento é um caminhar a partir do que já se sabe rumo ao que ainda não se
sabe. Ora, o que não sabemos sempre existirá, por isso o caminhar não pode ser entificado como
um caminho do saber. Caminho, como essencialização do caminhar, é vida, não somente ou
exclusivamente enquanto bios, modo de vida, mas e principalmente como um movimento da
própria zoé, força vital, que sempre se recria e concria.
O questionamento acontece quando o homem se abre para o diálogo movendo-se nas
questões da vida enquanto um caminhar rumo ao desvelamento da verdade que desde sempre o
move. O caminhar é a escuta de um apelo, um ob-audire que destina o homem e o põe rumo ao
seu destino, que é caminho que se caminha sem querer acertado, independente da vontade
humana.
Como escuta, destino não é produzido pelo homem e nem o produz ou determina, por isso,
mesmo que dele se queira fugir, aí é que mais ele se realiza como um destinar-se trajetivamente,
isto se chama essencialmente desvelamento.
Destino é a destinação do homem enquanto sendo, na vigência de seu ser como um
desvelar-se em um modo de ser: o que é, vigendo e se manifestando no como é e não é: vida. No
destinar-se se dá uma aprendizagem experiencial a que se pode chamar vivência. Esta assinala a
processualização do próprio viver no qual se manifesta a sensação de estar vivendo, por isso é um
saber experiencial que só se adquire no mover cotidiano da vida. Um bom exemplo é o do
personagem de Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa: Riobaldo que narra e re-narra
sua história re-vivendo-a no desejo de re-descobrir algum sentido vagante, encoberto entre-
vivências. Da vivência, diz ele: “Viver – não é? – é muito perigoso. Porque ainda não se sabe.
Porque aprender-a-viver é que é o viver, mesmo.” (ROSA: 2001, p. 601). O recorrente “não” na
frase é de importância essencial para o sentido: “não é” e “não se sabe”, são expressões que
poderiam ser estruturadas do seguinte modo: “não-ser” e “não-saber”. O “não” aqui não é
simplesmente negação, mas nomeia o-que-ainda-não-se-é. Viver é aprender-a-viver.
Aprendizagem, arte e vida estão intimamente ligadas. Viver é o perigo da aprendizagem, e este é
o percurso da arte.
20
Ao longo deste trabalho, a palavra “perigoso” será relacionada com os sentidos de limite,
percurso, perito, experienciação1, correr risco e caminhar, dentre outras, donde emerge a imagem
do caminho. “Viver é muito perigoso” também poderia ser dito: Viver ou a vida tem muitos
percursos, muitos caminhos ou muitas experienciações, muitas aprendizagens. Vivemos rumo a
o-que-ainda-não-vivemos para saber o-que-ainda-não-sabemos. Não-viver e não-saber é o que
move todo viver e saber humanos. Vivendo o homem dialoga com o não-viver e sabendo, com o
não-saber. Essa ação é nomeada aprender-a-viver ou vivência e é o diálogo mais original que se
pode ter. Aprendizagem é, então, diálogo no qual aprender-a-viver é que é o viver, dizendo o
mesmo de outra forma: aprender se dá no aprendendo e viver, no vivendo.
Na ausculta da palavra vivência depreendemos o radical “viv-” e o sufixo “-ência”
formador de substantivos abstratos. Pensando de modo linguístico, diria que vivência é um
substantivo abstrato que designa a ação substantivada de um sujeito, podendo sugerir a expressão
semântica de: aquele (sujeito) que tem vivência. Vivência seria um predicado subordinado a um
sujeito de modo que só pudesse existir por ele produzido, como um atributo desse sujeito.
Entretanto pode-se pensar vivência poeticamente, fora desse âmbito conceitual e ideológico,
como o sendo da vida, mas que não se dá por si só como um ente, senão numa conjunção
disjuntiva com outros sendo da realidade que o acolhe, conservando a diferença de ambos.
É fato que vivência para ter sentido precisa se referir a algo, nomeia, então, a tensão entre o
homem e a vida. Aprender-a-viver se dá como diálogo entre homem e vida sem, contudo, se
pensar em relação sujeito e objeto, mas como o que está entregue e ao que se está entregue. Desse
diálogo o destino eclode como sentido. Aprender-a-viver ou vivência diz o mesmo que destinar-
se, ou seja, deixar o destino eclodir como sentido por meio do diálogo entre homem e vida.
Esse diálogo entre o homem e vida se dá por meio da empatia. A palavra empatia forma-se
pelo sufixo em-, que nos remete ao sentido de aproximar-se de algo ou colocar-se em direção a
ele, e da palavra grega páthos, que, num sentido genérico, significa sofrimento ou apiedar-se do
sofrimento de outrem se colocando em seu lugar.
Esse colocar-se no lugar de outro corresponde à abertura original, não simplesmente como
intersubjetividade, mas como experienciação do real a partir do caminhar do outro.
1 Usaremos diferenciadamente as palavras experiência e experienciação tendo em mente que a primeira nomeia
substantivamente algo que se viveu ou vive e sobre o qual se formou um conceito ou significado, a segunda, uma
vivência em aberto cujo sentido se faz e refaz verbal e concriativamente, se reinaugurando a cada leitura. Seguindo a
mesma orientação, de igual modo, fazemos a disntinção entre aprender e aprendizagem, conhecimento/informação e
sabedoria, dentre outros.
21
O páthos congrega o envolvimento de todas as forças vitais e psíquicas do homem
encaminhado ao operar da verdade enquanto um acontecimento experiencial. Nomeia a
experienciação mais radical que o ser humano pode fazer, pois ela se dá em suas próprias
entranhas, como um deixar-se tomar pela ausculta da Moira, do destino.
O homem trilha este caminho, ex-perienciação, quando se deixa envolver e conduzir pela
ausculta da realidade que se dá na linguagem. Páthos é a interpretação mais profunda da
existência humana na qual os conceitos, as ideologias e as convenções se esvaziam para dar lugar
à eclosão do sentido. Este nem sempre é algo claro, por vezes é muito mais enigma, um “Claro
enigma”, mas não um enigma claro. O sentido conserva a força do paradoxal, do incompreensível
logicamente, mas entranhado e estranhado no humano. Estranhamento cunha a sensação de
admiração, insólito, espanto e pasmo diante de algo desconhecido ou inesperado, enfim, novo.
Surge, porém, como um acontecimento apropriador do homem e apelador de sua ausculta
denominado pelos gregos taumadzein, o espanto ou entusiasmo originário do pensamento e da
poesia.
Taumadzein se tensiona com o páthos. Da tensão entre ambos, sentido vem à luz, é
partejado. Embora partho não seja cognato de páthos, há uma correlação de sentido entre ambos.
Páthos é também a dor do partho, de dar à luz ou conceber. Empatia é o acolhimento do páthos
partejante. Páthos vem do verbo grego paschein, que dá o sentido de ser afetado, preso ou
tomado por algo que nos vem ao encontro - taumadzein. Empatia assinala o deixar que algo nos
venha ao encontro de modo que nos tome por completo, num acolhimento essencial do apelo
íntimo do inesperado, do que espanta ou entusiasma (in-theos): o sagrado. O apelo íntimo é uma
voz que nos convoca a sua ausculta. Então o taumadzein não é a causa do páthos, mas origem
como apelo íntimo que, por sua vez, no páthos parteja a ausculta. Taumadzein e páthos
constituem a dobra que dá vigor a empatia. Essa dobra é assinalada vigorosamente no primeiro
movimento do poema A máquina do mundo, de Carlos Drummond de Andrade. Abramo-nos à
ausculta de alguns de seus versos:
E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco
se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas
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lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,
A máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.
Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável
pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar
toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.
(ANDRADE: 2007, p. 301).
O fragmento acima situa um caminheiro numa estrada de Minas, pedregosa. O poema
começa no “meio do caminho” pedregoso. As pedras guardam o mistério das coisas e, no
guardar, fecham-se como velamento da presença do ser-pedra. As pedras são o próprio mistério
que se faz caminho e barreira, ao mesmo tempo. Elas dificultam e desafiam o caminhar do
caminheiro. O caminho é o caminhar do pensamento que se lança ao desafio, as pedras são as
questões que assentam em seu develo de mundo, o velar da terra. Nunca se pode ver uma pedra
de todos os ângulos nem do mesmo modo sem o auxilio de algum equipamento tecnológico e,
mesmo por meio desse, a pedra, para ser vista de tal modo, terá que ser tirada de seu repouso de
pedra, terá de ser retirada do caminho. A pedra é o mistério que desafia o pensar. Não são
problemas, simplesmente, ou impedimentos, mas barreiras. Barreira é o que barra e, no barrar,
guarda, assegura a presença de algo contido. Mas a pedra como barreira também se faz caminho.
Caminhar sobre pedras é estar sobre o sólito obstáculo. O caminhar é uma doação da vida como
possibilidade. Aqui não se trata simplesmente de andar como uma habilidade motora, mas de
uma experienciação existencial frente ao mistério da vida como pensar.
As pedras são imagens poéticas do mistério e, como tal, nos remetem à arte como
manifestação de um aceno, um apelo, que tem sua salvaguarda no silêncio. Nas pedras a vida se
manifesta poeticamente. Ora, manifestar poético e arte dizem o mesmo. Vida, arte e
aprendizagem se dão no poema A máquina do mundo como o páthos e o taumadzein do
caminheiro no corriqueiro caminhar por uma estrada como revelação de uma verdade existencial.
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Aqui se coloca a primeira das três questões apontadas no poema A máquina do mundo: arte e
vida.
1.1 - Arte e vida
Quando se propõe pensar arte e vida é impossível não deixar conduzir o pensamento ao
intenso e comum questionamento quanto à relação entre ambos por parte de diversos críticos, e,
geralmente, se antevê interação, imbricação e complementaridade. A colocação corrente de arte e
vida direciona a questão como aquela sendo uma representação desta, assim os vieses das teorias
e críticas são fartos, começando pela interpretação da mimesis como imitação se lançando aos
mais recentes conceitos de arte abstrata ou insólita. Em diversas colocações sobre essa questão é
comum a pergunta: “A arte imita a vida ou a vida imita a arte?”. Tal atitude revela o fluxo intenso
de manifestação de sentido de vida e de arte, porém não consegue desviar-se da imbricação de
ambas, como se a relação fosse mesmo necessária. Assim entendida, a arte é um duplo da vida
como reprodução desta, elimina-se a diferença e se estabelece a proposição “arte é vida”, no
sentido de igualdade entre ambas.
Entretanto, se pensarmos arte e vida como uma referência, conservamos a diferença entre
elas de modo que se preserve sua tensão. Arte e vida são dobras da realidade que se desdobram
como vida e como arte, como caminhar e como caminho. Arte e vida e vida e arte dizem o
mesmo, não se deve subordinar uma à outra, falam do modo de uma atravessar a outra. A vida
atravessada pela arte é o mesmo que uma vida iniciada nos mistérios da própria vida. O que
parece ambíguo pode ser compreendido quando se pensa vida em seu originário. A palavra vida,
em português, origina-se tanto de bios quanto de zoé, ambas palavras gregas. A diferença entre
elas se dá pelo fato de que bios é, basicamente, o vigorar de cada sendo, o modo como ele se dá
no real, ou seja, como ele se manifesta. Bios é a vida manifesta na cotidianeidade ordinária. Já a
zoé é força vital que vigora em cada bios, como o vigor próprio de manifestação. Por esse
motivo, caminhar, no poema, não é o mesmo que andar. Caminhar é inaugurar o caminho e fazer
dele uma novidade como caminhada originária e reveladora, é deixar com que o mistério do
caminho conceda ritmos ao caminhar, como uma dança que surge do próprio dançar como
doação de seu próprio tempo de manifestação (kairós) e não se repete nunca mais.
24
Toda manifestação pode ser, de algum ou de vários modos, dimensionada, mas o vigor do
manifestar não. A zoé é o vazio, o silêncio, o nada que move todo o manifestar e, ao mesmo
tempo, o caminhar.
E arte, o que é? Já fizem e fazem diversas historiografias da arte por várias teorias e
correntes críticas. Em cada uma delas o que é arte aparece do modo próprio e eficaz para se
adequar e legitimar os conceitos propostos. Assim, é redundante e desnecessário acrescentar aqui
mais um conceito de arte. Entretanto não podemos deixar de fora uma aproximação desta
questão.
Como dialogar com a essência da arte sem determiná-la, caindo em conceituações
abstratas? É claro que os conceitos que hoje existem sobre arte são importantes e válidos para seu
estudo, mas não dão conta da totalidade de seu vigor manifestante. Além do mais, como
desvincular o seu manifestar das tendências teóricas altamente atributivas e classificatórias? “O
que é arte” é a pedra no sapato! Ou, antes, no caminho!
Essas questões são colocadas por Martin Heidegger na obra intitulada O originário da obra
de arte, nela, a arte é pensada a partir do acontecer poético-apropriante da verdade. Como o título
insinua, o que se quer pôr como questão não é a arte como matéria ou forma nos vieses estético-
formais, pragmáticos ou essencialistas, mas em seu sentido originário, quer dizer, a partir de onde
e como vigora a arte. Nesse sentido, a arte é a manifestação da realidade como linguagem.
Como um modo de ser, a arte tem suas particularidades que resguardam sua diferença da
vida, como uma outra manifestação do real. O que é arte deve ser compreendido não através de
conceitos ou conceituações abstratas nem mediante as concretudes objetivadas, mas a partir de
onde a arte vigora em seu próprio, isto é, na obra de arte, pois esta eclode circularmente como
manifestação da arte e, nesse eclodir, a revela, no dizer de Heidegger: “O que é a arte deve-se
deixar depreender da obra. Somente podemos experienciar o que a obra é a partir da essência da
arte.” (HEIDEGGER: 2010, § 4). A arte é o acontecer poético-apropriante do real, nela vigora
como essência a poiesis, esta nomeia o agir como manifestação fundante originária da physis e da
aletheia.
A arte é, como o pôr-em-obra da verdade, poiesis. Não somente o criar da obra é
poietizante, mas também, do mesmo modo, o desvelar da obra é poietizante, (...)
A essência da arte é a poiesis. Porém, a essência da poiesis é a fundação da verdade. O
fundar compreendemo-lo aqui em um triplo sentido: fundar como doar, fundar como
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fundamentar, fundar como principiar. Contudo, a fundação é real apenas no desvelo.
Assim a cada modo do fundar corresponde um do desvelar.
(HEIDEGGER: 2010, § 171 - 172)
O desvelar da obra não é uma objetivação de significados que se correlacionam a aspectos
da vida, pelo contrário, é um desocultar do sentido como doação de tudo o que se oculta, por isso
é não cessar vir-a-ser. Na historiografia da arte, o fundar foi visto ora como fundamentar ora
como principiar, isto é, norteou a busca do fundamento e da origem da arte como objetivação e
subjetivação da mesma. Relacionando arte e vida, o fundamento da arte seria a vida e sua origem
seria o homem como agente da produção artística, esses são os caminhos mais comuns para se
pensar a arte.
Quando Heidegger propõe pensar o originário da obra de arte coloca em questão a arte
como uma manifestação originária da physis. Entretanto, não se pode falar de manifestação sem
pensar em aletheia, traduzida para o português como verdade. O problema é que o sentido
corrente de verdade nos advém do latim veritas, então a tradução deixa esquecido o caminho
(hodós) pelo qual o que se manifesta vem à presença. E, mesmo o que nos vêm à presença é
entificado como um manifesto cabal. Daí a ilusão de perscrutar o ente com a certeza de que se o
compreenderá definitivamente explicitando sua verdade. Acontece que verdade e explícito não
são sinônimos e, na verdade, nem mesmo se pode afirmar que haja legitimamente sinônimos, se o
fizermos, já nos movemos no engano gerado pelo esquecimento ou atropelamento das diferenças.
“Arte é o pôr-se em obra da verdade”. O que isto quer dizer?
O que acontece aqui? O que está na obra em obra? O quadro de van Gogh é a abertura
daquilo que o utensílio, o par de sapatos do camponês, é em verdade. Este ente emerge
para o desvelamento do seu ser. Os gregos nomearam “aletheia” o desvelamento do
ente. Nós dizemos verdade e pensamos muito pouco em relação a esta palavra. Na obra
está em obra um acontecer da verdade, se aqui acontece uma abertura inaugurante do
ente naquilo que ele é e no como ele é.
Na obra de arte, a verdade do ente pôs-se em obra. “Pôr” diz aqui: trazer para o estar.
Um ente, um par de sapatos de camponês, vem, para o estar na luz do seu ser, na obra. O
ser do ente vem ao constante do seu brilhar.
Então a essência da arte seria esta: O pôr-se em obra da verdade do ente. Mas até agora a
arte só tinha a ver com o belo e a beleza e não com a verdade. Aquelas artes que pro-
duzem tais obras nomeiam-se Belas-artes em oposição às artes manuais, que fabricam
utensílios. Nas Belas-artes não é a arte que é bela, mas se chamam assim porque elas
pro-duzem o belo. Ao contrário, a verdade pertence à lógica. Porém, a beleza está
reservada à Estética.
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Ou com a proposição: a arte é o pôr-se em obra da verdade dever-se-ia reviver aquela
opinião, felizmente superada, de que a arte é uma imitação e cópia do real vigente? A
reprodução do existente exige, por sinal, a conformidade com o ente, a adequação a este.
Adaequatio [adequação] diz a Idade Média; homoiosis [semelhança] já diz Aristóteles.
Conformidade com o ente vale há muito como a essência da verdade. Mas então
achamos que aquele quadro de van Gogh copia um par existente de sapatos de camponês
e, desse modo, é uma obra porque consegue êxito nisso? Achamos que o quadro retira do
real vigente uma cópia e a transforma em um produto da produção ... artística? De modo
algum.
Pois bem, na obra não se trata de uma reprodução de cada ente singular existente. Muito
pelo contrário, trata-se da reprodução da essência geral das coisas. Mas onde está e como
é então esta essência geral, para que as obras de arte se conformem com ela? Com que
essência de que coisa deve então um templo grego conformar-se? Quem poderia afirmar
o impossível: que a idéia de templo estaria apresentada na obra arquitetônica? E,
contudo, em tal obra, caso seja uma obra, a verdade está posta em obra. Ou pensemos no
hino de Hölderlin “O Reno”. O que aqui foi dado de antemão ao poeta e como lhe foi
dado para que então com isso pudesse reproduzi-lo no poema? Mesmo que, no caso
deste hino e de poemas semelhantes, recusemos manifestamente a idéia de uma relação
de cópia entre algo real já vigente e a obra de arte, todavia, através de uma obra como o
poema abaixo, de C.F. Meyers, “A fonte romana”, confirma-se aparentemente, de uma
maneira melhor, aquela opinião de que a obra copia algo.
A fonte romana
Ergue-se o jato luminoso e caindo
Enche a redonda concha de mármore
Que encobrindo-se transborda
No fundo de uma segunda taça
A segunda doa à terceira,
Ondulante, seu fluxo
E cada uma ao mesmo tempo
Acolhe e repassa, e corre e aquieta-se.
Aqui não está retratada poeticamente uma fonte de fato existente nem está reapresentada
a essência geral de uma fonte romana. Porém, a verdade está posta em obra. Que
verdade acontece na obra? Pode a verdade acontecer e assim ser histórica? Verdade,
assim se diz, é algo atemporal e supra-temporal. (HEIDEGGER: 2010, § 53 - 58)
O caminhar do caminheiro enquanto experienciação da vida é o próprio fundar da verdade
enquanto arte. A verdade posta em obra como fundar é a “abertura inaugurante do ente naquilo
que ele é e no como ele é” de modo que “o ser do ente vem ao constante de seu brilhar”. Deixar o
ente vigorar sendo o que ele é e como ele é, sem interferências metodológicas, funda a poiesis da
vida.
No caminhar do caminheiro a arte atravessa a vida faz irromper o extraordinário como
verdade inaugural, esta jamais se deixa ser apreendida, deduzida ou comprovada a partir do já
existente, por isso ela é fundar sem fundamentar. A verdade inaugurada na obra de arte não tem
fundamento, mas eclode como desvelo que funda a partir da proveniência de sua essência, isto é,
da poiesis, como vida, caminho e verdade.
27
Quando a vida atravessa a arte dá-se o apelo mais originário e íntimo ao ser humano: o
questionamento. Questionar é um colocar-se no e a caminho que se torna a pro-cura que envolve
o ser humano e o lança em sua trajetividade, não como um simples caminhar num trajeto, mas um
transformar-se na via que se caminha. É caminho e caminheiro tornarem-se um e o mesmo.
Trajetividade é a entrega total ao caminho como experienciação poético-apropriante da vida e da
verdade. Trajetividade e questionamento dizem o mesmo como requisição da realidade.
O questionamento é todo empenho que se dá como abertura de um caminho como
palmilhar a estrada pedregosa da vida. Auscultar o apelo da compreensão do caminho pro-voca a
abertura e nesta o sentido se dá como desencobrimento e, assim, como caminhar originário.
Caminho diz a própria realidade como essência do que se autorrealiza incessantemente, a isto os
gregos denominaram physis. Arte é o que a physis não realiza por si só, mas no e através do agir
humano, do caminhar da vida. O extraordinário acontecer como doação da poiesis enquanto
fundar da arte no pôr-se em obra da verdade. Nesse sentido, arte nomeia o dar sentido à
caminhada, à vida. O círculo não se resolve, vida e arte convergem numa de-pendência necessária
inaugurando o caminhar, em outras palavras, o destino.
1.1.1 - Vida: arte do destino
No poema em questão, A máquina do mundo, a ideia de transposição da pedra/barreira é
uma ilusão. As pedras não podem ser simplesmente transpostas, a transposição da pedra é um
deixar-para-trás o mistério do que barrando contém o incontido. Conter o incontido quer dizer
que no que se contém há, simultaneamente, um transbordar tanto para a presença quanto para a
não-presença. Esse conter e transbordar é o pensar no sentido de caminhar. Cada passo é um
lance do que já-não-é rumo ao que ainda-não-é, para em seguida transformar-se num já-não-ser e
pôr-se novamente em rumo ao que ainda-não-é. Esse movimento nomeia a dobra do caminho: o
vigor da vida se doando e acontecendo continuamente. A pedra assinala a presença da dobra, ela
é o entre o que já-não-é e o que ainda-não-é. Caminhar é transbordar o contido no entre ser e não-
ser. No caminhar há uma apropriação, não no sentido de apossar-se de algo, mas de tornar
próprio inaugurando-se continuamente. Nesse sentido, cada passo inaugura um caminho como
destino; este também não no sentido de algo previamente dado e predeterminado, mas
28
manifestando o apropriar-se do que lhe é próprio. Este é o desdobrar do mistério da vida nos
passos do caminheiro. Por que chamamos aquele “eu” do poema de caminheiro e não de sujeito?
Primeiramente, porque poeticamente não há sujeito. A teoria do eu lírico é uma tentativa de
subjetivar a poesia. Mesmo aquela que fala da “morte do eu lírico” já se move no mesmo
percurso metafísico, ainda que pela via oposta, mas complementar da subjetividade, a
objetivação. Desse modo a poesia é sempre classificável e classificada ora como subjetivação ora
como objetivação de um autor ou tema.
Não seria tudo isso fruto de uma conceituação retórico-sofística, que tenta delinear o
discurso no ímpeto teorético com vistas a favorecer o desenvolvimento de um raciocínio
especulativo? Chamamos esse suposto “eu” de caminheiro não como uma especificação que se
deve atribuir a algo ou alguém à medida do que é ou faz como um atributo entitativo ou
identitário, mas temos em vista o sentido do próprio caminhar. Caminheiro é aquele que se põe
rumo ao caminho, entretanto, esse pôr-se não é uma objetivação da vontade cogitativa, antes um
atender o apelo do próprio caminho e, ao render-se ao apelo, o caminheiro transforma-se na via
que trilha, em seu destino.
Um caminheiro, no meio do caminho, palmilha vagamente uma estrada pedregosa, com os
pés nas pedras, procurando um sustento entre os vãos, ouve um sino rouco soar. Essa ausculta
produz a sensação de que todas as coisas vão se misturando, compondo um quadro dinâmico em
que tudo depende de tudo e converge mutuamente destinando-o àquela caminhada.
Seria a interação homem-meio ao qual o homem se adapta ou insere? Destino seria, de certa
forma, um determinismo ativo ou passivo, voluntário ou forçado, em que a essência precede a
existência ou a existência precede a essência, empírico ou inato? Todo esse dualismo é mesmo
necessário, no sentido originário, em que o grego nomeia a necessidade, ananke? É mesmo real?
A questão do destino certamente é antiquíssima, seu registro aparece com maior
consistência a partir das obras mítico-literárias gregas. O destino é poetizado, de um modo ou de
outro, em todos os mitos gregos arcaicos como experienciação vital do próprio humano. Destino
é, ontologicamente, a arte da vida em seu sentido originário de passagem do não-ser ao ser, ao
passo que a vida é uma manifestação do destino como doação, passando então, circularmente, a
ser a arte do destino.
Entretanto, a conceituação do que seja destino é vastíssima e sua compreensão depende
muito do viés estabelecido como princípio investigativo. Por exemplo, num segmento filosófico,
29
pode-se dizer que: “O Destino representa o esforço cultural, interpretativo mais do que criativo,
para inserir numa lógica histórica, num sentido global, aquilo que aparentemente não foi
planejado, pelo menos por cérebro humano”. (LEPARGNEUR: 1989, p. 10.)
Certamente o que se disse acima não está em desacordo com muito do que se pensou, se
pensa e pensará com respeito ao sentido do destino. Mas esse apenas é um viés, talvez o re-sumo
servindo até mesmo de ponto de partida para uma conceituação cujo desdobramento se modifica
e condensa adquirindo matizes ideológicos. Pensar destino como um esforço cultural,
interpretativo, capaz de se inserir numa lógica histórica e num sentido global é pensar em forma
de constelação: os vieses se cruzam parecendo formar figuras e ora se relacionando e
influenciando mutuamente, ora se chocando mortalmente.
Esses princípios são fecundos para diversas teorias esquematicamente convincentes como
hoje são correntes. Sobretudo porque se pensa o que mais inquieta o ser humano: o
acontecimento de algo que não havia sido outrora planejado, o inesperado, que fugiu à
previsibilidade da compreensão humana. A grande odisséia humana é tentar prever o que ainda
não aconteceu e, posteriormente, controlá-lo. Nesse sentido, essencialmente o homem luta contra
o destino. Não há então sentido em dizer controlar o destino ou criá-lo, pois são coisas apenas
possíveis dentro de um pensamento subjetivista, mas incoerente na realidade. Destino não
depende do homem ou de qualquer outra coisa para existir. Entretanto a experienciação humana
com o destino é variada de tal modo que faz até mesmo o conceito mais elaborado variar.
Acaso, causalidade, evolução, fatalidade, fortuna, sorte, azar, ventura, carma,
predestinação, vocação, providência, determinismo, fatum, rumo, direção, sina, dentre outros são
palavras que tentam de algum modo captar ou determinar o sentido de destino. Nenhuma teoria,
porém, torna a coisa ou o ser ao qual se reporta existente apenas por possuir coerência ou ser
logicamente crível. O pensamento metafísico favorece a noção de verdade ligada ao
cadenciamento coerente do discurso proposicional, no qual a lógica da proposição é correlata à
verdade ontológica.
Na esteira de questionamentos está a velha oposição de determinismo e liberdade. O
homem já nasce com um destino programado que fatalmente se cumprirá ou ele é que decide os
rumos que tomará? Essas são as questões nucleares da vida humana. Por esse motivo, destino é o
caminho dos caminhos. Faz-se necessário pensar com afinco e radicalidade a questão do destino
30
desde sua origem na Grécia Antiga a sua sistematização filosófica para, então, deixar com que a
questão do destino colocada no poema nos venha à tona.
1.1.2 - Destino na Grécia Antiga
Destino, na Teogonia de Hesíodo, é filho da Noite e estendia seus domínios sobre os
homens e sobre os deuses; era tão poderoso que nem Zeus podia contrariá-lo, sob pena de romper
a ordem do Universo. As Moiras eram ajudantes do Destino: Cloto tecia (gerava), Láquesis
media (sorteava o quinhão) e Átropos cortava o fio da vida (determinava o fim). O destino como
diálogo originário instaura um desdobramento tríplice que é a origem, o quinhão como partilha
ou medida do que é próprio, e o fim ou consumação.
Entre os gregos era comum a consulta aos oráculos, o mais famoso da Antiguidade era o de
Delfos, dedicado ao deus Apolo. Muitos iam até ele numa tentativa de conhecer o seu destino.
Aqui há algo importante a ser pensado. Quando se fala em conhecer o destino pensa-se quase que
instantaneamente em futuro. Para os gregos antigos não era exatamente assim, como se pode ver
na história de Édipo, o destino é correlato ao que se é.
Destino era o que envolvia o homem independente da noção temporal e da sua tripartição
entre passado, presente e futuro. Em Delfos, o deus falava através de sua sacerdotisa, Pítia, que
ficada sentada sobre uma fenda na terra, de onde subiam inebriantes vapores e a colocavam em
transe. Quem ia ao oráculo primeiro fazia suas perguntas aos sacerdotes oficiais, depois
consultavam a Pítia. As respostas geralmente eram quase incompreensíveis ou tão ambíguas que
os sacerdotes tinham que “interpretá-las” para os consulentes.
Os adivinhos não davam uma resposta lógica ou exata do que não pode ser adivinhado,
antes o questionamento era devolvido em forma de enigmas, no final, cabia ao próprio
questionador a interpretação da questão. Por outro lado, era muito comum os chefes de Estado
não entrarem numa guerra ou tomar decisões importantes sem antes consultar o oráculo de
Delfos, assim os sacerdotes de Apolo eram discretos conselheiros, quase diplomatas, pois
possuíam um profundo conhecimento das questões que envolviam o povo e o país.
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A súmula do oráculo de Delfos era: “Conhece-te a ti mesmo”, essa era a chave de
interpretação para o sentido do oráculo e de tudo o que nele ocorria. Sócrates toma esse aforismo
como princípio de seu pensamento fazendo dele sua mais profunda experienciação.
A questão do destino foi pensada durante as eras tanto pelos diversos setores do
conhecimento quanto pelas religiões que procuravam de um modo ou de outro destituir as
imagens míticas do mistério do destino. De certo modo, a noção que se impôs foi a do
determinismo entendida e interpretada de diferentes modos. Sem penetrar ou descrever a
multiplicidade de teorias, queremos nos ater a duas distinções nucleares, que poderíamos colocar
do seguinte modo, determinismo espiritual e determinismo material. Não querendo ser, com isto,
pueril, de modo a cair em certa dicotomia, pois os determinismos são um e o mesmo
determinismo metafísico que tem como fundamento o nexo causal. A diferença entre ambos
resulta do fato de que, num o homem tem sua existência condicionada aos fatores preexistentes,
ou seja, seu destino já está traçado antes mesmo de ele nascer. O outro faz o caminho inverso, o
destino do homem é condicionado pelo momento histórico, pelo meio que ele vive e pelos fatores
atávicos, ou seja, pela hereditariedade biológica de características psicológicas, intelectuais,
comportamentais. De modo amplo, o homem é produto do meio, da raça e do momento histórico.
O fator identitário mais importante entre essas duas especulações é o de o homem sempre ser um
produto cuja existência é condicionada e regida inflexivelmente por uma causa.
A questão nuclear pode ser colocada do seguinte modo: se tudo o que acontece em nossas
vidas já está de algum modo determinado, seja pela Providência ou seja pelas leis físicas e
sociais, qual é o espaço para a liberdade? A questão se faz mais complexa ainda quando se pensa
a antecedência da determinação aos fatos, porque, nesse caso, até mesmo o caminho do
pensamento sobre esta questão já estaria determinado. Haveria, então, algum espaço para a
liberdade?
Os pensadores originários também se debruçaram sobre essas questões tratando o destino
em contiguidade com a liberdade. Chegaram então ao logos, entendendo-o como sustentáculo da
total integração entre o homem e o universo. Entenda-se sustentáculo aqui, não como suporte ou
fundamento, mas como o abrigo ou resguardo que cuida dessa relação.
A muito pouco do que foi acurado pelos pensadores gregos arcaicos se pode ter acesso, e
muitos dos fragmentos oriundos dos doxógrafos sofreram influências do cristianismo e
interpretações tendenciosas com fortes traços pós-platônicos, pós-aristotélicos ou céticos, o que
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dificulta o acesso originário a estes. Faz-nos então forçoso o caminho poético de construção e
concriação do pensamento deixando-nos tomar pela ausculta desse caminho.
A questão do destino também sofreu forte influência do Helenismo. Arcaicamente, as
comunidades gregas eram organizadas sob forma de genos, e cada um seguia sua tradição que
além de afirmar sua identidade assegurava a diferença deles. Ao chefe da família cabia a função
quase sacerdotal de fazer cumprir a vontade divina para o seu genos que muitas vezes lhe era
revelada através dos sonhos e dos oráculos. Essa vontade divina para o genos era compreendida
como justiça inquestionável revelada como Temis, isto é, a ordem, que manifestava as leis da
natureza e as necessidades de uma sociedade condicionadas a sua organização, que deveriam ser
obedecidas pelos homens. Temis (Eubulos) também era considerada a deusa da sabedoria que
concedia seus conselhos aos que a ela apelavam. Com Zeus, Temis dá a luz a Dike, deusa dos
julgamentos e da justiça, vingadora das violações das leis.
Qual é o sentido de Temis e de Dike para a questão do destino?
Temis era a manifestação sagrada da ordem, mas não no sentido de ordenação ou sistema.
Era a necessidade que cada coisa tinha de ser o que se é e o que lhe dá contornos existenciais, a
manifestação da própria ananke. E Dike é o que faz manifestar essa necessidade tanto sob forma
de compreensão como forma de justiça, ou seja, o processo de realização natural da necessidade
cuja des-obediência acarreta danos a esse processo.
Institui-se, então, uma nova formação social, a pólis, dividida em dêmoi, que eram
pequenas comarcas com assembleia, magistrados e administração própria, seu dêmos. Esta
palavra possuía na pólis grega dois significados diferentes, primeiramente designava o corpo de
cidadãos, que atuava através da assembléia. E em segundo lugar, os textos antigos dão a ela o
sentido de povo simples, de pouca importância, visto que, pertencia a uma baixa classe social,
uma espécie de plebe.
Dá-se uma nova interpretação às tradições gregas e há uma notável reinterpretação da ética
e, sobretudo, com relação ao destino do homem, que, se de um lado tinha que se condicionar ao
seu genos, do outro, precisa fazê-lo à pólis e, posteriormente, à cultura universal grega difundida
por todo o império de Alexandre, o Grande, conhecida como Helenismo:
A filosofia da época, revendo conceitos e valores universais morais antes teorizados por
Platão e Aristóteles, e confrontando-os com o período que iniciava-se, entendeu que o
homem ao perder o vínculo com sua cidade de origem em função da dissolução do
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sistema político que o alicerçava e ao estabelecer contato com diversas culturas, passava
a ser um cidadão do cosmos, cosmopolites. (GUIMARÃES: 2009, p. 21)
Aos poucos, o pensamento grego originário com referência às questões que envolviam o
destino humano foi sendo substituído por uma interpretação cosmopolita formando as bases da
cultura ocidental e um grande sistema de pensamento que pretendia abarcar todas as esferas do
conhecimento e experiências humanos; seguindo a orientação de doutrinas derivadas do
pensamento de Platão e Aristóteles, por via de seus descendentes intelectuais, essa concepção
aglutinou os vieses do pensamento grego nos estudos da lógica, da física e da ética. Esses três
campos de estudos tem como raiz primitiva três palavras fundamentais, porque de fato fundam o
pensamento, que são logos, physis e ethos. Estas precisam vigorar a partir de seu originário para
que seu sentido se manifeste.
Numa síntese que procure a essência do que floresceu na sistematização do pensamento
grego e, de certo modo, perdurou como princípio dos pensamentos medieval e moderno
influenciando o pensamento do destino, uma vez que impõe uma interpretação metafísica de
logos, physis e ethos, podemos assinalar os estudos da lógica, da física e da ética do seguinte
modo:
O estudo da lógica compreendia a própria lógica formal, dos modos de bem pensar, a teoria
do conhecimento, a semântica, a gramática e a retórica. O papel do estudo da lógica seria o de
fundamentar a ética mediante um critério seguro de verdade, a fim de validar seus argumentos e
estabelecer os meios para o bem agir.
O estudo da física se lançava à compreensão do funcionamento da natureza, do “mundo
físico”, e do modo de ser dos demais seres vivos, ou seja, homens, animais e seres divinos.
À ética caberiam as análises dos conceitos morais visando à validação dos princípios
estabelecidos como verdade pelos critérios da lógica e, de certo modo, como era corrente, a
legitimação da finalidade ética como o viver de acordo com a natureza.
Entretanto, os propósitos estabelecidos pelos estudos da lógica, da física e da ética
perderam algo do que originariamente diziam logos, physis e ethos; lançou suas bases em
conceitos muito genéricos sem se preocupar em discutir com profundidade as questões da
verdade, o que é o bem agir, ou o agir ético, o mundo, a vida, o mortal, o imortal e o viver de
acordo com a natureza, ou seja, com a necessidade, ananke.
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A questão da interpretação de logos, physis e ethos implica o percurso da sistematização
filosófica delineando o modo como o homem conhece o mundo, como o julga e de que forma
esse juízo determina seu comportamento.
Não é possível pensar logos, physis e ethos separadamente, pois mutuamente se tensionam
e pro-vocam o desvelamento da realidade, do destino. Pensar o destino a partir do seu originário é
pensá-lo na dimensão do logos, da physis e do ethos e assim, como origem, e daí toda a discussão
do génos e seus desdobramentos na genética; como medida, ou seja, o quinhão, a partilha
humana, a parte que cabe a cada um, sua existência; e como consumação, plenitude ou liberdade.
1.1.3 – Causa: a sistematização filosófica do destino
A sistematização filosófica, procurando dar uma fundamentação lógica ao destino, ao
questionar a origem pensa em predestinação, ao inquirir sobre a partilha ou o quinhão, trata-a
como determinismo e quando discorre do fim ou da consumação, assume-a como consequência
ou finalidade. O certo é que a questão do destino é sempre tomada pela, na e a partir da
causalidade.
As questões principais do pensamento ocidental desde a antiguidade grega é o porquê das
coisas permanecerem e o porquê das coisas mudarem, em outras palavras, o que causa o
aparecimento, a permanência, a mudança e o desaparecimento das coisas, isto é, o seu
movimento natural, assinalado no vocábulo grego physis; esse porquê pode ser entendido como
toda e qualquer alteração da realidade seja a origem, a mudança qualitativa, quantitativa, em
relação a locomoção espacial ou a geração e corrupção dos corpos.
A noção de causalidade proposta pela filosofia parte do entendimento funcional da palavra
grega aitia como causa de algo, e de telos como efeito, de modo que este seja previsível a partir
daquela. A ação da causa produz determinado efeito, assim se estabelece dedutivamente a
conexão lógica entre ambos gerando uma noção de necessidade causal. Perguntar pela causa é
perguntar o porquê de algo; em outras palavras perguntar, o porquê ou a causa do que é. Nesse
sentido, equivale a dizer que o porquê ou a causa é aquilo de que algo é feito e que nele
permanece e, em segunda instância, a causa é a forma ou o modelo tomado por alguma coisa. A
causa também é entendida como o que dá início ao movimento ou ao repouso, isto é, o que
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produz a mudança de algo, ou a causa de algo ter se tornado no que é. E em quarto, a causa é a
finalidade ou a razão de a coisa ser e o motivo para o qual existe.
Assim, todas as coisas teriam uma causa material, formal, eficiente e final. Perguntar pela
essência da coisa é perguntar pelas suas causas e vice-versa. A essência da coisa é chamada de a
sua substância, ou seja, o que ou aquilo que subsiste por si, autônomo e independente em relação
às suas qualificações e estados; de modo mais filosófico, o que se mantém permanente sob os
acidentes múltiplos e mutáveis, servindo-lhes de suporte e sustentáculo.
O mundo, segundo esse pensamento, estaria envolvido por uma sucessão de causas e
efeitos e a causalidade seria a base de todo e qualquer acontecimento. Acontecimento perde seu
sentido originário de assinalar o próprio movimento instaurador e passa a significar causa no
sentido de processo instalador de um fato, ou seja, é essencialmente o aflorar da condição que
possibilita toda e qualquer determinação. O acontecimento é por si só a força absoluta que dá
curso as coisas seja ele previsível ou não. Uma pergunta faz-se necessária: Algo ou alguém pode
causar um acontecimento?
Sem dúvida um acontecimento pode ter um agente e ser premeditado. O lançamento de
uma pedra numa vidraça, por exemplo, mas ele só é possível dento do seu próprio campo de
possibilidades.
Entretanto, poderíamos pensar a ação descrita como se o lançar da pedra já estivesse
prescrito na possibilidade do acontecer, isso faz com que o acontecimento manifeste a sua força
de ser: nada acontecer fora da possibilidade do acontecimento - o que não pode acontecer não
acontece.
A grande questão é: O que não pode acontecer? Se o homem pudesse originariamente ser
causa do acontecimento ele certamente poderia responder a essa pergunta, pois o acontecimento
estaria no âmbito de sua potencialidade e não o contrário.
O homem só pode ser agente num acontecimento se for por este tomado. Então é muito
fácil identificar destino e acontecimento. Poderíamos dizer que destino é o acontecimento que
determina toda e qualquer ação, humana ou não, independente de qualquer força ou vontade
contrárias. Seria uma causa preexistente que preside inexoravelmente tudo o que vem depois,
sendo assim, todo acontecimento seria uma espécie de fatalismo lógico. O homem e todas as
demais coisas se relacionariam com o acontecimento inicialmente, pelo menos, de modo passivo,
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ainda que depois pudesse agir sobre o mesmo, ainda assim dentro do âmbito das possibilidades
dadas. Destino seria determinismo ou predeterminismo. Voltamos ao início do questionamento!
O predeterminismo ou a predestinação acentua que o destino humano já está determinado
antes deste nascer e por isso sobre ele não se tem poder algum.
O determinismo é, de certa forma, o predeterminismo sem as características religiosas;
pauta-se no fatual segundo o qual todo ambiente humano já está formado quando este nasce e lhe
serve como “incubadora” do seu destino, influenciando-o, inclusive, em todos os aspectos de
modo que suas decisões e compreensões do mundo estão vinculadas aos fatores que o cercam.
Raça, meio e momento histórico, ou ainda, atavismo, condição sócio-econômica e influencias
culturais são as causas do destino de cada ser humano? Deste modo, num primeiro momento, o
ser humano sofreria as consequências diretas do atavismo, da sua herança genética, isto é,
hereditariedade biológica de características psicológicas, intelectuais, comportamentais. Em
segundo lugar, o meio econômico e social em suas variações e condições forneceria o modus e as
relações possíveis ao desenvolvimento do indivíduo. E, em terceiro lugar, o momento histórico
como um determinativo cultural atuando como influências culturalizantes.
Em síntese, esse princípio afirma que as transformações históricas ocorrem de acordo com
leis, semelhantes em rigor às leis físicas ou naturais, de modo que o curso da própria história
pode ser predito, entretanto não permite ser alterado pela vontade humana. Daí o entendimento de
a história ser o grande princípio explicativo da conduta, dos valores e de todos os elementos da
cultura humana, tais como arte, filosofia, religião etc; impondo-se como o fundamento ou a
dimensão mais profunda da realidade.
Nesse sentido, destino seria um ordenamento inviolável de situações interconectadas que se
imporia aos seres e coisas de modo que a todo acontecimento sucederia à relação de causa e
efeito. O destino teria uma interface paradoxal, ao mesmo tempo em que é desencadeado por
causas que pudessem além de ser conhecidas e, mesmo por meio desse conhecimento, também se
prever os efeitos consequentes; teria um plano oposto diante do qual se frustram tanto o
conhecimento das causas quanto a previsibilidade dos efeitos: o acaso. Acaso tem certa
proximidade com o termo latino casus, que nomeia a ação de cair, queda, enquanto algo
acidental. Seria a ocorrência do acontecimento de caráter incerto, imprevisível ou eventual de
causas supostamente independentes da vontade e do conhecimento humanos ou do arranjo e
disponibilidade das coisas e situações. Na modernidade é também a condição de um evento que
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sofre oscilações probabilísticas com um acentuado grau de incerteza, indeterminação e
aleatoriedade.
Caso invertêssemos a proposição determinista firmando-a na ação do homem, o que de
certo modo já se prevê, mesmo assim não sairíamos da causalidade.
Mas, haveria um sentido originário para destino que ainda não tenhamos pensado? Evidente
que sim. Fugindo ao princípio conceitual, há interfaces do destino acessíveis ao homem que se
descortinam diante de nós o tempo todo apelando a que as pensemos. Destino surge como o que
está no âmbito das possibilidades, mas que é desconhecido, por isso é como se não existisse. Mas
o que é que vigora no âmbito das possibilidades? A própria realidade.
Realidade não é realização e não se limita ao realizado. Realização como a realidade
acontecendo é um modo de ser do destino e não o destino todo ou em si. O destino é a realidade
se desvelando sob multiformes aspectos. Realidade e real não são duplos, não há dicotomia, mas
o aquela nomeira a força de vir-a-ser (physis), este o seu sendo ou modo como ela se dá, isto é,
vem à presença.
Tomar a realização ou o realizado como destino é entificá-lo e fazer com que se confunda o
real com a noção de factual, considerando apensas este como “verdadeiro”, e desconsiderar o
mistério do velamento. Entretanto, não há condição alguma por mais inóspita que seja que possa
impedir imperiosamente o homem de ser quem ele é assim como não há favor, por maior que
seja, que o force a fazê-lo, a saber, ser o que já é, entretanto, o homem mesmo pode encobrir o
ser.
A proposta é pensarmos não o conceito de destino, mas o “como” ele se apresenta ao
homem e o que oferece ao pensamento. Não que seja uma via única ou um princípio modelar ou
paradigmático, pois, como já se observou, tal imposição não é o propósito deste trabalho, mas
deixa a questão aberta de modo que pro-voque diálogo.
Procurando fugir a uma linha causalista, propomos pensar o destino em três interfaces da
vida: como origem, como medida e como consumação, procurando envolver e desenvolver o que,
de algum modo, os poetas gregos arcaicos pensaram. Pensar “como” é pensar o modo em que o
destino-vida se manifesta sem nenhuma conceituação prévia ou pós.
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1.1.4 – Vida e destino: necessidade e convergência
Em vez de pensar em determinismo e em todas as demais categorias dicotômicas seria mais
originário pensar a interação homem-meio como dependência e convergência.
Dependência é a disposição para a subordinação, submissão, obediência, amparo e
pertença. Entretanto devem-se pensar com cuidado essas palavras. Subordinação é estar sob certa
ordem, reunião; obediência é ob-audire, ouvir ou auscultar intimamente; submissão é estar
disponível; amparo é proteção e pertença, é estar unido a algo e a ele entregar-se. Atentando para
a própria palavra: de-pender é pender para. Pender se correlaciona ao sentido do verbo latino
pendó e pensum. Esses verbos apontam para a ação de pesar algo, pender ou inclinar-se para e
também pensar, que tanto se refere à ação de refletir, quanto ao sentido de formar imagem mental
e também ao de aplicar o penso, curativo, daí cuidar.
Depender nomeia o colocar-se sob o amparo, proteção ou cuidado de uma ausculta de
modo a ela estar reunido a partir de uma entrega que renuncia a toda independência; é pender
para a intimidade do cuidado e o amparo da ausculta. A ausculta é um amparo que cuida dos que
para ela pendem, é proteção e pertença, oferecimento e renúncia como obediência, subordinação
e submissão. Auscultar é lançar-se ao amparo e pertença do silêncio.
Convergência assinala a disposição de elementos que se dirigem para um ponto ou nele se
encontram. Essa disposição é uma tendência ou pendência para a aproximação ou união em torno
de algo como um com-fluir e uma com-corrência. Convergir é com-vergo, isto é, vergar-se ou
virar-se e inclinar-se para algo, da raiz indo-européia wer- , no sentido de tornar, virar, girar;
torcer, e ver, donde, no latim, provém vertère e vergère. No português, o primeiro verbo se
realiza como verter no sentido de voltar(-se), virar(-se), fazer o seu giro, suceder-se (no tempo),
converter, traduzir, mudar ou trocar, também transbordar, jorrar e brotar. Vergar assume o
sentido, no português, do segundo verbo que nos diz, acima de tudo, a ação de inclinar-se para
algo de modo a ele se submeter ou entregar-se. Convergir se diz originariamente na ação de
juntar várias partes em um mesmo ponto, reunir, agregar, afluir para e concorrer, enfim, tender
mutuamente para.
Destino como origem é destinar-se, isto é, dependência e convergência. O destino é a
dependência e convergência dos fenômenos. Fenômeno é tudo o que se mostra, se desoculta.
Dependência e convergência diz o mesmo de referência e correspondência. Reférre pontua o
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correspondente latino de referência, fala-nos essencialmente de levar consigo, alcançar, restituir,
recolocar, repor, dar e oferecer. Corresponder diz basicamente mutualidade e reciprocidade.
Destino não é uma força autônoma, mas a impossibilidade de andar sozinho, ou seja, o
tender ou inclinar-se para o real de tal modo a levar conosco tudo o que nos foi oferecido e que,
ao mesmo tempo, renunciamos, restituindo a totalidade do que recebemos a fim de manter a
reciprocidade íntima. Isso quer dizer ser destinado, a saber, estar entregue à dependência e à
convergência, à referência e à correspondência. Por esse motivo, não podemos dizer que não
dependemos de nada ou de ninguém, que temos nosso próprio caminho. Destinar-se é manter-se
no aberto do destino na quadriunidade2. Um fenômeno não acontece isolado de outros
fenômenos, as situações podem iludir nossas percepções e expectativas. Isso acontece
basicamente porque temos a tendência de isolar aspectos particulares de um acontecimento ou
experienciações e vê-los como constituindo uma totalidade, o que estreita nossa perspectiva e
gera falsas expectativas. A noção de ilusão ou equívoco decorre do fato de que os acontecimentos
não evoluem de acordo com nossas expectativas, antes obedecem à própria lei inerente a sua
complexidade. Complexidade é interconexão tensional não determinada.
Ilusão corresponde ao erro de interpretação, de percepção ou de entendimento, um engano
dos sentidos ou da mente que se debruça sobre determinado acontecimento ou fenômeno.
Equívoco aponta para a ambiguidade inerente a certa visão, ideologia ou conceito. Considerando
a ambiguidade um defeito, equívoco assinala em sua essência a impossibilidade que algo possui
de ser classificado com apenas um significado, por isso é uma falha lógica, pois pode ser
entendido em dois ou mais sentidos diferentes, por isso dúbio e duvidoso.
Ilusão e equívoco ocorre quando se limitam a visão dos acontecimentos e fenômenos
relacionando-os a “âncoras” factuais descritas pela historiografia e pela biografia.
As quatro primeiras estrofes de A máquina do mundo de algum modo colocam esse
movimento do destino. Os verbos mais importantes são palmilhar, misturar, diluir, entreabrir,
pensar e carpir. No palmilhar a estrada, o sino assinala a mistura de todas as coisas a partir do
som que emite e o do produzido pelos sapatos do caminheiro. No caminhar todas as coisas se
reúnem. O meio do caminho é o espaço-entre reunidor. As formas pretas se diluem numa
2 Ao falar de quadriunidade não estamos nos referindo aqui da teoria de Bob Hoffman, a quadrinidade, um conceito que busca a
harmonia e total integração de quatro aspectos do ser: emoção, intelecto, espírito e corpo físico, mas de algo que, sendo quatro, se relacionam mutuamente, como acentua Heidegger: céu e terra, mortais e imortais.
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escuridão ainda maior; essa diluição, porém, não é simplesmente desintegração, mas a epifania
que permite a compreensão intuitiva da realidade em meio ao simples e ao inesperado. Essa
revelação não trata de uma compreensão lógica, ou seja, conceitual, ideológica ou convencional,
mas dialogal, pois ela não é uma conquista do sujeito, antes ele mesmo se esquivava desse
acontecimento e evitava o sofrimento (pathos) de tentar pensá-la novamente. Isto sugere certa
decepção sofrida outrora. O que se descortina não é causado por alguma mentação. Antes, essas
primeiras quatro estrofes assinalam o prenúncio do acontecimento inaugural.
Acontecimento inaugural faz o homem eclodir como ser-livre, isto trata da possibilidade
apropriar-se do que lhe é próprio consumando o ser. Essa apropriação se dá como disponibilidade
para o aberto de mundo onde vigora todo e qualquer sentido manifesto ou velado, a este “lugar”
Heidegger nomeou clareira:
E, contudo: para além do ente, mas não distante dele, porém diante dele, acontece ainda
uma outra coisa. No seio do ente na sua totalidade vige um lugar aberto. É uma clareira.
Pensada a partir do ente, ela é mais ente do que o ente. Por isso mesmo, este meio aberto
não está envolto pelo ente, mas é o próprio meio clareante que circunda todo ente como
o Nada que mal conhecemos. (HEIDEGGER: 2010, § 104)
Clareira é o aberto ontoexistencial onde o ente pode ser, isto é, apropriar-se do seu próprio:
“Somente esta clareira presenteia e garante a nós homens uma passagem para o ente que nós
próprios não somos bem como o acesso para o ente que nós próprios somos.”. (HEIDEGGER:
2010, § 105). A clareira é a abertura de mundo vigorando como o que os gregos antigos
entenderam como physis e como tal permite tanto o presentificar quanto o ausentar, o manifestar
quanto o ocultar. Assim o que o ente já-é e o que ele ainda-não-é se tensiona no seu sendo
lançado no aberto da clareira. Por isso o ser é sempre ser-em-travessia, ser-entre o que ele já-é e
o que ele ainda-não-é, como diria Raul Seixas, uma “metamorfose ambulante”.
A esse ser-em-travessia Heidegger chamou Dasein, que costuma ser traduzido para o
português como ser-aí. Entretanto a compreensão de ser-aí é por ora muito vaga ou muito
filosófica. Presença foi uma outra tradução para Dasein proposta por Márcia Sá Cavalcante
Schuback, em Ser e tempo, esta se aproxima muito mais do sentido verbal de Dasein. Outro
estudioso da obra de Heidegger a propor uma tradução originária em português para esta palavra
foi Manuel Antônio de Castro, no ensaio “Poiesis, sujeito e metafísica”, que a pensou como
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Entre-ser, no sentido de Ser-do-entre. Presença, Entre-ser e Ser-do-entre nomeia o ser-em-
travessia, lançado no aberto da clareira.
A palavra que Heidegger usa no original para clareira é Lichtung, esta não se relaciona
apenas e especificamente com luz, Licht, mas com o leve, leicht, que assinala o que se dá como
livre. É pelo fato de o espaço já estar previamente liberado pela clareira que a luz pode nele
penetrar. A essência da clareira é a possibilidade para o projetar livre e aberto do ente. Nesse
sentido, clareira se aproxima da liminaridade, visto que ela é o cuidado da tensão entre limite e
não-limite. Liminaridade é a condição do que é liminar. Essa palavra tem limináris como seu
correspondente em latim, significando basicamente soleira. A soleira é o horizonte entre o que é e
o que ainda não é. Ela não está dentro nem fora, mas no meio, entre. O liminar ou limiar é o
limite como tensão-entre luz e trevas, entre o manifesto e o abstruso, diante do qual o homem se
encontra extático.
O momento do êxtase é como o fulgor do feixe da luz de um raio na noite escura. Esse
rasgo de luz nas trevas não é a anulação desta pela luz, antes a revelação da tensão que há entre
ambas: a manifestação de uma é dependência e possibilidade da outra.
Liminar nomeia também começo, origem. O liminar é o convite à travessia, a um novo
início. Ele é a essência do originário. Quando a “máquina do mundo” se entreabre (e aqui é
importante notar que ela não se abre simplesmente, mas em seu abrir opera o entre) dá-se um
acontecer poético-apropriante; pois a “máquina do mundo” é, ao mesmo tempo, oferecimento
como renúncia e convite como apelo a uma ausculta. Ensejando um ritual iniciático, ela entreabre
tempo e espaço sagrados em tensão com o secular. Uma outra dimensão eclode. Di-mensão
nomeia basicamente uma extensão mensurável. Do latim di-mensìo ou di-mensiónis oriundo de
mensus que possui o sentido de medir nos sentidos físico e moral. Dimensão trata de percorrer
uma medida e descortinar um limite ou limiar. Limite e limiar unem e separam coisas e seres,
ambos falam de uma tensão mensural, entretanto, não uma mensuração lógica, mas ética, do
próprio destino humano. Na dimensão se tensiona tudo o que é considerado antitético na lógica
humana: vida e morte, céu e terra, divino e humano, ser e não-ser etc. Nesse sentido, dimensão é
o mediar (estar-entre duas coisas, situar-se entre dois extremos) em que se pesa (pensa) toda a
aprendizagem da vida como necessidade e convergência de entre-tempo e entre-caminho.
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1.1.5 - Destino: entre-tempo e entre-caminho da vida
Voltando ao poema A máquina do mundo, nele o fecho da tarde assinala o cair do véu da
noite onde as trevas cobrem toda a terra com seu silêncio e repouso. O mundo circunstancial se
recolhe para que a Terra, muda e velada, ecloda com a noite. O sino que anuncia o fim de um dia
e o início da noite separa e une, ambiguamente, duas dimensões da realidade como um entre que
se mistura ao entre do caminheiro manifesto no som seco de seus sapatos. O sino e os sapatos
marcam a cadência de se estar necessariamente convergindo: o entre do caminho e o entre do
tempo.
O entre do caminho assinala a mover-se na experienciação existencial do extraordinário
numa vivência inaugural que foge do usual, do habitual, do previsto e previsível e se lança ao
fora do comum, do regular, do estabelecido racionalmente e caracteriza-se por ser sempre um
caminho raro, excepcional, notável; daí a estranheza do caminheiro ante o novo, o desconhecido,
diante da excessividade caótica e da intensidade da experienciação da caminhada. No entre do
caminho o mundo se manifesta como caminhada originária e possível de ser experienciada. O
entre do tempo é o kairós, o tempo maduro, oportuno, do acontecer, este faz com que o homem
se lance além do cronos, que é o tempo cronológico.
O tempo cronológico é o que mede a duração relativa das coisas e cria no ser humano a
idéia de presente, passado e futuro, como período contínuo e definido no qual os eventos se
sucedem, dando uma ideia material de época. Para a ciência, a noção cronológica do tempo é
fundamental para se distinguir a dimensão que permite identificar dois eventos que, caso
contrário, seriam idênticos e que ocorreriam no mesmo ponto do espaço e seria impossível
analisá-los. Kairós é o tempo do acontecimento extraordinário, que não pode ser medido
tampouco cindido em presente, passado ou futuro, é o tempo maduro, nesse sentido que se
empregava a expressão carde diem, citada pelo poeta latino, Horácio, que é traduzido de modo
hedonístico como “aproveitar o dia”. Diz o poema:
Carpe diem quam minimum credula postero
Tu ne quaesieris, scire nefas, quem mihi, quem tibi
finem di dederint, Leuconoe, nec Babylonios
temptaris numeros. ut melius, quidquid erit, pati.
seu pluris hiemes seu tribuit Iuppiter ultimam,
quae nunc oppositis debilitat pumicibus mare
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Tyrrhenum: sapias, vina liques et spatio brevi
spem longam reseces. dum loquimur, fugerit invida
aetas: carpe diem quam minimum credula postero.
Numa tradução livre, temos:
Colha o dia, confia o mínimo no amanhã.
Não pergunta, saber é proibido, o fim que os deuses
Darão a mim ou a ti, Leuconoe, com os adivinhos da Babilônia
Não brinca. É melhor apenas lidar com o que se cruza no teu caminho.
Se muitos invernos Júpiter te dará ou se este é o último,
Que agora bate nas rochas da praia com as ondas do mar
Tirreno: seja sábio, beba o teu vinho e para o curto prazo
Reescala as tuas esperanças.
Mesmo enquanto falamos, o tempo ciumento está fugindo de nós.
Colha o dia, confia o mínimo no amanhã.
O que se coloca poeticamente no poema de Horácio relacionado ao de Drummond diz, de
certo modo, o mesmo e pode ser nomeado “caminhar entre-tempo” como um colher o dia, cada
dia, do seu ordinário, o extraordinário. Colher é abrir-se para as questões que o caminhar como
viver coloca diante de nós e, colhendo, inaugurar o que somos na apropriação do que nos é
próprio. Colher o dia, beber a água que da fonte irretornável verte é imergir no kairós de cada
questão, como oportunidade de penetrar o sentido da vida como destino que se nos oferece
insistentemente.
O kairós se presentifica na expressão latina carpe diem como o tempo oportuno, ou seja, o
tempo de se colher o fruto maduro do dia e se mede com o destino. Não cabe aos homens saber
precisamente o que é e como virá, resta “apenas lidar com o que se cruza no seu caminho” e,
nesse lidar, o homem, sendo, se apropria do que lhe é próprio, do seu quinhão. Isto é, transpor as
teorias a respeito do destino, seja como uma personalização da fatalidade a que estão sujeitas,
supostamente, todas as pessoas e coisas do mundo, seja como uma determinação divina, seja sob
a forma de predestinação ou de leis naturais, como as várias espécies de determinismos incluindo
o evolucionismo.
O destino é o futuro previamente prescrito por leis sagradas ou seculares? Mas o que é o
futuro? Não sabemos dizer o que é o futuro porque o tempo não é, dá-se, não como conceito, mas
originaria e inauguramente como acontecimento que se doa e retrai diante das “retinas fatigadas”
e “pupilas gastas na inspeção” e surpreende nosso saber calculador. O entre-tempo se dá como
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retração da medida cronológica. Nesse entre do kairós é que a “máquina do mundo se
entreabriu”. O entreabrir não é um abrir-se por completo, mas o vigor do entre-abrir como entre-
fechar.
O entre é a dinâmica que insere o caminheiro no mistério de seu próprio ser. Dinâmica que
só é possível porque desde sempre o caminheiro, no caminho, já se move. Caminheiro é uma
doação do “meio do caminho”, assim como caminho é uma doação do meio. Meio aqui, não é
entendido como metade ou coisa equidistante de seus bordos, de suas extremidades, nem
instrumento pelo qual se atinge um objetivo, um determinado fim, tampouco grupo social em que
se está inserido ou em que se possa inserir. O meio do caminho é o entre, que não pode ser
medido física ou matematicamente, mas a dinâmica entre ser e não-ser, entre fala e silêncio, entre
vida e morte. Todo caminho só é caminho porque é uma doação do meio. O meio é entre-
caminho que se entre-abre no caminhar do caminheiro que se decide por tal é entre-tempo
(kairós) possibilitador da colheita do fruto maduro da vida.
1.2 - Pensar: a vida da arte
A questão do pensar se faz presente de imediato logo no título do poema A máquina do
mundo. Sua relação com a arte se dá de modo muito contundente visto que “tanto a obra do
pensamento como a obra poética se medem pelo vigor que têm de produzir leituras e leitores”
(CASTRO: 2005a, p. 11). No poema A máquina do mundo a questão do pensamento aparece sob
muitas facetas, mas sempre se instaura como tensão do que vem à presença. O que vem à
presença constitui mundo, por isso pensar está também em tensão com mundo, este é habitado
pelo homem que, em seu habitar, provoca a abertura para o pensar. Mundo é a abertura de sentido
que o homem habita. Pensar é, sobretudo, estar de permeio nessa abertura manifesta pela
presença do homem no mundo. O modo de o homem marcar sua presença no mundo chama-se
vida. A vida humana entendida como presença na abertura espacializada pelo habitar mundo é
consumada pela arte. A arte consuma o habitar humano. Pensar a arte é a ela entregar-se de modo
que a ela venhamos a pertencer, é deixarmo-nos conduzir pelo seu vigor na disposição de sua
própria manifestação e fazer da tensão pensamento e arte uma dobra que se desdobra como vida.
Por isso pensar é a vida da arte, nele vigora o que a arte é como vida.
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O pensar de que falamos não se trata de uma faculdade da consciência, mas o modo como
se articula o destino do ser.
Pensar é estar entregue ao ser e deixar-se por ele conduzir. Por isso que o que é se
manifesta no pensar; isso, no entanto, não quer dizer que o pensar classifique ou conceitue o que
é. O pensar nos coloca no caminho da linguagem e lança rumo ao sentido do ser, assim o pensar
consuma o ser, uma vez que resguarda sua manifestação, como afirma Heidegger:
... no pensamento, o Ser se torna linguagem. A linguagem é a casa do Ser. Em sua
habitação mora o homem. Os pensadores e poetas lhe servem de vigias. Sua vigília é
con-sumar a manifestação do Ser, porquanto, por seu dizer, a tornam linguagem e a
conservam na linguagem. (...) O pensamento ... se deixa requisitar pelo Ser a fim de
proferir-lhe a Verdade. O pensamento con-suma esse deixar-se. (HEIDEGGER: 1995, p.
24 - 25).
O ser se consuma como vida. Não há ser sem vida. Queremos situar aqui, previamente, a
questão da referência pensamento-arte-vida. Não dá para se desvencilhar dela, visto que a mesma
permeia todas as outras. Tudo parte da vida e para ela retorna, o pensamento é circular, por isso
as questões por ora manifestas vão atravessar todo esse trabalho e se desdobrar de muitas
maneiras, sendo recolocadas e repensadas constantemente em referência a outras que vão
surgindo a partir da obra de Drummond.
Atentando friamente para o título do poema A máquina do mundo, podemos cair no erro de
considerar máquina, no seu sentido estritamente lógico, como um engenho, equipamento ou
aparelho mecânico, eletrônico ou de outra constituição criado com a finalidade de transformar um
modo de energia em outro para produzir ou fabricar determinado efeito. Entretanto, na poesia
tudo é e não-é gratuito, as palavras tendem sempre a um ludíbrio que obriga o leitor a uma
ausculta acurada de sua fala para parir seu sentido ativo no texto.
A máquina do mundo se entreabre e não deixa de ser máquina, pelo contrário, aí é que ela
revela mais o seu vigor. Em vez de um objeto frio e inanimado, ela convida a todos “a se
aplicarem sobre o pasto inédito da natureza mítica das coisas” e fala com o ouvinte, fazendo um
apelo originário de uma ausculta do silêncio. Que máquina é essa? Seria um invento pós-moderno
antevisto por Drummond, uma espécie de supercomputador?
Essa máquina não é uma coisa, um ente, antes um movimento da própria realidade que, ao
ser repelida pelo espectador se recompõe e desaparece, na verdade se oculta na funcionalidade
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habitual. A máquina do mundo possibilita uma visão ao espectador do ponto do espaço que
abarca toda a realidade do universo como uma referência à convergência das partes no todo, mas
este não corresponde à soma daquelas. Isto, de certo modo, propõe que o todo está contido nas
partes assim como as partes estão contidas no todo como reunião na qual o universo é refletido
caleidoscopicamente como um ponto para onde convergem todos os outros. A máquina do mundo
é uma imagem-questão da realidade se manifestando de modo multiforme, ou seja, a unidade da
multiplicidade que provoca o pensamento.
1.2.1 – O que é isto: o pensar
Aqui se coloca uma questão fundamental: o que quer dizer pensar? Poeticamente pensar é
permitir a algo vir à presença do modo que é sem nenhuma ou qualquer interferência, diz o
mesmo que cuidar e guardar na memória, não como uma lembrança, mas como o atual que se
atualiza a todo instante, como com-centração do pensamento. A essência do pensamento é o
pensar cuidadoso, ou seja, é o que se move rumo ainda ao não-pensado. Pensar é render-se ao
apelo do pensável e deixar que ele nos tome e envolva, este, ao mesmo tempo em que nos acena e
nos avia, se retrai e desvia sub-repticiamente, sem se deixar apreender conceitual e
entitativamente.
Mas dá-se desvio somente onde já se deu um aviar-se. Se o que mais cabe pensar
cuidadosamente mantém-se num desvio é porque isso se dá precisamente e tão-só no
interior de seu “aviar-se”, isto é, de tal modo, que ele já deu a pensar. Em todo desvio, o
a-se-pensar já se aviou para a essência do homem. Por isso, o homem de nossa história
também sempre já pensou de um modo essencial. Ele pensou mesmo o mais profundo.
Na verdade, de uma maneira estranha, o a-se-pensar permanece sob a guarda deste
pensamento. O pensamento até hoje vigente de modo algum considera o fato e em que
medida o a-se-pensar também se retrai. (HEIDEGGER: 2002a, p. 114)
Aviar-se diz o pôr-se a caminho no sentido de mover-se rumo a algo, mas esse aviar-se se
dá a partir de um apelo do que dá a-se-pensar, isto é, o pensável. O a-se-pensar dá-se como
convite. Aviar-se é atender ao convite do pensamento e empreender a caminhada rumo ao que
nos atrai, mas isto que nos atrai e apela se esquiva retraindo e desviando de toda e qualquer
conceituação.
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O pensar provém de um aceno, com isso não estamos dizendo que o aceno produz o pensar,
mas que o aceno provoca o pensamento. Pro-vocar é convocar a fala a partir de uma escuta.
Pensar é um jogo de se deixar conduzir por aquilo que de algum modo se mostrou rumo ao que se
oculta, esse jogo constitui um caminho instaurado pela pro-cura que vigora no aberto liberado
entre o aceno e o encontro. Procura e encontro se dinamizam tal qual a tensão entre manifestação-
aceno e ocultação-recusa, esse jogo é que movimenta o pensamento:
O que cabe pensar retrai-se para o homem à medida que dele se retira. O que se retira,
porém, sempre já se nos mostrou. O que se retrai no modo de um retirar-se não
desaparece. (...) O que se retrai recusa o encontro. (...) O que se retrai pode concernir ao
homem de maneira mais essencial e reivindicá-lo de modo mais próprio do que algo que
aí está e o atinge e o afeta. (HEIDEGGER: 2002a, p. 116)
O pensamento liberta à medida que resguarda o acontecimento da coisa sem interferência
em seu manifestar e em seu retrair-se, isto é, deixa-a vigorar no que ela mesma é. Por isso pensar
é tanto manter livre a manifestação quanto o retraimento e não tentar relacionar este àquele; nesse
sentido, pensar não é representar, mas um abrir-se para a ausculta da linguagem. O pensar só
acontece na linguagem, por isso a vigência do pensar depende do modo que a linguagem vigora.
Se a vigência da linguagem é deturpada, a do pensamento também o será.
Pensar é habitar a linguagem enquanto casa do ser, habitar não é dominá-la, medi-la,
racioná-la, mas “demorar-se junto as coisas” (HEIDEGGER: 2002, p. 131). O pensamento não
tem uma linguagem, é também essencialmente linguagem. Linguagem é realidade se realizando.
Pensar é dar um salto dentro da realidade e entregar-se a sua dinâmica, por isso todo pensar
é primeiramente um pensar a linguagem. Isto fala de render-se a sua fala, ao seu aceno na
tessitura do real entre tempo e caminho. Pensar é habitar o vazio entre-fios e ao mesmo tempo
percorrer os caminhos traçados pela rede, é estar-entre vazio e figuração, silêncio e fala, linha e
entrelinha, em outras palavras, de permeio na linguagem na maquinação da vida.
1.2.2 – Pensar: maquinar da vida
O que a linguagem nos acena na sintaxe poética Máquina do mundo? A palavra máquina
pode ser lida também como uma forma deverbal de maquinar que, dentre outras acepções, fala do
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ato de tramar algo. Essa leitura é possível porque a palavra máquina, mesmo numa acepção de
instrumento, conserva o sentido de ação de prover algo através de seu engenho. Tramar seria
correlato de maquinar tal qual trama de máquina, é a tessitura do pensamento:
Sabemos que pensar vem de pensum, particípio passado do verbo pendere. Significa,
portanto, pendido, pendurado. Formou-se, já em latim, o substantivo pensum, que diz em
sentido derivado a tarefa, o encargo e, em sentido próprio, a quantidade de fio de lá que
se pendura para a tarefa de tecer e fiar durante a luminosidade de um dia ... A
concentração da articulação da tecelagem remete sempre, de alguma maneira, para além
dos fios, para a tessitura, para a totalidade de integração que a tessitura realiza em
silêncio (LEÃO: 1999: 246).
Tessitura ou trama é a multiplicidade e complexidade do enredamento, ou seja, o conjunto
de fios da urdidura que se cruzam formando um tecido, uma teia ou rede. Trama é a tessitura ou
dobra de pensamento e linguagem. O sentido cabe perfeitamente se pensarmos em trama ou
tessitura do mundo. Mas podemos aqui cair num erro grosseiro pensando tessitura no sentido do
que já foi tecido. Por isso máquina cai muito bem para o movimento de mundo. “Mundo é tudo o
que acontece”, já dizia Wittgenstein no seu Tractatus. Máquina nomeia o movimento do mundo
mundificando que maquina, tece o real. Mundo não é o real feito, mas se fazendo a todo instante.
Essa tensão dinâmica é a máquina do mundo.
A máquina do mundo se abre diante de “retinas fatigadas”, de “pupilas gastas” e da “mente
exausta” como uma nova dimensão de vida, um novo sentido existencial; mas, longe de
maquinalmente, abre-se “majestosa e circunspecta, sem emitir um som que fosse impuro nem
clarão maior que o tolerável” numa majestosa gestualização de mundo. Máquina do mundo diz o
mesmo que gestualização de mundo. Abrir-se circunspectamente é portar-se com cuidado diante
de uma questão, ou seja, cuidar da questão. Cuidar é pensar, longe do plano racional, mas como
cura. Cuidado, do latim cogitátus, diz-nos a ação de meditar, pensar, refletir, mas também liga-se
ao sentido de cuidar, tratar de, tomar cuidado de, aplicar um penso, isto é, curativo. A máquina se
abriu não diante de instrumentos racionais, mas do cuidado, da cura.
Mas, cuidado de quê?
As pupilas gastaram-se na tentativa de enxergar e a mente se exauriu na inspeção mentada
na busca de distinguir, perceber pela visão ou alcançar racionalmente o que está fora, distante
e/ou oculto, a fim de tirar, como consequência lógica, por conclusão, dedução ou inferência o
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significado escondido; como esforço de um sujeito por objetivar a realidade, a máquina do
mundo.
O sujeito moderno, revestido do conhecimento científico, faz do caminho (hodós) uma
estrada. Mas caminho não é o mesmo que estrada, assim como método não é metodologia. O
caminho é o lance do inesperado, a ritualização do mistério que se abre no caminhar do
caminheiro como pensar. O caminho como hodós é sempre caminho inaugural como doação da
realidade. A estrada é a objetivação de um caminho, é a sedimentação de um acontecer mundo
que acontece e se fixa esgotando o acontecer experiencial num acontecido experienciado. A
inspeção mentada não consegue apreender a realidade como realização, pois esta se dá como
experienciação do mistério, “nos abismos”. A “máquina do mundo” é o movimento, a dinâmica
de mundo que mundifica, essa dinâmica não pode ser apreendida, descrita ou determinada
cientificamente. Essa tensão que mundifica não pode ser codificada como se pensou a
cosmologia moderna, porque máquina do mundo não é um simples mecanismo, ela não funciona
como um aparelho mecânico.
A mecânica do mundo não pode ser causada pelo homem, eis a grande agonia do cogitador
moderno: não poder controlar nem prever a dinâmica do mundo. O caminheiro fica perplexo
quando a máquina do mundo se abre sem depender de seus esforços, sem que tal abertura seja
causada por um sujeito e tanto se dá como se retrai tão misteriosamente que não pode ser
objetivada e enquadrada em seu domínio. O caminheiro sabe que não pode controlar esse
manifestar simplesmente porque não pode controlar o pensar.
O cuidar que se presentifica no abrir da máquina do mundo é o cuidado da linguagem, isto
é, abrir-se para a ausculta do manifestar da linguagem como máquina do mundo. Esta não possui
uma linguagem como presume a ciência, mas ela é linguagem como manifestação de sentido; não
significa algo, mas eclode como uma verdade a qual se deve auscultar. A máquina do mundo se
abre como uma clareira na floresta, e se abrindo deixa-se ver. Não é qualquer ver, provocado por
um sujeito, mas o ver que por si mesmo se dá como uma doação do não-ver.
A máquina do mundo não é um substantivo, um ente, mas uma ação que se apresenta no
abrir. O dar-se a perceber da máquina vigora e tão somente o faz no e pelo seu abrir, e este se dá
como convite. A máquina do mundo ao entre-abrir-se faz um convite ao caminheiro e a todos “a
se aplicarem sobre o pasto inédito da natureza mítica das coisas”. O caminheiro se despe das
pupilas e mente gastos pelo uso inspecional epistemológico e se move noutra dimensão, a única
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válida, a dimensão da ausculta da linguagem, isto é, do que a própria máquina do mundo é, sem
conceitos nem preconceitos, com o corpo: intuição e sentidos. Não mais a périplos cansativos e
infecundos, antes, o caminheiro é convidado a se aplicar numa nova passagem. Esse aplicar é um
pensar como cuidar, habitando o “pasto (caminho) inédito” e a “natureza mítica das coisas”, é
enxergar noutra dimensão, na dimensão da ausculta.
Parece estranho, e o é, falar em enxergar na dimensão da ausculta, mas isso nos diz de um
deixar que mundo ecloda diante de nós sem intervenção epistêmica alguma, apenas como mundo,
entregando-se ao pensar. O convite ao pensamento parte da própria máquina do mundo, não
surge como um ato deliberado do caminheiro. É um convite inesperado, imotivado e irrecusável.
O caminheiro faz uma ausculta inédita e inaudita: “assim me disse, embora voz alguma / ou sopro
ou eco ou simples percussão / atestasse que alguém, sobre a montanha, / a outro alguém, noturno
e miserável, / em colóquio se estava dirigindo”. A ausculta-pensamento feita pelo caminheiro foi
a ausculta do silêncio.
1.2.3 – Pensar: auscultar o silêncio
O silêncio não é simplesmente não fazer soar algo, mas a não-fala de toda a fala, assim
como o velado é o não-manifesto de tudo o que se manifesta. Por isso a fala do silêncio é uma
fala inaugural, ela fala o que nunca foi falado antes. É uma fala que pode se auscultar vendo e ver
auscultando. Na ausculta do silêncio há uma consumação da realidade; por meio da ausculta do
silêncio também podemos consumar o que somos. O que somos aqui não necessita de um
predicativo, pois o ser se basta a si mesmo. Na ausculta do silêncio, do inaudito, inédito e
inaugural o ser se plenifica em sua consumação. Consumar quer dizer levar algo ao sumo, à
plenitude. A máquina é o movimento que gestualiza mundo. Pensar é consumar o ser na
gestualização de mundo. Quanto ao que é mundo, vale aqui o comentário do pensador Martin
HEIDEGGER: na obra A origem da obra de arte, no parágrafo 81:
Mundo não é a mera reunião das coisas existentes, contáveis ou incontáveis, conhecidas
ou desconhecidas. Mundo também não é uma moldura apenas imaginada e representada
em relação à soma do existente. O mundo mundifica, sendo mais do que o que se pega e
percebe, em que nos acreditamos confiantes. Mundo nunca é um objeto que está diante
de nós e pode ser visto. Mundo é o sempre inobjetivável, ao qual estamos subordinados
51
enquanto as vias de nascimento e morte, bênção e maldição nos mantiverem arrebatados
pelo ser (a). Onde acontecem as decisões mais essenciais de nossa história, que por nós
são aceitas ou rejeitadas, não compreendidas e de novo questionadas, aí o mundo
mundifica. (...) No que um mundo se abre, todas as coisas recebem sua morosidade e
pressa, sua distância e proximidade, sua largueza e estreitamento. No mundificar está
reunida aquela amplidão a partir da qual a benevolência protetora dos deuses se doa ou
se recusa. Também a fatalidade da ausência do deus é uma maneira de como o mundo
mundifica. (HEIDEGGER: 2010, § 81)
O mundo que eclode no poema de Drummond é o mesmo enunciado na obra do pensador.
Mundo é a abertura que manifesta o destino humano, é o desvelar da trajetividade humana sobre
a terra. Quando mundo se manifesta, manifesta-se juntamente o homem como ser histórico que é.
É pela manifestação de mundo que pensar é possível, pois o homem é à medida em que habita o
mundo. Mundo se funda na disputa entre o velamento e o desvelamento, e nesse movimento ele
eclode. A mundo corresponde o fundar como mundificar, mas que em si mesmo não possui um
fundamento, isto é, uma causa. O mundificar é resguardado no apelo da máquina, entendida
como tensão manifestativa do mundo. A realidade se realiza como mundo. O gesto do mundo é a
vida. O que o caminheiro do poema procurava não era esse mundificar do mundo, até mesmo
porque isso ele nem conhecia, mas uma causa, o princípio fundamental, o fundamento. O pensar
do caminheiro era uma busca exaustiva pela razão ou causa de toda e qualquer realização do real.
O pensar com que o caminheiro se depara é um deixar que a vida entre em cena. O que
quer dizer isso? É mergulhar no mistério-vida que se nos oferece como oportunidade no
maquinar/gestualizar mundo. Do latim, opportúnus é o que conduz ou põe em direção ao porto.
Originariamente, portus possui sentido de passagem. O que a vida nos oferece é passagem.
Pensar é o movimento de fazer a passagem do não-ser ao ser e também o contrário, isto nos diz o
sentido do agir, nomeado pelos gregos poiesis. Pensar é poiesis da vida e a vida da poiesis. Todo
pensar é um deixar passar, é a possibilidade que se abre para uma travessia. Pensar diz um
movimento, mas mais que isso, é movimentar-se. Pensamento é passagem assim como pensar é
passar. A vida é um pensamento-passagem e viver, pensar-passar.
Pensamento é a trama na qual e pela qual se é possível fazer toda e qualquer passagem. Mas
como isso é possível, se podemos dizer que fizemos algo sem pensar, como, por exemplo, se faz
na afirmação: “Falei sem pensar”? Entretanto, na expressão “Falei sem pensar” acontece que o
pensamento se retraiu no pensar enquanto a fala se pronunciou no falar. O que pode ocorrer
muitas vezes é que nem sempre a fala é uma fala da escuta, o pensar, pelo contrário, no sentido
52
de cura, sempre se dá primeiro como ausculta. Nela o pensamento permite que as coisas venham
para junto de nós segundo seu modo próprio de ser. Pensar salvaguarda o caminhar por entre as
coisas e, per-meando-as, volta-se para o nelas ainda desconhecido. Este nunca é proposto pelo
pensador, mas é algo que se anuncia furtivamente no seu próprio aparecer e retrair. O que se
retrai parece ausente, mas só aparentemente, pois “O que se retrai se faz vigente – a saber, através
do fato de nos atrair, quer percebamos agora, depois ou mesmo nunca.” (HEIDEGGER: 2002, p.
116). O que nos atrai no silêncio do retraimento é o que nos toma e impulsiona a pensar. O
caminho do pensamento nos conduz ao nosso próprio, ao que somos. E esse o apelo operado pela
máquina do mundo, o apelo a pensar o ser. Este é o apelo mais antigo da história do pensamento
e da poesia, ao que se crê ser mais antigo mesmo que os pensadores gregos originários, como
Parmênides, que nomeou essa relação do seguinte modo, no conhecido fragmento III: “Pois o
mesmo é pensar e ser”.
1.2.4 – Pensar: a renúncia originária
Para atender ao convite feito pela máquina do mundo o caminheiro deveria fazer a mais
difícil passagem que alguém possa fazer, a passagem da renúncia, a travessia de todas as
travessias. Fazer a passagem da renúncia instaura o abrir mão de todo saber sabido, pensar
pensado e aprender aprendido, isto é, abrir mão de todo saber, pensar e aprender que foram
entificados, que perderam seu “mover-se rumo a” e viraram substantivos prontos e acabados
como respostas dadas e consolidadas conceitualmente. Renunciar é abrir-se para o que se re-
anuncia no que se anunciou, mas não se havia pensado antes.
O que o caminheiro ausculta no entre-abrir da “máquina do mundo” o deixa perplexo:
O que procuraste em ti ou fora de/teu ser restrito e nunca se mostrou,/ mesmo afetando
dar-se ou se rendendo,/ e a cada instante mais se retraindo,/ olha, repara, escuta: essa
riqueza/ sobrante a toda pérola, essa ciência/ sublime e formidável, mas hermética,/ essa
total explicação da vida,/ esse nexo primeiro e singular,/ que nem concebes mais, pois
tão esquivo/ se revelou ante a pesquisa ardente/ em que te consumiste... vê, contempla,/
abre teu peito para agasalhá-lo.
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A verdade que o caminheiro procurou dentro dele como um ímpeto de subjetividade, ou
mesmo fora dele, como um desdobrar da objetividade “nunca se mostrou”, antes sempre se
retraiu, de repente, ao renunciar essa “pesquisa ardente” de uma compreensão e explicação
epistemológica, a “máquina do mundo” se abre com todo o seu vigor e mistério e apela ao
caminheiro: “abre teu peito para agasalhá-lo.”. Interessante que ela não diz: “- Abra tua mente”.
Mas “abre teu peito”. O peito que abriga o coração é uma imagem como referência ao
sentimento, este como um ponto de irradiação para corpo inteiro, quer disser, a totalidade, sem
dicotomias entre corpo e alma. O caminheiro deve abrir o peito para agasalhar “o absurdo
original e seus enigmas, /suas verdades mais altas que todos/ os monumentos erguidos à
verdade”. O absurdo original não é o princípio ou causa, mas o próprio mundificar que se
manifesta como um enigma e a verdade do acontecimento é muito maior que os monumentos da
razão erguidos a ela. Quais são os enigmas e verdades altas do absurdo original: a memória dos
deuses e o solene sentimento da morte.
Outro poema de Drummond que coloca a questão da dobra pensamento e arte é o intitulado
Poesia, e nos remete ao movimento singular de sua poética. Auscultemos sua fala:
Gastei uma hora pensando um verso
Que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
Inquieto, vivo.
Ele está cá dentro e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
Inunda minha vida inteira.
(ANDRADE: 2007, p.21)
O poema tem início com as seguintes palavras “Gastei uma hora pensando um verso / que a
pena não quer escrever”. De imediato percebemos que o pensamento é levado ao encontro da
arte, que se manifesta através da palavra “verso”. Não se diz aqui passei uma hora elaborando
um verso, ou criando um verso, tampouco imaginando, diz-se pensando um verso. O que se pode
nos revelar tem início na referência entre pensar e verso. O verso, no sentido que aqui se
encontra, é a eclosão da fala da poesia, e esta é a manifestação do silêncio. No poema o pensar
está em tensão com a arte, assim como a fala está em tensão com o silêncio e traz à cena ainda
outra questão mais originária: a própria tensão. É a tensão que manifesta tanto o silêncio-fala
quanto pensamento-arte. A tensão é o vigor em que vigoram todas as coisas. O poema diz que o
54
verso está “cá dentro/inquieto, vivo.” e mesmo “não querendo sair”, “a poesia deste momento”
inunda a (minha) vida inteira. O verso/fala da poesia/pensamento vigora em algum lugar, isto é
certo, mas se o lugar não é o sujeito tem-se a seguinte questão: Por que se diz que ele está cá
dentro? Ou seja, dentro de onde ele está? A questão que ora se põe se desdobra em duas:
pergunta-se pelo lugar onde o verso/fala vige e porque o poema diz “cá dentro”. O lugar onde o
verso/fala vige é o mesmo onde vige o silêncio e também poesia e pensamento: na tensão. Essa
tensão não é qualquer tensão, mas de onde se origina tudo o que se manifesta e que se vela. A
essa ação os gregos denominavam physis. A physis eclode como a-letheia.
Por que o poema diz “cá dentro” e não lá dentro ou em outro lugar, expressando uma idéia
de subjetividade? Trata-se de um dentro do poeta, sua consciência? Note-se que o poema diz “cá
dentro”, mas não “dentro de mim”. Cá dentro é onde também o poema está. Quem fala aqui não é
o homem, mas a linguagem que penetra o homem. Cá dentro é o lugar onde a linguagem vigora e
de onde a fala nos advém. A expressão renega e renuncia a todo princípio de subjetividade
corrente na modernidade e entrega a fala à sua origem, a saber, à linguagem. A linguagem vigora
na tensão que salvaguarda originariamente fala e silêncio.
O poema encerra sua suposta fala truncada dizendo que “a poesia deste momento / inunda
minha vida inteira.”, nesta fala acontece algo muito interessante, a luta entre manifestar e não-
manifestar o verso/fala faz eclodir uma fala que tem origem nessa disputa: fala/silêncio, a isso
que se manifesta o poema chama Poesia e nessa disputa se tem, além de assinalado o lugar, o
assinalamento do tempo: “poesia deste momento”. Poesia do momento faz referência a um tempo
que se manifesta como poiesis, um tempo poético que inunda a “minha vida inteira”. Tanto o
“minha” como o “Gastei”, no poema, se referem a um pretenso “eu”, que se supõe humano, um
ser humano. O verbo gastar indica aqui um fazer humano, esse fazer é nomeado pela palavra
“pensando”, que indica a forma verbal no gerúndio dando um sentido de ação contínua ou
continuada. O pensamento no poema é um ato continuo e faz o homem, mais do que gastar uma
hora, gastar-se nele. No entanto, esse gastar não é um gastar que subtrai, apenas, mas um gastar
que acrescenta ou, antes, transforma, porque é um gastar que, no seu desenlace, inunda. Na
sintaxe poética da linguagem o pensar não é uma ação do homem, mas algo que já de si o tem, o
envolve: não é o homem que pensa o pensar, mas o pensar pensa o homem.
O pensar assim entendido não é uma faculdade racional, mas um convite natural que
envolve e seduz o homem, uma vez envolvido e seduzido pelo canto do pensar o homem nunca
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mais é o mesmo, por isso o pensar-poético inunda. O que sucede aos dois primeiros versos do
poema possui um sentido de oposição ou contraste ao que foi dito anteriormente expresso pela
locução conjuntiva “No entanto”. O sentido que se presta à sequência do poema é a de que
“apesar de” se ter gasto “uma hora pensando um verso/ que a pena não quer escrever.”, não quer
dizer que ele não exista, antes o seu poder de não querer sair anuncia sua notável presença. Todo
esse movimento acontece num tempo específico que é, inicialmente, marcado de forma
cronológica – uma hora, mas que se transforma num tempo especial que assinala um
acontecimento. Esse acontecimento “inunda minha vida inteira.”. Esse inundar é uma
acontecimento poético-apropriante que se dá enquanto poesia pensante, isto é, em seu vigor
pleno. O inundar assim entendido é uma plenificação que inaugura um novo sentido. A expressão
“minha vida inteira” reflete uma experienciação vivencial que se dá imediatamente nesse inundar.
Inundar a vida inteira se realiza numa plenitude vital de experienciação do pensamento poético.
Para ser poético esse pensamento não pode ser qualquer pensamento. Como já se disse, não se
refere ao pensamento no sentido ao qual estamos habituados que é o de avaliar pelo raciocínio,
delinear racionalmente algo, formar ou combinar idéias por meio de um encadeamento ou
proposição lógica. Tal forma de pensar é antes de qualquer coisa uma redução das manifestações
da realidade a conceitos lógicos e essencialmente subjetivos. O pensamento expresso no texto é
um modo pelo qual a linguagem vem à tona, é uma forma por meio da qual a realidade se diz e,
ao mesmo tempo, além disso, é um pensamento poético. Para ser inundado desse pensar-poético,
o homem precisa estar vazio, o que só acontece na renúncia-originária. A renúncia-originária
prepara o caminho para o inundar do pensamento e da vida com a poesia. É abrir mão de uma
delimitação subjetivista, racionalista e controladora do pensamento e render-se ao mover próprio
do pensar-poético. Pensar poeticamente diz o renunciar para re-anunciar o pensamento originário
e inaugural.
A força instituidora que se manifesta no poema é dado de modo imagético. O que se chama
imagético aqui não tem nada a ver com contornos físicos, formação de idéias representacionais
ou delineamentos imaginários, pois todas essas formas se fundam no agir do sujeito e são por ele
modeladas de modo que se atinja a finalidade proposta. A imagem que se dá no poema é uma
doação da linguagem como palavra-máquina. Também distinta do signo verbal, a palavra em sua
dimensão poética é essencialmente manifestação da verdade. O poema Poesia instala a tensão
entre arte e pensamento na poesia drummondiana constituindo uma dobra com o poema A
56
máquina do mundo. O dito de ambos se pronuncia manifestando uma imagem-questão que nos
convoca à escuta do pensamento-poético, esta é homônima aos títulos dos poemas e poderia
figurar como: Poesia – a máquina do mundo. O pensamento-poético como linguagem é a
essência da imagem-questão que se manifesta nos poemas como dobra. Essa imagem-questão é
evocada e se manifesta originariamente como um modo de aproximação da essência do sentido
originário de arte-pensamento e pensamento-arte como com-sumação da vida. Pensar é renunciar
originariamente à posição (do grego thésis) racionalista para (re-)inaugurar o sentido da
existência como destino, deixando com que ele nos envolva no desdobrar triunitário de vida,
caminho e verdade. O fenômeno da linguagem na poesia se con-suma como tensão entre poesia e
pensamento no retraimento e unidade (memória) de fala e silêncio como escuta do logos.
1.3 - Memória: vida do pensamento
Toda obra de arte é, de alguma forma, uma referência à memória. Se não for radical
demais, podemos até dizer que toda obra de arte é memória. E é mesmo, não no sentido usual que
aponta para lembrança ou rememoração de um passado, mas como um inaugurar original de
mundo que se refaz a cada instante no horizonte humano. De algum modo a obra de arte sempre
coloca a memória como questão. A memória é um modo de vigorar da linguagem. Esta reúne
tudo o que se apresenta no âmbito do desvelamento, em si mesma, como a-presentação, isto quer
dizer que a linguagem se coloca como o a- da presentação ao aproximar e proporcionar toda e
qualquer presentificação. Tudo o que se presentifica se dá primeira e prioritariamente como
linguagem-memória.
Vida é a reunião de tudo o que se dispõe e presentifica na triunidade de presente, passado e
futuro. Desse modo ela rege toda e qualquer experienciação do real. Só podemos fazer a
experienciação da vida se antes fizermos da vida uma experienciação. Cabe ao homem antes de
tudo fazer do viver uma travessia como abertura para a disponibilidade de tudo que se vela e
revela no âmbito da vivência. Viver é deixar com que vida se manifeste como revelação de
sentido na reunião do que vigora entre o que se é, o que já não se é e o que ainda não se é, isto é,
destino.
57
Assim, vida é presentificação e, ao dar-se, acontece como memória. “Memória é a
concentração do pensamento”, diz Heidegger (HEIDEGGER: 2002, p. 111). Concentrar nomeia a
ação de trazer o que está disperso ou separado para um centro, reunindo-o. Memória como com-
centração do pensamento aponta para trazê-lo para o centro e o deixá-lo vigorar inaugurando o
sentido da existência como destino: “é pela memória que se pode estabelecer o nexo do que é,
mas que ainda, ou já, não existe” (JARDIM: 2005, p. 156). Unindo e reunindo, memória é
também um modo de consumar o pensamento levando-o a sua plenificação.
Como na máquina do mundo e na obra de Drummond memória se manifesta?
No caminhar do caminheiro o som de um sino rouco se mistura ao som de seus sapatos. O
sino está ligado diretamente à percepção de um som e da vibração produzidos, ele evoca a
posição de tudo o que está suspenso entre céu e terra e, por extensão, entre mortais e imortais. O
som do sino é extremamente descontínuo e lacunar, como o dos sapatos. A intercadência e
intermitência do som evocam certa transitoriedade e alternância. O som passageiro nos anuncia a
passagem do tempo, mas também do silêncio ao som e deste àquele. A alternância fala e silêncio
nos situa no movimento de esquecimento e não-esquecimento, velamento e desvelamento. O
hiato, isto é, a pausa na pulsação do som é um vigorar do silêncio, do vazio. O trecho em questão
nos diz: “E como eu palmilhasse vagamente / uma estrada de Minas, pedregosa, / e no fecho da
tarde um sino rouco / se misturasse ao som de meus sapatos / que era pausado e seco;”. O som do
sino rouco se mistura ao som dos sapatos que era pausado e seco. Esse som seco, sem adornos,
vigora apenas na essência do próprio caminhar ou palmilhar e vem de um sapato do caminheiro
que calcava vagamente uma estrada pedregosa de Minas, no entanto, o som da caminhada se
mistura ao som de um sino. Duas sonoridades intermitentes se reúnem na caminhada. A extinção
rápida e misteriosa do som do sino (o que foi) dá lugar à cadência constante do caminhar de
alguém (o que é) que ainda não encerrou sua travessia (o que será).
O som e a vibração intermitentes do que está suspenso entre céu e terra e mortais e imortais
são manifestações do mistério como revelação. A revelação não se coloca no nível do revelado,
que seria o exposto de um modo já definido e estabilizado, como um conhecimento que se
adquire e se condensa, antes seu movimento é extremamente indefinido e vago. A vaguidão é
uma doação do vazio, este não nos diz o uso comum como o que no qual não há nada, mas o
vazio que é a possibilidade de todos os possíveis. Esse vazio é o que possibilita a reunião de tudo
58
o que é ou existe, este se chama memória que, em seu vibrar congrega em si passado, presente e
futuro.
É preciso, porém, entender de que modo memória vigora no poema. De acordo com o uso
corrente, os dicionários registram o significado de memória como lembrança ou reminiscência,
isto é, a faculdade de conservar e lembrar de estados de consciência, fatos e experiências vividas
no passado e de tudo quanto se ache associado aos mesmos. Memória seria o que possibilita
reviver ou restabelecer experiências passadas com maior ou menor consciência do que a
experiência do momento presente, por extensão, significa também retenção, reconhecimento e
evocação, dentre outros significados. Enfim, memória é entendida como uma capacidade
facultada à mente de reter ideias, situações, coisas vistas, ouvidas e sentidas, ou seja, que passam
pelos sentidos. Mais uma vez, os conceitos são válidos e muito importantes, mas não conservam
o originário do que seja memória na arte e no pensamento. O poema A máquina do mundo
aponta para um sentido poético de memória.
1.3.1 - Memória: reunião integradora do que era, é e será
A origem da palavra memória é bem explicitada por Antônio Jardim, quando este diz:
A palavra memória provém do grego mnéme que diz, mais imediatamente, ação de se
lembrar, o lembrar ele mesmo, aquilo que permanece no espírito, documentos, arquivos,
preceito, prescrição. Se se decompusesse mnéme em mne-, que diz, em última instância,
unidade, e -me, que pode dizer, se derivado do indo-europeu *med, governar, pensar,
sonhar ou medir, teríamos que memória diria governar, pensar ou medir a unidade. Na
sua forma alongada, já no grego, men diz meditar, refletir, inventar, mas também, velar.
A partir daí pode-se entender memória como a instância de inventar, meditar, refletir e
velar, no sentido de cuidar, a unidade. (JARDIM: 2005, p. 126.)
Memória é unidade ou reunião integradora do que era, é e será, ela conserva a tensão
originária de mistério e manifestação. Ela reúne vida, caminho e verdade como um mútuo referir-
se triunitário que, numa imagem mental, pode se comparar a um triângulo. Poder-se-ia perguntar,
pensando nessa forma geométrica, qual estaria no vértice e quais na base? Responderíamos, sem
medo de estarmos equivocados, nenhum deles teria uma posição marcada, mas seria como se esse
triângulo girasse trazendo ora um ora outro para o centro da questão numa mútua referência.
59
Além disso, pode-se perceber também que memória está originariamente ligada aos mitos
arcaicos:
Memória em seu vigor de palavra remonta à Mitologia. Nesta, Memória é a mãe de todas
as artes. É pelo vigor da Memória (mãe) que podemos articular e manifestar
o memorável. Memorável é o que permanece no fluxo das mudanças fugidias e
passageiras. Por isso, memória e tempo unitário são um só, ou seja, o tempo
tridimensional (passado, presente e futuro) é ontologicamente unitário como memória.
Nessa unidade não há uniformidade conceitual, mas há identidade enquanto diferença,
ou seja, permanência e mudança. Isto é a memória.
(http://www.dicpoetica.letras.ufrj.br/ acessado em 24 de março de 2012. Verbete
memória. Por Manuel Antônio de Castro)
O tempo unitário é o que opera o acontecer, esse operar nos diz pôr em obra e este é um
agir da memória. O acontecer é, ao mesmo tempo, permanência e mudança, o que acontece é o
vigor do que mudou e se presentificou como unidade. O tempo operando o acontecer, como
assinalam poetas e pensadores, é a memória vigorando como “condição de possibilidade do
estabelecimento de todo e qualquer complexo temporal-espacial como unidade” (JARDIM: 2005,
p.156). A escuta de memória põe como questão o passado que ainda é presente e o futuro que
ainda não é. O poeta modernista é o mesmo aedo que falava por inspiração das musas na
Antiguidade. Inspiração hoje é tomada como entusiasmo criador focado na subjetividade. Dizer-
se inspirado é exaltar a realidade psíquica, emocional e cognitiva do homem, ou seja, uma
apropriação intelectual da realidade e da linguagem e capacidade de manipulá-la, como a um
objeto, por meio de proposições racionais, de modo que esta, a linguagem, represente aquela.
Porém, na Antiguidade, a inspiração do aedo correspondia à escuta das Musas, filhas da
Mnemósine, a memória. O extraordinário se dava como manifestação do mistério na escuta e
correspondência à fala das Musas, que eram portadoras da sabedoria. Esta, não se tratava de um
saber comum, como hoje se confunde muito, tomando informação/conhecimento no lugar de
sabedoria. Enquanto a informação e o conhecimento se processam mais comumente pelas vias da
razão e têm como essência a assimilação que resulta numa conceitualização ao estabelecer a
relação sujeito-objeto, a sabedoria faz a travessia da questão e se consuma como uma
experienciação do real. Não se ensina a sabedoria, mas se a experiencia como aprendizagem. Por
isso memória e sabedoria estão intimamente ligadas.
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Sabedoria não se compra, não se vende, não se dá, não se negocia, antes nomeia a própria
força integradora e possibilitadora de toda e qualquer experienciação humana com a verdade.
Sabedoria é a abertura que concentra as experienciações da vida na tensão entre saber e não-
saber. Nesse jogo de apelo e retraimento do saber, somos tomados pelo que de algum modo já
sabemos e, ao mesmo tempo, ainda não sabemos. Nesse jogo perigoso o que acena tanto pode se
mostrar como um caminho de vida que nos põe rumo a uma travessia por toda a vida, como pode
se retrair e desaparecer e nunca mais nos acenando novamente. Como caminho, cada pegada é
um passo do que se sabe ao que não se sabe, isso diz a caminhada. Sobre a questão, Emmanuel
Carneiro Leão quando diz o seguinte: “Não posso saber o que é o Nada, mas posso saber que não
sei. Se sei que não sei, não estou vencido. Ainda tenho o saber de meu não-saber. O auge da
sabedoria não é o não-saber do saber, mas o saber do não-saber". (LEÃO: 1977, p. 184). Como
concentração de experienciações, memória é o vigor tensional que não deixa o experienciar
transformar-se num experienciado, pois nela também vigora a tensão entre o permanecer e o
passar. Nesse sentido, memória é o acautelamento da physis, isto é, é a guarda e o cuidado do que
se desencobre e, em seu desencobrir, logo tende ao encobrimento.
[...] através da palavra usual Gedanke (pensamento) ou Gedanc (guardar, lembrar) e que
corresponde a Gemut (alma, coração). Gedanc e Gedächtnis, memória, um recolher, um
pensar interiorizado, um pensar em e junto a, um pensar entre, onde fidelidade e
constância caracterizam o deixar ser-presente. É uma presença através do que é passado,
do que é presente e do que é a vir (advir)." (HEIDEGGER: 1969d, p. 10)
O homem vivencia enquanto vive a tensão entre pensamento e memória em seu estar junto
ou de permeio entre as coisas, de modo que elas mesmas presentifiquem o que e como são.
Memória é pensar junto a ou entre. O memorar sempre se dá junto a esse pensar, no sentido de
cuidar, assim, é sempre um co-memorar, recolhendo e reunindo, entre ocultação e desocultação,
tudo o que se presentifica, o qual protege, guarda, cuida. A memória, nesse sentido, vigora apenas
no homem, pois só ele pode habitar originariamente o mundo. Apenas o homem constrói e
constitui ontologicamente sua morada, em seu ser e estar no mundo, na e pela memória, que se dá
também e essencialmente como linguagem.
Em meio a tudo o que se revela ao caminheiro, surge “ o absurdo original e seus enigmas /
suas verdades altas mais e que todos / monumentos erguidos à verdade: / e a memória dos deuses,
e o solene / sentimento de morte, que floresce / no caule da existência mais gloriosa / tudo se
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apresentou nesse relance”. Ao vislumbrar a memória dos deuses, Mnemósine, e o sentimento da
morte, Tanatos, ou antes a própria Moira, como destino de todos os mortais, o caminheiro é
iniciado nos mistérios da vida e da morte.
1.3.2 – Memória, morte e destino
Tanto Tanatos quanto Moira são filhos de Érebo e Nyx, a noite, e, ao mesmo tempo, filhas
de Zeus e Thémis. Torrano assim se refere à dupla origem desses deuses: “Com essa origem
dupla e antinômica, as Moirai são o limite positivo, constitutivo e configurativo de cada ser
divino ou humano” e continua ampliando a questão: “A dupla filiação das Moirai indica, nos
termos próprios do pensamento mítico, que toda afirmação implica a negação” (TORRANO:
1981. p. 97).
A noturnidade da noite é a imagem-questão do velamento das coisas presentes no embate
de Mnemósine, Moira e Tanatos, enquanto reunião tensional de não-esquecimento/desvelamento
e esquecimento/velamento, daí o tom noturno que o poema A máquina do mundo assume quando
se refere ao “sentimento de morte, que floresce / no caule da existência mais gloriosa”. É a
memória que possibilita a ligação entre os domínios do invisível e do visível, do ocultamento e da
presença. Mnemósine gera as forças do canto, as Musas, cuja ação presentificadora traz à
presença a totalidade do que se desvela e do que não se desvela. A-létheia é a ação da memória
enquanto não-esquecimento, desvelamento e ao mesmo tempo enquanto o próprio velamento
(léthe).
Mnemósine e Zeus têm como filhas as Musas. Musas e Moira partilham a ação de memória
dinamizando o movimento de eclosão da verdade do ser:
As Musas trazem à luz e presentificam o que é, recolhendo-o por força de Memória e
redimindo-o das trevas obliviais do Não-Ser, - mas as Musas também presidem ao
Esquecimento e impõem-no, quando assim querem. As Moirai definem e circunscrevem
o ser (i.e. o nascimento-natureza) de cada deus e por isso mesmo impõem a cada deus
que ele não seja o que ele não é e não pode ser. Há, portanto, um paralelismo entre a
função das Musas e das Moirai. (TORRANO: 1981. p. 98)
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Memória, morte e destino, tomados nas imagens-questões de Mnemósine, Tanatos e Moira,
fazem eclodir o caráter divino de mundo e o devolvem à dimensão do sagrado, desse modo “cada
deus, como plenitude e sentido absolutos, irrompe dramaticamente e comunica à vida humana
uma plenitude de sentido – benéfica ou terrível, que traz assombro e a experienciação do sublime
e do horror.”. (TORRANO: 1981. p. 96).
Os deuses, como doação do sagrado, irrompem sob a jurisdição da Moira, como seu próprio
constituinte, seu quinhão partilhado. A Moira anuncia o destino humano como limite e não-limite
na medida em que cada um só pode ser o que é, mas o que ele é se oculta no não-ser. O impasse
humano resulta do fato de que ele só pode ser o que é e não pode ser o que não é, mas como sabê-
los se a essência de seu destino é o ainda não-desvelado?
Da tensão memória e Moira é que eclode mundo. Ao homem pertence o caminhar entre
memória e destino, essa é a grande questão, o mistério em que desde o seu nascimento ele já está
imerso.
É, em última instância, pela memória, que o ser humano se configura como um ser
passível de constituir mundo, ou melhor, mundos, na medida em que é pela memória que
se estabelece a possibilidade da vigência da unidade. A memória é um modo
privilegiado de constituição da unidade e por isso, um modo privilegiado de
consolidação de toda a possibilidade de relacionamento entre o que foi o que é e o que
será. Desse modo, é pela memória que o caos pode se converter em cosmos. (JARDIM:
2005, p. 124.)
Mundo na mitologia grega surge do e no canto das Musas. As Musas manifestam as forças
ontofânicas do cantar e no seu canto desvelam o destino humano. Ao desvelar o destino humano,
o cantar das Musas coincide com a a-létheia. A diferença entre a sabedoria cantada pelas Musas e
o saber da ciência é que, no desencobrimento do canto das Musas, mantém-se o coberto do
domínio da Moira. O canto é o embate alethopoético entre velamento e desvelamento do destino
historial do homem. Esse lance do meio do caminho, onde o que o homem é se desvela e vela no
abrir-se do próprio caminhar como doação do ainda-não-trilhado, o não-caminho que constitui o
sendo de cada homem. O sendo é o ser se dando e doando no mundo. O ser não é sujeito, nem
objeto, nem a complementaridade destes. O que ser é se dá no destinar-se e o destinar-se só é
possível quando mundo eclode. A eclosão de mundo é que possibilita o sendo do ser. Quando
mundo eclode o homem acontece como sendo histórico, pois seu destino é trilhado e o sentido de
ser se plenifica como ser-no-mundo. Ser se dá na e como travessia.
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O movimento histórico do homem como ser-no-mundo se desdobra no poema Memória, de
Drummond. Abramo-nos à sua ausculta:
Amar o perdido
deixa confundido
este coração.
Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.
As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.
Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.
(ANDRADE: 2007, p.252)
Quatro movimentos se desdobram no referido poema em tensão com a memória, a saber: o
amor, o nada, o sensível e finitude e permanência.
1.3.3 – Memória e amor
O poema Memória é divido em quatro movimentos que coincidem com o número de
estrofes do mesmo. Os movimentos do poema se parecem com aforismos como desdobramentos
da memória. O primeiro nos diz: “Amar o perdido / deixa confundido / este coração.”. Aqui se
tem a dobra da memória com amor. Memória é “Amar o perdido”. Amar é a ação mais profunda
da qual o ser humano é capaz e que permeia toda a vida e existência humanas; Implica renúncia,
doação, entrega e paixão. Não amar é morrer. Perdido é comumente aquilo do qual se perdeu a
posse, o que se deixou escapar ou esqueceu. Memória é amar o que escapa, o que não se tem
posse, o que se esqueceu. Esquecer aqui não tem o sentido do não-lembrado, mas do que
furtivamente mergulhou no velamento, do que pulsa nas entranhas do não-saber. Este amor ao
perdido deixa confundido o coração. Confundido pode-se ligar facilmente ao vocábulo confusão,
designando o que está confuso. Entretanto, um outro sentido se nos assoma, confundido é
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também o que se fundiu-com, foi ligado estreitamente, além disso possui igualmente o sentido de
maravilhado ou assombrado. Assim, confundido é o que foi tomado por algo com o qual se ligou
intimamente. Coração é a imagem-questão do sentimento, figurando como a parte central ou mais
profunda do ser, seu âmago. Amar o perdido confunde o coração, isto é, une intimamente o amor
ao que se deixa escapar, o perdido, o que se dá (-dido/dado) furtivamente no entre-caminho
(per-).
1.3.4 – Memória e nada
“Nada pode o olvido / contra o sem sentido / apelo do Não” enuncia o segundo movimento
da memória. Olvidar fala de perder a memória de algo ou este não (poder) vir à lembrança de
alguém. Os versos também podem ser organizados do seguinte modo: “O olvido pode nada
contra o sem sentido apelo do Não”. Nesse caso, ao dizer que o “olvido pode nada”, este deve ser
entendido como o nada criativo, não como nada nadificador. Assim, o nada não nos remete ao
niilismo, nem ao pessimismo nem ao sentido de coisa nenhuma, como geralmente se pensa, mas
ao véu do ser: “O nada é a possibilitação da revelação do ente enquanto tal para o ser-aí
humano.” (HEIDEGGER: 1969a, p. 35). O nada é a possibilidade do ente ser o que ele é. O nada
é o não-ser, o vazio, não como negação do ser, mas como o seu desconhecido, imerso no
mistério: “O nada enquanto o outro do ente é o véu do ser. No ser já todo o destino do ente
chegou originariamente à sua plenitude.” (HEIDEGGER: 1969b, p. 58). O nada é a possibilidade
essencial de todo o possível vir à presença e se plenificar; é o guarda do destino humano como
vir-a-ser e também como não-deixar-de-ser; é o esquecimento ou velamento originário como
condição de possibilidade de toda revelação. Tudo o que é e existe é uma doação desse nada e
para ele tende a retornar. Ele se revela na angústia diante da finitude facultando ao homem a
espera do inesperado, da revelação do destino humano. É o mesmo que Guimarães Rosa anuncia
quando diz que: “Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo” (ROSA: 1975.
p.71). O que parece um paradoxo é a essência da própria vida. O que quer dizer “nada acontece”?
Ora, se nada é coisa nenhuma como ele acontece? O nada é a condição de possibilidade de todo e
qualquer acontecimento, e este só é possível por ser uma doação do nada. O que acontece sempre
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acontece no nada, no vazio, ainda que como um mistério invisível aos olhos. Caso contrário, não
poderia acontecer.
Mas o que é esse “ sem sentido apelo do Não”? O “sem sentido apelo do Não” é o não-
esquecimento. Dizer que “Nada pode o olvido / contra o sem sentido / apelo do Não” é o mesmo
que dizer que o esquecimento só é enquanto tal e tem sentido estando em tensão com o não-
esquecimento e vice-versa. O pensamento comum os vê na oposição radical como ameaça mortal
de um contra o outro, entretanto, o nada como esquecimento é a abertura para o “sem sentido
apelo do Não” como não-esquecimento instaurador. Essa tensão é memória.
1.3.5 – Memória e o sensível
O terceiro movimento assinala que “As coisas tangíveis / tornam-se insensíveis / à palma da
mão.”. À superfície dos versos, o leitor pode ser de imediato levado a pensar em que se está
criticando a concretude das “coisas tangíveis” e talvez até levar a memória para o âmbito do
abstrato como uma forma de permanência e conservação da sensibilidade da experienciação
registrada. Porém, podem-se pensar os versos de outro modo. Ordinariamente, os versos “As
coisas tangíveis / tornam-se insensíveis / à palma da mão.” são possíveis de serem lidos do
seguinte modo: As coisas tangíveis têm sido tornadas insensíveis à palma da mão. Esse sentido é
coerente tanto com a sintaxe poética dos versos quanto com a compreensão geral do texto. As
coisas não podem tornar a si próprias insensíveis, antes são tornadas. Elas estão numa posição
passiva. Quem as torna insensíveis? O próprio homem.
Há nos versos também um paradoxo gerado pela ambivalência da palavra insensível.
Insensível significa usualmente o que é desprovido de sensibilidade física, não reage a estímulos
físicos ou não pode ser sentido ou percebido, também faz referência ao que é indiferente.
Insensível é o que está fora do âmbito do sensível. Nesse caso, é necessário pensar mais
radicalmente a palavra sensível, que pode figurar tanto como uma referência tanto ao que possui
sensibilidade quanto ao que se percebe como real imediato ou material, também no âmbito do
visível, evidente ou manifesto, podendo ser percebido pelos sentidos, assim, sensível seria
correlato à tangível. Entretanto, podemos compreender também o sentido de sensível como o que
se manifesta e está acessível.
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“As coisas tangíveis / tornam-se insensíveis / à palma da mão.”, quer dizer que deixam de
ser manifestas e acessíveis como são quando estão “à palma da mão”. Estar “à palma da mão” é o
que se dispõe sob o domínio do homem que é exercido, sobretudo, pela razão. O que está sob a
palma da mão pode ser manipulado pelo homem e usado como um instrumento para o que ele
desejar. Nesse sentido, memória deixa de vigorar no seu próprio e se expõe como o que possui
funcionalidade e instrumentalidade e que pode ser usado quando o homem quiser e para o que
ele quiser. Deixando de vigorar no seu próprio, memória é apenas uma capacidade humana como
lembrança, vigendo apenas no âmbito do não-esquecimento.
1.3.6 – Memória: finitude e permanência
O último movimento, porém, pontua o seguinte: “Mas as coisas findas, / muito mais que
lindas, / essas ficarão.”. Os versos começam com uma conjunção adversativa, que expressa o
contrário do que foi dito anteriormente, como refutação do efeito da ação humana sobre a
memória: “Mas as coisas findas,”. A expressão “Coisas findas” coloca uma das questões mais
importante para o homem: a finitude humana. A finitude (re-) coloca a questão do limite e traz à
tona o caráter transitório do estado das coisas.
A memória nos coloca diante da tensão entre o não-ser, tanto como o que já foi como o que
ainda não é, e o ser, abrindo a possibilidade de compreensão da finitude humana e, ainda, a
tensão entre vida vivida e vida experienciada. A memória marca a travessia humana entre vida e
morte. De todos os viventes apenas ao homem é possibilitado a compreensão da finitude, por isso
só ele morre, os demais seres perecem, essa compreensão vigora no âmbito da memória. Pensar a
finitude é pensar mais radicalmente a vida humana como experienciação de um destino, quer
dizer do ser e do ser-com. O homem não vive sozinho, isso é sabido e factualmente comprovado,
ele vive-com, se relacionando com tudo e todos que o cercam. A experienciação da finitude dos
que com ele habitam o mundo só é possível se dar na e pela memória.
Ao homem também pode-se abrir um espaço ontológico de reflexão sobre a vida que é e a
que não é, ou seja, o que se manifesta e o que se vela. A vida vivida é a experienciação humana
cotidiana, lançado no aberto de mundo que ele habita, mas nem sempre se dando conta disso. A
cotidianidade da vida, muitas vezes, furta ao homem a compreensão de seu estar-no-mundo e ele
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ignora o que é e como é. Pensar o limite como finitude é deixar ser tomado pelo sentido da vida e
da morte e reconhecer-se como ser-do-entre. A compreensão ontológica do limite da existência
faz com que o homem seja tomado pelo sentido de sua própria vida e, assim, lhe abre a
possibilidade de apropriar-se do que lhe é próprio. A morte, desse modo, não é um fim, mas a
travessia ao não-ser, ao nada, ao vazio, como vir-a-ser do destino. A essa compreensão
chamamos vida experienciada, ela é poeticamente evocada por Drummond no poema Ausência:
Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.
(ANDRADE: 2007, p. 301).
Vivenciar a ausência é fazer a experienciação fundamental da presença. Ausência, do latim
absentìa, não é falta, como nos diz o poeta, mas a plenitude da presença que se manifesta no que
se ausenta. A ausência é um estar em si mesmo e também no outro, como memória recolhedora e
acolhedora do que se retrai e manifesta; é o inverso-afastamento que, quando mais se distancia ou
oculta, mais se presentifica e manifesta. Memória é essa experienciação fundamental da tensão
entre ausência/finitude e presença/permanência como destinação humana do homem em
travessia, ou seja, que já não é o que era, mas ainda não é o que será.
Todo o caminhar humano como destinação vigora na e pela memória. Esta é a possibilidade
de revelação do ser vigorando no estar lançado no aberto do sentido como um movimento da
memória. A imagem-questão do caminheiro não se restringe a um poema, pode figurar nele, mas
é o mesmo ser humano que se move todos os dias nas questões aqui apresentadas e disto
consciente ou não. Lançar-se no aberto do sentido equivale a nascer de novo, originar-se. Destino
é origem como novo nascimento, batismo, iniciação numa nova dimensão do real, a dimensão do
entre, a medida de todas as medidas, ou seja, da memória – a máquina da vida.
68
1.4 - Pro-cura: a arte da vida
A palavra procura nomeia as ações de tentar encontrar ou conseguir algo, ir atrás e
esforçar-se para alcançar, significa também, por extensão, investigar, pesquisar ou buscar.
Entretanto, se atentarmos para a composição da palavra, o prefixo “pro-” dá o sentido de ir em
direção a, ser atraído por, ir ao encontro de, colocar-se diante de e ainda o movimento de ir para
a frente de.
Cura, do latim, quer dizer literalmente cuidado na acepção de guarda, vigia, trato,
tratamento, ocupação e preocupação, o que está encarregado de alguma coisa. Segundo Ernout e
Meillet (1960), cura formou-se com a intermediação de um adjetivo curius, donde curiosìtas, no
sentido de empregar seus cuidados e diligência em buscar alguma coisa, ocupar-se
cuidadosamente de uma coisa, procura cuidadosa, empenho de saber, originando também
accurátus, assinalando o que é feito com cuidado e diligência.
Uma abertura maior para pensar a palavra cura se deu a partir das leituras do mito de cura,
dentre as quais, uma se destaca, a de Martin Heidegger na obra Ser e tempo, na qual diversas
questões dialogam com o sentido de cura. O significado semântico da palavra nos serve apenas
como ponto de partida para pensá-la, entretanto, cura nos diz algo ainda mais profundo quando
pensado ontologicamente.
Por isso, no mito, Cura é algo muito mais profundo do que os simples significados
semânticos da palavra cura. Em latim, cura diz cuidado, cuidar. Em torno de Cura
acontece o próprio constituir-se e plenificar-se ontológico do ser humano. Neste sentido,
qualquer determinação de gênero ou cultura identitária, para a ontologia do ser humano,
é reducionista. Identidade não passa de conceito, não é questão, porque a realidade e
toda cultura não cessa de mudar, ser diferente. Trabalhar com um conceito de identidade
é paralisar a realidade e qualquer cultura. Só o vigorar de todo acontecer pode nos lançar
nas questões. A Cura que vigora em cada ser humano, sempre de uma maneira diferente,
porque originária, não se reduz, seja ao feminino, seja ao masculino, seja a uma
identidade cultural. O que está em jogo no operar de Cura é sempre o destino de cada ser
humano. E este é absolutamente original para cada um. Não dá para reduzi-lo a nenhuma
classificação. Na regência de Cura se decide o destino do que cada um deve e consegue
realizar. Mas para isso, o ser humano, enquanto Cura, se defronta com questões
essenciais e originárias. É isso que passaremos agora a ver. (Castro: 2011, p. 227)
69
Cura é o cuidado como condição de possibilidade tanto da constituição quanto da
plenificação do ser humano. O sentido de cura não se limita a noção de masculino, feminino ou a
uma identidade cultural, antes, opera o destino humano.
O prefixo grego pro- nomeia a ação de pôr-se rumo a ou movimento em direção a. O pro-,
da pro-cura, é um movimentar-se em direção à cura, isso quer dizer ter cuidado ou cuidar da cura.
Cura é o cuidado do ser, do obrar da obra, em seu tender natural à plenificação e à realização. É
assegurar a liberdade enquanto deixar vigorar livremente o ser e o acontecer da verdade.
1.4.1 - Pro-curar: ver, pensar e caminhar
As quatro primeiras estrofes do poema A máquina do mundo radicam a questão da procura,
mais uma vez, voltemo-nos para elas:
E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco
se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas
lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,
A máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.
Podemos destacar três ações em torno da pro-cura: caminhar, ver e pensar.
Caminhar, caminho, caminheiro são palavras sempre retomadas neste trabalho. Caminhar é
atravessar enquanto o acontecer humano. É, no sentido aqui tratado, deixar-se tomar pelo
caminho e, ao mesmo tempo, inaugurá-lo como experienciação da caminhada. É atender ao apelo
e convocação do mistério e imergir no extraordinário cotidiano, ou seja, daquilo que eclode todos
os dias, no ordinário, como uma verdade/vereda desconhecida. Caminhar é colocar-se rumo à
procura de todas as procuras: a do destino humano.
70
Em todo caminhar a pro-cura se dá como expectativa de ver o ainda-não-visto, a visão
originária da vida do desabrochar da flor, da efemeridade da gota de orvalho, do que surge,
consuma e finda todos os dias, do espetáculo oblíquo da existência que nunca revela inteiramente
sua dinâmica, do inesperado em tudo o que se espera, da cor que dá origem a todas as cores,
enfim, do mistério da vida.
O pensamento é sempre um esforço por apreender o que já se nos foi dado, mas ainda não
conhecemos, não compreendemos, ou seja, o que ainda não-é dentro do horizonte do que já se
deu. Por esse motivo, o pensamento é um apelo do caminho e do ver, para caminhar e para ver o
que ainda não se (en-)caminhou e não se viu. Pensar é caminhar-ver.
No poema A máquina do mundo, o caminheiro faz a acolhida de caminhar, ver e pensar
como pro-cura do sentido da vida, assim, pro-cura é um dos movimentos da cura como o apelo
mais profundo ao ser humano, como se pode notar num poema de Drummond intitulado
Lembrete:
Se procurar bem, você acaba encontrando
não a explicação (duvidosa) da vida,
mas a poesia (inexplicável) da vida.
(ANDRADE: 2007, p. 1256)
As principais palavras no poema acima são procura e encontro, elas regem todo o acontecer
da poesia. Há uma tensão entre elas: o “resultado” de procurar bem é encontrar. A procura é a
pro-cura de um encontro e, ao mesmo tempo, é movida pelo apelo. O que se pode encontrar, já
sabemos, é “a poesia (inexplicável) da vida”. Para encontrá-la é necessário pro-cura, mas não
qualquer procura. Deve-se “procurar bem”. “Bem” nos chama a atenção para o modo de pro-
curar. É uma forma de nos levar a atentar com maior profundidade para o sentido da pro-cura.
1.4.2 - Pro-cura, encontro e des-contro
Curar e cuidar possuem o mesmo radical e a mesma etimologia, ambos assinalam o sentido
de pensar. Pensar é cura/cuidado. Mas cura de quê? Cuidado de quê? Pensar é curar/cuidar da
linguagem. A pro-cura é um modo de ser-pensar, entretanto, não de forma aleatória, antes se
71
move no e pelo apelo de um encontro como uma união heterogênea, ou seja, que une
resguardando a diferença do que se une. Encontro é o âmbito onde as coisas se medem a si
mesmas, a fim de conservar o que lhes é próprio. Nele não se anulam as diferenças, pelo
contrário, elas se afirmam na sua confluência mais íntima. A com-fluência, no sentido em que
tratamos, não é uma homogeneização, mas o núcleo central de uma esfera de ação ou de
pensamento em que coisas singulares tendem uma para outra conservando, porém, suas
diferenças, onde coisas distintas fluem conjuntamente. O tender mútuo que se vê no encontro é
um mover em que vigora a tensão da diferença. Esta avizinha as coisas no mútuo tenderem.
O que se avizinha tensionalmente segundo o apelo anunciado no poema de Drummond? O
pensamento e a poesia. O pensamento adquire nesse dizer uma dimensão estranha à razão: “Se
procurar bem, você acaba encontrando/ não a explicação (duvidosa) da vida,/ mas a poesia
(inexplicável) da vida.”. O pensamento que ora se anuncia é um pensamento que se lança não a
uma “explicação (duvidosa) da vida”, mas à “poesia (inexplicável) da vida”. Será que a poesia
possui mais sentido que a explicação?
A poesia é o tour de force em que vigora poeticamente a verdade, por isso ela conserva a
tensão entre fala-escuta/silêncio assegurando uma mútua referência, como se todos os poemas
fossem modos de ser de um único poema. Por esse motivo pro-cura será sempre uma questão
latente nas obras poéticas do verso e da prosa.
Noutro poema, Drummond enuncia novamente a pro-cura, seu título é A palavra mágica e
diz o seguinte:
Certa palavra dorme na sombra
de um livro raro.
Como desencantá-la?
É a senha da vida
a senha do mundo.
Vou procurá-la.
Vou procurá-la a vida inteira
no mundo todo.
Se tarda o encontro, se não a encontro,
não desanimo,
procuro sempre.
Procuro sempre, e minha procura
ficará sendo
minha palavra.
(ANDRADE: 2007, p. 854)
72
A primeira vista, poderíamos dizer que o que se procura é essa “certa palavra” que dorme
encantada “na sombra de um livro raro”, mas o que chama atenção e apela à procura não é o
lugar onde está essa palavra, na verdade, ele já foi indicado: “na sombra de um livro raro”. Note-
se que palavra não dorme à sombra, mas na sombra. Vale dizer que ela repousa na sombra, na
escuridão, no silêncio, no vazio. O que interessa saber é “Como desencantá-la?”. É isso que
intriga, que apela, que convoca. Esse como é a “senha da vida”, a “senha do mundo”. O como não
é um modo de agir, mas a vigência mesma do agir: a verdade como manifestação e realização.
Toda procura e encontro giram em torno desse como. Esse como é o que traz a palavra da
sombra, do silêncio e é também como ela se dá à vida, ao mundo. É o que se procura. É o que se
deseja encontrar. A saber, o sentido do agir, o ser das coisas eclodindo como sentido.
Da tensão entre a iminência da procura e da tardança do encontro é que o silêncio se faz
mais presente e a linguagem se deixa mostrar em sua essência e, nela, a vizinhança entre
pensamento e poesia. A pro-cura não se move pelo encontro. O encontro não é a “finalidade” da
procura: “Se tarda o encontro, se não a encontro, / não desanimo, / procuro sempre.”. O encontro
é o anverso da procura e também onde ela se move. Só se procura porque, de algum modo, já
houve um encontro. Procurar já é de algum modo encontrar. Na linguagem que se manifesta vem
à tona poesia e pensamento, ambos tem seu encontro assinalado na palavra: “Procuro sempre, e
minha procura / ficará sendo / minha palavra.”. A palavra acolhida neste poema não se refere a
um signo, mas de algo que recebe em si a vigência da dobra poesia e pensamento.
A dobra tensional resguarda em si a essência da verdade no sentido em que os gregos a
nomearam: a-letheia. A palavra em que vige essa dobra não pode ser classificada como um signo
linguístico que se expõe como representação material de um conceito abstrato, mas faz-se
questão, em seu sentido mais amplo. Quando essa palavra vem à linguagem, ela se torna uma
imagem-questão. A imagem-questão manifesta sentido ao passo em que se revela como
linguagem essencial, que é aquela que resguarda a dobra tensional entre procura e encontro, entre
poesia e pensamento, entre fala e silêncio, entre verdade e não-verdade, entre logos e physis,
entre o ser e o não-ser e tudo o mais que, desse modo, vem à linguagem. A procura é a pro-cura
do sentido, da senha da vida. Tal pro-cura se revela na palavra, esta é também uma pro-cura, um
modo de ser da verdade, como diz Guimarães Rosa em Grande sertão: veredas: “E o que era
para ser. O que é pra ser – são as palavras” (ROSA: 2001, p.64). Palavra é um modo de
desencobrimento que vigora na pro-cura.
73
1.4.3 – O caminho da pro-cura
A procura não é um resultado da decisão do sujeito. Não é o sujeito que cria a procura, mas
é ela que o requer, envolve, constitui e o destina. O ser humano se move e encontra sentido para
sua própria existência a partir da e na pro-cura infinda do próprio sentido do que é. Na pro-cura
há e não-há um desvelamento do ser, ela é a tardança em obra, ou seja, é um encaminhar-se para
algo que de certo modo já vigora em nós mesmos. Poeticamente entendido, encaminhar é mostrar
o caminho inédito e inaudito, assim, encaminhar poeticamente é pôr o caminho de modo
inaugural. Na poética, a procura inaugura um caminho cujo caminhar/procurar marca seu vigor
na palavra. O caminho/procura, na poesia, possui caráter do que se deixa alcançar e ao mesmo
tempo é fugidio. Caminho é figuração e vazio. A palavra é o caminho experiencial anunciado na
poética, ela também se manifesta e se oculta como, ao mesmo tempo, fala e silêncio. Caminho,
enquanto figuração e vazio, e palavra, enquanto fala e silêncio, resguardam em si a tensão
essencial da linguagem. Essa tensão não apenas está disponível, mas é o próprio entre, que une
conservando a diferença do que compõe palavra e caminho. Originariamente entendido, palavra e
caminho, na verdade são entre-palavra e entre-caminho. O entre possui movimento próprio e
permite seu contínuo. Pensar uma palavra ou um caminho poeticamente é pensar nessa abertura
como pro-cura. Enquanto pro-cura, palavra e caminho se dão como questão. A palavra questão
tem sua origem no latim quaerere, que significa: “empenhar-se na busca e procura do que não se
tem, por já se ter e para se vir a ter.” (LEAO: 1977, p. 44). Pro-cura e questão compõem o circulo
do pensamento que procura no pensado o ainda não pensado. A pro-cura encontra força e
vitalidade na tensão entre o que não se tem e o que já se tem. Nesse movimento é que a poesia e
pensamento acontecem como caminho.
Caminhar é lançar-se rumo à cura, é pro-cura. Caminho é o descortinar de um horizonte
que quanto mais palmilhado tanto mais retraído. Caminho é o misterioso destinar-se humano no
drama existencial da vida e enquanto caminhar é pro-cura do sentido. Assim o homem caminha
rumo ao desconhecido que o apela íntima e profundamete, a morte é o umbral de transcenção de
todo campo de visão permitido pelo horizonte, depois dela, é mergulho assombroso no mistério
inefável do infinito: o silencio abissal da vida.
74
1.4.4 – Pro-cura: arte e vida
Que relação pode haver entre essa procura, a arte e a vida?
Procura poética, poderíamos assim assinalar um dos sentidos para o que se nomeia arte.
Arte é uma pro-cura poética. Não se quer com isso definir o que seja arte, mas trazer à linguagem
um dos modos como ela se dá: um dos modos como a pro-cura poética se manifesta é arte. A
procura poética se dá na linguagem e, ao mesmo tempo, a linguagem acontece como procura
poética. Um dos modos de manifestação da linguagem como verdade é a arte.
A arte é o lugar privilegiado do acontecimento do real, por isso a poesia nos remete sempre
à poiesis como tensão originária da manifestação da verdade/realidade como velamento e
desvelamento da realidade. A vida é o movimento originário do ser. O ser se move e movendo
dá-se vida. Isto não quer dizer que vida seja produto ou derivado, antes a eclosão ou manifestação
do que está vivo, ou seja, do que se manifesta e permanece. É possível viver e não fazer a
experienciação vital, o que são coisas diferentes, mas interativamente recíprocas. Chamamos
experienciação vital o vigor do sentido do que é vida e do movimento que é viver. Quando o que
é vida e viver se colocam diante do homem, como questões, convocando-o a pensá-los em seus
entornos e remissões dá-se a experienciação vital como pro-cura do sentido de vida e viver, então
surge arte e pensamento. Todo pensamento e arte, até mesmo as consideradas abstratas, surgem
da vida e para ela se voltam. Não há pensamento e arte fora da vida. A experienciação vital só
pode ser feita pelo homem, pois só a ele é facultado compreender o que é vida e viver. Há vários
tipos de procura: procura por felicidade, realização, sucesso, saúde, relacionamentos,
conhecimentos etc. Entretanto, a experienciação vital permite que o homem, vivendo, faça da
vida uma pro-cura, e não uma procura por. Na procura por algo, pressupõe-se que esse algo seja o
que falta ao homem para realizá-lo como homem. O que de fato o realiza não é a procura do que
externamente lhe falta, mas do desconhecido nele mesmo e por isso lhe falta, no sentido de ainda
não se ter apossado do que lhe é próprio. A pro-cura é a arte da vida como experienciação vital, a
mais profunda aprendizagem que se dá no embate entre poesia e pensamento “no meio do
caminho” da existência humana como apropriação do que é próprio.
O embate entre poesia e pensamento se move em círculos, pois seu papel é percorrer um
caminho sem abandoná-lo. Pensar poeticamente é habitar o caminho. Toda experienciação
75
humana acontece “no meio do caminho”. O meio do caminho é sempre o lugar privilegiado de
toda sabedoria e todo aprendizagem. O meio do caminho é um convite a um “mergulho” na
própria vida para que se a experiencie. Experienciação e aprendizagem da vida, e não conceitos,
eclodem na poética. É comum as correntes críticas separarem o sentido do suporte da obra, de
modo que a obra seja identificada como uma alegoria e se torne um símbolo que representa o
real.
A visão da poética não faz coro com tais definições da arte, como geralmente se pensa. O
foco de visão em que geralmente expõem a poética impõe uma delimitação racionalista que
atravanca sua fala. A poesia não requer, antes repudia toda e qualquer metodologia exterior a ela.
Toda grande obra de arte já possui o seu método interpretativo implícito e imanente em si mesma.
Ela é autotélica, ou seja, o método interpretativo de uma obra é o caminho que ela faz para
descortinar a verdade do real em sua fala e conduzir a si própria à consumação e plenificação. A
obra é a linguagem do real. É a fala da vida, da realidade. Como fala da realidade, a obra não
pode ser desta separada. A fala da realidade não é uma fala qualquer, mas a realidade se doando
como linguagem e verdade. Assim, a poética põe em evidencia primordialmente o vigor das
palavras como a pro-cura de todas as procuras, a procura do sentido.
Insistimos nessa questão porque a palavra é comumente determinada por conceitos e
estruturada nos esquemas lógicos da proposição estabelecida pela sintaxe filosófico-metafísica,
sendo considerada signo-verbal e esvaziada de sentido e dinâmica, mas plena em conceitos e
significados que paralisam seu movimento. É preciso curar as palavras da lógica racionalista. No
esquema lógico-racional, a tensão palavra/pensamento sofre uma paralisação e esvaziamento da
condição pensante para dar lugar a uma institucionalização racional do pensamento e da palavra,
tornando-se convencional e automatizada. A poética põe a tensão palavra/pensamento em questão
e o vigor da linguagem se manifesta mais aberto ao ser, à arte e ao real que à razão. A razão
estabelece uma classificação conceitual das coisas, então, o real passa a ser algo além de racional,
racionalizável. O conceito se interpõe entre o homem e o real como concepção e enunciação
sobre o real, então o sentido surge como uma representação deste. Na poética, as palavras
assumem uma dimensão pensante e não mais como um referencial de representação entre
significante e significado, de modo que haja um livre encontro entre o homem e o real. O livre
encontro não se refere a um aspecto sensorial, mas a um acontecer no homem que se dá enquanto
verdade, como eclosão de mundo e sentido, ou seja, o livre encontro acontece à medida que a arte
76
se afasta da representação e deixa a realidade eclodir como linguagem-vida. A arte passa a ser a
realidade se manifestando como linguagem e não apenas por meio dela. Assim, a arte se torna
“questão” e a tensão poiesis e pensamento se revela superando a relação sujeito e objeto, matéria
e forma.
1.4.5 – Vida: a arte da pro-cura
Voltemos ao poema A palavra mágica, sua fala nos diz: Certa palavra dorme na sombra /
de um livro raro. Dormir, do latim dormìo, possui a acepção de passar o tempo dormindo, no
sentido de que o tempo transcorre enquanto se dorme; possui também a acepção de estar morto,
descansar na sepultura, estar desocupado ou ocioso, nada fazer. O radical dorm- é um antigo
usual panromânico cujo nome correspondente é somnus, sono. Somnus é correspondente do grego
enúpnion: significando sonho e/ou visão, derivado de húpnos, sonho, e hypnos, sono. Hypnos é
uma figura mítica, filho de Érebo e da Noite, irmão gêmeo de Tanatos (a Morte), deus do Sono,
que desposou Cáris Pasitéia. Amigo de Apolo e das Musas, passeia pela terra fornecendo aos
humanos, repouso e sonhos. O poema diz: “Certa palavra dorme na sombra / de um livro raro”.
A palavra, aqui destacada, não é qualquer palavra, tanto que se diz “Certa palavra”. O elemento
“certa” funciona como um determinante do vocábulo palavra, revelando uma especificidade. Essa
palavra “dorme na sombra de um livro raro”. A sombra é o seu lugar de repouso. Por que
repousar na sombra? O que é a sombra para que nos chame a atenção? A sombra é o que se
“opõe” à luz, ou ainda, é a ausência de luz. A sombra é o outro lado da clareira. Sombra é o que
se opõe à clareira. Entendemos opor no sentido de pôr-se diante de, apresentar-se ante a ou a
presença de. Sombra também é a imagem do desconhecido, do insondável, da escusa, do que se
retira como claridade e presentifica como trevas. Sombra é o que se o-põe à clareira, porém se
apresenta diante dela como convite. A oposição é a tensão que preserva a identidade e a diferença
entre clareira e sombra. A tensão entre ambas as realidades é o eixo onde vige toda possibilidade
de sentido, é o espaço de todos os espaços assim como o tempo de todos os tempos, pois é o
espaço-tempo originário que assinala tudo o que se pode chamar de acontecimento. A clareira e a
sombra são co-pertencentes, um é a condição do outro existir, sem, contudo a manifestação de
um implicar na extinção do outro ou numa simples complementaridade. Como manifestar e
77
ocultar, luz e sombra se dinamizam no acontecer de todas as coisas e essa oposição/tensão faz
com que um plenifique o outro. É na sombra que o sentido da palavra se esconde, repousa,
dorme.
Hypnos é o irmão gêmeo de Tanatos, a Morte, ele é o entre vida e morte. Quem é envolvido
pelos encantos de Hypnos não está de todo na vida, mas também não está morto. O estado de
Hypnos, o Sono, é o manto iniciático que faz sempre a distinção do que era e do que ainda não é.
No sono, o ser humano é tomado sob a tutela da Noite, por ela envolvido e transmutado. O sono é
o recôndito e o retiro que retirando a vigília, concede. É o sono que nos insere no limiar entre a
vida e a morte e, ao mesmo tempo, nos revigora. O sono eterno é a morte, segundo o que
comumente se pensa. É o sono que nos faz vislumbrar o desconhecido: Tanatos, a Morte é,
também, o que nos faz apegar à vida. “Certa palavra dorme na sombra / de um livro raro”
encantada.
A fala do poema inquire: “Como desencantá-la?”, logo após, apresenta-nos outra verdade, o
como do desencantá-la “É a senha da vida / a senha do mundo”. A palavra só pode ser
desencantada se mergulharmos e formos ao seu encontro. O “como” que desencadeia a ação é o
que se nos apresenta como mistério. Por isso a pergunta tão pertinente: “Como desencantá-la?”. É
preciso, primeiro, encontrar esse “como”, pois ele é a “chave”, é o acesso à “senha da vida / a
senha do mundo”, ao sentido resguardado na palavra. Mas a própria palavra também está
abrigada em um lugar, ela repousa na sombra, isso quer dizer que ela está salvaguardada pela
sombra, mas, apesar disso, mantém-se disponível. Já vimos que a proposta para esse encontro
com o sentido da palavra é a pro-cura, pro-posta pela fala poética. Essa procura, porém, não é
qualquer procura, antes uma procura que se realiza como entrega. Toda procura, por natureza, se
presta a um receber como recompensa de seu esforço. A procura poeticamente enunciada por
Drummond se efetiva como entrega. A procura que se processualiza como entrega é uma escuta.
A escuta é a procura que se destina à entrega de modo que haja um encontro originário com a
essência do que se procura e então o sentido possa aparecer. A arte, assim entendida, põe em
evidência - pro-cura - o acontecer do sentido na linguagem. Este vem ao encontro do homem
como e através da linguagem, por isso o centro e o foco da poética é a linguagem. O sentido da
realidade é o real acontecendo como sentido. O acontecer da realidade como sentido é o
acontecer da verdade da vida. A escuta da vida leva a movermo-nos entre fala e silêncio na pro-
cura pelo sentido.
78
Cada palavra essencialmente poética é um dizer do mundo que ela mesma abriga e, na
palavra, esse mundo perpassa o dizer poético e se instala como uma imagem-questão. Essa
imagem-questão é uma doação da poiesis que pro-voca o pensamento, então, a imagem como
questão é o lugar-entre que, ao mesmo tempo, une e tensiona poesia e pensamento. A obra é o
lugar de abertura que deixa a realidade vir em todo seu vigor realizável como experienciação da
vida.
Na obra, a coisa eclode em sua coisalidade. Nesse emergir da coisa em sua coisalidade
acontece o desvelamento de seu ser-coisa. Esse desvelamento foi nomeado pelos pensadores
originários gregos aletheia, cujo sentido se nos apresenta por meio da palavra verdade. Verdade
não é apenas uma palavra, na acepção de signo-linguístico, nela abriga-se um acontecer inaugural
de todas as coisas. As coisas são, no sentido aqui trabalhado, a partir desse acontecimento, por
isso Heidegger diz que “na obra está em obra um acontecer da verdade” (Heidegger: 2010, § 53).
A primeira estrofe do poema A palavra mágica termina com o seguinte dizer: “Vou
procurá-la.” Este verso é um dito sábio, pois enuncia um mover em busca de algo maior, pois em
toda procura poeticamente empreendida se dá aprendizagem. A procura poética é uma abertura
para a ausculta do silêncio. “Vou procurá-la” é correlato de vou vivê-la, ou seja, fazer da vida,
arte, e da arte, experienciação vital da pro-cura.
1.4.6 – Vida e morte
A maior de todas as procuras é aquela que coloca o homem diante da morte. A obra poética
de Drummond é plena da tensão vida e morte, muitos textos a trabalham de um modo ora
explícito ora velado. Um poema muito conhecido é Os mortos de sobrecasaca, ele é um apelo
poético muito forte a se pensar a morte em seu sentido ontopoético. Diz o texto:
Os Mortos de Sobrecasaca
Havia a um canto da sala um álbum de fotografias intoleráveis,
alto de muitos metros e velho de infinitos minutos,
em que todos se debruçavam
na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca.
Um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferentes
e roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos retratos.
79
Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava
que rebentava daquelas páginas.
(ADRADE: 2007 p. 73)
A morte figura na imagem de um álbum de fotografias, que recebe o adjetivo de intolerável
e “alto de muitos metros e velho de infinitos minutos”, não se trata de proporções materiais, mas
voltadas para a dimensão perceptiva. O poema chama a atenção também para o fato de todos se
debruçarem sobre o álbum de fotografias “na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca”. Um
fato curioso é esse, o de os mortos estarem de sobrecasaca, que era um casaco que se abotoava até
a cintura e com abas que rodeavam o corpo, deixando pouco à mostra, próprio do vestuário
masculino, nas fotografias dão um tom grave aos mortos e à própria morte.
O poema acentua o fato de um verme principiar “a roer as sobrecasacas indiferentes” e
prossegue roendo “as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos retratos” numa referência
figurativa do tempo cronológico que a tudo “rói” e destrói.
O álbum de fotografias é uma imagem poética da lembrança de algo que passou, da
cristalização do tempo que transcorreu e não volta mais, somatiza tudo o que foi e nunca mais
será. Encampa plenamente o sentido da palavra defunto, o que morreu, do latim, defunctus, isto é,
cumpriu a vida e já não mais é. O que se expõe no álbum de fotografias é a representação
realidade do que aconteceu e se cristalizou preteritamente. É a presença da ausência e a simples
lembrança do que foi. O tempo é o agente principal da “gastação” da realidade, que a consome
cabalmente. A força do tempo cronológico encontra apenas uma barreira que a limita e não
permite roer: “o imortal soluço de vida que rebentava/ que rebentava daquelas páginas”.
O poema fala de duas potências antagônicas: vida e morte. Morte é comumente vista como
o fim, a interrupção definitiva ou cessação completa da vida ou da existência. É necessário aqui
distinguir os sentidos de existência e de vida biológica; esta é propriedade que caracteriza o ciclo
de evolução dos organismos do nascimento até a morte, aquela é, sinteticamente, o modo humano
de habitar o mundo, tanto no sentido cósmico quanto no de esfera de sentidos, interatividade e
realizações.
Morte seria a limitação máxima da vida, a solidão mais profunda, aonde se vai e onde
permanece só e donde não se pode retornar, a ausência de pulsação vital etc. Daí os sentidos
derivados como perder a vida, a existência, a força, o vigor, o viço, finar-se, falecer, expirar,
desaparecer, decair, declinar, deixar de ter existência, degradar-se, chegar ao fim de uma
80
trajetória, de um percurso, acabar, finalizar, extinguir-se, desaparecer da memória e cair no
esquecimento. Todos esses se relacionam de algum modo com a morte, mas não a definem
cabalmente, são modos de experienciações humanas da morte. A morte não simplesmente é o
passo após a vida, mas ela é interior à própria vida. A grande questão poética relacionada à morte
é a necessidade e a possibilidade de transpor seus umbrais em vida, quer dizer, fazer a
experienciação da morte vivendo, nesse sentido, viver seria não cessar de morrer e, assim,
encontrar a vida depois da vida como experienciação mais radical da morte. Por mais paradoxal
que pareça, é disso que fala o poema seguinte:
Vida depois da vida
A morte não
existe para os mortos.
Os mortos não
têm medo da morte desabrochada.
Os mortos
conquistam a vida, não
a lendária, mas
a propriamente dita
a que perdemos
ao nascer.
A sem nome
sem limites
sem rumo
(todos os rumos, simultâneos,
lhe servem)
completo estar-vivo no sem-fim
de possíveis
acoplados
A morte sabe disto
e cala
Só a morte é que sabe.
(ADRADE: 2007, p.741)
O título do poema de Drummond é “Vida depois da vida” e curiosamente trata da morte. A
morte é encarada não como o ponto final da vida, mas a vida além vida, ou seja, sua abissalidade
ou infinitude. O poema começa afirmando “A morte não / existe para os mortos”, o que a
primeira vista parece um paradoxo, pois corriqueiramente se pensa morte como uma propriedade
81
do morto e não do vivo, expressa exatamente o contrário. A experienciação da morte não é para o
morto, mas para o vivo, pois somente este pode pensá-la e senti-la. A morte é, ao mesmo tempo,
o limite de todo pensar e sentir, o mistério absoluto. Limite não é cessação, mas o convite a
vivência mais radical que o humano pode ter: viver no limite é fazer cotidianamente a
experienciação da morte como enfrentamento máximo da existência. Dessa experienciação faz
parte o medo. Medo e pavor ou temor geralmente são tomados como sinônimos. O radical latino
med- forma tanto os sentidos expressos pelas palavras medo e medicar, no sentido de ocupar-se
da cura, como de medir, ou seja, aferir medida, também meditar dentre outros. É importante
salientar que quando se faz uma leitura de uma palavra é preciso considerar sua etimologia,
entretanto esta nem sempre pode ter sua origem logicamente situada. Sobre o radical med-, por
exemplo, Benveniste diz:
Em período histórico, a raiz * med- designa noções muito diferentes: “governar”,
“pensar”, “cuidar”, “medir”. Não há como extrair sua significação original de uma
redução a um vago denominador comum, nem de uma aglomeração heteróclita das
significações históricas: ela pode se definir como “medida”, não de mensuração, mas de
moderação (lat. modus, modestus), capaz de assegurar ou restabelecer a ordem num
corpo doente (lat. medeor, “cuidar”, medicus), no universo (hom. Zeùs (Idḕthen) medéṑn
“Zeus moderador”), nos assuntos humanos, desde os mais graves, como a guerra, até os
mais cotidianos, como uma refeição. Enfim, o homem que “sabe os mḗdea” (hom.
mḗdea eidṓs) não é um pensador, um filósofo – é um desses “chefes e moderadores”
(hom. hḕgḗtores ḕdè médontes) que em qualquer circunstância sabem tomar as medidas
consagradas que se impõem. * Med-, portanto, pertence ao mesmo registro de ius e dikḕ:
é a regra estabelecida, não de justiça, mas de ordem, que o magistrado moderador tem a
função de formular: osco med-díss (cf. iu-dex). (BENVENISTE: 1995a., p. 125)
Medo é um choque no estado afetivo suscitado pela consciência de perigo iminente,
geralmente manifesta-se como temor, apreensão, preocupação e ansiedade diante do
desconhecido, no desejo de evitá-lo, afastando-o de si ou adiando-o. Medo é meditar no mistério,
por isso a sensação do medo nos inebria. O mistério é o desconhecido íntimo de nós mesmos, é o
que nos envolve invisivelmente. A meditação do mistério arrebata nossos sentidos e gera uma
sensação de angústia, pois é a aproximação mais radical do desconhecido, é quando este se torna
plenamente perceptível. A consciência do desconhecido e a iminência do mergulho neste é o
limiar do toda e qualquer experienciação humana com o realmente novo.
82
Morto vivendo
Aquele morreu amando.
Nem sentiu chegar a morte
quando à vida se abraçava
nem a morte o castigou.
Enquanto beijava o amor
a morte o foi transportando
nos braços do amor gozoso
sem desatar-se a cadeia
de vida enganchada em vida.
Aquele morreu? Quem sabe
o que foi feito do amante
alçado em coche de chamas
ou carruagem de cinzas
no ato pleno de amar?
Não corrigiu a postura,
não voltou aos intervalos
de solitude a espera,
não repetiu mais os gestos
fora do ritmo amoroso.
Morreu completo, no êxtase
de estar no mundo e extramundo.
Que sabe a morte do abraço
paralisado na luz
do quarto aberto ao amor
e defeso a tudo mais?
E se continua vivo
e mais do que vivo amando
sem paredes e sem ossos
nos vazios espaciais,
não sei como, não sei quem?
(ADRADE, 2007. p.1183)
A morte é a questão que, de todas as questões, mais merece nossa plena atenção. Seu caráter
inevitável surge como aporia a um modo de vida e, ao mesmo tempo, convite a travessia de todas
as travessias. Os poemas acima, de Drummond, mantém uma simbiose “temática” entre si e entre
vida e morte, estas, principalmente, estão intimamente ligadas, conservando, porém, sua
diferença mais radical. Morte é im-permanência no sentido mais pleno e paradoxal de negação e
mergulho. Morte como im-permanência é a negação da permanência de um modo existencial que
cumpriu seu per-curso, seu destino e, ao cumprir-se, atinge sua efemeridade, instabilidade,
inconsistência, desemboca no silêncio abissal do nada para um novo início imerso no mistério
absurdamente velado ao ser humano. Como im-pernanência é também o mergulho mais profundo
na permanência, no que permanece do que muda: “o imortal soluço de vida”. Essa é a grande
questão da morte: O que permanece em face seu arrebatamento transmutador? O mistério. Este é
83
a fonte de todas as procuras e, enquanto pro-cura, o homem se lança em direção (pro-) à cura
como modo mais profundo de libertação. Por isso pensar a morte é fazer a travessia da liberdade,
do desapego ao medo de viver e, em consequência, de morrer.
A contemplação da morte espelha o ser em sua mais profunda singularidade. Pensar a morte é
pensar a vida, é pensar o ser e o não-ser. Diante da morte tudo o que somos se confronta tanto
com o que já não somos quanto com o que ainda não somos e instaura a tensão verbal entre o-
que-somos, o-que-já-não-somos e o-que-ainda-não-somos. Dizer isto é despir toda a máscara
identitária, que tem como fundamento conceituações e rotulações exteriores ao próprio ser, e
mergulhar na memória do ser, isto é, o que é, foi e será. Desse espelhar, em que o reflexo da vida
é a morte e vice-versa, eclode o sentido pleno da existência em seu estado de maior
paradoxalidade: manifestação e mistério, ainda, manifestação do mistério. A morte nos põe diante
da verdade, no abismo de ser e não-ser como realização da realidade mais própria do homem, a
sua originalidade, ou seja, congregação circular tensional de início-meio-fim-início-... como a
conquista da vida que perdemos ao nascer, sem nome, sem limite e sem rumo (ADRADE, 2007,
p.741).
O melhor modo de enfrentar a im-permanência é a naturalidade, que geralmente é encarada
como acostumar-se com, deixar com que algo perca sua gravidade e severidade. Entretanto,
seguindo o sentido da palavra, naturalidade é o modo de ser do que é natural como inserção
radical no todo da realidade em sua tensão entre proximidade e distância. É a isso que o poema
Morto vivendo faz referência quando diz: “Aquele morreu amando./ Nem sentiu chegar a morte/
quando à vida se abraçava/ nem a morte o castigou./ Enquanto beijava o amor/ a morte o foi
transportando/ nos braços do amor gozoso/ sem desatar-se a cadeia/ de vida enganchada em
vida.”. A reflexão da morte é a oportunidade para o entreabrir do sentido da vida. O amor (Eros)
parece amenizar a dor da morte (Tanatos),na verdade, o amor é o que põe o homem em travessia.
Amar é deixar-se seduzir, em última instância, pela intensidade e imensidade da vida.
A preparação natural para a morte é mergulhar na intensidade da vida, ao passo que a maior
compreensão da vida se dá em face do enfrentamento da morte, “pois quem ensinasse os homens
a morrer, os ensinaria a viver” (Montaigne, os pensadores, 99). O sentido da vida constitui-se em
torno da escuta da morte, escutá-la é, de algum modo, pre-parar-se para a morte, ou seja,
encaminhar-se para seu caminho como um pôr-se-em-rumo à sua realidade plena e natural.
Preparar-se para a morte constitui uma aprendizagem em torno dela como escuta do mistério
84
radicado na vida como uma consumação desta. Morrer não é consumir, mas consumar a
existência humana, isso corresponde a dizer que o pensamento da morte ou preparação para ela
consuma a vida.
A aprendizagem da morte que consuma a vida deveria ser a pré-ocupação de todo o ser
vivente, como uma ocupação prévia de todo caminho e encaminhamento da vida. Essa pré-
ocupação, que supõe-se privação antecipada da vida é, antes, um meditar a liberdade. O homem
não deveria repelir a ideia da morte, porque, ao repeli-la, a repulsa à morte aprisiona o homem. A
pré-ocupação da morte liberta, pois ensina o homem a descortinar seu mistério em cada momento
de vida, des-cobrindo o sentido que se encobre no ordinário da cotidianidade. Cada minuto de
vida traz seu bem irrepetível. “Bem” aqui é mencionado distante do sentido explorado em toda
mensurabilidade moralista, antes é tudo o que nos vem ao encontro como convite a uma
compreensão da vida que se nos ocultou até o momento e, embora o que aconteça seja sempre o
mesmo, não é, contudo, a mesma coisa. Esse tornar-se novo a cada instante como uma
autorreinvenção é a autopoiese do “imortal soluço de vida” que nasce e morre a todo o tempo
com um adiantar-se humano sempre rumo o que ainda não aconteceu ou que não se descortinou,
em outras palavras, destino. Pré-ocupar-se da vida é morrer “completo, no êxtase de estar no
mundo e extramundo”, esse morrer completo é experienciar a morte em vida, isso só é possível
na arte. Arte é o pensamento vivo que conduz o homem a tudo o que ainda não foi pensado, o
sentido poético original é colocar o homem diante do mistério como possibilidade de diálogo
originário e originante. Esse diálogo é o abri da vida e da morte em toda sua complexidade e
abissalidade. A arte conduz o pensamento humano ao limiar entre vida e morte.
O poema Morto vivendo presume que a morte é a origem (de) da (outra) vida, sua fala nos diz:
“Aquele morreu amando./ Nem sentiu chegar a morte/ quando à vida se abraçava/ nem a morte o
castigou.”. Por isso pergunta: “ Aquele morreu?”. E prossegue, “Quem sabe/ o que foi feito do
amante/ alçado em coche de chamas/ ou carruagem de cinzas/ no ato pleno de amar?/ (...)/ E se
continua vivo/ e mais do que vivo amando/ sem paredes e sem ossos/ nos vazios espaciais,/ não
sei como, não sei quem?”. A quem se reserva o saber da morte a não ser a ela mesma ou, quem
sabe, nem a ela mesma?
Desde o nascimento o homem caminha para a morte. Assim, desde sua origem a vida é o
caminho da morte. A existência humana é o trânsito imensurado e imensurável entre uma e outra
– a existência é o meio do caminho entre vida e morte. A vida sempre é completa, pois a nenhum
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homem é dado a conhecer a medida de tempo que lhe é destinada, a completude da vida não
depende de sua duração cronológica, mas de sua intensidade kairológica. O meio do caminho à
cada momento congrega nascimento e morte. Ao pré-ocupar-se da morte, o homem deve tomar
muito cuidado com o dualismo que cerca a realidade no intuito de reduzi-la a conceitos lógico-
formais como, por exemplo, a atração pela “vida” e a “repulsa” à morte. Morrer é estar
enganchado na vida. Só morre quem de fato viveu, mas quem quase vive, já está, de algum modo,
morto. Nossa intenção não é tratar da morte segundo dogmas religiosos, aos quais quase sempre a
questão da morte leva ou parece levar, mas como experienciação vital a qual todo ser humano
está fadado. Como não podemos sondar a morte, o que nos resta é, em vida, contemplar a própria
mortalidade humana e despertar para o aceno da realidade e a ausculta de sua fala e para auto-
escuta do que nos é próprio, a saber, a finitude.
A morte é o destino de todos os destinos, abrir-se para ela é abrir-se para a vida. Pensar a
morte é pesar a vida auscultando o silêncio do mistério que com-voca o tempo todo a voz do
pensamento. Uma voz surda que renuncia todo o controle e manipulação do real. Entretanto, essa
renuncia nada subtrai, antes com-cede ao homem habitar originariamente mundo. Caminhar, ver e
pensar é acolher o movimento da vida no recolher da morte. A tensão entre o acolher da vida e o
recolher da morte põe em questão a memória como um não-deixar-cair-no-esquecimento; não é
simplesmente lembrar, mas um presentificar contínuo e perene. Memória é o meio do caminho,
o-que-é entre o-que-foi e o-que-será.
O modo mais radical de pensar a vida se nos advém da linguagem. A fala da linguagem apela
ao homem com-vocando-o tanto à sua ausculta quanto à fala. A convocação como apelo
intrínseco à realidade, ainda que imersa no imenso silêncio que envolve tudo o-que-é, assim
como o-que-foi quanto o-que-ainda-não-é insere o homem na pro-cura do sentido de sua
existência. Essa procura é travessia da vida rumo ao encontro da verdade como experienciação
máxima com o mistério, o véu do ser, a morte. Assim: “... se continua vivo/ e mais do que vivo
amando/ sem paredes e sem ossos/ nos vazios espaciais,/ não sei como, não sei quem?”. O não-
saber eclode na poesia como arte, arte da vida e vida da arte.
Arte: experienciação da linguagem na plenitude de sua fala e de seu silêncio, no abismo do
velamento e do desvelamento. Arte: maquinar da vida que se reinventa a todo o instante. Arte:
não-saber que apela e desafia todo o saber a se re-pensar e re-fazer. Arte: trânsito do não ser ao
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ser e vice-versa. Arte: manifestação da realidade como linguagem. Arte: pôr-se em obra da
verdade. Arte-obra. Arte-poiesis. Arte-fala. Arte-silêncio. Arte-espelho. Arte-entre-vida-e-morte.
2. O apelo do caminho: espera do inesperado
O segundo movimento do poema instaura o apelo do caminho. O caminho possui uma força
centrípeta, ou seja, é o caminho como questão da vida que faz convergir para si toda a realidade
circundante inaugurando continuamente, no ser humano, horizontes como aberturas ontológicas.
A máquina do mundo é um convite a travessia de limiar rumo à outra dimensão. A realidade
possui duas dimensões que, na verdade, são facetas dela, como dois modos de vigorar para o
homem: o ordinário e o extraordinário.
O ordinário é a repetição cotidiana da mesma coisa e que, por isso, se torna frequente,
habitual e previsível. É o lugar-comum da vida, onde a história se repede indefinidamente, um
aprisionamento em que o sentido de tudo se torna significado, sem nenhuma novidade, que
subtrai toda a vivacidade da existência. O extraordinário é o que foge do usual ou ao previsto. É o
acontecimento fora do comum, que escapa ao estabelecido por sua excessividade e
imprevisibilidade e por isso gera estranheza ou admiração. O extraordinário exsurge do ordinário
como uma face nova da realidade manifestando sentido e inaugurando verdade desconhecidos, é
a inédita inauguração ou reinvenção da própria vida. Vejamos como isso ocorre na poesia de
Drummond:
Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera
e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,
convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,
assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,
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a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de
teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,
olha, repara, escuta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,
essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo
se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”
As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge
distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos
e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber
no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,
e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:
e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,
tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.
A leitura destes versos nos chama a atenção para um descortinar do destino em outra
dimensão, como um convite a percorrer o caminho inédito, como um apelo à travessia. A
“máquina do mundo” abre-se convidando sentidos e intuições “a se aplicarem sobre o pasto
inédito da natureza mítica das coisas”. O interessante aqui é o fato de que ela faz um apelo,
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primeiramente, a se “aplicar”. A essência dessa palavra é o de entregar-se com afinco ao estudo,
trabalho, ocupação etc, na ideia de dedicar-se atenciosamente, também o de concentrar
especificamente os sentidos em algo, figuradamente, mergulhar em algo e deixar com que ele nos
envolva por todos os lados. Esse convite é direcionado a “quantos sentidos e intuições restavam”.
E aqui outro ponto chama a atenção: o convite não é feito à razão, ou à formulação de um
conceito, ou a uma ideologia nem ainda a uma teoria crítica convencional, mas aos sentidos e
intuições. Isso talvez merecesse uma revisão na abordagem teórica da fortuna crítica do autor,
considerado um dos poetas mais racionais da modernidade.
Esse movimento assinala o apelo de todos os apelos, ou seja, o que a vida faz intensa e
insistentemente ao homem. A vida sempre apela ao homem para que ele se inter-esse por ela.
Inte-esse é estar de permeio junto a vida, é se colocar na abertura de irrupção do extraordinário
que ela proporciona. A vida é um amálgama, uma reunião heterogênea que forma o todo em que
ela consiste. O descortínio pleno de suas multifacetas é impossível, talvez inexistente, pois a vida
é um intenso devir, manifestação excessiva e incessante da própria vida, o que os gregos
chamaram de zoé. A vida manifesta seu apelo ao homem como caminho. O caminho convida. O
caminhar só é possível pelo caminho e este se dá em seu vigor e realização plenos, no caminhar.
Caminho e caminhar se co-pertence dualmente, num mútuo tender de necessidade e
convergência. O homem vivendo caminha, isto é, destina-se ao seu caminho. Nas vias dadas e
instauradas da existência humana o homem faz sua experienciação ordinária. O apelo da vida é
um convite à transgressão do ordinário. O homem que ouve esse apelo se inicia nas vias do
sentido e nas veredas mitopoéticas em que a realidade se manifesta, a cada passo dado, em seu
vigor originário e extraordinário. Essa manifestação do caminho e da travessia coloca o humano
no centro da questão, na travessia ele de-mora e em de-morar-se descortina o seu destino como
uma gestualização da vida. Gestualizar a vida é destinar-se, ou seja, deixar com que o apelo do
sentido nos atravesse e conduza à própria travessia da vida transvertendo-se em vida, caminho e
verdade.
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2.1 - Nas vias dos sentidos e da intuição
Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera
Sentidos é o conjunto de funções vitais que permitem experimentar o contato e perceber
sensações dando início ao processo interno de recepção sensorial da realidade como
experienciação da mesma. Também pode ser entendido, em forma variante, como aspecto, ponto
de vista, orientação, rumo, discernimento, consideração, ou ainda, compreensão e destino, como
verdade, nesse caso dever-se-ia usar a palavra sentido sem admitir plural. O sentido é um só e
para ele todas as coisas convergem. Assim, tudo é um. As coisas têm sentido quando são sentido.
A intuição pode fazer um caminho racionalista ou pode acontecer fora do imbrincamento
raciocínio-análise-conceito, ou seja, como uma percepção direta com o que nos vem ao encontro
experiencialmente. Nesse sentido, ter uma intuição é ser tomado por algo. Isto se correlaciona
diretamente com o latim intuitìo, que dá a ideia de imagem refletida no espelho, de onde provem
contemplação passando, por extensão, ao sentido de conhecimento imediato ou pressentimento.
Entretanto, não se deve pensar em pressentimento como algo sobrenatural, antes, como ser
tomado por aquilo ao que já nos entregamos por, de algum modo, nele vigermos e que, por isso,
somos capazes de pressentir.
O intuir que se dá no pressentir é entrega, ou seja, é ser conquistado por aquilo que se quer
conquistar. Essa conquista é um modo de conhecer que se dá de dentro para fora, daí o sentido de
intuitivo ser também o de considerar e contemplar a partir de um ver interiormente. Intuir é abrir-
se para o que se nos apela na própria realidade, como a teia da vida, a partir das experienciações
que envolvem o ser, em outras palavras, é auscultar o real.
O poema fala de ausculta, que é, simplificadamente, o ato de auscultar os ruídos internos de
um organismo, mas se afigura na ação de encostar o ouvido para auscultar. Ora se é preciso
encostar, já não é o ouvido que ouve, mas o corpo. Isso quer dizer que a ausculta é mais que
escuta, é um intuir, de in-, entre, e tueor, guardar, no sentido de abrigar o que se nos advém, ou
seja, abrir-se para pressentir tudo que é ou acontece. Essa ausculta não é condicionada, não se
estrutura logicamente, pois, se isso acontece, deixa de ser intuição e passa a ser uma teoria.
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2. 1.1 - Sentidos e intuição na via da modernidade
Intuição é pensar no sentido originário, isto é, sem a mediação de uma ou outra teoria ou
categoria racional, de outro modo o pensar seria raciocinar e racionar o conhecimento. Sentidos e
intuições correspondem à ausculta e abertura ou abertura e ausculta. A filosofia moderna entende
o mundo disjuntivamente o que possibilita e estabelece a relação entre sujeito e objeto, para ela a
aquisição do conhecimento só é possível mediante a ação do sujeito sobre o que está diante dele
por meio de determinada mediação. O sujeito é o a priori que age sobre tudo o que se apresenta
diante de si, isto é, ob-jetivamente3. Seguindo a esteira do platonismo que separa o mundo em
inteligível e sensível e a dos padres da Idade Média que estabelecem a cisão entre criador e
criaturas, Descartes propõe a separação do mundo ou do real em res cogitans e res extensa, ou
seja, entre intelecto e matéria, daí resultando os demais dualismos que, segundo esse pensamento,
compõe a realidade.
A filosofia da modernidade é conhecida como crítica, e em suas bases, crítica se define
como a ação de separar para melhor julgar, discernir e avaliar. A crítica se formula e coloca como
a estrutura pressupositiva do conhecimento humano na qual o saber se estabelece como apreensão
e compreensão do objeto pelo sujeito cognoscente. Assim, já está posto o dualismo sujeito e
objeto, entretanto, não para aí. Uma vez que o sujeito e o objeto estão em lados e posições
opostas, cabe estabelecer a relação que se dará entre eles, e esta é ordenada racionalmente
operacionalizando as obras da razão, isto é, o conceito, o juízo e o raciocínio. Desse modo, todo o
real é objetivado e objetivável, e este, para ser cognoscível deve-se acomodar às estruturas
cognoscentes do sujeito. A experiência com o real, para ser verdadeira, deve-se dar mediante a
cognição prévia do sujeito, ou seja, a experiência, para ter significado, deve ser filtrada
pressupostamente pelas regras de inteligibilidade e conceitos a priori estabelecidos.
As condições de possibilidades de experienciação do real, segundo a filosofia moderna, são
os conceitos puros ou a priori, as categorias do entendimento, juízo e raciocínio, e as formas da
sensibilidade, a isto se convencionou chamar de representação. O real só pode ser compreendido
se significar, ou seja, caso possa ser transformado em conceito, se puder aferir um juízo e
3 Ob- fora de e -jectum, sujetio: ob-jectum é o que se apresenta fora do sujeito.
91
descrever racionalmente. Sendo assim, essa significação do real depende única e exclusivamente
do sujeito que o representa.
Deste modo, a destinação humana é uma construção e produção do sujeito; seus sucessos e
fracassos podem ser matematicamente explicados, tomando como referência sua própria ação
diante das condições do meio, do atavismo biopsíquico e da historicidade epocal. O real é
teoricamente previsto e suas condições de realização são matematicamente formuladas para
serem experimentalmente produzidas.
O real está diante do homem como destinação, mas este só pode experienciá-lo se antes lhe
conhecer a língua e dominar seu sistema simbólico. Sendo assim, destino é o nome dado à
capacidade de se poder pesar, avaliar e computar o proveito possível de extrair a verdade do real;
em outras palavras, destino é tudo o que o sujeito pode produzir racionalmente, o acaso seria o
oposto, isto é, fruto da irracionalidade. O acaso é o destino que escapa a ação - mensuração,
controle e manipulação - humana. Destino é a mediação do real como possibilidade dada ao
homem de calcular meticulosamente, avaliar criteriosamente e apreciar correta e acertadamente
podendo assim agir sobre sua própria existência.
O a priori caracteriza uma forma de conhecimento que não admite a faticidade de nenhum
tipo de experiência, antes é gerado cognitivamente no interior da própria razão e de acordo com
suas categorias e pressupostos e visa à explicação de um fenômeno a partir da designação de sua
causa. Os princípios do conhecimento a priori são dados a partir de elementos prévios
independentes da experiência, deduzindo o sentido do real presuntivamente por hipótese ou
convenção.
O sentido da realidade, isto é, o destino, é capturado pela mensuração cogitativa de modo
que se torne disponível e submisso ao seu comando. A subjetividade é concebida como a medida
paradigmática de todas as coisas. Tudo o que vigora na presença aparece ordenadamente
estruturado nas categorias da inteligibilidade e nas formas da sensibilidade, desse modo, destino
existe para ser consumado pelo homem. Entretanto, o maior impasse do racionalismo subjetivista
é a questão da finitude humana e é em face desse dilema que a existência humana se desenrola e
adquire sentido, isto é, apropria-se do seu destino.
92
2.1.2 - Sentidos e intuição como medida
A medida é o cuidado do pensamento que se direciona rumo às coisas moventes e
devenientes, é meditar, ou seja, deixar com que algo nos advenha e tenha sentido. A medida é a
condição de possibilidade das coisas virem à presença, é o entre que possibilita o homem refletir
sobre o real. Na verdade, esta frase: “refletir sobre o real” é uma estrutura viciada que revela a
posição a priori do sujeito, que sempre está agindo sobre um objeto. Medida é o entremeio (inter,
entre e meio) que possibilita a manifestação da realidade como destino, porque ele é a
possibilidade para a possibilidade que instaura o sentido. Na medida eclode e se dá a conhecer o
vigor do logos, a força reunidora na qual tudo é um, sem, entretanto, ser a mesma coisa, que
possibilita a todas as coisas aparecerem, isto é, vir à presença. A medida como destino lança o
homem na dimensão do entre, ou seja, a medida é o entre e este nos projeta nos interstícios da
liminaridade do que já-não-somos (fomos), do que somos e do que ainda-não-somos (seremos, ou
não). Em última instância, entre o que somos e o que não-somos (por já ter sido ou ainda não),
entre verdade e não-verdade. Isto está, de algum modo, expresso na seguinte passagem do
romance A paixão segundo G.H.:
"Vou agora te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e
secreta. De como entrei naquilo que existe entre o número um e o número dois, de como
vi a linha de mistério e fogo, e que é linha sub-reptícia. Entre duas notas de música
existe uma nota, entre dois fatos existe um fato, entre dois grãos de areia por mais juntos
que estejam existe um intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir - nos
interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do
mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de
silêncio" (LISPECTOR: 1972, p. 117).
A busca que se expressa no romance é a mesma que ocorre em toda obra poética, a saber, a
busca do sentido. Daí pode-se pensar em sentido da vida e da morte, da existência e das
experienciações, do que fala e do que cala, do ser e do não-ser, do tempo, do espaço, do lembrado
e do esquecido etc. E sempre se esbarra na mesma questão: no intervalo, no interstício, na
liminaridade, que é o mistério dos mistérios. Essa questão é o silêncio abismal gerador de toda
fala, a medida de todas as dimensões, mas que é impossível de ser mensurada, o oco do mundo, a
entrelinha, o inexpressivo, o impenetrável onde nos movemos, mas nunca dominamos, a fonte
93
inesgotável na qual circunavegamos, mas nunca capturamos, nomeado “entre”. "O entre é a
abertura constitutiva e originária do ser-humano” (CASTRO: 2010, p.19) e “é o próprio núcleo
de todo agir humano, é o horizonte que faz do ser humano homem humano" (CASTRO: 2010,
p.20.), nele vigora o destino humano.
Destino é, em suma, o sentido da realidade, o seu desvelamento, ele só vigora no meio,
quer dizer, no centro equidistante igualmente do homem e do mundo, de origem e finitude, e que
por isso pode manifestar a relação de ambos, no qual aparece o que é e como é. A medida, o meio
do caminho, revela o destino. Tudo o que revela revela-se como. O destino e o meio do caminho
são um e o mesmo, sem, contudo, serem a mesma coisa. “Caminho, sendo sempre meio do
caminho ou sempre em ou a caminho, é, portanto, o meio, o medium, o elemento: aquilo em que
se está e que se é.” (FOGEL: 2009, p. 37). É nesse entremeio (meio-medida do caminho) que o
sentido eclode para o humano como destino.
Quando se perdem os sentidos e a intuição torna-se em vão e triste a travessia, é disso que o
poema A máquina do mundo fala quando nos assinala que “em vão e para sempre repetimos os
mesmos sem roteiro tristes périplos”. Perí-, em grego, quer dizer em torno de ou caminho e
plóos, navegação. Périplos é circunavegar ou navegar em círculos. O pensamento originariamente
se move em círculo. Heráclito foi um dos primeiros pensadores a chamar a atenção para o
círculo, diz-nos ele: “Princípio e fim se reúnem na circunferência do círculo” (Heráclito:
fragmento103, 1999, p. 87). Parmênides também assinala: “Coração intrépido da verdade da
circularidade perfeita” (Parmênides: fragmento 1, 1999).
A circularidade perfeita fala do pensamento que circunavega em torno de um centro. Para o
racionalismo o pensamento deve seguir um roteiro previamente elaborado e objetivamente
executável tendo em vista uma conclusão, caso contrário, seria em vão e por e por isso triste o
pensar sem objetivo; porém, o vigor do pensamento circular é a espera do inesperado, é lançar-se
ao caminho, peri-, sem receito do perigo. Essa espera é estar de permeio à medida da coisa, isso
quer dizer: mediar é meditar. Ambos possuem o radical med-, que assinala originariamente a ação
de dedicar-se a, ocupar-se de ou dispensar cuidados a.
Dedicar, ocupar e cuidar é estar de permeio à coisa e a ela entregue num périplo originário
à espera-ausculta do sentido-destino. O pensamento circular não é estático ou linear, antes é
dinâmico e cíclico, tensiona identidade e diferença num aprofundamento cada vez mais intenso
das questões que, sempre recolocada, exigem uma abertura-ausculta ainda maior. Nesse sentido,
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destino é destinar-se, isto é, abrir-se para a experiencições de espera-ausculta com o real, é
travessia ou périplo. O périplo é travessia originária do real, isso aponta para uma experienciação
imediata do mundo que se abre, se instaura, sem intermediários, contudo vigorando no entre. E,
então, o viajante é atravessado pela travessia, caminho e caminheiro se tornam um na tensão do
meio. O meio do caminho é a medida entre caminho e caminheiro. Essa travessia é destino.
O poema A máquina do mundo nos faz pensar na questão central da Teoria do
Conhecimento, isto é, as formas de aquisição da aprendizagem. Esta seria o resultado da
interação do sujeito com o meio objetivado, que se dá sempre intermediada, ou seja, através de
mediação interposta e este mediador é a linguagem.
A mediação entre sujeito e meio (objeto) é estabelecida pela linguagem entendida como um
sistema simbólico e representante cultural dos grupos humanos. Assim, a “função” da linguagem
seria fornecer, basicamente, conceitos e formas de organização do real mediante esquemas de
representação simbólica ou convencionais. A linguagem funcionaria estruturalmente por meio de
codificações e decodificações como reflexos culturais estabelecendo identidade e diferença e, a
partir delas, os pares de opostos dicotomicamente que regem as relações humanas individuais,
mas, principalmente sociais: verdade e mentira, coerência e incoerência, certo e errado etc. Nessa
linha, a linguagem seria o principal meio de aquisição, fundamentação e transmissão do
conhecimento.
Desse modo, a linguagem é coerentemente organizada e sistemática e simbolicamente
estruturada de modo a se condensar em discurso; este é metodologicamente esquematizado
compondo uma corrente crítica; esta, por sua vez, forma um corolário conceitual transmutando-se
em uma teoria que passa a ser o liame de determinado conhecimento estabelecendo-se como
metodologia de investigação e aprendizagem mediadora entre o homem e a realidade.
A Teoria do Conhecimento, de modo geral e bem superficialmente falando, propõe que o
ser humano só adquire conhecimento se este for mediado por instrumentos de sua cultura, com
significações simbólicas codificadas linguisticamente. A mediação é, então, uma ação que se
interpõe entre “sujeito” e “objeto” da aprendizagem, nessa relação as capacidades de codificação
e decodificação são regentes desse processo de mediação.
Qual seria a relação entre mediação e destino? A relação em seu sentido originário de ação
da própria realidade, segundo o que se viu, seria condicionada e determinada funcionalmente pela
mediação. O sentido do destino dá-se no modo como o homem se relaciona com o real, no ser-
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corpo, apesar de isso ser redundante, visto que sentido é destino, e o real é também o homem.
Entretanto, nos interessa pensar que, desse modo, a relação, como ação partilhada do e no real,
passa a ser uma ação estabelecida, isto é, causalista e conta com uma consequência ou resultado.
A síntese entre causa e consequência na mediação é a verdade. Esta é o produto da ação do
sujeito sobre um objeto a partir da mediação estabelecida. Mudando a mediação mudaria também
o efeito, ou seja, a verdade? Mediação é, então, uma forma de abordagem criteriosamente
estabelecida que define e coordena as relações. A interação, em si, nesse sentido, não é vazia,
mas uma metodologia que se interpõe entre o homem e as coisas; nesse sentido, a interação é
uma ação mediadora da aprendizagem e esta é um modo do destino se dar.
Entretanto, o que está em questão no poema é a aprendizagem do corpo: a incorporação que
proporciona o desvelar do destino do humano no homem. Corpo é mundo: o operar (máquina) do
mundo, e esse operar se dá como destino, isto é, necessidade-e-convergência-intuição-e-ausculta.
2.1.3 – Corpo: necessidade e convergência de sentidos e intuição
O convite feito pela “máquina do mundo" aos “sentidos e intuições” é um apelo ao corpo
como unidade de sentido onde tudo é um. Corpo pode ser definido de diversas formas tantas
quantas forem as teorias e vieses que assim possam fazê-lo, desde o puramente biológico ao mais
radical espiritualismo; entretanto não é isto que nos interessa, mas a essência de ser-corpo.
Corpo é centro, complexidade, unidade, reunião, junção, agregação, confluência, tessitura,
ausculta-abertura, abertura-ausculta, em uma palavra, convergência. O corpo é ambiguidade na
media em que ausculta sensitivamente a intuição e se abre intuitivamente para a ausculta dos
sentidos. É o que por meio do qual algo se torna o que é como consumação. Ser-corpo é a
necessidade essencialmente reivindicada pela e para a consumação.
Reivindicar é vindicar a coisa, isto é, exigir a coisa (rei) por sua própria necessidade de ser
e existir. Necessidade é a exigência do que, no qual e pelo qual, se proporciona a consumação.
Consumação de quê? E como o quê? No poema: de ser como apropriar-se do destino do humano
no homem. Nesse sentido, corpo (sentidos e intuições) é necessidade e convergência.
Necessidade porque o corpo não é livre para escolher interagir, ele já é tomado pela liberdade da
convergência que o insere no seu âmbito historial.
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Como necessidade e convergência, corpo é o acontecimento imediato da vida. Imediato
significa sem mediação, mas aqui há também um ambiguidade originária. A palavra imediato
compõe-se de im- (ou in-) e –mediato. O radical –mediato é o meio, do qual se pode depreender
vários sentidos. O prefixo im- (ou in-) significa privação ou negação, porém, pode também
assumir a acepção de aproximação, movimento para dentro de ou do que se instala no interior.
Imediato pode ser compreendido, então, como o que não possui mediação por já viger na própria
mediação. A mediação sempre é pensada como o que está entre uma coisa e outra, um mediador
ou uma mídia, mas não é comum o entendimento de que na mediação uma coisa e outra medem
sua identidade e diferença.
Corpo é realização originária: a ação do real. O problema é que sempre pensamos corpo
como matéria em oposição a espírito, e isso nos deixa pouco abertos a uma outra forma de pensar
corpo. Corpo é presença, como Heidegger a denominou: Da-sein, Entre-ser, ou, numa tradução
mais próxima do sentido poético: sendo. Mas presença não é só presentificação, é também não-
presentificação. Presença é a tensão entre presentificação e não-presentificação, assim como
corpo é a tensão entre vida e morte, entre origem-permanência e finitude, por isso ele é
realização.
Corpo é onde a realidade realiza a vida em face da morte, a origem-permanência em face da
finitude e vice-versa. O corpo é uma forma do entre se dar. Nesse sentido, corpo é a medida da
identidade e diferença, vida e morte, presença e ausência etc. Quando se diz é a medida, não se
está pensando em mensuração tampouco em intermediação ou qualquer intermediário, por
exemplo, entre sujeito cognoscente e a coisa cognoscível, mas o onde, sem ser lugar, no sentido
espacial, em que os opostos se medem; não no sentido de determinar uma grandeza, mas de
avaliar como acrescentar valor dimensionando uma propriedade (ousia) do ser. Então, corpo
como mediação é a possibilidade de todas as possibilidades, possibilidade para possibilidade. O
corpo não tem, mas é percepção, quer dizer, abertura-possibilidade para ser tocado ou tomado
por; este sim é o âmbito originário da mediação.
O poema nos diz que a máquina do mundo “Abriu-se em calma pura, e convidando/
quantos sentidos e intuições restavam/ a quem de os ter usado os já perdera/ e nem desejaria
recobrá-los,/ se em vão e para sempre repetimos/
os mesmos sem roteiro tristes périplos”. O convite é, na verdade, um apelo da proópria realidade
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à ausculta com o corpo - sentidos e intuições - já gasto, esquecido e, porque não dizer,
desprezado.
O corpo, na modernidade, possui apenas valor estético-formal, nos tão banalizados
conceitos de beleza, entretanto, mantém-se sua oposição com a alma, entre aísthesis e noésis,
sentir e pensar, este entendido como uma função ou faculdade da alma, espírito ou razão, aquele,
como função, capacidade, propriedade ou faculdade do corpo. O apelo dirigido no poema, porém,
direciona-se a aísthesis e a noésis, não separadamente, mas a conjugação de ambos, como duas
dimensões que se tensionam e se medem exigindo ampliação uma da outra não admitindo
qualquer separação, e isto é corpo, que não pode existir fora dessa conjugação.
Corpo: necessidade e convergência que a tudo atrai e por tudo é atraído; nó de relações e
referências que conjuga e ata sentidos do sentido; que se move pelo sentir e pelo intuir, entre ser e
não-ser; que no conjugar e atar com-preende, isto é, prende em si o que pode ser prendido
reunindo, colhendo e recolhendo tudo quanto sentidos e intuição alcançam; que tem necessidade
de ser, ou seja, de se presentificar manifestando sua essência-corpo. Corpo: necessidade-
convergência-destino destinado a conhecer e ser o que se conhece.
2. 2 - Veredas mitopoéticas
O convite da “máquina do mundo”, feito aos sentidos e intuições “a se aplicarem sobre o
pasto inédito da natureza mítica das coisas”, põe em cena duas outras palavras-chave para a
compreensão do poema: natureza e mito. Para entender a relação que se dá entre os dois é preciso
recorrer ao originário de ambas a partir do grego physis e mythos. Physis, como já se disse é a
ação de brotar ou nascer de si e por si mesmo, é o desvelar que, ao mesmo tempo, tende à própria
ocultação, velamento. Diferentemente do que se entende hoje como mito que é tido como um
estágio pré-racional do pensamento, na Grécia arcaica, mythos era a manifestação de sentido do
mundo que advinha no canto do aedo como uma mensagem das Musas. Mythos assinala a ação de
eclosão da realidade pela palavra como uma manifestação divina aos homens e fonte de
conhecimentos relativos ao sentido de ser e do mundo.
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As comunidades primitivas, muito antes do conhecimento filosófico, valiam-se dos mitos
para expressar a verdade do real por vias de ritos (imagens poéticas) que refletiam as ações dos
deuses e apelavam ao homem refletir “sobre” a realidade.
O mito, na cultura arcaica, era narrado pelo poeta-rapsodo, o qual acreditavam ser inspirado
pelos deuses. Um escolhido que tomava conhecimento, por revelação divina, dos acontecimentos
passados e era permitido ver a origem de todos os seres e coisas a fim de transmitir aos ouvintes,
que recebiam a narrativa como verdadeira por confiarem na autoridade e confiabilidade do
narrador pelo caráter divino a ele atribuído, como um mensageiro das Musas. Os mitos falavam
da origem do mundo e de tudo o que existe, narravam a gênese de todas as coisas que se dão
através de lutas, alianças e relações sexuais entre os deuses que governam o mundo e o destino
dos homens, apresentando-se como o próprio vigor da realidade eclodindo ritualisticamente.
O mito era concebido como manifestação, isto é, eclosão da realidade como linguagem,
pois, seguindo o viés arcaico, o aedo fazia surgir mundo através da palavra proferida
ritualisticamente. Mythos era sagrado porque estava em tensão com o mystérion, isto é, os
mistérios que envolviam o surgimento do mundo. A ritualização do mito era um apelo ao homem
a penetrar o mistério das coisas.
O mito é o que abre o mistério, ou seja, perpassa-o e o faz transparecer na sua essência
como um conhecimento tradicional.
Concebido arcaicamente, o mito revelava o sagrado ao passo que se presentificava por
meio dos ritos, tanto como figuração, como prefiguração das coisas. Tal acontecimento era
concebido mimeticamente como manifestação. Originariamente, o mito designava para as
comunidades primitivas uma história preciosa e verdadeira por possuir caráter sagrado, exemplar
e significativo. Mais tarde, muitos eruditos passaram a estudá-lo como mera fábula, ficção,
história irreal e falsa, no sentido mais radical, como uma ilusão, substituindo o conhecimento
mítico, aberto para a reflexão, pelo pensamento racional, estruturado logicamente.
Os mitos geralmente colocavam questões referentes ao que as coisas eram e como eram:
seu surgimento, transformação e desaparecimento, assim como ao tempo e espaço, ao agir dos
homens e dos deuses e suas respectivas interseções, ou seja, sempre relacionado ao destino do
homem e do mundo. O mito era uma presentificação poética da physis, o mistério que rege o
eclodir do que nasce de si para si mesmo e que, como origem, permanece esconsamente no que se
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manifesta como o vigor regente do que brota e permanece. Os mitos colocavam para os homens
questões e não conceitos, daí seu caráter aberto e circularmente reinterpretativo.
2. 2. 1 - Conjunções mitopoéticas: linguagem, mito e natureza
O mythos e physis revelam a conjunção do que se manifesta com o que se vela e efetiva
pelo logos, este, não no sentido consagrado pelo tempo e pela filosofia ocidental identificado com
a ratio ou simplificadamente palavra, mas em seu sentido originário:
“...dos verbos legein (grego), legere (latim) e lesen (alemão), que possuem o significado
de colher, recolher, juntar num conjunto, reunir. Dessa maneira, logos “não significa
nem sentido nem palavra, nem doutrina nem mesmo “sentido de uma doutrina”, mas
significa a unidade de reunião constante e, em si mesma, imperante, que é a que reúne
em sentido originário.”. (HEIDEGGER: 1978, p.153)
A relação entre physis e logos delineia como a ação reunidora (logos) do que brota ou
nasce de si mesmo, permanece e tende ao ocultamente (physis). Ambos são manifestações
originárias e inseparáveis, dizem o mesmo sem dizer a mesma coisa, um é a condição de
possibilidade da vigência do outro.
A relação ou referência logos, mythos e physis, ou linguagem, mito e natureza, se dá
mediante o entrelaçamento na linguagem (logos) do que se manifesta (mythos) ao vigor
originário-manifestante (physis). Não pode haver sentido sem essas considerações.
Todo apelo é feito a algo que se esqueceu, a um esquecimento, para trazê-lo à presença da
memória. Assim, o poema apela para um conhecimento esquecido e substituído pelo
racionalismo científico: o conhecimento tradicional ou hermenêutico. Esse conhecimento é
extraconceitual e se funda na questão. O motivo de ser extraconceitual é o de que o conceito não
conserva a força originária inaugural (physis) que lhe deu origem, antes a abandona
completamente e se cristaliza inviabilizando qualquer transformação, caso contrário, seria uma
questão.
O conhecimento tradicional ou hermenêutico se volta para os acontecimentos primordiais
postos pelos mitos e não considera a linguagem um instrumento, mas um manifestar da própria
realidade. A linguagem então resguarda e preside a condição originária da manifestação,
100
assimilando o sentido essencial do agir da poiesis, que é o de fazer passar do não ser ao ser. A
linguagem mítica instaura a verdade da poiesis, ou seja, ela se põe como mitopoética.
Em Mensagem, obra fundamentalmente mitopoética, na composição intitulada Ulisses, o
poeta Fernando Pessoa, toma como motivo o mito, sempre presente, de uma forma ou de outra,
em todos os poemas e assevera: “O mito é o nada que é tudo”. Isso equivale a dizer que é o mito
que abre o mistério e revela a realidade possibilitando o silente falar. Originado do verbo
mytheomai, mito significa abrir, desvelar, desocultar pela palavra. “O mito aparece como o
próprio real se doando como Linguagem na palavra. O real se manifestando como Linguagem é a
poiesis, e o “sentido do ser” (CASTRO, 2000, p.09). O mito é, pois, pura poesia. Ambos fazem
eclodir a realidade. São, na verdade, duas palavras para se dizer um único fenômeno, que é
conservar em si a tensão do logos como o mesmo de identidade e diferença.
Por isso, a poiesis, o passar do não-ser ao ser (independente de como se realize – poema ou
prosa: lírico, épico ou dramático – falando ou não de matéria notadamente relacionada aos mitos)
terá sempre uma origem mítica.
O mito abre o mistério, isto corresponde a dizer que no mito o silêncio fala, realiza a
passagem do não-ser ao ser, do ocultar ao aparecer e vice-versa. Nesse sentido, o mito resgata a
verdade originalmente como alétheia: o desocultar que se fundamenta no ocultar. É o pleno vigor
da physis que se revela enquanto se vela e se vela desvelando-se. O assinalar e o fixar o
acontecimento da verdade se funda no operar da obra de arte. “A própria Poética eclode pela
força do mito. E este atende tanto à dimensão da Linguagem divina como à dimensão da palavra
humana. Di-mensão significa o mediar através do qual se presentifica a dobra do sagrado: o
divino e o humano” (CASTRO: 2000, p.09). O mito não representa a verdade, antes é a própria
eclosão da verdade. Ele poeticamente fecunda a vida instaurando Mundo.
A poesia do poema A máquina do mundo convida “a todos, em coorte,/ a se aplicarem sobre
o pasto inédito/ da natureza mítica das coisas”. Aqui cabe pensar a expressão “pasto inédito”.
Pasto é uma vegetação que serve de alimento, mas inédito? Seria um campo que nunca foi usado
com tal finalidade? No contexto do poema assinala o “pasto inédito da natureza mítica das
coisas”. A natureza mítica possui um pasto, um alimento inédito, que nunca foi visto, original e
sem precedentes. Na linguagem mitopoética esse pasto inédito é entendido como algo inaugural.
Alimento inaugural, originário. Entretanto, ligado aos sentido dos versos anteriores:
“convidando-os a todos, em coorte,/ a se aplicarem”, como vimos acima, a palavra aplicar se
101
direciona a ação de entregar-se com afinco, mergulhar e deixar com que esse “pasto inédito” nos
envolva, ou seja, entregar-se a linguagem originária e inaugural, mitopoética.
Esse apelo é auscultado sem que se ouça “voz alguma/ ou sopro ou eco ou simples
percussão” que “atestasse que alguém, sobre a montanha,/ a outro alguém,/ noturno e miserável,/
em colóquio se estava dirigindo”. Não era um apelo de algum sujeito, mas da própria linguagem:
“a linguagem fala, o homem só fala à medida que corresponde à linguagem”. (HEIDEGGER:
2004, p. 26). Essa ausculta não fora feita com os ouvidos, mas com o corpo.
De onde provém a fala da linguagem? Do silêncio.
Somente com o corpo se pode auscultar a fala do silêncio. Fala do silêncio é aquela que
vigora poeticamente no entre. É preciso estar entregue a ela de corpo para poder auscultá-la.
Essa fala é divinatória, pois ela sabe que o seu interlocutor estava procurando algo
paradoxal, ele mesmo não sabia ao certo onde procurar, dentro ou fora de si, o que “nunca se
mostrou,/ mesmo afetando dar-se ou se rendendo,/ e a cada instante mais se retraindo”. O que ao
mesmo tempo se procura dentro e fora, que não se mostra quando se dá e que quanto mais se
rende, mais se retrai? A natureza mítica ou physis e mythos. O acontecimento originário
apropriante do real que manifesta o sentido/verdade da vida. A resposta de todas as respostas não
põe a coisa, antes se reclina sobre si mesma e se encolhe atraindo cada vez mais o pensamento. E
isto, “essa riqueza sobrante a toda pérola,/ essa ciência sublime e formidável,/ (...) essa total
explicação da vida,/ esse nexo primeiro e singular” que ardentemente se pesquisou e na pesquisa
se consumiu e se mostrava arisco, inconcebível, esquivo e hermético, agora, à força de toda
renúncia, gratuitamente se doa e convida a olhar, reparar e auscultar, a abrir o peito e agasalhá-lo.
Mas que renúncia é essa, se essa palavra nem é citada no poema?
Por possuir vieses mitopoéticos, a poesia não pode ser lida unicamente nas linhas do poema,
tampouco compreendida apenas no que é dito, mas, sobretudo, nas entrelinhas é que se lê e se
compreende o não-dito. A renúncia é toda a “razão” de ser do que aparece e se mantém na
presença. A renúncia à pesquisa, que na verdade é uma investigação metodológica sustentada por
esquemas racionais visando fazer o real responder conforme sua capacidade de representá-lo, e o
passo decisivo para a iniciação nos mistérios do real.
O pensador moderno, munido de seus instrumentos intelectuais de pesquisa, supõe poder
dominar todo o conhecimento e re-apresentá-lo esquemática e conceitualmente, ignora o vigor da
realidade que, arredia, não se deixa dominar. O que o homem consegue reproduzir é o simulacro
102
da realidade e o que ele domina é o simulacro do caminho-destino, da verdade e da vida, mas não
o hodós, a aletheia e a dzoé. Entretanto, “a renúncia não tira, dá” (HEIDEGGER: 1977, p. 328).
Quando o homem renuncia a tudo o que se interpõe entre ele e a realidade com mediador e se
lança no entre, ele mergulha nas profundezas da linguagem e se torna um ser da abertura. Faz a
ausculta de todas as auscultas. Uma ausculta de vida e/ou morte, semelhante a que aconteceu com
Ulisses na Odisseia. E assim pode ouvir o apelo de todos os apelos, o apelo do ser, para ser o que
se é.
Para ser o que se é, por paradoxal que pareça, é preciso realizar-se, cujo sentido de ser é, ao
mesmo tempo, plenitude e incompletude. Plenitude por se já estar entregue ao mistério do ser,
incompletude porque esse mistério é insondável e não se pode conhecê-lo totalmente, pois ele
mesmo abriga a tensão entre ser e não ser, velamento e desvelamento, por isso mistério.
2. 2. 2 - Apelo mitopoético: ausculta do mistério
O que apela no poema é exuberante, inesperado e extraordinário sendo apontado nas
grandes obras humanas, na natureza e nos animais, também no “que foi pensado e logo atinge
distância superior ao pensamento”, no “absurdo original e seus enigmas” e nas “verdades altas
mais que todos os monumentos erguidos à verdade”. O que foi visto no poema? A própria
realidade se realizando, isto é, o mistério da physis (natureza) como logos-poietikós (linguagem
poética), o desvelar, brotação do real como linguagem.
A linguagem, essencialmente mitopoética, exprime a verdade do real multifacetadamente e
de modo inaugural, assim, manifesta o vigor do real na clareira que se abre a partir da tensão
logos/physis e physis/mythos. É nessa clareira que o sentido emerge e inaugura mundo e instaura
o destino humano.
Outro sentido para auscultar é ler. O homem apropria-se do que lhe é próprio, do seu
destino, auscultando/lendo o real que se apresenta na linguagem. Ler vem do verbo grego legein,
de onde ser formou o substantivo logos, e que possui os sentidos de pôr, depor, dispor e propor,
reunir, dizer, mundificar.
O processo de leitura não é um ato de decodificação, mas de concriação, em que o leitor e o
que se lê con-cresce, isto é, crescem, criam-se, juntos. Nesse diálogo-leitura vigora o sentido e
103
eclode a realidade como poiesis. A leitura é um desvelar originário do mistério e da verdade da
vida na linguagem, essencialmente poética, ritualizada.
A poiesis configura um real sacralizado pelo mito ritualizado originariamente no qual se
manifesta mundo. É uma linguagem viva e atuante que converte a realidade em mobilidade
perpétua, penetrando o núcleo seminal da vida e presentificando essencialmente o real.
A poeticidade de A máquina do mundo rompe com as determinações metafísico-
humanistas da cultura moderna e com as estruturas paradigmáticas da teoria do conhecimento e
pro-voca uma abertura para uma realidade conferindo ao homem a possibilidade encontrar o
sentido de sua existência, seu destino.
O homem que está em entregue à linguagem mitopoética encontra-se aberto ao devir e em
interação com o sentido de sua existência. O mundo torna-se um cosmos vivente, que se revela
pleno de sentido. Em suma, ao homem é possibilitado um diálogo contínuo com o mundo em que
habita. Esse paradoxo primordial em que o mundo é, ao mesmo tempo, aberto e misterioso
possibilita a eclosão da verdade como alétheia. O real acontece como revelação contínua num
círculo virtuoso de manifestações de sentido que inicia o homem nos mistérios da verdade e da
vida e o dispõe para a liberdade como realização maior de sua existência.
Não há explicações racionais para a realidade, o que se tem a fazer é estar à ausculta do
inaudito e inaudível em tudo que se diz e escreve: a linguagem poética, pulsação manifestante e
fundadora no sentido primordial.
A viagem ao originário assinalada em A máquina do mundo não é marcada por uma
peregrinação no espaço físico, mas no espaço original, dá-se como um caminho que se abre no
próprio caminhar. O caminhante também não é um mero transeunte, mas está imerso no entre que
tensiona caminho e caminheiro.
A viagem de retorno às origens - ao que se é - é uma re-interpretação da vida. É uma
aproximação emocional do núcleo inseminador da existência e também um interrogar-se sobre o
sentido do real. É sentir a força inspiradora que anima o devir e é estar constantemente à ausculta
dessa força, sem, contudo, que se a compreenda exaustivamente, muito menos a apreenda
totalmente. É estar no presente e ser o antiquíssimo ancião precursor do futuro.
O homem que está inserido no movimento de retorno às origens é envolvido por um
espaço-tempo míticos, além de tudo que é ou existe, e um tempo kairológico (acontecimento), ou
seja, um espaço e tempo que não é mais o que já foi, também ainda não é o que será, está em
104
constante travessia. Há um movimento comunicado por uma força que o atrai para além de si.
Como pode um movimento de retorno às origens deslocar o homem para além de si? Esse além
de si não é algo que se possa compreender como transcendência, no sentido metafísico da
palavra, mas uma força motriz que conduz além para dentro de si mesmo; é o mergulhar dentro
de si mesmo para que possa ir mais além. O retorno às fontes é, na verdade, um grande paradoxo,
assim como enuncia a palavra-guia grega arkhé, no sentido do que se lança à frente e por isso é o
começo ou o princípio ou origem de tudo.
A máquina do mundo possui um princípio gerativo que, ao mesmo tempo em que está à
frente, como vanguarda, promove o retorno ao sentido originário da poiesis: o de abrir-se para o
acontecer do real. Esse mesmo princípio gerativo se estabelece simultaneamente como origem e
originado, isto é, o princípio que preside a gênese do sentido do texto, fazendo convergir e
interagir a parte e o todo do poema. A máquina do mundo é um poema original e originário, um
apelo ao retorno às fontes de poesia e pensamento: a ausculta do real. É um convite a despojar-se
de toda auto-suficiência, do desejo de dominação formal, para se dispor à ausculta do mistério da
linguagem. O esforço não tem como finalidade atingir uma forma perfeita, que sirva de
paradigma, mas atingir o originário da obra, aquilo que a faz ser o que é, sua poética implícita.
O poema escapa aos métodos tradicionais de análise, seu sentido só pode ser pensado
fazendo-se o caminho poético que lhe dá origem. O intérprete precisa retornar à fonte originária e
originante para, de lá, percorrer concriativamente o rumo tomado. O sentido do destino do
homem, evocado no poema, não está no início nem no fim, mas no meio do caminho, é na
trajetória que se constrói sua morada. A natureza mítica das coisas é o intrínseco do real, o seu
próprio, se manifestando como uma doação de sentido do ser e do mundo de modo que possa ser
compreendido sensitiva e intuitivamente pelo homem que aponta para o mistério da consumação
da experienciação humana: a liberdade.
2.3 - O caminho da travessia
Um dos textos mais importantes em língua portuguesa em que a questão do caminho
aparece de modo bem explícito, pelo menos aparentemente, é o poema No meio do caminho, de
105
Carlos Drummond de Andrade (ANDRADE: 2007, p. 16). A experienciação poética proposta se
enuncia logo no título e se desdobra pelos versos. Abramo-nos para sua ausculta:
No meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
No meio do caminho é um poema antológico na obra de Carlos Drummond de Andrade e na
literatura brasileira. Há uma gama variada de interpretações do texto. Muitas vezes ele é vítima
de deboches e equívocos produzidos, sobretudo, pelo artificialismo metodológico da análise
estruturalista, estilística e pelo biografismo da historiografia literária dos quais se valem muitos
críticos ao interpretar a referida obra. Esses vieses, apesar de importantes, tornam-se ineficazes
quando principais ou absolutos fios condutores da leitura. A grande questão da poesia de
Drummond não é estrutural nem estilística, tampouco biográfica, no sentido historiográfico,
tampouco meramente epocal moderna, mas ontológica.
No meio do caminho é um dos poemas mais intrigantes de Carlos Drummond de Andrade:
ora considerado um texto hermético e ora um exercício lúdico de poesia, derivando outros
sentidos e acenos poéticos, enseja um desafio à compreensão da poiesis como manifestação mais
diáfana da linguagem. O meio do caminho é a questão mais contemporânea e cotidiana que o
homem moderno pode e deve pensar e, ao mesmo tempo, a questão mais ancestral, que move o
homem desde os primórdios da vida, a saber, o seu caminho enquanto habitação do ser. É o que,
por exemplo, se questiona quando se pergunta o que o poema de Drummond nos acena ao situar
todo acontecer poético No meio do caminho. A mesma questão é posta em Grande sertão:
veredas, de Guimarães Rosa: o próprio título da obra nos assinala o meio do caminho e convida a
pensá-lo. O que é o Grande sertão é apontado na palavra seguinte antecedida de dois-pontos:
veredas. Vereda é basicamente um caminho, que por derivação significa senda, atalho, várzea ao
106
longo de um rio, no regionalismo de Minas Gerais e do Centro-Oeste do Brasil é uma região de
cerrados, ou buritizais que margeiam um rio. Vereda é, sobretudo, uma clareira que se abre como
caminho. O Grande ser-tão é a abertura das veredas do destino do ser: “O sertão está em toda a
parte” (ROSA: 2001, p. 09). Grande sertão: veredas e meio do caminho dizem o mesmo.
Entretanto, nesse sentido, o que é o meio do caminho?
Heidegger faz uma pergunta semelhante no ensaio O caminho para linguagem: “O que é
um caminho?” e, em seguida coloca o que seria mais uma questão que uma resposta: “Caminho é
o que se deixa alcançar”. Mas o alcançar o quê e como? E qual é o sentido de “meio no
caminho”?
A resposta não é simples apesar de a palavra caminho significar, simplificadamente, um
percurso ou trajeto possível entre dois pontos distintos e distantes, nomeados início e fim.
Materialmente falando, é uma via construída com o intuito de ligar dois extremos e, por extensão,
viela, travessa, rua, estrada. Humanamente entendido é o resultado de experiências que culminam
no conhecimento de um fazer eficaz visando determinado fim, isto é, metodologia. Ambos os
significados apontam para uma derivação de sentido da palavra grega hodós. Mas se os sentidos
acima consistem em uma derivação, qual seria a essência do hodós?
O hodós surge de uma necessidade, não uma qualquer, mas aquela expressa pela palavra
grega anánke, como a lei interior do ser imposta pelos deuses aos homens e às coisas de serem
eles mesmos, o que se pode expressar do modo seguinte: o homem só pode ser o que ele já é. Daí
a necessidade de ser: ser o que já se é. Nisso consiste toda a necessidade humana. O ser tem como
necessidade ser. O hodós, caminho, ou melhor, o caminhar é a anánke humana é isso que nos
assinala Grande sertão:veredas: “Sertão: é dentro da gente” (ROSA: 2001, p. 235).
Caminho nomeia o aberto que permite toda e qualquer experienciação. O caminho não está
fora do homem, mas é interior a ele, o homem se move o tempo todo no caminho e este é sem
saída nem entrada - nele somos: “A gente tem de sair do sertão! Mas só se sai do sertão é
tomando conta dele dentro.” (ROSA: 2001, p. 212). Sertão é meio do caminho como destinação
humana do qual não se pode fugir: “o senhor toda-a-vida não pode tirar os pés: que há-de estar
sempre em cima do sertão” (ROSA: 2001, p. 402).
O homem tem por necessidade fazer a caminhada. Ele parte do que já é para o que ainda
não é, isto porque o sendo humano é a travessia constante e incessante do ser ao não-ser para
então ser o que ainda não se é. Caminho é o que por meio do qual e como tal o homem se
107
apropria do que ainda não é no que já é enquanto é tomado pela caminhada na doação do próprio
caminho como possibilidade para a possibilidade. E, quando se pensa ter chegado ao que se é,
então dá-se novo salto ao que ainda não é, como um círculo infinito entre ser e não-ser. O não-ser
não é o oposto de ser, antes a sua maior possibilidade. O homem caminha em busca da sua
plenitude, do grego, télos. Caminha para consumar o ser que já recebeu para ser. Aonde o homem
espera chegar? Ao inesperado. O inesperado não é uma forma pronta, acabada, concluída, mas o
sendo em seu vigor pleno. Apropriar-se do caminho é apropriar-se do que nos é próprio na espera
do inesperado: “o sertão é uma espera enorme.” (ROSA: 2001, p. 436).
O télos pode ser natural quando acontece como uma consumação da phýsis ou da ousia,
quer dizer, o caminhar do sendo como a realização de seu hodós, apropriando-se de seu próprio.
Ou, o télos pode figurar como uma convenção estabelecida por um nómos, determinando o valor
e a realização de alguma coisa. O nómos radica a anánke como uma convenção que, geralmente,
não leva em consideração, em primeira instância, a phýsis ou a ousia. Antes toda necessidade
humana é capturada tendo por fim o sentido de realização imposto. Consumar torna-se
consumismo. O consumismo gera no homem necessidades que não são naturais, por isso a sua
conquista não o realiza nem consuma o humano. O nómos como anánke, isto é, o que convém ser
necessário, determina e impõe uma dada realização como regra, numa norma à qual se exige
obediência inflexível sob a ameaça de rigoroso castigo. Mas que castigo rigoroso a desobediência
ao nómos pode causar? A exclusão. O que não se enquadra é excluído. Ser excluído é ficar fora
de uma certa classificação, ser impedido de comungar com certo grupo, ser privado de uma
identidade identitária que o credencia em determinado contexto. Entretanto, “Obedecer não é
cumprir ordens. É ob-audire, ser todo escuta de vigor desta liberdade ...” (LEÃO: 1977, p. 239).
Caminhar é deixar que o destino venha a nosso encontro e por ele ser atravessado e
obedecer como ausculta ao apelo do caminho/destino e isto é apropriarmo-nos do que nos é
próprio fazendo do caminho nossa morada. Seguindo esse viés, entra em cena a questão da ética.
A ética nos fala da nossa morada. A morada humana é uma questão desde os primórdios da
humanidade e da história do pensamento. Primeiramente a ética surge como uma experienciação
natural do humano, posteriormente vem ao pensamento como referência ao destino do homem,
isto é, habitar sua morada. Comentando o fragmento 119 de Heráclito, Heidegger salienta:
108
Diz a sentença de Heráclito (Fragmento 119) ethos anthropo daimon. Geralmente se
costuma traduzir: “a individualidade é o demônio do homem". Essa tradução pensa de
maneira moderna, não de maneira grega. Pois ethos significa estada (Aufenthalt), lugar
de morada. Evoca o espaço aberto onde mora o homem. É a abertura da estada que faz
aparecer o que ad-vém, con-venientemente, à Essência do homem e, assim ad-vindo, se
mantém em sua proximidade. A estada do homem retém o ad-vento daquilo, ao qual o
homem, em sua Essência, pertence. Isso é o Heráclito chama de daímon, o Deus. A
sentença diz pois: o homem mora, enquanto homem, na proximidade do Deus.
(...)
Ethos anthropo daimon diz o próprio Heráclito : "a morada (ordinária) constitui para o
homem a dimensão onde se essencializa o Deus (o extra-ordinário) . (HEIDEGGER:
1995, p. 85)
O caminho como hodós implica verdade do ser que realiza o seu ethos, ou seja, é o agir
apropriante. Ethos é estada, lugar de morada, isto é, o espaço aberto onde o homem de-mora e o
faz aparecer e manter-se na proximidade do que lhe é próximo, a saber, o ser. Morar inaugura a
morada, isto quer dizer que em morar espacializa-se a morada como sentido de todo e qualquer
morar, um é a medida do outro. Que lugar é esse que aproxima o homem do ser? Qual é a morada
originária do ser?
2.3.1 - O caminho no pensamento-poético-oriental
Há uma série de poemas orientais arcaicos que nos remetem a essas questões e nos indicam
o lugar. Esses poemas foram coletados em uma espécie de cancioneiro denominado Tao Te
Ching, seu principal escritor foi Lao Tse (570 a.C.), segundo reza a tradição, mas não há prova de
que todos os poemas tenham sido composições dele. Entretanto, se crê ser ele um dos iniciadores
o Taoísmo, mas, conforme a história, aos 80 anos, quanto tentava sair da China, após ser
reconhecido pela guarda da fronteira, foi conclamado a escrever a sabedoria, o que até então se
recusara a fazer. Isso indica que não havia o interesse de criar uma doutrina em torno do Tao, este
é, apenas, a maior provocação ao pensamento oriental. Esses poemas, por terem sido escritos
numa língua milenar, possuem variadas traduções. Em vez de eleger uma em que resida de modo
mais concentrado a cultura da época, o que seria já uma violação à sabedoria, pois esta perderia
sua perenidade, abramo-nos à ausculta das diversas interpretações tendo a língua como uma
realização da linguagem:
Na tradução de Humberto Rohden, sob o título A fonte do ser e os canais do devir, lemos:
109
Nas profundezas do Insondável
Jaz o Ser.
Antes que o céu e terra existissem,
Já era o Ser
Imóvel, sem forma,
O Vácuo, o Nada, berço de todos os Possíveis.
Para além de palavra e pensamento
Está Tao, origem sem nome nem forma,
A Grandeza, a Fonte eternamente borbulhante,
O ciclo do Ser e do Existir.
(TSÉ: 2003, p. 75)
Segundo o poema o ser é imóvel, sem forma, o vácuo, o nada, não obstante, “berço de todos
os Possíveis” e jaz “Nas profundezas do Insondável”. O Insondável é isto que “Está para além de
palavra e pensamento”, é “origem sem nome nem forma”, ou seja, não pode ser capturado por um
conceito. Porém o poema chama de Tao esse lugar originário, onde o ser e o existir faz sua
morada e cumpre o seu ciclo. Ser e existir não trata da antiga dicotomia essência e aparência, mas
do sendo que é, ao mesmo tempo, ser e existir. Morada é o ethos do ser. O ciclo que o ser cumpre
é o seu intenso movimento de desvelamento e velamento. Tao é também “A Grandeza, a Fonte
eternamente borbulhante”, o que para os gregos era a physis. Tao é muitas vezes referido nos
poemas como O Caminho Perfeito, mas que sentido essa nomeação possui? Podemos
compreender escutando o próprio Tao, na tradução de Murillo Nunes de Azevedo, no poema
intitulado O Tao: “O caminho que pode ser seguido / não é o Caminho Perfeito” (TSÉ: 1975, p.
1.). Parafraseando o texto, podemos dizer que: O Caminho Perfeito é o caminho que ainda não foi
seguido. Como é caminho se ainda não foi seguido? Porque não foi aberto ainda. É o caminho
que o homem habita sempre de modo original e inaugural, que se abre como doação da floresta
cerrada e somente no caminhar: “ O Caminho é vazio e inesgotável / profundo como o abismo”.
(TSÉ: 1975, p. 8.). O Caminho Perfeito, ou o Tao, é o Vácuo, o Vazio, o Nada como o berço de
todos os Possíveis, esse caminho o ser habita como possibilidade e disponibilidade. O vácuo, o
vazio ou o nada aqui não é o nulo ou o que não é habitado, mas o que é pleno de habitação. É o
que nos diz o poema onze, de Lao TSÉ: colhido do livro Itinerário, de Arcângelo Buzzi, numa
tradução bastante poética:
Trinta raios rodeiam um eixo
Mas é onde os raios não raiam
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Que a roda roda.
Vaza-se a vasa e faz o vaso
Mas é o vazio
Que perfaz a vazilha.
Casam-se paredes e se encaixam portas
Mas é onde não há nada
Que se está em casa.
Falam-se palavras e apalavram falas
Mas é no silêncio
Que mora a linguagem.
O ser presta a utilidade
Mas é o não ser
Que empresta o sentido.
(BUZZI: 1977, p. 14)
O poema tem início com a imagem de raios rodeando um eixo assinalando a ação de rodear,
mas a roda roda “onde os raios não raiam”, ou seja, a ação se dá onde vigora a não-ação.
Trabalha-se a argila e dá-se forma ao vaso, mas é o vazio que envolve por dentro e por fora o
vaso. Edificam-se as paredes, instalam-se as portas, mas é no meio do nada que a casa passa a
ser.
As três primeiras estrofes do poema apontam para as palavras-guia não-ação, vazio e nada
como referências ao que se dirá adiante: “Falam-se palavras e apalavram falas” numa intensa
produção de discursos frívolos ou logicamente estruturados, mas a linguagem mesma mora no
silêncio. A não-ação, o vazio e o nada assinalam onde a linguagem vigora, a saber, no silêncio, o
véu do ser. Nesse sentido, morar e ser é o mesmo. O silêncio vigora quando a linguagem se
oculta como fala e a fala se manifesta quando linguagem se oculta como silêncio. Essa condição
da linguagem, isto é, a de resguardar-se como velamento e desvelamento, silêncio e fala é que
permeia o discurso poético como caminho. Em que o ser, poeticamente entendido, nunca é, mas
sempre vem a ser, isto é, sendo, esse movimento consuma o humano como o que já não é o que
era, mas ainda não é o que será, está sempre em vias ou a caminho de ser o que ele ainda não é no
que desde sempre é. Por isso o poema termina dizendo: “O ser presta a utilidade”, quer dizer que,
se pensado em oposição e dissonância com o não-ser, ele é tomado de modo utilitário, serve ao
discurso metodológico que se dispõe a falar do ser e a conceituá-lo de acordo com sua ideologia.
111
Entretanto, o sentido do ser advém do não-ser. Essa tensão é a responsável pela manifestação
originária e não conceitual do ser, e a podemos denominar de diálogo-dialético.
Geralmente se fala em caminho disso ou caminho daquilo conferindo ao caminho certa
instrumentalidade. Apontando sempre para algo, o caminho se torna um meio para determinado
fim. Esse sentido é certo, mas em termos. O caminho é um meio e o meio é o caminho, mas nem
sempre para um fim. Tem o caminho um fim em si mesmo, então? Também não! Mas como? O
caminho é o sem fim, o labirinto do meio. Insondável: vazio e inesgotável. “Todas as coisas são
produzidas pelo Tao e nutridas pelo seu constante fluir”. (TSÉ: 1975, p. 95.). O caminho pro-
duz, ou seja, traz a presença todas as coisa por meio de seu constante fluir/caminhar.
Outro poeta e pensador oriental de há quase dois mil e quinhentos anos é Chuang Tzu, a
coletânea de seus poemas recebeu o título em língua portuguesa, na tradução de Thomas Merton,
de A Via de Chuang Tzu, ele também se debruça extasiado diante do Tao e bebe de sua fonte. Um
de seus poemas diz que “o homem nasce no Tao”. Note-se que ele não diz que o homem nasce do
Tao, mas no. Esse no assinala não a proveniência genesíaca, o homem não nasce do caminho,
mas a proveniência local, no caminho. E termina o texto asseverando: “Tudo de que o homem
necessita / É de perder-se no Tao”. (MERTHON, 2003. p. 102). O caminho é o lugar do homem
como existência. Entretanto, o caminho não se limita a existência. Ouçamos o Tao:
Aqui, o saber mais elevado
É ilimitado. O que concede às coisas
Sua razão de ser, não pode limitar-se pelas coisas.
Assim, quando falamos em “limites”,
Ficamos presos as coisas delimitadas.
O limite do ilimitado chama-se “plenitude”.
O ilimitado do limitado chama-se “vazio”.
O Tao é a fonte de ambos. Mas não é em si,
Nem a plenitude, nem o vazio.
O Tao produz tanto a renovação quanto o desgaste,
Mas não é nem renovação, nem o desgaste.
Produz o ser e o não-ser,
Mas na é nem um, nem outro.
O Tao congrega e destrói,
Mas não é nem a Totalidade, nem o Vácuo.
(MERTHON, 2003. p. 185).
Tao, como caminho é também linguagem e por isso é que fala de modo originário. Ele é a
fonte de todas as coisas, assinalado como “o saber mais elevado”. As questões que ele coloca,
apesar de escrita milenar, são as que mais incomodam o homem moderno: limite e não-limite,
112
origem e finitude, ser e não-ser, saber e não-saber, plenitude e vazio etc. São estas as questões
que nessa tese nos movem e constam de todas as grandes obras poéticas e do pensamento, todas
elas aparecem relacionadas ao destino.
2.3.2 - O caminho: do oriente ao ocidente
O que por ora se diz nos poemas arcaicos parece inconsistente, loucura ou verborragia. Isso
ocorre porque o caminho não se deixa agarrar por conceitos. O caminho é paradoxal em si
mesmo. Heráclito, praticamente contemporâneo de Lao TSÉ, nos assinala no fragmento 60:
“Caminho: para cima, para baixo, um e o mesmo”. O caminho é entre o para cima e o para baixo,
o vazio que vigora e permite os movimentos contrários, mas não excludentes. O caminho
congrega o que mais tende a se opor como desafio recíproco: “O sertão é bom. Tudo aqui é
perdido, tudo aqui é achado...” – ele seo Ornelas dizia. – “O sertão é confusão em grande
demasiado sossego...” (ROSA: 2001, p. 343). Perdido-achado, confusão-sossego, os contrários
possibilitam toda e qualquer manifestação como pro-vocação mútua. A luz brilha mais nas
profundezas das trevas, e esta precisa da luz para ofuscar. O Tao nos diz: “O movimento do Tao
nasce dos contrários / a franqueza é o meio de que ele se serve / Todas as coisas nascem dos Ser;
o Ser nasce do não-ser”. (TSÉ: 1975, p. 77.). Uma outra obra poética também milenar, esta da
tradição judaica, conhecida como Livro de Jó, este, segundo a tradição, era um sábio que viveu
cerca de 2000 anos antes de Cristo. Sua sabedoria nos acena para o caminho do seguinte modo:
“Que caminho leva ao lugar onde a luz tem sua casa? / E as trevas, onde elas habitam? / Se você
soubesse, poderia levar cada um para o seu lugar e pô-los no caminho de sua casa.” (Jó. 38:19 –
20). Uma outra tradução diz: “Onde está o caminho da morada da luz? E, quanto às trevas, onde
está o seu lugar, para que tragas aos seus limites, e para que saibas as veredas da sua casa?”.
Ambas as traduções são valiosíssimas, pois indicam um caminho onde a luz e a treva habitam,
esse caminho é o limite de ambas. Se entendermos que trevas e luz se opõem tensionalmente,
onde se situa o caminho? Entre luz e trevas! E porque apontar esse caminho? Para saber ou
discernir as veredas ou os limites de sua casa ou habitação, do seu ethos.
Ethos nos fala de um habitar, mas que habitar é esse? Não é de uma disposição moral,
afetiva, intelectual, temperamental ou comportamental que ethos nos fala, mas de um habitar
113
humano. Ethos é o caminho que o homem habita. Um outro nome que se dá ao caminho que o
homem habita, segundo HEIDEGGER: é linguagem: “A linguagem é a casa do Ser. Em sua
habitação mora o homem.” (HEIDEGGER: 1995, p.24). Morar é um habitar como estar presente,
permanecer e também tornar habitual. Na linguagem o ser se destina à morada como habitação. O
homem se presentifica nesse habitar a linguagem e faz dela o seu lugar de permanência e
vigência, isto é, a torna habitual, faz dela o seu caminho e caminhar como essência própria de seu
destino. Morar é enraizar-se, fixar raízes em algum lugar. Fixar raízes é uma metáfora para
estabelecer-se ou firmar-se de maneira definitiva e profunda em algum lugar propício, de modo
que se propicie ou se resguarde o seu destinar-se, como pôr-se rumo à eclosão do ser ou, de outro
modo, construir sua morada. Construir a morada é deixar vir à presença o que se é, o destino
humano. O caminho é o abrigo do destinar-se humano, isto é, o amparo de seu acontecer. A
linguagem é a casa do ser. O ser se destina no sendo trilhando o seu caminho e fazendo dele
morada. O que se põe como questão primordial é a essência do destino humano que se expressa
na imagem poética do Caminho. É no caminho que o homem constrói sua morada.
Voltemos ao “meio do caminho”. A palavra caminho, entre outras enfatizadas nos versos de
Drummond, é muito mais que pleonasmos em forma de hipérbatos e anáforas. A economia de
palavras com que se ordena o poema, apesar da repetição, constitui algo primordial: um aceno
para que as pensemos com afinco e radicalidade. Pensar as palavras com radicalidade é fazê-lo
em sua essência na essência do próprio pensar enquanto palavra. É deixar-se levar à origem mais
profunda, ao intrínseco à natureza mesma da linguagem, onde as palavras nascem ou brotam e
perfazer sua história. O enredo historial da linguagem não é simplesmente uma historiografia,
mas entramar do tecido pleno de caminhos entre os vazios como possibilidades mais profundas
de urdiduras do destino. O enredo historial ou a história do caminho não é historiografia, mas
uma fala que manifesta a tensão entre vazio e figuração. Pensar com radicalidade é pensar com
afinco.
Pensar com afinco é o mesmo que dizer pensar com perseverança. Perseverar é estar
entregue ao caminho, à travessia (per-) com severidade e disciplina. É deixar-se seduzir pelo
caminho num caminhar inaugural pelas veredas da vida. Quando se percorre as veredas da vida
se descobre a vida como experienciação originária.
O vocábulo experienciação possui o mesmo radical da palavra perigoso, do grego per-, que
forma tanto o verbo grego perao, que significa originariamente: atravessar, quanto o substantivo
114
peras: limite. Perig- é um antepositivo do antigo verbo latino periri, depoente, de que subsiste
em latim o particípio passado perítus, com a acepção daquele que tem a experiência de ou é hábil
em. Os derivados latinos desse verbo, dentre outros, são: experìor, significando tentar,
experimentar; experientìa, prova, ensaio, tentativa ou experiência, manifestando o sentido de
experiência adquirida, dá também pericùlum e períclum, tentativa que envolve risco, perigo,
donde periculósus, perigoso e periclìtor, na acepção de fazer uma tentativa arriscada, em perigo,
aquele que assim age é chamado de perítus, que sabe por experiência, sábio, instruído, perito e há
também, por oposição, imperítus, inexperiente, ignorante e imperitìa, inexperiência, ignorância.
Todas essas palavras têm relação com o grego peíra, gerando a idéia de prova ou tentativa,
peiráó, tentar, empreender. O radical perao, antecedido pelo prefixo ek- (movimento para fora)
reforça a idéia de atravessar, nomeia a ação de inaugurar um caminho novo através da própria
ação de caminhar.
Toda experienciação gira em torno da travessia perigosa de um caminho. Por que a
travessia é perigosa? Porque toda situação de perigo é uma situação limite, é um desafio, onde ou
se morre ou se faz uma experienciação. É uma provocação na qual o oponente obriga a parte
contrária a dar uma resposta. Todo desafiado é forçado a dar uma resposta ao desafio. Provocar,
composta pelo prefixo pro-, é manifestar, pôr diante de, e o radical -voc-, que tem como
significação mais próxima, voz. Unidos, prefixo e radical, pro-vocar é com-vocar
desafiadoramente para diante de si uma outra voz. É um apelo a uma outra voz. Nesse apelo está
operando o polemos, o conflito, o desafio, o duelo. O desafio é uma com-vocação a uma outra
fala. Com-vocare, é trazer para junto de si uma outra fala no sentido de reunir, chamar/trazer para
junto, pôr diante de si de modo em que haja uma com-preensão, um tomar posse, prendendo
junto a si o que surgiu ou nasceu naquele momento. Com-vocar outra fala desafiando-a é o que os
gregos nomearam originariamente diá-logo. No diálogo embatem-se dinamicamente desafiante e
desafiado. O desafiante não é um ser fixo, mas é definido pelo ato de desafiar. O desafiante e o
desafiado é uma posição mutável, num jogo em que ora desafia ora se é desafiado. Desafiar e ser
desafiado são duas coisas distintas, duas posições que mantém sua singularidade independente de
quem as assuma. Resta-nos, então perguntar o que ou quem nomeia esses dois modos como o
agir se apresenta, ou ainda, simplificando, quem ou o que desafia e quem ou o que é desafiado?
Drummond intitula seu poema No meio do caminho e, além disso, essa expressão é evocada
ao longo do mesmo como um lugar de domínio privilegiado donde emerge o sentido do texto e,
115
ao mesmo tempo, para onde o sentido se destina. Qual é a importância dessa expressão? Qual seu
sentido ou, em outras palavras, que acontecimento ela nos acena? O meio do caminho é lugar de
abertura. O meio do caminho é uma imagem poética porque opera o agir da physis no logos. A
palavra caminho nomeia o entre de duas realidades, duas direções, a do início e a do fim. O
caminho nomeia o que já não é e o que ainda não chegou a ser. No verso de Drummond essa
questão está enunciada pela palavra meio. Meio possui várias acepções: como uma delimitação
fracionária, significa que ou o que é duas vezes menor que a unidade; para a ciência é o conjunto
de elementos materiais e circunstanciais que influenciam um organismo vivo, um grupo social,
como aquele estabelecido pela família, profissão, classe econômica, contexto geográfico a que
pertence uma pessoa etc; ou ainda, procedimento, objeto, instrumento que permite a realização de
algo, útil para ou que permite alcançar um fim, dentre outras acepções destas derivadas. Em No
meio do caminho, no entanto, a palavra meio faz vigorar um sentido que, ao mesmo tempo em
que assinala a ruptura, faz convergir bordos de realidades equidistantes, duas extremidades, como
o princípio e fim. O meio inaugura o centro de um espaço, um lugar que dista igualmente de
todos os pontos a seu redor e, no mesmo momento em que separa em duas partes essa realidade,
as congrega como “metades”4 numa dimensão ainda mais ampla, ocupando uma posição entre
duas ou mais coisas. Originariamente, meio cria sentido no grego a partir do prefixo metá-, que se
entende como no meio de e entre e caminho, em grego, se diz hodós. Meio é o entre-caminho
nomeado no poema. No grego, a fusão desses dois elementos daria a palavra metá-hodós, que
origina método em português. No meio do caminho é onde tudo acontece. Dizer isto é dizer que o
meio do caminho resguarda um acontecer.
Resguardar é guardar com cuidado, abrigar, velar, defender, vigiar, mas é também estar
voltado para. O meio do caminho atrai o nosso cuidado voltando-o para algo que assinala um
acontecer. O meio do caminho assinala uma abertura, no dizer de HEIDEGGER: uma clareira, e
nos atrai para o que acolhe, para o que abriga velando. Algo se nos acena No meio do caminho.
Todo o vigor do caminho se realiza no que permanece, “O que permanece, porém, inauguram os
poetas.” (HEIDEGGER: 2004, p. 132). Mas o que permanece? O que se consegue prender. Não
um prender como uma teoria ou um conceito ou um senso comum, mas o prender que preserva a
abertura proporcionada pelo meio do caminho. Esse prender se dá no aberto, diá, do logos,
portanto como um movimentar-se no caminho, como travessia.
4 “Metade” no sentido de realidades que, mesmo distintas, se co-pertencem.
116
2.3.3 - De-morar: a travessia do caminho
No meio do caminho o silêncio desafia a fala e a fala convoca o silêncio. O desafio que
convoca é uma questão que obriga a uma resposta, mas não uma resposta definitiva, capaz de dar
contas da totalidade do saber invocado na questão. Mas a resposta convocada por esse desafio é
uma resposta que re-põe a questão, porque toda questão, já de si, tem e não-tem uma resposta.
Assim como toda resposta, no sentido originário, é um apelo a outra questão. O silêncio provoca
a fala, assim como a questão provoca a resposta, e a fala con-voca o silêncio, assim como a
resposta con-voca a questão de modo que silêncio e fala, questão e resposta se co-pertençam
tensionalmente. Essa tensão que vigora no diálogo une separando e separa unindo dimensões da
mesma realidade. Do latim d(e/i) mensìo,ónis, dimensão é a coexistência de duas medidas,
posições, grandezas ou valores de modo interativo, ou seja, de modo interagente. A interação é
ação recíproca, um enfrentamento que obriga a uma expansão. Na interação concebida como um
embate de valores, os oponentes não visam à destruição um do outro, mas obrigam-se a serem
mais. Assim, na linguagem, o embate não visa a uma predominância de um significado sobre
outro, mas a uma eclosão ainda maior de sentidos na tensão operante. A tensão opera por meio da
inter-ação. Inter é a tensão do entre. Valor está ligado a palavra latina pretium, que dá no
português, preço.
A interação operada pela tensão é uma inter-pretium-ação, a ação de interpretar, ou uma
interpretação. A ação de interpretar com-voca o homem para diante de si mesmo, do mundo e de
todas as demais coisas com vistas a um embate que promova a manifestação de sentidos. Ora o
que se manifesta não é criado no ato de manifestar, mas é o eclodir daquilo que já estava
guardado, oculto, velado. O manifestar é um des-velamento, é um entre-abrir-se do mistério. Do
grego mutus (mudo), mistério nomeia uma cerimônia religiosa secreta ou a guarda dos segredos
dos ritos religiosos. O meio do caminho assinala o lugar de experienciação radical do homem
consigo mesmo e com as coisas, em que se enfrenta o sentido mais profundo da existência ao
entre-ver o mistério eclodindo na revelação enigmática de que o meio do caminho da vida é o
meio do caminho da morte e vice-versa. No dia-logo, assim entendido, abre-se o espaço da
interpretação na qual se manifesta o mistério da vida. O mistério nunca se manifesta primeira e
117
originariamente como conceito, mas sempre como uma imagem poética. Poética vem do grego
poiein, e seu sentido original nomeia a ação de eclodir, brotar. Junto a poiein, duas palavras
possuem sentido originário no grego, logos e physis. Logos nomeia ação de reunir tensionalmente
o que tende a se opor e physis e a ação de brotar de si mesmo, desvelando-se, ao mesmo tempo
em que tende à própria ocultação, velamento. Poiesis é um agir, mas não é toda ação que se pode
denominar poiesis, somente aquela em que ação da physis eclode no logos.
Poiesis não é um eclodir dispersivo, mas um manifestar que ao mesmo tempo salvaguarda o
que manifesta. Por esse motivo, a poiesis também está em tensão permanente com a memória. A
poiesis advém do canto das Musas, que são as filhas de Mnemósine, memória em sentido
originário. As Musas cantam o que foi, o que é e o que sempre será. A memória insere em nosso
contexto a questão do tempo: só há tempo porque há memória e vice-versa. Tempo e memória se
tensionam num embate em que um impele o outro a uma ampliação maior de sua essência.
Memória e tempo se manifestam na e como linguagem, por isso os podemos conhecer.
Tempo e memória são doações do sagrado na e como linguagem. Essa irrupção do sagrado
e seus mistérios eclodem na imagem de Hermes, o deus portador das falas sagradas, isto é, o
guardião da linguagem. Hermes, o mensageiro dos deuses, o deus dos caminhos, é a própria
linguagem que se doa aos homens e os convoca à ausculta do Sagrado.
O homem no meio do caminho é um iniciado nos mistérios de Hermes, o mediador entre
terra e céu, mortais e imortais. É ele quem permite a mediação entre o que se oculta no que se
manifesta. A linguagem poética é sempre ambígua, mas não no sentido em que geralmente se
concebe, como o que possui duplo significado. A ambiguidade da linguagem opera a tensão entre
velamento e desvelamento recuperando o sentido originário da verdade como a-letheia. A
interpretação, para que a linguagem nos fale de fato, deve ser um abrir-se para a ausculta da
linguagem, ou seja, habitar a essência da linguagem, a essência da linguagem é essa ambiguidade
originária, a tensão entre velamento e desvelamento.
A tensão entre velamento e desvelamento é um modo de ser da physis que nos advém por
meio da salvaguarda do logos poético. A ausculta acontece à medida que o homem habita.
Auscultar é habitar. O meio do caminho é um lugar de habitação que convoca o homem para o
mais próximo de si mesmo, para o enigma da vida. O habitante do meio do caminho é um ser-
em-travessia. O ser-em-travessia não é mais um entre outros, mas é o próprio ser entregue ao seu
destino, isto é, rumar para o desconhecido radicado em si mesmo. É a luta do ser com seus
118
avessos. O ser-em-travessia é a manifestação do ser em seu pleno vigor, pois já não se é o que
era, mas ainda não se é o que será, como diz Heidegger: “Tanto o não-mais-ser como o ainda-
não-ser pertencem ao vigor de ser.” (HEIDEGGER: 2002 b, p. 161.).
O ser e o não-ser é uma condição do ser e seu vigor. O ser é sempre ser-em-travessia.
Pensar o ser-em-travessia é corresponder ao apelo do vigor e à condição do próprio ser. Ao
enunciar poeticamente o meio do caminho, Drummond está nos convidando a pensar o ser que se
põe em travessia e, além disso, a própria travessia. Pensar o ser é habitar a travessia. Toda
travessia é uma travessia de ou em. Onde se presume acontecer a travessia? No meio do caminho.
E é No meio do caminho que o homem encontra não o, mas encontra-se com o sentido (da vida).
No meio do caminho é que o ser é. O ser eclode em sua essência no meio do caminho. Em que
caminho o ser é lançado para que ele ecloda em sua essência? Não é em qualquer caminho que o
ser eclode no que é, isto é, em sua essência, mas no caminho da linguagem, em outras palavras,
fazendo da linguagem seu caminho. Como caminho, a linguagem é sempre um enigma.
É comum o pensamento de que o homem cria a linguagem e dela se faz senhor para seu uso
como instrumento de comunicação. Mas é exatamente o contrário, o homem não possui
linguagem, antes é a linguagem que tem o homem. Ele só pode estar no meio do caminho-
linguagem por este motivo, e é também por isso que ele pode encontrar-se com sua essência, pois
“o acesso à essência de uma coisa nos advém da linguagem.” (HEIDEGGER: 2002b, p. 126.). É
habitando o caminho-linguagem que o homem se revela em sua essência. Habitar é deixar-se
estar possuído pelo caminho-linguagem, pois “o homem é a medida que habita.” (HEIDEGGER:
2002 b, p. 127.).
Heidegger diz que habitar é também um resguardar. Resguardar tanto corresponde a tudo
que tem por fim livrar alguém ou alguma coisa de perigos ou danos, quanto de preservar o direito
de alguém ou alguma coisa ao seu recolhimento. Habitar a linguagem é garanti-la livre de perigos
e danos e, também, preservar o direito que ela tem ao seu recolhimento, ou seja, o seu direito de
silêncio. Preservar o silêncio é abrigá-lo, isto é, tê-lo a salvo e salvarmo-nos nele. O meio do
caminho-linguagem abriga-nos enquanto o abrigamos em nós. Habitamos a travessia quando ela
nos habita, nesse sentido, o homem torna-se um ser-em-travessia o que corresponde a dizer um
ser-da-linguagem. Habitar a linguagem é um corresponder à linguagem, segundo Heidegger:
“Habitar é bem mais um demorar-se junto às coisas.” (HEIDEGGER: 2002 b, p. 127.). Quer
dizer: fazer a experienciação da coisa. Demorar-se junto à linguagem é fazer a ex-periência da
119
linguagem. Fazer a ex-periência da linguagem é atravessá-la e, na travessia da linguagem, fazer a
travessia da vida inaugurando o caminho enquanto verdade e vida, correspondendo à pro-
vocação do silêncio.
Quando o homem corresponde à pro-vocação do silêncio ele é conclamado a uma fala
emergente, portadora de uma sabedoria inaugural, pois é a fala de um enigma, do mistério da
linguagem. A linguagem como mistério é sempre enigmática. Enigma é uma fala oracular cuja
essência se revela sempre ambígua. A fala da linguagem é portadora de uma sabedoria originária
e inaugural, pois ela resguarda o silêncio em sua fala. Fazer a travessia do caminho-linguagem é
fazer a travessia de si mesmo enquanto sentido, verdade e vida.
O sentido do caminho é o caminho do sentido. Ser é sentido. Ser é caminho. O caminho não
está situado num lugar, antes é o caminho que funda o lugar. O lugar é uma doação do espaço e
do tempo. O caminho é o espaço-tempo-entre do qual e no qual o ser emerge como ser. É na
travessia do caminho-linguagem-espaço-tempo-entre que o ser encontra o sentido e a sabedoria
(sabor) da vida. A travessia é sempre uma travessia entre saber e não-saber, entre o que já se sabe
e o que ainda não se sabe. Em toda travessia empreendida poeticamente se dá um saber inaugural,
o saber da experienciação do caminho-linguagem, da verdade-linguagem e da vida-linguagem.
Percorrer a travessia é abrir espaço para que o ser ecloda como hodós, aletheia e zoé. O enigma
opera a tensão entre saber e não-saber. Uma das formas para saber, em grego, é ginosko, que
possui sentidos principais de vir a conhecer e chegar a saber. Conhecer, do grego gnorizo, possui
acepção mais importante ao manifestar a intimidade mais profunda que se pode ter com algo,
muitas vezes, é a palavra utilizada no sentido religioso para nomear a relação sexual entre homem
e mulher. Saber possui em latim a acepção de sapère, com o sentido de ter sabor, ter bom
paladar, ter cheiro ou sentir por meio do gosto.
Saber a travessia é com ela ter uma intimidade profunda e sentir seu sabor de modo muito
intenso. Saber a travessia é conhecê-la no sentido originário de nascer com ela. O homem eclode
como travessia ao se pôr em travessia. A grande questão do homem é eclodir como ser-em-
travessia, isso só acontece quando ele se põe em travessia rumo ao sentido da vida. O sentido da
vida é travessia. A vida é travessia. O homem é travessia. A travessia se dá a partir da linguagem.
“A linguagem pertence, em todo caso, à vizinhança mais próxima do humano”, diz Heidegger
(HEIDEGGER: 2004, p. 7). O que diferencia o homem dos outros animais é a referência que ele
desenvolve na linguagem. Caminhar é relacionar-se com a linguagem e é a partir dela que o
120
caminho se mostra. Caminho é ek-sistência enquanto linguagem, isto é, é na linguagem que
homem existe, esse existir é o seu caminhar.
2.3.4 - Destino: a trajetividade humana no caminho do pensamento
Dois versos chamam atenção para o que seria um caminho de pensamento na poesia de
Drummond, são os seguintes: “Uma pedra no meio do caminho/ ou apenas um rastro, não
importa” (ANDRADE: 2007, p. 115). A poesia tem o poder de ser densa em sua economia e de
falar profundamente dizendo pouco. Atentando para o título: Consideração do poema, num
primeiro momento, podemos entender que consideração fala do exame detido ou refletido de
algo, de um olhar ou fitar atencioso e minucioso que se presta a reflexão sobre coisa, fato,
possibilidade, pessoa ou sobre si mesmo. Considerar é um outro modo de se referir ao
pensamento. No considerar, pensar, refletir, cuidar, conceber, julgar, interessar, atentar, imaginar,
conceber e respeitar se coadunam. Pensando simploriamente, diríamos que consideração do
poema traduz o efeito dos verbos alistados sobre ele como um direcionar-se ao poema, entretanto,
pode fazer o caminho inverso, do poema podem partir e até para ele retornar fazendo o caminho
de um círculo.
Toda consideração se posta a uma definição, porém, no poema, entretanto, a questão
proposta pela consideração é a abertura de sentido, a palavra-chave no poema é caminho, que
assinala, mais do que um trajeto, a trajetividade humana, indicado em outra palavra-chave: rastro.
Rastro é uma pegada, um vestígio deixado por uma pessoa no seu caminho e põe em
questão essencialmente a tensão entre caminho e caminheiro. Se pensarmos a palavra caminho,
não apenas em sua raiz etimológica, mas, sobretudo histórico-cultural, teremos, como já
dissemos, o seu vigor assinalado no grego antigo hodós. Usualmente conhecido no uso da palavra
método, metá-hodós, assinala a ideia de caminho para ou entre, não como um caminhar qualquer,
mas um desdobrar-se no caminho penetrando a essência da caminhada. Nesse sentido, caminhar é
palmilhar que lança o homem nas questões referentes ao seu destino, em outras palavra, é
destinar-se.
Pode-se deduzir e afirmar ser o rastro uma marca impressa no caminho pelo caminheiro. E
o é, mas é mais, muito mais. O rastro pertence ao caminho ou ao caminheiro? O rastro é onde
121
caminho e caminheiro se diferenciam e identificam ao mesmo tempo. No rastro caminho e
caminheiro se perdem. Não um perder no sentido de ficar sem a posse de algo. Isso também, mas
vai além. Um “perder-se no outro” é deixar-se apossar pelo outro de tal modo que se co-
pertençam tensionalmente. Pertencer-nos fala da propriedade no sentido de nomear o que é
próprio de cada um. A propriedade de cada um foi nomeada pelos gregos como destino. É na
tensão entre caminho e caminheiro que surge o destino. O destino se destina ao homem como
sentido, ele é o que sendo se doa no combate (polemos) de ser e não-ser. O destino é silêncio e
fala. Não como um dualismo, antes um é a condição de possibilidade do outro: silêncio da fala e
fala do silêncio, isto é, mistério e revelação. Mistério e revelação implicam-se mutuamente como
possibilidade intrínseca a sua existência, de modo que não pode haver um sem o outro, como dois
lados de uma moeda que se co-pertencem e sustentam a vigência recíproca. A esse movimento
tensional de mistério e revelação os gregos denominaram aletheia, ou, em português,
desvelamento.
Rastro também é o nome que se deu a um antigo instrumento de ferro usado para sulcar a
terra, do qual outros se originaram. Ainda é uma marca deixada no caminho que assinala uma
passagem, uma travessia. O rastro não é simplesmente um símbolo, mas algo que vigora entre o
caminheiro e o caminho. É o modo como o caminheiro feriu o caminho e o caminho se doou a
este. Ferir, nesse sentido, não é causar um dano, mas um modo de tanger o caminho e por ele ser
tangido. O rastro anuncia o mistério do que foi, no que é, por isso, (está) sendo. Ou seja, o rastro
é sempre anúncio de algo que passou, mas, permanecendo como rastro, faz vigorar o que ainda é.
O sendo do rastro é a tensão entre o que foi, o que é e o que será. O sendo é o não deixar de ser.
O rastro é a imagem do sendo como marcas da vida. Ele faz, nesse seu movimento originário de
permitir vigorar o que foi, é e será, eclodir o mistério da própria vida. A vida não deixa rastro. É
impossível separar rastro da vida, seria o mesmo que seccioná-la entre passado, presente e futuro.
É como dizer vida passada, vida presente e vida futura. Essa distinção seria cortar e recortar a
vida a fim de manipulá-la, explicá-la e defini-la. Entretanto, a vida é uma só: rastro inexplicável
que assinala a presença ferindo tempo e espaço.
A poesia é rastro como confluência de caminho, verdade e vida.
A palavra caminho nomeia uma das mais profundas experienciações humanas. Caminhar e
viver diz o mesmo. O caminho da vida é viver. Entretanto, a questão que daí surge é a vida do
caminho. O caminhar é um desvelar incessante do mistério (verdade) da vida, mas isso depende
122
da vida do caminho. Implica, então, saber caminhar. O saber caminhar é um saber existencial,
não se diz teoricamente. Caminhar é abrir-se para a vida, é luz, libertação, sentido, nas palavras
de Heidegger: “abrir um caminho para se apreender o ser originário da própria pre-sença.
(HEIDEGGER: 2002a, p. 185). Caminho é uma construção do pensamento enquanto
questionamento. O lugar primordial de todo e qualquer questionamento é onde reside a questão, e
esta tem o seu lugar na linguagem.
A sabedoria primitiva dos mitos, das religiões e das filosofias evocam a imagem do
caminho como questão preponderante. O Tao Te Ching apresenta o Tao como fio condutor mais
radical de seu pensamento, porém, Tao não é simplesmente caminho, mas o caminho do meio,
que é o meio do caminho. Fazem o mesmo percurso a Via de Chuang Tzu, os mitos gregos e
outros, as narrativas e poesias judaicos, do chamado Antigo Testamento e judaico-cristão, do
Novo Testamento, ainda, as poesias diversas do verso e da prosa das eras mais remotas até a
atualidade, para citar alguns exemplos. Do oriente ao ocidente a poética é uma só. O caminho é
uma imagem constante mesmo quando não tão explícito, pois em toda obra de linguagem o
caminho se apresenta no “como”, o modo de ser de tudo o que vem à presença, inclusive do
próprio “vir”. O que escrevo agora é a experienciação do caminho enquanto escrita e não
somente como tema. O modo como as coisas vem a ser e são é caminho e caminhar.
Rastro é o que permanece do que muda, é o que fica da caminhada e ao mesmo tempo o que
evidencia o caminhar. Rastro também é o destino ainda não manifesto guardado no silêncio do
passo seguinte, existindo como possibilidade vital, é o que era, o que é e o que será na vida do
caminheiro e do caminho: rastro é memória. E não é sempre o mesmo no fluir do tempo e do
espaço. Rastro e caminho se tensionam e concedem sentido um ao outro, é o gastar-se do
caminho e do caminheiro, o anúncio do porvir e do que foi. É a intimidade da existência se
doando como experienciação, e é tudo o que consuma a vida como experienciação mais profunda
e manifesta o que somos. Nesse sentido, a poesia é o rastro mais íntimo ao ser humano.
2.4 - Destino: gestualização da vida
Não podemos falar da linguagem ou sobre ela, somente a partir dela, ou seja, a partir do que
ela mostra, a isto chamamos caminho. É a linguagem que convoca o homem e o faculta a pensá-
la oferecendo-lhe o caminho para isso. A linguagem nos devolve o pensamento que a devotamos:
123
pensar a linguagem é pensarmo-nos enquanto seres da linguagem e não simplesmente dotados
dela. A linguagem é a provocação maior que desafia o ser humano.
Caminhar pressupõe nos fazer chegar a algum lugar, mas o lugar originário a que nos leva o
caminhar é onde já estamos, é disso que Drummond nos fala no poema Mãos dadas:
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.
(ANDRADE: 2007, p.80)
O que se põe em questão no poema? Antes de pensar isso, primeiramente devemos
perguntar quem põe a questão ou as questões. O que se manifesta como princípio norteador de
sentido no texto brota de uma fonte subjetiva como reflexão sobre uma realidade objetiva e/ou
também subjetiva? Certo é assim que se pensa, mas será que esse pensar se aproxima da essência
da poesia que se manifesta no poema?
O mundo não muda, se ele mudasse seria razoável que tivesse diversos atributos, o tempo é
que faz com que tenhamos diversas percepções do mundo. A resposta nos vêm nos versos de
Caeiro:
O Universo não é uma ideia minha
A minha ideia do universo é que é uma ideia minha.
A noite não anoitece pelos meus olhos.
A minha ideia de noite é que anoitece por meus olhos.
Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos
A noite anoitece concretamente
E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso.
(PESSOA, 2005, p. 113)
124
Embora universo aqui não seja a mesma coisa que mundo por nós referido, diz o mesmo,
porque universo é também como mundo e vice-versa. É muito comum a poesia de um poema
dialogar com a que se manifesta noutro, pois todos os poemas têm a mesma fonte, a saber, a
linguagem. Alberto Caeiro entende que as coisas não são uma projeção da ideia, mas são em si e
por si mesmas. Na linha da filosofia, ideia possui várias acepções e conceitos, como um modo de
se dar o pensamento, ideia é uma forma de intuição de universo ou mundo. Entretanto, o universo
não é dado pela intuição, o que por ela é dado é a compreensão. A intuição abre a compreensão,
isso não quer dizer que ela instaura uma relação entre sujeito e objeto, a fim de perscrutar o
intuído. Apesar de toda intuição e compreensão o universo continua existindo, a noite
anoitecendo concretamente e o mundo mundificando num espetáculo que dispensa a necessidade
de platéia. As coisas existem não como objetos e também não se subordinam a subjetividade.
Elas são. Mundo não é uma produção do sujeito, mas é o que acontece.
A questão colocada por Drummond no poema Mãos dadas é o mundo. O poema começa
dizendo: “Não serei o poeta de um mundo caduco./ Também não cantarei o mundo futuro”. Não é
o poeta que produz a poesia, mas o ser poeta é uma doação da própria poiesis. Poeta é sempre
poeta do mundo, o que eclode na poesia chama-se mundo. Talvez essa seja a melhor “definição”
para mundo: o que eclode na poesia e a própria eclosão poética, assim, mundo tem uma
conotação substantiva e verbal ao mesmo tempo. A força poética desses versos é muito grande
dada seu poder de manifestação. Mundo eclode na poesia e como poesia, não um mundo caduco,
mas também não um mundo futuro, pode-se concluir então que é o mundo presente, como
costumeiramente se entende. Entretanto, mundo para ser precisa de um atributo? O poema fala de
mundo caduco e mundo futuro, mas não fala especificamente em mundo presente. Abaixo ele
afirma que “o presente é tão grande”. Será que presente aqui trata de um atributo de mundo? O
tempo é um atributo? Mundo precisa de atributos? Se tempo fosse atributo de mundo não seria
ele um conceito, uma forma de caracterizar ou classificar?
Passado, presente e futuro não são atributos, são modos de realização do tempo, não como
cisão, mas como a forma do tempo chegar à compreensão humana. A linguagem fala como
tempo, espaço, compreensão, vida etc. A linguagem fala e tais coisas se nos revelam na fala da
linguagem, não como conceitos, atributos ou ideologias, mas como questão. A linguagem não é a
adequação das coisas às categorias do conhecimento, isto é, à representação. Ela deixa as coisas
ser o que são em sua fala. O homem dialoga com o mundo a partir da linguagem. Esse diálogo
125
pode ser instrumentalizado quando o homem impõe a sua fala sobre o real e se volta para a
linguagem numa tentativa de dizer o que é o real ou classificá-lo, ou pode ser originário quando o
homem se põe à ausculta do real. Heidegger chamou esse diálogo originário de “morar”:
Para pensar a linguagem é preciso penetrar na fala da linguagem a fim de conseguirmos
morar na linguagem, isto é, na sua fala e não na nossa. Somente assim é possível
alcançar o âmbito no qual pode ou não acontecer que, a partir desse âmbito, a linguagem
nos confie o seu modo de ser, a sua essência. Entregamos a fala à linguagem. Não
queremos fundamentar a linguagem com base em outra coisa do que ela mesma nem
esclarecer outras coisas através da linguagem. (HEIDEGGER: 2004, p. 9).
A compreensão se dá quando o homem faz da linguagem a sua morada. Morar na fala da
linguagem é abrir-se para o originário, este é o acontecer de mundo. Morar na fala da linguagem
é habituar-se a ela, ou seja, familiarizar-se com o modo de ser da linguagem adquirindo seu
hábitos, a sua maneira de ser. Sendo na linguagem, por ela e dela adquirindo confiança. Se
tomarmos a palavra confiança na sua formação podemos também pensá-la como fiar-com, ou
seja, unir-se no ato de fiar algo. Confiar é comunicar a realização de algo a outro, é fiar algo com
outro. Por isso o diálogo com a linguagem é sempre um falar-com. Esse “com” assinala a unidade
das coisas vigendo na linguagem: “Estou preso à vida e olho meus companheiros./Estão
taciturnos, mas nutrem grandes esperanças./Entre eles, considero a enorme realidade./O presente
é tão grande, não nos afastemos./Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas”.
O “eu” não se distancia da vida como um mero observador, ao mesmo tempo em que está
preso ao viver que nos move ele pode olhar seus com-panheiros, isto é, aqueles com quem
compartilha o pão; um só é o sentente e o sentidor. E, em meio ao silêncio, é tomado por uma
consideração maior, a da própria realidade. Como um voltar-se para a eclosão do extraordinário
no ordinário numa espécie de tomar conhecimento. Não uma simples informação, mas a visão de
algo que, mesmo silencioso e desconhecido, reúne a humanidade em torno de si congregando o
sentido da existência humana. Há algo extraordinário acontecendo que sequer pode ser nomeado,
como Riobaldo diz em Grande sertão: veredas: “Muita coisa importante falta nome” (ROSA:
2001, p. 125).
A fala da linguagem se consuma, mas não se consome, acaba, ela recolhe e reúne o que diz
de modo que seu vigor perdure e se faça pleno, por isso a fala da linguagem é sempre um falar
inaugural. A fala da linguagem não se diz duas vezes. Isso não quer dizer que ela não possa ser
126
reproduzida, ou quer? A reprodução da linguagem já não seria um atributo da língua? Entretanto,
a reprodução que a linguagem diz poderia anular seu vigor?
Drummond nos responde quando diz: “Não serei o cantor de uma mulher, de uma
história,/não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,/não distribuirei
entorpecentes ou cartas de suicida,/não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.”.
A sequência dos versos inicia-se com “Não serei o cantor de ...”, “não direi direi ...”, “não
distribuirei...”, “não fugirei...” e “nem serei raptado...”, os verbos em primeira pessoa assinalam
as supostas ações de um sujeito, centrando-se num agente. A negação da ação verbal é a negação
da ação subjetiva como pretensão de haver um sujeito que domina o real e que preside o
acontecimento de mundo. O poeta compreende que de si mesmo não pode produzir nada e que só
damos o que recebemos. De quê ou de quem recebemos? Da fala da linguagem, que diz sempre o
mesmo, porém, não a mesma coisa. O dito da linguagem sempre inaugura sentidos novos. Essa
capacidade nos chega a partir do entendimento de construção. Construção não é montagem, esta
vigora a partir da intervenção de um sujeito em um objeto. Construir fala de um fazer-com. De
construção pode-se depreender o prefixo “com-”, significando junto, e “-structo”, que nos
assinala a ação de dispor, recolher e reunir numa associação íntima de modo que seja um: tudo-
um. É isso que de certo modo ocorre em toda a construção predial, juntam-se materiais e forma-
se o prédio, entretanto é óbvia a ação de um sujeito, o construtor dentre outros agentes, vale
porém lembrar que isto se reporta a um fazer técnico-funcional. A questão a seguinte: o fazer
poético é idêntico ao fazer técnico em sua construção? O poema toma as palavras como objetos e
organiza-as numa sintaxe técnica? Ou haveria um outro modo de construção? A construção
técnico-funcional é o fundamento de toda e qualquer construção de modo que a todas determine
ou ele poderia ser, de certo modo, também tocado por um outro princípio?
2.4.1 – Gestualização como construção poética
Se compreendermos construção-poética5 como um acolher e recolher o que se dispõe na
linguagem, compreenderemos também que linguagem assinala o fazer da poiesis cuja fala reúne
5 Poética aqui não tem a intenção de predicar construção, mas de assinalar um modo de ser da construção, usamos
hífen para assinalar o copertencimento construção e poética.
127
as coisas de modo que se disponham ao homem originariamente como construção. Mas não se
estaria mais uma vez pensando em círculo? Sim, nesse caso o círculo nos assinala que, na
construção, poiesis e linguagem dizem o mesmo sem serem a mesma coisa. Esse movimento, no
entanto, não se reporta à coesão apenas, pois não há simplesmente uma mistura. Construção é
fazer-com. A fala da linguagem se faz com a escuta. A poiesis realiza a construção como fala da
linguagem. Na construção vigora o fazer-com e este é o agir que acolhe o que na construção se
reúne. O fazer-com é um processo estranho. O que isso quer dizer? Processo nos fala da ação de
adiantar-se, isto é, movimentar-se para adiante, avançar, progredir, ou seja, o andar ou o
andamento de algo, também, por extensão, nascer, como um conduzir algo à presença:
apresentar, acontecer.
Processo é o vigor do acontecer condutor das coisas à presença. Mas, por que estranho?
Estranho é tudo o que foge à conceituação da descrição racional, é o que não se pode explicar as
causas. Estranho é a força do extraordinário, o irromper do novo, do des-conhecido. A palavra
desconhecido se aproxima originariamente de estranho. Des-conhecido é o que se manifesta e no
seu manifestar resguarda a proveniência de sua manifestação. A isso os antigos nomearam
mistério ou enigma. O fazer-com é o entre, este é sempre estranho porque não se pode dominar, a
única via de acesso a ele é a entrega, a rendição à sua dinâmica. Acolher essa estranheza
corresponde a ser acolhido por ela.
O poder nomeador das palavras evoca trazendo à presença as coisas convocadas de modo a
constituir mundo. O evocar provoca o real denunciando a ausência, essa provocação da ausência
diz o sentido de convocar como o vocar-com (falar-com). Falar-com é dialogar. Para haver
diálogo é preciso reciprocidade, esta exige troca e em toda troca se dá e recebe o que se tem e o
que ainda não se tem. Evidencia-se uma tensão oposta, mas dialogal. Diálogo é sempre renúncia-
doação e acolhida e vice-versa. Quem renuncia-doando acolhe a necessidade do outro e quem
acolhe renuncia a sua saciedade. Há um duplo esvaziar-se: um ao doar outro para receber. Essa é
a troca/diálogo poética (o) entre leitor e obra e é nesse movimento que o caminho vem à presença
como mundo.
O nomear é uma doação da linguagem como gestualização de mundo. A presença provoca a
ausência invocando mundo. Provocar, convocar e evocar põem em questão a fala e pro- de pôr-se
diante de, e com- evidencia o sentido de pôr-se junto ou reunido e o e-, na palavra evocar,
assinala a ocorrência da mudança fonética de avocato, isto é, a fala que é chamada ou invocada.
128
Ambas as palavras falam de uma mediação dialogal que resguarda a diferença. Essa mediação
dialogal é gestualização visto que pro-voca, com-voca e e-voca a presença do que está ausente e,
nesse gestualizar, a ausência se presentifica como mundo. O como não é uma conjunção que
indica causa, comparação, conformidade, proporção, hipótese etc, mas o modo de a coisa vir à
presença.
A gestualização é o vigor da linguagem e diz o mesmo que poiesis. É ela que funda o
caminho enquanto sentido. Os antigos a entenderam como rito. Este, apesar de seguir dada
ordenação, nunca era considerado a mesma coisa. O rito é sempre o mesmo, mas nunca a mesma
coisa. De modo bem prático pode-se pensar no rito do velório. Segue-se praticamente a mesma
ordenação, mas a coisa nunca é a mesma. Alguém diria: “- Mas o morto é outro!”. O vivo
também. Somos sempre outros. O mundo, o real, as coisas, tudo é sempre outro. O que diferencia
tanto o velório quanto a vigília é o sentido que se presentifica. Por isso o rito nunca é a mesma
coisa, ele anuncia um sentido novo, que desde sempre estava presente, porém ainda não tinha se
revelado daquele modo. O ritual que não anuncia o novo do velho, o extraordinário do ordinário,
a fala do silêncio ou o silêncio da fala não passa de ritualização. Esta é uma mera repetição ou
representação, nada mais tem a manifestar, diz-se que acabou a novidade ou o poder de
manifestar sentido, impera o caráter funcional ideológico, conceitual ou convencional do rito.
A gestualização é a aproximação que a linguagem proporciona entre homem e mundo. Esse
gesto de mundo é facultado pela ausculta que o homem faz do real e acontece como obra de arte
e/ou pensamento, dentre outras. As obras são modos de gestualização da linguagem. Esta é uma
construção que envolve o homem e a linguagem num concerto. O pacto feito exige um ritual de
acolhimento e renúncia: o ritual é caminho pelo qual um toma posse do outro por meio da
renúncia e acolhimento. Concerto também é o nome que se dá à consonância de vozes em
harmonia. Concertar é reunir harmonicamente. A harmonia não é homogeneidade, pelo contrário,
ao ocorrer entre o homem e a linguagem é heteróloga, pois conserva na unidade harmônica a
diferença entre ambos. Essa unidade não constitui um organismo no sentido de identidade como
soma das partes, pois essa união não é estática e formativa, antes provocativa. É uma união que
desafia, estressa, excita e irrita a outra voz, não para dominá-la, mas para convocá-la ao embate
concrescente, isto é, em que um força o crescimento do outro abalando a ordem estabelecida e
obrigando o alargamento, é desse e nesse embate que surge o sentido da obra.
129
Não é à-toa que a palavra provocar também possui um caráter violento. Não de uma
violência destrutiva, mas veemente, que perturba a inércia, a estática. Nesse sentido, a violência é
a veemência da vida, a força que nos impele a romper toda e qualquer inércia incitando o
pensamento. Assim se traça a força poética da obra de arte, não se prestando apenas à
contemplação do belo, mas à contemplação do real como questão e questionamento. A própria
palavra contemplar eclode como encantamento, admiração e reflexão. A poiesis da obra de arte
se mede pelo seu potencial de reflexão, não simplesmente de raciocínio, este se move pelas vias
já conhecidas, a reflexão inaugura um caminho. Esse é o poder da obra de arte essencialmete
poética: inaugurar caminhos. Caminho é mundo, e este tem um movimento próprio, ele mesmo
gestualiza as coisas. Mundo se dá quando as coisas são gestualizadas. Parece ambíguo, mas no
simples podemos perceber isso: quando em um ator, ao encenar uma peça, gestualiza o
personagem, mundo vem à tona. O próprio ator, bem como o personagem, todas as coisas e todo
o sentido circundantes são mundo. A primeira vista, poderíamos dizer que o ator representa, ao
“dar” vida ao personagem, um mundo, mas o ator só é o que é pela cessão do mundo, sua eclosão
é uma gestualização própria. Ao ator é dado, como doação do próprio mundo, gestualizá-lo.
Mundo vigora no ser linguagem. Mundo é linguagem. Não podemos representar a linguagem,
apenas gestualizá-la dentro do âmbito por ela mesmo concedido. O mais é silêncio e vazio
impenetrável, porém audível, visto que é do silêncio e vazio da linguagem que a fala vem. À
gestualização de mundo corresponde a saga do dizer como um dito presentificador, comum à
ritualização dos mitos que presentificam o ausente. O vigor dessa gestualização se dá entre
homem e mundo. Esse espaço é fundamental pois mundo e coisa não se justapõem, mas se
interpenetram dimensionando um entre que os une intimamente, sem etretanto significar que se
misturem, esse entre é o elo de unidade e diferença.
2.4.2 - Destinar: a-travessar a vida
O mundo mundifica e instaura o caminho. O entre é o meio do caminho e isso não quer
dizer metade, mas o espaço de abertura, a clareira, a ferida, onde ele sangra e verte sua seiva viva
deixando transparecer a essência. O meio do caminho é o próprio caminho como meio, dentro
dele, na sua entranha, o real se dispõe, como bem afirmou Riobaldo em Grande sertão: veredas:
130
“O real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.”.
(ROSA: 2001, p. 80). Dispor, um dos sentidos de legein, de onde vem logos, é uma palavra muito
rica em sentidos e, dentre outros, temos ligado ao dizer da obra: instaurar, proporcionar, facultar,
permitir, doar, apossar e destinar. Nada e ninguém pode forçar a disponibilidade do real. Ela só se
doa quando se apossa de nós. A realidade se dispõe quando se apossa de nós e se instaura, ou
seja, quando se abre e abrindo-se inaugura. A disponibilidade da realidade é uma instauração
inaugural. Penetrar essa instauração é facultada ao homem, o próprio real proporciona e permite
essa intimidade. O homem pode penetrar a dinâmica instauradora e inaugural e penetrando-a dá-
se a sua destinação própria. Destino é a instauração inaugural do real acontecendo como
caminho. O homem descobre o seu destino como caminho a partir da instauração inaugural do
real que se dá sempre e irrevogavelmente a partir da linguagem.
Esse rasgo do caminho é a diferença entre mundo e coisa. Não a diferença como mera
distinção, mas o rasgo de abertura que dimensiona o real e mantém o mundo como mundo e coisa
como coisa de modo que não sejam a mesma coisa, tampouco indiferentes um ao outro. A
diferença é o entre mundo e coisa que os tensionam intimamente tornando possível dois modos
de chamar: chamar as coisas para virem ao mundo e mundo para vir às coisas, sem que estes
simplesmente se misturem: “O mundo concede às coisas sua essência. As coisas são gesto de
mundo. O mundo concede coisas.” (HEIDEGGER: 2004, p. 19).
Quando as coisas vêm ao mundo elas vigoram no seu próprio. Assim quando o poeta diz
“No meio do caminho tinha uma pedra” todas as coisas que aí são nomeadas vigoram no seu
próprio por isso o verso não tem significação, não representa nada, mas é pleno de sentido porque
nele meio é meio, caminho é caminho, ter é ter e pedra é pedra originariamente sem esquema
lógico-racional ou simbólico na relação entre significante e significado, entretanto, se manifesta
como imagem-questão. Quando mundo vem às coisas o próprio do mundo é que vigora com seu
poder instaurador inaugural: mundo mundifica. O vigor de mundo faz as coisas nascerem de novo
como se uma realidade que estivesse oculta se manifestasse irropendo como mundo. Isso fica
muito claro quando se observa a sintaxe gramatical e a sintaxe poética. Aquela obedece a uma
estruturação gramatical lógica de cuja coesão depende sua coência, coisa e mundo se relaciona
como singnificante e significado.
A coesão da sintaxe poética é outra, não se submete à lógica gramatical, mas à própria
poiesis da obra, não obstante fala, mesmo ignorando as regras da comunicação útil e viável, pois
131
ela realiza a diferença entre mundo e coisa. O rasgo da diferença coisa e mundo nos permite
entender as imagens-questões existentes por si sós.
O sentido do texto não brota do autor nem do leitor, isto é, de fatores externos, mas da
própria linguagem enquanto entretecedora do sentido. A obra não é um objeto, mas uma urdidura
viva, crescente e interagente. Os chamados autor e leitor são, na verdade, aqueles que atendem ao
chamado da própria linguagem e lhe respondem de modo diverso. O autor é o que realiza a escuta
como obra e sentido, mas não todo ele, pois, como vimos acima, o que não se manifesta, o
velamento, é a fonte de tudo o que se manifesta como imagem-questão, por isso a obra não se
conclui, apenas desdobra-se.
2.4.3 – Destinação: a travessia do sentido
O homem se destina ao fazer a travessia do sentido, aí surgem as questões como imagens
que desfiam a compreensão humana da vida e de seu destino. Imagem-questão não é uma
representação do real por meios ficcionais, não é uma figura de linguagem ou uma abstração
poética. A imagem-questão é uma doação do próprio real como linguagem manifestando o que
ainda não se pode ver, não foi dito ou ainda não foi compreendido no visível, dito e
compreendido. Quando isso acontece ocorre uma manifestação inaugural, ou seja, que dá início a
um novo modo de ver, ouvir, dizer e compreender, sem se limitar a um sentido demarcado. A
imagem-questão não é um ente, não se topa com ela no meio da rua, da mesma forma não se
encontra o ser caminhando por aí. O ser é imanente as coisas. Para ilustrar bem essa questão vale
transcrever uma história contada pelo pensador Emmanuel Carneiro Leão diz ele:
Quando eu voltei ao Brasil, depois do doutorado na Europa, em 1964, no tempo da
Revolução, tinha um amigo, Eutério Araújo, que era diretor do Hospital Pinel, lá em
Botafogo. Como eu tinha sido aluno do Heidegger e tinha chegado da Alemanha, ele me
disse: “Olha, Emmanuel, tem aqui internado um ex-aluno do Heidegger. Eu quero
apresentá-lo a você”.
Então eu me encontrei com esse ex-aluno do Heidegger. Ele se virou para mim e disse:
“Eu vou te contar um segredo”. Perguntei: “Qual é o segredo?” E ele me contou: “Olha,
uma vez, aqui na Praia Vermelha, por volta das 18:00 horas, eu andando na praia... de
repente, sabe quem caiu na minha frente?” “Não sei”, respondi. Então ele me disse: “O
Ser!”. “E você fez o quê?”, indaguei. Respondeu: “Aí, eu dei uma de horizonte”.
(LEÃO: 2005, P. 107)
132
A imagem-questão nos reporta ao sentido como experienciação do ser e não do ente, ela faz
eclodir não apenas o personagem, mas toda a obra como uma questão, realizando a sintaxe
poética além da estruturação linguística, de modo que em toda obra tudo está em questão. O vigor
da imagem-questão é facultado pelo poder ambíguo que ela manifesta. Literariamente o
personagem é um ser ficcional criado a partir de um conceito de pessoa, a imagem-questão é um
ser manifesto pela linguagem. O que faz da imagem-questão um ser? A sua existência como
questão.
No verso “No meio do caminho tinha uma pedra”, meio, caminho, ter e pedra são imagens
questões que eclodem numa sintaxe poética. Não se trata aqui de tirar personagens da obra e lhes
dar vida, tampouco tirar personagens da vida e colocá-los na obra. Os personagens estão onde
devem estar: no caminho da linguagem e é lá que os encontramos e deixamos que mundo nos
venha ao encontro nas imagens-poéticas. Muitas vezes Riobaldo expressa certo constrangimento
ao narrar, pois ele, como imagem-questão, de algum modo, sabe que a fala da linguagem depende
de manter a abertura do entre vigendo na diferença de mundo e coisa ou de sentido e imagem-
questão:
A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e
sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. Contar seguido, alinhavado,
só mesmo sendo as coisas de rasa importância. De cada vivimento que eu real tive, de
alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse diferente
pessoa. Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim é que eu conto. O senhor é
bondoso de me ouvir. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que
outras, de recente data. O senhor mesmo sabe. (ROSA: 2001, p. 115)
Esses trechos da narrativa de Grande sertão: veredas abrigam grandes questões com
respeito ao que seja obra de arte. Riobaldo diz, em outras palavras, que a verdade que se
manifesta segue o curso da vida em seu vigor de realização e a linguagem possui estrutura
coesiva muito diferente da do discurso lógico:
O senhor sabe?: não acerto no contar, porque estou remexendo o vivido longe alto, com
pouco carôço, querendo esquentar, demear, de feito, meu coração, naquelas lembranças.
Ou quero enfiar a idéia, achar o rumozinho forte das coisas, caminho do que houve e do
que não houve. Às vezes não é fácil. Fé que não é. (ROSA: 2001, p. 192)
133
A linguagem se manifesta como um “remexer vivo de cada vivimento”, ou seja, da
experienciação vivenciada como um estar à procura do “rumozinho forte das coisas”, isto é, de
seu originário. O que Riobaldo busca é estar de fato entregue a linguagem para não transformar
“vivimento” em mero vivido. Este assinala uma existência dada e vivida em que a diferença entre
passado, presente e futuro é bem distinta, aquele, muito diferente do outro, ainda guarda o
originário da existência, não há o existido, o havido, mas o acontecendo.
O que se diz parece confuso, mas se pensarmos na imagem-questão da fonte que jorra e
sustenta o córrego, podemos perceber que fonte e córrego são um e o mesmo, este mantém em si
a vigência daquela e por ela se conserva enquanto aquela é por meio deste. O “vivimento” é a
conjunção da origem com o originado de modo que não se separe nunca da sua essência, é como
a mãe que vai perpetuando seu génos nos filhos que a vida gera nela.
Sobre assim, aí corria no meio dos nossos um conchavo de animação, fato que ao senhor
retardei: devido que mesmo um contador habilidoso não ajeita de relatar as peripécias
todas de uma vez. (ROSA: 2001, p. 433)
(...)
... é pôr atenção no que contei, remexer vivo o que vim dizendo. Porque não narrei nada
à-tôa: só apontação principal, ao que crer posso. Não esperdiço palavras. Macaco meu
veste roupa. O senhor pense, o senhor ache. O senhor ponha enredo. (ROSA: 2001, p.
325)
Riobaldo alerta a seu interlocutor sobre sua forma de narrar destacando cada imagem-
questão e deixando que elas venham à presença manifestando seu vigor próprio, qualquer
tentativa de pôr ordem no narrado seria intervir e manipular a verdade do real, e isso ele não faz,
deixa para quem o ouve, se este achar que deve, que “ponha enredo”!
As imagens-questões são seres da travessia das obras essencialmente poéticas e são elas
que nos iniciam nos mistérios do caminho colocando questões a ser pensadas em seu próprio
modo de ser e existir. Elas são essencialmente e originariamente diálogos e, em seu dialogar,
transpõe o leitor para o curso ou leito das veredas do sentido. Leitor diz poeticamente o que está,
se põe ou é levado ao leito. A imagem-questão nos convoca a travessia da linguagem nas obras
de arte, sem ela isso seria impossível acontecer. Desse modo, leitura é essencialmente travessia
enquanto ausculta da linguagem na esfera dialogal ao passo que o diálogo com a linguagem ou da
linguagem põe em questão também o auto-diálogo e o hétero-diálogo.
A diferença entre mundo e coisa não permite a cristalização da verdade e da vida em um
conceito, ideologia ou convenção. O caminho é o entre. Quando o homem se coloca no caminho
134
ele se coloca no entre coisas e mundo. O caminho dá “suporte ao fazer-se mundo do mundo, ao
fazer-se coisa das coisas” (HEIDEGGER: 2004, p. 19), deixando mundo e coisas no aberto que
possibilita um reportar-se ao outro. O caminho é o mediador que faculta a entrega de mundo e
coisa aos seus modos de ser na sua reciprocidade. Caminho como diferença diz essa unidade
tensional. O caminho “apropria as coisas no gesto de um mundo, apropria mundo concedendo
coisas” (HEIDEGGER: 2004, p. 20).
O homem pode fazer do caminho a sua morada e habitar essa dimensão. Caminho entreabre
mundo e coisas medindo-lhes o que lhes é próprio. Esse é o caminho do sentido: a travessia da
linguagem.
Riobaldo é a imagem questão do homem do meio do caminho e faz sua experienciação de
modo extraordinário, colocando-se rumo à compreensão dialogal diz:
Ah, tem uma repetição, que sempre outras vezes em minha vida acontece. Eu atravesso
as coisas – e no meio da travessia não vejo! – só estava era entretido na ideia dos lugares
de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa;
mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais em baixo, bem diverso do que em
primeiro se pensou. Viver nem não é muito perigoso? (ROSA: 2001, p. 51).
Riobaldo fala de uma repetição constante em sua vida: atravessar as coisas e nessa travessia
ele afirma que não vê, logo adiante diz que estava “entretido na ideia dos lugares de saída e de
chegada”, ou seja, com as margens como um ponto de início e fim determinado, isto é, causa e
consequência, mas ao atravessar o rio vai parar num lugar diferente do que havia calculado.
Arremata por fim: “Viver nem não é muito perigoso?”. O personagem faz uma descrição
maravilhosa da travessia. Ela é algo que acontece sempre na vida dele, e até, na verdade, constitui
seu próprio modo de viver, mas nunca da mesma maneira por isso ele usa a imagem do rio que é
o fluxo constante do que não se reproduz.
Parece incoerente falar de travessia como uma coisa que se repete e não se repete ao mesmo
tempo. Como ação de atravessar ela se repete, mas não se reproduz em seu modo de ser e
acontecer, por isso a travessia é sempre nova, como uma constante releitura. Não faria sentido
reler se a cada vez se realizasse a mesma coisa, mas a essência do reler, no que tange ao seu
impulso, é a mesma. Riobaldo assevera ainda que o cálculo racional da travessia é inútil: “a
gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais em
135
baixo, bem diverso do que em primeiro se pensou”. Não é possível determinar o destino da
travessia como um efeito causal.
2.4.4 – Caminho, travessia e aprendizagem
O caminho é que comanda a travessia, que, por sua vez, como doação do caminho, o
espacializa. Assim como é o operar da obra que oferece as possibilidades de leitura. O destino da
travessia, nesse sentido, não é logicamente presumível. Entretanto, não é de toda travessia que
falamos, atravessar pode se dar num âmbito estritamente técnico e/ou funcional e até pessoal.
Pode-se atravessar uma rua; é possível conectar travessia a vencer uma barreira da vida etc,
porém a questão não é somente a travessia, mas o caminho entendido num âmbito mais
ontológico e essencial.
O caminho é a vida, o viver é a travessia. Esse é o motivo de Riobaldo sempre afirmar que
viver é muito perigoso. Per- vem do grego perao e quer dizer atravessar e possui também o
sentido de peras assinalando o limite ou o caminho. Viver é habitar a possibilidade do caminho.
Diante da vida se abrem os caminhos como modos de ser do caminho. A travessia do caminho é o
trans-verter ou verter-trans. Trans- nos fala de um passar além, que poderia se compreender como
transpor o caminho. Entretanto falamos de um caminho que não se pode ir além dele, pois
atravessando-o aonde chegaríamos?
O caminho como vida é a abertura ontológico-existencial que reúne tudo em si, não é um
caminho para ou em um entre o início e o fim, mas o caminho de onde se parte e aonde se chega,
a saber, o caminho do ser. A esse caminho, Guimarães Rosa chamou de sertão, ou ser-tão e,
ainda, poderíamos dizer ser-tao. Quando Drummond diz: “No meio do caminho tinha uma pedra”
ele, ao siturar a pedra no meio do caminho a traz para o eixo do sentido, pedra não é mais apenas
um elemento rochoso ou sedimentar, não significa obstáculo ou coisa qualquer. Ela é o vigor da
linguagem existindo como pedra, aí o mais importante não é a saida (linguagem) ou a chegada
(pedra), mas a travessia, o entre, o meio do caminho que con-centra a vigência do ser pedra.
Um mundo surge como pedra no meio do caminho, então se faz duas perguntas: O que isto:
a pedra? e O que é isto: o que faz a pedra ser pedra? As duas perguntas são modos diversos de se
perguntar pelo ser da pedra. E pedra tem ser? Sim! E qual seria, então? A própria pedra! O ser da
136
pedra não se diz pelos atributos. Na narrativa cosmogônica hebraica, quando convocado pelo
deus dos hebreus para ser o libertador do povo cativo no Egito, Moisés lhe pergunta o nome para
que se credencie como enviado, e o deus responde “Eu sou o que sou!”. Na sintaxe dessa oração
o mais importante não é o sujeito nem o predicativo, mas o verbo “ser”, chamado de ligação,
considerado funcionalmente vazio de ação e de noção. Entretanto é esse mesmo verbo, que não
seria nem núcleo do predicado, que confere sentido, coerência e o agir de toda e qualquer ação,
inclusive o sujeito e o predicativo dele surgem e a ele se subordinam.
O verbo “ser” é o verbo que não possui ação verbal, verbo que não é verbo, é mais que
verbo. Ser é, de certa forma, linguagem ou nomeia o que ela é. Ser é o verbo dos verbos, pois não
apenas indica ação como nomeia as coisas. Ser é o sendo e o é ao mesmo tempo: o homem é (ser)
sendo (ser). As coisas só são no movimento do sendo. O ser é o rasgo que confere existência as
coisas. O verbo ser não é entendido em sua plenitude quando não se considera sua quietude. A
quietude do ser é que permite que as coisas lhe venham ao encontro na linguagem e sejam. Dizer
que as coisas vêm ao encontro do ser não é o mesmo que dizer que elas vão ao encontro de uma
coisa diversa, senão que rumam ao próprio delas, a saber, o que elas são. O ser deixa que as
coisas lhe advenham, advir ao ser é vigorar na quietude do ser para brilhar como coisa. Advir ao
ser é uma convocação do próprio ser. Quando se enuncia que “no meio do caminho tinha uma
pedra”, o ser pedra vigora na quietude do ser caminho.
É, pois, o não ser do caminho que deixa pedra vigorar em seu sendo. Pedra é, então, doação
do caminho como quietude ou não-ser. É o recolher-se do caminho que possibilita o surgir do ser
pedra. Mas onde vigora esse recolher? No “meio” do caminho. O meio ou o entre é o que libera
as coisas para o seu próprio deixando viger a diferença entre caminho e coisa. Não se trata de
uma comparação antitética: caminho é o que pedra não é e vice-versa, mas é da diferença que
pedra surge no recolher do caminho e vice-versa. Essa diferença articulada pelo aberto do meio
ou entre, é que gestualiza mundo.
Aquietar é deixar as coisas serem o que são. É em consonância com o quieto que a
linguagem fala. Há tantas falas no mundo e tantos mundos nas falas, de modo que fala é mundo e
este pode ser científico, social, psicológico, histórico, idealista, cultural, dentre outros, porém
quando se confere atributo ao mundo não é o mundo que se quer chamar à presença, mas o
próprio atributo. O que continua encoberto, e não de modo originário, isto é, não se põe ao des-
encobrir, é mundo.
137
De certa forma, o atributo é uma anulação do ser, o que se percebe ao falar de mundo
psicológico, por exemplo, não se fala de uma coisa nem de outra, pois se quer com um próprio
classificar outro, isso é uma violência que nos passa despercebida porque é tão “natural” falar de
mundo disso e mundo daquilo. Natural ou convencional? Convencional, ideológico e concetual
ao mesmo tempo. Entretanto há uma fala que não pergunda pelo atributo, mas que convoca
mundo a partir do seu próprio. Desse modo, científico, social, cultural, psicológico, histórico etc,
deixam de ser meros atributos e passam a questões, pergunta-se então pelo o que é isto: a ciência,
ou o científico, a sociedade ou o social, a cultura ou o cultural etc. Essa é a fala poética. Aqui não
estamos também atribuindo algo à fala, o poético? Não. Fala poética é o agir do próprio poético
como fala do caminho, da verdade e da vida em oposição à fala do técnico-funcional que se
manifesta como ideologia, conceito e convenção.
A fala da poiesis não quer pôr ideologia nas coisas, nem transformá-las em conceitos ou
impor uma convenção, mas repousa em sua quietude para, na diferença, deixar as coisas serem o
que são. Um dos sentidos do verbo poiein é fazer passar do não-ser ao ser. Esse não-ser não é a
nulidade do ser, mas o âmbito a partir do qual o ser vigora. O meio do caminho é o caminho
como meio, não para algo, mas como o entre, a abertura que medeia ser e não-ser, e rasgo onde
mundo eclode. A isso equivale dizer que é a partir do silêncio que a fala da poiesis vigora. O
entre libera a fala para falar. Toda fala é essencialmente fala da linguagem. Transformá-la em fala
técnico-formal é impor-lhe modalidades ideológica, conceitual e convencional. Deixá-la vigorar
poeticamente é permitir que ela conserve em cada palavra intrinsecamente os sentidos de
caminho, verdade e vida. Então se poderá compreender que é a linguagem que fala e, a partir
disso, aprender a entregar-se e pertencer à linguagem, nela demorar, deixando que ela se aproprie
de nós em vez de tentarmos fazer o contrário. Deixar-se apropriar pela linguagem é entregar-se a
diferença, isto é, permitir-se con-duzir, já que em di-ferença o verbo latino fero diz levar, e são
dois os modos de ferir-conduzir: como ausculta e como fala, primeiro aquela e, só então, depois
esta, é deixar-se a-travessar pela aprendizagem que reinaugura a existência em seu acontecer
como caminho. Só assim, na tensão fala e escuta é que o homem faz a experienciação de vida e
verdade como caminho.
Falar é ferir o silêncio após por ele ser ferido na escuta. Escutando, o homem co-responde a
linguagem e a partir da ausculta pode falar. Ouvindo e falando o homem faz a travessia de modo
poético, isto é, dialogando. Fala poética é aquela que se dá a partir desse corresponder como
138
caminho, verdade e vida. Travessia é uma aprendizagem. E o que se revela como possibilidade de
aprender na travessia? Morar na linguagem, isto é, destinar-se a ela, de modo que vigore como
caminho para a verdade.
2.5 - Caminho para a verdade
Vimos até aqui que a linguagem se dá como tensão fala e escuta do real enquanto tensão. É
um equivoco pensar que a linguagem é apenas fala ou só fala, ela é também escuta e, enquanto
escuta, nela opera o silêncio. Por isso a escuta é sempre ambígua. Na escuta fala a identidade e a
diferença do logos. A identidade e a diferença do logos opera o silêncio. A linguagem dá voz ao
silêncio, daí a fala poética ser uma escuta e a escuta uma fala. A fala do logos é uma fala
ambígua, nela vigora a diferença como escuta da dinâmica que conduz o homem à senda
originária: a tensão do entre onde vigora o ser e o não-ser, o saber e o não-saber, a vida e a morte
etc, não como elementos antagônicos, mas co-pertencentes. Logo a escuta não é um conceito,
pois não se estrutura logicamente nem se enclausura numa definição ou concepção absoluta e
definitiva. A escuta é antes uma questão. “A questão não é problema. Este se resolve. A questão
não, apenas cada interpretação recoloca a questão em outro nível” (CASTRO, 2003, p. 22). A
questão é uma doação do logos. Na questão vigora a tensão do entre como diferença que advém
da escuta do logos. Escuta e fala são duas dimensões do logos, a tensão entre ambas inaugura o
diá-logo. Este é o embate, na linguagem, entre escuta e fala, fala e silêncio e, essencialmente,
poesia e pensamento.
A travessia do caminho é uma travessia rumo à verdade, no sentido originário de aletheia:
verdade e não verdade, que vigora no embate dialógico de fala e silêncio. Em um conhecido
poema, O Lutador, Drummond nos remete a esse embate dialógico. Atentemos para as duas
primeiras estrofes e alguns outros versos:
Lutar com palavras
É a luta mais vã.
Entanto lutamos
Mal rompe a manhã
São muitas, eu pouco.
Algumas, tão fortes
139
Como o javali.
Não me julgo louco.
Se o fosse, teria
Poder de encantá-las.
Mas lúcido e frio,
Apareço e tento
Apanhar algumas
Para meu sustento
Num dia de vida.
Deixam-se enlaçar,
Tontas à carícia
E súbito fogem
E não há ameaça
E nem há sevícia
Que as traga de novo
Ao centro da praça.
Insisto, solerte.
Busco persuadi-las.
Ser-lhes-ei escravo
De rara humildade.
Guardarei sigilo
De nosso comércio.
Na voz, nenhum travo
De zanga ou desgosto.
Sem me ouvir deslizam,
Perpassam levíssimas
E viram-me o rosto.
Lutar com palavras
Parece sem fruto.
Não têm carne e sangue...
Entretanto, luto.
(ANDRADE: 2007, p. 99)
Em O lutador, a poética nos remete à questão da tensão fala e silêncio que se dá na
Palavra. As palavras são mais fortes que o homem e o submetem a um jogo de encontros:
“Deixam-se enlaçar”, e fugas: “E súbito fogem”. Elas dominam o jogo de modo que, quando
escapam, nem à força podem ser trazidas novamente à presença. As palavras lançam-se
ludicamente à operação de encantamento do homem. É essa luta que desperta a aurora do
pensamento e faz com que o homem saia em busca do sentido da vida, então, dá-se verdade.
Súbito as palavras surgem e lhe invadem a alma e dominam-lhe a mente para, logo depois,
desaparecerem por completo no vazio do silêncio. A luta com a palavra é infinda e sem trégua. O
poema põe em tensão homem e palavra, nessa luta é que se decide o sentido da vida como
verdade. A luta com palavras é a luta pelo sentido/verdade. A etimologia do vocábulo palavra nos
remete à ação de lançar-se (por) entre.
140
O vocábulo palavra vem do latim parábola, do grego parabálló . O prefixo para-, dentre
outras acepções, nomeia o que está entre, e -bálló, do grego -ballein, diz a ação de lançar, lançar-
entre. Parábola também é o nome de uma narrativa que opera por meio de imagens poéticas que
escapam ao sentido lógico. É um narrar que explora o vigor de eclosão de sentidos da palavra a
partir da essência própria da linguagem, ou seja, essência no sentido de nomear aquilo que é
próprio do ser-palavra, o sentido que vigora como palavra.
A palavra é o lugar da eclosão do sentido, entre língua e linguagem, fala e silêncio. Lutar
com palavras é lançar-se por entre a gênese do sentido experiencial em cada palavra. O sentido é
gerado na tensão entre fala e silêncio e essa tensão é perene em cada palavra. Por esse motivo,
palavra, como aqui é entendida, escapa ao sentido conceitual de signo linguístico como relação
representacional de significante e significado. Lutar com palavras é aventurar-se por entre a
eclosão de sentidos. Palavra surge dessa eclosão de sentido. O sentido aparece como palavra.
Palavra é o fenômeno do sentido. Entendemos como fenômeno aquilo que se permite ser
visto, entretanto, o fenômeno guarda uma dupla ação, junto ao aparecer (fala) há também o
retraimento (silêncio), fenômeno, então, nomeia o duplo ato de mostrar e ocultar. A palavra em
seu sentido originário e inaugural é um fenômeno. Na dupla articulação o sentido se dá como
manifestação e retraimento.
O sentido acontece como verdade, entendida, segundo o pensamento grego, como a-letheia,
por esse motivo o sentido (a verdade/a-letheia) é um continuo por-fazer-se a todo o instante. O
sentido não está completo, mas é completável. O sentido não está pronto, fechado em um
conceito, tornado significado, mas re-fazendo-se continuamente. O sentido é sempre uma
questão. A essência do questionar é a busca do sentido. Lutar com palavras é fazer a
experienciação originária do sentido, em outras palavras, é experienciar o sentido enquanto
sentido, é mover-se na Questão, por entre os significados.
2.5.1 – Caminho: o palmilhar do sentido
O sentido está sempre em autogênese. Autogênese é mais que fazer-se a si mesmo, é estar
em busca da gênese de si mesmo. A autogênese é a grande questão que sustenta o sentido, por
isso inexplicável. Por que inexplicável? Nenhuma questão é explicável, caso contrário, ela deixa
141
de ser uma questão e torna-se um conceito. Lutamos com palavras, mas não dizemos as palavras,
são elas que nos dizem, por isso tão voláteis, tão incompletas.
Incompletas?
O prefixo in- é muito curioso, na verdade todas as palavras são curiosas. Palavras parecem
brincar com palavras de serem e não-serem. In-, que ao mesmo tempo indica negação, privação,
também assume o sentido de movimento para dentro ou em direção a. Incompleto é o que ainda
não está completo. O não não é apenas negação, mas um indício de possibilidade de uma coisa
que ainda não é, está por fazer-se. As palavras não são, estão, estão por fazer-se. De igual modo a
linguagem não é, está em processo autogenesíaco. A linguagem rompe interditos. A palavra é o
fenômeno da linguagem. A palavra, originariamente entendida, é o des-velamento da linguagem.
Palavra é escorregadia não se deixa apreender, súbito foge ao domínio do homem. É vão buscar
“persuadi-las”, assim, a luta parece “sem fruto’. Palavras não sucumbem à persuasão, não se
sujeitam a uma finalidade meramente discursiva.
Palavra, palavra
(digo exasperado),
Se me desafias,
Aceito o combate.
Quisera possuir-te
Neste descampado,
Sem roteiro de unha
Ou marca de dente
Nessa pele clara.
Preferes o amor
De uma posse impura
E que venha o gozo
Da maior tortura.
A palavra acena ao homem e instaura o desafio. O não-ser de cada palavra encanta, atrai,
captura o pensamento humano e instiga-o ao des-encobrir. O não-ser é também sentido. Fala-se
tanto em sentido, porém nunca se consegue explicá-lo, tampouco capturá-lo. O sentido é
inexplicável em si mesmo e incapturável. O sentido é sempre o que nos desafia e nos põe a
caminho de um encontro. No caminho, o sentido se manifesta e retrai. O homem se lança por
entre o inexplicável e se encanta com o acontecer do extraordinário no ordinário. É disso que
trata a poiesis. Esse encanto se torna em espanto e maravilha o homem. O espanto instaura a
questão. Quando se espanta face ao inesperado, ao assombroso, ao surpreendente, o homem
142
empreende uma luta pela compreensão, nesta o homem prende-se à questão. A questão passa a
habitar o homem. O fenômeno da linguagem é surpreendente e espanta o homem, e, como
questão, o possui. O homem vê-se possuído pela questão de modo que se torna um com ela. O
homem possuído pelo extraordinário da linguagem, é disso que trata o pensamento.
Luto corpo a corpo,
Luto todo o tempo,
Sem maior proveito
Que o da caça ao vento.
Não encontro vestes,
Não seguro formas,
É fluido inimigo
Que me dobra os músculos
E ri-se das normas
Da boa peleja.
Cada palavra “tem mil faces secretas sob a face neutra”, por isso se refugiaram na noite. A
luta inaugura a tensão entre caos e cosmos imanente à palavra. Caos é o insólito, sem forma, a
força de toda transformação. O cosmo é a superfície sólida, intacta. A palavra resguarda seu
poder de fala e de silêncio promovendo o retorno ao seu sentido originário e originante. Retornar
às origens é promover o trânsito do cosmos ao caos genesíaco para aniquilar uma ordem pré-
estabelecida do real e fundar uma nova realidade. Retornar às fontes não pode, portanto, ser
compreendido em uma dimensão puramente cronológica, por isso cada palavra funda seu tempo
peculiar de acontecer. A viagem ao originário não é marcada por uma peregrinação no espaço
físico, mas no espaço original, dá-se num caminho que se abre no próprio caminhar. O retorno às
origens é uma re-interpretação de si mesmo na procura do sentido de sua própria existência, é
uma aproximação do núcleo inseminador da existência e também um interrogar-se sobre o
sentido do real. É sentir a força inspiradora que anima o devir e é estar constantemente à escuta
dessa força, sem, contudo, que se a compreenda exaustivamente, muito menos a apreenda
totalmente. É estar no presente e ser o antiquíssimo ancião precursor do futuro.
Cada palavra, poeticamente entendida, é um palmilhar o sentido rumo à revelação da
verdade.
143
2.5.2 – Caminhar: a luta pelo sentido
As palavras riem-se “das normas da boa peleja”, isto é, não se submetem a nenhuma
metodologia exegética. A palavra que empreende um movimento de retorno às origens em busca
de um dizer originário é envolvida por um espaço mítico, além de tudo que é ou existe, e um
tempo kairológico (acontecimento), ou seja, um espaço e tempo que não é mais o que já foi,
também ainda não é o que será, está em constante travessia. A palavra deixa de ser entendida
como representação (mediação entre significante e significado) e eclode como manifestação do
real. Na poética, a palavra está em busca de si mesma, ou seja, de seu sentido originário e de sua
condição de fenômeno da linguagem, por isso ela não se deixa apreender por nada. A di-ferença é
um fenômeno duplo de manifestação e retraimento, é um diálogo em que a fala que se deve
auscultar não é a do homem em si, da subjetividade, mas da própria linguagem.
Acima dissemos que a fala é que aproxima o homem da linguagem, agora dizemos que é a
escuta que o faz. Algo aqui parece contraditório, mas não o é; não, se levarmos em consideração
o que seja fala e escuta. Primeiramente só há propósito na fala se esta for para uma escuta. Nem
sempre a fala é escutada, mas ela dever ser para a escuta. Ser para a escuta faz da fala algo
original e originário e, por isso, genesíaco. A fala, não uma qualquer, mas a da linguagem
engendra o real em si mesma. Ela é portadora do sentido do real. A realidade não é múltipla.
Cada homem ou coisa não possui a sua realidade particular, como geralmente se afirma, a
realidade é uma só e todas as coisas são doação dessa realidade. Assim como o sentido é um só e
toda a multiplicidade de significados é uma doação do sentido. Mas, por que a realidade e o
sentido não são vários, mas um apenas? A questão está no contraponto da fala, no silêncio.
O silêncio é o doador de todas as coisas, assim como o não-ser é o doador de tudo o que é.
O silêncio, o não-ser é a condição de possibilidade de tudo o que é, por isso seu doador
originário. O silêncio é a essência da linguagem. A fala para a escuta é uma doação do silêncio. A
ausculta é um com-cordar, não no sentido de amoldar-se ou ajustar-se, mas de falar-com, ou seja,
co-responder à linguagem. Há aqui duas falas, a saber, a fala da linguagem, do logos, e uma fala
que é fruto da escuta, o concordar, ou falar-com. A fala do logos é o fenômeno, é um phainó que,
ao brilhar, torna manifesto e permite serem vistas as coisas vigentes no des-encobrimento de seu
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aparecer. Dialogando com um poema de Georg Trakl, Heidegger nos acena para o agir da
diferença:
Evocar no sentido originário de deixar vir a intimidade de mundo e coisa é propriamente
chamar. Esse chamado é a essência do falar. No dito do poema vigora o falar. É o falar
da linguagem. A linguagem fala. A linguagem fala deixando vir o chamado, coisa-
mundo e mundo-coisa, no entre da di-ferença. (...) O chamado da linguagem recomenda
e entrega o que nela é chamado para o chamado da diferença.
(...)
A di-ferença é o chamado a partir do qual se convoca todo chamar para pertencer ao seu
chamado. O chamado da diferença já sempre recolheu em si todo chamar. A convocação
que recolhe junto de si, recolhendo para si, é sonância no sentido de consonância.
(HEIDEGGER: 2004, p. 23.)
A diferença nomeia as coisas de modo que se permita aparecerem e manifestarem-se, por
isso é uma fala inaugural e enuncia que tudo é um. A fala que nomeia as coisas convoca a saga do
dizer humano, isto é, provoca a fala humana a falar-com. É nesse sentido que há mimesis.
Mimesis não é uma cópia ou representação do real, mas um diá-logo que manifeta a linguagem
gestualizando o real. O mundo surge pela gestualização da linguagem. Entre a fala do Logos e o
falar-com humano vigora a di-ferença, não como distinção, mas como um pender para. O falar-
com humano pende para a fala do logos. Se levada para o seu significado habitual, é comum a
redução do pensamento e a simplificação conceitual da diferença provocando o entendimento do
falar-com humano como uma representação da fala do logos. Mas é exatamente o contrário, é a
diferença que permite a escuta do logos e, consequentemente, o falar-com. Di-ferença é abertura,
é o polemos onde vigora o dia- do logos.
2.5.3 – Caminho: o rasgo da diferença
É o rasgo da diferença que acena a Drummond e convoca sua fala. Isto faz do homem um
lutador, um lutar não com palavras (estas são acenos), mas com a própria linguagem. É nessa luta
145
inter-homem-linguagem que se aproxima do –pretium6, e é dessa que se decide, sem decidir, o
sentido da vida. Atente para o dizer poético da di-ferença, no poema de Drummond:
Iludo-me às vezes,
Pressinto que a entrega
Se consumará.
Já vejo palavras
Em coro submisso,
Esta me ofertando
Seu velho calor,
Outra sua glória
Feita de mistério,
Outra seu desdém,
Outra seu ciúme,
E um sapiente amor
Me ensina a fruir
De cada palavra
A essência captada,
O sutil queixume.
Mas ai! É o instante
De entreabrir os olhos:
Entre beijo e boca,
Tudo se evapora.
A luta é a procura do sentido. É a tentativa de apreender o sentido. Por que se voltar para as
palavras para encontrar o sentido da vida? Porque palavras são fenômenos da linguagem, são um
modo de a linguagem se manifestar. O mistério que cada palavra abriga é um chamado à escuta
da essência do falar, da essência da linguagem. Lutar é uma tentativa de auscultar e uma
aprendizagem. Na tentativa de envolver as palavras se é envolvido por elas. O sentido escoa pelas
encruzilhadas e atrai o homem, ilude-o de modo que ele pressente “que a entrega se consumará”
ao passo que vê as palavras ofertarem, em “coro submisso”, tudo o que são e, quando tudo parece
estar consumado, elas evaporam nos abismos da linguagem. A condição voltívola da palavra atrai
o homem e o seduz a palmilhar a volubilidade e fugacidade da transmutação do sentido entre fala
e silêncio no jogo mostra-esconde da linguagem. Nessa atração inaugura-se um caminhar, ermo e
indefinido porque inaugural. A busca pelo sentido insere o homem numa jornada, mas não como
um trajeto que se percorre num dia, com uma finalidade em vista, mas uma jornada em que se
consuma em sua vacuidade o aprendizagem da vida. Por isso a sensação de volubilidade. A
6 Inter é a tensão do entre, valor está ligado a palavra latina pretium, que dá no português, preço. A
interação operada pela tensão é uma inter-pretium-ação, a ação de interpretar, ou uma interpretação. (Cf. JUNQUEIRA: 2007. pág. 106.)
146
jornada do sentido é um tanto quanto vaga e indefinida porque em construção. O que está em
construção não pode ser apreendido conceitualmente, isso quer dizer que não se pode apanhar e
guardar. A mobilidade do que é volúvel e paradoxal insere a pro-cura. Essa é a verdadeira
legenda da vida. Legenda, de radical do verbo latino lego, nos assinala a ação de ajuntar, reunir,
recolher que também reporta ao verbo legere, no sentido de ler, fazer leituras para si ou ler em
voz alta - para que outro ouça. A luta pelo sentido nos faz movermo-nos entre o sentido, no rasgo
da di-ferença e estabelece o diá-logo. Em todo o diálogo se empreende uma leitura/escuta.
Com o advento da Metafísica a palavra se esvaziou de seu manifestar originário. O sentido
de palavra, como vimos, nos advém da linguagem. Identificamos palavra como fenômeno da
linguagem. Fenômeno é o desvelar do que há velado. Não entendemos fenômeno como apenas o
que se manifesta, mas como o manifestar do que permanece oculto. Fenômeno, assim entendido,
vige entre a tensão de velar e desvelar da physis. Logos é reunião harmônica do que mais tende a
se opor na physis. Physis e logos/linguagem mutuamente se implicam. A palavra é a doação desse
polemos pela qual o sentido se manifesta aos homens. A palavra, pois, res-guarda a essência da
tensão.
A tensão entre logos e physis foi pensada pelos gregos como a-letheia. A palavra, nesse
sentido, abriga a essência do que em grego se diz a-letheia, entretanto, a tensão originária
abrigada na palavra vai sofrendo alterações até perder-se por completo no signo linguístico e
surgir, então, como representação entre significante e significado. Esse entre não é mais o espaço
onde vige a tensão e se manifesta o sentido, mas tão somente o elo de ligação da representação. O
ser-palavra é completamente afetado e destituído de seu vigor, mas, não apenas o ser-palavra
sofre com isso, o Ser mesmo é contaminado e destituído de sentido mediante a nova visão
estabelecida.
2.5.4 – Metá-hodós: caminho originário
A poética é um apelo da linguagem à libertação da interpretação técnica da poesia e do
pensamento. A poiesis e o pensamento se manifestam ao homem quando este dialoga de modo
radical e originário com a linguagem e, dialogando, se mantém aberto a sua fala de modo que ela
o transpasse e se estabeleça como sentido. A última estrofe do poema O lutador mantém uma
relação intrínseca com os poemas A palavra mágica e Procura da poesia, dentre outros. A
147
questão é sempre a mesma, a procura, a luta pelo sentido. O sentido é algo que sempre nos
escapa, sempre se resguarda na noite, no não-ser e não-saber de todo saber e ser.
O ciclo do dia
Ora se conclui
E o inútil duelo
Jamais se resolve.
O teu rosto belo,
Ó palavra, esplendente
Na curva da noite
Que toda me envolve.
Tamanha paixão
E nenhum pecúlio.
Cerradas as portas,
A luta prossegue
Nas ruas do sono.
A poética abandona os preceitos metodológicos metafísico-humanistas axiomatizadores da
verdade do real. Ela instaura um diálogo entre o intérprete e o interpretado num jogo. Todo o
valor da obra de arte se dá a partir desse diálogo, é dele que surgem os caminhos. O vigor poético
da obra se manifesta no vigor desse embate entre fala e silêncio como escuta do logos, o que não
extingue, antes impõe aos combatentes a ampliação de suas possibilidades existenciais: ser para
além de si, mas em si mesmo. Homem e palavra são co-jogados por essa tensão. Nesse embate o
sentido do ser é sempre modificado, pois o real é manifesto caleidoscopicamente em suas
multifaces, apresentando, a cada movimento, combinações variadas, sucessões rápidas e
cambiantes de impressões, sensações e significações.
A poética é estranha às concepções do aristotelismo7 sobre poiesis e tekhné e se lança rumo
ao originário em todas as coisas. A origem das coisas não são decididas pela adequação do
intelecto à idéia, mas no espaço aberto pela tensão logos/physis, nesse espaço de abertura que se
dá a diferença. A tensão é o espaço onde opera a diferença com diá- do logos. O diálogo não é
apenas entre-fala, mas, antes de qualquer coisa é entre-escuta. O diá/diferença é o espaço da
escuta e, nesse espaço, vigora o logos como sentido. A palavra viva abriga esse espaço. A poética
caminha entre poesia e pensamento. Pensamento não é o mesmo que raciocínio, ainda que este só
surge a partir daquele, o problema é que a razão se afasta da dinâmica do pensar que a dá origem.
Quando Heidegger diz que o homem só fala quando corresponde a linguagem ou ao logos, é
7 Não confundir com Aristóteles pensador.
148
desse caminhar mais originário de que ele está tratando, a saber, a tensão entre poesia e
pensamento. O vigor da palavra viva advém dessa tensão. Pensar, assim como a poesia, é co-
responder ao apelo do logos, ou seja, se dá como escuta. Aqui se insere a questão da escuta.
Escuta é permitir que a fala, tal como ela é, se nos advenha. Em outras palavras, é nos atermos à
fala. A escuta de que falamos não é um simples ouvir, mas nos ater-se à fala instauradora de
Mundo, portanto, a fala do silêncio.
Drummond põe em evidência a palavra. Não qualquer palavra, tampouco trata aqui de signo
linguístico. Palavra originariamente entendida não é a representação material (signo/significante)
de um conceito abstrato (significado), ao qual a filosofia metafísica reduziu através de seus
esquemas metodológicos, atribuindo-lhe uma condição abstrata transformou-a em uma
proposição e tornou abstratos o pensamento ao identificá-lo com razão, e a fala do logos, como
mediação lógica, acaba virando o pospositivo –logia. O método, originariamente meta-hodos,
caminho para/entre, transmuta-se em metodologia e o inter-pretium (interpretação/diálogo) passa
à análise. A transformação do pensamento em racionalização é correlata à transmutação da
palavra em signo, do sentido em significado, da linguagem em linguístico, do método em
metodologia, da interpretação (diálogo) em análise. Essas transformações afastam
irremediavelmente o homem do acontecer do real, pois entre o homem e o acontecimento do real
surge a mediação operacionalizada pelas categorias do intelecto e pelas formas do conhecimento.
A palavra não é mais mediadora do real como acontecimento inaugural, mas proposição lógica
que promove a adequação da expressão à idéia, do significante com o significado. A poética,
entretanto, põe em questão a palavra como eclosão de fala e escuta, poesia e pensamento. A
palavra, assim entendida, é um livre-encontro com o real que acontece como escuta, e esta do
logos, isenta de toda mediação lógica.
Drummond nos acena para algo grandioso na estrofe final do poema através do seguinte
dizer-com:
O ciclo do dia
Ora se conclui
E o inútil duelo
Jamais se resolve.
O que se nos acena nesse dito? Primeiro, no fim do poema vem-nos a noção do fim “O ciclo
do dia”. Mas o que é um ciclo? Geralmente o ciclo é entendido como um espaço de tempo
149
durante o qual algo ocorre ou se completa com certa regularidade. O caráter de completude do
ciclo reinicia. De modo que o fim torna-se o início de tudo. O ciclo é tomado pela força de um
movimento circular cujo vigor se manifesta na ação de remeter sempre ao início ou reinício
aquilo que de algum modo se consumou, de forma que sempre se reinicie o processo. A aparente
inconstância ou volubilidade acentua, na verdade, a transmutabilidade da coisa em si mesma,
num retorno à sua origem. O pensamento circular é aquele que a colocação de uma questão
requer sempre sua recolocação, voltando sempre ao ponto de partida e não permitindo uma
conclusão, de modo que a coisa sempre seja pensada radicalmente, isto é, a partir de sua
raiz/origem.
A ação das palavras que se manifesta no poema constitui o que os gregos denominavam
originariamente téchne, no sentido de deixar-aparecer algo deste ou daquele modo em seu
desencobrimento e, ao mesmo tempo, permitir que ele se recolha subitamente em seu
encobrimento.
Durante muitos séculos a metafísica ocidental, consubstanciada nos diferentes humanismos,
desenvolveu um conceito em torno do sentido do agir que os gregos denominavam
originariamente téchne traduzindo-a por técnica. No mundo inteiro foi difundido o conceito de
técnica como o conjunto de procedimentos ligados a uma arte ou ciência que constitui uma
metodologia de representação ou reprodução do real.
Emanuel Carneiro Leão: num ensaio intitulado “Aristóteles e as questões da arte”, ilumina
bem o sentido de téchne de acordo com a pensa originariamente Aristóteles, um dos teóricos mais
citados pela metafísica ocidental. Abaixo, foram transcritos alguns fragmentos do ensaio do
referido autor que nos serão muito úteis para a relação téchne e poiesis:
A palavra grega para arte, que conhecemos e usamos, embora em outro sentido, é
téchne. Nós usamos a palavra técnica, que não é a mesma palavra grega, só
aportuguesada.
(...)
Essa palavra grega téchne provém de um substantivo concreto: ho tekto, que significa o
lavrador da madeira, seja o artista que trabalha a madeira de modo original e refinado, o
marceneiro dizemos, seja o carpinteiro que trabalha a madeira de maneira tosca e
grosseira.
(...)
Em seus escritos, Aristóteles conhece quatro usos de téchne, da palavra grega para dizer
a experiência da arte. Em oposição a týche (sorte, fortuna) e a automaton, diz aquilo que
atua e se instala por si mesmo. Téchne, diz Aristóteles, nos remete de maneira geral para
o processo controlado de fazer. Portanto, a téchne implica um acompanhamento
150
controlado da atividade de agir, visando a obter uma determinada transformação do real,
de uma matéria.
(...)
O segundo uso, em oposição a physis, que diz a realização originária da realidade e
original do real, techne indica o processo controlado de fazer próprio do homem, que
supõe um material e um princípio.
(...)
No terceiro sentido, Aristóteles usa a palavra téchne em oposição a episteme, o
conhecimento universal e necessário. Téchne remete para um procedimento de saber
fazer adquirido por generalização da experiência, da empeiria, que por se dar dentro de
limites, peras, implica sempre em limitações.
(...)
O quarto e último sentido de arte, em Aristóteles, em oposição a poiesis, que diz a
criação oriunda de um advento repentino e inesperado da realidade, téchne diz a
invenção de realizações novas e surpreendentes do real.
(...)
Assim, para o estagirita, a arte não é técnica nem procedimento. Não se reduz nem à
natureza nem à ciência, não se identifica nem com a invenção nem com a repetição.
(...)
No entanto, é surpreendente que logo depois Aristóteles diz: “Não obstante a
negatividade de todos esses nãos: a arte não é técnica, não é procedimento, não é ciência,
ela inclui a afirmação do respectivo sim”. Então significa: a arte é e não é técnica, é e
não é procedimento, é e não é ciência, é e não é criação ou invenção. A provocação
dessa dualidade ou dessa dialética de tensão entre ser e não ser é a primeira grande
questão que Aristóteles coloca a respeito da arte. Pois a arte, embora não sendo técnica,
precisa da técnica para não ser técnica. É no próprio procedimento que a arte transcende
o procedimento. (LEÃO: 2005, p. 108 -109)
Por que o sentido de téchne em Aristóteles aparece de forma tão diversa?
Por que o pensador não tinha como objetivo criar conceitos sobre a téchne, mas sua escrita
aponta para a intenção de aproximar-se da essência da téchne, fazendo a experienciação do
sentido que ela revela originariamente.
A téchne é uma questão na poesia, assim como o é em Aristóteles, seja no modo que a
linguagem se dá ou em como o sentido se manifesta e a escuta faz-nos apropriarmos do que
somos; seja na ritualização do mistério da travessia em que o ser se des-vela ou, ainda, como a
poiesis se revela no e através do poeta. As questões da poética são as questões da arte como
experienciação plena do hodós, da a-letheia e da dzoion, em português, caminho, verdade e vida.
A exposição que aqui fizemos sobre a metafísica é uma tentativa de palmilharmos o
processo que constituiu o conceito da palavra técnica como hoje a conhecemos e que afetou o
acontecer originário do vocábulo, tanto quanto o da fala e da escuta na poesia. téchne foi
traduzida, falando de modo geral e simplificado, por técnica no sentido de metodologia da fala e
da escuta, relacionando àquela a uma mera forma de confecção e esta, à exegese, que vigem
como produto de uma técnica.
151
Drummond, entretanto, no poema acima, nos deixa antever a téchne como um metá-hodós,
ou seja, caminho entre, onde se está de permeio. A poiesis surge na palavra, de permeio, através
da escuta como um lançar-se por entre a linguagem e deixar-se possuir por ela, de modo que o
sentido se manifeste e plenifique com seu poder de fala e de silêncio, preparando o caminho para
o acontecimento da verdade.
3. Verdade: o descortinar misterioso da vida
O terceiro movimento do poema A máquina do mundo manifesta a questão do mistério que
vigora no âmbito da linguagem, como maior apelo ao homem e capaz de colocá-lo diante do
desconhecido, do não-ser, do destino como uma experienciação vital do caminho. Abramo-nos a
sua ausculta:
“Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,
a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;
como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face
que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,
passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes
em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,
baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.
152
A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,
se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.”
O terceiro movimento inicia-se com a confissão de uma relutância em responder ao apelo
maravilhoso da “máquina do mundo”, uma renúncia de quem a muito procurara ver o inédito da
vida, a vida vivente, irrepetível, a zoé, o sentido pleno. Esse posicionamento, numa retomada
circular, nos lança novamente a todo o acontecido anterior. Aqui há uma ilusão de recusa, pensa-
se ter abdicado de ver o entreabrir da “máquina do mundo”, mas na verdade ela só foi vista
porque antes já havia acontecido a renúncia originária. Então, renunciar não é abdicar, apesar de
serem tomados como termos sinônimos. Aqui cabe uma observação: se há sinônimos, a língua
não estaria cometendo imensa redundância, o que seria extremamente desnecessário? Abdicar é
rejeitar e recusar veementemente. O que o caminheiro faz não é rejeitar a coisa anunciada, mas a
metodologia adotada sistematicamente em sua vida até aquele momento. Ele rejeita a tentativa de
controlar o fenômeno e sua respectiva compreensão.
A máquina do mundo não resistia ao homem, mas aos métodos utilizados para tentar
acessá-la, à “inspeção” e à “mente exausta de mentar”, como um o esforço de trazer à memória
algo que se viu outrora e/ou se perdeu.
Ele assinala o que outrora viu e/ou perdeu como sendo, além de uma imagem, certa
compreensão: “uma realidade que transcende a própria imagem sua debuxada no rosto do
mistério, nos abismos”. Inspecionar é o mesmo que examinar ou proceder a uma investigação
minuciosa mediante uma metodologia racionalista. O racionalismo científico tenta definir a
estrutura do real a partir de conceitos filosóficos sobre a verdade e a ética. Para isso, elabora
teorias metodológicas que servem de medida e paradigma para toda interpretação e valoração da
realidade. A experiência de aprendizado se torna um saber filosófico que contamina até as obras
poéticas que tratam de questões relacionadas à experienciação humana do real, definindo-as
como filosóficas. A metodologia proposta incorpora a medida paradigmática de todo o real que
será tanto mais verdadeiro quanto houver adequação entre ele e sua representação objetiva.
O racionalismo científico-filosófico não valoriza o manifestar da realidade, mas usa-a
para exemplificar uma teoria pré-estabelecida. Pensa a realidade à luz da filosofia e da ciência,
153
não a partir de sua manifestação. O sentido da própria palavra manifestação é desconhecido da
filosofia e da ciência tradicionais, pois elas geralmente não trabalham com o devir, apenas com o
já manifestado e cristalizado pelos conceitos metafísicos. A análise e não a interpretação interessa
ao racionalismo. A análise, entretanto, é a anatomia do real. Analisar é separar, seccionar as
partes para serem classificadas e, ao separar, o inspecionador mata o vigor manifestante do real.
O próximo passo da análise científico-filosófico é a síntese. Sintetizar o acontecimento do real é
sepultar definitivamente seu vigor. A síntese elimina a dialética originária, responsável por
manter o devir significativo, a complexidade e a infinitude de sentidos da realização.
O pensamento científico-filosófico não dá contas da complexidade do real e reduz ao
simples todo fenômeno. O método que ele utiliza é o da conceituação e da definição. Ao
conceituar e definir extingue-se toda a possibilidade do vir-a-ser de um fenômeno. A máquina
não cedeu aos instrumentos de inspeção racional. Ela não aceitava qualquer instrumento exterior
a ela que quisesse dominá-la e fazê-la se abrir sob a intervenção de um sujeito. Que metodologia
seria capaz de penetrar o mistério e os abismos se estes só se tornam acessíveis mediante a
rendição e entrega dos que para eles se inclinam? Qualquer caminho que se faça teria que partir
da própria máquina e para ela se voltar, seria essencialmente lançar o olhar à procura pelo operar
dela mesma e palmilhar a complexidade da essência de seu agir, em outras palavras, travar um
diálogo originário com ela.
3.1 - Verdade e linguagem
O diálogo originário com a verdade se consuma como um manifestar da tensão essencial
fala/escuta oferecendo um saber e uma aprendizagem, estabelecendo marcos fundamentais de
distinção entre pensar e raciocinar. Enquanto aprendizagem, o conhecimento proporcionado pelo
diálogo não é um amontoado de conhecimentos. Nele não importa a quantidade de coisas que se
conhecem, mas a intensidade da experienciação da aprendizagem. Nesse sentido, ele revela que a
tarefa do pensamento não é racionalizar o real, mas pô-lo em questão e como questão.
O diálogo, originariamente entendido, não instrumentaliza a linguagem, sua atitude é
antes de escuta que de fala e, quando fala, fala-com, e não sobre e não de; também não se vale de
técnicas exteriores pala analisar o real, ele nem mesmo o analisa, antes, por meio dele torna-se
154
possível uma leitura a partir daquilo que o próprio real doa como questão. No diálogo, a
linguagem nos oferece um método (meta-hodós), um caminho para si mesma. O diálogo abre
esse caminho e, assim, permite-nos percorrê-lo. No diálogo, quem fala é a linguagem, a fala do
homem é um corresponde à linguagem.
Co-responder é responder com, só responde quem antes ouviu ou viu algo; responde-se a
um apelo, a um aceno, a uma pro-vocação, a um desafio, a uma pro-cura. A linguagem desafia o
homem a conhecê-la, a penetrá-la, a ouvi-la. Só ouvindo a linguagem é que o homem pode falar e
assim estabelecer um diálogo. O diálogo é, nesse sentido, o acontecer da linguagem como
fundação e ampliação de sentido. É a linguagem viva, consumando seu telos, livre de toda e
qualquer instrumentalização, constituindo, desse modo, uma hermenêutica da vida.
A realidade da “máquina do mundo” não responde à inspeção racionalista, antes ela se
entreabre, e aqui há uma questão. Entreabrir é abrir-se, não totalmente, mas no entre. O abrir do
entre, que não é qualquer abrir. É um abrir-se que vigora no ambiente do velamento, o entre, o
que equivale a dizer que ela se abre se fechando, paradoxalmente. A máquina se manifesta
majestosa e circunspecta. Ao mesmo tempo em que exibe imponência, sublimidade e grandeza,
revela prudência, reserva e cuidado. A própria máquina possui atitude de certa reverência como
quem está diante de uma questão de suma importância, como quem ensina uma grande lição.
Sensível às limitações do caminheiro não emite “som que fosse impuro nem clarão maior que o
tolerável”. Não obstante a singeleza da manifestação, quando a máquina se abre, o caminheiro se
insere no horizonte da angústia.
3.1.1 - Verdade e angústia
Angústia é, geralmente, tomada como um estado de ansiedade e inquietude gerados por
algum sofrimento ou tormento que leva o indivíduo ao estado de excitação emocional e temor por
se encontrar em face de algum perigo ou ameaça. Entretanto a angústia é a constatação da
carência que se tem diante da manifestação de uma verdade. É, de certo modo, esvaziamento que
possibilita ser cheio do que se apresenta como possibilidade de preencher o que está vazio, isto é,
do sentido. O vazio maior do homem é o vazio do sentido, esse vazio gera angústia. É por não
conhecer o sentido e dar-se conta disso que o homem se angustia, mas esse estado é a condição
155
de possibilidade de se encontrar sentido, porque ele insere o homem na procura do que ainda não
tem. A angústia libera o homem para sua autenticidade que fora dissimulada pela banalidade
cotidiana. Em Ser e Tempo, Heidegger coloca a disposição fundamental da angústia como a
abertura privilegiada da presença (HEIDEGGER: 2002 a, p. 247.). Para ele a angustia é a
possibilidade do descortinar do destino humano entendido como presença. Segundo Heidegger:
“pre-sença é um ente que, sendo, está em jogo seu próprio ser.” (HEIDEGGER: 2002 a, p. 256).
O sendo se projeta como destinação para apropriar-se do seu próprio, o que equivale a dizer que o
ser se lança como projeto
A angústia abre diante do homem o espaço da compreensão, por ser ela, de algum modo,
um estranhamento, nas palavras do pensador: “não se sentir em casa” (HEIDEGGER: 2002 a, p.
252.). Não sentir-se em casa equivale a não familiarizar-se com algo. Esse algo que surge gera
estranhamento, pois não faz parte do cotidiano, foge ao horizonte da compreensão. Essa
expressão “foge ao horizonte da compreensão” revela a fuga como possibilidade desse horizonte.
Então se pode entender que seu limite era um falso limite, ou seja, o que se via não era o limite
do horizonte, mas o da visão.
O descortinar do limite do horizonte leva o homem a angústia, porque coloca em xeque
todas as suas convicções fixadas como verdade. As banalidades do mundo e as ocupações
meramente funcionais lançam o homem na inautenticidade do ser, o que corresponde a um
mascaramento de sua essência e das demais coisas que a ela se relacionam. Além disso, gera uma
falsa segurança do que se sabe e conhece podendo manipular as coisas ao seu redor e os
acontecimentos da vida. Mas a angústia se dá com a experienciação de ser-no-mundo e a tomada
de consciência da tensão homem-mundo e, mais importante ainda, do desvelamento e do
velamento. Isto o faz compreender que a verdade que se revela não é toda a verdade, mas
tensiona-se com a não-verdade que é o velamento como possibilidade de todo e qualquer
desvelamento dela. Movimento que de modo algum pode ser controlado muito menos dominado.
O que angustia o homem é o nada, este não significa a nulidade da existência, no sentido
negativo de coisa nenhuma; mas a maior experienciação da condição humana, aquilo que no ser
se vela e se manifesta como angústia diante da disponibilidade para a liberdade e condição de
possibilidade de ser, isto é, o não-ser.
A angústia se dá como compreensão da necessidade da procura pelo originário que falta,
ela é a manifestação da ananke humana na linguagem. Quando o homem se depara com sua
156
necessidade extrema, ele se angustia e dá o passo para a liberdade para apropriar-se do que lhe é
próprio. Dar o passo para liberdade é movimentar-se nela, não para ela, pois nela já vigora como
ser:
Na pre-sença, a angústia revela o ser para o poder-ser mais próprio, ou seja, o ser-livre
para a liberdade de assumir e escolher a si mesmo. A angústia arrasta a pre-sença para o
ser-livre para... (propenso in...), para a propriedade de seu ser enquanto possibilidade de
ser aquilo que já sempre é. A pre-sença como ser-no-mundo entrega-se, ao mesmo
tempo, à responsabilidade desse ser. (HEIDEGGER: 2002 a. p. 252, grifo do autor).
O entreabrir-se da “máquina do mundo” gera angústia porque se põe e expõe como uma
revelação ontoexitencial, isto é, de ser-no-mundo. Ao deparar-se com esse entreabrir, o
caminheiro depara-se com sua própria carência, daí o estranhamento. Mergulhado no seu vazio
de sentido é que a abertura para a consumação do ser torna-se possível, aí consumar é apropriar-
se do que lhe é próprio. Mas, se é apropriar-se, sua condição é não mais, ou ainda não é, estar de
posse de algo.
A questão não é apropriar-se do que não se tem, mas do que se perdeu ou, de um modo
mais propício, do que se esqueceu, por isso o poema fala de “mente exausta de mentar”. Na
verdade, toda a perplexidade que se expressa mediante “pupilas gastas na inspeção contínua e
dolorosa do deserto,e pela mente exausta de mentar toda uma realidade que transcende a própria
imagem sua debuxada no rosto do mistério, nos abismos” é uma manifestação da angústia sentida
pelo caminheiro. Essa angústia leva o homem a assumir sua incompletude diante do mistério e
obriga a renúncia de um modo de ser inautêntico, o que é a condição de possibilidade da abertura
essencial como entrega.
O maior desafio do homem é entregar-se à espera do inesperado e deixar-se transformar
pelo vigor do não-saber. Tudo o que ainda estar por vir e ser, nós já o somos, apesar de não sabê-
lo. O vigor da possibilidade para a liberdade, do destino, é tamanho que, embora militemos pela
realização do que somos, não conseguiremos ser e conhecer tudo o que nos é dado como
disponibilidade de ser e conhecer, por isso o ser humano é um pro-jeto da liberdade. O porvir
escapa ao nosso domínio. No fim de tudo, estaremos prontos para começar. Realizamos o que
somos em instantes que inundam a vida inteira. A realidade se realiza a todo o instante,
irrepetivelmente, como palavra pronunciada que não se pode dizer novamente. O que se repete
são meras projeções do que já foi e não é mais o que era, ou se diz o mesmo, mas de modo tão
157
essencialmente inaugural, que nunca é a mesma coisa. Quando se conhece uma verdade ela não é
mais, já se realizou. Por isso a abertura essencial é aquela que se põe diante do movimento de
realização/mundificação.
O que se repete é o reflexo do que foi como o brilho de uma estrela que explodiu há anos-
luz, mas ainda vemos o seu clarão. O vigor poético da linguagem é o de poder dizer o mesmo,
sem, contudo, dizer a mesma coisa. A poiesis é inaugural; todas as vezes que se dá é nova, jovial,
por isso ela em nada pode ser enquadrada, emoldurada, definida, interpretada; está sempre se
manifestando, talvez só possamos estar aqui fazendo essa leitura porque a “máquina do mundo”
ainda está vigendo, se abrindo ou se fechando.
Não há com o que comparar, a poesia de Os Lusíadas já aconteceu, as versificações
dantesca e petrarquiana também, assim como o poema de Drummond, mas o sentido, o brilho da
estrela explodida, ainda está iluminando nossos olhos perfazendo o caminho das nossas retinas
tão fatigadas. E, enquanto na vigência da angústia houver luz e trevas para iluminar, conduzir a
luz, há vida, há poesia.
A angústia é a possibilidade que se abre diante do homem de se dar conta da necessidade de
reconhecer sua inautenticidade e de se lançar à procura da autenticidade. O homem não está
pronto e acabado, então não existe antropologia que dê contas do que ele é, o mais próximo seria
uma antropogênese, o que equivale a dizer que o homem vai se realizando enquanto ser-no-
mundo. Por esse motivo, ele se dá como um projeto de realização: “o ser que se projeta para o
poder-ser mais próprio. Esse poder-ser é a destinação onde a pre-sença é sempre como ela é.”
(HEIDEGGER: 2002 a, p. 256). O sendo ou entre-ser se projeta como destinação para apropriar-
se do seu próprio: lança-se como projeto. Assim, a angústia se tensiona com a liberdade na tensão
entre carência e projeto: “É na angústia que a liberdade de ser para o poder-ser mais próprio.”
(HEIDEGGER: 2002 a, p. 256). Entretanto, como a angústia não tem um referencial objetivo, e
aí torna-se essencial não confundi-la com temor ou desespero, mas identifica-se com certo tédio
imotivado, o homem é tentado a fugir dela. Então, por ser tão repelida ou evitada, a angústia
tende a ser rara, mas, quando vigora, torna-se a maior oportunidade que o homem tem de dar-se
conta de uma revelação, ser mais próprio e mover-se na liberdade rumo a sua realização ou
consumação.
158
3.1.2 – A rendição da verdade à não-verdade
As últimas estrofes do poema assinalam uma relutância do caminheiro, que nos parece
querer evitar a contemplação da máquina. Nota-se certa confusão e perplexidade geradas pela
angústia sentida. O motivo dessa relutância é terem se abrandado a fé, o anseio, a esperança e o
anelo que tinha. Mas isto em relação a quê? À contemplação da máquina? Não. Mas o de “ver
desvanecida a treva espessa”, ou seja, trazer a verdade da revelação da “máquina do mundo” em
sua totalidade à presença, de modo a desvendá-la toda, decodificando e desmistificando-a. Quer
dizer, compreender definitivamente esse mistério imenso que envolve a vida transformando-a
num conhecimento (conceito) racionalmente estruturado. Como o próprio caminheiro diz, o apelo
é maravilhoso e não só provoca grande admiração, deslumbramento e fascínio, como também é
inexplicável racionalmente, pois mora no mistério insondável. Um apelo do mistério indomável
que só se manifesta àquele que a ele se entrega verdadeiramente.
Sutilmente, o caminheiro inverte a ordem racional quando almeja “ver desvanecida a treva
espessa que entre os raios do sol inda se filtra”. Os raios de sol não dissipam as trevas, antes
revelam-na. O racionalismo quer trazer a luz sobre as trevas, isto é, desocultar tudo o que vige no
âmbito do ocultamento. Isso não se define como ocultismo ou esoterismo, mas como um
encobrimento que quer desencobrir-se e revelar-se, entretanto, por inesgotável, infinito e
insondável que seja, nunca se revela totalmente. A intensidade do que vigora no ocultamento é
muito superior ao que se manifesta. Por isso o homem se angustia e fica perplexo, seu destino é
um constante vir-a-ser que exige uma interpretação e reinterpretação contínua da vida no
defrontar-se constantemente com a verdade.
O maior golpe no racionalismo científico-filosófico é a constatação de que não há verdades
absolutas e experienciações comunicáveis ou repetíveis, nem mesmo uma cor pode ser vista do
mesmo modo e tonalidade por todas as pessoas, a variação dessa interação com o real é
infinitamente complexa. Não estamos com isso defendendo o relativismo radical, quando se
afirma que não há verdades absolutas apontamos para a impossibilidade de se objetivar a verdade
e transformá-la em um conceito. Mas evidentemente se pode alegar que, não obstante, os
conceitos existem. Isso é um fato facilmente constatável, entretanto, eles não dão conta da
verdade do real, pois abandonam o que lhe deu origem e cristaliza-se no acontecido, como se
159
toda ela fosse definitivamente desvelada e assim perdesse seu vigor de vir-a-ser ou vir-a-
manifestar-se.
Verdade torna-se sinônimo de verificável material ou ideologicamente, sendo este último o
mais importante. A verdade se transforma em discurso e este em teoria. Verdade, então, é o que
pode ser teoricamente verificável. Era essa segurança que o caminheiro procurava. Essa certeza
instrumentalizada diante do real que possibilita controle e manipulação. Sua maior frustração é
deparar-se com essa impossibilidade.
O caminheiro assevera que sente “como se outro ser, não mais aquele habitante” dele “há
tantos anos, passasse a comandar” a sua “vontade”. Na verdade não é outro ser, mas uma
modalidade do sendo, do seu modo de ser e pensar, visto que pensar e ser é o mesmo. O que se
narra é a própria mobilidade do ser no seu estar-no-mundo, no desdobrar de sua existência. Ele
prossegue caracterizando sua vontade como volúvel comparando-a às “flores reticentes em si
mesmas abertas e fechadas” que tem diante de si.
Essa volubilidade não assinala um defeito de caráter, mas a capacidade adquirida do
pensamento de mudar de direção ou mobilidade multidirecional, aberto, capaz de captar e
interagir em todas as esferas, em outras palavras, é o pensar-ser que se move e deixa mover pela
ausculta. As flores que abrem e fecham é a eclosão da própria phýsis contemplada pelo
caminheiro. Ele foi tomado pelo mistério e iniciado nas sendas da linguagem, que não é mero
meio de comunicação, mas onde o ser mora e de-mora.
O dom de dominar a phýsis (natureza como realização de tudo que é ou existe), outrora tão
buscado, hoje é desprezado. O caminheiro despiu-se do desejo e esforço para se impor como
sujeito do real, baixa os olhos, antes olhos altivos, agora sujeitos à ausculta sem pretensão alguma
de capturar a realidade e sua realização. Sem presunção de julgar, discernir e avaliar para
posteriormente descrever o evento, o caminheiro sequer deseja “colher a coisa oferta que se
abrira gratuitamente” ao seu engenho.
Aqui há um outro aceno na poesia, as palavras muitas vezes dissimulam o sentido. A
palavra engenho é geralmente como sinônimo de máquina ou aparelho, possui acepção mais
originária no latim, ingenìum, com o sentido de habilidade inata ou natural de se inclinar para
algo como capacidade de percepção, faculdade de saber, engenho e criatividade, daí o adjetivo
engenhoso, quer dizer, hábil para criar, criativo.
160
Agora a “máquina do mundo” se oferece ao caminheiro, mas esse não quer colhê-la. No
sentido literal, colher é recolher, tirar ou apanhar algo separando-o do ramo ou da haste (flores,
frutos, folhas etc), mas isso quando se trata de vegetais. Por extensão, colher indica o ato de ter
em seu poder, conseguir ou obter algo, também ter percepção ou entendimento, apreender,
perceber, deduzir, inferir. No poema, colher seria apreender o sentido, capturando-o em um
conceito. Resistir à colheita é renunciar ao status de sujeito e se colocar como um ser ao lado dos
outros seres e deixar a máquina vir à presença e se retrair voluntariamente, como quem prefere
escutar o canto de um pássaro livre esporadicamente a tê-lo preso em uma gaiola.
O caminheiro termina dizendo que a “máquina do mundo” “se foi miudamente
recompondo”, isto é, recuperando seu formato anterior de recolhimento e velamento na “treva
mais estrita” enquanto ele, “avaliando o que perdera, seguia vagarosos de mãos pensas”. O
caminheiro apropria-se de sua condição caminhante, ser-em-travessia, nesse momento é que ele
se apropria do caminho como experienciação mais radical de sua existência e assume a
caminhada como traço existencial, num diá-logo entre verdade e não-verdade a caminho da
linguagem.
3.1.3 – (Co-) Respondendo ao apelo do inesperado
Assumir a caminhada é lançar-se à pro-cura, é partir rumo à plenitude da liberdade, à
abertura para ser o que se é. A plenitude da liberdade é a possibilidade da cura do ser, isto é, o
cuidar-pensar o destino apropriando-se do que se é. A cura-cuidado-pensamento do ser é um
apelo intenso e contínuo. Tudo nos apela: a dor e o prazer, o ter e a carência, o ser e o não-ser, a
proximidade e a distância, o outrora, o agora e o mais adiante, a presença e a ausência, o dia e a
noite, a luz e a treva, o sagrado e o profano, a sabedoria e a ignorância, a vida e a morte, a coisa e
sua negação etc. Esse apelo constitui o maior desafio, o homem pode ouvi-lo ou não, mas nunca
fugir dele, pois nele se move. A abertura para a liberdade é a possibilidade da consumação do ser.
O ser se consuma enquanto ser-livre. A liberdade conduz o homem ao seu télos, isto é, à sua
plenitude.
O caminho que nos conduz às sendas do ser, entre abismos, é o mais longo e mais
doloroso, ao mesmo tempo mais próximo e mais prazeroso. O homem caminha porque há
161
caminho ou há caminho porque o homem caminha? Essa é a tensão originária entre homem e
destino, um é a condição de possibilidade de existência do outro. A caminhada nas sendas da
liberdade como disponibilidade para o sentido consuma o destino humano, por isso o homem é
travessia, ser-em-travessia, aberto e à pro-cura do encontro com o inesperado.
O encontro com o inesperado de que nos fala Heráclito no fragmento 18 é o encontro com a
própria essência de ser; é um abrigar o que se nos advém, o destino. Esse viés aproxima o
acontecimento poético de A máquina do mundo do que há no poema No meio do caminho, pois, a
essência da poética aparece imbricada nas falas dos poemas como voz de uma única poesia: a
poesia do ser (e do sendo) e da obra de arte como experienciação da realidade. Ambos os poemas
tratam do acolhimento do inesperado e neles figuram de modo essencial, ainda que no primeiro
se revele, muito sutilmente, a imagem-questão da pedra. E aqui, pensando o destino como
liberdade e consumação cabe mais uma vez trazer à tona o sentido de pedra, apesar do que já foi
dito acima.
No poema No meio do caminho, o verbo ter dinamiza o sentido do primeiro verso: “No
meio do caminho tinha uma pedra”. Ter ocorre no latim como tenèo e tentum, com as acepções
principais de segurar, agarrar, pegar em, possuir e, por extensão, como permanecer, estar em
presença de e acolher. Por mais estranhas e incomuns que pareçam essas últimas acepções, a
sintaxe poética do verso as aceita bem. Para que se entenda o ter no meio do caminho como um
acolher, um estar em presença e permanecer, precisamos “ver” o verso por inteiro. Assim o
sentido pode nos advir de modo mais originário e essencial. “No meio do caminho tinha uma
pedra”. O “meio do caminho” acolhe, guarda uma pedra. O guardar assinalado no verso através
do verbo ter, não é um guardar que se esquiva de todo, mas um guardar silencioso que nos acena
na elocução. Guardar, de guard-, possui a acepção, no germânico, oriunda da palavra wardôn, de
montar guarda, estar em guarda; procurar com a vista, derivado de warda, significa o ato de
buscar com a vista; montar guarda; estar de sentinela, e este de warôn, que nomeia o ato de
prestar atenção, e, por cognação, em português inclui o sentido de aguardar.
Aguardar retoma o aspecto do sentido do verso observado anteriormente: estar à espera de
ou ficar na expectativa de. Ao dizer que “No meio do caminho tinha uma pedra” se enuncia um
aceno para algo que está à espera de um prestar atenção, ou seja, um pensar acurado, cuidadoso,
marcado pelo interesse, que se emprega ao cuidado de uma coisa ou ocupa-se cuidadosamente
dela. Que coisa é essa que o meio do caminho resguarda para que nos acene de tal maneira e pro-
162
voque nosso inter-esse de modo tão insistente? O verso diz: “No meio do caminho tinha uma
pedra”. A pedra aqui é vista, geralmente, como um obstáculo. Obstáculo é algo que impede ou
atrapalha o movimento, a progressão de alguém ou alguma coisa, é uma dificuldade materializada
por objeto ou fator natural, ao longo de um percurso estabelecido. É, literalmente, aquilo que
obsta, que cria um embaraço, que apresenta oposição por estar diante de, ou em frente a/de. A
pedra é um obstáculo que deve ser sempre pensado e repensado.
A pedra no meio do caminho, assim como as pedras na estrada de Minas, desafia o
caminheiro a uma decisão. Decidir não é uma atitude que podemos ou não tomar. Não
escolhemos decidir. Optar por não decidir já é uma decisão. Somos lançados no horizonte da
decisão constantemente. A pedra é a presença desse apelo, desse desafio. Cada pedra, pisada ou
não, faz parte do caminho. Caminhar ou continuar caminhando é uma decisão. O caminho é
sempre pedregoso, isso quer dizer que é sempre vereda do mistério como pedra insondável, mas
plena de sentido.
A pedra é um obstáculo a ser enfrentado em todo o caminho e caminhar. Não é tanto a
extensão do caminho que desafia o caminheiro quanto a pedra o faz. Esta pode ser o fim ou o
começo do caminho, por esse motivo ela está no meio dele, congregando o início e o fim sem, no
entanto, não ser nem este nem aquele. É um elemento misterioso porque inacessível, não
podemos ver o seu interior, a não ser que a quebremos e, quebrando-a, ela deixa de ser o que era.
A pedra não se deixa analisar. Podem-se analisar seus elementos constitutivos, mas não ela
mesma em sua forma original, assim também como, uma vez quebrada, não se pode mais
reconstruí-la. O que podemos saber dela só nos advém por aquilo que ela própria manifesta. A
pedra no meio do caminho é o acontecimento que dá sentido porque convoca o pensar. É um
apelo, um aceno silencioso ao pensamento. É uma questão.
Parecer-nos-ia ridículo perguntar, mais uma vez, o que é uma pedra. Mas essa pergunta nos
incomoda quando lemos o verso e percebemos nele a importância que este elemento possui e a
necessidade de seu sentido ser constantemente questionado e repensado. De modo muito simples,
pedra é uma base sólida composta ou não. A pedra não tem uma base, ela é uma base. A pedra
como base é um fundamento. O “meio do caminho” tem/resguarda/acolhe uma
pedra/fundamento. Esse resguardar/acolher o fundamento nos convoca a pensar acuradamente o
próprio fundamento. A questão do fundamento foi pensada pela filosofia em três momentos
163
históricos distintos8, porém, conectados ao mesmo eixo de sentidos, denominado metafísica. A
questão gira em torno do ser, entendido como fundamento. No Mundo Antigo, o ser foi entendido
pelo platonismo como idéa e no aristotelismo como enérgeia. No Mundo Medieval o ser era o
Deus Creator e no Mundo Moderno o ser foi interpretado como subjectum pelo o cartesianismo.
A questão da poética do destino é o acontecimento apropriante do real, isto é, a sua
consumação. A verdade acontece quando mundo e terra, no seu jogo de oposições fazem o ente
aproximar-se do desvelamento e pensar o seu destino. Neste caso, diz-se, então, que na obra a
verdade está em obra. A obra de arte não é algo já efetivamente realizado, mas um pôr-se em
obra da Verdade.
A pedra, quando surge no meio do caminho, surge e não-surge como pedra. A pedra põe
questões essenciais à vida humana. Ela é o fim e o início. Ela é o acontecer que funda Mundo.
Ela instaura sentido.
A poiesis se manifesta na figura emergente da pedra, e quando a imagem da pedra surge
como poiesis convoca também o pensamento. “A essência da poiesis ... é para ser pensada”
(Heidegger: 2010, § 164), isto quer dizer que poiesis e pensamento se medem na imagem que
surge. Dizer que poiesis e pensamento se medem é dizer que mutuamente se convocam e
protagonizam o diálogo entre fala e silêncio na linguagem. A arte (poiesis) e o pensamento são
dois modos como a linguagem eclode e se doa ao homem.
A pedra é um fundar, é ela, como imagem poética, que traz a abertura ao pensar e promove
seu encontro com a poiesis instaurando em seu emergir uma questão. A pedra é uma imagem-
questão. Toda imagem-questão é um fundar sentido. A pedra é uma fonte que se revela no que
instaura, mas, o que é em si a pedra, permanece no âmbito do velamento. Quanto mais a pedra se
vela como pedra, mais ela se desvela como sentido inaugurante e ex-põe o ser ao pensamento.
“A essência da arte é a poiesis. Porém, a essência da poiesis é a fundação da verdade. (...)
Contudo, a fundação é efetiva apenas no desvelo. Assim a cada modo de fundar corresponde um
do desvelar.” (Heidegger: 2010, § 172). O que é a pedra não pode ser dito nunca num sentido
conceitual-referencial, tampouco baseado em dados puramente físicos de modo que se estabeleça
a representação do real. A poiesis se doa nessa imagem promovendo uma abertura essencial em
8 Já nos reportamos, de algum modo, a isto, mas é necessário inserir essas concepções continuamente
para repensá-las de diversos modos e em diferentes contextos do real.
164
que a physis revela seu jogo de ser e não-ser, velar e desvelar que desarticula todo esquema
racional e convoca ao pensamento.
A pedra não é um conceito ou algo a ser definido como chave de interpretação, mas algo
que eclode com seu poder de fala e de silêncio que nos convida à escuta. Ela é o “sem sentido”
pleno de sentido que dorme à sombra de um livro/obra esperando o seu des-encanto, e é a “senha
da vida, a senha do mundo”. A pedra não é a “explicação (duvidosa) da vida, mas a poesia
(inexplicável) da vida”. Ela é a abertura que abre o horizonte no limiar entre poiesis e
pensamento e, no seu jogo, deixa transparecer translucidamente a verdade. Esse transparecer
translúcido da verdade fala da pedra como imagem-questão semelhante à fonte, que deixa
transparecer o ser em seu instalar-se como fonte, entretanto seu fundamento continua velado.
Por esse motivo, a pedra é diáfana e opaca, assim como a verdade que ela manifesta: a
eclosão da pedra como imagem-questão é a manifestação da Verdade, mas não de toda a verdade.
A ambiguidade do modo como a verdade se estabelece na poiesis é que permite e convoca o
pensamento no sentido que aqui o tratamos.
3.1.4 – Pedra: o marco da existência humana
É a pedra no meio do caminho, ou da estrada pedregosa, que espacializa o caminho. Ela
está no meio, no centro do caminho. A pedra abre espaço. O saber estar no meio do caminho é
uma doação da pedra. “No meio do caminho tinha uma pedra” que nos acena a respeito do lugar
onde estamos. Só sabemos onde estamos e que estamos “no meio do caminho” por causa da
pedra. Ela é que chama a atenção para este fato. Encontrar-se com a pedra é, de certo modo,
encontrar-se consigo mesmo.
O caminho tem uma pedra ou a pedra tem um caminho? O que a pedra manifesta na
realidade humana? A pedra espacializa a existência humana e traz o sentido e o saber de estar-no-
mundo, o destino. Ela não é o sentido da vida, mas uma manifestação desse sentido, o que se
desvela como doação da physis. Mas o que se desvela não é tudo, pois a physis tende a re-velar-
se, velando-se novamente. Toda revelação é também um re-velar-se e destinar-se à liberdade e à
consumação.
165
A pedra reflete tanto o desvelar como o velar da physis, possibilitando ao homem habitar o
sentido. A physis é um enigma. A pedra é uma doação desse enigma que resguarda em seu
desvelar o velar destinado da physis que brota e permanece.
Qual a relação entre o espacializar operacionalizado pela pedra e o habitar o sentido?
Heidegger nos incita a pensar a questão, sem que isso seja uma resposta, ao tratar da relação entre
espaço e habitar:
Os espaços abrem-se pelo fato de serem admitidos no habitar do homem. Os mortais são,
isso significa: em habitando têm sobre si espaços em razão de sua de-mora junto às
coisas e aos lugares. E somente porque os mortais têm sobre si o seu ser de acordo com
os espaços é que podem atravessar espaços. Atravessando, não abrimos mão desse ter
sobre si. Ao contrário. Sempre atravessamos espaços da mesma maneira que já os temos
sobre nós ao longo de toda a travessia, uma vez que sempre nos de-moramos junto a
lugares próximos e distantes, junto às coisas. Quando começo a atravessar a sala em
direção a saída, já estou lá na saída. Não me seria possível percorrer a sala se eu não
fosse de tal modo que sou aquele que está lá. Nunca estou somente aqui como um corpo
encapsulado, mas estou lá, ou seja, tendo sobre mim o espaço. É somente assim que
posso percorrer um espaço. (HEIDEGGER: 2002 b, p. 136-7.).
O homem habita à medida que de-mora junto às coisas e aos lugares. Os espaços se abrem
quando o homem habita, isto é, quando de-mora junto às coisas e aos lugares. Assim como “no
meio do caminho tinha uma pedra”, a pedra é a questão que funda o meio do caminho como
experienciação. Não é a pedra que incomoda o homem, mas o que ela manifesta. O manifesta-se
como pedra não é o que o deixa perplexo, mas o que a faz eclodir como tal, a essência do agir,
que para o homem continua sendo enigma. Resta ao homem pensar o enigma, a essência do agir.
Nos versos seguintes lemos: “Nunca me esquecerei desse acontecimento / na vida de
minhas retinas tão fatigadas”. Algo acontece com aquele que se pôs a caminho. Uma travessia
originária opera sempre o desvelar de uma acontecimento. Quando alguém se põe a caminho
acontece um destinar. Diz-nos Heidegger: “Pôr a caminho significa: destinar. Por isso,
denominamos de destino a força de reunião encaminhadora, que põe o homem a caminho de um
desencobrimento.”. (HEIDEGGER: 2002 b, p. 27, grifo do autor). O desencobrimento é um
acontecimento originário. Acontecer vem do radical tango, que também dá tactum e tangère, que
dá inicialmente o sentido de tanger ou tocar física ou moralmente. Acrescido do prefixo com-
manifesta, dentre outras palavras, contactus, significando toque e contato e contingescere e
contigescere, no sentido de chegar à proximidade ou vizinhança. No português, essa palavra
166
surge com o a protético no sentido de chegar a, calhar, tocar a ou em, alcançar, atingir, encontrar,
topar; suceder; resultar. Acontecimento é o que acontece de modo inesperado, o que vem ao
encontro extraordinariamente e se manifesta como realidade originária. Em outras palavras,
acontecimento é eclosão do destino como des-encobrimento.
Destino acontece quando há ausculta verdadeira, esta é uma experienciação da linguagem
de modo que nela seja possível habitar. Acontecimento-destino ocorre quando a verdade-vida
vem ao encontro do homem no caminho. O destino reúne todo o envio sábio dispensado aos
mortais como encontro com o inesperado. O poema nos diz: “Nunca me esquecerei desse
acontecimento / na vida de minhas retinas tão fatigadas”. Mais uma vez põe-se a memória em
evidência através do não-esquecimento. Quando, no final do poema A máquina do mundo, a
“treva mais estrita” pousa “sobre a estrada de Minas, pedregosa” assinala o encobrimento do
caminho pedregoso e de toda a experienciação que se desvelou diante do caminheiro em tensão
com o não-esquecimento. Isomórfico ao “Nunca me esquecerei desse acontecimento”, o
encobrimento dado na “estrada de Minas, pedregosa” opera também o logos como ação
recolhedora e reunidora do que se manifesta de modo que se exponha sua vigência e resguarde
sua manifestação: o desvelar e velar da a-letheia como o agir da memória.
Alguém perguntaria: “Será que Drummond pensou em tudo isso quando ele escreveu esse
poema?”. E a pergunta seria muito oportuna nesse momento, quando já nos aproximamos do fim
desta parte. E, estenderíamos ainda a pergunta para: “Será que Drummond pensou em tudo isso
quando ele escreveu todos os seus poemas?”. A resposta seria sim e não. Sim porque toda a fala
poética é uma correspondência à linguagem. Não, porque não se originou do poeta a poesia.
Embora “o que permanece, porém, inauguram os poetas.” (HEIDEGGER: 2004, p. 132). Todo
poeta fala a partir da linguagem. O poeta é aquele que está entregue à linguagem e aberto ao
acolhimento de seu dizer fundante.
É a linguagem que, primeiro e em última instância, nos acena a essência de uma coisa.
Isso, porém, não quer absolutamente dizer que, em cada significação tomada ao acaso de
uma palavra, a linguagem já nos tenha entregue a essência transparente das coisas, de
forma imediata e absoluta, como se fosse um objeto pronto para o uso. O co-responder,
em que o homem escuta propriamente o apelo da linguagem, é a saga que fala no
elemento da poesia. Quanto mais poético um poeta, mais livre, ou seja, mais aberto e
preparado para acolher o inesperado é o seu dizer; (HEIDEGGER: 2002 b, p. 168)
167
A linguagem concede a essência das coisas como palavra, não qualquer palavra, tomada
conceitualmente como signo linguístico e portadora de um significado; mas a palavra poética que
se manifesta como doação da linguagem, dela vindo e para ela tornando. Quando o homem co-
responde a linguagem esta se revela nele como palavra fundante e seu dizer torna-se acolhida do
inesperado. O dizer poético é a acolhida do inesperado, isto é, um acontecimento. O homem é
tocado pelo destino que lhe vem ao encontro proporcionando um des-encobrimento. Mas o que se
des-encobre no acontecimento? O próprio ser. O des-encobrimento do ser é um acontecimento
apropriador do destino, pois está em operação a ação recolhedora e reunidora do logos como
experienciação hermenêutica da vida. E, nesse mover, a aprendizagem se dá como poetar
pensante e como pensar poético. É no a-prender que o homem a-preende, isto é, agarra o sentido
de sua existência e se apossa do que é.
O poema nos diz: “Nunca me esquecerei desse acontecimento”, e assinala o lugar tanto do
acontecimento quanto de seu acolhimento: “na vida de minhas retinas tão fatigadas”. Retina é a
membrana que recobre a face interna do olho e que contém as células capazes de captar os sinais
luminosos. O lugar-próprio do acontecimento é a retina que se esconde invisivelmente “na
sombra do olho”. Notemos que não é no olho que eclode o des-encobrimento, mas no oculto do
aparelho visual, que é, ao mesmo tempo, o que faculta a visão.
A visão do des-encobrimento não é um agir transcendente, para fora de si; pelo contrário, é
um destinar-se ao interior de si mesmo, no seu hodós íntimo. É a travessia transdescendente aos
abismos do próprio ser. “Nunca me esquecerei desse acontecimento” assinala uma aprendizagem
em que vigora uma sabedoria originária, na qual se experimenta o sabor do ser. O “Nunca me
esquecerei” está o tempo todo em tensão com o esquecer. O acontecimento assinala o habitar a
essência do ser, a saber, a linguagem. Habitar a linguagem é também estar aberto constantemente
ao inesperado. É manter-se no caminho. É dar continuidade à travessia infinita, na qual se
experiencia constantemente o sabor do ser nas vias do não-ser tanto como não-mais-ser quanto
como ainda-não-ser. A reiteração do acontecimento se expõe na repetição in continum dos versos
e ad perpetuam rei memoriam: “Nunca me esquecerei que no meio do caminho / tinha uma pedra
/ tinha uma pedra no meio do caminho / no meio do caminho tinha uma pedra.”.
O enigma-destino da vida é a travessia. Toda travessia se destina ao acontecimento como
des-encobrimento do ser. O des-encobrimento do ser se dá com e na travessia como ser-em-
travessia no meio do caminho, ou seja, destinação como consumação da liberdade.
168
3.2 - Verdade: do originário ao racionalismo
Desde os primórdios do pensamento, a verdade é uma questão nuclear, é ela que governa as
ações humanas. Os homens se movem pela verdade ou pelo menos pelo que pensam sê-la. O
caminhar humano se lança ao encontro do sentido de sua existência, pois é este que o realiza
como humano.
Na tentativa de se condensar o sentido das coisas de modo que ele pudesse ser adquirido,
guardado e retransmitido, foram criados os conceitos. Estes, com base na metafísica, serviram
como mediadores entre o homem e o real estabelecendo uma representação da verdade
possibilitando todo o conhecer.
Sendo assim, o homem deveria interpretar a realidade aparente a fim de conhecer sua
essência. Esse interpretar se diz como uma adequação do intelecto à ideia e a consequente
objetivação do sentido (re-) transmitindo-o em significado. O significado é o tour de force que
move as realizações humanas. Este tem sua força ampliada pelo complexo unívoco do
conhecimento técnico-científico que matematiza o real mapeando todo o seu ser e acontecer ou
pelo menos tentando fazê-lo.
Esse ser e acontecer do real é o que convencionou-se chamar destino, que é nada mais que o
resultado de uma cadeia de acontecimentos, denominado causa, dentro de um esquema de
possibilidades. Destino, assim entendido, é simplesmente consequência. Desse modo, destinação
é racionalização e determinismo, físico e metafísico.
Entretanto, a relação verdade e destino nem sempre foi assim. Verdade, no pensamento
grego originário, era a manifestação de uma caminho como caminhar humano. A força verbal de
caminho, como o que se dá no caminhar, clareia a diferença essencial entre trajeto e trajetividade.
Como conceito, verdade é uma plataforma estabelecida como possibilidade de ser dentro de uma
gama de caminhos (trajetos) previsíveis. Como questão, verdade é um caminhar inaugural,
completamente novo, que engendra o extraordinário do próprio ordinário. É o que os pensadores
originários viram na tensão de physis e logos como hodós, aletheia e dzoion e os poetas como
reinvenção ou reengendramento da vida por si mesma, ou seja, poiesis.
169
Não é nosso objetivo fazer uma historiagrafia da verdade, mas situarno-nos no cerne da
questão proposta a fim de que possamos melhor refletir sobre destino e verdade, sobretudo na
Modernidade.
3.2.1 – A visão mecanicista da Modernidade
O sistema de valores e a visão de mundo que fundamentam e estruturam a cultura vigente
no século XX foram formulados essencialmente nos séculos XVI e XVII. A ciência renascentista
substituiu a visão de mundo mitopoética da Antiguidade, reinterpretou racionalmente a obra de
pensadores como Parmênides, Heráclito, Platão e Aristóteles e outros da Idade Média,
substituindo todo pensamento de outrora por uma visão secular e científica firmando um
corolário metafísico-racionalista conceitual. Desse modo, elaborou uma cosmologia que
comparava estruturalmente o mundo a uma máquina com leis inflexíveis de funcionamento.9
A visão cosmológica da Idade Moderna ficou conhecida pela metáfora “máquina do
mundo”. Tal visão de mundo e sistema de valores, também conhecido como mecanicista, foi
radicado e fortalecido pela procura e estabelecimento de um meio pelo qual se conheceriam as
coisas e se consubstanciaria o conhecimento.
Dois pensadores contribuíram grandemente para o desenvolvimento de uma visão
metodológica que desse conta das investigações, Francis Bacon (1561 - 1626), com a proposta de
descrição matemática da natureza e Renè Descartes (1596 - 1650), com o método analítico de
raciocínio. Reconhecendo a importância crucial da ciência na mudança do paradigma mundial, os
9 É muito importante distinguir as obras de Platão e de Aristóteles de platonismo e aristotelismo. Por platonismo
entendemos a doutrina gerada a partir da leitura metafísica das obras do filósofo grego Platão (428 a.C.-348 ou 347
a.C.) e de seus seguidores sobre forma filosofemas, caracteriza-se principalmente pela concepção de que as ideias
transcendentes e eternas engendram toda a realidade material, e que a contemplação dos seres supra-sensíveis
determina os parâmetros definitivos do comportamento moral e da organização política. As referências que aqui
faremos não se reportam ao Platão que faz a experiência do pensamento, mas ao Platão das leituras metafísicas.
Usaremos platonismo em vez de nos reportarmos diretamente ao pensador, com o objetivo de evitarmos equívocos e
incorreções, visto que este trabalho não se propõe a uma genealogia da metafísica nem do platonismo, tampouco a
fazer uma análise das idéias difundidas nas obras de Platão. Assim, também nos referimos ao aristotelismo tendo em
mente as leituras metafísicas das obras de Aristóteles, do mesmo modo como ocorreu com Platão e ao
cartesianismo/cartesiano pensando nas leituras metafísicas das obras do pensador francês René Descartes (1596-
1650), que firmou em suas obras o marco fundacional da filosofia moderna, e de seus seguidores. O cartesianismo
inaugura a autonomia de uma razão dubitativa, científica e subjetivista em relação ao primado da autoridade
tradicional e da crença religiosa expostas na era anterior, a Idade Média.
170
historiadores comumente se referem aos séculos XVI e XVII como a Idade da Revolução
Científica. Dando curso à formação do sistema investigativo em voga, Galileu (1564 - 1642)
combinou a experienciação científica com o uso da “linguagem” matemática para formular e
legitimar as leis da natureza descobertas por ele. Daí ser considerado o pai da ciência moderna.
Segundo o cientista, temos que aprender a decodificar a “linguagem” da natureza, que se
constitui basicamente de caracteres matemáticos, como triângulos, círculos e outras figuras
geométricas.
Uma questão levantada que se torna central para o método racionalista é a linguagem e,
jungida a ela, a sua respectiva e necessária decodificação. A natureza está codificada numa
“linguagem” que lhe é própria, cabe então, ao cientista, decodificar essa “linguagem” in natura,
e recodificá-la cientifica ou filosoficamente, estabelecendo o que seria seu código, sua língua,
que funcionaria como intermediário entre a natureza e o homem. O domínio desse código
proporcionaria o funcionamento interativo entre homem e natureza, de modo que esta fosse
plenamente conhecida e pudesse ser manipulada eficazmente por aquele. O código adviria da
metodologia usada e teria seu vigor dela mesma.
Seguindo o esquema: natureza-linguagem-metodologia-código-instrumento-domínio-
funcionamento, teríamos a proposição lógica que poderia ser formulada na seguinte tese, para
usar uma estrutura coerente com a proposta da época: a natureza possui uma “linguagem” que
pode ser decodificada por uma metodologia que determinaria seu código ou língua e que
funcionaria como um instrumento possibilitador do domínio de seu funcionamento.
No século XVII, Francis Bacon desenvolveu o método empírico da ciência e formulou uma
teoria consistente e clara do procedimento indutivo, que deu novos contornos à ciência,
priorizando o conhecimento como um instrumento funcional para dominar e controlar a natureza.
O método científico passou a ser considerado o único meio válido de compreensão do universo.
Descartes, por meio da intuição racionalista e da dedução, funda o método analítico que se
radica na dúvida e, em sua práxis, consiste em decompor pensamentos e problemas em suas
partes componentes e, em seguida, dispô-los em uma ordem lógica. O método cartesiano
fragmentou o conhecimento e difundiu a crença de que todos os aspectos dos fenômenos
complexos poderiam ser compreendidos se fossem reduzidos às suas partes constituintes.
O cogito cartesiano, como ficaram conhecidas suas teorias, privilegiou a mente em relação
à matéria e levou à conclusão de que as duas eram separadas e fundamentalmente diferentes e
171
essencialmente opostas. A teoria cartesiana trouxe, num outro prisma, a discussão entre matéria e
forma. Com cartesianismo, o real foi dividido em dois domínios separados e independentes: o da
mente ou res cogitans (coisa pensante) e o da matéria ou res extensa (coisa extensa), essa visão
passou a constituir o ponto de partida essencial para a interpretação da realidade.
O universo para o cartesianismo era uma máquina, a natureza funcionava de acordo com
leis mecânicas que podiam ser explicadas em função da organização e do movimento de suas
partes.
O pensamento cartesiano se tornou o paradigma dominante da ciência mecanicista
desenvolvida nos séculos XVII, XVIII e XIX que influenciou uma boa gama do pensamento
ocidental que se desenvolveu no século XX, estabelecendo a drástica mudança da concepção da
natureza, outrora vista como um corpo vivente, para a de uma máquina perfeita, governada por
leis matemáticas exatas e inflexíveis, isntaurando definitivamente a relação causa-consequência.
A mudança da cosmologia tradicional, em que a Terra era entendida como um corpo vivo e
mãe nutriente infundindo um comportamento ético ao homem, resultou numa ânsia por domínio e
controle. Apesar de ter sido a ciência cartesiana a fundadora da estrutura conceitual, foi Isaac
Newton (1642 - 1727). que completou a revolução científica e desenvolveu a completa
formulação matemática da concepção mecanicista da natureza. Com a criação do cálculo
diferencial, Newton formulou leis exatas do movimento para todos os corpos.
A ciência seiscentista, anterior a Newton, era orientada por duas tendências opostas: o
método indutivo e empírico, contribuição de Bacon, e o método racional e dedutivo, de
Descartes. Newton combinou ambos os métodos: experimentação sistemática e análise
matemática. O modelo newtoniano era atomístico e presumia que a matéria era homogênea, nele,
todos os fenômenos físicos estão reduzidos ao movimento de partículas materiais, organizados
cosmeticamente por uma atração mútua, isto é, pela força da gravidade.
O universo funciona governado por leis imutáveis, por um rigoroso determinismo,
estabelecido por meio de causas e efeitos extremamente definidos que possibilitava uma
funcionalidade estritamente previsível podendo-se calcular pelas causas os efeitos e vice-versa e
respectiva descrição objetiva. Essa é a base de muitas teorias sobre o real.
Por estar na dimensão lógico-causal, de acordo com a concepção mecanicista o universo é
uma máquina acionada pelo homem, este funciona como uma causa eficiente: cada ação humana
provoca uma reação no universo. O homem também é uma máquina acionada pela razão. O
172
mecanicismo pressupõe que todos os aspectos da realidade podem ser entendidos se reduzidos a
seus menores constituintes.
Esse pensamento coroa o credo reducionista cuja premissa é a decomposição do todo em
suas menores partes constituídas e, para ter uma dimensão total da realidade, basta juntar suas
partes como se formassem um enorme quebra-cabeças. E isto foi transmitido também para as
obras de arte com a adoção da análise.
Quando o real é fragmentado e se tenta explicar os fenômenos em função dos elementos em
particular, se perde a capacidade de entender as atividades interagentes no todo. Essa visão de
mundo possibilitou grande avanço na biomédica ao passo que também favoreceu o
desenvolvimento das pesquisas genéticas que cogita a possibilidade de se manipular a vida
humana a partir dos elementos moleculares. Entretanto, os processos pelos quais os genes se
comunicam e cooperam no organismo, como eles interagem e se agrupam, isto é, a sua sintaxe,
continuam sendo, de algum modo, enigmáticos.
A grande lacuna no sistema mecanicista evidencia-se por não se voltar para a sintaxe
poética complexa da rede do real. O mecanicismo instala a constituição da relação sujeito e
objeto de modo que este possa ser totalmente desmontado por aquele e passivo de dominação
quando descobertos seus fundamentos, além disso, usa uma linguagem conceitual para falar de
algo que ainda se vela como mistério.
Ao contrário do que se pensa, não é por acaso que, no poema de Drummond, “a máquina do
mundo” se revela. O caminhar do caminheiro do poema é determinante para que tal revelação
aconteça. Relembramos que caminho, em grego, se diz “hodós”, que, com o prefixo “metá”,
compõe em português a palavra método. O que mais se discute na Modernidade como princípio
de articulação das atividades humanas, principalmente as ligadas ao pensamento, é o método.
Não é à-toa que uma das principais obras de Descartes é intitulada Discurso do método, que
coloca, ao lado de inúmeros pensadores, o método como questão principal e norteadora da
Modernidade.
Com Kant (1724–1804), sobretudo, o método é estabelecido e estabelece a relação sujeito-
objeto, que, por sua vez, evoca a proximidade e a distancia como questões. O caminho de
pensamento do caminheiro do poema é a questão central do texto.
A ciência moderna elaborou inúmeras teorias científicas com a finalidade de analisar as
facetas do real e descrevê-las de modo preciso. Sendo assim, cada teoria é válida para certa gama
173
de fenômenos, quando surgem outros que escapam ao aguilhão das teorias vigentes, então é
preciso encontrar outras para substituir as antigas. Fica impensado, porém, na ciência, a questão
do alcance de um método exterior ao fenômeno quanto à possibilidade de descrevê-lo ou
determiná-lo exatamente, se é que a pretensão dessa tarefa é de fato uma meta atingível, ou se o
método deveria surgir como uma própria doação do real.
Seria, então, o método não uma descrição de acordo com uma pré-concepção do sujeito a
respeito de um objeto, mas a ausculta do fenômeno em sua própria dinâmica de dar-se, entendo-
se, também, que há algo que se oculta enquanto outro se manifesta. Haveria, na ausculta, um
encaminhar-se também para o velamento e para sua dinâmica com o desvelamento do fenômeno.
O foco principal seria essa dinâmica da máquina, não como um aparelho composto por um
conjunto de peças com um funcionamento preciso tendendo para determinado resultado, mas
como o maquinar, isto é, próprio movimento de mundo como mundificar.
3.3 - Verdade e liberdade
A liberdade é um dos grandes temas do pensamento e pode ser expresso nas seguintes
questões:
Qual é o alcance da ação humana e o que está em seu poder?
Qual é a extensão do poder de nossa vontade, desejo e consciência?
Qual é o poder da liberdade e o limite de sua ação em nossa vida?
Qual é o poder da nossa influência sobre as pessoas, coisas, pensamentos e situações e qual
o poder da influência delas na nossa vida?
Até que ponto somos livres?
Em quê liberdade e consumação se implicam?
Essas questões não deveriam ser originariamente transformadas em conceitos, pois,
originariamente, não possuem uma resposta. Elas podem ser sempre, e em contextos diferentes,
recolocadas, repensadas. Por exemplo, um outro modo de colocá-las seria: O que é isto: a
liberdade? O que é isto: a ação humana? O que é isto: a vontade, o desejo, a consciência, o limite,
a influência etc? O que é isto: a consumação?
174
3.3.1 – Liberdade como possibilidade e disponibilidade
O homem está lançado no mundo num âmbito relacional do qual não se pode esquivar, este
abre espaço para a experienciação humana, desde as mais corriqueiras às mais radicais, que
descem à raiz de sua existência. É no mundo que o homem se libera para a, ou seja, para o como
ele vai se constituir como ser-no-mundo. Nesse habitar a liberdade é uma acontecimento
apropriador, isto é, a abertura de possibilidade para realizar sua existência como um modo de
apropriar-se do que lhe é próprio. Assim, liberdade se constitui como possibilidade e
disponibilidade.
Quando dizemos possibilidade para ou da liberdade intensificamos a liberdade, se é que
seja possível, pois a abertura da liberdade é tamanha que, mesmo ignorando, ou sem querer, nela
já nos movemos como possibilidade. A renúncia de à realidade de uma possibilidade nos lança
em outra e assim sucessivamente. Isso é liberdade.
Liberdade geralmente é conceituada como um estado de independência, quando se adquire
direitos, ou pode-se exercer sua vontade e expressar-se de acordo com sua consciência e natureza;
quando não se está sujeito à força constrangedora física ou moral, ou não se é cativo, propriedade
de outrem, ou nos sentimos soltos e ainda tendo pouco apego às conveniências sociais e morais.
Num âmbito mais filosófico, é a potencialidade de escolha autônoma, independente de quaisquer
condições e limites, por meio da qual o ser humano realiza a plena autodeterminação,
constituindo a si mesmo e ao mundo circundante; ou quando se pode transformar o real, com o
objetivo de satisfazer suas necessidades materiais e determinar a organização geral da sociedade;
ainda dispor de livre-arbítrio frente aos múltiplos condicionamentos naturais, psicológicos ou
sociais que impõem predisposições ao agir humano.
Esses conceitos são facetas da liberdade, mas não dão conta da complexidade da sua
essência. Liberdade mora na simplicidade, e é esta que revela sua maior complexidade e nos
acena para maior proximidade do sentido de liberdade apontando para o que se pode chamar de
estado de disponibilidade.
Disponibilidade para quê? Para habitar, para de-morar juntos as coisas, para o aberto de
mundo, para viver, morrer, receber, renunciar, ser e não-ser etc. A disponibilidade é mais que
vontade ou consciência, estas podem ou não ser ignoradas, aquela, nunca. A disponibilidade é a
175
própria condição humana, é ela, como possibilidade de liberdade, que conduz o homem e dispõe
para o deixar-ser.
Liberdade é deixar o homem disponível para ser o que ele é. “Somente a liberdade pode
deixar um mundo dominar e mundificar o estar-aí”. (HEIDEGGER: [s.d.]. p. 87). Ao ser, que foi
lançado na disponibilidade, Heidegger chama de entre-ser10
e a disponibilidade em que ele é
lançado, entre11
. A noção de transcendência proposta pelo pensador alemão não é a mesma do
platonismo, de ir além do mundo, pelo contrário, ele fala da ultrapassagem para o abismo do
mundo, o seu mais puro vazio, donde encontra-se com sua ipseidade. Abismo aqui não significa
precipício, mas a profundeza insondável e inexplorada, aquilo que é incomensurável, misterioso,
assombroso e assinala a grande distância e a profunda separação, o último grau, o fundo sem
fundo, o extremo a que se pode chegar: o velamento originário do ser, o seu destino. Ao deixar-
ser no aberto da disponibilidade, nós mesmos nos realizamos como sendo, constituindo a relação
de ser-com e ser-em. Quando damos espaço para mundo ser mundo e nos abrimos para sua
ausculta, instaura-se a verdade do ser e manifesta sua ipseidade. Toda ação autêntica do entre-ser
necessária a sua experienciação de mundo só é possível no horizonte da liberdade. Liberdade é
salto, gratuidade, espontaneidade, o estar disposto a liberar(-se) para ser o que se é, mas ainda
não se manifestou, isto é: destino. Essa imediatividade do ser vai do salto no abismo ao acontecer
da vida, nela eclode a verdade como manifestação, desencobrimento, que se revela, mas não
totalmente, pois o abismo onde mora a verdade é sem fundo. É isso que nos assinala Heidegger
no fragmento seguinte:
O desencobrimento do que é e está sendo segue sempre um caminho de
desencobrimento. O destino do desencobrimento sempre rege o homem em todo o seu
ser, mas nunca é a fatalidade de uma coação. Pois o homem só se torna livre num envio,
fazendo-se ouvinte e não escravo do destino.
A essência da liberdade não pertence originariamente à vontade e nem tampouco se
reduz à causalidade do querer humano.
A liberdade rege o aberto, no sentido do aclarado, isto é, des-encoberto. A liberdade tem
seu parentesco mais próximo e mais íntimo com o dar-se do desencobrimento, ou seja,
da verdade. Todo desencobrimento pertence a um abrigar e esconder. Ora, o que liberta é
o mistério, um encoberto que sempre se encobre, mesmo quando se desencobre. Todo
desencobrimento provém do que é livre, dirige-se ao que é livre e conduz ao que é livre.
A liberdade do livre não está na licença do arbitrário nem na submissão a simples leis. A
liberdade é o que aclarando encobre e cobre, em cuja clareira tremula o véu que vela o
10
Entre-ser e entre, em vez de ser-aí e estará-aí, são traduções mais próximas do pensamento de Heidegger, conferir
tradução do ensaio A origem da obra de arte, feita por Idalina Azevedo da Silva e Manuel Antônio de Castro. 11
Vide nota anterior.
176
vigor de toda verdade e faz aparecer o véu como o véu que vela. A liberdade é o reino do
destino que põe o desencobrimento em seu próprio caminho (HEIDEGGER: 2002 b, p.
27-28.).
Liberdade é salto, gratuidade, espontaneidade, o estar disposto a liberar(-se) para ser o que
se é, mas ainda não se manifestou, isto é: destino. Essa imediatividade do ser vai do salto no
abismo ao acontecer da vida, nela eclode a verdade como manifestação, desencobrimento, que se
revela, mas não totalmente, pois o abismo onde mora a verdade é sem fundo. Quando o homem é
tomado por essa verdade dá-se destino.
3.3.2 – Liberdade como destinação
O destino rege o homem mediante a liberdade. Destino é ser livre para ser. Destino não é o
cerceador do homem enquanto manipulador de sua existência é antes um envio, um apelo à
ausculta do homem para que se manifeste o sentido de sua vida. E esse sentido não é um
preparado de antemão ou condicionamento vivencial, mas o que desde sempre se é: possibilidade.
Não há como pensar em liberdade sem pensar também em necessidade e convergência da
possibilidade para a liberdade. A possibilidade não é uma escolha humana, mas sua maior
condição. A necessidade de possibilidade para a liberdade se expressa como a realidade do que
age no homem e rege sua existência com ou sem seu consentimento e o lança no âmbito dela
destinando-o a apropriar-se do que lhe é próprio.
O homem tem necessidade da possibilidade e disponibilidade, isto é, ele só pode ser nelas.
Elas sempre apelam a ele, sempre lhe “envia mensagens”. A realidade fala com o homem o
tempo todo e lhe apela à ausculta, isso corresponde a dizer que no real tudo converge para o
homem. Toda a realidade se volta para o homem, con-verge, verga-se, inclina-se para ele, não
porque ele seja superior aos demais seres e coisas, mas porque ele é o único capaz de
experienciar a linguagem. Há quem pense e defenda ser o mundo uma tessitura de acasos felizes
ou não, em que tudo acontece de modo extremamente imprevisível, outros que os acontecimentos
são regidos por causas e leis condicionadoras dos pensamentos, sentimentos e ações humanas,
fazendo da liberdade uma utopia. Entretanto, o homem está lançado no aberto da liberdade não
obstante tanto cerceamento, tanta privação, e esta de todos os tipos, e imposições ideológicas,
porque a liberdade não é coisa alguma senão apelo, quem é para ser é o homem.
177
A possibilidade para a liberdade não é uma decisão humana, ele só é homem por se mover
nela, entretanto, ele pode renunciar à liberdade, mesmo assim continuará no âmbito da liberdade,
pois ele precisa ser livre até mesmo para renuncir a ela, essa é a sua ambiguidade originária.
O homem, na verdade, decide ser ou não cativo, essa é a questão. Factualmente isso parece
ser controverso e exatamente o contrário, como se o homem lutasse contra as agruras do
cativeiro, mas se a liberdade fosse fruto de um esforço humano, como uma conquista, poder-se-ia
tê-la ou não, contudo, nela sempre nos movemos como possibilidade, estamos lançados à
possibilidade de liberdade, ela sempre haverá de um modo ou de outro, isso é destino. O homem
não pode escolher ter ou não destino, ele já é destinação.
Destinação não é uma meta a atingir, objetivo ou finalidade, como registram os dicionários,
mas a condição humana de estar lançado ao destino. Ser destinado à liberdade, vivenciar
necessidade e convergência de possibilidade e estar lançado ao destino, é viver em face do
sentido.
Sentido dá-se como desencobrimento, entretanto, este está enraizado no encobrimento.
Sentido se tensiona com o mistério e daí vem seu vigor manifestativo.
Toda manifestação é manifestação de um mistério e, ao mesmo tempo, de um sentido, ora
se a manifestação de um sentido provém do mistério, este é o não-sentido como possibilidade de
todo e qualquer sentido. Quando pensamos o sentido estamos entregues ao comando do mistério,
em seu domínio. Ao fazê-lo, somos guiados pelo apelo do mistério e por ele tomados e chegamos
aonde já estávamos, mas ainda não tínhamos percebido ou experienciado essa realidade: “No
pensamento do sentido, encaminhamo-nos para um lugar onde se abre, então, o espaço que
atravessa e percorre tudo que fazemos ou deixamos de fazer". (HEIDEGGER: 2002 b, p. 58).
Movemos-nos no mistério e somente por isso podemos ser tomados pelo sentido, o que
equivale a dizer que só porque nos movemos no não-saber é que podemos saber. O sentido e o
saber nos advêm da escuta da realidade que nos apela a pensá-los. Acolher esse apelo é recolher e
consumar a ausculta, que não é somente de uma fala, mas também e principalmente do silêncio
como limite e, ao mesmo tempo possibilidade, de todas as falas, por isso a ausculta não precisa
ser necessariamente lógica, mas nela se abrigam as diferenças como unidade da dobra. No caso
do destino, essa unidade se dá entre homem e mundo.
Liberdade acontece quando somos tomados pelo sentido de ser. Sentido é linguagem
operando como cura curando-nos do aprisionamento dos determinismos conceituais ou conceitos
178
deterministas que regem a vida. A linguagem operando é arte. A arte nos cura quando nos
entregamos aos seus cuidados. A arte, verdadeiramente poética, rompe toda manipulação retórica
e condicionamento intelectual operando a abertura do real em possibilidades, eclodindo como um
aceno ao pensar, um apelo íntimo à ausculta de nós mesmos, do que somos. Nesse sentido, arte é
abismo sem fim que salva, cujo salto nele é uma iniciação infinita nas veredas do não-ser, do
desconhecido, tão longe e ao mesmo tempo tão perto.
A arte é um modo como a realidade fala intimamente com o homem. Atender o apelo da
arte é fazer ausculta da realidade e permitir que seu vigor realize liberdade, isto é, destino.
Destinar-se é, originariamente, aucultar a fala da realidade como arte e de-cidir-se por fazer a
caminhada originária rumo ao que se é. Destino, liberdade, linguagem são modos como a verdade
se manifesta – tudo: um. O homem destinado à liberdade é o mesmo que dizer destinado à
verdade. Isto, porém, não garante que todos serão tomados pela verdade, ainda que, de algum
modo, nela estejam.
3.3.3 – Liberdade e limite
Liberdade não é poder fazer tudo o que se quer ou deseja, ela não é livre de normas ou
regras, antes possui sua própria dimensão, seu próprio limite. Os limites da liberdade vigoram na
tensão homem-mundo, ambos se medem por essa tensão. "O limite não é onde uma coisa termina
mas, como os gregos reconheceram, de onde alguma coisa dá início à sua essência. Isso explica
por que a palavra grega para dizer conceito é ορισμός, limite." (HEIDEGGER: 2002a, p. 134.).
Liberdade é a ação do homem nesse limite com mundo. Isso parece contraditório, tendo em
vista tudo o que aqui já foi dito, entretanto não se perguntou ainda qual é o limite do humano e do
mundo, isto é, o limite do ser-homem e ser-mundo; sua dimensão é imensurável. Homem e
mundo se medem mutuamente explorando seus limites, nessa tensão, ambos ultrapassam seus
próprios limites já manifestos e se lançam ao aberto, ao abismo ontofânico.
Nesse jogo o sentido se dá como verdade (alétheia), que é uma plenificação da liberdade. O
limite é o que sustenta o ser e o possibilita ocupar uma posição quando apossado pela linguagem
ampliando sua disponibilidade de abertura em face do próprio limite, este não tira a liberdade,
antes instiga à ultrapassagem e à consumação do ser:
179
O limite não é nada que de fora sobrevém ao sendo. Muito menos ainda uma deficiência
no sentido de uma restrição privativa. O manter-se que se contém nos limites, o ter-se
seguro a si mesmo, aquilo no que se sustenta o consistente, é o ser do sendo. Faz com
que o sendo seja tal em distinção ao não-sendo. Vir à consistência significa portanto:
conquistar limites para si, de-limitar-se (HEIDEGGER: 1969, p. 88.).
Ao exigir um fim, o limite conduz aquilo a que se impõe à consumação, à sua plenitude, a
essa ação, os gregos denominaram telos. Consumar vem o do latim com-sumo, levar ao sumo, a
essência, significa agarrar, apoderar-se e apropriar-se de algo no sentido originário.
Consumar é apropriar-se do que nos é próprio, plenificar-se, completar-se, ou seja, é aquilo
de que não falta parte, chegou ao limite. A liberdade é a disponibilidade como necessidade e
convergência que possibilita o homem chegar ao seu télos, a consumar o que ele é.
O mundo não é o nosso limite, pelo contrário, o limite do ser é o não-ser, este não é uma
negação do ser, mas a condição de possibilidade de todo o vir a ser. Isso pode ser entendido,
preliminarmente, de modo muito simples: no meio do caminho o homem (ser) já não é o que era
(não-ser), mas ainda não é o que será (não-ser). Não-ser é o-que-já-não-se-é e também o-que-
ainda-não-se-é, o abismo. O homem não está contra o mundo, a tensão é expansão. Ao ser
humano cabe a tarefa de conhecer seu limite e abertura, nesse sentido, conhecer é entregar-se ao
que se quer conhecer. Por isso, como diz Cecília Meireles, “A vida só é possível reinventada”. O
homem e o mundo não estão prontos e acabados, como assevera o próprio Drummond no poema
Mundo grande:
(...)
Trouxeram a notícia
De que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
Entre o fogo e o amor.
Então, meu coração também pode crescer.
(...)
(ANDRADE: 2007, p. 87).
O mundo e o homem crescem todos os dias. Seria uma aberração biocosmológica se essa
afirmação fosse entendida como aumentar de tamanho. Crescer aqui é intensificar sua
experienciação vital, isto é, ampliar sua entrega ao mistério:
180
O mistério sem nome da realidade não tem onde estar. Não se acha em parte alguma,
nem no sujeito nem no objeto, nem dentro nem fora. Ao contrário, é nele que estão todas
as coisas, é dele que tudo tem o espaço de seus lugares e o tempo de sua hora e vez, é
dele que tudo recebe o sentido de sua essência. Não se trata de coisa entre coisas nem de
pessoa entre pessoas. Não é nem espírito nem matéria (LEÃO: 1992, p. 175).
O mistério vigora no âmbito da linguagem. O homem não tem linguagem, mora, ainda que
não saiba habitar, no abrigo da linguagem. Ela é o mistério que toma o homem e o extasia diante
do desconhecido, do não-ser, do destino. Esse espanto é o maior provocador do pensamento que
pensa radicalmente, ou seja, as raízes do que é e acontece, esse tipo de pensar nomeia o fazer a
experienciação como caminho (hodós).
Liberdade é liberar-se para a possibilidade e disponibilidade como destinação, fazendo a
experienciação do limite na difícil e perigosa caminhada de chegar a ser o que recebemos para
ser, isto é, apropriarmo-nos do que nos é próprio.
3.4 – Verdade: manifestação ontofânica
Poeticamente entendida, a referência verdade e destino é uma manifestação ontofânica da
verdade. Isto porque verdade não é, dá-se, ou seja, manifesta-se. Ao irromper em seu caráter
manifestativo, verdade aponta para o acontecer imediado e imediato do sentido, ou seja, assim
como não há sentido específico que presida toda e qualquer manifestação, caso contrário não
seria sentido, mas significado, também não há verdade prévia. Quando se entende sentido e
verdade como algo previamente estabelecido, presumido, está-se pensando em significado e
verossimilhança como condição de possibilidade de representar (significado) o verdadeiro
(verossímil). Como manifestação, porém, verdade é a clareira de sentido que se abre
possibilitando o habitar humano; neste o homem acontece como tal.
Pensamos verdade como manifestação ontofânica, de certo modo redundante, visto que
phaino já nos dá uma ideia de manifestar, aparecer e surgir e on diz o sendo, particípio presente
do verbo grego einái, no sentido de o que está patente e latente, que em português se diz ser.
Quando verdade surge, manifesta-se seu movimento instaurador, é um acontecer inaugural
poético-apropriante que possibilita ao homem apropriar-se do que lhe é próprio, isto é, do seu
181
destino. O homem se move sempre na “estrada pedregosa” da verdade, no seu destino, essa
experienciação de travessia constitui o seu ser-no-mundo.
3.4.1 – Verdade e manifestação
Um curiosíssimo poema de Carlos Drummond de Andrade recebeu a denominação de
Verdade. O texto é quase uma narrativa que supostamente se diria lançar-se a temas filosóficos,
entretanto, mais uma vez é a poética que nos conduz a pensar. Diz o poema:
Verdade
A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.
(ANDRADE: 2007, 1240)
O poema não define, não conceitua nem caracteriza a verdade, mas a situa como uma
espécie de “casa” cuja porta “estava aberta, mas só deixava passar meia pessoa de cada vez”.
Aqui se coloca a questão principal da verdade: sua porta estava aberta, mas não permitia uma
manifestação total. A referência a meia pessoa assinala que a verdade é tanto o que se manifesta
quanto o que se retrai. Desse modo “não era possível atingir toda a verdade,/ porque a meia
pessoa que entrava/ só trazia o perfil de meia verdade”. Continua dizendo: “E sua segunda
metade/ voltava igualmente com meio perfil./ E os meios perfis não coincidiam.”.
182
O que ora se expõe é um incômodo causado nas pessoas pela verdade, e essa é uma
sensação comum. A verdade incomoda justamente pelo seu caráter dissimulado, encoberto, que
incita o seu des-(en)cobrimento. O prefixo des-, que aparece na palava dissimulado, tanto nega
quanto acentura o que o radical diz, é o mesmo que está na dobra de des-velar: dis-simular é tanto
encobrir como manifestar, ao mesmo tempo. Entretanto, esse desencobrimento era impossível e
não se rendia mesmo diante da tentativa de se “juntar metades”. Isso aponta para a questão de que
a verdade não é um costurado de metades o que falta no que se manifesta não vai ser encontrado
em outra parte. Cada manifestação possui seu ocultamento originário, sua não-verdade.
Os perfis não coincidem, não se completam ou complementam perfeitamente, pois cada um
é uma faceta da verdade que se manifesta de uma mesma fonte. A verdade é uma, mas se diz de
muitas maneiras. A contradição lógica aparente não é um defeito de “formação” da verdade, mas
expõe sua tensão original entre o que se manifesta e o que se vela, o que geralmente não se
compreende por grande parte das pessoas e áreas do conhecimento, estas, como disciplinas,
(episteme) se prenderam sempre à verdade lógia.. O que se procura é uma postulado sistemático,
fundamentado em observações empíricas e/ou premissas racionais, condensado em leis e
categorias gerais que permitam a ordenação, definição e/ou a classificação minuciosa do real. A
validade da verdade se conforma ao seu atributo.
Na segunda estrofe, sutilmente o verbo “atingir” se impõe como núcleo de força do sentido
que se constrói, no sentido volitivo e incoativo de chegar até um ponto, objeto, pessoa, alcançar
uma meta ou tocar um fundamento. Busca-se atingir a precisão e a exatidão de um enunciado que
descreva com fidelidade as coisas e se possa dizer correspondente ao real. Essa ação corresponde
ao sentido de veritas, em latim, e que tem como extensão do radical ver- as palavras averiguar e
verificar, no sentido de empenhar-se em cuidadoso exame, apurar, investigar, inquirir e indagar.
Isto difere da essência do questionar, pois a averiguação está em busca de uma resposta
operacionalizada pelo intelecto. Essa res-posta possui vários modos de colocar-se. Primeiramente
se impõe como um “veredicto”, que é o pronunciamento de um julgamento verdadeiro, um juízo
veraz, daí verossímil e verossimilhante, significando correspondendo ou adequando-se
inexoravelmente ao real, asseverarando a conformidade absoluta com um certo padrão, norma ou
dogma e ainda a correção de um olhar que se adéqua à coisa.
Toda essa discussão nos leva a perguntar por que a abordagem da verdade num poema,
sobretudo no século XX? Justamente porque a filosofia que, de certo modo se julga a protetora do
183
pensamento, na contemporaneidade se apresenta como analítica se dedica prioritariamente aos
estudos da linguagem e da lógica e situou a verdade como um fato ou acontecimento linguístico e
lógico, ou seja, um fato da língua. A filosofia analítica tem como principais destaques os estudos
de Ludwig Wittgenstein e do Círculo de Viena e sua pretensão, colocando de modo bem simples,
era a de produzir enunciados em conformidade e correspondência com a coisa, como herança da
filosofia kantiana. Por isso é que o poema chama a atenção para o fato de os meios perfis não
coincidirem. A ideia que subjaz na tentativa de encontrar a complementaridade entre os perfis
expõe dois princípios filosóficos relacionados à verdade, os juízos analíticos e sintéticos.
3.4.2 – Verdade e manipulação
O juízo analítico ocorre quando o predicado de um enunciado corresponde a explicitação
do conteúdo do sujeito do enunciado, um exemplo muito simples seria dizer: - O quadrilátero é
uma figura de quatro lados. Isso corresponderia a uma análise ou explicitação do sujeito sintático
quadrilátero; este contém em si a essência do predicado.
O juízo será sintético se houver uma relação em que o predicado forneça novas informações
sobre o sujeito, o que se expõe quando se estabelece a relação causal entre sujeito e predicado,
por exemplo, o petróleo é a causa de conflitos nacionais e internacionais. Conflitos não estão
analiticamente contidos no sujeito petróleo, como estaria o predicado se disséssemos o petróleo é
um óleo natural. O juízo sintético trabalha com o nexo causal entre sujeito e predicado.
Segundo esses princípios, linguisticamente entendida, a verdade seria explicitação da
caracterização (análise) ou causalidade (síntese) por um predicado de dado sujeito. No poema
essa adequação não ocorre, então a averiguação se lança a uma outra esfera, busca-se não mais a
manifestação da verdade, mas a sua estruturação, o encadeamento rigoroso das ideias, dos
conceitos ou significações, em outras palavras, sua coerência lógica interna ao intelecto ou
consciência. Por isso é que diz: “Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta./Chegaram ao lugar
luminoso/onde a verdade esplendia seus fogos.”.
Primeiramente eles arrebentam a porta, depois a derrubam. Porta é a guarda do limiar, ela
barra a passagem para o interior de um ambiente, o que abre e fecha, a possibilidade e a
impossibilidade de se fazer uma passagem, adentrar em lugar ou sair dele. Ela é a possibilidade
184
de toda a tensão que se manifesta entre dois ambientes, dentro e fora, o manifesto e o oculto. A
porta é o que faz eclodir o limite e faz vigorar o entre como o que se coloca inter-dimensões.
Arrebentar e derrubar a porta equivale a fazer o mesmo com o limite, com o entre e
consecutivamente com as dimensões da realidade. Arrebentar e derrubar a porta é julgar-se capaz
de apoderar-se e dominar todo o vigor de manifestação da verdade e controlar seu modo de
eclosão. É a tentativa de liberar e manifestar totalmente tudo o que se oculta e seu ambiente de
velamento, eliminando a não-verdade de toda a verdade.
O controle e manipulação da verdade é o centro de toda a ação de arrebentar e derrubar. A
questão do modo como a verdade se manifesta é tão importante quanto pensar a essência da
verdade. A filosofia analítica preconiza que a linguagem deve produzir enunciados em
conformidade, adequação ou correspondência com a própria realidade. Aí já se prevê nitidamente
a separação entre enunciado e realidade e a tentativa de juntá-los por meio da estruturação lógica
e dos critérios de verossimilhança. A verdade deve ser verossímil. Ela não tem apenas que ser
verdadeira, mas parecer tal e qual. A ligação entre proposição e realidade deve adensar nexo e
harmonia entre fatos, ideias e etc e seu respectivo significado:
Verdade: que quer isto dizer? É verdadeiro aquilo que tem validade, vale aquilo que
concorda com os fatos... A verdade é, portanto, conformidade com as coisas.
Certamente, não são apenas as verdades particulares que se devem conformar com as
coisas particulares, mas a própria essência da verdade. Quando a verdade é
conformidade, dirige-se para..., isto, sem duvida, deve em primeiro lugar, valer para a
determinação da verdade: ela deve conformar-se com a essência das coisas (coisalidade)
(HEIDEGGER: 1992, p. 42.).
A verdade anunciada discursivamente será tanto mais autêntica quanto estiver em
conformidade com o que de alguma maneira se entende ser a coisa, ou seja, com o seu
significado, para tanto, o que vale é a regra dos juízos analíticos e sintéticos. Desse modo é
recolocado o conceito tradicional de verdade: Veritas est adaequatio rei et intellectus. A verdade
é a adequação da coisa com o conhecimento ou do conhecimento com a coisa. Heidegger diz
sobre isto: “O verdadeiro, seja uma coisa verdadeira ou uma proposição verdadeira, é aquilo que
está de acordo, que concorda”. (HEIDEGGER: 1973b, p. 331). Essa é a questão buscada, a
concordância, que pode ser colocada de duas maneiras: “a concordância entre uma coisa e o que
dela previamente se presume” (Idem: p. 331), como preconiza o juízo sintético, e “a
conformidade entre ao que é significado pela enunciação e a coisa” (Idem: p. 331), em
185
consonância com o juízo analítico. Ou se busca a predicação causal ou a predicação atributiva da
coisa.
De modo bem simplificado, a conformidade entre verdade e coisa se dá por meio da
proposição predicativa atributiva ou causal, em outras palavras, por adequação não entre uma
coisa e outra, mas entre a coisa e sua enunciação. Os critérios de juízo estabelecidos passam pela
compreensão de verdade que, inevitavelmente, formam um paradigma. Isto é, a medida exata ou
padrão pelo qual a proposição será considerada autêntica, de acordo com a compreensão e os
critérios de verdade que a valide12
.
Qual não é a surpresa, ao se chegar ao “lugar luminoso/ onde a verdade esplendia seus
fogos” o que se vê lá, em sua origem, a verdade “era dividida em metades/ diferentes uma da
outra.”. Aqui se têm outras duas questões fundamentais. Primeiro, chega-se onde “mora” a
verdade, este não é indicado, apenas se entende ser a morada da verdade. Onde ela mora? Em
todo o lugar e em lugar nenhum. A verdade não fixa residência, mas medra em todos os lugares,
em todas as situações, falas e discursos. E em todas as manifestações da verdade ela é dividida
em metades. O que se procurava no arrebentar e derrubar a porta e chegar ao lugar luminoso? O
fundamento da verdade. A premissa filosófica expressa no célebre dito de Leibniz que “nada é
sem razão (fundamento)” (HEIDEGGER: 1973c, p. 297).
Seguindo o pensamento de Leibniz, a verdade seria descobrir o fundamento de modo que se
tornasse evidente a conexão proposicional entre sujeito e predicado. Os conceitos de verdade que
derivam dessa assertiva seriam: primeiro, a consequência ou resultado de uma metodologia e
segundo, a certeza como retitude e exatidão da proposição.
Quando se identifica o fundamento como verdade da enunciação, pensa-se em
complementariedade, o que elimina a tensão da verdade como o desvelamento daquilo que a
partir de si mesmo se mostra velado (metades diferentes) e busca-se a conexão entre a proposição
e a coisa, no poema, entre as metades:
O principium rationis subsiste porque sem sua subsistência haveria entes que deveriam
ser sem fundamento (sem razão). Isto quer dizer para Leibniz: haveria algo verdadeiro
que se oporia a uma redução a identidades, haveria verdades que deveriam infringir a
“natureza” da verdade. Já que isto é impossível e a verdade subsiste, por isso também o
principium rationis tem subsistência, porque se origina da essência da verdade. A
12
Abaixo discutiremos alguns dos critérios de formulação paradigmática da verdade: a incompreensão e
as compreensões ideológica, conceitual e convencional.
186
essência da verdade, porem, reside na connexio (symploké) de sujeito e predicado.
Leibniz concebe, por conseguinte, a verdade da enunciação (proposição). Determina o
nexus como “inesse” do P no S, o “inesse”, porem, como “idem esse”. Identidade como
essência da verdade proposicional não designa aqui certamente mesmidade vazia de algo
consigo mesmo, mas unidade, no sentido da harmonia (união) do que faz parte de uma
comum-unidade. Verdade significa, por conseguinte, acordo que somente é tal enquanto
con-cordância com aquilo que na identidade se manifesta como unido. As “verdades” –
enunciações verdadeiras – recebem sua natureza por referencia a algo em razão do qual
podem ser acordos. Em cada verdade a união que separa é o que é, sempre em razão de
..., isto é, como algo que se “fundamenta”. Na verdade reside, por conseguinte, uma
referência essencial a algo semelhante como “fundamento”. Isto leva o problema da
verdade necessariamente para a “proximidade” do problema do fundamento. Por isso,
quanto mais originariamente nos apoderarmos da essência da verdade tanto mais urgente
se tornará o problema do fundamento.” (HEIDEGGER:1973c, p. 298)
O fundamento da verdade é aquilo que a valida enquanto tal, diz respeito tanto a sua forma,
ou seja, estruturação lógica (coesão e coerência, principalmente entre sujeito e predicado) quanto
ao seu conteúdo (significado). A forma e o conteúdo da verdade deve ser algo racional de modo
que se verifique sua autenticidade.
3.4.3 – Verdade e o Belo
Como a expectativa de racionalizar a verdade e desentranhá-la objetivamente de modo que
se pudesse juntar uniformemente suas metades foi frustrada, passou-se a uma outra postura:
“Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.”. O que não foi possível estabelecer no plano
racional, desceu à dimensão estética (aisthésis). A discussão agora lança-se ao âmbito do Belo. O
verso “Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.” coloca em questão a identificação da
manifestação da verdade com o Belo. O juízo (discussão) agora se lança à percepção e à sensação
que a aparição da verdade causa e sua respectiva apreensão pelos sentidos. A “metade” que fosse
considerada mais bela seria identificada com a verdade e a perfeição. Mas outra questão tem
primazia sobre estas e se pode dizer que é a mola propulsora de infindas discussões: o que é o
Belo?
Não queremos aqui conceituar o Belo ou historiografar a trajetória dos conceitos surgidos
ao longo das eras, apenas pensar aquilo que se manifesta nas entrelinhas em tensão com as linhas
do poema, visto que este não é um trabalho de conceituações filosóficas, mas de diálogo poético.
Sem dúvida o verso coloca a questão do Belo quando anuncia a discussão com respeito à “metade
187
mais bela” como critério de “escolha” da verdade primaz. Ligada ao sentido de todo o poema, a
noção de Belo mais próxima da questão em voga é a que foi colocada na Antiguidade Clássica e
cujos princípios, de certo modo, vigoram até hoje, que são proporção, simetria e ordem, ligados à
teoria aristotélica de mimesis, ou imitação da natureza. Entretanto, essas colocações não fogem à
subjetividade instaurada pela razão, pois a noção do Belo, ao longo de tanta discussão, por fim,
radicou-se como uma decisão do sujeito que contempla. Isso é tão tangencial no poema que o
verso seguinte expressa o veredicto da discussão: “Nenhuma das duas era totalmente bela”. O que
é ser “totalmente bela”? O totalmente aqui é uma grande problematização e nos lança novamente
no início da discussão dos juízos racionais atributivo e causal. Qual seria o fundamento dessa
decisão? Quais os critérios utilizados para chegar a conclusão de que nenhuma metade era
“totalmente bela”? O que se define por “totalmente”? São questões que o poema não responde, e
não deveria mesmo, porque são questões.
Totalmente tanto pode se referir aos princípios de beleza estabelecidos para julgar como
àquilo que não tem falta de nada, que abrange uma totalidade, é inteiro, completo, como uma
espécie de reunião que formaria um todo dando a noção de totalidade. Para metade ser totalmente
bela ou bela totalmente teria que deixar de ser metade e ligar-se adequadamente à outra
preenchendo os critérios estabelecidos, formando o todo. Mas isso era impossível! A
complementaridade é uma idealidade, não a realidade da verdade. É impossível eliminar a
diferença, pois ela constitui a identidade das metades, é o seu traço constitutivo, o seu próprio. A
uniformização seria uma junção que anularia instantaneamente as diferenças e consecutivamente
a identidade das metades. A soma das metades não as conservaria como elas mesmas no todo; o
que nos revela que o todo não é simplesmente a soma das metades. Não há uma verdade absoluta,
total ou totalitária. A totalização seria o principal atributo e possibilidade inexorável de calcular,
medir e avaliar a verdade caso esta fosse uma totalidade. Mas não é, tanto que o verso seguinte
revela mais uma frustração metodológica: “E carecia optar”. A metodologia utilizada mais uma
vez fracassara, os juízos racional e estéticos agora davam lugar à opção: “E carecia optar”. A
opção está intimamente ligada à opinião. Cada um faz sua opção fundamentado na sua opinião. A
questão do fundamento é insistente e, mais uma vez tenta encontrar o seu lugar para decidir a
“sorte” da verdade.
188
3.4.4 – Verdade e ontologia
A opinião é, sobretudo, uma maneira de pensar, ver e julgar pessoal, a partir do ponto de
vista particular do sujeito. O fundamento lógico da razão e o sensorial da estética dão lugar ao
julgamento inteiramente peculiar do indivíduo. Do grego doxa, a opinião é a expressão das
convicções de um individuo por meio de suas operações mentais relacionando pensamentos e
sentimentos na consolidação de seu ponto de vista. Gostos, conceitos, compreensões e
incompreensões, desejos, interesses pessoais etc constituem o princípio estruturador da opinião.
Ao ser externada, esta geralmente se transforma em instrumento de persuasão, tendo como
finalidade impor-se sobre as demais. Quando tal acontece, e a opinião é aceita pela maioria,
forma-se a crença ou o senso comum. Caso a opinião esteja munida de algum conhecimento
científico, ela pode até mesmo se transformar numa linha especulativa, estudo dirigido, corrente
crítica ou teoria.
A grande questão do poema não é uma abordagem científica ou filosófica da verdade, até
porque alocar a questão da verdade nesses âmbitos seria de algum modo subordiná-la a eles. A
questão da verdade no poema é também uma questão ontopoética, pois manifesta poeticamente o
que é de propriedade do homem, onde ele habita. Para pensar a verdade poética é preciso trilhar
os caminhos da verdade fora da lógica, expoente da evidência, através da intuição, dedução ou
indução, sólidas metodologias lógico-racionais pelas quais se exprime o juízo, mediante a
conformidade entre a ideia e/ou proposição e coisas e/ou fatos.
Razão, estética e opinião foram metodologias usadas para tentar decidir a verdade da arte
durante todos os séculos, suas vozes acabavam por silenciar a voz da poiesis e impor a noção de
verdade como significado. Desse modo a palavra verdade ficou viciada ao longo das eras, por
isso é mais proveitoso pensar a verdade na poética em seu sentido mais originário, como aletheia,
ou seja, o desvelar que ama velar-se ou a manifestação que tende ao ocultamento. Assim se
conserva a diferença das metades e respectivamente suas identidades. A verdade é um
desvelamento do ser, daí é chamada por Heidegger de ôntica, isso quer dizer que ela não se
esgota no que desvela, não é um ente.
Desvelamento do ser é, porém, sempre verdade do ser do ente, seja este
efetivamente real ou não. E vice-versa, no desvelamento do ente já sempre reside
um desvelamento de seu ser. Verdade ôntica e verdade ontológica sempre se refe-
189
rem, de maneira diferente, ao ente em seu ser e ao ser do ente. Elas fazem
essencialmente parte uma da outra em razão de sua relação com a diferença de ser e
ente (diferença ontológica). A essência ôntico-ontológica da verdade em geral,
desta maneira necessariamente bifurcada, somente é possível junto com a irrupção
desta diferença. (HEIDEGGER: 1973b, p. 300)
A diferença é o rasgo tensional que re-vela duas dimensões da realidade: uma que se
manifesta e outra que se oculta, em outras palavras, o velamento e o desvelamento. A diferença
ontológica aponta para o fato de que o ser não é um ente, portanto não pode ser pensado do
mesmo modo como pensamos um ente. É por isso que o poema termina dizendo: “Cada um optou
conforme/ seu capricho, sua ilusão, sua miopia.”. Quando se pensa a verdade como um ente
procura-se nela a um fundamento estereotipado.
A verdade é uma manifestação do ser e, ao mesmo tempo, onde ele habita. Esse onde não é
simplesmente um espaço físico, sem deixar, entretanto, de também o sê-lo, mas o espaço que se
abre no habitar existencialmente mundo, que o homem faz durante sua vigência humana entre os
demais seres e coisas. A verdade pensada de modo ontopoético é o apelo de uma abertura para o
acontecer enquanto doação da realidade. A vida, assim entendida, é um movimento da physis que
se dá como logos: recolhimento e acolhimento do sentido catactobrotante13
.
A relação entre verdade e ontologia nos aponta para o modo do homem habitar a verdade,
pois ela não é propriamente humana, mas a possibilidade do agir humano em que ele habita e faz
seu ethos. Assim não há metodologia que dê conta dela, o único caminho (método) para a ela é
abrir-se para o seu manifestar e deixar com que ela nos envolva e fale conosco. É na ausculta que
o homem recebe a verdade e, então pode falar, a saber: correspondendo à fala auscultada. Caso
contrário, a fala será apenas o efeito de capricho, miopia e ilusão.
3. 5 - A compreensão da verdade
Os poetas dizem sempre o mesmo, mesmo que não digam as mesmas coisas. É assim que
num poema em prosa Drummond registra a poesia de um caminheiro cercado pela poiesis da
compreensão. Diz assim o texto:
13
Aqui pensamos neologicamente a palavra catactobrotante unindo dois elementos aparentemente antagônicos, um,
catacto–, que tem sentido de movimento para baixo, enraizado e brotante, que sugere movimento de rompimento da
semente e consequente eclosão ou surgimento, para expressar a ambiguidade essencial do que os gregos chamaram
physis, no sentido de desvelar autovelante.
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Operário no mar
Na rua passa um operário. Como vai firme! Não tem blusa. No conto, no drama, no
discurso político, a dor do operário está na blusa azul, de pano grosso, nas mãos grossas,
nos pés enormes, nos desconfortos enormes. Esse é um homem comum, apenas mais
escuro que os outros, e com uma significação estranha no corpo, que carrega desígnios e
segredos. Para onde vai ele, pisando assim tão firme? Não sei. A fábrica ficou lá atrás.
Adiante é só o campo, com algumas árvores, o grande anúncio de gasolina americana e
os fios, os fios, os fios. O operário não lhe sobra tempo de perceber que eles levam e
trazem mensagens, que contam da Rússia, do Araguaia, dos Estados Unidos. Não ouve,
na Câmara dos Deputados, o líder oposicionista vociferando. Caminha no campo e
apenas repara que ali corre água, que mais adiante faz calor. Para onde vai o operário?
Teria vergonha de chamá-lo meu irmão. Ele sabe que não é, nunca foi meu irmão, que
não nos entenderemos nunca. E me despreza... Ou talvez seja eu próprio que me
despreze a seus olhos. Tenho vergonha e vontade de encará-lo: uma fascinação quase me
obriga a pular a janela, a cair em frente dele, sustar-lhe a marcha, pelo menos implorar
lhe que suste a marcha. Agora está caminhando no mar. Eu pensava que isso fosse
privilégio de alguns santos e de navios. Mas não há nenhuma santidade no operário, e
não vejo rodas nem hélices no seu corpo, aparentemente banal. Sinto que o mar se
acovardou e deixou-o passar. Onde estão nossos exércitos que não impediram o milagre?
Mas agora vejo que o operário está cansado e que se molhou, não muito, mas se molhou,
e peixes escorrem de suas mãos. Vejo-o que se volta e me dirige um sorriso úmido. A
palidez e confusão do seu rosto são a própria tarde que se decompõe. Daqui a um minuto
será noite e estaremos irremediavelmente separados pelas circunstâncias atmosféricas,
eu em terra firme, ele no meio do mar. Único e precário agente de ligação entre nós, seu
sorriso cada vez mais frio atravessa as grandes massas líquidas, choca-se contra as
formações salinas, as fortalezas da costa, as medusas, atravessa tudo e vem beijar-me o
rosto, trazer-me uma esperança de compreensão. Sim, quem sabe se um dia o
compreenderei?
(ANDRADE: 2007, p. 71-2)
A compreensão é uma das questões mais profundas, tange a tragetória humana e se expõe
poeticamente nesse e noutros textos como um estar lançado rumo à manifestação da verdade.
Tanto o narrado como a forma narrada adquirem um sentido norteador da leitura. O texto inicia
posicionando o operário de um lado e o observador de outro, poder-se-ia presumir uma divisão
hierárquica ou autoritária firmada nas denominações, na qual uma é anônima, a do observador e a
outra é designada operário, sugerindo a posição privilegiada do primeiro, mas não se trata disso.
Independende da intencionalidade do narrado, o que ele nos assinala como questão?
O operário é um caminheiro que segue “firme” pela rua. Vale também salientar que a
palavra operário tem sua oriem no latim como opus, que no português dá obra e èris indicando o
sentido de exercer um ofício, daí trabalhar. Operário é o que se ocupa da obra, fazendo disso um
ofício, não apenas como uma ocupação funcional, mas como uma espécie de vocação
191
(vocatìo,ónis), aquilo que pelo qual é convocado e a cujo apelo se rende e responde. O narrador
ironicamente chama a atenção para o fato de que ele “Não tem blusa.” e prossegue justificando o
fato notado dizendo que “No conto, no drama, no discurso político, a dor do operário está na
blusa azul, de pano grosso, nas mãos grossas, nos pés enormes, nos desconfortos enormes.”. O
operário é sempre reconhecido e identificado pelos seus atributos, mas “Esse é um homem
comum”.
Comum é o que pertence à boa parte das pessoas, dando uma noção de conjunto, o que
concilia elementos, pessoas ou coisas mediante acordo, compromisso ou características. Aponta
para o que é, de certo modo, corriqueiro ou habitual, estando na ordem usual das coisas. O
operário se identifica com todos os demais homens e não apenas a um grupo específico.
Entretanto ele tem “uma significação estranha no corpo, que carrega desígnios e segredos.”. O
corpo do operário é a morada do mistério, ele é uma figura emblemática envolta no enigma da
realidade que atrai a atenção e convoca à compreensão. O narrador prossegue questionando “Para
onde vai ele, pisando assim tão firme?”.
Os passos firmes do operário provoca o questionamento, principalmente porque o narrador
afirma que ele não tem tempo de perceber as mensagens que são trocadas, não ouve o discurso do
líder oposicionista, que ele sabe que não é irmão do observador e que nunca se entenderão, não
obstante caminha resoluto, rumo ao mar. Esse caminhar marca uma oposição fundamental entre o
operário caminheiro e o observador.
3.5.1 - Compreensão: tensão entre sólito e insólito
Operário e observador se tensionam entre mar e terra. Um está sobre as águas insólitas, o
outro sobre a terra firme, sólida, ambos no mesmo nível. O que essa oposição entre insólito e
sólito nos acena?
O sólito acena para a realidade ordinária da vida, para o costumeiro, habitual, usual, para os
lugares comuns, para o curso definido da existência em que os conceitos já formaram a opinião e
a cultura, firmando e fundamentando uma identidade. Tal identidade consolida o senso da
comunidade definindo seus critérios de valor e juízo, modelando seus sentimentos, influenciando
definitivamente seu entendimento e percepção da vida e orienta o sentido de sua existência no
192
mundo. Torna-se importante salientar que: “A palavra “mundo” perde aqui seu sentido
metafísico.” (HEIDEGGER: 2004, p. 18).
Das várias concepções de mundo, o que aqui se refere “Não denomina mais a representação
secularizada do universo da natureza e da história, nem a representação teológica da criação
(mundus) e nem a mera totalidade do existente (kósmos).” (HEIDEGGER: 2004, p. 18), mas o
espaço aberto da compreensão, seja ela qual for, manifestando sentidos ou significados. A terra
firme ou o sólito compacta ou consolida uma visão de mundo estruturada em forma de conceito,
por meio do qual se vai intervir no mundo e reagir a todo estímulo gerando a noção do que é
habitual, frequente e comum, em outras palavras, ordinário, isto é, de ordem.
O ordinário tende para o geral como adequação ao costume, reproduzindo os preceitos e
normas estabelecidos, daí o atributo de normal ou normativo, estabelecendo a moral como fio
condutor ajuizante do que é correto e verdadeiro. O observador se posiciona sobre esse
fundamento representacional da cultura sistematizada, este é a verdade como conceito.
O insólito se distancia de tudo aquilo que está em terra firme e surge como algo estranho,
indefinido, que foge ao comum e à normalidade. Ele é curso indefinido que renega toda
identificação identitária, é um abandonar-se ao ser, ao que se é, livre de atributos. O insólito é a
instabilidade de todos os critérios de valor e juízo, é o sentimento novo, informe, a dinâmica da
vida.
O insólito acontece quando o sólito se retrai. Mas o que isso quer dizer? A retração do
sólito é a renúncia de algo que se retira como ordinário para dar lugar à manifestação do
extraordinário. Como retração, o insólito não abandona o sólito; apesar de continuamente
solitário, informe e inabitual, por ser o desconhecido mais próximo ao que somos, ele está
presente em tudo como elemento perturbador e provocador de toda e qualquer mudança. A
possibilidade e a disponibilidade como necessidade e dependência do novo, inerente a tudo que
se diz pronto, está na instabilidade própria das coisas. Então tudo é, de algum modo, instável pelo
fato do novo não ser uma escolha ou decisão nossa, mas a própria condição da existência
humana. Existimos porque nos tornamos novos a cada instante, essa é a tensão originária do ser
humano entre o que muda e o que permanece.
A estabilidade nunca é absoluta. Nada está isento de mudança. Essa mudança é uma doação
do insólito. Nesse movimento o homem habita, a saber, na espera do inesperado. O insólito é o
real como destino, ou antes, como um destinar-se. Por isso não há pronto, acabado, o que se é
193
previamente fixado em face dos acontecimentos, mas o que há é o sendo. O sendo se move e
vigora na tensão entre sólito e insólito.
O sendo é a questão de todas as questões. A poética não manifesta o insólito como uma
nova teoria ou instrumento discursivo. O insólito não é uma ideologia entre outras. Insólito não é
um saber que se tem, mas que se é.
O que está em jogo é onde o mar começa e a terra termina e vice-versa, isto é, o limite entre
sólito e insólito. O que vigora nesse entre é o espaço do que poderíamos chamar ensino-
aprendizagem. Mas o que é ensino e aprendizagem? Como se ensina e como se aprende? As
respostas a essas perguntas variam de acordo com o viés ideológico adotado. Durante séculos
essa relação, ensino-aprendizagem, se desenvolveu nos moldes metafísicos de ensino que
pressupunha um sujeito e um objeto, na contemporaneidade a discussão se lançou sobre as bases
da epistemologia empirista, entretando o fundamento é o mesmo. Todos os pensadores e
filósofos, de um modo ou de outro, tangenciam essa questão.
Resumidamente a questão se define como a conceituação necessária da relação que se
estabelece entre quem ensina, o que se ensina, como se ensina, quem aprende e como se aprende.
Daí todas as teorias sobre metodologias de ensino e aprendizagem e da Educação. Mas será que é
disso que trata o texto quando nos fala da “esperança de compreensão”. O que se espera
compreender? A própria compreensão como questão! O poema Operário no mar, fugindo à
forma tradicional, se apresenta como uma parábola poética da compreensão.
3.5.2 - Compreensão: discurso e parábola
Parábola não é um discurso próprio ou a priori para se estabelecer um ensino
sistematizado, no máximo ela serve como um recurso alegórico quando se tem o objetivo de
promover uma analogia ou exemplificar uma situação ou argumento. Retoricamente não passa de
um instrumento discursivo. Pode-se conceituar como uma narrativa inverossímil que serve de
analogia a um fato verossímil.
No discurso, porém, o caminhar do operário é uma parábola da aprendizagem. Do grego
para-balléin, nos remete à ação de lançar por entre. A parábola do operário nos lança entre o
limite do sólito e do insólito. Como aprendizagem ela é a abertura dialogal entre o que se vela
194
insólitamente e se desvela solidamente no sendo humano e vice-versa. A abertura dialogal é a
tensão que rege o que se confronta, a saber, o ser e o não-ser, ou, em outras palavras, o-que-se-é
com o que ainda-não-se-é no sendo.
Por que considerar o texto uma parábola? Drummond cria uma parábola a partir da
experienciação cotidiana. Na verdade, nesse caso a palavra criar não é a mais apropriada, pois a
parábola não é uma alegoria da vida como se diz, ela é intrínseca à própria vida. Tecnicamente
falando, ela é vazia de informação, mas plena de sabedoria. A parábola como discurso parte do
que já se tem rumo ao que ainda não se tem, isso nomeia a pro-cura, ou seja, colocar-se em busca
da cura. Na parábola, o aprender e o ensinar são dis-cursos que se tensionam com o caminho.
O discurso não é simplesmente o produto da manipulação hábil da linguagem como uma
formulação conceitual num encadeamento lógico e ordenado fazendo a coerência entre tema e
linguagem. Discurso pode ser entendido como um exposto metódico, resultante de uma operação
mental, nesse sentido, é um produto cultural de uso da linguagem verbal oral ou escrita, portador
de conteúdo semiótico interior a práticas sociais contextualizadas. Desse modo, o discurso exerce
um papel hegemônico determinando a produção, reprodução e transformação das representações
simbólicas e das relações identitárias que delineiam culturalmente uma sociedade; assim, ao
discurso imbrica-se à afirmação da subjetividade. Entretanto, no sentido originário, dis-curso é
formado por dis-, dois, e currere, curso, também nomeando o fluir que funda suas margens sem,
entretanto, se limitar a elas, o dis-curso é uma travessia que margeia o curso, mas não o limita. O
dis- como margens do curso, é fundado enquanto doação do fluir e manifestar do cursar na tensão
entre o limite das margens e o ilimitado do curso. Assim como o fluir funda as margens, o
transcorrer do curso funda os discursos. As margens como discursos são recuos para o curso ser.
O discurso é obra do curso e não o contrário, é a apropriação do que se aprende e o modo
de articular a compreensibilidade, não se lança subjetivamente ao que discorre como se este fosse
um objeto. Discurso e o que discorre são o mesmo. No discurso a ausculta vigora como
compreensão. Ele nos surpreende na ocorrência de seu aparecer no estranho retraimento do curso
numa ausência doadora. A ausência doadora do curso põe em cena os discursos. Curso diz o
mesmo que caminho, verdadade e vida. É na parábola da compreensão da vida que nos
encontramos com os dis-cursos. Eles são vias de acesso como um modo do curso se apropriar de
nós. Somos propriedades do curso e nele nos apropriamos do que nos é próprio, a saber, somos
cursos no curso da vida. Do modo originário como pensaram os gregos: bios da zoé.
195
O curso da vida é o que chamamos de realidade, nele estamos imersos. O real não é
simplesmente o que acontece como manifestação, mas o que acontece como ocultação. A tensão
entre o que se manifesta e o que se oculta é a dinâmica própria da realidade. No dis-curso o curso
se pro-põe como questão. A questão é um empenho na busca do que não temos, mas nos envolve
de tal modo que o pertencemos. No e pelo empenho se ensina muitas coisas por parábolas, mas é
impossível falar em ensinar sem o aprender, por isso é que a parábola é uma fala do entre como
um dizer sábio. Desse modo se coloca a questão do diálogo, nessa esteira ocorrem dois
movimentos que surgem do diálogo: o autodiálogo e o heterodiálogo. Os nomes já falam por si
sós, entretanto, é preciso ampliar tendo em vista o que ocorre entre a poética e o leitor. Ao
homem, só é possivel falar-com do modo originário e inalgural se antes fizer sua auto escuta; o
diá é o logos como fala e ausculta ao mesmo tempo. Essa interioridade do diálogo é mais que
uma incursão na subjetividade, mas a ausculta do que se é, do ser. Somente após uma intensa
auto-ausculta e penetrar a essência do sagrado sua fala pode se alinhar ao extraordiário.
3.5.3 - Compreensão: ausculta do silêncio
O verbo inicial da frase que diz que o operário “Não ouve...” tem como correspondente a
palavra grega akouvete, que, apesar de geralmente ser traduzida por ouvi, se refere com mais
propriedade a auscultar, no sentido de dar ouvidos ou estar atento a um ensino escutando-o
“internamente”, isto é, no seu interior. Fala de fazer o caminho da interioridade a partir do que se
ouve como uma profunda escuta. E, em seguida não fala de ensinar, mas de saber e entender:
“Ele sabe que não é, nunca foi meu irmão, que não nos entenderemos nunca.”. O processo de
saber e entender é comparado a um engravidar no qual algo está preparado internamente para
receber um estímulo genesíaco, em outras palavras, é um estar aberto internamente para a
ausculta. Essa ausculta é um diálogo no qual a realidade engendra a si própria. Compreender é
engravidar da verdade originária.
Existe um grave perigo em não compreender a parábola, como aquilo que se lança diante de
nós todos os dias. Quando se compreende se engravida da semente, da sabedoria. O que está em
jogo é a compreensão da realidade, por isso, toda parábola é uma parabola da compreensão.
Manuel Antonio de Castro, no dicionário de poética, assinala que:
196
A compreensão do que é compreensão passa pela intuição e pela inteligência, porque ela para acontecer
exige um mergulho no que se prende, capta, a partir do que se dá para poder ser prendido (com-preendido) e
captado, conceituado. O com-preender só acontece porque estamos nos movendo no intus-ir (intuir) e no
intus-legere, no in-teligir. Esse intus é o dentro que se doa no entre. Pois o intus se forma do "in", de onde se
forma o entre. Compreender é, pois, o prender que acontece na dinâmica do entre, ou seja, daquilo que
denominamos intuição (noésis, em grego). Mas esta está ligada à inteligência, porque ela diz o que no e a
partir do entre se dá como sentido poético no lógos. Podemos fazer esta ligação a partir do fragmento III de
Parmênides: "O mesmo é pensar e ser" (PARMÊNIDES. Os pensadores originários. Trad. Sérgio
Wrublewski. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 45.). É nesse horizonte que se funda a inter-subjetividade,
exercício e horizonte da compreensão. A compreensão é o exercício dialético intuitivo, inter-subjetivo e
inteligente. Mas na inter-subjetividade enquanto diálogo, quem fala nunca é o sujeito, mas o lógos. O lógos
fala, não o homem. Ao homem convém escutar e corresponder. (http://www.dicpoetica.letras.ufrj.br/
acessado em 16 de junho de 2010. verbete compreensão. Referência: (1) PARMÊNIDES. Os pensadores
originários. Trad. Sérgio Wrublewski. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 45.).
Pensar a poética como parábola da vida serve perfeitamente à intenção de provocar a
compreensão a partir da intuição e por meio dela atingir a inteligência, isto é, a ação de manter
aberto o espaço entre dois, que é o que nos diz literalmetne o inter- , no interior de dois, entre, e,
do latim legère, que assinala, dentre outros, o sentido de recolher, ajuntar, reunir, dobrar,
percorrer e tocar de leve. Inteligente é o que se coloca no espaço aberto para ajuntar, reunir ou
recolher o sentido percorrendo as vias do que vige na dobradura do entre, tocando-o, ainda que
levemente. Mas o que é que vige na dobradura do entre? O logos que “atravessa as grandes
massas líquidas, choca-se contra as formações salinas, as fortalezas da costa, as medusas,
atravessa tudo e vem beijar-me o rosto, trazer-me uma esperança de compreensão”.
A compreensao é um abrir-se. Compreender se expressa tautologicamente em abrir-se para
a abertura do aberto ou do que se abre. E o que está em jogo na compreensão? O sentido, isto é, a
verdade. É o que nos assinala o pensador Martin Heidegger: na sua obra Ser e tempo: "Tudo que
se abre para a compreensão é sustentado pelo sentido. O sentido é aquilo que pode ser articulado
na abertura da compreensão, sendo esta abertura hermenêutica" (HEIDEGGER: 2002a, p. 208.).
A questão de todo e qualquer compreender não é prender o real em conceitos, mas
questionar o ser tendo-o como horizonte próprio de todo e qualquer questionar como eclosão da
verdade. A compreensão não é uma explicação, nem esclarecimento tampouco entendimento
como uma categoria do intelecto subjetivo dotado de capacidade de objetivação para conhecer. A
compreensão se dá como vigência do pensar e como abertura de mundo: “... a compreensão
sempre diz respeito a toda a abertura da pre-sença como ser-no-mundo.” (HEIDEGGER: 2002a,
p. 202).
197
Mundo não é o simplesmente dado, mas a vigência do real como manifestação e presença
de sentido. Heidegger nomeia significância um modo de ser do mundo: “Significância é a
perspectiva em função da qual o mundo se abre como tal.” (HEIDEGGER: 2002a, p. 198).
3.5.4 - Compreensão e significância
Significância não é o mesmo que significado, não trata de uma relação arbitrária de
significação entre o homem e as coisas, mas o modo como o mundo se presentifica e vem ao
encontro do homem. Ser-no-mundo é o ser lançado no aberto do mundo, imerso em sua ek-
sistência. De certo modo, todo ser é ser-no-mundo à medida em que habita o mundo e não pode
abandoná-lo, apesar de poder ignorá-lo. Ser-no-mundo é “abrir um caminho para se apreender o
ser originário da própria pre-sença.” (HEIDEGGER: 1993, p. 185). É disso essencialmente que
trata a poética, desse estar lançado, ek-sistindo, como pre-sença do ser no mundo em busca da
compreensão do serntido/verdade, “a pre-sença é a sua abertura” (HEIDEGGER: 1993, p. 187);
ser-no-mundo é ser-tão ou ser-tao, ser do caminho, no meio do caminho e como caminho,
condição da qual o homem não pode se esquivar ainda que não compreenda:
E glose: manter firme uma opinião, na vontade do homem, em mundo transviável tão
grande, é dificultoso. Vai viagens imensas. O senhor faça o que queira ou o que não
queira – o senhor toda-a-vida não pode tirar os pés: que há-de estar sempre em cima do
sertão. O senhor não creia na quietação do ar. Porque o sertão se sabe só por alto. Mas,
ou ele ajuda, com enorme poder, ou é traiçoeiro muito desastroso (ROSA: 2001, p. 260).
Agora está caminhando no mar. Eu pensava que isso fosse privilégio de alguns santos e
de navios. Mas não há nenhuma santidade no operário, e não vejo rodas nem hélices no
seu corpo, aparentemente banal. Sinto que o mar se acovardou e deixou-o passar. Onde
estão nossos exércitos que não impediram o milagre? Mas agora vejo que o operário está
cansado e que se molhou, não muito, mas se molhou, e peixes escorrem de suas mãos
(ANDRADE: 2007. p. 71-2).
É vão manter firme uma opinião, ou seja, uma compreensão ideológica ou conceitual, pois
o mundo é transviável. Riobaldo não fala de um mundo geográfico simplesmente, mas do mundo
como abertura de sentidos, como uma teia em que estes se entrelaçam como caminhos que se
entrecruzam entre vazios e figurações: transviável. Do entremeio não se pode fugir, para onde
quer que se dirija o homem sempre vai topar no caminho, “há-de estar sempre em cima do
198
sertão” ou “caminhando no mar”. O mar e o sertão são correlatos. O sertão-mar não pode ser
cavalgado/navegado, o homem não pode dominá-lo, apenas entregar-se ao seu próprio, pois este
é o próprio do homem como lugar propício de abertura. A compreensão não é o domínio de algo,
muito menos do sentido, ela subsiste existencialmente como caminhar, sendo um modo de ser da
existência, é isto, o que proporciona a abertura originária do ser-no-mundo, que é estar lançado à
realidade cotidiana, a sua historicidade e às relações com os demais sendo.
Entretanto, esse estar lançado não garante a ek-sistência se não houver compreensão e, por
conseguinte, sentido. O circular da compreensão aqui não é um defeito, mas o deixar-em-aberto e
manter que possibilita que a questão seja sempre recolocada e refaça o caminho do pensamento
pelo qual veio à presença. O círculo da compreensão instaura a questão da interpretação como um
“elaborar as possibilidades projetadas na compreensão” (HEIDEGGER: 1993, p. 204); desse
modo, interpretar é morar ou habitar a questão, é por ela ser tomado e nela demorar. Ser é
interpretar-se, ou seja, montar guarda à espera da manifestação do sentido. Esse modo de ser diz a
compreensão.
A compreensão do sentido é sempre a compreensão do ser como ser-no-mundo, daí a
ligação intrínseca entre compreensão, ser e mundo: “Na compreensão de mundo, o ser-em
também é sempre compreendido. Compreensão da existência como tal é sempre compreensão de
mundo.” (HEIDEGGER: 1993, p. 202). Por isso compreensão é um modo de ser enquanto poder
ser. Todo o pensar é compreensão na medida em que se abre para o aberto do que se manifestou.
O que se manifesta? A verdade. Seria incoerente se o pensamento como abrir-se conceba a si
próprio se fechando conceitualmente.
O que há de tão importante nessa parábola que se torna crucial para a compreensão? O
sentido da vida como reunião de tudo o que se manifesta e o que se oculta. Reunir no grego se diz
logos. Na verdade logos é intraduzível, apenas se pode captar o ele que diz. O logos não
representa o ente, mas é o “deixar e fazer ver o ente a partir dele mesmo e por si mesmo”
(HEIDEGGER: 2002a, p. 208.). A poesia é sempre uma parábola do logos ou da compreensão do
logos; o “do” aqui não presume uma diferenciação e superposição da compreensão ao logos, pelo
contrário, apenas revela o logos como compreensão e vice-versa. O logos é o caminho de toda e
qualquer compreensão, é dimensão em que todo ser humano está inserido e da qual não pode
escapar, ainda que não compreenda. A compreensão é fugaz e sub-reptícia, quer dizer, sua
dimensão é insondável. Não se pode identificar uma compreensão, pois ela é sempre a eclosão de
199
uma verdade que não se vê duas vezes e também não se permite compartilhar em sua essência. O
que se pode reter ou compartilhar é apenas o que se consegue reunir do que se manifestou como
fala, mas escapa sempre o vigor dessa manifestação que vige no que se retrai e não se pode
apreender, a saber, o silêncio. Por isso toda compreensão é também não-compreensão, como a luz
projetada num corpo que enquanto manifesta o que ilumina na retração da sombra, acolhe o
velamento no que não é possível clarear. É por isso que no texto a “esperança de compreensão”
se transforma na questão que vem à tona no trecho: “quem sabe se um dia compreenderei?” Aqui
vigora explicitamente a questão da compreensão e do que nela vige como não-compreensão.
3.6 - Verdade da compreensão
Em nosso cotidiano é comum a afirmação, a negação ou a dúvida da verdade de algo, nos
movemos pela noção do verdadeiro em oposição ao falso, assim fazemos da verdade, mesmo sem
querer ou perceber, uma questão nuclear em nosso estar-no-mundo. Em todas as épocas há
sempre vozes que se anunciam como portadoras da verdade ou como dela guardiãs. Na
contemporaneidade, a que se arroga ter esse domínio é a ciência. Cada um de seus ramos formula
suas “verdades”, assim como, correntemente, outros grupos e indivíduos também se fundam nas
suas convições, e estas são também suas “verdades” ou seus fundamentos. Cada um destes se
afirma como sujeito e considera tudo com o que lida um objeto, ainda que não o faça de modo
pejorativo ou depreciativo. É comum tratar-se entre uma equipe de professores e alunos
pesquisadores do “objeto do conhecimento” e traçar metodologias para conhecê-lo e apropriar-se
de sua essência e modo de ser.
Por outra lado, nós mesmos, quando nascemos já herdamos um corolário de crenças e
valores que muitas vezes reproduzimos como verdades. Compartilhamos de uma compreensão da
verdade e da realidade por vezes sem questionarmos, cujas origens são desconhecidas.
Quando se pergunta se algo é verdadeiro, já se partiu de uma compreensão de verdade
adquirida ou adotada. A diferença entre ambas é que a primeira geralmente é-nos imposta de
forma clara ou obscura, a segunda torna-se nossa eleita, por ter-nos conquistado de algum modo.
O fato é que possuimos e exercemos um juízo sobre a realidade considerando os fatos, pessoas,
discursos, pensamentos etc verdadeiros ou não, de modo que nosso discurso é altamente
200
condicionado por esse juízo e tende a reforçá-lo argumentativamente. A verdade como tal se
conhece hoje e foi estabelecida desde o Helenismo, a qual se presume delinear o acontecer
histórico da humanidade e é, como já se disse, sinônimo de conformidade e adequação.
Entretanto, nem sempre foi assim, os primeiros pensadores gregos a pensavam como a-letheia,
ou seja, manifestação do que tende originária e essencialmente a ocultar-se. Seu olhar se dirigia
sobretudo para o modo como os entes surgiam do encobrimento (o nada), duravam na presença e
depois retornavam para encobrimento (o nada). Todo esse mover existencial se mostrava no
recolhimento do aparecer ou manifestar, ou seja, no logos, sobre isso diz Heidegger: “Dizer é
legein. (...) O lógos leva o fenômeno, isto é, aquilo que se põe à disposição, a aparecer por si
mesmo, a brilhar à luz de seu mostrar-se. Dizer é deixar o real disponível num conjunto que,
recolhido, acolhe.” (HEIDEGGER: 2002a, p.188.). Logos é o recolhimento do que a-letheia
manifesta e o respectivo deixar viger como um dispôr ou pôr à disposição; mas não recolhe tudo,
apenas o que se presentifica, por isso o logos também é ambíguo, pois vigora na tensão entre os
limites do manifesto e do não-manifesto.
A a-letheia é manifestação de quê? Do que os pensadores gregos originários chamaram de
physis para nomear a condição de possibilidade da manifestação de tudo o que é ou vem a ser.
Heidegger afirma: “Physis significa o vigor reinante, que brota, e o perdurar, regido e
impregnado por ele. Nesse vigor, que no desabrochar se conserva, se acham incluídos tanto o
‘vir-a-ser’ como o ‘ser’, entendido este último no sentido restrito de permanência
estática.”(HEIDEGGER: 1969c, p.45). Para eles, a physis era a arché, isto é, o princípio
dominante que presidia a manifestação, permanência e ocultação das coisas. A-letheia, logos e
physis eram indissociáveis no pensamento grego originário, mutuamente se implicavam na
manifestação do real.
Com o domínio da metodologia sofística no processo de apreensão e transmissão do
conhecimento, a compreensão dependia única e exclusivamente do que se manifestava, para eles
era impossível compreender o que não se manifesta, ou seja, o não-ser. Não foi difícil, então,
fragmentar o logos em ser, pensar e dizer e reuni-lo logicamente na ideia de que o ser verdadeiro
é o que se pode pensar e dizer sobre ele. Desse modo, também não houve dificuldade alguma em
fazer com que a oratória se impusesse como uma poderosa ferramenta de domínio, operando
através da persuasão.
201
Falando de modo simplificado, podemos citar, na esteira, o platonismo, que pensou a
verdade como união, ou mimese, entre o sensível e o inteligível (ideia), do qual aquele era uma
manifestação efêmera deste que se estabelecia como eterno e perfeito. E o aristotelismo que
defendeu a classificação da essência como juízos e conceitos constituídos pelo intelecto humano,
capaz de captar as imagens e transformá-las em ideias, estabelecendo a verdade. Tais concepções
forneceram condições para formular as bases do que posteriormente se estabeleceria a
compreensão como a representação no sentido de concordância entre a ideia e a coisa e, na
Modernidade, se estabelecesse o caráter de mensurabilidade desse processo. A-letheia passa a ser
entendida como verdade, significando verossimilhança. Compreensão passa a ser entendida como
uma categoria ou produto do intelecto, formando um sistema ou ideário cuja origem se dá por
meio de determinada metodologia que permite a apreensão de significados de modo lógico e
coerente. No entanto,
Enquanto o mistério se subtrai retraindo-se no esquecimento e para o esquecimento, ele
leva o homem histórico a permanecer na vida corrente e a se distrair com suas criações.
Assim abandonada, a humanidade completa o seu ‘mundo’ a partir de suas necessidades
e de suas intenções mais recentes e o enche de seus intuitos e cálculos. Deles o homem
retira, então, suas medidas, esquecido do ente na totalidade. Nestes intuitos e cálculos o
homem se fixa, munindo-se constantemente com novas medidas, sem meditar o
fundamento próprio desta tomada de medidas e a essência do que dá estas medidas
(HEIDEGGER: 1973b, p.207).
A essência da verdade fica encoberta pela compreensão usual de verdade. A compreensão é
mais importante que a verdade, pois é ela que certifica tudo o que é verdadeiro ou não. Voltando
ao texto Operário no mar, os desígnios e segredos (mistério) do caminhar que se colocam como
questão-mor é a tensão entre compreensão e não-compreensão. Para pensarmos essa questão é
preciso se debruçar sobre os próprios modos dela se manifestar, isto é, como: incompreensão,
compreesão ideológica, conceitual, convencional e dialogal.
3.6.1 - A incompreensão
O operário não se encotra em nenhuma classificação, sua imagem não pode ser assimilada
nem o identifica. Entre o operário e o observador a tensão entre conpreensão e não-compreensão
202
instala o modo de ser da incompreensão, que é como uma semente que se perde antes de ser
lançada. Não se trata da não-compreensão, esta seria a possibilidade de toda e qualquer
compreensão, tal como a condição para o saber é o não-saber. O prefixo in– aqui não fala de
movimento para dentro, antes nos assinala, segundo seu uso etimológico, uma negação previa,
diferente do prefixo des-, que corresponde a uma negação em curso de uma processualização de
sentido já iniciada como, por exemplo, a diferença entre as palavras impedir e despedir, a
primeira trata de não deixar com que algo aconteça, a segunda destituir algo que já está
acontecendo. Caso tivessemos em português a palavra *descompreender, tratar-se-ia de perder-se
uma compreensão, deixar de compreender algo que já havia sido compreendido, o que a
linguística denomina entropia discursiva, a perda de conteúdo semântico no trânsito da
mensagem entre o emissor e o receptor. Mas a incompreensão é uma negação previa da
compreensão e se constitui essencialmete como um resistir em que não se dá a ausculta ou dela se
defende, faz frente e renega.
A não-compreensão é a provocação da compreensão, que, se pode entender como um
empenho na busca pelo que ainda não se tem, movida pelo que já se tem, para vir a ter o que se
ausenta. A verdade como compreensão esbarra na aporia da incompreensão. Aporia vem do
grego áporos e quer dizer literalmente o não ter passagem possível, na rubrica filosófica trata da
impossibilidade de obtenção de uma resposta ou conclusão objetiva para determinada indagação.
No ceticismo pirrônico a aporia foi cultivada como demonstração da ausência de verdade. Em
Aristóteles, a aporia é um problema lógico, concebido como contradição ou paradoxo,
ocasionado pela existência de raciocínios igualmente coerentes e plausíveis que, entretanto,
alcançam conclusões opostas. Por derivação de sentido, aporia trata de toda e qualquer situação
insolúvel ou, no dito popular, sem saída. Na Música, por exemplo, é uma frase musical ou
passagem que não poder ser executada pelo músico.
Aporia pode ser não-compreensão quando coloca o homem diante do que lhe impressiona,
a isto os gregos chamaram de thaumátzein, que quer dizer alumbramento ou espanto com a
eclosão do extraordinário que se oculta no ordinário. Aporia também pode ser incompreensão
quando se coloca como um impedimento à aprendizagem, ignorando-a por completo. O problema
é que nem sempre a ação de ignorar é percebida por quem ignora.
A questão da compreensão é a questão da aprendizagem: “É a questão que sempre, sabendo
ou sem saber, se questiona em toda questão” (LEÃO: 1977, p. 45). A compreensão se lança ao
203
cerne do questionar em que e como nós mesmos estamos em questão, em todo o tempo na
possibilidade de nos questionarmos e nos compreendermos. E “Neste como procuramos o
caminho, em que caminham todos nos esforços de formar e informar. Um caminho assim é o
caminho de aprender e ensinar.”. (LEÃO: 1977, p. 45, grifo nosso). A compreensão passa pelo
aprender e ensinar. Compreender é apreender, é tomar posse e apropriar-se. Mas de quê?
Primeiramente, compreender pode ser o apreender como a assimilação de uma percepção
sensorial do mundo, que se estrutura teórica, cultural e institucionalmente formando um sistema
de idéias ou conjunto de convicções que legitima dado modo de saber e poder, refletindo,
racionalizando e defendendo seus próprios interesses e compromissos institucionais. Também
chamado de ideologia.
Em segundo lugar, compreender pode ser o tomar posse como capacidade linguística de
representar algo, abstrato ou concreto, identificando-o, descrevendo-o e classificando-o de modo
generalizável e, de certo modo, estável; a fim de que se o processe categoricamente
possibilitando, assim, uma orientação intelectual e linguística que permita o acúmulo sistemático
dos conhecimentos e juízos de valor nos diversos ramos do saber. Trata-se da conceituação.
E em terceiro lugar, compreender pode ser o apropriar-se como ter, segundo um discurso
convencional, isto é, a práxis social adotada que se consolida como identidade social e se
estabelece por meios de padrões e usos adotados. Apropria-se dos usos e costumes padrões da
sociedade, formando, desse modo “seu próprio mundo” ou sua identidade, influenciando e sendo
influenciado mutuamente pelos âmbitos cultural, político e econômico.
E em quarto lugar, compreender é apreender de modo dialogal; tomar posse e apropriar-se
do que nos é próprio. E o que nos é próprio? O que nós próprios somos! Mas esse pensamento, do
ponto de vista científico, soa hermético e até mesmo vazio, por possuir certa ambiguidade e falta
de objetividade referencial, ou seja, de um elemento do mundo extralinguístico, ao qual se possa
remeter simbolicamente o signo linguístico, e se expor num determinado contexto filosófico,
historiográfico ou sociocultural. Em outras palavras, aferir um atributo ao ser: ser o quê?
A incompreensão não transita por nenhum desses vieses. Ela inviabiliza todos, não
permitindo qualquer interação. Nesse sentido a incompreensão equivale à alienação. A não
considerar de modo algum o caminho da compreensão.
204
3.6.2 - A compreensão ideológica
O operário caminha em meio às necessidades e interesses inerentes às relações econômicas
de produção, ao sistema de ideias que legitima o poder econômico da classe dominante
sustentadas por grupos sociais ou institucionais, que racionalizam e defendem seus próprios
interesses e compromissos. No entanto, “não lhe sobra tempo de perceber”. Perceber é um
compreender. O não sobrar tempo não é literal, mas atua como um “não perder tempo” ou “não
dar atenção”. Seu foco é o caminhar: “Caminha no campo e apenas repara que ali corre água, que
mais adiante faz calor.”. O operário caminha como quem sabe que todo caminho é apenas um dos
caminhos a que conduz todo encamihar. Encaminhar é conduzir a um caminho, mas caminho não
é um apenas, no sentido numérico. Caminho é sempre a possibilidade de congregação de pontos
distintos, em outras palavras, caminho é sempre um entrecaminho. Encaminhar é conduzir ao
entrecaminho como de-cisão. O entrecaminho é de-cisão como um congregar possibilidades. A
possibilidade se diz no que se lança-entre, este é a possibilidade de decisão pela dobra ou pelo
duplo.
A dobra é a reunião da identidade e diferença. A isto o pensador grego Heráclito se referida
quando disse no fragmento 50: “Escutando não a mim mas ao Logos, é sábio concordar que tudo
é um” (HERÁCLITO: 1999, p. 71). Parmênides também se refere à dobra, ao afirmar no
fragmento 3: “pois o mesmo é pensar e ser” (PARMENIDES, 1999, p. 45).
Tanto em Heráclito como em Parmênides a realidade é pensada ambiguamente como a
dobra dos contrários a partir das expressões Tò autó, o mesmo e Hèn Pánta, tudo um. O
significado das expressões não pode ser reduzido ao sentido metafísico de identidade que se
processa numa relação do ente com ele mesmo ou por meio de representação. Pelo contrário, a
relação estabelecida, proposta pelo pensador é a tensão entre identidade e diferença, como, por
exemplo, entre noein (pensar) e einai (ser). Na própria escritura percebe-se o a correlação das
diferenças. A conjunção “e” (kaí) pode estabelecer tanto sentido aditivo como adversativo. No
texto, “Kaí” ou “e” estabelece os dois sentidos ao mesmo tempo. A palavra “o mesmo” (Tò autó),
semelhante ao “tudo um” (Hèn Pánta), é o lugar onde se dá o encontro originário de coisas
diferentes e estabelece o “Palíntonos harmoníe” (conexão de tensões opostas). A dobra é o vigor
do diá-logo. Logos é onde vigora toda a ação de lançar. O lançar, nesse sentido, só pode se dar no
205
logos. A dobra é o diálogo entre identidade e diferença em que o ser e o não-ser não dizem coisas
opostas, mas realidades desdobradas do próprio real.
No texto Operário no mar, os discursos que se cruzam não vigoram como dobra, mas como
duplo. A dobra foi sufocada pelo sistema de pensamento imposto pelo duplo: uma verdade
pretensamente única. A dobra é ambígua, porque reúne as diferenças sem anulá-las, como
acontece numa identidade identitária, também não as separa dualisticamente. O duplo é a
expressão do dualismo. Enquanto a dobra encaminha à decisão. O duplo o faz à cisão, em que o
real é cindido em princípios básicos antagônicos e dessemelhantes. O duplo cinde o caminho em
margens distintas e opostas. A compreensão como potencialidade de reciprocidade é também a
possibilidade inversiva, é tão ambígua em si mesmo que pode-se dar tanto como dobra quanto
como duplo.
Qual é a relação de sentido que há entre “os fio, os fios, os fios”, “o líder oposicionista
vociferando” e o operário no texto?
As expressões em questão são imagens-questão tanto da comunicação quanto dos discursos
que ela veicula, nomeiam uma compreensão dualista, dissimulada e parcial do logos que se
coloca a serviço de uma ideologia, seja ela política, cultural, educacional, sociológica, filosófica
etc. Essa compreensão dá origem a um discuso retórico à maneira dos sofistas; ou seja, pautado
em argumentos ou raciocínios de acordo com as regras da lógica e bases verossímeis, concebidos
com o objetivo de induzir a uma compreensão da verdade produzida com a finalidade de
representar um fundamento ideológico. Trata-se de uma compreensão ideológica.
Nem sempre a compreensão ideológica é intelectualizada, muitas vezes é formada pelo
senso comum mesmo. Um conjunto de opiniões, ideias e concepções vão se formando,
condensando e prevalecendo em determinado contexto social sem reflexões ou questionamentos,
impõem-se como naturais e necessárias e constitui uma verdade que rege a existência e se
perpetua numa espécie de hereditariedade social dominante e dominadora. É a isso, também, que
se refere Riobaldo quando fala do diabo em Grande sertão: veredas. Em muitas passagens da
obra, o diabo é uma concepção ou compreensão que vai dominando as pessoas e as conduz a
determinadas atitudes.
Não se trata de um juízo moral, mas de uma questão ética. Esse tipo de compreensão
impede que o mundo tenha sentido pela sua pre-sença, mas condiciona e impõe um significado
para ele, e este tal se torna uma imposição para os outros. A discussão em torno da existência ou
206
não do diabo é um conflito de compreensões. Riobaldo dialoga para tentar apreender a
compreensão, por isso transita entre os diversos discursos a respeito do diabo, por isso este é e
não é sempre. Riobaldo faz e refaz discurso e compreensão. O mesmo é uma coisa para um e
outra para outros.
A trama da compreensão foi entendida na modernidade como uma espécie de enunciação
discursiva, implícita ou explícita, composta de vozes, pontos de vista, visões de mundo ou
tendências que dialogam entre si, revelando que nenhum discurso é puro, processo ao qual
Bakhtin denominou polifonia. A heterogeneidade de vozes faz com que se teça uma rede infinita
de referências entre falas e sentidos a qual se denominou dialogismo e, ao uso consciente e
coerente desse processo, de modo que haja influência de um texto sobre outro, denominou-se
intertextualidade.
Polifonia, dialogismo e intertextualidade são processos facilmente verificados em diversos
tipos de textos. O grande problema é que entre os textos nos quais se verificam esses processos
há certa justaposição e uns vão sendo classificados como mais essenciais ou relevantes em
relação aos outros, ainda que na ordem da anterioridade cronológica. O mais antigo é tomado
como modelo ou ponto de partida para os demais que vão atualizando semanticamente
significados outrora expressos. Mas a questão mesma sobre o qual se lançam as noções de
polifonia, dialogismo e intertextualidade, que, na verdade, é o mais originário em todo o
processo, ela que é a ancestral, não obstante a destituição da sua real importância e esta, a
questão, acaba sendo esquecida.
Na esfera crítica do pensamento forma-se um encadeamento dedutivo, de uma asserção
precedente, produzindo acréscimos por vias da explicitação e interconexão de aspectos que
anteriormente se mantinham obscuros ou latentes e, aos poucos, se firma convicções como uma
verdade doutrinária e sistemática deduzida desse encadeamento. A essa suposta verdade
doutrinária e sistemática denominou-se ideologia. Todo o empenho, então, se dá na tentativa de
determinar a ideologia expressa no texto como um modo de interpretá-lo.
A compreensão ideológica é sempre uma adesão a um conjunto sistemático de
representações em forma de ideias, valores, normas e regras que prescrevem o que e como se
deve pensar, julgar, sentir, ser e fazer de modo que se identifiquem coesamente com sistema
institucional ao qual representa. É uma concepção previa, indiscutível e supostamente evidente na
207
qual todo o sentido de algo já está consolidado, a fala é apenas uma acomodação à teoria
estabelecida como verdade.
A ideologia é sempre parcial, na medida em que é unilateral e se coloca em uma margem
contrastando-se à outra, posto que defende e afirma seu corolário instituído em oposição a outros,
com o intuito de manipulá-los e controlá-los a fim de perpetuar uma estrutura.
Conforme já disse, em Grande sertão: veredas esta questão aparece na discussão da
existência do diabo e de como ele irrompe no cotidiano do mundo. O diabo, em muitas culturas e
mitos, se apresenta sob a imagem da serpente, também chamado de satanás. Longe de fazer uma
leitura moralista dessa imagem, queremos pensar no que ela nos diz poeticamente. A serpente
muitas vezes surge como a imagem do conhecimento e da capacidade de persuasão, em outras,
seu poder letal ameaça pavorosamente suas supostas vítimas.
Não querendo fazer um apanhado da recorrência dessa imagem em mitos e textos poéticos,
nos ateremos apenas ao sentido mais adequado ao que tratamos por ora, apenas nos referindo às
três capacidades de presentificação da imagem do diabo como duplo: conhecimento, persuasão e
letalidade. Não se quer dizer aqui que o diabo significa essas potencialidades ou é sinônimo
delas, mas que seu caráter ambivalente as compreende ora de um modo ora de outro. É
importante salientar que, em algumas religiões, o diabo é entificado, originariamente, porém, a
palavra diabo nomeia um movimento, isto é, possui o mesmo sentido da ação verbal da palavra
grega diaballein, que nos acena para a noção de lançar (ballein) no entre (dia-).
O conhecimento ideológico é diferente da sabedoria. Ideologicamente concebido,
conhecimento é conhecimento-para e designa uma finalidade específica e funcional, o que disto
difere, segundo sue corolário, é ignorância. O conhecimento tende à abstração e só se dinamiza
com o concreto por meio da funcionalidade.
Persuasão é conduzir ao convencimento por meio de uma argumentação coerentemente
lógica. Para a ideologia é mais importante parecer verdadeiro, isto é, ser verossímil que
corresponder à verdade. A própria discussão e reflexão sobre a verdade não é relevante se não
tangenciar a verossimilhança. Verdade é sinônimo de verossímil, isto é, o que não pode ser
contrariado, visto que é, nesse sentido, metodologicamente elaborado para tal. Ela aparecerá
sempre como utilidade e eficácia discursiva, de uso prático e verificável produzindo resultados
úteis.
208
Letalidade é poder ou domínio sobre a vida, isso nos fala do poder que uma ideologia tem
de decidir o decurso da vivência histórica, econômica e social, dentre outras, como tem ocorrido
ao longo da história da humanidade.
O poder de uma compreensão ideológica é embasado pelo conhecimento, persuasão e
letalidade.
3.6.3 - A compreensão conceitual
Em seguida, o observador faz uma suposição: “Ele sabe que não é, nunca foi meu irmão,
que não nos entenderemos nunca. E me despreza...”. Supostamente esse é o sentimento ou
pensamento do operário. É tão evidente... Mas onde reside ou o que justifica essa evidência? O
observador diz em seguida: “Ou talvez seja eu próprio que me despreze a seus olhos.”. O saber e
o desprezo inicialmente faziam parte das concepções do operário, quando, na verdade, revelam o
modo de ver ou enxergar o mundo do observador que impõe a sua visão a todos os fatos, seres e
coisas que se lhe cruzam à frente.
O próprio início do texto já supõe isto quando o operário é estranhado por não preencher as
características de um operário: “Na rua passa um operário. Como vai firme! Não tem blusa. No
conto, no drama, no discurso político, a dor do operário está na blusa azul, de pano grosso, nas
mãos grossas, nos pés enormes, nos desconfortos enormes.”. Por isso é que o observador se
mantém em terra firme, na firmeza de suas convicções, que no contexto figura correlativamente à
massa enrijecida, consolidada. As terra firme é o fundamento em que o observador se põe para
julgar o real que se realiza. Ela também possui ambiguidade, na comprensão conceitual nos
figuram como o sentido que aparece cristalizado em racionalizações lógicas, visando definir algo
a partir de uma caracterização genérica e abstrata, que não precisa estar vinculado a uma
ideologia específica, mas de modo que dê conta de toda e qualquer manifestação firmada em um
significado. Talvez seja por esse motivo que ele enxerga a todo o tempo o operário que “vai
firme!”, “pisando assim tão firme”, quando, no final, reconhece que ele é que estava ecastelado
em terra firme: “eu em terra firme”.
Aparentemente o logos se encaixa facilmente em um conceito e encontra o seu lugar entre
os outros, entretanto, como sua natureza não é conceitual e não se enquadra em nenhum
209
significado especificamente, seu sentido se perde entre os demais conceitos e logo se esvazia. O
logos é tomado como um significado a serviço do monopólio conceitual vigente, como ocorre
com sua tradução em palavra ou estudo, numa acepção científica, artística, sistemática etc,
funcionando sempre como uma predicação pospositiva com valor sufixal: -logia, -logo, -lógico,
-logista e -logístico. Significa o conhecimento relativo ao que o radical da palavra diz. O logos é
reduzido ao lógico da lógica.
A comprensão conceitual pressupõe que sem um estabelecimento de uma significação
linguística, tal qual uma lente, não se pode fazer uma leitura do mundo. A procura dessa
compreensão é sempre a conjugação entre significante e significado. Daí ser ela propriamente
formal e autoritária, segundo a qual, o código funciona de acordo com algumas regras semânticas
preestabelecidas que o define estruturalmente. Nesse sentido, a linguagem é um sistema
simbólico de signos arbitrários que instrumentalizam a representação das coisas. A compreensão
conceitual é um dos principais instrumentos na formação do “mundo cultural” estebelecendo a
conexão simbólica entre o homem e as coisas, de modo que estas se tornem objetos definidos
linguisticamente por aquele. O mundo e as demais coisas só ganham significados quando
conceituados, isto é, quando podem ser simbolicamente representados. A pronúncia de uma
palavra evoca seu significado representativo e não a coisa mesma. Desse modo, ser é apenas um
verbo de ligação no qual a proposição “eu sou” deve ser completada ou preenchida com um
predicativo, caso contrário se torna incoerente e insipiente.
A compreensão conceitual estabelece um sistema de signos alegóricos. Alegoria aponta
para uma instrumentalidade linguística que concebe a compreensão simbolicamente, de modo
que se repouse sob a superfície do significante a essência do significado. Ela é um modo de
expressão em que pensamentos, ideias e qualidades são representadas mantendo o conceito de um
lado e a imagem de outro e estabelece entre ambos uma correlação semântica. Alegoria e símbolo
nos falam de um algo que contém a semelhança da coisa, isto é, da realidade. Esse conter a
semelhança de outro recebeu dos escolásticos medievais o nome e a formulação teórico-
conceitual de representação. Nesse sentido se fala de língua e é o seu domínio que permite toda e
qualquer intervenção cultural. A língua funciona de acordo com regras arbitrariamente
preestabelecidas, assim, o discurso linguístico representa poder. A comunicação só se estabelece
de acordo com a submissão a estas regras linguísticas oficializadas num ritual vazio do mistério
do real, posto que a língua é o desvendar da realidade inerente ao mito. O ritual linguístico não é
210
uma reatualização originária do sentido, mas uma repetição infinita de signos e significados por
meio da qual a comunicação acontece, daí a legitimação da asserção de que o homem aprende por
repetição. Sendo assim, se pode falar de qualificação dialógica ou discursiva como a capacidade
do individuo formular e decodificar enunciados específicos, visto que ele domina o código
linguístico próprio de um grupo, nesse sentido, o que está em jogo é o poder conceitual
subjacente ao discurso. A verdade é essencialmente discurso como um conjunto de proposições
articuladas sistematicamente na lógica conceitual. O discurso conceitual produz uma
compreensão competente no sentido do que é institucionalmente permitida e autorizada,
possibilitando e viabilizando a comunicação sob circunstâncias predeterminadas
linguisticamente.
3.6.4 - A compreensão convencional
Um quarto modo de ser da compreensão se afigura no texto como produto de usos ou
costumes sociais estabelecidos, como um acordo semântico de tácita aceitação pelos indivíduos.
O que se pode perceber quando o observador diz: “Agora está caminhando no mar. Eu pensava
que isso fosse privilégio de alguns santos e de navios.”. É evidente aqui a ironia que estabelece o
conflito entre fé e ciência. O observador é tomado por um acontecimento que supera as
dualidades e as convenções: a imersão do operário no mar.
A compreensão convencional é a que se manifesta de acordo com os interesses sócio-
culturais e econômicos da cultura vigente na sociedade, também chamada de cultura de massa.
Esta se expõe como uma “verdade” acordada, uma espécie de constructus produzidos pelas
convenções de forma lógica e coerente, instituído como um “consenso teórico” do qual se pode
tirar consequências práticas e aplicáveis, também por sua eficácia e utilidade. A compreensão
convencional se firma no que na modedernidade condensou como discurso midiático, ele orienta
o comportamento da massa e é o fundamento de sua cultura: o artificial que tenta representar o
natural. Na contemporaneidade isso é tão descarado que os alimentos industrializados vinham
ressalvando “aroma e sabor artificial de ...”, atualmente reestruturaram a ressalva para “aroma e
sabor idêntico ao natural”. Ora qual é diferença entre natural e algo que lhe é idêntico? O sabor é
o saber, o gosto de algo, o que permte distingui-lo dos demais. É o que, na tensão com a
211
identidade, permite diferenciar uma coisa das outras. Uma das principais características da
compreensão convencional é o fato de ela se apresentar sob um aspecto acabado e de funcionar,
aparentemente, sem intermitências, nem vazios. A compreensão originária é, por natureza, de
certo modo, intermitente e descontínua, com lacunas e intervalos que se abrem na dinâmica de
uma completude sempre porvindoura, própria do questionar.
A compreensão convencional flui de modo constante e ininterrupto, encadeando seus
pressupostos e enunciados de modo acabado e geralmente ocultando ou mascarando as intenções
e o processo pelos quais surgiu. Essa compreensão desenvolve uma estratégia de universalidade
referencial dos enunciados e uma credibilidade da narração dos fatos e validade absoluta, abstrata
e conceitual de seus pressupostos. A força repositória de seu discurso deriva da assertiva de que é
imperativo falar sempre, mesmo que seja para não dizer nada, apenas para manter o contato com
o público. Ela toma como característica fundamental e distintiva das outras compreensões o fato
de o âmbito da sua legitimidade não ser delimitado pelas fronteiras de um domínio restrito da
experiência. A compreensão convencional apropria-se da experiência e do discurso de diversas
áreas de conhecimento, o que a coloca como numa referência transversal ao conjunto de todos os
domínios da experiência moderna.
A compreensão ideológica ou conceitual pode ser considerada, por vezes, hermética,
oculta, fechada, entendida por poucos. A compreensão convencional, por sua vez, se estabelece
por meio de discursos abertos, públicos, entendidos por muitos, senão todos, dado o interesse
generalizado que suscitam. Devido a sua natureza generalizante ou aberta, a compreensão
convencional, mesmo ao utilizar referentes científicos, expõe-se em termos, expressões e
linguagem de domínio público e atribui a determinados valores e referenciais ideológicos e
conceituais significados mais populares. Com isso, promove uma verdadeira reelaboração
dessacralizante da cultura, interligando e homogeneizando diferentes interesses institucionais,
criando significados genéricos e ambivalentes. Afirma-se como um meio de sintetizar as
diferenças humanas.
Mas nem sempre ela desempenha uma função harmonizadora ou de compatibilização entre
as divergências, por vezes exacerba essas diferenças. Seu propósito é a desconstrução da tensão
entre identidade e diferença para reafirmar uma identidade identitária e excludente. Seu modus
vivendi obriga a adesão ao contrato cultural de padronização do comportamento sob pena de
exclusão.
212
Uma outra característica e especificidade da compreensão convencional é o fato de mesma
intervir ativamente no ritmo e funcionamento das estruturas sociais através do estabelecimento de
um senso comum. Funda-se na interação entre o homem e o ambiente em que vive, visando a
realização pessoal na práxis social mediante a aquisição do conteúdo simbólico e adaptação
sistêmica às tradições, ocupações, técnicas, interesses e hábitos difundidos e diluídos no plexo
cultural vigente. Trata-se da adoção de um modus vivendi assimilado sem reflexão, cujos
princípios são adotados como legitimamente intrínsecos e inexoráveis. A força de adesão resulta
de um critério estatístico de valores e pressupostos que encontram pouca ou nenhuma resistência
na sociedade dada sua condição aparentemente inofensiva.
A compreensão convencional é unilateral, ou seja, funciona através de uma enunciação
discursiva subjacente direcionada a um público relativamente indiferenciado e ausente,
inviabilizando a possibilidade de interação dialógica. Antes, tem sua funcionalidade assegurada
mediante o repasse de informações ancoradas na produção de princípios embasados na concepção
moral vigente que regula práticas e hábitos de vida como verdade facilmente verificável no seu
palco iluminado e inquestionável.
3.6.5 - A compreensão poético-dialogal
No final do poema o observador abandona a linguagem lógica e a coerência figurativa e
deixa-se tomar pelo acontecimento poético. Ele vê o operário caminhando no mar. Ironicamente
diz que “pensava que isso fosse privilégio de alguns santos e navios”. Logo em seguida há uma
constatação um tanto quanto “ilógica” para o contexto racionalista: “Mas não há nenhuma
santidade no operário, e não vejo rodas nem hélices no seu corpo, aparentemente banal. Sinto que
o mar se acovardou e deixou-o passar.”. E coloca outra questão: “Onde estão nossos exércitos
que não impediram o milagre?”. Que exércitos são esses? E a que milagre ele está se referindo?
No contexto, o que poderia impedir o operário de caminhar sobre o mar é a própria lógica
racional, pois segundo as leis da física, sem um aparato tecnológico, seria impossível mover-se
no insólito. Os exércitos correspondem às teorias e discursos que engendram tanto a
incompreensão quanto as compreensões ideológica, conceitual e convencional e se opõem à
compreensão poético-dialogal. O discurso do observador deixa de corresponder a coerência
213
lógica e se reinaugura poetico-dialogicamente vendo o que os olhos da razão não pode ver, pois
escapa ao seu horizonte de compreensão, diz o observador: “Mas agora vejo que o operário está
cansado e que se molhou, não muito, mas se molhou, e peixes escorrem de suas mãos.”. O
operário sai da superfície do mar e começa a imergir numa integração com a maleabilidade do
mar.
O mar é a imagem-questão da dinâmica da vida, no mito, tudo sai dele e para ele retorna. O
mar é a força que gera, mas também é o seio acolhedor. Tudo o que volta a ele é, de certo modo,
transformado em semente de novos começos. É, por isso, doador, fértil e maleável, de modo que
se abre para acolher tudo o que lhe vem ao encontro. As águas em movimento assinalam o estado
transitório entre as possibilidades ainda informes e as realidades condesadas ou em condensação.
O mar é correlato da compreensão. Acolher e compreender dizem o mesmo. A
compreensão acontece quando se acolhe e engravida de sentido. A principal característica da
água é a capacidade de decompor os materiais orgânicos. É a imagem de uma pré-compreensão
que diluiu ideologias, conceitos e convenções, não para criar outros tais, mas os leva ao grau zero
para encontrar, em meio a todo o pensado, o não pensado, e auscultar, em meio a todo o falado, o
ainda não dito.
Nos mitos, o mar é equiparado à mãe que gera filhos. O mar seria então o útero, este não
gera por si mesmo nem para si, mas abriga o vigor de produzir a vida. Produzir aqui não tem o
mesmo sentido de fazer ou fabricar, mas, nomeia o levar (ducere) adiante ou em frente (pro-),
isto é, favorecendo e conduzindo o surgimento ou eclosão das coisas, sua manifestação, num
lançar à presença e à existência. É conduzir ao desencobrimento projetando o ser para sua
destinação e, de certo modo, inseminar, que diz a ação de introduzir o sêmem. Sêmem nos aponta
para o antepositivo verbal grego génos, que possui sentido de origem, tronco ou família, compõe
o verbo, também grego, gígnomai, do qual deriva o sentido de nascer, gerar, produzir. Nos
pensadores gregos antigos bem como nos mitos, o génos era pensado na imagem poética da
Moira, que fazia referência ao quinhão, a parte que cabe a cada um, a sua medida ou necessidade
(ananke), destino.
Cada ser possui sua Moira, o que a modernidade científicametne denominou código
genético. É óbvio que Moira não é sinônimo de código genético ou atavismo, os mitos e a ciência
possuem abordagens diferentes, mas não é impossível uma aproximação ao nível da
compreensão. O fato é que cada ser traz dentro de si o seu quinhão como possibilidade de seu
214
sendo, ou seja, seu modo de ser. Na obra de arte geralmente a questão do génos aparece
formulada na teoria dos gêneros, entretanto, géne é o que em todo o ser, e mesmo o ser-obra, está
em obra.
O “pensar e ser” como o mesmo, anunciado por Parmênides, pode ser também entendido
como “o mesmo é ser e compreender”, no qual ser é lançar-se no horizonte da compreensão para
entregar-se plenamente a sua Moira e realizar seu sendo no limite entre vida e morte.
O operário no meio do mar/caminho entra numa espécie de simbiose com a physis como
descreve o observador:
Vejo-o que se volta e me dirige um sorriso úmido. A palidez e confusão do seu rosto são
a própria tarde que se decompõe. Daqui a um minuto será noite e estaremos
irremediavelmente separados pelas circunstâncias atmosféricas, eu em terra firme, ele no
meio do mar. Único e precário agente de ligação entre nós, seu sorriso cada vez mais frio
atravessa as grandes massas líquidas, choca-se contra as formações salinas, as fortalezas
da costa, as medusas, atravessa tudo e vem beijar-me o rosto, trazer-me uma esperança
de compreensão. (ANDRADE: 2007, p. 71-2)
O operário se funde à tarde e ao mar: tudo um, mas não se trata de uma fusão homogênica,
ele acha o seu lugar entre a “natureza”. Essa fusão provoca o desaparecimento gradativo de uma
imagem isolada de perfil humano e, simultaneamente, o aparecimento de outra integrada a tudo.
É um ultrapassar os limites da vida nos umbrais da morte e reviver simultaneamente.
O morrer, na verdade, é cristalizar a existência e permanecer solitariamente, morte é
solidão absurda, não como virtude reflexiva. Viver é fazer a experienciação da morte como
caminho para a vida. O conflito desse entendimento se dá pela compreensão ideológica,
conceitual e convencional de que a morte e a vida são antagonicamente opostos.
O caminho entre vida e morte é o caminho do diálogo. Diálogo é comumente entendido
como uma conversa em que se produzem falas entre dois ou mais indivíduos de modo que haja
uma interação entre si, compondo o processo básico da comunicação. Ora as definições de
diálogo pode nos levar a sofismas, pois dialogar não é apenas falar, mas abrir-se para a escuta.
Caminhar entre vida e morte é abrir-se para a fala de ambas de modo que se compreenda
sua verdade. Mas aqui pode haver ainda um engano do que seja diálogo. Auscultar a fala de vida
e morte como de fosse um monólogo dialógico não chega a ser diálogo, pode não haver comum
ação. Comunicação não é simplesmente transmissão e recepção de mensagens e informações,
215
junção de algo, tampouco intercâmbio. Comunicação é a comum ação que opera por meio da
tensão; a melhor palavra para dizer a comunicação é embate.
O vigor da compreensão se manifesta por meio do embate, que não extingue os
combatentes, antes impõe a ampliação de suas possibilidades existenciais: ser para além de si, em
si mesmo. Co-jogados por essa tensão de identidade e diferença, cada um jamais cessa de ser
sempre outro, porém idêntico, visto que se preserva o espaço-limite do diálogo, a saber, o dia-. O
diá- do diálogo realiza, de certo modo, o mesmo que o prefixo inter- ou entre- o faz no
português, ou seja, mantém o aberto das relações o que, ao mesmo tempo, funda e preserva o
diálogo. Diá-logo é o dimensionamento da palavra grega logos.
O diálogo é a medida e alcance do logos como escuta. O dimensionamento do diálogo não
pode ser mensurável, como propõe a linguística, pois não pode ser medido apenas pela
quantidade de informações que supostamente transmite. O diálogo instaura e preside muito mais
que o conhecimento gerado pela transmissão de dados, ele possibilita a aprendizagem, que é a
apreensão do que é próprio ao ser, do seu destino ou caminho. Apropriar-se do seu próprio
caminho é mergulhar na sua Moira ou destino e tornar-se no que, de algum modo, já se é; a isso
os gregos denominaram a-létheia, que em português se traduz como verdade.
O diálogo originário não pressupõe o embate erístico como forma de se estabelecer a
verdade como imperativo da habilidade lógica do discurso, em vez de os dialogantes se
digladiarem para encher o seu cardo, embatem-se para esvaziar, despregando toda e qualquer
verdade fabricada para que surja a verdade da cura. Esta surge do esvaziamento.
No grego, esvaziamento se diz kenósis, e assinala a ação de esvaziar-se por completo de
tudo aquilo que determina, qualifica ou classifica o ser. Uma expressão que conserva sentido
semelhante é “humilhar-se a si mesmo” e “sujeitar-se voluntariamente”, é a ação de sair de si
mesmo, renunciar, desconstruir suas próprias verdades instituídas e sujeitar-se voluntariamente a
algo maior.
No ensaio Caminho do campo, Heidegger assevera: “A renúncia não tira. A renúncia dá.”
(HEIDEGGER: 1977, p. 328). A renúncia é a abertura e esvaziamento para receber algo ainda
maior. Que algo maior é esse ao qual o ser se sujeita? O acontecer da verdade que é a
consumação do destino e a realização da Moira. O diálogo mais radical que o homem pode ter é o
que põe em questão o destino.
216
O diálogo com o destino nos lança no mistério ao qual somos desde sempre destinados: a
nossa travessia.
A parábola do operário é a travessia do pensamento como sabedoria. Sabedoria é um saber
que só se sabe sendo o que se sabe, isto é, verdade.
3.6.6 - A verdade: a ausculta do silêncio
No texto literário as partes estão combinadas, equilibradas, articuladas, arranjadas entre si,
em harmonia e organicidade, as imagens e a trama configuram o eixo temático, isso tudo já se
viu e já se pensou como matéria e forma e também já entendeu como poética da obra. Mas é isso
mesmo a poética? A arte poética é o produto da capacidade artística do homem ou ela poderia ser
algo diverso?
O pensamento da poética como conjunção entre matéria e forma parece-nos algo ditatorial,
que busca ou quer pôr ordem em algo que ainda não chegou à lógica racional, no caso a matéria
ainda informe, de modo que possa ser bem representada e apreendida pelos sentidos ou pelo
intelecto.
Heidegger, no ensaio A origem da obra de arte, assinala essa questão no primeiro parágrafo
do seguinte modo:
Originário
significa aqui aquilo a partir de onde e através do quê algo é o que ele é e
como ele é. A isto o que algo é, como ele é, chamamos sua essência. O originário de
algo é a proveniência de sua essência. A pergunta pelo originário da obra de arte
pergunta pela proveniência de sua essência. A obra surge através e a partir da atividade
do artista, segundo a opinião corrente. Porém, de onde e através do que o artista é o que
é? Através da obra, pois dizer-se que uma obra faz o mestre significa que somente a obra
deixa o artista aparecer como um mestre da arte. O artista é a origem da obra. A obra é a
origem do artista. Nenhum é sem o outro. Do mesmo modo também nenhum dos dois
sustenta sozinho o outro. Artista e obra são em-si e em sua mútua referência através de
um terceiro, que é o primeiro, ou seja, através daquilo a partir de onde artista e obra de
arte têm seu nome, através da arte. (HEIDEGGER: 2010, § 1)
O pensador propõe que originário da obra e do artista é a própria arte. Um pensamento que
saiba trafegar apenas nos trilhos dos conceitos perguntaria: mas o que é arte?
217
Uma resposta possível, que não violasse a essência da arte deveria recolocá-la como
questão, isto é, de modo a não impedir a possibilidade de pensá-la e repensá-la continuamente.
Então, a arte vigora na obra de arte e no fazer do artista, no que é e no como é de ambos, abrindo
inauguralmente o ser do ente, ou seja, operando a verdade como um deixar disponível o
manifestar do que é. A abertura inaugural como revelar a verdade do ente acontece no operar da
obra e do artista como uma correspondência ao apelo do que se retrai ou se oculta aos entes. Por
isso é que Heidegger diz que a “arte é o pôr-se-em-obra da verdade” e:
A verdade é não-verdade na medida em que lhe pertence o âmbito da proveniência do
ainda-não- (do não-) revelado, no sentido do velamento. Ao mesmo tempo, no des-
velamento como verdade vige o outro “não” de um duplo vedar. A verdade vige como
tal na oposição de clareira e duplo velamento. A verdade é a disputa originário-inaugural
na qual sempre de um certo modo se conquista o aberto, no qual, tudo, que como ente se
mostra e subtrai, se situa, e a partir do qual tudo se retrai. (HEIDEGGER: 2010, § 130).
Mas o que é que se retrai na fala poética? O silêncio. Silêncio e fala são dois modos de ser
da linguagem. A arte é a ausculta do silêncio. É disso que trata o poema Uma canção, de
Drummond:
Uma canção cantada por si mesma
o pensamento longe de pensado
o tempo a florescer livre de tempo
e tudo mais que oculto é contemplável.
(ANDRADE: 2007, p. 361)
“Uma canção cantada por si mesma” é inconcebível do ponto de vista lógico, é preciso
alguém para coordenar o processo de criação. No entanto, sua fala é inconfundível. “Uma canção
cantada por si mesma” é a mais profunda manifestação da verdade, livre de toda e qualquer
manipulação, por isso ela resguarda tudo o que manifesta como o “pensamento longe de
pensado”, ou seja, livre dos esquemas racionais que determinam a coesão e a coerência da
“estrutura mental”; “o tempo a florescer livre de tempo”, que é conceito e critério de
mensurabilidade; “e tudo mais que oculto é contemplável”, como um paradoxo pleno de sentido.
O poema é uma imagem poética denominada pelos gregos antigos physis e a-letheia, que
conservam mutuamente o sentido de nascividade incessante que, ao mesmo tempo tende ao
encobrimento, o desvelar que ama ocultar-se. A esse manifestar de “uma canção cantada por si
mesma” nomeamos orquestração do silêncio.
218
A ausculta do silêncio soa como um paradoxo, pois silêncio nos advém como algo
insondável, como um interromper ou retirar-se da fala e resguarda aquilo que há de mais
essencial e extraordinário a que chamamos, mesmo sem muito compreender, busca ou procura. A
dinâmica e a essência da procura se fazem presentes na vivacidade da fala do poema Uma canção
como correspondência ao silêncio. Heidegger diz: A linguagem fala, o homem fala à medida que
corresponde à linguagem. (HEIDEGGER: 2004, p. 26.). A fala é o que aproxima o homem da
linguagem.
Toda fala? Não! Mas que fala? A fala da linguagem! A linguagem fala, depois vem a fala
do homem. Mas como e de onde vem a fala do homem? Da co-respondência à linguagem. O falar
humano é uma correspondência à linguagem e, enquanto correspondência à linguagem em seu
sentido mais originário e mais próximo da essência da linguagem, a fala do homem é uma fala
poética. Como fala poética, a linguagem constituiu uma obra. A obra poética não é uma produção
humana favorecida por uma técnica. Quanto mais poética uma obra for, maior é sua entrega à fala
da linguagem e não à fala do homem. Na verdade, a poeticidade de uma obra se intensifica
justamente por essa entrega à fala da linguagem.
O silêncio está presente! Muitos conceituam o silêncio como não-dito ou entrelinha, e ele
de fato é, mas é muito mais que isso. Dizer o silêncio apenas como não-dito ou entrelinha é dizê-
lo apenas e tão somente a partir do dito e da linha, entretanto, o vigor do não e do entre é muito
maior. Silêncio é o nada, o caos donde tudo se origina e tem sentido, por isso ele está em tensão
dialógica com a fala na manifestação da realidade. A fala vigora de acordo com seu poder de
silêncio. O modelo epistemológico que pretende interpretar o real por vias da representação não
suporta a discussão sobre o silêncio, pois a representação é aclamada, ao longo dos tempos, como
o padrão de organização do conhecimento, o silêncio desestabiliza o paradigma da representação.
O silêncio vige na ocultação. O silêncio está presente em tudo o que se oculta por isso é possível
“Uma canção cantada por si mesma”. Na verdade, o silêncio é a condição de tudo o que se oculta.
A fala é o silêncio se manifestando. Em tudo o que se vê, ouve ou pensa prevalece sempre a
manifestação.
A ação humana tem-se voltado desde sempre para o que se faz manifesto, e eleito este como
o real, o verdadeiro, porque só o que se manifesta pode ser representado e conceituado; em
contra-partida, ela esqueceu o silêncio, ou ainda, nem o pensou digna e coerentemente. Tanto o
manifesto, a fala, quanto o ocultado, o silêncio, se dinamizam na linguagem. Linguagem não se
219
confunde com língua. A língua se limita ao léxico, vive em estado de dicionário. A linguagem
não, ela extrapola todo o limite, desafia o ser humano, funda mundo, manifesta o real, mas
também leva o mundo ao caos e oculta o real. Não é um mero meio de comunicação, um
instrumento; entretanto, não há comunicação sem linguagem. Não é toda expressão linguística
que manifesta a linguagem, mas também não há aquela sem esta. A linguagem não se deixa
conceituar, mas nos convida a experienciá-la, vai muito além de todo e qualquer conceito. A fala
da linguagem é sempre mais que qualquer fala, pois ela está sempre em tensão ambígua com o
silêncio. Ela nos revela o segredo de toda e qualquer compreensão: a fala só se completa quando
em tensão com o silêncio. A consideração do silêncio é a chave do sentido. Nenhum sentido se
consuma apenas na fala, senão quando esta se tensiona com o silêncio, tornando-se fala poética.
Somente a fala poética é capaz de entreabrir o código da língua de modo que a linguagem
transpareça “com seu poder de palavra e seu poder de silêncio”.
Toda leitura que se pretende ampla e que atinja o cerne da linguagem deve dialogar com o
silêncio, sem esse diálogo surgem as leituras exclusivas, esta elimina toda a tensão dialógica com
o silêncio. O diálogo com o silêncio eleva a interpretação para além da forma e da estrutura. A
leitura ou interpretação que não dialoga com o silêncio falha em seu sentido de ser. “O silêncio é
a sensatez da incerteza e da perplexidade. (...) Porque o silêncio não é a paralisação da fala, o
silêncio é o máximo de concentração da fala. O silêncio não é o não-dizer, é o mais dizer.”
(Portella: 1999, p. 17).
Quando a fala chega ao seu limite como fala é hora de operar o silêncio e o silêncio operar.
Mas como saber que a fala chegou ao seu limite? A fala está sempre no limite, sempre no abismo,
por isso o silêncio está sempre operando, mesmo quando ela vigora, isso na fala poética, o
silêncio opera não deixando a fala cair nesse abismo. Quando o silêncio não opera na fala ela se
torna despótica. Toda fala que perde sua tensão com o silêncio, seja num texto literário ou não,
torna-se arrogante e pretensamente única. Quando a fala entra em tensão com o silêncio ela, na
verdade, se aventura por aquilo que é mais, nela mesma e se abre de modo que a essência da
linguagem se manifeste por meio dela, então a verdade encontra um lugar propício para eclodir.
Verdade aqui não se diz de uma “suposição hegemônica”, mas o Sentido do real, da vida. A
Verdade medra e é a-colhida pelo caminho. O silêncio é a vida da linguagem e toda fala que se
queira viva deve preservar o seu poder de silêncio ou, ainda, o poder do silêncio.
220
O silêncio preserva o abrir-se da linguagem, pois ele resguarda o sentido na fala de modo
que a escuta não seja um esquema metodológico prévio. A palavra texto nos remete para esse
eclodir da tensão fala e silêncio na linguagem. Do latim téxo, texto nos remete à ação de tecer,
fazer tecido, também entrançar e entrelaçar, que nomeia a ação de construir entrelaçando. Texto é
a linguagem eclodindo como tensão entre fala e silêncio, fios e vazio, gerando ou cantando a si
próprio. É das relações entre os fios e vazios que surgem os nós, as interseções do pensamento.
As palavras relações e interseções são fundamentais para nossa discussão. Ambas nomeiam
o encontro de duas linhas ou de dois planos que se cortam, falam de um cruzamento, de uma
vinculação que preserva a interdependência, mas também o intervalo entre fio e vazio, fala e
silêncio. A intermitência tensional que a linguagem preserva é que possibilita a eclosão do
sentido em vez de um significado. A diferença entre sentido e significado resulta justamente do
fato de que este é uma premissa conceitual, aquele uma pressuposição questionadora. Um parte
de um raciocínio lógico que pretende se estabelecer como uma verdade unívoca, o outro, de uma
atração exercida pela própria coisa, ou seja: o sentido é algo que brota da interação da
busca/procura com a própria coisa.
O texto é basicamente uma rede de relações descontínuas. Dizemos que a rede se faz de
relações descontínuas porque seu todo não é linear, mas um entrecortado de fios e vazio, na qual
o que prevalece não são os fios, mas justamente o vazio. Sempre se pensam as questões a partir
dos fios (fala) e desconsidera-se o vazio (silêncio), mas a rede é uma doação do vazio, é ele, pois,
que promove a tensão de si mesmo com os fios e, ainda, possibilita a tensão fio com fio. O vazio
é o entre-fios. Assim como não devemos fazer uma leitura da realidade/rede/texto/teia apenas a
partir dos fios/fala, também não devemos considerar apenas o vazio/silêncio. O que importa
mesmo é a tensão, pois é ela a união contrastiva que pro-voca o sentido. Ver a realidade através
da imagem da rede/texto/teia é considerar as interseções. Se atentarmos para a etimologia da
palavra interseção, do latim intersectìo, veremos que esta nomeia o espaço entre dois dentículos
nos capitéis das colunas jônicas e coríntias. Inter-, do latim inter, diz-nos o espaço vigente
nomeado como o interior de dois ou ainda entre (dois), inter- é o espaço entre. Já –sec- é o
antepositivo, do verbo latino seco e sectum, que dá o sentido de cortar, recortar, separar cortando,
cortar em pedaços, dividir em dois.
Interseção é, ao mesmo tempo, encontro e separação. Na interseção vigora o espaço entre
que une separando e separa unindo, não tem definição, a encruzilhada: “A bem, como é que vou
221
dar, letral, os lados do lugar, definir para o senhor? Só se a uso de papel, com grande debuxo. O
senhor forme uma cruz, traceje. Que tenha os quatro braços, e a ponta de cada braço: cada um é
uma...” (ROSA: 2001, p. 563). De que o texto fala? Do entre, isto é, o espaço onde vige a tensão,
mais originariamente, entre fio e vazio. Interseção é o caminho, a travessia na qual o homem se
essencializa e se descobre como ser ambíguo, porque é o caminho do entre, e é nessa caminhada
que o homem se descobre como ser das questões e não das respostas.
Na travessia é que o homem se sabe e não-sabe homem, pois ele já não é o que era, mas
ainda não é o que será. Na travessia o homem é co-jogado entre o ser e o não-ser, por isso é que
nele vigora a questão como questão de toda vida e da morte. Para pensar a vida mais
radicalmente o homem precisa se entregar à morte e vice-versa, essa é a condição humana: a
ambiguidade radical de sua existência, ser ser-do-entre. Ao homem não foi dado outro lugar em
que possa habitar que seja mais próximo do humano além do entre. É habitando o entre que o
homem se aproxima do sentido. A aproximação também é um espaço ambíguo, é estar
avizinhado, não junto. O que se avizinha esta junto e não está. Avizinhar-se é estar de permeio.
A fala da arte através do verso possui uma descontinuidade originária. Essa descontinuidade
não figura como um defeito, mas como um entrecortar de fala e silêncio, ambos se permeiam e
interpõem-se num jogo tão sutil que se torna quase imperceptível. No poema dá-se o encontro
entre o mensurável e o imensurável. O encontro que ocorre não é uma homogeneização, mas um
pender dinâmico: o mensurável (fala) pende para o imensurável (silêncio) e vice-versa. O verso,
o poema não são uma expressão (lírica) da subjetividade, não é o produto de sensações e
emoções, também não é uma forma de “expor” um pensamento. O poema, imbuído
essencialmente do vigor poético, é uma doação da linguagem e não uma criação humana, porta-
voz de seu interior.
O poema é uma manifestação da poiesis. É essa manifestação extraordinária que requer o
verso. O verso é mais que uma simples forma, mas um modo como a linguagem se doa. O verso,
enquanto manifestação da poiesis, é um apelo do extraordinário que se consuma em fala poética
quando a escuta acontece. A escuta da qual falamos não é qualquer escuta, não assume a função
auricular, mas é um voltar-se para a coisa acontecendo como linguagem. Nesse “voltar-se” é que,
consumando o apelo, a escuta nos consuma no que somos.
Consumar não é levar algo ao seu termo, ou a chegar a um término, mas permitir que algo
atinja sua plenitude; esta também não é entendida como completude ou totalização de modo que
222
se esgote sua condição deveniente; antes, plenitude é um plenificar contínuo, ou seja, um ato
contínuo pelo qual o sentido passa a vigorar permanentemente. O vigor do sentido em
plenificação contínua é um pôr-se em travessia palmilhando o sentido da vida, é a essencialização
da procura da vida como vida da procura. Na travessia é que se não chega a lugar algum, mas
encontra-se e apropria-se daquilo que nos é próprio, a saber, o que somos.
O que somos é destino enquanto verdade que se nos advém no meio do caminho da vida
com escuta do silêncio. Nesse sentido, destino é poiesis na consumação do pensar vida, caminho,
verdade.
4. Caminho, Verdade, Vida
A Máquina do mundo maquinou, maquina agora e continuará maquinando para sempre na
tessitura sem fim da tensão poesia-pensamento. Abramo-nos para sua ausculta. Seu mover fala e
sua fala manifesta o movimento em que vigoram as questões da existência humana, resistentes a
toda cristalização conceitual. Dançando, o destino se manifesta como caminho, verdade e vida.
Destino é a questão de todas as questões e, como tal, nunca se conclui. Vida, caminho e
verdade jamais se acabam, a nós é que nos é dado trilhar apenas uma parte destes. Todos os dias
alguém está sempre atendendo a seus apelos, fazendo uma e outra escutas de mundo, que se abre
em falas autênticas. É certo que há também a errância, isto é, o enviesamento por uma via já
traçada, que se percorre sem novidades e inautenticamente, entificando a vida, o caminho e a
verdade. O destino, entretanto, não se deixa capturar por nenhuma teoria, dele emanam vida,
caminho e verdade como autorrealizações imensas, intensas e indefiníveis. Cada vivente recebe o
seu legado de vida, isso não fala simplesmente do tempo como delimitação cronológica, mas
como realização ou, no dizer grego, kairós, oportunidade ou tempo oportuno. Assim, destino é
possibilidade de e para oportunidade é o que permite cada um ser o que se é, na fala poética,
destino é travessia.
Vivendo, o homem atravessa o destino. Isso não quer dizer simplesmente passar de um
lugar a outro ou ir além de uma modalidade de vida ou de uma delimitação temporal. Travessia é
trans-vertere, é verter para além dentro de si mesmo e, ao mesmo tempo, trazer esse além para a
experienciação diária com-sagrando, a vida apropriando-nos do que nos é próprio, como
caminho-sentido e verdade-manifestação do que somos na permanente reinvenção da vida-
223
travessia. Reinventar não é apenas criar algo de novo ou imaginar uma coisa que se dá como real,
mas mergulhar no ordinário da vida e encontrar-se com o extraordinário, é olhar a cada momento
para onde sempre se olhou e, de repente, ver o que nunca tinha visto antes e se apossar de um
novo sentido de ser e existir como uma libertação de tudo que, de algum modo, se cristalizou
dentro de nós e nos tornarmos líquidos, gasosos e outra vez corpo – permanente libertação de nós
mesmos.
Nesse sentido, destino é reinventar como passar do não-ser ao ser e vice-versa. Um dos
verbos gregos usados para designar esse acontecimento é poiein, que tanto se traduz como
poética ou arte. Esse passar do não-ser ao ser não é simplesmente uma técnica, embora também a
contenha, mas o que dá sentido ao ser e vai além de todo fazer técnico, porque é o que possibilita
a eclosão de sentido para a vida humana no seu habitar mundo e percurso entre os outros mortais,
isso nenhuma técnica é capaz de fazer.
Destino não é, dá-se, isto é, não é conceituável, mas nomeia o mover contínuo e irrepetível
de manifestação de sentido. Destino é poiesis, é o grande mundo crescendo todos os dias, entre o
fogo e o amor como uma canção cantada por si mesma. Oculto e contemplável, destino é a
máquina que se abre e, no seu maquinar mundo, convida sentidos e intuições para o diálogo
silencioso do amor que presentifica toda ausência assimilada da poesia (inexplicável) da vida.
Destino é o encanto sob o qual dorme, na sombra, uma realidade que transcende a própria
imagem sua debuxada no rosto do mistério, nos abismos. É a senha da vida, a senha do mundo
que tarda sempre no encontro e, tardando, apela mais intimamente à pro-cura na qual toda cura se
dá como linguagem: pro-cura-palavra-caminho-verdade-vida.
Caminho é destinar-se enviesando pelo caminho destinado, é a mais pura luta do lançar-se
adiante, no lugar imediato onde a vida reflete sua verdade: que o coração também pode crescer.
Enviesar é caminhar entre as pedras do caminho, no mar de toda certeza que se dilui no insólito
encorpado das ondas. É ir firme, pisando firme todo conceito e seguir adiante na luta mais vã que
existe até o raiar da manhã para, então, seguir até a noite e deixar a vida fazer-se por si mesma
unindo e reunindo o que era, é e será.
Verdade é entrega à necessidade e convergência do pensamento entre-tempo e entre-
caminho, é caminhar-entre. É renunciar e abandonar-se à própria sorte, é permitir a vida
gestualizar-se atravessando o possível rumo ao im-possível. É deixar-se enbalar pela morte na
revelação mais profunda da vida como angústia e despedida contínua, que nos ensina a viver
224
intensamente cada momento. É porta entreaberta que oculta-revela meio-treva e meio-luz, não
como complementos, mas tensão paradoxal de seu vir-a-ser. É ausculta profunda do mais puro
silêncio que se revela encobrindo e se encobre revelando, é pro-curar a vida inteira gastando a
pupila na contemplação do nada, o nada inesgotável da criação.
Vida é experienciação mais radical frente à finitude. É gastar-se e, no gastar, acrescentar. É
o caminho de compreensão da verdade mais límpida e líquida. É a rendição mais visceral ao
apelo do inesperado como liberdade para a disponibilidade e possibilidade do impossível. É
destinação entre limite e não-limite, é deixar a poesia desse momento inundar a vida inteira, é
amar o perdido, é aceitar o desafio e desafiar-se o tempo todo. Viver é fazer da vida um caminho
de experienciação da verdade a cada passo, a cada minuto, é entregar-se ao movimento do
caminhar para além do horizonte das verdades cristalizadas até cumprir nosso tempo de cura,
nosso destino... ∞
225
5. Referências Bibliográficas
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