Upload
trantruc
View
213
Download
0
Embed Size (px)
Citation preview
10
UNIVERSIDADE LUTERANA DO BRASIL
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA, PÓS-GRADUAÇÃO E EXTENSÃO
PROGRAMA DE MESTRADO EM DIREITO
PRISCILA FORMIGHERI FELDENS
DISCRIMINAÇÃO RELIGIOSA: A COLISÃO ENTRE OS DIREITOS FUNDAMENTAIS À
LIBERDADE RELIGIOSA E À LIBERDADE DE EXPRESSÃO
CANOAS
2009
PRISCILA FORMIGHERI FELDENS
11
DISCRIMINAÇÃO RELIGIOSA: A COLISÃO ENTRE OS DIREITOS FUNDAMENTAIS À
LIBERDADE RELIGIOSA E À LIBERDADE DE EXPRESSÃO Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Direito da Universidade Luterana do Brasil como requisito para a obtenção do título de Mestre em Direito. Área de concentração: Direitos Fundamentais. Orientador: Dr. Jayme Weingartner Neto.
CANOAS
2008
PRISCILA FORMIGHERI FELDENS
12
DISCRIMINAÇÃO RELIGIOSA: A COLISÃO ENTRE OS DIREITOS FUNDAMENTAIS À
LIBERDADE RELIGIOSA E A LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Direito da Universidade Luterana do Brasil como requisito para a obtenção do título de Mestre em Direito. Área de concentração: Direitos Fundamentais. Aprovada em: 23/04/2009
____________________________________ Dr. Jayme Weingartner Neto
(Ulbra, Presidente e Orientador)
___________________________________ Dra. Sandra Regina Martini Vial (Unisinos, professora convidada)
___________________________________ Dr. Germano André Schwartz (Ulbra)
___________________________________
Dr. Wilson Antônio Steinmentz (Ulbra)
13
Ao meu pai Gilberto que me deu asas para
voar...
14
AGRADECIMENTOS
À Energia Maior do Universo por, hoje,
eu estar aqui.
À minha mãe Liliani, responsável pela
minha educação e minha base de valores éticos.
Aos meus irmãos Patrícia e Joubert, pelo
apoio e companheirismo.
Ao meu orientador Dr. Jayme
Weingartner Neto por ter sido mais que um
orientador, mas um exemplo como ser humano.
Aos meus colegas de Mestrado, pela
amizade e carinho que carregarei pra sempre
comigo.
15
“A ignorância não fica tão distante da verdade
quanto o preconceito.”
(Denis Diderot)
16
RESUMO
A religião é um fenômeno de imensurável importância para a vida dos seres humanos, os quais, embasados na liberdade de expressão, manifestam-na por diferentes formas, inclusive por meio do proselitismo. No entanto, algumas religiões possuem um caráter intolerante, preconceituoso e discriminatório, obstando, muitas vezes, a verificação da liberdade religiosa. A discriminação religiosa é vetada pelo ordenamento jurídico através da tipificação penal de comportamentos intolerantes e pela proteção da liberdade religiosa na atual Constituição Federal. Ademais, o respeito à liberdade religiosa não se limita à esfera normativa, pois ela vem sendo postulada pelos cidadãos por meio de ações judiciais. Diante disso, um princípio de tolerância torna-se necessário para a melhor convivência entre as diversas confissões religiosas existentes. Ainda, diante do conflito entre direitos fundamentais (a liberdade religiosa e à liberdade de expressão), o princípio da proporcionalidade, seguindo o viés de Robert Alexy, mostra-se com uma importante função diretiva para solucionar tal questão.
Palavras-chave: Direitos fundamentais. Direito penal. Discriminação. Liberdade de expressão. Liberdade religiosa. Proporcionalidade.
17
ABSTRACT
Religion is a phenomenon of immeasurable importance to human life, which, based on the freedom of expression, show it through many different ways, even through proselytism. However, some religions have an intolerant, discriminatory and prejudicial character, often preventing the verification of religious freedom. Religious prejudice is vetoed by the legal system through the criminal typification of the intolerant behavior and the protection of the religious freedom in the current Federal Constitution. Furthermore, religious freedom respect is not bounded by the legislative sphere, for it has been postulated by the citizen through lawsuits. Considering that, a principle of tolerance becomes necessary for a better coexistence among the different religious denominations. In addition, considering the conflict between the fundamental rights (for religious freedom and for the freedom of expression), the proportionality principium following the bias of Robert Alexy shows itself as an important policy role to resolve the matter. Keywords: Fundamental rights. Criminal law. Discrimination. Freedom of expression. Religious freedom. Proportionality.
18
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO....................................................................................................................... 10 1. BREVES CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS ACERCA DO DESENVOLVIMENTO DA LIBERDADE RELIGIOSA NO MUNDO......................................................................14 1.1 Análise preliminar dos conceitos e elementos da liberdade religiosa..................................14 1.2 . Da pré-história à Idade Média: a restrição da liberdade religiosa ..................................20 1.3 Estado Moderno: indícios de liberdade religiosa .................................................................26 1.4 Idade contemporânea: a religião frente à modernidade e à secularização............................30 2. A LIBERDADE RELIGIOSA NO BRASIL AO LONGO DE SUAS CONSTITUIÇÕES FEDERAIS..............................................................................................41 2.1. A liberdade religiosa frente à dominação católica no Brasil.............................................. 41 2.2. A liberdade religiosa no Estado brasileiro laico..................................................................47 2.3. O Estado Democrático de Direito e a proteção dos direitos fundamentais.........................52 2.4.O direito fundamental à liberdade religiosa na atual Constituição Federal e sua indissociabilidade à liberdade de expressão...............................................................................61 3. A DISCRIMINAÇÃO RELIGIOSA COMO EMPECILHO À EFETIVAÇÃO DA LIBERDADE RELIGIOSA.....................................................................................................69 3.1. Análise interdisciplinar do preconceito na religião............................................................69 3.2. Formas e limites do preconceito religioso.........................................................................75 3.3. Fundamentos da criminalização da discriminação religiosa...............................................82 3.4. O direito penal efetiva a tutela constitucional?.................................................................. 87 4. DISCRIMINAÇÃO RELIGIOSA: A COLISÃO ENTRE OS DIREITOS FUNDAMENTAIS À LIBERDADE RELIGIOSA E À LIBERDADE DE EXPRESSÃO............................................................................................................................95 4.1. O direito de proselitismo: entre a liberdade de expressão e a liberdade religiosa.............. 95 4.2 O princípio de tolerância como um alternativa inicial à questão.......................................100 4.3 Análise jurisprudencial...................................................................................................... 105 4.4 A colisão entre os direitos fundamentais à liberdade religiosa e à liberdade de expressão...................................................................................................................................113 CONCLUSÃO ........................................................................................................................121 REFERÊNCIAS .....................................................................................................................128
19
INTRODUÇÃO
Com o presente trabalho analisa-se o fenômeno da discriminação religiosa.
Considera-se que o assunto é intensamente delicado, como também polêmico, ao tratar sobre
religião, algo que interfere no íntimo dos seres humanos e está interligado à tradição, a qual
ocasiona a manutenção de muitos preconceitos no processo de compreensão dos homens que
resulta em condutas discriminatórias.
Neste passo, torna-se estimulante estudar uma questão presente na realidade cotidiana
e nem sempre percebida pelas pessoas em suas esferas particulares e na sociedade em geral.
Ademais, os malefícios resultantes da discriminação por motivos religiosos são intensos e
também não são considerados em sua real proporção.
Ainda, quando se tenta resolver tal questão no âmbito jurídico, há um conflito entre os
direitos fundamentais à liberdade religiosa e à liberdade de expressão. Ambos os direitos são
previstos no artigo 5° da Constituição Federal de 1988, respectivamente, em seus incisos VI
e IV, e estão interligados de alguma forma, pois por meio da liberdade de expressão se
realiza o direito de proselitismo das religiões, ou seja, a liberdade de elas se manifestarem a
respeito de outras religiões, com o intento de convencer os crentes de uma a imigrarem para
outras doutrinas. Logo, é justamente através de tais manifestações proselitistas que os
preconceitos são expostos e a discriminação ocorre.
No Brasil, são poucos os julgados e obras jurídicas tratando sobre a colisão entre os
direitos fundamentais à liberdade religiosa e à liberdade de expressão, quando o tema em
manifesto é a religião. Outrossim, a questão não é abordada de forma simples e pacífica.
Considerando que ambos os direitos possuem mesma hierarquia e proteção no atual Estado
Democrático de Direito, é intensa a dificuldade de definir os limites de cada direito de um
20
modo que não prejudique a realização de um ou de outro. Não se pode estabelecer
estaticamente a predominância de um sobre o outro.
Destarte, neste estudo, de modo geral, pretende-se verificar qual é o modo mais
adequado para a resolução de tal problema no sistema jurídico brasileiro. De forma mais
específica, também objetiva-se: abordar a importância da liberdade para o exercício da
religião; examinar o conteúdo do direito fundamental à liberdade religiosa e a dificuldade de
sua realização frente à discriminação religiosa; expor as leis que vedam tal discriminação;
verificar como o direito fundamental à liberdade de expressão é resguardado frente à
restrição de manifestações discriminatórias por motivos religiosos; analisar a eficácia jurídica
de combate a tais manifestações; buscar elementos concretizadores da liberdade religiosa
frente à discriminação; e por fim, analisar o tratamento dispensado pelos tribunais brasileiros
em julgados sobre discriminação religiosa.
Desta forma, quanto ao percurso metodológico, a princípio, o Capítulo 1 apresenta
algumas concepções sobre religião, demonstrando diversidade e relevância, tanto na vida
individual de cada ser humano, como também para a vida em sociedade. Ressalta-se a
importância da liberdade para o exercício religioso.
Assim, faz-se um estudo preliminar dos conceitos e elementos da liberdade religiosa,
ou seja, as liberdades de crença e culto, não olvidando a inter-relação à liberdade de
consciência. Ainda, se expressa um sintético esboço histórico da liberdade religiosa no
mundo, partindo-se, inicialmente, dos primórdios até a idade média, período em que a
liberdade religiosa era proeminentemente limitada e a intolerância predominava com a Igreja
Católica no Ocidente.
Depois, analisa-se, na idade moderna, o enfraquecimento da Igreja Católica e o
surgimento de novos ideários com o Renascimento (século XVI) que impulsionam uma
maior liberdade religiosa. Já acompanhando o surgimento da Idade Contemporânea, estuda-
se a modificação de paradigmas que ocorreram com a Revolução Francesa por meio da
afirmação de princípios como o da laicidade e com a Declaração dos Direitos do Homem e
do Cidadão. Outrossim, analisa-se o processo de secularização e as condições da liberdade
religiosa no mundo com a entrada do século XX, não se deixando de suscitar os conflitos
existentes por motivos religiosos, na atualidade, e os documentos internacionais protetores
dos direitos humanos, inclusive, do direito a liberdade religiosa.
Seguindo essa linha, no Capítulo 2, dispõe-se sobre a história da liberdade religiosa
especificamente no Brasil e suas concepções jurídicas dentro das Constituições Federais já
21
promulgadas. Primeiramente, refere-se à liberdade religiosa até o ano de 1824, no período da
colonização, quando não havia liberdade religiosa e a religião católica era imposta através de
estrangeiros que vieram a expandir e utilizavam o processo de inquisição para tanto.
Também, observa-se a Constituição Federal do Império, de 1824, e a predominância absoluta
da religião Católica Apostólica Romana.
Verifica-se que Constituição Federal de 1891 estipula a separação entre a Igreja e o
Estado e sinaliza, pela primeira vez, a liberdade religiosa. Na mesma esteira seguiram as
Constituições Federais de 1934 e 1946. Em contraste, analisa-se a restrição aos direitos
fundamentais nas Cartas de 1937 e 1967, supostamente em prol da paz, da ordem e da
segurança pública.
Feito isso, destaca-se a promulgação da Constituição Federal de 1988, a qual
explicitou novos valores e direitos a serem assegurados precipuamente no país, dentre eles, a
liberdade religiosa, que com o artigo 5º, inciso VI e outros artigos a protegem. Ainda, refere-
se a interligação que o direito fundamental à liberdade de expressão, também catalogado na
atual Constituição (artigo 5º, inciso IV), tem com a liberdade religiosa, considerando que o
direito de proselitismo é indispensável para o exercício livre da religião.
Na seqüência, o Capítulo 3 expõe um viés interdisciplinar do preconceito religioso.
Além de referir alguns entendimentos sobre preconceito, se verifica qual de suas formas são
prejudiciais à liberdade religiosa. Assim, estudam-se os limites do preconceito para que ele
não dê origem a manifestações discriminatórias por motivos religiosos, prejudicando o atual
Estado Democrático de Direito.
Ao suscitar as modalidades de discriminação religiosa, também se tece os
fundamentos de criminalização. Além da Constituição Federal de 1988 desaprovar
manifestações discriminatórias no Brasil, como pode ser visto em seus artigos 3º, inciso IV, e
5º, inciso XLI, o direito penal também existe como uma tentativa a mais de controle das
condutas discriminatórias e para a proteção da liberdade religiosa. O Código Penal, em seu
artigo 140, § 3º, veda a injúria religiosa e o artigo 20, da lei 7.716/89, criminaliza a
discriminação por motivos religiosos.
Partindo-se da premissa de que o direito penal tutela somente os bens de maior
importância à vida dos seres humanos, aborda-se a relevante função que o ordenamento
jurídico penal tem de proteger os direitos fundamentais. Demonstra-se que a Constituição
Federal abriga os valores mais caros à vida em sociedade (entre eles, a liberdade religiosa),
para que, posteriormente, o direito penal extraia daquela os bens jurídicos que lhe toca
tutelar.
22
Diante desta assertiva, também se indaga a real capacidade do direito penal efetivar a
tutela constitucional. A partir disso, explicam-se alguns princípios constitucionais
(intervenção mínima, necessidade, fragmentariedade, subsidiariedade) que restringem a
atuação estatal através da esfera penal, como também as posições contrárias a uma restrição
muito intensa.
Por derradeiro, com o Capítulo 4, deslinda-se o problema deste trabalho.
Primeiramente, explicitam-se as restrições atribuídas à livre expressão do pensamento por
vieses ético e jurídico. Diante disso, analisa-se a complexidade do direito de proselitismo,
tendo em vista que, ao mesmo tempo em que o respeito às normas jurídicas podem a
propiciar a convivência entre as confissões, acaba se infringindo o direito de cada uma a ser
respeitada em sua identidade e em sua própria possibilidade de buscar seus fiéis. Ainda,
aborda-se a existência de alianças entre alguns Estados e as confissões religiosas dominantes
neles, fator que prejudicam o desenvolvimento de movimentos religiosos minoritários. Logo,
sublinha-se como o Estado pode interferir no exercício proselitista das confissões sem
prejudicar o exercício de algumas delas.
A partir de aportes filosóficos e sociológicos, trabalha-se com o princípio de
tolerância. Por outro lado, no âmbito jurídico estuda-se a discriminação religiosa sob o
prisma constitucional e a solução para o conflito entre os direitos fundamentais à liberdade
religiosa e à liberdade de expressão através do princípio da proporcionalidade, tendo como
marco teórico o pensamento de Robert Alexy.
Finalmente, traz-se a baila dois julgados brasileiros que já debateram, de modo
semelhante, o referido conflito. Suscita-se o Habeas Corpus nº 82.424 advindo do Rio
Grande do Sul e julgado pelo Supremo Tribunal Federal, no qual configurou como paciente
Siegfrieid Ellwanger, acusado de realizar apologia a idéias preconceituosas e discriminatórias
contra a comunidade judaica por meio de obras literárias. Ademais, expõe-se a ação civil
pública, de processo nº 2005. 33.00.022891-3, da 4ª Vara Federal da Seção Judiciária da
Bahia, que têm como réus Edir Macedo, a Igreja Universal do Reino de Deus e a Gráfica
Universal Ltda., responsáveis pela publicação, vendagem e distribuição gratuita da obra
“Orixás, Caboclos e Guias, deuses e demônios?”, que supostamente revela, em seu texto,
intenso preconceito e discriminação às religiões afro-brasileiras.
23
1. BREVES CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS ACERCA DO DESENVOLVIMENTO
DA LIBERDADE RELIGIOSA NO MUNDO
Sabe-se que abordar o assunto religião, na atualidade, não é uma tarefa fácil devido ao
fato de ser um tema complexo, de alta diversidade e peculiaridades. A própria tentativa de
conceituar a palavra religião1 é intensamente arriscada. No entanto, é conveniente conhecer
diversos entendimentos sobre ela, para então compreender a existência ou não de liberdade
em seu desenvolvimento no mundo ao longo da história.
1.1 ANÁLISE PRELIMINAR DOS CONCEITOS E ELEMENTOS DA LIBERDADE
RELIGIOSA
Seguindo o ideário católico, José Scampini define a religião como o primeiro e mais
justo de todos os deveres: o dever sagrado de prestar culto, adorar o onipotente senhor do
universo. Uma lei suprema da criatura inteligente; o seu humilde tributo ao Criador. É o
princípio primordial de toda a justiça, o primeiro fundamento de toda a moral e também a
base de toda virtude social.2
1 Nas línguas latinas temos o vocábulo “religião”. Duvida-se a respeito de sua origem. Lactâncio derivou-o de re-ligare, “religar”, sugerindo o laço entre o homem e a divindade. Com mais probabilidade, porém, Cícero pensa que a origem tenha sido re-legere, o que poderia significar “reler”, ler de novo, aprofundar (significaria então a interiorização, o recolhimento): ou então “reunir, recolher”, conforme sentido original de legere, “colher”. Este é o sentido mais provável. Ainda no latim medieval religio significava antes de tudo a comunidade dos adeptos de uma determinada espiritualidade. Religião seria, portanto, união, reunião, unidade, comunidade. (Religião e Cristianismo: manual de cultura religiosa. Porto Alegre: PUC, Instituto de Teologia e Ciências Religiosas, 1977, p. 18.) 2 SCAMPINI, José. A Liberdade Religiosa nas Constituições Brasileiras. Revista de Informação Legislativa – Senado Federal, Brasília, v. 41, p. 75-126, 1974, p. 83.
24
Na concepção filosófica de Chauí, a religião é um vínculo entre o mundo profano e o
mundo sagrado, isto é, a Natureza (água, fogo, ar animais, plantas, astros, pedras, metais,
terra, humanos) e as divindades que habitam a Natureza ou um lugar separado da Natureza.3
Sociologicamente, Oliveira entende a religião como um fato social universal, sendo
encontrada em toda parte desde os tempos mais remotos.4 Já
[...] para Marx a religião - e aqui tomamos no sentido tradicional - é uma superestrutura, reflexo necessário das condições econômicas e sociais. Caindo a infra-estrutura capitalista, que a gerou, a religião definhará por falta de chão. Freud situa a religião no plano psicológico, como um reflexo da tendência psíquica. Trata-se de nada mais que uma sublimação do libido, sem maior objetivo real.5
De um modo um pouco diverso, há psicólogos que seguem uma linha
multidimensional e transdisciplinar entendendo a religião como “um sistema de
representações organizado em crenças subordinadas a uma crença central de um poder divino
que transcende a experiência humana, a quem os homens prestam devoções divinas através
dos rituais.”6
Na esfera jurídica, a conceituação de religião não é pacífica e nem, muitas vezes,
determinada. Uma parte da doutrina e da jurisprudência em vários países segue um conceito
com linha substancial-objetivo, “com base em referências ao sobrenatural, aS entidades ou
instituições supremas, objectos de culto, símbolos e ritos, valores últimos, problemas últimos
de sentido, visões globais do mundo, etc”. Outro parte da doutrina, porém, adere a um
conceito funcional-subjetivo, o qual, de modo alargado, abarca todas as formas conscientes
de crença que ocupem, na vida das pessoas, um lugar funcionalmente reservado,
tradicionalmente às crenças religiosas do tipo deísta. Por sua vez, uma parcela relevante opta
pelo conceito tipológico e aberto de religião, sem aspirações definitórias, que inclui diversos
elementos objetivos e subjetivos que consideram a vitalidade do fenômeno religioso, ou seja,
não trazem uma restrição ao âmbito de proteção da liberdade religiosa e o imperativo
constitucional da neutralidade estatal. 7
Enfim, surgem várias conceituações sobre religião na medida em que se pesquisa seu
significado. Portanto, isso pode ocasionar uma determinada angústia, pois
3 CHAUÍ, Marilena . Convite à Filosofia. 6 ed .São Paulo: Àtica, 1997, p. 298. 4 OLIVEIRA, Pérsio Santos de. Introdução à Sociologia. 15 ed. São Paulo: Ática, 1995, p. 117. 5 Religião e Cristianismo: manual de cultura religiosa. Porto Alegre: PUC, Instituto de Teologia e Ciências Religiosas, 1977, p. 48. 6 JARDILINO, José Rubens; SANTOS, Gerson Tenório. Ensaios de religião e psicologia. São Paulo: Plêiade, 2001, p. 8. 7 MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva: dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos. Coimbra: Coimbra, 1996, p. 208-20.
25
[...] quem procura, nos grandes dicionários teológicos, uma definição de “religião”, se sente logo desanimado. A definição do conceito e da essência de religião é um problema praticamente insolúvel”, pode-se ler em vários deles. Talvez seja possível, então, definir religião a partir da descrição dos fenômenos que se apresentam sob este rótulo. Não poderá ser, porém, uma descrição puramente exterior. As práticas e crenças que se apresentam como religião são tão diversas que dificilmente se descobriria um denominador comum. Deveremos operar uma descrição do fenômeno como portador revelador de uma significação, de uma intenção interior. Tal descrição chama-se “fenomenológica” e deverá revelar a intenção profunda que determina a significação última (o logos ou razão) do fenômeno religioso.8
Desse modo, percebe-se que a religião é fenômeno íntimo de cada ser humano e
consequentemente relativo. Integra a identidade das pessoas e, assim, pode influenciar
determinantemente o modo de vida das mesmas. Torna-se uma “atitude de abandono, de
entrega e de compromisso do homem orientando-se para a divindade; ou também, em certos
casos, medo e, até Terror ante o transcendente”.9
Além desse aspecto subjetivo, vê-se que, ao longo dos tempos, a religião também
caracteriza a sociedade em que as pessoas vivem. 10
Desde as antigas civilizações, percebe-se o culto ao sobrenatural como algo muito importante, mostrando que o espírito de religiosidade acompanha o homem desde os primórdios. Cada povo tem sua cultura própria, tem o culto ao sobrenatural como motivo de estabilidade social e de obediência às normas sociais. As religiões, as liturgias variam, mas o aspecto religioso é bem evidente. O homem procura algo sobrenatural que lhe transmita paz de espírito e segurança; A religião sempre desempenha função social indispensável. 11
Para que essa função social seja realizada, no entanto, é indispensável que os seres
humanos possuam liberdade para o exercício da religião. Na concepção de Aristóteles, a
liberdade é “a ausência de constrangimentos externos e internos, como uma capacidade que
não encontra obstáculos para se realizar, nem é forçada por coisa alguma para agir. Trata-se
da espontaneidade plena do agente, que dá a si mesmo os motivos e os fins de sua ação, sem
ser constrangido por nada ou por ninguém.” 12
8 Religião e Cristianismo: manual de cultura religiosa, p. 17. 9 Religião e Cristianismo: manual de cultura religiosa, p. 20. 10 Na sociedade brasileira, por exemplo, vê-se que as religiões estão presentes em 90% dos lares, com a interessante percepção de que, nas últimas décadas, o país deixou de ter cara católica e passou a apresentar uma face mais diversa - com católicos, evangélicos, espíritas, judeus, islâmicos, budistas, adeptos de umbanda e candomblé, entre outros. (ROGÉRIO, Cristiane. MUTO, Eliza. Religião se discute, sim!, Revista Crescer, Globo, n. 157, p. 65-7, dez., 2006, p. 66.) 11 OLIVEIRA, Pérsio Santos de. Introdução à Sociologia, p. 117. 12 CHAUÍ, Marilena . Convite à Filosofia, p. 360.
26
Por um viés negativo, a liberdade é vista como a possibilidade de um sujeito agir
sem ser impedido ou de não agir sem ser obrigado por outros sujeitos.13 Logo,
[...] as raízes do conceito são encontradas no “ideal de liberdade de viver como cada um escolheu”, e encontraram seu alimento num esquema pluralista de valores. Já o contrário conceito positivo de liberdade – que parte da vontade que tem o indivíduo de ser o seu próprio mestre- dirigiu a sua procura para uma estrutura social na qual o ser “melhor” ou “mais alto” encontrará sua realização total. Para os que aceitam este conceito positivo, a liberdade tende a se tornar algo mais que uma simples imunidade. “Liberdade é obediência.” “Forçar os seres empíricos na justa medida não é tirania, mas libertação.14
Nesse viés, coaduna o pensamento de Kant, o qual defende que a liberdade não é
absoluta, nem desprovida de lei, mas sim, subordinada a autoridade estatal. Destarte,
interliga-se a uma vontade impessoal e de um poder legiferante que pertencem ao Estado.15
Em conformidade, importante aduzir que à realização da liberdade de religião está
interligada a liberdade de consciência na medida em que aquela é um corolário dessa16 e
tutela juridicamente qualquer opção que indivíduo tome em matéria religiosa, mesmo a
rejeição, considerando-se a crença como apenas uma das alternativas possíveis ao sujeito.17
Nesse diapasão, Jorge Miranda destaca a amplitude da liberdade de consciência ao
integrar tanto a liberdade de ter como a de não ter uma religião através de uma decisão de
foro íntimo. Quanto à liberdade de religião, ele a resume ao direito de crer, escolher e mudar
de religião, aquela, levando mais em conta uma dimensão social e institucional.18
Outrossim, é inegável que a liberdade religiosa é indissociável a liberdade de
consciência, fato que, como Silva Neto clarifica, assume desdobramentos de ordem positiva e
negativa. Por um viés positivo, a liberdade de consciência acarreta o direito a crer naquilo
que melhor atenda às necessidades espirituais do ser humano, mesmo que não seja uma
divindade, como um corpo celeste, um animal etc. Em contraponto, por uma face negativa,
13 BOBBIO, Norberto. Igualdade e Liberdade. 5 ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002, p. 48. 14 FRIEDRICH, Carl. Liberdade. V. II. Rio de Janeiro: Cruzeiro, 1967, pp. 235-6. 15 KANT, Immanuel. Fundamentação Metafísica dos costumes. In: KANT, Immanuel. Crítica da razão pura e outros textos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 243. 16 Indispensável referir que esse entendimento não é pacífico e existe uma variação na determinação das categorias quanto às liberdades religiosas e comunicativas. Exemplificando, Pontes de Miranda considera que a liberdade de religião é especialidade da liberdade de pensamento, pois que a vê somente no que concerne a religião. (MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967. Tomo IV. São Paulo: RT, 1967, p. 109.) 17 WEINGARTNER NETO, Jayme. Liberdade religiosa na Constituição: fundamentalismo, pluralismo, crenças, cultos. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2007, p. 79. 18 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Tomo IV. Coimbra: Coimbra editora, 2000, p. 416.
27
“significa simplesmente o direito que tem o indivíduo de não acreditar em rigorosamente
nada em termos de divindade, ser superior, vida após a morte, etc.”19
Outrossim, é indispensável destacar que a liberdade de consciência também não é
sinônimo das liberdades de pensamento (é uma matiz dessa) e de expressão, as quais
resultam, respectivamente, no direito de adotar e manter uma posição intelectual ideológica
ou religiosa diante da vida (dimensão interna) e de manifestá-la e agir conforme ela
(dimensão externa).20 Tais liberdades se legitimam na busca da “compreensão e do
conhecimento, no livre mercado das idéias (Mill), na auto-expressão individual, no
autogoverno democrático, na transformação pacífica da sociedade e na proteção da
diversidade de opiniões (a biodiversidade ao sistema social)”.21
Denota-se, assim, que a liberdade de consciência está intimamente relacionada a
liberdade de pensamento e expressão. Aliás, essa última é importantíssima para a realização
das outras, pois
[...] o homem não se contenta com o mero fato de poder ter as opiniões que quiser, vale dizer: ele necessita antes de mais nada saber que não será apenado em função de suas crenças e opiniões. É de sua natureza, no entanto, o ir mais longe: o procurar convencer os outros; fazer o proselitismo. Ele é escravo de um certo princípio de coerência. Se crê em certas idéias é levado a desejar o seu implemento, a conformar o mundo segundo sua visão, necessitando destarte de liberdade para exprimir suas crenças e opiniões. A liberdade de pensamento nessa seara já necessita de proteção jurídica. Não se trata mais de possuir convicções intimas, o que se pode ser atingido independentemente do direito. Agora não. Para que possa exercitar a liberdade de expressão do seu pensamento, o homem, como visto, depende do direito. É preciso, pois que a ordem jurídica lhe assegure essa prerrogativa, mais ainda, lhe assegure os meios para que viabilize esta transmissão.22
Diante de todo esse contexto a respeito das liberdades dos cidadãos, a liberdade
religiosa (viés da liberdade de pensamento e expressão) também firma sua importância.
A liberdade religiosa consiste na livre escolha pelo indivíduo da sua religião. No entanto, ela não se esgota nesta fé ou crença. Ela demanda uma prática religiosa ou culto com um dos seus elementos fundamentais do que resulta também inclusa, na liberdade religiosa, a possibilidade de organização destes mesmos cultos, [...]23
19 SILVA NETO, Manoel Jorge. Proteção Constitucional à Liberdade Religiosa. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008, pp. 28-30. 20 DÍAZ REVORIO, F. Javier. "La libertad de ideología y religión", en Parlamento y Constitución, nº 1, 1997, p. 203-240, p. 204. 21 WEINGARTNER NETO. Honra, Privacidade e Liberdade de Imprensa: uma pauta justificação penal. Porto Alegre: livraria do advogado, 2002, p. 79. 22 BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 40. 23 BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil, p. 48.
28
Logo, deve-se reparar que apesar da vida espiritual ocorrer no foro íntimo de cada
pessoa, ela não se desenvolve em compartimentos estanques. Não se pode negar que sobre a
espiritualidade e o pensamento individual, interferem fatores sociais, econômicos, históricos
e culturais24 que podem facilitar ou dificultar a liberdade religiosa. Ademais, não se pode
desconsiderar que agregada à liberdade religiosa estão a liberdade de crença e a liberdade de
culto, importantes para sua realização completa.
Conforme o dicionário de língua portuguesa a palavra crença denomina-se fé
religiosa, convicção íntima, o ato de crer, o que significa acreditar ou ter por certo e
verdadeiro algo.25 A liberdade de crença é a liberdade de escolha da religião, a liberdade de
aderir a qualquer religião, a liberdade e direito de mudar de religião26, tudo isso limitado por
até onde possa prejudicar a liberdade dos outros.27
Mais detalhadamente, Ribeiro explica que
[...] a liberdade de crença, tem como marca nítida o seu caráter interior. Vai da liberdade primeira do homem de poder orientar a sua fé, sua perspectiva em relação ao mundo e à vida, a sua possibilidade de eleição dos valores que reputa essenciais, sendo, pois, inalienáveis por natureza, mesmo quando proibida legalmente, visto que a repressão ao direito e à tirania não podem chegar ao ponto de cercear a fé que reside no interior do indivíduo, alcançando, no máximo, a sua manifestação exterior.28
Por sua vez, importante salientar que a conquista da “liberdade de culto foi
tradicionalmente a maneira como se reconheceu a ‘liberdade religiosa’. O objeto central da
liberdade de culto é a proteção do fenômeno do rito, o qual é um dos elementos mais
característicos e chamativos do fenômeno religioso.” 29
No entanto, o entendimento sobre culto não se resume a ritos, mas deve ser visto
como uma atitude subjetiva e espiritual de todos os seres humanos. 30 Outrossim, pode ser
compreendido sobre duas faces: “O culto interno, ou seja a fé, o amor, a adoração espiritual,
é uma relação imediata do homem para com Deus; é um ato privativo de sua consciência.
24 BASTOS, Celso Ribeiro .Comentários à Constituição do Brasil, p. 48. 25 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. 6 ed. Dicionário Aurélio. Curitiba: Posigraf, 2004, p. 275. 26 “Uma pesquisa do Ministério da Saúde, realizada em 1998, revelou que 26% dos brasileiros haviam mudado de religiões e dados - tanto os estatísticos como aqueles que surgem nas conversas que temos por aí - mostram que as pessoas se permitem freqüentar outras práticas mesmo assumindo apenas uma crença. Estamos experimentando mais.” (ROGÉRIO, Cristiane. MUTO, Eliza. Religião se discute, sim!. Revista Crescer, p. 65.) 27 SILVA, José Afonso da. Comentário contextual a Constituição. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 93. 28 RIBEIRO, Milton. Liberdade Religiosa: uma proposta para debate. São Paulo: Mackenzie, 2002, p. 35. 29 HUACO. Marco. A laicidade como princípio constitucional do Estado de Direito. In: LOREA, Roberto Arriada; ORO, Ari Pedro (orgs.). Em defesa das liberdades laicas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 75. 30 WEINGARTNER NETO, Jayme. Liberdade religiosa na Constituição: fundamentalismo, pluralismo, crenças, cultos, p. 121.
29
Esta liberdade é um dos direitos dos mais invioláveis da humanidade ao qual nenhum poder
políticos tem acesso.” 31 Já o culto externo procede quando o indivíduo manifesta-se
publicamente seu pensamentos, sua crença pelo ensino e prédica, pelas cerimônias, ritos ou
preces em comum. Não se trata mais somente da liberdade de consciência, e sim de liberdade
de culto. 32
Nesse passo, a liberdade de culto é a possibilidade da exteriorização e a demonstração
plena dessa capacidade interior religiosa. 33 De acordo com Pontes de Miranda, nela se
compreende a liberdade “de orar e de praticar atos próprios das manifestações exteriores em
casa ou em público, bem como a de recebimento de contribuições para isso”. 34
Assim, constata-se que a liberdade de culto é de alta relevância para o exercício da
liberdade religiosa, pois essa
[...] não pode, como de resto acontece com as demais liberdades de pensamento, contentar-se com a sua dimensão espiritual, isto é: enquanto realidade ínsita à alma do indivíduo. Ela vai procurar necessariamente uma externação, que, diga-se de passagem, demanda um aparato, um ritual, uma solenidade mesmo, que a manifestação do pensamento não requer necessariamente.[...] A liberdade de culto, o que significa dizer que pode ser exercida em princípio em qualquer lugar e não necessariamente nos templos [...]35
Entretanto, não se pode olvidar que tanto a liberdade de culto, como a liberdade de
crença nem sempre foram entendidas dessa maneira e isso teve forte implicância na
inefetivação da liberdade religiosa como um todo ao longo dos séculos. Na realidade, a
religião sempre foi um tema de intenso debate durante a evolução da humanidade, com
interferência direta nos acontecimentos históricos. Logo, torna-se imprescindível a análise
de tais acontecimentos para uma melhor compreensão sobre a liberdade religiosa.
1.2 DA PRÉ-HISTÓRIA À IDADE MÉDIA: A RESTRIÇÃO DA LIBERDADE
RELIGIOSA
31 SCAMPINI, José. A Liberdade Religiosa nas Constituições Brasileiras. Revista de Informação Legislativa. v. 41, p. 83. 32 SCAMPINI, José. A Liberdade Religiosa nas Constituições Brasileiras. Revista de Informação Legislativa. v. 41, p. 83. 33 RIBEIRO, Milton. . Liberdade Religiosa: uma proposta para debate, p. 38. 34 MIRANDA, Pontes de. Apud. DA SILVA, Afonso. Comentário contextual a Constituição, p. 93. 35 BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil, pp. 50-1.
30
A partir de uma análise histórica, depreende-se, inicialmente, que, nos primórdios,
os homens viviam em círculos pequenos nos quais predominava uma uniformidade em vários
aspectos. Destarte, não havia oposições entre a ordem religiosa e a temporal. 36
Além disso, tanto nessa época como em todo o período pré-cristão, predominou o
monismo, ou seja, uma “identificação entre o poder político e a religião, entre a comunidade
política e a comunidade religiosa”, que interferiu em parte da civilização ocidental, no
sistema faraônico e em impérios como o pré-colombiano, o Persa e o Romano.37
Nessa mesma linha,
[...] a comunidade política judaica assentava numa concepção de matriz teocrática que não deixava margem para uma clara distinção entre finalidades políticas e religiosas. De entre os postulados que lhe serviam de base destacam-se a idéia de que a personalidade humana foi criada à imagem e semelhança de Deus, de que o ser humano caiu em pecado e de que a sociedade deve organizar-se de acordo com as leis divinas no sentido de evitar a animosidade entre os indivíduos e de possibilitar seu aperfeiçoamento moral. [...] Na teocracia hebraica não havia qualquer espaço para a liberdade de consciência individual. A coerção e a perseguição por motivos religiosos eram regras.38
Semelhantemente, na fase de Homero na Grécia antiga, através da mitologia poética,
o Rei exercia uma função pessoal e espiritual integradora da vida social. Assim, permanecia
[...] intacto o relevo público da religião, enquanto assunto da polis globalmente considerada, expresso quer no discurso argumentativo em torno dos assuntos públicos, quer nas formas e ritos do processo do governo. Não existindo um conceito jurídico ou mesmo filosófico da liberdade de consciência, o único problema que se colocava era da conformidade do indivíduo em relação à colectividade.39
Nessa mesma esteira, nas civitas romanas as funções políticas e religiosas também se
apresentavam fortemente imbricadas, e essa confusão não era questionada. Entretanto, como
não havia proselitismo e o politeísmo romano era inclusivo e não dogmático, não se dava
margens para conflitos da consciência individual. 40
36 ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado. Coimbra: Almedina, 2002, p. 31. 37 ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado, pp. 31-2. 38 MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva: dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos, p. 15. 39 MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva: dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos, pp. 15-6. 40 MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva: dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos, p. 16-7.
31
Outrossim, foi na República Romana, posteriormente, que surgiu o cristianismo e o
seu pensamento próprio, difundindo-se a idéia da autonomia da pessoa em relação ao mundo
e ao Estado, mas ligada a Deus.41
A existência de um Deus transcendente fundamenta assim, solidamente, a subtracção da ordem religiosa ao império do chefe político e constitui por isso um pressuposto essencial para a afirmação, inédita na história humana, da liberdade religiosa. A noção da liberdade religiosa como espaço de autonomia das pessoas e das comunidades religiosas em relação ao Estado e na sociedade tem fundamento na mais autêntica tradição cristã. A liberdade religiosa é pois uma novidade cristã.42
Tal liberdade entende-se a partir do momento em que os cristãos assumem a
responsabilidade de seus atos. Para eles, Jesus morreu na cruz com a intenção de que o
homem pecador pudesse ser salvo como se fosse totalmente justo. Sendo a salvação uma
doação, colocada na dependência da aceitação individual de cada pessoa, essas passam a ter a
liberdade de responder positiva ou negativamente àquela. 43 Nessa esteira, “a crença traduzir-
se-á numa transformação espiritual, operada nos domínios da consciência, cabendo
exclusivamente ao crente, na dependência do Espírito Santo, proceder à articulação com sua
conduta.” 44
Cabe referir que, com base em tais pensamentos e devido a feroz perseguição
religiosa que os cristãos sofriam pelo Império Romano, a expressão "liberdade religiosa" foi
utilizada pela primeira vez, através de Tertuliano, um advogado convertido ao cristianismo,
em sua obra “Apologia” (197 d.C.). Apesar de tal texto ter sido ignorado por muitos e visto
por outros como uma excentricidade, mesmo assim foi endereçado aos governantes romanos
a fim de expor a eles as injustiças e violências praticadas contra os cristãos.45
Nesse ambiente, várias idéias passaram a ser mobilizadas no tocante as relações entre
religião e o poder político.
A articulação da mensagem da salvação com palavras de Cristo como o meu reino não é deste mundo e daí a César o que é de César e a Deus o que é de Deus, aponta para um Jesus que parece mais interessado na transformação espiritual das mentes e dos corações dos indivíduos do que no seu controlo coercivo a partir da instrumentalização das estruturas de poder. Para além desta idéia geral, ainda como procurando compatibilizar os ideais divinos com as realidades do mundo pecador. È que, na Igreja
41 ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado, p. 33. 42 ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado, p. 33. 43 MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva: dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos, p. 18. 44 MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva: dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos, p. 19. 45 SORIANO, Aldir Guedes. O Direito à Liberdade Religiosa. Correio Braziliense, Caderno Direito & Justiça, Brasília, p. 2, novembro, 2004.
32
tem uma natureza e uma função específica, de índole espiritual, distinta do poder político, encontrando-se em relação a este uma distância escatológica, a verdade é que ela realiza a sua missão no mundo, sendo necessários princípios que a orientem na sua relação com os poderes estabelecidos. 46
Essa concepção abordada pelo cristianismo traz à baila o denominado dualismo,47 ou
seja, a clarificação da distinção existente entre as comunidades políticas e religiosas.
Percebe-se
[...] dois corpos distintos. Os dois reinos do sacerdotium (“Igreja”) e regnum (“Estado”) começaram a surgir. A partir de então, houve dois centros de autoridade na sociedade e nenhum deles poderia reduzir ao outro. Não se tratava de uma separação entre religião e política. Ambos os centros de autoridade eram considerados religiosos, ou seja, instituições divinas, mas pensava-se que tinham papéis bem diferentes perante Deus.48
Nesse diapasão, Constantino outorgou, no ano de 313 d. C. , em Milão, um relevante
documento: o Édito de tolerância.49 A partir disso, e com emanação do Édito de Licínio, o
princípio da liberdade religiosa consagrou-se tanto no Oriente como no Ocidente, nas duas
dimensões, de crença (sequindi religionem quam quisque vult) e de culto (colendi religionem
46 MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva: dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos, p. 19. 47 Fundamentando esse entendimento, o pensador Minnerath faz referência a quatro princípios do Novo Testamento que se apresentam nesse sentido:
1. “A fé é uma adesão a consciência que deve decidir-se livremente (...) (cf. Mc.1, 17; Mt. 19, 21-22). A fé não pode ser imposta a força”.
2. “Cristo estabeleceu a distinção entre “o que é de César e o que é de Deus” (Mt. 22,21; Jô. 18,36). (...) Além do mais, a autoridade do estado também vem de Deus (cf. Jô. 19, 11; Ro. 13,1); portanto, ele não dispõe de poder absoluto no seu próprio domínio temporal mas continua vinculado pelas prescrições de ordem natural. Se ele violar estes limites, os crentes sabem que eles devem obedecer antes a Deus do que aos homens (Act. 5, 29).”
3. “O Evangelho separou a fé religiosa da pertença a uma nação particular” (...) (cf. Jô. 4, 23; Ga. 3, 28; Ef. 2, 13-16).
4. “A comunidade religiosa, a Igreja, é livre de se organizar segundo os seus próprios critérios (...) (cf. Mt. 18, 17; 1 Cor. 5, 5.13)” como o confirmam os exemplos da decisão de sanções no âmbito eclesial, independentemente do âmbito do poder político”. (Apud: ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado, pp. 33-4.)
48 MARSHALL, Paul. Perseguição religiosa no mundo. In: Liberdade religiosa em questão. Cadernos Adenaur, Rio de Janeiro, Fundação Konrad Adenaur, v. 5, n. 4, p. 1- 135, 2004, p. 21. 49 “Minnerath sistematiza sugestivamente o conteúdo do Édito de Milão nos seguintes pontos: -“A todos os cidadãos” o Império garante a possibilidade de observar a religião da sua própria escolha. O Estado relaciona-se com os cidadãos, não com crentes. A sua função é garantir-lhes a liberdade de religião no âmbito da vida social e civil. -O Império proíbe-se de limitar o exercício de qualquer culto. Não deve impor constrições. Causas de inquietude e de moléstia. -Qualquer cidadão tem a livre potestas de seguir a religião que quiser. A liberdade religiosa radica-se na livre determinação da pessoa. É tarefa da libera voluntas. - Como nos outros cultos, os cristãos são reconhecidos como “comunidade”, “corpus christianorum”, corporação que possui entre outras coisas, locais de culto.” Apud: ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado. p. 37.
33
suam). Nesse andar, o Cristianismo passou a ser considerado religio licita e, posteriormente
(380 d.C.), Teodósio proclama-o religio ufficiale50.
Contudo, os reescritos não bastaram para que os ainda seguidores do monismo
romano se sentissem derrotados e a intolerância religiosa flagrante retornou ainda no reinado
de Constantino, com a perseguição oficial dos cristãos hereges. “Hereges”, no pensamento de
Silva Neto, corresponde aos seguidores de doutrinas fortemente opositoras aos dogmas da
Igreja Católica.51
Etimologicamente, a palavra herege provém do grego hairesis e do latim haeresis, significando, em senso estrito, “escolha”, “opção” [...]. Desde o primeiro congresso de Heresiologia realizado na França em 1962, aceitou-se a definição do teólogo medievalista M. D. Chene. Na sua definição, herege é “o que escolheu”, o que optou por uma crença, além de se obstinar em seguí-la e defendê-la. A heresia representaria a contestação à ordem espiritual de uma religião dominante e, portanto, uma ameaça para essa, que pode ser — como foi em muitas ocasiões — endêmica. Por conta disso, seria muito combatida e encarada como uma representação patológica e maligna. 52
Logicamente, não seria simples para a Igreja Católica perder seu poderio absoluto e
aceitar as novas tendências de pensamento. Diante disso, a figura do herege serviu como
representação da figura desses inimigos que a assombravam e ameaçavam seu controle total.
Logo, para tentar contê-los, criou-se uma legislação persecutória no Codex de Justiniano
(527-565), que com 12 títulos consagrou a religião católica e proibiu outras religiões. 53
Destarte, Ciárruz aponta à Igreja e ao Estado a culpa pela intolerância religiosa. Para
os Estados, a unidade religiosa era uma necessidade política; para a Igreja, a adesão a
“verdade” era um dado inquestionável, tendo em vista que qualquer outra idéia constituía
um erro e a fonte de desordem que afetava gravemente a coesão social. Assim, a teologia era
o centro e origem de todos os saberes e a “heresia” representava a absoluta subversão de
todos os valores culturais, artísticos, éticos.54
Nessa esteira, fortalecendo a intolerância, na Idade Média, defendeu-se a liberdade
eclesiástica, ou seja, as “prerrogativas da Igreja Católica derivadas da sua pretensão teológica
50 MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva: dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos, p. 21. 51 SILVA NETO, Manoel Jorge. Proteção Constitucional à Liberdade Religiosa, p. 35. 52 ASSIS, Ângelo Adriano Faria de; SANTOS, José Henrique dos; RAMOS, Frank dos Santos. A figura do herege nas ordenações Manuelinas e nas ordenações Filipinas. Revista Justiça e História. v. 4. n. 7. Disponível em: http:// www.tjrs.jus.br./institu/memória/revistaJH/índice_revistas.php. Acessado em : 08 de ago. de.2008. 53 ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado, p. 37. 54 CIÁURRIZ, Maria José. El derecho de proselitismo en el marco de la libertad religiosa. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2001, p. 42.
34
exclusiva de corporizar a verdade objectiva.” 55 Ademais, filósofos como Santo Agostinho e
São Tomás de Aquino reforçaram essa concepção de liberdade.
Conforme Agostinho, os hereges eram considerados moral e racionalmente
incompetentes, indignos de respeito, devendo ser integrados na igreja mediante o uso de
força. Tal idéia transparece a noção de igreja “como corporização da verdade absoluta que
acaba por traduzir-se na aferição da consciência de acordo com uma medida objectiva, válida
para as questões morais e éticas, materialmente identificada com a interpretação centralizada
e autoritativa da palavra de Deus.” 56
Já na concepção de Tomás de Aquino, os indivíduos, partes autônomas da sociedade,
podiam, em última instância, ser sacrificados em prol dos interesses superiores da
comunidade. Logo,
[...] a verdadeira liberdade significa de toda a irracionalidade e de todo o erro. Para ele, o problema da liberdade de consciência verdadeiramente não se coloca, porque os dois termos correspondem a duas designações de uma mesma realidade: o conhecimento que advém da crença em Deus. Trata-se, pois, aqui, não de uma liberdade de religião, em sentido jurídico, mas de uma liberdade na religião, em sentido teológico. Nessa linha de pensamento, uma comunidade política será verdadeiramente livre se nela não existir nenhum impedimento à fé e ao conhecimento de Deus. 57
Além da difusão de tais pensamentos, a situação dos não seguidores do catolicismo
tenderia a se agravar ainda mais. Muito tempo depois, em 1231, a perseguição dos religiosos
não-cristãos teve seu apogeu com a criação dos tribunais de inquisição pelo Papa Gregório
IX, cuja missão era descobrir e julgar os heréticos. 58
Quem pensasse e raciocinasse, procurando uma escolha diferente ou solução alternativa seria considerado herético ou então acusado da prática de outro crime religioso como o de apostasia (repúdio da fé cristã), cisma (deixar de sujeitar-se ao Papa ou à comunidade cristã), perjúrio (juramento que sabe ser falso), blasfêmia ( palavra ou gesto que represente injúria ou ofensa a Deus ou aos Santos), simonia (compra ou venda de bens espirituais), bruxaria etc. Mas não há nada como o fato de ser acusado de heresia.59
“Os condenados pelo tribunal eram entregues às autoridades do Estado, que se
encarregavam de execução das sentenças. As penas aplicadas iam desde a confiscação de
55 MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva: dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos, p. 30. 56 MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva: dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos, p. 31. 57 MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva: dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos, pp. 32-3. 58 COTRIM, Gilberto. História Global: Brasil e Geral. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 110. 59 BACILA, Carlos Roberto. Estigmas: Um estudo sobre os preconceitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 82.
35
bens até a morte em fogueiras.”60 Logo, o Estado atuava ativamente para a manutenção de
uma única doutrina cristã: a Católica.
Outrossim, pode-se dizer que a intolerância dogmática, do plano teológico, foi
também complementada, no plano jurídico, pela intolerância formal, com a utilização dos
instrumentos públicos de coação e cristianização estrutural que impedia a individualidade e
interioridade da consciência. 61 “Assim, se compreende do lado do termo traidor, em sentido
político, que o império adopte todo um novo vocabulário de estigmatização e exclusão que
inclui, entre outros, labéus, as designações de heréticos, sismáticos, apóstata, pagão, gentio e
idólatra.” 62
Em consonância, estão as colocações de John Rawls ao sustentar que a inquisição não
foi um acidente, mas sim um elemento estrutural do arranjo teológico-político dominantes. O
“fato de opressão”, assim denominado por ele, é justificado pela necessidade que uma única
doutrina religiosa, filosófica ou moral abrangente tinha de se manter. 63
Nesse sentido, é possível perceber que, apesar do ideário dualista ter surgido com o
Cristianismo, esse
[...] dominou toda idade Média, não apenas como religião, mas também como política, e não fez mais que substituir o culto pagão, politeísta, pelo cristão, monoteísta. Se na antiguidade os direitos políticos eram assegurados àqueles que adoravam os deuses tutelares das respectivas cidades, estes na Idade Média constituíam privilégios dos cristãos; aos pagãos aos bárbaros, só se garantiam, quando muito, os direitos civis. O Santo Império Romano-Germano, cujas bases Carlos Magno assentou no século IX e que Ótão, o Grande, consolidou no século X, é uma prova incontestável de quanto influía a religião na política. Os papas nomeavam e demitiam imperadores, erguiam e derrubavam impérios. Dominando apenas uma religião no mundo ocidental, a católica apostólica, não havia como cogitar em “Liberdade Religiosa”. 64
1.3 ESTADO MODERNO: INDÍCIOS DA LIBERDADE RELIGIOSA
Posteriormente, no século XV, denota-se que a Igreja Católica começou a ter seu
poderio enfraquecido. O Renascimento e os novos ideais do humanismo cristão 60 COTRIM, Gilberto. História Global: Brasil e Geral, p. 110. 61 MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva: dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos, p. 23. 62 MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva: dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos, p. 23. 63 RAWLS, Jonh. O liberalismo político. 2ed. (trad. Dinah de Abreu Azevedo). São Paulo: Ática, 2000, p. 81. 64 SCAMPINI, José. A Liberdade Religiosa nas Constituições Brasileiras. Revista de Informação Legislativa. v. 41, pp.76-7.
36
impulsionaram a valorização do homem, através do rompimento com as velhas autoridades e
incentivo à autonomia para se enxergar o mundo.65 Nesse ambiente, o catolicismo viveu uma
grande crise, que culminou no Grande Cisma do Ocidente e na governança de dois papas, um
em Roma e outro em Avinhão, fato que gerou insegurança e desorientação nos membros da
cristandade.66
Além disso, uma série de questões propriamente religiosas colocavam a Igreja como alvo de crítica da sociedade: a corrupção do alto clero, a ignorância religiosa dos padres comuns e os novos estudos teológicos. As graves críticas contra a Igreja já não permitiam apenas consertar internamente a casa. As insatisfações acumularam-se de tal maneira um movimento de ruptura na unidade cristã: a Reforma Protestante. 67
Esse nome originou-se do protesto feito por príncipes alemãs, em 1529, reivindicando
que cada Estado adotasse sua própria religião. Tal reivindicação teve base nos novos
pensamentos que surgiram naquele período, como o do alemão Martinho Lutero que, em
conflito com a Igreja católica, foi excomungado. Escandalizado com as salvações vendidas
pela igreja católica, “Lutero afixou na porta da igreja de Wittenberg um manifesto público -
as famosas 95 teses - protestando contra a atitude do papa e expondo alguns elementos de sua
doutrina religiosa”.68
A partir disso, a religião luterana originou-se e difundiu-se intensamente na
Alemanha. De mesma forma, outras religiões, com novos líderes, também foram criadas se
expandiram pela Europa, onde se iniciou um novo período de intensa perseguição e
intolerância que resultaram em muitas guerras religiosas.
Mais detalhadamente,
[...] o movimento promovido por homens como LUTERO (1483-1546), ZWINGLIO (1484-1531) e CALVINO (1509-1564), apesar de não apresentar um pensamento unitário, revela certas atitudes dogmáticas básicas, opostas ao catolicismo, que dão alguma unidade à teologia protestante. As teses protestantes vêem a sagrada Escritura, tendo por meio de interpretação o livre exame individual, como única fonte de conhecimento da fé. Preconizam assim uma visão interior e subjectiva da Igreja que se demarca claramente da visão católica, caracterizada pela unidade da fé, do culto (sacramentos) e de hierarquia, tendo o Papa por cabeça. A rejeição progressiva da doutrina dos sacramentos levou os protestantes a uma perda do sentido da hierarquia, que tem origem no sacramento da Ordem e está destinada à administração dos sacramentos.
65 GARDER, Jostein; HELLERN, Victor; NOTAKER, Henry. O livro das religiões. (trad. Isa Mara Lando) São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 232. 66 COTRIM, Gilberto. História Global: Brasil e Geral, p. 117. 67 COTRIM, Gilberto. História Global: Brasil e Geral, p. 159. 68 COTRIM, Gilberto. História Global: Brasil e Geral, p. 160.
37
Portanto, pode-se considerar a rejeição de uma Igreja jurídica e hierárquica com uma concepção comum aos protestantes, apesar de diferentes correntes.69
Nesse andar, ao mesmo tempo em que o protestantismo foi responsável por diversas
guerras, também colaborou para a expansão de novos pensamentos acerca da religião e,
indubitavelmente, de algum modo, para a liberdade nesse âmbito. Não se pode negar que
[...] a Reforma Protestante constitui um marco fundamental na história do pensamento e da instituições políticas do mundo ocidental. Ela vai comprometer decisivamente as aspirações de unidade teológica- política da Cristandade, colocando sob forte pressão o conceito da libertas ecclesiae, com a sua dupla face de privilégio e exclusão. O pluralismo religioso emergente obriga à discussão e resolução do problema da tolerância. 70
Outrossim, como Weingartner Neto acrescenta, os movimentos protestantes
relacionaram-se com o advento do Estado Moderno, o qual foi soberano como solução
política para os conflitos religiosos. Para o autor, esse processo passa pela questão da
tolerância religiosa e da igualdade entre as confissões, questiona a justificação do poder
político, e abre o discurso jurídico para postulados contratualistas e jusnaturalistas, a par da
liberdade individual. Ainda, o constitucionalismo liberal e revolucionário, funda raízes no
paradigma secular e racional, o que colaborou fortemente a proclamação da liberdade
religiosa. 71
Em contraponto, importante reparar que apesar da ampla colaboração que a Reforma
realizou para introduzir a paridade entre confissões religiosas, ela não contribuiu
imediatamente para a formalização da liberdade religiosa. 72 Ocorre que,
[...] embora, se acentuem os aspectos pessoais e interiores da religião, nem por isso se proclama um direito a liberdade religiosa e um princípio de separação das confissões religiosas do Estado. Pelo contrário, Lutero, Zwinglio e Calvino estavam de acordo num ponto: a espada secular deveria suprimir os dissidentes.[...] Na opinião de Ruffini, isso deve-se fundamentalmente, à imaturidade do tempo, às paixões exacerbadas do momento e à cultura católica dos reformadores. 73
Além disso, com o advento do Estado Moderno, os governos absolutistas que
predominavam nesse período (do séc. XVI ao XVIII) juntamente com a Igreja, intervinham
incisamente na vida das pessoas, não permitindo a liberdade de religião ou convicção
69 ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado, p. 50. 70 MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva: dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos, pp. 53-4. 71 WEINGARTNER, Jayme. Liberdade religiosa na Constituição: fundamentalismo, pluralismo, crenças, cultos, p. 31. 72 ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado, p. 58. 73 MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva: dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos, pp. 58-9.
38
filosófica, 74 pois se consideravam teologicamente legitimados ao serviço de um ideal
escatológico e soteriológico autoritariamente. 75
No domínio teorético-político caberá a autores como Nicolau Maquiavel, Jean Bodin e Thomas Hobbes, respectivamente nas obras O Príncipe, Six Livres de la Republique e Leviathan, lançar as bases para a consolidação do Estado moderno que iria perdurar até aos nossos dias. É nesta altura que as expressões Estado e soberania começam a ser utilizadas num sentido muito próximo do actual, ao mesmo tempo que o poder político procura a sua fonte de legitimidade num plano imanente, de direito natural.76
Com os ares do iluminismo, o absolutismo se manteve ainda por algum tempo,
justificando seu poder político por duas formas. A primeira, com base na concepção
hobbesiana, estabelecia que, diante do pacto existente entre os indivíduos de uma sociedade,
ao monarca cabe garantir a paz, a segurança e a tranqüilidade de seus súditos. A segunda
tinha seus alicerces na autocompreensão do Príncipe como responsável perante Deus, como
fundamento último de sua autoridade, num entendimento ainda marcado por claras
ressonâncias religioso-patriarcais.77
Nesse passo, [...] durante a maior parte dos séculos que seguiram à Reforma, a liberdade religiosa em geral, quando aceita foi tomada na acepção de liberdade de crença, o que representava uma verdade, uma espécie de manutenção de discriminações sob forma camuflada. A partir do momento em que os Estados pressupunham a garantia fundamental dos direitos do indivíduo, dando a este liberdade de crença, mas impedindo sua manifestação exterior - por meio do culto ou de outras formas ou de outras formas de expressão -, estavam, na prática, promovendo a manutenção das antigas diferenciações por razão religiosa - que tanto repugnaram o mundo moderno -, apenas, porém, sob nova roupagem. 78
Ocorre que, com o desenvolvimento do capitalismo, a partir do século XVII, algumas
mudanças procederam-se. Com a ascensão da burguesia, aumentaram-se as críticas quanto ao
antigo regime e os ideais iluministas se destacaram.
“A palavra Iluminismo originou-se de luz, referindo-se à razão, que consegue tudo
iluminar. Essa era a principal característica das idéias iluministas: a explicação racional para
todas as questões que envolviam a sociedade.” Nesse passo, os iluministas combatiam o
74 COTRIM, Gilberto. História Global: Brasil e Geral, p. 226. 75 MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva: dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos, p. 37. 76 MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva: dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos, p. 62. 77 MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva: dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos, p. 71. 78 RIBEIRO, Milton. Liberdade Religiosa: uma proposta para debate. São Paulo: Mackenzie, 2002, pp. 40-1.
39
poder da igreja, pois esse se baseava em verdades reveladas pela fé, o que se chocava com a
autonomia intelectual defendida pelo individualismo e pelo racionalismo burguês. 79
Por conseguinte, a tolerância religiosa passou a ser postulada, até mesmo porque na
realização do ato comercial, “não importavam as convicções religiosas ou filosóficas dos
participantes do negócio. Do ponto de vista econômico, a burguesia compreendeu que seria
irracional excluir compradores ou vendedores em função de suas crenças ou convicções
pessoais.”80 Logo, a religião começava a perder sua prioridade sobre os demais fatores
sociais.
Outrossim, deve-se sublinhar, nesse momento histórico, a participação da Maçonaria
para a difusão de tais ideários liberais como também para a ampliação da liberdade religiosa.
Na realidade, por ser uma escola de cunho crítico e eminentemente filosófico, a Maçonaria
apresentou conflitos com a Igreja Católica na Europa, desde o século XII, quando essa,
através de seus Concílios, desaprovava algumas especificidades maçônicas como: os
juramentos, reuniões secretas, integrantes restritos e ritos específicos.81 Além disso, os
maçons sempre tiveram entre seus ideais a tolerância, a liberdade de consciência e o respeito
as escolhas religiosas82, fato que colaborou para que fossem perseguidos pelo católicos e
considerados hereges.
Dessa forma, no século XVIII, além da forte presença nos países europeus, a
Maçonaria se instalou ainda na América do Norte, onde também colaborou para a expansão
do pensamento iluminista e, consequentemente, para a independência de suas treze colônias.
A primeira Loja Maçônica foi fundada, no ano de 1775, em Virgínia,83 local onde, um ano
depois, foi formulada, em conseqüência da revolução americana, a primeira declaração
moderna de direitos, a Declaração de Virgínia, a qual previu a proteção da liberdade religiosa
(art. 16).
1.4 IDADE CONTEMPORÂNEA: A RELIGIÃO FRENTE À MODERNIDADE E À SECULARIZAÇÃO
Dentro do contexto de expansão do pensamento iluminista, ao final do século XVIII,
eclodiu a Revolução Francesa, um dos grandes acontecimentos históricos que marcaram a
79 COTRIM, Gilberto. História Global: Brasil e Geral, p. 228. 80 COTRIM, Gilberto. História Global: Brasil e Geral, p. 227. 81 LINHARES, Marcelo. História da Maçonaria. Londrina: A trolha, 1992, p. 84. 82 LINHARES, Marcelo. História da Maçonaria, p. 104. 83 LINHARES, Marcelo. História da Maçonaria. pp.125-6
40
superação do feudalismo para o capitalismo e que é tradicionalmente utilizada para assinalar
a idade contemporânea. 84 Com o intuito de acabar com os privilégios da nobreza e do clero,
iniciaram-se amplas expropriações de propriedades e bens eclesiásticos para fins
exclusivamente profanos. Interessantemente, para denominar esse processo de reduzir os
bens da Igreja utilizou-se o termo “secularização”. 85
Além disso, é a partir da Revolução Francesa que se afirma o princípio da laicidade
em seu sentido moderno, ou seja, de separação entre o político e o religioso no nível
institucional, separação do espiritual e do temporal proclamado à nível de Estado.”86
Na pureza das idéias, a laicidade é a possibilidade de criação de zonas de separação e de zonas de convivência, comportando a possibilidade de vários níveis de relação com o religioso: desde a presença deste, em condições eqüitativas, em certos espaços públicos (desde logo, na educação), até à situação mais radical de completa separação das esferas do público estadual e do religioso, mas sem qualquer agressão ou militarismo anti-crenças. Trata-se do reconhecimento de que as pessoas têm uma esfera da vida religiosa, na qual são livres, a qual, porém não se deve misturar com a cidadania, a esfera da sua vida pública.87
Deve-se lembrar, no entanto, como bem adverte Blancarte, que a laicidade88 não é
estritamente o mesmo que a separação Estado-Igrejas e, sim, um processo de transição de
formas de legitimidade sagradas para democráticas ou baseadas na vontade popular. Além
disso, o autor assevera que no momento em que um Estado denomina-se laico ele não se
torna uma instituição anti-religiosa ou anticlerical, mas uma organização política que garante
a liberdade religiosa.89
Seguindo esse entendimento, em 1789, a Assembléia Nacional Constituinte Francesa
proclamou a célebre Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que preveu em seu
corpo importantes direitos fundamentais. Destarte, não só na América, com a Declaração
84 COTRIM, Gilberto. História Global: Brasil e Geral, p. 256. 85 CATROGA, Fernando. Entre Deuses e Césares: Secularização, laicidade e religião civil. Coimbra: Almedina, 2006, p. 57. 86 ORO, Ari Pedro. A laicidade na América Latina: uma apreciação antropológica. In: LOREA, Roberto Arriada; ORO, Ari Pedro (orgs.). Em defesa das liberdades laicas, p. 84. 87 CUNHA, Paulo Ferreira da. A Constituição viva: cidadania e direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 156. 88 Na atualidade, segundo Marco Huaco, a laicidade também pode ser vista como um princípio constitucional do Estado de Direito moderno que se projeta sobre todo o ordenamento jurídico e sobre políticas públicas. (A laicidade como princípio constitucional do Estado de Direito. In: LOREA, Roberto Arriada; ORO, Ari Pedro (orgs.). Em defesa das liberdades laicas, pp.40-1). Outrossim, cabe reparar que em dezembro de 2005, foi apresentada na França um documento denominado “Declaração Universal da laicidade no século XXI” que prevê a laicidade como princípio fundamental dos Estados de Direito e elemento chave para a vida democrática. (vide artigos 4 a 7 da referida Declaração). 89 BLANCARTE, Roberto. O porquê de um Estado laico. In: LOREA, Roberto Arriada; ORO, Ari Pedro (orgs.). Em defesa das liberdades laicas, p. 30-1.
41
Americana, mas também na Europa teve-se um documento protegendo a liberdade religiosa
(artigo 10 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão).
Contudo, nesse ponto, interessa observar que
[...] apesar da matriz inspiradora comum do contratualismo iluminista, que se reflecte na fundação das instituições políticas e na teoria dos direitos naturais, as Revoluções Americana e Francesa diferem bastante entre si quanto à sua origem, quanto à sua atitude perante a sociedade e mesmo quanto à visão do homem e da liberdade em matéria religiosa. Essas diferenças foram surpreendidas pela comparação dos textos das declarações de direitos emblemáticas das duas Revoluções. O texto americano inspira-se nos elementos liberal e cristão conjugados, reflecte uma consideração positiva da religião, refere-se também à convivência religiosa em sociedade e insere-se no avanço prático no sentido do “livre exercício da religião”; o texto francês respira sobretudo o anti-absolutismo liberal, considera a religião pela negativa, reflecte uma visão individualista do fenômeno religioso e deve considerar-se uma proclamação teórica, porque contrariada pela perseguição religiosa, sua contemporânea.90
Independente desses aspectos, não se pode negar que tais declarações revelam-se
manifestações claras do processo secularizador, que teve início com o cristianismo e, após
elas ocorrerem, adquiriu novas feições. Deve-se esclarecer, a princípio, que se enxergam na
herança judaico-cristã as causas iniciais da secularização por três razões: primeiro, pela
afirmação da transcendência de Deus que implicou a autonomia do mundo natural e político;
segundo, como Javé foi definido como “Deus móvel” que intervém na história com ações
específicas, ficou rompida a lógica circular do cosmos e foi insinuada a historicidade do
homem com Deus e a possibilidade de sua assunção como indivíduo livre e responsável pelo
tempo; em terceiro lugar, a normatividade mosaica e a esperança escatológica no Juízo Final
definiram o novo Deus como um Deus ético, fonte que incitou as consciências cristianizadas
a racionalizarem os ditames da moral e a desenharem horizontes de expectativas que serão
projetados no imanentismo histórico.91
Posteriormente, com a entrada do século XIX, o termo secularização, já referenciava
uma moral que devia se basear no bem-estar da vida presente, excluindo todos os critérios
tirados da crença.92 Nesse passo, a secularização passa a expressar uma idéia de exclusão das
religiões do campo social. As normas religiosas interferem cada vez menos nos
90 ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado, p. 74. 91 CATROGA, Fernando. Entre Deuses e Césares: Secularização, laicidade e religião civil, pp. 24-5. 92 CATROGA, Fernando. Entre Deuses e Césares: Secularização, laicidade e religião civil, p. 60.
42
comportamentos cotidianos, na maneira de compreender a vida e na representação da
morte”.93
Esse entendimento teve impulso com a consolidação da modernidade e com o apogeu
dos estudos científicos de estudiosos ocidentais, pois a racionalidade humana passou a ser
supervalorizada e a servir como um órgão de orientação universal, auto-reflexão das pessoas
e intermediário da responsabilidade humana.94 Corroboraram para tais pensamentos
diferentes tendências filosóficas como o humanismo profano, o materialismo e o marxismo.
O humanismo profano se caracteriza pela forte confiança na razão humana e na
capacidade dos seres humanos recolherem suas experiências e não transformarem suas idéias
em princípios religiosos absolutos, como fazem as religiões. Logo, os humanistas vivem
como se Deus não existisse, destacando que “o homem é senhor de si mesmo e só deve
depender de si mesmo e de suas próprias capacidades”.95
Já para o materialismo, a crença em deuses é totalmente rejeitada, e o conhecimento
que “o homem tem do mundo é obtido somente por meio da experiência e da percepção
sensorial. O materialismo é, portanto, altamente empírico. Ele rejeita a crença racionalista de
que a razão humana, por si só, pode ser uma fonte de percepção.”96
Por sua vez, o marxismo reflete a orientação materialista de Karl Marx, e a conseqüente
compreensão de que
[...] não existe nenhum poder divino ou espiritual governando a história. Tampouco, em última análise, as idéias e os pensamentos dos homens determinam o desenrolar dos acontecimentos. Pensamentos e idéias, moral e religião, arte e filosófica não surgem do vácuo, mas dependem das condições econômicas e sociais. Elas se elevam, como um toldo, sobre a base econômica.97
Destarte, diante de vieses filosóficos como tais, o ateísmo obteve bases fundamentais.
Garaudy aduz que o ateísmo98 é a rejeição do antropocentrismo e a tomada de consciência
pelos seres humanos de que tudo o que sabem sobre Deus são eles mesmos que dizem de
modo relativo, provisório e inacabado. “O ateísmo impede que o ícone se torne um ídolo, isto
é, confundir o que é sinal de outra realidade com essa própria realidade, quer se trate de um
conceito, de um amuleto ou crucifixo.” Ademais, de modo purificador, o ateísmo elimina
93 ORO, Ari Pedro. A laicidade na América Latina: uma apreciação antropológica. In: LOREA, Roberto Arriada; ORO, Ari Pedro (orgs.). Em defesa das liberdades laicas, p. 83 94 BIELEFELDT, Heiner. Filosofia dos direitos humanos. São Leopoldo: UNISINOS, 2000, p. 42. 95 GARDER, Jostein; HELLERN, Victor; NOTAKER, Henry. O livro das religiões, pp. 236-7. 96 GARDER, Jostein; HELLERN, Victor; NOTAKER, Henry. O livro das religiões, pp. 243-4. 97 GARDER, Jostein; HELLERN, Victor; NOTAKER, Henry. O livro das religiões, p. 250. 98 Para melhor detalhar o ateísmo, o autor explica o entendimento de pensadores como Kierkegaard, Marx e Nietzche, como pode ser visto nas p. 134-46 da obra “Deus é necessário?”.
43
dualismos como: objeto e sujeito, alma e corpo, espírito e matéria, ciência e fé, e,
principalmente, homem e Deus.99
Nesse passo, por idéias como essas,
[...] o desenvolvimento do capitalismo industrial em nível da atividade econômica, foi acompanhado, na esfera da cultura, pela secularização das crenças e práticas pela progressiva de racionalização da vida social. O declínio da religião e da magia preparam o campo para a emergência de sistemas de crenças seculares ou “ideologias” que servem para mobilizar a ação política, sem referência a valores ou seres de outro mundo. A consciência religiosa e mítica da sociedade pré-industrial foi substituída pela consciência prática enraizada nas coletividades sociais animadas pelos sistemas seculares de crenças.100
Denota-se, assim, que o processo de secularização possibilitou novas liberdades às
pessoas, ao fazer desaparecer algumas normas de conduta, e ao propiciar novas forças que
subjuguem o espírito humano. 101 Além disso, os indivíduos passaram a se apoiar cada vez
menos em suas crenças para realizar suas atividades.102
Nesse diapasão,
[...] a idéia da auto-suficiência humana minou o domínio da religião institucionalizada não prometendo um caminho alternativo para vida eterna, mas chamando a atenção humana para longe desse ponto; concentrando-se, em vez disso, em tarefas que os seres humanos podem executar e cujas conseqüências eles podem experimentar enquanto ainda são “seres que experimentam”- e isso significa aqui, nesta vida.103
Não é a toa que o atual Papa Bento XVI e seus teólogos seguidores, qualificam a
secularização como um “fenômeno patológico do cristianismo”104 e muitos cristãos
tradicionalistas vêem nela o sinal supremo do orgulho humano.105 Eles e também muitas
pessoas acreditam que a secularização é responsável pela erosão dos valores espirituais e,
consequentemente, da moralidade pública e pessoal, dando-se lugar a uma degeneração das
condutas e um incremento da violência social.106
Vê-se também que através do processo secularizador, muitos cristãos leigos podem
pressentir o advento de uma fé, enfim autêntica e tendo como fundo o eclipse do teológico-
ético.107 Observa-se que a
99 GARAUDY, Roger. Deus é necessário? trad. Ana Luísa Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995, pp.132-3. 100 THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação e massa. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 106. 101 NEWBIGIN, Lesslie. A religião do homem secular.Caxias do Sul: Edições Paulinas, 1970, p. 218. 102 NEWBIGIN, Lesslie. A religião do homem secular, p. 30. 103 BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 213. 104 CATROGA, Fernando. Entre Deuses e Césares: Secularização, laicidade e religião civil, p. 19. 105 FERRY, Luc. O homem-Deus ou o sentido da vida. Rio de Janeiro: DIFEL, 2007, p. 53. 106 CIÁURRIZ, Maria José. El derecho de proselitismo en el marco de la libertad religiosa, p. 35. 107 FERRY, Luc. O homem-Deus ou o sentido da vida, p. 53.
44
[...] depreciação sacral do mundo, a cientificação do universo e a historicização do devir ajudaram a cortar o cordão umbilical do homem com o cosmos, a interiorizar as obrigações éticas fomentadas pela religião judaico-cristã (a emergência de um Deus ético), assim como a autonomizar os efeitos terrenos da sua acção (que a ética protestante impulsionou) e, por conseguinte, a acelerar uma desmagificada cosmovisão, realidade que a crescente civilização urbana patenteou ainda mais. E desta mudança foi resultado não só a alteração da imagem sacral do universo, mas também o aumento da relação tensional entre a experiência religiosa e o mundo moderno, ou melhor, entre a religião e os sistemas sócio-culturais que deram corpo à Modernidade.108
Para Heidegger, esses são reflexos de um fenômeno moderno conceituado como
“desdinvinação”, ou seja, um duplo processo em que a imagem do mundo cristianiza-se à
medida que o fundamento do mundo é estipulado como infinito, incondicional, absoluto e
que por outro lado, a cristandade reinterpreta seu cristianismo numa concepção de mundo,
entrando em conformidade com a realidade. Logo, a desdivinização é a indecidibilidade
sobre o Deus e os deuses,109 com surgimento de novos questionamentos sobre eles e a busca
da liberdade para isso.
Em contraponto, tal indecidibilidade religiosa também ocasiona a busca pela
segurança e, diante dessa, há a tentativa por algumas pessoas de impor suas crenças a todos
como se fossem verdades únicas. Tudo isso resulta em conflitos entre os seguidores de
diferentes culturas e posições radicais como, por exemplo, é o caso dos fundamentalistas,
assunto que será abordado mais adiante nesse trabalho.
Por enquanto, basta lembrar que na mais terrível guerra do século XX, a Segunda
Guerra Mundial, o nazismo de Adolf Hitler colocou em prática “o extermínio judeu, povo
esse apontado como causador de todos os problemas da Alemanha. Segundo Hitler, o futuro
do movimento nazista dependeria do fanatismo e da intolerância.”110
Na realidade,
[...] todos os sistemas totalitários se caracterizam pelo monismo ideológico e organizatório, radicalmente incompatível com o dualismo que, como se referiu, é pressuposto essencial à liberdade religiosa. Por isso mesmo, todos os sistemas totalitários praticaram ou praticam a perseguição religiosa em maior ou menor escala. É essa a sua atitude fundamental perante os grupos confessionais.111
Entretanto, ainda era recente a experiência dos campos de concentração quando em
1945, a Carta das Nações Unidas veio reiterar a interdição de qualquer discriminação
108 CATROGA, Fernando. Entre Deuses e Césares: Secularização, laicidade e religião civil, p. 37. 109 HEIDEGGER, Martin. A época da imagem do mundo. Ijuí: Unijuí, 2005, p. 192. 110 SORIANO, Aldir Guedes. Liberdade Religiosa no Direto Constitucional e Internacional, p. 62. 111 ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado, p. 85.
45
fundada na religião.112 Também foi ainda num clima de terror, com o mundo temendo uma
guerra nuclear, que a ONU foi instituída, com o objetivo precípuo de promover a paz entre os
povos, tendo como um de seus primeiros frutos a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, proclamada em 1948, a qual também estabelecia a proteção da liberdade
religiosa.113
Com efeito, o século XX caracterizou-se por ser o século da internacionalização dos
direitos humanos. Pela primeira vez na história, a questão dos direitos humanos colocou-se à
escala mundial. 114 Aliás, vários instrumentos internacionais protetores dos direitos humanos
foram desenvolvidos, não se podendo deixar de destacar o Pacto Internacional sobre Direitos
Civis e Políticos, proclamado em 1966, como também a Convenção Americana de Direitos
Humanos – Pacto San José da Costa Rica - de 1969. Ambos protegem a liberdade religiosa
em seus termos, respectivamente, nos artigos 18 e 12, com igual redação, e foram ratificados
pelo Brasil no ano de 1992.
Ainda, indispensável sublinhar que 1981 foi proclamada, pela Assembléia Geral das
Nações Unidas, a Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância ou de
Discriminação Fundadas sobre a Religião ou Convicção. Em suma, ela não é muito extensa
e se compõe de oito artigos. Entre eles, não se pode deixar de referir os termos do artigo 1º,
os quais estabelecem que toda pessoa tem o direito de liberdade de pensamento, de
consciência e de religião. Este direito inclui a liberdade de ter uma religião ou qualquer
convicção a sua escolha, assim como a liberdade de manifestar sua religião ou suas
convicções individuais ou coletivamente, tanto em público como em âmbito privado,
mediante o culto, a observância, a prática e o ensino. Ademais, ninguém será objeto de
coação capaz de limitar a sua liberdade de ter uma religião ou convicções de sua escolha.
Já o artigo 2 º define mais expressamente a proibição da discriminação por motivos de
religião ou convicções por parte de nenhum Estado, instituição, grupo de pessoas ou
particulares. Esclarece também que aos efeitos da referida declaração, entende-se por
"intolerância e discriminação baseadas na religião ou nas convicções" toda a distinção,
exclusão, restrição ou preferência fundada na religião ou nas convicções e cujo fim ou efeito
seja a abolição ou o fim do reconhecimento, o gozo e o exercício em igualdade dos direitos
humanos e das liberdades fundamentais.
112 ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado, p. 87. 113 SORIANO, Aldir Guedes. Liberdade Religiosa no Direto Constitucional e Internacional, p. 65. 114 ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado, p. 86.
46
Por fim, o artigo 3 º dispõe que a discriminação entre os seres humanos por motivos
de religião ou de convicções constitui uma ofensa à dignidade humana e uma negação dos
princípios da Carta das Nações Unidas. Deve ser condenada como uma violação dos direitos
humanos e das liberdades fundamentais proclamados na Declaração Universal de Direitos
Humanos e nos Pactos internacionais de direitos humanos, como um obstáculo para as
relações amistosas e pacíficas entre as nações.
Logo, diante de todos esses documentos internacionais, hodiernamente, a liberdade
religiosa é prevista em quase todas as atuais Constituições dos países democráticos ocidentais
e consagra-se como um direito fundamental que deve ser amplamente protegido por todos
eles.
Apesar disso, cabe advertir que a liberdade religiosa não é efetivada da mesma forma
e intensidade em todas as nações. Cada país possui elementos culturais próprios e confissões
religiosas diversas que influem incisivamente no exercício da liberdade religiosa por todos os
cidadãos.
Repara-se que as confissões religiosas são comunidades assentes num corpo de
doutrina específico, que se exprimem num culto e são ordenadas por um regime normativo e
uma certa organização hierarquizada.115 De acordo com a análise de Côrrea Costa, é através
da relação dessas confissões religiosas com o Estado que se pode distinguir parte das
tradições adotadas por ele. Essas tradições são refletidas, consequentemente, nas disposições
constitucionais de cada Estado, que, por conseguinte, se denominam: a) Estados
confessionais ou de confissão dominante como, por exemplo, na Europa, a Grã-Bretanha
(Igreja Anglicana) e a Finlândia (Igreja Evangélica Luterana), e, na América Latina,
Argentina, Paraguai e Bolívia (Igreja Católica), entre outros; b) Estados separatistas com
cooperação (como na Alemanha e na Itália) ou sem cooperação (como no Brasil e na maioria
dos países da América Latina); c) Estados de inspiração laicista, como na França116.117
Tais denominações atribuídas a cada Estado ocidental resultam claramente na
existência (ou não) de abertura à liberdade religiosa e, dentro dela, a possibilidade de criação
de novas manifestações de religião. Essa questão pode ser facilmente vista, hodiernamente,
através da reação ao desenvolvimento das chamadas “seitas” em muitos países.
115 CUNHA, Paulo Ferreira da. A Constituição viva: cidadania e direitos humanos, p. 143. 116 É o único país que expressamente se denomina uma República laica, como pode ser visto no artigo 1 º da sua Constituição. 117 COSTA, Maria Emília Côrrea. Apontamentos sobre a liberdade religiosa e a formação do Estado laico. In: LOREA, Roberto Arriada; ORO, Ari Pedro (orgs.). Em defesa das liberdades laicas, p. 106.
47
Paulo Ferreira da Cunha assevera que o nome “seitas” e a diferenciação dessas em
relação às Igrejas devem-se a Max Weber e Ernst Troeltsch. Enquanto as últimas possuem
uma estrutura formal, burocrática, hierarquizada e que tendem a representar uma face da
religião conservadora, as primeiras são, geralmente, comunidades de menor dimensão, menos
organizadas, surgidas por separação de uma igreja, com um estatuto de igualdade para os
membros, sem, ou contando com poucos sacerdotes.118
Ambas possuem igualdade jurídica e Sara Guerreiro lembra que
[...] no relatório apresentado à Sessão Anual pela Comissão dos Direitos do Homem da ONU (Sessão de 10 de Março de 1997), afirma-se não ser, actualmente, possível separar o conceito de seita do de religião em função do número de adeptos ou seguidores, nem tão pouco por referência a práticas culturais consideradas excêntricas. As seitas, e outros movimentos religiosos, gozam (ou devem gozar) de igual direito e do mesmo grau de proteção jurídica. Por tudo isto, não nos parece nem necessário, nem adequado, autonomizar este tipo de realidades.119
Entrementes, em muitos países, tanto o Estado como as Igrejas “têm natural
desconfiança com as seitas. Elas são um fenômeno desagregador, perturbador, contrário aos
esforços unitários de um e de outras. Esforços que, como ficou claro, também são
normalmente, de uma e de outra parte, tendencialmente hegemônicos.”120 Assim, conforme
seja o grau de busca pela hegemonia religiosa de um Estado, será a tentativa de combater a
expansão de novas religiões para acabar com qualquer sensação instabilidade.
Ocorre, todavia, que com a globalização, surgida a partir de 1980,121 tal sensação
agravou-se e os Estados influenciam cada vez menos a forma de pensar e agir de seus
cidadãos. Tem-se em vista que a globalização é um “processo social, econômico, cultural e
demográfico que se instala no coração das nações e transcende ao tempo, de tal forma que
uma atenção limitada aos processos locais, às identidade locais, às unidades de análise locais
tornam incompleta a compreensão local .”122
Nesse passo, com a ligação planetária entre diferentes culturas,
[...]vêm o anuviamento e a diluição da diferença entre normal e o anormal, o esperável e o inesperado, o comum e o bizarro, o domesticado e o
118 CUNHA, Paulo Ferreira da. A Constituição viva: cidadania e direitos humanos, p 143. 119 GUERREIRO, Sara. As Fronteiras da Tolerância: Liberdade religiosa e proselitismo na Convenção Européia dos Direitos do Homem. Coimbra: Almedina, 2005, p. 37. 120 CUNHA, Paulo Ferreira da. A Constituição viva: cidadania e direitos humanos, p. 151. 121 SAUL, Renato.Tradição Sociológica, Terceiro Caminho e Direitos Humanos. In: KEIL, Ivete; ALBUQUERQUE, Paulo. SOLON, Viola. Direitos Humanos: alternativas de justiça social na América Latina. São Leopoldo: Unisinos, 2002, p. 40. 122 ARNAUD, André-Jean. O Direito entre a Modernidade e a Globalização. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 16.
48
selvagem- o familiar e o estranho, “nós” e os estranhos. Os estranhos já não são autoritariamente pré-selecionados, definidos e separados, como costumavam ser nos tempos dos coerentes e duráveis programas de constituição da ordem administrados pelo Estado. Agora, eles são tão instáveis e protéicos como a própria identidade alguém, e tão pobremente baseados, tão erráticos e voláteis. L’ipséité, essa diferença que coloca o eu separado do não-eu e “nós” separados d “eles”, já não é apresentada pela forma pré-ordenada do mundo, nem por um comando vindo das alturas. 123
Por esse ponto, a intenção de imposição de preceitos religiosos únicos a diferentes
pessoas, perde gradativamente suas forças à medida que cresce a diversidade de crenças
acompanhando a variação da identidade daquelas. “A pluralização de mundos de vida social
preclude qualquer referência, de tipo medieval, a um discurso teológico unificador. O sistema
social deixa de refletir qualquer realidade ontológica pré-conceptual [...].”124 Outrossim, o
aumento de contato com “os estranhos” também reforça a consciência e a exigência, por
parte dos cidadãos, do respeito as suas intimidades e liberdades, o que resulta na previsão de
direitos, como por exemplo, o direito a liberdade religiosa.
Desse forma, como já referido anteriormente, negativamente muitas
[...] lideranças percebem na livre crença religiosa uma ameaça a seus projectos de dominação através da própria religião ou de um “patriotismo” autoritário. Encontra-se, também em certas democracias ocidentais, em grau muito menor, mais ainda preocupante, a restrição a certas expressões públicas da fé como forma de proteger uma ideologia secularista encastelada em certos locais de poder político e cultural.125
A partir disso, Lévi-Strauss ensina que duas alternativas são adotadas pelos seres
humanos no que toca aos “estranhos”, os quais agora se têm conhecimento da existência.
Primeiramente, uma alternativa antropofágica: transformar os estranhos num tecido
indistinguível do que já havia, ou seja, tornar todos semelhantes através de um processo de
assimilação, abafando as diferenças culturais ou lingüísticas, proibindo todas as tradições e
lealdades (exceto aquelas à ordem nova), promovendo e reforçando uma medida para a
conformidade. Se isso não se verifica, a alternativa possível é antropoêmica: “vomitar” os
estranhos, bani-los dos limites do mundo “ordeiro”, impedindo sua comunicação com o lado
de dentro, procedendo assim sua exclusão, inclusive com a destruição física dos mesmos, se
necessário. 126
123 GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991, p. 37. 124 MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva: dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos, p. 96. 125 MARSHALL, Paul. Perseguição religiosa no mundo. In: Liberdade religiosa em questão, Cadernos Adenaur, Rio de Janeiro, Fundação Konrad Adenaur, v. 5, n. 4, p. 1- 135, 2004, p. 10. 126 BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 29.
49
Nesse andar, o fenômeno da globalização possibilita também a busca de controle de
algumas culturas sobre as outras, tanto em aspectos ideológicos e religiosos, como também
em outros fatores, como na economia diretamente, restringindo as liberdades humanas.
Em consonância, Giddens sustenta que o processo globalizador, além de fragmentar e
coordenar, introduz novas formas de interdependência mundial, nas quais não há “outros” 127
e, assim, modos diversos de pensamentos também não são totalmente aceitos.
Nessa esteira, através desses fundamentos e dos fatores históricos abordados,
entende-se porque mesmo com o advento da democracia em vários países, e com a proteção
da liberdade religiosa por diversas constituições e documentos internacionais, ela ainda não
se verifica completamente na realidade hodierna. Vê-se que
[...] no mundo inteiro, a liberdade religiosa está em deterioração. É difícil resumir um mundo, mas a tendência aparece nos países mais populosos, tais como China, Índia, Paquistão, Indonésia e Nigéria, bem como na presença cada vez maior de elementos religiosos nas guerras modernas. A China sempre reprimiu a religião, mas aumentou ainda mais a repressão depois do surgimento da Falun Gong, em 1998. O governo, consciente de que os grupos religiosos sempre foram uma fonte de oposição na história chinesa, também aumentou seus ataques católicos e protestantes não registrados (a maioria dos cerca de 60 milhões de cristãos da China), bem como aos tibetanos budistas e uigures muçulmanos.128
Na Índia, os não-hindus são considerados “estrangeiros” e sofrem ataques violentos
desde que o BJP nacionalista-hindu chegou ao poder. No Paquistão, a lei de blasfêmia (com
pena de morte) é usada contra as minorias religiosas, em especial cristãos e ahamadias.
Também “a transição da Indonésia para a democracia foi acompanhada por violência
religiosa.” No Timor Leste, cerca de 150 mil refugiados católicos foram expulsos para a
metade ocidental da ilha. Na Nigéria, a maioria dos estados do norte anunciou a instituição
extremada de lei islâmica com violência contra os cristãos. Ainda, “no Sudão, um regime
islâmico radical está tentando impor à força sua versão do islã sobre todo país, inclusive
sobre o sul predominantemente cristão e animista.” 129
Além disso,
[...] a luta entre Israel e os palestinos tem agora muito mais retórica e identificação religiosa do que em décadas anteriores. Os conflitos do final dos anos 80 e mais ainda dos anos 60 e 70 caracterizam-se geralmente por uma retórica nacionalista, mas agora muito mais retórica islâmica. O tema é muito mais a defesa do islã e de seus lugares sagrados.
127 GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade, p. 174. 128 MARSHALL, Paul. Perseguição religiosa no mundo. In: Liberdade religiosa em questão. p. 13. 129 MARSHALL, Paul. Perseguição religiosa no mundo. In: Liberdade religiosa em questão, p. 14.
50
A disputa da Caxemira por Índia e Paquistão sempre teve elementos religiosos: afinal, os dois países só adquiriam existência separada devidos as suas diferentes religiões dominantes . Mas agora a Caxemira atrai militantes do resto do mundo e é vista como uma guerra santa.130
Enfim, diante do abordado depreende-se que a liberdade religiosa é um direito
humano que ainda não se efetiva totalmente em nossa realidade. Todavia, vem sendo
conquistado ao longo da evolução humana. A necessidade de seu reconhecimento acompanha
a historicidade do homem e continuará acompanhando enquanto o pluralismo religioso
perdurar. Outrossim, denota-se que tal historicidade interferiu, e ainda interfere, na
catalogação do direito à liberdade religiosa e no modo de compreendê-lo, pois obteve
diferentes facetas com o passar dos séculos, especificamente também no que se refere a
legislação brasileira, sendo essa outra análise que deve ser realizada.
2. A LIBERDADE RELIGIOSA NO BRASIL E AO LONGO DE SUAS
CONSTITUIÇÕES FEDERAIS
Como em todo o mundo, no Brasil, a liberdade religiosa também apresentou diversas
faces ao longo dos séculos. De mesmo modo, sua concepção jurídica também se mostrou
variada através das tantas Constituições Federais que o país promulgou. Nesse diapasão, toca
verificar a evolução da liberdade religiosa, no Brasil, e sua relação com cada momento
histórico em que se suscitou ou não sua proteção jurídico-constitucional.
2.1 A LIBERDADE RELIGIOSA FRENTE À DOMINAÇÃO CATÓLICA NO PAÍS
A princípio, deve-se reparar que, antes de 1824, não era possível falar-se em
Constituição formal. Havia várias leis e costumes moldados pelo Estado Português e pela
Igreja Católica em seu projeto universal. A Igreja, subordinada ao Estado pelo regime do
130 MARSHALL, Paul. Perseguição religiosa no mundo. In: Liberdade religiosa em questão, p. 14.
51
chamado padroado real, desempenhava um papel eficiente de controle, ensinando obediência
à Coroa Portuguesa.131
Dessa forma, em 1549, juntamente com o Governador Geral Tomé de Souza e o padre
Manuel de Nóbrega, vieram os primeiros jesuítas para o Brasil e para a América Latina.“Os
Jesuítas tinham aprendido com as experiências dos dominicanos na América Central. Sabiam
agora que o mais importante era atrair os índios para a fé. Faziam-nos com todos os recursos
disponíveis: roupas coloridas, encenações, autos de natal e de páscoa.” 132 Pretendiam
decididamente converter a população americana ao catolicismo, com a finalidade de ampliá-
lo e compensar o abalo sofrido pela Reforma Protestante iniciada na Europa.133 Com a ação
jesuítica pensava-se que “servindo ao Senhor, servia ao Rei, trazendo o Evangelho, trazia
também a cultura européia; acreditando anunciar o reino de Deus, impunha o Império por ser
pouco lúcida em sua teologia.”134
Devido a relação próxima aos índios, os jesuítas passaram a defendê-los perante as
idéias do Governo Geral, entre elas a de recrutá-los como escravos para a produção do
açúcar.135 Logo, passaram a se atritar diretamente com os portugueses e se tornaram os
maiores inimigos do projeto de colonização, fato que lhes rendeu posteriormente a expulsão
do país.
Diante disso, compreende-se a assertiva de Gilberto Freyre de que durante a
colonização do Brasil, no século XVI, esqueceu-se da pureza de raça. Somente dava-se
importância aos estrangeiros e que tinham fé ou religião católica, pois para ser admitido para
adquirir sesmarias a principal exigência era professar a religião católica.136137
Nesse contexto, “invasores, como os franceses huguenotes e holandeses, foram
combatidos heroicamente não apenas por serem estrangeiros, mas, sobretudo porque eram
hereges”138 ao não seguirem a fé católica. Para tanto, utilizava-se a inquisição.
131 GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. A liberdade religiosa nas Constituições do Brasil. Revista de Direito Constitucional e Internacional. São Paulo, instituto brasileiro de direito constitucional, v. 34, p. 11-167, jan/mar, 2001, p. 160. 132 HASTENTEUFEL, Dom Zeno. História da Igreja do Brasil e do Rio Grande do Sul. 2. ed. Frederico Westphalen: Pluma, 2006, p. 18-9. 133 SILVA, Francisco de Assis. História do Brasil. São Paulo: Moderna, 1992, p. 59. 134 COTRIM, Gilberto. História do Brasil: um olhar crítico. São Paulo: Saraiva. 1999, p. 44. 135 HASTENTEUFEL, Dom Zeno. História da Igreja do Brasil e do Rio Grande do Sul, p. 19. 136 FREYRE, Gilberto. Casa-Grande e Senzala. São Paulo, Record, 1999, p. 29. 137 Entretanto, não se pode deixar de referir que no período de 1630 à 1654, no Nordeste, onde ocorreu a ocupação holandesa, perdurou uma fase de intensa tolerância para a época. Maurício de Nassau concedeu liberdade de culto para os católicos, que muitas vezes perturbava os calvinistas menos tolerantes. (HIRAN, Aquino Fernando Gilberto. Sociedade Brasileira: Uma História Através dos Movimentos Sociais. Rio de Janeiro: Record. 2001, p. 243.) 138 Religião e Cristianismo: manual de cultura religiosa, p.76.
52
Aos tribunais inquisitoriais deveriam ser submetidos todos que cometessem o crime de
heresia, o qual era entendido “como toda heterodoxia, toda e qualquer discordância
doutrinária, em face do ponto de vista romano.”139
Anita Novinsky explica haver um mito que, no Brasil, não houve ação inquisitorial,
nem política racista. Na realidade, a inquisição teve enorme interferência na vida colonial por
mais de dois séculos, onde, com base nas leis racistas portuguesas, se expandiu para muitas
regiões do país.140
Embora nenhum tribunal tenha sido criado no Brasil, isto não significa que a Inquisição não tenha atuado. Ocorria que os réus, pós a acusação, eram levados a Lisboa, para serem julgados e executados. Insistentes pedidos foram feitos, porque se criasse um Tribunal de Inquisição no Brasil. No entanto ele jamais foi criado.141
Foi somente após a proclamação da independência, em 1822, que se começou a
sinalizar uma possível Constituição para o Brasil. Para a consecução da unidade nacional que
as instituições almejavam, necessitava-se da estruturação de um poder centralizador e uma
organização nacional que acabassem com os poderes regionais e locais. Em moda na época,
apresentava-se o constitucionalismo, que realizar-se-ia por uma Constituição escrita, em que
se consubstanciasse o liberalismo, assegurado por uma declaração constitucional dos direitos
do homem e um mecanismo de divisão de poderes.142
Nessa esteira, surge a Constituição Federal do Império, a qual foi a primeira
Constituição do Brasil e foi outorgada em 25 de março de 1824 por D. Pedro I, após
dissolver a Assembléia Constituinte que ele próprio convocou quando proclamada a
independência. Para elaborá-la instituiu um Conselho de Estado com dez membros
escolhidos entre expressões políticas e intelectuais que se destacavam na época.143
Entre seus preceitos, o artigo 5º estabelecia: “A Religião Católica Apostólica Romana
continuará a ser a Religião do Império. Todas as outras religiões serão permitidas com seu
culto doméstico, ou particular em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior, sem
forma alguma exterior de templo”. Destarte,
[...] firmava-se o catolicismo como religião oficial, mas permitiam-se outros cultos, guardadas certas condições, característica da Constituição do Império, documento híbrido, que tentava conciliar liberalismo e absolutismo. Às religiões não católicas permitia-se o culto doméstico
139 SORIANO, Aldir Guedes. Liberdade Religiosa no Direto Constitucional e Internacional, p. 69. 140 NOVINSKY, Anita. Apud: GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. A liberdade religiosa nas Constituições do Brasil. Revista de Direito Constitucional e Internacional, p. 161. 141 SORIANO, Aldir Guedes. Liberdade Religiosa no Direto Constitucional e Internacional, p. 69. 142 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 23 ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 74. 143 SCAMPINI, José. A Liberdade Religiosa nas Constituições Brasileiras. Revista de Informação Legislativa. v. 41, p. 81.
53
conquanto que o local da celebração não mantivesse forma exterior de templo.144
De qualquer forma, a religião católica era especialmente protegida e o Imperador e
seus herdeiros presuntivos deviam jurar mantê-la.145 Nessa senda, clara é a percepção de que
o preconceito religioso ainda perdurava, mesmo com o advento de um Estado Constitucional.
Na realidade, a própria Constituição induzia a discriminação, como pode ser visto, por
exemplo, no artigo 92, onde os religiosos de comunidades claustrais eram excluídos de votar
nas assembléias paróquias. Diante disso, cabe questionar se o rol de direitos individuais
previstos pela primeira vez na referida Carta realmente propiciou mudanças sociais a favor
de uma verdadeira Democracia.
Antes de buscar resolver tal indagação, esclarece-se que os direitos individuais
podem ser definidos, sinteticamente, como os direitos fundamentais do homem-indivíduo,
que reconhecem autonomia aos particulares, garantindo a iniciativa e independência aos
indivíduos diante dos demais membros da sociedade política e do próprio Estado.146 A
Constituição
[...] outorgada em 1824, embora sem deixar de trazer consigo características que hoje não seriam aceitáveis como democráticas, era marcada, sem dúvida, por um grande liberalismo, que se retratava, sobretudo,no rol dos direitos individuais, que era praticamente o que havia de mais moderno na época [...] 147
Como um princípio de resposta, Silva Neto argúi que a previsão de diversos direitos
individuais, consoante aos incisos I/XXXV do art. 179, “somente revela que o monarca
resolvera adequar os princípios iluministas ao absolutismo, por ser reputado como seguidor
do despotismo esclarecido.”148
Ademais, eram facilmente constatáveis inúmeras contradições entre as idéias que a
Constituição propunha e o que ocorria de fato. A Constituição do Império tratava a questão
religiosa de modo liberal no tratamento da individualidade, possibilitando a liberdade de
escolha religiosa, mas, ao mesmo tempo, isso não se verificava no espaço público, na medida
144 GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. A liberdade religiosa nas Constituições do Brasil. Revista de Direito Constitucional e Internacional, p. 162. 145 GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. A liberdade religiosa nas Constituições do Brasil. Revista de Direito Constitucional e Internacional, p. 82. 146 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. p. 190. 147 BASTOS, Celso Ribeiro. MARTINS, Ives Granda da Silva. Comentários à Constituição do Brasil. vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 316. 148 SILVA NETO, Manoel Jorge. A proteção constitucional à liberdade religiosa. Revista de Informação Legislativa, p. 114.
54
em que a manifestação exterior ainda era proibida e o próprio Estado, por sua vez,
encontrava-se atrelado a uma religião oficial, a católica.149
O predomínio de uma Igreja oficial
[...] bem poderia ser creditado à própria justificação do poder político dos monarcas, vinculado, segundo se pensava à época, à origem divina; era a consagração da Teoria da Origem Divina Sobrenatural do Poder, que, de um só golpe, consolidou o Absolutismo Monárquico (materializado na afirmação conhecidíssima de Luís XIV, segundo a qual “O Estado sou eu”) e transformou a Religião Católica na única, exclusiva e aceitável fé a ser professada pelas pessoas.150
Além disso, assinala-se outra incongruência. Apesar do constitucionalismo liberal no
Brasil, ainda existia a escravidão na época, devido à monocultura latifundiária. Como Cotrim
aduz:
A Constituição afirmava a liberdade e a igualdade de todos perante a lei, mas a maioria da população permanecia escrava. [...] A elite de intelectuais do Império, porta-voz das categorias dominantes, criou uma ideologia que mascarava as contradições sociais do país e ignorava a distância entre a lei e a realidade.151
Os escravos eram vendidos para os colonos em troca de produtos coloniais. Logo, tais
seres humanos eram transformados em meras mercadorias e tinham suas liberdades
intensamente restritas. 152 Entre elas, a liberdade religiosa também foi tolhida. Vê-se que
entre os escravos trazidos ao Brasil153 predominava uma variedade intensa de religiões154 e
quando aqui chegaram, sofreram forte interferência da religião católica, com um intuito
catequizador.155
O deus e os santos invocados pelo senhorio branco, na concepção ingênua do africano primitivo, deviam ser muito poderosos, uma vez que seus devotos estavam por cima. Além disso, em muitos lugares as reuniões de
149 RIBEIRO, Milton. Liberdade Religiosa: uma proposta para debate, pp. 61-2. 150 SILVA NETO, Manoel Jorge. A proteção constitucional à liberdade religiosa. Revista de Informação Legislativa, p. 113. 151 COTRIM, Gilberto. História do Brasil: um olhar crítico, p. 184. 152 COTRIM, Gilberto. História do Brasil: um olhar crítico, pp. 83-5. 153 Mais detalhadamente, Portugal foi o primeiro país da Europa a realizar comércio de africanos, e através do tráfico negreiro trouxe-se, inicialmente, para o Brasil os primeiros escravos. Os sudaneses (de tribos como nagô e gegê) se concentraram em grande parte na região da Bahia e do Sergipe, já os bandos advindos do Congo, Angola e Moçambique foram levados para o Maranhão, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo. (Religião e Cristianismo: manual de cultura religiosa. Porto Alegre: PUC, Instituto de Teologia e Ciências Religiosas, 1977, p. 77.) 154 Entende-se, atualmente, que a adoração dos diferentes seres divinos acompanha a variação existente dentro do conjunto sincretístico da religião afro-brasileiro, o que resulta em diferentes vocabulários e nomes para a religião (umbanda, macumba, candomblé, batuque, pajelança). (Religião e Cristianismo: manual de cultura religiosa. Porto Alegre: PUC, Instituto de Teologia e Ciências Religiosas, 1977, p. 78.) 155 Religião e Cristianismo: manual de cultura religiosa, p. 77.
55
culto puramente pagão eram proibidas e para serem toleradas tinham que apresentar ao menos alguma aparência católica.156
Apesar disso, da falta de liberdade religiosa com a imposição do catolicismo a todos,
foi nesse período e ambiente que chegaram ao País os primeiros seguidores de religiões
protestantes. “O protestantismo aportou de verdade no Brasil, como um fato brutal e – as a
matter of fact – com a chegada de imigrantes estrangeiros, muitos dos quais eram portadores
de protestantismo em sua própria cultura, em seus usos e costumes, em sua vida cotidiana.” 157
Entre as várias religiões protestantes, o luteranismo foi a primeira a ser implantada
através de imigrantes alemães que após a independência aportaram no Brasil.
Posteriormente, vieram, sucessivamente, os primeiros presbiterianos (1859), metodistas
(1876) e os batistas (1881).158
Muitos desses religiosos se dedicaram intensamente à propaganda evangélica pelo
Brasil. Através de suas missões lançavam-se ao trabalho de conversão, o que após um tempo
resultou na formação de congregações protestantes com forte inclinação proselitista, voltada
claramente para a conquista de mais brasileiros ao protestantismo.159
Para chegar a tal expansão, não se pode deixar de referir que
[...] a maçonaria serviu de cabeça de ponte para a entrada do evangelho em nossa pátria. Quando aqui aportaram os primeiros evangelistas, sob a pressão clerical tremenda, até leite era negado a seus filhinhos!!...Os que iam se convertendo, não tinham mais direito a viver: por ordem dos jesuítas, sempre malévolos, centenas de pais de famílias eram despedidos dos seus empregos e em toda parte encontravam as portas fechadas às menores colocações que procuravam. Em toda parte o corvejar da batina da inquidade matinha em sobressaltos constantes os heróicos profitentes da religião evangélica. Não se passava um só dia, porém que a ação benéfica e protetora da Ordem Maçônica não se fizesse sentir, ora livrando da morte os filhos de Deus, ora suprindo-lhes as necessidades e garantindo-lhes, eficazmente, a liberdade de culto e consciência.160
De tal sorte, que para se firmar no Brasil, tais religiões sofreram muitas restrições
pelos católicos. Logo, para vencê-los, os protestantes seguiram os passos do movimento
maçônico que lutava cada vez mais contra o autoritarismo da Igreja Católica.161 Nessa
época, o padre José Luiz de Almeida, foi obrigado a renunciar a Maçonaria e proibido de
156 Religião e Cristianismo: manual de cultura religiosa, p. 77. 157 GARDER, Jostein. HELLERN, Victor. NOTAKER, Henry. O livro das religiões. São Paulo: Companhia das letras, 2000, p. 285. 158 Religião e Cristianismo: manual de cultura religiosa, p. 84. 159 GARDER, Jostein. HELLERN, Victor. NOTAKER, Henry. O livro das religiões, p. 287. 160 LYRA, Jorge Buarque. A Maçonaria e o Cristianismo. 4 ed. Rio de Janeiro: Espiritualista, 1971, p. 251. 161 HASTENTEUFEL, Dom Zeno. História da Igreja do Brasil e do Rio Grande do Sul, p. 48.
56
discursar em suas Lojas. Esse fato serviu como estopim para que a Maçonaria intensificasse
sua luta contra a perseguição que sofria pelos católicos e buscasse a proteção imperial.162
Dessa forma, com o passar dos anos, vê-se que
[...] a situação geral política do Brasil se agravava dia e dia e era francamente revolucionária. No terreno religioso, o ateísmo e o positivismo davam-se as mãos com o apoio tácito dos governantes. Não havia enganos quanto ao futuro que estava reservado à monarquia. Tudo indicava que o período republicano era uma questão de dias. O sentimento monárquico de fidelidade às instituições estava encanecendo. O clero ainda estremecia aos golpes da perseguição aos bispos; os produtores estavam feridos pela abolição da escravidão. Todos haviam abandonado sua antiga dependência e sua fé no trono e se mantinham ou indiferentes à sua sorte ou francamente manifestavam sua oposição ao regime.163
Diante disso, o governo imperial até propôs à Câmara dos Deputados um programa de
reformas políticas, entre elas a proposta da liberdade de fé religiosa. No entanto, já era tarde
demais e em 15 de novembro de 1889, o marechal Deodoro da Fonseca depôs o Gabinete
imperial e formou o Governo Provisório da República dos Estados Unidos.164
2.2 A LIBERDADE RELIGIOSA NO ESTADO BRASILEIRO LAICO
O Governo provisório dos Estados Unidos foi o primeiro passo para a instituição de
um Estado Laico no Brasil. Posteriormente, com a importante participação de Rui Barbosa,
em 7 de janeiro de 1890, surgiu o Decreto nº 119-A. Sinteticamente, através desse, várias
medidas são tomadas: Foram retirados os efeitos civis do casamento religioso, os cemitérios
que eram controlados pela Igreja, passam a ser administrados pela autoridade municipal,
houve a proibição do ensino religioso nas escolas públicas, entre outras. Tudo isso resultou
de uma intenção: tornar o Brasil um Estado laico. O
[...] “Estado laicista” sustenta uma posição de completo indiferentismo a respeito da Religião, ignorando as exigências da dimensão social e sobrenatural do homem. A pessoa humana só interessa ao Estado enquanto é cidadão temporal e não enquanto é cidadão e fiel ao mesmo tempo. As crenças religiosas supõem apenas convicções particulares sem relevância na vida pública.
162 HASTENTEUFEL, Dom Zeno. História da Igreja do Brasil e do Rio Grande do Sul, p. 48. 163 SCAMPINI, José. A Liberdade Religiosa nas Constituições Brasileiras. Revista de Informação Legislativa – Senado Federal. Brasília, v. 42, p. 369-430 , 1974, p. 375. 164 COTRIM, Gilberto. História do Brasil: um olhar crítico, p. 248.
57
Pela mesma razão, a Igreja deve ser considerada mera associação sem direitos especiais, com a qual o Estado deverá manter uma completa independência e uma absoluta separação, já que ambas as esfera têm finalidades diferentes.165
Tais ideários baseavam-se no Liberalismo, o qual tinha a liberdade como uma
finalidade em si e manifestou-se no campo filosófico, sócio-econômico e religioso. Nesse
último, propagou a razão individual como único fundamento da verdade e a negação da
existência de uma religião objetiva, transcendente ou de uma Revelação.166
Seguindo essa linha de pensamento, foi promulgada a Constituição Federal de 1891,
que implantou definitivamente a Federação e a República no país. Com essa, “obviamente as
desigualdades oriundas da hereditariedade, as distinções jurídicas quanto ao status das
pessoas, as autoridades tornam-se representativas do povo e investidas de mandato por prazo
certo.” 167
No tocante a religião, com a nova Constituição reforçou-se a separação entre a Igreja
e o Estado e a liberdade na religião. Soriano explica que se entendia impossível um sistema
republicano conviver com tantas restrições no âmbito da liberdade religiosa, principalmente
sobre a liberdade de culto. Nenhuma forma de intolerância se coadunava com ideal
republicano.168
Nos termos do artigo 72, parágrafo 3º, da Constituição de 1891:
“Todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente seu culto.” A fé e piedade religiosa, apanágio da consciência individual, escapam inteiramente à ingerência do Estado. Em nome de princípio algum, pode autoridade pública impor ou proibir crenças e práticas relativas a este objeto; seria violentar a liberdade espiritual. Pertence ao Estado protegê-la como às demais liberdades. Nenhuma lei poderá, jamais, invadir o domínio do pensamento; este livra-se acima de todos os obstáculos com que se pretende tolhê-los.169
Antes de tudo, observa-se que o próprio preâmbulo da Constituição não referiu o
nome de Deus, “omitindo qualquer manifestação de apreço aos sentimentos cristãos de nosso
povo.” 170 Assim, a liberdade de culto foi condicionada à moral pública 171. Entretanto, tal
165 SCAMPINI, José. A Liberdade Religiosa nas Constituições Brasileiras. Revista de Informação Legislativa. V. 42, p. 383. 166 SCAMPINI, José. A Liberdade Religiosa nas Constituições Brasileiras. Revista de Informação Legislativa. V. 42, p. 382. 167 BASTOS, Celso Ribeiro. MARTINS, Ives Granda da Silva. Comentários à Constituição do Brasil, p. 327. 168 SORIANO, Aldir Guedes. Liberdade Religiosa no Direto Constitucional e Internacional, p. 73. 169 SCAMPINI, José. A Liberdade Religiosa nas Constituições Brasileiras. Revista de Informação Legislativa. V. 42, p. 391. 170 SCAMPINI, José. A Liberdade Religiosa nas Constituições Brasileiras. Revista de Informação Legislativa. V. 42, p. 422.
58
liberdade não foi distinguida das liberdades de consciência e de crença, que sequer foram
referidas de modo específico.
Posteriormente, com influência da crise econômica e dos movimentos sociais que
abalaram o liberalismo ,em 1934, foi promulgada outra Constituição. Para a elaboração de
seu texto, houve inspiração na Constituição alemã de Weimer e no pensamento fascista,
tendo em vista que se adotou além da representação corporativa tradicional, a representação
corporativa nazista. Logo, denota-se que a Constituição de 1934 foi um documento de
compromisso entre o liberalismo e o intervencionismo.172
A liberdade religiosa manteve-se assegurada em conformidade com o pensamento
laico e foi referida, pela primeira vez, a liberdade de consciência. A partir de então, o artigo
113 estabelecia: “É inviolável a liberdade de consciência e de crença e garantido o livre
exercício de cultos religiosos, desde que não contravenham a ordem pública e aos bons
costumes. As associações religiosas adquirem personalidade jurídica nos termos da lei civil.
Observa-se também que a liberdade religiosa não teve mais limitação a moral pública, mas
sim a ordem pública e os bons costumes. Ademais, nos termos do art. 146, passou-se a
admitir o casamento religioso com efeitos civis. Com o art.153, facultou-se o ensino religioso
nas escolas públicas.” Por fim, no preâmbulo suscitou-se o nome “Deus”.
A Carta de 1934 não perdurou por muito tempo. “Tanto a extrema esquerda quanto a
extrema direita tornaram inviável a sua plena aplicação, gerando condições para possível o
Golpe de 1937.” 173 Destarte, em 10 de novembro desse ano, uma nova Constituição é
outorgada.
Além da radicalização do clima social da época, vê-se que a Constituição de 1934, de
cunho liberal, apresentava intenso descompasso com as necessidades dos cidadãos. 174 Logo,
a nova Constituição de 1937 seria, “na verdade, uma tomada de posição do Brasil no conflito
ideológico da época, pela qual ficava nítido que o País se inseria na luta contra os comunistas
e contra a democracia liberal.”175
Com o início da “nova era de Vargas”, predominou-se um autoritarismo fascista e
muitos direitos fundamentais foram desconsiderados, principalmente no tocante aos direitos a
liberdade de expressão e de imprensa. O direito de manifestação de pensamento era
171 Art. 72, parágrafo 5º, CF/1891- Os cemitérios terão caráter secular e serão administrados pela autoridade municipal, ficando livre a todos os cultos religiosos a prática dos respectivos ritos em relação aos seus crentes, desde que não ofendam a moral pública e as leis. (grifo meu) 172 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 82. 173 BASTOS, Celso Ribeiro. MARTINS, Ives Granda da Silva. Comentários à Constituição do Brasil, p. 339. 174 BASTOS, Celso Ribeiro. MARTINS, Ives Granda da Silva. Comentários à Constituição do Brasil, p. 339. 175 BASTOS, Celso Ribeiro. MARTINS, Ives Granda da Silva. Comentários à Constituição do Brasil, p. 342.
59
intensamente restringido em prol da paz, da ordem e da segurança pública. De mesmo modo,
todas as manifestações culturais, inclusive a religião, podiam ser proibidas quando contrárias
aos ideais do governo. Essas, por sua vez, tinham base nos fundamentos da Ação Integralista
Brasileira (AIB), iniciada em 1932, por Plínio Salgado e Miguel Reale, que defendiam
proeminentemente pensamentos nazifascistas.176 Por conseguinte, há de se observar que tal
fato não agradava aqueles que seguiam o Judaísmo e que, por isso, eram perseguidos pelo
fascismo.
Contudo, apesar de haver limitações da liberdade religiosa, pela primeira vez, essa foi
retirada da Declaração de Direitos e inserida no rol de direito e garantias individuais, em seu
artigo 122, onde se ditava: “Todos os indivíduos podem exercer pública e livremente seu
culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito
comum, as exigências da ordem pública e dos bons costumes.”
De outra banda, Celso Bastos assevera que
[...] a carta de 1937 nunca chegou a viger. Ela dependia de um plebiscito que nunca se realizou. Destarte, quando a Segunda Guerra já dava mostras de estar se aproximando do seu fim, com a vitória dos países democráticos, Getúlio Vargas aqui no Brasil, procurou atualizar e compaginar o nosso direito constitucional às novas realidades que o término da Guerra já deixava entrever.177
Assim, a Constituição de 1946 foi criada, utilizando em sua elaboração as idéias de
1981 e 1934, repudiando o Estado Totalitário e consagrando novamente a Democracia no
país.178 Foi uma das melhores Constituições tidas no Brasil, com técnica muito correta, visão
libertária e com abertura para o campo social.179
Nela, o princípio da separação da Igreja e do Estado foi novamente explicitado, no
art. 31, inciso III, apesar de se manter referência a “Deus” no preâmbulo. Além disso,
[...] retornou-se à tradição da Constituição de 1934. A matéria permanece na seção da Declaração de Direitos (art. 141) e o parágrafo 7º, tem a seguinte dicção; “É inviolável a liberdade de consciência e de crença e assegurada o livre exercício dos cultos religiosos, salvo o dos que contrariem a ordem pública ou os bons costumes. As associações religiosas adquirirão personalidade jurídica na forma da lei civil.” Ordem pública e bons costumes permanecem como critério de calibração.180
176 COTRIM, Gilberto. História Global: Brasil e Geral, p. 416. 177 BASTOS, Celso Ribeiro. MARTINS, Ives Granda da Silva. Comentários à Constituição do Brasil, p. 346. 178 ARAÚJO, Luiz Alberto David. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 94. 179 BASTOS, Celso Ribeiro. MARTINS, Ives Granda da Silva. Comentários à Constituição do Brasil, p. 348. 180 GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. A liberdade religiosa nas Constituições do Brasil. Revista de Direito Constitucional e Internacional, pp.164-5.
60
No entanto, deve-se inferir que, mesmo com os pensamentos de liberdade e
democracia voltando a prevalecer, nesse período ainda perduraram idéias fascistas, através
do anti-semitismo. Recentemente, noticiou-se que foram encontrados documentos (circulares
secretas e telegramas oficiais) do Itamaraty, pela historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro,
que demonstram como o Brasil do pós-guerra barrava a entrada de seguidores da religião
judaica.181
Nesse diapasão, novamente denota-se que por mais aparentemente democrática que se
demonstravam as intenções constitucionais, na realidade, as condições dos cidadãos se
verificavam de modo diverso.
Posteriormente, para um maior retrocesso à democracia, as Forças Armadas tomaram
o poder e foi elaborada a Constituição de 1967. Era
[...] natural que o poder revolucionário desejasse à época um Texto Constitucional renovado, isso porque já houvera sido tão grande o número das emendas sofridas pela Constituição de 1946, assim como dos atos institucionais que mutilaram em diversas partes, que o texto Constitucional tornava-se caótico e desestruturado. O seu labor constituinte, foi rápido, dando-se em poucos meses. As principais notas do Texto de 1967 eram as seguintes: em primeiro lugar uma enorme preocupação com a segurança nacional, conceito que se tornou abrangente de diversas situações, dotado de um grande vazio semântico, que acaba por permitir a manipulação da Constituição em diversos pontos. 182
Isso se evidencia ao se analisar o duro golpe que o rol de direitos fundamentais
sofreu, tendo em vista que havia a possibilidade de suspensão dos direitos políticos conforme
o andar dos interesses governamentais.183 Apesar de permanecer na Declaração de Direitos
(art. 150 par. 1º), a liberdade religiosa também poderia ser restringida nos casos em que
houvesse manifestação de caráter ideologicamente contraria ao poder vigente.184
Nos anos que se seguiram, o país viveu uma fase extremamente turbulenta. Com a
edição do autoritário Ato Institucional n. 5, em 1968, aumentaram os movimentos de
manifestações estudantis com o intuito de demonstrar a insatisfação quanto as mazelas do
regime militar.185
Indispensável sublinhar que além dos atos institucionais interferindo nos teores
constitucionais, a Constituição de 1967 foi novamente emendada, e muitos passaram a
considerá-la como uma nova Carta. Nela nada foi alterado quanto ao dispositivo da liberdade
religiosa, embora encontrado no art. 153, parágrafo 5º. Ainda, chama a atenção que, como 181 BORTOLOTI, Marcelo. Hiprocrisia oficial. Revista Veja, Abril, ano 41, n. 5, p. 75-76, fev/08, p. 72. 182 BASTOS, Celso Ribeiro. MARTINS, Ives Granda da Silva. Comentários à Constituição do Brasil, p. 356. 183 ARAÚJO, Luiz Alberto David. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 95. 184 COSTA, Maria Emília Corrêa da. Liberdade religiosa como direito fundamental. Dissertação (Mestrado em Direito). 206 p. Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2005. p. 54. 185 BASTOS, Celso Ribeiro. MARTINS, Ives Granda da Silva. Comentários à Constituição do Brasil, p. 358-9.
61
nos termos da Carta de 1967, a Constituição de 1969 não previa a liberdade de crença em si,
mas apenas a liberdade de consciência, e na mesma previsão assegurava aos crentes o
exercício dos cultos religiosos. Então, a liberdade de crença era garantida como simples
forma de liberdade de consciência.186
Nessa época, houve grande perseguição a certos setores da Igreja, especialmente mais
à esquerda, embora as justificativas tivessem cunho ideológico e não religioso.187 Na
realidade, a repressão se intensificou em vários setores da vida social, realidade que
constatada cada vez mais através da impopularidade do governo e das manifestações
populares que se sucederam ao seguir dos anos.
Chegado o ano de 1983, iniciou-se uma campanha contestadora das eleições indiretas,
denominada “Diretas-já”. Entretanto, em 1985, novas eleições indiretas foram realizadas,
onde foi eleito pelo Colégio Eleitoral Tancredo Neves, visto como a “alternativa viável para
garantir o fim do governo militar”. A transição democrática era uma de suas propostas
juntamente com a instauração de uma Nova República.188 No entanto, ele nem chegou a
assumir a presidência devido a sua morte, e quem assumiu o seu lugar foi José Sarney, o
vice-presidente.189
Relevante inferir que
[...] Sarney assumiu a chefia do governo num momento histórico em que havia um consenso geral de que o regime democrático seria ideal para o atendimento das aspirações sociais. Quanto a isso até os extremistas de esquerda e de direita e a maioria dos militares concordavam. O consenso sobre o processo democrático foi uma das válvulas mestras que impulsionaram Sarney a enviar ao Congresso, em maio de 1985, uma série de medidas democratizantes, transformadas em leis.190
Entre tais medidas, foi finalmente estipulada a implantação de eleições diretas.
Contudo, isso não bastava para se reconhecer a democratização no país e o descontentamento
da população permanecia. Uma nova Constituição Federal era urgentemente necessária.
Primeiramente, em 1986, foi proposto por ela um anteprojeto de Constituição, a qual
foi rejeitada pelo presidente. Somente em 1989, em 5 de outubro, foi promulgada a atual
Constituição Federal, denominada por Ulysses Guimarães, Presidente da Assembléia
Nacional Constituinte que a produziu, como Constituição Cidadã, “porque teve ampla
participação popular em sua elaboração e especialmente porque se volta decididamente para
186 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 93. 187 GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. A liberdade religiosa nas Constituições do Brasil. Revista de Direito Constitucional e Internacional, p.165. 188 COTRIM, Gilberto. História do Brasil. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 356. 189 SILVA, Francisco de Assis. História do Brasil, p. 313. 190 SILVA, Francisco de Assis. História do Brasil, p. 319.
62
a plena realização da cidadania.” 191 A abertura para a realização das liberdades dos cidadãos
tinha se realizado.
2.3 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITOS E A PROTEÇÃO DE DIREITOS
FUNDAMENTAIS
A Constituição Federal de 1988 estabeleceu a República e o presidencialismo, como
forma e sistema de governo, respectivamente. Para tanto, apresentou vários fundamentos
inovadores. Entre eles, assinala-se a soberania, indispensável para a organização nacional,
tanto em relação a ordem interna, como para sua independência no tocante a ordem
internacional.
Além desse sentido de soberania, a chamada soberania popular passa a embasar a
República na medida em que essa se assume
[...] como res publica-res populi para excluir qualquer título de legitimação metafísico. Esta rejeição de legitimação metafísica abrange não apenas as tradicionais justificações de domínio de carácter dinástico-hereditário, divino ou divino-dinástico, mas também as “experiências” modernas de “condução dos povos” assente na “vontade do chefe” (fuhrerprinzip), na “vanguarda do partido único” (leninismo) ou na “vontade de deus” (fundamentalismo). A República é ainda uma ordem de domínio - de pessoas sobre pessoas -, mas trata-se de um domínio sujeito de deliberação política de cidadãos livres e iguais. Precisamente por isso, a forma republicana de governo está associada à idéia de democracia deliberativa.192
Outrossim, como frisado alhures, a cidadania, mostra-se outro fundamento da
Constituição de 1988. Da análise da palavra cidadania se depreende a condição de cidadão,
ou seja, de um indivíduo no gozo de seus direitos civis e políticos de um Estado. 193 “Como
termo legal, cidadania é mais uma identificação do que uma ação. Como termo político,
cidadania significa compromisso ativo, responsabilidade. Significa fazer diferença na
sociedade, no seu país.”194
Ainda, numa concepção contemporânea, Piovesan ensina que a cidadania tem ligação
aos caracteres de indivisibilidade, interdependência e inter-relação dos direitos humanos.
Quanto à indivisibilidade dos direitos humanos, cabe ao Estado Brasileiro a proteção e defesa dos direitos civis e políticos, bem como a implementação e realização dos direitos econômicos, sociais e culturais. Isto é, essas duas categorias de direitos merecem plena e absoluta relevância. [...]
191 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 90. 192 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 5. ed. Coimbra: Almedina, p. 224. 193FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio. Curitiba: Posigraf, 2004. p. 234. 194 OLIVEIRA, Pérsio Santos de. Introdução à Sociologia. 20 ed. São Paulo: Ática, 2001, p. 58.
63
Ainda com relação à responsabilidade do Estado quanto à indivisibilidade dos direitos, frise-se que a Carta de 1988 consagra o princípio da aplicabilidade imediata dos direitos e garantias fundamentais. Com base nesse princípio, toda e qualquer norma definidora de direitos e garantias fundamentais há de alcançar aplicação imediata e nesse sentido devem se orientar os poderes públicos. Cabe aos poderes públicos conferir eficácia imediata a todo e qualquer preceito constitucional definidor de direito e garantia fundamental.195
Por sua vez, quando a autora suscita a universalidade dos direitos humanos, fala na
responsabilidade do Estado expandir a cidadania, sem discriminação alguma e conferir
cumprimento das obrigações internacionais decorrentes dos tratados ratificados pelo Brasil.
Finalmente, “em relação ao processo de especificação do sujeito, cabe ao Estado instituir
políticas públicas que introduzam um tratamento diferenciado e especial aos grupos sociais
que, por exemplo, sofrem forte padrão discriminatório.”196
Importa consignar que a cidadania não se resume à posse de direitos políticos, mas
entrelaça-se diretamente com a dignidade humana.197 Portanto, a dignidade humana revela-se
outro fundamento da nova Carta com particular relevância.
O valor da dignidade humana impõe-se como núcleo básico e informador do ordenamento jurídico brasileiro, como critério e parâmetro da valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional instaurado em 1988. A dignidade humana e os direitos fundamentais vêm constituir os princípios constitucionais que incorporam as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo sistema jurídico brasileiro.198
Ademais, segundo Sarlet, a dignidade da pessoa humana serve concomitantemente
como limite e tarefa dos poderes estatais e da comunidade em geral, ou seja, possui uma
função dúplice, defensiva e prestacional.199 Nesse diapasão, pode-se ter a dignidade da
pessoa humana como
[...] a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos
195 PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. São Paulo: Max Limonad, 2003, pp. 342-4. 196 PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos, pp.345-6. 197 ARAÚJO, Luiz Alberto David. Curso de Direito Constitucional. p. 101. 198 PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos, p. 339. 199 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988.. 3 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 48.
64
destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.200
De outra banda, há quem sustente que a dignidade da pessoa não deve ser entendida
como exclusivamente inerente de modo e puro à natureza humana, ao passo que a dignidade
também possui cunho cultural e é fruto do trabalho de toda a humanidade e diversas
gerações.201 Por isso, Sarlet aduz que o conceito de dignidade humana se encontra em
permanente construção e desenvolvimento, não sendo possível conceituá-la de modo fixista,
pois uma definição desta natureza não se harmoniza com o pluralismo e a diversidade de
valores manifestadas nas sociedades democráticas contemporâneas.202
Em outras palavras, Souza Santos defende a necessidade de ter consciência da
incompletude cultural na concepção de dignidade humana, enxergada mais facilmente do
exterior, através de outra cultura. Ademais, aduz que nenhuma cultura é monolítica, pois
todas comportam versões diferentes da dignidade humana, algumas mais amplas do que
outras, algumas com um círculo de reciprocidade mais largo do que outras, algumas mais
abertas a outras culturas do que outras.”203
Diante disso, denota-se que, indissociado à dignidade humana, o pluralismo também
se revela como fundamento da atual Constituição. Além do viés político do pluralismo, esse é
abarcado em nosso sistema democrático também pela valorização do pluralismo social,
presenciada no preâmbulo da Carta.
Ao contrário da concepção unitária, homogênea e centralizadora denominada de “monismo”, a formulação teórica e doutrinária do “pluralismo” designa a existência de mais de uma realidade, de múltiplas formas de ação prática e da diversidade de campos sociais com particularidade própria, ou seja, envolve o conjunto de fenômenos autônomos e elementos heterogêneos que não se reduzem entre si.204
Ao considerar-se o pluralismo com fundamento constitucional, se propõe que não seja
imposta na sociedade brasileira “qualquer tese, dogma, religião, “verdade”, de compreensão
do mundo e da vida, de um lado, e a total disposição de que essas mesmas idéias possam ser
200 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. p. 62. 201 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. p. 47. 202 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. p. 42. 203 SOUZA SANTOS, Boaventura de. A gramática do Tempo: para uma nova cultura política. Porto: Afrontamento, 2006, p. 413. 204 WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico: proteção de um marco de alteridade. 3 ed. São Paulo: Alfa Omega, 2001, pp. 171-2.
65
difundidas, e em havendo algum dissenso entre os indivíduos, que se possa atingir o
consenso [...]”.205
Dessa maneira, Wolkmer sublinha a extensão do pluralismo à noção moderna do
princípio de tolerância. Os seres humanos são motivados pela concorrência, por conflitos de
interesses, pela diversidade cultural e religiosa de agrupamentos comunitários. Perante isso, o
pluralismo resguarda-se através de regras de convivência pautada pelo espírito de
indulgência e pela prática da moderação. “A filosofia da tolerância não só está associada à
filosofia da liberdade humana, mas, igualmente, ao direito de autodeterminação que cada
indivíduo, classe ou movimento coletivo possui de ter sua identidade própria e ser diferente
funcionalmente dos outros.”206
Além disso, interessante é que o pluralismo é verificado até mesmo na análise
material da Constituição onde, através de seu viés marcadamente compromissário, o
Constituinte acolheu e conciliou em seu texto posições nem sempre afinadas entre si,
resultantes das diferentes pressões políticas envolvidas no processo Constituinte. Outrossim,
os direitos fundamentais são a marca central do pluralismo, pois são dispositivos que
reconhecem uma grande gama de direitos sociais, clássicos, entre outros novos direitos.207
Essa pluralidade de direitos pode ser constatada na variedade de novos valores que
passaram a ser assegurados precipuamente no país. Alguns deles também são constatados
no preâmbulo da Constituição quando são se assegura o exercício dos direitos sociais e
individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça
como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na
harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica
das controvérsias.
Ainda, através do pluralismo, os valores democráticos são colocados como apanágio
de nossa estrutura estatal, pois a pluralidade de ideologias e de partidos indica a solidificação
de instituições, como a opinião pública livre e outras fundamentais à preservação da
democracia. 208
Nessa senda, pode-se compreender quando Morin sustenta que
205 SILVA, Tadeu Antonio Dix. Liberdade de Expressão e Direito Penal: no Estado Democrático de Direito. São Paulo: IBBCrim, 2000, p. 56. 206 WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico: proteção de um marco de alteridade, p. 177. 207 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 75. 208 ARAÚJO, Luiz Alberto David. Curso de Direito Constitucional, p. 102.
66
[...] a democracia constitui, portanto, um sistema político complexo, no sentido de que vive de pluralidades, concorrências antagonismos, permanecendo como comunidade. Assim, a democracia constitui a união entre a união e a desunião; tolera e nutre-se endermicamente, às vezes explosivamente, de conflitos que lhe conferem vitalidade. Vive da pluralidade, até mesmo na cúpula do Estado (divisão de poderes executivo, legislativo, judiciário), e deve conservar a pluralidade para conservar-se a si própria. O desenvolvimento das complexidades políticas, econômicas e sociais nutre os avanços da individualidade. Esta se afirma em seus direitos (do homem e do cidadão) e a adquire liberdades existenciais [...].209
Clarifica-se que, diante de toda essa complexidade, e a conseqüente propagação de
diferentes conflitos, o sistema democrático tornou-se o mais adequado, entre os existentes,
para a situação atual. Destarte, não é a toa que a Democracia foi adotada no país,
estabelecendo o intervencionismo estatal em busca do bem-estar social. “Assim, o Estado
Constitucional Democrático de 1988 não se identifica com um estado de direito formal,
reduzido a simples ordem de organização e processo, mas visa legitimar-se como um Estado
de justiça social, concretamente realizável.”210
Ocorre, no entanto, que a democracia nem sempre existiu e para ela surgir outras
formas de Estados existiram. A princípio, como superação do regime absolutista, apareceu o
denominado Estado de Direito, no início do século XIX, através constitucionalismo alemão.
Era entendido como “Estado Razão”, limitado em nome da autodeterminação da pessoa.
Depois, no final do século, estabilizaram-se em seus traços jurídicos a feição de Estado
Liberal de Direito, quando se era contra um Estado de Polícia que tem como tarefa a
prossecução da felicidade do povo, e a favor de limitar-se a segurança pública, o que remetia
os domínio econômicos e sociais para as liberdades individual e de concorrência. Também,
os poderes públicos e o soberano estavam limitados ao império da lei.211 Nesse passo, a
democracia deixava de ser uma simples forma de governo e tornava-se a regime político.
Todavia, como lembra Tadeu Silva, após um longo período, o Estado liberal não
respondia mais às novas necessidades sociais. Pressões nesse âmbito, como a eclosão da
Segunda Guerra Mundial, aumentavam a necessidade de justiça social, ocasionando-se,
assim, o advento do Estado Social.
As mudanças operativas mais expressivas do trânsito do Estado de Direito para o Estado Social de Direito, residem em responsabilizar a Administração pela tarefa de proporcionar aos cidadãos em geral a prestações e serviços públicos necessários e adequados para o pleno desenvolvimento de sua personalidade, reconhecida agora não apenas pelas
209 MORIN, Edgar. Os Sete Saberes necessários à educação do Futuro. São Paulo, Cortez, 2000, pp. 108-9. 210 PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos, p. 333. 211 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional, p. 97.
67
liberdades individuais tradicionais, mas também pela consagração constitucional dos direitos fundamentais de caráter econômico, sociais e culturais – os direitos sociais. Concomitantemente, o Estado Social pretende assumir a meta de reestruturar e equilibrar as rendas mediante o exercício de política fiscal; para tanto, e como resposta concreta ao individualismo e abstencionismo dos Estados de Direito propugna-se que o Estado Social seja um Estado dotado de um Executivo ativo, “forte”.212
Contudo, mesmo com a evolução da democracia no Estado Social, ainda não se
verificava a plena caracterização do regime democrático, pois todas essas mudanças não
bastavam para a necessária submissão do Estado (e, sobretudo, de seus governantes) à
vontade popular e aos fins propostos pelos cidadãos. Destarte, surge, em resposta, logo no
início do século XX, a concepção última do denominado Estado Democrático de Direito. 213
Como Canotilho alude, o elemento democrático não se verifica apenas para “travar” o
poder, mas sim para a necessidade de legitimação do poder. Logo, o Estado “impolítico” do
Estado de Direito não responde donde vem o poder importante para a democracia. “Só o
princípio da soberania popular segundo o qual “todo o poder vem do povo” assegura e
garante o direito à igual participação na formação democrática da vontade popular.” 214
Entende-se, assim, a necessidade de uma democracia deliberativa para a consagração
do Estado Democrático de Direito, onde os cidadãos se comprometam a resolver
conjuntamente os problemas colocados pelas suas escolhas coletivas através da discussão
política e a aceitar como legítimas as instituições políticas de base tendo em que estas
constituem o quadro de uma deliberação pública tomada com toda liberdade.215
Para tanto, percebe-se a importância da dinâmica dialética216 existente entre os
direitos fundamentais e princípio democrático, tendo em vista que aqueles são elementos
básicos217 para a realização desse.
Com efeito, verifica-se que os direitos fundamentais podem ser considerados simultaneamente pressuposto, garantia e instrumento do princípio democrático da autodeterminação do povo por intermédio de cada indivíduo, mediante o reconhecimento do direito de igualdade (perante a lei e de oportunidades) de um espaço de liberdade real, bem como por meio da outorga do direito à participação (com liberdade e igualdade), na conformação da comunidade e do processo político, de tal sorte que a positivação e a garantia do efetivo exercício de direitos políticos (no sentido de direitos de participação conformação do status
212 SILVA, Tadeu Antonio Dix. Liberdade de Expressão e Direito Penal: no Estado Democrático de Direito. pp. 37-8. 213 FRIEDE, R. Lições Objetivas de Direito Constitucional e de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 1999, pp. 23-4. 214 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional, p. 100. 215 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional, p. 224. 216 Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional, p. 291. 217 Cf. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional, p. 290
68
político) podem ser considerados o fundamento funcional da ordem democrática e, neste sentido, parâmetro de sua legitimidade.218
Nesse diapasão, é incontestável a interligação existente entre os direitos fundamentais
e o Estado Democrático de Direito. Aliás, foi somente após o advento desse que os direitos e
garantias individuais foram conceituados como direitos fundamentais, sendo que a
denominação também se estendeu aos direitos sociais219. Ainda, necessário aduzir que
através da nova Constituição e do Estado Democrático de Direito a proteção dos citados
direitos fundamentais foi intensificada, a ponto que muitos deles tornaram-se cláusulas
pétreas (art. 60 § 4 º, inc. IV)220.
Canotilho ensina que quando se fala em fundamentalidade no tocante aos direitos se
está apontando para uma necessidade de especial proteção dos mesmos, tanto num sentido
formal como material. A fundamentalidade formal demonstra associação a
constitucionalização, e através disso a colocação dos direitos fundamentais em grau superior
na ordem jurídica, com vinculação imediata dos poderes públicos, submetidos aos
procedimentos agravados de revisão e, muitas vezes, com limites materiais para essa. Já, “a
idéia de fundamentalidade material insinua que o conteúdo de direitos fundamentais é
decisivamente constitutivo das estruturas básicas do Estado e da sociedade.” A
fundamentalidade material fornece suporte para a abertura da Constituição a outros direitos
fundamentais, não constitucionalizados ou fora do catálogo. 221
É, portanto, evidente que uma conceituação meramente formal, no sentido de serem direitos fundamentais aqueles como tais foram reconhecidos na Constituição, revela sua insuficiência também para o caso brasileiro, uma vez que a nossa Carta Magna, como já referido, admite expressamente a existência de outros direitos fundamentais que não integrantes do catálogo (título II da CF), seja com assento na Constituição, seja fora desta, além da circunstância de que tal conceituação estritamente formal nada revela sobre o conteúdo (isto é, a matéria propriamente dita) dos direitos fundamentais. 222
Diante disso e de todas as referências já feitas nesse texto sobre os direitos
fundamentais, torna-se mais fácil entender o conceito atribuído por Friede:
Direitos constitucionais fundamentais constitui, em essência, uma expressão plural que busca traduzir uma concepção político-ideológica -
218 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. pp. 70-1. 219 O artigo 6º da Constituição Federal de 1988, estabelece que são direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados. 220 Art. 60 § 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: [...] IV - os direitos e garantias individuais. (grifo meu) 221 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional, pp. 376-7. 222 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, pp. 87-8.
69
introduzida, em última análise, pela normatividade jurídica do direito positivo - que concerne um conjunto de prerrogativas individuais e coletivas com o objetivo de garantir a convivência harmônica em sociedade, restringindo, em certa medida, o poder estatal e resguardando a igualdade dos entes sociais. Os chamados direitos constitucionais fundamentais, em termos próprios, vale assinalar, também se encontram associados, de forma inexorável, às liberdades públicas, em seu sentido amplo, podendo ainda ser classificados segunda as mais diversas óticas jurídicas.223
Basicamente, além dos direitos sociais (arts. 6º a 11º) já citados, os direitos
fundamentais, entre vários outros critérios, também se classificam como genéricos (direito à
nacionalidade – art. 12 –, os direitos individuais e coletivos - art. 5º- e os direitos difusos) e
políticos (arts. 14 a 16). 224 Porém, relevante assertar que os direitos fundamentais não se
limitam a essas classificações, pois como lembrado alhures ainda existem os direitos
fundamentais decorrentes do regime e dos princípios, fora do catálogo, em consonância ao
art. 5º § 2º, da Constituição.
Para Araújo e Nunes Jr. essas diversas formas de direitos fundamentais se devem a
sua natureza poliédrica, erigida e vocacionada à proteção da dignidade humana em todas as
dimensões: das liberdades (direitos e garantias individuais), das necessidades (direitos
econômicos, sociais e culturais) e na sua própria preservação (direitos à fraternidade e à
solidariedade).225
De um modo um pouco distinto, grande parte da doutrina jurídica também entende os
direitos fundamentais através de dimensões. Uma primeira dimensão diz respeito às
liberdades públicas e aos direitos políticos, os quais emergiram entre os séculos XVII e XIX.
Uma segunda, impulsionada com a Revolução Industrial, abrange os direitos sociais culturais
e econômicos, correspondendo aos direitos de igualdade. A terceira, os direitos coletivos,
como os ambientais e dos consumidores. Entretanto, seja qual for a dimensão, todas se
voltam à proteção da dignidade humana em suas diversas dimensões e rendem
[...] homenagens a um quadro histórico pautado por uma evolução do ordenamento jurídico, que, antepondo-se a agressões variadas à dignidade do ser humano (escravidão, tortura, imposições religiosas, miséria etc.), foi respondendo com a criação de novas instâncias de alforria do cidadão com novos círculos de proteção, que, a toda evidência, em uma relação de interação e de tensão dialética, vieram a ressignificar o próprio quadro das relações econômicas e sociais.
223 FRIEDE, R. Lições Objetivas de Direito Constitucional e de Teoria Geral do Estado, p. 123. 224 Cf . FRIEDE, R. Lições Objetivas de Direito Constitucional e de Teoria Geral do Estado. p. 124. 225 ARAÚJO, Luiz Alberto David; NUNES JUNIOR. Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 71.
70
Em outras palavras, esses níveis de proteção do indivíduo constituem produto de conquistas humanitárias que, passo a passo, foram sendo reconhecidas pelos ordenamentos jurídicos dos diversos países. Essa dimensão autogenerativa dos Direitos Fundamentais impregna, sem dúvida, alguma, o seu conteúdo. Eles não surgem de elucubrações dos legisladores, mas por estes são reconhecidos e constitucionalizados.226
Nessa linha, a Constituição é um documento que demonstra os valores prevalentes de
uma sociedade em determinada época histórica. Definindo-se esses valores, torna-se mais
fácil protegê-los entre os cidadãos e, precipuamente, perante o próprio Estado, que em muitos
tempos utilizou-se do autoritarismo para impor valores e controlar a vida dos cidadãos.
Diante disso, Canotilho assevera que a Constituição moderna consiste em uma
“ordenação sistemática e racional da comunidade política através de um documento escrito
no qual se declaram liberdades e os direitos e se fixam os limites do poder público.” Essa
definição tem origem com o constitucionalismo moderno que surgiu em meados do século
XVIII, pretendendo opor-se ao “constitucionalismo antigo, isto é, o conjunto de princípios
escritos consuetudinários alicerçados da existência de direitos estamentais perante o monarca
e simultaneamente limitadores de seu poder.”227
Na realidade, com isso tudo, percebe-se que, a qualquer tempo, a contenção do poder
estatal é indispensável para que realmente sejam considerados os valores sociais em vez dos
valores arbitrários dos governantes. Logo, somente com uma Constituição expressando os
valores de uma sociedade livre é possível afirmar-se a democracia e efetivar os direitos
fundamentais.
2.4 O DIREITO FUNDAMENTAL À LIBERDADE RELIGIOSA NA ATUAL
CONSTITUÇÃO FEDERAL E SUA INDISSOCIABILIDADE À LIBERDADE DE
EXPRESSÃO
Entre os valores protegidos pela Constituição, percebe-se, como já abordado durante
todo o texto, que a liberdade sempre foi proeminentemente resguardada, desde o surgimento
do Estado de Direito, quando se defendia unicamente os direitos de primeira dimensão. Por
conseguinte, ao longo dos tempos, foi se aperfeiçoando as previsões jurídicas constitucionais
protetivas das liberdades.
226 ARAÚJO, Luiz Alberto David. Curso de Direito Constitucional, p. 111. 227 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional, p. 52.
71
Na atual Constituição, muitos são os direitos fundamentais que tutelam a liberdade.
Esses, “também denominados direitos de resistência, são constituídos das chamadas cláusulas
limitativas do Estado, voltadas a fixar os limites da atuação estatal diante das liberdades do
indivíduo.”228
Entre esses direitos se encontra o foco principal deste estudo: o direito fundamental a
liberdade religiosa. Na Constituição Federal de 1988, ele está previsto no artigo 5º, inciso VI,
onde ser estabelece ser “inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado
o livre exercício dos cultos religiosos e garantida na forma da lei, proteção aos locais de culto
e suas liturgias.”
Vê-se que já não mais se exigem os bons costumes e a moral pública, embora intuitivamente percebe-se que tais condições foram remetidas “na forma da lei”. Trata-se de norma constitucional de eficácia contida, dependente de lei que a regulamente. A aludida forma da lei vem regular o exercício dos cultos, na medida em que especifica a proteção aos locais de culto e suas liturgias. A tendência é a eliminação das últimas barreiras. A modernidade assimilou os desdobramentos religiosos de moral e de bons costumes.229
Nessa linha, a atual concepção do direito fundamental a liberdade religiosa apresenta
uma feição nunca antes verificada, até mesmo porque se relaciona intensamente com os
valores democráticos. Isso é percebível quando se necessita além de um Estado laicista para
se realizá-lo, também, um Estado colaborador para tanto.
A liberdade religiosa não consiste apenas em o Estado a ninguém impor qualquer religião ou a ninguém impedir de professar determinada crença. Consiste ainda, por um lado, em o Estado permitir ou propiciar a quem seguir determinada religião o cumprimento dos deveres que dela decorrem (em matéria de culto, de família ou de ensino, por exemplo) em termos razoáveis. E consiste, por outro lado (e sem que haja qualquer contradição), em o Estado não impor ou não garantir com as leis o cumprimento desses deveres.230
Aliado a isso, denota-se que o direito a liberdade religiosa também se interliga ao
valor democrático do pluralismo político. Considerando que tal liberdade é exercitada em
conjunto, deve-se respeitar a organização de entes coletivos para congregar e fortalecer as
crenças e a fé de cada religião. 231
Ademais, deflagra-se na liberdade religiosa a necessidade da dignidade humana, pois
a opção religiosa está tão incorporada ao substrato de ser humano que o seu desrespeito
228 ARAÚJO, Luiz Alberto David. Curso de Direito Constitucional, p. 113. 229 GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. A liberdade religiosa nas Constituições do Brasil. Revista de Direito Constitucional e Internacional, p. 165. 230 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional, p. 409. 231 SILVA NETO, Manoel Jorge. Proteção Constitucional à Liberdade Religiosa, p.118.
72
também ofende a dignidade da pessoa. Considera-se que “os desdobramentos da liberdade de
religião devem ser necessariamente reconduzidos à esfera de sua dignidade; logo, quando
desrespeitado o direito individual, indisputavelmente maculado também restará a dignidade
da pessoa humana.”232
Além disso, outras peculiaridades são constatadas hodiernamente no direito
fundamental a liberdade religiosa, devido a sua complexidade e sinuosidade.
A abrangência do preceito constitucional é ampla, pois sendo a religião o complexo de princípios que dirigem os pensamentos, ações e adorações do homem para com Deus, acaba por compreender a crença, o dogma, a moral a liturgia e o culto. O constrangimento à pessoa humana de forma a renunciar sua fé representa o desrespeito à diversidade democrática das idéias da filosófica e a própria diversidade cultural.233
Nesse feixe de direitos, englobados sob denominação genérica de direito a liberdade
religiosa, residem, na verdade, dois direitos que são fundamentais e essenciais, sem os quais
não se pode dizer que um Estado albergue uma mínima garantida à liberdade de religião:234
o direito a liberdade de crença e a liberdade de culto.
Inicialmente, deve-se lembrar que esse entendimento não foi sempre prevalente nas
Constituições brasileiras. A Constituição Federal anterior não previa a liberdade de crença
em si, mas apenas a liberdade de consciência, e na mesma previsão assegurava aos crentes o
exercício dos cultos religiosos (art. 153 parágrafo 5º). Então, a liberdade de crença era
garantida como simples forma de liberdade de consciência.235
Hodiernamente, de modo mais adequado, a Constituição Federal de 1988, com seu
artigo 5º, na segunda frase do inciso VI,
[...] leva a cabo um retorno às Constituições de 1946 e 1934, onde se apartavam consciência e crença para proteger ambas. É esta sem dúvida a melhor técnica, pois a liberdade de consciência não se confunde com a de crença. Em primeiro lugar, porque uma consciência livre pode determinar-se no sentido de não ter crença alguma. Deflui pois da liberdade de consciência uma proteção jurídica que inclui os próprios ateus e agnósticos. De outra parte, a liberdade de consciência pode apontar para uma adesão a certos valores morais e espirituais que não passam por sistema religioso algum. Exemplo disto são os pacifistas que, embora tendo por centro um apego à paz e o banimento da guerra, não implica uma fé religiosa.236
232SILVA NETO, Manoel Jorge. Proteção Constitucional à Liberdade Religiosa, p. 114. 233 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 10 ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 75. 234 RIBEIRO, Milton. Liberdade Religiosa: uma proposta para debate, p. 34. 235SILVA, José Afonso da. Comentário contextual a Constituição. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 93. 236 BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra da Silva. Comentários a Constituição do Brasil: arts. 5 a 17. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 49.
73
Na realidade prática, o direito a liberdade de crença não obriga somente à pessoas a
observá-lo mas o próprio o Estado também está limitado a intervir nesse aspecto íntimo e
inviolável dos cidadãos.
Assegura-se, pois, no plano jurídico-subjetivo, a possibilidade de cada pessoa, conforme os ditames da sua própria consciência, livre de pressão e coação, responsabilizar-se por suas decisões éticas e existenciais. O indivíduo é livre pra crer ou não na divindade, no sobrenatural na transcendência, nas respostas sobre o sentido da vida e da morte- a liberdade, neste aspecto, poderia chamar-se, também, a-religiosa, já que a crença pode exercer-se em qualquer direção e contar, em qualquer caso, com a não confessionalidade do Estado, que deve igual consideração e respeito a todos os cidadãos. Na matéria religiosa afirma-se, “o Estado deve ignorar se o indivíduo crê e em que crê”, também fazendo parte do conteúdo da liberdade de crença a reversibilidade das opções de fé (conectado a revisibilidade da consciência). 237
Além disso, relevante consignar que a atual Constituição estabelece em seu artigo 5º,
inciso VIII, que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de
convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos
imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei”.
Nesses termos, apesar do resguardo da liberdade religiosa, analisa-se ser possível a
restrição da liberdade de crença em algumas situações. O artigo 15, inciso IV, prevê a
possibilidade de perdas dos direitos políticos em caso de recusa de cumprir obrigação a todos
imposta ou prestação alternativa. Desse modo, mesmo por motivos de crença, os cidadãos
podem perder seus direitos em caso de não-cumprimento de uma obrigação a todos impostos
e descumprimento de prestação alternativa, prevista em lei.
De outra banda, mas também de forma não absoluta, a Constituição de 1988 protege
a liberdade de culto, em seu artigo 5º, inciso VI, onde se tutela a liberdade de
“comportamentos individuais ou coletivos, religiosamente motivados, mais ou menos
ritualizados, não dirigidos unicamente a comunicação de conteúdos religiosos a outros”.238
Observa-se que
[...] o dispositivo transcrito compõe-se de duas partes: assegura a liberdade de exercício dos cultos religiosos, sem condicionamentos, e protege os locais de culto e suas liturgias - mas aqui, na forma da lei. É evidente que não é a lei que vai definir os locais do culto e suas liturgias. Isso é parte da
237 WEINGARTNER NETO, Jayme. A edificação constitucional do direito fundamental à liberdade religiosa: um feixe jurídico entre a inclusividade e o fundamentalismo. Tese de Doutorado em Direito pela Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul no ano de 2006. Disponível em: www.pucrs.br, Acessado em: 13 de fev. 2007, p. 305. 238 WEINGARTNER NETO, Jayme. A edificação constitucional do direito fundamental à liberdade religiosa: um feixe jurídico entre a inclusividade e o fundamentalismo, p. 313.
74
liberdade de exercício dos cultos, que não está sujeito à condicionamento. 239
Cumpre ao Estado, no entanto, fixar as normas protetoras desses locais, como pode
ser constatado através da imunidade fiscal sobre templos de qualquer culto (art. 150, VI, “b”
da Constituição Federal) Ainda, cabe aos Poderes públicos não embaraçar o exercício dos
cultos religiosos (art. 19, I da Constituição Federal) e impedir que isso ocorra.
Por outro lado, como afirma José Afonso da Silva, há locais, que não são
propriamente para culto, onde é possível realizar cultos mais no exercício da liberdade de
reunião do que no da liberdade religiosa. Tais lugares podem ser definidos pela legislação
nacional, juntamente com normas de proteção dos mesmos.240
Além dos incisos VI e VIII do artigo 5º, já referidos, o sétimo inciso também tutela a
liberdade religiosa, quando se assegura, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa
nas entidades civis e militares de internação coletiva. Na concepção de Alexandre de Moraes,
tal previsão
[...] encerra um direito subjetivo daquele que se encontra internado em estabelecimento coletivo. Assim, ao Estado cabe, nos termos da lei, a materialização das condições para a prestação de assistência religiosa, que deverá ser multiforme, ou seja, de tantos credos para quanto aqueles solicitados pelos internos.241
Outrossim, na esfera cultural, a Constituição também protege a liberdade religiosa
através dos artigos 206, 210, parágrafo 1º, 215, parágrafo 2 º e 216.242 Enquanto esses dois
últimos preceitos se limitam expressamente a defesa da liberdade religiosa enquanto
239 SILVA, José Afonso da. Comentário contextual a Constituição, p. 94. 240 SILVA, José Afonso da. Comentário contextual a Constituição, p. 94. 241 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. p. 77. 242 Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: [...] III - pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino. Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais. § 1º - O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental. Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. [...] § 2º - A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais. Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
75
manifestação cultural, os dois primeiros revelam uma dupla garantia constitucional, no que se
refere ao ambiente escolar.
Primeiramente, não se poderá instituir nas escolas públicas o ensino religioso de uma única religião, nem tampouco pretender-se doutrinar os alunos a essa ou àquela fé. A norma constitucional pretende, implicitamente, que o ensino religioso deverá constituir-se de regras gerais sobre religião e princípios básicos da fé. Em segundo lugar, a Constituição garante a liberdade das pessoas em matricular-se ou não, uma vez, que, conforme já salientado, a plena liberdade religiosa consiste também na liberdade ao ateísmo.243
Essas garantias são de grande importância para a vedação de qualquer interferência
do setor público no âmbito religioso, como também da criação de qualquer vínculo daquele
com as igrejas. Se reitera, destarte, a separação do Estado e das religiões, e indiretamente, se
fortalece a independência nas organizações religiosas.
Aliás, ao suscitar-se esse último ponto, torna-se indispensável referir que, como
conseqüência da liberdade religiosa, as confissões religiosas possuem o direito de
autodeterminação, ou seja, ao serem “dinamicamente entendidas como sujeitos de acção
social, supõe, cumulativamente, o reconhecimento e a protecção das suas especificidades nos
planos teológicos, orgânico e funcional, bem como das suas aspirações de crescimento e
implantação social”.244
Para esse crescimento e implantação social, as religiões tem a liberdade de
expressarem suas idéias a respeito de outras religiões, com o intento de convencer os crentes
dessas a imigrarem para a sua. Logo, a liberdade religiosa interliga-se fortemente ao direito
fundamental a liberdade de expressão.
O direito fundamental à liberdade de expressão, é catalogado no artigo 5º, inciso IV,
da Constituição Federal, o qual estabelece que é livre a manifestação do pensamento, sendo
vedado o anonimato. A liberdade de expressão consiste na faculdade de emitir opiniões,
idéias e pensamentos, seja qual for a forma, inclusive, formas artística-culturais como: teatro,
pintura, humor, obras literárias, etc.245 Logo, está o Estado restringido a interferir na
possibilidade dos cidadãos pensarem e emitirem as conclusões desse ato.
A liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e compreende não somente as informações consideradas como inofensivas, indiferentes ou favoráveis, mas também aquelas que possam causar transtorno, resistência, inquietar as pessoas,
243 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional, p. 77. 244MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva, p. 351. 245CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Direito de Informação e liberdade de expressão. Rio De Janeiro: Renovar, 1999, p. 29.
76
pois a Democracia somente existe a partir da consagração do pluralismo de idéias e pensamentos, da tolerância de opiniões e do espírito aberto ao diálogo.246
Voltando-se para a liberdade religiosa, constata-se que a liberdade de expressão
sempre colaborou para que aquela se realizasse. Como exemplo da importância da liberdade
de expressão para a religião, é possível citar as 95 teses que Martinho Lutero utilizou, no
século XVI, para se manifestar contra a venda de indulgências e para questionar o purgatório.
Com base nelas, também afirmou que a autoridade das escrituras era maior que a do Papa247
e, a partir disso, tornou-se propulsor da reforma protestante, possibilitando a criação e
difusão de outras religiões no mundo.
Além desse caso, podem ser citados vários outros, até mesmo porque uma grande
maioria de religiões não se desenvolve sem o proselitismo, ou seja, a possibilidade de
manifestar e difundir a fé, ou ainda, o direito à divulgação das convicções religiosas.248
Os integrantes de muitas religiões crêem fazer parte seus papéis como religiosos
realizarem o proselitismo e, assim, divulgarem suas crenças e opiniões religiosas para
atraírem fiéis, pois, assim, estão os trazendo para o “verdadeiro caminho do bem” e para “a
salvação”. Destarte, é incompatível o exercício de suas religiões sem essa tarefa.
Para Maria Berenice Dias,
[...] estes preceitos, com ligeiras variantes, são comuns a todas as religiões. E todas elas, por óbvio, querem aumentar o número de seus seguidores. A força de uma igreja é medida pelo tamanho de seu rebanho, e a maneira de tornarem-se poderosas é ter o maior número possível de fiéis. Este é o motivo que leva as pessoas a se unirem.249
Por sua vez, Adragão ensina que o proselitismo é resultado da unidade essencial entre
crença e conduta religiosa e condição de possibilidade de mudar de convicções, da liberdade
religiosa dos indivíduos, das famílias e dos grupos religiosos. Ademais, asserta que a
liberdade para manifestação de crenças tem precedência ontológica sobre a liberdade de não
a manifestar, até mesmo, porque a segunda define-se por referência à primeira.250
246 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional, p. 118. 247 WEINGARTNER NETO. Honra, Privacidade e Liberdade de Imprensa: uma pauta justificação penal. Porto Alegre: livraria do advogado, 2002, p. 78. 248 MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva: dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos, p. 225. 249 DIAS, Maria Berenice. A justiça e a laicidade. In: LOREA, Roberto Arriada; ORO, Ari Pedro (orgs.). Em defesa das liberdades laicas, p. 140. 250 ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado, p. 507.
77
Ainda, Ciarrúz acrescenta que o proselitismo é algo co-natural de todas as religiões e
conseqüência do pluralismo que floresce atualmente nas sociedades modernas.251 Outrossim,
proeminentemente observa que, dentro do rol de direitos fundamentais, o proselitismo é
contemplado por dois pontos de vista que se complementam. De um lado, como já referido, é
considerado uma manifestação da liberdade de expressão, qualificado pela matéria a qual
expressa, ou seja, a religião. Por outro, o proselitismo se enquadraria dentro dos vários
direitos oriundos da liberdade religiosa.252
Diante disso, denota-se que apesar de haver uma proteção constitucional do
proselitismo por interligar-se a dois direitos fundamentais, ainda há incertezas quanto a sua
definição axiológica. Outrossim, não somente nesse âmbito, mas também há “uma certa
relutância ou hesitação por parte das instituições internacionais em tratar esta figura, o que se
reflete nos instrumentos internacionais. Por isso mesmo, a prática do proselitismo não
possui uma moldura definida de direitos e /ou deveres.”253
É diante dessa indefinição quanto aos direitos e deveres advindos do proselitismo que
ocorrem os maiores conflitos nos âmbitos social e jurídico. Quando, muitas vezes, as
confissões abusam do direito de proselitismo, acabam ultrapassando seus limites razoáveis e
acabam desrespeitando a liberdade religiosa de outras confissões. Essa questão será tratada
detalhadamente mais a diante.
Por enquanto, pode-se adiantar que Sylvio Ferrari averigua, diante de religiões cristãs,
hebraica e islâmica, que os objetivos e a visão particular delas sobre a pertença religiosa
influem incisivamente na forma de realização do proselitismo. Aquelas que privilegiam a
componente individual da relação entre a pessoa e Deus, considerando o ingresso nelas e a
saída como uma escolha individual, têm conseguido aceitar o conceito de liberdade religiosa
e não encaram o proselitismo de forma negativa. De outra banda, as confissões religiosas
que salientam a componente comunitária da relação com Deus, entendendo que seus
integrantes não a compõe por escolha individual, enxergam o proselitismo com desconfiança
e possível rejeição.254
Diante de todo o exposto, pode-se inferir que, de forma concomitante e análoga a
história mundial, o entendimento e a efetivação da liberdade religiosa no Brasil vêm sofrendo
251 CIÁURRIZ, Maria José. El derecho de proselitismo en el marco de la libertad religiosa, p. 45. 252 CIÁURRIZ, Maria José. El derecho de proselitismo en el marco de la libertad religiosa, p. 51. 253 GUERREIRO, Sara. As Fronteiras da Tolerância: Liberdade religiosa e proselitismo na Convenção Européia dos Direitos do Homem, p. 175. 254 FERRARI, Sylvio. A liberdade religiosa na época da globalização e do pós-modernismo: a questão do proselitismo. Revista Consciência e liberdade. Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa, n. 11, 2001, p. 11.
78
mutações ao longo dos tempos. Ocorre que, somente agora, no atual Estado Democrático de
Direito, através da concepção de respeito ao pluralismo, presencia-se reais possibilidades de
sua concretização real. Porém, para tanto, ainda há um caminho a percorrer e empecilhos a
vencer, devendo-se, antes de tudo, enfrentar os problemas advindos do preconceito religioso,
tema que estudaremos a seguir.
3. A DISCRIMINAÇÃO RELIGIOSA COMO EMPECILHO PARA A EFETIVAÇÃO
DA LIBERDAE RELIGIOSA
Apesar de a Constituição Federal abrigar a liberdade religiosa (como também a
liberdade de crença e de culto) de maneira bem nítida e inequívoca, de todos viverem em um
Estado Democrático de Direito e da proliferação de ideários como o do pluralismo, não se
deve olvidar que em consonância com o quadro histórico apresentado, na realidade social, tal
liberdade não é efetivada totalmente e permanece muitas vezes inefetivada. Isso se deve
principalmente ao fenômeno do preconceito na religião, o qual ocasiona condutas
discriminatórias na atual sociedade e cabe ser analisado nesse momento.
3.1 ANÁLISE INTERDISCIPLINAR DO PRECONCEITO RELIGIOSO
A princípio, importante entender sobre qual espécie de preconceito está se falando.
Segundo Gadamer, a palavra
[...] “preconceito” (Voruteil) quer dizer um juízo (Urteil) que se forma antes do exame definitivo de todos os momentos determinantes segundo a
79
coisa em questão. [...] “Preconceito” não significa, pois, de modo algum, falso juízo, uma vez que seu conceito permite que ele possa ser valorizado positiva ou negativamente.255
Ainda, o autor complementa que esses preconceitos são guias da compreensão
humana em relação às coisas do mundo.256 Todas as pessoas possuem e produzem
preconceitos desde o momento em que foram inseridas no mundo, sendo que não está a total
disposição delas escolherem em tê-los ou não.
Crochík explica que
[..] o processo de conceituação envolve pré-conceitos presentes na experimentação com o objeto a ser conceituado, pois não existe experiência pura. Assim, mesmo quando nos encontramos em uma situação nova, temos de nos valer de experiências passadas que tornam o estranho familiar. Isto não significa que não possamos alterar esses pré-conceitos frente a à nova experiência vivida, assim como não significa que o novo objeto possa ser conceituado de forma distinta dos pré-conceitos, mas essa possibilidade de modificação pode indicar maior ou menor predisposição ao preconceito. O pré-conceito pode dizer respeito tanto às percepções, experiências ou conceitos já formulados, quanto às necessidade emocionais existentes antes da nova experiência. Isto significa que não há, a priori, a possibilidade de uma experiência, ou de uma reflexão que de alguma forma não seja direcionada por aquilo que o indivíduo já era.257
Todavia, esses preconceitos podem apresentar uma face prejudicial quando se
alicerçam em noções populares, intuições arbitrárias e repentinas, com a estreiteza dos
hábitos de pensar imperceptíveis.258 Também, quando derivam de tradições inautênticas que
predominam sobre a compreensão e sustentam raciocínios subsuntivos e dedutivistas,
originando uma dimensão ante-predicativa para a percepção da realidade.259
No âmbito religioso, por exemplo, eles são gerados por ensinamentos que excluem a
possibilidade de respeitar livres e novas formas de visões sobre a religião e são incorporados
automaticamente à vida das pessoas de forma acrítica.
Nesse passo, é possível deparar-se com preconceitos negativos quando esses resultam
de critérios injustificados baseados em um senso comum imposto pela tradição de um povo e
quando ocasiona a produção de estereótipos. 260
255 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 7 ed. Petrópolis: Vozes, Bragança Paulista: São Francisco, 2005, p. 360. 256 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 389. 257 CROCHÍK, José Leon. Preconceito, indivíduo e cultura. 3 ed. São Paulo, Casa do Psicólogo, 2006, pp. 31-2. 258 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica, p. 355. 259 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: Uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 5 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. 260 CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. O direito à diferença: as ações afirmativas como mecanismo de inclusão de mulheres, negros, homossexuais e portadores de deficiência. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
80
Sinteticamente, é possível entender os estereótipos como atributos fixos dispensados
às vitimas do preconceito e proporcionados pela cultura, de forma não individual.261 Para
Bacila, os estereótipos são a generalizações dos pré-conceitos. Quando aqueles desqualificam
permanentemente as pessoas e são reconhecidos pelas instituições, criam-se os estigmas.262
Esses, por sua vez, são espécies de marcas ou sinais depreciativos atribuído à algumas
pessoas, que as fazem se submeter involuntariamente a determinadas regras sociais falsas, as
quais prejudicam intensamente suas vidas e tornam o convívio social enfraquecido. 263
Mais detalhadamente, Tucci Carneiro esclarece que os estigmas obrigam
determinadas pessoas, muitas vezes, a mudarem de hábitos e costumes, como também a
endossarem as ideologias vigentes. Vivem, assim, uma dupla identidade sem condições de
optar por um determinado estilo de vida.264
Especificamente,
[...] o estigma da religião cai sobre aquele que desperta traços de comportamento que não são simpáticos à religião predominante e que, de regra, está ligada ao poder. São exemplos de condutas contrárias às determinadas pelas diversas religiões: usar (ou não) símbolos sagrados, pregar idéias divergentes, ameaçar o poder etc. Esses aspectos objetivos ligam-se à avaliação subjetiva do estigmatizado, fazendo-lhe parecer alguém que carrega o mal dentro de si, pois ele representa, sobretudo, a possibilidade de subversão da crença que está preponderando.265
Diante disso, importa questionar quais são os fatores responsáveis pela formação dos
preconceitos dos seres humanos. Primeiramente, Crochík explica que “o preconceito diz mais
respeito às necessidades do preconceituoso do que às características de seus objetos, pois
cada um desses é imaginariamente dotado de aspectos distintos daquilo que eles são.” 266
Ainda, o autor afirma que a experiência e a reflexão são as bases da constituição dos
indivíduos, e quando isso os falta, origina-se o preconceito. Quando o indivíduo age sem
reflexão, tem uma visão congelada assemelhada à reação de paralisia momentânea que se tem
frente a um perigo real ou imaginário.267 Em outras palavras, Jones expõe que
[...] o nosso status de Homo sapiens no reino animal nos coloca à parte, pois nosso conhecimento é obtido através de análise e pensamentos racionais e objetivos. E, mais importante do que isso, nossas ações
261 CROCHÍK, José Leon. Preconceito, indivíduo e cultura, pp. 20-1. 262 BACILA, Carlos Roberto. Estigmas: Um estudo sobre os preconceitos. São Paulo: Lúmen Juris, 2005, pp. 30-1. 263 BACILA, Carlos Roberto. Estigmas: Um estudo sobre os preconceitos, pp. 24-5. 264 CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Preconceito racial: Portugal e Brasil-Colônia. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1998, p. 253. 265 BACILA, Carlos Roberto. Estigmas: Um estudo sobre os preconceitos, p.155. 266 CROCHÍK, José Leon. Preconceito, indivíduo e cultura, p. 14. 267 CROCHÍK, José Leon. Preconceito, indivíduo e cultura, p. 16.
81
decorrem desse conhecimento racionalmente obtido. Os indivíduos que constantemente deixam de lado tais processos racionais de pensamento têm, segundo se admite, preconceito.268
Denota-se que a inocorrência desses processos racionais deve-se, muitas vezes, pelo
medo e pela insegurança que as pessoas têm de enfrentar a realidade, tanto pela percepção do
sofrimento que elas contém como pela necessidade da vinculação com a cultura universalista
em que elas se encontram.269 Melhor dizendo,
[...] o preconceito é inerente ao princípio de desenvolvimento que a nossa civilização adotou. A adaptação para a sobrevivência, tanto do individuo, como a nossa cultura pede por mecanismos que levem ao controle daquilo que não pode ser identificado, ou seja, dominado. Se a constituição da identidade se marca pela luta pela sobrevivência, a fragilidade só pode ser menosprezada, da mesma forma que o não idêntico tem de ser percebido como frágil para não colocar em questão os sacrifícios que o indivíduo teve de fazer para se constituir no que é.270
Não se pode negar que a necessidade de controle do desconhecido e a fragilidade dos
seres humanos perante ele têm forte ligação com a tradição, a qual foi supervalorizada por
muitos séculos em algumas sociedades e ainda interfere na forma de as pessoas pensarem e
agirem no mundo.
Para Oliveira, “tradição quer dizer entrega, transmissão. Algo nos é transmitido, é dito
a nós no mito, nos costumes, nos textos, portanto, sobretudo na forma da tradição escrita
cujos sinais são destinados a qualquer um que tenha capacidade de compreender.”271 Ela dá
força e caracteriza as comunidades locais principalmente devido aos ensinamentos comuns
passados aos integrantes delas. Ainda, a tradição age como “[...] uma orientação para o
passado, de tal forma que o passado tem uma pesada influência ou, mais precisamente, é
constituído para ter uma pesada influência sobre o presente.”272
Em específico na religião, muitas de suas manifestações “fechadas” e imutáveis,
geradoras de preconceito, derivam-se da interdependência com a tradição. No âmbito
religioso, dá-se uma grande importância ao ritual, o qual é um elemento que concede
268 JONES, James M. Tópicos de Psicologia Social: racismo e preconceito. São Paulo: Edgard Bluches, 1973, p. 59. 269 CROCHÍK, José Leon. Preconceito, indivíduo e cultura, p. 59. 270 CROCHÍK, José Leon. Preconceito, indivíduo e cultura, p. 73. 271 OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea. Edições Loyola, 1996, p. 233. 272 GIDDENS, Anthony. A vida em uma sociedade pós-tradicional. In: GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; LASH, Scott. Modernização Reflexiva: Política, Tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Editora da UNESP, 1997, pp. 80-1.
82
integridade à tradição, por ser um meio prático de manifestação da memória coletiva e de
preservação dela.273
Ressalta-se, entretanto, que
[...] como todos os outros aspectos da tradição, o ritual tem de ser interpretado; mas essa interpretação não está normalmente nas mãos do indivíduo laico. Aqui temos de estabelecer uma conexão entre guardiães da tradição e as verdades que essas tradições contêm ou revelam. A tradição envolve uma “verdade formular”, a que apenas algumas pessoas têm pleno acesso. A verdade formular não depende das propriedades referenciais da linguagem, mas do seu oposto; a linguagem ritual é performativa, e às vezes pode conter palavras ou práticas que os falantes ou ouvintes mal conseguem compreender. O idioma ritual é um mecanismo da verdade em razão de - e não apesar de - sua natureza formular. A fala ritual é aquela da qual não faz sentido discordar nem contradizer - e por isso contém um meio poderoso de redução da possibilidade de dissenção.274
Diante disso, muitos fiéis, ao acreditarem fielmente nas verdades formulares da
religião, passam a enxergá-las como absolutas e eliminam automaticamente a noção de que
outros entendimentos religiosos possam existir. Com efeito, é
[...] a conexão entre ritual e verdade formular o que confere às tradições sua qualidade de exclusão. A tradição sempre discrimina entre o “iniciado” e o “outro”, porque a participação do ritual e a aceitação da verdade formular são condições para sua existência. O “outro” é todo e qualquer um que esteja de fora. Pode-se dizer que tradições praticamente exigem que se seja separado dos demais, uma vez que ser um iniciado é crucial para o seu caráter. Por isso, a tradição é um meio de identidade. Seja pessoal ou coletiva, a identidade pressupõe significado; mas também pressupõe o processo constante de recapitulação e reinterpretação observado anteriormente. A identidade é a criação da constância através do tempo, a verdadeira união do passado com um futuro antecipado. Em todas as sociedades, a manutenção da identidade pessoal, e sua conexão com identidades sociais mais amplas, é um requisito primordial de segurança ontológica. Esta preocupação psicológica é uma das principais forças que permitem às tradições criarem ligações emocionais tão forte por parte dos “crentes”. As ameaças à integridade das tradições são, muito frequentemente, se não universalmente, experimentadas como ameaças à integridade do eu.275
Entretanto, é interessante observar que mesmo com o advento da modernidade e,
assim, um maior desapego a tradição na atualidade, o preconceito ainda se mantém
proeminente. Ele
[...] é remetido às condutas irracionais individuais consideradas como regressivas.
273 GIDDENS, Anthony. A vida em uma sociedade pós-tradicional. In: GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; LASH, Scott. Modernização Reflexiva: Política, Tradição e estética na ordem social moderna. p. 82. 274 GIDDENS, Anthony. A vida em uma sociedade pós-tradicional. In: GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; LASH, Scott. Modernização Reflexiva: Política, Tradição e estética na ordem social moderna. p. 83. 275 GIDDENS, Anthony. A vida em uma sociedade pós-tradicional. In: GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; LASH, Scott. Modernização Reflexiva: Política, Tradição e estética na ordem social moderna. p. 100.
83
O preconceito se remete à dominação e, quando é o caso, à proposta de eliminação do desconhecido para se manter aquilo que já é conhecido. É a reação às mudanças quer individuais, quer sociais, paradoxalmente manifestada tanto por aqueles que se beneficiam da situação, quanto por aqueles que não têm os seus interesses racionais mais imediatos atendidos por ela. 276
Ocorre que, a partir do último século, até mesmo as descobertas científicas, que
tiveram seu apogeu no período moderno, passaram a ser questionadas. Vive-se em uma
sociedade de instabilidades e desenvolveu-se uma desconfiança sobre o que realmente se
sabe sobre o mundo. As “verdades” tradicionais perderam sua credibilidade, entendendo-se,
portanto, que podem ser meras perspectivas ou verdades parciais. Ainda, Catherine Clement
ensina que “após o fim da Guerra Fria, o mapa mundial mudou de repente e ainda está em
constante mudança. Não é de causar surpresa que vivemos uma crise moral! Um novo mundo
vai existir e ninguém sabe como será.” 277
Nesse passo, a incerteza torna-se constantemente presente no cotidiano das pessoas e
Bauman acrescenta algumas razões para isso: primeiramente, deve-se ao enfraquecimento e
desintegração das redes de segurança tecidas pessoalmente (família e vizinhança) como
também pelas mensagens indeterminadas e maleáveis do mundo que se está passando às
pessoas de acordo com os interesses predominantes. Resulta também da nova desordem
existente no mundo, tendo em vista que as divisões de blocos econômicos bem definidas no
passado não existem mais, mas sim em torno de vinte países, aflitos e incertos de si próprio
que enfrentam o resto do mundo, que não mais os inclina a venerá-los. Ademais, a incerteza
provém da desregulamentação universal, ou seja, da desatada liberdade concedida ao capital
e às finanças, como também o repúdio a todas as razões não econômicas que acabam por
levar ao desvio do projeto da comunidade como defensora do direito universal e à vida
decente e dignificada. 278
Vê-se a tentativa de aplicação da lógica de bens e serviços aos seres humanos, com a
busca de sua uniformização, onde se objetiva que determinados padrões de pensar e agir
sejam adotados por todos os tipos sociais. “É como se existisse uma mágica do poder que
tende a atrofiar a vigilância crítica dos indivíduos, desviando as atenções do que realmente
276 CROCHÍK, José Leon. Preconceito, indivíduo e cultura, p. 115. 277 ROGÉRIO, Cristiane. MUTO, Eliza. Religião se discute, sim!. Revista Crescer, n. 157,. Globo, p. 65-7, dez, 2006, p. 71. 278 BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, pp. 32-6.
84
deve ser discutido - eu tenho direito a ser e cumprir seu destino de humanidade autônoma -,
sacralizando processos de exclusão social que achamos cada vez mais normais”.279
Através desse processo, o indivíduo preconceituoso atua, pois
[...] avesso à subjetividade, conforme demonstram as pesquisas, ele julga não falar só em seu nome, mas no de uma coletividade a qual representa, ou melhor, com a qual se confunde. Aqueles com os quais se identifica e aqueles para os quais se propaga a identificação formam um conjunto coeso assemelhado com o bem; os que são excluídos desse conjunto são inimigos. O que caracteriza uns e outros são elementos culturais que, antes de poderem expressar a diversidade como universalidade, expressam uma hierarquia do fraco e do forte, do bem e do mal-adaptado, do pior e do melhor. A classificação que estamos acostumados a fazer com os objetos é extrapolada para as pessoas e isso só é possível quando essas são consideradas como coisas a serem manipuladas.280
Um fator que colaborou para fortalecer essa idéia de hierarquia entre os seres
humanos foi a Globalização hegemônica, desenvolvida mundialmente a partir de 1980.
Giddens sustenta que o processo globalizador, além de fragmentar e coordenar, introduz
novas formas de interdependência mundial, nas quais não há “outros”281, ou seja, formas
diversas de pensamento também não são totalmente aceitas. Nesse andar, o controle de
alguns países sobre outros, através da globalização, “não só focalizou o olhar do mundo na
reestruturação econômica global e seus pressupostos ideológicos, como também trouxe à luz
uma série de conflitos aparentemente novos: o despertar de nacionalismos religiosos e
étnicos e a determinação de redesenhar fronteiras geopolíticas como resposta. 282
Esses conflitos têm ligação direta com o apego a preconceitos prejudiciais que, no
mundo incerto de hoje, conferem estabilidade às pessoas. Pela insegurança ontológica, há
tentativas repetidas de criar uma base segura. Isto é, de reafirmar valores como absolutos
morais, declarar que as outras pessoas não têm valores, estabelecer limites distintos do que é
virtude ou vício, ser rígido em vez de flexível ao julgar, ser punitivo excludente em vez de
permeável e assimilativo. 283
279 ALBUQUERQUE. Paulo Peixoto. Trabalho, exclusão social e direitos humanos. In: KEIL, Ivete; ALBUQUERQUE, Paulo. SOLON, Viola. Direitos Humanos: alternativas de justiça social na América Latina, p. 106. 280 CROCHÍK, José Leon. Preconceito, indivíduo e cultura, p. 41 281 GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade, p. 174. 282 YÚDICE. George. A conveniência da cultura: Usos da cultura na era global. Belo Horizonte: UFMG, 2006, p. 124. 283 YOUNG, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Rio de Janeiro: Revan, 2002, pp. 34-5.
85
Na religião isso pode ser percebido facilmente, pois, não só o medo à instabilidade
identitária, mas também o risco de exclusão aos não seguidores das tradições na religião
impedem a efetivação da liberdade nessa esfera, na medida em que neutralizam o surgimento
de outras possibilidades de crença e culto e as mantém ligadas a seus pré-juízos.
Às pessoas torna-se mais fácil ignorar e vetar a possibilidade de outros deuses e
preceitos relacionados a eles, a constatarem uma variação de entedimentos nessa esfera, o
qual as deixe inseguras sobre os modos ideais de comportamento e sobre a “força maior” que
responde a seus anseios. Por isso uma grande parcela dos humanos resiste compreender e
respeitar outras formas de religião que não a sua pois tais fiéis se apóiam em referidas
verdades formulares para suas tranqüilidades e reconfortos na vida diária.
Logo, a eliminação dessas verdades em seus cotidianos cria o risco de, muitas vezes,
os fazerem “perder o chão” e o que eles ainda têm como base identitária, ocasionando uma
sensação de instabilidade sobre seus mundos e a realidade. Ainda, a possibilidade de que o
Deus que eles acreditam não ser o exemplo mais adequado a ser seguido gera desconfortos.
3.2 FORMAS E LIMITES DO PRECONCEITO RELIGIOSO
Como resultado de tudo isso, interessante é que, hodiernamente, muitos crentes
objetivam um retorno à valorização social da tradição, como pode ser visto através dos
movimentos fundamentalistas, os quais
[...] estão enraizados nas tradições religiosas. Paradoxalmente, estas raízes não se situam na corrente dominante dessas religiões, mas sim nas suas tendências heterodoxas – em especial na tendência e movimentos utópicos heterodoxos. Os modernos movimentos fundamentalistas podem ser encarados como a transformação, em moldes modernos, de certos tipos de heterodoxias que se desenvolveram nalgumas civilizações axiais - e que estiveram também, especialmente nas Grandes Revoluções, nas origens da modernidade.284
Em si, o termo fundamentalismo religioso, se aplica às pessoas crentes de distintas
religiões, que possuem um sistema rígido de crenças religiosas, as quais se sustentam por
textos revelados, definições dogmáticas e crenças infalíveis. 285 Além dos protestantes, o
284 EISENSTADT, S. N. Fundamentalismo e Modernidade: heterodoxias, utopismo e jacobismo na Constituição dos movimentos fundamentalistas. Trad. Ana Luísa Faria. Oeiras: Celta, 1997, pp. 1-2. 285 TAMAYO, Juan José. Fundamentalismos y diálogo entre religiones. Madrid: Trotta, 2004, p. 74.
86
termo é aplicado a movimentos no Islã, do judaísmo e de civilizações como do hinduísmo e
do budismo. 286
Historicamente, o fundamentalismo teve sua gênese após o ciclo de conferências
organizado em Niagara (de 1883 à 1897), o qual resultou em doze fascículos publicados no
ano de 1910 e 1915, denominados “The Fondamentals: a testimony to the truth”, que
criticavam o liberalismo protestante e as novas exegeses do texto bíblico. 287 Surgiu como um
movimento antiliberal a favor da contenção das novas religiões protestantes, buscando-se a
preservação da autoridade absoluta da letra da bíblia na vida do cristão, através de cinco
pontos fundamentais: a inerrância da bíblia, o nascimento virginal de Jesus, a ressurreição
física de Jesus, a expiação dos pecados por Jesus e autenticidade dos milagres de Jesus. 288
Nesse sentido, o termo
[...] fundamentalismo foi de início um nome orgulhosamente autoconferido por seus portadores; uma autodesignação, uma auto-expressão, não uma acusação ou um insulto [...]. Quando o reverendo Curtis Lee Laws, editor do jornal batista Watchman Examiner, inventou o termo “fundamentalismo” em 1920, o nome foi honrosamente assumido por seus colegas batistas e presbiterianos como algo que denotava seu empenho de ir à luta “pelos pontos fundamentais da fé”.289
Por um viés sociológico, o fundamentalismo nasceu, “precisamente porque a
modernização começou a relegar o religioso para a esfera da sociedade civil e a secundarizar
o seu papel instituinte das normas morais e das leis que pautam a vida individual e social.”290
Isso não agradava os cristãos fundamentalistas, os quais percebiam que
[...] os religiosos também faziam tentativas semelhantes de chegar a uma nova visão dos fundamentos. Os mais prescientes compreendiam que pessoas totalmente modernizadas não podiam ser religiosas a maneira antiga. A espiritualidade conservadora, que ajudara o homem a adequar-se às limitações essenciais e aceitar as coisas como elas são, não os ajudaria naquela atmosfera iconoclasta e futurista.291
Essas novas formas de entendimento agregada a difusão do evolucionismo biológico
fortalecia a “[...] descristianização da cultura e da educação, a secularização radical dos
286 EISENSTADT, S. N. Fundamentalismo e Modernidade: heterodoxias, utopismo e jacobismo na Constituição dos movimentos fundamentalistas, p. 1. 287 CATROGA, Fernando. Entre Deuses e Césares: Secularização, laicidade e religião civil, p. 287. 288 PIERUCCI, Antônio Flávio. Ciladas da diferença. 2 ed. São Paulo: 34, 1999, p. 194. 289 PIERUCCI, Antônio Flávio. Ciladas da diferença, p. 193. 290 CATROGA, Fernando. Entre Deuses e Césares: Secularização, laicidade e religião civil, p. 286. 291 ARMSTRONG, Karen. Em nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo. (trad. Hildegard Feist). São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 197.
87
modos de pensar. Daí o medo fundamentalista do futuro, de um futuro sem Deus, seu
aguçado sentido de urgência, sua indignação moral embebida de catastrofismo292.”
Além disso, importante referir que
[...] em 1909, Charles Eliot, professor emérito de Harvard University, pronunciou um discurso intitulado “o futuro da religião”, que assustou os mais conservadores. A nova religião teria apenas um mandamento: o amor a Deus, expresso no serviço concreto prestado ao próximo. Não existiriam igrejas nem escritura; nem teologia do pecado, nem culto. A presença de Deus seria tão evidente e poderosa que não haveria necessidade de liturgia. Os cristãos não teriam o monopólio da verdade, pois as idéias dos cientistas, dos secularistas ou dos que professavam a fé seriam igualmente válidas.293
A partir disso, os fundamentalistas entenderam necessário se fortalecerem e, portanto,
se fazem presentes em pleno século XXI de forma proeminentemente considerável. Como
bem assevera Bauman, muitos crentes se fascinam pelo fundamentalismo, pois esse lhes
promete emancipá-los das agonias da escolha. No fundamentalismo eles encontram,
finalmente, a autoridade indubitavelmente suprema, que acaba com todas as outras
autoridades, na medida em que a seguindo se agirá de modo certo, sem correr o risco de
errar. Num mundo em que todos os meios de vida são permitidos, mas nenhum é seguro, ela
mostra
[...] coragem suficiente para dizer, aos que estão ávidos de escutar, o que decidir de maneira que a decisão continue segura e se justifique em todos os julgamentos a que interesse. A esse respeito, o fundamentalismo religioso pertence a uma família mais ampla de soluções totalitárias ou protototalitárias, oferecidas a todos os que deparam com a carga da liberdade individual excessiva e insuportável. 294
Interessante observar também que o fundamentalismo baseia-se, muitas vezes, no
discurso do ódio para alcançar seus objetivos. Compreende-se como discurso do ódio os
fundamentos utilizados por pessoas que se detém precipuamente no ódio para justificar e
realizar suas ações.
Glucsmann explicar que
[...] o ódio existe, todos nós já se deparamos com ele, tanto na escala microscópica dos indivíduos como no cerne de coletividades. A paixão por agredir e aniquilar não se deixa iludir pelas magias da palavra. As razões atribuídas ao ódio nada mais são do que circunstâncias favoráveis, simples ocasiões, raramente ausentes, de liberar a vontade de destruir simplesmente por destruir. [...] O ódio julga sem saber. O ódio julga sem ouvir. O ódio condena a seu bel-prazer. Nada respeita e acredita encontrar-se diante de
292 ARMSTRONG, Karen. Em nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo, p. 197. 293 ARMSTRONG, Karen. Em nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo, p. 198. 294 BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, pp. 228- 9.
88
algum complô universal. Esgotado, recoberto de ressentimento, dilacera tudo com seu golpe arbitrário e poderoso. Odeio, logo existo. 295
Verifica-se que, sempre na história da humanidade, se constataram situações em que
esse discurso esteve em voga. Desde os primórdios, verifica-se a aversão de determinados
indivíduos para com o outros, a qual servia de motivação para alguns comportamentos. Há
quem entenda que isso decorre do instinto de preservação do homem que, por insegurança,
tende a identificar-se com membros de determinados grupos, repelindo os que considera
desiguais. Outros, a seu turno, entendem que o principal aspecto a ser considerado é o
egoísmo, o que atribui aos conflitos religiosos, por exemplo, relevância secundária e que
servem de justificativa para a dominação política e econômica.296
Nesse passo, no último século, o discurso do ódio se proliferou intensamente, através
de guerras extensas, revoluções exaustivas, genocídios e, agora recentemente, com os
acontecimentos terroristas de 11 de setembro de 2001, em Nova York.297 Muitos
movimentos religiosos adotam o ódio, cada vez mais e até sem perceber, como justificativa
para a defesa de seus conceitos e de sua fé, o que é extremamente prejudicial ao convívio
entre os humanos no mundo pluralista e de intensas diversidades em que se vive.
Diante desse ponto, importante reparar a distinção oferecida por Weingartner Neto
quanto a duas espécies de fundamentalismo religioso. O autor observa que se o
fundamentalismo revela-se somente na esfera da crença (fundamentalismo-crença), cujo
cerne hermenêutico é tolerável, inclusive na vertente positiva do proselitismo, não se
verificam maiores problemas para a vida em sociedade. Por sua vez, quando o
fundamentalismo afronta valores fundamentais de forma abstrata ou concreta
fundamentalismo-militante), torna-se intolerável ao Estado Democrático de Direito e é
bloqueável pelo direito constitucional.298
Paralelamente a essas distinções e limites do fundamentalismo, corre também a
distinção entre as modalidades de preconceitos possíveis e as vedadas em um Estado
Democrático de Direito. Enquanto os preconceitos se mantêm no âmbito interno e pessoal,
eles não geram maiores prejuízos. Entretanto, o problema se encontra quando eles passam a
ser externalizados e desencadeiam a discriminação.
295 GLUCSMANN, André. O discurso do ódio. Rio de Janeiro: DIFEL, 2007, pp. 11-2. 296 SANTOS, Christiano Jorge. Crimes de preconceito e de discriminação: Análise jurídico-penal da lei 7.716/89 e aspectos correlatos. São Paulo: Max Limonad, 2001, p. 21. 297 GLUCSMANN, André. O discurso do ódio, p. 14. 298 WEINGARTNER NETO, Jayme. A edificação constitucional do direito fundamental à liberdade religiosa: um feixe jurídico entre a inclusividade e o fundamentalismo, p. 196.
89
Ferreira da Silva repara que o interesse sobre a palavra discriminação vai além do
significado usual, de um estado de fato no qual ocorrem tratamentos injustificadamente
diferenciados, e se concentra no sentido jurídico do termo, ou seja, o elemento de uma
política, que leva em conta, entre tais tratamentos diferenciados aqueles que possuem
significado social.299
Pelo viés jurídico, Souza Cruz entende
[...] discriminação como todo e qualquer forma, meio, instrumento ou instituição de promoção da distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em critérios como a raça, cor de pele, descendência, origem nacional ou étnica, gênero, opção sexual, idade, religião deficiência física, mental ou patogênica que tenha o propósito de ou efeito de anular ou prejudicar o reconhecimento, gozo ou exercício de em pé de igualdade de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer atividade no âmbito da autonomia pública ou privada.300
Tendo em vista o direito fundamental à liberdade de expressão, o qual permite que
todos os cidadãos expressem seus pensamentos por meio de todas as formas possíveis,
constata-se a ampla ligação entre a discriminação e as formas de linguagem.
A linguagem pode ser conceituada um sistema de signos ou sinais utilizados para as
pessoas se comunicarem, indicarem coisas, expressarem idéias, valores e sentimentos. 301 Na
concepção de Carrió, “toda linguagem é um sistema de símbolos convencionais, pois não tem
nenhuma relação necessária entre as palavras, como também, entre as funções e seus objetos,
circunstâncias e fatos.” 302 Nesse sentido, são várias as possibilidade da discriminação
ocorrer quando por meio da linguagem, pois essa
não se realiza em enunciados, porém como conversação. Contra a lógica locucional, para a qual a sentença constitui uma unidade de sentido auto-suficiente, a hermenêutica lembra o fato de que uma locução nunca pode desvincular-se de seu contexto motivacional, isto é, da conversação, na qual ela está inserida e somente a partir da qual ela ganha sentido.303
Um dos modos mais comuns da discriminação ocorrer é através de palavras e na
religião isso ocorre frequentemente, através do proselitismo, quando alguns crentes utilizam-
se das palavras para tentar convencer fiéis de outra religião a aderirem a sua.
299 SILVA, Jorge Cesar Ferreira. A proteção contra discriminação no direito contratual brasileiro. In: MONTEIRO, Antonio Pinto; SARLET, Ingo Wolfgang; JORG, Neiner. Direitos Fundamentais e Direito Privado, Coimbra: Almedina, 2007, p. 393. 300 CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. O direito à diferença: as ações afirmativas como mecanismo de inclusão de mulheres, negros, homossexuais e portadores de deficiência. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 21. 301 CHAUÍ, Marilena . Convite à Filosofia, p. 141. 302 CARRIÓ, Genaro R. Nota sobre derecho e lenguaje. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1990, p. 91. 303 GRONDIN, Jean. Introdução à Hermenêutica Filosófica (trad. de Benno Dischinger). São Leopoldo: Unisinos, 2000, p. 197.
90
Apesar de os significados das palavras resultarem de acordos tácitos entre as pessoas
de uma comunidade “é uma ilusão pensar que cada palavra corresponde apenas a um
significado”,304 sendo através desses significados ambíguos que é possível a expressão dos
preconceitos discriminatórios. Ademais, necessário lembrar que palavras ou orações não são
usadas apenas para descrever, mas também para recomendar, aprovar ou desaprovar algo ou
alguém.305
Para Tucci Carneiro, quando a discriminação é realizada através de palavras, ocorre
uma espécie de deformação fonética e ortográfica, onde elas são “utilizadas como
instrumento de doutrinação, interferindo nas formas de comportamento dos indivíduos.” A
historiadora afirma que, na história das religiões, isso pode ser facilmente constatado nos
estudos sincrônicos e diacrônicos das palavras306 vistas, por exemplo, nos Processos de
Habilitação de Gênere, nos Estatutos das Ordens e Irmandades Religiosas, nos processos
inquisitoriais, nas obras antijudaicas, como também nos sermões pregados pelos padres nos
púlpitos das igrejas ou nos Autos-de-fé.307
Hodiernamente, as palavras preconceituosas ainda são fortemente utilizadas pelos
crentes quando expõe suas opiniões e caracterizam a doutrina e os seguidores de outras
religiões. Ocorre, no entanto, que, justamente dentro dessa esfera de palavras, a
discriminação permanece, muitas vezes, camuflada, com difícil percepção e contenção. Essa
modalidade de discriminação pode ser vista naquela que Souza Cruz define como
“discriminação de fato”.
Por esse mecanismo o discriminador não tem a consciência do mal que provoca. Sequer sabe que está discriminando, o que contribui para a difusão de conceitos [...]. É o que ocorre com freqüência e profusão com as blagues e piadas, chamadas politicamente incorretas, e que por serem assim tachadas, se repetem e se reproduzem cada vez mais no Brasil.308
O mesmo autor sublinha que uma discriminação de fato também se verifica quando o
Estado se mantém indiferente frente às vítimas de discriminação.309 Isso ocorre quando tanto
a sociedade como o Estado têm consciência da prática de comportamentos discriminatórios 304 CARRIÓ, Genaro R. Nota sobre derecho e lenguaje, p. 94 305 CARRIÓ, Genaro R. Nota sobre derecho e lenguaje, p. 95. 306 A historiadora exemplifica que, nos séculos XVII e XVIII, nos processos de habilitação de Gênere, se utilizou muito adjetivos ou expressões de qualidade no seguinte sentido: enquanto os eclesiásticos eram denominados como pessoas dignas de confiança, honradas, de bons costumes, os judeus, cristãos-novos, hereges, mulatos e descendentes eram classificados como “de nação infecta”, “de nação reprovada”, infiéis, impuros de sangue, indignos de confiança, vexados pelo demônio, desonrados, etc. 307 CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Preconceito racial: Portugal e Brasil-Colônia, pp. 231-2. 308 CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. O direito à diferença: as ações afirmativas como mecanismo de inclusão de mulheres, negros, homossexuais e portadores de deficiência. p. 43. 309 CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. O direito à diferença: as ações afirmativas como mecanismo de inclusão de mulheres, negros, homossexuais e portadores de deficiência. p. 44.
91
em relação a determinados grupos e por algum motivo (falta de capacitação, informação,
recursos financeiros, etc.) o poder estatal não age para combatê-los, como por exemplo
através de ações afirmativas 310 .
Analisando especificamente a discriminação de fato por motivos religiosos,
atualmente, no Brasil, algumas crenças são visivelmente mais expostas do que outras. O
número de ocorrências verificadas permite afirmar que a religiões judaica e as de origem
africana são mais intensamente atacadas por condutas discriminatórias.311
Ocorre que a situação seria mais simples se fosse essa a única forma de discriminação
possível de ser verificar. Segundo Ferreira da Silva a discriminação também procede de
forma indireta, quando uma disposição, critério ou prática aparentemente neutra coloca
portadores de sinais de discriminação em situações de desvantagem comparativamente a
outras.312
Tal modalidade de discriminação é de difícil visibilidade e, por conseguinte, não está
vedada através da legislação e tampouco está presente nas jurisprudências do Brasil, 313
mesmo ferindo direitos fundamentais. Logo, por apenas ser a discriminação direta ou
intencional proibida pelo ordenamento jurídico brasileiro, deve ser ela o novo ponto a ser
analisado nesse trabalho.
3.3 FUNDAMENTOS DA CRIMINALIZAÇÃO DA DISCRIMINAÇÃO RELIGIOSA
A discriminação direta ou intencional é proibida legalmente no Brasil tanto em nível
constitucional, como infraconstitucional. Esse modo de discriminação ocorre com
[...] uma conduta da qual se depreende facilmente o animus discriminatório, ou seja, o dolo a vontade de violar o direito de outrem. Nela está presente a premeditação, a vontade de violar a integridade denominada prima facie discrimination, permitindo à vítima desincumbir
310 De acordo com Hélio Santos, “ações afirmativas são medidas especiais e temporárias, tomadas ou determinadas pelo Estado, espontânea ou compulsoriamente, com o objetivo de eliminar desigualdades historicamente acumuladas, garantindo a igualdade de oportunidades e tratamento, bem como de compensar perdas provocadas pela discriminação e marginalização, decorrentes de motivos raciais, étnicos, religiosos, de gêneros e outros. Portanto, visam combater os efeitos acumulados em virtude de discriminações ocorridas no passado (SANTOS, Hélio. Políticas públicas para a população negra no Brasil. Observatório da Cidadania, n. 3, p. 147-157, 1999, 148). 311 CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. O direito à diferença: as ações afirmativas como mecanismo de inclusão de mulheres, negros, homossexuais e portadores de deficiência, pp. 77-9. 312 SILVA, Jorge Cesar Ferreira. A proteção contra discriminação no direito contratual brasileiro. In: MONTEIRO, Antonio Pinto; SARLET, Ingo Wolfgang; JORGE, Neiner. Direitos Fundamentais e Direito Privado, p. 402. 313 SILVA, Jorge Cesar Ferreira. A proteção contra discriminação no direito contratual brasileiro. In: MONTEIRO, Antonio Pinto; SARLET, Ingo Wolfgang. JORGE, Neiner. Direitos Fundamentais e Direito Privado, p. 403.
92
do ônus da prova quando recorre ao Judiciário buscando alguma medida de caráter injuntivo ou declaratório.314
Nessa senda, a Constituição Brasileira prevê em seu artigo 3º, inciso IV, como
objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, promover o bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Ainda, estabelece no artigo 5º, inciso XLI, que a lei punirá qualquer discriminação atentatória
aos direitos e liberdades fundamentais e, no inciso XLII, que a prática do racismo constitui
crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei.
Destarte, analisando esse último inciso, pode-se constatar que através da esfera penal
também se intenta conter as condutas discriminatórias. Essa intenção se verifica
indiretamente através de vários artigos do Código Penal,315 como também por meio da
criminalização direta de todas as formas de discriminação, em seu artigo 140, § 3º,316
inclusive a discriminação por motivos religiosos. Além disso, o artigo 20 317, da lei 7.716/89,
também tem essa finalidade.
Assim, vê-se que, apesar da Constituição Federal prever a proibição da discriminação
por motivos religiosos (objeto desse trabalho) e o direito fundamental a liberdade religiosa, o
direito penal atua como se fosse uma alternativa a mais para o controle das condutas
preconceituosas na religião e a proteção da liberdade nela.
Entende-se que o direito penal é um ramo do ordenamento jurídico de extrema
importância para o resguardo do bem estar social e, até mesmo por isso, tem a aplicação de
penas privativas de liberdade como uma de suas características peculiares. Conforme Dotti,
pode-se conceituá-lo como um complexo de leis que, por meio da interpretação do Estado,
expressa o interesse público ao prever condutas proibidas e suas respectivas sanções,
314 CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. O direito à diferença: as ações afirmativas como mecanismo de inclusão de mulheres, negros, homossexuais e portadores de deficiência. p. 42. 315 Artigos 208, 234, 235, 391, 392, 393, 394 e 395 do Código Penal. 316 Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro: Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa. § 3o Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência: (Redação dada pela Lei nº 10.741, de 2003) Pena - reclusão de um a três anos e multa. 317 Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena: reclusão de um a três anos e multa. § 1º Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo. Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa. § 2º Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza: Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.
93
empregando normas para manter o convívio em sociedade através da proteção dos bens
jurídicos fundamentais.318
Inegável que o direito civil também busca a contenção de várias formas de
discriminação e promove o ressarcimento por possíveis danos decorrentes delas. No entanto,
salienta-se a interferência do direito penal nesse âmbito pelo fato de ele não tutelar direitos
pouco relevantes, mas sim, somente aqueles de maior proeminência à vida dos seres
humanos. Nessa esteira, o ordenamento jurídico penal tem como função primordial proteger
os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal.
Esse entendimento
[...] é fruto da Revolução Francesa, do pensamento humanista dos iluministas e racionalistas europeus, que, por sua vez, traduziam o resultado da luta social dos trabalhadores, e da burguesia, contra o feudalismo e o absolutismo de então. Foi deste processo social que se destacaram determinados bens a serem protegidos: vida, liberdade, honra, propriedade, etc. E, dentre esses bens a serem tutelados, destacaram-se, também, como resultado desse desenvolvimento social, os direitos fundamentais, a partir de então conquista impostergável de todas as Constituições modernas.319
Entende-se que apenas a previsão constitucional de direitos fundamentais, como a
liberdade religiosa, por exemplo, não basta para efetivá-los, então o direito penal apresenta-
se como um instrumento de realização da lei fundamental e de tutela máxima de seus bens.
Consequentemente, no atual Estado Democrático de Direito, a tutela penal não pode vir
dissociada do pressuposto do bem jurídico, para ser considerada legítima sob a ótica
constitucional,320 pois “é preciso buscar na Constituição a gênese da função social do bem
jurídico”. 321
Aliás,
[...] como é sabido, a Constituição não é apenas uma declaração formal de caráter geral, obrigatórias para todos os órgãos do Estado. Daí que as leis penais, devendo ser interpretadas segundo a lei que lhes é hierarquicamente superior, precisam ser compatibilizadas, não só com os concretos preceitos dela, mas com a idéia de direito que abriga no seu texto.322
“Com efeito, a fonte primária do Direito Penal é a própria Constituição, da qual haure
a legitimação e fundamento para sua intervenção punitiva sobre os direitos fundamentais dos
318 DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 48. 319 CARVALHO, Márcia Dometila Lima de. Fundamentação Constitucional do Direito Penal. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1992, p. 35. 320 PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico penal e Constituição. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 70. 321 CARVALHO, Márcia Dometila Lima de. Fundamentação Constitucional do Direito Penal, p. 37. 322CARVALHO, Márcia Dometila Lima de. Fundamentação Constitucional do Direito Penal, p. 38.
94
cidadãos, mormente o jus libertatis.” 323 Vê-se, assim, que o direito Constitucional exerce
uma função com via de mão dupla, ao mesmo tempo em que serve de fundamento ao direito
penal, também o restringe.
Ademais, observando a ordem para a atuação do Estado, denota-se que,
primeiramente, deverá ele estabelecer na Constituição Federal os direitos dos cidadãos em
consonância com os valores mais caros a uma nação (entre eles, a liberdade religiosa), para
que, só posteriormente, ele atue através do âmbito penal, extraindo daquela os bens que lhe
cabe proteger através desse. Por conseguinte, o Estado deve estar em constante identificação
e avaliação dos valores prevalentes na sociedade, tanto para poder catalogá-los como direitos
constitucionais - pois em um Estado de Direito democrático, a determinação desses valores
elementares deve estar delineada na Constituição”324-, como para poder definir quando outras
esferas jurídicas, como a penal, devem atuar na tutela e efetivação dos mesmos.
Destarte,
[...] a base do raciocínio que visa identificar os valores fundamentais ou superiores da Constituição radica na descoberta dos elementos teleológicos do documento. Trata-se de um ato decorrente de expressão da vontade constituinte ao eleger simbolicamente alguns elementos da ordem social, política, econômica, cultural, ética e jurídica como principais na explicação e explicitação do funcionamento da ordem estatal. A constituição de um sistema de valores no seio do Estado social e democrático de Direito tem sua origem na vontade popular proclamada expressamente na norma fundamental do ordenamento jurídico. As opções ético-sociais da comunidade jurídico-política representadas naqueles valores articulam-se, integram-se na realidade social através do processo sociopolítico de integração e unidade ordenada na e pela Constituição.325
Entretanto, não se pode olvidar a observação de Feldens quando assevera que o
reconhecimento na sociedade dos valores ou bens a serem protegidos juridicamente ocorre
anteriormente à sua recepção normativa. O autor explica que antes de serem recolhidos pelo
Direito, os valores ou bens se constituem na consciência social, pois são extraídos do
costume vigente e das necessidades dos cidadãos da época. 326
Por isso, é possível dizer que
[...] o conceito material de bem jurídico reside, então, na realidade ou experiência social, sobre a qual incidem juízos de valor, primeiro do constituinte, depois do legislador ordinário. Trata-se de um conceito
323SILVA, Ivan Luiz da. Das bases constitucionais do direito penal. Revista de informação Legislativa, Brasília, senado federal, 2002. p. 41-52, v.156. pp. 41-2. 324PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico penal e Constituição, p. 91. 325 LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Teoria Constitucional do direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 135. 326 FELDENS, Luciano. A Constituição Penal: A dupla face da proporcionalidade no controle de normas penais, p. 50.
95
necessariamente valorado e relativo, isto é, válido para um determinado sistema social e em um dado momento histórico-cultural. Isso porque seus elementos formadores se encontram condicionados por uma gama de circunstâncias variáveis imanentes à própria existência humana.327
Em consonância, isso é percebível na liberdade religiosa enquanto bem jurídico
fundamental, pois teve diferentes vieses ao longo dos tempos seguindo os valores
predominantes de cada época, como foi abordado no primeiro capítulo desse trabalho.
Outrossim, destaca-se que foi somente após a atual Constituição, e com o advento da
Democracia, que o direito penal passou a ser entendido como possível protetor da liberdade
religiosa e instrumento de controle da discriminação nesse âmbito.
Anteriormente, aponta-se que a Lei Afonso Arinos, há quase meio século atrás,
parecia demonstrar essa intenção, tentando conter, inicialmente, a prática de discriminação
racial. No entanto, parece não ter alcançado êxito.
Naquela oportunidade o legislador utilizou o Direito Penal com o papel promocional, que é destinado a outros ares de um Estado Social Democrático. A indevida e antecipada intervenção penal, que se realizou de forma isolada, ocorreu até a promulgação da Constituição Federal de 1988, e demonstrou a quase ineficácia das leis antidiscriminatórias anteriores [...]. Na realidade, o Estado não procurou enfrentar efetivamente a questão das desigualdades materiais e descarregou toda a cargas legislativa do Direito Penal, cancelando o princípio da subsidiariedade ou da ultima ratio para valorizar a lei penal antidiscriminatória como solo ratio ou prima ratio para a solução dos conflitos resultantes de discriminações.328
Na mesma linha, mesmo com a Constituição Federal de 1988 promulgada, ainda em
1989, a Lei Caó (lei 7.716/89) foi desenvolvida, regulamentando o art.5º, inciso XLII, da
Constituição Federal, estabelecendo, pela primeira vez, a criminalização da discriminação
por motivos religiosos e criando delitos antes apontados como contravenções penais pela Lei
Afonso Arinos. Seu texto, em que pese ser merecedor de críticas, na maior parte por sua
forma e por algumas imprecisões técnicas, foi praticamente ignorado pelos penalistas pátrios
que, quando dele se ocuparam, muitas vezes, o atacaram de maneira incisiva, como algo
inviável de aplicação e sem relevância.329
No entanto, não se pode olvidar que essa foi uma ocasião se confirmaram valores
sociais importantes na medida em que se clarificou a criminalização da discriminação, e não
mais somente do preconceito, aumentando a abrangência de proteção à tolerância e ao
327 PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico penal e Constituição, p. 98. 328 SILVA, Katia Elenise Oliveira da. O papel do Direito Penal no enfrentamento da discriminação. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 99. 329 SANTOS, Christiano Jorge. Crimes de preconceito e de discriminação: Análise jurídico-penal da lei 7.716/89 e aspectos correlatos, p. 75.
96
pluralismo social. Evidenciou-se, assim, que, “a norma (penal) não cria valores, senão que,
alinhada à metodologia de controle social – por intermédio da qual o Direito Penal está
conectado a outros mecanismos -, os absorve, por meio de sua positivação, como forma de
protegê-los”.330
Além disso, é indispensável observar que, após o advento da atual Constituição,
ocorreram mudanças na concepção das funções do Estado, que passou a ser visto como
devedor de prestações sociais, pois depois do Estado Social, entende-se que a intervenção
Estatal deve ser obrigatória, principalmente quando se trata de valores sociais expressos na
Constituição. Destarte, o Direito Penal torna-se um instrumento para isso, ocasionando-se,
consequentemente, o seu alargamento.331
Em acordo, Palazzo explica que
As obrigações da tutela penal no confronto de determinados bens jurídicos, não infreqüentemente característicos do novo quadro de valores constitucionais e, seja como for, sempre de relevância constitucional, contribuem para oferecer a imagem de um Estado empenhado e ativo (inclusive penalmente) na persecução de maior número de metas propiciadoras de transformação social e da tutela de interesses de dimensões ultraindividuais e coletivas, exaltando, continuadamente, o papel instrumental do direito penal com respeito à política criminal, ainda quando sob auspícios - por assim dizer da Constituição.332
Por conseguinte, vê-se a utilização da atual Carta Magna para a incrementação do
Direito Penal, como também para a indicação, para a determinação e até para a obrigação de
criminalizar condutas lesivas aos bens jurídicos por ela identificados.333 Destarte, aproveita-
se da força hierarquicamente superior da Constituição para fortalecer os fundamentos
favoráveis ao maior uso da esfera jurídica penal, argumentando-se pela necessidade de uma
atuação estatal mais rígida e severa para a efetivação do controle social.
Corroborando para isso, analisa-se que, entre as Constituições do mundo,
[...] é a Constituição Brasileira que mais estabelece regramentos no sentido de incentivar o uso do Direito Penal. Nesse aspecto, só há similar, entre as Constituições brasileiras, na Constituição de 1937, que bem o sabemos, é uma Constituição nutrida do regime ditatorial. Não deixa de ser curioso que uma Constituição extremamente democrática, votada com toda liberdade, tenha trazido dispositivos programáticos de Direito Penal, destinados à repressão de delitos, e de feição mais marcante contundente do que própria Constituição de 1937. A Constituição de 1988,
330 FELDENS, Luciano. A Constituição Penal: A dupla face da proporcionalidade no controle de normas penais, p. 50. 331 PASCHOAL, Janaina Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal mínimo, p. 120. 332 PALAZZO, Francesco. Valores Constitucionais e Direito Penal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1989, p. 103. 333 PASCHOAL, Janaina Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal mínimo, p. 69.
97
nesse sentido, é bem mais dura dos que ambos os textos constitucionais havidos ao tempo do regime militar brasileiro, a de 1967, e a Emenda Constitucional n. 1 de 1969.334
Essas determinações em excesso e, muitas vezes expressas, de criminalização devem-
se a abertura axiológica e cultural da Constituição que sempre permite, de algum modo,
mesmo que remoto, meios de (links constitucionais) permitir a conexão entre o bem jurídico
penalmente protegido a algum valor constitucional.335 Ainda, na opinião de Paschoal, “a
Constituição criminalizante” é resultado não da necessidade de tutela penal, mas de fatores
históricos e/ou reclamos sociais predominantes quando da elaboração da Carta.
3.4 O DIREITO PENAL EFETIVA A TUTELA CONSTITUCIONAL ?
Ocorre, contudo, que estes argumentos podem não justificar uma criminalização em
momento posterior, 336 vindo a ocasionar desarmonia entre o que a sociedade espera da
Constituição e o que essa protege e estipula.
Outrossim,
[...] quando se parte da Constituição como fundamento do Direito Penal, como norma que traz as indicações das condutas a serem criminalizadas, permite-se seja cobrado do legislador um movimento no sentido de efetivar a tutela criminal, muitas vezes menos útil e eficaz que a proteção representada por outros ramos do Direito.337
Também, deve-se lembrar que o direito constitucional e o direito penal não tutelam
necessariamente os mesmos bens, mas sim, que o segundo auxilia o primeiro na sua
efetivação. Nessa linha, Prado salienta que nem todos os bens jurídicos constitucionais
requerem a proteção penal, ou seja, nem sempre eles são convertidos em bens jurídicos
penais. 338
Dessa forma, uma possível concepção, por exemplo, de que o Direito Penal define e
delimita os direitos fundamentais, “parece uma verdadeira inversão de valores, pois o fato de
o Direito Penal tutelar a maioria dos direitos fundamentais não significa que aqueles não
tutelados não sejam fundamentais.” 339
334 BENETI, Sidnei Agostinho. A constituição e o sistema penal. Ajuris: Revista da Associação Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 1992, p. 57. 335 FELDENS, Luciano. A Constituição Penal: A dupla face da proporcionalidade no controle de normas penais, p. 53. 336 PASCHOAL, Janaina Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal mínimo, p. 83. 337 PASCHOAL, Janaina Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal mínimo, p. 72. 338 PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico penal e Constituição, p. 104. 339 PASCHOAL, Janaina Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal mínimo, p. 75.
98
Não obstante, indispensável atentar-se à noção de Figueiredo Dias, o qual destaca que
no tocante à valoração, o legislador penal não possui total de liberdade para suas escolhas.
Logo, a intervenção penal não se legitima unicamente por uma ordem absoluta de valores,
mas sim, por uma ordem axiológica-constitucional,340 a qual também lhe estabelece limites.
Nesse passo, observa-se
[...] um confronto entre dois termos que parecem antitéticos: a plena liberdade do legislador e as pautas que lhe são subministradas pela Constituição. Com efeito, não pode ser plena a liberdade de quem tem pautas a observar. Logo, pode-se afirmar, categoricamente, que a liberdade de configuração do legislador penal não é absoluta. É relativa. Embora detentor de um amplo espaço de atuação, não lhe é lícito uma lei qualquer em nome de sua legitimidade democrática. 341
Diante disso, hodiernamente, há diferentes posições entorno das modalidades de
limites que a Constituição impõe ao Direito Penal. Com efeito, aquelas que defendem ser de
espécie negativa as limitações constitucionais sustentam que “o Estado pode tipificar
condutas atentarias a valores que não tenham sido reconhecidos pela Constituição, desde que
tal criminalização não fira os valores constitucionais.”342 De outra sorte,
paralelamente à tomada da Constituição como limite negativo ao Direito Penal, existem as teorias que vêem, a Constituição como um limite positivo ao Direito Penal. De acordo com essas teorias, o legislador ordinário só pode utilizar a tutela penal para proteger bens reconhecidos pela Constituição como caros a uma determinada sociedade. Significa que, para a máxima intervenção estatal ser admissível, não basta que a lei penal não entre em conflito com a Constituição, devendo, necessariamente, recair sobre condutas que infiram os valores de relevância constitucional.343
Por todos os argumentos já abordados nesse texto, entende-se que no atual Estado
Democrático Brasileiro prevalece a segunda idéia de limitação da Constituição sobre o
direito penal, ou seja, a de limitação positiva. Além disso, isso é reforçado através da ampla
previsão de princípios expostos no texto constitucional, os quais são premissas primeiras para
a atuação estatal no âmbito criminal.
340 DIAS, Jorge Figueiredo. Questões Fundamentais do Direito Penal Revisitadas, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, pp. 17-20. 341 FELDENS, Luciano. A Constituição Penal: A dupla face da proporcionalidade no controle de normas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, pp. 38-9. 342 PASCHOAL, Janaina Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal mínimo, p. 55. 343 PASCHOAL, Janaina Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal mínim,. p. 59.
99
Historicamente, foi a partir do desenvolvimento das doutrinas liberais do iluminismo
no século XVIII, resultante na queda dos governos absolutistas, que passaram a ser
desenvolvidas idéias de contenção do poder estatal. Como explica Zeidan:
Na doutrina do liberalismo, o Estado foi sempre o fantasma que atemorizou o indivíduo. O poder, de que não pode prescindir o ordenamento estatal aparece, de início, na moderna teoria constitucional como maior inimigo da liberdade, levando efetivamente a reconstituição da autoridade, em bases completamente novas que dessem ao indivíduo, com a Carta de seus direitos fundamentais, ideologia fundada em valores rígidos e absolutos. 344
O autor ainda complementa que a eclosão da Revolução Francesa, com a intensa
propagação de seu lema “liberdade, fraternidade e igualdade”, foi um marco para a garantia
dos direitos dos cidadãos frente a eles mesmos e ao Estado.345 Ademais, nesse mesmo
período, com a Declaração dos Direitos do Homem, em 1791, foram expressos muitos
princípios defensivos da atuação limitada do poder estatal, principalmente na esfera criminal.
Entre esses princípios, impossível deixar de referir alguns que limitam a utilização do
direito penal justamente quando na tutela de bens jurídicos: intervenção mínima,
necessidade, subsidiariedade e fragmentariedade. O primeiro define que a atividade penal
deve ser utilizada em última hipótese para a resolução dos conflitos, não protegendo de
forma absoluta todos os interesses sociais. Em outras palavras, ele opera
[...] uma transformação nos valores abstratamente selecionados para compor o sistema penal, importando um maior rigorismo nas eleições das condutas, observando-se o seu grau de gravidade no ambiente social para determinar a valorização do bem jurídico objeto de seu conteúdo. Implica definir o princípio da intervenção mínima como regra de determinação qualitativa abstrata para processo de tipificação das condutas.
O princípio da intervenção mínima está diretamente afeto aos critérios do processo legislativo de elaboração das leis penais, sendo sua utilização judicial mediata, cabível apenas como recurso para dar unidade sistêmica ao Direito Penal e indica que o sistema penal não se ocupa de todos os comportamentos ilícitos que surgem nas relações sociais senão apenas aqueles mais intoleráveis e lesivos para os bens jurídicos e que se reconhece e sanciona estes fatos quando tenha falhado todos os demais meios de controle formais ou informais.346
344 ZEIDAN, Rogério. Ius puniendi, Estado e direitos fundamentais: aspectos de legitimidade e limites da potestade punitiva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002, p. 36. 345 ZEIDAN, Rogério. Ius puniendi, Estado e direitos fundamentais: aspectos de legitimidade e limites da potestade punitiva, p. 143. 346LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Princípios penais constitucionais: O sistema das constantes constitucionais. Revista dos Tribunais. p. 417- 451, n. 779, set./2000, ano 89, p. 440.
100
Com isso têm-se o intuito de precaver a sociedade do “efeito freqüentemente
contraproducente da ingerência penal do Estado”,347 ou seja, dos possíveis prejuízos que a
interferência rígida do sistema criminal possa causar na medida em que penaliza os cidadãos
com a restrição de um dos bens humanos mais importantes: a liberdade. Por outro lado, não
se está afirmando que tal atuação, entendida como severa, não é útil, somente que será
propicia quando na ocorrência de lesões graves a bens jurídicos de grande relevância à vida
social.
Desse modo, traduz-se uma proposição substitutiva do Estado Penal por um Estado
(mais) Social, de modo a que o direito penal, como soldado de reserva, só seja convocado a
atuar como derradeira alternativa. 348 Propõe-se
[...] direito penal maximamente condicionado e maximamente limitado, isto é, limitado às situações de absoluta necessidade - “pena mínima necessária”- que corresponda, assim, não só ao máximo grau de tutela de liberdade dos cidadãos frente à potestade punitiva do Estado, senão também a um ideal de racionalidade e de certeza, razão pela qual não terá lugar a intervenção penal sempre que sejam incertos ou indeterminados os seus pressupostos. 349
Nesse diapasão, relacionado aos preceitos da intervenção mínima, há o princípio da
necessidade, o qual defende seja evitada a utilização do direito penal, ocorrendo somente
quando extremamente necessária. Oportuno apontar que princípio da necessidade ou da
economia do direito penal tem sua proclamação desde a Declaração dos Direitos do Homem
e do Cidadão (1789), a qual, em seu artigo 8º, versa que “a lei apenas deve estabelecer penas
estritas e evidentemente necessárias [...]”. 350 Ademais, tal preceito é de suma importância,
pois sua ausência
[...] dá margem ao surgimento de uma série de situações vexatórias, para não dizer de um sistema punitivo vexatório. A presença do princípio da economia ou da necessidade não expressa propriamente uma técnica punitiva, mas um critério de política criminal, cuja satisfação está condicionada, mas não é condicionante das demais garantias. Essa deficiência de nosso sistema tem possibilitado a presença em nossos textos legais de proibições e penas supérfluas que se chocam frontalmente com as razões de utilidade individual e coletiva que justificam o direito penal; tem tornado também possível a previsão legislativa de proibições penais totalmente injustificadas por elas mesmas serem lesivas de direitos fundamentais, não só pela impossibilidade de sua execução, mas também por não estabelecerem proteção a nenhum bem jurídico, bem como por se
347ZAFFARONI, José Henrique Pierangeli; Eugenio Raúl. Manual de Direito Penal: parte geral. 5ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,2004 , p. 341. 348ZAFFARONI, Eugenio Raúl PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal: parte geral. p. 50. 349QUEIROZ, Paulo. A justificação do direito de punir na obra de Luigi Ferrajoli: algumas observações críticas. IBCCRIM, São Paulo, n. 27, ano 7, p. 143- 148, jul/set, 1999, p.145. 350DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal: parte geral, p. 69.
101
absolutamente possível a sua substituição por proibições civis ou administrativas; e, por fim, tem facilitado significativamente a inserção no sistema legal de penas injustificadas por serem totalmente excessivas, não pertinentes ou desproporcionais em relação à relevância do bem jurídico tutelado.351
Ainda, em consonância com esse entendimento, vige também sobre o ordenamento
jurídico-penal o princípio da fragmentariedade. Esse foi alegado, pela primeira vez, através
de Binding que defendia a necessidade de um direito penal fragmentário, ao perceber que
ele não encerra um sistema exaustivo de proteção dos bens jurídicos, mas, sim, um
complexo descontínuo de ilícitos decorrentes da necessidade de criminalizá-los, por ser este
uma forma indispensável de tutela jurídica. Seguindo esse pensamento, Toledo afirma que o
direito penal “só vai até onde seja necessário para proteção do bem jurídico. Não deve se
preocupar com bagatelas”.352
Na realidade, deve-se entender
[...] óbvio que o direito penal de uma sociedade com vincando cariz pluralista elegerá somente aqueles valores mais representativos para a manutenção da conformação social ao estado de pax publica. Para tanto, evitará imiscuir-se em determinadas zonas nas quais inexiste o consenso ético-social a exigir sua intervenção. Sob pena de criar paradigmas de comportamento que desprezam, ao menos em nível ontológico, a esfera de desenvolvimento da pessoa humana, já para não se falar, em nível das concepções do estado de direito material, de um inegável conflito com os princípios fundamentais da igualdade e da universalidade, que regem os direitos e liberdades individuais. 353
Por fim, interligado a esse contexto, não se pode deixar de referir também outro
princípio limitador do direito penal: o princípio da subsidiariedade. Esse estabelece que
aquele deve consistir na ultima ratio do Direito, a última alternativa para a solução dos
problemas sociais. “Diante disso, a legitimação do Direito penal não se faz por ação
ordinária, qual fosse sempre um instrumento para ser livre e discricionariamente utilizado
pelo Estado. Constitui ele conjunto operativo de reserva, daí sua legitimação
extraordinária.”354
Diante de todo o exposto, compreende-se a inter-relação indissociável existente entre
o Direito Penal e os preceitos constitucionais, como também porque o direito fundamental a
liberdade religiosa é protegida pelo direito penal através da criminalização da discriminação 351COPETTI, André. Direito Penal e Estado Democrático de Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, pp. 123-4. 352 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 1994, pp. 121-2. 353GUIMARÃES, Isaac Newton Belota Sabba. A intervenção penal para a proteção dos direitos e liberdades fundamentais: Linhas de acerto e desacerto da experiência brasileira, pp. 57-8. 354LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Princípios penais constitucionais: O sistema das constantes constitucionais, p. 443.
102
por motivos religiosos. Além do Direito Penal efetivar a tutela dos direitos fundamentais,
representa diretamente em seu texto valores que não lhe são próprios, mas que foram
retirados da Lei Maior.
Outrossim, Feldens aduz que,
[...] diante desse panorama, surge-se a noção de Constituição Penal, aqui concebida como conjunto de diretrizes normativas estabelecidas à organização e ao funcionamento do sistema jurídico-penal requerido pela Constituição, as quais compreendem os princípios e regras gerais respeitantes à matéria criminal (penal e processual) positivados na ordem constitucional; ademais, uma vez assentada a missão precípua do Direito Penal como instrumento de proteção de bens jurídicos, o conceito de Constituição Penal assumirá uma perspectiva material para abranger, em seu núcleo de problematização, as categorias que, produto do desenvolvimento dogmático dos direitos fundamentais enquanto imperativos de tutela, sejam por essa razão mesma, diretamente referíveis à Constituição, ainda que nela não ostentem uma consagração explícita.355
Há casos em que a Constituição determina expressamente a proteção de alguns bens
através do direito penal, como se estivesse o convocando, sem receios, para a efetivação dos
direitos fundamentais. Na concepção de alguns autores como Streck, isso é necessário e
cabível tendo em vista que o Estado tem o dever de proteção de seus cidadãos e que a
segurança também é um direito humano. O autor acredita que na, atualidade o Estado deixou
de ser inimigo da sociedade com a superação da crise deixada pelo liberalismo:
Pois bem, isso significa afirmar e admitir que a Constituição determina – explícita ou implicitamente – que a proteção dos direitos fundamentais deve ser feita de duas formas: por um lado, protege o cidadão frente ao Estado; por outro, protege-o através do Estado – e, inclusive, por meio do direito punitivo – uma vez que o cidadão também tem o direito de ver seus direitos fundamentais tutelados em face da violência de outros indivíduos. Quero dizer com isso que este (o Estado) deve deixar de ser visto na perspectiva de inimigo dos direitos fundamentais, passando-se a vê-lo como auxiliar do seu desenvolvimento (Drindl, Canotilho, Vital Moreira, Sarlet, Streck, Bolzan de Morais e Stern) ou outra expressão dessa mesma idéia, deixam de ser sempre e só direitos contra o Estado para serem também direitos através do Estado.356
Diante de tão pertinentes observações, toca referir que não se ignora a relevante
função protetiva que o Estado e o direito penal possuem perante os direitos fundamentais e a
necessidade indispensável dessa proteção. Ocorre, entretanto, que nem sempre a intervenção
355 FELDENS, Luciano. A Constituição Penal: A dupla face da proporcionalidade no controle de normas penais, pp. 23-4. 356 STRECK, Lenio Luiz. O dever de proteção do Estado (Schutzpflicht): o lado esquecido dos direitos fundamentais ou “qual a semelhança entre o furto privilegiado e o tráfico de entorpecentes. Disponível em: <http//www.leniostreck.com.br>. Acessado em: 08 de ago de 2008, p. 5.
103
penal parece a solução mais adequada, pois, deve-se atentar ao fato que pode-se estar
desembocando num perigoso uso simbólico da esfera jurídica criminal.
Na atualidade, muitas teorias argumentam a favor da face simbólica do direito penal,
como modo de conferir a esse a legitimidade que parece ter perdido diante da sua ineficiência
constatada através dos índices de violência e criminalidade. Todavia, Zaffaroni sustenta,
com propriedade, que essa intenção
[...] trata-se da negação dos defeitos dos estados de direito reais pela construção de uma teoria do direito penal como se tais defeitos não existissem e o estado real fosse análogo ao ideal que, por outro lado, ninguém pode afirmar ser inteiramente realizável: tais teorias põe em sério perigo os estados de direito reais, desde que estabeleçam a racionalidade de suas propostas a partir de uma ficção do estado ideal, seja porque o dão por realizado, por não proporem sua realização, seja porque, renunciando ao ideal, dão por ideal o existente. 357
Nesse passo, mostra-se indispensável o ideário de limitação do Direito Penal pela
Constituição para uma possível busca de (re) legitimação do direito penal e, assim, ele seja
dirigido
[...] para a tutela dos direitos fundamentais dos cidadãos contra as agressões de outros associados. Significa, antes, que o direito penal tem como finalidade uma dupla função preventiva, tanto uma como outras negativas, quais sejam a prevenção dos delitos e a prevenção geral das penas arbitrárias ou desmedidas. A primeira função indica o limite mínimo, a segunda função indica o limite máximo das penas. Aquela reflete o interesse da maioria não desviante. Esta, o interesse do réu ou de quem é suspeito ou acusado de sê-lo. Os dois objetivos e os dois interesses são conflitantes entre si, e são trazidos pelas duas partes do contraditório no processo penal, ou seja, a acusação, interessada na defesa social e, portanto, em exponenciar a prevenção e punição dos delitos, e a defesa, interessada na defesa individual, e via de conseqüência, a exponenciar a prevenção de penas arbitrárias. 358
Logo, reitera-se que o direito penal tem uma importante tarefa na contenção de lesões
à bens jurídicos fundamentais como a liberdade religiosa. Contudo, deve-se por em dúvida
como e se está sendo realizada essa tarefa. No tocante a luta contra a discriminação religiosa,
no Brasil, observa-se que ela só será efetivada com a incrementação de estratégias e políticas
públicas em outras áreas além do direito penal, como nos campos da educação, cultura,
meios de comunicação, etc.”359
357 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro e SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: tomo I. Rio de Janeiro: Revan, 2003, pp. 615-6. 358 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: Revista do Tribunais, 2002, p. 269. 359 SILVA, Katia Elenise Oliveira da. O papel do Direito Penal no enfrentamento da discriminação, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 122.
104
Christiano Jorge Santos corrobora: “A solução do problema é uma questão
sociopólítica a ser enfrentada por aqueles que acham importante o seu compromisso com a
mudança de valores sociais, fazendo valer direitos de cidadania, visando implementar
políticas públicas e privadas [...]” 360
Pelo abordado, percebe-se que o preconceito é fato inerente a realidade humana e,
logo, no tocante a religião não procederia diferente. Deve-se, no entanto, identificar-se os
limites de tais preconceitos e a sua possibilidade ou não de externalização, evitando que se
esteja desrespeitando o direito fundamental à liberdade religiosa. O direito penal tenta
auxiliar na estipulação de tais limites, entretanto, ainda se mostra insuficiente até o presente
momento. Logo, com a presença constante da discriminação religiosa na realidade hodierna,
o conflito entre os direitos fundamentais a liberdade religiosa e a liberdade de expressão
também se verifica frequentemente. Destarte, calha, finalmente, centrar-se o estudo nessa
questão.
4. DISCRIMINAÇÃO RELIGIOSA: A COLISÃO ENTRE OS DIREITOS
FUNDAMENTAIS À LIBERDADE RELIGIOSA E À LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Como já abordado anteriormente, o direito fundamental à liberdade de expressão
legitima a livre manifestação do pensamento e está presente no artigo 5º, inciso IV, da
Constituição Federal. Todavia, quando tais manifestações giram em torno do tema religião,
referida liberdade pode resultar, algumas vezes, em demonstrações preconceituosas e
discriminatórias. Diante dessa situação, interessa questionar, sociologicamente e
juridicamente, como é possível resolver o conflito existente entre o direito fundamental à
360 SANTOS, Christiano Jorge. Crimes de preconceito e de discriminação: Análise jurídico-penal da lei 7.716/89 e aspectos correlatos., p. 212.
105
liberdade religiosa de alguns cidadãos e o direito fundamental à liberdade de expressão de
outros.
4.1 O DIREITO DE PROSELITISMO ENTRE A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E A
LIBERDADE RELIGIOSA
Tem-se consciência de que a liberdade de manifestação do pensamento destina-se a
proteger qualquer pessoa cujas opiniões possam, até mesmo, conflitar com as concepções
prevalentes, em determinado momento histórico, no meio social, impedindo que incida sobre
ela, por conta e efeito de suas convicções, qualquer tipo de restrição de índole política ou de
natureza jurídica, tendo em vista que todos devem ser livres para exprimir idéias, ainda que
estas possam demonstrar-se em desconformidade com a linha de pensamento dominante no
âmbito da coletividade.361
Outrossim,
[...] à medida que se protege o direito individual de livremente exprimir as idéias, mesmo que estas pareçam absurdas ou radicais, defende-se também a liberdade de qualquer pessoa a manifestar sua própria opinião, ainda que afrontosa ao pensamento oficial ou ao majoritário.[...] O que importa, assim, é caracterizar e relevar uma dimensão eminentemente social da liberdade de expressão, que não pode ser tida unicamente como uma proteção cega e desproporcional da autonomia da idéia do indivíduo. A sociedade civil e política beneficia-se da garantia do livre exercício do direito de opinião como uma forma de se concretizar o princípio democrático. Reduzir a liberdade de expressão a um enfoque meramente individual significa podar, de maneira erosiva, a própria democracia.362
Entretanto, deve ficar claro que existem outros direitos fundamentais, como a
liberdade religiosa, que possuem mesmo grau de importância, e também devem ser tutelados
e efetivados dentro do nosso ordenamento. Não é possível simplesmente aceitar que o
exercício da liberdade de expressão agrida incisivamente o exercício de outro direito
fundamental, sem avaliar os efeitos disso e o prejuízo à sociedade por esta agressão.
Ademais, importante assinalar que a prerrogativa da livre manifestação do
pensamento não pode amparar manifestações contrárias à própria lei penal, pois o direito à
liberdade de expressão, que não é absoluto, não autoriza condutas sobre as quais já haja
incidido, mediante prévia definição típica emanada do Congresso Nacional, juízo de
361 MELO, Celso de. In: SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Crime de Racismo e Anti-semitismo: Um julgamento histórico do STF – Habeas Corpus nº 82.424/RS. Brasília: Brasília Jurídica, 2004, p. 198. 362 AURÉLIO, Marco. In: SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Crime de Racismo e Anti-semitismo: Um julgamento histórico do STF – Habeas Corpus nº 82.424/RS, pp. 173-4.
106
reprovabilidade que se revele em tudo compatível com os valores cuja intangibilidade a
própria Constituição da República deseja ver preservada.363
Como já referido anteriormente, a discriminação religiosa é proibida legalmente no
Brasil tanto em no âmbito constitucional, seus artigos 3º, inciso IV, e 5º, inciso XLI, como
infraconstitucional, com a previsão de reparação civil e através da medida última de
criminalização de manifestações discriminatórias, no artigo 140, § 3º e artigo 20, da lei
7.716/89.
Destarte, torna-se claro que o direito à livre expressão do pensamento
[...] não se reveste de caráter absoluto, pois sofre limitações de natureza ética e de caráter jurídico. Os abusos no exercício da liberdade de manifestação de pensamento, quando praticados, legitimarão, sempre a posteriori, a reação estatal, expondo aqueles que praticarem a sanções jurídicas, de índole penal ou de caráter civil.364
Todavia, tal questão seria mais simples se a liberdade de expressão não fosse tão
necessária para a realização da liberdade religiosa. Já foi exposto nesse texto que muitas
religiões necessitam do proselitismo para se desenvolver, ou seja, do direito de tentar atrair
outros crentes a seguirem a sua religião, os convencendo de que os seus fundamentos são
unicamente verdadeiros e conduzem as respostas ansiadas sobre o transcendental. Para tanto,
a liberdade de expressão deve estar garantida, mas com o limite de que não agrida a liberdade
religiosa de outras confissões.
Por isso, entre todos os direitos que se compreendem dentro do direito a liberdade
religiosa, nenhum é tão difícil de regulação e enquadramento como o proselitismo. De um
lado, porque é o único cujo exercício por uma confissão, invade a esfera das demais
confissões, tendo em vista que é o único direito que os interesses das confissões religiosas
não podem ser comuns entre elas. De outro modo, porque ele obriga a constatar a existência
ou não do respeito entre as religiões ao ocasionar a tensão entre elas.365
Analisa-se que
[...] o proselitismo como o fim que tem a expressão e transmissão a outros das próprias convicções religiosas pode, sem dúvida, não estabelecer-se no terreno do direito e sim da ética. Haverá casos em que por esta via se lesionem direitos legalmente reconhecidos; e haverá casos - e o mais provável do proselitismo - em que o respeito às normas jurídicas lesionem a convivência entre as confissões, o direito de cada uma a ser respeitada em sua identidade e em sua própria expansão missioneira, e em sua própria
363MELO, Celso de. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Crime de Racismo e Anti-semitismo: Um julgamento histórico do STF – Habeas Corpus nº 82.424/RS, p. 198. 364 MELO, Celso de. In: SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Crime de Racismo e Anti-semitismo: Um julgamento histórico do STF – Habeas Corpus nº 82.424/RS, p.196. 365 CIÁURRIZ, Maria José. El derecho de proselitismo en el marco de la liberta religiosa, p. 50.
107
capacidade de buscar seus fiéis. Tudo isso pode ser suposto negativo a todo ecumenismo, a apresentação crítica das confissões, a ridicularização de sua história, de seus credos e mensagens, o ódio entre as religiões e outras tantas formas de impedir o proselitismo de praticar mediante métodos abusivos, que sem dúvida acarretará uma norma jurídica estatal.366
A problemática aumenta quando se percebe a existência de alianças, expressas ou
tácitas, entre alguns Estados e as confissões dominantes neles, fazendo com que os
movimentos religiosos minoritários sejam vistos como focos potenciais de desestabilização
da ordem teológica-política estabelecida. Os Estados não querem ver perturbados os seus
mecanismos de integração e controle social e as confissões dominantes tentam defender o seu
monopólio religioso diante de qualquer ameaça externa. Diante disso, são colocadas em
prática várias estratégias para restringir a expressão das confissões minoritárias.367
O proselitismo
[...] é aceito pelo Estado pacificamente quando se trata de religião oficial ou de uma Igreja privilegiada e incomoda frequentemente quando parte de um movimento de menor expressão. Provoca mudanças, colocando em causa a tranqüilidade da ordem pública. É muitas vezes, mal visto pelas instituições mais avessas a qualquer tipo de perturbação. A sua repressão pode ser por isso, eleita como instrumento de controle, colocando seriamente em causa a liberdade religiosa. É vulgarmente motivos de intolerância, que pode assumir as formas mais extremas. Nem sempre, porém, os meios utilizados no exercício do proselitismo ou a natureza da sua acção são os mais adequados. É necessário, por isso estabelecer limites, tendo em vista acautelar os direitos dos outros.368
Por isso, entende-se, de modo diverso, que os Estados devem interferir nas
manifestações sobre religião, através de seu poder de polícia, como verdadeiro defensor do
Estado Democrático de Direito369 ao conter a opinião expressa de uma confissão religiosa
sobre outra, quando, buscando um efeito silenciador, a primeira utilizar discursos como o de
incitação ao ódio para diminuir a auto-estima da segunda, impedindo, assim, sua integral
participação em várias atividades da sociedade civil, incluindo o debate público.370
O Estado deve interferir com a função de harmonizar a relação entre as confissões,
propiciando que ambas se manifestem e exerçam suas crenças sem afrontarem os limites da
crença alheia. A partir disso, a liberdade de expressão existirá para todos, sem que nenhum
pensamento ou opinião seja neutralizado. 366 CIÁURRIZ, Maria José. El derecho de proselitismo en el marco de la liberta religiosa, p. 115. 367MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva, p. 226. 368 GUERREIRO, Sara. As Fronteiras da Tolerância: Liberdade religiosa e proselitismo na Convenção Européia dos Direitos do Homem, p. 173. 369 FISS, Owen. A ironia da Liberdade de Expressão: Estado, Regulação e Diversidade na Esfera Pública. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 48. 370 FISS, Owen. A ironia da Liberdade de Expressão, p. 47.
108
Assim,
[...] o Estado não está tentando arbitrar entre os interesses discursivos dos vários grupos, mas, ao contrário, está tentando estabelecer precondições essenciais para auto-governança global, assegurando que todos os lados sejam apresentados ao público. Se isso pudesse ser realizado simplesmente pelo fortalecimento dos grupos desfavorecidos, o objetivo do Estado seria alcançado.371
Assim, os poderes públicos se ocupam do proselitismo, propiciando uma realização
da liberdade religiosa de modo mais completo, submetendo-a aos limites absolutamente
imprescindíveis. No entanto, não se pode olvidar que, como todos os demais direitos, o
proselitismo não é estático e está aberto a dinamicidade social e as relações humanas. Logo,
diante do pluralismo social, há situações em que o Estado também não pode interferir.372
Considerando-se que o proselitismo não possui uma moldura determinada de direitos
e/ou deveres, tampouco um conceito definido, muitas vezes ele se mostra legítimo e
imprescindível às liberdades de expressão e religiosa, e em outras situações, assume uma
feição coativa, flagrantemente abusiva e que coloca em conflito uma série de direitos e
interesses. Logo, alguns Estados optam, ainda, por definir uma fronteira entre um
proselitismo próprio ou legítimo e o impróprio ou abusivo, que, em certos casos, é tipificado
como crime.373
Semelhantemente, mostra-se a posição de Weingartner Neto que afirma existirem
dois tipos de fundamentalismo submetidos ao núcleo duro do programa constitucional de um
Estado: o fundamentalismo-crença e ou fundamentalismo-militante. O primeiro é tolerável,
pois a crença/conduta, embora tencione, não ameaça tornar-se coativa. Já, o segundo é
bloqueável, pois ultrapassa o estágio anterior, apresentando risco concreto de imposição aos
não aderentes.374
Esse último, mostra-se
Um proselitismo tendencioso, abusivo e explorador da miséria humana, da pobreza, da ignorância, da drogadição, da enfermidade, das necessidades humanas; às vezes é um proselitismo seletivo e excludente; às vezes um proselitismo que joga com vantagens, encerrando-se na mísera captação que tende somente a incrementar o poder, a influência e o dinheiro. Tudo isso se encontra em aberta contradição com o proselitismo que nasce na desinteressada e salutar comunicação da fé e exercício de caridade. 375
371 FISS, Owen. A ironia da Liberdade de Expressão, p. 49. 372 CIÁURRIZ, Maria José. El derecho de proselitismo en el marco de la liberta religiosa, p. 124. 373 GUERREIRO, Sara. As Fronteiras da Tolerância: Liberdade religiosa e proselitismo na Convenção Européia dos Direitos do Homem, p. 176. 374 WEINGARTNER NETO, Jayme. Liberdade religiosa na Constituição: fundamentalismo, pluralismo, crenças, cultos, p. 250. 375 CIÁURRIZ, Maria José. El derecho de proselitismo en el marco de la liberta religiosa, p. 141.
109
A escolha da fé deve se realizar sem nenhum tipo de pressão. Dessa forma, qualquer
utilização de manipulações psíquicas e psicológicas através das palavras gera o proselitismo
abusivo. Quem não ouviu falar de lavagem cerebral e manipulação mental, de captação dos
ignorantes, da juventude sem norte, de suicídios coletivos, entenderá muito bem a captação
proselitista através dos meios mais graves e irreversíveis.376
Além disso, as confissões somente reclamam o exercício de proselitismo, sem
considerar a existência de outras confissões com o mesmo intuito. Elas devem evitar
radicalmente o proselitismo ilícito ou irregular, o qual o Estado deverá impedir ou castigar
como forma de garantir a liberdade religiosa em toda sua extensão. Já, o exercício do
proselitismo lícito e regular deve ser propiciado às confissões, através de um jogo limpo,
cujas regras elas mesmo devem estabelecer perante o pluralismo cultural e ideológico.
Algumas regras podem ser vistas através de alguns documentos internacionais já criados,
como o respeito à liberdade de todos, proteção a identidade cultural de cada povo, proibição
de aproveitamento da debilidade de uma pessoa para induzi-la a trocar de religião, entre
outras.377
Enfim, de modo prático, constata-se que o proselitismo, como manifestação da
liberdade de expressão, deve ser relativizado pelo Estado e, assim, controlado. Entretanto,
surge a importante indagação: como efetivar esse controle?
Sara Guerreiro refere que no documento intitulado “Princípios orientadores de uma
disseminação responsável da religião ou crença”, redigido pela Associação pela Liberdade
Religiosa378 (na seqüência de uma série de conferências e encontros ocorridos nos Estados
Unidos, Rússia e Espanha) se conclui que cada pessoa tem o direito de tentar convencer os
outros da verdade de sua crença, contudo, com manifestações humildes, respeitosas e
honestas, implantando-se o diálogo, no lugar do confronto. Ainda, sugere-se a forma como a
disseminação da fé deve ser levado a cabo, evitando competição e antagonismos, para
desencorajar declarações falsas ou o menosprezo e ridicularização de outras religiões, como
também a coação física e moral ou a utilização do poder político e econômico.379
Para tanto, entende-se que “a difusão das crenças religiosas não é uma
responsabilidade singular de cada confissão, e sim, uma responsabilidade de todos”.380
376 CIÁURRIZ, Maria José. El derecho de proselitismo en el marco de la liberta religiosa, pp.141-3. 377 CIÁURRIZ, Maria José. El derecho de proselitismo en el marco de la liberta religiosa, p.128. 378 INTERNATIONAL RELIGIOUS LIBERTY ASSOCIATION. Guidiong Principles for the Responsible Dissemination of Religion and Belief. Anuário del derecho Eclesiástico del Estado. V. XVI, 2000. 379 GUERREIRO, Sara. As Fronteiras da Tolerância: Liberdade religiosa e proselitismo na Convenção Européia dos Direitos do Homem, p. 176. 380 CIÁURRIZ, Maria José. El derecho de proselitismo en el marco de la liberta religiosa, p. 133.
110
Destarte, antes de qualquer coisa, deve prevalecer um princípio de tolerância entre elas, pois
ele orienta a abstenção de hostilidades para quem professa idéias “morais e religiosas
julgadas censuráveis.” 381 Logo, cabe entender melhor o significado do que é a tolerância.
4.2 O PRINCÍPIO DE TOLERÂNCIA COMO UMA ALTERNATIVA INICIAL À
QUESTÃO
A etimologia da palavra tolerância indica o sentido de paciência ou constância em
suportar. Morin aduz sobre a existência de quatro graus de tolerância: o primeiro, exposto por
Voltaire, obriga todos a respeitar o direito de proferir um propósito que nos parece ignóbil.
Não se está querendo dizer que se respeite o ignóbil, mas sim, evitar que se imponha
concepção sobre ele a fim de proibir uma fala. O segundo grau é interligado a opção
democrática, pois a essência da democracia é se nutrir de opiniões diversas e antagônicas,
destarte, o princípio democrático proporciona cada um a respeitar a expressão de idéias
antagônicas suas. O terceiro grau segue a concepção de Niels Bohr, para quem o contrário de
uma idéia profunda é uma outra idéia profunda; ou seja, há uma verdade na idéia antagônica
à nossa, e é esta verdade é que preciso respeitar. O quarto grau surge da consciência das
pessoas sobre os mitos, ideologias, idéias ou deuses, como também da consciência que
direciona os indivíduos a ir bem mais longe, a lugar diferente daquele onde querem ir. Enfim,
em qualquer sentido, a tolerância vale para as idéias, não para os insultos, agressões ou atos
homicidas”.382
De modo mais simples, a tolerância é normalmente associada a dois sentidos: um
negativo, o qual resulta numa simples permissão de um mal, e um positivo, que consiste na
permissão positiva de um mal, que não se pretende, mas que se consente, com o intuito de
evitar um mal maior ou conseguir um bem maior.383
Nesse último sentido,
[...] a palavra tolerância significa a renúncia em impedir alguns males justificada pelo risco de que se forem impedidos à força se tornariam piores. A Tolerância para com os dissidentes é, portanto, aceita como um mal necessário quando não é possível reprimir o dissenso, ou seja, um mal
381 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 5 ed. (trad. Carmem Varriale e outros). Brasília: Imprensa Oficial, 2000, p. 1.246. 382 MORIN, Edgar. Os Sete Saberes necessários à educação do Futuro. 2 ed. São Paulo, Cortez, 2000. pp. 101-2. 383 URBANO, Francisco de Paula Vera. La Libertad Religiosa como Derecho de la Persona. Madrid: Instituto de Estudios Politicos, 1971, p. 41.
111
menor quando o custo da repressão resultaria excessivo. É evidente que em tal caso o conceito de Tolerância constituiu um grau preparatório do princípio da liberdade. 384
Para que as pessoas sejam verdadeiramente livres em suas formas de pensar e agir, a
tolerância mostra-se indispensável. Nessa linha, Weingartner Neto explica que a tolerância é
um princípio, o qual estabelece o dever do respeito escrupuloso pelos direitos fundamentais
de todos os cidadãos385 e está previsto no Cátalogo de Posições Jusfundamentais (CPJ)386
derivados do direito fundamental a liberdade religiosa.
Destarte, no âmbito religioso o proselitismo deve estar atrelado aos limites da
tolerância para ser exercido, tendo em vista que em uma sociedade democrática a liberdade
de um cidadão deve ser limitada para que a liberdade de outro seja exercida e vice-versa.
Não é possível haver uma liberdade absoluta a qual predomine sempre e sobre todas.
Em consonância, John Locke, escritor da obra “Carta sobre a Tolerância”, sustenta
que a liberdade absoluta permite que cada um faça tudo o que lhe agrade sem respeito a
normas de conduta impostas pelo Estado. Logo, nenhum governo a possibilita, tendo em
vista que a própria idéia de governo pressupõe regras e leis, que exigem obediência. 387
Nessa senda, entende-se porque não há
[...] no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção por parte dos órgãos estatais, de medida restritiva das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição.
O estatuto constitucional das liberdades públicas, bem por isso, ao delinear o regime jurídico a que estas estão sujeitas – e considerado o substrato ético que as informa - permite que sobre elas incidam limitações de ordem jurídica, destinadas, de um lado, a proteger a integridade do interesse social e, de outro, a assegurar a coexistência harmoniosa das liberdades, pois nenhum direito ou garantia pode ser exercido em detrimento da ordem pública ou com desrespeito aos direitos e garantias de terceiros.388
Entretanto, não se está querendo dizer que a tolerância implica a renúncia à própria
convicção firme. Implica sim na pura e simples opinião (a ser eventualmente revista em cada
oportunidade concreta, de acordo com as circunstâncias e as situações) de que a verdade tem 384 BOBBIO, Norberto; MATTEUCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política ,p. 1246. 385 NETO, Jayme Weingartner. Liberdade religiosa na Constituição: fundamentalismo, pluralismo, crenças, cultos, p. 118. 386 Para maiores detalhes, vide a obra de Jayme Weingartner Neto “Liberdade religiosa na Constituição: fundamentalismo, pluralismo, crenças, cultos.” (Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2007). 387 LOCKE, John. Carta sobre a Tolerância. Lisboa: edições 70, 2000, p. 24. 388 MELLO, Celso de. In: SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Crime de Racismo e Anti-semitismo: Um julgamento histórico do STF – Habeas Corpus nº 82.424/RS, p. 198.
112
tudo a ganhar quando suporta o “erro” alheio já que a perseguição, como experiência
histórica o demonstrou com freqüência, em vez de esmagá-lo, reforça-o. Vê-se que a
intolerância não obtém os resultados a que se propõe. Até em nível elementar, capta-se a
diferença entre o tolerante e o cético: o cético é aquele que para quem não importa que a fé
triunfe; o tolerante por razões práticas dá muita importância ao triunfo de uma verdade, a sua,
mas considera que, através da tolerância, o seu fim, que é combater o erro o impedir que ele
cause danos, é melhor alcançado do que mediante a intolerância.389
Sara Guerreiro adapta esse conceito a questão da religião ao entender que uma
determinada pessoa pode acreditar que a sua fé é única verdadeira e que outras são erradas e
intensamente maléovolas. Contudo, essa mesma pessoa será relativamente tolerante às
restantes religiões quando reconhece que todos os movimentos religiosos têm o mesmo
direito à liberdade de ter e exercer uma religião e acreditar que a sua fé é a verdadeira.390
Na realidade, o “Outro” ou o diferente sempre incomodou e tende a incomodar os
seres humanos. Deve-se, entretanto, saber respeitá-lo e conviver com ele. Nos termos, de
Timm o “Outro” é:
“[...] compreendido como aquele que nunca antes esteve presente ao nosso encontro, ou seja, aquele que inelutavelmente rompe meu solipsismo, na medida em que chega de fora, fora do âmbito dilatado do meu poder intelectual e de sua tendência de considerá-lo nada mais do que uma representação lógica do meu intelecto.[...] O que o outro representa originalmente frente a mim é um problema não apenas filosófico, mas um acontecimento incisivamente traumático; eu não posso de forma nenhuma, determinar aquilo que o outro é enquanto tal; o único enunciado que posso ousar é determinado justamente pelo Outro; que ele é de outro modo- outramente - que eu, ou seja, que entre nós uma verdadeira e irredutível diferença tem lugar.391
Tal diferença deve ser aceita e, assim, tampouco banida ou contestada. “Na realidade,
trata-se de um conflito entre dois princípios morais: a moral da coerência, que me induz a pôr
minha verdade acima de tudo, e a moral do respeito ou da benevolência em face do outro.” 392
Bem escreveu Locke ao suscitar a necessidade de
389 BOBBIO. Norberto. A Era dos Direitos. (trad. Carlos Wilson Coutinho). Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 206. 390 GUERREIRO, Sara. As Fronteiras da Tolerância: Liberdade religiosa e proselitismo na Convenção Européia dos Direitos do Homem, p. 89. 391 SOUZA, Ricardo Timm de. A racionalidade ética como fundamento de uma sociedade viável: reflexões sobre suas condições de possibilidade desde a crítica filosófica o fenômeno da “corrupção”. In; GAUER, Ruth M.(org). A qualidade do tempo: para além das aparências históricas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1994, pp. 120-1. 392 BOBBIO. Norberto. A Era dos Direitos, p. 209.
113
[...] acreditar sem conhecimento e, muitas vezes, até sobre fracos fundamentos, no estado passageiro da acção e da cegueira e tornar-nos mais cuidadosos em nos instruirmos a nós mesmo do que em obrigar os outros a aceitar as nossas opiniões... A opção que deveríamos tomar nesta ocasião seria ter piedade da nossa mútua ignorância e procurar dissipá-la por todas as vias suaves e honestas de que nós podemos lembrar para esclarecer o espírito, e não maltratar primeiramente os outros como pessoas obstinadas e perversas, porque não querem deixar as suas opiniões e aceitar as nossas...393
Oportuno é reconhecer que é nas fronteiras do relacionamento com o outro que se
pode instaurar um processo imperativo da norma moral e, assim, refletir sobre a ação ética
sobre o mundo e a cultura que o outro está inserido, através de uma nova ética de valorização
e respeita a diferença. O outro, como pertencente à espécie humana, passa a ser o limite da
não violência e sujeito ao diálogo para que a convivência humana seja possível.394
Proeminentemente, Morin assevera que a compreensão do outro requer a consciência
da complexidade humana. Para isso, deve-se ter consciência do destino multifacetado dos
seres humanos, da muito rica e necessária diversidade dos indivíduos, dos povos, das culturas
e da importância de conviver com ela.395
Diante disso, Ciarruz sustenta que a condição inescusável do diálogo proselitista é o
conhecimento do outro, o qual evita que o diálogo se converta em um conjunto de
monólogos. Para isso, é necessário buscar informações objetivas sobre as demais religiões,
de modo que se contenha a difusão de juízos sem fundamentos e “cegos”, que evidentemente
não devem compor a atitude individual de cada crente. Contrariamente, deve haver um
esforço de compreensão e conhecimento mútuo entre as confissões, através de um processo
de inter-relação e intercâmbio entre fiéis. 396
O exercício do proselitismo deve ser responsável e reflexivo, buscando um tratamento
respeitoso, justo e compreensivo. Assim, deve-se proclamar principalmente respeito às
minorias, com inspiração num princípio de neutralidade, tendo em vista a sociedade plural
atual, onde convivem grupos ideológicos muitos variados. O Estado, por sua vez, deve estar
em condições de garantir os direitos e liberdade de todos seus cidadãos, a partir de um plano
de liberdade e igualdade.397
393 LOCKE, John. Carta sobre a Tolerância, p. 32. 394 FERREIRA, Amauri Carlos. Ensino Religioso nas fronteiras da ética: subsídios pedagógicos. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 36. 395MORIN, Edgar. Os Sete Saberes necessários à educação do Futuro, p. 61. 396 CIÁURRIZ, Maria José. El derecho de proselitismo en el marco de la liberta religiosa, p. 144. 397 CIÁURRIZ, Maria José. El derecho de proselitismo en el marco de la liberta religiosa, p. 135
114
Por uma proposta positiva, ou seja, não basta que as confissões não coloquem
obstáculo a manifestação da fé das demais, mas sim que, necessariamente, colaborem para a
mesma. Todas podem manifestar suas convicções com responsabilidade comum. Para isso,
deve-se levar em conta substancialmente a possibilidade de entendimento e diálogo, como
um enfrentamento num campo ético de encontro comum.398
A referida autora asserta, ainda, que atualmente tem se aberto um espaço amplo para
discussões onde não é possível a prevalência de ódio ou fanatismo. O respeito nasce da
segurança das pessoas das próprias convicções e as legitima. Por mais, que o outro esteja
equivocado, ele tem esse direito: a liberdade de entender Deus e exercer sua consciência
pessoal sobre ele. Este é o princípio capital para o respeito que permite a convivência .399
Para tanto, [...] o Estado deve estar condicionado a garantir os direitos e liberdades de todos com um plano de igualdade e liberdade. Neste sentido, o Estado deve assumir a posição de garante dos objetivos que pretendem seguir os diversos grupos sociais e associações coletivas legitimamente constituídas. Assim, o princípio da neutralidade preside seu trabalho de promover tanto os direitos individuais, como os direitos coletivos.400
Nessa linha, para a proteção da liberdade religiosa, como referido anteriormente, o
Estado deve estipular os limites do proselitismo, considerando a dinamicidade das relações
sociais e o pluralismo. Logo, utiliza-se de seus poderes legislativo e judiciário para esse fim.
A primeira vista, vê-se claramente no âmbito legislativo essa tentativa de limitação ao
proselitismo, com a relativização da liberdade de expressão. A própria criminalização da
discriminação religiosa, com a utilização do direito penal, a última esfera de proteção dos
bens jurídicos, para estabelecer normas de contenção da discriminação religiosa, já
demonstram a intenção do Estado em equilibrar a relação entre confissões religiosas.
A grande problemática se centra quando se passa a analisar a postura do judiciário
quando de fronte a questões práticas como o conflito entre os direitos fundamentais a
liberdade religiosa e a liberdade de expressão. Por não ser um tema de grande abordagem na
jurisprudência nacional cabe tomar como referência o estudo de duas ações julgadas neste
país.
4.3 ANÁLISE JURISPRUDENCIAL
398 CIÁURRIZ, Maria José. El derecho de proselitismo en el marco de la liberta religiosa, pp. 133-4. 399 CIÁURRIZ, Maria José. El derecho de proselitismo en el marco de la liberta religiosa, p. 134. 400 CIÁURRIZ, Maria José. El derecho de proselitismo en el marco de la liberta religiosa, p.136.
115
No dia 17 de setembro de 2003 foi apreciado pelo Supremo Tribunal Federal o
Habeas Corpus nº 82424 advindo do Rio Grande do Sul, no qual configurava como paciente
Siegfrieid Ellwanger, absolvido em primeira instância e condenado, em segundo grau, a dois
anos de reclusão, com sursis pelo prazo de quatro anos, como incurso no artigo 20 da lei
7.716/89, na redação dada pela Lei 8.081/90. Entendeu-se que o paciente cometeu o delito de
racismo ao realizar apologia a idéias preconceituosas e discriminatórias contra a comunidade
judaica na qualidade de escritor e sócio da empresa “Revisão editora Ltda”, ao editar
distribuir e vender a o público obras anti-semitas de sua autoria (Holocausto, Judeu, ou
Alemão?- Nos bastidores da Mentira do Século) e de autoria de outros escritores nacionais e
estrangeiros (O Judeu Internacional, de Henry Ford; A História Secreta do Brasil – Colônia
de Banqueiros e Os Protocolos dos Sábios de Sião, os três de autoria de Gustavo Barroso;
Hitler - Culpado ou Inocente?, de Sérgio Oliveira; e os Conquistadores do Mundo – os
verdadeiros criminosos de guerra, de Louis Marschalko”).
Na ementa, pode-se visualizar: HABEAS-CORPUS. PUBLICAÇÃO DE LIVROS:
ANTI-SEMITISMO. RACISMO. CRIME IMPRESCRITÍVEL. CONCEITUAÇÃO.
ABRANGÊNCIA CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE EXPRESSÃO. LIMITES.
ORDEM DENEGADA. 1. Escrever, editar, divulgar e comerciar livros "fazendo apologia de
idéias preconceituosas e discriminatórias" contra a comunidade judaica (Lei 7716/89, artigo
20, na redação dada pela Lei 8081/90) constitui crime de racismo sujeito às cláusulas de
inafiançabilidade e imprescritibilidade (CF, artigo 5º, XLII). [...]4. Raça e racismo. A divisão
dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social.
Desse pressuposto origina-se o racismo que, por sua vez, gera a discriminação e o
preconceito segregacionista. 5. Fundamento do núcleo do pensamento do nacional-
socialismo de que os judeus e os arianos formam raças distintas. Os primeiros seriam raça
inferior, nefasta e infecta, características suficientes para justificar a segregação e o
extermínio: inconciabilidade com os padrões éticos e morais definidos na Carta Política do
Brasil e do mundo contemporâneo, sob os quais se ergue e se harmoniza o estado
democrático. Estigmas que por si só evidenciam crime de racismo. Concepção atentatória dos
princípios nos quais se erige e se organiza a sociedade humana, baseada na respeitabilidade e
dignidade do ser humano e de sua pacífica convivência no meio social. Condutas e evocações
aéticas e imorais que implicam repulsiva ação estatal por se revestirem de densa
intolerabilidade, de sorte a afrontar o ordenamento infraconstitucional e constitucional do
País. 6. Adesão do Brasil a tratados e acordos multilaterais, que energicamente repudiam
116
quaisquer discriminações raciais, aí compreendidas as distinções entre os homens por
restrições ou preferências oriundas de raça, cor, credo, descendência ou origem nacional
ou étnica, inspiradas na pretensa superioridade de um povo sobre outro, de que são
exemplos a xenofobia, "negrofobia", "islamafobia" e o anti-semitismo. (Grifo meu) [...]
12. Discriminação que, no caso, se evidencia como deliberada e dirigida especificamente aos
judeus, que configura ato ilícito de prática de racismo, com as conseqüências gravosas que o
acompanham. 13. Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como
absoluta. Limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua
abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal. 14. As
liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira
harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º,
§ 2º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o
"direito à incitação ao racismo", dado que um direito individual não pode constituir-se em
salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência
dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica. (Grifo meu)
Com decisão por maioria, o Tribunal resolvendo a questão de ordem, não viu
condições de deferimento do habeas-corpus de ofício e a decisão foi a seguinte: o Tribunal,
por maioria, indeferiu o habeas-corpus, vencidos os Senhores Ministros Moreira Alves,
Relator, e Marco Aurélio, que concediam a ordem para reconhecer a prescrição da pretensão
punitiva do delito, e o Senhor Ministro Carlos Britto, que a concedia, ex-officio, para
absolver o paciente por falta de tipicidade de conduta. Redigirá o acórdão o Presidente, o
Senhor Ministro Maurício Corrêa. Não votou o Senhor Ministro Joaquim Barbosa por
suceder ao Senhor Ministro Moreira Alves que proferira voto anteriormente.
Como expressa a ementa, o paciente foi condenado em segunda instância pelo artigo
20, caput, da Lei 7.716/89, na redação dada pela Lei 8.081/90, o qual estabelece ser crime
praticar, induzir ou incitar, pelos meios de comunicação social ou por publicação de qualquer
natureza, a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional,
com pena de reclusão de dois a cinco anos. Diante disso, Sigfried apresentou habeas corpus
sustentando que a condenação pelo referido tipo penal não significa, necessariamente, que a
condenação seja pela prática do racismo e que todas as práticas da lei passaram a receber a
117
reprimenda penal, entretanto, apenas a prática do racismo está abrigada no art. 5º, XLII, da
Constituição Federal, como imprescritível.401:
Além de o crime de racismo, como previsto no art. 5º, XLII, não abarcar toda e qualquer forma de preconceito ou de discriminação, porquanto, por mais amplo que seja o sentido de “racismo”, não abrange ele, evidentemente, por exemplo, a discriminação ou o preconceito quanto à idade ou ao sexo, deve essa expressão ser interpretada estritamente, porque a imprescritibilidade nele prevista não alcança sequer os crimes considerados constitucionalmente hediondos, como a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo, aos quais o inciso XLIII do mencionado artigo 5 º apenas determina que a lei os considerará inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia.402
Diante das alegações feitas pelo paciente, para resolver o problema jurídico,
inicialmente, analisa-se no acórdão o conceito de raça em diferentes concepções e se os
judeus seriam uma raça ou não. Esse entendimento reflete diretamente na possibilidade de
prescrever o delito de racismo.
Por um lado, refere-se que o judaísmo é considerado por alguns como uma religião e
não uma raça, devido a sua dispersão no mundo e a manutenção somente de um vínculo
espiritual.403 De outra forma, explica-se também que os cientistas confirmaram não existir
base genética para aquilo que as pessoas descrevem como raça, e que apenas algumas poucas
diferenças distinguem uma pessoa da outra, estimando-se que apenas 0,1% (zero vírgula um
por cento) de genoma seja responsável pela individualidade de cada ser humano.404 Em
consonância, não se poderia qualificar o crime de discriminação que o paciente foi
condenado como racismo, e assim, estabelecer sua imprescritibilidade.
Em que pesem tais fundamentos, predominou a compreensão de que a existência de
uma divisão dos seres humanos em raças é reflexo de um processo político-social e disso, é
possível o racismo com atos discriminatórios e segregacionistas.
Afirma-se no acórdão que tais condutas violam a dignidade humana e a cidadania,
dois dogmas fundamentais inerentes ao Estado Democrático de Direito. Ademais, os
Tratados Internacionais subscritos pelo Brasil, como a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, por exemplo, revelam repulsa ao que o crime a propagação de doutrinas baseadas
401 ALVES, Moreira. In: SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Crime de Racismo e Anti-semitismo: Um julgamento histórico do STF – Habeas Corpus nº 82.424/RS, p. 13. 402 ALVES, Moreira. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Crime de Racismo e Anti-semitismo: Um julgamento histórico do STF – Habeas Corpus nº 82.424/RS, p. 14. 403 ALVES, Moreira. In: SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Crime de Racismo e Anti-semitismo: Um julgamento histórico do STF – Habeas Corpus nº 82.424/RS, p. 17. 404 AURÉLIO, Marco. In: SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Crime de Racismo e Anti-semitismo: Um julgamento histórico do STF – Habeas Corpus nº 82.424/RS, p. 25.
118
em discriminações e na superioridade ou ódios raciais. A Declaração Universal dos Direitos
da Pessoa Humana
[...] deve representar, na consciência dos governantes responsáveis e dos Estados comprometidos com a causa liberdade, da justiça, da paz entre os povos e da democracia, o elemento vital e impulsionador de medidas que, de um lado, visem afastar, das relações entre os indivíduos e o poder estatal, o medo da opressão e, de outro, tendam a evitar a frustração dos sonhos que buscam dar sentido de concreta efetividade às legitimas aspirações do ser humano, banindo, para sempre, das relações entre as pessoas, o ódio e a intolerância, o preconceito e a discriminação que tão profundamente desonram aqueles que os praticam.405
Além disso, e com relevância para a solução do problema desse trabalho, constata-se
no texto da decisão que o fato de a liberdade de expressão também ser protegida
constitucionalmente e por instrumentos jurídicos internacionais, não legitima o seu abuso.
Conforme o exposto pelo Ministro Gilmar Mendes, em uma sociedade pluralista, não se pode
atribuir primazia a liberdade de expressão, devido a valores como a igualdade e a dignidade
humana. A liberdade de expressão encontra limites nas manifestações de cunhos
discriminatórios de acordo com uma elementar exigência do próprio sistema democrático,
que prevê a igualdade e tolerância entre grupos sociais. 406
Diante disso, o Ministro sugere a utilização do princípio da proporcionalidade para
resolver a colisão existente entre os valores da liberdade de expressão e valores de imagem,
honra e privacidade.
A par dessa vinculação aos direitos fundamentais o princípio da proporcionalidade alcança as denominadas colisões de bens, valores ou princípios constitucionais. Nesse contexto, as exigências do princípio da proporcionalidade representam um método geral para a solução de conflitos entre princípios, isto é, um conflito entre normas que, ao contrário do conflito entre regras, é resolvido não pela revogação ou pelo campo de aplicação entre as normas, mas antes e tão somente pela ponderação do peso dos sentidos opostos. Nessa última hipótese, aplica-se o princípio da proporcionalidade para estabelecer ponderações entre distinto bens constitucionais. 407
Por sua vez, interessante é a conclusão apresentada pelo Ministro Celso de Mello ao
afirmar que condutas que “extravasam os limites da indagação científica e da pesquisa
histórica, degradando-se ao nível primário do insulto, da ofensa e, sobretudo, do estímulo à
intolerância e ao ódio público pelos judeus, não merecem a dignidade de proteção
405 MELLO, Celso de. In: SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Crime de Racismo e Anti-semitismo: Um julgamento histórico do STF – Habeas Corpus nº 82.424/RS, p 199. 406 MENDES, Gilmar. In: SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Crime de Racismo e Anti-semitismo: Um julgamento histórico do STF – Habeas Corpus nº 82.424/RS, p. 70. 407 MENDES, Gilmar.In: SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Crime de Racismo e Anti-semitismo: Um julgamento histórico do STF – Habeas Corpus nº 82.424/RS, p. 71.
119
constitucional [...].”408 Ainda, sustenta que apesar de haver casos em que há conflituosidade
entre direitos fundamentais, o presente caso não traduz a ocorrência na espécie. Em detalhe
sustenta:
Com efeito, há, na espécie, norma constitucional que objetiva fazer preservar, no processo de livre expressão de pensamento a incolumidade pública dos direitos de personalidade, como a essencial dignidade da pessoa humana, buscando inibir, desse modo, comportamentos abusivos que possam, impulsionados por motivações racistas, disseminar, criminosamente, o ódio contra outras pessoas, mesmo porque a incitação – que constitui um dos núcleos do tipo penal- reveste-se de caráter proteiforme, dada a multiplicidade de formas executivas que esse comportamento pode assumir, concretizando, assim, qualquer que tenha sido o meio empregado, a prática inaceitável do racismo.
Presente esse contexto, cabe reconhecer que os postulados da igualdade e da dignidade pessoal dos seres humanos constituem limitações externas à liberdade de expressão, que não pode, e não deve, ser exercida com o propósito subalterno de veicular práticas criminosas, tendentes a fomentar e a estimular situações de intolerância e de ódio público.409
Para o Ministro Carlos Ayres Britto existe uma diferença que deve ser pontuada.
Primeiramente, a autonomia de vontade deve ter sua proteção quando alguém escreve,
gesticula, fala e produz algo de natureza artística, intelectual, científica, ou de comunicação.
Traduz-se no exercício do direito subjetivo de não sofrer impedimento ou censura prévia
nesse ato de agir e dirigir-se a terceiros. Esse direito tem no próprio momento de sua
realização seu exaurimento de conteúdo, sem incorporar a si força de bloquear posturas
reativas de terceiros eventualmente prejudicados nas respectivas autonomias de vontade.
Logo, também se deve analisar o ângulo de quem foi vítima do abuso dessa autonomia de
vontade e teve atingido a sua esfera pessoal de autonomia, a qual terá direito de ter sua
autonomia protegida judicialmente.
Ainda, o Ministro Britto ressalta que não se está dizendo que
[...] o sujeito, pego em abusividade, fique, a partir daí, proibido de reexercitar sua liberdade de pensamento ou de manifestação intelectual, artística, científica, ou de comunicação. Não! A abusividade se questiona e se afere é caso-a-caso ou a cada nova manifestação de autonomia do primeiro tipo de vontade. Reiniciando-se o ciclo de reclamação, apuração, constatação e apenamento do abuso, acaso empiricamente repetido. Porque somente assim é que se conciliam o direito de uso, de uma banda e o direito de não sofrer abuso de outra. 410
408 MELLO, Celso de. In: SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Crime de Racismo e Anti-semitismo: Um julgamento histórico do STF – Habeas Corpus nº 82.424/RS, p. 59. 409 MELLO, Celso de.In: SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Crime de Racismo e Anti-semitismo: Um julgamento histórico do STF – Habeas Corpus nº 82.424/RS, pp. 59-60. 410 BRITO, Carlos Ayres. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Crime de Racismo e Anti-semitismo: um julgamento Histórico do STF, Hábeas Corpus nº 82.424/RS, pp. 145-7.
120
Discorrendo nessa mesma esteira, é devido suscitar a ação civil pública411 proposta
pelo Ministério Público da Bahia na Justiça Federal, em 03 de novembro de 2005, tendo
como réus Edir Macedo, a Igreja Universal do Reino de Deus e a Gráfica Universal Ltda.,
responsáveis pela publicação, vendagem e distribuição gratuita da obra “Orixás, Caboclos e
Guias, deuses e demônios?”.
O Ministério Público refere que o livro, escrito pelo primeiro réu, revela alto grau de
preconceito e discriminação às religiões afro-brasileiras. Já na sua introdução, o escritor
afirma que sempre desejou colocar em um livro toda a verdade sobre os orixás, caboclos e os
mais diversos guias, que vivem enganando as pessoas e, fazendo delas “cavalos”,
“burrinhos” ou “aparelhos”.412 Logo depois, ao início do texto efetivamente, explica que ao
longo dos séculos, houve um sincretismo religioso responsável por uma mistura curiosa e
diabólica que originou as religiões da umbanda, candomblé e quimbanda.413 Sustenta
também que os deuses cultuados pelas religiões afro-brasileiras representam “anjos
decaídos”, “demônios” e a “personificação do mal”414.
Outrossim, ao longo do texto são abordadas outras expressões, as quais embasaram a
petição inicial do Ministério Público, como: “pise na cabeça dos exus”, “parta para cima dos
exus, caboclos”, “ a Igreja tem de agir”. Ainda, no livro, atribui-se ao subdesenvolvimento do
Brasil a tais cultos, como também se associa as religiões afro-brasileiras ao “pecado mortal”.
Edir Macedo defende que os adeptos das religiões afro-brasileiras, ao cultuar os seus
deuses, o fazem com o objetivo de buscar algo ilícito ou imoral. Logo, estimula os fiéis das
religiões de matriz africana a abandonarem suas crenças, sob a alegação de que apenas sua
devoção e suas pregações podem “salvar e conduzir a Deus”, convidando-os a “combater”
estas formas de manifestação religiosas
Diante de trechos como esses, o Ministério Público Federal alega que a obra busca
incitar todos os leitores a uma postura preconceituosa e discriminatória. Logo, o órgão do
parquet assevera na peça inicial que a intolerância religiosa dessa obra se enquadra na
tipificação dos crimes previstos do artigo 20 da Lei nº 7.716/89 (preconceito de religião) e do
artigo 208 do Código Penal (ultraje a culto e impedimento ou perturbação de ato a ele
relativo). Afere que as religiões afro-brasileiras são manifestações culturais protegidas pelos
411 Processo nº 2005. 33.00.022891-3 da 4ª Vara Federal da Seção Judiciária da Bahia. 412 MACEDO, Edir. Orixás, Caboclos e Guias: Deuses ou Demônios? Rio de Janeiro: Gráfica Universal, 2004, p. 9. 413 MACEDO, Edir. Orixás, Caboclos e Guias: Deuses ou Demônios?, p. 13. 414MACEDO, Edir. Orixás, Caboclos e Guias: Deuses ou Demônios?, p. 24 .
121
artigos. 3º, IV, 5º, XLI, 215 e 216 da Constituição Federal, como também sustenta que na
tensão entre a liberdade de religião e de expressão, essa última não se mostra absoluta e
preponderante, diante da possibilidade de preconceito e de discriminação:
Obviamente que o direito à liberdade de expressão não pode albergar posturas preconceituosas e discriminatórias, sobretudo, quando caracterizadas como infração penal. O Estado e a sociedade devem orientar-se por uma convivência harmoniosa entre as religiões, evitando o fomento da discriminação e do preconceito. É, portanto, dever do Estado garantir o direito à liberdade de crenças, inclusive – se necessário for, como ora demonstrado –, mediante a retirada de circulação de obras literárias ofensivas a este direito fundamental.415
Além de ressaltar na peça vestibular o problema da intolerância religiosa, “em boa
parte capitaneada por integrantes da Igreja Universal”, o representante do Ministério Público
Federal salienta que Edir Macedo “utiliza de maneira manifestadamente deturpada uma
prerrogativa constitucional”416, ou seja, a liberdade de expressão. Ademais, cita o “episódio
deplorável” ocorrido em 1995, quando o bispo Sério [é ‘Sério’ ou ‘Sérgio’] von Helder, da
Igreja Universal do Reino de Deus, golpeou, em rede nacional, 22 vezes consecutivas, com
pés e mãos, a imagem da Santa de Nossa Senhora Aparecida, sendo condenado
posteriormente a 2 anos de reclusão por incitar o preconceito religioso.417 Finaliza
declarando:
É preciso por um fim a tal prática de intolerância religiosa, principalmente a veiculada por meios de comunicação e impressos, em razão do seu maior poder de alcance e persuasão, revelando-se, para tanto, lamentavelmente, indispensável a adoção da medida extrema ora perseguida, consistente na retirada de circulação da obra em questão.418
Para embasar suas alegações, utiliza autores da doutrina constitucional como José
Afonso da Silva e Alexandre de Moraes e, também, se refere ao Habeas Corpus nº 82.424
julgado pelo Supremo Tribunal Federal e também abordado nesse trabalho anteriormente.
Liminarmente, pediu a imediata retirada de circulação, suspensão de tiragem, venda,
revenda e entrega gratuita da obra em questão. Como pedido principal requereu a condenação
dos réus a suspensão definitiva da obra.
415 Folha 20 da petição inicial. 416 Folha 20 da petição inicial. 417 Folha 22 da petição inicial. 418 Folha 24 da petição inicial.
122
O pedido em liminar foi deferido, em 08 de novembro de 2005, pela juíza da 4ª Vara
Federal da Subseção da Bahia, o qual expressou que a obra é marcada por disseminação de
idéias segregacionistas e discriminatórias de cunho religioso e ultrapassa os lindes da
liberdade religiosa ao não se limitar a explanar e divulgar a religião de Edir Macedo, mas ao
tratar pejorativamente outras religiões e seus adeptos.
Mais detalhadamente, a decisão expressa que o livro se mostra abusivo e atentatório
ao direito fundamental não apenas dos adeptos das religiões originárias da África e
absorvidas, culturalmente, como afro-brasileiras, mas da sociedade, no seu genérico prisma,
que tem direito à convivência harmônica e fraterna, a despeito de toda a sua diversidade (de
cores, raças, etnias e credos). Também acrescenta que a ordem constitucional vigente proíbe
a difusão de opiniões como as insertas na obra tela, “dado que a orientação lá contida como
que ‘sai do contexto da própria religião’, enquanto conjunto de princípios, preceitos e
interpretações, e ingressa na órbita trilhada por outra religião (...) desacreditando-a e
depreciando-a perante a sociedade, a ponto de ser ofensiva a seus adeptos”.419
Ademais, a juíza aduz que existe uma tênue linha entre os direitos dos réus e o de
idênticos conteúdos aos seguidores de matriz africana, pois o referido limite termina
exatamente quando e onde começa o direito de outro cidadão a fazer o mesmo, para não ser
discriminado e desrespeitado.
Os desembargadores da 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região
mantiveram, liminarmente, a decisão de primeira instância.
As contestações foram apresentadas pelos réus em 10 de outubro de 2007 e, desde 19
de novembro de 2008, os autos estão conclusos para sentença, não tendo sido proferida ainda
a decisão final.
4.4 A COLISÃO ENTRE OS DIREITOS FUNDAMENTAIS À LIBERDADE RELIGIOSA
E À LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Perante os critérios utilizados nas duas jurisprudências supra abordadas denota-se
que, para a solução do conflito entre os direitos fundamentais à liberdade religiosa e à
419Disponível em: < http://www.prba.mpf.gov.br/pr-acessibilidade/noticiaImprensa.php?cod=40>. Acessado em: 12 de dezembro de 2008.
123
liberdade de expressão, percebe-se indispensável a utilização de uma teoria geral de direitos
fundamentais, como a teoria desenvolvida por Robert Alexy.
A teoria proposta por Robert Alexy visa ter sua aplicação a problemas percebidos em
todos os direitos fundamentais ou em todos os direitos fundamentais de um determinado tipo,
como por exemplo, nesse caso, todos os tipos de liberdade. Sua contrapartida seria uma
teoria particular, que trate dos problemas especiais dos direitos fundamentais singulares. Esta
distinção aponta o alcance da teoria. Outrossim, cabe dizer que a concepção de uma teoria
como essa expressa um ideal teorético, ou seja, que de modo integrativo abarque os
enunciados mais gerais, verdadeiros e corretos possíveis, como também que os vincule.420
Conforme Steinmetz,
[...] em matéria de direitos fundamentais, a teoria estrutural de Alexy, apresentada à comunidade jurídica alemã em meado da década de 80, é referência obrigatória. É uma teoria geral dos direitos fundamentais da Lei Fundamental de Bonn, porém isso não a torna uma “teoria regional”, porque os problemas que analisa são universais na teoria e na dogmática dos direitos fundamentais. Tem como ideal regulador uma teoria integrativa dos direitos fundamentais[...].421
A teoria geral dos direitos fundamentais parte da positividade e validade dos preceitos
fundamentais, e não da verificação de teorias de outros tempos ou lugares, mesmo que tenha
alguma co-relação com a elas. Também, não deixa de ser uma teoria dogmática, ou seja, um
direito positivo de determinado ordenamento jurídico, integrando a ciência do direito em
sentido estrito ou propriamente dita.422
Para Alexy, é possível distinguir três dimensões da dogmática jurídica (a analítica, a
empírica e a normativa)423 as quais demonstram que a ciência do direito, como disciplina
prática, resulta de um princípio unificante, ou seja, vincula-se àquelas concomitantemente, de
modo pluridimensional. A primeira, diz respeito à consideração sistemático-conceitual do
direito válido, que se origina na análise dos conceitos fundamentais, passa pela construção
jurídica, até chegar a fundamentação dos direitos fundamentais.
Por sua vez, a dimensão empírica pode ser analisada por dois ângulos: inicialmente
pelo conhecimento do direito positivamente válido, que pressupõe um amplo conceito de
direito e validez, pois a dimensão empírica não se trata somente da descrição de direito
legislada, mas também da prática judicial. E em segundo, em relação à utilização de
420 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudio Políticos Constitucionales, 2002, pp. 33-4. 421STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 120. 422 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales, p. 29. 423 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales, pp. 29-32.
124
premissas jurídicas na argumentação jurídica, o que não quer dizer que o conhecimento do
direito positivo válido se esgote na constatação de fatos observados.
Ademais, a dimensão normativa, trata-se da orientação e crítica da prática jurídica,
sobretudo da prática jurisprudencial, e não somente da comunicação da dimensão empírica
como um direito positivo válido. Logo, importante é verificar o caso concreto e a base
jurídica correspondente.424
Como Canotilho ressalta, “a conjugação destras três dimensões iluminará a “natureza
praxeológica” do direito constitucional no âmbito dos direitos fundamentais, isto é, o rigor
dogmático vai fornecer-nos instrumentos de trabalho para a compreensão do regime jurídico
dos direitos fundamentais.”425
Integrando a parte geral da dogmática da teoria estrutural dos direitos fundamentais
encontra-se a teoria dos princípios. A teoria dos princípios impede um andar no vazio dos
direitos fundamentais sem conduzir ao entorpecimento.426 Para verificar a estrutura dos
direitos fundamentais, ela centra-se, inicialmente, na compreensão do que são regras e
princípios. A teoria afere que tanto as regras como os princípios são normas porque ambos
dizem o que deve ser e podem ser formulados com a ajuda das expressões deônticas básicas
de mandamento, permissão e proibição. Os princípios, como as regras, são razões para juízos
concretos de dever ser.427
No entanto, há numerosos critérios de distinção entre regras e princípios. Tal
distinção constitui o marco de uma teoria normativo-material dos direitos fundamentais e,
com ele, um ponto de partida para responder as pergunta acerca da possibilidade e os limites
da racionalidade no âmbito dos direitos fundamentais. 428
Seguindo as idéias de Alexy, Canotilho expressa:
Regras são normas que verificados determinados pressupostos, exigem, proíbem ou permitem algo em termos definitivos, sem qualquer excepção (direito definitivo). [...] Princípios são normas que exigem a realização de algo, da melhor forma possível, de acordo com as possibilidades fácticas e jurídicas. Os princípios não proíbem, permitem ou exigem algo em termos de “tudo ou nada”; impõe a optimização de um direito ou de um bem jurídico, tendo em conta a “reserva do possível” fática ou jurídica.429
425 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2. ed., p. 1121. 426 ALEXY, Robert. Constitucionalismo Discursivo. Trad. Luís Afonso Heck. Porto Alegre: livraria do advogado, 2007, p. 67. 427 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales, p. 83. 428 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales, pp. 81, 82. 429 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2 ed. Coimbra: Almedina, p.1123.
125
Neste sentido, os princípios são mandatos de otimização, podendo ser cumpridos em
diferentes graus e com uma medida de cumprimento que dependa das possibilidades reais
como também jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios
e regras opostos. Em troca, as regras são normas somente podem ser cumpridas ou não, pois
se uma regra é válida, deve-se fazer exatamente o que ela exige. Constituem determinações
no âmbito fático e juridicamente possível. Logo, toda diferença entre regra e princípios é
qualitativa e não de grau e toda norma é uma regra ou um princípio.430
Diante dessa diferenciação, constata-se claramente que os direitos fundamentais a
liberdade de expressão e a liberdade religiosa, presentes no artigo 5º da Constituição,
revelam-se princípios constitucionais. Ambos são mandados de otimização, pois buscam,
respectivamente, a efetivação mais ampla da possibilidade de um cidadão manifestar-se, ou
seja, emitir opiniões, idéias e pensamentos, e de exercer amplamente sua religião, com
respeito a sua crença e culto. Ademais, sua realização pode ocorrer em diferentes graus, os
quais variam de acordo com as condições concretas.
No caso em estudo, verifica-se que em alguns casos em concreto, a atividade
proselitista de crentes religiosos ocasiona o conflito entre o direito dos mesmos a liberdade
de expressão e o direito de outros crentes a liberdade religiosa, ´pois “o exercício de um
direito fundamental por um titular obstaculiza, afeta ou restringe o exercício de um outro
titular”431 de direito diferente.
Nessa esteira, aplicando-se a esse caso o entendimento de Alexy, no momento em que
a liberdade de expressão entra em colisão com a liberdade religiosa, um dos princípios tem
de ceder ante o outro. Isso não significa declarar inválido o princípio desprezado, nem que
tenha de introduzir uma cláusula de exceção, mas sim que, em certas circunstâncias, um
princípio precede ao outro. Ademais, em algumas situações, para solucionar a questão da
precedência, deve-se perceber que no caso concreto os princípios possuem diferentes pesos
que devem ser considerados. Isso é necessário porque somente entram em colisão princípios
válidos e não se discute sua validez, como entre as regras. 432
A realização de ambos os princípios (liberdade religiosa e liberdade de expressão)
conduzem a uma contradição, ou seja, cada um deles limita a possibilidade jurídica de
cumprimento do outro. No entanto, esta situação não é solucionada declarando que um dos
princípios não é valido e eliminando o sistema jurídico. Deve-se, sim, levar em conta as
430 ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales, p. 86. 431 STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade, p. 139. 432 Cf. ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales, p. 89.
126
circunstâncias do caso a qual estabelece diretamente as condições de uma relação de
precedência condicionada entre princípios.433
Dessa forma, no conflito constitucional entre os direitos de liberdade religiosa e
liberdade de expressão deve haver uma estimativa de ponderação entre eles por parte do
Estado para a solução dessa questão. Canotilho ensina que as idéias de ponderação
(Abwagung) ou de balanceamento (Balancing) surgem sempre que houver a necessidade de
“encontrar o direito”, para resolver um “caso de tensão” (Ossenbuhl) entre bens
juridicamente protegidos.434
Em outras palavras,
[...] uma vez pacífica a igualdade axiológica entre os bens constitucionais fundamentais, resta harmonizá-los, seguindo as diretrizes da concordância prática, que abomina o sacrifício absoluto de qualquer um dos princípios em conflito. Há de se esboçar, pois, limites e condicionalmente recíprocos. Idéia semelhante fundamenta o princípio de ponderação dos bens, tendo-se presentes os requisitos de necessidade e proporcionalidade.435
Dessa maneira, o princípio da proporcionalidade mostra-se uma alternativa para a
referida colisão normativa ocorrente entre os dois referidos princípios da Constituição
Federal. O princípio da proporcionalidade é aquele que orienta a calibragem ou dosimetria na
feitura e na aplicação da norma, isto é, tem uma “materialização”436.
Partindo de uma digressão histórica, repara-se que princípio da proporcionalidade foi
cunhado no direito administrativo, com o jus-naturalismo, derivando do ideário de limitação
do poder de polícia, com o intuito de coibir as medidas excessivamente gravosas aos direitos
do cidadão. Na Europa, o cânone foi abordado no direito constitucional pelos alemães, após a
trágica experiência da Segunda Guerra Mundial, a qual impulsionou uma reinterpretação das
normas constitucionais relativas aos direitos fundamentais. No continente Americano, o
princípio surgiu sob o rótulo da razoabilidade, ínsito na cláusula do due processo f law e vem
inspirando o controle matéria da constitucionalidade há praticamente um século.437
Especificamente, no Brasil
[...] o princípio da proporcionalidade não está expressamente positivado em nossa Constituição Federal de 1988, figurando, porém, em sede legislativa ordinária, o que não inibe por certo, que o mesmo
433 Cf. ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales, pp. 91-2. 434 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2 ed, p. 1.109. 435 WEINGARTNER NETO. Honra, Privacidade e Liberdade de Imprensa: uma pauta justificação penal, pp. 128-9. 436 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. O devido processo legal e os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 54. 437 BARROS, Suzana Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 1996, p. 210.
127
seja aplicado com freqüência crescente por magistrados de todos os cantos do País com vistas ao controle da legalidade dos atos essenciais. [...] Essa cláusula revestida de supra-legalidade e de sentido aberto e indeterminado tornou-se, bem por isso, paradigma recorrente na diuturna e desafiante tarefa da jurisdição constitucional de garantir, em face de novas e surpreendentes realidades emergentes, a supremacia das normas e princípios sediados no estatuto supremo.438
Cabe ressaltar que, em sentido amplo, o princípio da proporcionalidade também é
chamado de princípio da proibição do excesso, ao exigir a análise de adequação de meio e
fim. Outrossim, repara-se que para alguns autores, o fundamento constitucional do princípio
da proporcionalidade em sentido amplo (Ubermassverbot) advém do Estado de Direito,
enquanto para outros decorre dos conteúdos dos direitos fundamentais, ou ainda, do princípio
do devido processo legal.439 Independente disso e de o princípio da proporcionalidade se
encontrar em plena expansão de sentido por aportes científicos, sua principal função se
verifica no âmbito dos direitos fundamentais e na efetivação desses.440
Diante disso,
A atividade do Estado deve procurar harmonizar interesses coletivos e individuais, que por serem ambos legítimos, só podem ser justificados e excepcionalmente desconhecidos, mas sempre dentro do limite do necessário. Dessa forma, não só a função jurisdicional se encontra limitada aos valores constitucionais, mas também a atividade legiferante do legislador encontra limite a sua liberdade para fixar seus objetivos nos mesmo valores. Portanto, o limite ultrapassado pelo legislador, ou seja, lesando o núcleo de atuação dos Direitos fundamentais, implica na atuação judicial em nome do princípio da proporcionalidade. Nesse ponto, tanto o legislador, quanto o juiz, encontram-se limitados pelo mesmo critério maior do Estado de Direito.441
Do princípio da proporcionalidade derivam três subprincípios: da adequação, da
necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito. O primeiro subprincípio, também
chamado de princípio da adequação, expressa que a “adequação da medida adotada em
relação ao fim perseguido deve ser a primeira do criador ou aplicador da norma.442
“Consequentemente, a exigência pressupõe a investigação e a prova de que o acto do poder
438 CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. O devido processo legal e os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. pp. 195-7. 439 STUMM, Raquel Denize. Princípio da proporcionalidade no Direito Constitucional Brasileiro. Porto Alegre: Livraria do advogado, 1995, p. 78. 440 BARROS, Suzana Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais, p. 88. 441 STUMM, Raquel Denize. Princípio da proporcionalidade no Direito Constitucional Brasileiro, p. 84. 442 ARAÚJO, Francisco Fernandes de. Princípio da Proporcionalidade: significado e aplicação prática, p. 64.
128
público é apto para e conforme os fins justificados de sua aplicação (Zielkonformitad,
Zwecktauglichkeit). Trata-se, pois, de controlar a relação de adequação medida e fim.”443
Note-se que a possibilidade de controle judicial sobre uma relação de causalidade, entre a medida restritiva adotada e o fim a que se destina, por si só já abala a idéia do legislador onipotente, capaz de criar situações desarrazoadas, incoerentes ou até mesmo bizzarras. O juiz, por ocasião do controle de uma medida legislativa com repercussão na esfera da liberdade do cidadão, em um primeiro passo procura deduzir a razão de tal intervenção. Desde que tal fim esteja contido entre aqueles que a legitimam, ou, e outras palavras, desde que esteja o legislador autorizado a proceder restrições naquela situação, deve o magistrado examinar se a medida restritiva é apta a atingir o fim pretendido.444
Por sua vez, o princípio da necessidade ou exigibilidade, como leciona Canotilho,
também é conhecido como “princípio da menor ingerência possível” e estipula que o cidadão
tem o direito à menor desvantagem possível, exigindo-se sempre a prova de que, para a
obtenção de determinados fins, não era possível adotar outro meio menos oneroso para o
cidadão.
Dada a natural relatividade do princípio, a doutrina tenta acrescentar outros elementos conducentes a uma maior operacionalidade prática: a) a exigibilidade material, pois o meio deve ser o mais “poupado” possível quanto à limitação dos direitos fundamentais. b) a exigibilidade espacial aponta para a necessidade de limitar o âmbito da intervenção; c) a exigibilidade temporal pressupõe a rigorosa delimitação no tempo da medida coactiva do poder público; d) a exigibilidade pessoal, significa que a medida se deve limitar à pessoa ou pessoas cujos interesses devem ser sacrificados.445
Por fim, o princípio da proporcionalidade em sentido estrito estabelece a importância
de sopesar os bens jurídicos em causa para poder optar pela solução que melhor atenda a
todos, evitando a limitação total de um deles, a ponto que atinja seu conteúdo essencial e
ofenda a dignidade humana.446 Em muitas situações, somente o juízo de adequação e
necessidade não basta para determinar a aplicação justa de uma medida restritiva, tendo em
vista que dela pode resultar uma sobrecarga ao atingido. Logo, o princípio da
proporcionalidade strictu sensu indica se o meio utilizado encontra-se em razoável proporção
com o fim perseguido, através de uma idéia de equilíbrio entre valores.447
443 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2. ed., p. 262. 444 BARROS, Suzana Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais, p. 74. 445 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2 ed., p 262. 446 ARAÚJO, Francisco Fernandes de. Princípio da Proporcionalidade: significado e aplicação prática, p. 64. 447 BARROS, Suzana Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais, p. 80.
129
“Nos termos da máxima proporcionalidade em sentido estrito, a atuação levada a cabo
deve estar afinada com a idéia de “justa medida”. Os meios utilizados devem guardar
razoável proporção com o fim almejado, demonstrando um sustentável equilíbrio entre
valores restringidos e os efetivados pela medida limitadora.”448
De tal sorte, no conflito entre os direitos fundamentais à liberdade religiosa e à
liberdade de expressão essas três fases deverão ser observadas, sem perder de vista o caso
concreto e a justa medida. Na primeira fase se determina a intensidade da intervenção do
Estado na efetivação do controle do proselitismo, analisando a medida utilizada por ele e sua
adequação para a finalidade de proteção da liberdade religiosa. Na segunda fase, verifica-se a
relevância dos motivos que justificam a intervenção estatal, tendo em vista que se deve
utilizar o meio menos gravoso de controle do proselitismo. Por fim, na terceira fase se
sucede, então, a ponderação em sentido estrito sopesando os bens jurídicos da liberdade
religiosa e da liberdade da expressão, para escolher a melhor solução que atenda a todos, e
evite a limitação total da liberdade de expressão de religiosos que exercem o proselitismo, até
mesmo porque, dessa forma, atingirá a liberdade religiosa desses.
Verificando as jurisprudências supra abordadas denota-se que, no julgamento do
Habeas Corpus nº 82.424/RS, pelo Supremo Tribunal Federal, tal procedimento de
ponderação foi considerada pelo Ministro Gilmar Mendes, quando, citando o doutrinador
Robert Alexy, refere à necessidade de considerar o princípio da proporcionalidade na
existência de alguma restrição a determinado direito fundamental ou em uma colisão entre
distintos princípios constitucionais, de modo a exigir que se estabeleça o peso relativo que
cada um dos direitos. 449
Além dele, O Ministro Maurício Corrêa apenas suscita a “aparente colisão de direitos”,
mas resolve a questão dentro do próprio texto constitucional, ao considerar que a liberdade
de expressão não assegura a incitação ao racismo. Tal opinião é ratificada pelo Ministro
Celso de Mello.
Por sua vez, para o julgamento do pedido liminar da ação civil pública n° 2005.
33.00.022891, que tramita na Bahia, não foi exposta análise alguma do princípio da
proporcionalidade para a resolução de um possível conflito existente entre o direito
fundamental à liberdade religiosa e à liberdade de expressão. Espera-se, contudo, que tal
448 CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva. Colisões entre princípio constitucionais: razoabilidade, proporcionalidade e argumentação jurídica. Curitiba: Juruá. 2006. p. 220. 449 MENDES, Gilmar. In: SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Crime de Racismo e Anti-semitismo: Um julgamento histórico do STF – Habeas Corpus nº 82.424/RS, p. 71.
130
análise seja realizada na decisão definitiva de primeira instância, como também nos outros
julgamentos em graus de recursos.
CONCLUSÃO
É impossível, hodiernamente, tentar conceituar a religião de um modo único e
absoluto, pois essa tentativa mostra-se intensamente sinuosa e complexa. Entrementes, pode-
se afirmar que a religião é um fenômeno que faz parte da intimidade de muitos seres
humanos ao integrar a identidade de cada um e influenciar determinantemente em suas vidas.
Para que a função social da religião se verifique é importantíssimo haver liberdade
para seu o exercício. Ademais, deve-se ocorrer, de antemão, a liberdade de consciência, ou
seja, a possibilidade de um indivíduo seguir qualquer opção no tocante a religião ou, até
mesmo, rejeitar crer em qualquer uma. Logo, liberdade religiosa é um corolário da liberdade
de consciência e pode ser entendida como a liberdade das pessoas escolherem sua religião,
exercerem sua fé ou crença e praticarem sua religião através do culto.
Ao longo dos tempos, a liberdade religiosa sofreu flagrante evolução em todo o
mundo. No Brasil, especificamente, as Constituições Federais promulgadas apresentaram
diferentes concepções sobre o referido direito fundamental. Cabe assinalar que foi com a
Constituição Federal de 1988 que os valores democráticos passaram a predominar
efetivamente no Brasil com maior proteção a direitos fundamentais, como a liberdade
religiosa. Para o Estado Democrático de Direito se estabelecer, entende-se imprescindível a
131
garantia da liberdade em todos os âmbitos, logo, a liberdade religiosa também se torna
importantíssima.
Percebe-se que a Constituição de 1988 não assegurou somente a liberdade de crença,
na linha de outras Constituições antigas, mas sim, todo o feixe de direitos que constitui a
liberdade religiosa. No artigo 5º, inciso VI, determina-se “inviolável a liberdade de
consciência e de crença, sendo tutelado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida na
forma da lei, proteção aos locais de culto e suas liturgias”. Ainda, os incisos sétimo e oitavo
do mesmo artigo, também garantiram a liberdade religiosa, quando, respectivamente,
protegem, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e
militares de internação coletiva e se afirma que ninguém será privado de direitos por motivo
de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se
de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.
Ademais, a tutela a liberdade religiosa também é constatada com outros artigos da atual
Carta, como nos artigos 150, inciso VI, alínea “b”, 19, inciso I, 206, 210, parágrafo 1º, 215,
parágrafo 2 º e 216.
A Constituição de 1988 também defende o direito fundamental à liberdade de
expressão e a prevê no artigo 5º, onde estabelece que é livre a manifestação do pensamento,
sendo vedado o anonimato. A liberdade de expressão é indispensável para a verificação da
liberdade religiosa, pois o direito de proselitismo integra essa última. O proselitismo é a
liberdade de cada religião expressar seu entendimento sobre outras religiões, com o objetivo
de convencer os crentes dessas, a imigrarem para a sua. Isso ocorre porque muitos fiéis
acreditam fazer parte de seus papéis como religiosos divulgarem suas crenças para buscarem
mais fiéis para sua religião, pois, nas suas concepções, estão os trazendo para o “verdadeiro
caminho do bem” e para “a salvação” que sua religião propugna. Não se pode olvidar
também que, inerente à liberdade religiosa, toca às confissões religiosas o direito de
autodeterminação, ou seja, a possibilidade de modificarem sua realidade social, com fins,
organização e funções próprias reconhecidas, como também de terem seus intentos de
crescimento na sociedade.
Todavia, a grande problemática se centra no fato de que é através do proselitismo,
exercido através da liberdade de expressão, que se demonstram os preconceitos religiosos por
manifestações discriminatórias.
Todos os seres humanos possuem e produzem preconceitos durante todas as suas
vidas que os auxiliam a compreender as coisas do mundo. Entretanto, muitos preconceitos
possuem um caráter prejudicial ao se basearem em idéias acríticas, populares, em conclusões
132
rápidas e arbitrárias, ou quando resultantes de lógicas de dedução que criam predicados fixos
à realidade.
Na esfera religiosa, os preconceitos prejudiciais devem-se à doutrinas que abolem a
possibilidade de as pessoas pensarem de modo livre e diverso sobre a religião. São aqueles
introduzidos no cotidiano das pessoas de modo impensado, através da tradição que traz
verdades formulares e absolutas para a religião.
Interessante é que, mesmo após a modernidade, e uma tendente desconsideração da
tradição, os indivíduos mantêm-se fortemente apegados a preconceitos. Isso advém da
denominada sociedade de risco que deixa cada vez mais as pessoas instáveis e inseguras.
Diante disso, os preconceitos passam ser o modo de as pessoas seguirem aquilo que elas já
conhecem e as deixam seguras.
De forma agravante, vários crentes buscam o retorno proeminente a tradição de modo
radical, como demonstram os fundamentalistas religiosos que, em muitos casos, além de
discriminação, realizam outros crimes gravíssimos. Os fundamentalistas são fiéis de uma
religião que seguem um sistema religioso extremamente rígido de crenças religiosas
baseados em dogmas e verdades reveladas. O termo fundamentalismo é aplicado a
protestantes, movimentos no Islã, do judaísmo e de civilizações como do hinduísmo e do
budismo.
Ciente dessas considerações, é importante ficar claro quais são as modalidades de
preconceitos religiosos possíveis e os vedados legalmente no Brasil. Em princípio, denota-se
que, se mantidos no âmbito interno pessoal, os preconceitos não são ilegais. Contudo, quando
eles passam a ser externalizados, possuem restrições, pois podem desencadear discriminação
religiosa.
No Brasil é proibida a discriminação direta pela Constituição Federal e pela lei
infraconstitucional. Esse modo de discriminação, também chamada de intencional, ocorre
com um comportamento que tenha dolo de discriminar, ou seja, vontade de violar o direito de
outrem através de palavras e outras condutas.
No artigo 3º, inciso IV, da Constituição Federal se define como objetivo fundamental
da República Federativa do Brasil, promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Ainda, estabelece no artigo
5º, inciso XLI que a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades
fundamentais.
Ocorre que somente a previsão constitucional da proibição de preconceitos e
discriminação não basta para contê-los. Diante disso, outros ramos do ordenamento jurídico
133
servem como instrumento de efetivação da norma constitucional. Entre esses ramos jurídicos,
se apresenta o direito penal como uma última alternativa de controle da discriminação.
Especificamente, no concernente a discriminação religiosa o Código Penal criminaliza a
injúria religiosa através do artigo 140, § 3º, e a lei 7.716/89, com seu artigo 20, proíbe a
discriminação por motivos religiosos.
A esfera penal deve atuar na tutela dos bens jurídicos mais caros à vida dos seres
humanos, logo, atua protegendo direitos fundamentais como a liberdade religiosa. A
Constituição Federal extrai da sociedade, em determinados momentos, os valores mais
importantes e, somente, posteriormente, o direito penal o cataloga como bem jurídico penal.
Com o advento do Estado Democrático de Direto o Estado passou a ser visto como
devedor de prestações sociais e responsável por uma maior proteção aos cidadãos. Nesse
passo, a Constituição, aproveitando-se e sua força hierarquicamente superior, também passou
a incrementar o direito penal, estabelecendo indicações e determinações à criminalização de
algumas condutas que violem bens jurídicos constitucionais, demonstrando, assim, uma
atuação mais rígida por parte do Estado.
No entanto, deve-se ponderar que o ramo penal deve ser utilizado em última hipótese
para resolução dos conflitos sociais, em conformidade com o que explicita os princípios
constitucionais da intervenção mínima, necessidade, fragmentariedade e subsidiariedade.
Ademais, deve-se questionar se o direito penal realmente é capaz de efetivar a tutela
constitucional. Não se pode olvidar a indispensabilidade de políticas públicas na educação,
cultura, meios de comunicação, etc. para resolver o problema da discriminação, pois essa é
uma questão, antes de tudo, política e social.
Outrossim, especificamente sobre a discriminação religiosa, cabe sublinhar a
importância e complexidade do direito de proselitismo, o que dificulta seu simples
enquadramento no tipo penal de discriminação religiosa ou de injúria religiosa. Referido
direito, para ser exercido por fiéis de uma religião, automaticamente, já invade a esfera de
outras religiões. Logo, haverá situações em que o proselitismo lesionará direitos e
configurará um tipo penal, como também, em caso contrário, haverá circunstâncias em que o
respeito a tais normas jurídicas prejudique a própria identidade de cada religião, sua
capacidade de manifestação e expansão, e, portanto, as liberdades religiosa e de expressão
ao mesmo tempo.
Parte-se então para análise da distinção entre o proselitismo legítimo e imprescindível
às liberdades de expressão e religiosa, e aquele coativo e abusivo. Não se está dizendo que
na primeira modalidade não ocorram casos de tensões e discordâncias entre as confissões
134
religiosas, mas, sim, que ele seja razoavelmente tolerável, sem estar violando flagrantemente
o direito alheio de outras confissões.
Nesse diapasão, compreende-se que, antes de tudo, a tolerância deve ser um princípio
indisponível para o convívio das confissões religiosas. A palavra tolerância indica paciência
ou constância em suportar, remetendo-se, assim, a idéia de respeito ao outro, ao diferente,
àquele que não age e pensa como nós.
Oportuno é reconhecer que a tolerância religiosa começa quando uma religião evita
todas as formas possíveis de conflitos com outras religiões. Através dessa tomada de posição,
impede-se alguns males sem ser necessário a atuação estatal as obrigando para tanto.
Além disso, não se pode deixar de destacar o problema de colisão normativa existente
através do proselitismo: a ocorrência de conflito entre os direitos fundamentais a liberdade
religiosa e a liberdade de expressão. Algumas ações judiciais brasileiras já propiciaram de
modo semelhante a discussão do tema, como pode ser visto no julgamento do Habeas Corpus
nº 82.424/RS, julgado pelo Supremo Tribunal Federal, e pela ação civil pública, de processo
nº 2005. 33.00.022891-3, que ainda tramita na 4ª Vara Federal da Seção Judiciária da Bahia.
Estudando as decisões supra-referidas, percebe-se que somente o Ministro Gilmar
Mendes, no julgamento do Hábeas Corpus nº 82.424/RS, enfrentou claramente o princípio da
proporcionalidade, alternativa mais adequada para resolver questões de alguma restrição a
determinado direito fundamental ou em uma colisão entre distintos princípios
constitucionais. Proeminentemente, o Ministro explica ainda a doutrina de Robert Alexy e a
compreensão de três subprincípios derivados do princípio da proporcionalidade: da
adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito.
Especificamente, no conflito entre os direitos fundamentais à liberdade religiosa e à
liberdade de expressão deve-se analisar essas três fases, como também o caso concreto e a
justa medida. Na primeira fase se repara a intensidade da intervenção do Estado na efetivação
do controle do proselitismo, observando a medida utilizada por ele e sua adequação para a
finalidade de proteção da liberdade religiosa. Na segunda fase, considera-se a importância
dos motivos que justificam a intervenção estatal, levando em conta que se deve utilizar o
meio menos gravoso para o controle do proselitismo. Finamente, na terceira fase procede-se
a ponderação em sentido estrito sopesando os bens jurídicos da liberdade religiosa e da
liberdade da expressão, para se optar pela melhor solução a todos, sem haver a restrição
absoluta da liberdade de expressão de confissões religiosas no exercício do proselitismo e,
por conseguinte, de ofender a liberdade religiosa delas também.
135
Por todo o exposto, constata-se que a liberdade religiosa, como todas as demais
liberdades do homem, vem se expandido cada vez mais e acompanhando a evolução do
pensamento humano e das ciências de conhecimento como a sociologia, filosofia,
psicologia, antropologia, que buscam entendê-la. O direito também acompanha esta dinâmica
que busca protegê-la e efetivá-la. Nesse âmbito, sem perder de vista o preceito da tolerância
entre as pessoas, alguma jurisprudência e doutrina, ainda incipientes, trazem à baila análises
mais profundas sobre o direito fundamental à liberdade religiosa e apresentam novos ideários
mais pluralistas e generosos. Por fim, exploram gradativamente, o princípio da
proporcionalidade, que permite uma forma mais concreta e menos automática (mas com
critérios dogmáticos) de resolução do conflito entre a liberdade religiosa e outros direitos,
como a liberdade de expressão.
REFERÊNCIAS ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado. Coimbra: Almedina, 2002.
ALBUQUERQUE. Paulo Peixoto. Trabalho, exclusão social e direitos humanos. In: KEIL, Ivete; ALBUQUERQUE, Paulo. SOLON, Viola. Direitos Humanos: alternativas de justiça social na América Latina. São Leopoldo: Unisinos, 2002. ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudio Políticos Constitucionales, 2002. ARAÚJO, Francisco Fernandes de. Princípio da Proporcionalidade: significado e aplicação prática. Campinas: Copola, 2002. ARAÚJO, Luiz Alberto David. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. ARMSTRONG, Karen. Em nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo. (trad. Hildegard Feist) São Paulo: Companhia das Letras, 2001. ARNAUD, André-Jean. O Direito entre a Modernidade e a Globalização. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. ASSIS, Ângelo Adriano Faria de; SANTOS, José Henrique dos; RAMOS, Frank dos Santos. A figura do herege nas ordenações Manuelinas e nas ordenações Filipinas. Revista Justiça e História. v. 4, n. 7, disponível em: http:// www.tjrs.jus.br./institu/memória/revistaJH/índice_revistas.php. Acessado em: 08 de ago. de 2008.
136
BACILA, Carlos Roberto. Estigmas: Um estudo sobre os preconceitos. Rio de Janeiro: Lúmen Iuris, 2005. BARROS, Suzana Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 1996. BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, 1989. ____________________; MARTINS, Ives Gandra da Silva. Comentários a Constituição do Brasil: arts. 5 a 17. São Paulo: Saraiva, 1989. _______________________________________________________. Comentários à Constituição do Brasil. vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2001. BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. BLANCARTE, Roberto. O porquê de um Estado laico. In: LOREA, Roberto Arriada; ORO, Ari Pedro (orgs.). Em defesa das liberdades laicas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. BENETI, Sidnei Agostinho. A constituição e o sistema penal. Ajuris: Revista da Associação Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 1992. BIELEFELDT, Heiner. Filosofia dos direitos humanos. São Leopoldo: UNISINOS, 2000. BOBBIO. Norberto. A Era dos Direitos. (trad. Carlos Wilson Coutinho). Rio de Janeiro: Campus, 1992. BOBBIO, Norberto. Igualdade e Liberdade. 5 ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. ________________; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 5 ed. (trad. Carmem Varriale e outros) Brasília: Imprensa Oficial, 2000. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2. ed. Coimbra: Almedina,1998. ______________________________. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002. CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Preconceito racial: Portugal e Brasil-Colônia. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1998. CARRIÓ, Genaro R. Nota sobre derecho e lenguaje. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1990. CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Direito de Informação e liberdade de expressão. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
137
CARVALHO, Márcia Dometila Lima de. Fundamentação Constitucional do Direito Penal. Fundamentação Constitucional do Direito Penal. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1992. CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. O devido processo legal e os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Rio de Janeiro: Forense, 2006. CATROGA, Fernando. Entre Deuses e Césares: Secularização, laicidade e religião civil. Coimbra: Almedina, 2006. CIÁURRIZ, Maria José. El derecho de proselitismo en el marco de la libertad religiosa. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2001. CHAUÍ, Marilena . Filosofia. 6 ed. São Paulo: Àtica, 1997. COPETTI, André. Direito Penal e Estado Democrático de Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. COSTA, Maria Emília Corrêa da. Liberdade religiosa como direito fundamental. Dissertação (Mestrado em Direito). 206 p. Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2005. __________________________. Apontamentos sobre a liberdade religiosa e a formação do Estado laico. In: LOREA, Roberto Arriada; ORO, Ari Pedro (orgs.). Em defesa das liberdades laicas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. COTRIM, Gilberto. História Global: Brasil e Geral. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1998. COTRIM, Gilberto. História do Brasil: um olhar crítico. São Paulo: Saraiva. 1999. CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva. Colisões entre princípio constitucionais: razoabilidade, proporcionalidade e argumentação jurídica. Curitiba: Juruá. 2006. CROCHÍK, José Leon. Preconceito, indivíduo e cultura. 3 ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006. CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. O direito à diferença: as ações afirmativas como mecanismo de inclusão de mulheres, negros, homossexuais e portadores de deficiência. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. CUNHA, Paulo Ferreira da. A Constituição viva: cidadania e direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. DIAS, Jorge Figueiredo. Questões Fundamentais do Direito Penal Revisitadas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. DIAS, Maria Berenice. A justiça e a laicidade. In: LOREA, Roberto Arriada; ORO, Ari Pedro (orgs.). Em defesa das liberdades laicas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
138
DÍAZ REVORIO, F. Javier. La libertad de ideología y religión, en Parlamento y Constitución, nº 1, 1997, p. 203-240. DOTTI, René Ariel. Curso de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 2002. EISENSTADT, S. N. Fundamentalismo e Modernidade: heterodoxias, utopismo e jacobismo na Constituição dos movimentos fundamentalistas. (trad. Ana Luísa Faria). Oeiras: Celta, 1997. FELDENS, Luciano. A Constituição Penal: A dupla face da proporcionalidade no controle de normas penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: Revista do Tribunais, 2002. FERRARI, Sylvio. A liberdade religiosa na época da globalização e do pós-modernismo: a questão do proselitismo. Revista Consciência e liberdade. Associação Internacional para a Defesa da Liberdade Religiosa, n. 11, 2001. FERREIRA, Amauri Carlos. Ensino Religioso nas fronteiras da ética: subsídios pedagógicos. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2002. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda.6 ed. Dicionário Aurélio. Curitiba: Posigraf, 2004. FERRY, Luc. O homem-Deus ou o sentido da vida. Rio de Janeiro: DIFEL, 2007. FISS, Owen. A ironia da Liberdade de Expressão: Estado, Regulação e Diversidade na Esfera Pública. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. FREYRE, Gilberto. Casa-Grande e Senzala. São Paulo, Recor, 1999. FRIEDE, R. Lições Objetivas de Direito Constitucional e de Teoria Geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 1999. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 7 ed. Petrópolis: Vozes, Bragança Paulista: São Francisco, 2005. GARAUDY, Roger. Deus é necessário? (trad. Ana Luísa Borges) Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. GARDER, Jostein; HELLERN, Victor; NOTAKER, Henry. O livro das religiões. (trad. Isa Mara Lando) São Paulo: Companhia das Letras, 2000. HEIDEGGER, Martin. A época da imagem do mundo. Ijuí: Unijuí, 2005. INTERNATIONAL RELIGIOUS LIBERTY ASSOCIATION. Guidiong Principles for the Responsible Dissemination of Religion and Belief. Anuário del derecho Eclesiástico del Estado. V. XVI, 2000.
139
GIDDENS, Anthony. A vida em uma sociedade pós-tradicional. In: GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; LASH, Scott. Modernização Reflexiva: Política, Tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Editora da UNESP, 1997. _________________. As conseqüências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991. GLUCSMANN, André. O discurso do ódio. Rio de Janeiro: DIFEL, 2007. GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. A liberdade religiosa nas Constituições do Brasil. Revista de Direito Constitucional e Internacional. São Paulo, instituto brasileiro de direito constitucional, jan/mar, 2001.v. 34, p. 11-167. GRONDIN, Jean. Introdução à Hermenêutica Filosófica (trad. Benno Dischinger) São Leopoldo: Unisinos, 2000. GUERREIRO, Sara. As Fronteiras da Tolerância: Liberdade religiosa e proselitismo na Convenção Européia dos Direitos do Homem. Coimbra: Almedina, 2005. GUIMARÃES, Isaac Newton Belota Sabba. A intervenção penal para a proteção dos direitos e liberdades fundamentais: Linhas de acerto e desacerto da experiência brasileira. Revista Jurídica, Porto Alegre, notadez informação, 2001, v. 286, p. 52-67. HASTENTEUFEL, Dom Zeno. História da Igreja do Brasil e do Rio Grande do Sul. 2. ed. Frederico Westphalen: Pluma, 2006. HIRAN, Aquino Fernando Gilberto. Sociedade Brasileira: Uma História Através dos Movimentos Sociais. Rio de Janeiro: Record, 2001. HUACO. Marco. A laicidade como princípio constitucional do Estado de Direito. In: LOREA, Roberto Arriada; ORO, Ari Pedro (orgs.). Em defesa das liberdades laicas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. JARDILINO, José Rubens; SANTOS, Gerson Tenório. Ensaios de religião e psicologia. São Paulo: Plêiade, 2001. JONES, James M. Tópicos de Psicologia Social: racismo e preconceito. São Paulo: Edgard Bluches, 1973. KANT, Immanuel. Fundamentação Metafísica dos costumes. In: KANT, Immanuel. Crítica da razão pura e outros textos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1974. LINHARES, Marcelo. História da Maçonaria. Londrina: A trolha, 1992. LOCKE, John. Carta sobre a Tolerância. Lisboa: edições 70, 2000. LOPES, Maurício Antonio Ribeiro. Princípios penais constitucionais: O sistema das constantes constitucionais. p. 417- 451 RT, n. 779, set./2000, ano 89. ____________________________. Teoria Constitucional do direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
140
LYRA, Jorge Buarque. A Maçonaria e o Cristianismo. 4 ed. Rio de Janeiro: Espiritualista, 1971. MACEDO, Edir. Orixás, Caboclos e Guias: Deuses ou Demônios? Rio de Janeiro: Gráfica Universal, 2004. MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Liberdade religiosa numa comunidade constitucional inclusiva: dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos. Coimbra: Coimbra, 1996. MARSHALL, Paul. Perseguição religiosa no mundo. In: Liberdade religiosa em questão,. Cadernos Adenaur, Rio de Janeiro, Fundação Konrad Adenaur, v. 5, n. 4, p. 1- 135, 2004. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Disponível em: http://www.prba.mpf.gov.br/pr-acessibilidade/noticiaImprensa.php?cod=40. Acessado em: 12 de dez. de 2008. MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967. Tomo IV. São Paulo: RT, 1967. MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. Tomo IV. Coimbra: Coimbra editora, 2000. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 10 ed. São Paulo: Atlas, 2004. MORIN, Edgar. Os Sete Saberes necessários à educação do Futuro. 2 ed. São Paulo, Cortez, 2000. NEWBIGIN, Lesslie. A religião do homem secular. Caxias do Sul: Edições Paulinas, 1970. OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contemporânea. Edições Loyola, 1996. OLIVEIRA, Pérsio Santos de. Introdução à Sociologia. 15 ed. São Paulo: Ática, 1995. _______________________. Introdução à Sociologia. 20 ed. São Paulo: Ática, 2001. ORO, Ari Pedro. A laicidade na América Latina: uma apreciação antropológica. In: LOREA, Roberto Arriada; ORO, Ari Pedro (orgs.). Em defesa das liberdades laicas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. PALAZZO, Francesco. Valores Constitucionais e Direito Penal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1989. PASCHOAL, Janaina Conceição. Constituição, Criminalização e Direito Penal mínimo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. PIERUCCI, Antônio Flávio. Ciladas da diferença. 2 ed. São Paulo: 34, 1999. PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. São Paulo: Max Limonad, 2003.
141
PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico penal e Constituição. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. QUEIROZ, Paulo. A justificação do direito de punir na obra de Luigi Ferrajoli: algumas observações críticas. Revista IBCCRIM, São Paulo, n. 27, ano 7, p. 143- 148, jul/set, 1999. RAWLS, Jonh. O liberalismo político. 2 ed. (trad. Dinah de Abreu Azevedo) São Paulo: Ática, 2000. Religião e Cristianismo: manual de cultura religiosa. Porto Alegre: PUC, Instituto de Teologia e Ciências Religiosas, 1977. RIBEIRO, Milton. Liberdade Religiosa: uma proposta para debate. São Paulo: Mackenzie, 2002. ROGÉRIO, Cristiane. MUTO, Eliza. Religião se discute, sim!, Revista Crescer, Globo, n. 157, p. 65-7, dez, 2006. SANTOS, Christiano Jorge. Crimes de preconceito e de discriminação: Análise jurídico-penal da lei 7.716/89 e aspectos correlatos. São Paulo: Max Limonad, 2001. SANTOS, Hélio. Políticas públicas para a população negra no Brasil. Observatório da Cidadania, n. 3, p. 147-157, 1999. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. _____________________. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 3 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. SAUL, Renato.Tradição Sociológica, Terceiro Caminho e Direitos Humanos. In: KEIL, Ivete; ALBUQUERQUE, Paulo. SOLON, Viola. Direitos Humanos: alternativas de justiça social na América Latina. São Leopoldo: Unisinos, 2002. SCAMPINI, José. A Liberdade Religiosa nas Constituições Brasileiras. Revista de Informação Legislativa – Senado Federal, Brasília, v. 41, p. 75-126, 1974. ______________. A Liberdade Religiosa nas Constituições Brasileiras. Revista de Informação Legislativa – Senado Federal. Brasília, v. 42, p. 369-430 , 1974. SILVA, Francisco de Assis. História do Brasil. São Paulo: Moderna, 1992. SILVA, Jorge Cesar Ferreira. A proteção contra discriminação no direito contratual brasileiro. In: MONTEIRO, Antonio Pinto. SARLET, Ingo Wolfgang. JORGE, Neiner. Direitos Fundamentais e Direito Privado. Coimbra: Almedina, 2007. SILVA, José Afonso da. Comentário contextual a Constituição. São Paulo: Malheiros, 2006. SILVA, Ivan Luiz da. Das bases constitucionais do direito penal. Revista de informação Legislativa, Brasília, senado federal, 2002. v.156, p. 41-52.
142
SILVA, Katia Elenise Oliveira da. O papel do Direito Penal no enfrentamento da discriminação. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. SILVA NETO, Manoel Jorge. Proteção Constitucional à Liberdade Religiosa. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008. SILVA, Tadeu Antonio Dix. Liberdade de Expressão e Direito Penal: no Estado Democrático de Direito. São Paulo: IBBCrim, 2000. SORIANO, Aldir Guedes. Liberdade Religiosa no Direto Constitucional e Internacional. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002. _______________________. O Direito à Liberdade Religiosa. Jornal Correio Braziliense, Caderno Direito & Justiça, Brasília, p. 2, novembro, 2004. SOUZA, Ricardo Timm de. A racionalidade ética como fundamento de uma sociedade viável: reflexões sobre suas condições de possibilidade desde a crítica filosófica o fenômeno da “corrupção”. In; GAUER, Ruth M.(org). A qualidade do tempo: para além das aparências históricas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1994. SOUZA SANTOS, Boaventura de. A gramática do Tempo: para uma nova cultura política. Porto: Afrontamento, 2006. STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: Uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 5 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. STRECK, Lenio Luiz. O dever de proteção do Estado (Schutzpflicht): o lado esquecido dos direitos fundamentais ou “qual a semelhança entre o furto privilegiado e o tráfico de entorpecentes. Disponível em: http//www.leniostreck.com.br. Acessado em: 08 de ago de 2008. STUMM, Raquel Denize. Princípio da proporcionalidade no Direito Constitucional Brasileiro. Porto Alegre: Livraria do advogado, 1995. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Crime de Racismo e Anti-semitismo: Um julgamento histórico do STF – Habeas Corpus nº 82.424/RS. Brasília: Brasília Jurídica, 2004. TAMAYO, Juan José. Fundamentalismos y diálogo entre religiones. Madrid: Trotta, 2004. THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação e massa. Petrópolis: Vozes, 1995. TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 1994.
143
URBANO, Francisco de Paula Vera. La Libertad Religiosa como Derecho de la Persona. Madrid: Instituto de Estudios Politicos, 1971. ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro e SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: tomo I. Rio de Janeiro: Revan, 2003. ________________________; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. ________________________; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro e SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: tomo I. Rio de Janeiro: Revan, 2003. ZEIDAN, Rogério. Ius puniendi, Estado e direitos fundamentais: aspectos de legitimidade e limites da potestade punitiva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2002. WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico: proteção de um marco de alteridade. 3 ed. São Paulo: Alfa Omega, 2001. WEINGARTNER NETO. Jayme. Honra, Privacidade e Liberdade de Imprensa: uma pauta justificação penal. Porto Alegre: livraria do advogado, 2002. __________________________. A edificação constitucional do direito fundamental à liberdade religiosa: um feixe jurídico entre a inclusividade e o fundamentalismo. Tese de Doutorado em Direito pela Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul no ano de 2006. Disponível em: < http//www.pucrs.br>. Acessado em: 13 de fev. de 2007. ___________________________. Liberdade religiosa na Constituição: fundamentalismo, pluralismo, crenças, cultos. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 2007. YOUNG, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Rio de Janeiro: Revan, 2002. YÚDICE. George. A conveniência da cultura: Usos da cultura na era global. Belo Horizonte: UFMG, 2006.