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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO A INTER-RELAÇÃO DA TEOLOGIA E DA PEDAGOGIA COMO PRESSUPOSTO FUNDAMENTAL PARA A COMPREENSÃO DO CONCEITO DE EDUCAÇÃO DE COMENIUS NA DIDÁTICA MAGNA Por Edson Pereira Lopes Orientador: Dr. James R. Farris Tese apresentada em cumprimento parcial às exigências do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião para obtenção do grau de Doutor. São Bernardo do Campo, junho de 2004.

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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA

RELIGIÃO

A INTER-RELAÇÃO DA TEOLOGIA E DA PEDAGOGIA

COMO PRESSUPOSTO FUNDAMENTAL PARA A COMPREENSÃO DO CONCEITO DE EDUCAÇÃO DE COMENIUS

NA DIDÁTICA MAGNA

Por

Edson Pereira Lopes

Orientador: Dr. James R. Farris

Tese apresentada em cumprimento parcial às exigências do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião para obtenção do grau de Doutor.

São Bernardo do Campo, junho de 2004.

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BANCA EXAMINADORA

___________________________________

Prof. Dr. James Reavus Farris

Presidente

(Universidade Metodista de São Paulo)

____________________________________

Prof. Dr. Geoval Jacinto da Silva

(Universidade Metodista de São Paulo)

_____________________________________

Prof. Dr. Elydio dos Santos Neto

(Universidade Metodista de São Paulo )

______________________________________

Profª. Dra. Carlota Josefina Malta Boto

(Universidade de São Paulo)

_____________________________________

Profª. Dra. Márcia Mello Costa de Liberal

(Universidade Presbiteriana Mackenzie)

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A Deus, sustentador da minha vida.

A minha esposa, Nívea, companheira e incentivadora dos meus estudos.

A meus filhos Tales e Taila.

A meus pais, Luiz e Maria da Glória, meus primeiros educadores.

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AGRADECIMENTOS

Aos professores da Universidade Metodista de São Paulo.

Ao meu amigo orientador, sempre presente, Dr. James R. Farris.

Ao Prof. Dr. Geoval Jacinto da Silva, por suas importantes contribuições, sem as

quais não seria possível esta pesquisa.

Ao Prof. Dr. Elydio dos Santos Neto.

À Profª. Dra. Carlota Josefina Malta Boto , por ter me iniciado nos estudos de

Comenius.

À Profª Dra. Maria Lúcia Marcondes Carvalho Vasconcelos, pela presença

sempre amiga.

À Profª. Drª. Márcia Mello Costa de Liberal, por suas análises e contribuições.

Ao IEPG, pelo apoio.

À Aralys Borges de Freitas.

À Igreja Presbiteriana em Parada XV de Novembro, pelo incentivo e apoio.

A todos, meus sinceros agradecimentos.

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SÍNTESE

LOPES, Edson P. A inter-relação da teologia e da pedagogia como pressuposto fundamental para a compreensão do conceito de educação de Comenius na Didática magna. Tese de doutorado, São Bernardo do Campo, Universidade Metodista de São Paulo, 2004.

O pensamento de Comenius tem sido revisitado por meio de alguns

pesquisadores comenianos, preocupados em demonstrá-lo Comenius como pedagogo,

sendo esta uma das razões pelas quais é conhecido como o “Pai da pedagogia moderna”.

Por outro lado, há algumas poucas pesquisas que apontam Comenius como teólogo,

enfantizando que ele não foi apenas um pedagogo, mas sua atividade principal era a

teologia.

Partindo desta constatação, esta pesquisa objetivou demonstrar que só se pode

compreender o conceito de educação de Comenius, tendo como pressuposto

fundamental a inter-relação da teologia e da pedagogia, entre as quais Comenius não faz

distinção.

É somente com este pressuposto que se compreende o motivo pelo qual

Comenius destacou a educação como a salvação ou o remédio divino para a cura da

corrupção do gênero humano, haja vista que ela tem como finalidade última regenerar e

fazer de cada homem um paraíso de delícias para o Criador. O melhor caminho, a ser

percorrido para a concretização de tal busca, deve ser sistematizado pela pedagogia.

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ABSTRACT

LOPES, Edson P. The inter-relation of theology and pedagogy as a fundamental presupposition for understanding Comenius' concept of education in the Great Didactic. Doctoral Thesis, São Bernardo do Campo, The Methodist University of São Paulo, 2004.

The thinking of Comenius has been revisited by various researchers concerned

with discussing the pedagogy of Comenius, being that he is known as "the father of

modern pedagogy". In contrast to this perspective, some researchers identify Comenius

as a theologian, emphasizing that while he was a pedagogue, his principal area of

activity was theology.

Based on these contrasting perspectives, the objective of this research is to

demonstrate that the concept of education found in Comenius can best be understood

based on the presupposition of a fundamental inter-relationship between theology and

pedagogy, in that Comenius did not distinguish between the two.

It is only with this presupposition that it is possible to understand the motive for

Comenius' understanding of education as salvation for, or divine remedy for the cure of,

the corruption of the human species, being that education has as its end regeneration and

the transformation of each person into a garden of delights for the Creator. The best way

to achieve such ends should be systematized by pedagogy.

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SUMÁRIO

Introdução.......................................................................................................................09

Capítulo 1 – As influências culturais que marcaram o pensamento de

Comenius.........................................................................................................................22

1.1. Renascença...................................................................................................22

1.2. Utopistas pedagógicos..................................................................................26

1.3. A influência religiosa...................................................................................32

1.3.1. John Huss e os hussitas-taboritas..............................................36

1.3.2. O conceito teológico-educacional de Lutero.............................49

1.3.3. O conceito teológico-educacional de Melanchton....................52

1.3.4. O conceito teológico-educacional de Calvino...........................55

Capítulo 2 – O contexto histórico e a produção literária de Comenius.....................63

2.1. A Morávia no limiar do século XVII.........................................................63

2.2. A proposta educacional dos Irmãos Morávios.........................................65

2.3. A vida e as produções literárias de Comenius.........................................67

Capítulo 3 – Os pressuposto teológicos de Comenius na Didática magna.................95

3.1. O texto bíblico como escrito sagrado.......................................................100

3.2. O Ser divino................................................................................................109

3.3. A gênese de todas as coisas – uma apologia criacionista........................113

3.4. A concepção antropológica-teológica – o homem como microcosmo...113

3.5. Soteriologia comeniana.............................................................................120

3.6. Os princípios morais propostos por Comenius.......................................124

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3.7. A piedade cristã na concepção de Comenius...........................................128

3.8. Os pressupostos escatológicos de Comenius............................................132

Capítulo 4 – Os pressupostos pedagógicos de Comenius na Didática

magna.............................................................................................................................137

4.1. O método comeniano.................................................................................138

4.2. A organização escolar................................................................................148

4.3. A organização escolar pansófica..............................................................161

Capítulo 5 – A inter-relação da teologia e da pedagogia de Comenius na Didática

magna.............................................................................................................................177

Considerações finais.....................................................................................................208

Referências bibliográficas............................................................................................215

Anexo 1 – A Cronologia de Comenius........................................................................221

Anexo 2 – Poema de G.W. Leibniz a respeito de Comenius.....................................229

Anexos 3 – Ilustrações..................................................................................................231

1. Página de rosto de Didactica opera omnia de Comenius, 1657..............231

2. As viagens de Comenius............................................................................232

3. Pansophia....................................................................................................233

4. Morte de John Huss...................................................................................234

5. Orbis pictus.................................................................................................235

6. O labirinto do mundo.................................................................................236 7. Algumas obras de Comenius, da biblioteca do Museu Jan Amos Komensky,

em Uherky Brod....................................................................237 8. Lucidarium (primeira versão de Orbis sensaulium pictus).....................238 9. Orbis sensualium pictus. Primeira edição de 1658..................................239 10. Página titular da Didactica magna – 1ª parte .........................................240

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INTRODUÇÃO

Na análise da sociedade brasileira, uma das crescentes discussões tem, como

conteúdo fundamental, a educação. Prova disto está na mídia impressa, por exemplo,

que tem revelado diversos estudos voltados para o currículo e a situação do sistema

educacional brasileiro. A princípio, não se trata de uma ênfase apenas de nossa época,

tampouco exclusiva do povo brasileiro. Analisando a história, na perspectiva

educacional, percebe-se que, de certa maneira, a educação sempre esteve presente na

civilização humana desde a sociedade considerada mais primitiva (MONROE, 1979, p.

1).

Assim sendo, os debates quanto à educação brasileira e à educação em sua

concepção mais geral proporciona-nos a possibilidade de analisarmos as concepções

fundamentais dos clássicos na área da educação. Neste sentido é que, ao pesquisarmos a

respeito dos clássicos da educação, nos deparamo com João Amós Comenius.

João Amós Comenius é um autor clássico na história da educação e da didática,

de maneira que se pode preconizar que a educação ocidental deve muito a esse pensador

do século XVII, pois foi o primeiro a querer instituir a educação como uma ciência

sistemática, sendo considerado o sistematizador dos estudos pedagógicos.

Comenius continua a ocupar uma posição invejável na galeria das grandes figuras que edificaram a pedagogia [...] Comenius [...] foi, sem dúvida, o primeiro a querer instituir a pedagogia como ciência sistemática da educação, baseada num método e enraizada numa sólida experiência do ofício. Neste sentido, não deixou de ser imensamente celebrado [...] como “o Galileu da educação” [...]. (CAULY,1995, pp. 9,10).

Todavia, observa-se que há poucas referências quanto aos pensamentos de

Comenius nos estudos pedagógicos, indicando que ele ainda continua sendo um

desconhecido para muitos pedagogos e, por extensão, no meio acadêmico universitário

brasileiro.

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Uma das razões para tal desconhecimento deve-se ao princípio de que há apenas

três obras primárias de Comenius traduzidas em língua portuguesa, sendo que duas delas

foram editadas em Portugal, a Didáctica magna e a Pampaedia, em se tornando do

ponto de vista financeiro, livros raros e caros, principalmente porque a Pampaedia está

esgotada, já algum tempo, sem previsão de uma reedição pela Universidade de Coimbra.

Quanto à obra editada no Brasil, trata-se da Didática magna editada pela Martins Fontes,

que é uma tradução da versão italiana.

Por esta razão, pode-se dizer que o acesso dos pesquisadores brasileiros às obras

primárias de Comenius, em português, está restrito à Didática magna, tendo, como

conseqüência, algumas dificuldades na hermenêutica do pensamento de Comenius. Haja

vista que a maioria dos pesquisadores de Comenius tem seu foco voltado para os

métodos educacionais, ressaltando-o somente como pedagogo, contrariando o próprio

Comenius que afirmou não se considerar um pedagogo, mas um teólogo por profissão

(PELIKAN, 1992, p. 9) e vocação (LOCHMAN, 1993, p.35). Talvez por esta razão, é

que encontramos raríssimos estudos referindo-se a Comenius como teólogo, com

exceção dos rápidos e esporádicos comentários que aparecem em alguns poucos livros e

dissertações.

Outros, por suas vezes, intentam criticar o pensamento de Comenius,

interpretando suas propostas educacionais fora de seu contexto histórico (CAPKOVÁ,

1984, p.11). Nesta forma de pensar, pode-se identificar a hermenêutica que Éster Buffa

(1996, p. 19-26) faz de Comenius em seu artigo Educação e cidadania burguesas, pois,

ao partir do princípio de que a educação é um privilégio da burguesia, insere a célebre

sentença de Comenius “ensinar tudo a todos”, parecendo afirmar que o “tudo” se refere

somente até um certo grau de educação, sendo que os graus mais elevados deveriam ser

para um grupo seleto, que seriam os doutores, educados para as decisões políticas e

condução de outras pessoas. No mesmo contexto, declara que Comenius foi o criador do

livro-texto (didático), cujo objetivo era o de difundir tais idéias político-educacionais.

Todavia, analisando Comenius em seu contexto histórico, proposta deste

pesquisador, percebem-se as intenções mais apropriadas de Comenius, ao instituir o

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livro-texto na escola e, também, o seu pressuposto em sua proposta pansófica da

educação, isto é, “ensinar tudo a todos”.

Isto posto, podem-se compreender as razões pelas quais pairam algumas

dificuldades na pesquisa a respeito de Comenius, incluindo o meio acadêmico, já que,

para alguns, se trata apenas de uma obra do século XVII, insignificante às discussões

educacionais (CAPKOVÁ, 1984, p. 11) e de pouca relevância social para o nosso

século.

Ora, tais concepções só aparecem quando se conhece Comenius de maneira

superficial, pois, no momento em que se fixa na análise e se debruça sobre esse

pensador, as dúvidas são revertidas em admiração e desejo de uma pesquisa mais

profunda a respeito de suas idéias (COLOMBO, 2002, p.12). Constata-se, então, que os

princípios educacionais de Comenius foram avançados para sua época, e quão atuais são

suas propostas pedagógicas para o século XXI. Algumas das propostas educacionais de

Comenius foram relevantes e avançadas para o século XVII e, até hoje, encontram-se

ecos de tais concepções, refletidos nas discussões educacionais da modernidade.

Analisando a concepção de Comenius a respeito do ser humano, verifica-se que

ele acreditava que o homem somente pode ser compreendido tendo como foco sua

integralidade, ou seja, para Comenius, o ser humano não pode ser fragmentado, pois

cada um de nós é, em sua concepção, um “micromundo” (COMENIUS, 1997, p.59), na

medida em que somos vistos à luz das diferentes faces de nossa existência: política,

econômica, social, psicológica, religiosa.

Ora, esta parece ser uma leitura de homem bem próxima às concepções de Paulo

Freire (1983, p.45), para quem a pedagogia é a “pedagogia do Homem”, uma vez que o

homem não pode estar alienado do seu contexto social, mas ativo nas discussões de seu

mundo, pois ele é o sujeito da história e agente transformador de nossa sociedade. Daí, a

base de seu método educacional cujo objetivo é permitir que o homem chegue a ser

sujeito de sua história, construir-se como pessoa e transformar o mundo em que vive:

É preciso que a educação esteja em seu conteúdo, em seus programas e em seus métodos, adaptada ao fim que se persegue: permitir ao homem chegar a ser sujeito, construir-se como pessoa, transformar o mundo e

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estabelecer com os outros homens relações de reciprocidade, fazer a cultura e a história [...] (FREIRE, 1974, p. 42).

Reforçando a idéia de que existe um possível diálogo entre Paulo Freire e

Comenius, encontra-se contribuição fundamental nas palavras de Bohumila Araújo

(1996, pp.133-135):

Paulo Freire, idealizador das campanhas de alfabetização cuja concepção metdológica em ensinar a partir das coisas reais conhecidas, se aproxima tanto ao ideário comeniano, afirma que o diálogo é uma exigência existencial. E, se o diálogo é o encontro em que se solidarizam o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um ato de depositar idéias de um sujeito no outro, nem tampouco tornar-se simples troca de idéias a serem consumidas pelos permutantes. Quando o nosso contemporâneo Paulo Freire declara que não há diálogo se não existir um profundo amor ao mundo e aos homens, já que a pronúncia do mundo é um ato de criação e recriação, Comenius parece lhe responder em Consulta Geral sobre a Reforma das Coisas Humanas: “[...] europeus, aisáticos, africanos americanos e os habitantes de quaisquer ilhas são todos o povo de Deus, nascido do mesmo sangue, e todos devem amar-se como os ramos de uma árvore”. Mais adiante Comenius acrescenta: “Os nossos esforços devem conduzr a uma grande luz, uma grande verdade para todos, uma grande chama de amor, uma grande paz universal”. O diálogo pode prosseguir: de um lado, Freire opina que para haver diálogo, há de haver humildade: “a pronúnica do mundo, com que os homens o recriam permanentemente, não pode ser um ato arrogante”. Do outro lado, nas páginas iniciais da Didática magna, Comenius surpreende o leitor com as palavras de extrema despretensão: “Os que me conhecem de perto sabem que sou homem de inteligência medíocre e de limitada cultura[...]. Para finalizar o diálogo que se poderia estender por muitas páginas, vale a pena lembrar que Freire acha que o diálogo implica intensa fé nos homens, fé no seu poder de fazer e refazer. De criar e recriar. Fé na sua vocação de ser mais, que não é privilégio de alguns eleitos, mas direito dos homens [...]. A fé e a esperança, assim como o amor ao próximo, o amor que alimenta os princípios igualitários que Comenius professa com freqüência, são valores que não faltam no seu código de ações e representações e que, continuamente, reconstituem e atualizam a sua mensagem.

Diante disto, perceber-se que, apesar de Comenius ter vivido no século XVII e

ter escrito para seu mundo, ainda hoje se encontra eco de seu pensamento em um dos

maiores pensadores da educação moderna, visto que sua proposta sempre foi a de

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conceber o homem como ser integral e ativo em seu contexto social, e que a educação

deveria partir do cotidiano (FREIRE, 2000, p. 27).

Outro pensador que tem proporcionado verificar a atualidade do pensamento de

Comenius, e de certo motivado esta pesquisa quanto às discussões relativas à educação,

é Jean Piaget que, inclusive, prefaciou uma obra da Unesco Páginas escogidas (1959),

contendo uma coletânea de textos de Comenius. O título do prefácio é: La actualidad de

Juan Amós Comenio, de Jean Piaget (A atualidade do pensamento de João Amós

Comênio, de Jean Piaget).

Nesse prefácio, Piaget demonstra que Comenius superou sua época e iniciou a

discussão quanto ao conhecimento gradual da criança, proporcionando um ensino mais

próximo da realidade infantil em termos de faixa etária e, também, na condução da

criança a aprender a partir das coisas simples (concretas), passando para as complexas

(PIAGET, 1959, pp. 35,36).

Piaget apresenta uma das mais valiosas contribuições na área educacional, pois

discute, em suas pesquisas, a evolução da inteligência infantil, procurando explicar a

evolução da conduta cognitiva da infância à idade adulta. Em sua concepção, a evolução

mental passa por quatro estágios determinados por um modelo genético universal: o

estágio sensório-motor, que vai do nascimento até cerca de coisa nos de idade; o pré-

operacional, até os seis anos; o operacional concreto, até os 12 anos; e o das operações

formais, que se prolonga até a maturidade (BARSA, 2002, pp. 311, 312 b).

Diante do exposto constata-se que Comenius é atual, pois foi um dos primeiros a

debater a respeito do desenvolvimento mental da criança, e, de certa maneira, o próprio

Piaget declara que fora influeciado por Comenius, na elaboração de suas proposta que

tratam a respeito da evolução congitiva da infância à idade adulta (PIAGET, 1959, p.

52).

Deve-se, portanto, muito a este pensador do século XVII, que nos proporcionou,

por meio de Piaget, adaptar o ensino às nossas crianças, considerando seu

desenvolvimento mental, que até os dias de Comenius não era levado em conta.

Pesquisar a respeito de Comenius implica, ainda, trazer à memória sua intensa

preocupação com a democratização do ensino. Neste sentido, Comenius foi influenciado

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pela Reforma Protestante, que também propunha a democratização do ensino, todavia,

focando principalmente alguns países, como Alemanha e Suíça, por exemplo. Ao que

parece, nos dias de Comenius, o interesse inicial de Martinho Lutero na educação

universal tinha definhado e qualquer qualidade educacional que existia era reservada aos

monarcas, de maneira que a população menos favorecida continuava analfabeta

(TUTTLE, 1982, pp. 22,23). Comenius, entretanto, propunha um ensino partindo dos

princípios pansóficos, ou seja, ensinar tudo a todos, independentemente de sua

nacionalidade e classe social.

Em sua concepção, tanto homens quanto mulheres deveriam ter acesso à

educação (LOPES, 2003, p. 25). Comenius rompe, assim, com os preconceitos

enraizados na tradição dos costumes medievais, tendo como fundamento de suas idéias o

pressuposto do reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família

humana e o direito à educação. Araújo (1996, p. 88), ao comentar a respeito dos

princípios comenianos, declara:

O epírito comeniano, na opinião da autora, está presente na Constituição da UNESCO, na Declaração dos Direitos Humanos e nos textos de vários projetos de leis e decretos, sobretudo na área da educação. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada a 10 de dezembro de 1948, pela Assembléia Geral das Nações Unidas (ONU), expressa os anseios da humanidade, saída do sofrimento da Segunda Guerra Mundial. O que se percebe é a preocupação de promover o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana, e isto comenianamente, nos moldes da fé cristã, sem discriminação racial, social, econômica ou religiosa.

Araújo está convicta de que a preocupação de garantir a oportunidade igual a

todos conduz Comenius a advogar a causa da democratização do ensino em todas as

obras pedagógicas e em seus tratados, em se constituindo, ao mesmo tempo, no

precussor da UNESCO e da ONU, visto que ambas as instituições prescrevem o direito à

educação e a manutenção da paz, conforme o artigo 26 da Declaração Universal dos

Direitos Humanos (1978, p.23):

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Toda pessoa tem direito à educação. A educação deve ser gratuita, pelo menos no que diz respeito ao ensino elementar e fundamental. O ensino elementar é obrigatório. A educação deve visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e ao fortaleciemnto do respeito pelos direitos do homem e pelas liberdades fundamentais. Ela deve favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos radicais ou religiosos, assim como o desenvolvimento das atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.

Considerando este princípio, pode-se crer que um dos desafios da educação, no

Brasil, é justamente fazer cumprir o que prescreve a Constituição Federal de 1988 (2000,

pp. 145,146) em seus artigos 205 e 206, inciso primeiro, o qual estabelece que o acesso à

educação é um direito de todos:

A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: I – Igualdade de condições para o acesso e permanência na escola [...].

Neste contexto, julgamos de importância fundamental a citação das palavras de

Araújo (1996, p. 133):

As constantes referências a Comenius e ao seu ideário, a presença do seu pensamento no projeto da LDB, no Estatuto da Criança e do Adolescente, na Constituição Brasileira de 1988, sobretudo no que toca à democratização do ensino, dando oportunidade igual a todos, atestam as semelhanças surgidas das teias de relações de essência consideravelmente diferentes, trazendo incitamento à reflexão e abrindo perspectiva de caminhos e opções para solucionar alguns dos problemas mais urgentes do aqui e agora (hic et nunc). As unidades epocais se encontram comenianamente umas em relação com as outras, num permanente devenir na dinâmica da continuidade das idéias, temas das épocas, em contante interação sincrítica.

Isto posto, verifica-se que as idéias e os ideais das propostas educacionais de

Comenius ainda estão presentes em nossos dias. Algumas demarcaram discussões, como

as pesquisadas por Piaget, outras ainda aguardam respostas, como aquelas referentes à

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democratização do ensino qualitativo, que ainda é privilégio de alguns, resultando em

profundas discussões nas próximas décadas.

É necessário, tendo em vista a atualidade do pensamento de Comenius, que haja

pesquisas que busquem uma hermenêutica adequada das contribuições de Comenius

para diferentes áreas: teologia, pedagogia, filosofia, didática, metodologia do ensino, por

exemplo. Sendo assim, é digno de nota acenar que é mister uma análise que compreenda

o pensamento de Comenius na Didática magna, de uma forma mais abrangente, para

além da pedagogia e da teologia, mas que procure estabelecer o pressuposto

interdisciplinar de diferentes formas do conhecimento nas obras de Comenius.

Observa-se que a maioria das obras relativas às contribuições pedagógicas de

Comenius desconsidera seus pressupostos teológicos, desencadeando uma hermenêutica

imprópria do seu pensamento. Pode-se confirmar esta concepção em duas ocasiões

diferentes. A primeira está na correspondência que J. Hübner envia para Comenius:

[...] Todos esses defeitos, por outro lado, não são compensados pelas muitas coisas supérfluas que, aliás, os tornam ainda ma is enfadonhos; entre estas, quero ressaltar sobretudo as coisas que, nos primeiros capítulos e em toda a obra, foram misturadas a respeito de Cristo, da bem-aventurança, dos anjos e de outras questões da religião cristã[...] (HÜBNER, apud COMENIUS, 1997, p. 5-7).

A segunda está na tradução francesa La grande didactique (A Didática magna),

em que Piobeta, ao traduzi- la, omite capítulos inteiros da Didática que tratam dos

pressupostos teológicos, partindo do princípio de que Comenius deve ser lido apenas

como pedagogo e não como teólogo. Gasparin (1998, p. 70), cometando a tradução de

Piobeta, afirma:

Querer eliminar, por exemplo, as dimensões da moral e da religião para ater-se tão somente ao aspecto intelectual de sua teoria da educação seria mutilar seu pensamento[...] Por isso, a tradução para o francês de sua Didactica Magna, feita por Piobeta em 1952, em que se atém aos aspectos pedagógicos da obra, omitindo capítulos inteiros e, acima de tudo, buscando ‘arrancar da obra de Comênio o espírito religioso e cristão que o orientou, representa omissões de valor substantivo para o autor’.

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Conseqüentemente, há poucas pesquisas concernentes aos princípios teológicos

de Comenius, conforme as palavras de Pelikan (1992, pp. 5,6):

Ainda que o estudo da sua vida e obra pedagógica tem continuamente atraído a pesquisa de acadêmicos através das últimas quatro décadas[...] a edição crítica de suas obras, de sua fé religiosa e do pensamento teológico não pode ser dito que tenham recebido a devida cota de atenção histórica [...] em nosso conhecimento de sua teologia não estamos absolutamente, tão bem informados quanto na maioria dos outros aspectos de sua vida e pensamento.

Com o mesmo pressuposto, Keatinge (1921, p. 24), em sua tradução The Great

didactic, afirma que Piaget, embora reconhecendo inúmeros méritos em Comenius,

expressava contraditoriamente que, sendo Comenius um “teólogo enamorado da

metafísica[...]se ocupe com a educação a ponto de criar uma Didática magna”.

Entretanto, analisando o contexto histórico de Comenius, sua vida e obra,

percebe-se que seu pensamento pedagógico está impregnado das idéias religiosas de sua

época. De maneira que não é exagero indicar que, no pensamento de Comenius, não há

como separar o teológico do pedagógico e o pedagógico do teológico.

Diante disto, a preocupação deste pesquisador reveste-se da importância de um

estudo que trate de Comenius enquanto teólogo e pedagogo, já que não se pode

estabelecer a distinção entre a teologia e a pedagogia no pensamento comeniano, se o

objetivo for descobrir sua maneira de compreender e as razões que conduziram suas

ações em busca de um mundo melhor por meio da educação.

Tendo-se aqui esclarecida a linha de reflexão, depara-se com o objetivo

norteadores desta pesquisa, cuja tônica recai sobre os seguintes pressupostos específicos:

• Identificar as concepções religiosas, educacionais e culturais que

influenciaram o pensamento de Comenius;

• Analisar as obras e o contexto histórico, político e religioso de Comenius ao

escrever a Didática magna;

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• Analisar, tendo como base a Didática magna, os pressupostos teológicos e

pedagógicos de Comenius;

• Identificar uma adequada hermenêutica para a análise e compreensão do

conceito de educação na Didática magna;

• Analisar o pressuposto inter-relacional teologia e pedagogia na Didática

magna.

Neste mesmo contexto, pode-se identificar as seguintes hipóteses, que por suas

vezes estão intimamente relacionados com os objetivos específicos (ALVES, M., 2003,

p.49):

• Analisar as perspectivas históricas que exerceram influência no

pensamento de Comenius na ocasião da escrita da Didática magna;

• Descobrir Comenius, por meio de sua vida e suas obras literárias,

objetivando identificar sua maneira de pensar e agir em seu contexto

histórico;

• Demonstrar que o pressuposto fundamental para a compreensão do

conceito de educação de Comenius na Didática magna é a inter-relação

da a teologia e da pedagogia.

Portanto, ressalta-se que a hipótese central desta pesquisa é demonstrar a inter-

relação da teologia e da pedagogia como pressuposto fundamental para a compreensão

do conceito de educação de Comenius na Didática magna.

Na análise da Didática magna, pode-se preconizar que somente se compreenderá

o conceito de educação de Comenius se focar tanto os seus pressupostos teológicos,

quanto os pedagógicos, pois, em sua compreensão, não se pode fazer distinção entre o

teológico e o pedagógico, pois ambos completam o mesmo objetivo, que é o de preparar

o homem visando ao tríplice princípio: instrução, moral e piedade.

É neste sentido que se pode interpretar o uso da palavra “inter-relação” nesta

pesquisa, haja vista que se segue a definição de Houaiss (2001, p. 1636) quanto ao termo

“inter-relação”, cujo significado é apresentado da seguinte forma: “relação entre uma

coisa e outra”; “relação mútua”. Neste estudo, observa-se que, para se compreender o

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conceito de educação de Comenius na Didática magna, é necessário ter como

pressuposto a relação mútua entre a teologia e a pedagogia.

Indica-se, ainda, que o comeniólogo Cauly (1995, pp. 31,32) se aproxima da

hipótese central desta pesquisa, pois demonstra que a teologia e a pedagogia são termos

inseparáveis nos estudos a respeito de Comenius. Entretanto, ressalta-se que o objetivo

de Cauly é traçar um contexto histórico da vida e das produções literárias de Comenius e

não se aprofundar na relação mútua da teologia e da pedagogia, resultando em um

raciocínio superficial. Por outro lado, Cauly não demonstra em que sentido pode ser

empregada a sua sentença: “teologia e a pedagogia são inseparáveis” nos estudos de

Comenius.

É importante observar que a preocupação do presente estudo, ao utilizar o termo

“teologia”, tem a intenção de demonstrar a crença de Comenius, embasada na Didática

magna, e não de estabelecer um tratado de Teologia Sistemática como fazem Berkhof

(1990), Clark (s.d) e outros estudiosos de Teologia, pois o que se espera, neste contexto,

é indicar que as crenças de Comenius influenciaram seu conceito de educação. Portanto,

o foco pretendido não se refere às diferentes definições da teologia, mas às crenças

religiosas de Comenius. Percebe-se, também, que o termo “pedagogia” se refere à

sistematização da educação como ciência, em um método capaz de “ensinar tudo a

todos”, que pode ser visto na Didática magna nos capítulos XIX a XXXIII.

A intenção, aqui, é demonstrar, com o máximo de clareza, a inter-relação da

teologia e da pedagogia como pressuposto fundamental do conceito de educação de

Comenius na Didática magna. Isto faz com que este trabalho se revista de importância e

inedistismo, visto que não somente descreve que a teologia e a pedagogia são

inseparáveis nos estudos de Comenius, mas preconiza que só se pode compreender o

conceito de educação de Comenius na Didática magna tendo como foco a inter-relação

da teologia e da pedagogia.

Na fundamentação bibliográfica desta pesquisa, destacam-se como fontes as

seguintes obras de Comenius: Didática magna (1997); The labyrinth of the world in the

paradise of the heart (1998); Páginas escogidas (1959), e as obras que estão catalogadas

nas referências bibliográficas desta pesquisa: GASPARIN (1994); KULESZA

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NARODOWSKI (2002) ; ARAÚJO (1996); LOPES (2003); LEE (1986); CAULY

(1995); RIBEIRO (2003).

Parte-se, assim, de uma abordagem qualitativa cujo fundamento consiste na

relação dinâmica entre o mundo real e o sujeito e que o conhecimento não se reduz a um

rol de dados isolados, delineando-se, então, a utilização do método histórico-

antropológico (CHIZOTTI, 1991, p.79), que consiste na captação dos aspectos

específicos dos dados e acontecimentos no contexto em que ocorreram. Importa extrair

da Didática magna idéias e valores, explícitos ou implícitos da inter-relação teologia e

pedagogia numa dimensão mais profunda do pensamento teológico e pedagógico de

Comenius, bem como sua visão do mundo em que viveu.

O primeiro capítulo apresenta as influências que marcaram o pensamento de

Comenius. Como foco central, registram-se alguns pressupostos educacionais da

Renascença, discorrendo principalmente a respeito dos utopistas pedagógicos:

Campanella, Erasmo de Roterdã, Francis Bacon, Ratke, Alsted, e Andreae, visto que

eles influenciaram diretamente o pensamento de Comenius nos diferentes aspectos: 1.

Quanto à utilização de imagens; 2) Quanto ao método científico- indutivo, tão presente

na Didática magna; 3) Visão utópica de mundo, no sentido de que as cidades deveriam

ser governadas por Cristo. Por fim, as influências que os Morávios e a Reforma

Protestante exerceram no pensamento de Comenius, como universalização do ensino e a

importância do texto bíblico para o letramento, influências vistas na Didática magna e

em outras obras de Comenius.

No segundo capítulo, a preocupação será discorrer a respeito de vida e obra de

Comenius, em se partindo do princípio de que ele ainda é pouco conhecido para muitos

pesquisadores. Por esta razão, após se dissertar a respeito da família de Comenius, há

indicação de suas obras principais. A tônica deste capítulo é proporcionar uma idéia

geral a respeito do pensamento de Comenius em algumas de suas obras, e apontar para o

princípio de que o contexto histórico de Comenius foi um dos incentivadores de sua obra

literária.

No capítulo três, procura-se demonstrar e sistematizar os pressupostos

fundamentais do pensamento teológico de Comenius. Após a análise da hermenêutica

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comeniana quanto ao texto bíblico, apresenta-se os fundamentos teológicos de Comenius

expostos na Didática magna: 1) A compreensão do Ser divino como criador de todas as

coisas, constituído de três dvinas pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo; 2) A concepção

antropológica-teológica do homem; 3) A análise soteriológica comeniana; 4) Os princípios

da moral e da piedade cristãs; 5) Os pressupostos escatológicos de Comenius.

O capítulo quatro expõe pressupostos do método comeniano, ou seja, as

concepções pedagógicas de Comenius propostas na Didática magna. No referido capítulo

são demonstrados os pressupostos metodológicos: sintético, analítico e sincrítico; a

organização escolar comeniana, focando as faixas etárias e a organização escolar

pansófica. Neste contexto é apresentada uma síntese dos princípios pedagógicos da

organização escolar pansófica de Comenius, compreendidos entre os capítulos XVI a

XXIV da Didática magna.

No capítulo cinco, encontra-se a parte central da pesquisa, propondo analisar a

inter-relação da teologia e pedagogia de Comenius, procurando demonstrar que a teologia

e a pedagogia são pressupostos fundamentais para a compreensão do pensamento de

Comenius na Didática magna. Para tanto, o foco será a concepção de Comenius a respeito

do ser humano, isto é, “imagem e semelhança de Deus”. Criado por Deus, o homem

necessita ser formado para exercer a função de seu representante.

Nas considerações finais, a ênfase será demonstrar que a inter-relação da

teologia e da pedagogia como pressuposto fundamental para se compreender o conceito

de educação de Comenius na Didática magna, haja vista, que Comenius é teólogo e

pedagogo. Por fim, observa-se, nesta pesquisa, três anexos cuja preocupação é

demonstrar, além da Didática magna, algumas das principais obras de Comenius e uma

cronologia mais completa da vida e das obras comenianas.

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CAPÍTULO 1 – AS INFLUÊNCIAS CULTURAIS QUE MARCARAM O

PENSAMENTO DE COMENIUS

Compreender e analisar o momento histórico e o mundo em que um pensador

está inserido são atitudes fundamentais para entender suas reflexões e sua vida, pois o

tempo e o espaço de sua existência influenciam diretamente a vida, o pensamento e as

ações humanas. Dessa maneira, ao se estudar a Didática magna de Comenius, deve-se,

preliminarmente, compreender os princípios fundamentais que influenciaram Comenius.

Segundo Gasparin (1998, p.18), somente compreenderemos o pensamento de

Comenius, especialmente a Didática magna, se conhecermos a religião, a política e a

filosofia educacional de sua época.

[...] compreender-se-á melhor sua formação intelectual, religiosa, política, filosófica e educacional no contexto do século XVII na Europa, bem como tornar-se-ão mais claras as respostas que ele deu a seu tempo por meio de seus escritos.

A preocupação, agora, é tentar demonstrar as perspectivas sócio -culturais que

influenciaram diretamente o pensamento de Comenius, mais especificamente, a

Renascença, os Utopistas Pedagógicos e a Reforma Protestante.

1.1. RENASCENÇA

Os séculos XV e XVI, conhecidos como a era da Renascença (MONROE, 1979,

p. 146), assinalaram um período em que as faculdades da natureza humana e as

atividades do homem apresentaram extraordinário progresso.

Os Estados, a partir do declínio da Idade Média, começaram a se organizar em

bases nacionais. Buscava-se um poder central com governos fortes, servidos por forças

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militares e civis, nacionalistas, em oposição ao domínio de um governo religioso

universal, conforme proposta da Igreja (CAIRNS, 1990, p. 222).

A economia era voltada para a agricultura e o solo era a principal fonte da

riqueza. A partir de 1500, com o ressurgimento das cidades, a abertura de novos

mercados e a descoberta de matéria-prima nas recentes terras descobertas1 inaugura-se

uma era de comércio em que a classe média mercantil tomou a frente da nobreza feudal,

na liderança da sociedade. Esta classe emergente não estava interessada em enviar

riquezas à Igreja, cuja liderança se exercia pelo poder papal (CAIRNS, 1990, p. 22).

Com a nova proposta econômica, surge a oportunidade de mobilidade social. Era

possível alguém da classe carente emergir à alta. Além disso, a servidão estava

desaparecendo e esta nova classe, formada pelos proprietários livres, pela pequena

nobreza da cidade e pela classe mercantil (burguesia), começou a surgir. (CAIRNS,

1990, p.223).

O interesse pela volta às fontes do passado e a tônica dirigida para o homem2

levou os humanistas cristãos ao estudo da bíblia em línguas originais (DEBESSE, 1997,

p.196). A tônica renascentista no indivíduo foi um fator preponderante no

desenvolvimento do ensino protestante no tocante à salvação, vista como uma questão

pessoal, na qual cada indivíduo deveria manter relação íntima com Deus, sem

interferências de um sacerdote como mediador humano.

O movimento renascentista resultou em uma nova concepção da sociedade

humana e a mente humana fez novas e esplêndidas conquistas em todas as direções. Ela

foi despertada e fortificada para futuros empreendimentos, incluindo as invenções

mecânicas, entre as quais a mais influente foi a da imprensa, por Gutenberg (1450). Por

ela, as idéias e os conhecimentos foram mais rapidamente espalhados.

1 - Referimo -nos às mudanças geográficas ocorridas quando da descoberta de Colombo e de outros exploradores do Novo Mundo, em que Espanha e Portugal tinham o monopólio na América Central e na América do Sul, mas a maior parte da América do Norte, depois de um confronto entre a França e a Inglaterra, acabou por ser a nova terra (Nova Inglaterra) dos anglo-saxãos. 2 - Neste ponto, deparamo -nos com um aspecto particular do Renascimento, o Humanismo. O humanismo defendia variados temas, dentre eles, a importância do corpo. A Idade Média buscava a dualidade entre o corpo e alma, enquanto o Humanismo entendeu que o homem é um ser integral, devendo, por isso, ser objeto de estudo. Desenvolve-se, portanto, o desejo de pesquisa da natureza, a partir de Galileu, Bacon e Descartes. (Ver DEBESSE, pp. 191-195).

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A Renascença foi marcada pela volta aos originais, à língua grega e à renovação

da vida religiosa. A decadente vida religiosa fez com que o homem ansiasse por

redescobrir as fontes da religiosidade como a pureza, o conhecimento genuíno e a vida

espiritual com Cristo, tendo como proposta religiosa, segundo Abbagnano (1992, p.128),

uma “Filosofia teológica”. Este aspecto do Renascimento foi um dos grandes causadores

da Reforma Protestante do Século XVI.

Debesse (1977, p.192), historiando a interface Renascença-Educação, afirma que

a educação foi um dos temas predominantes no Renascimento:

O que tem chamado a atenção, desde há muito, é, primeiro a extrema abundância da produção pedagógica, sua riqueza e variedade, em relação à da Idade Média e à do século de Luís XIV. Para nos convencermos disso, basta consultarmos o velho, mas excelente, Répertoire des ouvrages pédagogiques du XVI siècle , publicado em 1886, em Paris, pelo Museu Pedagógico. Nele se encontram, às centenas, tratados de educação e obras em que domina a preocupação da formação do homem, desde a dos grandes autores, Rabelais, Erasmo, Thomas More, Lutero, Vives, Montaigne, etc. A educação é, então, matéria de atualidade.

O principal foco da educação Renascentista era a educação liberal, ou seja,

oposição à educação da escolástica. A educação no escolasticismo tinha por objetivo

principal a manutenção dos dogmas da Igreja e sua preocupação com as línguas,

gramática, lógica e retórica, visando apenas ao conhecimento teórico, sem o preparo

para a vida (LEE, 1987, p.11). A educação liberal, fundada no pensamento grego e

adaptada aos romanos por Cícero, Quintiliano, Tácito e outros, propunha a formação de

um homem perfeito, apto a participar das atividades das instituições sociais dominantes,

com preocupação voltada para a vida, o que a diferenciava completamente da proposta

escolástica. (MONROE, 1979, p.153). Os homens cultos do passado, como Platão,

Aristóteles, Demóstenes, César, Plínio, Cícero e outros, eram considerados modelos para

a concepção social e educacional que se desencadeava.

A inovação no conceito educacional da Renascença é a preocupação com a

educação da cavalaria e com a educação literária. Esta fusão, juntamente com a idéia de

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que a preparação literária não deveria ser de caráter contemplativo, resultou na

concepção de um senso prático do cotidiano.

Esta nova concepção de educação influenciou os séculos subseqüentes, em que

se buscavam novos métodos educacionais, próximos à realidade do homem. Prova desta

nova maneira de compreender a educação foi Desidério Erasmo (Gerardus Gerardi).

Erasmo de Roterdã, como ficou conhecido (1467-1536), dedicou-se ao progresso do

novo saber, considerado por ele como o mais importante princípio da reforma moral,

religiosa, educativa e social daqueles dias.

Erasmo contribuiu com edições dos clássicos latinos e gregos, gramáticas latinas

e gregas e com seus Colóquios. Monroe (1979, p.162) declara que os princípios

educacionais de Erasmo podem ser resumidos da seguinte maneira:

As obras dos autores clássicos, dos padres da Igreja e as Escrituras contêm tudo o que é necessário para guiar nesta vida e para reformar muitos dos abusos existentes, mas é necessário conhecer estas obras em sua forma original e não corrompida. Conseqüentemente, o grande trabalho das escolas é estudar uma seleção ampla dessas obras e saturar-se perfeitamente de seu espírito[...]Em lugar de distinções dialéticas e obscuridades deve -se acentuar a análise e a apreciação retórica. A gramática forma necessariamente a base de todo trabalho das escolas, mas a gramática considerada como uma forma inteligente de analisar a literatura. A natureza, a história, e ávida contemporânea devem iluminar este estudo literário, o qual, por sua vez, visa a reformar a sociedade. Tal conhecimento deveria ser amplamente disseminado e ser livre para as mulheres e para os homens. O objetivo moral na educação deveria ser sempre acentuado e o estudo da literatura religiosa e a participação nos serviços religiosos constituiriam uma parte da educação. De modo análogo são contemplados em seu programa de educação, a conduta, o comportamento e as amenidades da vida.

Diante disso, compreende-se a influência nas propostas educacionais de

Comenius, visto que uma de suas tônicas estava relacionada à educação para ambos os

sexos, princípio também defendido pelos reformadores Lutero e Calvino. Além disso,

está clara a ênfase na questão moral-religiosa. Erasmo defendia a importância da

literatura e a participação dos alunos nos serviços religiosos, parte também integrante do

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pensamento de Comenius, pois, ao escrever sua Didática magna tinha em mente não só

conhecimento pedagógico, mas que a pedagogia deveria proceder da vida piedosa.

São, portanto, fortes as influências do Renascimento exercidas no pensamento de

Comenius. Do Renascimento, Comenius deriva a concepção dinâmica e evolutiva da

natureza e a do homem como microcosmo, gestor e mediador nas relações com a

natureza, com a tarefa de reconduzi- la a Deus. Nessa tarefa, é auxiliado pelo fato de ser

a mais alta e perfeita entre todas as criaturas do universo, aquela que possui por natureza

“as sementes da ciência, da moral e da piedade”. No homem está tudo, “a lâmpada, o

lume, o óleo e o pavio”; trata-se apenas de “soltar a faísca, protege-la, acender o lume”.

É preciso garantir- lhe “um pequenino impulso e um sábio guia” para que se torne

homem e possa assim gozar “os maravilhosos tesouros da divina sapiência”.

1.2. UTOPISTAS PEDAGÓGICOS

Há, todavia, uma linha de pensamento nas reflexões pedagógicas desta época,

pouco pesquisada, que foi de imensa influência nos anos seguintes, e particularmente no

pensamento de Comenius, a dos utopistas pedagógicos.

As correntes da pedagogia utopista conjugam o modelo do homem perfeito e

harmônico, típico da pedagogia renascentista humanista, com a projeção de uma

sociedade ideal e justa, de maneira que a pedagogia se insere nessas construções como

uma componente teórico e prático indispensável. Nas “cidades ideais”, a formação do

homem-cidadão é de fato um momento central do equilíbrio social e se realiza,

sobretudo, através da educação de seus membros.

No estudo da Didática magna de Comenius (1997, pp.25,26), verifica-se que ele

também esperava, nesta terra, uma sociedade ideal e justa, demonstrando que foi

influenciado pelos pressupostos dos utopistas pedagógicos, podendo ser inserido como

um utopista em sua persistência na educação, conforme a proposta do título do livro de

Kulesza: Comenius – A persistência da utopia em educação.

Assim, Comenius, após analisar criticamente seu mundo e perceber que “nele

tudo está revirado e confuso, ou está destruído ou ruindo”, declara que “Deus deseja

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renovar aqui na Terra também o paraíso da Igreja e transformar seus desertos em jardins

de delícias”, tendo como fundamento a educação da juventude.

As Santas Escrituras nos ensinam primordialmente que não há caminho mais eficaz para corrigir a corrupção humana que a correta educação da juventude. De fato Salomão, que conhecera todos os meandros dos erros humanos lamentava não ser possível corrigir as perversidades nem contar todos os defeitos, volta-se finalmente para os jovens, exortando-os a lembrar do criador nos dia da juventude, temê-lo e guardar seus mandamentos porque esse é o dever de todo homem (COMENIUS, 1997, p.27).

Nessa linha de reflexão pedagógica, encontram-se alguns dos maiores

pensadores, tais como Campanella, Bacon, Andreae, que contribuíram para as ciências

educacionais. Ora, para efeito desta pesquisa, tendo em mente que não se objetiva, aqui,

analisar exaustivamente todos os utopistas pedagógicos, importa apresentar alguns, e

suas respectivas obras, que influenciaram mais diretamente o pensamento de Comenius.

Tommaso Campanella (1568-1639). Uma das principais obras de Campanella foi

Cidade do sol, na qual descreveu uma comunidade ideal, que valorizava a cultura e a

educação, sublinhando a exigência de ligar intimamente saber contemplativo e saber

prático, artes liberais e artes mecânicas (CAMBI, 1999, p.274). Seguiu Platão em muitos

aspectos, especialmente ao devotar grande atenção à educação: “Eles têm apenas um

livro”, disse ele dos cidadãos de sua comunidade ideal, e “nele estão escritas todas as

ciências”. Este livro é lido para todo o povo, e fornece-lhe um conhecimento que é de

ordem enciclopédica.

Na questão educacional, Campanella foi um dos mais engenhosos na utilização

de figuras. Ele pintou os muros da cidade, por dentro e por fora, e os grandes prédios

também, com os mais belos desenhos, mapas, esquemas e diagramas, para representar

todas as artes, ciências, figuras matemáticas, minerais, metais, formas de espécimes

biológicos, artes mecânicas e até as leis e costumes da humanidade (EBY,1978, p.133).

Tendo em mente o acima exposto, pode-se verificar a influência de Tomasso

Campanella no pensamento de Comenius. De Campanella, Comenius aceitou o

sensacionismo naturalista gnoseológico, visto que o desenho e a pintura eram

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extremamente cultivados por Campanella. Ora, tal forma de instrução foi utilizada por

Comenius em uma de suas principais obras, a Orbis Pictus, que continha figuras para

ensinar crianças, sendo considerado o primeiro livro ilustrado da história.

Além disso, destaca-se o princípio de que, em Campanella, a idéia de uma cidade

ideal é a internamente pacificada, guiada por um comum ideal religioso e organizada de

forma educativa. Exemplo desta cidade ideal pode ser vista na obra de Comenius O

labirinto do Mundo e o Paraíso do Coração, que nada mais é que a esperança de um

mundo melhor, apesar de nos momentos finais da obra, Comenius assinala que somente

em nosso mundo interior encontraremos a paz e a união mística com Cristo.

Francis Bacon (1561-1626) contribuiu para a nova concepção de ciência e

educação no início do século XVII, principalmente com relação às implicações do

método indutivo e o estudo direto da natureza. Na compreensão de Bacon, o

conhecimento poderia ser extraído somente através da observação dos fenômenos do

mundo exterior pelos sentidos, combinados com a experimentação.

Sua tese fundamental afirmava que a cultura deveria ter objetivo prático e ser

adquirida pela observação, e não somente por meio de palavras, pois o conhecimento

deveria ser atingido por meio da indução e experimentação. Ele, ainda, afirma que a

aprendizagem mnemônica, passiva e estéril, não produzia qualquer efeito no processo de

ensino-aprendizagem; que ela, posta nestes termos, é simplesmente decorativa. Propõe,

também, que todos os jovens, independentemente de suas condições econômicas,

deveriam ser instruídos.

Em sua obra Nova Atlântida, Bacon desenvolveu um projeto educativo que

abrange não só o modelo de cultura cultivado na “Casa de Salomão”3, mas também a

necessária renovação dos métodos da instrução mais elementar e geral, enquanto exige

que se recorra sempre à experiência e à natureza, aos dados dos sentidos e, ao mesmo

tempo, a uma rigorosa iniciação ao saber científico. “O estudo das línguas e o estudo das

3 - Nome dado para a academia colocada no centro da “cidade ideal” prescrita por Bacon. A “casa de Salomão” era definida como um “grande instituto de pesquisa científica”, trabalhava para o desenvolvimento da ciência, especialmente na direção tecnológica, atendo-se a um ideal enciclopédico do saber (CAMBI, 1999, p.274).

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matemáticas convergem num conhecimento cada vez mais íntimo da natureza”

(CAMBI, 1999, p. 275).

Observa-se que, nesta obra utópica, o valorizado não é tanto a temática da

liberdade e de uma harmoniosa formação espiritual, mas um eficiente progresso

tecnológico. Sendo assim, não é de surpreender que este novo perfil educativo, cultural e

enciclopédico do saber e do método de aprendizagem substituísse o lugar do ideal do

homem, que estava no centro da reflexão pedagógica da época renascentista,

influenciando a ciência educacional dos anos seguintes.

Francis Bacon exerceu influência sobremane ira em Comenius, visto que o

método indutivo e o estudo da natureza estão presentes em toda Didática Magna. Além

disso, na obra de Comenius, O labirinto do mundo e o paraíso do coração, tem a

referência da “Casa de Salomão”, que era justamente a academia do saber e do progresso

científico para Bacon em sua obra Nova Atlântida.

Wolfgang Ratke (1571-1635), conhecido por Ratichius, foi o primeiro e mais

influente dos reformadores didáticos (EBY, 1978, p.141). Nasceu na cidade de Wilster,

em Hostein. Recebeu sua educação no ginásio de Hamburgo, e então seguiu Teologia na

Universidade de Rostock, um centro de estudos progressistas. Era luterano,

profundamente religioso, mas, devido a dificuldades de dicção, não pode assumir o

pastorado.

Em sua obra Memoriale (1612), apresenta a dieta de Frankfurt, a problemática do

método fundamental e natural de aprendizagem. Influenciado por Francis Bacon, partia

do princípio de que se deve ensinar seguindo o curso da natureza, partindo do simples ao

complexo. Iniciaria com a língua materna e, depois, o aprendizado das línguas

estrangeiras (CAMBI, 1999, p.282).

Eby (p.144) resume o ensino de Ratichius nos seguintes princípios:

1) Tudo está em sua ordem; ou o curso da natureza. Desta maneira deve-se

considerar a ordem natural que a mente da criança segue na aprendizagem;

2) Cada coisa deve ser freqüentemente repetida. Ritchius fazia as crianças

lerem Terêncio três vezes em alemão e, então, seis vezes em Latim;

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3) Somente uma coisa de cada vez. Deve ser estudado somente um livro, ou

uma língua ou um tópico de cada vez, e deve ser completamente dominado antes que o

próximo conteúdo seja ensinado;

4) Tudo primeiro na língua materna. As crianças deveriam aprender a língua

materna para depois aprender o latim e outras línguas;

5) Tudo sem violência. A declaração de Ratichius é que “os meninos não

podem ser açoitados para aprender ou para desejar aprender. Através de violências e

golpes os jovens ficam desgostosos com seus estudos, de modo que o estudo se torna

odioso para eles” (BERNARD, 1878, p.336) ;

6) Nada deve ser aprendido de cor. A pura memorização, como prescrevia a

Escolástica, sem compreensão, não era suficiente para educar a criança para a vida;

7) Primeiro o próprio objeto, e depois sua explicação. Para exemplo, as

regras não devem ser ensinadas antes que seja apresentado o material ou objeto que se

deseja demonstrar;

8) Tudo por experiência e investigação de partes. Este princípio pode ser

enunciado: Tudo através de indução e experimentação.

Diante do exposto, observa-se que Comenius utilizou muito dos pressupostos

educacionais de Ratke (Ratichius) na Didática magna. Prova disto, está na apresentação

de seu método de repetições, conforme o capítulo XIX da Didática magna. As crianças

necessitam repetir várias vezes para aprender; tudo sem violência, portanto, não se pode

utilizar açoite; primeiro, deve -se mostrar a “coisa” e somente depois, explicá-la.

Nenhum dos demais planos utópicos discutiu educação tão exaustivamente e

nenhum foi tão completamente motivado pelo espírito cristão como Johann Valentin

Andreae (1586-1654), pastor luterano, educado em Tubingen, estreitamente ligado à

ordem dos rosacruzes, uma sociedade de místicos de origem medieval. Em 1616, fundou

uma loja chamada Cruz Rosa, misturando alquimia, misticismo e reforma social aos

ideais filosófico-religiosos que a inspiraram (CAMBI, 1999, p.283). Em sua obra

Reipublicae Christianopolitanae Descriptio (1619), de inspiração utopista, trata

particularmente da educação, opondo-se às técnicas mnemônicas em uso nas escolas da

época, favorecendo uma aprendizagem que unia as palavras às coisas, partindo da língua

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materna, para a estrangeira. Estimulava também a usar nas escolas os “melhores

autores”, a fim de que “se forme a língua, se refine o engenho, se enriqueça e se reforce

o ânimo” (CAMBI, 1999, p.283).

Nesta obra, propunha uma cidade ideal, governada pelos princípios de Cristo. Na

utopia de Andréa não tinha aristocracia de riqueza ou nascimento, sua proposta

educacional pressupunha que os cidadãos eram iguais e todos deveriam receber

educação, independentemente do sexo. Com relação à juventude, ensinou que ela

deveria ser vista como “o mais valioso bem da república” (ANDREAE, apud EBY,1978,

p. 133). O objetivo da educação, portanto, deveria ser: “Seu primeiro e mais alto

empenho é adorar a Deus com a alma pura e cheia de fé; o segundo, lutar em prol da

melhor e mais íntegra moralidade, o terceiro, cultivar as capacidades mentais” (HELD,

1914, p. 209). Ainda na concepção de Andreae, as escolas deveriam ser públicas,

responsabilidade de cada cidadão e do Estado.

A influência de Andreae nos princípios educacionais de Comenius é notada,

primeiramente porque o próprio Comenius faz a declaração de que Andreae o motivou a

continuar sua empreitada quanto à edição da Didática magna (COMENIUS, 1997,

pp.16,17). Em segundo lugar, com relação à proposta de um oferecimento educacional

democrático, incluindo ambos os sexos. Um terceiro aspecto pode ser visto no que se

refere ao objetivo da educação. Tanto para Comenius, quanto para Andreae, a educação

deveria visar a adoração a Deus com a alma pura e cheia de fé.

Johann Heinrich Alsted (1588-1638), teólogo calvinista, em sua obra Triumphus

biblicus, considera a educação como um meio que realiza, no mundo, à vontade de

Deus, colocando-se, então, como um projeto de reforma da humanidade. Na obra

Encyclopedia omnum scientiarum, Alsted delineia um modelo de ensino baseado em

alguns pressupostos de natureza teórica: Deus é fundamento e princípio de todo saber,

ao passo que quem realiza o processo de ensino são o professor e os livros, sejam estes

antigos ou modernos, excluídos obviamente os heréticos ou privados de orientação

metódica. Cambi (1999, pp.282-283), comentando a organização escolar de Alsted,

afirma:

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No nível da organização escolar, da qual trata no Systema mnemonicum, ele distingue as escolas elementares, chamadas também vernáculas, das escolas superiores, divididas em demicae (necessária a todos) e accademicae (ou universidades). As escolas superiores, urbanas e não rurais, masculinas e não femininas, acolhem os meninos dos sete anos em diante e se articulam, depois de um ano de latim, em três classes de gramática e outras três classes de filosofia que preparam para os estudos universitários. Estes últimos estruturam-se em quatro biênios, que tendem para uma especialização cada vez maior, embora mantendo uma notável abertura cultural.

Alsted reúne, em alto grau, todas as qualidades de mestre, pesquisador e trata de

assuntos pedagógicos, tendo como referência Teologia e Filosofia para a organização

escolar. Ele esteve empenhado em compendiar metodicamente todas as ciências num

livro que ele chama Enclyclopaedia, por sinal, a primeira enciclopédia na acepção

moderna do termo: consta de trinta e cinco livros distribuídos em sete volumes,

compreendendo desde teologia, medicina e direito até disciplinas curiosas, como a

tabacologias, a arte de filosofar em banquetes (COVELLO, 1999, pp. 23-25).

1.3. A INFLUÊNCIA RELIGIOSA

Outro princípio fundamental que influenciou diretamente o pensamento de

Comenius refere-se à questão religiosa. A Igreja, principal instituição da Idade Média,

vivia em corrupção, causando grandes males à sociedade.

Para entender a razão pela qual a Igreja estava corrupta, pode-se recorrer à

história eclesiástica, particularmente ao Edito de Milão, com Constantino, no ano 313

d.C. Até essa data, deparamos com uma Igreja totalmente diferente da que norteou boa

parte da Idade Média. Tratava -se de um povo perseguido por sua fé; considerado herege

e nocivo a Roma. Constantino percebe que, quanto mais cristãos o império matava, mais

o cristianismo se desenvolvia e fortalecia, a ponto de se encontrarem, entre nobres e

militares, cristãos verdadeiros. O imperador compreende que poderia utilizar o

cristianismo como força para suas investidas políticas, e governar, através da Igreja, o

povo romano que, unificado em torno de uma só fé, possivelmente, seria mais

facilmente governado.

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Intentava Constantino ser líder da Igreja e, por essa razão, pagou quantias em

dinheiro para que as pessoas nela entrassem. Assim, frequentavam a Igreja muitas

pessoas que não tinham compromisso algum com o evangelho de Cristo, apenas

pensavam no prestígio de estar ao lado do imperador, ou mesmo em receberem o

dinheiro oferecido (GONZALEZ, 1980, pp.16-46). Esta atitude, ainda que não

justifique, esclarece muitos dos males da história da Igreja que, provavelmente, seriam

evitados se as perseguições continuassem e se a Igreja jamais tivesse se tornado o grande

centro religioso e político do mundo.

A situação de corrupção em que a Igreja vivia desencadeou inúmeras tentativas

de reformas eclesiásticas. Nichols (1985, pp. 130-132) apresenta três grupos,

considerando-os como movimento de protesto procurando não reformar a Igreja no todo,

mas em pontos que achavam principais:

1) Os Petrobrussianos opunham-se às superstições dominantes na Igreja,

a certas formas de culto e à imoralidade do clero. Este grupo

desenvolveu-se por uma vasta região e muita gente de todas as

camadas sociais a ele aderiu, abandonando as igrejas e escarnecendo

do clero;

2) Os Cataritas, com vidas abnegadas e de moral irrepreensível,

constituíam uma reprimenda ao clero que usava o nome de cristão.

Eles representavam o desejo generalizado de uma religião melhor do

que a oferecida pela igreja papal. Os Cataritas foram chamados no

sudeste da França de Albigenses;

3) Os Valdenses originários de um negociante de Lião, chamado Pedro

Valdo que, influenciado pelo capítulo dez de Mateus, começou a

distribuir seu dinheiro com aos pobres e tornou-se pregador do

evangelho. As autoridades excomungaram-no. Apesar de toda

perseguição, esses grupos continuaram a pregação do evangelho e a

distribuição de partes manuscritas da Bíblia na língua do povo. Apesar

destas investidas, a Igreja nada aprendeu com essa onda de protestos.

Sua única resposta foi a Inquisição.

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Além dos grupos acima, é comum destacar John Wycliff, John Huss e Jerônimo

Savonarola como pré-reformadores. Nota-se, entretanto, que dos três mencionados, e

para efeito de objetivo de pesquisa, o foco recai principalmente em John Huss, visto que

dele se originam os Irmãos Morávios. Por isso, o comentário a respeito de Wycliff e

Savonarola será sintético, pois não se intenta, aqui, traçar os detalhes destes pré-

reformadores, exceto dos que podem auxiliar na compreensão do mundo em que

Comenius nasceria.

John Wycliff, nascido por volta dos anos 1320 ou 1330, ao entrar em luta contra

o papado em 1375, era o homem mais culto e destacado da Universidade de Oxford.

Além disso, alcançou simpatia das classes pobres (NICHOLS, 1985, p. 135), pois sua

primeira investida foi contra o suposto direito do papa de cobrar impostos ou taxas na

Inglaterra. Depois disso, chegou a negar fundamento bíblico à doutrina da religião

medieval, a transubstanciação. Por fim, declarou que a Bíblia era a única regra de fé e

prática, e que ela deveria ser lida pelo povo em sua própria língua. Seus seguidores, os

irmãos Lollardos (NICHOLS, 1985, p. 135), divulgaram suas idéias depois de sua morte.

Os ideias de Wycliff chegaram até a Boemia, influenciando Huss e um forte

espírito nacionalista, na Boêmia. Nos meados do século XIV, as tensões geradas pelas

mudanças econômicas e sociais no final da Idade Média tornaram-se insuportáveis.

Havia revoltas de camponeses em várias regiões. Na Inglaterra, por exemplo, a

aristocracia desejava controlar o comércio de lã, gerando a conhecida Guerra das Rosas.

A Peste Negra infestou a Europa e exterminou um terço ou mais da população, trazendo,

como conseqüências inevitáveis, dificuldades econômicas e sociais, especialmente pelo

aumento de preços e pela escassez do trabalho. Enquanto isso, os Turcos Otomanos se

espalhavam por toda a península balcânica, controlando o Mar Mediterrâneo,

ameaçando a cristandade.

Percebia-se a problemática em torno do Grande Cisma no ano de 1378. Neste

ano, Urbano VI e Clemente VII auto-aclamaram sucessores legítimos de São Pedro. A

França e a Espanha seguiram Clemente VII de Avignon, que ficou conhecido pelo nome

de Benedito XIII, enquanto a Inglaterra e os outros países seguiram Urbano VI de Roma,

conhecido como Gregório XII. O Concílio de Pisa, reunido para solucionar a questão,

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decidiu pela deposição de Benedito XIII e Gregório XII e indicou o homem que se

chamaria Alexandre V como papa legítimo. Os dois papas se recusaram a aceitar tal

decisão e continuaram em seus respectivos cargos.

Até então, havia dois papas, cada qual reivindicando o trono; com Alexandre V,

somaram três. Após a morte de Alexandre V, em 1410, sucedeu-o João XXIII, que

permaneceu no poder por cinco anos, de 1410-1415 (CAIRNS, 1990, pp.208,209).

A Igreja já não era mais a expressão religiosa da sociedade, estava corrompida, e

esta situação chegava ao conhecimento de todos, escandalizando a cristandade e gerando

grandes revoltas (WALKER, 1967, p.383). Uma dessas revoltas ocorreu na Boêmia,

senão a mais importante dos conflitos do fim da Idade Média.

O catolicismo romano foi implantado na Boêmia pelo Rei Vaclav por volta do

século X, pois, desde 862, até os primeiros anos do Século X, a Igreja Ortodoxa ou

Igreja do Oriente era a oficial, uma vez que a separação em definitivo da Igreja do

Ocidente somente ocorreu em 1054 (SMITH, 1991, p.332).

A Boêmia, que incluía Silésia, a alta e baixa Lusácia, foi um dos lugares onde

estas revoltas se manifestaram, uma vez que ocorreu, naquela região, um movimento

nacional envolvendo conflitos militares em larga escala. Não se tratava apenas de grupos

isolados, considerados heréticos; pelo contrário, na Boêmia tais conflitos envolveram

territórios inteiros, pois praticamente todos os boêmios estava m inseridos no conflito.

Sendo assim, a Igreja da Boêmia rompeu com a Igreja Romana, trazendo algumas sérias

conseqüências.

No século XIV, a Boêmia se constituía no poder dominante da Europa Central. A

maioria da população era eslava e a minoria tcheca. Mas, a classe governante era

geralmente germânica. Havia bases alemãs espalhadas por todo país, e quase todas as

regiões fronteiriças ao norte eram controladas pelos alemães. A Igreja era uma das mais

ricas e corruptas da Europa. Mais da metade das terras pertencia a hierarquia e ordens

religiosas. Os bispos e poderosos abades viviam a luxúria dos senhores seculares. A

maioria deles era alemã, ao passo que o baixo clero era geralmente de origem eslava,

praticamente sem comunicação entre eles, incluindo a diferença de idioma.

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O que fazia a Boêmia ser tão especial é que, antes da descoberta da América, as

minas da Boêmia eram a principal fonte européia de prata. Em grau menor, produzia

ouro e cobre. A maior parte dessa riqueza era distribuída de forma desigual,

concentrando-se no topo das classes altas, que eram extremamente ricas, enquanto que,

na base, as pessoas comuns viviam em uma economia camponesa. A Boêmia era a base

do Império e, por isso, tornou-se palco da intriga e da corrupção, resultantes do conflito

entre o Imperador e o Papa.

Wenceslaus IV envolveu-se em uma disputa com os eleitores e grandes senhores

do império, até que, finalmente, foi deposto. Ele, incialmente, recusou a aceitar a eleição

de Rupert, até que cedeu, consentindo o cargo ao irmão dele, Sigismund, Rei da

Hungria.

Wenceslaus e o Imperador Carlos IV incentivaram até certo ponto a liberdade

religiosa e anti papalismo na Boêmia. A Inquisição foi mantida fora do país, fazendo

com que um número de seguidores de Wycliff emigrassem da Ingla terra. O rei

estabeleceu em Praga uma capela para a pregação popular, diretamente dependente de

seu patrocínio, e independente do arcebispo ou de qualquer ordem religiosa. Na Capela

de Belém, eram lidos sermões de diferentes pregadores, alguns reformistas, em tcheco e

em latim. O conteúdo dos sermões eram às rejeições as proclamações papais e denúncia

de simonia, nepotismo e luxúria da Igreja.

1.3.1. John Huss e os hussitas-taboritas

Neste contexto, surge John Huss que em 1402, foi designado reitor da

Universidade de Praga. Ao sofrer alguma influência de John Wycliff, pregou contra a

autoridade papal. O papa Alexandre V condenou os discípulos de Wycliff, os Lollardos,

e proibiu, a leitura, dos livros de Wycliff, bem como a pregação em capelas

independentes.

Todavia, Huss continou pregando e foi excomungado pelo arcebispo, que apelou

ao novo papa, João XXIII, um dos mais corruptos e depravados da história do papado. O

papa João XXIII não apenas apoiou o arcebispo Zbynek (1403-1411), como colocou a

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cidade de Praga sob intervenção enquanto Huss continuasse pregando. (WALKER,

1967, p. 379).

Ao mesmo tempo, o papa inundou a Boêmia com vendedores de indulgências

para financiar sua cruzada contra o Rei Ladislaus de Nápoles (WALKER, 1967, p.379).

Huss denunciou a venda de indulgências, e sua permanência na cidade de Praga era

insustentável. Por esta razão, exilou-se em uma zona rural perto de Praga, permanecendo

dois anos escrevendo, e publicou sua principal obra De Ecclesia, que serviu também de

base para sua condenação à morte na fogueira, em 6 de julho de 1415.

Ficaram claros, em sua condenação, a injustiça, a corrupção, o abuso e o

despotismo da Igreja, uma vez que Huss não foi ouvido em sua própria defesa.

Agravante ao fato, foi a atitude desleal do Imperador Sigismund que havia dado seu

salvo-conduto de que após seu julgamento voltaria para Praga. Todavia, após a

condenação dos “santos padres”, participantes do Concílio de Constança, Sigismund

cassou seu salvo-conduto e aprovou o julgamento do Concílio (WALKER, 1967, p.

380), possivelmente porque não desejava ser identificado com um herege.

Com os preparativos para a morte de Huss, a Boêmia levantou-se, unânime, em

revolta. Primeiro, contra a traição do Imperador e a injustiça do Concílio de Constança e

extensivamente contra a Igreja e o Império, gerando, a primeira revolução nacional na

história Ocidental.

Após a morte de Huss, decretada pelo Concílio de Constança em 1415

(McGINN, 1998, p. 126), quatrocentos e cinqüenta e dois nobres de todas as partes da

Boêmia e da Morávia se uniram em um congresso de emergência em resposta à

condenação de Huss pelo Concílio. Eles recusaram-se a reconhecer os decretos do

Concílio de Constança, a obedecer ao novo papa, a menos que ele fosse um homem de

qualidade moral e agisse de acordo com a vontade de Deus. Tais decisões passaram a ser

tomadas na Universidade de Praga, e estabeleceram a livre pregação no território

nacional.

Com a permissão do Concílio de Constança, Sigismund organizou um exército

para invadir a Boêmia. Em 1419, o Rei Wenceslau tentou restaurar o Concílio para que

continuassem seus ofícios na Igreja e na Universidade, deixando a população revoltosa

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fora da praça da cidade. Tal atitude conduziu os oponentes a atirarem pedras e, sob a

liderança de João Zizka, invadiram a praça da cidade, pegaram o burgomestre e

membros do conselho, lançaram-nos pela janela, dando início à primeira

“Defenestração” de Praga (McGINN, p.127) que marcou o começo da guerra aberta.

Os hussitas podem ser divididos em dois grupos (SCHLESINGER, 1991,

p.1309):

• Taboritas, de origem incerta, eram mais radicais e apocalípticos, mais

extremados;

• Utraquistas, menos apocalípticos que os taboritas, mais moderados,

reivindicavam para si o título de “verdadeiros intérpretes” do pensamento de Huss, visto

que alguns foram alunos do pré-reformador. Tinham uma visão mais liberal, eram ricos

e pomposos em sua intelectualidade. Todavia, segundo Walker (1967, p.381), quem

representava o verdadeiro pensamento de Wycliff e Huss eram os taboritas, de origem

pobre, humildes e interiorianos.

O nome “taboritas” deve-se a uma alusão ao Monte Tabor (Mateus 28.16-20). O

monte Tabor foi o monte onde Barak e Débora juntaram os anfitriões que aniquilaram

Sísera, imortalizado em um dos grandes poemas da Bíblia. Foi o Monte da

Transfiguração de Cristo. Acreditavam, ainda, os taboritas ser o Monte das Oliveiras

onde Cristo pregou o conhecido Sermão Profético, registrado em três evangelhos e, por

fim, onde Cristo ascendeu ao céu. Para os taboritas, a referência ao monte Tabor trazia

consigo todo um simbolismo de vitória e de grandes realizações religiosas.

Os taboritas eram extremados, radicais e rejeitavam todos os desvios do clero,

bem como a pompa4 dos cultos e a vida secular. Isto provocava choques com os

utraquistas de Praga, chamados também de calixtinos (SCHAFF, s.d., p.419), que

mantiveram vestes sacerdotais e outros aparatos nos cultos.

Estes grupos eram concorrentes, mas se uniram em função da manutenção da

Boêmia contra o domínio externo. De maneira que, praticamente, tiveram de conviver

4 - Uma possível explicação para que os taboritas não aceitassem as “pompas e acessórios” rituais nos cultos parece consistir no fato de que se tratam de pessoas pobres, sem possibilidade de manter tais acessórios e “pomba”.

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com suas diferenças. Para isso, firmaram o conhecido acordo, Compacta (BARSA,

2002, p.497), constituído de Quatro Artigos, que estabelecia:

1. Liberdade para a pregação;

2. administração do pão e vinho;

3. privação das riquezas pelo clero;

4. castigo dos pecados públicos.

Sigismundo, imperador Austro-Húngaro, que mantinha sob seu poder a Boêmia,

não aceitou a Compacta e obteve, do papa João XXIII, a declaração de cruzada contra os

hussitas, desencadeada em cinco diferentes momentos históricos. Suas tropas foram até

Praga, mas foram derrotadas pelos Taboritas, comandados por João Zizka

(GONZALEZ, 1980, p. 105).

O fato, ocorrido em 1420, chamou a atenção do papa e de Sigismundo, os quais,

em 1421 preparam um exército de cem mil homens, que também foram derrotados.

Zizka perdeu na batalha o único olho, com o qual enxergava, mas continuou na luta e

novamente as forças do imperador foram derrotadas pelos taboritas. O fato é que, com a

Bíblia nas mãos, iniciaram uma revolução militar contra o estabelecimento da Igreja e o

Catolicismo Imperial, vencendo pelo menos cinco cruzadas (LOSSKY, 2002, p. 772).

Devido às sucessivas derrotas, a Igreja Oficial procurou estabelecer diálogo com

os hussitas, firmando um acordo, o qual foi estabelecido praticamente pelos hussitas-

utraquistas que se constituíam de nobres, ricos, comerciantes alemães e proprietários de

minas. Eram pró-Roma, desejosos de integrar a comunhão romana. Formavam uma

espécie de ala “direitista”, que apoiava, em certa medida, o arcebispo e a rainha Sofia,

esposa de Sigismundo.

Os hussitas-utraquistas, possivelmente sob o comando do rei Jorge de Podebrady

(ARAÚJO, 1996, p.30), lutaram contra os taboritas e os derrotaram na batalha de Lipan

em 1434, fazendo do utraquismo a religião oficial da Boêmia, sendo admitidos pela

comunhão romana em 1436 (SCHAFF, s.d, p. 420). Desta maneira, a igreja romana

tornou-se a religião oficial da Boêmia, mas o Papa Pio II (1458-1464) declarou nulo o

referido acordo em 1462 (WALKER, 1967, p. 381), proibindo a comunhão entre os

reinos.

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Para os taboritas, a Bíblia era autoridade exclusiva de fé e prática. Os credos e as

interpretações da Igreja, os ritos e as cerimônias, a sagrada Missa, indulgências e

orações pelos mortos, confissão auricular, extrema unção, batismo de crianças, e todos

os acessórios como crisma, bênçãos em água benta, vestuários de Missa, imagens, dias

santos e tradicionais cantos de Missa eram considerados corrupções da Igreja pelos

taboritas, que negavam a sua pureza apostólica. Como os valdenses, invalidavam o

ministério e autoridade das pessoas que estivessem em pecado. Ensinavam que qualquer

leigo poderia celebrar o pão e o vinho ou ouvir confissões, uma vez que o próprio John

Huss, conforme afirma Gonzalez (1980, p.105), nos últimos dias de sua vida, havia

chegado à conclusão de que o cálice deveria ser ministrado por leigos. Este fato, durante

toda a história dos hussitas, foi um dos seus temas característicos.

Outra característica dos taboritas era o milenarismo. Os taboritas tinham, como

proposta religiosa, a vida cristã nos moldes da Igreja Primitiva, época em que as pessoas

vendiam seus bens e os depositavam aos pés dos apóstolos. Da mesma maneira, os

taboritas vendiam suas propriedades e colocavam o dinheiro e suas jóias, se possuíssem,

diante da comunidade e a riqueza acumulada era distribuída igualmente para todos os

cidadãos (McGINN, 1998, p. 128). Promoviam grandes ajuntamentos onde a eucaristia

se tornava um massivo agápe ou festa do amor presidida pelos líderes militares ou

religiosos.

Delumeau (1997, p.98), ao comentar a proposta de retorno dos taboritas à Igreja

Primitiva, cita uma “crônica rimada” daquela época, que demonstra a devoção e a

atmosfera religiosa dos taboritas:

[...] No momente do Cordeiro, No Tabor e noutros lugares, Juntavam-se ao partido de Deus. Faziam reuniões freqüentes, Na piedade, na humildade, Na concórdia e no amor fraterno, Uns e outros dividam entre si Até mesmo um ovo, um pedaço de pão. Comungavam o sangue de Deus e viajavam pelas Montanhas.

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Nos primeiros séculos depois de Cristo, muitos crentes que padeciam as

perseguições encontravam, no milenarismo, um motivo de alento e de perseverança em

sua prova. Essa mesma crença inventava o sonho do messianismo, isto é, da espera por

uma salvação coletiva, terrestre, iminente, total e sobrenatural, ou seja, sonho de

felicidade terrena, que ocorreria após o fim do mundo e a inauguração de um “novo céu

e nova terra” (SANTIDRIÁN, 1999, p. 393).

Sendo assim, partindo do conceito de milenarismo exposto, incorporado aos

princípios teológicos e escatológicos dos taboritas, constata-se a grande influência que

esta concepção exerceu sobre o estilo de vida daquela comunidade.

Pequenos grupos de pregadores pobres e ascéticos percorreram as cidades da

Boêmia, em particular as do Sul onde John Huss havia passado a última parte de sua

vida, anunciando que somente seriam salvos por ocasião da grande provação iminente,

os que se refugiassem nas cinco cidades “eleitas”: Pilsen, Louny, Zatec, Klatovy e Slany

ou nas montanhas.

Um manifesto anônimo de 1419, citado por Delumeau (1997, p.100), exortava os

fiéis a fugirem para os lugares santos onde o Senhor ia reaparecer:

[...] Caríssimos irmãos em Deus! Sabei que se aproxima já o tempo do maior tormento. É-lo que chega: está às portas, esse tempo anunciado por Cristo em seus evangelhos e por seus apóstolos em suas epístolas, pelos profetas e por são João no apocalipse. Nesse tempo, Deus, o Senhor ordena a seus eleitos pela voz de Isaías (cap. 51) fugir de entre os maus[...]. Mas para onde deve m fugir os eleitos de Deus? Para as cidades fortificadas que Deus suscitou no tempo do maior tormento, para que nelas seus eleitos se abriguem.

De modo semelhante, Brezova (1893, pp. 452-462) demonstra a proposta

milenarista dos taboritas ao citar:

Nessa cristandade, enquanto durar a Igreja primitiva, restarão apenas cinco cidades corporais e matérias para onde os fiéis serão obrigados a fugir no tempo da vingança. Pois, fora dessas cinco cidades, não poderão alcançar a libertação e a salvação[...]ninguém será mantido à parte dos golpes do Senhor, a não ser nas assembléias das montanhas e das grutas rochosas onde os fiéis estão agora reunidos. Quem ler ou ouvir pregar a palavra de Deus, lá onde é dito: “Então, vós que estais na terra dos judeus, fugi para as montanhas”, se não deixar as cidades, burgos e aldeias para ir às montanhas onde estão reunidos os irmãos

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fiéis, pecará mortalmente contra o mandamento de Cristo e será punido; perecerá juntamente com essas cidades, burgos e aldeias.a não ser nas assembléias das montanhas. Somente os fiéis reunidos nessas montanhas constituem o corpo junto ao qual se reúnem as águias; somente eles são os exércitos enviados por Deus através do mundo para causar esses flagelos, realizar essas vinganças sobre as nações, destruir e queimar suas cidades, burgos, aldeias, fortalezas e castelos. Eles deverão julgar toda língua que resistir a eles.

Havia a crença de que o Anticristo reunia suas tropas no reino e no exterior para

esmagar os leais servidores de Deus. Por esta razão, os taboritas eram exortados a

deixarem seus cajados e pegarem armas, pois não podiam esperar de braços cruzados,

mas preparar o caminho para a volta de Jesus, lutando contra o Anticristo e seus

sequazes.

Um cântico milenarista (DELUMEAU, 1997, p. 99), que pode ser datado do final

de 1419, convidava de maneira significativa à vigilância, já que o Senhor em breve

desceria a terra:

Vigia, chama sem descanso, Tu que conheces a verdade, Monta a guarda[...]. Toma o vinho, a água, o pão, Pois se aproxima tua hora E deles terás necessidade [...]. Anuncia o dia em que virá teu Senhor, Anuncia seu grande poder. Em breve ele descerá à terra E te ordena que retornes à tua casa [...]. A verdade governará, A mentira será vencida eternamente. Homem presta bem atenção, Guarda isto na Memória .

A maioria dos militantes taboritas foi milenarista extremada, chegando a datar a

Parousia para o ano 1420. Segundo Delumeau (1997, p.100), os acontecimentos e a

ideologia da revolução taborita, em particular seu componente milenarista, nos são

conhecido, sobretudo pela Husitska kronika (Crônica hussita) do universitário

praguense Lourenço de Brezova (1893, pp.355-356), que viveu nos anos 1370-1436.

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[Por volta de 1419-20] alguns padres[...] taboritas anunciaram a nova vinda de Cristo. Por ocasião desse evento, diziam, todos os maus e os adversários da verdade deverão perecer e ser exterminados, e os bons serão conservados em apenas cinco cidades. Por essa razão, várias cidades que tinham a liberdade de comungar no cálice não quiseram fazer nenhum acordo com seus adversários e principalmente com a cidade de Pilsen. Os referidos padres pregavam, no círculo de Bechyné e também noutros lugares, muitas opiniões errôneas e contrárias à fé cristã, interpretando falsamente em suas mentes os escritos dos profetas e recusando as palavras católicas dos santos doutores. Suas prédicas amedrontavam o povo, conclamando todos e cada um que quisesse salvar-se da cólera de Deus todo-podersoso (que, na opinião deles, devia se manifestar em breve no mundo inteiro) a abandonar cidades, fortalezas, aldeia e burgos, tal como Lot abandonou Sodoma, e a buscar refúgio nas cinco cidades.

Justificavam como parte da preparação para a vinda do Reino, que era dever da

fraternidade dos santos encharcar suas espadas com o sangue dos malfeitores, lavando as

mãos, literalmente, com sangue. Em Husitska kronika (Crônica hussita) de Brezova

(1893, pp.355-356) declarava que, para os taboritas, não deveria haver piedade para com

os pecadores e os fiéis deveriam derramar o sangue dos adversários de Cristo:

O tempo da vingança não é mais aquele da graça e da piedade pedidas a Deus; e por isso nenhuma piedade deve ser mostrada aos maus e aos adversários de Deus. Nesse tempo presente de vingança, não se deve, em relação aos adversários da lei de Deus, imitar Cristo em sua doçura, sua mansietude e sua misericórdia, mas apenas em seu zelo, seu furor, sua crueldade e sua justa maneira de retribuir. Nesse tempo de vingança é maldito todo fiel que não quiser, ele próprio, com sua espada, derramar o sangue dos adversários da lei de Cristo. Cada fiel deve lavar suas mãos no sangue dos inimigos de Cristo. Pois é bem-aventurado aquele que retribuía filha miserável do mesmo modo que ela própria nos retribuiu. Cada sacerdote de Cristo, nesse tempo da vingança, tem o direito e o dever de combater em pessoa pela lei comum, de ferir e matar todos os pecadores e de usar sua espada e outras armas e instrumentos de combate. Enquanto durar a Igreja militante, desde o tempo presente da vingança [que se situa] bem antes do dia do juízo final, todas as cidades, todas as aldeias, cidadelas, fortalezas e burgos e todas as casas devem ser destruídas e queimadas como Sodoma, porque nem o Senhor nem nenhum homem bom nelas entrarão. A partir desse tempo de vingança, a comuna e a cidade de Praga deve, como a Babilônia, ser destruída e queimada pelos fiéis. Todo senhor, pequeno nobre, burguês ou camponês que, admoestado pelos fiéis sobre o ponto dos quatro decretos, não aderir a eles fisicamente e com sua presença, será, como Satã e o dragão, despedaçado e morto por eles. E eles confiscarão seus bens como os

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dois inimigos. Todos os bens temporais dos adversários da lei de Cristo devem ser tomados, destruídos e queimados. Todos os camponeses que são forçados a pagar dívidas anuais aos adversários da lei de Cristo devem destruir esses adversários e reduzi-los a nada, e arruinar seus bens como os dos inimigos.

Sua crença estava fundamentada na certeza de que, após a destruição dos

“pecadores”, à semelhança de Sodoma e Gomorra (DELEMEAU, 1997, p.127), Cristo

apareceria no alto de uma montanha, possivelmente no monte Tabor, e celebraria a vinda

do Reino com um grande banquete messiânico para todos os crentes vitoriosos.

Os eleitos ressuscitarão desde já em seu próprio corpo, bem antes da segunda ressurreição que será geral. Com eles, Cristo descerá do céu e viverá corporalmente na terra, aos olhos de todos. E nas montanhas corporais haverá um grande banquete e festim ao qual ele comparecerá para ver os convivas e rejeitar o mal nas trevas exteriores. E ele exterminará com fogo e pedras todos os que estiverem fora das montanhas, como o fez outrora no dilúvio com todos os que estavam fora da arca de Noé. (DELUMEAU, 1997, p. 104)

Justo Gonzalez (1980, p.118), comentando a respeito do milenarismo dos

taboritas, declara:

Ao que parece estas doutrinas se baseavam no começo em um milenarismo exagerado. O fim estava às portas. Então Jesus Cristo castigaria os ímpios, e exaltaria os eleitos. Nos últimos dias, à espera do fim, era tarefa destes eleitos empunhar a espada e preparar o caminho do Senhor. Não havia motivo para ter misericórdia daqueles que de qualquer forma o Juiz Supremo iria condenar ao fogo eterno. Por isto todos os que agora se opunham à vontade de Deus deveriam ser destruídos pelas milícias cristãs. Quando chegasse a hora final Deus restauraria o paraíso.

Acreditavam que, no Reino, todos os sacramentos e ritos seriam dispensados,

substituídos pela presença real de Cristo e do Espírito Santo, todas as leis seriam

abolidas, os eleitos jamais morreriam, e as mulheres iriam parir crianças sem dor e sem

relações sexuais prévias, como afirma Delumeau (1997, p.105): “No reino renovado da

Igreja militante, as mulheres conceberão filhos e filhas até os netos. As mulheres

conceberão sem semente corporal”.

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A maioria dos taboritas foi puritana em sua conduta pessoal, mas uma minoria,

influenciada pelas doutrinas do “Espírito Livre” de Pikardi, acreditava que o milênio já

havia chegado e que Cristo estava vivendo entre eles (SCHLESINGER, 1991, p. 1309).

Eles compunham o reino dos eleitos, e para eles todas as leis tinham sido abolidas.

Pode-se perceber que a concepção milenarista, a expectativa da Parousia e a

implantação da justiça e paz na terra por Cristo foram o incentivo e a motivação para as

diversas vitórias que os “rebeldes boêmios” tiveram ao enfrentar as cruzadas de

Sigismundo apoiados pelo Papa e pelos utraquistas alemães. Justo Gonzalez (1980,

p.119) atesta essa interpretação, quando afirma:

Outro fato significativo é que a expectação escatológica levou os taboritas a tomar atitudes concretas, e contribuiu para seus repetidos triunfos sobre os invasores [utraquistas] alemães. É importante mencionar isto, porque freqüentemente se diz que esta expectação leva as pessoas ao conformismo, quando na verdade a história nos relata diversos casos que provam o contrário. Na realidade muita coisa depende do conteúdo concreto desta expectativa, e da maneira em que ela se relaciona com o presente.

O milenarismo taborita pode ser visto na leitura dos artigos da Husitska kronika

(Crônica hussita), de Lourenzo de Brezova (1893 pp. 452-456):

Em primeiro lugar, a partir de agora, neste presente ano que é o ano de 1420, haverá e [já] há o fim do século, isto é, o extermínio de todas as coisas más. Ocorrerão a partir de agora os dias da vingança e o ano da retribuição em que perecerão os pecadores do mundo inteiro e os adversários da lei de Deus, de modo que nenhum deles será poupado; e eles deverão perecer pelo fogo, pela espada e pelos sete últimos flagelos que são descritos no Eclesiástico (39,29-30): o fogo, a espada, a fome e os dentes dos animais ferozes, os escorpiões, o granizo e a morte.

Nestes artigos, pode-se verificar que, para os taboritas, o tempo da vingança

divina e o ano da retribuição em que pereceriam os pecadores e os adversários da lei de

Deus estavam próximos e que ninguém escaparia do juízo de Deus.

Os soldados de Deus iam arrasar a terra e instalar a sociedade dos eleitos sobre as

ruínas dos reinos esmagados. Sonhavam que os reis seriam seus servidores, e que as

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nações que não aceitasse servi- los seria exterminada. Os filhos de Deus passariam sobre

os corpos dos reis, e todos os reinos que estivessem debaixo do céu lhes seriam dados.

O fim deste século “pecador” inauguraria um período de felicidade na terra,

conforme as palavras de Delumeau (1997, p. 105):

A Igreja militante será gratificada com maiores dons que a primeira morada, isto é a Igreja primitiva[...] o sol da razão humana não iluminará os homens: isto significa que ninguém ensinará seu próximo, mas que todos serão ensinados por Deus.Na Igreja militante [em seu reino] cessará toda lei divina escrita. Cessarão também as Escrituras da Bíblia. A lei de Cristo será escrita no coração de cada um, e não haverá mais necessidade de alguém que ensine .

Enfim, apesar de não aparecer a palavra “milênio” nos artigos das Husitska

kronika (Crônicas hussita)s, verifica-se, em seu interior, uma concepção clara do

milenarismo dos taboritas: Cristo voltará à terra e reinará com seus fiéis.

Os taboritas eram revolucionários apocalípticos que acreditavam que a Segunda

Vinda de Cristo e a destruição universal do mundo mal aconteceriam em um futuro bem

próximo. Alguns chegaram a datar a instauração do reino de Deus em 1420. Como tais

eventos não ocorreram, adiaram um pouco mais a data (GONZALEZ, 1980, p.104).

Coincidência ou não, neste mesmo ano os taboritas quebraram todas as conexões com a

Igreja Romana, ordenando bispos e padres, independentemente da aprovação daquela

Igreja.

Em 1421, quatrocentas pessoas foram expulsas de Tabor. Vagavam nus pelos

bosques, cantando e dançando, reivindicando estar no estado de inocência de Adão e

Eva antes da Queda, o que resultou no conhecido nome “adamitas”. Com base nas

observações de Cristo sobre as meretrizes, eles consideravam a castidade um pecado e

passavam a maior parte de seu tempo em contínuas orgias sexuais (DELUMEAU, 1997,

pp. 107-108). Nota-se, todavia, que não há certezas de que este realmente era o

comportamento dos “admitas”, visto que somente os conhecemos através da ótica dos

seus inimigos. Martin Húska, enquanto esteve na prisão, escreveu uma carta a seu amigo

Josef Macek, em que declarava a respeito deste grupo: “uma ferocidade e um fanatismo

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abomináveis, mas uma alma devotada a Cristo e uma fé inabalável na justiça divina”

(DELUMEAU, 1997, p. 108).

João Zizka, após abandonar os taboritas e se refugiar junto aos horebitas, passou

parte de sua vida a perseguir os admitas, que eram acusados, além do desvio doutrinário,

de furtos, roubos, assassinatos, entre outras coisas.

Além dos adamitas, o taborismo deu margem à outra facção, sob liderança de

Pedro Chelsicky, o qual se retirou para uma área rural da Boêmia e fundou uma

comunidade pacifista, rejeitando todo uso da força. Para Chelsicy, o poder político e o

Estado existem apenas como um mal necessário, como um resultado do pecado original,

para manter a ordem no mundo fora da comunidade dos verdadeiros cristãos, onde todas

as relações são governadas pela paz e pelo amor. O laço principal de união entre os

irmãos deveria ser o amor e o exemplo da vida de Cristo e dos apóstolos.

Estes pacifistas sobreviveram às revoluções e contra-revoluções da reforma

boêmia, para se tornar o Unitas Fratrum, os Irmãos Morávios.5 Na Unitas Fratrum

havia três grupos: os iniciantes ou penitentes, os avançados e os perfeitos (os bispos).

Após a pregação e a confissão, administravam-se os sacramentos. O poder supremo na

comunidade era o Sínodo, composto dos clérigos, mas o Concílio era restrito, composto

por dez membros, que exerciam o real poder (DOUGLAS, 1980, pp.139-140).

Os Irmãos Morávios criam que deveriam cumprir somente as leis descritas nos

evangelhos, e não as ordens da Igreja católica. Aceitavam os sete sacramentos e outras

doutrinas católicas. Exigiam de seus bispos integridade, que ministrassem a Ceia com os

dois os elementos: pão e vinho. Compreendiam que, através da fé, Deus estaria presente

nos sacramentos.

Outro pré-reformador do mesmo período histórico é Jerônimo Savonarola (1452-

1498), que se tornou monge da ordem dominicana em 1474, sendo designado para

Florença alguns anos depois. Ele buscava reformar o Estado e a Igreja na cidade, mas a

pregação contra a vida desregrada do papado provocou sua morte por enforcamento

(NICHOLS, 1985, p. 137).

5 - O nome “Irmãos Morávios” foi dado à Unidade dos Irmãos pela primeira vez em 1730 (Cf. Christian History, 1982 no verbete: Moravian Glossary).

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Villari (p.21) comentando a respeito desse episódio declara: Tomado por intenso pesar e movido por uma indignação irreprimível, ao verificar a deteriorização e corrupção da igreja cristã[...] O estado do mundo e da Igreja o preencheram com um pesar de horror que só era aliviado através do estudo e da oração

Mesmo sem chegar às oposições vanguardistas de Wycliff e Huss, Savonarola exigia a Reforma da Igreja. A diferença básica entre ele e Huss e Wycliff consistia no fato de que os dois últimos intentavam defender o princípio da “autoridade bíblica”, enquanto Savonarola estava mais preocupado em reformar a Igreja em Florença, no aspecto moral e não doutrinário 6 (PORTELA, 1997, p.99). No entanto, é justo registrar que Savonarola, juntamente com John Wyclif e Huss, anteciparam o espírito e a obra dos Reformadores. Assim, em muitos lugares, devido à morte dos referidos pré-reformadores, houve fortalecimento do espírito de revolta contra a igreja papal. Além das “inquisições” e assassinatos, a Igreja vivia sob o poder da corrupção de ambições desmedidas, com comunidades negligenciadas pelo clero, convivendo com a falta de disciplina, com a imoralidade tomando conta da vida eclesiástica a cada ano que passava. Essa situação fazia soar o grito por uma reforma da Igreja.

A Reforma Protestante aconteceu em 31.10.1517, com o monge agostiniano Martinho Lutero, nascido no dia 10/11/1483 em Eisleben, na Saxônia. Seu pai era de origem camponesa; ganhou dinheiro nas minas de cobre, sobre a qual tinha direito, chegando a ficar consideravelmente rico. Todavia, quando do nascimento de Lutero, os negócios não andavam tão bem (CARINS, 1990, p.233). Mesmo assim o pai de Lutero, não tendo muitas posses, conseguiu dar boa educação ao filho. Em 1501, Lutero entrou para a Escola de Direito da Universidade de Erfurt, entretanto seu dom e vocação apontavam- lhe os assuntos religiosos.

Ainda que Lutero houvesse terminado o curso de Direito, preferiu, a vida religiosa, entrando na Ordem dos Agostinianos em 1505, onde conquistou prestígio como intelectual. Em 1508, já era professor da Universidade de Wittenberg, apesar de não ser titular, e ter sido contrato para lecionar apenas um semestre no referido ano. Anos mais tarde, viajou para Roma, sede da igreja papal, regressando decepcionado com o ambiente de corrupção e avareza no qual vivia o clero (CAIRNS, 1990, p.234).

Sua preocupação central, e que o levou a tomar tal decisão, consistia na questão da salvação da sua alma. Para um homem medieval, o caminho da salvação era o correto. No mosteiro, começou a travar lutas agonizantes. Havia entrado ali à procura da salvação, mas não encontrou a paz e a segurança de quem está no caminho de Deus. Mesmo tendo uma vida exemplar de piedade, sua alma ardia com o sentimento de pecado e com o pensamento constante de estar debaixo da ira divina. Nichols (1985, p.142) narra: “Para livrar seu pai do purgatório subiu de joelhos a escada da Santa Sé, a

6 - No artigo de Portela, Solano Neto, citado nas referências bibliográficas desta pesquisa, pôde-se adentrar um pouco mais a discussão quanto ao fato de Savonarola ser reformador ou não.

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escadaria que se diz ter sido trazida da casa de Pilatos; repetindo, em cada degrau, o Pai Nosso. Ao chegar ao topo, surgiu- lhe uma pergunta: quem sabe se tudo isto é verdade? Mas isso logo passou[...]”.

Em 1511, foi transferido para Wittenberg, onde se tornou professor de Bíblia, recebendo, ali mesmo, o título de Doutor em Teologia. Ele ensinava a Bíblia no vernáculo. Com o intuito de aperfeiçoar seus ensinamentos, começou a estudar as línguas originais da Bíblia (hebraico e grego). De 1513 a 1515, deu aulas sobre salmos; de 1515 a 1517, sobre Romanos e, depois, Gálatas e Hebreus (CAIRNS, 1990, p.234).

A situação de sua alma angustiada só encontraria paz interior entre os anos 1512 e 1517, ao estudar na epístola aos romanos 1.17: “O justo viverá pela fé”. Este texto despertou sua mente para entender que a salvação é pela graça, e que somente pela fé em Cristo era possível alguém tornar-se justo diante de Deus (CAIRNS, 1990, p.234). “A partir daí, a doutrina da justificação pela fé e a sola scriptura (somente as Escrituras), a idéia segundo a qual as Escrituras são a única autoridade para o pecador procurar a salvação, passaram a ser os pontos principais de seu sistema teológico” (CAIRNS, 1990, p.234). Contra esta verdade, a igreja papal apregoava que a salvação ocorreria pelas obras, pelos sacramentos. Por mais de quatro anos, Lutero trabalhou em Wittenberg, sem romper com a igreja do papa, pelo contrário, tornou-se líder da sua Ordem.

No ano 1517, apareceu em Wittenberg um homem chamado Tetzel, enviado pelo arcebispo Alberto de Mogúncia, para vender indulgências emitidas pelo papa. De toda a parte, muitas pessoas vieram comprar essas indulgências. Elas ofereciam diminuição das penas do purgatório. Essa multidão, porém, em virtude da forte propaganda de Tetzel na venda da sua mercadoria, pensava que, com a compra das indulgências, conseguiria o perdão dos pecados. “Tetzel ensinava que o arrependimento não era necessário para quem comprasse uma indulgência, por si mesma ela era capaz de dar perdão completo de todos os pecados” (CAIRNS, 1990, p.235).

A venda das indulgências chegou até Lutero, que se apresentou contra esse erro. Assim, em 31 de Outubro de 1517, às vésperas do dia de “Todos os Santos”, quando grande multidão comparecia à Igreja do Castelo, em Wittenberg, Lutero afixou as 95 teses que tratavam, particularmente, de mostrar que a Igreja não podia oferecer perdão aos pecados, tão pouco alterar a situação do purgatório, mas somente Deus poderia fazê-lo. As teses, portanto, negavam, em suma, que o papa e a Igreja fossem mediadores entre o homem e Deus, não sendo dignos de perdoar, portanto, os pecados. A partir daí, estava declarada a Reforma da Igreja, ainda que Lutero só fosse excomungado em agosto de 1520, pelo papa Leão X, revelando, em seu intento inicial, não a divisão da Igreja, mas apenas alguns pontos de sua reforma (WALKER, 1967, p.14).

1.3.2. O conceito teológico-educacional de Lutero O pensamento educacional de Lutero reflete sua crença, e deixa claro seu

entendimento de que a educação é fundamental na realização do verdadeiro cristianismo. Por esta razão, propõe os seguintes aspectos relativos à questão educacional, que podem ser vistos na proposta educacional de Comenius.

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1. O Estado deve ser obrigado a prover educação – Ora, se o Estado deve

prover educação para todos, devemos assinalar que sua preocupação é quanto ao dever e

acesso de todas as pessoas em relação à educação. Comentando sobre Martinho Lutero,

Paul Monroe (1979, p.179) declara:

Lutero via claramente a importância fundamental da educação universal para a Reforma e a preconizou insistentemente em suas pregações. O ensino deveria chegar a todo o povo, nobre e plebeu, rico e pobre; deveria beneficiar meninos e meninas – avanço notável; finalmente, o Estado deveria decretar leis para freqüência obrigatória[...]Era opinião de Lutero, ainda, que o Estado tinha o dever de obrigar os seus súditos a enviar seus filhos à escola, da mesma forma que compelia todos eles a prestar serviço militar para sua defesa e prosperidade. Conseqüentemente, a educação deveria ser mantida e dirigida pelo Estado.

Ele apregoava, portanto, uma distinção entre Escola e Igreja, sendo esta uma

crítica ao “sistema” educacional da época. Lutava para libertar a educação da Igreja,

através da efetiva participação do Estado.

2. A educação é dever da família – Analisando os escritos de Lutero,

percebe-se a importância que ele dava à família como uma instituição educativa, na

mesma proporção da escola (MONROE, 1979, p.178). Para ele, a educação deveria

começar dentro de casa e, para aperfeiçoamento, continuar na escola. Possivelmente seu

pensamento estava centrado na vida dos patriarcas do Antigo Testamento, quando eram

os pais os responsáveis por ensinar a lei do Senhor (Deuteronômio 6.1-7 ).

3. O Currículo Escolar – Em sua concepção, a base maior do currículo

escolar deveria conter: latim e grego, que constituíam a base maior do currículo de

Lutero. A estas disciplinas acrescentou o hebraico, que também tentou colocar ao

alcance de todos. É fácil entender a razão de preservar estas línguas do texto bíblico, já

que são elas as línguas das Escrituras. Além disso, ele dava atenção à lógica e à

matemática, dando, também, grande relevância à ciência, à música, à ginástica

(LUTERO, 1995, p. 319).

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4. Tempo de Aula – Em sua Carta aos Prefeitos e Conselheiros das

Cidades Alemãs, Lutero (1995, p. 320) indica seu entendimento a respeito do tempo de

aula, quando diz:

O mundo hoje é diferente, e as coisas são feitas de outro modo. Minha opinião é que os meninos devem ser enviados a estas escolas diariamente por uma ou duas horas e, não obstante, fazer o sérvio em casa, aprender um ofício ou para o que sejam encaminhados, para que as duas coisas andem juntas enquanto são jovens e podem dedicar-se a isso. Do contrário, gastam dez vezes mais tempo com jogos de bolinhas, jogar bola, corridas e lutas..

Nessa declaração, está clara a sua idéia de, no máximo, duas horas diárias na

escola, e o restante do tempo deveria ocorrer em casa, para o aprendizado de algum

ofício, alguma profissão. Portanto, pensava na questão escolar teórica e também na

questão da formação profissional.

As razões pelas quais Lutero defendia, com tanta disposição, a questão

educacional e que iriam influenciar toda a Reforma eram:

1) Estudo das Escrituras – Segundo sua maneira de conceber, as Escrituras

poderiam ser estudadas e interpretadas por todos. Ora, somente conseguiria estudar as

Escrituras quem pudesse ler. Assim, como desejava que a Bíblia se tornasse um texto

comum, não deveria somente traduzi- la, havendo, também, necessidade de educar

pessoas para estudá- la nos originais. Eis a importância da educação.

2) Questão dos Governos – Na mesma Carta aos Prefeitos e Conselheiros das

Cidades Alemãs, Lutero (1995, p. 318) declara:

Ainda que não houvesse alma, ou céu, nem inferno, seria necessário haver escolas para a segurança dos negócios deste mundo, como a história dos gregos e romanos claramente nos ensina. O mundo tem necessidade de homens e mulheres educados, para que os homens possam governar o país acertadamente e para que as mulheres possam criar convenientemente seus filhos, dirigir os seus criados e os negócios domésticos.

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Outro personagem de destaque, na questão educacional da Reforma Protestante

do Século XVI, foi Filipe Melanchton que exerceu influência fundamental na questão

religiosa e educacional da Reforma na Alemanha. Não havia uma cidade, em toda a

Alemanha, que não tivesse modificado as suas escolas, de acordo com o conselho direto

do nobre cristão, e não havia quase nenhuma escola importante, que não contasse com

alguns de seus antigos alunos entre os professores. O prestígio de Melanchton era

notório, pois quando algum príncipe necessitava de um professor para sua universidade

ou para uma cidade, um reitor para suas escolas, ele era consultado e geralmente um dos

seus alunos era o escolhido. Os professores mais ilustres dessa época, tais como Neander

e Trotzendorf, foram seus alunos e outros, como Sturm, eram por ele aconselhados

(CAIRNS, 1990, p. 180). Em Wittenberg, atuou durante os últimos 42 anos de sua

existência e, com isso, remodelou-a com idéias humanistas e protestantes, tornando-se o

modelo de muitas novas Universidades da Alemanha. Escreveu numerosos livros

didáticos e, aos 16 anos, escreveu a gramática grega que veio depois a ser adotada, quase

universalmente, pelas escolas alemãs. A gramática latina adquiriu renome imensurável,

escrevendo, também, a respeito de variados assuntos tais como: dialética, retórica, ética,

física e história, transformados em livros didáticos para as universidades e escolas

superiores protestantes. Assim sendo, é justa a homenagem a Melanchton, o “Preceptor

da Alemanha” (CAMBI, 1999, p.250).

1.3.3. O conceito teológico-educacional de Melanchthon

Na concepção de Melanchton, “a ignorância é a maior adversária da fé, por isso

deve ser combatida (não só no nível da infância) mediante uma radical reforma das

escolas e uma recuperação da autoridade cultural e moral dos educadores” (CAMBI,

1999, p.250). Ao que parece, seu objetivo era fornecer uma formação para exclusivo

benefício dos reformados. Prova disso está em seu discurso inaugural da escola fundada

em1526 em Nuremberg (In laudm novae scolae), onde apregoa que a finalidade da

escola é promover a “piedade evangélica” (CAMBI, 1999, p.250).

Em seu texto Artigos de visitação (1527), percebemos sua forma curricular e o

conteúdo de seu conceito educacional.

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O curso dos estudos está dividido em: a) Primeiro – Destina-se aos principiantes, mormente, à aprendizagem dos primeiros rudimentos do latim, através do estudo de alguns simples fragmentos de Catão e de Donato: b) O segundo – É endereçado predominantemente ao estudo da gramática, através de Terêncio e Virgílio; c) O terceiro – É orientado para a dialética e a retórica, através de Salústio, Lívio, Horácio, Ovídio e Cícero. Neste terceiro nível, os melhores alunos são iniciados no conhecimento do grego e do hebraico, da matemática e das artes. Além de elencar de maneira muito detalhada as matérias de estudo e até mesmo as suas horas de ensino, o plano fornece indicações úteis sobre o método de aprendizagem que dá muito espaço à leitura e à conversação, mais que à gramática e à sintaxe, cuja utilidade não é, todavia, posta em dúvida para um melhor aprendizado e uso da língua. Ainda no nível universitário renova o curso dos estudos com a introdução de novas matérias, entre as quais a matemática, até então ensinada para fins meramente prático-comerciais, e de uma mentalidade humanista geral (filosófica e literária), em vista da realização de uma religião culta e eloqüente (MELANCHTON, apud. CAMBI, 1999, p. 251).

É digno de nota assinalar que, assim como Lutero, Melanchton concebia que as

autoridades civis deveriam financiar as escolas e nomear professores dotados de boa

cultura, a saber, a cultura clássica cujo fator principal seria a possível descoberta da

verdade do texto bíblico (CAMBI, 1999, p.251).

O terceiro vulto da Reforma que destacamos é João Calvino. Calvino nasceu em

1509, na cidade de Noyon, em Picardy, ao norte da França, e morreu em Genebra em

1564. Seu pai era um cidadão respeitado, a quem era possível reservar a renda de um

benefício eclesiástico para a educação do filho, a partir dos seis anos de idade. Dois

aspectos contribuíram decisivamente para o preparo de Calvino (CAMBI, 1999, p.252):

primeiro ter estudado na Universidade de Paris, encontrando-se com Guilherme Cop7 e

segundo, ter conhecido, também, as idéias protestantes através de seu primo Pierre

Olivetan8.

Encerrando seus estudos humanísticos, seu pai enviou-o para a Universidade de

Orleans, a fim de seguir uma carreira jurídica. Em se transferindo para a Universidade

de Bourges, em 1529, deixou um comentário sobre o De Clementia, de Sêneca, em 7 - Guilherme Cop, médico de Francisco I, foi um dos convertidos aos ideais reformados e seu filho seria reitor da Universidade de Paris (Ver Biéler, p. 115).. 8 - Pierre Olivetan, primo de Calvino, converteu-se à fé reformada, influenciando posteriormente a decisão de Calvino (Biéler, p.115)

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1532, que marcou o ápice da influência humanística sobre a sua vida (CALVINO, 1990,

p. 6).

Assim, entre a conclusão do comentário e o fim do ano seguinte, 1533, Calvino

converteu-se, adotando as idéias da Reforma. Forçado a abandonar a França em 1534

por colaborar com Nicholas Cop9, reitor da Universidade de Paris, na elaboração de um

documento recheado de humanismo e de reforma, seguiu para Basiléia no início de 1537

(BIÉLER, 1990, p. 122).

Quando Guilherme Farel (1489-1565), estabeleceu os princípios reformados em

Genebra, percebeu que necessitaria de alguém administrativamente capacitado. Em

1536, Farel encontrou-se com Calvino e solicitou sua ajuda. Calvino recusou-se, porém

Farel advertiu- lhe, dizendo que Deus o amaldiçoaria se não ficasse. Impelido pelo medo,

resolveu ficar. Ele e Farel trabalharam juntos até serem exilados em 1538.

Calvino foi ministro de ensino de Genebra em 1536 (CALVINO 1990, p. 6), ano

em que terminou sua obra As Institutas da Religião Cristã. Tinha, então, 26 anos de

idade. A princípio, Calvino desejava escrever apenas “certos rudimentos” para o Rei da

França, Francisco I, e buscava defender os protestantes da França, que sofriam por sua

fé. Nela, Calvino pedia a Francisco I que compreendesse as idéias da Reforma

(CALVINO, 1990, p. 13).

Esta primeira edição, portanto, era de caráter essencialmente apologético. Cairns

(1990, p.257) escreve: “Foi a perseguição aos protestantes franceses que levou Calvino a

publicar A primeira edição das suas Institutas, em 1536; sua intenção era defender os

cristãos franceses como pessoas leais e sugerir o fim da perseguição”.

Esta edição continha a discussão em torno dos dez Mandamentos; do Credo

apostólico; da fé; da oração, tomando como modelo o Pai Nosso; dos dois sacramentos;

dos perigos da doutrina romana acerca da ceia do Senhor; e finalmente, da liberdade

cristã do cidadão, que relacionou à liberdade política (CAMBI, 1999, p.252). A obra

passou por várias edições, até a final, em 1559.

9 - Nicholas Cop faz um discurso que citava os escritos de Lutero, demonstrando ser a favor de uma reforma conforme os princípios reformados. Devemos, todavia, preconizar que não se tratava de uma proposta de um cisma na igreja, mas reforma de alguns princípios errôneos que ela vinha apresentando (ver Biéler, pp. 121,122)

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Em 1537, os dois amigos, Guilherme Farel e Calvino, conseguiram a aprovação

de um decreto que estabelecia que a ceia do Senhor seria celebrada em ocasiões pré-

estabelecidas; um catecismo de crianças seria preparado; o canto congregacional seria

adotado e os membros professos, sob disciplina severa, seriam excomungados

(CAIRNS, 1990, p.254).

Em 1540, Calvino pastoreou refugiados franceses em Estrasburgo, onde dirigiu a

Reforma e ensinou teologia. Nessa época, casou-se com Idelette de Bure, viúva de um

pastor anabatista, convertido à fé reformada. Seu único filho, Jacques, nascido em 20 de

Julho de 1547, não viveu mais que alguns dias, morreu criança e, em 1549, Idelette

também faleceu. Deve-se ainda observar que, na cidade de Estrasburgo fez amizade com

Melanchton (CALVINO, 1990, p. 7), e talvez por isso, o intento de Calvino, desde 1541,

foi criar escola ao lado dos templos calvinistas, conforme Biéler (1990, p. 154):

Segue-se a ordem das escolas que diz respeito ao ministério dos mestres. Prevêem as ordenanças, já em 1541 , a criação de uma escola destinada à formação dos pastores e magistrados; esta, entretanto, não aparecerá senão em 1559.

1.3.4. Conceito teológico-educacional de Calvino

Ao se estudar o conceito educacional de Calvino, deve-se, antes de tudo, alertar

para o fato de que ele nunca foi um filósofo da educação (MOORE, apud. CAMPOS,

2000, p.43). Não obstante, nota-se a preocupação de Calvino com a formação dos

cristãos, pois se dedicou à criação de escolas, acreditando que o ensino seria

extremamente importante para a concretização de sua obra, em Genebra.

Biéler (1990, p.137), comentando a respeito da proposta educacional de

Calvino, declara:

[...] O artigo terceiro se reporta à introdução do catecismo para a formação dos cristãos, notadamente das crianças. A instrução é indispensável para que cada um venha a confessar a fé professada pela Igreja, o que não havia podido fazer pessoalmente quando do batismo. Observar-se-á, aqui ainda, o senso pedagógico de Calvino, insiste ele em que a substância contida no catecismo, válida para todos, seja

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ensinada de maneira diferente segundo a inteligência e a idade de cada adolescente. E requer a colaboração ativa dos pais na formação espiritual dos filhos.

Com o mesmo pressuposto, Moore (apud. Campos, 2000, p.44) afirma:

Está claro em seus escritos que Calvino estava perspicazmente cônscio da importância do ministério do ensino para a concretização de sua obra em Genebra. Por exemplo, essa consciência se vê claramente manifesta em sua carta ao leitor apresentando a edição de 1559 de suas Institutas. Nela ele descreve a ida para Genebra em termos educacionais, sendo a natureza de sua própria obra “cumprir o ofício de mestre na igreja”.

Há necessidade, neste mesmo contexto, de se recordar Wilson Ferreira (1990,

pp.183-4):

Assim, não se pode ver a obra de Calvino atentamente sem se perceber que não somente Educação está no âmago de seu programa e do seu grande sonho, a Igreja de Cristo, mas que, também era parte integrante, inerente e indispensável, segundo o seu entender, da economia do Reino de Deus entre os homens, com vistas, ao mais alto propósito – a glorificação do seu Criado[...] Não há, para Calvino, uma separação entre o ensino, quer seja de ciência, língua e história, é o ensino religioso, porque todo o ensino visa ao aperfeiçoamento do homem para a sua vocação, e essa vocação ou chamado divino tem por fim o cumprimento de um papel na sociedade na qual o indivíduo se realiza, pois, além das bênçãos que recebe para si na vida cotidiana, atinge o mais alto propósito da exis tência humana – a Glória de Deus[...] Era assim que Calvino queria, Igreja e Escola de mãos dadas no grande propósito de bem servir o homem e glorificar a Deus.

Diante disso, assimila-se que fazia parte de sua preocupação e missão, a busca

de uma educação de qualidade. Alguns pressupostos educacionais de Calvino devem,

aqui, ser assinalados.

1. A educação deve ser iniciada com as crianças

Ora, o pressuposto básico de Calvino é que a ignorância é a mãe da heresia

(FERREIRA, 1990, p.183). Pode-se questionar como poderia um povo inculto em todas

as áreas, absorver os ensinamentos de homens bem-preparados. O povo também tinha

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que ser bem preparado para poder receber e apreciar as instruções. Sendo assim,

começou a preparar seu trabalho inicial. A solução era começar a educar as crianças

(FERREIRA, 1990, p.183).

Ele desejava que as crianças, desde a mais tenra idade, de Genebra viessem a ser

úteis à sociedade, mas que suas mentes fossem formadas pelos ensinos das Escrituras.

Ele queria futuros cidadãos de Genebra bem preparados não somente na fé bíblica, mas

também “na linguagem e humanidades” (CAMPOS, 1990, p.44).

2. A Igreja deve supervisionar toda a educação

Este pressuposto infere-se naturalmente da seguinte proposição: se as crianças

deveriam ser ensinadas por meio das Escrituras, segue necessariamente que a Igreja é a

mais apta para supervisionar a educação e os seus ministros assumiriam esta tarefa.

Declara-nos Campos (1990, p.45):

Chegou (Calvino) à conclusão de que a igreja deveria tomar a frente dessa tarefa (educacional). Ela deveria ser a agência através da qual Genebra sairia da ignorância[...]A igreja devia supervisionar toda a educação[...]Os mestres da igreja deveriam servir na igreja propriamente dita, na educação bíblica e teológica, mas também deviam exercer o seu magistério nos colégios, nas mais variadas ciências, a fim de que os alunos viessem a ser bons cidadãos e participassem futuramente do governo civil.

Não se pode esquecer-se que, para este Reformador, mesmo a Igreja tendo

primazia no ensino, o lar e o governo civil não estariam eximidos de tal

responsabilidade. Os pais deveriam envolver-se na educação dos filhos. Cabia- lhes a

primeira educação, ou a responsabilidade primária. O governo civil deveria prover

meios para que todos estudassem (Campos, 1990, p.45). Prova disso é que, em 1536, ao

assumir o seu trabalho na igreja de Genebra, Calvino apresentou um plano ao conselho

municipal que incluía uma escola para todas as crianças, na qual elas teriam ensino

gratuito (CAMPOS, 1990, p.47).

3. A Escola

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Em 5 de Junho de 1559, foi inaugurada, em Genebra, a escola desejada por

Calvino, a Academia, tendo como reitor Theodore Beza (1519-1605). Calvino entendeu,

mesmo com todos os seus esforços para fundá-la, que Beza estaria mais qualificado do

que ele para dirigi-la (REID, 1990, p.98).

A Academia era dividida em duas partes principais:

Schola Privata – Era o colégio dividido em sete classes, sendo, o sétimo, seu

mais alto grau. Em cada ano, no final de abril, o aluno deveria apresentar um ensaio em

francês e, se aprovado, tinha de traduzi-lo para o latim. Depois de aprovados, os

melhores alunos da classe recebiam prêmios e promoções.

Após três anos na Academia, depois de certa fluência no latim e no francês,

iniciavam o estudo das Epístolas de Cícero; a Eneida e as Bucólicas de Virgílio; das

Orações, de Isócrates e outras obras. Depois da fluência do latim, passavam ao grego,

onde liam Sêneca, Xenofonte, Demóstenes e Homero. O conhecimento das línguas era

fundamental para o ensino básico da Academia (CAMPOS, 1990, p.51).

Schola Publica - Era a continuação do colégio; fornecia estudos em nível

superior. A tônica recaía sobre as artes e a teologia, que eram meios para o

conhecimento de Deus através da revelação geral e da especial10. A Universidade

preparava os alunos de uma maneira também prática, pois o alvo de Calvino era treinar

os discentes para suas responsabilidades como ministros da Palavra e dirigentes do

governo civil. Além disso, os alunos tinham vinte e sete horas semanais de preleções

públicas. Eles efetuavam a matrícula, assinavam a confissão de fé e freqüentavam as

preleções. Na escola superior, havia uma rígida supervisão e grande ênfase à

importância da adaptação de assunto e método de ensino à idade e capacidade dos

alunos. Os universitários deveriam aprender a avaliar criticamente as idéias lidas e

expostas nas aulas. 10 - Revelação Geral e Especial são termos teológicos, cujo conteúdo se refere às forma s de manifestação de Deus. Revelação Geral é a revelação de Deus por meio das coisas criadas, a natureza, as estrelas, enfim, o cosmos. A Revelação Especial está contida somente nas Escrituras. Assim, as artes revelariam o belo, as obras da natureza, pois os professores destas disciplinas ensinariam ciência física e matemática. Em suma, investigando a natureza, o homem poderia conhecer melhor o seu Criador. A teologia, o ensino real e estrito de Deus, seria a revelação especial, onde Deus nos ensina Sua vontade. Para maiores esclarecimentos sugerimos a leitura da Epístola de Paulo aos Romanos capítulo 1. 18-32 e o Sl 19. Especificamente, o Salmo 19 nos mostra as duas formas de revelação de Deus: a natural e a através da lei perfeita.

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4. O Currículo

O currículo da Academia de Genebra era composto de:

a) Ciência Física e Matemática – Por meio destas disciplinas o homem poderia

descobrir Deus, através da Revelação Geral;

b) Retórica – Tanto os ministros como administradores civis e advogados

necessitavam dessa arte de convencer as pessoas;

c) Hebraico e Grego – Isso para melhor compreender as Escrituras. As do Velho

Testamento (hebraico) e as do Novo Testamento (grego) além de apreenderem

as obras de Aristóteles, Platão e outros.

d) Teologia – Mãe de todas as ciências, dizia Calvino. As discussões teológicas,

todavia, não eram realizadas na Schola Privata, ali apenas exercícios

devocionais deveriam ser praticados.

Na Schola Privata, eram ministradas aulas de gramática, lógica, matemática,

física, música e línguas antigas. Todos os grandes autores clássicos deveriam ser

estudados: Cícero, Virgílio e Ovídio (Latinos); Heródoto, Xenofonte, Homero,

Demóstenes, Plutarco e Platão (Gregos) e havia, ainda, um Departamento de Hebraico.

O Currículo continha o pressuposto Reformado, e seus professores eram

ministros ou leigos, indicados por ministros da Igreja, e deveriam refletir a visão

Reformada no ensino11.

Calvino prescrevia que as aulas deveriam ser ministradas com qualidade

imensurável, pois a Reforma Protestante careceria de homens devidamente preparados

para o exercício do Magistrado e, também, para o ministério eclesiástico, tendo ambos

os grupos a responsabilidade de utilizar seus ofícios para glorificar o nome de Deus.

11 - A visão Reformada compreendeu alguns princípios fundamentais: Os eleitos são salvos pela graça do Trino Deus. Deus Pai, os predestinou, marcou-lhes para a salvação, antes da fundação do mundo. Deus, o Filho, colocando-se na posição de Servo, derramou seu sangue, por estes a quem o Pai predestinou para a vida Eterna. Deus, Espírito Santo, aplica no coração dos eleitos a salvação eterna, tocando-lhes na alma, chamando-lhes irresistivelmente, de forma que são convencidos pelo Espírito Santo, e passam a crer em Cristo, tendo, assim, a Vida Eterna. Disto nota-se que a salvação na concepção reformada calvinista parte do Ser Divino e a permanência neste estado de graça perdura pelo próprio poder de Deus. Assim, toda a glória deve ser de Deus e não, do homem. O homem foi agraciado por Deus. Ora, a educação deve refletir a glória de Deus, não podemos fazer nada que turve o Deus Soberano (LOPES, 1992, pp. 20-50).

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Podemos resumir a educação, na concepção de Calvino, em dois pontos

centrais:

1) Remediar a mãe de todas as heresias, a ignorância, mormente com o

ensino das Escrituras no quadro referencial Reformado, ou seja, a

pregação de que Deus é Soberano e, sendo assim, deve ser adorado por

todos os eleitos.

2) Preparar os jovens para o magistrado. Eles deveriam assumir o governo e,

para tanto, deveriam exercitar a intelectualidade e piedade.

O ensino deveria refletir a glória de Deus e o conteúdo das aulas não poderia

basear-se somente nos escritos pagãos. Antes, a base central deveriam ser as Escrituras,

como afirma o apóstolo Paulo: “Em tudo o que fizerdes, seja em palavras, seja em ação,

fazei-o, em nome do Senhor Jesus, dando por ele graças a Deus Pai” (Colossenses

3.17).

O Sínodo de Dort (1618-1619), realizado na Holanda, demonstrou a

preocupação dos calvinistas com a educação, ao organizarem seu sistema de educação.

A concepção educacional calvinista prescrevia instrução religiosa no lar e na igreja, e o

estabelecimento de escolas pelas autoridades civis. Henry Dunshee (1883, pp. 3-4)

relata os princípios educacionais calvinista adotados pelo Sínodo de Dort:

A fim de que a juventude cristã possa ser cuidadosamente instruída nos princípios da religião, e educada na piedade, três formas de catequese deveriam se empregadas. I No lar, pelos pais. II. Nas escolas, pelos professores. III. Nas igrejas pelos ministros, anciãos e catequistas especialmente designados para este fim. Para que estes possam empregar diligentemente seus esforços, os magistrados cristãos serão solicitados a promover, pela sua autoridade, obra tão sagrada e necessária, e a todos aqueles que tenham a supervisão de igrejas e escolas será exigida uma atenção especial para este assunto.

Com o mesmo princípio, o Sínodo de Dort, ressalta a resposabilidade dos pais

na educação de seus filhos:

A função dos pais é instruir atentamente seus filhos e todo o pessoal doméstico nos princípios da religião cristã, de maneira adaptada às suas respectivas capacidades; séria e cuidadosamente adverti-los

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sobre o cultivo da verdadeira piedade; obrigar seu comparecimento pontual ao culto familiar, e leva-los para ouvir a Palavra de Deus...Pais que professam a religião e são negligentes neste trabalho, serão seriamente admoestados pelos ministros; e se o caso exigir, serão censurados pelo Consistório, de que poderão vir a ser privados de seus deveres (DUNSHEE, 1883, pp. 3,4).

Neste contexto, a educação calvinista, preconizava a importância de se

estabelecerem escolas, nas quais os pobres estudariam gratuitamente, conforme as

palavras de DUNSHEE (1883, pp. 3-4):

Escolas, nas quais os jovens serão convenientemente instruídos nos princípios da doutrina cristã, serão instituídas não só nas cidades, mas também nos municípios e aldeias, onde até agora nenhuma tenha existido. Solicitar-se-á à magistratura cristã que pessoas qualificadas sejam empregadas e capacitadas a se dedicarem ao serviço e especialmente que as crianças dos pobres possam ser gratuitamente instruídas, e que não sejam excluídas dos benefícios das escolas. Neste trabalho serão empregados exclusivamente os que sejam membros da Igreja Reformada, tendo certificados de uma fé honesta e vida piedosa, e de serem bem versados nas verdades do catecismo. Devem assinar um documento declarando sua crença há Confissão de Fé e no Catecismo de Heidelberg, e prometendo que darão instrução catequética à juventude dentro dos princípios da verdade cristã, de acordo com o mesmo[...]

Por fim, o Sínodo de Dort, prescrevia ainda que as autoridades civis deveriam

visitar as escolas com objetivo claramente definido:

A fim de que possam ser obtidas da diligência dos mestres-escolas o conhecimento necessário e o aperfeiçoamento da juventude, será dever dos ministros, com um ancião, e, se necessário, com um magistrado, visitar todas as escolas, tanto particulares quanto públicas, freqüentemente, a fim de incentivar os professores a uma zelosa atividade; encorajá-los e aconselhá-los no dever de catequizar e fornecer-lhes um exemplo interrogando-os, dirigindo-se a eles de maneira amistosa e afetuosa, e incitando-os à piedade e diligência iniciais. Se algum dos professores for considerado negligente ou perverso, deverá ser seriamente admoestado pelos ministros, e, se necessário, pelo Consistório, em relação às suas funções (DUNSHEE, 1883, p. 4).

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Esta declaração de política pelo Sínodo tornou-se padrão para a educação

calvinista em todos os países, até onde as condições locais permitissem. Deu liderança

educacional ao povo da Holanda, mas igualmente inspirou uma ação progressista entre

os calvinistas da Escócia, Inglaterra, França e América. “As medidas reformistas dos

alemães, inclusive as de Evenius, Ratichius e Kromayer, foram definidamente

inspiradas pelos calvinistas; e o mesmo era verdade para as inovações de Comenius”

(EBY, 1978, p. 146)

Em síntese, uma das tônicas da Reforma Protestante refere-se à universalização

do ensino. Apesar da diferença de ofício, tanto homens quanto mulheres deveriam

estudar. Os reformadores acreditavam que somente através da educação poderiam ter

príncipes, clérigos e uma sociedade melhor, pois a educação seria necessária para o

estudo do texto bíblico, por exemplo.

Ora, este pensamento influenciou grandemente Comenius, visto que também ele

propôs, durante toda sua vida, uma educação universal, independentemente da classe

social, para ambos os sexos (LOPES, 2003, p.113).

Outro fator, do pensamento dos reformadores, diz respeito à faixa etária. Todos

eles propunham que a educação deveria começar desde a mais tenra idade. Comenius

igualmente defendeu, em todas as suas obras que a educação deveria ser iniciada com

crianças (COMENIUS, 1997, p.81). A razão dessa concepção é que a “mente humana é

semelhante à cera, que enquanto mole, pode ser plasmada e replasmada; endurecida,

porém, se quebra” (COMENIUS, 1997, p.79).

Isto posto, observou-se as influências culturais que marcaram a maneira de

pensar e agir de Comenius. Tais influências, que também refletiram nas produções

literárias, podem ser vistas claramente no capítulo a seguir, abordando-se o contexto

histórico em que viveu Comenius.

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CAPÍTULO 2 – CONTEXTO HISTÓRICO E AS PRODUÇÕES LITERÁRIAS

DE COMENIUS

Demonstradas as influências culturais, provindas de diferentes regiões e

pessoas, que marcaram o pensamento de Comenius, ou sejam, a proposta antropológica-

educacional e humanista da Renascença, a concepção religiosa-educacional dos

hussitas-taboritas e dos reformadores Lutero, Melancton, Calvino e o Sínodo de Dort, os

quais propunham a universalização do ensino, e ressaltavam a educação como dever da

família e do Estado importa dirigir a análise ao contexto próximo a Comenius.

Sendo assim, este capítulo terá como objetivo contextualizar o período histórico,

social, político, econômico e religioso de Comenius e demonstrar as obras literárias por

ele produzidas em seus respectivos momentos de vida.

2.1. A Morávia no limiar do Século XVII

Inicia-se, este capítulo, compreendendo a região da Moravia, que fazia parte da

coroa Tcheca, englobando, para além da Boêmia, a Silésia e as duas Lusácias. Formava,

no interior do estado tcheco, uma pequena república aristocrática sobre a qual o rei tinha

poder limitado e dispunha de autonomia garantid a por uma constituição livre (CAULY,

1995, p. 22).

No plano econômico, a emergência de novas estruturas pré-capitalistas entrava

em contradição com as velhas estruturas feudais. No plano político, a autonomia só

podia ser adquirida indo contra as tendências absolutistas do imperador, e a

germanização das camadas mais elevadas da sociedade tornava árdua a manutenção da

homogeneidade da cultura tcheca. A questão religiosa, por seu turno, só aparentemente

estava solucionada, e o conflito entre católicos e protestantes, por ser menos sensível

que noutros locais, continuava existindo. Apesar de os católicos representarem apenas

dez por cento da população e a Moravia ser considerada oficialmente católica (CAULY,

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1995, p. 23), dois terços eram protestantes, das diversas confissões: luteranos,

calvinistas, anabatistas (PÁNEK, 1991, pp. 7-16). De maneira que, devido ao reduzido

número de católicos naquela região, aqueles países eram chamados pelo papa e seus

emissários de sementeiras de heresia (ARAÚJO, 1996, p.34).

A Constituição não protegia menos os protestantes do que os católicos, o que

gerava desconforto e insatisfação ao papa. Com a liberdade religiosa, em 1556, os

jesuítas fundaram o Collegium nordicum em Olomouc. Sua instituição tinha como

objetivo formar missionários que deveriam preparar o regresso do catolicismo nos

estados tomados ao luteranismo e, ainda, preparar sua expansão, nomeadamente na

Polônia, na Ucrânia. Nesta perspectiva, a Morávia tornava-se a retaguarda de um

empreendimento sistemático de reconquista do catolicismo à unidade quebrada da

cristandade (CAULY, 1995, p.24). Sendo assim, os colégios jesuítas nos territórios

Habsburgo passaram de quatro em 1561 para cinqüenta em 1650 (CAULY, 1995, p.40).

Bohumila Araújo (1996, p.34), contextualizando este momento, afirma que tal

objetivo, apoiado pela casa de Habsburgo, encontrou forte resistência nas camadas

sociais não católicas:

Convém lembrar que desde que os Habsburgos ascenderam ao trono da Boêmia (em 1526), começa a existir a idéia de unir os países da Coroa Tcheca com a Áustria e Hungria numa monarquia centralizada para diminuir a influência da nobreza (na sua maioria protestante), aumentando o poder do monarca. Os Habsburgo cedo perceberam que a única igreja disposta e capaz de reforçar a autoridade do monarca, seria a Igreja de Roma. Tanto a população como os nobres pertencentes ao protestantismo, são pressionados a converter-se à religião católica. Esta linha política dos Habsburgos encontra de imediato uma forte resistência por parte de todas as camadas sociais não católicas.

Assim, em 1592, a Morávia estava inserida em conflitos políticos, religiosos e

sociais, acarretando guerras, violência, injustiça, e a falta de liberdade, tão destacada

anteriormente por Fernando I, ao declarar, à dieta de Brno em 1550, que a Morávia era

um país livre (CAULY, 1995, p. 23). Adicionado a isto, é mister rememorarmos a

guerra das Províncias contra a Espanha, na qual se haviam alistado numerosos nobres

morávios, mas, sobretudo, nos seus limites orientais, esses “confins húngaros”, como

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lhes chamava Comenius e a guerra contra os turcos que tivera o seu início em 1592 e

que constituía uma grave ameaça para a Morávia (CAULY, 1995, p.24).

2.2. A proposta educacional dos Irmãos Morávios

No contexto da expansão da Reforma, encontra-se o casal, Martinho, eslavo,

originário de Komna, moleiro de profissão e Ana, sua mulher. Ambos professam a fé

cristã protestante, sendo que Martinho era um membro respeitado da União dos Irmãos

Morávios (CAULY, 1995, p.31).

Carlo Ginzburg (1987, p. 220), em seu ensaio sobre o trágico destino do italiano

Monocchio, apesar da diversidade geográfica que viveu aproximadamente na mesma

época que o pai de Comenius, e que o situa no mesmo plano da taverna e da loja

permite imaginar a implicação da profissão de moleiro na vida de Comenius, facilitando

a iniciação do referido jovem nas querelas da época, visto que o afastado moinho era

cenário adequado para a discussão das questões suscitadas pela completa

desorganização eclesiástica vigente.

Percebe-se, portanto, que o filho de moleiro cresce num centro privilegiado de

discussão, um lugar de encontros, de relações sociais, num mundo predominantemente

fechado e estático (KULESZA, 1992, p.25). Desta forma, Comenius pôde ter contato

com as discussões de seu tempo. Ali ouviu, junto ao pai, a respeito dos problemas

educacionais, políticos, eclesiásticos e isto o influenciou, demonstrando mais tarde sua

coragem para lutar, de formas variadas, por um mundo onde a paz fosse o centro.

Além do princípio de que a profissão do pai, enquanto moleiro, privilegiava a

discussão, verifica-se que os Irmãos Morávios, nos dias de Comenius, era um pequeno

grupo em número, mas com grande influência cultural e espiritual. Neste ínterim, faz-se

necessário compreender a visão educacional do referido grupo.

Na análise histórica dos Irmãos Morávios, a educação sempre foi um dos pilares

deste grupo religioso. A congregação dos Irmãos Morávios, remonta ao Século XV com

John Huss (1369-1415) que além de líder religioso, foi reitor da Universidade de Praga.

Desde cedo os Irmãos Morávios descobriram que uma das formas fundamentais para

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salvaguardar a unidade entre os Irmãos seria por meio da educação, que se tornou,

tradicionalmente, um dos aspectos mais fortes deste grupo religioso.

Tal ênfase fez com que as escolas dos Irmãos Morávios, incluindo a

Universidade de Praga (1348), fossem consideradas entre as melhores da Europa na

época de John Huss e também nos dias de Comenius. A maioria dos professores tinha o

grau de mestre, e era motivo de orgulho o fato de terem passado pela Universidade de

Praga, autoridades como o matemático João Kepler e o pensador Giordano Bruno, que

ali lecionaram.

Gasparin (1994, p. 125), comentando a educação dos Irmãos Morávios, afirma:

O ideal era a educação coletiva e mutual. A unidade dos Irmãos, que retomava a concepção primitiva da Igreja militante, era uma comunidade em que todos educavam a todos, sem uma hierarquia verdadeira, e todos se submetiam igualmente e por toda vida[...] O objetivo da educação tinha caráter cristão. Era um efeito do batismo, em que a criança, uma vez batizada, devia ser educada de modo a poder optar, mais tarde, pela fé bíblica.

Em outra parte de seu livro, Gasparin (1994, p.29) ratifica que a educação fazia

parte do conceito dos Irmãos Morávios, e que foi fator predominante na vida de

Comenius: “A luta pela dignidade e pelo direito à instrução do indivíduo e de todos,

bem como a luta pela verdade e pela justiça exprimia o conteúdo da concepção hussita e

comeniana de humanismo e de educação”.

Para os Irmãos Morávios, o mesmo princípio regia a teologia e a pedagogia,

apesar de compreenderem que não existia autoridade suprema senão a da Bíblia e

nenhuma Igreja estaria autorizada a erigir-se como poder absoluto no sentido de

controlar as Escrituras e a sua interpretação (CAULY, 1995, p. 32). Com essa dupla

preocupação, teologia e pedagogia, traduziram a Bíblia, do hebraico e grego, para sua

língua materna, a célebre versão de Králice (COVELLO, 1999, p.16), objetivando que

pais, mães, esposos, noivos, crianças e jovens pudessem examinar as Escrituras, de

maneira que, no seio da comunidade dos Irmãos, a educação religiosa transformava-se

numa religião da educação enquanto meio de conduzir as almas à verdade e à salvação

(CAULY, 1995, p.32).

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A educação, portanto, não deveria se limitar apenas à transmissão do saber, mas

sim a uma educação religiosa, por meio da qual a criança, o bem precioso, e todas as

faixas etárias deveriam aprender os princípios do verdadeiro cristianismo. Cauly (1995,

p. 32), ao comentar a relação teologia-pedagogia, pontua:

A aprendizagem era um exercício contínuo de piedade, em uma prática de meditação interior, um estado em que a alma pode ler em si própria aquilo que nela se inscreveu, para se entregar na meditação a uma decifração do eu pelo eu [...] a leitura e a escrita são, conseqüentemente, práticas reflexivas que deverão ultrapassar o nível da actividade simbólica e incitar à actividade espiritual. Ler e meditar quotidianamente constituem um exercício de piedade e de construção para as crianças, que devem progressivamente renascer ao educar-se (donde o significado pedagógico desse baptismo).

Assim, a educação serviria ao seu fim supremo que era o conhecimento de

Deus. Ora, esse aspecto influenciará Comenius, que prescreve a Didática, não

puramente com objetivos pedagógicos, mas que o pedagógico, ali detalhado, deve servir

para a aproximação de Deus, demonstrando-nos que, em sua concepção, a teologia e a

pedagogia estão intimamente entrelaçadas.

Tal é a razão de o ambiente teológico-pedagógico, proposto pelos Irmãos

Morávios, proporcionar ao mundo um dos maiores pedagogos de todos os tempos, João

Amós Comenius, que influenciará as questões educacionais de todos os tempos

(GASPARIN, 1994, p.26).

2.3. A vida e as produções literárias de Comenius

João Amós Comenius nasceu em Nivnice, na cercania de Uherský Brod,

Morávia, hoje República Tcheca, em 28.03.1592. Alguns comeniólogos, Covello por

exemplo, sugerem que Comenius tenha nascido na cidade de Uherský Brod e não em

Nivnice. Todavia, Bohumila Araújo (1996, pp.33,5) justifica que o local provável do

nascimento de Comenius é de fato Nivnice, baseando-se em dois princípios: a) Uma

solene assinatura, feita pela própria mão de Comenius nas suas memórias Clamores

Eliae (1987, p.31), como “Jan Amos Seges Nivnice”; b) Era costume, que por sinal

sobreviveu até o século XX, de enviar os órfãos, pessoas doentes ou desprovidas, aos

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cuidados dos órgãos administrativos do local de nascimento. Ora, ao se tornar órfão, em

1605, Comenius fora enviado aos cuidados dos Irmãos Morávios em Nivnice,

testificando o local de seu nascimento. De maneira que é mais próprio compreender que

Comenius tenha nascido na cidade de Nivnice.

Cauly (1995, p.31) afirma que pouco se sabe a respeito dos dez primeiros anos

da vida de Comenius, pois grande parte de sua infância é desconhecida. Daí a dúvida de

Cauly a respeito de Comenius ter freqüentado uma escola regularmente em Nivnice.

Mediante pesquisa prévia, pôdese verificar que, comumente, grande parte dos

pesquisadores a respeito de Comenius parecem comentar sua vida a partir dos doze

anos. Dentre eles Araújo (1996, p.35), que após comentar o nascimento de Comenius,

passa imediatamente para a idade dos doze anos, não enfatizando sua infância.

A razão de tal comportamento pode consistir no princípio de que a vida de

Comenius começou a ganhar relevo e contornos de forma dramática com os

acontecimentos que fizeram dele prematuramente um órfão, precipitando o fim da sua

infância.

O pai, Martinho, morreu em 1604, precedendo de dois anos a morte da mãe,

Ana, e das suas duas irmãs, Ludmila e Suzanna, vítimas de uma epidemia, deixando

Comenius abandonado.

Comenius foi levado, então, para Nivnice, onde residiam seus tutores, pois era

costume enviar os órfãos aos cuidados dos órgãos administrativos do local de

nascimento (ARAÚJO, 1996, p.35). Os tutores demonstraram pouca preocupação com

sua formação intelectual. Sua tia, Suzanna Nosalová, entretanto, conduziu-o para uma

escola dos Irmãos Morávios, na aldeia de Stráznice, onde aprendeu os rudimentos de

leitura, escrita, cálculo e catecismo (COVELLO, 1999, p.17), estudando ali por um ano

e meio. Esta oportunidade teria despertado em seu espírito o anseio de continuar

estudando, procurando saber mais a respeito das variadas formas do conhecimento.

Entretanto, em 1605 ocorreu a invasão de Stráznice pelos exércitos de István

Bocskaí, que teria incendiado a referida cidade, em 6 de maio de 1605, forçando a

maioria dos seus habitantes a fugir de suas casas, abrigando-se nas regiões

circunvizinhas (CAULY, 1995, pp. 33,34).

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Devido às vicissitudes que estavam ocorrendo na Morávia, Comenius pouco

freqüentou a escola (CAULY, 1995, p.34), refletindo, de certa forma, em sua educação,

que, conforme ele dirá mais tarde, deixou-lhe lacunas no aprendizado, obrigado que foi

a se manter distante dos meios cultos e educacionais de sua época, como era de se

esperar de qualquer jovem naquela situação. Em contrapartida, terá uma concepção

fundamental das coisas, que não será estranha à orientação realista do seu pensamento

pedagógico, conforme afirma Cauly (1995, p.34):

Jamais fará a separação entre o desenvolvimento das faculdades e o domínio das coisas pela acção, e qualquer teoria coerente da educação deve tomar em linha de conta o facto de que a criança é, por natureza, um ser de acção que desenvolve gradualmente o seu pensamento ao coordenar as suas operações. As insistentes metáforas ligadas à agricultura e ao artesanato nos textos pedagógicos (em particular a Didáctica Magna) são disso testemunho: a experiência das coisas é fundamento de um pensamento que não deixa de errar quando perde a referência ao real e a possibilidade de agir sobre ele.É para esta escola fundamental das coisas e, mais geralmente, da natureza, freqüentada precisamente por camponeses e artistas, que remete uma escola que deve cultivar as faculdades sensíveis e inteligíveis da criança, ao alargar a experiência primeira das coisas e da acção sobre as coisas.

Após quase quatro anos sem ir à escola freqüentemente, mas aprendendo na

prática com a natureza, o jovem Comenius, com 16 anos de idade, matriculou-se na

escola latina de Prerov, no ano de 1608, a fim de aprender o latim e as artes liberais

como a gramática, a retórica e a dialética.

A razão que levou Comenius a ser encaminhado a Prerov somente no ano 1608

consistiu no princípio de que seu tutor, proveniente do grupo dos Irmãos Morávios,

somente pôde receber a herança paterna, provinda de Komna (donde seria originário o

patronímico Komenský) destinado a enviar o órfão Comenius à escola para que pudesse

se beneficiar de uma boa instrução, no ano de 1608 (CAULY, 1995, p.35).

A escola de Prerov acabava de sofrer uma reorganização a pedido de Carlos de

Zerotín, que solicitou à escola calvinista de Sankt Gall, na Suíça, os seus estatutos para

a reforma da escola de Prerov, cujo objetivo era fornecer uma alternativa credível ao

único sistema pedagógico que transformara radicalmente a teoria e a prática da

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educação dos jesuítas, cujos estabelecimentos floresciam em todos os territórios dos

Habsburgo. É digno de nota que Carlos Zerotín não se limitou apenas a Moravia, mas

empenhou toda a sua influência ao serviço da Reforma por todo lugar que passava. Ele

apoiou nomeadamente a causa dos huguenotes na França, empre stando uma soma

considerável, em 1589, a Henrique IV, com quem se encontrou perto de Ruão, em 1593

(CAULY, 1995, p.38).

Carlos de Zerotín questionava o método dos colégios jesuítas, que consistia

essencialmente na memorização de regras e de textos ininteligíveis sem quaisquer

preocupações em adaptá- los ao espírito dos alunos. Entretanto, a escola de Prerov,

fundamentada no ideal da escola protestante, buscava ser menos literária e mais prática.

Prova deste pressuposto educacional pode ser verificado na formação dos seus alunos,

que, além da formação teórica, também tinham tarefas cotidianas; trabalhavam, por

exemplo, nas tipografias; outros encadernavam livros, outros cortavam árvores. E, por

meio dessas atividades úteis para todos, obtinham algum rendimento (CAULY, 1995,

p.42).

Diante disso, pode-se preconizar que foi desta forma que, Comenius adquiriu os

seus conhecimentos da arte da impressão e da encadernação, e ainda a sua paixão pelos

livros. Mas foi esta experiência de escola-oficina que lhe inspirou mais tarde o modelo

da futura escola, na qual os alunos trabalhavam como artesãos numa cooperação ideal,

onde todos são solidários e contribuem em conjunto para a união das partes.

Comenius sobressaiu-se como bom aluno e como um paradigma a seus colegas.

No entanto, decepcionou-se com as escolas de seu tempo, incluindo a escola de Prerov,

pois percebeu que elas eram sombrias, sem atrativos, onde os jovens eram considerados

adultos em miniatura e obrigados a se comportarem como tal. Além disso, havia

castigos corporais, palmatória (COMENIUS, 1999, p.37). Comenius convenceu-se da

necessidade de um método correto no processo de ensino e aprendizagem.

Terminado os estudos na escola de Prerov, debaixo da proteção de Carlos de

Zerotín, e por recomendação de Lanecký, Comenius foi escolhido para ser ordenado

pastor e nomeado para prosseguir os estudos superiores na universidade alemã de

Herbon, em Nassau, que havia sido fundada em 1584 (CAULY, 1995, pp. 43, 48).

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Em 1611, Comenius inicia seus estudos teológicos na Faculdade de Herbon.

Existiam outras universidades protestantes na vizinha Alemanha, dentre elas: Marburgo,

fundada em 1527; Conisberga, fundada em 1543; Iena fundada, em 1549; Genebra,

fundada em 1559. Grande parte delas, porém, sofreu influência do luteranismo e os

Irmãos Morávios não professavam as doutrinas de Lutero. Cauly (1995, pp.45,46),

comentando a razão quanto à preferência por Herbon, afirma:

[...] inúmeros jovens checos tinham o hábito de partir para a vizinha Alemanha. Para um estudante da União dos Irmãos que se destinava ao pastorado, como Comenius, havia outras condicionantes. Muitas universidades alemãs estavam englobadas na esfera de influência do luteranismo e os Irmãos não professavam as doutrinas de Lutero. Mais próximos do calvinismo, preferiam optar pelas universidade onde era ensinada a doutrina de Calvino, embora se retraíssem no que dizia respeito à adesão às questões da graça divina e da predestinação

Assim sendo, a universidade de Herbon, não fora escolhida ao acaso pelos

Irmãos Morávios, visto que ela, além do prestígio de prover bom ensino, em conjunto

com a universidade de Heidelberg, era o centro das idéias teológicas calvinistas, é sabido

que os Irmãos Morávios tinham estreita aproximação com o calvinismo, apesar de

algumas restrições quanto à predestinação e a graça divina (KULESZA, 1992, p.26).

Além desse princípio, verifica-se que o calvinismo estava sempre à frente na

linha de combate contra o catolicismo, diferente do luteranismo, que após ter obtido

reconhecimento oficial na Dieta de Augsburgo (1555), resultando em certa conformação

política e religiosa, por parte dos luteranos. Os Irmãos Morávios, não aceitaram os

princípios da referida Dieta, preferindo aderir o calvinismo, contra o catolicismo.

Por outro lado, Carlos de Zerotín, que foi decisivo na escolha de Comenius para

ser ordenado pastor e nomeado para prosseguir nos estudos superiores, e que se tornara

importante aliado dos protestantes na Moravia, conhecia pessoalmente Thedore de

Beza, calvinista, com quem se encontrou ao estudar em Genebra e em Basiléia, e de

quem adquirira algumas obras para levar para a Morávia (CAULY, 1995, p.47). Disto

percebe-se, que seria natural, não só Carlos de Zerotín como também os Irmãos

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Morávios enviarem seus estudantes de teologia para universidades calvinistas que eles

tão bem conheciam.

Ao se matricular em Herbon, Comenius começa a freqüentar as aulas de duas

personalidades eminentes na época: John Fischer (Piscator) e Johann H. Alsted, dois

professores que influenciaram diretamente o seu pensamento.

Alsted tinha 23 anos e tornara-se professor de filosofia no ano anterior, em

1610, após ter completado seus estudos nos centros mais prestigiados do humanismo

protestante, Heidelberg, Estraburgo e Basiléia (CAULY, 1995, p.49). A formação,

erudição e a preocupação pedagógica de Alsted despertaram no jovem Comenius

profunda admiração.

Comenius identifica-se com Alsted no esforço enciclopédico e com seu plano

geral de organização das escolas de todos os níveis, contudo, discorda do mestre quanto

à amplitude da educação. Alsted aconselhava mandar à escola secundária somente os

jovens que pretendessem seguir os estudos superiores. Comenius insistirá em dar, a

todos, instrução geral capaz de desenvolver as potencialidades humanas (COVELLO,

1999, p.25). Destaca-se, diante disso, o caráter crítico e progressista de Comenius

quanto às questões educacionais.

Enquanto Comenius esteve em Herbon, entrou em contato, também, com o

pensamento de Francis Bacon e com as idéias pedagógicas de Ratke. Em sua obra O

método Pedagógico Reformado, Ratke aplicou os princípios baconianos e planejou a

instrução sistemática, ressaltando a necessidade de adaptar o método didático à

capacidade das crianças. Tudo para ele deveria ser ensinado sem violência, em sala de

aula, na língua vernácula. Ora, esses princípios influenciaram imensamente a vida de

Comenius, que, também se preocupou em preparar um dicionário de sua língua materna,

Bohemicae Thesaurus, cujo conteúdo consistia em apresentar um léxico completo de

uma gramática exata das locuções da língua tcheca.

Enquanto Comenius esteve em Herborn escreveu duas teses, sendo uma delas

escrita em 1612, um ano após sua entrada naquela Universidade, cujo tema era

Problemata miscellanea. Na referida tese, Comenius se apresenta com o nome de Amos

Marcomanno Niwniczemus (de Nivnice), que sustenta a concepção de que Comenius

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teria nascido em Nivnice, e não em Uherky Bord. A tese tratava, em oito questões, de

problemas de retórica e de ética sobre o tema das relações entre a arte e a natureza. Fiel

à tradição, Comenius defende aqui a tese de que a arte completa a natureza ao

embelezá- la (CAULLY, 1995, p.52).

A segunda tese, Sylloge quaestionum controversarium, defendida no ano

seguinte, 1613, sob orientação de Alsted, foi dedicada pessoalmente ao bispo Lanecius,

que havia apadrinhado sua entrada na Universidade o obtido a concessão de uma bolsa

de estudos. Nesta tese, o professor interroga e o aluno responde, preocupado acima de

tudo em dar provas da sua capacidade para discorrer segundo regras perfeitamente

convencionadas. O foco principal recai na ótica, isto é, discute a impressão visual

procedia do olho ou seria resultado de uma visibilidade própria das coisas. Como

resposta, Comenius declara-se a favor da tese de uma corradiatio radiorum,

manifestando uma naturalidade original da visão e do visível (CAULY, 1995, p.53).

Objetivando aperfeiçoar seus conhecimentos, Comenius decide ir para

Heidelberg. Todavia, antes de chegar a Heidelberg, durante alguns meses permanece em

Amsterdã na Holanda, local em que crescerá certa amizade entre Frederico, que nesta

época tinha 17 anos, e Comenius, resultando mais tarde no apoio de Comenius a

Frederico, quando na sucessão do trono da Boêmia.

Em 1613, Comenius matricula-se em Heidelberg e defende sua tese de teologia

sobre o tema De natura fidei iustificantis, escrito que defenderá que o indivíduo pode

certamente ser salvo pela sua fé, mas também que uma fé viva e expressa através de

obras podia constituir o sinal da verdadeira fé (CAULY, 1995, p.56).

Um aspecto significativo, comentado por Cauly (1995, p.56), para Comenius se

refere à tentativa de conciliação das Igrejas protestantes:

Ainda mais significativa parece ter sido a tentativa de conciliação das Igrejas protestantes (sob a influência de Davi Pareus, em Heildeberg), que constituía uma postura progressista nessa época de conflitos teológico-políticos. É este um dos temas fundamentais do pensamento de Comenius, que procurará, posteriormente, alargar o seu projecto de unificação a toda a cristandade e, em seguida, às próprias religiões não cristãs (essencialmente a judaica e a turca, ou seja, o Islão).

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A estada de Comenius em Heildeberg foi de extrema importância, pois a referida

universidade possuía prestigiosa biblioteca, oferecendo aos estudantes magníficas

oportunidades para estudo de diferentes autores, cujas obras eram difíceis de serem

encontradas pelos estudantes da época.

É justamente em sua estada em Heidelberg que Comenius iniciava seu projeto de

editar uma obra consagrada à língua tcheca. Apesar de haver começado em 1612, a

preparação do Tesouro da língua tcheca, a partir de então, desejava oferecer um léxico

completo, de uma gramática exata, de locuções elegantes, de figuras de retórica e de

provérbios que, por sua vez, deveria fazer parte de um conjunto vasto que ele concebia

sob a forma de uma enciclopédia que integrava: O teatro das sagradas escrituras

((Theatrum sanctae scripture) e Theatrum universitatis rerum to jest (O teatro da

universalidade das coisas).

Nota-se, aqui, a influência deixada por seu mestre Alsted, que publicaria, em

1629, uma Omnium scientiarum encyclopaedia (Enciclopédia de todas as ciências), e

foi neste espírito que Comenius, que não passava ainda de um estudante, procurou

escrever tal obra.

Por fim, Comenius atingiu o objetivo a que se propusera, e acabar sua formação

para a função à qual se destinava. Sendo assim, com pouco dinheiro para prosseguir seus

estudos e alcançar um título de doutor, só lhe restava regressar à sua Moravia. Cauly

(1995, p.61), ao comentar o regresso de Comenius da cidade Heidelberg à Moravia,

afirma:

Nestas circunstâncias, só lhe restava regressar à sua Moravia natal, o que fez depois de passar por Praga, no termo de uma viagem cuja recordação o seguiu à velhice: “No décimo qua rto ano deste século percorri sozinho e a pé o trajecto de Heidelberga a Praga, confiante na protecção do meu anjo da guarda e nas forças da minha saúde. Os motivos para essa viagem eram que não me restava da minha bolsa dinheiro suficiente e que fizera a promessa dessa viagem para o restabelecimento completo da minha doença, o que também foi satisfeito”.

Em 1614, Comenius chega a Praga, sob a proteção do bispo Lanecius, o qual na

época, manifestava vivo interesse pelos novos métodos pedagógicos de Ratke.

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Comenius, ainda demasiadamente novo para ser ordenado, foi nomeado reitor da escola

de Prerov, principal centro da comunidade Moravia. Desta forma, Comenius resolve se

dedicar ao magistério, motivado pelas idéias pedagógicas que havia aprendido nas

Universidades de Herbon e Heidelberg.

Além de reitor, também leciona na referida escola, introduzindo disciplinas úteis

no currículo escolar e adotando métodos eficientes para o ensino das ciências e das artes,

inspirado nas obras de Ratke, com bons resultados. Notabilizou-se como professor

competente, em se preocupando em distribuir corretamente o tempo escolar entre ensino

com conversas, jogos, recreações e música, pois desejava que a escola fosse agradável e

atraente. Com estes princípios, cativa (COVELLO, 1999, p.30) seus alunos, abolindo os

castigos corporais, tão em voga nas escolas de sua época.

Em 26 de abril de 1616, é ordenado pastor dos Irmãos Morávios, pelo sínodo de

Zeravice, na Morávia, com o nome de Jan Amos Nivnický. Dois anos depois, 1618, se

estabelece na cidade de Fulnek, assumindo a responsabilidade pela escola da

comunidade, casando-se em 18 de junho com Madalena Vizovska, que pertencia à

família de Lanecius. Nascem seus dois primeiros filhos, quando Comenius tem vinte e

quatro anos. Apesar da pouca idade, desempenha satisfatoriamente a dupla função de

pastor (COVELLO, 1999, p.30) e educador, permanecendo como reitor de Preorv até o

ano de 1618 (CAULY, 1995, p.63), reitor das escolas da Unidade. Quanto a esse

episódio, Kulesza (1992, p. 29) info rma:

Começa aqui sua familiarização com a educação em geral, pois além de dirigir as escolas primária e latina, orienta seus paroquianos para a vida prática transmitindo-lhes suas experiências, chegando até a introduzir na região novas formas econômicas, como a apicultura. Na condição de reitor e pastor da comunidade, dirige a educação na solução dos problemas enfrentados por sua gente, abrindo as escolas para a realidade circundante. Participa com os alunos de excursões ao campo, pondo-os em contanto direto com a natureza, apontando-se até hoje o local, sob um frondoso carvalho, onde ele teria feito suas preleções[...] não há dúvidas de que em Fulnek se inicia o aprendizado que faria de Comenius um dos principais teóricos da educação.

Observa-se que Comenius continuou escrevendo, demonstrando seu

posicionamento teológico-político e, também, ético-religioso, não deixando qualquer

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dúvida a respeito de suas concepções contra aqueles que intentavam recatolizar o

território theco. Cauly (1995, p.63) comenta as concepções de Comenius:

A carta a Petrus Montanus[...] era reveladora da atmosfera que reinava no período que precedeu a esmagadora derrota protestante da Montanha Branca, em 1620: Ordenado pastor da Igreja (anno 1616), escrevi Cartas ao Céu (Listové do Nebe), isto é, os queixumes dos pobres oprimidos ao céu (pauperum oppresorum clamores in coelum). IV. Tendo percebido que as nuvens da perseguição se acastelavam (com efeito, o raio prepara-se antes de cair), escrevi Advertências contra as seduções anticristãs (Praemonitiones adversus antichristianas seductiones), que não foram publicadas mas sim transcritas e recopiadas sob diversas formas”. Uma das versões manuscritas deste texto, cuja considerável carga crítica surge logo no título (Sobre o papado. Advertências contra o Anticristo e as suas seduções – O papezství, Teník proti Antichristu a svodium jeho) só foi descoberta e publica em 1924.

Na análise da obra de Comenius Listové do nebe (Cartas ao céu), constata-se ser

ela um documento precioso na compreensão deste período específico na vida de

Comenius, que antecedia o acontecimento da Batalha da Montanha Branca, 1620.

A referida obra está dividida em quatro cartas, cujo principal teor consiste na

apresentação das súplicas e respectivas reivindicações a Cristo, por parte de pobres e

ricos.

Assim, na primeira carta, os pobres dirigem seus lamentos a Cristo. Na segunda,

Cristo lhes responde exortando-os a que moderem o seu ardor. Na terceira carta, Cristo

não deixa de incriminar os ricos. Estes, na última carta, respondem a Cristo sobre seus

atos.

Na tentativa de estabelecer um diálogo entre ricos e pobres, Comenius

demonstra nesta obra, que a raiz da injustiça reside, não na desigualdade, pois jamais

deixará de haver rico e pobre, mas no orgulho sem limites. Diante disto, compreende-se

que Comenius, ao utilizar a pessoa de Cristo como o juiz que responde às

reivindicações, e à luz da história dos Irmãos Morávios, recordando neste ínterim Pedro

Chelcicky, fundador do referido grupo, que renunciava a pregação dos taboritas quanto à

igualdade por meio de violência, preconiza-se que, para Comenius, somente poderia

haver transformações e regeneração do mundo por meio da luta espiritual, não da física,

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e da transformação interior de todos os homens. Concebe-se, portanto, que, para

Comenius, Cristo não exorta à guerra, ao contrário, Ele é o verdadeiro anjo da paz,

citado em uma de suas obras posteriores, Ângelus pacis.

Apesar do apelo à paz que transparece nas Cartas ao céu, a situação da Morávia

quanto à violência de conflitos entre católicos e protestantes, que fervilhavam nesta

época, complicava cada vez mais a região.

Como resultado destes vários conflitos, no dia 23 de maio de 1618, inúmeros

protestantes, descontentes com a destruição de um de seus templos, por ordem do

arcebispo de Praga, invadem o palácio daquela cidade e atiram, janela abaixo, os dois

representantes, Vilém Slavata e Jaroslav z Martinic, da Casa de Áustria, e ainda Philipp

Fabricius, o seu secretário, ali reunidos em conselho. Os três homens conseguiram fugir

do castelo, mas a ocorrência de tais fatos seria conhecida em todas as cortes da Europa,

agravando a situação daquele ato (CAULY, 1995, p.74). Este episódio, conhecido pelo

nome Defenestração de Praga, é considerado o marco inicial da Guerra dos Trinta

Anos.

A crise se instalara no seio do Império, e os boêmios organizaram um governo

provisório em seu país, negando reconhecer a nomeação de Fernando II como

Imperador, oferecendo a coroa da Boêmia a Frederico V, que afirmava: “Minha única

finalidade é servir a Deus e à sua Igreja” (COVELLO, 1999, p.39). Em Frederico V,

estava a esperança de paz e prosperidade dos boêmios e, também, com o consentimento

de Comenius, que inha laços estreitos com Frederico V, e que apoiara sua candidatura

abertamente.

A disputa pela sucessão ao trono de Rodolfo II, que falecera em 1612, era

revestida de especulação e expectativa já há algum tempo. De um lado, os católicos

esperavam que Fernando, arquiduque Habsburgo da Estíria, religioso católico fanático,

que mandava cotidianamente rezar duas missas em sua capela, se tornasse o rei

(KULESZA, 1992, p. 28). Do lado protestante, a esperança consistia em que Frederico

V, líder da União dos Príncipes Protestantes Alemães, sobrinho do duque Bouilon (líder

huguenote na França), sobrinho de Maurício de Nassau fosse o rei. Frederico mantinha

estreitos laços familiares com a nobreza holandesa, demonstrando ter um dos melhores

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parentescos da Europa e, através de seu casamento com Isabel Stuart, tornara-se

nomeadamente genro do rei Jaime I da Inglaterra (KULESZA, 1992, p.30). Havia,

assim, uma estratégia política que poderia emancipar o reino da Boêmia da tutela dos

Habsburgo, e obter, ao mesmo tempo, o apoio de protetores poderosos como o rei Jaime

I.

A coroação de Frederico V foi celebrada em novembro de 1619 para regozijo

geral. Três meses antes, havia sido coroado em Frankfurt, Fernando II. Havia, então,

dois reis, um calvinista e outro católico.

Podia-se pensar que os protestantes tchecos haviam vencido, mas Fernando II,

por meio de alianças diplomáticas, conseguiu isolar os tchecos e garantir o apoio da liga

católica, que se preparava para enviar um exército comandado por Maximiliano, o

duque da Baviera. A Espanha expediu o seu exército da Flandres, e o rei da Polônia pôs

à disposição da liga um regimento de cossacos. Havia, por último, que contar com o

apoio do eleitor da Saxônica, João-Jorge I, luterano resolutamente hostil aos calvinistas,

e que iria obter, como compensação das despesas com a guerra, o margraviado da

Lusácia.

A intensa atividade diplomática desses poucos meses teve como resultado a

formação de uma grande coligação católica, à qual os tchecos apenas conseguiram se

opor com exército inferior, pelo menos em número, comandado pelo conde de Thurn,

apoiado por Ma nsfeld. Apenas Bethlen Gábor, príncipe da Transilvânia, prometeu o seu

apoio, mas as suas tropas chegaram tarde demais.

O desequilíbrio das forças em presença era manifesto. Em junho de 1620,

Fernando II contava não somente com as forças imperiais, mas também com os trinta

mil homens chefiados pelo duque Maximiliano e pelo general Tilly, resultando na total

e fácil derrota dos exércitos tchecos e seus poucos aliados, em apenas algumas horas

(CAULY, 1995, p.77).

A derrota de Frederico V e dos soldados tchecos ficou conhecida como a

Batalha da Montanha Branca, ocorrida em 1620. Kulesza (1992, p. 31), comentando a

respeito desta Batalha, afirma:

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A Batalha da Montanha Branca, quase insignificante do ponto de vista militar, reduziu o reino da Boêmia a uma existência meramente nominal, submetendo a nação checa a uma dominação estrangeira, mais ou menos efetiva no decorrer dos anos, da qual somente viria a se livrar com o final da Primeira Guerra Mundial, já no século XX.

A referida batalha gerou grandes dificuldades para a Boêmia. Além de

destruição, incêndios, saques, torturas, mortes, fome, e como se não bastasse, o idioma

alemão foi imposto como língua oficial.

A derrota trazia consigo o princípio de que, a partir de então, poderia haver uma

política de recatolização da Boêmia, pois os desordeiros, na concepção dos Habsburgos,

haviam sofrido a humilhação da perda da guerra. Ora, a Boêmia sempre manteve uma

tradição de resistência e uma das fontes vivas dos movimentos protestantes, que, agora,

acabava de sucumbir em algumas horas.

Fernando II determinou o extermínio todos os “hereges”, visto que procurou

aplicar os princípios e obedecer às ordens dos jesuítas que afirmava:

Vossa Majestade é obrigado a purificar o reino da heresia, do erro e dos homens que a praticam e a disseminam... Os hereges, precisamente porque são hereges, são altivos, cheios da sua pessoa e põem os seus juízos bem acima dos da Igreja, tanto assim que só conseguimos que escutem as prédicas ortodoxas pelo medo. O temor inspirado pela autoridade real prepara a devoção e a obediência (CAULY, 1995, p.79).

Em cumprimento às ordens acima, em Praga, um tribunal especial, apoiado por

Fernando II, presidido por Karl von Liechtensein, tomou as primeiras medidas

repressivas destinadas a castigar os chefes da insurreição. Vinte e sete homens foram

assim condenados à morte a 21 de junho de 1621 por uma jurisdição especial.

Entre eles, encontrava -se o reitor da Universidade de Praga, Jan Jessenius, que

efetuou a primeira dissecação pública em Praga em 1600, de quem descendia a amiga e

correspondente de Kafka, Milena Jesenká, amiga do astrônomo dinamarquês Tico

Brahé. Arrancaram a língua de Tico Brahé, antes de o decapitarem e o esquartejarem,

como uma advertência para aqueles que se serviam dos seus discursos para alimentar as

“heresias”. Entre eles figuravam, igualmente, Václav Budovec de Budov e Krystof

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Harant, dois vultos eminentes da literatura theca. O objetivo, como em qualquer guerra,

era acabar com os líderes, e com este intento as sepulturas de João Zizka e Rokycana,

foram violadas (CAULY, 1995, p. 81), e suas ossadas dispersadas, pois desejavam

acabar com a memória dos grandes líderes tchecos do passado.

Ora, sendo Comenius, conforme visto, um líder respeitado entre os Irmãos

Morávios, foi lavrado um mandato de prisão em seu nome, o que o forçou a abandonar a

cidade de Fulnek e a deixar o seu cargo pastoral. Nestas condições, e com um mandato

de captura em seu nome, Comenius viu-se forçado a esconder-se em diversos locais da

Moravia, e separou-se por algum tempo de sua esposa. Prova disto, é sua carta datada de

18 de fevereiro de 1622 e enviada à sua mulher Madalena, acompanhada de um

pequeno tratado religioso, cujo título é de fundamental importância para a compreensão

do seu conteúdo: Premyslování o dokonalosti krestanské (Meditações sobre perfeição

cristã) texto impregnado de devoção e de abnegação perante as provações que Deus lhe

destinara:

Neste opúsculo poderás compreender como é vão querermos nós próprio escolher o caminho por onde desejamos que Deus nos conduza, e que o meu é o de seguir Deus com submissão, mesmo que chorando, e o de tudo aceitar da sua mão com gratidão: felicidade e infelicidade, alegria e pesar, riso ou lágrimas. Encontrarás muitas coisas de que te recordarás ou que aprenderás, e assim te disporás a suportar a cruz que te espera, ou então aprenderás a acolher piedosamente a alegria que Deus nos dará após nos ter imposto estas provações (COMENIUS, 1892, p.30).

Possivelmente, estas foram as últimas palavras dirigidas por Comenius à sua

esposa, pois pouco depois, morreram sua mulher e as filhas, a segunda filha com apenas

alguns meses de idade, vítimas de epidemia.

No estudo The labyrinth of the world and the paradise of the heart

(COMENIUS, 1998, pp.78-83), pode-se ter uma compreensão do que representou a

perda da família de Comenius.

Sobre isto estalou subitamente uma borrasca, cheia de relâmpagos, de trovões e de um terrível granizo: tudo se dispersou para longe de mim exceto aqueles que a mim estavam ligados, com os quais me precipitei para um canto, quando os vi aos três abatidos pela flechas da morte, de

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tal modo que, numa lamentável solidão e delírio pelo horror, já não sabia o que fazer.

Sérgio Covello (1999, pp. 40,41), comentando especificamente a situação da

Boêmia, afirma:

[...] Trinta e seis mil famílias saíram da Boêmia e da Moravia, fiéis às suas convicções. A população checa diminui oitenta por cento. A guerra causa horror em Comenius: Quantos seres humanos mortos – deplora. Quantos presos! A quantos ceifou a fome, a peste o frio, a amargura, o medo, o horror! Quantos templos foram tomados! Quantos sacerdotes banidos! Quantas famílias empobrecidas, das classes elevadas, como das classes baixas. E quantos se desviaram coagidos pela prisão e pelas torturas, ou vítimas de enganos astutos. E não há neste mundo esperança alguma de melhoras[...] Terminam as guerras, mas outras se seguem e a peste nada nos deixou senão algumas cidades despovoadas. Mas que digo, deixou-as? Ainda as continua devorar. Em tudo há uma carestia nunca vista; impostos e tributos superiores às possibilidades humanas, pesam sobre nós, e não só as autoridades como também a soldadesca saqueiam-nos à vontade e, o que é pior, sobre corpos e almas imperam a tirania e a violência.

Foi neste período que Comenius perde todos os seus bens, incluindo livros e

manuscritos e é forçado a refugiar-se em Brandeis, nas terras de Carlos de Zerotin, que,

por não haver participado da insurreição, teve certa autonomia para dar abrigo a muitos

dos Irmãos em seu território. Entristecido com a situação de seu país, faz-se embaixador

de seu povo e realizou várias viagens para buscar asilo aos Irmãos Morávios. De

maneira que, pela força das circunstâncias, Comenius torna -se o pastor dos exilados nos

territórios que haviam acolhido centenas de refugiados, e é neste contexto que surge uma

das obras mais importantes de Comenius, The labyrinth of the world and the paradise of

the heart , escrita em 1623, durante sua estadia em Brandeis.

Comenius (1998, pp. 57,58) dedicou a referida obra a Carlos de Zerotín, nestes

termos:

Dado que no exílio em que me encontro e no repouso ingrato que é o meu, não me é doce nem aprazível, retirados que me foram os cargos da minha vocação, permanecer em repouso, comecei nestes últimos meses a me ditar sobre, entre outras coisas, a vaidade do mundo

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(aproveito sempre a ocasião) de tal modo que este drama, que ofereço a serenidade, me nasceu das mãos. A primeira parte representa por imagens a atitude pecadora e a inanidade do mundo, o modo como em todos os laços emprega tanta força em coisas de nada e como todas as coisas acabam lamentavelmente em troça e em choro. A segunda descreve, de forma meio velada e meio manifesta, a felicidade verdadeira e sólida dos filhos de Deus: qual é a verdadeira felicidade daqueles que, rejeitando o mundo e todas as coisas mundanas, se ligam apenas a Deus ou mesmo aí se perdem.

The labyrinth of the world and the paradise of the heart narra a história de um

viajante que após ter despertado para a exterioridade, decide voltar a entrar em si próprio

para encontrar o repouso na casa do seu coração, local esse onde poderá

verdadeiramente ser fiel ao apelo de Cristo. O peregrino é acompanhado por dois guias

Vseved Vsudybud (Quem-sabe-tudo-passa-por-todo-o-lado) e Mámeni (A ilusão), e

procura observar os homens e suas inclinações pessoais. São descobertas as máscaras

que cada um traz consigo quando em meio aos amigos, mas a retiram quando estão a

sós. O viajante percebe os vícios e defeitos comuns dos homens. Vê que a esses homens

falta compreensão mútua, o que contribuiria para viverem sem rixas e desentendimentos,

e em participarem de ocupações inúteis. No labirinto, o orgulho, a vaidade, as

enfermidades e a morte é que estão em primeiro lugar em nossas vidas. O que mais

incomoda tal peregrino é que os homens se orgulham de seus feitos, e não compreendem

que podem ser, em breve, consumidos pela morte. Diante do momento tenebroso da

realidade, o viajante ouve uma voz que lhe diz: “Volta para trás. Regressa para lá donde

saíste, volta ao aposento de teu coração. Entra e fecha a porta. A partir dali, em seu

interior, encontra Deus que o leva ao louvor e à compreensão de que a Ele pertencem

todas as coisas e que se deve confiar plenamente n’Ele. A experiência mística do

encontro o transfigura, fazendo-o encontrar a verdadeira felicidade.

Diante disso, confirma-se a razão pela qual The labyrinth of the world and the

paradise of the heart se tornou um clássico da literatura checa, pois que serviu para

consolar os que haviam sobrevivido às desgraças da guerra, exortando as pessoas a não

buscarem a felicidade nas riquezas, prazeres e na fama. A felicidade consistia em se ter

comunhão e experiência com Cristo, para, então, ser uma nova criatura.

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Não há em Comenius, portanto, outra questão importante senão a da

interioridade – a igreja invisível do coração não se tornará nunca visível e o paraíso do

coração é uma vida que está algures. Nesta renúncia, o homem, tipificado pelo

peregrino, não exprime nem desespero nem esperança de um mundo que perdeu todo o

sentido e se tornou absurdo. Permanece numa forma paradoxal de apatia que fecha o seu

coração a um mundo irremediavelmente decadente e o abre numa receptividade sem

limites àquele cuja voz se faz ouvir ainda na capela da interioridade.

Sérgio Covello (1999, pp.48, 49) revela-nos quão importante foi a referida obra

para o povo theco:

Este ensaio repercutirá não só no povo checo como em outras nações atingidas pela guerra, ensinando a sair do labirinto das ilusões humanas e a entrar no paraíso do coração, o mundo interno e divino, onde se encontra o bem-estar imperecível. Quando os irmãos Morávios tiveram de deixar definitivamente a pátria, entoavam um hino que dizia: Nada conosco levamos, pois nada mais temos: só a Bíblia de Králice e o Labirinto do Mundo.

A análise de The labyrinth of the world and the paradise of the heart, apenas sob

o ponto de vista místico, enquanto objetivo de consolo, concorre a uma imprópria

concepção dos reais objetivos que conduziram Comenius a escrever esta obra e outras

que aparecem no mesmo período e contexto de aflição. A renúncia pregada por

Comenius nas suas obras de consolação e edificação não significava um abandono dos

assuntos deste mundo nem a negligência dos seus deveres para com os exilados. Ao

contrário, é mister pensar em Comenius como um homem envolvido nas diversas

vicissitudes de seu tempo, inclusive oferecendo resistência à ocupação desencadeada

pela política de recatolizar a Boêmia por parte dos Habsburgo. A consolação, neste

sentido, refere-se à paciência e não à passividade, pois para Comenius o caminho para a

interioridade não dispensa o homem do cumprimento dos seus deveres neste mundo,

mas o conduz ao envolvimento junto ao seu semelhante. Prova de que este era seu

pensamento está no registro de suas obras escritas neste período. O Enchiridion

Biblicum constitui um manual sobre as sagradas escrituras que os refugiados podiam ler

e levar facilmente consigo, escapando, desta forma, a uma censura oficial que perseguia

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todas as publicações protestantes. O tratado O abandono pela morte é uma obra de

consolação, enquanto que o opúsculo intitulado A prensa de Deus, datado de 17 de abril

de 1624, é dedicado a um nobre morávio no exílio para ajudar a ultrapassar as provações

que Deus nos destina.

Deve-se, pois, dizer que estes textos difundidos clandestinamente são

testemunho, mesmo para além do seu conteúdo edificante, de uma resistência à opressão

e à inquisição tão presente naqueles dias (CAULY, 1995, p.102).

Neste ínterim (1624), surge um clérigo natural da Silésia, Cristóvão Kotter, que

dizia ter visões favoráveis ao povo tcheco e seu arruinado soberano. Profetiza que

Frederico V reconquistaria o trono da Boêmia, inaugurando um período de paz, riqueza

e glória para o reino.

Por algum tempo, Comenius não demonstrou confiança no cumprimento da

profecia de Kotter, mas a razão acabou por se render à exigência da fé e por ceder à

esperança que renascia naqueles anos terríveis de trevas.

CAULY (1995, p. 109) comenta o momento em que Comenius se rende à crença

nas profecias de Kotter:

Foi sem dúvida isso que sucedeu ao próprio Comenius: o seu envolvimento ao lado dos oprimidos e a esperança reavivada pelos acontecimentos de ver a sua pátria renascer das cinzas venceram finalmente as suas últimas resistências. Em duas semanas, traduziu as revelações de Kotter respeitantes à recondução de Frederico V ao trono e enviou o texto ao seu sogro para que ele o examinasse.

Comenius, portanto, acredita nessa profecia que, de uma forma geral, traduz o

anseio do povo tcheco já à beira do extermínio. Divulga a profecia entre seus

compatriotas, com o propósito de despertar neles a esperança de dias melhores

(COVELLO, 1999, p.51).

Confiando em tais profecias solicita uma audiência com Frederico V para

coloca- lo a par das revelações de Kotter. Mas Frederico não parece ter-se mostrado

entusiasmado por profecias que, no entanto, prediziam o seu próximo regresso ao trono.

O apelo urgente para que tomasse parte ativa na luta que preparava contra os habsburgos

não recebeu o acolhimento esperado. Talvez, pelo fato de o próprio Frederico não

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acreditar nas profecias de Kotter. Os anos posteriores, especificamente 1627, testificarão

que Frederico estava correto, pois o catolicismo foi instituído como a única religião

oficial da Boêmia.

Sendo assim, restou a Comenius e ao povo theco abandonarem a pátria,

buscando encontrar exílio na cidade de Leszno, na Polônia. Leszno enriqueceu-se com

as peregrinações de alguns nobres dos Irmãos Morávios.

O súbito afluxo de refugiados aumentou consideravelmente a importância da cidade. Comenius descreveu mais tarde com entusiasmo o impulso que ela ficou a dever aos exilados da Boêmia: Havia meios para rodear a cidade de muros e valas, colocar paredes e belas torres nas portas e ainda para erigir na praça da cidade velha uma bonita câmara municipal que, na Polônia, só tinha igual em Posen. Em suma, a virtude burguesa, o artesanato, o comércio (porque tudo aqui podia comprar-se ou ser comprado) e a religião floresciam a um ponto tal que a cidade superava todas as cidades da Polônia em graça maravilhosa (CAULY, 1995, p. 116).

Comenius se instalou em Leszno com sua segunda mulher, Dorotéia, e as duas

filhas. Também com ele vivia Cristina Poniatowska, que ele recolhera quando da morte

dos seus pais, e cujas visões extáticas e proféticas não tardariam em reacender a chama

da esperança no pequeno círculo dos exilados da Boêmia, e no próprio Comenius.

Poniatowska era uma parenta afastada de Rafael Leszczinski, e fora recolhida

por Comenius após a morte de seu pais. De saúde frágil e sofrendo o choque emocional

causado pela morte da mãe e pelas atrocidades que presenciara na guerra, desde

adolescente tinha visões alimentadas pelo apocalipse e relativas à libertação próxima da

Boêmia (CAULY, 1995, p. 120).

Comenius tornou-se o divulgador das profecias de Poniatowska. Para superar a

resistência daqueles que ainda se mostravam céticos, escreveu um tratado intitulado De

veris et falsis prophetis (Das verdadeiras e falsas profecias), objetivando diferenciar os

conceitos de revelação e de superstição. Apesar de suas crenças e esperança, a Boêmia

mergulhava cada vez mais na miséria, indicando poucas possibilidades quanto ao

cumprimento da profecia de Poniatowska, que se referiam à restauração da Boêmia.

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Era de se esperar, diante desta situação, que Comenius se desanimasse, todavia,

não se deixa abater, antes, tendo visto que as profecias pouca contribuíram para a

restauração da Boêmia, começa perceber a importância da educação para que um país se

restaure. Na realidade, logo à sua chegada a Leszno, em 1628, Comenius obteve

autorização para ensinar no colégio da cidade, de maneira que exercerá dupla função, a

de pastor e de docente, tornado-se mais tarde, 1636, o reitor da referida escola. É

encarregado de supervisionar a educação da colônia dos Irmãos Morávios e desenvolve

ampla atividade cultural, introduzindo o teatro como recurso didático.

Nos anos seguintes, e provavelmente influenciado por sua atividade no colégio

dos Irmãos, produziu textos relativos à educação. Em 1630 a 1633, apareceram as suas

obras pedagógicas fundamentais: Didática theca, skóly materna, Informatorium e A

porta aberta das línguas (Janua linguarum reserata -1631) e a Didática Magna. No

conjunto, os textos dirigiam-se tanto aos alunos, que devem aprender a aprender, como

aos professores, que devem aprender a fazer e, conseqüentemente, a fundamentar a sua

prática em uma teoria sólida.

Sendo assim, Comenius, nesse período, empenhou-se na questão educacional,

pois compreendia que, por meio da educação, poderia ocorrer a paz entre os povos e

uma possível restauração da Boêmia, conforme afirma Cambi (1999, p. 285):

Comenius vive com grande intensidade, participando das desventuras políticas e religiosas do seu povo. Os dolorosos acontecimentos ligados ao desenvolvimento da guerra, até a ruína definitiva de qualquer ilusão política e religiosa dos Irmãos Morávios, não enfraquecem o seu temperamento batalhador, estimulando-o a conceber um projeto de ordem e de pacificação universal que encontra na educação o seu instrumento privilegiado e na sistematização definitiva do saber a sua condição essencial.

Comenius se entregou ao estudo de obras pedagógicas como as de Ratke,

Andreae outros, tendo a esperança de que a guerra acabasse logo e a Boêmia renascesse

das cinzas, graças à introdução de um adequado sistema educacional.

Com este princípio, é plausível a razão pela qual Comenius estava tão

preocupado em nos deixar uma obra que abarcasse uma didática educacional eficiente.

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Sendo assim, procura concluir sua obra pedagógica iniciada na Boêmia, a Didática theca

(EBY, 1978, p. 155), escrita em seu idioma pátrio. Ele estava convencido de que a

educação era fundamental para levantar a nação checa no exílio.

A obra de Comenius, Janua linguarum reserata (Porta aberta das línguas),

editada em 1631, marcou uma época, pois contrariava o ensino somente teórico,

proposto pelos jesuítas quanto aos métodos de aprendizagem das línguas, vigente

naquele contexto histórico, apresentando um manual prático para o ensino do latim e de

outras línguas.

A Janua, na concepção de Comenius, era a porta do conhecimento da moral e da

devoção, base de uma educação universal, cujos princípios deveriam ser apresentados

logo desde a aquisição da língua materna e, em seguida, por extensão progr essiva, às

outras línguas, até chegar ao latim, que seria o ápice do conhecimento reconhecido como

intelectual naquela época. Parece que era comum aos alunos serem confrontados com

alguns dicionários como latino-bohemicum ou latino-germanicum, como se fosse a sua

própria língua que devesse ser traduzida (CAULY, 1995, p. 138).

Na Janua, Comenius parece desenvolver alguns pensamentos principais: 1) que a

criança, antes de aprender qualquer outra língua, domine sua língua materna

primeiramente. Este era um aspecto extremamente novo, para uma época que preservava

o latim como língua oficial, enquanto que as línguas maternas eram reconhecidamente

menosprezadas (CAULY, 1995, p. 132).

Ainda mais, a educação deveria estar adaptada naturalmente à capacidade da

criança. Disso se infere que as crianças deveriam ser ensinadas como crianças, e

progressivamente prepará- las para os conhecimentos complexos. Aqui, nota-se um

apontamento para sua obra posterior Informatorium materské skoly (Guia da escola

materna). 3) que as crianças deveriam ser ensinadas por meio de descrições despojadas

de qualquer artifício retórico e de toda a finalidade estética; ao contrário, o mundo

concreto da criança deveria ser o “livro” onde se deve aprender.

Portanto, em sua concepção era conveniente substituir os textos dos antigos por

descrições do mundo vivido da criança, de forma a desenvolver nesta consciência clara e

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distinta das coisas, e da sua organização num mundo que assim se tornaria perfeitamente

legível.

O texto proposto por Comenius continha oito mil palavras, distribuídas em

frases, a princípio simples, que se referiam a assuntos familiares às crianças: animais,

plantas, céu, corpo humano, etc. As páginas traziam, em colunas paralelas, a sentença

em latim e a equivalente em vernáculo, de modo que o aprendizado do idioma se fazia

naturalmente, pois a língua parte das experiências da criança e não de textos literários e

regras gramaticais.

Paul Monroe (1979, p.221), comentando esta obra, diz:

Partindo de alguns milhares de palavras latinas mais comuns referentes aos objetos familiares, o trabalho consistia em organizá-las em sentenças começando pelas mais simples e chegando progressivamente às mais complexas, de tal modo que se apresentasse uma série de assuntos relacionados[...] Cada página dava em colunas paralelas a sentença latina e a equivalente em vernáculo. A instrução se ocupava com matéria que, pelo menos em sua forma elementar, estivesse dentro da experiência da criança[...] IO livro tinha o cuidado de apresentar cada estrutura gramatical de modo que o professor hábil pudesse daí fazer derivar, indutivamente, um conhecimento gramatical superior.

Sérgio Covello (1999, p.53), comentando esta mesma obra, afirma: “Tudo

segundo criteriosa graduação, indo do mais fácil ao mais difícil. Como se vê, Comenius

propõe o ensino da língua pela própria língua: a idéia antes da palavra, o exemplo antes

da regra”.

Diante disso, e devido às dificuldades do ensino das línguas, especialmente o

latim, era de se esperar que a Janua linguarum reserata alcançasse êxito incomum, de

maneira que foi traduzido para o francês, inglês, sueco, italiano, árabe e persa.

Outra obra de Comenius Informatorium materské skoly (Guia da escola materna),

publicada em 1633 na versão alemã, tinha como objetivo tratar a respeito da primeira

fase da criança na questão escolar, e as orientações podem ser divididas da seguinte

maneira: a pequena infância, desde o nascimento; a situação da criança no seio da

família; e o papel das mães, as primeiras professoras na escola da vida.

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Sendo assim, Comenius cuida com minúcias da educação pré-escolar de meninos e

meninas menores de seis anos e revela-se hábil conhecedor da alma infantil, ao ressaltar

a importância do brinquedo como instrumento de educação.

Covello (1999, p. 52), comentando o Guia da escola materna, afirma:

O brinquedo desempenha na vida da criança papel tão relevante quanto à nutrição e o sono. As crianças gostam de estar sempre ocupadas – afirma. “A inatividade é mais prejudicial à mente e ao corpo que qualquer coisa em que elas possam estar ocupadas” a criança poderia aprender mais facilmente através do brinquedo que “desempenha na vida da criança papel tão relevante quanto à nutrição e o sono”.

Comenius lança algumas orientações, que parecem ser complemento ao Guia da

escola materna, a conhecida “brochura” Informatorium que apresenta alguns princípios

importantes na compreensão do pensamento de Comenius e também na análise do

mundo em que ele vivia.

O Informatorium começa pela celebração da criança como o “bem” mais

precioso confiado por Deus aos pais, os quais têm o dever de educá- la. Ao se referir à

criança como sendo bem, contraria um pensamento comum de sua época que se referia

às crianças como sendo um “mal” (CAULY, 1995, p. 143). Comenius compreenderá que

ter filhos é o mesmo que ter anjos santos, pois é certo que os anjos velam pelas crianças

na escuridão (CAULY, 1995, p. 143).

Assim sendo, ao valorizar a imagem da criança, fundamenta nova concepção na

compreensão da criança, que certamente influenciou sua proposta educacional, cuja

conseqüência é o pensamento de que o homem não é o modelo da criança, mas sim a

criança que é o modelo do homem.

Além de oferecer esta tão importante discussão, o objetivo do livro era expor a

forma ou a idéia de educação que é preciso dar à escola no decurso dos seis primeiros

anos de vida. A escola, neste período da vida, é a própria família, visto que os primeiros

professores é quem deveriam ensinar os deveres e as primeiras lições, preparando-os

para a vida. Neste contexto, faz uma crítica às mães de sua época, que encarregavam as

amas de proverem educação para os filhos. Para Comenius, tal atitude seria considerada

um abandono disfarçado da criança.

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Cauly (1995, p. 145) comenta esta obra:

Esta advertência às mães acerca dos seus deveres fundamentais, em conformidade com o espírito da pedagogia do século, reveste-se igualmente de um sentimento particular em Comenius (tal como a visão da criança), num princípio de solicitude que deve estender a todas as relações humanas. A criança deve fazer parte de uma verdadeira sociedade familiar que a rodeia, protege e incita permanentemente à actividade útil, de forma a que a sua energia não se perca em agitação vã ou em ociosidade improdutiva.

É interessante observar, ainda, que o Informatorium demonstra a importância

dada por Comenius à educação, que parte de bases óticas, conduzindo a criança a

aprender a partir da percepção imediata. De maneira que, ao ensinar a respeito do céu,

deve-se mostrar- lhe o céu; sendo árvores, mostrar as árvores, pois para ele as crianças

têm prazer em ver aquilo que aprendem.

Com o sucesso da Janua linguarum reserata (Porta aberta das línguas), ocorreu

uma etapa decisiva na vida de Comenius, que deixou de escrever suas obras somente

para o povo theco. Pelo contrário, decidiu tornar-se um cidadão do mundo, sem

abandonar as causas em favor do seu povo. Desta decisão e após vários anos de

pacientes esforços e de pesquisa, a Didática theca, foi traduzida pelo próprio Comenius

para o latim com o título Didática magna, publicada em sua forma integral em conjunto

com outras obras latinadas em 1657, em Amsterdã. Ora, a Didática magna foi traduzida

para servir a todas as nações como tratado sobre a arte de ensinar. Assim, Comenius, ao

escrevê-la em latim, objetivou alcançar o maior número de leitores possível.

Vê-se, então, Comenius com preocupação, não somente com o povo theco, mas

também com outros povos. É neste ínterim que se encontram as origens pansóficas no

pensamento de Comenius, que norteará boa parte de sua vida nos anos posteriores.

Comenius, desde 1630, apresentava preocupação com a questão da paz, daí sua

obra Cesta pokoje (Caminho para a paz), que traz, em seu bojo, uma reflexão política

quanto ao meio de se alcançar a paz. Possivelmente sua reflexão tinha como base o

espírito da Confessio bohemica e a via da unidade dos três credos (luterano, calvinista e

da União dos Irmãos Morávios). Independentemente das tensões que dividiam os

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partidos da Reforma, Comenius estava convencido de que esta Confissão poderia

mostrar a via da unidade dos três credos, buscando paz entre elas e, a partir das referidas

confissões, a paz que alcançaria toda a Boêmia.

Ao mesmo tempo em que Comenius se preocupava com a paz, iniciou, a partir da

segunda metade da década de 1630, um sistema filosófico que tomou o nome de

pansofia. A concepção de Comenius com relativas à pansofia consistiu na procura da

paz, tendo como base uma doutrina universal da educação. Estas concepções iniciais

ficaram registradas na obra Pansophia crhistiana (Doutrina cristã da sabedoria

universal), datada de 1635. Além desta obra, observa -se a concepção desta nova

compreensão no pensamento de Comenius em Praeludia (1637), Prodromus pansophiae

(Precursor da pansofia – 1639), Dilucidatio (Esclarecimento da empresa pansófica –

1639), Pansophiae diatyposis (Apresentação da pansofia – 1643).

Ora, considerando o contexto histórico em que surgem as obras pansóficas, pode-

se compreender que tais escritos foram motivações externas, especificamente da

Inglaterra, que influenciaram o pensamento de Comenius. É a partir destas influências

que Comenius valer-se-á da amizade e do apoio de um círculo de letrados e de eruditos,

dentre eles: John Dury (1586-1680), um pastor escocês, por meio do qual entrou em

contato com Peter Jablonský, o próprio filho adotivo de Comenius, Joaquim Hübner, e,

sobretudo, Samuel Hartlib (1600-1670), que foi o zelador incansável de Comenius, a

quem o próprio autor da Didática será grato.

As novas amizades inglesas foram de extrema importância, pois proporcionaram-

lhe a sua entrada em algumas regiões da Europa. Foi por intermédio de Hübner,

exemplificando, que lhe chegou uma carta do secretário de Richelieu convidando-o a ir

até a França. Mas, o seu maior apoiador foi Hartlib.

Em 1636 ou 1637, Hartlib havia escrito para Comenius, solicitando

esclarecimentos sobre o sistema pansófico de ensino, ou seja, ensinar tudo a todos.

Comenius enviou-lhe os Conatum commenianorum praeludia e, posteriomente, o

Prodromus pansophiae (Precursos da pansofia).

Cauly (1995, p. 212) comenta o que mais impressionou Samuel Hartlib ao ler as

concepções pansóficas de Comenius:

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Aquilo que Comenius oferecia não era apenas uma ciência nova da educação, que será discutida apaixonadamente em todo o reino, mas bem mais uma concepção sistemática da ciência que legitimava as apirações dos radicais a uma democratização do saber que punha fim à distinção entre especialistas e leigos – é preciso que tudo seja ensinado a todos, universalmente e sem distinções a priori, sendo que o fim da educação não é o de formar elites especializadas que guardam ociosamente o “império sagrado” da sua ciência. Foi isso que Hartlib encontrou[...].

Covello (1999), p. 67) informa que esta obra foi publicada na Inglaterra com

prefácio do próprio Hartlib e aprovação da Chancelaria da Universidade Oxford. O

livreto despertou interesse, inclusive, do Parlamento Inglês, de maneira que o Rev. John

Gauden, ao discursar diante do Parlamento, recomendou que se convidasse Comenius

para ali colocar em prática sua doutrina, destinada ao progresso da fé e da paz.

Assim, em 1641, estava oficializado o convite, por intermédio de Samuel Hartlib,

a Comenius que se deixou cativar por Londres, ficando maravilhado pelo alto grau de

instrução do povo inglês. Diante disso, em 1641,Comenius aceita o convite de Hartlib e

vai para a Inglaterra, esperançoso de que este puderia ser o país adequado para dar início

à sua proposta de uma reforma educacional, isto é de uma concepção pansófica

(COVELLO, 1999, p.70).

O propósito de Comenius era o de fundar seu colégio, o collegium lucis, que seria

um centro irradiador da sabedoria e da felicidade. Seu propósito, porém, é frustrado por

causa de agitações internas e da revolta da Irlanda (EBY, 1978, p. 155), tornando

impossível a concretização imediata do programa de estabelecimento de sua escola. Em

1642, resolve partir de Londres, mas deixa escrita a obra Via Lucis, publicada apenas em

1668, pouco antes da sua morte, que sintetizava suas idéias pansóficas: escolas

universais, métodos universais, livros universais, idioma universal e, sobretudo, o

colégio de sábios voltado para o bem-estar da humanidade12.

Em 1642, Comenius chega à Suécia e é introduzido na corte por Ludovic De

Geer, para dirigir a reforma da instrução nas escolas suecas. Todavia, em contato com o

12 - Sérgio Covello (1999, PP. 71-74) apresenta a influência que Comenius exerceu nos principais educadores ingleses, revelando que não foi em vão sua presença naquele país.

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Chanceler Oxenstiern, este não demonstra interesse pelo empreendimento pansófico de

Comenius, e sugere- lhe que faça algo pela Suécia e pelo aprimoramento do estudo do

latim, para depois se ocupar com a iluminação universal, determinando que o autor da

Didática se aplique imediatamente e atenda às necessidades de seu país na questão

educacional (COVELLO, 1999, p. 83).

Comenius escreve a obra Novíssimo método das línguas, que será sua principal

contribuição ao estudo dos idiomas, em 1647. A preocupação de Comenius está

relacionada com o estudo comparativo das línguas, traçando regras para a arte de

traduzir textos, desaconselhando a tradução literal. Entretanto, Comenius não se esquece

de seu projeto inicial que se resume em reformar o ser humano para a convivência

pacífica das nações. A guerra, que dura três décadas, leva-o a desejar a paz mediante a

reorganização educacional da religião e da política. Assim, esboça Consulta universal

sobre o melhoramento dos negócios humanos, que insiste na educação de todos os seres

humanos, como condição básica para o progresso da humanidade e para a paz mundial.

Comenius, percebe, então, que sua esperança de colaboração do povo sueco com

os seus compatriotas ocorre como o desejado, de forma que, em 1648, retorna a Lezno,

vivendo duas situações: 1) a morte de sua segunda esposa; 2) o Tratado de Paz de

Westfália, colocando fim à Guerra dos Trinta anos. Este Tratado deu nova constituição à

Alemanha. Calvinistas e luteranos tiveram seus direitos reconhecidos, acabando, assim,

as dissensões com os católicos, mas os Irmãos Morávios são esquecidos e a Boêmia

perde de vez sua autonomia sob o jugo da Casa da Áustria (COVELLO, 1999, p.86).

Movido pelo desgosto, Comenius escreve uma carta ao chanceler Oxenstiern,

rogando- lhe apoio. Apelo em vão, a causa dos tchecos estava definitivamente perdida.

Em 1649, Comenius assume a direção da Fraternidade dos Irmãos. Aos cinqüenta

e seis anos, casado pela terceira vez, escreve a obra alegórica Unitas Fratrum onde trata,

metaforicamente, de uma mãe agonizante, chamando os filhos à cabeceira da morte, em

ordem de testamento. Neste texto, exorta a própria nação a permanecer no amor e na fé

em Deus, tendo zelo em seu serviço, cuidado com a educação das crianças e empenho na

luta pela paz. Aconselha as igrejas protestantes a se unirem e exorta as nações a viverem

em paz.

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Em 1650, a convite do príncipe Sigesmundo Rákoczy, começa a dirigir uma escola em Sárospatak, Hungria. Ali permanece durante quatro anos, onde escreveu duas obras Normas para a boa organização das escolas e o Mundo ilustrado. O primeiro texto é um breve tratado de organização escolar onde Comenius extravasa toda a sua experiência de quarenta anos de trabalho pedagógico. Com o livro Mundo ilustrado, deixa uma enciclopédia infantil, ou seja, ensinando por meio de gravuras. A gravura teria três objetivos: 1) reter a noção aprendida; 2) estimular a inteligência infantil; 3) facilitar a aprendizagem da leitura.

Comenius esperou, em Saróspatak, realizar o sonho de toda sua vida, o de criar uma instituição reformada, mas sofreu incompreensão e decepção pois os professores não colaboraram com o seu método, por falta de vontade e por não se sentirem com autoridade bastante para lutar contra a preguiça e a indisciplina dos alunos. Em 1654, deixa a Hungria e retorna à Polônia. Comenius reassume as funções de bispo em Leszno e pretende passar a velhice na tranqüilidade de sua diocese, no convívio com o povo tcheco.

Com a abdicação da rainha Cristina, em 11 de Fevereiro de 1654, sobe ao trono Carlos Gustavo, que é saudado com homenagens pelo povo checo e grandes honrarias por Comenius. O rei Carlos Gustavo aceita os elogios e não destrói a cidade de Lezsno. Isto provoca a revolta dos poloneses católicos que, em represália, no ano de 1655, incendeiam a cidade, no dia 25 de abril, reduzindo-a a cinzas. Comenius, então, perde seus bens, sua biblioteca e vários de seus manuscritos e, por pouco, não perde a própria vida. Seus adversários responsabilizam-no pela destruição da aldeia. Sérgio Covello (1999, p. 95) narra o episódio declarando:

Completamente pobre e acometido de doença não identificada, perseguido pela incompreensão, Comenius busca refúgio em diversas cidades alemães até que um convite do embaixador sueco em Amsterdã, Lourenço De Geer, filho de seu antigo mecenas, lhe é providencial e ele ruma para a Holanda, onde passará os últimos anos de sua vida.

Instalado em Amsterdã, protegido pela família De Geer, gozando de prestígio

sem igual na sociedade holandesa, no fim de 1657, edita a Didática magna. Em 1670, adoece gravemente. Está com setenta e oito anos e ainda redige um

resumo de seus princípios pedagógicos, o Spicilegium didactium, a fim de torná-los acessíveis ao magistério inculto da época, não muito afeito aos estudos de pedagogia. Assim, no dia 15 de novembro de 1672, rodeado por parentes e amigos, é sepultado numa pequena igreja em Naarden.

Diante do exposto até aqui, constatou-se que as produções literárias de Comenius resultaram da análise do seu contexto histórico. A Didática magna foi produzida naquele contexto e explicitou o conceito de “educação” de seu autor. Assim sendo, no terceiro capítulo será demonstrado um viés desse pressuposto fundamental que é a teologia.

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CAPÍTULO 3 – OS PRESSUPOSTOS TEOLÓGICOS DE COMENIUS NA

DIDÁTICA MAGNA

Tendo analisado, nos capítulos anteriores, as influências que marcaram o

pensamento, a vida e as produções literárias de Comenius, a atenção, agora, volta-se

para a Didática magna, que, por sua vez, talvez seja, dentre as várias produções

literárias de Comenius, a mais conhecida na atualidade.

Objetiva, este capítulo, compreender e analisar os pressupostos teológicos de

Comenius na Didática magna, pois pressupõe-se ser essencial a compreensão da

teologia de Comenius na Didática magna, para, no capítulo seguinte, enfocar seus

pressupostos pedagógicos e, no quinto capítulo, a inter-relação da teologia e da

pedagogia como condição sine qua non para a compreensão do pensamento de

Comenius, na referida obra.

Portanto, na busca de uma melhor compreensão da inter-relação da teologia e da

pedagogia de Comenius na Didática magna, inicia-se este capítulo analisando o

contexto sócio -político em que estava inserido Comenius, no momento em que iniciou a

escrita da Didática theca, que mais tarde ampliada e conhecida como Didática magna.

Considerando que a Didática magna, inicialmente chamada de Didática tcheca,

começa a ser composta entre os anos 1628-1632, é razoável compreender que ocorreram

algumas motivações na vida e pensamento de Comenius que colaboraram para que ele

deixasse tão importante obra no campo teológico-pedagógico com ênfase política,

dirigida a priori, ao público tcheco.

Pode-se observar que o projeto de constituir uma ciência da educação não surge,

porém, de imediato, não obstante a experiência que Comenius podia ter na área do

ensino, já que, a princípio, ele era um teólogo. Entretanto, a partir de 1620, com a

destruição da Boêmia, na guerra conhecida como a Batalha da Montanha Branca, pode

se deparar com um Comenius que procurará insistentemente ajudar o povo theco, na

reconstrução e restauração da liberdade no território boêmio.

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Foi com o propósito de reconstrução e restauração do povo theco, que Comenius

escreveu não só a Didática tcheca, mas também a Janua linguarum reserata (A porta

aberta das línguas), editada em 1631, cujo conteúdo demonstra o foco relativo à

educação.

Era como se Comenius tivesse aplicado sua esperança na educação enquanto

meio de manter unido e vivo o povo tcheco. Tal esperança parece refletir sua crença

quanto ao princípio de que somente por meio da educação, e neste caso, educação

religiosa, poderia reconduzir os homens à paz política e social, visto que somente por

meio da fé na educação é que o homem pode sair das trevas para a razão e compreensão

do seu semelhante. A educação é, para retomar o título de uma obra posterior de

Comenius, a Via Lucis (Caminho da luz) que conduz à verdadeira regeneração do

homem e do mundo (CAULY, 1995, p. 126).

Diante disso, constata-se que o interesse pedagógico não pode ser dissociado do

interesse teológico, visto que a educação constitui a via da renovação, e, ao mesmo

tempo, a afirmação da possibilidade de o homem agir efetivamente com vista à sua

salvação, cujo significado pode ser interpretado como livramento de suas angústias

interiores e exteriores. De maneira que, na concepção de Comenius, dependeria da ação

do homem este mundo ser um “paraíso” ou um “labirinto” tortuoso e impenetrável.

Além do que não se pode nos esquecer do significado político quanto ao

momento da escrita da Didática magna. A Didática tcheca, fora iniciada em 1628, e

pode ser considerada como uma resposta teológica à nova Constituição de 1627, que

prescrevia a instauração do catolicismo romano como religião oficial, colocando o

alemão como língua oficial, em detrimento do theco, ao mesmo tempo que reintroduzia

o latim como componente curricular obrigatório nas escolas.

Tratava-se, portanto, não só de Comenius prosseguir seus trabalhos na área

educacional, mas também, de fazer pelo tcheco aquilo que os Habsburgos estavam

fazendo pelo alemão e pelo catolicismo romano. Sua intenção demonstra a preocupação

com a evidente proposta de supressão do tcheco e da implantação da língua alemã e da

religião católica romana, em não deixar morrer o theco, rememorando, assim, as

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tradições mais antigas do protestantismo que consistia em prover ensino da língua

nacional.

Escrever em língua tcheca não significava apenas formular o único fundamento

legítimo de uma educação nacional e aberta a todos; seria realizar um ato de resistência

cultural contra o invasor e formular uma resposta política a uma política educativa – no

caso presente largamente inspirada pelos jesuítas (CAULY, 1995, p. 128).

Uma vez compreendida a gênese po lítica que motivou Comenius a escrever a

Didática magna, deve-se centrar a atenção, neste ponto da atual pesquisa, nos

pressupostos teológicos apresentado por Comenius na Didática magna. Importa

relembrar, em princípio, duas declarações de Comenius, que é mister ressaltar para a

compreensão do pensamento teológico do autor da Didática magna:

Nós ousamos prometer uma Didática Magna, ou seja, uma arte universal de ensinar tudo a todos: de ensinar de modo certo, para obter resultados; de ensinar de modo fácil, portanto, sem que docentes e discentes se molestem ou enfadem, mas ao contrário, tenham grande alegria; de ensinar de modo sólido, não superficialmente, de qualquer maneira, mas para conduzir à verdadeira cultura, aos bons costumes, a uma piedade mais profunda [...] (COMENIUS, 1997, p. 13).

Em outra parte da obra, Comenius (1997, p. 11) declara:

Didática Magna que mostra a arte universal de ensinar tudo a todos, ou seja, o modo certo e excelente para criar em todas as comunidades, cidades ou vilarejos de qualquer reino cristão escolas, tais que a juventude dos dois sexos, sem excluir ninguém, possa receber uma formação em letras, ser aprimorada nos costumes, educada para a piedade [...].

Nota-se, portanto, que o objetivo máximo do trabalho de Comenius aponta para

o que ele denomina “profunda piedade”. Dessa forma, a Didática deve conduzir o leitor

nos princípios norteadores de toda a vida humana, os quais são: 1) formação cultural; 2)

bons costumes; 3) profunda piedade.

Há uma preocupação não só com o conhecimento e cultura, com os costumes

morais, mas aparece a tônica na piedade. Por esta razão, a expressão final de suas

palavras: “educada para a piedade”. O pressuposto de Comenius é que a educação

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constiui-se no meio que deve nos conduzir à piedade. Pode-se, portanto, compreender

que a preocupação de Comenius é demonstrar que, por meio da Didática magna, os

leitores entendam que a salvação comum do gênero humano somente poderá ocorrer

através da educação, conforme afirma:

Sem dúvida a empresa é muito séria e, assim como deve por todos ser desejada, também deve ser ponderada pelo juízo de todos, e todos em conjunto devem levá-la adiante, pois ela13 diz respeito à salvação comum do gênero humano [...] (COMENIUS, 1997, 14).

No mesmo sentido, afirmara (COMENIUS, 1997, p 15):

Por isso peço aos meus leitores, ou melhor, em nome da salvação do gênero humano, esconjuro todos os que me lêem, em primeiro lugar, a que não qualifiquem de temeridade o haver alguém ousado não só tentar coisas tão grandiosas, mas sobretudo prometê-las, visto que tudo isso é feito com um fim salutar[...].

Os pressupostos acima mostram a relação que o pedagogo Comenius estabelece

entre a teologia e a pedagogia, uma dependendo da outra, visto que a educação deve

conduzir à piedade e, por extensão, ao verdadeiro conhecimento de Deus.

Sendo assim, conclama aos leitores que não menosprezem o que ele escreve,

antes, que leiam sua obra e, depois, emitam juízo de valor (COMENIUS, 1997, p. 14).

Ao exortar os leitores para a leitura, ele está consciente de que a empresa que está

determinado a realizar é difícil. No entanto, partindo do pressuposto de que a educação é

a salvação comum do gênero humano, duas certezas fazem com que ele persevere neste

empreendimento: o bem público e a obediência a Deus.

O bem público refere-se à sua intensa preocupação em colaborar para que todas

as pessoas tenham acesso à arte de aprender, pois deseja que sua obra seja de utilidade

pública.

Por lei da natureza, quem souber a maneira de prestar socorro a alguém em dificuldade não deverá deixar de prestá-lo: sobretudo quando

13 - o pronome ela refere-se à Didática, declarando que sua obra, cujo conteúdo é educacional, é a salvação comum para a corrupção do gênero humano.

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(como em nosso caso) não se tratar de um homem apenas, mas de muitos, nem apenas homens, mas de cidades, províncias, reinos, aliás, de todo o gênero humano[...]Se alguém tiver encontrado coisas melhores, que faça outro tanto, para que não seja acusado pelo Senhor de pôr suas minas no cofre e de escondê-las, pois Ele deseja que seus servos negociem e que a mina de cada um deles, posta no banco, dê como frutos outras minas (COMENIUS, 1997, p. 19).

No princípio do bem público, percebe-se a questão teológica como tônica em

relação à questão pedagógica, pois está consciente de que, se Deus lhe tem dado uma

percepção a ponto de despertar no seu íntimo o desejo de buscar colaborar com a raça

humana, na questão educacional, não se pode omitir, porém assumir a responsabilidade e

ensinar tudo a todos. Este foi o princípio motivador de Comenius e, por esta mesma

razão, traduziu a Didática para o latim, a fim de que ela pudesse ser mais facilmente

compreendida e estivesse ao alcance de um público maior (COMENIUS, 1997, p. 18).

Outra certeza motivadora de seu empreendimento, apesar da dificuldade,

relaciona-se com a obediência a Deus. Comenius estava consciente de que sua visão

pedagógica não foi fruto do acaso, mas o próprio Senhor a concedeu, e que, por isso,

devia ser colocada à disposição de todos. Declara o pastor Comenius: “O que o Senhor

me concedeu observar ponho à disposição de todos, para que seja comum [...] É lícito

buscar coisas grandiosas, sempre o foi e será, e não será vão o trabalho iniciado em

nome do Senhor” (COMENIUS, 1997, p. 19).

Com esse pressuposto, o autor responde a um questionamento que certamene

poderia surgir nas igrejas onde exerceu o ofício de pastor, em relação ao fato de um

teólogo estar ocupado com assuntos escolares:

[...] tal escrúpulo atormentou meu coração, a ponto de arrancar sangue, mas entendi que a única maneira de libertar-me seria obedecendo a Deus e dedicando-me, pelo bem comum, a tudo que me fosse sugerido pelo instinto divino. Almas cristãs permiti que vos fale com toda a sinceridade! Os que me conhecem mais de perto sabem que sou homem de pouco engenho, quase sem cultura, mas sabem que choro as chagas de nosso tempo e que desejo, se para isso houver ocasião, lenir nossas feridas com os remédios encontrados por mim e por outros (que só podem provir da benevolência de Deus) (COMENIUS, 1997, pp.18,19).

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Ora, quando Comenius comenta a proposição “remédios encontrados”, à luz do

contexto próximo, entende-se que ele está se referindo à arte de ensinar ou às questões

educacionais.

Dessas primeiras observações da Didática, pode-se inferir que a preocupação de

Comenius é de prover profunda base pedagógica às escolas e seus educadores, daí a

razão de se enfatizar que a “arte de ensinar tudo a todos”, tornando clara a sua

preocupação em obedecer ao Senhor, e que a referida obra, Didática magna, foi iniciada

em nome do Senhor.

Comenius está certo, portanto, de que o conteúdo de sua obra está segundo a

vontade e aprovação de Deus. Dessa forma, inicia a Didática escrevendo aos líderes do

Estado e da Igreja, revelando-lhes a necessidade da educação, considerada o remédio de

Deus para a corrupção do gênero humano. Corrupção esta que começou desde o

princípio do mundo.

É fundamental enumerar alguns princípios teológicos que norteam o pensamento

religioso de Comenius.

3.1. O texto bíblico como escrito sagrado

Na análise da Didática magna, um dos primeiros aspectos que podemos ressaltar

na teologia de Comenius é sua intensa citação de textos bíblicos, isto é, em média

setecentos versículos (FARY, 1982, p.10). A intensa referência bíblica era proveniente

tanto de seus pressupostos filosóficos religiosos, quanto de sua experiência pessoal

como cristão piedoso.

Em sua concepção, o texto bíblico ao lado da natureza e do próprio homem é

livro reveladore da pessoa do Criador e do conhecimento de todas as coisas, todavia, o

texto bíblico, sendo a “revelação escrita de Deus, era a maior das três fontes de

conhecimento e a mais perfeita obra de literatura” (SOUCEK, 1985, p. 22).

Verifica-se este princípio nas próprias palavras de Comenius (1997, p. 272):

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101

As fontes são as Sagradas Escrituras, o mundo, e nós mesmos, ou seja, a palavra de Deus, suas obras e nosso sentimento interior. Das Escrituras se haurem a consciência e o amor de Deus. Que despois, a partir do mundo e da sábia contemplação das admiráveis obras divinas nele existentes sejamos conduzidos para um sentimento de piedade, o que se vê entre os pagãos, que pela simples contemplação do mundo, foram levados a venerar o poder divino [...]

Novaková (1985, pp. 225-238) indica que Comenius tinha o texto bíblico em

mãos, como fonte de consolo e fortalecimento nas angústias que sempre enfrentara

durante sua vida, momentos estes retratados no capítulo dois desta pesquisa. Talvez por

esta razão é que ele se empenhou variadas vezes para traduzir a bíblia para o theco e

disponibilizar o texto bíblico para os Irmãos Morávios, objetivando sua leitura e consolo

em meio às vicissitudes de seu contexto histórico.

Isto posto, pode-se conceber que o texto bíblico, para Comenius, exercia

primazia em sua vida e em qualquer grade curricular escolar, pois, em sua compreensão,

os autores pagãos pouco podiam contribuir para um adequado conhecimento das coisas;

ao contrário, propunha aos cristãos de sua época que imitassem o bom exemplo da igreja

grega moderna que proibiu o uso da literatura pagã entre seus membros e escola.

A igreja grega moderna, apesar de possuir, em sua bela língua, livros filosóficos e gregos dos antigos conterrâneos considerados os amis sábios do mundo, proibiu sua leitura a seus fiéis sob pena de anátema. Por isso, embora os gregos tenham mergulhado na ignorância e na superstição pela enorme barbárie circundante, Deus até agora os tem preservado de uma enxurrada anticristã de erros. Nisso devem ser imitados para que (aumentado-se também o estudo das Sagradas Escrituras) seja mais fácil eliminar definitivamente as trevas da confusão herdadas dos pagãos, pois só na luz de Deus se vê a luz (Sl XXXVI, 10); casa de Jacó, vinde, caminhemos à luz do Senhor (Is II,5) (COMENIUS, 1997, p. 298).

No mesmo contexto, Comenius (1997, pp. 302, 303) declarou que o texto bíblico

é suficiente para toda forma de conhecimento e ensino:

Outros dizem: os livros pagãos , se não ensinam teologia de modo correto, ensinam filosofia, que não pode ser haurida nas Sagradas Escrituras, que nos foram dadas expressamente para nossa salvação.

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Respondo: a fonte de toda Sabedoria é a Palavra de Deus, no alto dos céus (Ecle I,5) [...] Quem estuda o mundo latino poderá pelo menos ler Terêncio, Plauto e autores semelhantes apenas pelo estilo. Respondo: O que nos mostram esses escritores, mesmo que folheados ao acaso, senão facécias, gracejos, patuscadas, paixões, amores sórdidos, bordéias, engodos urdidos de vários modos e coisas semelhantes, das quais os cristãos devem desviar olhos e ouvidos? Será possível crer que o homem seja tão pouco depravado interiormente que lhe possam ser mostradas de fora as formas de todos os tipos de torpezas, dando-lhe ensejo, incentivo e todo tipo de ocasião para perder-se?

É com este pressuposto que se pode depreender a razão pela qual Comenius

criticava as escolas cristãs de sua época, pois em sua forma de pensar, tais escolas

conheciam mais a respeito da literatura pagã do que a respeito de Cristo, o que trazia,

como conseqüência, uma situação perigosa à vida dos alunos:

É inevitável e necessário que esse assunto, a que apenas aludimos no capítulo anterior, seja agora tratado com mais vagar, visto que, se quisermos escolas realmente cristãs, precisaremos afastar delas toda a turba de doutores pagãos [...]O amor pela glória de Deus e pela salvação humana obriga-me a ser zeloso, pois as principais escolas cristãs professam Cristo apenas de nome, enquanto se comprazem apenas com Terêncio, Plauto, Cícero, Ovídio, Catulo, Tibulo, Musas e Vênus. Por isso sabemos mais do mundo que de Cristo, sendo necessário sair à cata de cristãos em plena cristandade. Até mesmo para os teólogos mais eruditos, que deveriam ser mestres de divina sabedoria, Cristo fornece apenas fachada, enquanto Aristóteles, com sua turba de pagãos, fornece o sangue e o espírito: esse é um censurável abuso da liberdade cristã, uma torpe profanação, uma situação perigosa (COMENIUS, 1997, p. 288).

Na compreensão de Comenius, o estado de perigo para as escolas cristãs

consistia no princípio de que Cristo estava sendo pouco conhecido, enquanto outras

literaturas estavam sendo disseminadas com liberalidade naquelas escolas cristãs.

Ora, em se partindo do princípio de que a Didática magna de Comenius tinha,

além dos pressupostos teológicos e pedagógicos, também uma preocupação política,

conclui-se que Comenius, ao tratar do “lugar” do texto bíblico nas escolas cristãs,

defendia os princípios da Reforma Protestante em detrimento dos pressupostos

hermenêuticos da Igreja Católica Romana, visto que ele compreendia que a bíblia

deveria ter primazia em todos os assuntos.

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Contudo, depois de analisar a hermenêutica bíblica cultivada pela Igreja Romana

de sua época, cuja base estava na Idade Média que ensinava o princípio de que a

interpretação da bíblia tinha que se adaptar à tradição e à doutrina da Igreja, de maneira

que era preconizado ao cristão que antes de conhecer à bíblia, deveria aprender a crer

(BERKHOF, 1985, p. 26), e considerando que a Reforma Protestante, por outro lado,

ensinava que a Igreja não poderia determinar o que a bíblia ensinava, mas a bíblia

deveria determinar o que a Igreja ensinaria, sendo este, um dos pilares da Reforma

Protestante, isto é, sola scripture (Somente as Escrituras), defendido tanto por Lutero

quanto por Calvino (BERKHOF, 1985, p. 29) e tantos outros reformadores (BRUCE,

1990, pp. 338-342), Comenius parece se aproximar de uma interpretação reformada

quanto ao texto bíblico, no sentido de que para ele, a bíblia é a revelação de Deus;

portanto, o único livro no qual o cristão poderia encontrar o puro e o verdadeiro

conhecimento de todas as coisas.

Diante disto, a intenção de Comenius, ao defender a primazia do texto bíblico nas

escolas cristãs, no seu mais conhecido texto pedagógico, pressupunha, implicitamente,

um caráter político e crítico em relação à forma de interpretação da bíblia por parte da

Igreja Católica Romana, tendo como conseqüência o desvio da “verdade” da referida

Igreja, na compreensão do autor da Didática magna.

Uma das questões mais difíceis desta pesquisa a respeito de Comenius, que

consiste na tentativa de compreender, tendo como foco a Didática magna, a linha

hermêutica adotada por ele no estudo do texto bíblico. Alguns comeniólogos

pressupõem que ele desenvolva uma abordagem histórico-gramatical (RIBEIRO, 2003,

p. 78), tendo, talvez como fundamento de sua afirmação, não só a influência calvinista

incutida nos primeiros anos de estudos de Comenius em Herbon e Heildelberg, mas

talvez, porque alguns compreendem que ele seja um calvinista (COSTA, 2000, p. 30),

enquanto outros propõem que ele siga uma interpretação literal do texto bíblico (FARY,

1982, pp. 33-34).

Na análise da Didática magna, encontram-se três formas de interpretações do

texto bíblico utilizados por Comenius: alegórica, anagógica e literal (FARY, 1982, p.

30), que pode ser vistas em diferentes contextos da referida obra e que, devido à intensa

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104

utilização ou não, demonstram a preferência hermenêutica de Comenius no estudo do

texto bíblico.

1) Interpretação alegórica – Segundo Fary (1982, p. 30), há apenas uma

passagem classificada como alegórica empregada por Comenius na

Didática magna. Refere-se à passagem de Marcos 4.26-29, cujo título

corresponde à conhecida parábola do semeador.

2) Interpretação anagógica – Houaiss (2001, p.201) define a referida

interpretação como sendo uma “interpretação mística dos símbolos e

alegorias das Sagradas Escrituras”. Fary (1982, pp. 31-33), comentando

esta linha de interpretação de Comenius, ressalta que ela aparece cerca

de dezesseis vezes na Didática magna, de maneira que, apesar de ser

relativamente utilizada, não reflete exatamente a hermenêutica de

Comenius. Como exemplo, destaca-se o texto de Deuteronômio 21.12

para compreender a interpretação anagógica. O referido texto diz: “[...]

então, a levarás para casa, e ela rapará a cabeça, e cortará as unhas”.

Comenius (1997, p. 306) dá a seguinte interpretação deste texto:

Mas mesmo esses livros deverão ser dados aos jovens depois que seus espíritos estiverem bem firmes na fé cristã, feitas algumas emendas, para que não fiquem nomes de deuses pagãos ou rastro de superstição. Do mesmo modo, Deus permitiu tomar por mulheres as virgens pagãs depois de lhes raparem a cabeça e cortarem suas unhas (Dt XXI.12). Para sermos bem entendidos, diremos que não queremos proibir totalmente aos cristãos os escritores pagãos, pois não ignoramos que Cristo deu a quem crê o privilégio celeste de poder tratar sem perigo com peçonhas e serpentes [...].

Ora, tomando o texto bíblico de Deuteronômio e comparando com a

interpretação de Comenius, percebe-se que ele faz uma hermenêutica um tanto curiosa

de tal referência, uma vez que o assunto em Deuteronômio tem, como foco, os

versículos seguintes, que versam a respeito de como tratar a mulher prisioneira, não

possuindo qualquer ênfase com livros pagãos:

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[...] e despirá o vestido do seu cativeiro, e ficará na tua casa, e chorará a seu pai e a sua mãe durante um mês. Depois disto, a tomarás; tu serás seu marido, e ela, tua mulher. E, se não te agradares dela, deixa-la-ás ir à sua própria vontade; porém, de nenhuma sorte, a venderás por dinheiro, nem a tratarás mal, pois a tens humilhado (Dt 21.13,14).

3. Interpretação literal – Ao que parece, segundo a análise prévia da Didática

magna, constata-se que a quantidade, quanto ao uso da interpretação literal,

seja a preferida por Comenius em suas citações da bíblia. Fary (1982, pp. 34-

36) afirma que a interpretação literal da bíblia aparece em cerca de 145

referências, a saber, que 90% das citações bíblicas são literais, ou seja,

Comenius procura explicar o texto bíblico a partir de sua utilização comum e

usual (FARY, 1982, pp. 33-34), não se importando, necessariamente, com o

contexto histórico e com o sentido da palavra na época em que foi escrita,

não adotando, por extensão, a interpretação bíblica da Reforma Protestante,

isto é, histórico-gramatical.

Expõem-se, abaixo, cuja base é Fary (1982, pp. 168-173), da linha hermenêutica

mais utilizada por Comenius na Didática magna, a qual evidenciará que a interpretação

literal tem preferência nos métodos de estudos e citação do texto bíblico.

A CLASSIFICAÇÃO DAS REFERÊNCIAS DO TEXTO BÍBLICO

SEGUNDO OS MÉTODOS DE INTERPRETAÇÃO

Capítulos Alegórico Anagógico Didático Literal

1 Sl 8,1 Tm 3.16, 1 Pe 1.12, Hb 1.6, Jo 1.51, Mt 4.11

2 Ecles. 1.8, Hb 6.20, Rm 8.30, Ef 1.22, Rm 8.29

3

Os 2.21-22, Ap 6.11, 11.1, 21.1, 2 Pe 3.13, Gn 47.9, Sl 39.12, Jó 7.10, Lc 12.33, Mt 24.44, Gn 5.24, 2 Pe 3.9

4 Gn 1.26, Gn 2.19, Lv 19.2

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5 Ecles. 1.7, Ecles. 12.7, Hb 11.6, Sl 73.25-26, Dn 4.25, Fil 4.13, Rm 11.24, Mt 3.9 Mt 18.3, 1 Co 7.14, 1 Co 6.11

6 1 Pe 1.12, Ef 3.10, 1 Rs 22.20, Jó 1.6

7

8 Dt 6.7, Ef 6.14 Gn 18.19, Dn 1.20, At 7.22

9 1 Tm 2.12

10 Fp 4.7, Lc 2.52, Mt 11.29, Pv 11.1,22.

11

12

13

14

15 Dn 1.12 , Lv 25

16 Mc 4.26-29

17

18

19 Pv 17.24

20

21

22

23

24 1 Co 3.6-8, Dn 11.35, Ap 7.14

Is 28.9, Jr 13.23

1 Tm 4.8, Lc 10.42, Mt 6.33, Lc 16.19-31, Gn 5.24, 1 Pe 1.23, 2 Tm 3.15, 1 Tm 4.6, 1 Co 7.14, Gl 5.6, Tg 2, 1 Pe 1.3, Jo 13.17, 1 Tm 1.5, 1 Co 6.20, Is 1, Jo 4, Lc 12, 1 Co 1.18

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25 Ex 3.22, Js 1.14, Dt 21.12, Is 61.13, Mt 15.13

Dt 6.4-7, 31.11-13, 2 Tm 3.15

Is 48.17, Is 8.19, Jo 5.39, Dt 4.5-6, Js 1.8, Sl 19.8, 2 Tm 3.16-17, Jr 10.2, 2 Rs 1.3, Is 8.19-20, Sl 147. 20, Jr 2.13, Os 8.12, Dt 32.47, Sl 119.98-99, Pv 2.6, Sl 36.9, Jo 6.68, Is 8.20, Is 29.10-14, Rm 1.21, Is 54.13, Ef 3.10, Dt 7.22-26, Dt 12.29-32, Js 24.23, Jr 10.14, Cl 2.8, 1 Co 8.4,7,9, Lv 10.1, 1 Pe 2.5, Rm 1.21,22, Cl 2.8,9, At 19.19, Sl 36.9, Is 2.5, 60.2, 1 Sm 13.19-20, Ex 23.13, 2 Co 6.15, 2 Rs 5.12, Mc 16.18, 1 Pe 2.2, 2 Tm 3.15, Mt 17.5, 23.8, Mc 10.14, 1 Pe 2.2, Sl 34.11, 2 Co 10.5

26 Sl 2.11, Fm 2.4,10

27

28 Lc 2.52

29

30

31

32 Is 11.9

33 Is 51.16, Lc 12.49, Jo 3.8

Mt 25.25, Nm 11.29, Jo 21.15

A partir desse quadro de referências, perceber-se que, basicamente em quase toda

a Didática, há versículos bíblicos que, por suas vezes, resultam em um segundo quadro

radiográfico quanto à presença dos versículos e sua porcentagem nos capítulos da obra

de Comenius.

REFERÊNCIAS BÍBLICAS POR CAPÍTULOS DA DIDÁTICA MAGNA

1ª seção (CAP. I- VI) “Fundamentos teológicos e filosóficos da educação”

CAPÍTULOS/DIDÁTICA Nº DE VEZES

%

1 O homem é a mais alta, a mais absoluta e a mais excelente das criaturas.

06 3,7

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2 O fim último do homem está fora desta vida.

05 3,0

3 Esta vida não é senão uma preparação para a vida eterna

12 7,4

4 Os graus da preparação para a eternidade são três: conhecermo -nos a nós mesmos (e conosco todas as coisas), governarmo-nos e dirigirmo -nos para Deus

03 1,9

5 As sementes destas três coisas (da instrução, da moral e da religião) são postas dentro de nós pela natureza.

11 6,7

6 O homem tem necessidade de ser formado para que se torne verdadeiramente homem.

04 2,4

Total 41 25

REFERÊNCIAS BÍBLICAS POR CAPÍTULOS DA DIDÁTICA MAGNA

2ª seção (CAP. VII - XIX) “Didática Geral – Princípios” CAPÍTULOS/DIDÁTICA Nº DE VEZES

%

7 A formação do homem faz-se com muita facilidade na primeira idade, e chego a dizer que não pode fazer-se senão nessa idade.

8 É necessário, ao mesmo tempo, formar a juventude e abrir escolas.

05 3,0

9 Toda juventude de ambos os sexos deve ser enviada às escolas.

01 0,6

10 Nas escolas, a formação deve ser universal.

05 3,0

11 Até agora, não tem havido escolas que correspondam perfeitamente ao seu fim.

12 As escolas podem ser reformadas. 13 O fundamento das reformas escolas é a

ordem em tudo.

14 A ordem perfeita da escola deve ir buscar-se na natureza.

15 Fundamentos para prolongar a vida. 02 1,2 16 Requisitos para ensinar e para aprender,

isto é, como se deve ensinar e aprender para que seja impossível não obter bons resultados.

01 0,6

17 Fundamentos para ensinar e aprender com facilidade

18 Fundamentos para ensinar e aprender solidamente.

19 Fundamentos para ensinar com vantajosa rapidez.

01 0,6

Total 15 9,0

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109

REFERÊNCIAS BÍBLICAS POR CAPÍTULOS DA DIDÁTICA MAGNA

3ª seção (CAP. XX-XXVI) “ Didática Especial – Disciplina e livros”. CAPÍTULOS/DIDÁTICA Nº DE VEZES

%

20 Métodos para ensinar as ciências em geral.

21 Método para ensinar as artes. 22 Método para ensinar as línguas. 23 Método para ensinar a moral. 24 Método para incutir a piedade. 28 17 25 Se realmente queremos escolas

reformadas segundo as verdadeiras normas do autêntico cristianismo, os livros dos pagãos, devem ser afastados das escolas, ou ao menos devem ser utilizados com cautela.

57 34

26 Da disciplina da escola. 02 1,2 Total 87 53

REFERÊNCIAS BÍBLICAS POR CAPÍTULOS DA DIDÁTICA MAGNA 4ª seção (CAP. XXVII - XXXI) “Plano de organização escolar”

CAPÍTULOS/DIDÁTICA Nº DE VEZES

%

27 As instituições escolares devem ser de quatro graus, em conformidade com a idade e com o aproveitamento.

28 Plano da escola materna 01 0,6 29 Plano da escola de língua nacional. 30 Plano da escola latina. 31 Da Academia, das viagens e da

associação didática.

Total 01 0,6 REFERÊNCIAS BÍBLICAS POR CAPÍTULOS DA DIDÁTICA MAGNA

Epílogo (CAP. XXXII - XXXIII) “ Resumo geral e apelo final”. CAPÍTULOS/DIDÁTICA Nº DE VEZES

%

32 Da organização universal e perfeita das escolas.

01 0,6

33 Dos requisitos necessários para começar a pôr em prática este método universal.

19 11,4

Total 20 12 SÍNTESE DAS REFERÊNCIAS BÍBLICAS

SEÇÃO CAPÍTULOS TÍTULOS Frequência % 1ª I – VI Fundamentos Teológicos 41 25 2ª VII – XIX Didática geral 15 9 3ª XX- XXVI Didática especial - disciplina e livros 87 53 4ª XXVII – XXXI Plano de organização escolar 01 + 0

Epílogo XXXII - XXXIII Resumo geral e apelo final 20 12 Total Geral 164 100

No prosseguimento da compreensão do pensamento teológico de Comenius, é necessário analisar um segundo princípio que norteia sua teologia na Didática magna, trata-se da sua concepção do ser divino.

3.2. O Ser divino

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110

Há uma alta incidência quanto à presença do termo “Deus” na Didática magna.

Com esse pressuposto, verifica-se que o termo “Deus”, para Comenius, refere-se à

concepção cristã, ou seja, em sua teologia o ser divino é compreendido em Pai, Filho e

Espírito Santo. Assim, é importante preconizar que o termo “Deus” aparece, na Didática

magna, 441 vezes. O nome-título “Cristo”, cerca de 99 vezes. O nome “Espírito Santo”,

cerca de 13 vezes. O nome “Jesus”, cerca de 9 vezes. O termo “Senhor”, cerca de 44

vezes. Em síntese, há 602 referências à Trindade na Didática magna.

Além do número de citações acima, que atestam a crença cristã de Comenius

quanto à pessoa de Deus, isto é, Triúno, tem-se que tal crença é constante em sua

discussão com os Socinianos da época que rejeitavam a crença em um Deus Trino.

Lochman (1993, p. 37), um dos renomados intérpretes do pensamento de

Comenius, comenta a respeito da concepção comeniana da doutrina cristã a respeito da

Trindade, em oposição ao socianismo:

A confiança fundamental de Comenius estava enraizada e baseada em sua crença no Deus da fé cristã, isto é, especificamente, no Deus Triúno. Comenius era um entusiasta pensador trinitariano; não apenas em sua firme rejeição às tendências teológicas unitaristas entre seus contemporâneos, especialmente em círculos socinianos. Neste assunto, o irênico Comenius se opunha firmemente aos que negavam a divina trindade. Para ele, a afirmação do Credo a respeito da natureza trinitariana de Deus era supremo tesouro tanto espiritualmente quanto intelectualmente. Uma verdade compreensiva é aqui expressa, a qual para ele era útil sob todos os aspectos, de significância-chave ontologicamente, epistemologicamente e também na prática [...] Quando em sua crítica aos socinianos, ele cunhou o dito, Deus não é um eremita (Deus non est solitarius), tanto quanto ele definiu Deus como “supremamente comunicativo” (summe communicativus), ele acertou bem no alvo.

É interessante observar que, a partir de sua crença na doutrina cristã da Trindade,

Comenius preconiza o sistema triádico ou método intelectual universal, que, segundo se

percebe, poderá ser expresso em todas as faculdades humanas, refletindo,

simultaneamente, a trindade (LEE, 1987, p.77). O sistema triádico está, portanto,

refletido na abundância de tríades na Didática magna. O referido sistema aparece 80

vezes na Didática magna, mas nesta pesquisa citar-se-ão alguns exemplos, buscando

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111

comprovar que a crença na doutrina cristã da Trindade proporcionou a Comenius a

criação do método triádico.

Com esse pressuposto, Comenius (1997, p. 97) compreenderá que a essência da

alma é constituída por três faculdades: inteligência, vontade e memória, conforme suas

palavras:

A essência da alma é composta por três faculdades (que correspondem à Trindade): intelecto aplica-se à observação da diversidade dos objetos (até as pequeníssimas minúcias). A vontade provê à opção, ou seja, à escolha das coisas profícuas e à rejeição das nocivas. A memória retém para uso futuro as coisas que antes ocuparam o intelecto e a vontade, recordando à alma a sua dependência de Deus e suas missões: sob esse aspecto, chama -se também consciência. Para que essas faculdades possam cumprir bem a sua tarefa, é necessário instruí-las nas coisas que iluminam o intelecto, dirigem a vontade, estimulam a consciência: para que o intelecto conheça com agudeza, a vontade escolha sem erros e a consciência anseie por consagrar tudo a Deus. Portanto, assim como as faculdades (intelecto, vontade e consciência), por constituírem uma só alma, não podem ser separadas, também os três ornamentos da alma (instrução, virtude e piedade) não devem ser separados.

Depara-se, então, com o método triádico, também, na concepção de Comenius

(1997, p. 46) a respeito das moradas do homem: útero materno, a terra e o céu:

Três são as espécies de vida para cada um de nós e três as moradas: o útero materno, a Terra, o Céu. Da primeira se entra na segunda pelo nascimento; da segunda, na terceira pela morte e pela ressurreição; da terceira nunca se sai, por toda a eternidade. Na primeira recebemos apenas a vida, com movimentos e sentidos incipientes; na segunda, a vida, o movimento, os sentidos, com os primórdios do intelecto; na terceira, a plenitude absoluta de tudo. A primeira vida prepara para a segunda; a segunda para a terceira; a terceira é, em si mesma, sem fim.

Por fim, não podemos nos esquecer, considerando o método triádico, tão

presente no pensamento de Comenius e expresso na Didática magna, de que há três

requisitos para que alguém seja homem genuíno:

Segue-se que os requisitos genuínos do homem são: 1) conhecer todas as coisas; 2) dominar as coisas e a si mesmo; 3) reconduzir a si mesmo,

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levando consigo todas as coisas para Deus, que é fonte de todas as coisas. Esses três aspectos, designados de modo mais usual, são: I. Instrução; II. Virtude, ou seja, costumes honestos; III. Religião, ou seja, piedade (COMENIUS, 1997, p. 55).

A crença da doutrina cristã relativa à Trindade no pensamento de Comenius,

portanto, foi a motivadora do método pedagógico comeniano, conhecido como triádico.

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3.3. A gênese de todas as coisas – uma apologia criacionista.

Na análise da Didática magna, no tocante à crença de Comenius quanto à

doutrina cristã da Trindade, tem-se que Comenius, ao escrever a Didática, defende a

teoria criacionista, ou seja, que Deus criou todas as coisas, visíveis e invisíveis, e que a

criação reflete Sua sabedoria e divindade.

E tendo feito o homem à sua imagem, dotado de mente, para que à mente não faltasse alimento, dividiu as criaturas em muitas espécies, para que este mundo visível fosse como um espelho finíssimo do infinito poder, sabedoria e bondade de Deus, cuja contemplação suscitasse admiração pelo criador, promovesse o seu conhecimento, despertasse o amor por ele, e realmente, permanecendo invisível, oculto no abismo profundo da eternidade, ele se manifesta em toda parte nas criaturas visíveis, pela força, pela beleza, ao paladar. Para nós, o mundo é tão somente o lugar onde nascemos e nos alimentamos, nossa escola. Portanto, há um além em direção ao qual, demitidos das classes desta escola, seremos alçados, ou seja, a Academia Eterna. Tudo isso é evidente para a razão, mas é ainda mais manifesto pelas palavras divinas (COMENIUS, 1997, pp. 50,51).

A criação do mundo possui dois objetivos fundamentais: 1) Ser paraíso de

delícias para o Criador; 2) ser fonte de alimento para o homem (COMENIUS, 1997, p.

50), ou seja, tudo o que existe não serve somente para a alimentação do homem, mas,

também, para que o homem, por meio da educação, seja preparado para a vida eterna:

Por tender para outra, esta vida não é vida (propriamente dita), mas um preâmbulo para a vida verdadeira e eterna,; isso fica claro pelos testemunhos que provêm de nós mesmos, do mundo e da Santa Escritura[...] Esta vida sobre a terra não passa de preparação para a eterna, e por esse motivo, não é de admirar que a alma, utilizando o corpo, procure obter o que quer que lhe seja útil na vida futura (COMENIUS, 1997, p. 49).

3.4. A concepção antropológica-teológica – o homem como microcosmo.

A partir do momento em que Comenius apresenta o Deus Triúno como criador de

todas as coisas, ele procura se aprofundar nos estudos antropológicos, propiciando-nos

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uma clara exposição quanto à sua concepção do homem, demonstrando que este fora

formado do pó da terra, e, portanto, ele é um jardim de delícias para o Senhor.

No princípio, Deus, formando o homem da lama da terra, instalou-o no Paraíso de delícias, que implantara no Oriente, não só para que o guardasse e cultivasse (Gn II,15), mas também para que fosse um jardim de delícias mesmo para seu Senhor. Assim como o Paraíso era a parte mais amena do mundo, também o homem era a mais delicada das criaturas. O Paraíso foi posto no Oriente; o homem era feito à imagem daquele que existe desde o início dos dias da eternidade [...] no homem foram reunidos todos os elementos materiais e todas as formas e seus graus, para exprimir toda a arte da divina Sabedoria (COMENIUS, 1997, pp. 21,22).

Um dos focos da Didática magna refere-se à antropologia, talvez por esta razão,

é que muitos estudiosos têm preconizado que a antropologia é o coração da filosofia de

Comenius (KAVKÁ, 1992, p. 247). O próprio Comenius indica que o homem parece

ser a tônica da Didática, pois reserva pelo menos seis capítulos para discorrer a respeito

do ser humano, afirmando que ele é um microcosmo, isto é, “a síntese do universo, que

em si encerra implicitamente todas as coisas que se vêem esparsas por todo o

macrocosmo” (COMENIUS, 1997, p. 59).

Na visão comeniana, conforme visto, o homem é compreendido como um

micromundo (COMENIUS, 1997, p. 59), mas, distinto das demais criaturas, pois possui

características específicas, como ser criado para ser “imagem e semelhança de Deus”.

Uma das características que distingue o homem dos demais animais, na

concepção comeniana, refere-se ao modo como o homem foi criado. Para Comenius,

desde a criação do homem, este apresenta características distintivas em relação às outras

criaturas de Deus, ou seja, a essência, a vida, o sentido, a razão. Por essa razão, afirma

que o homem é a mais elevada, perfeita e excelsa das criaturas e que o próprio Deus veio

em forma humana, sendo esta uma maneira de enaltecer o gênero humano.

Destinei-te a compartilhar comigo a eternidade; para ti criei o Céu e a Terra e tudo o que contêm; em ti somente reuni todas as naturezas, que são distintas nas outras criaturas, a essência, a vida, o sentido e a razão. Fiz-te soberano das obras de minhas mãos, tudo pus aos teus pés, ovelhas e bois, animais da terra, pássaros do ar, peixes do mar: por esse motivo te coroei de glória e honra (Salmo 8). Finalmente, para que

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nada te faltasse, dei-te a mim mesmo em união hipostática, jungindo para a eternidade a minha natureza com a tua: sorte que não coube a nenhuma das outras criaturas, visíveis ou invisíveis. Que outra criatura, no Céu e na Terra, pode ufanar-se de que Deus manifestado na carne apareceu aos Anjos? (1 Tm 2.16) [...] Entende, pois, que és o termo absoluto, a síntese admirável, o Deus que representa minhas obras, a coroa da minha glória (COMENIUS, 1997, pp. 41, 42).

À luz dessas palavras, pode-se compreender que, para Comenius, o homem é a

mais importante das criaturas de Deus. Isto porque a sua criação foi de forma totalmente

distinta das outras criaturas, de maneira que ele é a coroa da criação e representante das

obras de Deus, um ser racional, que traz consigo o privilégio de ufanar-se de Deus haver

se encarnado como homem, conforme declaração do texto bíblico do evangelho de João

capítulo 1.14: “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e

vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai”.

Há, ainda, outra característica do homem, na concepção de Comenius, que o

distingue das demais criaturas de Deus: a aptidão inerente para entender as coisas

através da mente. Deus não somente o criou de forma distinta dos outros seres, mas

também o dotou de características que o torna enaltecido.

Essa característica é ensinada na Didática da seguinte maneira. Para autor da

Didática o homem nasceu com a capacidade de adquirir a ciência das coisas, isto é, com

disposição para aprender as diversas formas do conhecimento. Isto ocorre pois o homem

é a imagem e semelhança de Deus.

Todo homem nasceu com capacidade de adquirir a ciência das coisas, antes de mais nada porque é imagem de Deus. De fato, a imagem, se acurada, representa necessariamente as feições do arquétipo, ou não seria imagem. Portanto, uma vez que entre as outras propriedades de Deus sobressai a onisciência, necessariamente algo semelhante resplenderá no homem (COMENIUS, 1997, p . 58).

Na continuação de seu argumento, Comenius preconiza que a forma de

chegarmos ao conhecimento é por meio de uma mente lúcida, visto que ela é semelhante

a um espelho, que recebe as imagens de todas as coisas, não só as que estão próximas,

mas também, aproxima as imagens que estão distantes de si.

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Na verdade nossa mente não apreende só as coisas próximas, mas também aproxima de si as distantes (em lugar e tempo), alça-se às mais difíceis, indaga as ocultas, descobre as veladas, esforça-se por investigar também as imperscrutáveis; é algo infinito e sem limites. Se fossem concedidos ao homem mil anos, durante os quais, adquirindo sempre novos conhecimentos, ele passasse de um conhecimento a outros, ainda asssim teria novos objetos para conhecer, tal é a inexaurível capacidade da mente humana, que no conhecimento é como um abismo. Nosso pequeno corpo é circunscrito por limites muito exíguos: a voz pouco alcança, a visão só circunscreve a altura do céu, mas à mente não se pode impor limite algum, nem no céu nem além do céu; ela ascende além dos céus dos céus assim como desce ao abismo dos abismos, ela seria capaz de penetrá-los com incrível velocidade. E queremos negar que tudo lhe seja acessível? Queremos negar que ela seja capaz de tudo conter? (COMENIUS, 1997, p . 59).

Comenius parece argumentar que a mente humana já possui a semente do

conhecimento, de forma que o homem nada recebe do exterior, mas que a semente do

conhecimento parte de dentro para fora (COMENIUS, 1997, p. 59), como sugeria a

filosofia socrática no método da maiêutica. De modo semelhante, Comenius afirmará:

1) Princípios filosóficos – Na argumentação de que a mente humana já

possui a semente do conhecimento, Comenius recorre ao pressuposto

de Pitágoras. Pitágoras, segundo Comenius, afirmava que qualquer

criança de sete anos, sendo interrogada convenientemente sobre

qualquer problema filosófico, estaria em condições de responder com

segurança a tudo (COMENIUS, 1997, p. 60).

Sendo assim, Comenius parece indicar que o conhecimento é inato ao homem,

pois “no homem é inerente o desejo de saber[...]”(COMENIUS, 1997, p . 60). Ao

mesmo tempo, não se pode esquecer de que Comenius, ao ser influenciado por Bacon,

enfatizava a importância dos sentidos, mas não com o pressuposto de que eles fossem a

única forma de chegarmos às diversas formas do conhecimento, pois, para ele, os

sentidos são como acessórios.

O próprio Comenius (1997, p. 60) preconizará que os sentidos são acréscimos ou

acessórios à alma racional que cooperam para o alcance do conhecimento:

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Ademais, à alma racional que temos em nós foram acrescentados órgãos, que servem de emissários ou observadores; são elas a visão, a audição, o olfato, o paladar e o tato, e por seu intermédio ela chega a todos os objetos externos, para que nada possa ficar oculto. Como no mundo sensível nada existe que não possa ser visto, ouvido, cheirado, degustado ou apalpado e cujas essências e qualidade não possam ser conhecidas, segue -se que nada há no mundo que um homem dotado de sentidos e razão não possa compreender.

Na concepção de Comenius, Deus, ao criar o mundo e tudo o que existe, e ao

dotar o homem de uma mente, objetivou prover alimento não só para o corpo, mas

também para a mente humana (COMENIUS, 1997, p. 50) a fim de que esta tivesse a

oportunidade de adquir as diferentes formas do conhecimento, resultando no inerente

desejo humano pelo saber.

No homem é inerente o desejo de saber e também de enfrentar (e não apenas de suportar) os esforços que isso implica. Tal já ocorre na primeira infância e nos acompanha por toda a vida. Quem não deseja escutar, ver, fazer sempre algo de novo? A quem não agrada ir todo dia a um lugar qualquer, conversar com alguém, fazer perguntas ou contar coisas? Assim é que: os olhos, os ouvidos, o tato e a própria mente, buscando sempre alimento, estão sempre sendo levados para fora de si, e para a natureza vivaz nada é mais intolerável que o ócio e a preguiça. E além disso, para maior prova disso, por que os indoutos admiram os doutos, senão porque sentem os agradáveis atrativos de um desejo natural e também gostariam de ser partícipes, se possível? Mas como não têm espernaça, anseiam e admiram os que consideram superiores (COMENIUS, 1997, p. 60).

Neste mesmo contexto, Comenius (1997, p. 62) afirmará que a mente humana é

infinita e que quanto maior a diversidade do conhecimento, mais agradável será a vida

humana:

[...] quanto maior a variedade, mais agradável é o espetáculo para os olhos, mais suave o perfume para as narinas, maior o consolo para o coração. Aristóteles comparou o espírito do homem a uma tábua rasa na qual nada está escrito, mas onde tudo pode ser escrito [...] e há uma diferença, pois numa tábua só é possível traçar linhas até onde as margens o permitam, enquanto na mente nunca se encontrarão limites, ainda que se escreva ou grave o tempo todo, porquanto, como já foi dito, ela não tem limites.

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2) Os autodidatas - Outra forma de argumentar a favor do conhecimento como

inato são os exemplos dos autodidatas, que, na concepção de Comenius (1997, p.

61), jamais necessitaram de preceptores, mestres ou professores, mas aprenderam

com os carvalhos, passeando pelos bosques e meditando.

Os exemplos do autodidatas mostram com muita clareza que o homem, com a orientação da natureza, tudo pode alcançar[...] alguns[...] tendo como professores os carvalhos e as faias (ou seja, passeando pelos bosques e meditando), aprenderam mais que outros através do laborioso ensino dos preceptores. Isso não nos ensina que tudo realmente está no homem? [...] São inatas em nós as sementes de todas as artes, e Deus, nosso mestre, extrai engenhos do oculto.

É na mente, portanto, que estão todas as capacidades e condições necessárias ao

homem para alcançar o verdadeiro conhecimento, e ela só exerce essa função porque o

homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. Presume-se, assim, que Comenius

não nos proporciona uma visão puramente antropocêntrica, como alguém poderia

objetar, mas teológica, visto que, se o homem é tão exaltado, deve-se ao fato de ter sido

criado com a atenção singular do Criador. Portanto, para Comenius, o homem é

enaltecido não por suas próprias forças ou méritos, mas porque Deus enalteceu-o no ato

da sua criação.

Percebe-se ainda que, para Comenius, Deus não somente criou o homem com

uma mente infinita, mas adicionou os órgãos do sentido que servem para ajudá-lo na

questão do conhecimento. É por intermédio desses órgãos que a mente chega a todos os

objetos externos, para que nada possa ficar oculto. Segue, assim, que “nada há no mundo

que um homem dotado de sentidos e razão não possa compreender” (COMENIUS,

1997, p . 60).

Não obstante ser a nossa mente infinita e receber milhares e milhares de imagens,

o impressionante é que a massa do nosso cérebro não é muito grande. Nisso, podemos

notar, na compreensão de Comenius, a sabedoria e onipotência de Deus, visto que as

informações adquiridas com a leitura e a experiência estão todas no cérebro.

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[...] O que é essa imperscrutável sabedoria da onipotência de Deus? Salomão admira-se de que todos os rios desemboquem no oceano e, no entanto, não encham o mar (Eclesiastes 1.7); e quem não admirará o abismo de nossa memória, que engole tudo e tudo restitui, e não obstante nunca está vazio nem cheio? Por isso, em verdade nossa mente é maior que o mundo, do mesmo modo que o continente é necessariamente maior que o conteúdo (COMENIUS, 1997, p . 63).

Nas palavras de Comenius, observa-se que, para ele, o próprio cérebro humano

foi criado por Deus e, com Sua sabedoria, o Criador fez com que o cérebro jamais fosse

“completado”; antes, criou-o como uma espécie de abismo na questão do conhecimento.

Somado ao cérebro, deparamo-nos com os olhos, comparados por Comenius,

como a nossa alma. O olho é representante de nossa mente e não se cansa em ver,

tampouco é obrigado a abrir-se, mas isso é seu processo natural, como a mente humana

que é sequiosa por conhecer, está aberta para o conhecimento, deseja ardentemente

explorar, compreender, é incansável (COMENIUS, 1997, pp. 63,64).

Todavia, à luz desse argumento, alguém poderia objetar quanto à razão pela qual

algumas pessoas, aparentemente, não conseguem aprender as coisas. Responderia

Comenius que a mente humana, por natureza, tem a semente do conhecimento,

entretanto, devemos despertá- la para tal fim.

Na concepção comeniana, tudo realmente está no homem: “Estão lâmpada,

candeeiro, óleo e pavio, e tudo o que é necessário: quem souber produzir a centelha,

acolhê- la, acender a luz poderá ver – belíssimo espetáculo – os maravilhosos tesouros da

divina sabedoria” (COMENIUS, 1997, p. 61).

Em outra parte de sua Didática, Comenius (1997, p. 62) afirma:

Aristóteles comparou o espírito do homem a uma tábua rasa na qual nada está escrito, mas onde tudo pode ser escrito. Então, assim, como numa tábua rasa o escritor pode escrever o que desejar e o pintor que não ignore a arte pode pintar o que quiser, também para quem não ignora a arte de ensinar é fácil gravar o que quiser na mente do homem. Se isso não ocorrer não será por culpa da tábua (mesmo que seja grosseira), mas por ignorância do escritor ou pintor.

Isso se deve ao fato de que a mente humana é como a terra e como a cera. Como

a terra, pois ela está sempre disposta a receber todo tipo de semente e, “quanto maior a

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variedade, mais agradável é o espetáculo para os olhos, mais suave o perfume para as

narinas, maior o consolo para o coração” (COMENIUS, 1997, p. 62).

Portanto, na concepção de Comenius, a mente está sempre disposta a apreender

as variedades do conhecimento, desde que seja arada e despertada. Quanto à cera, esta é

comparada ao cérebro (COMENIUS, 1997, p 62). A cera pode ser moldada e remoldada,

da mesma forma que a mente, pode compreender, aprender e reaprender as diferentes

formas de conhecimento, de modo que, se temos toda esta capacidade, e não

aprendemos, o erro só pode estar no pintor (preceptor).

Comenius afirma que, depois do pecado, nossa mente ficou “obscurecida e

involuída e não é capaz de expandir-se livremente; e aqueles a quem caberia a sua

libertação estão inibindo-a cada vez mais” (COMENIUS, 1997, p. 60).

Com esse pressuposto, afirma que “no mesmo instante em que nascemos e

somos reconhecidos, estamos já envolvidos em toda espécie de mal, de tal modo que

parecemos quase sugar os erros com o leite da ama” (COMENIUS, 1997, p. 64).

Diante disto, pode-se indagar se a não-aprendizagem é proporcionada pelo

preceptor ou pelo pecado do homem. Entretanto, a resposta de Comenius refere-se ao

preceptor, visto que a sua função é despertar a mente dos discentes para o conhecimento:

“[...] para quem não ignora a arte de ensinar é fácil gravar o que quiser na mente do

homem. Se isso não ocorrer não será por culpa da tábua (mesmo que seja grosseira), mas

por ignorância do escritor ou do pintor” (COMENIUS, 1997, p . 62).

3.5. Soteriologia comeniana

Na análise da Didática magna, um dos temas que traz dificuldades quanto ao

pensamento de Comenius refere-se à sua concepção soteriológica.

Costa (2000, pp. 29-30), ao comentar em seu ensaio a respeito da Reforma

Protestante, afirma que Comenius foi um pastor calvinista:

Creio ser desnecessário lembrar que o “Pai da Didática Moderna”, João Amós Comênio (1592-1670), o “Bacon da Pedagogia”, - ou, como também foi chamado, “o Galileu da educação” -, era um pastor calvinista, tendo como um dos princípios educacionais, “ensinar tudo a todos”, começando desde bem cedo, já que é mais difícil reeducar o homem na vida adulta.

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Por outro lado, Lopes (2003, p. 152) chega a afirmar que Comenius foi pelagiano

ou no máximo semi-pelagiano:

É claro, portanto, que Comenius, em sua concepção soteriológica, não concebe uma teologia calvinista, como talvez alguns desejariam. Comenius está mais próximo de uma concepção pelagianista ou semipleagianista, no máximo, visto que afirma que, em nós, foram deixadas as “raízes” para o retorno ao Paraíso, e por extensão a Deus.

Comenius preconiza que o homem, sendo criatura excelsa de Deus, somente

poderá encontrar realização plena de todas as suas capacidades intelectuais, racionais,

morais quando for reconduzido ao estado primitivo e original, ou seja, ao Jardim do

Éden, em harmonia com o Criador (COMENIUS, 1997, p. 57), de maneira que o homem

deve o amor a Deus acima de todas as coisas.

Para que o homem cumpra esse objetivo final de sua vida, isto é, amor a Deus

acima de todas as coisas, Deus estabeleceu três fundamentos principais: a sabedoria

(instrução), as virtudes, a religião (moral e a piedade) (COMENIUS, 1997, p. 58).

Estes princípios são inseparáveis, pois o homem é, em seu todo, harmonia. De

forma que corpo e alma agem semelhantes a um enorme relógio onde todas as

engrenagens funcionam em conjunto (COMENIUS, 1997, p. 65).

O corpo possui, como primeiro móvel, o coração, fonte de vida e de ações, do

qual os outros membros recebem movimento e a medida do movimento. O peso que

imprime o movimento é o cérebro que atrai e retrai as outras rodas, que são os membros.

A alma, por sua vez, cuja roda principal, na concepção de Comenius, é a vontade,

tem os pesos que a fazem pender para um lado ou para outro, que é a razão, a que, por

sua vez, mede e determina o que deve acolher ou não.

Sendo assim, na junção do corpo e seu peso principal que é o cérebro, morada

das reflexões e da alma, e a alma, que por sua vez, possui como peso a razão, a qual

determina o que é bom e o que não é bom, ocorre o equilíbrio perfeito das virtudes, ou

seja, equilíbrio conveniente entre ações e paixões, resultando no princípio de que “o

homem nada mais é que harmonia!” (COMENIUS, 1997, p . 66).

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Comenius indica que, havendo harmonia entre o corpo e a alma, isto é, equilíbrio

entre as ações e as paixões, e Deus agindo com sua graça, tal junção resultará na

compreensão de que os homens não poderão estar totalmente corrompidos pelo pecado,

a ponto de não poderem ser reparados com meios oportunos: “Que ninguém, portanto,

enquanto se procuram remédios para corrupção, nos oponha a corrupção, porque Deus,

por obra do seu Espírito e com a intervenção de meios adequados, prepara-se para a

fazer desaparecer” (COMENIUS, 1997, p . 68).

Diante do exposto, a concepção soteriológica comeniana, apesar de ser

protestante, parece não contemplar a teologia calvinista, pois ele demonstra que o

pecado enfraqueceu as forças internas, isto é, as sementes da ciência, da moral e da

piedade, que são inerentes a todos os homens do homem, mas não as extinguiu, pois, por

meio de pequeníssimos estímulos e de sábia orientação podem ser despertados

(COMENIUS, 1997, p. 113).

Não se faz um mercúrio com qualquer madeira, dizem alguns; eu respondo que de qualquer homem se faz um homem, desde que não haja corrupção. Mas (replica outro) nossas forças internas foram enfraquecidas pelo pecado original. Respondo: mas não foram extintas (COMENIUS, 1997, p. 114).

Não é objetivo desta pesquisa estabelecer a apologia calvinista ou não de

Comenius, mas é mister que se acene para o princípio de que a teologia calvinista afirma

que o homem, após o pecado dos nossos primeiros pais, caiu totalmente, de forma que

estamos totalmente corrompidos pelo pecado e mortos espiritualmente, de maneira que

nada há de bom no homem e somente Deus, ao escolhê- lo gratuitamente para a salvação

eterna, pode conceder- lhe vida, fazendo com que ele se volte para o Paraíso Celeste.

Com o mesmo pressuposto, Comenius (1997, p. 66) deseja demonstrar uma

concepção soteriológica, diferente daquela apresentada pelos calvinistas:

[...] assim como um instrumento musical, construído pelas mãos de hábil artista quando se estraga ou não toca bem, não dizemos imediatamente que não pode mais ser usado (pode ser consertado e temperado), também no homem, por mais corrompido que esteja pelo

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pecado, deve-se dizer que por virtude de Deus, com meios oportunos poderá ser reparado.

Nota-se que, para Comenius, o homem, por mais corrompido que esteja pelo

pecado, pela virtude de Deus e com meios oportunos, pode ser reparado, permitindo

preconizar que, em sua concepção, o homem não está morto espiritualmente e depravado

em todas as suas faculdades mentais e espirituais, conforme afirmação dos calvinistas.

Pode-se ainda colaborar com a discussão até aqui demonstrada, citando as

seguintes palavras de Comenius (1997, pp. 14, 15):

Sem dúvida a empresa é muito séria e, assim como deve por todos ser desejada, também deve ser ponderada pelo juízo de todos, e todos em conjunto devem leva-la adiante, pois ela diz respeito à salvação comum do gênero do humano [...] Por isso peço aos meus leitores, ou melhor, em nome da salvação do gênero humano, esconjuro todos os que melêem, em primeiro lugar, a que não qualifiquem de temeridade o haver alguém ousado não só tentar coisas grandiosas, mas sobretudo promete-las, visto que tudos isso é feito com um fim salutar.

Por outro lado, analisando outra afirmação de Comenius na mesma Didática

magna, objeto da presente pesquisa, pode-se identificá- lo como calvinista:

Deve-se reconhecer que esse natural desejo de Deus, como bem supremo, foi corrompido pela queda do pecado original e precipitou-se em tal abismo que não tem mais condições de voltar à retidão apenas com as próprias forças; todavia, naqueles que Deus ilumina de novo com o Verbo e seu Espírito, esse desejo volta a ser tão aguçado que Davi clama, dirigndo-se a Deus: A quem tenho eu no céu senão a ti? E na terra não há quem eu deseje além de ti. Minha carne e meu coração desfalecem, mas Deus é a fortaleza do meu coração e a minha porção para sempre (Sl LXXIII, 25,26) (COMENIUS, 1997, pp. 67,68)

Na Didática magna de Comenius, preconizar se ele possuía ou não uma

concepção calvinista quanto à soteriologia, trata-se de uma questão complexa,

principalmente pelos anos que ele viveu em Herbon e Heidelberg, academias calvinistas,

sofrendo, inclusive, influência de Alsted, seu mestre e amigo, cuja teologia parecia estar

fundamentada em uma concepção calvinista quanto à soteriologia.

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Torna-se ainda mais complexa a temática em discussão, se não houver equívoco na citação de Kulesza (1992, p. 87), a qual afirma que Comenius, em sua obra Clamores Eliae (Queixumes a Elias) teria nomeado Martinho Lutero e João Calvino entre os tiranos da humanidade, ao lado do papa.

Por isso é que não se pode ter certeza quanto à concepção soteriológica de Comenius na Didática magna, e ao que parece era esse o propósito de Comenius ao deixar registradas suas palavras (19997, p. 68):

Portanto, que ninguém, ao começarmos a expressar nosso parecer sobre os remédios para a degeneração, nos oponha precisamente a degneração [...] É coisa torpe e nefanda, sinal evidente de ingratidão, insistir na degeneração e esquecer a regeneração! E com esse pretexto aduzir o poder que tem sobre nós o velho Adão, sem experimentar o poder do novo Adão, Cristo!

Entretanto, pode-se ao menos compreender que, para Comenius, o importante era

demonstrar que, no homem, o conhecimento é inerente, e que nele está toda a

possibilidade quanto às diversas formas do conhecimento e que, ao invés de haver

preocupação com a degeneração, a regeneração deveria ser enfatizada.

Seu pensamento fundamental, neste contexto, refere-se àquilo que é bom no ser

humano. Verifica-se tal proposta na afirmação de Comenius (1997, p. 71):

Fique estabelecido que para o homem é mais natural e mais fácil tornar-se sábio, honesto e santo pela graça do Espírito Santo do que desse progresso ser impedido pela sobrevinda perversidade. Isso porque tudo volta facilmente à sua própria natureza [...] E é muito conhecida a sentença do poeta de Venosa: “Ninguém é tão selvagem que não possa melhorar, se der ouvidos, docilmente, aos ensinamentos”.

Na concepção de Comenius, se o aluno não aprende corretamente as coisas,

mesmo estando no novo Adão (COMENIUS, 1997, pp. 68,69), portanto com todas as

condições de aprender, o que falta é o despertar ou acender o pavio da inteligência por

meios adequados, para que se busque o retorno à dignidade enaltecida do homem,

corrompida após a queda dos primeiros pais; e esta é a função do docente e da escola.

3.6. Os princípios morais propostos por Comenius

Para Comenius, a função da escola e do docente é despertar a inteligência dos

alunos por meios adequados, visto que é inerente ao ser humano a busca do

conhecimento, para que tal ocorra as escolas devem ter como objetivo ser uma

verdadeira oficina de homens. Para tanto, há necessidade dos seus dirigentes se

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conscientizarem quanto a três fundamentos essenciais na educação escolar: a instrução, a

moral e a piedade.

A moral é compreendida como sendo a arte de formar costumes e possui

dezesseis cânones fundamentais, que estão inseridos na concepção teológica de

Comenius (1997, pp. 263-270) na Didática magna, visto que para ele, o homem é

“imagem e semelhança de Deus”, necessitando ser verdadeiramente formado para que

seja homem:

1) Devem-se implantar nos jovens as sementes de todas as virtudes, sem

exclusão de nenhuma.

2) Devem ser ensinadas as virtudes principais, chamadas de cardeais,

que são: a prudência, a temperança, a fortaleza e a justiça, para que não se

construa um edifício que não tenha fundações e cujas partes, por não

estarem bem fixadas, assentem mal sobre suas bases.

3) A prudência deve ser adquirida por uma boa educação, aprendendo-se

as verdadeiras diferenças e o valor das coisas. Valor refere-se,

especialmente, à capacidade de julgar as coisas com exatidão e com

verdadeira sabedoria:

Que o homem, pois, se habitue [...] desde pequeno a ter opiniões exatas sobre as coisas que devem crescer juntamente com a idade. E que se apegue às boas, fugindo das ruins, para que nele o hábito de agir corretamente se torne natural” (COMENIUS, 1997, p. 264).

4) Que os homens aprendam a temperança para que se habituem a

observá-la sempre durante todo o período de sua educação, no comer e no

beber, no sono e na vigília, no trabalho e na diversão, no falar e no calar

(COMENIUS, 1997, p. 264).

5) Para adquirir fortaleza, é preciso vencer a si mesmo; cumpre moderar

a vontade de vagabundear ou divertir-se muito e além do justo; e deve-se

frear a impaciência, o descontentamento, a ira (COMENIUS, 1997, p.

265). A base desse princípio é a razão. Deve-se agir por razão, e não por

paixão ou impulso, visto que o homem é um ser racional e deve habituar-

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se a ser guiado pela razão, perguntando sempre, ao agir, o que, por que e

como fazer corretamente as coisas (COMENIUS, 1997, p. 265).

6) Que os homens aprendam a justiça sem prejudicar ninguém, dando a

cada um o que lhe pertence, fugindo da mentira e do engodo, mostrando-

se sempre habilidosos e amáveis.

7) Deve-se cultivar dois tipos de fortaleza: a franqueza honesta e a

tolerância do trabalho, ambos absolutamente necessários aos jovens. A

razão desse costume moral consiste no fato de que é preciso ensinar os

jovens a olhar os outros homens de frente e a suportar qualquer tipo de

trabalho honesto, para que não se tornem como aqueles que fogem da luz,

parasitas e pesos inúteis. A virtude cultiva-se com fatos, não com

palavras.

8) A franqueza honesta é adquirida nos relacionamentos com pessoas

honestas e no comportar-se atenciosamente com elas, como se deve.

9) Os jovens aprenderão a tolerar o trabalho se estiverem sempre

fazendo alguma coisa, de sério ou de agradável. Há dois aspectos nessa

questão: a) O trabalho é importante, independentemente do que se esteja

fazendo, é necessário sempre ter a mente ocupada. b) É fazendo que se

aprende a fazer (COMENIUS, 1997, p. 267). Portanto, o trabalho se

aprende na prática e não somente na teoria.

10) Virtude, relacionada com a justiça, é o prazer e a presteza em ajudar

os outros: essa deve estar entre as primeiras lições instiladas nos jovens.

Comenius afirma que não devemos ser egoístas, pois isso faz parte da

natureza corrupta, e é também a fonte de contínuas e múltiplas confusões

nas ações humanas, pois cada um se preocupa consigo mesmo e continua

indiferente ao bem público; por isso, deve-se inculcar bem nos jovens a

finalidade de nossa vida, qual seja, não se nasce apenas para si mesmo,

mas para Deus e para o próximo, isto é, para a sociedade humana.

Se [os jovens] estiverem bem convencidos disso, habituar-se-ão desde crianças a imitar a Deus, os anjos, o sol e todas as criaturas mais

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generosas, desejando ser úteis e esforçando-se por ajudar o maior número possível de pessoas. Feliz seria então a condição das questões públicas e privadas se todos quisessem e pudessem cooperar com os interesses comuns e se ajudassem mutuamente. Se assim forem instruídos, os jovens deverão saber e querer que seja dessa forma (COMENIUS, 1997, p. 267).

11) A formação para a virtude deve iniciar na mais tenra idade, antes que

os espíritos contraiam vícios. É de extrema importância que os jovens se

habituem à virtude desde a mais tenra idade, pois o vaso novo conserva

por muito tempo o cheiro com que primeiro se impregnou (COMENIUS,

1997, p. 268).

12) Aprendem-se as virtudes praticando a honestidade. Só há uma forma

de se compreender o que é correto, conhecendo o que deve ser conhecido

(COMENIUS, 1997, p. 268). Sendo assim, não podem faltar os bons

exemplos para as crianças.

13) Os pais, os preceptores e as amas devem dar exemplos de vida.

Verifica-se, aqui, a necessidade de se ensinar não só com discursos

teóricos, mas com exemplos práticos de vida. Com o mesmo pressuposto

em mente, Comenius compreende a necessidade de que os pais devem dar

exemplos de honestidade, perfeitos guardiães da disciplina familiar, bem

como as amas e os preceptores devem ser exemplos de orientação e

cuidado aos jovens (COMENIUS, 1997, p. 268).

14) Ao exemplo, é necessário acrescentar preceitos e regras de vida. O

objetivo deve ser a correção, que é ajudada através do exemplo e da

imitação. As regras devem ser extraídas das Escrituras e das palavras dos

sábios (COMENIUS, 1997, p. 268).

15) É necessário manter os filhos longe das más companhias

(COMENIUS, 1997, p. 269). Por natureza, os males são aprendidos com

maior facilidade. Por essa razão, deve-se buscar afastar os jovens das

ocasiões e pessoas que possam lhes corromper.

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Realmente, é pela corrupção da natureza que os males medram com maior facilidade e vigor; por isso, é preciso lançar mão de todos os meios para afastar os jovens das ocasiões em que podem ser corrompidos, tais como as más companhias, o palavreado obsceno, os livros inúteis e fúteis (os exemplos de vícios, que penetram através dos olhos e dos ouvidos, são um veneno para a alma) e o ócio, para que os espíritos não aprendam a agir mal por não terem o que fazer e não se tornem preguiçosos. Por isso, é importante mantê-los sempre ocupados, em coisas sérias ou divertidas, e nunca os deixar ociosos (COMENIUS, 1997, p. 269).

16) Como é impossível estar sempre tão atento a ponto de impedir que

um pouco de mal se insinue, é necessário a disciplina para defender-se dos

maus costumes. Devido ao fato de satanás semear sementes ruins nos bons

campos, há necessidade de uma disciplina rígida nas escolas,

principalmente voltada para o ensino da moral.

Assim, conforme exposto nesses dezesseis cânones, Comenius parecer

compreender o termo moral como “costume”. Portanto, se desejamos que a escola seja

uma verdadeira oficina de homens, devemos atentar para a formação dos bons costumes,

ou a moral, cuja essência deve ter como fundamento as seguintes virtudes principais:

prudência, temperança, fortaleza e justiça. E essa moral deve ser incutida, como propõe

Comenius, desde cedo.

3.7. A piedade cristã na concepção de Comenius

Após analisar os princípios morais propostos por Comenius, deve-se

compreender a concepção de comeniana a respeito da piedade, visto que,para ele, moral

e piedade, são os princípios fundamentais de qualquer escola que deseja ser “verdadeira

oficina de homens” (COMENIUS, 1997, p. 103).

A piedade significa, para Comenius, o coração humano impregnado pelo reto

sentimento no que se refere à fé e à religião.

Já dissemos o que piedade significa para nós: é o nosso coração – impregnado pelo reto sentimento, no que se refere à fé e à religião – saber buscar Deus em toda parte (o Deus que as Escrituras dizem estar oculto – Is XLV, 15 -, sendo chamado do rei invisível – Heb XI,27 -, que se esconde sob o véu de suas obras e que, presente invisilvemente

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em todas as coisas visíveis, governa-as de modo invisível), segui-lo por onde quer que tenha estado, fruí-lo onde quer que seja encontrado (COMENIUS, 1997, p. 270).

Com esse pressuposto, Comenius demonstra que todas as coisas devem

convergir para a pessoa de Deus, isto é, devemos direcionar o nosso pensamento, o

nosso louvor e o nosso amor para Deus.

Assim sendo, para Comenius, a razão de nossa vida e existência consiste na

adoração a Deus. Todavia, nem sempre encontramos a piedade nos corações humanos,

resultando na necessidade de procurarmos econtrar as fontes da piedade.

Comenius (1997, p. 272) apresenta três fontes de onde podemos extrair a piedade

ou o amor e o conhecimento a respeito de Deus: o texto bíblico, que em sua concepção é

sagrado, por esta razão denomina-a de Escrituras Sagradas; o mundo e nós mesmos.

As fontes são as Sagradas Escrituras, o mundo e nós mesmos, ou seja, a palavra de Deus, suas obras e nosso sentimento interior. Das Escrituras haurem a consciência e o amor de Deus. Que, depois, a partir do mundo e da sábia contemplação das admiráveis obras divinas nele existentes sejamos conduzidos para um sentimento de piedade .

Depois do texto bíblico, a segunda fonte da piedade refere-se ao princípio de que

Deus pode ser conhecido através das obras da natureza, desde que se tenha uma sábia

contemplação das admiráveis obras divinas existentes no mundo (kosmos). Por fim, por

meio de nós mesmos, Comenius afirma (1997, p. 272):

[..] aqui é oportuno observar a particular providência divina para conosco (de que modo nos formou admiravelmente, como nos conservou e nos guia), como nos mostram seus exemplos Davi (139) e Jó (cap. X).

Nota-se ainda que Comenius (1997, p. 273) propõe um método para haurirmos a

piedade.

O modo de haurir a piedade dessas fontes é tríplice: Meditação, Prece e Tentação. Essas três coisas fazem o teólogo, como afirma M. Lutero, mas também são essenciais para fazer o cristão. A Meditação é a

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reflexão contínua, acurada e devota sobre as obras, as palavras e os dons de Deus[...] A prece é a tensão freqüente e contínua em direção a Deus e súplica por sua misericórdia, para que nos ampare e guie com seu Espírito. A tentação, enfim, consiste no freqüente tentear, nosso e alheio, dos progressos que realizamos na piedade; aqui também cabem, a seu modo, as tentações humanas, diabólicas e divinas.

Assim sendo, o sentimento de piedade deve ser incutido desde a primeira

infância, pois, o princípio fundamental para todo êxito em relação a qualquer método é o

seu início. Por essa razão, propõe que também a piedade deve ser inoculada desde muito

cedo. Tão logo aprendam a usar os olhos, a língua, as mãos e os pés, devem aprender a

olhar os céus, a erguer as mãos e a pronunciar o nome de Deus e de Cristo, a ajoelhar-se

diante de Sua invisível majestade e a respeitá- la (COMENIUS, 1997, p. 274).

Comenius está consciente de que alguns, no começo, os que pouco fazem uso da

razão, não entenderão o que estarão fazendo. Entretanto, é mister que eles aprendam,

através do hábito, para que depois compreendam a razão de sua obra. Deve-se incutir

nas crianças que elas não estão aqui pela vida presente, mas para alcançar a eternidade:

“esta vida é apenas uma passagem que nos prepara para entrar dignamente na morada

eterna” (COMENIUS, 1997, p. 275).

Sendo assim, devem ser advertidos que “nesta vida não devemos fazer outra

coisa senão preparar-nos convenientemente para a vida futura” (COMENIUS, 1997, p.

275). A preparação para a eternidade consiste em buscar as coisas necessárias e úteis que

nos acompanharão por toda eternidade, e não somente coisas terrenas, pois que há duas

espécies de vida: a bem-aventurada, com Deus e a miserável, no inferno; ambas eternas.

Portanto, devemos buscar a vida bem-aventurada conforme afirma Comenius: “São

felizes, mil vezes felizes, aqueles que organizaram sua vida de real modo que são

considerados dignos de entrar no reino de Deus” (COMENIUS, 1997, p. 276).

De acordo com Comenius (1997, p. 276), devemos andar com Deus para que

sejamos conduzidos para a bem-aventurança do céu: “Somente serão conduzidos ao

reino de Deus aqueles que, na terra, caminharem com Deus”, e caminhar com Deus

significa tê-lo diante dos olhos, temê-lo e obedecê- lo.

Dessa forma, que os jovens se habituem a reconhecer a Deus em tudo aquilo que

virem, ouvirem, tocarem, fizerem ou sofrerem, pois somente assim serão inflamados

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com o desejo de contemplar o poder, a sabedoria e a bondade de Deus, patenteados em

toda a criação: “assim se inflamará de amor e por amor se ligará a Ele com tanta força

que não poderá mais se apartar” (COMENIUS, 1997, p. 277).

Por fim, para Comenius a piedade somente será evidenciada nos corações da

juventude, por meio do texto bíblico, denominado por Comenius como Escrituras

Sagradas, visto que as Escrituras devem formar o cristão verdadeiro, em relação à fé e à

prática (COMENIUS, 1997, p. 280).

Comenius, compreende que se deve colocar em prática a fé, através da esperança

e amor, de maneira que sua ênfase quanto à fé não recai somente na crença ou

conhecimento intelectual das Escrituras, mas também na prova prática de que

pertencemos a Deus, por meio de um cristianismo vivo e eficaz.

Nesse sentido, pode-se averiguar certa conformidade de Comenius com os

reformadores, visto que Lutero, Calvino e outros apregoavam que a bíblia deveria ser a

única regra de fé e prática (SPROUL, 1978, pp. 121-140).

Na concepção de Comenius, a fé verdadeira deve conduzir o homem à prática

cristã. Apesar do termo “prática” ser amplo quanto ao seu significado, para Comenius, o

termo “prática” pode ser compreendido como sendo um dos princípios que deveriam ser

ensinados aos jovens para que este se dedicasse com zelo religioso ao culto divino, tanto

interior quanto exterior, para que, separados, o interior não perdesse a intensidade, e o

exterior não se degenerasse em hipocrisia.

Portanto, para Comenius (1997, p. 282), uma das práticas religiosas deve ser

manifesta no culto verdadeiro ao Senhor:

Por culto exterior entenda -se falar de Deus, pregar e ouvir suas palavras, adorá-lo de joelhos, cantar hinos de louvor, praticar os sacramentos e todos os outros ritos sagrados, tanto públicos quanto privados. Por culto interior entenda-se a reflexão contínua sobre a presença de Deus, o temor e o amor a Deus, a abnegação pessoal e a total entrega a ele, ou seja, a vontade sempre pronta a fazer e a suportar tudo o que seja da vontade do Senhor.

Com este pressuposto, Comenius (1997, p. 283) ainda afirma:

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Ao educar os jovens na religião, deveremos fazê -lo por inteiro, tanto interior quanto exteriormente, para não criarmos hipócritas, adoradores superficiais, fingidos, falsos e simuladores; tampouco para criarmos fanáticos, que só se contentam com seus sonhos e que, desprezando o ministério externo, arruínam a ordem e o decoro da Igreja; para, enfim, não criarmos homens frios, se o culto exterior não estimular o interior e este não reavivar aquele.

Além da questão litúrgica, pode-se compreender que a prática da fé refere-se à

temperança, justiça, misericórdia, paciência e às boas obras.

[...] que as crianças sejam diligentemente habituadas às obras externas desejadas por Deus, e assim saibam ser próprio do Cristianismo demonstrar a fé com obras. Tais obras são o exercício contínuo da temperança, da justiça, da misericórdia e da paciência. Se nossa fé não produzir tais frutos, significa que é morta (Tg II); e deve ser viva, para poder propiciar a salvação (COMENIUS, 1997, p. 284).

Em síntese, moral e piedade são princípios fundamentais na compreensão dos

pressupostos teológicos de Comenius, que, por suas vezes, são princípios fundamentais

na escola para que esta seja realmente, “oficina de homens”.

3.8. Os pressupostos escatológicos de Comenius

Os pressupostos escatológicos podem ser vistos, mais claramente, em outras

obras de Comenius, a saber, The labyrinth of world and paradise of heart, Consulta

universal e Lux in tenebris. Entretanto, o aprofundamento desta temática em outras

obras desviaria o foco desta pesquisa, que possui como fundamento a Didática magna e

cuja intenção é demonstrar os pressupostos teológicos e sua inter-relação com a

pedagogia de Comenius, e não apresentar um tratado quanto à escatologia de Comenius,

o que pode ser a oportunidade para a realização de uma outra pesquisa.

Sendo assim, foca-se, aqui, atenção apenas na Didática magna, e ressaltando o

principal pressuposto escatológico apresentado na referida obra. Tal pressuposto refere-

se a eternidade. Na concepção de Comenius, a eternidade é algo real porque, para ele, o

homem é composto de corpo e alma, e esta última possui, como característica

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fundamental, a eternidade. De maneira que o fim último da existência humana não está

nesta vida (terrena), mas na eternidade.

A própria razão nos mostra que uma criatura tão excelsa está destinada a um fim mais excelso que o de todas as outras criaturas: a regozijar-se junto a Deus, sumidade de todas as perfeições, glórias e bem-aventuranças [...] tudo o que fazemos ou sofremos nesta vida mostra que não atingimos aqui o fim último, mas que todas as nossas ações, assim como nós mesmos tendem para outro lugar [...] a primeira vida prepara para a segunda; a segunda para a terceira; a terceira é, em si mesma, sem fim [...] Portanto, a primeira e a segunda morada são como duas oficinas em que se forma: na primeira o corpo para uso na vida futura, na segunda a alma racional para uso na vida eterna; a terceira morada contém a perfeição e o verdadeiro gozo de ambas (COMENIUS, 1997, pp. 46,47)

A luz destas palavras, dois aspectos são fundamentais à compreensão dos

pressupostos de Comenius quanto à escatologia: 1) que fomos destinados à eternidade;

2) que a vida presente é uma preparação para a vida futura.

Para Comenius, o homem deve ter a consciênc ia de que sendo esta vida uma

preparação para a vida futura, deve produzir nela princípios que podem ser utilizados na

vida futura. Tal pressuposto demonstra que há uma estreita ligação entre a expectativa

da eternidade e a cooperação humana (RIBEIRO, 2003, pp. 94, 95), isto é, já que a

eternidade, é uma realidade, devemos estar preparados para adentrá-la.

Por tender para outra vida, esta vida não é vida (propriamente dita), mas um preâmbulo para a vida verdadeira e eterna [...] esta vida sobre a terra não passa de preparação para a eterna, e por esse motivo, não é de admirar que a alma, utilizando o corpo, procure obter o que quer que lhe seja útil na vida futura. Assim que terminam esses preparativos, migtramos daqui, porquanto não são mais suficientes as coiusas de que nos ocupamos aqui (COMENIUS, 1997, pp. 47,49).

Ora, observa-se, com isto, que para Comenius a preparação para a vida futura

deveria ser por meio da educação, pois, em sua compreensão, a educação poderia ser um

dos condutores da paz no mundo em que ele vivia.

Com este pressuposto, ressalta-se as palavras do comeniólogo Kucera (1991, p.

194):

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[...] a restauração da competência comunicativa original entre os povos é uma chance radical que pode de uma vez por todas eliminar guerras, hostilidade e desarmonia [...] o conceito lingüístico próprio de Comênio [...] se apoiava em sua inclusão no contexto histórico salvífico-escatológico. Comênio via a possibilidade da humanidade recuperar plenamente a competência comunicativa na obra do Espírito Santo o qual, de acordo com o capítulo 2 de Atos dos Apóstolos capacitou grupo de diferentes idiomas a compreenderem um ao outro.

Comenius preconiza que, por meio da educação, haveria um mundo melhor.

Portanto, a educação tinha papel fundamental em toda sociedade humana.

Isto posto, deve-se atentar ainda para um princípio pouco comentado no estudo a

respeito de Comenius, que se refere às suas concepções milenaristas e as razões que o

conduziram a acreditar nas profecias de alguns parentes e amigos.

Para tanto, importa recordar alguns princípios vistos nos dois primeiros capítulos

desta pesquisa, referente especialmente ao pensamento dos taboritas, os quais, além de

considerados extremados em sua concepção religiosa, liderados por João Zizka,

venceram cinco cruzadas contra os exércitos imperiais da Boêmia.

Uma das razões para suas vitórias, mesmo se tratando de pequeno exército

taborita, e estando em condições menos favoráveis que o referido exército, foi sua

concepção de que haveria uma salvação coletiva, terrestre, iminente, total e sobrenatural,

ou seja, criam em um paraíso terrestre, cheio de felicidade, o qual ocorreria após o fim

do mundo e a inaguração de novo céu e nova terra.

Acreditavam que o Anticristo, representado pelo papa e pelos exércitos

imperiais, reunia sua tropa para esmagar os leais servidores de Deus. Por esta razão,

eram exortados por seus líderes a deixarem seus cajados e pegarem as armas, visto que

não podiam esperar de braços cruzados. Antes deveriam preparar o caminho para a volta

de Cristo, o qual venceria o anticristo e os seus sequazes.

Esta era, portanto, a justificativa para o encharcamento das espadas com sangue

dos malfeitores, pois sua crença estava fundamentada na convicção de que, após a

destruição dos “pecadores”, à semelhança de Sodoma e Gomorra, Cristo apareceria no

alto do Monte Tabor e celebraria a vinda do Reino com um banquete messiânico para

todos os crentes vitoriosos.

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Ora, dos hussitas-taboritas, especificamente a partir de Pedro Chelsicy, surge a

Unidade dos Irmãos Morávios, berço religioso de Comenius. Desta forma, embora a

Unidade dos Irmãos Morávios defendesse uma comunidade pacífica, ela concebia a

possibilidade do sonho de uma felicidade na terra.

Tal concepção conduziu os Irmãos Morávios a demonstrarem que o paraíso

terrestre poderia surgir a partir de uma ênfase na educação, justificando, assim, que o

processo ensino-aprendizagem sempre foi uma das tônicas daquele grupo religioso. A

educação era uma maneira de disseminar a paz, mas também uma oportunidade de

estabeler um possível sonho de felicidade terrestre.

O próprio Comenius, deixa transparecer sua crença em um paraíso terrestre, e

talvez este teria sido um dos grandes motivadores de seus escritos ou produções

literárias. Somado a isto, não se pode esque cer da imensa influência de Alsted, o qual

escreveu uma obra intitulada De mille annis apocalypsis, na qual predizia o advento do

reinado milenar para 1694, na sua Magna reformatio.

Ao mesmo tempo, analisando o contexto histórico do sofrimento de Comenius e

do povo theco, o milenarismo se transformara numa máquina de guerra contra a

instituição da Igreja romana, e da mesma maneira servia de consolo para os que

passavam por intensos sofrimentos.

É com este pressuposto que se pode compreender a aceitação, por parte de

Comenius, quanto às profecias de Kotter, o qual dizia ter visões favoráveis ao povo

theco e seu arruinado soberano Frederico V. Profetiza Kotter que Frederico V

reconquistaria o trono da Boêmia, inaugurando um período de paz, riqueza e glória para

o reino da Moravia.

Considerando que Kotter era um dos principais líderes dos Irmãos Morávios,

percebe-se que havia certa aceitação quanto a crenças em certas profecias. Nesse mesmo

sentido, o próprio Comenius defendeu as profecias de Poniatowska, a qua l parecia

conceber visões alimentadas pelo apocalipse à libertação da Boêmia.

Portanto, o milenarismo também esteve presente nas concepções teológicas-

escatológicas de Comenius, que ansiava por um mundo melhor e um paraíso terrestre.

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LEE (1986, p. 150), comentando a respeito da concepção milenarista de

Comenius, afirma:

Comenius acreditava que Jesus Cristo voltaria novamente a esta terra para consolar e salvar todas as pessoas, e então estabeleceria seu reinado por mil anos [...] Comenius concebia que a volta de Jesus Cristo colocaria o fim na injustiça e a vitória final de Deus livraria todos do poder do mal.

Em síntese, expuseram-se, aqui, os principais pressupostos teológicos de

Comenius, ou sejam, sua compreensão a respeito do ser divino; sua concepção a respeito

do texto bíblico, que é considerado sagrado por ele, no qual observamos que sua

interpretação, na maioria das vezes, corresponde a uma hermenêutica literal do texto

bíblico; a compreensão de ser o homem a imagem e semelhança de Deus, o qual passou

por dois estágios, o estágio da criação no Jardim do Éden e o estágio após Jardim do

Éden. É nesse contexto que ele demonstra sua soteriologia, deixando alguns

questionamentos quanto ao princípio de ele ser ou não calvinista no que se refere à

soteriologia. Por fim, buscamos compreender os princpais pressupostos escatológicos,

compreendendo que, para Comenius, o fim de todas as coisas está na pessoa de Deus.

Há muito que se pesquisar a respeito dos pressupostos teológicos de Comenius,

todavia, como o foco agora não é tratar somente a respeito da teologia comeniana, o que

se demonstrou até aqui propiciou uma visão panorâmica da crença teológica de

Comenius, a qual, por sua vez, é apresentada como um viés para se compreender o

pressuposto fundamental do conceito de educação em Comenius. O outro viés é a

pedagogia, que será discutida no próximo capítulo.

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CAPÍTULO 4 – OS PRESSUPOSTOS PEDAGÓGICOS DE COMENIUS

NA DIDÁTICA MAGNA

Após analisar os pressupostos teológicos de Comenius na Didática magna, é de

importância fundamental compreender os pressupostos pedagógicos de Comenius, para

que seja possível demonstrar a inter-relação da teologia e da pedagogia como princípio

fundamental na compreensão do pensamento de Comenius na Didática magna.

Conforme visto nos capítulos anteriores, a Didática magna, inicalmente Didática

tcheca, começou a ser escrita entre os anos 1628-1632. Parecia se tratar de um projeto

não somente pedagógico, mas também possuía uma motivação político-religiosa.

Comenius desejava reconstruir ou restaurar o povo theco, por meio de uma educação de

qualidade, e sua esperança consistia no princípio de que a educação seria uma maneira

de reconduzir os homens à paz política e social.

Na realidade, Comenius possuía duplo objetivo ao escrever a Didática tcheca

(mais tarde denominada de Didática magna): 1) Não deixar a língua theca desaparecer,

em função da imposição do idioma alemão pelos Habsburgos; 2) Incentivar o sofredor

povo theco a desejar a reforma do seu mundo por meio de educação de qualidade, que

seria a única salvação do gênero humano.

Inserido em seu mundo, Comenius possuía uma concepção crítica de sua

realidade, e viveu em busca de uma vida melhor para si e para seus conterrâneos. Mais

tarde, compreendeu a necessidade de estender sua visão teológica-educacional para

outros povos, e não somente para o theco.

Neste sentido é que se compreende seus pressupostos pedagógicos, pois

proporciona uma visão crítica do sistema educacional de seu tempo, de maneira que

após analisar tal sistema, propõe formas de amenizar a situação das instiutições escolares

de sua época.

Antes de escrever a Didática magna, Comenius havia realizado uma análise

crítica dos métodos didáticos presentes nas escolas de sua época, acusando-os de

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violentos, obscuros, confusos, duros e intricados, tornado a escola ineficiente e local de

tortura para a mente das crianças, castigando-as com coisas inúteis (COMENIUS, 1997,

p. 318).

Entretanto, pode-se perceber que Comenius compreendia a necessidade da

instituição escolar, apesar de fazer severas críticas quanto à maneira como ela estava

funcionando. Em sua concepção, o problema não estava na instituição escolar, mas em

alguns princípios que deveriam ser melhorados ou reformuladas.

Assim, na busca de uma melhor compreensão do pensamento pedagógico de

Comenius na Didática magna, dividir-se-á este capítulo, ressaltando os seguintes

presupostos: 1) O método comeniano; 2) A organização escolar; 3) A organização

pansófica.

4.1. O método comeniano

Na análise da Didática magna de Comenius, percebe-se que um dos assuntos

fundamentais da referida obra consiste em apresentar o método comeniano, que, por sua

vez, está entrelaçado com sua proposta de organização escolar. Ora, a escola deve

possuir as seguintes características:

I. Toda a juventude nela seja educada (exceto aqueles aos quais Deus negou inteligência). II. Seja educada em todas as coisas que podem tornar o homem sábio, honesto e piedoso. III Essa formação, que é a preparação para a vida, seja concluída antes da ida de adulta. IV. E seja tal que se desenvolva sem severidade e sem pancadas, sem nenhuma coarctação, com a máxima delicadeza e suavidade, quase de modo espontâneo[...].V. Todos sejam educados para uma cultura não vistosa mas verdadeira, não superficial mas sólida, de tal sorte que o homem, como animal racional, seja guiado por sua própria razão e não pela de outrem[...]. VI. Que essa educação não seja cansativa, mas facílima: que aos exercícios de classe não sejam dedicadas mais de quatro horas, de tal modo que um só preceptor possa ensinar até cem alunos simultaneamente com um trabalho dez vezes menor do que o atualmente necessário para ensinar apenas um (COMENIUS, 1997, p.110).

As características propostas pelo pedagogo Comenius mostram que sua

preocupação corresponde à “preparação para a vida”, de forma que a educação escolar

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fosse facílima (porque era adequada ao nível do aluno), não cansativa, onde um

professor pudesse ter até cem alunos e, o mais importante, esta não poderia jamais ser

enfadonha e superficial, mas alegre e sólida. Constata-se com tal concepção educacional,

uma idéia ousada e até utópica para a época.

Entretanto, Comenius insistirá no princípio de que a escola somente alcançará

êxito no processo ensino-aprendizagem se ela possuir um método adequado de ensinar

todas as artes. É nesse sentido que ele demonstrará sua proposta quanto ao método de

ensinar todas as coisas a todos.

Comenius compreendia que a tarefa não era nada fácil, sabia, ao mesmo tempo,

que muitos iriam declarar que esse pensamento era uma simples utopia. Para responder a

esse possível questionamento, ele cita alguns exemplos de fatos que ocorreram, mas que,

num primeiro momento, também se pensava serem absurdos.

Um dos exemplos mencionados por Comenius refere-se a Arquimedes, quando

prometeu ao rei Híeron que, com apenas uma das mãos, lançaria ao mar um navio tão

grande que cem homens não poderiam movê- lo; mas depois viram e pasmaram-se.

Ilustra, ainda, com o “ovo de Colombo” que, após haver descoberto as Américas,

durante um banquete foi insultado por alguns invejosos que disseram ser a sua grande

descoberta apenas fruto do acaso, e não de bravura. Colombo propôs: “como um ovo de

galinha pode ficar em pé sobre a ponta, sem nenhum suporte?” E como todos tentassem

em vão, ele o bateu ligeiramente contra a mesa e, quebrando um pouquinho só da ponta,

deixou o ovo em pé. Todos riram e gritaram que qualquer um poderia fazer aquilo.

“Podeis”, disse ele, “porque vistes que é possível; por que então ninguém, antes de mim,

foi capaz?`” (COMENIUS, 1997, p. 111). Após esses casos, Comenius ainda citou dois

mais, Johan Faust, inventor da arte tipográfica, que havia começado a dizer que conhecia

um modo de um só homem, em oito dias, produzir mais livros do que dez copistas.

Apesar de inúmeras situações de zombaria e crítica, conseguiu provar ao mundo que era

capaz.

O outro caso é do Bartholt Schwartz, inventor do canhão, que também enfrentou

grandes dificuldades em provar suas idéias, até o momento em que se tornou conhecido

tal invento.

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Comenius parecia demonstrar, com tais exemplos, um homem perseverante,

disposto a enfrentar as diversas vicissitudes que se colocassem contra seus ideais.

Demonstra que o motivo condutor de seu intento consistia em:

1) Sua concepção a respeito do homem, o qual necessitaria ser formado,

para cumprir sua responsabilidade, como ser racional e coroa da criação

de Deus, conforme visto no capítulo três;

2) Que a escola de seu tempo necessitava de princípios fundamentais de

reforma, visto que “toda a juventude deveria ser educada nas letras, nos

costumes e na piedade, sem nenhum enfado e sem nenhuma as

dificuldades que tanto os docentes quantos os discentes experimentavam

com o método comumente usado” (COMENIUS, 1997, p. 112).

O fundamento do método e a reforma proposta por Comenius consistem no

princípio de que o homem, por natureza, está pronto para aprender todas as coisas e o

desejo de saber é inato (COMENIUS, 1997, pp. 113,116).

Ora, se ao homem é inato o saber, segue-se que não há necessidade de qualquer

espécie de agressões ou métodos enfadonhos, basta despertar no homem o desejo pelo

aprendizado.

É neste contexto que Comenius escreve os capítulos XVI a XIX da Didática

magna, os quais demonstram que podemos extrair da natureza os exemplos para

alcançarmos os nossos objetivos no processo ensino-aprendizagem. Com esse objetivo,

Comenius propõe o método, para ensinar e aprender com certeza, solidez e rapidez,

todas as coisas.

Na discussão a respeito do método de Comenius, observa-se que sua

preocupação difere dos demais cientistas de sua época. Isto equivale a dizer que não

concordava com Galileu, nem tampouco com Descartes, que em sua concepção

ensinavam não a agir em conformidade com a natureza, mas desejavam ser os donos e

senhores da natureza. O método educacional e, por extensão, a ciência da educação

proposta por Comenius baseava-se no princípio de que a educação deveria imitar a

natureza, e não subjugá- la.

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Tratava-se de uma ciência da educação baseada em um método que deveria

apresentar o caráter de um sistema que exprimisse a unidade profunda da teoria e da

prática. Não se tratava unicamente de encarar a educação de outra forma, mas sim de

iniciar, a favor de uma interação viva entre a teoria e a prática, um diálogo entre o

pensamento e a experiência.

Ora, a concepção de uma ciência da educação aparece como algo novo, visto que

até então, a educação era estudada não como ciência, mas como uma parte da filosofia.

Sendo assim, esta concepção científica da educação procurará preconizar um saber e

regulamentar uma prática. Ela é quedeve ter a incumbência de tentar resolver questões

como: Como funciona uma aula? Como ensinar uma língua à criança levando em conta

as suas fases de desenvolvimento e de amadurecimento? Sendo assim, percebe-se que

para Comenius a ciência da educação, a pedagogia, tem problemas específicos que só

cabem a ela resolver.

Cauly (1995, pp. 182, 183), comentando a concepção de Comenius quanto à

ciência da educação, afirma:

A pedagogia (isto é, a didáctica) reivindica explicitamente o título de ciência baseada num método e, devido a isso mesmo, consciente do seu objecto, ou seja, uma teoria sistemática da educação e um plano de reforma prática que exprime a interacção viva do pensamento e da acção: o pensamento liberta aquilo que deve ser efectivamente realizado num novo sistema educativo que já não deixa nada à arbitrariedade e ao acaso. A educação emerge então comoo objecto de um saber e aquilo que deve ser produzido.

A pedagogia se torna, assim, uma ciência, visto que ela passa a possuir um

método próprio, um objeto de estudo que seria a teoria sistemática da educação, e um

plano de reforma prática: pensamento e ação.

Com relação ao método proposto por Comenius, Gasparin (1994, p. 144) indaga:

[...] qual a idéia, qual a concepção que Comênio fazia de método? Por que propõe um método único para as ciências, as artes, a moral e a piedade? Quais os fundamentos do método comeniano? O que é o método sincrítico? Quais as circunstâncias determinantes e os

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interlocutores que possibilitaram a Comênio construir o método de ensinar tudo a todos, totalmente?

Na análise das questões levantadas por Gasparin, emerge a idéia de que, para

Comenius, todas as coisas devem ter um método e não serem feitas ao acaso. Sem o

método, a idéia de uma racionalidade pedagógica não possui qualquer sentido. Este

método deve ser único que unifique as práticas pedagógicas, racionalize o espaço e o

tempo escolares, regular e progressivo. De forma que, para Comenius, não pode haver

ensino e aprendizagem das artes e das ciências, fragmentados, mas por meio de um

conhecimento global ou enciclopédico, que como se verá ele interpretará como sintético.

Com este pressuposto, é importante preconizar que o homem, na concepção de

Comenius é o único ser que tem a necessidade de ser educado, diferenciando-o assim

dos animais. Entretanto, tal diferença o conduz a uma responsabilidade maior frente ao

mundo em que vive, todavia nem sempre é assim; por esta razão, necessita ser educado

em um método que lhe indique a direção e lhe proporcione or ientação quanto às suas

decisões frente ao seu mundo.

O motivo para que se guie por um método está no princípio de que o homem

possui apenas embriões de progressão e disposição para a aprendizagem. Entretanto, a

única coisa que é inata no homem é a capacidade de adquir conhecimento. A educação é

o complemento natural de uma natureza não deficiente, mas incompleta que, na medida

em que pode desenvolver em conformidade com um método, encontra através dele a lei

do seu próprio desenvolvimento (CAULY, 1995, pp. 185, 186).

O próprio Gasparin (1994, p. 151), ao comentar sobre o método de Comenius,

afirma:

Como o olho humano, ainda que em bom estado e na presença da luz, nem sempre vê claramente as coisas, ou porque elas são invisíveis, isto é, encontram-se fora do alcance de nossa vista, ou porque estão muito distantes, ou são demasiadamente pequenas, do mesmo modo nossa inteligência é deficiente na investigação das coisas porque, muitas vezes, elas se ocultam à visão mental, ou encontram-se excessivamente longe dessa visão, ou evitam a penetração por causa de sua própria sutileza e minúcias. Para as carências da visão física, Comênio oferece, respectivamente, o espelho, o telescópio e o microscópio, enquanto para as intelectuais apresenta os métodos analíticos, sintético e

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sincrítico. O verdadeiro conhecimento consegue-se quando são utilizados adequadamente os métodos da mente, pois eles é que nos conduzem à essência e às causas das coisas.

Das palavras de Gasparin, podemos perceber que há somente uma forma para

compreendermos o método de Comenius, conhecendo os termos: análise, síntese e

síncrise, caracterizadores do método comeniano.

Esses métodos, ainda que distintos, são complementares; todavia, há uma ordem

na utilização de cada um deles, para que se tornem um único método na forma de operar.

[...] cabe ainda falar sobre o modo ou o método de apresentar os objetos aos sentidos, para que a impressão seja douradora. O método deve ser extraído do processo visual externo: para que se veja alguma coisa de modo correto é preciso que: 1) o objeto esteja diante dos olhos; 2) não longe, mas a justa distância; 3) não lateralmente, mas perpendicularmente aos olhos; 4) não emborcado nem torto, mas direto, 5) de tal modo que os olhos possam ver antes o objeto em seu conjunto, 6) e depois passa em revista as partes uma a uma, 7) seguindo certa ordem do princípio ao fim e 8) depois se detendo longo tempo em cada parte, 9) até que todas as coisas sejam conhecidas com as respectivas diferenças (COMENIUS, 1997, p. 237).

Pode-se afirmar que a idéia do método analítico está presente no pensamento de

Comenius, pois ele utiliza as expressões: “partes uma a uma”, dando, assim, a certeza de

que está pensando na análise, ou na decomposição das partes em relação ao todo.

É interessante observar que a síntese (olhar o todo) aparece primeiro e, somente

depois, a análise. Dessa forma, colocado em sequência o método de Comenius, pode-se

enfatizar que o método sintético é preferencial em relação ao analítico.

É mister, conhecer o pensamento de Comenius sobre cada parte desse único

método.

• Síntese – Apesar da importância da análise, ela não pode ser útil quando

considerada isolada em si mesma, ou separadamente. É necessário “reagrupá-

las [as diversas formas do conhecimento] para que adquira seu novo e

completo significado” (GASPARIN, 1994, p.152). Portanto, o segundo

passo, na questão do verdadeiro conhecimento, consiste na recomposição das

partes no seu todo, ou seja, a síntese, que é, necessariamente, integradora e

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globalizante e torna -se imensamente vantajosa para consolidar o

conhecimento das coisas.

O que for dado ao conhecimento, que seja dado antes de modo geral, e depois por partes. Por exemplo, se eu quiser proporcionar ao aluno um conhecimento verdadeiro e geral sobre o homem, direi que o homem é: 1) a criatura mais perfeita de Deus, destinada a ser senhora das outras; 2) dotada de livre-arbítrio para escolher e fazer; 3) por isso provida da luz da razão para orientar-se com prudência em suas escolhas e ações. Esta, por certo, é a noção geral, mas fundamental, de homem porque lhe atribui todos os predicados necessários[...] (COMENIUS, 1997, p. 240).

• Análise – A palavra análise é traduzida como “ato ou efeito de analisar (se),

separação de um todo em seus elementos ou partes componentes”

(HOUAISS, 2001, p. ), ou ainda, é compreendida como um estudo

pormenorizado de cada parte de um todo. Portanto, a própria palavra análise

já demonstra seu conteúdo principal, que de maneira básica significa,

“decomposição em partes”. Deve-se, assim, decompor as partes ocultas para

que sejam trazidas à luz e à percepção dos olhos e à compreensão da mente.

Na concepção de Comenius, a forma correta de chegarmos ao verdadeiro

conhecimento é através da distinção das partes. Assim, a análise faz

desaparecer a confusão e as trevas, e faz perceber as coisas clara e

distintamente (GASPARIN, 1994, p. 152).

Devem ser conhecidas todas as partes de um objeto, inclusive as mais miúdas, sem negligenciar nenhuma, respeitando-se a ordem, a posição e os nexos recíprocos. Nada é inútil, e às vezes nas partes menores reside a força das maiores. Num relógio, se um pino estiver quebrado, curvo ou ausente, toda a máquina poderá parar; se de um corpo vivo for retirado um único órgão, ele poderá perder a vida; muitas vezes num discurso até a menor palavra (como uma preposição ou uma conjunção) altera e até inverte o sentido; e assim é em tudo. Por isso, o conhecimento perfeito de uma coisa é obtido com o conhecimento de todas as suas partes, sabendo-se o que é cada uma é e qual é sua finalidade (COMENIUS, 1997, pp. 240,241).

Entretanto, somente a análise e a síntese não são suficientes para garantir a

eficiência da ação docente e discente, em sua totalidade, é necessária também a síncrise.

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• Síncrese – A palavra síncrise procede do s elementos gregos: syn,

expressando a idéia de simultaneidade, podendo ser traduzido por “com,

juntamente”, e de crinein , cujo sentido básico é “determinar, julgar,

comparar, decidir” (GASPARIN, 1994, p. 154). Trata-se de um método que

confronta duas ou mais idéias, ou realidades, buscando compreendê- las

dentro de uma totalidade. “Para Comênio o método sincrítico consiste na

ação da mente que compara uma coisa com outra, fazendo-as passar por um

crivo a fim de separar, discernir o que é o melhor de todo o resto”

(GASPARIN, 1994, p. 154).

Assim, o aspecto principal do método sincrítico consiste no princípio de que

todas as coisas, que são ocultas, podem ser comparadas com seus semelhantes, vistas por

meio de seus efeitos ou de suas imagens, capacitando-nos a emitir juízo de valor na

busca do que é verdadeiro e melhor, quanto à questão em análise.

Como os sentido são fiéis colaboradores da memória, aquele que chega a saber graças à demonstração sensível sabe para sempre. Por certo, se já experimentei açúcar, vi um Camelo, ouvi o canto de um rouxinol, estive em Roma e a visitei (com atenção), tudo isso terá sido fixado em minha memória, de onde não poderá mais desaparecer. Por esses exemplos podemos notar que será fácil imprimir na mente das crianças, por meio de imagens sensíveis, trechos bíblicos e outras histórias. [...]Se porventura, não se dispuser das coisas, será possível fazer uso de meios substitutivos, como modelos ou imagens feitas especialmente para o ensino[...] Deveriam ser construídos instrumentos semelhantes para a observação direta (imagens de coisas das quais não é possível dispor ao vivo), em cada campo do conhecimento, instrumentos que ficariam sempre à disposição nas escolas (COMENIUS, 1997, pp..235,236).

Destarte, os métodos analítico e sintético foram utilizados grandemente pelos

filósofos, tendo como seu criador Aristóteles. Todavia, o método sincrítico é de extrema

utilidade no processo de obtenção do conhecimento perfeito. Prova de que isso é

verdadeiro, está na pessoa de Jesus Cristo, que ensinava por meio de parábolas,

comparações, exemplos do cotidiano.

Comenius parece não ter sido o criador do método sincrítico, o qual fora

utilizado por Campanella. Contudo, Comenius deu vital importância ao introduzi- lo

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como um terceiro elemento para se chegar ao conhecimento adequado de todas as

coisas. Por esta razão, ele utilizou a palavra grega síncrise, em detrimento, do latim de

sua época, “comparatio ”, pois preferiu “uma raiz grega para combinar com os outros

dois métodos, o analítico e o sintético, introduzidos pelos gregos” (KULESZA, 1992, p.

92).

Assim sendo, apesar de não se encontrar especificada, na Didática magna, a

nomenclatura “sincrítico”, ela está presente, tornando-se a base fundamental do método

natural, cujo princípio norteador é a natureza, ou a comparação através da observação

que, por meio de imagens das coisas como realmente são (ou seus semelhantes, visto

que nem sempre dispomos ao vivo, da imagem das coisas, como elas são

verdadeiramente) nos ensina como devemos educar e proceder na prática educacional, a

saber, através da síntese, da análise e da síncrese. Esses três métodos proporcionam às

escolas o alcançar de sua meta que nada mais deve ser do que possuir um método de

ensino que seja: fácil, firme e rápido.

É digno de nota enfatizar, nesta parte da minha pesquisa, que o método de

Comenius está intimamente relacionado com os nossos sentidos. Em sua concepção, o

verdadeiro conhecimento surge através dos sentidos, por esta razão, podemos afirmar

que o método de Comenius, fundamenta-se, necessariamente, nos sentidos. Sendo assim,

há necessidade de se observar à importância do “ver” as coisas e, a partir do “ver”,

ocorrer o conhecimento perfeito e verdadeiro, conforme o próprio Comenius (1997, p.

233) afirma:

Então, a regra áurea dos que ensinam deve ser: todas as coisas, na medida do possível, devem ser postas diante dos sentidos. As visíveis ao alcance dos olhos; as sonoras, dos ouvidos; as que têm cheiro, do olfato; as sápidas, do paladar; as tangíveis, do tato. E se alguma houver que possa, ao mesmo tempo, ser percebida por vários sentidos, deverá ser posta simultaneamente ao alcance dos vários sentidos[...] O conhecimento tem sempre início necessariamente nos sentidos[...] por que, então a instrução deveria começar pela explicação verbal das coisas e não por sua observação direta? Só depois que o objeto foi mostrado é que pode ser explicado melhor com palavras.

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Kulesza (1992, p. 95), comentando a respeito do método de Comenius, revela

que a metodologia comeniana baseia-se realmente na natureza:

Essa é a essência do que Comenius denomina “método natural”: a busca da harmonia original presente a priori entre o homem e a natureza, ambas criações divinas. Vem daí também a analogia exaustivamente utilizada por ele, segundo a qual tal como a planta está presente na semente, o conhecimento também estaria presente em potência no homem.

Propõe, ainda, Kulesza (1992, p. 106) que, na concepção de Comenius, o

conhecimento e a pedagogia devem ser construídos através da observação da natureza,

pois somente ela (a natureza) refletirá as leis internas de seu funcionamento e é a

expressão da vontade divina e, assim, devemos compreender que a concepção

comeniana do “método natural”, aplicada à pedagogia, contém, em si, a firme crença de

que nenhum obstáculo pode entravar o método natural.

Deve-se também observar que, ao utilizar o método natural, ele deixa claro que o

alicerce de toda a aprendizagem deve partir do interior do homem, assim como a

natureza produz tudo a partir da raiz, e nada de outro elemento.

A palavra raiz pode ser entendida de duas maneiras, na concepção de Comenius:

1. A idéia de profundidade – há uma preocupação de que o aprendiz possua,

a partir do método natural, raízes profundas, tal como as árvores. Declara

ele: “[...] E a árvore, quanto mais profundas tiver as raízes, mais firme

será: e se estiverem na superfície, ela se desenraizará com facilidade”

(COMENIUS, 1997, p. 188). Pode-se afirmar, portanto, que há

necessidade de se buscar alcançar a profundidade dos conteúdos dados a

conhecer pelos alunos, não permitindo a superficialidade tão própria de

uma aprendizagem mal realizada;

2. A idéia de pensar por si mesmo – Assim como a árvore alicerça-se na sua

própria raiz e se expande através do tronco, ramos, galhos, folhas e frutos,

assim também se devem instruir os jovens.

[...] não significa atulhar suas mentes com um amontoado de palavras, frases, sentenças, opiniões extraídas dos autores, mas, ao contrário,

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desenvolver o entendimento das coisas, de tal modo que dele brotem, como fonte viva, tantos ribeiros quantas são as folhas, as flores e as frutas que brotam de uma árvore (COMENIUS, 1997, p.190).

O conhecimento deve, portanto, partir de “dentro para fora”, enquanto que na

escola de sua época, e em muitas situações do processo ensino -aprendizagem de hoje,

ainda ocorre o mesmo que ocorria naquela época. É, por essa razão, que Comenius

critica as escolas de seu tempo e tal crítica pode ser estendida a muitas das nossas

realidades escolares atuais ao dizer:

Na realidade, até agora as escolas nada fizeram para que as mentes se habituassem a robustecer-se sobre suas próprias raízes, como o fazem as árvores novas, mas ensinaram-lhes a cobrir-se apenas de raminhos arrancados de outros lugares e a vestir -se de penas alheias[...] Ou seja, não mostrando as coisas como são por si e em si, mas apenas o que disto ou daquilo pensa ou escreve fulano, sicrano, beltrano, etc., pelo que se chegou a acreditar que ser instruído significaria saber de cor as diferentes opiniões de muitos acerca de muitas coisas. Ocorre então que a maioria outra coisa não faz senão adejar de um autor para outro, respingando frases, máximas, opiniões, atulhando-se de uma ciência que não passa de manta de retalhos. Contra estes Horácio brada: “Imitadores, corja servil”. De fato, é um bando servil, habituado apenas a carregar nas costas os panos alheios (COMENIUS, 1997, pp. 190,191).

Entretanto, apesar de o homem possuir as sementes do conhecimento, ele deve

adquiri-lo a partir do seu interior, é necessário conhecer o momento propício para o

início do processo educacional.

4.2. A organização escolar

Com este pressuposto, Comenius, partindo do princípio de que o verdadeiro

método para formar de maneira correta as mentes consistia em colocar as coisas diante

dos sentidos externos, e seguindo a natureza, a qual parece ser o fundamento do método

comeniano, e considerando a ação gradual do desenvolvimento humano, Comenius

propõe a organização escolar (COMENIUS, 1997, p. 322).

A organização escolar está detalhada por Comenius nos capítulos vinte e sete a

trinta e dois da Didática magna. Para ele, a organização escolar deveria acompanhar o

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desenvolvimento físico do indivíduo em seus primeiros vinte e quatro anos de sua vida,

distribuídos em quatro estágios, de seis anos cada. A distribuição relativos aos níveis

educacionais obedeceria a seguinte ordem: a Escola Materna, a Escola Vernácula, a

Escola Latina ou Ginásio e a Academia.

• A Escola Materna

A Escola Materna teria como público alvo a faixa etária de 0 a 6 anos. O local

próprio para o início deste nível educacional é o lar (COMENIUS, 1997, p. 320), visto

que os pais ou responsáveis deveriam ser os primeiros educadores dos seus filhos. O

pressuposto básico de Comenius, ao propor a Escola Materna, é que em sua concepção

as crianças deveriam ser ensinadas desde a mais tenra idade, pois as mentes jovens,

ainda não habituadas à distração das outras preocupações, absorvem perfeitamente o

estudo do saber. Com este princípio, Comenius apresenta vinte parágrafos demonstrando

que tudo que é útil deve ser ensinado ao homem, desde a sua meninice.

É necessário, todavia, conhecer o momento propício conforme a natureza nos

ensina, para se oferecerem os conteúdos educacionais (escolares) e para que seus

objetivos sejam atingidos, visto que as crianças pequenas demais têm a raiz da

inteligência ainda escondida. Ao mesmo tempo, não se pode instruir o homem na

velhice, pois a inteligência e a memória começam a arrefecer; na idade madura, é difícil,

porque é trabalhoso reunir as forças da mente, que estão dispersas nas várias ocupações.

Propõe, portanto, Comenius, que a educação deve ser oferecida “na juventude,

quando o vigor da vida e da mente estão em ascensão: nesse momento, todas as

faculdades estão crescendo e lançando raízes profundas (COMENIUS, 1997, p. 148).

Com o mesmo princípio em mente Comenius (1997, p. 148) pontua:

Deve-se dar início à formação do homem durante a idade primaveril, ou seja, durante a infância (de fato, a infância é o símbolo da primavera; a juventude, do verão; a virilidade, do outono; a velhice, do inverno), As horas matinais são as mais propícias aos estudos[...] Tudo o que será aprendido deve ser disposto segundo a idade, para que nunca se ensine nada que não possa ser compreendido.

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Tomando, da natureza, o pássaro como exemplo, conforme preconiza Comenius,

antes de se reproduzir “primeiramente forma a semente com uma gota de seu sangue;

depois prepara o ninho para chocar os ovos e, finalmente, chocando-os com seu próprio

calor, forma a criatura e a faz sair do ovo” (COMENIUS, 1997, p. 149).

Desta forma, para Comenius, se aplicarmos esse princípio nas escolas, notaremos

que, antes de qualquer ensino, há necessidade de planejarmos previamente as aulas,

revendo todo material necessário ao seu bom desenvolvimento, como: livros, materiais

auxiliares, plano de aula com os conteúdos a serem trabalhados com a turma. Todavia, o

princípio básico é que a preparação prévia deve estabelecer a seguinte regra: primeiro

devem ser dados os exemplos, ou as ciências reais, para depois se chegar às abstratas

(COMENIUS, 1997, p. 151).

• Escola Vernácula

A Escola Vernácula ou Primária deveria compreender crianças de sete a doze

anos, e funcionaria em Comunas, Vilas e Aldeias (COMENIUS, 1997, 320). Comenius

recomenda, para esta faixa etária, a leitura e a escrita da língua pátria, ao mesmo tempo

poderiam aprender a contar, a calcular, a medir, a cantar, a memorizar salmos, hinos e

textos considerados por ele como sagrados.

É neste contexto que Comenius (1997, p. 335) preconizou que na Escola

Vernácula, sendo seu objetivo a formação da criança, deveria se ensinar tudo o que seria

útil para toda a vida:

Ler perfeitamente tudo o que está escrito e impresso em língua vulgar. Escrever, primeiro com cuidado, depois com rapidez e finalmente com propriedade, segundo as regras gramaticais do vernáculo, que será conveniente ensinar-lhes de modo simples e reforçar com exercícios constantes. Contar e calcular para uso normal. Medir segundo as normas corretas, de qualquer modo: comprimento, largura, distância etc. Cantar qualquer melodia comum: a quem tiver aptidão, poderão ser ensinados os primeiros elementos da escrita musical. Aprender de cor a maior parte dos salmos e dos hinos sagradas em uso na igreja local, para que, alimentados pelos louvores ao Senhor, saibam (como diz o

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Apóstolo) ministrar ensinamentos e admoestações a si mesmos, mediante salmos, hinos e cantos espirituais, cantando-os com seu coração cheio de graça, em homenagem a Deus. Conhecer perfeitamente, além do catecismo, os feitos e as palavras mais importantes de toda a Sagrada Escritura, para poder recitá-los. Começar a aprender, a entender e a pôr em prática a doutrina moral, definida segundo regras e ilustrada com exemplos adequados à idade. Ter acerca da economia familiar e da política conhecimentos suficientes para entender o que acontece todos os dias em casa e na cidade. Saber, em linhas gerais, a história da origem, da corrupção e da redenção do mundo que, até o momento foi administrado pela sabedoria divina. Aprender as bases da cosmografia, ou seja: a forma circular do céu ou a rotundidade da Terra, que está suspensa no meio; a extensão do oceano e a variedade dos cursos marítimos e fluviais; as partes maiores da Europa; e sobretudo as cidades, os montes, os rios da terra natal e tudo o que seja digno de nota [...] conhecer as bases gerais das artes mecânicas [...]

Os objetivos de Comenius são, de fato, interessantes, todavia, alguém poderia

objetar se tais objetivos seriam concretizados na prática educacional. Possivelmente para

responder a esta possível indagação é que Comenius, nas páginas seguintes da Didática

magna pocurou demonstrar os meios para atingir os mencionados objetivos.

São os seguintes meios para atingir tal objetivo: Os alunos da escola vernácula, que nela devem estudar durante seis nos, serão divididos em seis classes (separadas o máximo possível, para que não se incomodem reciprocamente). Cada classe terá seus livros didáticos, que conterão e desenvolverão todo o material necessário àquela classe (para as letras, os costumes e a piedade). Enquanto os jovens estiverem nessa escola esses livros deverão, infalivelmente, servir de orientação até a meta desejada, sem necessidade de nenhum outro. Para que esses livros propiciem conhecimento completo da língua vulgar, será necessário que contenham, por exemplo, todos os nomes das coisas que os alunos sejam capazes de entender, bem como os modos de se expressar mais usuais e comuns (COMENIUS, 1997, p. 337).

Comenius propõe, a partir desta faixa etária, isto é, seis anos de idade, que sejam

criados os livros didáticos. É com este pressuposto que está preocupado ao escrever sua

obra Guia para o ensino na escola materna (COMENIUS, 1997, p. 332).

Os livros didáticos seriam seis, um para cada classe, diferentes uns dos outros

não no que se refere ao conteúdo, mas à forma. Todos deveriam tratar de tudo, mas o da

primeira classe exporia as noções mais gerais, comuns e fáceis; o seguinte estimularia o

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intelecto para as noções mais específicas, menos conhecidas e mais difíceis, ou

apresentaria um novo modo de considerar as mesmas coisas, estimulando o prazer de

aprender (COMENIUS, 1997, pp. 337-338).

Demonstrar-se, abaixo, alguns princípios básicos para a composição do livro

didático, na concepção de Comenius:

• Os livros deveriam ser redigidos para todas as escolas, segundo o princípio já

observado anteriormente, cujo conteúdo deveria partir de princípios simples

para complexos (COMENIUS, 1997, p 217);

• Deveriam ser escritos em uma linguagem familiar e comum, permitindo ao

aluno o entendimento espontâneo mesmo sem a presença do mestre

(COMENIUS, 1997, p 217);

• Deveria ser elaborado em forma de diálogo, visto que seria mais facilmente

compreendido pelas crianças, pois nada é mais familiar e natural a elas do

que o diálogo, que pode conduzir o homem a qualquer lugar sem que ele

perceba (COMENIUS, 1997, p . 217);

• Haveria necessidade de representação. É mais fácil a compreensão quando,

ao ouvirmos falar, também temos a figura em nossa mente. Sendo assim,

também nas salas deveriam ser pintados, nas paredes, resumos ou ilustrações

de textos com os quais os sentidos, a memória e o intelecto dos alunos

poderiam se exercitar (COMENIUS, 1997, p 218).

Todavia, deveria se lembrar o fundamento essencial, isto é, o livro e tudo o que

for ensinado deve estar ajustado à capacidade de compreensão das crianças, de maneira

que as disciplinas deveriam preceder as lógicas; os exemplos devem preceder as regras

(COMENIUS, 1997, p. 151).

Além disso, considerando o “método natural”, tem-se que, “ao formar um

passarinho, em dado momento, constitui os ossos, os nervos e as veias e, em outro,

fortalece- lhe a carne, recobre-o de pele e depois reveste-o de penas, para em seguida,

ensiná- lo a voar” (COMENIUS, 1997, p 154). Isto significa que, ao se aplicar o método

natural quanto às questões lingüísticas e educacionais em geral, compreende-se que tudo

deve se processar gradualmente, ou seja, de forma natural.

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[...] se processar gradualmente, de tal modo que o aluno se acostume a entender (isso é muito fácil), depois a escrever (quando tem tempo de meditar) e finalmente a falar (e isso é muito difícil, porque deve ser espontâneo)” (COMENIUS, 1997, p . 174).

O ensino deve ser, então, gradual e sucessivo, seguindo o curso próprio da

natureza onde as escolas não devem abarrotar as mentes dos alunos, com muitos

conhecimentos ao mesmo tempo, porque isso traz confusões e não aprendizagem, pois

“quem presta atenção a várias coisas tem menor sensibilidade para cada uma delas”

(COMENIUS, 1997, p . 254), de forma que as escolas devem propiciar aos alunos,

disciplinas em dados períodos, com uma única matéria de estudo. Além disso, é mister

perceber que, para o pedagogo Comenius, o ensino é gradual e sucessivo no sentido de

que as disciplinas posteriores devem ser a continuação das anteriores.

Portanto, é um absurdo que os mestres não distribuam os estudos, para si e para os alunos, de tal modo que não só uns se sucedam naturalmente aos outros, mas que cada matéria seja completada em dado limite de tempo. Se não se estabelecerem muito bem os fins, os meios para atingir esses fins e a ordem dos meios será fácil esquecer ou inverter alguma coisa, e todo o estudo de algum modo será prejudicado (COMENIUS, 1997, p. 160).

É digno de nota recordar o princípio estabelecido por Comenius, que consistia,

principalmente, no fato de que a piedade, ou seja, o homem ser “paraíso de delícias para

o Criador”, deve ser o grande objetivo de nossa vida. Por essa razão, afirma que os livros

para as escolas de letras deveriam ser preparados exatamente segundo essas regras,

contendo também advertências para os professores, sobre o modo rápido e adequado de

usá- los, para que a instrução, a moral e a piedade atinjam, gradualmente, o ponto mais

alto (COMENIUS, 1997, p 226). De maneira semelhante, declara, ainda, que devemos

estudar as coisas que nos forem úteis, deixando as desnecessárias, enfatizando, assim,

que as desnecessárias são aquelas que não se aproveitam no despertamento para a

piedade ou virtude (COMENIUS, 1997, p 227).

Assim é que a preocupação gradual de qualquer método somente atingirá sua

perfeição se estiver preparando os homens não somente para as ciências, mas

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principalmente, para a vida piedosa. A razão da visão de Comenius consiste no fato de

que: “nada se aprenda apenas para a escolaridade, mas para a vida, de tal sorte que,

deixada a escola, não seja tudo levado pelo vento” (COMENIUS, 1997, p 227).

Uma das formas para se entender o pensamento de Comenius, a respeito do

termo “vida”, é que esta nada mais é do que preparação para a vida futura. Dessa forma,

o mais importante são as coisas que nos preparam para a vida futura, portanto, a

instrução, a moral e a piedade, não podendo excluir sequer uma delas. Não nos

esquecendo que ensinar para vida, significa, também, relacionar os conteúdos escolares

com o cotidiano. Esta, aliás, esta parece ser um dos fundamentos educacionais na

Didática magna.

Comenius propõe, ainda, que “o professor deve utilizar todos os meios possíveis

para que a aprendizagem se realize de modo completo e globalmente” (KULESZA,

1992, p. 110) visto que a natureza ajuda a si mesma de todas as maneiras que pode.

Portanto, o pássaro ao chocar o ovo, defende-o do vento forte, da chuva, do granizo, das

cobras e de outros perigos. Com efeito, declara ele, que não devemos iniciar os jovens

nas questões educacionais, com assuntos controvertidos, isto poderá colocar em dúvidas

coisas que ainda precisam ser aprendidas. Deve-se tomar a precaução de manter a

juventude longe dos livros ruins, errados, confusos, bem como das más amizades, mas

que dêem livros bem-feitos que possam ser inspiradores de sabedoria, virtude e piedade,

que é o fim último da escola. Tampouco, podem ser toleradas as más amizades nas

escolas ou nas suas imediações (COMENIUS, 1997, p 163).

• A Escola Latina ou Ginásio

A Escola Latina ou Ginásio seria a oportunidade de continuar os estudos e

receberia adolescentes entre treze e dezoito anos, e poderia ser estabelecida em todas as

cidades. O princípio básico da Escola Latina consiste em buscar conhecimento

enciclopédico das artes, com o conhecimento de quatro línguas (COMENIUS, 1997, p.

343).

O objetivo que deve ser alcançado nesta Escola é demonstrado por Comenius

(1997, p. 343) da seguinte maneira:

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Gramáticos, perfeitos conhecedores da líbgua latina e da vernácula, com conhecimento suficients de grego e hebraico. Dialéticos, muito hábeis em definir, distinguir, argumentar e resolver argumentações. Retóricos pu oradores, capazes de discutir com propriedade sobre qualquer assunto. Aritméticos e geômetras, tanto para as muitas necessidades da vida, quanto porque essas ciências, mais que as outras, aguçam os engenhos e os estimulam, teóricos e práticos. Astrônomos, tendo pelo menos o conhecimento das noções fundamentais sobre os movimentos celestes e dos cálculos, pois sem isso a física, a geografia e grande parte da histórica são cegas. Essas são as tão decantadas sete artes liberais, cujo ensino geralmente é exigido do professor de filosofia.

Comenius propõe enquanto conhecimento para a Escola Latina as conhecidas

sete artes liberais, iniciada com os sofistas e imensamente divulgadas, nos seus dias, a

qual era composta da seguinte grade curricular: línguas, dialética, retórica, aritmética,

música e astronomia.

Entretanto, Comenius (1997, p. 344) acrescenta:

[...] para que nossos alunos atinjam metas tão elevadas, queremos também que se tornem: Físicos capazes de entender a composição do mundo, a força dos elementos, as diferenças entre os animais, as qualidades das plantas e dos metais e a estrutura do corpo humano. Esse conhecimento compreende tanto o gênero, ou seja, como as coisas são em si, quanto sua aplicação para a utilidade da vida humana, englobando, pois, parte da medicina, da agricultura e das outras artes mecânicas. Geógrafos, que tenham gravado em suas mentes o orbe terrestre, com mares, ilhas, rios, países etc. Cronologistas, que saibam de cor, em todos os seus períodos, a sucessão dos séculos desde o início. Historiadores, que conheçam boa parte das mais importantes transformações do gênero humano, dos principais reinos, da igreja, bem como os vários ritos e feitos dos povos e dos homens. Éticos, capazes de entender com exatidão os gêneros e as diferenças das virtudes e dos vícios, fugindo destes para seguir aquelas, tanto do ponto de vista teórico quanto prático, e seu uso específico na vida familiar, política, eclesiástica etc. Finalmene, teólogos, para que não só possuam as bases de sua fé, mas sejam também capazes de extraí-las das Sagradas Escrituras.

A escola, por sua vez, deveria ser um lugar tranqüilo, bonito, bem iluminado,

limpo, ornado por pinturas, retratos de homens ilustres, mapas, recordações históricas ou

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emblemas. Deve haver, do lado de fora, nas imediações da escola, espaço não só para

brincar e andar, mas também um jardim aonde seja possível levar os alunos para que

aprendam a admirar árvores, flores, relva. “Se a escola for assim, pode-se supor que para

lá as crianças não irão com menos alegria do que sentem quando vão ao mercado, onde

sempre esperam ver ou ouvir algo de novo” (COMENIUS, 1997, p 170).

A escola, portanto, erra na educação das crianças quando elas são obrigadas a estudar a contragosto.[...] é imprescindível despertar nas crianças o amor pelo saber e pelo aprender[...] Nas crianças, o amor pelo estudo deve ser suscitado e avivado pelos pais, pelos professores, pela escola, pelas próprias coisas, pelo método, pelas autoridades (COMENIUS, 1997, pp. 168,169).

Em sua proposta da escola como lugar de prazer, Comenius demonstra que, para

atrair a juventude, devem ser ensinadas coisas relacionadas à sua própria idade e com

explicações claras e intercaladas com algumas amenidades, ou com assuntos menos

sérios, mas sempre aprazíveis.

Há algumas formas para que se estimule o amor ao estudo:

b) Espontaneidade – Tudo deve derivar do natural, pois o que é natural

progride espontaneamente. Vejamos, a natureza: “ao pássaro, não é

preciso suplicar que voe: basta abrir a gaiola” (COMENIUS, 1997, p

170). Conclui-se, portanto, que a melhor forma de se educar não é

forçar, mas despertar a curiosidade e a paixão pelo saber;

c) Método atraente – O ensino deve ser prudente e suavizado, “para que

todas as coisas até as mais sérias, [possam ser] expressas de modo

agradável e familiar, ou seja, em forma de colóquio ou de

adivinhações, ou mesmo sob a forma de parábolas e apólogos”

(COMENIUS, 1997, pp. 170,171);

d) A presença das autoridades e diretores das escolas – Comenius

prescreve que as autoridades também devem ser os grandes

incentivadores nas questões dos alunos em relação à escola e ao saber:

“As autoridades e os diretores das escolas podem estimular o zelo dos

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escolares se estiverem sempre presentes nas provas públicas (quer se

trate de discursos e discussões, quer de exames e promoções) e

distribuírem-se (sem discriminação de pessoal louvores e pequenos

presentes aos mais diligentes)” (COMENIUS, 1997, p 171).

A escola, ainda, deve ensinar conteúdos que sejam úteis para o homem. Esta

questão é interessante porque nos conduz ao caráter prático e à questão da utilidade de

tal conhecimento para a formação integral do ser humano. Segundo Comenius (1997, p.

185), a natureza deixou–nos o exemplo de que não se inicia nada que seja inútil. Por

exemplo: quando a natureza forma um pássaro, não lhe dá escamas ou barbatanas, dá-lhe

apenas aquilo que é necessário para sua sobrevivência. Nas escolas, portanto, “deve-se

estudar apenas o que tenha inquestionável utilidade nesta vida e na futura, aliás,

sobretudo na futura (de fato, nesta terra, como adverte Jerônimo, é preciso estudar as

coisas cujo conhecimento se perpetuará nos céus)” (COMENIUS, 1997, p 185).

Pode-se extrair desse pensamento de Comenius que, somente devem ocupar a

mente, coisas úteis. Ora, a questão da “utilidade” conduz-nos ao principal objetivo por

ele proposto, quando da escrita de sua obra magna, cujo conteúdo teológico precede o

pedagógico, visto que deixa claro que as coisas úteis não se referem somente àquelas

utilizadas nesta terra, mas principalmente devem conduzir ao mundo futuro, que é a

eternidade.

Destarte, o método para ser realmente útil, deve nos preparar para a vida futura, o

que leva a se pensar que a preocupação com a questão da “utilidade” refere-se,

principalmente, à “formação integral do homem” (KULESZA, 1992, p. 111).Aliás, ele

claramente expõe essa idéia ao afirmar que o ensino sobre as coisas úteis para esta vida,

não deve ser motivo para os jovens se absterem das coisas concernentes à vida eterna

(COMENIUS, 1997, p. 185) implicando que Deus e as coisas celestes devem estar, em

primeiro lugar, em nossas vidas.

Por fim, Comenius, semelhantemente à natureza, como o sol, por exemplo, que

com único raio ilumina as plantas e produz calor na terra, propõe um método único, que

deve ser utilizado pela escola no processo de ensino-aprendizagem, para ensinar todas as

ciências, conforme ele declara (COMENIUS, 1997, p. 222) :

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Assim, um orador ou um poeta, se habilidosos, conseguem numa mesma obra ensinar, comover e deleitar, mesmo que essas três atividades sejam muito diferentes uma das outras. A formação da juventude deve ser organizada de modo semelhante, para que cada atividade possa produzir mais resultados. Para tal fim, como geral, as coisas correlatas deverão ser ensinadas juntas, sempre e em toda parte. Por exemplo, ligar as palavras às coisas, a leitura à escrita, o exercício do engenho ao do estilo, o aprendizado ao ensino, as coisas sérias às agradáveis, e assim por diante.

Em síntese, Comenius propõe, a exemplo da natureza, apenas um método, o

natural (COMENIUS, 1997, p. 322), para ensinar todas as artes e todas as línguas: “a

geração de um pássaro é a mesma para todos os pássaros, aliás isso acontece com todos

os animais” (COMENIUS, 1997, p 181). Dessa forma, há necessidade de um método

apenas, extraído da natureza, para ensinar todas as artes e todas as línguas.

• Academia

A Academia, que seria o “ápice e o arremate de todas as ciências e de todas as

faculdades superiores” (COMENIUS, 1997, p. 353), poderia ser instituída nas sedes dos

reinos e em todas as províncias maiores, e estaria destinada aos jovens entre dezenove a

vinte e quatro anos e, no máximo, vinte e cinco anos. A exigência, porém, consistia no

princípio de que somente os que se destacassem na vida estudantil deveriam estudar na

Academia (COMENIUS, 1997, p. 354), visto que os trabalhos das Academias seriam

feitos com mais facilidade e maior proveito se, para elas, só fossem enviados os

engenhos mais seletos, a fina flor dos homens; os outros deverão ocupar-se daquilo para

que nasceram: agricultura, trabalhos mecânicos ou comércio (COMENIUS, 1997, p.

354).

Comenius (1997, p. 353) demonstra que esperava alcançar três objetivos quando

o aluno chegasse à Academia:

Que nelas sejam feitos estudos realmente universais, de tal modo que nada haja do campo das letras e do saber humano que ali não seja abordado. Que se empreguem os métodos mais fáceis e mais seguros para que todos os que as freqüentem adquiram sólida instrução. Que o acesso aos cargos públicos seja reservado apenas aos que tenham

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atingido a meta estabelecida e sejam dignos e capazes de ter nas mãos o governo das coisas humanas. Tomamos a liberdade de sugerir o que cada um desses pontos parece exigir.

Para que os estudos na Academia sejam universais é preciso: 1) que os

professores sejam instruídos e versados em todas as ciências, artes, faculdades e línguas,

e que, como fontes de saber vivo, sejam capazes de expressar e comunicar tudo a todos;

2) haja uma seleta biblioteca de vários autores, de uso comum (COMENIUS, 1997, pp.

353,354).

Um outro princípio enfatizado por Comenius para o bom desempenho dos alunos

na Academia refere-se ao que ele denomina de “destinado por natureza, segundo

indícios inquestionáveis” (COMENIUS, 1997, p. 354), isto é, a inclinação natural das

pessoas para determinadas tarefas, conhecida nos dias atuais, como “inteligências

múltiplas”.

Na concepção de Comenius (1997, p. 354) a natureza mostra que cada um

demonstra aptidão natural para determinadas coisas. Uns demonstram aptidões em

alguns campos, mas são uma nulidade em música, por exemplo, e assim por diante.

Assim como alguns por inclinação natural, tornam-se melhores músicos, poetas, oradores, físicos etc do que outros, também alguns são mais aptos que outros à teologia, à medicina, à jurisprudência. Nesse campo, são muito comuns erros, porque de qualquer madeira se quer fazer um Mercúrio, sem levar em conta as inclinações naturais. Por isso, acontece-nos deixar de ter resultados louváveis neste ou naquele estudo empreendido a contragosto, e muitas vezes somos mais habilidosos em alguma atividade secundária que em nossa própria atividade.

Sendo assim, na Academia haveria restrições quanto aos alunos, no que diz

respeito à suas inclinações naturais. Ora, nesse sentido observamos que as palavras de

Éster Buffa conforme visto na parte introdutória desta pesquisa, a qual compreende que

Comenius faz distinção entre os alunos tendo como foco a condição social, parece

cometer um equívoco, pois Comenius demonstra distinguir os alunos não devido às suas

condições sociais, mas devido às suas inclinações naturais.

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O próprio Come nius faz questão de afirmar que, após a formação clássica, ou

seja, a formação maternal e latina, deveria haver uma avaliação pública que preconizaria

as inclinações naturais de cada um, visando seu aproveitamento naquilo que lhe é mais

próximo, pois não se pode forçar qualquer aluno a fazer o que é contra a sua vontade,

além do que, todos eles, com suas aptidões específicas, poderão ser úteis a Deus e aos

homens.

Portanto caberia instituir, depois da escola clássica, uma avaliação pública dos engenhos, realizadas pelas autoridades escolares, que decidiriam, segundo seu parecer, quais jovens deveriam ser mandados para a Academia e quais seriam destinados a outros tipos de vida, e, entre os que prosseguissem os estudos, quais deveriam dedicar-se à teologia, à política ou à medicina, etc, a decisão levaria em conta a inclinação natural e também as prementes necessidades da Igreja e do Estado (COMENIUS, 1997, p. 354).

Ora, se há inteligências múltiplas, qual o caminho que se deve seguir para

amenizar as difere nças? Comenius aconselha o aluno a perguntar muito, reter as

respostas e transmiti- las aos outros, pois “quem ensina os outros, instrui a si mesmo”

(COMENIUS, 1997, p.112). Pode-se, assim, destacar o fato de se ser diferentes conduz

ao ensino mútuo, de forma que aqueles que possuem mais facilidade em alguns

conhecimentos podem transmitir a outros e, assim, um pode acrescentar ao outro o que

lhe faltar pela sua própria natureza.

Nesse mesmo contexto, Kulesza (1992, pp. 112, 113) comenta que, na concepção

de Comenius, o aluno e professor são aproximados na questão do conhecimento.

Há aqui ecos de Santo Agostinho, notadamente quando ele afirma no De magistro, que o “saber não passa do mestre ao discípulo como se este aprendesse o que antes ignorava; a verdade está presente por igual tanto na alma do discípulo como na do mestre”, ou quando diz no De catechizandis rudibus que “os que escutam quase que falam em nós, já que de certo modo, nós aprendemos neles o que lhes ensinamos”. Essa concepção da educação, como comunicação, anunciada já na “Saudação aos leitores” da DM – “não há para mim diferença alguma entre ensinar e ser ensinado” – torna Comenius um dos precursores da chamada “educação dialógica” que, embora reconheça a diversidade entre professor e aluno, nivela-os frente à complexidade do objeto de conhecimento.

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Por fim, é necessário observar que, para este nível escolar, todos os gêneros de

autores deveriam ser lidos, pois era de suma importância que os alunos da Academia

possuíssem um conhecimento geral dos autores, e também porque, se alguém desejasse

conhecer um autor especificamente, poderia fazê-lo mais acertadamente, pois já

conheceu muitos outros autores.

Dissemos que nas Academias devem ser lidos todos os gêneros de autores. Para que isso não seja cansativo demais, mas útil, poder-se-ia pedir aos doutos, filólogos, filósofos, teólogos e médicos que preparassem para a juventude estudiosa o mesmo que os geógrafos oferecem aos estudiosos de geografia quando encerram em mapas províncias inteiras, reinos e mundos, e quando oferecem a um só golpe de vista longas extensões de terra e mar. Por que não seria possível representar Cícero, Lívio, Platão, Aristóteles, Plutarco, Tácito? Gélio, Hipócrates, Galeno, Celso, Agostinho e Jerônimo do mesmo modo como os pintores representam ao vivo as terras, as cidades, as coisas e os homens em seus traços principais? Não seria fazendo extratos nem florilégios (como foi feito por alguns), mas reduzindo em sumas os seus sitemas integrais (COMENIUS, 1997, p. 355).

Diante disso, percebe-se que, mesmo tendo o texto bíblico como fundamento

essencial da escola, para Comenius, na Academia, outros autores poderiam ser lidos e pesquisados.

Isto posto, apresenta-se, aqui, um quadro que representa resumidamente a organização escolar porposta por Comenius, para logo, em seguida, comentar a respeito da organização escolar universal comeniana.

ORGANIZAÇÃO ESCOLAR COMENIANA Graus Escola Local Público-alvo Faixa

etária Duração

I Escola Materna Lar Infância 0-6 6 anos II Escola Primária

ou Vernácula Comunas, Vilas e Aldeias

7-12 6 anos

III Escola Latina ou Ginásio

Cidades Adolescência 13-18 6 anos

IV Academia Reinos e Províncias importantes

Juventude 19-24 6 anos

4.3. A organização escolar pansófica

Considerando o objetivo do capítulo desta pesquisa, deve -se atentar para a

proposta de uma organização universal e perfeita, que, por sua vez, está estreitamente

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relacionada com o método sincrítico, e que parece ser o foco do pensamento pedagógico

de Comenius.

Partindo do método sincrítico, Comenius compara a organização universal das

escolas com a arte tipográfica, que mesmo sendo de certa forma cara, vê-se que ela é

mais apta a transcrever livros com maior rapidez, segurança e elegância, do que vários

amanuenses (COMENIUS, 1997, p. 361).

À primeira vista, se poderia pensar que se trata de um método difícil de ser

compreendido e praticado, entretanto, em sua concepção, se tudo na escola estiver

devidamente organizado, houver livros e um método adequado no processo ensino-

aprendizagem o conhecimento fluirá naturalmente.

O que acontecerá não será nada diferente se organizarmos bem tudo o que diz respeito a essa nova e universal forma de instrução (não quero afirmar que a nossa já seja tal, mas apenas louvo a panmetodeían, método universal) de tal modo que 1) com menor número de professores seja instruído maior número de pessoas que as instruídas com os métodos até agora utilizados; 2) essas pessoas sejam instruídas de maneira mais genuína; 3) com cultura refinada e agradável; 4) participem dessse tipo de instrução mesmo os mais fracos de engenho e mais lentos de sentidos; 5) sejam capazes de ensinar com habilidade mesmo aqueles que a natureza não fez propensos ao ensino, visto que ninguém deverá tirar apenas da própria cabeça o que vai ensinar e como ensinar, mas principalmente instilar e infundir nos jovens uma instrução já preparada, com meios que encontrará prontos, ao seu alcance (COMENIUS, 1997, pp. 362, 363).

Assim sendo, Comenius (1997, p. 363) ressalta uma nova maneira, isto é, de

ensinar tudo a todos, tendo como foco a panmetodía, cujo fundamento principal é

denominado por ele de didacografia :

Voltemos às semelhanças com a arte tipográfica para explicar melhor, com uma comparação, qual é o mecanismo perfeito desse novo método, para que fique claro que as ciências podem ser impressas na mente do mesmo modo como são impressas no papel. Que motivo haverá então para não se cunhar um nome adequado a essa nova didática, como didacografia , como alusão à palavra tipografia?

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Desta forma, ao criar o método da didacografia, Comenius passa a demonstrar

como seria o referido princípio, considerando primeiramente, as comparações

estabelecidas por Comenius entre a tipografia e a didacografia.

Na didacografia (gosto de usar esse termo) é exatamente a mesma coisa. O papel são os alunos, cuja mente é impressa com os caracteres da ciência. Os caracteres tipográficos são os livros escolares e todos os outros instrumentos didáticos, por meio dos quais as matérias que devem ser aprendidas são impressas com facilidade nas mentes. A tinta é a voz do mestre, quando, a partir dos livros, ele transmite o sentido das coisas para as mentes dos alunos. A prensa é a disciplina escolar que predispõe e obriga todos a absorver os ensinamentos (COMENIUS, 1997, p. 364).

Os alunos, portanto, podem ser de qualquer tipo, todavia, quanto mais limpas as

suas mentes, mais nitidamente receberão e reflitirão os caracteres impressos. De maneira

que este método aceita mentes de todos os tipos, mas permite que progridam com mais

facilidade as mais límpidas (COMENIUS, 1997, p. 364).

Por outro lado, os caracteres de chumbo podem ser comparados aos nossos livros

didáticos, pois, como é preciso fundir, lixar e adaptar os tipos ao uso antes de começar a

imprimir os livros, também é necessário preparar os instrumentos do novo método antes

de colocá-lo em prática. Com esse pressuposto, observa-se que os livros didáticos são

apresentados por Comenius, como sendo de dois tipos: os relativos às coisas para os

estudantes e os informativos para os professores, para que estes sejam capazes de usar os

primeiros com rapidez e perfeição (COMENIUS, 1997, pp. 365,366).

Mesmo havendo os livros-didáticos, ao professor cabe a explicação dos

conteúdos. Ora, a voz do professor é considerada, neste contexto, como a tinta didática,

e sua explicação deve ter o objetivo, considerando o desenvolvimento mental dos

alunos, de produzir imagens claríssimas na mente dos alunos (COMENIUS, 1997, p.

366).

É interessante perceber que, na organização universal da escola, mesmo tendo,

como foco o professor; mesmo que haja livro-didático, e que os alunos possuam a

capacidade natural para aprender todas coisas, com aptidão natural, Comenius (1997, p.

366) propõe que haja a disciplina.

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Para terminar, a função da prensa na arte tipográfica pode ser desempenhada na escola apenas pela disciplina, para que todos recebam a instrução. Assim como, para transformar-se em livro, nenhum papel pode escapar da prensa (mais dura para os papéis mais duros, mais delicada para os mais delicados), ninguém que freqüente a escola para receber instrução poderá escapar da disciplina comum.

Comenius enfatiza a necessidade da disciplina escolar que registra no capítulo

XXVI da Didática magna, como ela deveria ser exercida. Sua concepção a respeito da

disciplina escolar parte do provérbio boêmio: “Escola sem disciplina é como moinho

sem água” (COMENIUS, 1997, p. 311), indicando que se na escola não houver

disciplina ocorrerá à displicência e o equívoco no ensino. Entretanto, não concordava

com a aplicação extremada da disciplina em sua época, ou seja, exercida por meio de

gritos, pancadas, cóleras, conforme visto no primeiro e segundo capítulos desta pesquisa.

Na análise do capítulo XXVI da Didática magna, encontram-se os seguintes

princípios propostos por Comenius para a aplicação da disciplina, haja vista que aqueles

que possuem a missão de formar os jovens têm o dever de conhecer o fim, a matéria e a

forma da disciplina, para não ignorar por que, quando e como convém deliberadamente

ser severo (COMENIUS, 1997, p. 311).

1) A disciplina deve ser exercida contra quem erra, não por ter errado,

mas para que não erre mais. Portanto, ela deve ser exercida desprovida

das paixões, iras, ódio, mas com simplicidade e sinceridade, de tal

modo que mesmo aquele a quem for aplicada perceba que é para seu

bem e que é ditada pelo afeto paterno de quem tem a responsabilidade

de guiá-lo (COMENIUS, 1997, pp. 311,312).

2) Mais rigorosa e severa deve ser a disciplina para com os que atentam

contra a moral. Comenius parece compreender que o castigo mais

severo deve ser aplicada nos princípios que firam a moral,

interpretados por ele da seguinte maneira:

Mais rigorosa e severa deve ser a disciplina para com os que atentam contra a moral: 1) para os pecados de impiedade, como blasfêmias,

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obscenidades, atos de qualquer tipo contra a lei de Deus; 2) para a arrogância ou a maldade premeditada, como quando se desprezam as ordens do preceptor ou de algum superior e não se faz deliberadamente o que se deveria fazer; 3) para os pecados de soberba e de altivez, ou mesmo de inveja e preguiça, como quando alguém se recusa a judar o companheiro que lhe pede alguma explicação (COMENIUS, 1997, pp. 313,314).

Percebe-se, diante do exposto, que, para Comenius (1997, p. 314):

[...] a falta cometida contra Deus é um crime que deve ser expiado com duríssimo castigo; a falta contra os homens ou contra si mesmo é uma iniqüidade que deve ser corrigida com duro castigo; a falta contra Priscinaimo é uma nódoa que deve ser apagada com a esponja da censura.

Entretanto, não se pode esquecer de que, na concepção de Comenius, a disciplina

deve tender a estimular e a reforçar com a constância e a prática, em todos e em tudo, o

respeito a Deus, a dedicação ao próximo e o entusiamo pelos trabalhos e deveres da vida

(COMENIUS, 1997, p. 314).

Sendo assim, somente se deve aplicar castigo extremo em casos excepcionais,

isto é, a não ser que realmente sejam necessários. É nesse contexto que Comenius afirma

(1997, p. 315):

No entanto, se para alguém, de engenho muito infeliz, esses remédios mais leves não forem suficientes, será necessário recorrer aos remédios extremos, para que nada deixe de ser tentado antes de abandonar o aluno e considerá-lo totalmente inapto à cultura, um caso sem esperança. Para alguns talvez seja verdadeiro o ditado O frígio só se corrige à força de pancadas [...] Contudo, é preciso estar atento para nunca recorrer a remédios extremos em coisas de pouca monta, como freqüentemente acontece, para que os remédios extremos não cheguem antes dos males extremos.

Está claro que a disciplina, a disciplina deve ser pedagógica e não fundamentada

em sentimentos de ira ou coisas semelhantes. Ora, no contexto da disciplina escolar,

Comenius ainda afirma, que tanto os alunos como professores sejam de tal modo

disciplinados que um único professor instrua1 com as mesmas regras um grande número

de alunos, sem permitir que qualquer aluno entre na sala de aula depois do início, nem

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tampouco que os professores os dispensem antes do final das aulas (COMENIUS, 1997,

p. 367).

Tendo esclarecido a respeito da disciplina escolar, Comenius demonstra como

deveria ser a organização escolar universal, ressaltando as estações e as horas que os

alunos deveriam ficar na escola.

1. Todas as escolas deveriam abrir e fechar ao mesmo tempo no decorrer

do ano.

Portanto, será necessário que as escolas públicas abram e fechem todas ao mesmo tempo durante o ano (a nosso ver, seria melhor no outono que na primavera ou em outras estações), para que o programa anual de cada classe seja cumprido e todos (salvo os obtusos), conduzidos em conjunto à medida, sejam promovidos para a classe seguinte: do mesmo modo como numa tipografia, depois de terminar a primeira cópia para todo os exemplares, passa-se à segunda e depois à terceira, e assim por diante (COMENIUS, 1997, pp. 367, 368).

2. Os estudos em classe não devem ultrapassar de quatro horas por dia.

Fortes razões nos aconselham a não dedicar ao estudo em classe mais de quatro horas por dia, duas pela manhã e duas à tarde. Se aos sába dos não forem cumpridas as duas horas vespertinas e se o domingo for totalmente dedicado ao culto divino, teremos vinte e duas horas semanais de estudo; em um ano (descontado também o tempo necessário às festas mais importantes), cerca de mil horas, nas quais será possível ensinar e aprender muita coisa, se tudo for feito com método! (COMENIUS, 1997, p. 368).

3. Há necessidade de períodos de repouso e recreações.

Assim, o método didático precisa de períodos de trabalhos e de períodos de repouso, com intervalos bem precisos de tempo, que serão dedicados a recreações honestas. Existem tarefas para serem desenvolvidas em um ano, um mês, um dia ou uma hora: se observadas atentamente, será impossível que alguma classe deixe de cumprir seu programa e não atinja a sua meta do ano (COMENIUS, 1997, p. 368)

Isto posto, Comenius (1997, p. 370) sintetiza a apresentação da didacografia da

seguinte maneira:

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Por ora é suficiente ter demonstrado que, assim como a descoberta da arte tipográfica possibilitou a multiplicação dos livros, veículos de instrução, também com a descoberta da didacografia ou panmétodo é possível multiplicar as pessoas instruídas para grande proveito da humanidade, segundo a máxima A multidão dos sábios é salvação do mundo inteiro (Sb VI, 26).E uma vez que nos esforcemos por multiplicar a instrução cristã para infundir, em todas as almas consagradas a Cristo, antes a piedade e depois a cultura e os costumes honestos, podemos esperar aquilo que os oráculos divinos nos ordenam esperar, que um dia a terra se encha do conhecimento do Senhor, assim como o mar está cheio de água (Is XI, 9).

Por fim, Comenius expõe os requistios necessários para começar a colocar em

prática o método universal, isto é, a didacografou panmetodia, e faz um apelo às

autoridades de sua época quanto à importância e à necessidade do estabelecimento do

referido método nas escolas. Isto pode ser visto no capítulo XXXIII da Didática magna.

A preocupação de Comenius é procurar sensibilizar as autoridades de sua época

quanto à necessidade de sustentar e aplicar na prática o método proposto por ele na

Didática magna.

Comenius parece se preocupar com o princípio em que não desejava que suas

propostas pedagógicas se tornassem exposições teóricas, mas seu intento consistia em

procurar aplica r suas propostas na prática escolar.

Acredito que ninguém, depois de examinar e refletir atentamente sobre estes assuntos, deixará de perceber que condição feliz seria a dos reinos cristãos e dos Estados se fossem criadas escolas tais quais as que desejamos. Falta acrescentar o que deve ser feito para que as teorias não continuem sendo apenas teorias, mas possam ser postas em prática (Comenius, 1997, p. 371).

Com esse pressuposto é que Comenius registra, no capítulo XXII, os requisitos

necessários para começar a pôr em prática o seu método universal, dentre os quais

ressaltarem-se alguns que estão mais próximos à natureza desta pesquisa.

1. Preparação dos livros panmetódicos. Para Comenius a base de tudo está na

preparação dos livros panmetódicos. Na realização desta preparação há

necessidade de muitos eruditos ricos de engenho que desejem implantar tal

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proposta metodológica. Portanto, há um apelo no sentido de que todos

quantos puderem colaborar na preparação destes livros.

Esse não é trabalho que possa ser feito por um só homem, sobretudo se estiver ocupado com outros afazeres ou não souber exatamente tudo o que é necessário para um método universal. Para que o trabalho seja realizado com perfeição, não basta toda uma vida de um só homem, mas é necessária uma sociedade colegiada (COMENIUS, 1997, p. 373).

2. Deveria haver sustento e preparo dos docentes. Um dos obstáculos presentes

nos dias de Comenius quanto à educação era o sustento dos docentes.

Conforme visto anteriormente, Comenius foi o primeiro a instituir a profissão

de professor, e em sua concepção o docente deveria ser sustentado pelo

Estado, Igreja e família, pois para ensinar deveria estar devidamente

preparado e capacitado para ensinar os jovens (COMENIUS, 1997, p. 372).

3. Os pais deveriam se preocupar em educar os filhos. Como pais, eles deveriam

lutar em função da organização escolar, pois tais instituições formariam seus

filhos.

Portanto, caríssimos pais, a quem Deus confiou seu mais preciosos tesouros, suas imagens vivas, inflamai-vos ao ouvir as providências que devem ser tormas, e não deixeis um só instante de suplicar ao Senhor a sua realização, e de instigar os poderosos e os eruditos com pedidos, votos, adesões e conselhos. Entrementes, educai vossos filhos no temor a Deus, preparando-os desse modo para uma cultura mais universal (COMENIUS, 1997, p. 374).

4. Os teólogos deveriam apoiar o método universal. Na concepção de

Comenius, os teólogos, que gozam de importância fundamental poderiam

prestar grande ajuda a seu projeto panmetódico.

Dirijo-me também a vós, teólogos, que pela importância da vossa dignidade podeis prestar grande ajuda ou grande desserviço aos meus projetos [...] comportemo-nos como filhos da luz, prudentes nas coisas que nos dizem respeito, sendo nosso desejo que as escolas nos forneçam ouvintes com os ouvidos mais afinados possíveis (COMENIUS, 1997, pp. 377, 378).

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5. Os príncipes deveriam apoiar o projeto de Comenius. Os príncipes ou os

governantes deveriam apoiar e contribuir para a implantação de seu projeto,

pois Deus os colocou com o objetivo de presidir todas as coisas em nome da

divindade.

Sois príncipes e, mais que os outros, tendes o dever de contribuir [...] Na verdade, aqui se mostra o caminho certo, verdadeiro e seguro para preparar muitos homens capazes de servir à pátria com estas e semelhantes descobertas, infindavelmente, uns após outros. Portanto, se Lutero, de santa memória, exortando as cidades alemãs a construir escolas, escreveu com razão que “Para cada soldo ouro gasto na construção de cidades, fortalezas, monumentos e armamentos, é preciso gastar cem para instruir com retidão um único jovem, para que este feito homem, possa guiar os outros nas coisas honestas, pois um homem sábio e bom (prossegue ele) é a mais preciosa relíquia do Estado” [...] Se acreditarmos, repito, que essas são palavras sábias, que nada se deve poupar para educar mesmo um só jovenzinho, o que quer dizer quando se trata de abrir a porta para a cultura universal de todos?[...] Por isso, não atenteis para despesas, daí ao Senhor, que vos recompensará mil vezes [...] (COMENIUS, 1997, pp. 377, 378).

Portanto, todos deveriam estar dispostos a colocar em prática sua proposta de um

método universal, em detrimento do alto custo por aluno, visto que por meio da

educação poderiam sugerir bons teólogos, médicos, governantes.

Para finalizar as considerações pedagógicas propostas e ressaltadas neste capítulo

desta pesquisa, devem-se atentar para o princípio fundamental, isto é que comenius

extrai seus pressupostos pedagógicos da natureza, visto que ele demonstra tais principios

a partir dos métodos: sintético, analítico e sincrítico. Neste sentido é que propõe o

panmetódico ou didacografia , cuja síncrese refere-se à tipografia, objetivando que haja

um método universal de ensinar tudo a todos. Ora, o método panmetódico parte do

princípio de que a mente dos alunos é como o papel que deve ser impresso por meio de

livros-didáticos e explicações dos professores. Somado a isso, Comenius propõe que a

escola considere o processo de maturação mental dos alunos, para tanto indica a sua

organização escolar que está constituída de: Escola materna, Escola vernácula, Escola

Latina e Academia, contemplando diferentes faixas etárias.